50 Anos de Regioes BOOK
50 Anos de Regioes BOOK
50 Anos de Regioes BOOK
Volume 6
50 Anos de Regiões
Metropolitanas no Brasil e a
Política Nacional de
Desenvolvimento Urbano
no cenário de adaptação das
cidades às mudanças climáticas e
à transição digital
Organizador
Marco Aurélio Costa
Governo Federal
Presidenta
Luciana Mendes Santos Servo
Diretor de Desenvolvimento Institucional
Fernando Gaiger Silveira
Diretora de Estudos e Políticas do Estado,
das Instituições e da Democracia
Luseni Maria Cordeiro de Aquino
Diretor de Estudos e Políticas Macroeconômicas
Cláudio Roberto Amitrano
Diretor de Estudos e Políticas Regionais,
Urbanas e Ambientais
Aristides Monteiro Neto
Diretora de Estudos e Políticas Setoriais, de Inovação,
Regulação e Infraestrutura
Fernanda De Negri
Diretor de Estudos e Políticas Sociais
Carlos Henrique Leite Corseuil
Diretor de Estudos Internacionais
Fábio Véras Soares
Chefe de Gabinete
Alexandre dos Santos Cunha
Coordenador-Geral de Imprensa
e Comunicação Social (substituto)
João Claudio Garcia Rodrigues Lima
Ouvidoria: http://www.ipea.gov.br/ouvidoria
URL: http://www.ipea.gov.br
Brasília, 2024
© Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada – ipea 2024
Inclui Bibliografia.
ISBN: 978-65-5635-068-4
CDD 307.7640981
Como citar:
COSTA, Marco Aurélio (org.). 50 Anos de Regiões Metropolitanas no Brasil e a Política Nacional
de Desenvolvimento Urbano: no cenário de adaptação das cidades às mudanças climáticas e à transição
digital. Brasília: Ipea, 2024. (Série Rede Ipea. Projeto Governança Metropolitana no Brasil; v.6). ISBN: 978-65-
5635-068-4. DOI: http://dx.doi.org/10.38116/978-65-5635-068-4.
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SUMÁRIO
CAPÍTULO 1
PENSAR A METRÓPOLE: TRAJETÓRIAS, TRANSIÇÕES
E CONTROVÉRSIAS.......................................................................................9
Marco Aurélio Costa
CAPÍTULO 2
A ESTRUTURAÇÃO DA POLÍTICA NACIONAL DE DESENVOLVIMENTO
URBANO E AS REGIÕES METROPOLITANAS: ENTREVISTA COM JORGE
GUILHERME FRANCISCONI.........................................................................25
Jorge Guilherme Francisconi
Cleandro Krause
Bárbara Oliveira Marguti
CAPÍTULO 3
PASSADO E FUTURO DAS REGIÕES METROPOLITANAS BRASILEIRAS:
A GÊNESE DA QUESTÃO METROPOLITANA, AS REDEFINIÇÕES NO
PERÍODO DEMOCRÁTICO E OS DESAFIOS ATUAIS PARA O
PLANEJAMENTO URBANO-METROPOLITANO..............................................45
Bárbara Oliveira Marguti
Cleandro Krause
CAPÍTULO 4
A QUESTÃO METROPOLITANA BRASILEIRA: ENTREVISTA
COM LUIZ CESAR DE QUEIROZ RIBEIRO......................................................75
Luiz Cesar de Queiroz Ribeiro
Marco Aurélio Costa
Luis Gustavo Martins
Carlos Henrique Carvalho Ferreira Junior
CAPÍTULO 5
AS METRÓPOLES BRASILEIRAS: A INCONTORNÁVEL
REFORMA URBANA....................................................................................97
Luiz Cesar de Queiroz Ribeiro
Sérgio de Azevedo
Juciano Martins Rodrigues
CAPÍTULO 6
METRÓPOLES E GOVERNANÇA METROPOLITANA:
ENTREVISTA COM JEROEN KLINK..............................................................129
Jeroen Johannes Klink
Gerardo Silva
Marco Aurélio Costa
Carlos Henrique Carvalho Ferreira Junior
CAPÍTULO 7
O PAPEL DOS ESTADOS NO IMPASSE DA QUESTÃO
METROPOLITANA NO BRASIL....................................................................139
Gerardo Silva
CAPÍTULO 8
PASSADO E FUTURO DA GOVERNANÇA DAS REGIÕES
METROPOLITANAS: ENTREVISTA COM MILA DA COSTA............................153
Mila Batista Correa Leite da Costa
Bárbara Oliveira Marguti
Cleandro Krause
Marco Aurélio Costa
CAPÍTULO 9
A EMERGÊNCIA DA QUESTÃO METROPOLITANA: INTRODUÇÃO
DA METRÓPOLE NO PLANEJAMENTO URBANO BRASILEIRO......................171
Carlos Henrique Carvalho Ferreira Junior
Armando Palermo Funari
CAPÍTULO 10
DESAFIOS DE GOVERNANÇA E GESTÃO DA METRÓPOLE AMAZÔNICA:
ENTREVISTA COM EDMILSON BRITO RODRIGUES......................................197
Edmilson Brito Rodrigues
Marco Aurélio Costa
Carlos Henrique Carvalho Ferreira Junior
CAPÍTULO 11
ENTRE O URBANO E O REGIONAL: AS METRÓPOLES E OS
FUNDOS CONSTITUCIONAIS DE FINANCIAMENTO ...................................209
Rodrigo Portugal
CAPÍTULO 12
QUESTÕES ABERTAS DO FEDERALISMO BRASILEIRO:
ENTREVISTA COM FERNANDO REZENDE...................................................223
Fernando Antônio Rezende da Silva
Luis Gustavo Martins
Marco Aurélio Costa
Armando Palermo Funari
CAPÍTULO 13
AS METRÓPOLES BRASILEIRAS NO CONTEXTO DAS MUDANÇAS
CLIMÁTICAS: ENTREVISTA COM CARLOS NOBRE.......................................237
Carlos Nobre
Marco Aurélio Costa
Laurita Hargreaves-Westenberger
Gustavo Luedemann
Armando Palermo Funari
CAPÍTULO 14
MEIO AMBIENTE E A (RE)PRODUÇÃO DAS DESIGUALDADES
SOCIAIS NAS METRÓPOLES BRASILEIRAS .................................................249
Laurita Hargreaves-Westenberger
Armando Palermo Funari
CAPÍTULO 15
TRANSFORMAÇÃO DIGITAL E A INCORPORAÇÃO DE NOVAS
TECNOLOGIAS DE INFORMAÇÃO NA GESTÃO METROPOLITANA:
ENTREVISTA COM REGINA HELENA ALVES DA SILVA................................273
Regina Helena Alves da Silva
Raphael Brito Faustino
Marco Aurélio Costa
CAPÍTULO 16
A METRÓPOLE DIGITAL: PARA A CRÍTICA DA ECONOMIA
POLÍTICA DAS TECNOLOGIAS DE INFORMAÇÃO E COMUNICAÇÃO ..........289
Raphael Brito Faustino
uma RM; seu campo temático básico (interesse metropolitano); e sua estrutura
de planejamento e gestão.
A criação das primeiras oito RMs do país – nove, com a criação da RM do
Rio de Janeiro, em 1974, após a fusão dos estados da Guanabara e do Rio de
Janeiro – somente pode ser compreendida a partir do entendimento do contexto
e da conjuntura daquele momento histórico. Naquela ocasião, o país, sob um
regime militar autoritário e tecnocrático, procurou alinhar-se ao paradigma de
desenvolvimento ocidental, por meio da modernização de sua economia e do
aparato normativo estatal, em um momento em que havia muito pouca reflexão
crítica em torno desse modelo de desenvolvimento.
As metrópoles, criadas e pensadas no âmbito do II Plano Nacional de Desen-
volvimento (PND), seriam os hubs do desenvolvimento nacional. Receberiam inves-
timentos que qualificariam seus espaços (econômicos), os quais estariam habilitados
a receberem investimentos que alavancariam o desenvolvimento de suas regiões e do
país, buscando se aproveitar dos recursos naturais, sociais e econômicos disponíveis
localmente, mas com vistas também à sua diversificação e ampliação. Trata-se, por-
tanto, de projeto de modernização alinhado a uma perspectiva de desenvolvimento
voltada para o crescimento e o uso intensivo dos recursos naturais e socioeconômicos.
O edifício jurídico-normativo, institucional, que daria forma às RMs no país,
até por força da matriz autoritária do regime, gerou estruturas metropolitanas com
relativa rapidez. Nas regiões estabelecidas pelas LCFs, os órgãos de planejamento
metropolitano foram criados e passaram a atuar, sobretudo, na elaboração dos
planos integrados de desenvolvimento econômico e social.
Favorecia o esforço de planejamento e gestão em construção o fato de que a
questão social e urbana trazia uma escala que era nova e potente: o grau de urbanização
do Brasil avançou muito nos anos 1960, e as grandes cidades experimentaram taxas
de crescimento muito elevadas. De certa forma, a questão urbana e a “novidade” me-
tropolitana mobilizavam atores sociais, políticos e econômicos e encontravam alguma
ressonância na opinião pública, notadamente nos estratos sociais urbanos.
A necessidade do planejamento voltado para o desenvolvimento era um axioma
que alimentava e se alimentava da própria constituição da tecnoburocracia estatal, que
estaria encarregada de criar os canais, as infraestruturas e os elementos necessários para
favorecer o desenvolvimento, entendido ali sobretudo como um quase sinônimo de
crescimento econômico. “Primeiro, vamos crescer o bolo...”, dizia-se à época.
Ainda que todo esse processo tenha se dado em contexto inicial de transfor-
mação da economia, ainda que a economia brasileira tenha sofrido com os baques
dos choques de petróleo e que tenha experimentado décadas de crise, com endivi-
damento externo, hiperinflação e baixo crescimento econômico, essa construção
Pensar a metrópole: trajetórias, transições e controvérsias | 11
metropolitana, tal como pensada em 1973, teve um período glorioso, o que foi
reforçado pelas funções de regulação urbanísticas advindas da Lei Federal no 6.766,
de 19 de dezembro de 1979, por meio do instituto da anuência prévia da autori-
dade metropolitana, para os casos previstos em lei, de projetos de loteamentos e
desmembramentos de glebas.
O nascimento das RMs brasileiras deu-se e desenvolveu-se, em seus primeiros
quinze anos, em determinado contexto/conjuntura muito particular, no qual cabia
ao Estado estabelecer algumas condições de modernização e regulação que eram
importantes para que o território metropolitano se qualificasse para a promoção
do desenvolvimento capitalista. O Estado, naquele contexto e formato, fazia-se
necessário. A conjuntura e o contexto eram favoráveis àquela construção institu-
cional. Contudo, o quadro alterou-se muito desde então.
Com o fim do período autoritário, do regime militar, a trajetória das RMs
no Brasil passa por outra fase, marcada agora por um processo de descentraliza-
ção institucional tão vigoroso quanto confuso e eivado de tensões. De um lado, a
Constituição Federal de 1988 (CF/1988) estadualizava a competência para criar
as RMs, ao permitir que cada governante desse nível de governo intermediário
lidasse com o tema de acordo com seus interesses, seus propósitos e suas estratégias.
De outro, dado o movimento do pêndulo centralização-descentralização no sentido
da valorização da esfera local, trazia o reconhecimento do município como ente
da Federação, e outras determinações presentes no quadro jurídico-institucional
intensificaram as tensões e os conflitos verticais e horizontais federativos, criando
um campo minado para as práticas de planejamento e gestão metropolitana.
Naquele período, conforme apontamos em outro lugar (Costa, Matteo e
Balbim, 2010), observa-se a paradoxal convivência da fragilização institucional
e do enfraquecimento da agenda política metropolitana com um processo intenso
de metropolização institucional.1
No período pré-CF/1988, havia apenas as nove RMs criadas por norma
federal nos anos 1970. Entre 1988 e a sanção do Estatuto da Cidade (EC), é
criada mais uma dezena de RMs; entre 2010 e o período 2015-2016, quando
passa a viger o Estatuto da Metrópole (EM), mais de quarenta RMs são criadas
no país, gerando uma dissociação entre o fato metropolitano e o reconhecimento
institucional metropolitano.
Por fim, no período mais recente, a partir do EM, verificou-se, a princípio,
uma movimentação em muitas RMs, com vistas a atingir o status da gestão plena,
tal como previsto no EM, mas as alterações legais de 2018 – em especial, a Medida
1. O termo metropolização institucional foi cunhado em contribuição feita em 2012, a qual foi o primeiro esforço para
constituir o projeto Governança Metropolitana no Brasil. Foi feito ali o primeiro balanço do número de RMs do país, com
um quadro sobre alguns aspectos de sua estrutura de gestão e sua governança. Ver Costa, Matteo e Balbim (2010).
12 | 50 anos de regiões metropolitanas no Brasil e a Política Nacional de Desenvolvimento Urbano
FIGURA 1
A trajetória dos cinquenta anos de RMs no Brasil
Elaboração do autor.
Obs.: Ilustração cujos leiaute e textos não puderam ser padronizados e revisados em virtude das condições técnicas dos
originais (nota do Editorial).
2. O EM estabelece como condições para a gestão plena: i) formalização e delimitação da RM mediante lei comple-
mentar estadual; ii) estrutura de governança interfederativa própria, nos termos do art. 8o do EM; e iii) possuir PDUI
aprovado mediante lei estadual.
Pensar a metrópole: trajetórias, transições e controvérsias | 13
3. Há uma literatura crescente sobre o tema do antropoceno, sobretudo nos países centrais. A tese básica é de que o
desenvolvimento capitalista baseado em uma noção de crescimento ilimitado e abundância de recursos não mais se
sustenta, ao passo que as pegadas deixadas pelo homem no planeta conformam uma nova realidade, segundo a qual
a ação do homem sobre a Terra é capaz de afetar suas condições de habitabilidade, interferindo diretamente sobre as
condições climáticas, por meio, em especial, da emissão de gases de efeito estufa (GEEs). A ação humana, a humanidade,
passa a ser uma força geológica. Entre outras referências, ver Saito (2022) e Latour (2023).
14 | 50 anos de regiões metropolitanas no Brasil e a Política Nacional de Desenvolvimento Urbano
4. Segundo relatório do Banco Mundial, “a deterioração do mercado de trabalho diminuiu a renda domiciliar, com os
40% mais vulneráveis da população sendo os mais atingidos” (Pobreza..., 2022). O fenômeno da concentração de
renda na pandemia, contudo, não se restringe ao Brasil (Pesquisa..., 2022).
Pensar a metrópole: trajetórias, transições e controvérsias | 15
5. No original: "global greenhouse gas emissions have continued to increase, with unequal historical and ongoing con-
tributions arising from unsustainable energy use, land use and land-use change, lifestyles and patterns of consumption
and production across regions, between and within countries, and among individuals".
6. Segundo matéria publicada recentemente na The Economist, os pobres do mundo precisam estar informados dos
desastres decorrentes das mudanças climáticas a tempo de se precaverem. A matéria apresenta sugestões baseadas
em inteligência artificial para defender a necessidade de alerta para eventos climáticos (The world’s..., 2023).
16 | 50 anos de regiões metropolitanas no Brasil e a Política Nacional de Desenvolvimento Urbano
Partir dessa grande controvérsia pode ser muito útil, no sentido de construir
uma base para explorar as demais controvérsias que derivam da “mudança de épo-
ca”. No fundo, há aqui uma controvérsia entre quem entende que a história é uma
disciplina morta e que, no máximo, temos a passagem do tempo, em uma linha
evolutiva que se desenvolve de forma proporcional aos avanços do meio técnico e
dos usos da tecnologia; em contraposição a quem busca dar sentido à história a partir
do reconhecimento dos processos socioespaciais e econômicos que esta engendra.
Essa controvérsia é reforçada por aquela que discute se há mesmo alguma mu-
dança climática no planeta decorrente da ação do homem. Ou seja, reconhecendo-se
que há alterações no clima, tributam-se tais mudanças a processos e cíclicos que
fazem parte do próprio planeta ou se atribui à humanidade, à ação humana, a
capacidade de, pela primeira vez na história do planeta, alterar o clima e afetar as
condições de habitabilidade da Terra?
No fundo, essas controvérsias guardam relação com o modo de desenvolvimento
socioeconômico predominante há alguns séculos não apenas no mundo ocidental,
mas também em todo o planeta. É possível pensar na continuidade do atual paradig-
ma de desenvolvimento, baseado em ideias modernas de abundância e autonomia e
tendo como corolário uma visão dual de cultura e natureza, de sujeito e objeto? Ou
as evidências da mudança de época apontam para a necessidade de repensar os valores
vigentes, a partir do reconhecimento da complexidade e interdependência do mundo,
da inseparabilidade e de imbricações de cultura e natureza, de sujeito e objeto?
Se as pessoas estão desorientadas com a questão ecológica e não podem reagir rapida-
mente diante de uma situação que todos sabemos que é catastrófica; isso se deve, em
boa medida, ao fato que continuam no mundo de antes. Um mundo de objetos sem
agency e que são controlados a partir do cálculo, um mundo de ciências apropriáveis,
um mundo de abundância e conforto disponibilizado pelo sistema de produção.
Contudo, esse não é o mundo no qual estamos agora, e é nesse sentido que houve
uma mudança de mundo. Saímos de um mundo feito por objetos conhecidos pela
ciência, no qual nossas próprias ideias são ideias subjetivas para adentrarmos em
outro mundo, em que vivemos entre outros seres vivos que fazem coisas estranhas e
reagem muito rapidamente às nossas ações (Latour, 2023, p. 32-33, tradução nossa).
Esse conjunto de controvérsias globais do tempo presente possui um rebati-
mento interescalar. Pode-se não apenas discutir cada elemento dessas controvérsias
em termos planetários, mas também é possível pensá-las em escalas nacionais,
regionais e locais. Como exemplifica Latour (2023), em uma das entrevistas, o que
acontece com a produção de soja no Brasil afeta e, portanto, diz respeito, aos pro-
dutores da Bretanha que consomem essa comodity brasileira. “As ações de humanos
em um local cria para eles e para outros humanos em outros lugares condições de
inabitabilidade (...) as condições atmosféricas, alimentares e a temperatura são o
produto involuntário daqueles seres vivos” (Latour, 2023, p. 34, tradução nossa).
Pensar a metrópole: trajetórias, transições e controvérsias | 19
REFERÊNCIAS
BLANCO, I.; GOMÀ, R. O municipalismo do bem comum. Barcelona: Icária, 2016.
COSTA, M. A.; MATTEO, M.; BALBIM, R. N. Faces da metropolização no
Brasil: desafios contemporâneos na gestão das regiões metropolitanas. In: CAR-
DOSO JUNIOR, J. C. P. (Coord.). Infraestrutura social e urbana no Brasil:
subsídios para uma agenda de pesquisa e formulação de políticas públicas. Brasília:
Ipea, 2010. l. 6, v. 2.
IBGE – INSTITUTO BRASILEIRO DE GEOGRAFIA E ESTATÍSTICA. Região
de Influência das Cidades. Rio de Janeiro: IBGE, 2020.
IPCC – INTERGOVERNMENTAL PANEL ON CLIMATE CHANGE. Cli-
mate Change 2023: synthesis report – summary for policymakers. Geneva: IPCC,
2023. p. 1-34. Disponível em: https://www.ipcc.ch/report/ar6/syr/downloads/
report/IPCC_AR6_SYR_SPM.pdf.
KLINK, J. J. Por que as regiões metropolitanas continuam tão ingovernáveis?
Problematizando a reestruturação e o reescalonamento do Estado social desen-
volvimentista em espaços metropolitanos. In: FURTADO, B. A.; KRAUSE, C.;
FRANÇA, K. C. B. de (Ed.). Território metropolitano, políticas municipais:
por soluções conjuntas de problemas urbanos no âmbito metropolitano. Brasília:
Ipea, 2013.
Pensar a metrópole: trajetórias, transições e controvérsias | 21
BIBLIOGRAFIA COMPLEMENTAR
BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Brasília:
Congresso Nacional, 1988. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/
constituicao/constituicao.htm.
BRASIL. Lei Complementar Federal no 14, de 8 de junho de 1973. Estabelece as
regiões metropolitanas de São Paulo, Belo Horizonte, Porto Alegre, Recife, Salva-
dor, Curitiba, Belém e Fortaleza. Diário Oficial da União, Brasília, 11 jun. 1973.
BRASIL. Lei Complementar Federal no 20, de 1o de julho de 1974. Dispõe sobre
a criação de estados e territórios. Diário Oficial da União, Brasília, 1o jul. 1974.
BRASIL. Lei Federal no 6.766, de 19 de dezembro de 1979. Dispõe sobre o parcelamen-
to do solo e dá outras providências. Diário Oficial da União, Brasília, 20 dez. 1979.
BRASIL. Lei no 10.257, de 10 de julho de 2001. Regulamenta os arts. 182 e 183
da Constituição Federal, estabelece diretrizes gerais da política urbana, e dá outras
providências. Diário Oficial da União, Brasília, 11 jul. 2001.
BRASIL. Lei no 13.089, de 12 de janeiro de 2015. Institui o Estatuto da Metrópole,
altera a Lei no 10.257, de 10 de julho de 2001, e dá outras providências. Diário
Oficial da União, Brasília, 13 jan. 2015.
Parte I
Entrevistadores2
Cleandro Krause
Bárbara Oliveira Marguti
4. Conforme apresentado no II Seminário sobre Política de Desenvolvimento Urbano para o Estado do Rio Grande do
Sul, em Porto Alegre, em 1972.
5. Centro de ensino e pesquisa da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ).
28 | 50 anos de regiões metropolitanas no Brasil e a Política Nacional de Desenvolvimento Urbano
7. Trata-se da área de colonização por imigrantes europeus, majoritariamente alemães e italianos, iniciada no estado
em 1824.
8. Conforme apresentado no II Seminário sobre Política de Desenvolvimento Urbano para o Estado do Rio Grande do
Sul, em Porto Alegre, em 1972.
30 | 50 anos de regiões metropolitanas no Brasil e a Política Nacional de Desenvolvimento Urbano
10. Plano Estrutural de Organização Territorial do Distrito Federal, aprovado pelo Decreto no 4.049, de 10 de janeiro
de 1978.
32 | 50 anos de regiões metropolitanas no Brasil e a Política Nacional de Desenvolvimento Urbano
11. Refere-se ao mapa que consta no capítulo de política urbana do II PND, no qual estão definidas categorias de áreas
urbanas. Ver Francisconi e Cordeiro (2021, p. 174).
A estruturação da Política Nacional de Desenvolvimento Urbano e as regiões metropolitanas | 33
Eu, inclusive, tinha um inquérito policial militar (IPM) nas costas e fui
duas vezes chamado pelo SNI para conversar. Por conta deste IPM dos tempos
de universidade é que eu havia ido para os Estados Unidos, porque sabia que não
teria acesso a emprego no setor público no Brasil. Algo semelhante a um autoexí-
lio, mas diferente daqueles que se autoexilaram quando estavam no topo de suas
carreiras, como Fernando Henrique [Cardoso] e outros. Eu saí porque, se ficasse
no Brasil, não conseguiria nada. O melhor então era ir embora e continuar me
qualificando. Eu tive sorte porque alguém me ajudou a conseguir uma bolsa de
estudos no exterior.
Ipea: Professor, se pudermos voltar ainda um pouquinho no tempo, para o I
PND, ocorre essa ação muito forte do Miniplan, em querer tratar de uma questão
urbana, inclusive promovendo um encontro sobre política de desenvolvimento ur-
bano, no final de 1971, logo depois do I PND, em que aparecem referências sobre
as primeiras RMs – na ocasião, apenas Grande Rio e Grande São Paulo. Há também
uma menção sobre aquilo que seria uma região geoeconômica de Brasília, refletindo
certa tensão entre uma política urbana e uma política de integração nacional, ou
mesmo uma política urbana imersa na política de integração nacional. É sobre esses
esforços simultâneos que gostaríamos que nos falasse um pouco. Até que ponto a
integração nacional, ou a segurança nacional por parte do governo militar naquele
momento, poderia competir ou esvaziar o tratamento de uma questão metropolitana
que estava surgindo?
Jorge Guilherme Francisconi: Em primeiro lugar, a metrópole não surge
como tema isolado, ela surge dentro de uma hierarquia urbana. Nos anos 1960,
os geógrafos, principalmente Faissol e Rochefort, e os economistas do Ipea, como
Tolosa e outros, trabalham com o sistema urbano. É bem verdade que, nas bases,
os governos estaduais e as prefeituras já tinham começado a criar entidades me-
tropolitanas; no governo federal, havia incertezas e era difícil integrar o Ipea com
estados e municípios. Ou seja, existia a equipe da elite intelectual e os prefeitos
trabalhando o tema.
Na época do I PND, o governo federal não tinha instrumentos para atuar nos
aspectos regionais e urbanos das metrópoles, ainda que o Serfhau apoiasse o planeja-
mento metropolitano conduzido por governos estaduais. A gestão metropolitana surge
“de baixo para cima”, como quando a Prefeitura de Porto Alegre se une à Prefeitura
de Canoas para resolver problemas de “fronteira da urbanização” que a conurbação
havia criado. Houve assim uma vertente vinda desde cima e outra desde baixo, com
o Minter coordenando a política urbana regional no Brasil. Em São Paulo, o governo
estadual criou a Empresa Paulista de Planejamento Metropolitano (Emplasa), que
assumiu a liderança e publicou O desafio metropolitano em 1976 (Estado de São
Paulo, 1976). Este excelente livro tem texto de Eurico Andrade de Azevedo sobre
34 | 50 anos de regiões metropolitanas no Brasil e a Política Nacional de Desenvolvimento Urbano
distritos industriais, o texto foi para a Sema e para a SE/CNPU, que informalmente
avaliaram o texto e levaram seus pontos de vista à CNPU, a qual aprovou uma
diretriz ambiental e industrial para uso do território urbano. A comissão também
avaliava temas como a legislação urbana, que se tornou prioridade a partir de Hely
e Eurico, e foi assim que surgiu a Lei de Parcelamento do Solo Urbano, a 6.766, e o
anteprojeto da Lei de Desenvolvimento Urbano, que o Estadão publicou em 1976.
Os instrumentos e conceitos do anteprojeto foram reproduzidos por Roberto Bassul
no projeto de lei do Estatuto da Cidade.
A articulação da SE/CNPU com as RMs era de apoio político, técnico e
financeiro. No início foi frágil e só melhorou depois que, no final de 1974, nos
demos conta de que a política urbana não ia chegar a lugar nenhum se não tivesse
um instrumento financeiro. Foi por isso que lutamos para ficar com parte do Fundo
Nacional de Desenvolvimento Urbano (FNDU), que o Ministério dos Transportes
estava criando para a Empresa Brasileira de Transportes Urbanos (EBTU), e no
qual, graças ao apoio recebido, a CNPU ficou com a subconta outros programas
(OP/FNDU), que correspondia a 25% do total do FNDU. Um dinheiro que foi
fundamental para o “fazejamento” da política urbana.
A aplicação dos recursos obedecia a uma estratégia colaborativa com estados
e municípios, porque não tínhamos dinheiro suficiente para ter projetos próprios.
Dessa forma, descobrimos que a melhor estratégia para um órgão coordenador de
políticas é ajudar seus parceiros em momentos difíceis, como apoiar a conclusão
de obras no momento em que o dinheiro acabou.
Com o BNH, Maurício Schulman era o presidente, o primeiro almoço com
a diretoria foi estranho, mas logo passamos a trabalhar informalmente por telefone,
de forma colaborativa e produtiva. Esta preferência pelo informal se devia à tese de
doutorado, porque, quando estudei a gestão formal e a informal na RM de Porto
Alegre, descobri que Militão de Moraes Ricardo, que ocupava uma função menos
importante na prefeitura da capital, coordenava por telefone as instituições federais,
estaduais e municipais da RM e exercia seu poder informal com muita discrição.
Na CNPU, convidei Militão para ser meu vice, e o sistema que adotamos
consistia em evitar formalizações desnecessárias e promover encontros, convidar
para cafezinho ou almoço, conversar sobre temas. Era mais eficaz que o envio de
ofícios, porque o ofício cria uma situação mais rígida e limita a negociação.
Mais tarde, quando Militão assumiu a secretaria executiva do CNDU, ele teve
de ser mais burocrata que na CNPU, porque eles não contavam mais com o apoio
da Presidência da República, o titular do Minter queria ser presidente da República,
e a abertura política começava a influenciar os procedimentos da administração
federal. Faz pouco publiquei artigo sobre o sistema político e a gestão metropolitana
(1960/2020) na Revista Acervo (Francisconi, 2023), dedicada aos cinquenta anos
A estruturação da Política Nacional de Desenvolvimento Urbano e as regiões metropolitanas | 37
de criação das RMs. Neste, lembro o quanto a crise urbana dos anos 1970 e 1980
favoreceu o debate técnico e atraiu apoio internacional, como tudo mudou nas
décadas seguintes e que já está na hora de voltar a enfrentar o problema urbano e
o das RMs no Brasil.
Ipea: Como eram as relações da CNPU com as entidades metropolitanas
naquele momento?
Jorge Guilherme Francisconi: A CNPU surgiu em julho de 1974, e as entidades
metropolitanas já estavam bastante consolidadas em seus estados, com legislação
federal que definia o modelo de gestão, o perímetro de oito RMs e quais as funções
de natureza metropolitana. Todas elas dispunham de planos de uso do solo, a maioria
com o apoio do Serfhau e cadastros aerofotogramétricos financiados pelo BNH
para apoiar o planejamento e a gestão metropolitana e fortalecer a arrecadação do
Imposto Predial e Territorial Urbano (IPTU) pelos municípios, além de planos
setoriais para coleta de lixo, transporte público e outras atividades. As entidades
não atuavam em saneamento e habitação, mesmo quando apoiadas pelo BNH e
pela CNPU, porque poderosos grupos políticos e empresariais dominavam estas
atividades em cada estado. Já em transporte público e coleta de lixo, era possível
agir, mas surgiam imprevistos. No Rio de Janeiro, na primeira semana de operação
do sistema metropolitano de coleta de lixo aprovado por todos os municípios, o
prefeito proibiu a passagem de caminhões em Niterói, e tudo foi por água abaixo.
Na SE/CNPU, trabalhávamos para fortalecer as entidades metropolitanas
com os ministérios, os estados e as prefeituras. No Rio de Janeiro, depois da fusão
dos dois estados em 1974, trabalhou-se muito na consolidação da entidade carioca.
De forma informal ou não, havia um intercâmbio de experiências entre regiões e
no uso de consultores internacionais, como Ralph Gakenheimer, de Harvard,
e Jean-Claude Ziv, da Sorbonne. Mais tarde, com a criação da OP/FNDU, a
coordenação e o apoio passaram a ser mais eficazes, porque a CNPU dispunha de
recursos próprios e podia associar-se melhor a outras entidades, como o Grupo
Executivo para a Integração da Política de Transportes (Geipot), no transporte
público; e o BNH, em projetos específicos.
Além das nove RMs da legislação federal, havia conurbações que “de facto”
eram RMs, mas excluídas da norma federal. Nesse caso, a solução foi pedir ao
IBGE que criasse o conceito de aglomeração urbana e definisse o perímetro e as
características de cada uma. O estudo foi publicado na revista do IBGE,12 e o apoio
às metrópoles de menor porte foi dado pelo programa de apoio às aglomerações
urbanas. O objetivo dos programas criados pela CNPU – como os metropolitanos,
o Programa Nacional de Cidades de Porte Médio (CPM) e o Programa Nacional de
Centros Sociais Urbanos (CSU), hoje esquecido – era integrar o território urbano
nas políticas socioeconômicas segundo as práticas e o saber da época.
Para mim, o mais inovador e de maior sucesso foi o CSU. Emocionei-me
profundamente, em um bairro pobre de Araxá, quando entrei em um centro
social urbano funcionando integralmente, com mulheres aprendendo a costurar,
dentistas e médicos atendendo pessoas, jovens jogando futebol e basquete, crian-
ças em um parque, idosos conversando, sala de alimentação e sala de convivência
comunitária. Tudo em plena atividade. Os CSUs haviam sido concebidos para
enfrentar o inchamento (sic) urbano da época, mediante apoio aos migrantes
que chegavam sem nada nas cidades e não tinham a menor ideia do que era a
vida urbana. Foram mais de quatrocentas unidades construídas em todo o país,
e o impacto foi muito, muito bom. Depois, o programa foi extinto e nunca
chegou a ser devidamente avaliado.
Outro programa importante foi o de cidades de porte médio, previsto no
documento de 1973 e inspirado no villes moyennes de Michel Rochefort, na França,
e no Programa Cidades de Porte Médio, conduzido por Maria Adélia quando
subsecretária de planejamento em São Paulo, com Jorge Wilheim, secretário
de Estado, e Paulo Egydio Martins, governador.
Esse CPM foi criado por um grupo de trabalho coordenado por Marcos
Mendonça, integrado por técnicos de diferentes áreas do Ipea e apoiado por espe-
cialistas, em especial Michel Rochefort e Hélène Lamicq, que ficaram em Brasília
por algum tempo graças ao apoio da embaixada francesa.
Após meses de trabalho da equipe, durante seminário de avaliação da proposta
para o programa CPM, houve um fato bizarro que retrata o nível de liberdade que
dominava o Ipea. Depois da apresentação por Mendonça, surgiram elogios e todos
aplaudiram a proposta, exceto uma técnica, doutora em sociologia na França, negra
retinta, goiana, cabelo black power, que fumava um cachimbo e olhava tudo muito
quieta. Nazaré era minha “advogada do diabo” predileta, e perguntei:
“E aí, Nazaré, o que você achou disso aí?”
“Francisconi, isso aí vai dar uma merda que tu não tens ideia”.
Depois, ela elencou três ou quatro pontos e tinha toda razão. A proposta
foi corrigida e, dessa forma, surgiu o Programa Cidades de Porte Médio. Para
implantar o CPM, conseguimos algum dinheiro e, mais tarde, tivemos o apoio
do Banco Mundial. As cidades foram definidas pelo IBGE, mas em alguns estados
não havia o valor mínimo para que todas as cidades de porte médio recebessem
apoio. Isso aconteceu em Santa Catarina, estado sem metrópoles e excelente rede
de cidades de porte médio. Como havia cidade demais para o dinheiro disponível –
das sete ou oito, só havia dinheiro para cinco –, coube ao governador decidir, em
procedimento informal que nunca vazou porque criaria problemas políticos.
A estruturação da Política Nacional de Desenvolvimento Urbano e as regiões metropolitanas | 39
Na verdade, nós não conseguimos fazer muito do que pretendíamos, mas o que
fizemos foi o suficiente para ajudar alguns. No governo, o que acontece é mais ou
menos como naqueles gráficos em que a tendência de projeção é essa [explica com
a caneta inclinada no ar] e em que nunca chegamos ao desejado. Se conseguirmos
melhorar três graus, cinco graus do ângulo da tendência, já é um baita sucesso.
Tínhamos consciência de que cidades e metrópoles eram temas difíceis; os
governadores às vezes achavam que estávamos invadindo a área deles. Muitos
vinham a Brasília em busca do dinheiro, e não pelo valor do projeto. Políticos
da Câmara dos Deputados e do Senado acompanhavam governadores e prefeitos
e faziam pressão política. Eu recebi o senador José Sarney13 várias vezes, sempre
defendendo o povo do Maranhão, do Pará, e outros mais.
Trabalhávamos com este tipo de pressão, e houve fatos curiosos (agora estou
fazendo um pouco de fofoca, mas é o lado humano da coisa). Quando presidia a
EBTU, chegou um deputado federal importante, não vou citar nomes, dizendo
que ia bater em mim, me “encher de porrada” (sic) pelo que eu fizera em Goiás, que
eu prejudicara o eleitorado dele. Respondi que, se ele queria me bater, tudo bem,
mas antes devíamos ligar para o governador, porque quem definiu as cidades foi
o governo do estado, que nos encaminhou oficialmente a lista de cidades. Liguei
para o governador Irapuan, de Goiás, e o deputado resolveu o assunto com ele.
Além de mediar conflitos políticos, também era preciso ir a campo ver obras.
Houve um ano em que viajei 150 dias para ver o que acontecia nas cidades, para
conversar, para conhecer.
Acho que o sucesso de uma política pública não está só na concepção. Ou me-
lhor, está em concepção que corresponda ao que se quer, que defina como se fará e a
quem é que se quer atingir. É isso! Gostou do conceito? Acho que vou escrever um
texto sobre isso.
Ipea: Sobre as entidades, o professor Maurício Pina (diretor de planejamento
do Grande Recife Consórcio de Transporte), de Pernambuco, chama sempre atenção
para a mudança ocorrida após a Constituição Federal de 1988 (CF/1988), relativa
ao aporte de recursos para as entidades e os consórcios da época. Por exemplo, o
Grande Recife Consórcio de Transporte funcionava muito bem antes da CF/1988,
havia adesão dos municípios ao consórcio porque havia recurso. Então, quando
o senhor fala que aconteciam os apoios financeiros às RMs, da cota dos 25% que
eram do Ministério dos Transportes, gostaria de saber se existiam fluxos contínuos
para apoiar os consórcios e as entidades?
13. Então senador da República pela Aliança Renovadora Nacional; presidente, em 1985, pelo Movimento Demo-
crático Brasileiro.
40 | 50 anos de regiões metropolitanas no Brasil e a Política Nacional de Desenvolvimento Urbano
14. Criada pela Lei Estadual no 6.890, de 3 de junho de 1975, hoje Fundação de Desenvolvimento Municipal, criada
em 6 de janeiro de 1994.
42 | 50 anos de regiões metropolitanas no Brasil e a Política Nacional de Desenvolvimento Urbano
REFERÊNCIAS
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e Conjuntura, Belo Horizonte, v. 1, n. 1, p. 83-119, jan.-abr. 1986.
BOMFIM, P. R. de A. Michel Rochefort e o Instituto Brasileiro de Geografia e
Estatística na década de 1960. Sociedade & Natureza, Uberlândia, v. 27, n. 3,
p. 365-378, set.-dez. 2015. Disponível em: https://www.scielo.br/j/sn/a/hFnygM
NCGhgZXZnbM3zMfcG/?lang=pt.
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e local. Brasília: Serfhau/Minter, 1971.
ESTADO DE SÃO PAULO. Secretaria de Estado dos Negócios Metropolitanos.
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Irecê e Parintins – evolução e desafios do planejamento urbano no Brasil. Rio de
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IPEA – INSTITUTO DE PESQUISA ECONÔMICA APLICADA; IBGE –
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CAMP – UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS. Caracterização
e tendências da rede urbana do Brasil: configurações atuais e tendências da
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Rio de Janeiro: FGV; EAESP; GV, 2008. (Relatório de Pesquisa, n. 11).
SANTOS JUNIOR, O. A.; MONTANDON, D. T. (Org.). Os planos diretores
municipais pós-Estatuto da Cidade: balanço crítico e perspectivas. Rio de Janeiro:
Observatório das Metrópoles, 2011.
CAPÍTULO 3
1 INTRODUÇÃO
A questão metropolitana apenas teria começado a receber atenção do poder central
no final da década de 1960, e isso porque as grandes cidades poderiam vir a ser locus
de instabilidade social. Essa é uma avaliação feita por Bernardes (1986) ao refletir
sobre o período do regime militar. Mas já havia antecedentes importantes para que
o planejamento e a gestão metropolitanos fossem postos em prática, antes mesmo
da criação, por lei federal, das primeiras regiões metropolitanas (RMs), em 1973.
Em 1963, o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) criou o
Departamento de Estudos Metropolitanos. O órgão do governo federal para
o planejamento urbano, o Serviço Federal de Habitação e Urbanismo (Serfhau), já
vinha, desde 1966, financiando trabalhos de aerofotogrametria nas áreas metropoli-
tanas. No mesmo ano, foram criados setores de desenvolvimento urbano dentro do
Ministério do Planejamento e do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea).
E em 1967, com a criação do Ministério do Interior (Minter), esse passou a ter
um setor dedicado exclusivamente a assuntos municipais (Ipea, 2010). A previsão
legal para a criação de RMs surgiu na Constituição Federal de 1967 (CF/1967).
Por sua vez, estados e municípios começavam a enfrentar o tema da conur-
bação e procediam às primeiras delimitações do fenômeno da metropolização.
Por exemplo, em abordagem “intuitiva” da Prefeitura Municipal de Porto Alegre
realizada em 1967, seriam doze os municípios metropolitanos, eventualmente
com diferenças para outras delimitações iniciais. No ano seguinte, o IBGE listou
dezesseis municípios, enquanto o governo estadual, utilizando critérios de fluxos de
transporte, funções urbanas e continuidade de área urbanizada, listou os mesmos
doze municípios da primeira delimitação (Martins, 1992). Ao mesmo tempo, os
entes subnacionais criavam entidades metropolitanas, podendo-se citar iniciativas
pioneiras, como a criação do Grupo Executivo da Grande São Paulo (Gegran),
46 | 50 anos de regiões metropolitanas no Brasil e a Política Nacional de Desenvolvimento Urbano
(op. cit., p. 75-76), a ser obtida por meio da criação das RMs e da implantação de
polos regionais. Mas já havia diferenças no modo como seria buscada essa ênfase na
integração nacional: no Nordeste, na Amazônia e no Planalto Central, ela se daria
pelo incremento de transportes, pela colonização e pelo desenvolvimento agrícola
(Bomfim, 2007), ao passo que a proposição de RMs se limitava ao Centro-Sul
e abarcava apenas a Grande Rio e a Grande São Paulo (Bernardes, 1986, p. 95).
Trata-se de um momento em que, pode-se dizer, a política regional e a política
urbana seriam como duas faces da mesma moeda, ainda que com formas de ação
e territórios de aplicação distintos. Não havia, naquele momento, um modelo de
política urbana dirigido à integração nacional, apenas o reconhecimento da “ne-
cessidade de se promover a coordenação das atividades do governo central visando
ao ordenamento territorial e à maior eficiência dos sistemas urbanos, para maior
equilíbrio da estrutura espacial do País” (Bernardes, 1986, p. 96). Tal “coordenação
das atividades do governo central” será um tema a ser retomado adiante.
O 2o PND, por sua vez, “seria a mais ampla proposta de planejamento da
época”, em “resposta” à crise provocada pelo choque dos preços do petróleo e ao
consequente desequilíbrio na balança de pagamentos (Bomfim, 2007, p. 80).
Projetado para o período 1975-1979, o plano voltava-se para a modernização e
a competitividade da economia do Centro-Sul, enquanto a ideia de integração
nacional, em sentido estrito, destacava a “ocupação produtiva da Amazônia e
do Centro-Oeste” (op. cit., p. 82), mediante a exploração de recursos florestais,
agropecuários e minerais.
Diferentemente do plano anterior, houve no 2o PND a proposição explíci-
ta de um modelo de política urbana. Afinal, estando vigente a LC no 14/1973,
que instituiu as primeiras oito RMs, “a necessidade de uma política urbana mais
abrangente” teria ficado “evidente para os níveis de decisão superiores” (Bernar-
des, 1986, p. 98). O que teria determinado o reconhecimento dessa necessidade?
Não apenas o êxodo rural, mas, também, “a constatação da tendência à crescente
concentração de renda e a verificação de que, mesmo naquelas áreas nas quais se
pretendia ‘consolidar o desenvolvimento’, ‘bolsões de pobreza absoluta’ estavam
sendo gerados e/ou ampliados” (idem, ibidem).
Ao contrário do “tratamento idêntico” dado às RMs pela LC no 14/1973,
o texto da Política Nacional de Desenvolvimento Urbano (PNDU), proposição
coordenada por Francisconi e Souza (1976) e incluído no 2o PND, trouxe um
modelo territorial mais complexo e diversificado para as RMs. Já de saída, os autores
dão “ênfase especial às regiões metropolitanas, tanto por serem locais dinâmicos do
processo desenvolvimentista brasileiro como por nelas se localizarem os principais
problemas urbanos” (Francisconi e Souza, 1976, p. 3).
Passado e futuro das regiões metropolitanas brasileiras | 49
FIGURA 1
Estratégias nacionais de desenvolvimento urbano (1976)
2. A própria Lysia Bernardes duvidava da eficácia dessa medida, especialmente no caso da RM do Rio de Janeiro: iria
o governo estadual abrir mão da instalação de indústrias na RM em prol de outros polos regionais? (Bernardes, 1986,
p. 101, nota 19).
50 | 50 anos de regiões metropolitanas no Brasil e a Política Nacional de Desenvolvimento Urbano
3. Seguem-se as demais sugestões dos autores, nos excertos a seguir: i) “análise dos limites territoriais das áreas me-
tropolitanas de direito e de fato, com vistas a distinguir (...) regiões metropolitanas delimitadas com vistas à execução
dos serviços comuns de interesse metropolitano”; ii) estabelecimento de níveis hierárquicos de RMs; iii) “criação de
grupo jurídico ligado ao tema”; iv) “definição, análise e divulgação (...) das intenções” do governo federal quanto às
RMs, de modo a criar-se um “consenso nacional sobre o papel que cabe a cada nível de governo e a cada tipo de
serviço” urbano; v) “auxílio financeiro e técnico para elaboração de planos territoriais e implantação de um processo
de planejamento”; vi) dar condições aos organismos metropolitanos “para atuar consistente e objetivamente frente aos
problemas metropolitanos, visto não terem os Estados explorado suficientemente os potenciais da Lei Complementar
[14/1973]”; vii) “análise do problema da representação legislativa em órgãos metropolitanos”; e viii) “fortalecimento
dos poderes metropolitanos” para uma “política de uso do solo” compatível com “funções existentes” e “investimentos
realizados” (Francisconi e Souza, 1976, p. 198-199).
52 | 50 anos de regiões metropolitanas no Brasil e a Política Nacional de Desenvolvimento Urbano
constatou-se que as RMs com “melhor potencial para implantação do sistema me-
tropolitano são as metrópoles médias do Sul e Sudeste” – Porto Alegre, Curitiba e
Belo Horizonte –, sendo a situação no Norte e Nordeste “mais difícil, na medida
em que a ausência de capacidade técnica se agrava pela falta de lideranças políti-
cas interessadas, com exceção de Fortaleza” (op. cit., p. 160), onde “parece haver
condições reais para se agir em termos metropolitanos (op. cit., p. 159). Belém
se distinguiria, ainda, por “não haver consciência do fenômeno metropolitano”,
pois, “de fato, o fenômeno urbano não ultrapassa as fronteiras do município” da
capital (op. cit., p. 161).
Cabe apontar o modo como a criação da Comissão Nacional de Regiões
Metropolitanas e Política Urbana (CNPU) iria servir a esses propósitos do governo
federal, a partir de sua secretaria executiva (Francisconi e Souza, 1976, p. 198) –
devendo-se lembrar que Jorge Francisconi era, no momento em que a apresentação
do texto aqui citado foi escrita, em julho de 1975, seu titular.
Presidida inicialmente pela Secretaria Geral do Ministério do Planejamento e,
mais tarde, pela Secretaria de Planejamento da Presidência da República (Seplan/
PR), a CNPU foi, conforme Bernardes (1986, p. 102), “o grande instrumento que o
Plano [2o PND] indica, destacando suas finalidades e atribuições, algumas das quais,
aliás, conflitando frontalmente com os demais níveis de poder”. Contudo, a autora
duvida que a CNPU poderia definir as prioridades para o planejamento de cada
RM, uma vez que cabia aos governos estaduais sua implementação. Confirmava-se,
assim, o abandono da postura do Serfhau, que partiria do planejamento local e
chegaria a uma política estadual própria de cada Unidade da Federação (UF), subs-
tituída “pelo centralismo e o autoritarismo, para criar condições de implantação
para um modelo nacional de organização do território” – substituição incompleta,
é verdade, pois “os instrumentos propostos não tinham alcance para promover
uma reestruturação da organização do território” (idem, ibidem). Cabe examinar
o emprego de alguns desses instrumentos, a seguir.
A partir de 1974, caberia à CNPU apoiar a elaboração de planos, mecanismos
novos e projetos específicos para as nove RMs já criadas e aquelas em formação, para
o que “um sistema financeiro de cunho metropolitano seria criado”, devendo contar
com recursos federais (Bernardes, 1986, p. 105). Com efeito, foi instituído o Fundo
Nacional de Apoio ao Desenvolvimento Urbano (FNDU), pela Lei no 6.256/1975,
que recebeu recursos adicionais advindos da tributação de combustíveis, mas que
foram majoritariamente destinados a projetos de transporte urbano, restando 25% do
novo tributo para os programas e projetos da CNPU, destacando-se a elaboração de
planos integrados e a execução de projetos específicos.4 Mas os recursos, insuficientes
4. A Lei no 6.256/1975 criou duas subcontas: “Fundo de Desenvolvimento de Transportes Urbanos” e “Outros Programas
de Desenvolvimento Urbano”, sendo a última destinada à CNPU.
Passado e futuro das regiões metropolitanas brasileiras | 53
5. Ver capítulo 2.
6. Ver capítulo 2.
7. Ver capítulo 2.
54 | 50 anos de regiões metropolitanas no Brasil e a Política Nacional de Desenvolvimento Urbano
8. Ver capítulo 2.
9. Bernardes (1986) refere-se à ausência, no anteprojeto da LDU, de qualquer referência ao “papel das entidades
metropolitanas no ordenamento do uso do solo, quando caberia criar condições, nessa lei geral, para o revigoramento
dessas entidades como instrumento da política urbana global do País” (op. cit., p. 115). A omissão ainda é “total
quanto às relações entre o órgão metropolitano e os municípios, apesar de elas serem um dos problemas cruciais da
implementação da política urbana preconizada em qualquer das regiões metropolitanas do País” (op. cit., p. 116).
Passado e futuro das regiões metropolitanas brasileiras | 55
4.1 Belém
Antes mesmo de lei federal criar a RM, a prefeitura de Belém criou, em 1970, a
Companhia de Desenvolvimento da Área Metropolitana de Belém (Codem).17
A partir da efetivação da estrutura estadual para o planejamento metropolitano,
em 1975, a Codem18 passou a oferecer importante apoio à Secretaria de Estado de
Planejamento e Coordenação Geral (Seplan), por meio de seus planos “compreen-
sivos” (Pinheiro e Costa, 2015), termo usual à época. Em 1975, o estado do Pará
criou o Sistema Estadual de Planejamento (SEP), anexado à Seplan, tendo como
competência a criação de políticas públicas de desenvolvimento local, municipal
e metropolitano, por meio de uma Coordenadoria de Desenvolvimento Urbano e
Metropolitano (Codeurb). Quando extinta a Codeurb, o planejamento metropo-
litano perdeu unicidade e seus diversos temas foram diluídos em distintos órgãos
e secretarias, de acordo com as decisões de cada governo eleito. Ainda que lei esta-
dual19 tenha atualizado a composição da RM, definido a criação de um conselho
metropolitano – integrado apenas por membros do poder público – e previsto a
criação de um fundo de desenvolvimento da RM, a governança metropolitana do
estado permaneceu esvaziada ao longo das décadas seguintes.
4.2 Curitiba
No Paraná, o governo do estado criou, em 1974,20 a Coordenação da Região
Metropolitana de Curitiba (Comec), tendo como competências a promoção do
planejamento integrado, de estudos, projetos, programas, pesquisas e atualização
de dados, em consonância com as diretrizes do planejamento regional; a proposição de
17. Interessante relembrar aqui a percepção de Francisconi e Souza (1976, p. 161) de, em Belém, “não haver a cons-
ciência do fenômeno metropolitano”, pois, “de fato, o fenômeno urbano não ultrapassa as fronteiras do município”
daquela capital.
18. A Codem continua existindo até os dias atuais, mas sua atuação não possui abrangência metropolitana, estando
restrita à administração do patrimônio fundiário do município de Belém.
19. LC Estadual (LCE) no 27/1995.
20. Lei Estadual no 6.517, de 2 de janeiro de 1974.
58 | 50 anos de regiões metropolitanas no Brasil e a Política Nacional de Desenvolvimento Urbano
4.6 Recife
A RM do Recife teve sua estrutura estabelecida em 1974,32 em lei que criou os
conselhos deliberativo e consultivo da RM, integrantes da estrutura da Secretaria de
Coordenação Geral do Estado de Pernambuco. As atribuições dos conselhos eram
compatíveis com o previsto na legislação federal, e o apoio técnico a eles se dava pela
Secretaria Executiva do Conselho de Desenvolvimento de Pernambuco (Condepe).
Em 1974 foi criada33 a Fundação de Desenvolvimento da Região Metropolitana do
4.8 Fortaleza
Em Fortaleza, o órgão estadual especializado e independente de planejamento,
deliberação e execução de políticas voltadas para as questões metropolitanas era,
entre 1973 e 1991, a Autarquia da Região Metropolitana de Fortaleza – Aumef39
(Dantas e Costa, 2015). A Aumef possuía conselhos deliberativo e consultivo,
tendo sido responsável pela elaboração de planos diretores nos municípios metro-
politanos, assim como o Plano Geral de Desenvolvimento Urbano Integrado, entre
4.9 Salvador
Em Salvador, a “área” metropolitana foi delimitada ainda em 1970 pelo Estudo
Preliminar do Plano de Desenvolvimento Integrado da Região Metropolitana
de Salvador (PDUI-RMS), realizado pelo Conselho de Desenvolvimento do
Recôncavo (Conder), entidade existente desde 1967. Após a LC no 14/1973, o
estado se adequou ao modelo único determinado pelo governo federal e criou
seus conselhos.41 Naquele momento, o Conder assumiu o papel de órgão técnico,
executando o planejamento integrado de desenvolvimento econômico e social e
das funções públicas de interesse comum (FPICs).
A partir de 1974, o Conder passou a ter personalidade jurídica de direito pri-
vado, patrimônio próprio, com autonomia administrativa e financeira, vinculado à
Secretaria do Planejamento Ciência e Tecnologia.42 Acumulando ainda mais funções,
a partir de 1975 o Conder passou a atuar como “órgão executor de obras, coorde-
nador de projetos, além de fornecer assistência técnica aos municípios da RMS”,
além de “seu papel como agente financeiro, através do Fundo de Equipamentos da
Região Metropolitana de Salvador (FEREM), repassando recursos internacionais
de projetos do governo estadual, aos municípios pertencentes à RMS”.43
Como visto, ao menos quatro RMs, das nove criadas em 1973-1974, tiveram
suas instâncias para o planejamento criadas antes da promulgação da lei federal.
As demais rapidamente estabeleceram suas estruturas de governança, evidenciando
a força da articulação interfederativa existente no período. Uma vez expostas as
possibilidades para a governança metropolitana em cada uma das RMs criadas na
década de 1970, cabe agora examinar as transformações trazidas pela (ou com a)
redemocratização do país.
40. Plano Diretor de Assentamentos (1976), Plano Operativo da RM de Fortaleza (1977), Plano de Estruturação Metro-
politana – PEM (1988), Plano de Ação Imediata de Transportes e Tráfego – Paitt (1981), Plano de Transporte Coletivo –
Transcol (1982) e Plano Diretor de Transporte Urbano da RM de Fortaleza – PDTU (1983) (Dantas e Costa, 2015, p. 15).
41. Lei Estadual no 3.192, de junho de 1973.
42. Lei Delegada no 8, de julho de 1974.
43. Disponível em: https://www.conder.ba.gov.br/quem-somos. Acesso em: 5 jun. 2023.
62 | 50 anos de regiões metropolitanas no Brasil e a Política Nacional de Desenvolvimento Urbano
estavam, como vimos, mais desprestigiadas do que nunca. Tem destaque, em 2019,
a extinção da Emplasa pela Lei Estadual paulista no 17.056. O encerramento de
uma instituição robusta, com seus recursos humanos e técnicos – com quase cinco
décadas de acúmulo em pesquisa, acervo de dados e bases cartográficas –, denota
o lugar ocupado pelo planejamento metropolitano nos anos mais recentes. Nesse
ano, a Emplasa presidia o FNEM, que havia sido criado em 1995, e por força de
sua dissolução as atividades do fórum também foram encerradas.
Ainda em 2019, por iniciativa de gestores públicos das RMs de Belo Horizonte,
Recife e Curitiba, tiveram início ponderações a respeito da reativação do FNEM.
A atual presidenta do FNEM, Mila Corrêa Batista da Costa, uma das responsá-
veis por rearticular a rede de entidades metropolitanas, declarou que “sentia que
a experimentação da realidade metropolitana era um pouco solitária. Porque os
municípios são agremiados em várias instâncias (...), e as regiões metropolitanas,
por seu turno, ficaram sem espaço de troca e intercâmbio depois da desativação
do Fórum”.57,58
Dessa feita, a partir do esforço da equipe da Agência de Desenvolvimento da
RM de Belo Horizonte (ARMBH), o FNEM foi reativado em 15 de dezembro de
2021, tendo realizado reuniões ordinárias, a cada seis meses, e extraordinárias, além
do Seminário de 50 Anos das Regiões Metropolitanas, em 20 junho de 2023, em
Brasília. Ao todo, quatorze entidades metropolitanas compõem o fórum, com a
participação em grupos de trabalhos organizados em eixos temáticos e realizando
articulações políticas a fim de escalonar e endereçar as pautas metropolitanas para
as esferas legislativas e decisórias de governo.
Adentrando as considerações conclusivas (e provocativas) deste capítulo,
serão apresentados a seguir os principais desafios postos no presente às entidades
metropolitanas e os caminhos vislumbrados nesse espaço de representação articu-
lada de estados e municípios, que é o FNEM. De acordo com Costa, ocorre nos
encontros do FNEM o “compartilhamento sobre ônus e bônus do modelo federativo
proposto por nossa Constituição”, sendo um dos principais desafios a adesão dos
municípios ao planejamento metropolitano: “esbarramos, cotidianamente, em
desafios de natureza política, como gestões estaduais e municipais metropolitanas
de partidos distintos, gerando conflitos, divergências e disputas que prejudicam a
continuidade e a implementação de projetos técnicos de longo prazo”.59
A respeito da necessária articulação dos governos estaduais e municipais para
a efetivação da governança interfederativa, concorrem ao menos três mecanismos
que dificultam esse processo. Em primeiro lugar está a baixa sensibilidade das
57. Entrevista concedida, em 14 de abril de 2023, ao Ipea. A íntegra dessa conversa compõe o capítulo 8 desta publicação.
58. Ver capítulo 8.
59. Ver capítulo 8.
Passado e futuro das regiões metropolitanas brasileiras | 69
gestões municipais para aquilo que são os “interesses comuns”. A ausência de uma
cultura metropolitana leva os municípios a encerrarem-se em seus próprios limites
territoriais. Na percepção de Costa, só há sensibilidade por parte dos municípios
quando se deparam com algum problema que não podem resolver sozinhos,60
como são os casos de assoreamento dos rios ou das diferentes regras sanitárias em
tempos de pandemia, entre inúmeros exemplos.
Muitos dos problemas comuns entre municípios limítrofes são justamente a
razão para o estabelecimento de consórcios intermunicipais. Mas, em geral, quando
não há articulação prévia, é ao governo estadual, à entidade metropolitana que os
municípios recorrem para lidar com suas emergências transfronteiriças.
Em segundo lugar, está o funcionamento do sistema político brasileiro, “que
não permite a continuidade do planejamento metropolitano, porque a cada dois
anos temos ruptura (...) temos uma descontinuidade de relacionamento e que, por-
tanto, representa descontinuidade de qualquer política pública”. Há a necessidade
de um “movimento diplomático constante, de convencimento dos municípios a
aderirem ao planejamento metropolitano e a pensarem junto conosco, para além
de suas fronteiras”.61
Por fim, há a falta de incentivo, de um chamariz que desperte o interesse e
a confiança dos municípios e que viabilize de fato o desenvolvimento metropo-
litano. Aqui entra a discussão sobre criação do fundo metropolitano, que estava
previsto no Estatuto da Metrópole, mas foi vetado pela Presidência da República.
Sobre o veto, Costa diz: “foi uma perda importante, porque seria uma forma de
contribuição do governo federal para o planejamento regional metropolitano”.62
A União não se ausenta apenas do debate sobre o fundo metropolitano.
Desde a sanção do estatuto, em 2015, até hoje, não houve qualquer ação de
apoio do governo federal em relação às providências para a adequação das RMs
ao Estatuto da Metrópole – financeiramente, com estudos técnicos, capacitações,
campanhas, impulsionamento dos municípios a aderirem à gestão compartilhada
ou com qualquer outra iniciativa. Há oito anos não se sabe qual o real significado
do “apoio da União” mencionado na lei. Uma das proposições do FNEM a esse
respeito é, de acordo com Costa,
envolvermos efetivamente o Congresso Nacional, a Comissão de Desenvolvimento
Urbano [da Câmara dos Deputados], o Ministério das Cidades e propormos a cria-
ção de um grupo de trabalho para revisitarmos a legislação federal, seja para propor
uma alteração da Lei no 13.089/2015, para recompor o fundo que foi vetado, seja
REFERÊNCIAS
BERNARDES, L. M. C. Política urbana: uma análise da experiência brasileira.
Análise & Conjuntura, Belo Horizonte, v. 1, n. 1, p. 83-119, jan.-abr. 1986.
BOMFIM, P. R. de A. A ostentação estatística, um projeto geopolítico para o
território nacional: Estado e planejamento no período pós-64. 2007. Tese (Dou-
torado) – Departamento de Geografia da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências
Humanas, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2007.
BIBLIOGRAFIA COMPLEMENTAR
TORREÃO, G.; COSTA, M. A. (Coord.). Caracterização e quadros de análise
comparativa da governança metropolitana no Brasil: arranjos institucionais
de gestão metropolitana (componente 1) – relatório de pesquisa. Rio de Janeiro:
Ipea, 2015. (Série Governança Metropolitana no Brasil: Região Metropolitana de
Salvador). Disponível em: https://www.ipea.gov.br/redeipea/images/pdfs/governan-
ca_metropolitana/relatorio_1.1_revisao_final_salvador.pdf. Acesso em: 5 jun. 2023.
CAPÍTULO 4
Entrevistadores2
Marco Aurélio Costa
Luis Gustavo Martins
Carlos Henrique Carvalho Ferreira Junior
Ipea: Nesses cinquenta anos das regiões metropolitanas (RMs), há alguns marcos
muito importantes, na própria Constituição Federal de 1988 (CF/1988), que
trouxeram alterações significativas na forma como a questão institucional das
RMs é tratada. Depois do Estatuto da Cidade, o Estatuto da Metrópole tentou
conter o processo de institucionalização intensa que vinha ocorrendo. Assim,
pensamos em seu nome, pela sua experiência no Observatório das Metrópoles.
Nossa primeira pergunta vai nesta mesma direção: como surgiu para você a questão
da metrópole como tema? E como este processo levou ao esforço de criação do
Observatório das Metrópoles?
Luiz Cesar de Queiroz Ribeiro: Nós não começamos por aí de fato, mas por
outro tema que até hoje está muito central em nossa preocupação, que é o da re-
forma urbana. Algumas pessoas do Instituto de Pesquisa e Planejamento Urbano e
Regional (Ippur) participaram da discussão na Constituinte de 1988, colaborando
na elaboração da emenda popular para a Constituinte. Este debate contribuiu para
consolidar um campo que se formou naquele momento sobre reforma urbana e
direito à cidade. Foi a partir desta experiência que a gente começou a pensar na
ideia de constituir um observatório. A ideia do observatório era para avaliar em
que medida aqueles avanços incorporados na CF/1988 se traduziriam nas reformas
das leis orgânicas municipais e constituições estaduais, nas políticas urbanas e nas
leis de zoneamento, e, então, este foi nosso ponto de partida. Tanto que o nome
original do observatório era Políticas Urbanas e Gestão Municipal.
3. Edital Plano de Ação para a Área Social – FNDCT/Finep/BID/880/OC-BR, cujo objetivo do projeto do observatório
foi avaliar os impactos metropolitanos no Rio de Janeiro do ajuste macroeconômico e da reestruturação produtiva.
4. Criado em 1996 pelo Decreto no 1.857, de 10 de abril de 1996, o Pronex é um instrumento de estímulo à pesquisa
e ao desenvolvimento científico e tecnológico do país, por meio de apoio continuado e adicional aos instrumentos hoje
disponíveis, a grupos de alta competência que tenham liderança e papel nucleador no setor de sua atuação. Disponível
em: https://www.gov.br/cnpq/pt-br/acesso-a-informacao/acoes-e-programas/programas/pronex. Acesso em: abr. 2023.
A questão metropolitana brasileira | 77
influenciadas também pelo Harvey (1980); e, aqui no Rio de Janeiro, havia o David
Vetter, um norte-americano que começou a produzir essas ideias, que fazia parte do
Ippur antes daquela intervenção política no então Programa de Pós-Graduação em
Planejamento Urbano e Regional (PUR), existente à época no Instituto Alberto Luiz
Coimbra de Pós-Graduação e Pesquisa de Engenharia da Universidade Federal do
Rio de Janeiro (Coppe-UFRJ).5 Em São Paulo, também havia toda uma discussão
sobre periferia; então, havia um estado de pesquisa que tinha um olhar muito in-
trametropolitano para pensar as questões da desigualdade, e mesmo da democracia.
Esses foram dois temas que estiveram na raiz do debate da reforma urbana. Assim,
tem-se também essa dimensão cognitiva.
Ipea: Aproveitando um “gancho”, você falou que não havia condicionantes,
mas fatores que levaram a não considerar a questão metropolitana na primeira volta
da Constituinte de 1988. Por exemplo, a dimensão cognitiva. Mas, em 1996, ou
seja, menos de dez anos depois, ela se coloca. O que mudou? O que apareceu no
âmbito dessas pesquisas? Você falou que se fazia muita pesquisa baseada nessas
teses da causação circular, na dimensão intraurbana – talvez possamos dizer in-
tramunicipal. O que apareceu e fez com que se passasse, então, a ver a dimensão
metropolitana? Como se reconheceu a metrópole? A metrópole já estava lá há pelo
menos quarenta, cinquenta anos. Você falou em São Paulo, por exemplo. Mas
quando e como a metrópole vira um lugar de atenção e objeto de estudo?
Luiz Cesar de Queiroz Ribeiro: Eu acho até que virou pouco objeto de es-
tudo e lugar de atenção. Como objeto de estudo, acho que nós continuamos
muito embalados no nosso campo mais restrito ao planejamento urbano, que eu
conheço mais. Nós continuamos olhando muito para o intraurbano. Falávamos
inclusive isso: um dos problemas, dos desafios para construir a institucionalidade
metropolitana, é a ausência de um conhecimento sistemático sobre essa escala,
não só da questão urbana, mas da questão social, da questão ambiental e de vários
outros desafios. Acho que esse bloqueio continuou; então, o que aconteceu foi, na
verdade, acho eu, pois nunca fiz uma sociologia do Estatuto da Metrópole, foi um
arranjo técnico-burocrático, muito capitaneado por São Paulo. São Paulo nunca
deixou de ter completamente um estamento burocrático, uma tecnoburocracia.
São Paulo nunca deixou de dar relevância à dimensão metropolitana no ideário
de planejamento. Tanto é que a Empresa Paulista de Planejamento Metropolitano
(Emplasa) e o pessoal do Instituto Paranaense de Desenvolvimento Econômico e
Social (Ipardes) talvez sejam as únicas instituições que tiveram essa dimensão; a
5. Intervenção Ippur.
A questão metropolitana brasileira | 79
6. Em 2003, por meio da Lei Complementar no 49, foi criada a Agência Estadual de Planejamento e Pesquisas de
Pernambuco (Condepe/Fidem), a partir da fusão do Instituto de Desenvolvimento de Pernambuco (Condepe) e com
a Fundação de Desenvolvimento Municipal (Fidem). Para mais informações, ver: http://www.portais.pe.gov.br/web/
condepe-fidem/apresentacao6.
80 | 50 anos de regiões metropolitanas no Brasil e a Política Nacional de Desenvolvimento Urbano
capitaneado pela indústria. Esse modelo entra em crise. Nós vivemos a implosão
de 1980-1990, uma transição com experimentos em resposta a essa implosão, em
que o neoliberalismo foi uma das iniciativas e, depois, o experimento do novo
desenvolvimentismo, que aconteceu a partir de 2003. Fala-se muito em experi-
mentos, porque, na verdade, são respostas a esse modelo em crise que não foram
completamente neoliberais e nem completamente desenvolvimentistas.
Guardamos ainda toda uma história de padrões e maneiras de pensar e de
desenhar políticas anteriores; portanto, sempre com contradições. Em função
disso, pensamos na ideia de tentar construir um conceito que capturasse como
esses modelos têm padrões de organização socioterritorial, que é essa ideia da
ordem urbana, para sair um pouco da descrição e tentar analisar de maneira mais
interpretativa. Isso resultou nessa coleção: Transformações na ordem urbana. Nessa
coletânea, tentamos capturar o que estava em transição dentro dessa ideia de mo-
vimentos que vão na direção de uma neoliberalização, mercantilização da cidade
etc., e outros movimentos que defendem a ideia de uma retomada da concepção
expressa nessa visão de um neodesenvolvimentismo. Dentro dessa ideia de que a
transição está em disputa, tentamos pegar as tendências de transição.
Para entrar na pergunta, há uma visão mais afirmada de que essa transição já
aconteceu. Nós estamos abandonando a ordem urbano-industrial que se constituiu
a partir dos anos 1930 a 1950, e durou até o final dos anos 1970, isso na escala
propriamente urbana, na escala metropolitana e na escala nacional.
Isso se verifica por uma série de afirmações de tendências que estavam já em
curso nesse momento de transição na estrutura social, no mercado de trabalho,
na política, nos padrões políticos. E o que nos tem orientado é a ideia de que en-
tramos realmente em um novo modelo, no modelo fundado naquilo que estamos
chamando de rentismo associado a um neoextrativismo. Isso tem para nós uma
série de consequências no urbano, no metropolitano e no regional, o que resulta
em uma lógica particular.
O debate em torno da lógica da expansão no Brasil e na expansão urbana,
capitaneada pela indústria, já faz parte do nosso passado. E isso está fazendo com
que emerja nas cidades brasileiras uma sociedade de serviços avant la lettre, como
eu disse anteriormente. Quer dizer, aquilo que aconteceu nos países desenvolvidos,
de uma sociedade de serviço resultar da reestruturação do próprio capitalismo, aqui
resulta da nossa condição de subordinação, dependência periférica e subordinação
a essa lógica rentista. Esse é apenas um dos aspectos com uma consequência direta
no mercado de trabalho e na estrutura social. Há também uma série de outras
consequências que a gente está trabalhando.
O que seria essa lógica rentista e neoextrativista? É a ideia de que a economia
brasileira está submetida completamente a uma inserção subordinada à demanda da
A questão metropolitana brasileira | 83
relação crítica com as teorias, os conceitos e as visões sobre o urbano, sobre os nos-
sos temas, aos quais estamos inevitavelmente relacionados e expostos. Não temos
como fazer o trabalho que fazemos se não usarmos essas categorias, seus conceitos,
porque a academia hoje é uma academia global. E a dependência também está aí.
Esses critérios que nós temos hoje, na avaliação do trabalho acadêmico, são critérios
também que vêm dessa concepção hegemônica que tende para o Norte Global.
E, se não dermos conta desses critérios, de um padrão, também ficamos fora da
academia; então, inevitavelmente temos que usar esses modelos, esses conceitos
e as categorias. O que fazemos é uma atividade crítica na maneira como incor-
poramos esses conceitos. Isso tem a ver com algumas práticas acadêmicas nossas.
Por exemplo, fazemos parte da Rede Latino-Americana Interurbana que, de certa
maneira, resulta exatamente dessa preocupação nossa (não apenas nossa, porque
tem outros atores envolvidos nessa história... mexicanos, argentinos, chilenos etc.)
de tentar construir uma visão crítica dessas teorias, e, a partir disso, tentar formular
alternativas conceituais que possam traduzir não só a nossa historicidade, mas a
crítica a esses modelos. Assim, a busca da nossa historicidade teórica faz parte da
nossa preocupação.
Por exemplo, orientei a tese de doutorado de Hector Mancilla – publicada em
livro pelo observatório (Mancilla, 2020) –, que propôs uma tese muito interessante
nessa direção. Até acho que, em algum momento, andamos discutindo uma leitura
da história do pensamento humano brasileiro do século XX, não apenas brasilei-
ro, mas latino-americano, e como essa história revela uma hegemonia das visões
do Norte em relação à nossa realidade urbana. Discutimos, usando um pouco o
conceito de geocultura do Immanuel Wallerstein, como o lugar onde essas ideias
ganham importância e capacidade de hegemonia, uma vez que cumprem um papel
de legitimação e viabilização da dominação em nível global. Esse é aquele trabalho
que nós fizemos lá no passado, que se materializou naquele livro Cidade, povo e
nação, no qual abordamos o período do século XIX e um pouco mais do século XX.
Hector Mancilla criou um conceito a partir daí, que é o urbanismo racial.
Quer dizer, o urbanismo racializado como forma de ação sobre a cidade, a partir
da dominância dessa hegemonia, desses conceitos, dessas categorias, nos modelos
de planejamento. Um trabalho bastante exaustivo o dele, porque pegou a realidade
não só brasileira, mas chilena etc. Foi ver, por exemplo, nos sistemas de ciência e
tecnologia, como o campo das ciências sociais aplicadas –, especificamente aqueles
que falam sobre a cidade, estão organizados por temas que revelam essa transmissão
de hegemonia.
Portanto, é uma atitude. Eu não sei lhe responder o que é que nós po-
demos ensinar para o mundo, embora tenha esse conceito de brasilianiza-
ção. E Paulo Arantes fez uma revisão dele mesmo agora, nos últimos tempos.
92 | 50 anos de regiões metropolitanas no Brasil e a Política Nacional de Desenvolvimento Urbano
E uma revisão que dá uma conotação pejorativa a essa ideia dentro desse de-
bate, lá entre o alemão e o americano,11 na leitura sobre como esse padrão bra-
sileiro se torna um padrão mundial. O americano mais otimista, o alemão
mais pessimista. Mas, enfim, eu não sei dizer o que que a gente produziu.
Acho que buscar a historicidade das teorias urbanas é uma das questões. E, ao mesmo
tempo, toda essa preocupação nossa de estudos comparativos também responde a
isso, porque internamente não se vê o urbano brasileiro como uma coisa homogênea,
mas através das categorias que também são homogeneizadoras a partir dos centros
internos. Então tem mais uma atitude metodológica, teórica, do que de fato uma
intenção de produzir nesta direção. É uma atitude teórico-metodológica de con-
fronto, então; no confronto, mas não estamos nessa corrente do pós-colonialismo.
Ela não faz parte, ainda, pode ser que venha a fazer parte dos ideários que são
compartilhados mais amplamente no observatório. Sei que tem gente no nosso
campo que vai nessa direção de pensar uma teoria singular pós-colonial. Mas não
estamos nessa vibe, não. Não por achar que não tenha sentido, mas porque ela não
se colocou para a gente como uma questão a ser enfrentada ainda.
Ipea: Luiz Cesar, eu queria aproveitar uma palavra que você usou, que é essa
noção de projeto. Pela minha experiência na burocracia, passa-se pelos lugares, pelas
instituições, lida-se com a política e, quando se está dialogando com o político ou
com quem está no poder, dentro de algum órgão, nota-se uma incrível ausência
de projeto, tanto no sentido mais pragmático do que é projeto, quanto no sentido
mais macro. Muitas vezes até há um projeto sob o ponto de vista ideológico, numa
ou noutra direção, mas não chega a se constituir num projeto, numa agenda de
ação, no sentido pragmático. Os processos decisórios são muito idiossincráticos,
repletos de inputs de diferentes graus de influência. Então, quando se oferta um
caminho mais claro, uma solução para um problema concreto, algumas vezes isso
ajuda a mudar os rumos da decisão.
Para o bem, para o mal, as burocracias públicas ainda têm um papel, mas você
falou que o observatório está pensando nessa lógica de agendas. Então, para sair
da visão crítica para a proposta, será que há um espaço para produzir propostas e
projetos para entregar e disputar com esses atores da política? Essa é uma proposta
que o observatório se coloca agora?
Luiz Cesar de Queiroz Ribeiro: Olha só, abri aqui até o documento que está
orientando agora o que faremos nessa nova etapa que termina ano que vem, e que
resultará numa nova coleção. O projeto se chama Estratégias para o Desenvolvimento
Urbano, Inclusivo, Democrático, Sustentável nas Metrópoles, e, dentro desse projeto,
haverá uma parte que é a formação de atores, continuando aqui – nesse projeto – o
que já vimos fazendo há algum tempo, mas agora de uma forma mais ampla, mais
12. Sérgio Cabral Filho, governador do estado do Rio de Janeiro entre 1 de janeiro de 2007 e 3 de abril de 2014,
quando renunciou ao cargo.
94 | 50 anos de regiões metropolitanas no Brasil e a Política Nacional de Desenvolvimento Urbano
nos processos decisórios atores que estão excluídos, não só no orçamento, mas
no processo decisório. Pôr no orçamento já está ótimo, mas tem que botar nos
processos decisórios também. Precisamos de uma estratégia de como democratizar
de fato, retomar a agenda da gestão democrática, inovando naquilo que foram
os limites da experiência anterior, mas retomando coisas importantes, como o
orçamento participativo.
Nunca se discutiu, nem foi muito participativo aqui no Rio de Janeiro. Em
vários lugares conservadores, o orçamento participativo é inclusive tematizado,
porque até as agências multilaterais colocaram isso como elemento de avaliação de
projeto, o quanto ele é participativo. “Olha, temos que ter participação...”; “Ah,
então vamos fazer na medida do possível...”. Aqui, se sairmos com a discussão,
tentaremos mobilizar os atores... Esse estudo será um estudo de avaliação das con-
dições institucionais, financeiras e políticas da retomada do orçamento participativo
em cada localidade; mas, no Rio de Janeiro, queremos traduzir isso na proposta
de um modelo e tentar operacionalizar a ideia, o modelo. É essa operacionalização
que é uma capacidade maior a ser incorporada no debate.
A questão democrática me parece que é fundamental; sem isso, a gente
também não vai sair do lugar. E a outra questão é o fortalecimento institucional.
Ou seja, institucionalizar o Estado, e aqui, nas RMs e no Rio de Janeiro, no nosso
caso, institucionalizar os governos sobre a cidade. Então, como é que forçamos a
adoção de padrões de governo que sejam minimamente institucionais? E como
esses padrões podem incorporar um processo decisório que seja estabilizado e
baseado em informação, baseado em argumento, numa coisa que possa ser uma
prática, um modelo que possa ter a possibilidade de mediação entre os interesses
particulares e privados, e baseado em alguma ideia de interesse geral?
Essas quatro questões não são algo que está colocado como desafio para
nossa agenda apenas, mas são um desafio para o Brasil. Inclusive essa última.
O que alcançamos de grau de institucionalização do governo federal, perdemos
de uma forma muito radical. Então é assim, em nível local; é a ideia do projeto.
Primeiro, a ideia do projeto pensando do ponto de vista estratégico, e se tendo
uma ideia prévia de que é possível; inclusive, admitida a possibilidade de coisas
utópicas, formulações utópicas. Mas a ideia é dar uma direção, uma linha para
onde possamos e devemos ir. Depois, essa ideia de estratégia fundada na discussão
desses temas: desigualdade, questão climática e energética, questão da democracia
e questão institucional.
REFERÊNCIAS
ARANTES, P. A fratura brasileira do mundo: visões do laboratório brasileiro da
mundialização. Petrópolis: Vozes, 2001.
A questão metropolitana brasileira | 95
1 INTRODUÇÃO
As metrópoles navegam à deriva na trajetória do nosso desenvolvimento capitalista.
O padrão fragmentado e fragmentador da intervenção pública sobre seus territórios
evoca a hipótese de A Marcha da Insensatez, formulada pela historiadora Bárbara
W. Tuchman (2003). Baseada em vários acontecimentos históricos nos quais se
observou a adoção pelos governos de políticas contrárias aos seus próprios interesses,
da guerra de Tróia à guerra do Vietnam, a historiadora catalogou situações nas quais
uma espécie de cegueira coletiva conduziu os governantes a atitudes desastrosas,
plenamente evitáveis se a sensatez prevalecesse como critério na tomada de decisão.
Por exemplo, logo no início do seu livro, Tuchman interroga-se sobre as razões
que explicariam o fato de os dirigentes de Tróia terem permitido o ingresso dentro
de seus muros daquele cavalo de madeira, portador de todos os sinais de que algo de
muito errado e ameaçador estava anunciado. Com base em outros exemplos his-
tóricos, ela constata que, apesar dos enormes progressos da ciência e da tecnologia
com os quais os seres humanos vêm conseguindo controlar a natureza; a despeito
das condições hoje disponíveis para prever e antecipar os acontecimentos; apesar,
portanto, do aumento da capacidade de governabilidade das sociedades, verificamos
inúmeros casos de desgoverno que muitas vezes resultam em catástrofes que atingem
os próprios interessados, aqueles que detêm os mandatos. Por que os governos são
incapazes de tomar decisões, até mesmo quando estas são úteis à manutenção do
poder? A autora propõe quatro razões: tirania ou opressão; ambição desmedida;
incompetência; e, finalmente, a insensatez. Esta última se manifesta sob duas for-
mas: por uma situação na qual ocorre uma decisão equivocada; ou por uma não
decisão diante de um problema percebido como tal pela coletividade, ao mesmo
tempo que existe uma alternativa viável para enfrentá-lo.
As reflexões, a partir dos resultados das pesquisas e das reflexões desenvolvidas
pela rede Observatório das Metrópoles, indicam a existência de claros sinais da
cegueira das nossas elites econômica e política quanto aos desafios colocados pelos
98 | 50 anos de regiões metropolitanas no Brasil e a Política Nacional de Desenvolvimento Urbano
3 AS METRÓPOLES BRASILEIRAS
O Censo Demográfico, do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE),1
referente a 2022 revelou que a população brasileira superou os 203 milhões de pes-
soas. Ao mesmo tempo, é provável que seus resultados reforcem também o fato do
Brasil como um país predominante urbano, confirmando uma taxa de urbanização
superior àquela detectada pelo Censo Demográfico 2010 (IBGE, 2012), 85%. Se
considerarmos o comentado anteriormente sobre a relação entre a urbanização
e o desenvolvimento econômico, trata-se de uma boa notícia, especialmente se
consideramos a presença das metrópoles na rede urbana.
No entanto, o que são metrópoles? Em primeiro lugar, é necessário distin-
guir essa categoria de cidade da realidade institucional designada como regiões
metropolitanas (RMs) no país. Obedecendo a Constituição Federal de 1967
(CF/1967), as primeiras RMs no Brasil foram criadas em 1973, por meio da
Lei Complementar (LC) no 14. Naquela época, foram instituídas as RMs de
São Paulo, Belo Horizonte, Salvador, Recife, Fortaleza, Belém, Curitiba e Porto
2. Pode ser que, no momento da divulgação deste capítulo, a tabela já tenha se alterado, em virtude da própria dinâmica
de institucionalização de RM por parte de cada estado. Esse dado corresponde ao número de unidades territoriais urba-
nas institucionalizadas na data de referência do último levantamento disponibilizado pelo IBGE: 31 de julho de 2021.
As metrópoles brasileiras | 101
TABELA 1
População e taxa de crescimento em metrópoles, RMs, Rides e AUs, bem como nos
demais municípios do país (2010-2022)
2010 2022 2010-2022
TABELA 2
Participação no PIB e no VA da indústria nas metrópoles, RMs, Rides e AUs e demais
municípios do país (2010 e 2022)
(Em %)
2010 2020
Recorte espacial
PIB VA da indústria PIB VA da indústria
15 metrópoles 50,0 41,8 44,9 37,7
Núcleo 32,0 20,1 27,2 15,0
Entorno do núcleo 18,0 21,7 17,7 22,8
69 RMs, Rides ou AUs 21,1 24,1 23,0 25,6
Núcleo 10,1 10,3 10,3 9,8
Entorno do núcleo 11,0 13,8 12,6 15,9
Demais municípios do país 28,9 34,1 32,1 36,6
Total 100,0 100,0 100,0 100,0
6. Esse quase conceito vem sendo debatido na literatura internacional nas áreas da economia e da geografia e decorre de
algumas interpretações a respeito dos impactos da globalização e da reestruturação produtiva nas grandes metrópoles
que foram berço do desenvolvimento industrial anterior. Estas passam a constituir-se em centros de serviços e comando
da economia global em diversas escalas, por abrigarem atividades financeiras, de serviços à produção, comercializáveis
a distância. Geralmente, as atividades que conferem as novas funções das antigas metrópoles estão concentradas nas
áreas mais centrais, mas conformam um território econômico em nova escala e com nova configuração; elementos
novos que criariam um território articulado com rede de interações econômicas. Parte dessa rede seria formada pelas
atividades que dão suporte a essa função de comando, coordenação e direção da economia globalizada. Vale a pena
a observação de Diniz (2006) sobre a necessidade de considerar, no exame das tendências, a conformação desse novo
modelo de cidade, não apenas as decorrentes das transformações do sistema socioprodutivo, mas também as encarnadas
pelos atores econômicos e por suas estratégias políticas na apropriação do território.
As metrópoles brasileiras | 107
FIGURA 1
Brasil: núcleos das metrópoles e capitais regionais
4 OS PASSIVOS METROPOLITANOS
Nas metrópoles brasileiras, estão concentrados também os históricos passivos
decorrentes do nosso modelo de desenvolvimento concentrador, desigual e com
um Estado com frágil capacidade de planejamento. Deste, resultou um modelo de
urbanização organizado essencialmente pela combinação entre as forças de mercado
e um Estado historicamente autoritário, mas flexível e permissivo com todas as
formas de apropriação privatistas das cidades. Não se trata de constatar e procurar
entender a ausência do planejamento governamental no intenso e acelerado pro-
cesso de urbanização. A omissão planejadora do Estado decorreu da utilização da
cidade como uma espécie de fronteira amortizadora dos conflitos sociais7 inerentes
ao capitalismo concentrador e excludente que aqui se implantou.
Por esse motivo, as metrópoles estão hoje despreparadas, material, social e
institucionalmente para o crescimento econômico baseado na dinâmica da inovação
e na economia do conhecimento, que demandam não apenas as forças produtivas
geradas por relações mercantis, mas também aquelas que decorrem da densificação
das relações sociais e de ambiente institucional favorável. Nas metrópoles brasileiras,
está conformado um conjunto de passivos cujo enfretamento é imperativo para que
forças produtivas consteladas na complexidade de nossa rede urbana possam ala-
vancar o desenvolvimento nacional. Examinaremos três dimensões desses passivos.
7. Essa ideia encontra amparo em trabalhos clássicos de autores que pensaram a formação do capitalismo brasileiro,
como Maria Conceição Tavares. Em curto texto pouco conhecido, mas com grande poder de síntese sobre os meca-
nismos que anularam as possibilidades da emergência do conflito de classes pela gestão política do território, Tavares
assim se expressou.
O recurso periódico a uma ordem autoritária busca suas razões de Estado tanto na preservação do território nacional
quanto ao apoio à expansão capitalista, em novas fronteiras de acumulação, onde lhe cabia impedir a luta de classes
aberta, dos senhores da terra e do capital entre si, e garantir a submissão das populações locais ou emigradas, que se
espraiaram pelo vasto território brasileiro. Por sua vez, o processo de deslocamentos espaciais maciços das migrações
rural-urbanas das nossas populações e as mudanças radicais das condições de vida e de exploração da mão de obra
não permitiram, até hoje, a formação de classes sociais mais homogêneas, capazes de um enfrentamento sistemático
que pudesse levar a uma ordem burguesa sistemática (Tavares, 1985, p. 457).
As metrópoles brasileiras | 109
quarto do novo salário mínimo. Sem nenhum tipo de integração tarifária, esse
custo pode ser ainda maior, uma vez que muitos passageiros são obrigados a fazer
baldeação, com o objetivo de acessar as estações ou chegar aos seus destinos. Esse
é um dos muitos exemplos que colocam a metrópole do Rio de Janeiro como um
dos espaços onde os claros sinais da crise da mobilidade urbana se manifestam de
forma bastante evidente. O gráfico 1 é eloquente na evidência do colapso do seu
sistema de transporte.
GRÁFICO 1
Movimento médio diário de passageiros segundo os transportes rodoviário e ferroviário –
município do Rio de Janeiro (1995-2020)
GRÁFICO 2
Percentual acumulado de população, da massa de renda pessoal e da moradia em
favela segundo a distância ao centro metropolitano
Observamos que nas quinze metrópoles quase três quartos dessas moradias
consideradas subnormais pelo IBGE distribuem-se por um raio de até 10 km
a partir dos seus núcleos. As características dessas moradias são a ilegalidade, a
irregularidade, a construção em solos pouco propícios à função residencial, o
adensamento da ocupação da moradia e, em muitos casos, o emprego de parcelas
consideráveis da renda no aluguel.
Essas características não estão homogeneamente presentes em todas as me-
trópoles, pois são altamente influenciadas pela história das formas de produção
da moradia popular e do regime político de gestão do território urbano. Em São
Paulo, por exemplo, as favelas apresentam maior precariedade quanto ao tipo de
terreno ocupado e maior afastamento das áreas centrais. Ermínia Maricato (1996)
estima que 49,3% das favelas da cidade de São Paulo estão localizadas em beira
de córrego; 32,2%, em terrenos sujeitos a enchentes; 29,3% foram construídas
em terrenos com declividade acentuada; e 24,2%, em terrenos sujeitos à erosão.
Os mapas de localização das favelas de São Paulo evidenciam seu distanciamento
em relação ao núcleo econômico e social da metrópole, mas em áreas que per-
mitem o acesso. Em compensação, os cortiços parecem constituir estratégia de
proximidade, em razão de sua localização nas áreas mais centrais. Por sua vez,
na RM do Rio de Janeiro, o regime urbano permite um modelo de proximidade
das favelas com os bairros que concentram as moradias dos segmentos superiores
da estrutura social.
TABELA 3
Taxa de homicídio geral e da população entre 15 a 29 anos nas metrópoles, RMs, Rides
e AUs, bem como nos demais municípios do país (2010 e 2019)
Fonte: Atlas da Violência do Ipea. Disponível em: https://ipea.gov.br/atlasviolencia/. Acesso em: 7 nov. 2023.
Obs.: Tabela cujos leiaute e textos não puderam ser padronizados e revisados em virtude das condições técnicas dos originais
(nota do Editorial).
8. A indústria global do divertimento inclui o complexo de serviços associados ao turismo de todo o tipo, que atualmente
contém os circuitos de acumulação que promovem os megaeventos como a forma mais organizada.
120 | 50 anos de regiões metropolitanas no Brasil e a Política Nacional de Desenvolvimento Urbano
REFERÊNCIAS
BAIROCH, P. Cities and economic development: from the dawn of history to
the present. Chicago: The University of Chicago, 1988.
BONDUKI, N. Crise pode levar a um apagão no sistema de transporte. Folha de
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Parte II
Governança Interfederativa e
Financiamento Metropolitano
CAPÍTULO 6
Entrevistadores2
Gerardo Silva
Marco Aurélio Costa
Carlos Henrique Carvalho Ferreira Junior
Ipea: Para darmos início à entrevista, a primeira pergunta que gostaríamos de fazer
é sobre a governança interfederativa: muito se fala da governança interfederativa
quando o assunto é governança metropolitana. De fato, o conceito de governança
interfederativa é um dos mais destacados no Estatuto da Metrópole. Contudo,
nós consideramos esse conceito como sendo de difícil operacionalização. Não é
simples colocar em prática a governança interfederativa. Como você avalia isso?
Quais seriam, em termos institucionais, as razões para essas dificuldades em colocar
o conceito em prática? Você considera que há mesmo essa dificuldade?
Jeroen Klink: Para começar, eu concordo com essa afirmação. É de fato
muito difícil operacionalizar o conceito de governança interfederativa, por várias
razões, mas eu queria ressaltar no mínimo três temas que perpassam essas razões.
O primeiro, que é também o mais óbvio, é que falar de governança implica falar
de governo, planejamento e, a partir disso, do papel do Estado na governança dos
territórios metropolitanos. Nesse sentido, eu sigo a definição do planejamento
de autores como Savini, Majoor e Salet (2015), que diz que é a articulação entre
financiamento, intervenção física no ambiente construído e regulação. Do ponto de
vista das responsabilidades dos estados, seria a arte de articular essas três dimensões.
No caso da governança interfederativa nas áreas metropolitanas, essa capacidade
estatal de lidar com essas três dimensões está, a meu ver, totalmente enfraquecida
e fraturada, a começar pelo fato de o Estatuto da Metrópole ter sido aprovado sem
o braço financeiro. E com relação às outras duas dimensões, é preciso dizer que o
planejamento, através das intervenções físicas e da regulação, não pode ficar apenas
no plano físico, regulando o setor privado e a ocupação do uso do solo, mas deve
poder ir além e ser capaz de desencadear mudanças e transformações, para não cair
na armadilha de ficar apenas no blá-blá-blá, no discurso. Então eu acho que essas
duas dimensões também estão fraturadas, porque a ação física nessas transformações
não está alinhada com o arcabouço da regulação. Ou seja, a estatalidade é frágil.
A partir disso, é preciso também articular com os demais atores. A governança
implica ir para fora e além do planejamento tecnoburocrático. E aí a conclusão que
eu tiro é muito semelhante, porque, principalmente na governança metropolitana
brasileira, a participação e/ou articulação com a sociedade civil é muito frágil.
A sociedade civil tem muita dificuldade em se interessar pelo tema, e não percebe
que a vida se faz na metrópole, mais do que na cidade – a metrópole como espaço
privilegiado para a reprodução da vida. E, nessas condições, o Estado tem muita
dificuldade em mobilizar a sociedade civil. Então, na prática, quem realiza ou
preenche esse vácuo da governança metropolitana é o setor privado.
Ipea: O tema da mobilização da sociedade civil traz a reboque a questão da
participação. Acontece que quando tratamos de participação na cidade, pensando
na elaboração do plano diretor e, eventualmente, no conselho de política urbana
ou conselho da cidade, é muito comum a presença de atores sociais voltados para
determinadas políticas urbanas, com um olhar muito direcionado para setores
específicos, como, por exemplo, habitação e transporte, mas que não conseguem
olhar de maneira integrada os problemas da cidade, nem perceber a importância
da escala metropolitana. E, como sabemos, na escala metropolitana a coisa fica
mais complicada, porque de fato não há um governo metropolitano capaz de
mobilizar a sociedade civil. Então, como lidar com esse desafio da participação na
escala metropolitana?
Jeroen Klink: Para responder a essa pergunta precisamos reconstituir um pouco
uma parte da história. Eu concordo que há uma camada do processo em que o plano
diretor participativo buscou avançar na transformação do planejamento, passando
de uma perspectiva técnico-burocrática para um planejamento mais comunicativo e
participativo. E, de certa forma, em alguns momentos, o conseguiu. Porém, o projeto
da reforma urbana foi direcionado para a escala urbana, e não para a escala metropo-
litana. Isso, sem dúvida, foi uma escolha da Constituinte, em que novos movimentos
sociais urbanos e prefeitos eleitos, vinculados a essas agendas, ancoraram o projeto
político na escala local. Mas o resultado em contextos metropolitanos, a meu ver, foi
uma armadilha escalar. A outra parte da história, que é conhecida – mas que é bom
ressaltar, porque eu acho que tem a ver com a pergunta –, é a cultura tecnoburocrática
das redes de infraestrutura, ou seja, daquelas FPICs,3 de acordo com a linguagem
jurídica, que são redes de infraestrutura enraizadas na trajetória da criação de compa-
nhias como a Companhia de Saneamento Básico do Estado de São Paulo (Sabesp),
3. Funções públicas de interesse comum, definidas no inciso II, art. 2o da Lei Federal no 13.089 – Estatuto da Metrópole.
Metrópoles e governança metropolitana: entrevista com Jeroen Klink | 131
por exemplo. Para se ter uma ideia, eu não consigo fazer pesquisa sobre a estrutura
tarifária dos serviços da Sabesp sem ter que acessar os meios legais para conseguir os
dados. É muito emblemático isso. Existe uma cultura tecnoburocrática instalada nas
companhias estaduais que não se transformou, e que compõe circuitos muito fechados,
centrados no seu próprio business. O fato é que essas companhias não são pressionadas
porque a sociedade não está mobilizada, não percebe a importância dessas redes. Então
se cria novamente um vácuo, uma fratura entre uma tecnoburocracia estadual e uma
fragilidade na mobilização de uma escala local, que não consegue se conectar com a
metrópole, que é uma escala diferente.
Ipea: Já que você falou da Constituinte, há pesquisadores que participaram
ativamente do movimento da reforma urbana e que acham que o movimento foi
insensível à dimensão metropolitana, e que isso só se tornou evidente mais adiante,
quando começaram a ser percebidas as consequências.
Jeroen Klink: Eu também acho que foi uma escolha, mas que dá para jus-
tificar porque todo mundo estava associando a agenda metropolitana com o
regime militar, e a agenda local, pelo contrário, parecia mais vinculada à abertura
democrática. Ou seja, dá para entender a escolha, mas que foi um erro estratégico
importante, foi, com consequências até os dias de hoje. O que reforça também a
ideia da armadilha escalar.
Ipea: Você acompanhou bastante a elaboração do Plano de Desenvolvimento
Urbano Integrado (PDUI) em São Paulo. Se você pudesse comentar essa experiência,
nos ajudaria a entender um pouco melhor como se processa, em uma situação con-
creta, a questão da participação e dos embates políticos no contexto metropolitano.
Jeroen Klink: Na realidade não foi um envolvimento direto, foi pelo fato de eu
ter coordenado a elaboração do Plano Diretor Regional do ABC, a partir de uma
parceria entre o Consórcio do ABC e a Universidade Federal do ABC (UFABC).
Ali tinha três grandes agentes, ou players, com interesses específicos. O governo do
estado, através da Empresa Paulista de Planejamento Metropolitano (Emplasa), trazia
a carteira de projetos e o plano de ação para a macrometrópole paulista. Essa era sua
grande peça de negociação. A Prefeitura de São Paulo trouxe o plano diretor como
um instrumento já testado e interessante, que teve um certo grau de mobilização,
mas que não tinha a dimensão metropolitana. Acho que a perspectiva metropoli-
tana na gestão Haddad foi muito frágil. Ainda assim eles pregavam a exportação
ou o reescalonamento do plano municipal da cidade polo. O terceiro player era o
Consórcio do ABC, que não era o único, porque tinha vários consórcios na Região
Metropolitana (RM) de São Paulo, mas que trazia a experiência do plano diretor
regional em andamento. Houve várias reuniões, algumas bastante tensas. Basicamente,
a Emplasa estava interessada na sua carteira e projetos – para a macrometrópole.
São Paulo tinha um modelo mais participativo, porém sem nenhuma articulação
132 | 50 anos de regiões metropolitanas no Brasil e a Política Nacional de Desenvolvimento Urbano
municipal em eficiência coletiva. Voltando então para a pergunta, eu não acho que
grandes operações ou grandes mudanças serão viáveis. Ao mesmo tempo, existe
uma discussão que eu não acompanhei nos detalhes, mas que passa pelas FPICs,
principalmente pelas de saneamento ambiental, e que pode proporcionar um debate
interessante sobre esse assunto: é a ação direta de inconstitucionalidade em que
o Supremo Tribunal Federal (STF) resolveu, em 2013, em favor da titularidade
metropolitana do saneamento ambiental, ou seja, da dimensão compartilhada entre
estados e municípios dos serviços de saneamento. Embora a questão não tenha sido
encerrada com essa resolução, até porque não é tarefa do Supremo preencher essas
definições, ao menos pacificou momentaneamente a questão. Porém, o relógio,
que no momento está parado por causa de embargos, voltará a marcar o tempo, e
o debate retornará. E aí os entes precisam resolver como é que será, quais serão os
arranjos de cooperação interfederativa, plano de rateio, financiamento, número
de cadeiras para estados, municípios e movimento social etc. E aqui tudo está em
aberto. O interessante é que, qualquer que seja o entendimento, esses arranjos
institucionais e de governança deverão ser obrigatórios. Abre-se, por exemplo,
a possibilidade de um consorciamento interfederativo, que não é um consórcio
intermunicipal voluntário, mas uma instância de governança interfederativa.
Então eu acho que o tema das FPICs é um ponto de partida interessante para
preencher essas lacunas da governança metropolitana. Senão as coisas acontecerão
através da iniciativa privada, o que irá piorar ainda mais a situação das metrópoles.
Em resumo, a chave é realizar reformas ousadas, mas ao mesmo tempo incrementais,
que partem do arcabouço e da cultura federativa que já existe no Brasil.
Ipea: Muita gente diz que o acórdão4 do STF diz respeito apenas ao caso
do Rio de Janeiro, ao saneamento no Rio de Janeiro, mas que isso não implica a
questão metropolitana como um todo.
Jeroen Klink: Pois é, eu estive, em 2014, em Brasília discutindo aquela emen-
da constitucional para as áreas metropolitanas. Havia na época a sensação de
que o acórdão era bastante confuso: ao mesmo tempo que resolvia, não resolvia.
Então a ideia era centralizar a discussão e avançar no debate sobre uma emenda
constitucional, ou seja, resolver de uma vez esse assunto. Isso acabou trazendo a
responsabilidade da questão metropolitana para o governo federal, no sentido de
estabelecer determinados parâmetros para a governança das RMs. Certamente,
esses parâmetros se tornaram objeto de discussão e interpretação, mas o que ficou
claro é que a discussão transbordou o saneamento ambiental – e o caso do Rio
de Janeiro. Portanto, eu sou bastante otimista com relação à discussão iniciada.
Ipea: Talvez esse seja o problema principal, a ausência dessa dimensão constitu-
cional de uma instância metropolitana, pelo menos de administração, considerando
que uma instância política está fora de cogitação. Qual é sua avaliação? Seria esse o
entrave, a falta de uma dimensão constitucional vinculante da governança metro-
politana, ou seria suficiente a institucionalidade que nós já temos?
Jeroen Klink: O movimento que foi feito em 2014-2015 era no sentido de
aproveitar a confusão do acórdão para criar uma emenda constitucional para re-
solver de vez a criação de uma entidade que tenha capacidade administrativa, mas
também de alavancagem de legitimidade política, de promoção de uma democracia
participativa e descentralizada no nível metropolitano. Mas era, e ainda é, um tema
escorregadio no Brasil, à luz da trajetória do debate tecnoburocrático. Ao mesmo
tempo, eu acho que com arranjos apenas voluntários – do tipo dos consórcios – será
muito difícil. É um pouco o dilema do planejamento: de um lado, se enfatizar-se
demasiada a ideia de comando e controle, perde-se o dinamismo das áreas me-
tropolitanas, a efervescência e a criatividade dos agentes. Por outro lado, se vai-se
para o outro extremo e se deixa tudo no âmbito do laissez-faire, o que se obtém é
a efemeridade dos arranjos, a falta de uma perspectiva mais consistente e de longo
prazo, que é de trinta ou quarenta anos. Nesse sentido, eu li o acórdão e acho que
o Supremo levanta preocupações corretas, sobretudo em termos de previsibilidade
para questões que demandam longo tempo de maturação. E que se precisa fazer
isso com participação. Mais cedo ou mais tarde, o relógio andará de novo, e, daqui
a dois anos, muito provavelmente teremos que retomar essa discussão. Mas será
preciso muito cuidado para poder avançar nessa direção. Talvez o próprio Estatuto
da Metrópole – que, diga-se de passagem, ninguém esperava – tenha que ser revisto,
para encontrarmos formas institucionais mais consistentes.
Ipea: No cerne dessa discussão, temos também a questão da cooperação,
ou da falta dela, entre os municípios, sobretudo nos territórios metropolitanos.
O fato de você ter participado ativamente do Consórcio do ABC paulista talvez
ajude a entender um pouco melhor essa dimensão da governança, que é a cooperação
horizontal entre os municípios, sob quais atributos ou condições isso é possível.
Complementando a pergunta anterior: são os consórcios públicos intermunicipais
o caminho para a cooperação no âmbito metropolitano?
Jeroen Klink: Bom, eu sou um defensor dos consórcios. De fato, eu participei
diretamente dessa discussão sobre o fortalecimento dos consórcios intermunicipais,
e sobre a ideia de consorciamento em geral, que culminou inclusive na aprova-
ção da lei em 2005, e da sua regulamentação em 2008. Eu defendo, portanto, o
consorciamento. No caso do ABC, ele foi muito importante porque mobilizou de
forma voluntária agentes estatais e não estatais. O consórcio começou, em 1991,
com questões específicas de interesse comum, como planejamento de resíduos
sólidos e problemas do desenvolvimento econômico, mas logo isso transbordou
para outros agentes. Do consórcio, por exemplo, nasce a Câmara Regional do
136 | 50 anos de regiões metropolitanas no Brasil e a Política Nacional de Desenvolvimento Urbano
que empurra a população para as periferias e áreas de risco, o custo das passagens
e a precariedade do transporte. Ou seja, há uma linha difusa entre o planejamento
participativo e o planejamento insurgente que é preciso trabalhar politicamente.
Isso é estratégico para as áreas metropolitanas.
Ipea: Talvez o paradoxo ao qual você se refere possa ser “solucionado” através
de uma espécie de letramento metropolitano, ou alguma coisa do tipo. A escala
local, por exemplo, é muito identificada com o município, embora saibamos
que pode ir além dele, dependendo da abrangência das questões territoriais em
pauta. Trata-se de um problema de representação do espaço vivido, para utilizar
os conceitos de Henri Lefebvre. Assim, as designações habituais de metrópole e
metropolitano, entre outras, não parecem dar conta do fato de que as pessoas não
percebem que habitam nesses espaços, o que supõe problemas de administração e
gestão de problemas comuns. O máximo que as pessoas conseguem enxergar em
termos metropolitanos são os problemas de congestionamento. Então a pergunta
é: que tipo de pesquisa-ação poderíamos fazer para renomear a metrópole para as
pessoas perceberem esse espaço como vital?
Jeroen Klink: Devo começar dizendo que eu não sou um especialista e que
provavelmente vocês (Ipea) já têm uma bagagem ou um repertório para responder a
essa pergunta. Mas eu acho que o espaço é tridimensional. Ele não é apenas físico e
social, mas também representacional. Então essa dimensão – representacional – do
espaço metropolitano é chave, porque coincide com a percepção de vocês de que a
população está totalmente alienada do espaço metropolitano que habita. Ninguém
sabe muito bem o que é a metrópole, porém cidade, sim. Todos sabem em qual
cidade moram. Na minha tese de doutorado sobre a região do ABC paulista, eu
usei o conceito de “cidade-região” para tentar dar conta do fato de que o ABC é ao
mesmo tempo uma região e uma cidade, mesmo que as pessoas não percebam isso
completamente. À luz da importância do fenômeno urbano, inclusive do fato de a
institucionalidade no federalismo fiscal brasileiro ser ancorado no município, acho
que é importante retomar essa ideia de “cidade metropolitana”. Na África do Sul, já
que se falou da Cidade do Cabo, embora seja um contexto bastante diferente, eles
utilizaram a terminologia de united cities para dar essa ideia de unicidade ao espaço
metropolitano. Então eu acho que é preciso trabalhar a ideia de pertencimento,
que passa necessariamente pela questão da representação. É um tema de ponta.
Ipea: Chegamos no final da nossa entrevista. Gostaríamos de lhe agradecer
novamente pela disponibilidade e lhe perguntar se deseja acrescentar alguma coisa.
Jeroen Klink: Eu que agradeço! Aprendemos juntos com esse tipo de diálogo.
Gostaria, sim, de tocar em três pontos que me parece que complementam a reflexão.
O primeiro é a necessidade de não perder de vista que as nossas metrópoles não só
funcionam de maneira muito precária, mas que também apresentam territórios de
138 | 50 anos de regiões metropolitanas no Brasil e a Política Nacional de Desenvolvimento Urbano
REFERÊNCIA
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CAPÍTULO 7
1 INTRODUÇÃO
Foi por meio da Lei Complementar no 14/1973, e de acordo com o art. 164
da Constituição Federal de 1967, o qual estabelecia que “a União, mediante lei
complementar, poderá, para a realização de serviços comuns, estabelecer regiões
metropolitanas, constituídas por municípios que, independentemente de sua
vinculação administrativa, façam parte da mesma comunidade socioeconômica”
(Brasil, 1967), que foram criadas as primeiras oito regiões metropolitanas (RMs)
no país: São Paulo, Belo Horizonte, Porto Alegre, Recife, Salvador, Curitiba, Belém
e Fortaleza – Rio de Janeiro seria criada um ano depois (Brasil, 1973). Na origem,
portanto, as RMs foram consideradas assunto de interesse e relevância da União,
embora estados e municípios fossem contemplados nos arranjos institucionais da
governança previstos na legislação.
Com a Constituição Federal de 1988 (CF/1988), entretanto, essa incumbên-
cia (de definição e criação de RMs) passou para as mãos dos estados, de maneira
conjunta com outras atribuições contempladas no título III, capítulo III – Dos
Estados Federados. Concretamente, no inciso 3 do referido capítulo, a letra da
Constituição afirma.
Os Estados poderão, mediante lei complementar, instituir regiões metropolitanas,
aglomerações urbanas e microrregiões, constituídas por agrupamentos de municí-
pios limítrofes, para integrar a organização, o planejamento e a execução de funções
públicas de interesse comum (Brasil, 1988).
Embora o termo “poderão” não designe, necessariamente, uma faculdade
exclusiva, nem obrigatória, entende-se que fica como prerrogativa estadual a criação
de RMs no seu território.
Evidentemente, as RMs já criadas contavam com essa definição, sendo ne-
cessária apenas sua revalidação pela legislação estadual. Contavam inclusive com
agências metropolitanas próprias, como parte do seu processo de institucionaliza-
ção. Contudo, após a sanção da CF/1988, o número de RMs reconhecidas como
tais pelos estados passou de 9 para 83, sendo o período imediatamente anterior
140 | 50 anos de regiões metropolitanas no Brasil e a Política Nacional de Desenvolvimento Urbano
2 A ANOMALIA DA METRÓPOLE
O fato metropolitano representa uma anomalia em termos territoriais e institu-
cionais. Desde sua origem, o federalismo brasileiro, assim como outros federalis-
mos latino-americanos (Linhares, 2014; Carmagnani, 1993), reconhece quatro
instâncias principais de governo: a União, os estados, os municípios e o Distrito
Federal. Trata-se de uma forma de organização institucional que estabelece regras de
funcionamento do sistema político com base em uma Constituição escrita (Dalla-
ri, 2019; Anderson, 2009). Diferentemente dos regimes unitários, o federalismo
estabelece uma forma de distribuição de atribuições e poderes governamentais
entre os entes a partir da autonomia política destes, quer dizer, da prerrogativa de
cada ente escolher seu próprio governo (inclusive, hoje, o Distrito Federal). Como
resultado dessa organização, instituem-se os princípios federativos de coordenação
e cooperação entre os entes, que são próprios e característicos desse regime.
Uma dimensão muitas vezes negligenciada da ordem federativa é o fato de os
entes corresponderem a territórios específicos, isto é, de se tratar de recortes territo-
riais. Não se trata, evidentemente, dos únicos recortes territoriais possíveis, como os
geógrafos bem sabem, mas de recortes territoriais dotados de uma institucionalidade
relevante, que fazem parte da organização do Estado desde sua origem. Tanto os
estados quanto os municípios têm limites jurisdicionais claramente estabelecidos,
além de responsabilidades administrativas e de governo. São recortes que também
expressam relações de poder e constituem o sistema de representação nas diferentes
instâncias em que este se ordena. Em resumo, nenhum outro recorte territorial,
com exceção da dimensão soberana do Estado-nação, tem a força política desses.
O papel dos estados no impasse da questão metropolitana no Brasil | 143
Uma das inovações institucionais mais relevantes da CF/1988 foi dar aos muni-
cípios o status de “ente da Federação”, no mesmo patamar que os estados e o Distrito
Federal. Afirma o art. 1o: “A República Federativa do Brasil [é] formada pela união
indissolúvel dos estados e municípios e do Distrito Federal” (Brasil, 1988). Dessa
forma, os municípios ganharam um peso institucional que nunca antes tinham tido
e, logicamente, saíram fortalecidos na sua relação com os estados. Mais uma vez,
isso vai variar de município para município, porém, isso trouxe, de maneira geral,
um aumento substantivo do seu poder de barganha – mesmo quando as condições
financeiras para sua autonomia não tenham acompanhado o ganho político. Em
contrapartida, os estados, que saíram fortalecidos do processo constituinte, foram
perdendo protagonismo ao longo da década de 1990, afetados, em boa medida, pelas
mudanças nas regras do jogo no novo cenário econômico-financeiro, no contexto
do Plano Real (Ismael, 2014; Regis, 2009).
Os motivos que levaram os estados a perderem protagonismo no âmbito
federativo (recuperado, em parte, durante a pandemia de covid-19) são variados e
complexos. Porém, ao menos dois deles merecem uma consideração. O primeiro
é a privatização das empresas públicas que realizavam investimentos diretos do
governo federal no âmbito dos estados, o que representava, para estes, uma fonte
importante de recursos direcionados para o desenvolvimento local e regional. O
segundo é a privatização dos bancos estaduais, por meio dos quais os estados faziam
a rolagem das suas dívidas, repassando para a União o ônus dos empréstimos. Com
essa medida e com a sanção da Lei de Responsabilidade Fiscal (LRF) em 2000,
que estabelece limites para gastos com as receitas públicas, ficou configurado um
panorama bastante restritivo para os estados com relação ao que tinha sido em
períodos anteriores.
Embora os municípios também tenham sido atingidos por essa situação restri-
tiva e fossem, em grande medida, dependentes dos repasses do governo federal por
meio do Fundo de Participação dos Municípios (FPM), eles foram os principais
beneficiários da redistribuição das receitas públicas. Como podemos observar na
tabela 1, no que diz respeito à distribuição dos recursos públicos entre os entes da
Federação, tem havido, desde a CF/1988, uma clara tendência de favorecimento
aos municípios, que passam de 13,3% das receitas totais disponíveis em 1988
para 19,4% em 2014. Por sua vez, os estados têm uma leve variação negativa de
1,6% no período considerado, sendo a União a instância ou ente que mais cede
recursos nessa redistribuição.
O papel dos estados no impasse da questão metropolitana no Brasil | 147
TABELA 1
Distribuição federativa das receitas
(Em %)
Ano União Estados Municípios
1988 60,1 26,6 13,3
1995 56,2 27,2 16,6
2000 55,8 26,3 17,9
2005 57,3 25,5 17,1
2010 56,5 25,1 18,4
2014 55,6 25,0 19,4
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148 | 50 anos de regiões metropolitanas no Brasil e a Política Nacional de Desenvolvimento Urbano
Para compreender melhor essa situação, revisamos, neste último ponto, a rela-
ção dos estados com as RMs. Independentemente da atribuição constitucional, os
estados desenvolvem de fato políticas que podem ser consideradas metropolitanas,
mas que, na maioria das vezes, servem ao seu próprio interesse. Na verdade, existem
políticas metropolitanas (ou de efeito metropolitano) que nem sequer são reconhecidas
como tais. Um exemplo que pode ser arrolado nesse sentido é o do Rodoanel Mário
Covas, em São Paulo (Silva e Tavares, 2022). Concebido como uma via de descarga
do tráfego pesado na cidade, ele atravessa e, ao mesmo tempo, vincula os municípios
periféricos da RM de São Paulo. De alguma forma, ele reforça e constitui a própria
dimensão metropolitana, mesmo que não tenha sido essa sua intenção principal.
Por sua vez, o Arco Metropolitano do Rio de Janeiro, que até agora não conseguiu
atingir seu propósito, foi pensado como estratégia de desenvolvimento dessa região.
Uma outra forma de intervenção direta é por meio do transporte público. No
Brasil, pode-se afirmar que os estados são os principais responsáveis pela mobilidade
metropolitana. No caso de São Paulo, a Empresa Metropolitana de Transportes
Urbanos de São Paulo, (Emtu/SP) é a encarregada de atender ao transporte in-
termunicipal de passageiros, entre os 39 municípios que compõem a região, com
mais de 300 milhões de viagens em 2020, ainda na pandemia (Emtu/SP, 2020) –
destaque-se o fato de a empresa ter uma perspectiva metropolitana de desenvolvi-
mento do serviço desde sua origem. Em Curitiba, a Lei Complementar estadual
no 153/2013 dispõe que “o transporte coletivo público intermunicipal de passageiros
do estado do Paraná, como serviço público, terá sua organização, gerenciamento
e planejamento providos pela Administração pública estadual” (Paraná, 2013). O
mesmo acontece em Porto Alegre, sendo a Fundação Estadual de Planejamento
Metropolitano e Regional (Metroplan) seu braço executivo. Em síntese, no âmbito
da mobilidade, os estados têm uma ingerência metropolitana bastante significativa,
ainda que não seja uma experiência generalizável a todos eles.
Um terceiro âmbito de ação estadual sobre os territórios metropolitanos são
as companhias estaduais de serviços, tais como saneamento, água e energia elétrica.
Embora a abrangência desses serviços não seja restrita aos âmbitos metropolitanos,
eles têm nesses territórios parcela considerável dos usuários e/ou domicílios – no
caso do Rio de Janeiro, por exemplo, 76% da sua população está concentrada
na RM. Acontece com as companhias estaduais, na sua política de provisão dos
serviços, em boa medida terceirizadas e/ou privatizadas por meio de concessões
públicas, nas quais os critérios territoriais se ajustam às dinâmicas empresariais
que as acompanham, sendo a questão das tarifas e da capacidade de pagamento
dos usuários um fator estratégico do seu funcionamento. Como consequência, a
dimensão propriamente metropolitana da ação dessas companhias acaba sendo
secundarizada, quando não ignorada, no desenho da ampliação e na cobertura
das redes – além da natureza altamente setorializada da prestação desses serviços.
O papel dos estados no impasse da questão metropolitana no Brasil | 149
5 À GUISA DE CONCLUSÃO
Exposta a complexidade que acompanha a questão metropolitana no Brasil e iden-
tificadas as dimensões críticas da intervenção estadual, resta ainda o interrogante
que deu origem a este capítulo: por que os estados multiplicaram a criação de
RMs ao ponto de descaracterizar o sentido e propósito do Estatuto da Metrópole?
Independentemente das brechas da lei e do oportunismo que pode ter guiado essa
estratégia, ante a possibilidade de criação de um fundo metropolitano, ou, ainda,
por comportamento mimético, existem elementos que nos permitem avaliar melhor
a situação que pode ter ocasionado a adoção dessa atitude.
Em primeiro lugar, a anomalia metropolitana, como foi definida neste capítulo,
faz com que as soluções pretendidas sejam objeto de negociação, isto é, de acordo
150 | 50 anos de regiões metropolitanas no Brasil e a Política Nacional de Desenvolvimento Urbano
entre as partes, o que exige vontade política e continuidade para além dos ciclos
políticos. Ora, a forma como se processam as disputas políticas no Brasil, com
alto grau de fragmentação partidária e orientadas principalmente para a obtenção
de benefícios individuais dos entes e/ou dos representantes, não favorece a ação
coletiva, que é decisiva em âmbitos metropolitanos.
Em segundo lugar, o “retraimento” dos estados perante os municípios, esti-
mulado pela aliança, em termos de políticas públicas, destes últimos com a União,
determinou uma mudança nas relações institucionais entre os entes subnacionais.
Assim, o desenvolvimento de relações de cooperação metropolitana, fundamentais
para o estabelecimento de estratégias de governança, parece ter ficado preso em
um impasse institucional, originado na CF/1988, no qual a hegemonia tradicio-
nal dos estados sobre os municípios sofre um forte abalo. Consequentemente, a
capacidade dos estados de alavancar a questão metropolitana, que depende dessa
relação, também foi afetada de maneira direta.
Por fim, em terceiro lugar, não parece haver disposição, por parte dos estados,
de compartilhar decisões estratégicas de desenvolvimento em territórios da metró-
pole. Por um lado, investimentos infraestruturais, como os relativos à circulação
e transporte, respondem a lógicas tecnoburocráticas, isto é, sem participação dos
municípios ou da sociedade civil, a não ser em questões de impacto local. Por outro
lado, as companhias estaduais desenham suas estratégias territoriais de acordo com
suas próprias demandas operacionais, sem conexão com a dimensão institucional da
governança metropolitana. Esse resultado é provavelmente o mais desconcertante,
posto que, diferentemente dos anteriores, que podem ser chamados de “resultados
derivados da ordem institucional”, estes são, em certo modo, propositais.
Sem dúvida, esta indagação parte de uma perplexidade diante do que acontece
com a questão metropolitana no Brasil, isto é, a criação e multiplicação, por parte
dos estados, de RMs que, na maioria dos casos, não correspondem a sua definição
tradicional nem sustentam os desafios de cunho metropolitano. Contudo, como
tentamos argumentar neste capítulo, é preciso encontrar as razões para se ter chegado
a essa situação para além do simples oportunismo da ação estadual. Nesse sentido,
observamos que a fragilidade da questão metropolitana nesse âmbito deriva tanto
da anomalia institucional do fenômeno metropolitano quanto das ambiguidades
da sua práxis institucional nesses territórios, assim como também das indetermina-
ções do próprio Estatuto da Metrópole. Assim, poderíamos pensar que os estados
acabaram fazendo um uso “abusivo” de uma faculdade e de um instrumento que,
apesar da atribuição constitucional, não tinham de fato conquistado suficiente
legitimidade nessa instância.
O papel dos estados no impasse da questão metropolitana no Brasil | 151
REFERÊNCIAS
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152 | 50 anos de regiões metropolitanas no Brasil e a Política Nacional de Desenvolvimento Urbano
Entrevistadores2
Bárbara Oliveira Marguti
Cleandro Krause
Marco Aurélio Costa
papel dos estados, mas em um momento em que os municípios não eram agentes
autônomos; então, não é a mesma coisa.
Tudo isso estará dentro do mesmo capítulo; será muito interessante olhar para
esses dois momentos do tempo, antes e depois da Constituição Federal de 1988
(CF/1988). Esperamos sua contribuição com o olhar para esse segundo momento,
de 1988 para cá, assim como para o futuro. Contudo, se você quiser recuperar
alguns “ecos” do passado, já que Belo Horizonte foi uma metrópole cuja RM foi
uma das mais bem estruturadas naquele momento, fique à vontade também.
Então, começando lá no passado, sabemos que o FNEM foi reativado há
relativamente pouco tempo, com sua primeira reunião ordinária no início de
2022. Podemos dizer que ele tem procurado construir uma agenda voltada para o
enfrentamento dos desafios com os quais lidam as RMs do país. Queria que você
contasse um pouco da história do FNEM, fizesse uma avaliação da experiência
anterior e comentasse sobre as motivações e movimentos que possibilitaram sua
reativação. Quais são os objetivos atuais do FNEM?
Mila Batista Correa Leite da Costa: Eu não participei desse momento anterior
do fórum, que foi desativado em 2019, exatamente quando eu ingressei na Agência
RMBH.4 Ele foi criado na década de 19905 e se manteve ativo até 2019. Minas
Gerais sempre foi um estado com atuação importante – inclusive é signatário da
carta e do estatuto de criação do FNEM –, tendo sido representado, naquele mo-
mento, pela Secretaria de Desenvolvimento Urbano (Sedru). Minas Gerais parti-
cipou também da presidência do fórum em outras fases, até que, em 2019, com a
extinção da Empresa Paulista de Planejamento Metropolitano (Emplasa),6 entidade
metropolitana que presidia o fórum naquele ano, ele acabou sendo desativado.
Eu entrei em exercício no cargo de diretora-geral da Agência RMBH em
julho de 2019, após cumprir as etapas de análise curricular em processo seletivo
técnico, passar por votação do Conselho Metropolitano e ingressar em lista tríplice
para escolha do governador, conforme previsto na legislação mineira. Logo após,
fui convidada para participar de um evento em Recife, organizado pela Agência
Estadual de Planejamento e Pesquisa de Pernambuco (Condepe-Fidem) sobre
Plano Diretor Metropolitano (PDDI); foi quando eu conheci Cid Blanco, que
participou do seminário apresentando a experiência do Plano de Desenvolvimento
Urbano Integrado (PDUI) do Rio de Janeiro. Eu fui convidada para detalhar o
regramento referente ao poder de polícia da Agência RMBH, por ser uma das
poucas entidades que têm essa atribuição prevista na legislação.
Naquela oportunidade, Luiz Quental, servidor da Agência Condepe-Fidem há
alguns anos, mencionou a desativação do FNEM. Eu compartilhei a minha angústia
por não existir uma instância de compartilhamento de desafios e, ao mesmo tempo,
de agendas positivas, de experiências bem-sucedidas das outras RMs. Eu sentia
que a experimentação da realidade metropolitana era um pouco solitária, porque
os municípios são agremiados em várias instâncias – existe a Associação Mineira
de Municípios (AMM), a Associação dos Municípios da Grande Belo Horizonte
(Granbel), existem as agremiações nacionais –, e as RMs, por seu turno, ficaram
sem espaço de troca e intercâmbio depois da desativação do fórum.
Foi quando solicitei à Clarice do Vale, hoje chefe do Núcleo de Assessoramen-
to Técnico, e à Gabriele Sperandio, atualmente diretora de regulação da Agência
RMBH, que me ajudassem a buscar informações para reativação do fórum. Fiz
contato com o último presidente da Emplasa, Luiz José Pedretti, também presidente
do FNEM em 2019, que me atualizou sobre o status do fórum, compartilhou in-
formações sobre a gestão do site, sobre o regulamento – que é registrado em Porto
Alegre –, e trouxe outros dados relevantes.
A equipe da Agência RMBH resgatou a citada documentação, mapeou as
entidades metropolitanas existentes que possuíam arranjo metropolitano consoli-
dado – por existirem mais de oitenta RMs no Brasil –, e contatou os respectivos
dirigentes para, finalmente, reativarmos o diálogo metropolitano.
Não foi possível, por impossibilidade de acesso, reabilitar o uso da página
original do FNEM, que, em 2019, era mantido pela Emplasa. Hoje, mantemos
uma página do fórum no site da Agência RMBH. E combinamos que cada enti-
dade que vier a presidir o FNEM hospedará a página em seu próprio site, até que,
eventualmente, seja possível reativar a antiga página. Apesar de estar desatualizada,
ela foi um ponto de partida para buscarmos essas entidades.
Hoje, no FNEM, temos quatorze entidades e, desde 2021, estamos intercam-
biando informações. Criamos grupos de trabalho estruturados em eixos temáticos
que considerávamos funções públicas de interesse comum (FPICs) importantes
para as RMs. Sabemos que cada RM tem suas particularidades. A Coordenação
da Região Metropolitana de Curitiba – Comec (hoje Agência de Assuntos Metro-
politanos do Paraná – Amep), por exemplo, em Curitiba, faz a gestão do trans-
porte, enquanto a Agência RMBH faz anuência prévia e, portanto, licenciamento
156 | 50 anos de regiões metropolitanas no Brasil e a Política Nacional de Desenvolvimento Urbano
urbanístico, que a RM da Grande Vitória, onde atua o Instituto Jones dos Santos
Neves (IJSN), não possui.
Guardadas as particularidades, temos desafios comuns e políticas públicas
a serem enfrentadas numa perspectiva comum. Assim, desde 2021, realizamos
encontros, trocamos experiências a partir dos temas que propusemos e, em 2022,
conseguimos, finalmente, com o recuo da pandemia, organizar os quatro encontros
presenciais, em Brasília, Vitória, Curitiba e Belo Horizonte.
Para esse ano de 2023 (último ano das RMs de Belo Horizonte, Recife e
Curitiba – presidente, 1o vice e 2o vice-presidente, respectivamente – na Diretoria
Executiva do FNEM), estamos propondo uma agenda que começa por Brasília, já
que houve uma recomposição do Congresso Nacional e uma mudança de gestão
no governo federal, que recriou o Ministério das Cidades, com uma secretaria
voltada para a pauta metropolitana.
Já no ano passado, começamos o movimento de diálogo com os parlamenta-
res, pensando na possibilidade de concepção de uma frente parlamentar em defesa
dos interesses metropolitanos. Começaríamos por Brasília e, ao mesmo tempo,
participaríamos de um painel sobre integração e governança metropolitanas na
Cumbre Internacional del Hábitat de América Latina y el Caribe,7 que irá ocorrer
em agosto, em Guadalajara, México, proposto por Cid Blanco.
O FNEM tem se consolidado, hoje, nesse momento, pós-1988, como ins-
tância de compartilhamento sobre ônus e bônus do modelo federativo proposto
por nossa Constituição. O grande bônus é a celebração do municipalismo, pois
os municípios tornaram-se entes federados no cerne de um regime democrático
que transformou a gestão metropolitana. Além disso, nosso conselho hoje tem a
participação da sociedade civil, temos uma governança que permite a participação
dos atores metropolitanos de uma forma bastante democrática. Porém, temos um
desafio, que é enfrentar a convergência ou a não convergência das gestões munici-
pais em relação ao planejamento regional, metropolitano, em razão da autonomia
local concebida pelo texto constitucional.
A pandemia evidenciou o nó górdio atinente a este desafio: como foi difícil
conciliar a autonomia dos municípios, no que se referia à condução das medidas
de enfrentamento à pandemia, com a lógica metropolitana que pressupõe conur-
bação, fronteiras fictícias, movimento pendular dos cidadãos, onde há o transporte
metropolitano que atravessa os limites dos municípios. Foi caótico.
Esse caos que a pandemia evidenciou/demonstrou a necessidade de traba-
lharmos melhor, do ponto de vista normativo, o desafio da gestão metropolitana.
Isso fortalece tanto a função pública, quanto a atuação da entidade e da pauta, pela
natureza intermunicipal.
O IJSN, na RM de Vitória-Espírito Santo, por sua vez, tem um papel de
planejamento. Já a Agência RMBH atua, primordialmente, na FPIC relativa à
gestão do uso do solo com o licenciamento urbanístico – emissão de anuência
prévia nos processos de parcelamento do solo, nos termos do art. 13 da Lei Federal
no 6.766/1979. Não existe um loteamento ou desmembramento acima de 20 mil m2
que não passe pela anuência da Agência RMBH ou da Agência de Desenvolvimento
da RM do Vale do Aço.
Cada RM e respectiva entidade, portanto, tem suas nuances. Mas as políti-
cas públicas mais sensíveis e que perpassam todas elas são gestão do uso do solo,
transporte metropolitano, saneamento e infraestrutura, com ênfase em macrodre-
nagem. Foram essas as políticas metropolitanas definidas como prioritárias pelo
vice-governador Mateus Simões, na RM de Belo Horizonte, inclusive, justamente
em razão da relevância.
A questão da infraestrutura é um tema metropolitano que não costuma
ser delegado para as entidades. Normalmente é atribuída a uma secretaria de
obras ou secretaria de infraestrutura de cada estado, não é uma temática com
competência efetivamente delegada às entidades metropolitanas. Na RM de Belo
Horizonte, atuamos em parceria com a Secretaria de Estado de Infraestrutura e
Mobilidade (Seinfra).
Uma outra temática enfrentada pelas entidades é a gestão de recursos hídri-
cos. Esse é um problema com o qual lidamos na RM de Belo Horizonte. Desde
o rompimento da barragem de Brumadinho, em janeiro de 2019, a captação de
água no Paraopeba foi comprometida, e isso realçou uma dificuldade, lançou luz
sobre a necessidade de enfrentamento do tema da escassez hídrica e aguçou o en-
frentamento do problema pelo viés metropolitano, uma vez que o abastecimento
da capital e dos outros municípios da RM de Belo Horizonte é alimentado por
sistemas espalhados pelo território da nossa RM. Nesse sentido, parte dos recursos
do acordo judicial travado no caso de Brumadinho foi destinada para a elaboração
de um Plano de Segurança Hídrica da RM de Belo Horizonte.
Esses temas, FPICs sensíveis, foram escolhidos pelas entidades para a criação de
grupos de trabalho destinados ao intercâmbio de experiências e de soluções no âmbito
do FNEM, justamente por serem os maiores desafios que enfrentamos no cotidiano.
Uma FPIC que foi realçada como questão metropolitana, pelo contexto
pandêmico, foi a saúde. Em Minas Gerais, a saúde é uma FPIC, mas a Agência
RMBH não havia lidado tão diretamente com o tema, em razão da estruturação
160 | 50 anos de regiões metropolitanas no Brasil e a Política Nacional de Desenvolvimento Urbano
já consolidada do Sistema Único de Saúde (SUS) no país, com a atuação das se-
cretarias municipais e estaduais de saúde, e dos conselhos.
A entidade metropolitana foi chamada a resolver problemas de várias ordens
que a pandemia nos trouxe, que iam desde a falta de leitos hospitalares em deter-
minados municípios até a gestão de linhas e horários do transporte metropolitano
após a redução drástica do número de passageiros, gerando aumento de fiscalizações
e a concepção de uma parceria proposta pela Seinfra e pela Agência RMBH para
execução pelo governo do estado, em conjunto com os municípios.
A pandemia escancarou a natureza metropolitana dos desafios que enfren-
tamos. A pandemia mostrou como essas FPICs precisam ser pensadas de maneira
conjunta pelos 34 municípios da RM de Belo Horizonte juntamente com o estado,
como devem ser pensadas de forma costurada, pois saúde não pode ser tratada de
forma isolada, saneamento não pode ser tratado de forma isolada; de igual forma,
os sistemas de abastecimento hídrico e de transporte.
Vicente Loureiro realçou esse ponto no seminário realizado no Rio de Janei-
ro: como, no Brasil, temos uma tendência de segmentar o tratamento dos temas,
das políticas públicas, segmentar o nosso modo de atuação e a própria forma de
estruturação. A pergunta que lancei no seminário foi: qual é o primeiro desafio
das entidades metropolitanas? Temos que fazer diplomacia com os municípios
cotidianamente. É um movimento diplomático constante, de convencimento dos
municípios a aderirem ao planejamento metropolitano e a pensarem junto conosco,
para além de suas fronteiras.
Não bastasse o desafio com os municípios, há também um desafio diplomático
interno aos governos estaduais, porque a política de habitação, por exemplo, que é
uma FPIC de competência das entidades metropolitanas, é também competência da
Secretaria de Desenvolvimento Social; a política de regularização fundiária é compe-
tência das entidades metropolitanas, mas também das secretarias estaduais de política
urbana – aqui em Minas, da Secretaria de Desenvolvimento Econômico; a política de
transporte é compartilhada entre entidade metropolitana e as secretarias de infraestrutura
e mobilidade; a política de saneamento, também compartilhada com as secretarias de
meio ambiente.
Vejam que é um movimento diplomático constante para fora e para dentro.
Isso é positivo, é uma construção, mas, ao mesmo tempo, tem um dispêndio de
energia e também uma dependência constante da abertura dos municípios e dos
dirigentes das secretarias e das entidades para essa troca e construção comparti-
lhada. Era mais simples quando tínhamos a agremiação das políticas urbanas em
apenas uma pasta, a Sedru, porque diminuía o número de atores no processo
construtivo das políticas públicas, mas o modus operandi era o mesmo. Em todas
as RMs, temos esse desafio para dentro e para fora. A recriação do Ministério das
Passado e futuro da governança das regiões metropolitanas: entrevista com Mila da Costa | 161
Cidades vai nessa linha, de tentativa de agremiação das políticas urbanas centrais
das cidades juntas em uma única pasta.
Essas são as FPICs que demandam mais atenção das RMs. No caso da RM de
Belo Horizonte, a FPIC do uso do solo é muito evidente, pois a ocupação irregular
hoje é um problema grave no Brasil, e em nossa RM não é diferente.
Ipea: A partir da sua resposta sobre a infraestrutura, gostaria de fazer a seguinte
pergunta. As agências que têm um papel maior no planejamento procuram fazer
algum tipo de agenda voltada para infraestrutura, em transporte, por exemplo?
Especificamente no caso de Belo Horizonte, por conta de Brumadinho, o governo
do estado está com recursos para um rodoanel, por exemplo. A Agência RMBH
participou dessa conversa? A agência teve um papel importante na definição dessa
via que é metropolitana, atravessa vários municípios?
Mila Batista Correa Leite da Costa: A ideia de um rodoanel foi gestada ainda
no período do Plambel, na década de 1970. Foram sucessivos projetos e tentativas.
Entre 2019 e 2023, a Seinfra definiu um traçado de diretriz, licitou e o contrato
foi assinado. Quem tem competência e recurso para fazer gestão do tema infra-
estrutura, mesmo na RM, é a Seinfra. Inclusive, a Agência RMBH, agora, com a
reforma administrativa que tramita na Assembleia, passará a ser vinculada à pasta.
Nós participamos das audiências organizadas pela secretaria e de várias reuniões
com os municípios, além de contribuirmos com subsídio técnico, com a matriz
origem-destino de cargas, que demonstra o impacto econômico do rompimento
da barragem de Brumadinho na RM de Belo Horizonte e o estrangulamento do
sistema viário existente, em especial do anel rodoviário, que era uma estrutura
viária interna ao município de Belo Horizonte e que passou a ser usado como
anel metropolitano, porque todo o escoamento de cargas do estado passa hoje por
essa via. Mas a gestão do contrato, a contratação da consultoria com recurso de
Brumadinho e a definição do traçado foram conduzidas pela Seinfra.
Além desse, temos outros exemplos, como o Programa de Aceleração do
Crescimento (PAC) Arrudas, que é um projeto custeado pela Caixa Econômica
Federal, pelo governo do estado, com a participação dos municípios de Contagem
e de Belo Horizonte, para enfrentamento das inundações do ribeirão Arrudas, e
que também é conduzido pela Seinfra. O projeto engloba obras de requalificação
urbana e ambiental do ribeirão Arrudas, com a construção de bacias de conten-
ção de cheias, remoção das famílias com construção de unidades habitacionais e
urbanização, e drenagem de vias.
São exemplos de projetos de caráter metropolitano em que a Agência RMBH
atuou com algum subsídio, mas, de modo geral, as entidades metropolitanas não
costumam liderar projetos robustos de infraestrutura nas RMs, porque não possuem
162 | 50 anos de regiões metropolitanas no Brasil e a Política Nacional de Desenvolvimento Urbano
Mila Batista Correa Leite da Costa: Sempre que vou ministrar aulas de direito
urbanístico, estimulo os alunos a se debruçarem sobre os temas metropolitanos, para
podermos pensar soluções jurídicas factíveis, porque, hoje, o único instrumento
jurídico-urbanístico existente no ordenamento que se sobrepõe ao planejamento
municipal é o PDDI.
Vide a pandemia. O governo federal também provocou o STF para poder
definir o que era atribuição do governo federal, dos estados e dos municípios. Em
Minas Gerais, foi criado o Minas Consciente, programa para gestão compartilhada
de protocolos de enfrentamento à covid, em que o estado estimulava a adesão dos
municípios. Mais uma vez, a autonomia de escolha dos municípios é a baliza. E
na pandemia restou evidenciado que a cooperação somente acontece quando há
um problema que depende de solução compartilhada.
O PDDI mesmo, como instrumento de obrigatoriedade de cumprimento, pre-
cisa ser convertido em lei, o que considero uma disposição questionável. Não temos
um arranjo metropolitano? A aprovação do Conselho Metropolitano não deveria ser
suficiente? Qual a justificativa para a necessidade de conversão de um produto da
aprovação do conselho em lei estadual? Uma lei estadual que, em verdade, se modificar
muito o conteúdo do plano, pode ser juridicamente questionada, em razão da ampla
gestão democrática e participação social envolvidas no processo de construção do plano.
Quando o PDDI chegar ao Parlamento, ele pode ser alterado? Qual é a
flexibilidade de mudança de um projeto de lei de um PDDI participativo? Ao
mesmo tempo, é possível cercear a autonomia do parlamentar dentro do processo
legislativo? É necessário um equilíbrio.
Sou consultora da Assembleia, estou cedida para o governo do estado. E, na
consultoria da Casa Legislativa, a primeira análise realizada sobre uma proposição é
relativa à autoria, qual o ente da Federação competente para propor a matéria. E o
estado tem competência residual. De modo geral, a competência é da União ou do
município. Acontece o mesmo com a nossa atuação metropolitana – ela é residual.
Precisamos deixar de ter um espaço de atuação residual, para termos com-
petências mais claras e definidas na Constituição. A Carta de 1988 menciona
en passant o planejamento metropolitano. Importante, nesse caminho, realçar
constitucionalmente que a autonomia do município pode, sim, ser sopesada à luz
do interesse regional metropolitano em determinadas circunstâncias, do mesmo
modo que o direito de propriedade não é absoluto quando analisado sob a ótica
do princípio da função social da propriedade.
Em interpretação sistemática ampliada do ordenamento brasileiro, é possível
entender que a autonomia municipal não é um direito absoluto. Contudo, hoje, da
forma como está estruturada, até em razão da fragilização do tema metropolitano
166 | 50 anos de regiões metropolitanas no Brasil e a Política Nacional de Desenvolvimento Urbano
11. “Art. 13. – Aos Estados caberá disciplinar a aprovação pelos Municípios de loteamentos e desmembramentos nas
seguintes condições: I – quando localizados em áreas de interesse especial, tais como as de proteção aos mananciais ou
ao patrimônio cultural, histórico, paisagístico e arqueológico, assim definidas por legislação estadual ou federal; II – quando
o loteamento ou desmembramento localizar-se em área limítrofe do município, ou que pertença a mais de um município,
nas RMs ou em aglomerações urbanas, definidas em lei estadual ou federal; III – quando o loteamento abranger área
superior a 1.000.000 m². Parágrafo único – No caso de loteamento ou desmembramento localizado em área de município
integrante de RM, o exame e a anuência prévia à aprovação do projeto caberão à autoridade metropolitana” (Brasil, 1979).
Passado e futuro da governança das regiões metropolitanas: entrevista com Mila da Costa | 167
o transporte. Acredito que hoje, com o Ministério das Cidades, essa proposta ganha
força e espaço. Podemos envolver a consultoria do Senado, que tem um corpo técnico
muito qualificado.
Poderíamos criar um grupo de trabalho no Congresso, com a consultoria
temática dentro da comissão, por exemplo, que tem a competência para discutir
o tema do desenvolvimento regional e urbano, para propormos mudanças reais,
até para avaliarmos a conveniência da obrigatoriedade de aprovação do PDDI por
lei complementar estadual, como consta no Estatuto da Metrópole.
Hoje, por exemplo, não fosse o disposto no Estatuto, a RM de Belo Horizonte
já teria PDDI em vigor desde 2016, quando foi aprovado pelo Conselho Metro-
politano, e já existiria a obrigatoriedade de adequação dos 34 planos diretores ao
PDDI. Nesse lapso temporal de sete anos, quantos planos diretores municipais
já foram alterados desconsiderando o PDDI, porque ele não foi convertido em
lei estadual?
Essas mudanças precisam ser pensadas, analisadas em “governança comparti-
lhada”. A criação de um grupo de trabalho dessa natureza, envolvendo o Ministério
das Cidades, o Congresso Nacional, as entidades metropolitanas estaduais e os
municípios, para pensarmos alternativas para o planejamento metropolitano, é a
saída mais democrática e tecnicamente mais factível. Para além disso, eu proporia
o retorno do fundo federal no escopo do Estatuto da Metrópole. Penso que o
FNEM tem condições de propor mudanças e contribuições reais depois desse
tempo de maturação, de convivência e de intercâmbio dos nossos desafios e das
questões que temos em comum.
REFERÊNCIAS
BRASIL. Lei no 6.766, de 19 de dezembro de 1979. Dispõe sobre o parcelamento
do solo urbano e dá outras providências. Diário Oficial da União, Brasília, 20
dez. 1979.
ESTADO DE SÃO PAULO. Decreto no 64.588, de 13 de novembro de 2019.
Dá nova redação a dispositivo do Decreto no 52.053, de 13 de agosto de 2007,
que reestrutura o Grupo de Análise e Aprovação de Projetos Habitacionais (GRA-
PROHAB) e dá providências correlatas. Diário Oficial do Estado de São Paulo,
13 nov. 2019.
FRANCISCONI, J. G.; SOUZA, M. A. A. de. Política Nacional de Desenvol-
vimento Urbano: estudos e proposições alternativas. Brasília: Ipea; Iplan, 1976.
(Série Estudos para o Planejamento).
CAPÍTULO 9
1 INTRODUÇÃO
Entre as décadas de 1930 e 1970, a acelerada urbanização brasileira fez-se sentir com
maior intensidade nas capitais de vários estados, em particular no Rio de Janeiro
e em São Paulo. Naquele período, ambas as cidades ultrapassaram os 5 milhões
de habitantes, extrapolando os limites de seus municípios. Essa transformação
ressignificou o sentido da palavra metrópole.
O recém-criado Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), com
outras instâncias de análise social e econômica do país, pela primeira vez, identificou
e nomeou a questão urbana metropolitana como a reconhecemos hoje. A melhor
organização dos censos e a realização de pesquisas permitiram a elaboração de
diagnósticos e prognósticos que motivaram a necessidade de desenvolvimento
de políticas públicas específicas para o espaço metropolitano, lidando com a ne-
cessidade de articulação interfederativa e a solução para os problemas de escala e
reorganização da rede urbana em função das metrópoles emergentes. A excessiva
concentração econômica e a hipertrofia metropolitanas eram um prognóstico que
motivava a ação mediante o planejamento voltado para o desenvolvimento urba-
no e territorial mais equilibrados. O prognóstico em parte realizado nos remete
a desafios semelhantes. Este capítulo explora percepções e propostas que podem
ser resgatadas para pensarmos a governança das metrópoles e a administração das
funções públicas de interesse comuns hoje.
Organizamos o capítulo em cinco seções, além desta introdução. Começamos
pela criação do IBGE e de outras entidades dedicadas à produção e à análise de
dados no âmbito da institucionalização da burocracia profissional, assunto abor-
dado na seção 2. Processo realizado sob influência do movimento municipalista,
no período democrático (1946-1964), e que estabeleceu fóruns de discussões
sobre o desenvolvimento urbano, de onde recuperamos o surgimento da questão
metropolitana. A seção 3 recupera, por meio de dados, o acelerado crescimento e
concentração econômica e populacional, entre os anos 1920 e 1970, em algumas
172 | 50 anos de regiões metropolitanas no Brasil e a Política Nacional de Desenvolvimento Urbano
1. Com sede em Havana – comissão instituída por acordo durante a VI Conferência Internacional Americana em Havana,
de 1928. Acordo esse ratificado pelo II Congresso Interamericano de Municipalidades, reunido em Santiago do Chile,
em setembro de 1941.
174 | 50 anos de regiões metropolitanas no Brasil e a Política Nacional de Desenvolvimento Urbano
das Municipalidades brasileiras às quais vem prestando, desde sua fundação, valiosa
assistência (IBGE, 1948, p. 665).
A associação chegou a ter apoio institucional do Dasp e financiamento estatal
por intermédio da influência de seu primeiro secretário-geral, Araújo Cavalcanti, que
apresentou relatório à Comissão de Finanças da Câmara dos Deputados e do Sena-
do, incluindo-se uma subvenção à entidade no orçamento de 1950 (IBGE, 1949).
Além dos agentes políticos, seu estatuto contemplou como “sócios naturais”
os municípios que assim solicitassem. Também podiam se associar às associações
técnicas, aos institutos de ensino e pesquisa, às publicações técnicas (revistas de
autarquias públicas) e às sociedades civis e comerciais que desejassem colaborar na
consecução dos objetivos. Entre os sócios individuais, o primeiro estatuto inclui:
profissionais liberais, professores, economistas, fazendeiros, industriais, comerciantes
e quaisquer pessoas interessadas nos assuntos cujo estudo e solução constituam
objeto da ABM, conforme a seguir descrito.
1) Estudar, permanentemente, a organização, o funcionamento, as condições
e os métodos de trabalho dos municípios brasileiros, com vistas ao seu
melhor rendimento.
2) Promover o maior intercâmbio possível entre os municípios e com estes
colaborar no planejamento, na orientação, na assistência técnica e na
implantação de quaisquer modificações ou reformas administrativas.
3) Receber, estudar e difundir sugestões sobre assuntos de administração
municipal, promovendo para tal fim, em colaboração com os órgãos
federais e estaduais – por meio de palestras, documentário, congressos,
publicações etc. –, ampla difusão de ensinamentos sobre os princípios,
os problemas e a técnica da administração municipal.
4) Prestar aos municípios completa e efetiva assistência.
5) Realizar os objetivos de cooperação expostos nos estatutos da Comissão
Pan-Americana de Cooperação Intermunicipal, nas formas recomendadas
e ratificadas pelos Congressos Pan-Americanos de Municípios e pela VI
Conferência Internacional Americana (IBGE, 1948).
A realização de estudos e a publicação de ensaios, livros também compunham
os objetivos da ABM. Entre as publicações, previu-se uma revista brasileira de
administração municipal, que não chegou a ser publicada pela associação. Por sua
vez, a revisão do estatuto, em 1952, incorporou a Revista Brasileira dos Municípios
(RBM) como sua publicação oficial e que já vinha sendo editada desde 1948 (IBGE,
1952, p. 547). É nessa publicação em que se encontram as principais discussões
acerca das consequências da urbanização acelerada e da metropolização de algumas
cidades verificada nos vinte anos de sua publicação, entre 1948 e 1968.
A emergência da questão metropolitana | 175
2. A publicação adotou o nome previsto para a publicação da ABM, Revista Brasileira de Administração Municipal,
depois de ser chamada de Notícias Municipais e Revista de Administração Municipal.
3. IBGE – Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística. Estatutos da ABM. Revista Brasileira dos Municípios, Rio de
Janeiro, v. 5, n. 20, p. 546-547, out.-dez. 1952.
176 | 50 anos de regiões metropolitanas no Brasil e a Política Nacional de Desenvolvimento Urbano
5. Ver capítulo 2.
6. Os dados do PIB para 1920 foram retirados de bases municipais, havendo potencialmente subdimensionamento dos
registros. Também foram utilizadas bases municipais para algumas UFs, que não tinham registros nas bases históricas
do IBGE consultadas: Acre, Manaus, Amapá, Mato Grosso do Sul e Tocantins, além de Rondônia e Roraima – até 1959.
7. No caso de Tocantins, cuja capital, Palmas, foi fundada em 1989, adotaram-se dados de Porto Nacional.
178 | 50 anos de regiões metropolitanas no Brasil e a Política Nacional de Desenvolvimento Urbano
GRÁFICO 1
PIB das capitais estaduais e do agregado – UFs menos capitais (1920-1975)
1A – Em R$ 1 milhão¹
800
700
600
500
400
300
200
100
0
1920 1939 1949 1959 1970 1975
Capitais UFs-capitais
1B – Composição (%)
80,00
75,30
70,00
63,77
60,34 59,44 58,30 58,36
60,00
50,00
40,56 41,70 41,64
39,66
40,00 36,23
30,00
24,70
20,00
10,00
0,00
1920 1939 1949 1959 1970 1975
Capitais UFs-capitais
Fonte: Ipeadata, a partir de dados das Contas Regionais do IBGE. Disponível em: http://www.ipeadata.gov.br/Default.aspx.
Acesso em: 16 maio 2023.
Elaboração dos autores.
Obs.: UFs – Unidades da Federação.
Nota: ¹ Em valores de 2010.
Observa-se que o agregado das capitais estaduais, entre 1920 e 1970, tem sua
participação ampliada no PIB, com sinais muito leves de reversão a partir dos dados
de 1975 ante os de 1970. Isso se deu em contexto de forte expansão do PIB nacional.
A emergência da questão metropolitana | 179
Exercício similar foi feito com dados populacionais, a partir desses mesmos
agregados, entre 1920 e 1980.
GRÁFICO 2
População das capitais estaduais e do agregado – UFs menos capitais (1920-1980)
2A – Contagem em números absolutos
100.000.000
90.000.000
80.000.000
70.000.000
60.000.000
50.000.000
40.000.000
30.000.000
20.000.000
10.000.000
0
1920 1940 1950 1960 1970 1980
Capitais UFs-capitais
2B – Composição (%)
100,00
88,75 86,39
90,00 84,29
81,75 79,04 76,68
80,00
70,00
60,00
50,00
40,00
30,00
23,32
20,96
20,00 18,25
13,61 15,71
11,25
10,00
0,00
1920 1940 1950 1960 1970 1980
Capitais UFs-capitais
Fonte: Ipeadata, a partir de dados do IBGE. Disponível em: http://www.ipeadata.gov.br/Default.aspx. Acesso em: 17 maio 2023.
Elaboração dos autores.
GRÁFICO 3
PIB das capitais São Paulo, Rio de Janeiro, Recife, Belo Horizonte, Salvador e Porto
Alegre e do agregado – demais capitais (1920-1975)
450 1.000
400 900
350 800
700
300
R$ 1 milhão¹
600
250
500
%
200
400
150
300
100 200
50 100
0 0
1920 1939 1949 1959 1970 1975
São Paulo, Rio de Janeiro, Recife, Demais capitais (R$) Relação (%)
Belo Horizonte, Salvador e Porto Alegre (R$)
Fonte: Ipeadata, a partir de dados das Contas Regionais do IBGE. Disponível em: http://www.ipeadata.gov.br/Default.aspx.
Acesso em: 16 maio 2023.
Elaboração dos autores.
Nota: ¹ Em valores de 2010.
GRÁFICO 4
Distribuição do PIB entre as capitais São Paulo, Rio de Janeiro, Recife, Belo Horizonte,
Salvador e Porto Alegre e do agregado – demais capitais (1920-1975)
(Em %)
100,00
88,03 89,41 89,55 86,70 86,15
90,00 83,80
80,00
70,00
60,00
50,00
40,00
30,00
20,00 16,20 13,85
11,97 13,30
10,59 10,45
10,00
0,00
1920 1939 1949 1959 1970 1975
Fonte: Ipeadata, a partir de dados das Contas Regionais do IBGE. Disponível em: http://www.ipeadata.gov.br/Default.aspx.
Acesso em: 16 maio 2023.
Elaboração dos autores.
A emergência da questão metropolitana | 181
GRÁFICO 5
População das capitais estaduais São Paulo, Rio de Janeiro, Recife, Belo Horizonte,
Salvador e Porto Alegre e do agregado – demais capitais (1920-1980)
25.000.000 350
300
20.000.000
250
15.000.000 200
%
10.000.000 150
100
5.000.000
50
0 0
1920 1940 1950 1960 1970 1980
Fonte: Ipeadata, a partir de dados do IBGE. Disponível em: http://www.ipeadata.gov.br/Default.aspx. Acesso em: 17 maio 2023.
Elaboração dos autores.
GRÁFICO 6
Distribuição da população entre as capitais estaduais São Paulo, Rio de Janeiro, Recife,
Belo Horizonte, Salvador e Porto Alegre e do agregado – demais capitais
(Em %)
90,00
80,00 75,04 76,74 76,66
74,00
72,05 69,87
70,00
60,00
50,00
40,00
27,95 30,13
30,00 24,96 26,00
23,26 23,34
20,00
10,00
0,00
1920 1940 1950 1960 1970 1980
Fonte: Ipeadata, a partir de dados do IBGE. Disponível em: http://www.ipeadata.gov.br/Default.aspx. Acesso em: 17 maio 2023.
Elaboração dos autores.
182 | 50 anos de regiões metropolitanas no Brasil e a Política Nacional de Desenvolvimento Urbano
8. Belém, Fortaleza, Recife, Salvador, Belo Horizonte, Rio de Janeiro (1975), São Paulo, Curitiba e Porto Alegre.
A emergência da questão metropolitana | 183
9. Medeiros, O. de. Introdução à sociologia jurídica do município brasileiro. Revista Brasileira dos Municípios, Rio de
Janeiro, v. 1, n. 1-2, p. 3-16, jan.-jun. 1948.
A emergência da questão metropolitana | 185
10. Freitas, M. A. T. de. A localização da nova capital da República: carta ao general Djalma Poli Coelho. Revista Brasileira
dos Municípios, Rio de Janeiro, v. 2, n. 6, p. 273-286, abr.-jun. 1949.
186 | 50 anos de regiões metropolitanas no Brasil e a Política Nacional de Desenvolvimento Urbano
11. Freitas, M. A. T. de. O problema do município no Brasil atual. Revista Brasileira dos Municípios, Rio de Janeiro, v. 1,
n. 1-2, p. 85-100, jan.-jun. 1948.
12. De fagedenia, em analogia ao crescimento da extensão indefinida como “uma úlcera, que parece corroer as carnes”.
13. Santos, M. O papel metropolitano da cidade do Salvador. Revista Brasileira dos Municípios, Rio de Janeiro, v. 9,
n. 35-36, p. 185-190, jul.-dez. 1956.
14. Geógrafo francês de recorte pós-estruturalista, intérprete do marxismo na geografia. Ver Pedrosa (2013).
A emergência da questão metropolitana | 187
15. Santos, M. O papel metropolitano da cidade do Salvador. Revista Brasileira dos Municípios, Rio de Janeiro, v. 9,
n. 35-36, p. 185-190, jul.-dez. 1956.
16. Estatístico e funcionário do IBGE e chefe do Serviço de Documentação e Estatística deste instituto.
17. Jochmann, J. Tamanho das cidades e padrão de vida do operário industrial. Revista Brasileira dos Municípios, Rio
de Janeiro, v. 7, n. 27, p. 125-132, jul.-set. 1954.
188 | 50 anos de regiões metropolitanas no Brasil e a Política Nacional de Desenvolvimento Urbano
a renda disponível e a força de trabalho. Para Jochmann, era evidente que a vida
operária era melhor nas cidades intermediárias, com alguma vantagem sobre as
menores. Nestas, o custo de vida e as características urbanas não prejudicavam
tanto o trabalhador (Jochman, 1954, p. 131 apud Ferreira Junior, 2019, p. 184).
Rio de Janeiro e São Paulo, então com mais de 2 milhões de habitantes cada,
foram classificadas em categoria própria. Nessa categoria, a renda e o acesso a bens de
consumo eram maiores; por sua vez, a precariedade da oferta de habitação e de serviços
essenciais também eram mais acentuadas. No comparativo geral, apenas as cidades do
Nordeste apresentavam situação ainda pior que as duas metrópoles (Ferreira Junior,
2019, p. 184). Na mesma linha de Milton Santos e Teixeira de Freitas, Jochmann
também propunha algum estímulo público para a manutenção e o fomento das fábricas
em cidades médias e pequenas, somada ainda a fixação do trabalhador nestas, por
meio de uma política de casas próprias por exemplo (Ferreira Junior, 2019, p. 184).
Assim como as demais cidades, as metrópoles foram tratadas como espaço
urbano com características particulares desafiadoras para a administração pública
e a gestão territorial. Em comum, os levantamentos e as interpretações sobre as
cidades do tipo metrópole apontavam para esta como uma urbe “exagerada”, que
transbordava para além dos limites do município central, resultado da ausência de
planos que ordenassem seu crescimento “anormal”, além de outros fatores econô-
micos incontornáveis. Reconhecidos os fatos, o debate debruçava-se sobre como
coordenar o planejamento e a prestação de serviços no contexto metropolitano
(Ferreira Junior, 2019, p. 185).
Em meados da década de 1950, a urbanidade específica das metrópoles, que já
não era uma questão isolada, tornou-se objeto de discussões no nível internacional
com repercussões domésticas. No I Congresso Ibero-Americano de Municípios,
as “principais conclusões” dos anais publicados elencaram as questões e as solu-
ções possíveis para as metrópoles latino-americanas (Bogotá, Buenos Aires, Lima,
México, Rio de Janeiro, Santiago e São Paulo). Em linha com os princípios políticos
e econômicos do pós-guerras, reafirmaram as funções urbanas metropolitanas: “sob
o ponto de vista social, a administração da metrópole deve procurar, em primeiro
lugar, o bem-estar e a elevação do nível de vida do maior número de habitantes”
(IBGE, 1955, p. 32418 apud Ferreira Junior, 2019, p. 185). O planejamento urbano
e regional seria o responsável por conceber e adotar medidas para o “conhecimento
completo do seu território e o estabelecimento de uma política do solo em bases
sadias” (IBGE, 1955, p. 324 apud Ferreira Junior, 2019, p. 185). Do ponto de
vista político-administrativo, aparecem as primeiras soluções para governança das
áreas metropolitanas, tais como: a criação de entidades para “reger e administrar”
18. IBGE – Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística. I Congresso Ibero-Americano de Municípios. Revista Brasileira
dos Municípios, v. 8, n. 32, p. 324-326, out.-dez. 1955.
A emergência da questão metropolitana | 189
19. Meireles, H. L. Administração de área metropolitana. Revista Brasileira dos Municípios, v. 19, n. 75-76, p. 162-163,
jul.-dez. 1966.
190 | 50 anos de regiões metropolitanas no Brasil e a Política Nacional de Desenvolvimento Urbano
20. Azevedo, E. A. Instituição de regiões metropolitanas no Brasil. Revista Brasileira dos Municípios, v. 20, n. 79-80,
p. 123, jul.-dez. 1967.
A emergência da questão metropolitana | 191
Por fim, um trabalho posterior à criação das RMs, de 1987, reuniu vários –
senão todos – dos arranjos existentes para a administração do espaço metropolitano.
Trata-se dos verbetes sobre sistemas de governo local, de Diogo Lordello de Mello
(1987), publicados no Dicionário das Ciências Sociais da FGV. Nestes, são retomadas
as ideias de consolidação de municípios em apenas um, arranjos administrativos
autárquicos, distritos especiais, autarquias setoriais e arranjos interfederativos.
Mello foi um pesquisador do municipalismo pragmático, consolidando várias das
proposições do período pré-ditatorial em textos que reinterpretavam as instituições
federativas na nova Constituição de 1988.
REFERÊNCIAS
ABREU, A. A. de; MAGALHÃES, M. Associação Brasileira dos Municípios. In:
ABREU, A. A. de et al. (Coord.). Dicionário histórico-biográfico brasileiro:
pós-1930. Rio de Janeiro: CPDOC, 2010. Disponível em: www.fgv.br/cpdoc/
acervo/dicionarios/verbete-tematico/associacao-brasileira-de-municipios-abm.
Acesso em: set. 2023.
BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil de 1967. Brasília:
Congresso Nacional, 1967. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/
constituicao/constituicao67.htm. Acesso em: jun. 2023.
BRASIL. Lei no 13.089, de 12 de janeiro de 2015. Institui o Estatuto da Metrópole,
altera a Lei no 10.257, de 10 de julho de 2001, e dá outras providências. Diário
Oficial da União, Brasília, 13 jan. 2015. Disponível em: https://www.planalto.
gov.br/ccivil_03/_ato2015-2018/2015/lei/l13089.htm. Acesso em: jun. 2023.
194 | 50 anos de regiões metropolitanas no Brasil e a Política Nacional de Desenvolvimento Urbano
BIBLIOGRAFIA COMPLEMENTAR
MÁRIO Augusto Teixeira de Freitas. Memória IBGE, [s.d.]. Disponível em:
https://memoria.ibge.gov.br/historia-do-ibge/pioneiros-do-ibge/20978-mario-
-augusto-teixeira-de-freitas.html. Acesso em: jun 2023.
TAFFAREL, A. Eurico de Andrade Azevedo: 1928-2011. Folha de S. Paulo, 24 ago.
2011. Disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/fsp/cotidian/ff2408201114.
htm. Acesso em: maio 2023.
CAPÍTULO 10
Entrevistadores2
Marco Aurélio Costa
Carlos Henrique Carvalho Ferreira Junior
Hoje, há RMs criadas onde não há sequer uma conexão física entre os mu-
nicípios que as compõem, nem mesmo uma conexão técnica entre lugares que
as justifiquem. Há o caso de Manaus, que é recente, onde foram incorporados
municípios não conurbados.
Diferentemente do estado do Amazonas, onde a implantação da Zona Franca
de Manaus transformou-a em polo industrial e, em consequência, ocorreu um
processo de macrocefalia urbana que fez da capital uma cidade-estado, o estado do
Pará recebeu vários “polos de desenvolvimento”, conforme os planos nacionais de
desenvolvimento (PNDs) e os planos de desenvolvimento da Amazônia (PDAs),
onde estavam inseridas as diretrizes da política nacional de desenvolvimento urbano
do regime militar. A criação de vários polos (mineral, metalúrgico e hidrelétrico)
em locais geográficos muito distantes entre si trouxe uma configuração urbana
multipolar no estado.
Belém passou a ser polo de uma RM, mas, para que não fosse RM de um
único município, incluiu-se Ananindeua, àquela altura, um município peque-
no, mas já com sinais de conurbação. Então, havia uma justificativa técnica.
Em seguida, começou-se a construir conjuntos habitacionais nesse município
(foram seis grandes conjuntos habitacionais – Cidade Nova 1, 2, 3, 4, 5, 6), que
formaram uma grande cidade-dormitório dentro do município. Hoje, Ananindeua
extrapola os 500 mil habitantes e está realmente conurbada com Belém.
O sentido da RM permitir pensar a dinâmica e as políticas urbanas para além
dos municípios. A região é um conjunto de municípios compondo uma grande
cidade. Então, foi importante esse esforço de ter um conjunto de RMs quando o
Brasil passava por um processo de industrialização, de transformação da economia
brasileira para outro estágio do desenvolvimento capitalista, no qual a urbanização
e o processo de metropolização eram parte dos objetivos estratégicos voltados a
inserir o Brasil no circuito da acumulação capitalista monopolista. Belém, por
ser a capital mais populosa da Amazônia nos anos 1970, ganhou a condição de
município polo de uma RM, mesmo ainda não sendo uma metrópole. Hoje é
uma metrópole “sangrada”.
Pode-se caracterizar a metropolização brasileira como sanguinária, conforme
adjetiva a geógrafa Maria Brandão. No Brasil, as pessoas falam com orgulho do
número de habitantes de suas cidades como sinal de progresso. Há quem ache
que Belém é menos desenvolvida do que Manaus porque a capital amazonense
tornou-se bimilionária em termos populacionais – Milton Santos (1981), no seu
Manual de geografia urbana, classifica como milionárias as cidades com mais de 1
milhão de habitantes. Mas, quais são os índices concretos e objetivos, que parâme-
tros devem ser considerados para medir o desenvolvimento metropolitano? Como
estão o saneamento, o emprego, a mobilidade urbana, o sistema de transporte
Desafios de governança e gestão da metrópole amazônica | 199
4. O dado mais recente do IBGE, do Censo 2022, aponta 11,4 milhões de domicílios vagos. Para mais informações, ver
Panorama do Censo 2022. Disponível em: https://censo2022.ibge.gov.br/panorama/indicadores.html?localidade=BR.
5. A fonte sobre os dados do déficit encontra-se no seguinte relatório da FJP. Déficit habitacional no Brasil: 2016-2019.
Belo Horizonte: FJP, 2020. Disponível em: https://fjp.mg.gov.br/wp-content/uploads/2021/04/21.05_Relatorio-Deficit-
-Habitacional-no-Brasil-2016-2019-v2.0.pdf.
6. José Eduardo Zezéu Vieira Ribeiro nasceu em Salvador, em 1949, e morreu em São Paulo, em 2015.
202 | 50 anos de regiões metropolitanas no Brasil e a Política Nacional de Desenvolvimento Urbano
7. O princípio do interesse público não é expresso, mas tácito, na CF/1988, e legitima a atuação da administração e
dos governantes.
8. A Comissão Tripartite está prevista no art.-A da Lei no 8.080/1990 – Lei Orgânica da Saúde. “Art. 14-A. As Comissões
Intergestores Bipartite e Tripartite são reconhecidas como foros de negociação e pactuação entre gestores, quanto aos
aspectos operacionais do Sistema Único de Saúde – SUS” (Brasil, 1990).
Desafios de governança e gestão da metrópole amazônica | 203
Entretanto, quem é que pode concorrer às casas? Quem está no cadastro, ou seja,
aquela família que mora no bairro do Guamá, a 85 km, ou São Brás, a 76 km etc.
Felizmente, apesar das resistências, conseguimos convencer a Caixa Econômica
Federal (Caixa) de que a prioridade deve ser para quem mora no Mosqueiro. Como
jogar um cidadão que trabalha no centro de Belém para 80 km de distância, ou 160
km para ir ao trabalho e voltar para casa? Infelizmente, isso foi regra no Sistema
Financeiro da Habitação do regime militar (BNH) e, contraditoriamente, virou
marca do MCMV. O padrão caracteriza-se por, em primeiro lugar, dizimar a floresta;
em segundo, fazer a terraplanagem, para tornar o terreno plano; posteriormente,
construir centenas ou milhares de casinhas idênticas. Essa é a regra que o governo
Lula tem anunciado não mais seguir.
O MCMV foi muito importante, e eu lutei muito como deputado federal
para garantir a manutenção dos recursos que o ex-presidente Temer retirou, e
contra a destruição que o ex-presidente Bolsonaro ocasionou. No entanto, ele
tem que ser melhorado. E a grande melhora é agir com base no planejamento
do desenvolvimento urbano, mas, enquanto o trem anda e temos que pular nos
vagões, um caminho é usar os espaços vazios nas áreas mais antropizadas das urbes.
Isso porque não é justo, enquanto há tantos imóveis desocupados, inclusive federais,
optar-se por desmatar a 30 km, 100 km de distância para fazer o trabalhador sofrer,
para dificultar o seu deslocamento, reduzir seu tempo de lazer, o tempo dedicado
à família, à relação com os amigos, às relações de comunidade, enfim, infernizar a
vida do trabalhador impondo-lhe deslocamentos de até seis horas no dia. Então,
garantir moradias onde haja sinal de internet, energia, rede de água potável, entre
outros serviços, é o que se deve esperar do programa MCMV, agora relançado com
as ideias do presidente Lula de viabilizar residenciais com varandas e churrasqueiras.
Vale destacar que a criação de uma Secretaria Nacional da Periferia, dentro
do Ministério das Cidades, deve potencializar o MCMV Entidades, que fez com
que o edifício Nove de Outubro, em São Paulo, e outros prédios de hotéis e outras
instituições abandonados décadas atrás pudessem, com recursos do programa, ser
reestruturados, ter implantados condomínios administrados coletivamente e auto-
nomamente. Vários movimentos sociais de lutas por moradia, como o Movimento
dos Trabalhadores Sem-Teto (MTST), ao qual o deputado Guilherme Boulos é
ligado, tornaram realidade empreendimentos dessa natureza.
As grandes empreiteiras elegem terrenos distantes do centro para obrigar o
estado e o município a investirem em infraestrutura em favor de seus imobiliários
especulativos, encarecendo imensamente os gastos públicos. Ora, a carência de re-
cursos acaba por inviabilizar a dignidade de quem mora nesses residenciais distantes
das áreas já infraestruturadas. A esses problemas ainda se agrega outro problema
Desafios de governança e gestão da metrópole amazônica | 205
conurbação com a cidade polo da região? Na RM de Belém, 54% dos veículos que
circulam no município de Belém têm origem e destino em Belém, mas 46% são
de municípios metropolitanos. Como é que um prefeito que despeja centenas de
ônibus até o centro da capital, criando dificuldades enormes para o trânsito, pode
dizer que não há interesse comum? Nessa hipótese, a participação é impositiva.
E isso não representa violência institucional nem agressão ao princípio da autonomia.
O que é o interesse comum? Não pode ser um princípio usado à revelia
do bom senso. O governo federal precisa fazer um esforço para mobilizar o país
a partir de todos os municípios e abrir o debate, atraindo o povo, mas atraindo
também os grandes urbanistas. Chamemos nossos professores, os institutos, como
o Instituto de Pesquisa e Planejamento Urbano e Regional (Ippur), o Instituto de
Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), os cursos de urbanismo da USP, da UFPA.
Em todas as regiões estão os conselhos de engenharia (Creas), conselhos de arquite-
tura e urbanismo (CAUs), estão os fóruns nacionais de luta por moradia, o Fórum
Nacional de Reforma Urbana. Foi assim durante a Constituinte. Flávio Villaça, meu
mestre, estava lá, no fórum nacional, para que a Constituição fosse efetivamente
cidadã e pensasse uma política urbana para um país urbano. Diferentemente de
outros, quando a Organização das Nações Unidas (ONU) disse, no ano 2000,10
que viramos um mundo urbano, com 52% da população vivendo em aglomerados
urbanos ou grandes cidades, no Brasil, a Amazônia, já estava com 66%. E o último
Censo (2010) colocava o Brasil acima de 80%.11 Hoje, a Amazônia está com 80%.
Só Belém e Manaus, as duas RMs, acumulam 5 milhões e 200 mil pessoas. Então,
o país tem um processo de urbanização sanguinária e totalmente descontrolada,
porque não há um esforço nacional democrático de planejamento. Não dá para
permanecer assim: “vamos criar fóruns metropolitanos e nós vamos coordenar”.
O esforço federativo impõe respeito às autonomias, não há uma relação hierárquica.
Em Belém, o ex-governador Almir Gabriel mandou um projeto de lei que
não foi viabilizado porque ele determinava que um secretário de Planejamento
do estado devia coordenar como autoridade hierárquica as políticas metropo-
litanas. Acabou-se a ditadura, não somos prefeitos nomeados por um governa-
dor, não somos secretários para assuntos municipais de governos estaduais ou
do federal. Diferentemente das outras Federações, inclusive da Federação-mãe
(Estados Unidos), o Brasil tem uma Constituição que diz que são entes federativos
a União, os estados, o Distrito Federal e os municípios. O interesse comum tem
que ser respeitado, a autonomia tem que ser respeitada. Agora, o respeito não
10. O Relatório anual do ONU-Habitat de 2022 aponta para 55% da população vivendo em áreas urbanas. Para mais
informações, ver: relatorio-anual-2022.netlify.app. O documento original em inglês está disponível em: https://unhabitat.
org/sites/default/files/2022/06/wcr_2022.pdf.
11. Segundo o Censo 2010, a taxa de urbanização do Brasil era de 84%. Disponível em: https://agenciadenoticias.
ibge.gov.br/agencia-sala-de-imprensa/2013-agencia-de-noticias/releases/13937-asi-censo-2010-populacao-do-bra-
sil-e-de-190732694-pessoas.
208 | 50 anos de regiões metropolitanas no Brasil e a Política Nacional de Desenvolvimento Urbano
significa que se possa fazer qualquer coisa. Mesmo a soberania, que em tese é o
direito autônomo mais radical, não pode ser exercida a ponto de se ver as guerras
acontecerem, a ocupação de territórios à revelia das normas internacionais que
determinam limites e possibilidades para as ações tansterritoriais.
Acho que a autonomia é debatível, é normalizável de forma democrática,
para que não se tenha um país, o território transformado em norma, como se
preocupava Milton Santos. As normas na hegemonia liberal acabam sendo sempre
para uso dos agentes hegemônicos, cuja lógica do lucro nega o território como
abrigo de todos. Direito à cidadania para todos é o direito à cidade, como o Henri
Lefebvre propugnava.
REFERÊNCIAS
ALCANTARA, C. A cota-parte do ICMS: injusta, insana, insustentável. Fenafisco,
16 ago. 2022. Disponível em: https://fenafisco.org.br/18/04/2022/artigo-a-cota-
-parte-do-icms-injusta-insana-insustentavel/.
BRASIL. Lei no 8.080, de 19 de setembro de 1990. Dispõe sobre as condições para
a promoção, proteção e recuperação da saúde, a organização e o funcionamento
dos serviços correspondentes e dá outras providências. Diário Oficial da União,
Brasília, 20 set. 1990.
SANTOS, M. Manual de geografia urbana. São Paulo: Hucitec, 1981.
CAPÍTULO 11
1 INTRODUÇÃO
As metrópoles, sob um ponto de vista estritamente administrativo, estão contidas
nas macrorregiões, assim como as macrorregiões contêm as grandes metrópoles
nacionais. Dessa forma, seria relativamente simples a conciliação do estudo das
regiões e das metrópoles como modos de caracterização do território, de forma a
melhor compreender os fenômenos urbanos e regionais no Brasil.
Contudo, a categorização analítica não é tão simples, em especial se tratando
de alinhamento de financiamento de políticas públicas. No Brasil, historicamente,
políticas voltadas para as regiões se alinharam às matrizes econômicas de desen-
volvimento, com o intuito de reduzir desigualdades regionais, enquanto políticas
metropolitanas foram sendo construídas pensando, entre outros elementos, nas
aglomerações surgidas do crescimento econômico e seu rebatimento sobre a cidade.
A conexão entre a matriz metropolitana e regional foi bastante investigada
na segunda metade do século XX, a partir dos investimentos possibilitados pelas
superintendências de desenvolvimento regional, criadas inicialmente em 1959
sob a coordenação de Celso Furtado, para o Nordeste (Superintendência do
Desenvolvimento do Nordeste – Sudene), e replicadas nos anos 1960, para a
Amazônia (Superintendência do Desenvolvimento da Amazônia – Sudam) e o
Centro-Oeste (Superintendência do Desenvolvimento do Centro-Oeste – Sudeco).
As instituições buscavam orientar os gastos públicos e privados de acordo
com planos de desenvolvimento, com a justificativa de promover investimentos
estratégicos nas macrorregiões periféricas, com as metrópoles regionais tendo um
papel central.
Segundo pesquisas do Observatório das Metrópoles sobre Fortaleza, Recife
e Salvador (Costa e Pequeno, 2015; Souza e Bitoun, 2015; Carvalho e Pereira,
2014), os incentivos fiscais da Sudene tiveram grande influência na montagem
de parques industriais nas metrópoles, causando um reordenamento na dinâmica
produtiva, social e populacional vista até então.
210 | 50 anos de regiões metropolitanas no Brasil e a Política Nacional de Desenvolvimento Urbano
Na esteira dos incentivos fiscais, a Sudene atrai indústrias para o Nordeste que vão
se concentrar, em especial, nas três grandes capitais da região – Salvador, Recife e
Fortaleza –, acelerando o processo de urbanização (Costa e Amora, 2015, p. 42).
O trecho mostra que é presente na literatura uma interpretação de que as
políticas de desenvolvimento regional influenciaram a produção do espaço me-
tropolitano, em especial na região Nordeste.1 Entretanto, a partir dos anos 1990,
as superintendências se enfraqueceram, assim como seu modelo de financiamento
por incentivos fiscais (Portugal e Silva, 2020). A Sudam e a Sudene foram extintas
em 20012 e não foram mais recepcionados novos projetos para o Fundo de Inves-
timento da Amazônia (Finam) e o Fundo de Investimento do Nordeste (Finor),
que consistiam na redução de impostos para empresas sediadas no Sudeste que
apresentassem projetos produtivos nas áreas de abrangência das superintendências.
Dado esse panorama de fragilização do modelo, novos elementos de finan-
ciamento do desenvolvimento regional foram sendo criados, como os fundos
constitucionais de financiamento (FCFs) surgidos a partir da Constituição Federal
de 1988 (CF/1988).
Os FCFs têm como objetivo prover linhas de crédito subsidiadas para empre-
endimentos de menor porte nas regiões Norte, Nordeste e Centro-Oeste do Brasil
(Brasil, 1989), com recursos oriundos, primordialmente, de 3% da arrecadação
do Imposto de Renda (IR) e do Imposto sobre Produtos Industrializados (IPI), do
qual 1,8% é destinado para o Nordeste – metade para o semiárido –, 0,6% para
o Norte e 0,6% para o Centro-Oeste.
Na região Norte, o Fundo Constitucional de Financiamento do Norte
(FNO) é administrado pelo Banco da Amazônia S. A. (Basa), cuja sede se localiza
em Belém; no Nordeste, o Fundo Constitucional de Financiamento do Nordeste
(FNE) é administrado pelo Banco do Nordeste do Brasil (BNB), com sede em
Fortaleza; e no Centro Oeste, a gestão do Fundo Constitucional de Financiamento
do Centro-Oeste (FCO) é realizada pelo Banco do Brasil, cuja sede fica em Brasília,
visto que não há banco de desenvolvimento na região.
De acordo com Portugal e Silva (2020), os FCFs inverteram a lógica de
financiamento do desenvolvimento regional, focando empreendimentos de me-
nor porte, ao contrário do modelo de apoio a grandes empresas construído pelo
Finam e o Finor. Ademais, a lógica dos fundos pressupõe a dispersão do crédito
no território macrorregional, algo que reduz o foco sobre as áreas metropolitanas.
1. Na Amazônia oriental, e no caso de Belém em específico, Cardoso, Fernandes e Bastos (2015, p. 36) mostram que
os investimentos possibilitados pela Sudam eram voltados para projetos de assentamento rural, construção de usinas
hidrelétricas, abertura de rodovias, projetos de extração mineral e de madeira, mas que também mantiveram a centralidade
de Belém, por meio do fortalecimento de atividades de comércio e serviços vinculadas a esses novos empreendimentos.
2. A Sudeco já havia sido extinta em 1990.
Entre o urbano e o regional | 211
Sendo assim, são mais de trinta anos de operacionalização dos FCFs, em uma
dinâmica produtiva regional e urbana brasileira que se modificou intensamente
entre 1990 e 2020. Do crescimento acelerado das metrópoles se verifica uma
estagnação persistente, assim como é cada vez mais constante a centralidade do
debate sobre as cidades médias, redes urbanas e redes policêntricas de cidades
no debate urbano e regional.
Tais mudanças, certamente, tiveram reflexos na produção do espaço metro-
politano, e o texto busca investigar aspectos do estágio atual da relação entre as
metrópoles e o financiamento do desenvolvimento regional a partir dos FCFs.
A segunda seção pergunta como as metrópoles estão representadas nos
normativos (leis, portarias, planos) relacionados aos FCFs. Elas estão presentes e
são estratégicas para o desenvolvimento regional? Para respondê-la, analisa-se sua
relação com a atual Política Nacional de Desenvolvimento Regional (PNDR) e
apresentam-se características gerais dos fundos e as possibilidades de interlocuções
das contratações com as metrópoles.
A terceira seção indaga qual o volume de contratação dos FCFs nas metrópoles
em relação ao volume total das contratações e ao seu direcionamento quanto ao
setor produtivo. Onde estas aconteceram em 2022 e quais as principais atividades
econômicas alcançadas? Para esta pergunta, busca-se explorar dados dos recursos
contratados em municípios metropolitanos.
3. No Nordeste, o FNE beneficia investimentos na área de atuação da Sudene, que, além da região, engloba o norte
de Minas Gerais e o Espírito Santo.
4. Em 2017, foram incluídos no rol de beneficiários estudantes regularmente matriculados em cursos superiores não
gratuitos. Uma tentativa de os FCFs se tornarem o funding do Fundo de Financiamento Estudantil (Fies).
212 | 50 anos de regiões metropolitanas no Brasil e a Política Nacional de Desenvolvimento Urbano
7. i) Metrópole de Manaus: Manaus; ii) Metrópole de Belém: Belém, Ananindeua, Marituba e Benevides; iii) Metrópole
de Goiânia: Goiânia, Abadia de Goiás, Aparecida de Goiânia, Aragoiânia, Bonfinópolis, Brazabrantes, Caldazinha,
Goianira, Guapó, Hidrolândia, Nerópolis, Nova Veneza, Santo Antônio de Goiás, Senador Canedo e Trindade; iv) Região
Integrada de Desenvolvimento do Distrito Federal (Ride-DF): Águas Lindas de Goiás, Brasília, Cidade Ocidental, Luziânia,
Novo Gama, Padre Bernardo, Planaltina, Santo Antônio do Descoberto, Valparaíso de Goiás; v) Metrópole de Fortaleza:
Aquiraz, Caucaia, Eusébio, Fortaleza, Itaitinga, Maracanaú, Maranguape e Pacatuba; vi) Metrópole de Salvador: Ca-
maçari, Candeias, Dias D’avila, Lauro de Freitas, Madre de Deus, Mata de São Joao, Salvador, São Francisco do Conde,
São Sebastião do Passe, Simões Filho; e vii) Metrópole do Recife: Abreu e Lima, Aracoiaba, Cabo de Santo Agostinho,
Camaragibe, Igarassu, Ilha de Itamaracá, Ipojuca, Itamaracá, Itapissuma, Jaboatão dos Guararapes, Moreno, Olinda,
Paudalho, Paulista, Recife e São Lourenço da Mata.
216 | 50 anos de regiões metropolitanas no Brasil e a Política Nacional de Desenvolvimento Urbano
A maior parte das contratações gerais dos FCFs está localizada em munícipios
classificados como centros locais, para os quais mais de 54% dos recursos em 2022
(R$ 29 bilhões) foram destinados. Os centros locais são cidades com população
média de 12,5 mil habitantes, cuja influência é restrita ao próprio limite territorial,
isto é, o perfil das aplicações dispersa diretamente o crédito para os municípios e
não os centraliza em municípios maiores, com possíveis efeitos indiretos sobre a
capilaridade dos fundos.
São munícipios como Jaborandi, na Bahia, distante da metrópole de Salva-
dor, que em 2022 contratou mais recursos (R$ 323 milhões) que as metrópoles
de Belém e Goiânia. O município é sede da Santa Efigênia, empresa produtora de
grãos e sementes, e está situado no Matopiba, acrônimo dos estados do Mara-
nhão, Tocantins, Piauí e Bahia, uma área de expansão agrícola de soja e milho,
confirmando a destinação interiorana do crédito dos FCFs e novas configurações
territoriais fora das metrópoles.
Com relação às metrópoles, o gráfico a seguir demonstra os valores em milhões
de reais das contratações em 2022.
GRÁFICO 1
Contratações dos FCFs nas RMs (2022)
(Em R$ 1 milhão)
Manaus e a Ride-DF vêm atrás, com cerca de 10% das contratações, e depois
aparecem Goiânia e Belém.
Ademais, duas constatações são importantes para analisar os resultados.
A primeira é que as capitais dos estados e cidades principais das metrópoles
(Recife, Salvador, Fortaleza, Manaus, Belém, Goiânia e Brasília) representaram
R$ 2,4 bilhões em contratações (49% do total nas RMs), significando que, apesar das
restrições ao crédito dos FCFs, as capitais são destino de quase metade dos recursos
contratados nas metrópoles. Isso demonstra que, em termos de dispersão do crédito
nas áreas metropolitanas, os fundos não chegaram a ter êxito no ano em análise.
A segunda constatação é a distribuição de recursos segundo atividades econô-
micas nas metrópoles. Segundo os dados para 2022, obtidos do painel do MIDR,8
as maiores contratações foram destinadas para infraestrutura, para geração de energia
elétrica, em municípios periféricos nas áreas metropolitanas. Foram destinados
R$ 575 milhões para os municípios de Camaçari, na metrópole baiana, Maracanaú
e Caucaia, na metrópole cearense. Em Caucaia, está sendo construído um parque
eólico com 48 turbinas offshore e 11 semi-offshore, totalizando 548 MW de energia,
uma tendência recente de investimentos no Nordeste brasileiro.
Nos demais resultados referentes às atividades econômicas, foi possível per-
ceber uma diferenciação nas atividades beneficiadas de acordo com a região onde
a metrópole se encontra.
Na região Norte, as contratações para a indústria de transformação, tanto
em Belém quanto em Manaus, ainda são salutares. Em Manaus persiste o Polo
Industrial de Manaus (PIM), um dos maiores símbolos do período de investimentos
possibilitados por incentivos fiscais, enquanto, em Belém, o resultado surpreende,
visto o declínio da atividade na região, como demonstraram Monteiro Neto, Silva
e Severian (2019), a partir da medição da transformação do nível de empregos
industriais nos últimos quinze anos em aglomerados industriais relevantes (AIRs).
O comércio também foi relevante nas metrópoles da região Norte, um fe-
nômeno antigo, como mencionado por Cardoso, Fernandes e Bastos (2015), que
destacaram a importância dos estabelecimentos nas cidades de maior porte em
relação às atividades produtivas do interior.
Por sua vez, também ganha relevância a infraestrutura, por meio da produ-
ção e distribuição de eletricidade, gás e água, como uma das atividades de maior
contratação, uma atividade com potencial de integrar a metrópole.
TABELA 1
Maiores contratações nas metrópoles por atividade econômica (2022)
Contratações
Região RM CNAE
(R$ 1 milhão)
Comércio; reparação de veículos automotores, objetos
147
pessoais e domésticos
Manaus
Indústrias de transformação 127
Produção e distribuição de eletricidade, gás e água 150
Norte
Comércio; reparação de veículos automotores, objetos
86
pessoais e domésticos
Belém
Indústrias de transformação 22
Transporte, armazenagem e comunicações 127
Atividades do operador portuário 536
Geração de energia elétrica 139
Salvador
Lojas de variedades, exceto lojas de departamento ou
146
magazines
Fabricação de produtos de trefilados de metal padronizados 43
Nordeste
Fortaleza Geração de energia elétrica 436
Gestão e administração da propriedade imobiliária 74
Aluguel de imóveis próprios 25
Recife Cultivo de cana-de-açúcar 93
Hotéis 118
(Continua)
Entre o urbano e o regional | 219
(Continuação)
Contratações
Região RM CNAE
(R$ 1 milhão)
Atividades de pós-colheita 14
Comércio atacadista de máquinas e equipamentos para uso
Ride-DF 36
comercial; partes e peças
Pessoa física 251
Com relação aos setores, percebe-se que o direcionamento é dado para ativi-
dades historicamente relacionadas a grandes efeitos multiplicadores ou impactos
no território, como o investimento em energia elétrica ou outro tipo de infraes-
trutura econômica que possa beneficiar um estado inteiro, ou mesmo a indústria
de transformação, que aciona elementos mais modernos de uma cadeia produtiva.
Ainda resiste uma mística sobre os grandes impactos no território, mas
deve-se avaliar se os fundos podem ser tais elementos ou se funcionam como um
modelo de financiamento para efeitos regionais mais restritos territorialmente, no
qual se incluem as metrópoles e seus mecanismos de aglomeração, mas também
de conectividade com o território, em particular com as regiões no entorno das
capitais dos estados.
4 CONSIDERAÇÕES FINAIS
Os fenômenos metropolitanos e regionais no Brasil pouco dialogam, ainda mais
em termos de financiamento de políticas públicas. Nesse sentido, o texto buscou
traçar um panorama entre o financiamento possibilitado pelos FCFs, os principais
instrumentos da política de desenvolvimento regional, e os espaços metropolitanos
no Brasil.
Para tanto, perguntou-se, em primeiro lugar, como os normativos (leis,
normativos, planos) dos FCFs discutem as metrópoles. Elas estão presentes e são
estratégicas para o desenvolvimento regional? Em segundo lugar, indagou-se sobre
a magnitude dos valores das contratações em municípios entendidos como me-
tropolitanos pela hierarquia urbana do IBGE. Onde foram contratados em 2022
e quais as principais atividades econômicas alcançadas?
220 | 50 anos de regiões metropolitanas no Brasil e a Política Nacional de Desenvolvimento Urbano
REFERÊNCIAS
ALVES, A. M.; ROCHA NETO, J. M. da. A nova Política Nacional de Desen-
volvimento Regional – PNDR II: entre a perspectiva de inovação e a persistência
de desafios. Revista Política e Planejamento Regional, Rio de Janeiro, v. 1,
n. 2, p. 311-338, jul.-dez. 2014.
BNB – BANCO DO NORDESTE S. A. Programação regional: FNE 2022.
Fortaleza: BNB, jan. 2022. Disponível em: https://www.gov.br/mdr/pt-br/assuntos/
fundos-regionais-e-incentivos-fiscais/DocumentoProgramaoFNE2022v4.1_vFinal.pdf.
BRASIL. Lei no 7.827, de 27 de setembro de 1989. Regulamenta o art. 159, inciso
I, alínea c, da Constituição Federal, institui o Fundo Constitucional de Financia-
mento do Norte (FNO), o Fundo Constitucional de Financiamento do Nordeste
(FNE) e o Fundo Constitucional de Financiamento do Centro-Oeste (FCO), e
dá outras providências. Diário Oficial da União, Brasília, 27 set. 1989. Seção 1.
BRASIL. Ministério da Fazenda. Secretaria de Acompanhamento Fiscal, Energia e
Loteria. Relatório de avaliação dos fundos constitucionais de financiamento.
Brasília: Sefel, dez. 2018.
CARDOSO, A. C. D.; FERNANDES, D. A.; BASTOS, A. P. V. A inserção da
RMB na Amazônia e na rede urbana brasileira. In: CARDOSO, A. C. D.; LIMA, J.
J. F. (Ed.). Belém: transformações na ordem urbana. Rio de Janeiro: Letra Capital;
Observatório das Metrópoles, 2015.
CARVALHO, I. M. M. de; PEREIRA, G. C. (Ed.). Salvador: transformações na
ordem urbana. Rio de Janeiro: Letra Capital; Observatório das Metrópoles, 2014. Dis-
ponível em: https://transformacoes.observatoriodasmetropoles.net.br/livro/salvador/.
222 | 50 anos de regiões metropolitanas no Brasil e a Política Nacional de Desenvolvimento Urbano
Entrevistadores2
Luis Gustavo Martins
Marco Aurélio Costa
Armando Palermo Funari
Ipea: Olhando para a economia brasileira nos últimos sessenta anos e o seu padrão
tributário e fiscal, temos uma herança da década de 1970 que coloca as bases
tributárias a partir de dinâmicas e arranjos particulares, dentro de um processo
de industrialização com crescimento econômico, com a condução de política
econômica centralizada no período da ditadura. As dinâmicas econômica e social,
entretanto, colocaram o Brasil em outro percurso a partir da crise da dívida e
a hiperinflação, com rumos particulares também para a integração do Brasil à
ordem econômica mundial a partir da década de 1990.
Como você avalia a herança da década de 1970, do ponto de vista dos arranjos
e padrões fiscais? Seria possível identificar alguma lacuna histórica nesse padrão?
Como se relaciona com a temática metropolitana?
Fernando Rezende: O assunto metropolitano vem sendo conduzido muito mal
desde a criação das regiões [metropolitanas], lá em 1973. Em realidade, até antes,
porque o problema é que nunca se discutiu federalismo fiscal no Brasil a sério.
Na verdade, tenho um comentário sobre isso a que posso retornar depois;
participei com alguns amigos de uma discussão relacionada a isso. O [ex-presi-
dente] Sarney, quando era presidente do Senado Federal, criou uma comissão para
discutir um problema: uma intervenção do Superior Tribunal de Justiça (STJ),
considerando serem inconstitucionais as transferências de recursos do governo
federal para os estados que não estavam cumprindo a regra que deveria ajudar a
reduzir as disparidades interestaduais. Nessa comissão, que foi criada na época, um
dos participantes, que também é meu amigo, Everardo Maciel, em uma pesquisa,
descobriu uma situação que eu nem sabia e acho que a maioria dos brasileiros não
sabe: a Federação brasileira nunca foi discutida. Nem na criação. A Federação brasi-
leira foi criada por um decreto provisório da dupla Floriano [Peixoto] e Deodoro
[da Fonseca], quando assumiram o poder, no fim do período imperial, e mandaram
para o exílio o então imperador Pedro II. Editaram um decreto provisório criando
a República Federativa do Brasil. Quer dizer, nem a República nem a Federação
foram discutidas naquele momento. Algo absurdo! Mas criaram a República
Federativa do Brasil [Estados Unidos do Brasil até 1967] por um decreto provi-
sório. A Federação era uma coisa muito demandada.
Rui Barbosa, se não me falha a memória, era um admirador do federalismo
norte-americano. Encantado com o federalismo norte-americano. Assim, quis
criar uma Federação à semelhança do federalismo norte-americano. Autonomia
dos estados total, não havia municípios autônomos independentes, tudo de-
pendia dos estados, e os estados eram entidades autônomas dentro do regime
federativo. Claro que isso tudo não deu certo, não tinha qualquer semelhança
entre o regime norte-americano e o que vigia no Brasil naquele momento.
A Constituição de 1891, a primeira que absorveu a ideia de federalismo, logo
teve que ser posta de lado. Foram surgindo várias mudanças, desde o período Vargas
até 1988. E em 1988, fizeram pior: fizeram duas mudanças que suscitaram gran-
des problemas para o federalismo brasileiro. Uma foi o congelamento dos fundos
de participação dos estados e municípios. Até hoje estão congelados os critérios de
rateio. E a segunda foi a decisão de cancelar a proibição que existia antes de remu-
nerar os vereadores em municípios com menos de 300 mil habitantes. Esses foram
dois fatores que acabaram provocando muitos problemas na Federação brasileira.
E as regiões metropolitanas (RMs), que foram criadas na década de 1970,
também não tinham condições de operar satisfatoriamente, porque não havia espaço
suficiente nem condições políticas para organizar uma coordenação das ações dos
estados e dos municípios que participavam das respectivas RMs. Naquele momento,
foram criadas as dez regiões; a última foi a RM do Rio de Janeiro, um ano depois,
porque havia, naquele momento, uma discussão grande no Rio de Janeiro, para
discutir a fusão dos antigos estados do Rio de Janeiro e da Guanabara. De lá
para cá, a coisa veio andando para trás.
Depois, participei de alguns trabalhos sobre RMs do Brasil. Elas foram se
multiplicando, mas sem quaisquer condições de operar satisfatoriamente. Por quê?
Pelo mesmo motivo: porque não havia condições políticas para estados em que
as RMs eram criadas controlarem a ação dos municípios que foram incluídos
nessas regiões. No meio ainda havia um problema pior: eleições a cada dois anos,
primeiro para os estados, depois para os municípios. Ora, eleições a cada dois
anos significavam que, num momento, havia uma relação política provavelmente
Questões abertas do federalismo brasileiro | 225
4. Comissão Nacional de Regiões Metropolitanas e Política Urbana – Decreto no 74.156, de 6 de junho de 1974.
228 | 50 anos de regiões metropolitanas no Brasil e a Política Nacional de Desenvolvimento Urbano
estão sendo discutidas no Supremo Tribunal Federal (STF), que é outro problema
da Federação brasileira: a independência dos poderes foi abandonada.
Ipea: Em algumas situações, fica muito difícil administrar essa situação da
forma como o próprio Judiciário atua. A União quer punir um estado ou muni-
cípio por alguma indisciplina fiscal ou dívida, mas o município ou estado recorre
ao Judiciário, alegando que pagar a União ou ter repasses de fundos arrestados
para pagar compromissos irá prejudicar suas políticas sociais. E ganham a disputa
no STF. Isso acaba também estimulando essas situações de inadimplência que, às
vezes, nem se justificam. Acaba por se gerar um protagonismo do Judiciário, por
falta de uma boa regulamentação da parte do Legislativo. Por um lado, as regras
não são claras e, por outro, o Poder Judiciário pode pautar-se por interpretações
que teriam bases legais menos sólidas para tomar suas decisões, como nesse caso.
Fernando Rezende: Essa dificuldade cria problemas de toda natureza. A notícia
de hoje de manhã, a multiplicação dos casos de dengue e chikungunya no Rio de
Janeiro, é uma coisa absurda. Discute-se, há anos, uma política nacional
de saneamento e não se consegue chegar a uma conclusão, porque não há acordo
sobre uma política nacional de saneamento básico. Cada caso é visto da sua
perspectiva, equivocadamente.
São três políticas fundamentais para a Federação atender às necessidades
das pessoas de mais baixa renda; saneamento urbano é uma delas. O transporte
metropolitano precisa ser integrado. Durante a pandemia, nós vimos mais essa
questão fora do lugar. A questão da educação, também, está posta de uma maneira
que não faz muito sentido. Tem a ver com o desequilíbrio na repartição dos recur-
sos entre os municípios, que são os principais responsáveis pela educação básica.
E a questão da saúde. O Sistema Único de Saúde (SUS) foi pioneiro. Criaram
primeiro na Inglaterra a política de atenção integral à saúde. No Brasil havia
um pessoal lá no Rio de Janeiro que estudava isso; copiou-se o regime inglês.
Funcionou durante um certo período, de forma relativamente satisfatória, e depois,
entrou no buraco. Na época da pandemia, os estados tentaram resgatar um pouco
do seu protagonismo nessa área. Mas aí temos outra coisa que não se discute no
Brasil: as mudanças decorrentes das alterações demográficas e socioeconômicas.
Onde está o problema? Onde está a pobreza? Isso tudo ninguém sabe mais, essas
coisas não são estudadas. A questão que eu proporia para debate é a seguinte:
como essas transformações acarretaram todo o problema que as pessoas no Brasil
estão vivendo, e o que precisa mudar? Não é uma coisa simples.
Novamente, fizeram outra coisa no Brasil que não existe em outros regimes
federativos. O orçamento, no início, na sua aprovação, tem sua execução já entre-
gue ao Judiciário, ao Legislativo e ao Executivo. Há uma regra de distribuição no
ano. Pega-se o total do orçamento e divide-o em duodécimos, e cada um executa
Questões abertas do federalismo brasileiro | 231
o seu pedaço. Não é assim em outras federações. O orçamento é uma coisa só, é
da Federação, não há orçamento para os poderes de uma Federação. Mas, enfim.
Estamos aí, como se diria antigamente, num “mato sem cachorro”.
Ipea: Nesse “mato sem cachorro”, há muita dificuldade para encontrar-se
uma solução, especialmente nas RMs, tomada a questão da autonomia municipal.
Por mais que, em tese, saibamos que não existe autonomia absoluta, ela acaba
sendo usada para restringir as possibilidades de articulação interfederativa, que é
agravada pelo desnível, pelas desigualdades entre os municípios.
Temos municípios metropolitanos, que são esses que você já referiu, que acu-
mulam problemas sociais e não têm condições fiscais de enfrentar esses problemas,
que são vizinhos de outros municípios que têm eventualmente maior dinamismo,
e, neles, a terra é cara, habita uma população de nível de renda maior. Em toda
RM, identifica-se um arranjo desse: o centro metropolitano; um ou dois muni-
cípios que têm um padrão de renda mais alto, que acabam apresentando menos
problemas; e um conjunto grande de municípios que não têm renda, têm uma
arrecadação municipal baixa e acumulam muitos problemas. Considerando-se
a forma como o arranjo da distribuição de recursos fiscais é feita no Brasil, é difícil
imaginar, no curto prazo, uma saída que não passe por um protagonismo maior da
União, especialmente se pensando no financiamento do desenvolvimento urbano
e metropolitano. Qual o papel da União nesse “mato sem cachorro”? O que a
União deveria estar fazendo e eventualmente não está, uma vez que essas reformas
estruturais parecem muito difíceis?
Fernando Rezende: Eu acho que o meu papel seria tentar pôr em debate a
discussão dos critérios de rateio dos fundos constitucionais. Existe o fundo constitu-
cional dos estados, dos municípios, e já houve, também, um fundo metropolitano,
em alguns momentos, mas que saiu também do relógio. Essa é uma discussão fun-
damental, quer dizer, qual é o papel do governo federal na tentativa de equalizar os
recursos que são necessários para tratar dos problemas mais sérios que a Federação
enfrenta; nesse caso, os problemas sociais, um tema extremamente importante
nessa discussão de agora. Então, porei em discussão. Não todas as questões fede-
rativas, mas os fundos, que têm uma história já antiga, antecedem à Constituinte.
Aí há uma história, uma experiência que poderia ser avaliada e discutida. Agora,
não é só isso. Isso pode ser o ponto de partida para tratar da questão do financia-
mento das metrópoles brasileiras. De pronto, eu não teria resposta. Tenho mais
perguntas do que respostas. Acho isso muito importante; ao invés de tratar das
respostas, precisamos primeiro tratar das perguntas. O que precisa ser analisado e
discutido? E como tratar do assunto?
Ipea: Uma questão muito importante nas RMs é a da mobilidade. Os mu-
nicípios não têm a menor condição de fazer frente aos investimentos que seriam
232 | 50 anos de regiões metropolitanas no Brasil e a Política Nacional de Desenvolvimento Urbano
Entrevistadores2
Marco Aurélio Costa
Laurita Hargreaves-Westenberger
Gustavo Luedemann
Armando Palermo Funari
3. COP é a sigla em inglês para Conference of the Parties United Nations Framework Convention on Climate Change (UNFCCC).
4. Medidas restritivas de circulação de pessoas adotadas em diversas cidades do país e do mundo, com intuito de
retardar a propagação do vírus SARS-covid-19.
As metrópoles brasileiras no contexto das mudanças climáticas | 239
em 50% as emissões até 2030 e zerar as emissões líquidas até 2050. Apostam no
desenvolvimento de novas tecnologias, de modo que as emissões líquidas continuem
aumentando até 2030 e, depois, sejam reduzidas lentamente até 2050, e haja enorme
remoção de CO2 da atmosfera até o final do século, com técnicas de geoengenharia.
Nesta técnica chamada de overshooting em inglês, a elevação da temperatura chega-
ria a 2,3 oC e até a 2,5 oC até 2050, e seria reduzida a 1,5 oC até 2100. O grande
problema dessa estratégia é que existem inúmeros riscos associados a continuar
permitindo o aquecimento do planeta: os chamados pontos de não retorno; em
inglês, tipping points. Por exemplo: mesmo com 1,5 oC de aquecimento, nós iremos
perder talvez mais de 100 bilhões de toneladas de gás carbônico e de metano, equi-
valente a mais de 100 bilhões de toneladas de gás carbônico e metano no permafrost.
Permafrost é o solo congelado há milhões e milhões de anos na Sibéria, no Alasca
e no Canadá (altas latitudes no Polo Norte). A perda desse carbono – na forma de
gás carbônico e metano – dificultará a manutenção da elevação da temperatura de
1,5 oC. Outro exemplo: eu tenho feito, há mais de 35 anos, pesquisas mostrando
esse risco da Amazônia, do chamado ponto de não retorno da Amazônia (tipping
point).5 Ultrapassando 1,5 oC e chegando a 2 oC, em conjunto com a continuação
dos desmatamentos, na Amazônia, existe um enorme risco de “savanização” do bio-
ma – isto é, de ele se tornar um ecossistema aberto como as savanas tropicais, mas
bastante degradado. Com isso, podemos perder mais de 200 bilhões de toneladas
de gás carbônico provenientes da perda de biomassa da floresta. Estou dando dois
exemplos de muitos pontos de não retorno. Há muitos mais.
O aquecimento dos oceanos pode levar a uma gigantesca perda de metano
que está no fundo dos oceanos. Há muitas nuvens baixas em cima das águas frias
na costa do Pacífico da América do Sul e em vários outros lugares. Essas nuvens são
formadas exatamente porque há água mais fria naquela área. Essa água oceânica
mais fria faz o vapor d’água condensar e, por serem baixas, refletem aproximada-
mente 30% a 50% da radiação solar incidente. O aquecimento do oceano leva
ao desaparecimento dessas nuvens, o que leva ao aquecimento de toda a região,
uma vez que o oceano reflete apenas 6% da radiação solar. Esses são apenas alguns
exemplos dos tipping points. Eu poderia passar horas dando outros exemplos.
Aumentar a média da temperatura global acima de 2 oC-2,5 oC aumenta
muito o risco desses pontos de não retorno. Diante deste cenário, não podemos
esperar até 2050 para reduzir e zerar as emissões líquidas de CO2.
Por que emissões líquidas? Porque algumas emissões sempre vão continuar.
Por exemplo, é muito improvável que nós humanos, que já somos 8 bilhões, iremos
diminuir o consumo de carne bovina – responsável pela grande emissão de um
poderoso gás de efeito estufa, o metano, através da fermentação entérica no boi.
5. Literalmente, ponto da ponta, limite antes do transbordamento ou queda, ou pontos de não retorno.
240 | 50 anos de regiões metropolitanas no Brasil e a Política Nacional de Desenvolvimento Urbano
6. Hipótese ou corrente que estipula uma tolerância a um aumento superior 1,5ºC da temperatura média global, en-
quanto são implementadas tecnologias de sequestro de carbono, promovendo uma redução da concentração de CO2
e, consequentemente, das temperaturas.
As metrópoles brasileiras no contexto das mudanças climáticas | 241
preço, imagine o aumento do preço dos alimentos. Então, essa tecnologia serve para
outros usos. Espera-se que esse custo possa diminuir com o aperfeiçoamento da
tecnologia, mas, ainda assim, seria difícil deixar o overshooting. Como eu mencionei,
muitos defendem esse overshooting, e o risco de ultrapassarmos a temperatura média
global de 1,5 oC é enorme.
Muitos estudos têm demonstrado que a elevação da temperatura média em
1,5 oC e zerar as emissões líquidas até 2050 já seria perigoso, uma vez que a tempe-
ratura em cima dos continentes chegaria a 2 oC-2,5 oC e os oceanos se aqueceriam
lentamente. Mesmo o cenário de 1,5 oC levaria ao derretimento lento do manto de
gelo da Groenlândia e ao aumento do nível do mar em 3 metros. O derretimento
do manto corresponderia a 50% do derretimento do gelo e a 50% da expansão
térmica. Se todo o gelo da Groelândia fosse derretido, seriam 7 metros de aumento
do nível do mar somente por conta do derretimento, sem contar o aumento do
nível por expansão térmica, mas isso não ocorre no cenário de 1,5 oC. Importante
destacar que, mesmo se fôssemos diminuindo a temperatura novamente, isso não
levaria à recomposição completa do gelo da Groelândia. Contudo, levaria milhares de
anos para formar novas montanhas de gelo na Groelândia, que chegam a até 3 km.
Mesmo o aumento da temperatura média global em 1,5 oC provocaria mudan-
ças irreversíveis como estas e a extinção de espécies. Milhares, dezenas de milhares
de espécies seriam extintas, muitas de origem oceânica. Por isso, eu e vários outros
cientistas não apoiamos o overshooting. Nós temos feito manifestações muito claras
de lutar o máximo possível para vencer esse desafio de reduzir em 50% as emissões
até 2030 e zerar as emissões líquidas antes de 2050. Acho que respondi um pouco
à primeira pergunta do que é tão radical nessas metas de mitigação e redução de
risco, e o porquê de não podermos fugir delas. Mas não falei da adaptação ainda.
Ipea: Parece que esse encadeamento deixa muito claro e vivo que essa sequ-
ência de eventos requer algum tipo de ação preparatória. Se você puder, comente
um pouco sobre isso.
Carlos Nobre: Infelizmente, o que tem acontecido é o seguinte: a maior par-
te das comunicações científicas muito marcantes, produtivas, sobre os riscos do
aquecimento global, vem dos relatórios do IPCC. O relatório do IPCC é inter-
governamental, e todo o seu sumário (summary for policymakers – SPM) tem que
ser aprovado pelos governos. Eu mesmo participei de vários relatórios do IPCC.
O relatório desenvolveu uma linguagem de comunicação da quantidade de evidência
e grau de consenso científico, ao longo do tempo, em torno da noção de maior e
menor confiabilidade dos achados. Nos primeiros relatórios do IPCC, não foram
inseridas as projeções em que havia apenas 10% de probabilidade de o evento ocor-
rer; e, portanto, determinada informação era deixada de fora do SPM. Poderia ser
mencionada, mas nas milhares de páginas dos relatórios, e não no SPM, que é o que
242 | 50 anos de regiões metropolitanas no Brasil e a Política Nacional de Desenvolvimento Urbano
é lido. A menção à informação era vaga. Podemos citar como exemplo a projeção
em torno do desaparecimento do gelo no oceano Ártico em decorrência do aqueci-
mento global. O relatório do IPCC de 2003 afirmava que este evento só ocorreria
no século XXII. Hoje, no sexto relatório, o IPCC aponta que o gelo desaparecerá até
antes de 2050, no fim do verão. Todo o oceano Ártico ficará sem gelo por semanas e
até por mais de um mês antes de 2050. Esse fenômeno conjuga fatores relacionados
ao aquecimento global e à variabilidade natural do clima. Esta variabilidade pode
conduzir a um período de ar quente para o Ártico que, em conjunto com o aqueci-
mento global, levaria ao derretimento total do gelo. O sexto relatório do IPCC traz
com muita clareza que o aumento dos extremos climáticos é de responsabilidade
do aquecimento global. A frequência com que os eventos extremos (ondas de calor,
secas pronunciadas, chuvas intensas, chuvas prolongadas e aumento das ressacas) está
aumentando hoje se atribui claramente ao aquecimento global, e não à variabilidade
natural. Houve um ou outro evento que o IPCC previu que ainda não aconteceu,
mas, na grande maioria dos casos, o IPCC estava atrasado em relação à frequência e à
intensidade que alguns eventos atingiram, como o gelo do Ártico, que ocorreu vinte
anos antes. Esses eventos se anteciparam em relação à previsão do IPCC. Portanto,
muitas das ações de adaptação pautadas nas mensagens que o IPCC comunicava
foram insuficientes para conter os efeitos dos extremos climáticos.
Atualmente, o aumento da temperatura média global é de 1,1 oC-1,15 oC;
de 0,88 oC nos oceanos; e de 1,5 oC-1,6 oC nos continentes. E tudo isso que vi-
mos já aconteceu (o aumento da frequência de extremos). Quando o aumento da
temperatura média global atingir 1,5 oC, os continentes atingirão um aumento
da temperatura média de 2 oC-2,5 oC maior; e os oceanos, em muitos séculos, de
1,5 oC. Esses aumentos da temperatura média provocarão uma frequência ainda
muito maior dos eventos extremos. Por quê? A evaporação da água dos oceanos
aumenta exponencialmente quando a temperatura da superfície passa de 26,5 oC.
Por que não temos áreas com furacões no Atlântico Sul, mas temos furacões no
Caribe? A área de oceano que atinge essa temperatura no Atlântico Sul é muito
pequena, somente no Nordeste brasileiro. Já no Caribe, há uma imensa área que
recebe um sistema de baixa pressão que vem da África e vem evaporando uma
massa imensa de água, e é essa água evaporada que gera as nuvens, e, quando
começa a formar gotículas de água, ela condensa, libera calor que foi usado para
a evaporação, chamado calor latente, e gera uma área de baixa pressão. É por essa
e por outras razões que não existem furacões onde não há essas altas temperatura
na superfície, como as do Caribe. Com o aumento da temperatura sobre os oce-
anos, como quando o aumento dos oceanos chegar a 1,5 oC, o que ainda levará
séculos, haverá esse fenômeno com frequência em outras regiões onde ele não
ocorre hoje, principalmente em locais tropicais, subtropicais e, até mesmo, no
verão, em latitudes médias no Hemisfério Norte. Isto tudo já acontece, sabemos
As metrópoles brasileiras no contexto das mudanças climáticas | 243
que ocorrerá com maior frequência, e podemos perguntar: estamos, de fato, bus-
cando ações de adaptação? Esses fenômenos são de grande escala, não há como
impedir a sua ocorrência.
Grande parte dos países tem poucas políticas efetivas de adaptação, e nor-
malmente elas se encontram nos países desenvolvidos. Nos Estados Unidos, em
Hamburgo (Alemanha) e na Holanda (Países Baixos), por exemplo, as zonas costeiras
têm recebido grande atenção, com políticas de adaptação para conter as ressacas.
A ressaca é puramente a transferência de energia cinética do vento para o oceano.
Ele perturba o oceano, que transporta esse efeito como uma onda de gravidade que
se quebra ao chegar na costa. Por que a frequência de ressacas está aumentando?
As tempestades em cima dos oceanos estão aumentando a intensidade do fenôme-
no porque tem mais vapor d’água na atmosfera, devido à maior evaporação dos
oceanos. Por exemplo, os portos na Holanda e em Nova York recebem inúmeras
políticas de adaptação para diminuir o risco de ressacas. Neste contexto, são poucas
as políticas de adaptação, de aumento da resiliência de todos os sistemas sociais,
econômicos, humanos, agrícolas, em países em desenvolvimento; no Brasil, é quase
zero. No Brasil, foi desenhada uma política nacional de adaptação, que chegou a
ser publicada em 2016 pelo Ministério do Meio Ambiente. Contudo, a política
tornou-se apenas um documento sem implementação efetiva de fato.
No Brasil, tivemos o maior número de desastres naturais da história de dezem-
bro de 2021 até abril de 2023. As inundações no sul da Bahia, em Minas Gerais,
na Região Metropolitana de São Paulo, em Petrópolis – em 2020 –, em Angra dos
Reis, na Grande Recife e, mais recentemente, no litoral norte de São Paulo e na
zona costeira do sul da Bahia, que mataram mais de quinhentas pessoas. Além das
chuvas intensas e prolongadas, ocorreram recordes de temperaturas no Rio Grande
do Sul, com as secas mais prolongadas do registro histórico nesta região de 2020
a 2022; secas contínuas de 2012 a 2018 no Nordeste; no Sudeste, entre 2014 e
2015; no Centro-Oeste, em 2016 e 2017. Diante desses eventos, pergunta-se quais
são as políticas efetivas de adaptação no Brasil. Nenhuma, o Brasil não tem, na
escala nacional, políticas efetivas de adaptação.
Ipea: A heterogeneidade territorial das cidades brasileiras expõe questões relacio-
nadas aos efeitos desiguais das mudanças climáticas nas cidades. A literatura propõe
que o adensamento seria a melhor opção para o aproveitamento do espaço urbano.
Levando-se em consideração a questão urbana, quais os efeitos do padrão de urbani-
zação brasileiro sobre as mudanças climáticas no risco associado aos eventos extremos?
Carlos Nobre: No que tange à questão urbana, a maior parte das pessoas
afetadas pelos desastres associados com esses extremos climáticos é de populações
urbanas; por exemplo, da Grande Recife, de Petrópolis etc., em eventos recen-
tes. São populações urbanas que vivem sob condições de exposição em áreas de
244 | 50 anos de regiões metropolitanas no Brasil e a Política Nacional de Desenvolvimento Urbano
Esse fenômeno está relacionado com a perturbação do jato polar pelas mudanças
climáticas. Estas perturbaram o movimento circular do jato, que passou a adotar
a forma de meandros. Em um lado do meandro, o ar frio chega nas latitudes
médias; do outro lado, o ar quente chega aos polos. Por exemplo, no verão do
Hemisfério Sul do ano passado, a temperatura bateu recorde na Antártida neste
meandro. No lado do meandro que chegou o ar frio, observou-se no ano pas-
sado o recorde de temperaturas baixas em Mato Grosso do Sul. Um recorde de
temperatura fria não implica ausência do aquecimento global. Na verdade, é o
próprio aquecimento que não está segurando o jato polar circular. Esses episódios
de recordes de frio têm um grande impacto na saúde e na agricultura global.
Como eu disse, o Brasil não tem políticas claras para aumentar a resiliência
da agricultura, como é o caso das agriculturas regenerativas. A agricultura regene-
rativa é muito importante, pois ela é capaz de estabilizar a temperatura quando há
recorde de altas ou baixas temperaturas. A agricultura regenerativa ajuda a reduzir
a temperatura e impedir a erosão do solo quando ocorrem tempestades muito
severas. O Brasil possui 2,8 milhões de quilômetros quadrados em agricultura e
pecuária; contudo, em apenas 6% da área se pratica o plantio direto. Atualmente,
as plantações de cana-de-açúcar e a soja praticam o plantio direto como parte da
agricultura regenerativa. Contudo, esta inclui questões relacionadas à cultura e à
presença do bioma original, uma vez que ele ajuda a proteger a agricultura dos
extremos climáticos. Outro benefício da agricultura regenerativa é a absorção de
carbono pelo solo. Nesta perspectiva, a agricultura regenerativa pode ser compreen-
dida como uma medida de mitigação que visa proteger a agricultura dos extremos
climáticos. Como mencionado, este tipo de agricultura é pouco presente no Brasil
e nos Estados Unidos. A China, por sua vez, está buscando aumentar a participação
da agricultura regenerativa na sua produção de alimentos. Contudo, ela ainda se
mantém incipiente frente à agricultura mundial, pois outros países provavelmente
adotarão em um futuro não muito distante marco legal semelhante ao europeu de
não importar – ou exportar – produtos da agricultura associados a desmatamentos
de florestas globalmente.
Ipea: O Plano Nacional de Adaptação à Mudança do Clima (Brasil, 2016), que
foi publicado no último dia de um governo que foi interrompido, e o AdaptaBrasil,7
no âmbito do Ministério de Ciência, Tecnologia e Inovação, foram reduzidos dras-
ticamente. Embora as discussões da Política Nacional de Desenvolvimento Urbano
tenham incluído questões ambientais, elas ocorreram de maneira desconectada –
ou seja, sem a presença de um poder que coordenasse as ações. Neste momento,
as questões relacionadas às mudanças climáticas ganham um novo enfoque, que
não receberam no final de 2016. Agora é o momento em que precisamos ouvir
8. Para mais detalhes, ver Our Word in Data. Energy consumption by source, China. Disponível em: https://ourworldindata.
org/grapher/energy-consumption-by-source-and-country?stackMode=absolute&country=~CHN. Acesso em: nov. 2023.
As metrópoles brasileiras no contexto das mudanças climáticas | 247
mas pelo tempo de duração. O ônibus elétrico tem como tempo de vida 25 anos;
além disso, a energia elétrica no Brasil é atualmente mais barata que a energia a
combustível fóssil, por mover o motor dos veículos com eficiência acima de 70%,
enquanto esse valor é em torno de 30% a 40% com o uso de combustíveis fósseis.
No que se refere às medidas para reduzir os desastres naturais em áreas de
risco, será necessário um grande investimento em habitações seguras, acesso ao
transporte e trabalho. Quando ocorreu aquele famoso desastre no Rio de Janeiro,
na região serrana, em 2011, este foi um dos motivos que levou ao surgimento do
Cemaden.9 O governo afirmou que investiria na redução dos riscos de desastres.
Contudo, em menos de quatro anos, 35% das pessoas que perderam suas casas
voltaram para as mesmas áreas de risco e reconstruíram novas casas. Os projetos
para a construção de habitações seguras, longe da beira dos rios e encostas, como
em Petrópolis, Teresópolis e Nova Friburgo, atenderam apenas poucos milhares
de pessoas. As pessoas que voltaram para as regiões de risco em Petrópolis dizem
que as moradias construídas para elas foram feitas a mais de 40 km de Petrópolis,
dificultando o acesso ao trabalho. Os lugares perto das áreas de risco, onde essas
pessoas residem, muitas vezes não permitem a construção de novas moradias
seguras. Embora o Cemaden tenha diminuído o número de mortes, as pessoas
que conseguiram se salvar perderam suas residências. Reafirmo que não existem
soluções triviais. São enormes os desafios para encontrar as soluções adequadas
no que concerne à moradia e ao transporte. Contudo, o Brasil precisa atacar esses
desafios, pois a intensificação dos extremos climáticos tem colocado em risco a
vida de muitas pessoas.
REFERÊNCIAS
BRASIL. Ministério do Meio Ambiente. Plano Nacional de Adaptação à Mudan-
ça do Clima: volume I – estratégia geral – Portaria MMA no 150, de 10 de maio
de 2016. Brasília: MMA, 2016. Disponível em: https://www.gov.br/mma/pt-br/
assuntos/ecossistemas-1/biomas/arquivos-biomas/plano-nacional-de-adaptacao-a-
-mudanca-do-clima-pna-vol-i.pdf.
SALDIVA, P. Vida urbana e saúde: os desafios dos habitantes das metrópoles.
São Paulo: Contexto, 2018.
1 INTRODUÇÃO
Atualmente, o Brasil ocupa as primeiras posições no que tange às desigualdades
socioeconômicas no mundo. O contexto das mudanças climáticas evidencia as
questões em torno da justiça social e dos riscos ambientais, à medida que os es-
tratos sociais mais vulneráveis mostram-se mais expostos aos efeitos dos extremos
climáticos. Assim, a mudança climática global traz à tona a emergência do debate
acerca das populações e dos espaços socialmente vulnerabilizados nos centros urbanos.
Tendo isso em conta, este capítulo aborda os processos e as dinâmicas que
contribuem para a apropriação desigual dos espaços urbanos no Brasil como ca-
racterística indissociável do processo conjugado de industrialização-urbanização.
Isso se mostra como um aspecto importante para compreender as relações entre a
ocupação das metrópoles e a sua dinâmica de classes, marcada por contundentes
desigualdades sociais que impactam sobremaneira a vida das populações metro-
politanas, configurando uma dimensão crucial para análise das heterogeneidades
no território.
Esse cenário de heterogeneidades se torna mais agudo diante da baixa
resiliência dos espaços urbanos em relação aos riscos associados às mudanças
climáticas, talvez o maior desafio global pautado em nosso tempo. Sua comple-
xidade decorre, entre outros fatores, das distintas redes e das camadas sobrepostas
e emaranhadas de relações políticas, sociais, culturais e econômicas, pondo em
confronto visões e interesses distintos. Isso se desenvolve em múltiplas escalas,
seja em âmbito continental, seja em âmbito nacional, com participação e efeitos
distintos em diferentes pontos do globo, seja no espaço intraurbano.
Nesse nível, em particular, a ocupação inadequada do solo, associada à limi-
tada infraestrutura urbana, contribui para que a segregação socioespacial relegue
as populações de baixa renda às áreas de mais elevado risco ambiental. Como
exemplo que ilustra bem essa dinâmica, as variações extremas no regime de chuvas
demonstram os efeitos climáticos não homogêneos sobre o espaço metropolitano.
250 | 50 anos de regiões metropolitanas no Brasil e a Política Nacional de Desenvolvimento Urbano
1. Ver UN (1969).
2. Ver Furtado (1973) e Prado Junior (1970).
3. Ver Harvey (2005).
252 | 50 anos de regiões metropolitanas no Brasil e a Política Nacional de Desenvolvimento Urbano
6. Diferentemente do Rio de Janeiro, onde se conformou um subcentro específico para as classes de alta renda, em São
Paulo os subcentros focaram as classes de baixa renda, segundo Villaça. A elite não se desligou do centro da mesma
maneira que ocorreu no Rio.
258 | 50 anos de regiões metropolitanas no Brasil e a Política Nacional de Desenvolvimento Urbano
10. A ênfase deste capítulo está no ODS 10 (redução das desigualdades) e no ODS 11 (promoção de cidades e comu-
nidades sustentáveis), o que visa ao combate às mudanças climáticas.
Meio ambiente e a (re)produção das desigualdades sociais nas metrópoles brasileiras | 261
11. O fluxo de materiais e energia entre a sociedade e o meio ambiente foi cunhado na literatura como metabolismo social.
12. Os GEEs são principalmente caracterizados por vapor d’água, CO2 e metano. Eles são capazes de reter calor na
atmosfera e garantir baixa oscilação térmica, de modo a proporcionar a vida na Terra. Contudo, as atividades humanas
têm modificado a concentração desses gases, principalmente pela conversão do carbono encontrado na natureza em
CO2 (Klug, Marengo e Luedemann, 2016).
262 | 50 anos de regiões metropolitanas no Brasil e a Política Nacional de Desenvolvimento Urbano
3.2 Os impactos desiguais das mudanças climáticas nos espaços urbanos e
metropolitanos
A crescente variabilidade dos extremos climáticos denuncia os riscos de desastres
associados à dimensão socioespacial das cidades. O rápido processo de urbanização
no século XX, em conjunto com a baixa provisão de bens públicos, produziu um
déficit na infraestrutura urbana. Como resultado, observou-se elevado grau de
ocupação das áreas de risco e ampliação das desigualdades socioespaciais, como
indicado em seção anterior deste capítulo. Essa configuração estaria diretamente
relacionada com as condições de acesso e apropriação de valores de uso urbanos,
econômicos, culturais, políticos e lúdicos (Funari, 2017, p. 135). A disputa das
elites pelas áreas mais vantajosas dentro do espaço urbano, como destacamos an-
teriormente, produziu espaços socialmente segregados. A organização das cidades,
nesse contexto de heterogeneidade urbana, destaca as desigualdades sociais dentro
do território e suas relações, também, com os riscos de desastres associados às
mudanças climáticas.
A ausência e/ou as deficiências do planejamento urbano na maior parte
das cidades brasileiras, o intenso fluxo migratório e as práticas no mercado de
trabalho urbano deram origem aos assentamentos informais que compreendem
as comunidades urbanas em áreas vulneráveis, sujeitas às variabilidades de extre-
mos climáticos e riscos de desastres (Klug, Marengo e Luedemann, 2016, p. 12).
A ocupação dessas áreas revela a displicência do Estado na condução de um processo
de urbanização ordenado, justo, resiliente e seguro para todos os moradores das
cidades. Na verdade, como se propôs na seção anterior, a participação histórica do
Estado sobre a questão mais coaduna com os interesses particulares na acumulação
do que com a superação desse modelo desigual e excludente (Villaça, 2001).
Como mencionado, a crise climática não se circunscreve apenas à dimen-
são ecológica; ela afeta diretamente a vida humana, em particular as populações
que vivem em áreas vulneráveis nas cidades. O uso predatório dos recursos na-
turais e a degradação dos ecossistemas pelas atividades humanas têm exposto as
Meio ambiente e a (re)produção das desigualdades sociais nas metrópoles brasileiras | 265
áreas urbanas vulneráveis aos impactos mais severos das mudanças climáticas
(UN-Habitat, 2015). Eventos extremos mais frequentes, como variações no regi-
me de chuvas, impactam a produção de alimentos, reduzem a segurança hídrica
e aumentam o risco de desastres socioambientais. A escassez relativa de alimentos
em decorrência dos regimes desregulados de chuvas afeta os setores da indústria
dependentes da água e o preço dos alimentos, o que afeta ainda mais as populações
mais vulneráveis, uma vez que possuem menor renda. Ao mesmo tempo, os efeitos
dos regimes de chuvas extremos se mostram mais danosos ou até mortais para essas
populações. Áreas alagáveis próximas às margens dos rios ou em vales com ocupa-
ções irregulares, bem como a ausência de infraestrutura adequada de drenagem,
são fatores que contribuem para maiores efeitos sobre essas populações. Ademais,
essas mudanças impõem diversos desafios para a conservação dos ecossistemas
aquáticos, a manutenção da pesca sustentável, que conta com participação ainda
relevante de comunidades tradicionais, a remuneração e o acesso à água potável
(Frangetto, 2022; Nobre15).
Além dos impactos diretos dos eventos climáticos extremos, vale destacar
os efeitos indiretos nas populações urbanas, como a crescente exposição à poeira
atmosférica e a aeroalérgenos, que tendem a aumentar os problemas cardiovas-
culares e respiratórios. Ademais, eventos extremos, como inundações ou secas,
podem pressionar e dificultar o acesso aos serviços de saúde e o abastecimento de
regiões mais remotas, acarretar a perda da agricultura de subsistência, propagar
vetores de contaminação por meio da água e dos alimentos, bem como ocasionar o
surgimento de novas doenças. Esse cenário exacerba as condições de vida precárias
das pessoas em vulnerabilidade social.
A vulnerabilidade aos impactos das mudanças climáticas vai além da mera exposição
aos eventos de clima extremo. Nos países em desenvolvimento, muitas cidades “se
encontram em uma ‘perfeita tempestade’ de crescimento populacional, o que aumenta
as necessidades de adaptação e o substancial déficit de desenvolvimento criado pela
escassez de recursos financeiros e humanos; levando, por sua vez, ao crescimento da
informalidade, a uma governança insuficiente, à degradação ambiental, perda de bio-
diversidade, pobreza e aumento da desigualdade” (IPCC, 201416 apud UN-Habitat,
2015, p. 3).
O impacto desigual da crise climática nas diversas áreas do planeta é geralmente
sentido mais fortemente pelas populações de espaços urbanos mais vulneráveis.
Estes são caracterizados por baixa capacidade de resiliência, maior exposição aos
riscos de desastres e acesso precário aos serviços básicos.17 De acordo com Klug
(2018), as cidades com maiores graus de vulnerabilidade aos riscos ambientais
estão situadas nos países em desenvolvimento. No caso brasileiro, a pouca infraes-
trutura e a má gestão da organização socioespacial das cidades abrem espaço para
que pessoas em situação de vulnerabilidade social ocupem encostas de morros e
construam moradias irregulares em áreas de preservação ambiental, sem qualquer
acesso a apoio técnico nesse processo, inclusive. Variações no regime de chuvas têm
provocado inundações, enxurradas, alagamentos, secas, tempestades e epidemias,
causando grandes prejuízos. Assim, “as precariedades urbanas e a vulnerabilidade
social ampliam os riscos e os impactos das mudanças do clima e uma inflexão
nessa trajetória [torna-se] imperativa” (Klug, Marengo e Luedemann, 2016, p. 3).
De acordo com o cientista Carlos Nobre,18 a maior parte das pessoas afetadas
pelos desastres associados com os extremos climáticos no Brasil concentra-se nos
espaços urbanos, como a Grande Recife, o litoral norte de São Paulo e Petrópolis,
os quais abrigam mais de 10 milhões de pessoas que vivem em área de risco de
deslizamentos, inundações e enxurradas. Desse total, mais de 2 milhões estão em
áreas de altíssimo risco. Esse cenário demonstra, mais uma vez, a insuficiência das
políticas urbanas para a gestão dos riscos de desastres e a promoção da resiliência.
No caso do Brasil, há pouquíssimas políticas efetivas de adaptação para
lidar com os efeitos das mudanças climáticas. Klug (2018) também afirma que,
do ponto de vista social e ambiental, a preocupação com a resiliência dos espaços
urbanos socialmente vulneráveis torna-se fundamental para a redução dos riscos de
desastres. O mau planejamento e a gestão das cidades colocam milhares de pessoas
sob a insegurança hídrica (falta de água potável por vários dias), além de maior
exposição aos eventos climáticos extremos. Problemas relacionados ao saneamento
básico, ao manejo correto de resíduos sólidos, à drenagem das águas pluviais e à
construção de habitações adequadas trazem à tona a necessidade de endereçar essas
questões à agenda pública e avançar nas diretrizes estabelecidas pela NAU (Klug,
Marengo e Luedemann, 2016).
17. De acordo com Klug, Marengo e Luedemann (2016), resiliência pode ser compreendida como a capacidade de os
sistemas econômicos, sociais e ambientais manterem seus funcionamentos e sua estrutura após serem afetados por
eventos perigosos.
18. Ver capítulo 13.
Meio ambiente e a (re)produção das desigualdades sociais nas metrópoles brasileiras | 267
diante dos possíveis cenários de desastres naturais – frutos das mudanças climáticas
agravadas pelo processo de urbanização. Importante salientar que os riscos sociais
e ambientais não estão apenas no espaço intraurbano. A análise entre cidades se
faz relevante na medida em que muitas metrópoles brasileiras encontram-se na
faixa litorânea e, consequentemente, estão mais expostas aos extremos climáticos
em relação à subida do nível do mar. Nessa direção, as cidades carregam um papel
estratégico no debate de adaptação e mitigação das mudanças climáticas: potencial
de redução das emissões de GEEs e necessidade de gerir os riscos de desastres nas
áreas vulneráveis.
Como mencionado, ao mesmo tempo que o processo de urbanização cria
oportunidades, também aumenta os riscos associados às mudanças climáticas.
A falta de planejamento urbano adequado e de governança acarreta custos sociais,
econômicos e ambientais (UN-Habitat, 2017). Em particular, a pouca atuação
dos governos, principalmente na escala local, corresponde a um claro gargalo
para a adoção de medidas de mitigação e adaptação às mudanças climáticas.
A pouca infraestrutura em áreas de risco nas cidades, onde se estabelecem os
assentos informais, eleva o grau de vulnerabilidade social naquela área e denuncia
a necessidade de intervenção de atores sociais e políticos para contornar os efeitos
negativos da apropriação desigual do espaço urbano.
De acordo com o relatório da UN-Habitat (2017), a atuação conjunta das
diversas esferas de governo seria mais eficaz para combater os riscos de desastres,
tendo em vista que se compartilhariam mecanismos para integrar ações verticais
e horizontais. Além disso, o maior engajamento dos setores privado, público,
acadêmico e da sociedade civil tornaria a tomada de decisão e sua implementação
mais efetivas. Nesse sentido, as cidades se alçariam como espaços propícios para o
desenvolvimento de políticas urbanas mais sustentáveis. O relatório ainda identifica
cinco fatores cruciais para o gerenciamento de desastres associados às mudanças
climáticas nas cidades: i) planejamento urbano; ii) governança; iii) economia urbana;
iv) participação e inclusão; e v) tecnologia da informação e comunicação (TIC).
O planejamento urbano se refere à construção de cidades mais integradas,
inclusivas e conectadas para a promoção da eficiência dos serviços e do uso dos
recursos. Nessa perspectiva, o planejamento urbano promoveria transformações
no uso da energia, na baixa emissão de carbono e na redução dos riscos inerentes
aos espaços socialmente vulneráveis. O segundo aspecto, no que diz respeito à
governança, destaca a relevância de institucionalizar marcos regulatórios e legis-
lativos. Estes formariam uma dimensão integradora entre as mudanças climáticas
e a gestão dos riscos de desastres para todas as esferas de governo. A governança
assegura transparência, accountability e participação de diferentes grupos de interesse
para a tomada de decisão e a implementação de medidas que reduzem os riscos de
268 | 50 anos de regiões metropolitanas no Brasil e a Política Nacional de Desenvolvimento Urbano
REFERÊNCIAS
BASSANEZI, M. S. C. B. (Org.). São Paulo do passado: dados demográficos
1920. Campinas: Ed. Unicamp, 1999. v. 6. Disponível em: https://www.nepo.
unicamp.br/publicacoes/censos/1920.pdf.
BRAND, U.; WISSEN, M. The imperial mode of living: everyday life and the
ecological crisis of capitalism. Londres: Verso, 2021.
Meio ambiente e a (re)produção das desigualdades sociais nas metrópoles brasileiras | 269
BIBLIOGRAFIA COMPLEMENTAR
IPCC – THE INTERGOVERNMENTAL PANEL ON CLIMATE CHANGE.
Summary for policymakers. In: IPCC – THE INTERGOVERNMENTAL PANEL
ON CLIMATE CHANGE. Global warming of 1.5 °C. Cambridge, Londres; Nova
York: Cambridge University Press, 2018. p. 3-24. Disponível em: https://www.
ipcc.ch/site/assets/uploads/sites/2/2022/06/SPM_version_report_LR.pdf.
UN – UNITED NATIONS. Objetivo de desenvolvimento sustentável 11: cidades
e comunidades sustentáveis. Nação Unidas Brasil, [s.d.]. Disponível em: https://
brasil.un.org/pt-br/sdgs/11.
FURTADO, C. Formação econômica do Brasil. 18. ed. São Paulo: Companhia
Editora Nacional, 1982.
CAPÍTULO 15
Entrevistadores2
Raphael Brito Faustino
Marco Aurélio Costa
todos. Não estou falando de smartphone para pobre na favela. Não é disso que eu
estou falando. É necessário haver uma estrutura no município, e isso é complexo.
A infraestrutura não é discutida. Não se vê a discussão do acesso à tecnologia.
Uma prefeitura compra um sistema de sinal de trânsito, aí o conecta com os sinais
e pronto. Isso não é transformação digital. A transformação digital é igual a uma
estrada: se não houver infraestrutura, uma coisa não vai de um lado para o outro.
Isso vi sumir um pouco, como pensar a infraestrutura de cabeamento.
No governo FHC, havia a distribuição de antenas por satélite para chegar
a áreas bem remotas do Brasil. Depois, no primeiro governo Lula, havia toda a
infraestrutura de telecomunicações; cediam-se as concessões etc. se colocassem
orelhão nos lugares mais distantes e sem acesso. Havia, por parte das empresas de
telecomunicações, a obrigação de fazer algumas coisas. Então iam lá no cabrobó do
Judas [sic] para pôr um orelhão; a infraestrutura deveria ser levada.
A internet, para interligar todo mundo, tem a mesma lógica. É possível
acessá-la via satélite etc., mas é necessário ter esse acesso. Nenhum município
faz uma transformação digital se não tiver acesso. Na nota técnica,3 insisti na
inclusão digital por causa disso. As pesquisas do Centro Regional de Estudos
para o Desenvolvimento da Sociedade da Informação (Cetic) mostram quantas
prefeituras estão cabeadas, quantas têm site, têm plataforma etc., mas não adianta
nada se o município não tiver acesso. Então há essa parte da infraestrutura como
primeiro ponto.
Uma outra parte é saber lidar com isso. Os municípios compram o acesso à
tecnologia, mas eles não sabem lidar com isso. Eles fazem contratos com empresas.
Ora, terminei a nota técnica com a questão da inteligência do município.
Porque, se o município não tiver inteligência para lidar com isso, não adianta con-
tratar uma empresa de cidade inteligente, um grupo de pesquisa da universidade.
É necessário que haja uma inteligência para lidar com isso, e a inteligência de cada
cidade é diferente.
É um outro problema do Brasil. O Brasil vive por tutoriais, cria um e o espalha
da Amazônia a São Paulo. Certa vez em Goiânia, em um encontro de estudos urba-
nos, uma pessoa falou que havia um plano diretor no interior de Goiás que tinha
um capítulo sobre a proteção da Serra do Mar. É um copia-e-cola; o povo faz um
pacote de transformação digital para São Paulo e o leva lá para o interior do Pará.
Então é necessário que se tenha uma inteligência instalada para lidar com
isso, e a transformação digital requer que se saiba o que é digital e o que é virtual.
As pessoas confundem isso, e a gestão pública também confunde isso. O digital
individual do aplicativo. Tem que ser uma coisa para o município como um
todo, para a cidade como um todo, para o coletivo. São várias etapas para termos
efetivamente uma transformação digital. Qual é a mais fácil? Creio que no Brasil
é a questão dos dados, porque essa forma de governança está muito longe, mas
trabalhar com os dados ainda é uma coisa extremamente possível atualmente.
Ipea: Essas transformações tecnológicas, que temos acompanhado nos últimos
anos, são interessantes porque, ao analisar um município, imagina-se que o básico
seria ter as informações do município digitalizadas e disponibilizadas para consulta
das pessoas, das empresas que querem fazer algum empreendimento etc. Porém,
é uma dificuldade enorme ter essas plantas cadastrais digitalizadas; pouquíssimas
prefeituras têm isso; e menos ainda são disponibilizadas para o grande público.
Ao mesmo tempo, existe esse movimento de venda das cidades inteligentes, um
grande mercado das cidades inteligentes. Por um lado, o que vemos são municípios
em que não há nada digitalizado, informações não disponibilizadas, inclusive para
os próprios empreendedores. Por outro lado, há projetos de cidades inteligentes
nesses mesmos municípios. Projetos que são na verdade grandes loteamentos
econômicos. Como é que avançaremos, pensando especialmente nas regiões
metropolitanas? Como ter um olhar metropolitano se não temos a integração
dessas informações?
Regina Helena Alves da Silva: Há uma expressão que repito sempre: o Brasil
faz política pública por edital. Não há efetivamente política. Acompanho alguns
grupos de cidades inteligentes, e eles são basicamente grupos de editais e de
empresas de soluções pontuais. Não há uma política, no Brasil, efetiva de trans-
formação digital, e não de cidades inteligentes. Afinal, toda cidade é inteligente;
caso contrário, ela teria morrido. A inteligência não significa sucesso, significa
sobreviver. Contudo, nesses grupos, só vemos editais e outras coisas pontuais.
É isso o que estamos discutindo aqui. É necessária uma política pública
efetiva. Reconheço que há alguns investimentos, mas é preciso tirar o dinheiro do
edital e colocá-lo aí. Na verdade, destruímos aos poucos o Estado. Nós retiramos
essa capacidade técnica do Estado.
Temos um Ipea, existe um Ipea no Brasil. Olha o tamanho do Brasil. Existe
uma Fundação João Pinheiro,4 uma escola de governo, uma escola de administra-
ção. Quem sabe disso? Para onde vão essas pessoas? Qual é o investimento nisso?
4. Instituição de pesquisa e ensino do governo do estado de Minas Gerais cuja missão é “contribuir estrategicamente
para efetividade de políticas públicas relevantes para a sociedade, interligando competências técnico-científicas e gestão
governamental”. Disponível em: https://fjp.mg.gov.br/.
Transformação digital e a incorporação de novas tecnologias de informação | 279
urbana. Ela pode até entender que o povo que mora em Vespasiano trabalha em
Belo Horizonte, mas o pacote é para integração em rede. Ela pode integrar
em rede Vespasiano, porém Vespasiano não tem nada na prefeitura. É uma falta
de compreensão de como funcionam as relações municipais no Brasil, entre quem
propõe essas coisas tecnológicas.
Como nós temos uma universidade do século XIX, não temos o conhecimento
integrado. Nós não temos no Brasil uma universidade que integre os profissionais
da computação com o pessoal do planejamento urbano, com o pessoal das ciências
sociais. Eles vão aprender isso na marra. Contratam-se técnicos que entendem
apenas do campo restrito deles.
Ipea: Considerando essa discussão importante sobre a necessidade de inte-
gração entre os diferentes campos, uma outra questão que permeia as conversas
sobre a cidade inteligente, sobre a transformação digital no urbano, tem relação
com o papel das grandes empresas de tecnologia. Você entende que essa conexão
está sendo feita a partir do viés das grandes empresas de tecnologia?
Em caso afirmativo, quais as consequências disso? Considerando as capaci-
dades estatais em conduzir esse processo, haveria alternativas sem a participação
dessas grandes empresas?
Além dessa dimensão global, a partir das big techs, como você mesmo des-
creveu, temos empresas locais que também se impõem sobre a governança do
município. São essas pequenas soluções locais que acabam conduzindo, ao menos
em parte, essas discussões. Existe, então, uma questão global, das grandes empresas
de tecnologias, que se impõe sobre a questão do Estado. Existe, também, um bloco
local de empresas nacionais que vão oferecer pequenos serviços e tentar oferecer
pequenas soluções para os municípios. Como conduzir esse processo e promover
o interesse comum?
Regina Helena Alves da Silva: Para quem trabalha com transformação digital
urbana, essa discussão não aparece. Tem a ver com o que falei, temos uma formação
muito compartimentada. Já presenciei discussões nas quais as pessoas nem fazem
esse raciocínio, nem passa por aí. Por exemplo, chega com seu pacote a uma cidade
e lá descobre que tem um provedor de internet do irmão do prefeito. E aí vira
aquela meleca. Então essa grande não aparece.
E estamos em um momento de grande transformação das bases daquilo que
vivemos nos últimos séculos, poucos séculos. O papel do estado hoje e do Estado
nacional está balançando. Poderia responder assim: o Estado tem que assumir isso,
assim como assumiu o subsolo. Se ele não assumir, não tem jeito. Porém, não é a res-
posta para os tempos atuais.
Transformação digital e a incorporação de novas tecnologias de informação | 281
Inglaterra fez isso com a Olimpíada, e a França fará agora (Paris 2024). Nós não
tivemos transferência de tecnologia de engenharia.
Há uma desinteligência nacional também. Falta formação para transformação
digital dentro dos governos. No [governo] federal também. O Estado nacional
não vai sobreviver porque ele é uma imposição. Ele é imposição violenta e cruel
sobre povos. Historicamente esses povos não são assim. Tem mais tempo de os
povos não serem assim do que de os povos serem assim. Ele [Estado nacional] vai
funcionar de outra maneira.
Como se colocar com uma inteligência local dentro desse mundo das big
techs? Qual é a interação possível? O que vamos dar em troca disso? Se for entre-
gar dinheiro, está-se no capitalismo. Se for entregar toda a infraestrutura, está-se
também no capitalismo.
Em uma fala recente, o presidente Lula destacava: “nós vamos fazer coisas, nós
vamos produzir produtos, nós não vamos ficar só nas commodities”. O presidente
Lula finalmente entendeu isso, mas é só o discurso por enquanto, porque ele foi
à China para nos colocar quase 100% dependentes de commodities, porque é a
nossa tradição. É isso o que fazemos, mas há algo no governo, e não no Estado,
que é um outro problema no Brasil, que compreende que temos que ter alguma
outra coisa para vender.
A nossa produção de dados hoje dialoga com o transnacional, porém tem
que dialogar de outra maneira. A nossa inteligência de dados tem que dialogar de
outra maneira. Foi o que o Google comprou aqui, uma inteligência de busca local.
Enfim, para uma relação com o transnacional, é fundamental entendermos o que
temos no local se vierem aqui ocupar um espaço (como foi na Copa e na Olim-
píada). Então, tem que ter transferência de tecnologia. Se quiserem nossos dados,
então o que queremos? Se quiserem se instalar em nosso espaço físico ou virtual,
o que queremos? Finalmente, o que pode agregar valor aos interesses que aqui
veem? Também temos, e tem custo.
Ipea: A utilização de inovações tecnológicas como parte da formulação de
políticas para áreas metropolitanas, em grande medida, incorpora a utilização
de dados coletados em diversos locais e variadas formas. Assumindo o pressuposto de
que dados não são neutros e que são gerados a partir de tecnologias de fácil uso e
ampla disseminação, escoradas em algoritmos de grande complexidade, acabam por
dificultar sua avaliação crítica. Tal fato pode impedir interpretações divergentes sobre
os dados e limitar a autonomia do planejamento. Como o campo da comunicação
pode oferecer suporte crítico para os temas vinculados ao planejamento urbano e
metropolitano? Como conduzir esse processo de forma democrática e promover
o interesse comum, ao mesmo tempo que se incorpora o avanço tecnológico na
formulação de políticas públicas?
Transformação digital e a incorporação de novas tecnologias de informação | 285
Regina Helena Alves da Silva: Existem duas abordagens possíveis. Para o campo
do planejamento, das nossas áreas etc. Como nós coletamos o dado? Temos me-
todologias qualitativas e quantitativas muito consolidadas, mas para coletar dados
que passam a ser fixos. Não entendemos e ainda não propusemos coletas de dados
dinâmicas. Falo por nós como pesquisadores.
É um pouco do que venho tentando fazer, mas não sou da área tecnológica.
Então, atuo mais na área de metodologia qualitativa de como trabalhar com
dados dinâmicos.
Há uma coisa que, tecnicamente, no Brasil, as pessoas não realizam: tem-se
que trabalhar nos dados desde a coleta e na forma como se produz o dado. Tem
muita inteligência nesse aspecto.
O Ipea, por exemplo, trabalha com dados coletados por outros lugares.
A forma como se buscam, agregam dinamicamente etc. esses dados é algo que
não temos trabalhado no Brasil, porque há uma mudança grande.
Sobre as coletas de dados dos algoritmos, lembro que trabalhamos em um
algoritmo em conjunto com um ex-presidente da Fundação de Amparo à Pesquisa
do Estado de Minas Gerais (Fapemig), com uma inteligência capaz de pensar as
formas de coletar dados e formas de fazer pesquisa na universidade e com empresas.
Ele não tinha inteligência de como fazer pesquisa da universidade com o Estado,
mas com empresa, sim.
Trabalhei em um projeto para a Fiat. Nesse projeto, entendi melhor os algorit-
mos e o que podem fazer. Nesse mesmo projeto, desenvolvi metodologia para uma
colega buscar os dados e analisá-los. Antes, ela me ensinou o que esses algoritmos
podem fazer. Ela me explicou: “Olha só, você tem as pessoas no Facebook, no
Twitter, em redes sociais. Elas assinaram o Facebook da Fiat… Existiam 150 mil
pessoas que interagiam no Facebook da Fiat”. E o que ela fazia? Ela desenvolveu
um algoritmo que seguia essas pessoas. Por exemplo, alguém está na página da
Fiat porque comprou um carro Fiat. É um carro e alguém quer discutir o motor;
essa pessoa faz essa discussão dentro da página da Fiat. O usuário sai da página
e passa a ser acompanhado em sua página pessoal no Facebook. Estou citando o
Facebook porque naquela época era a principal ferramenta. O usuário – em sua
página pessoal – fala onde ele comprou uma camisa, ele fala que é atleticano, ele
fala que gosta de uma música etc. O algoritmo busca tudo isso junto, e a Fiat
entrega uma propaganda para o usuário que é atleticano, que gosta da cor vinho.
O algoritmo entrega aquilo que a pessoa gosta, aquilo que ela quer. O algoritmo
entregará o que ela buscou.
É a lógica da publicidade. Esses algoritmos de redes sociais etc. surgem da lógica
da publicidade. A publicidade já fazia isso, fazia um monte de pesquisa. Se alguém
286 | 50 anos de regiões metropolitanas no Brasil e a Política Nacional de Desenvolvimento Urbano
rede. O CPF é um número de identificação pública, não é ele que tornará alguém
um “refém” da farmácia.
As pessoas brigam contra aquilo que apresenta benefícios, mas não brigam
com governos que vendem nossos dados. Quando eu me aposentei, no dia seguinte,
havia oferta de crédito consignado disponível para mim. Por quê? Porque alguém
vendeu meus dados de trabalho.
Essa falta de letramento, de compreensão do mundo digital... Os meus filhos
navegam no virtual maravilhosamente bem. Eles têm uma compreensão intuitiva
do mundo digital. Agora, transformar isso em conhecimento ainda é pouco.
No caso do Brasil, é nada.
Estamos vendo que muitas pessoas estão se recusando a receber o censo. Por
quê? Por causa de dados; não querem dar os dados. São de direita, são bolsonaristas,
não me importa. Antes não existia isso. Como isso foi incorporado pela pessoa a
ponto de ela recusar um censo? É essa pergunta que tem que ser feita. Não é se ela
é isso, se ela é aquilo, mas sim o que afetou essa pessoa. E, sim, foi esse discurso
de que estão roubando os nossos dados que a afetou. Ajudamos nisso também.
Vamos coletar dados que são fundamentais para o país. O censo é fundamental
para um país, e ninguém sabe disso. Antes respondíamos o censo na toada, mas
não houve um letramento de compreensão informando para que servem os dados.
É necessário fazermos algo em termos de educação. Por exemplo, esse novo
ensino médio. Não é para voltar para o que havia antes, pois também era péssimo.
Em nenhum momento da formação, na educação, se discutem essas questões.
Mas está cheio de professor falando: “não entreguem seus dados”. O nosso dia a
dia é de medo dos dados. É achar que é uma invasão da nossa privacidade. Nós
não sabemos nem o que é privacidade. Não entendemos o que é isso. A gestão
pública não entende o que é a privacidade pública de dados.
É necessário e fundamental, no dia a dia, no cotidiano, compreendermos para
que servem os dados e, mais, o que fazemos com eles. É muito longe da realidade
das pessoas. O Ipea, uma universidade, as entidades que trabalham com dados
estão muito longe do dia a dia das pessoas. Elas não entendem isso.
Elas não entendem, por exemplo, que a lista do supermercado é um conjunto
de dados. Há um programa com o qual brincamos. Nele fazemos uma lista de
supermercado para entender essa coisa da dinâmica dos dados. Nós não temos essa
relação do cotidiano, do dia a dia, com os dados. Criamos as preferências, o gosto,
temos vários diferentes, temos os canais que usamos. Nós estamos criando dados
para nós. Nós fazemos uma pesquisa para saber qual série da Netflix queremos,
e ela é integrada com uma série de questões do cotidiano da nossa vida, da nossa
cultura de vida.
288 | 50 anos de regiões metropolitanas no Brasil e a Política Nacional de Desenvolvimento Urbano
Então o Brasil comeu mosca nessa. E aí é o Brasil. Existem muitos países que
não perderam tempo e que não são de ponta, como a Finlândia, anteriormente
citada. Eles compreendem um pouco melhor essa utilização dos dados.
Ipea: Como a Política Nacional de Desenvolvimento Urbano (PNDU) ou
como as propostas de políticas públicas voltadas para a gestão urbana e metropo-
litana podem contribuir para as questões que você levantou? Como sair de uma
política de educação, entrar na política urbana e abordar isso pela política urbana?
Regina Helena Alves da Silva: Penso que não pode ser um capítulo separado.
Estou falando em termos práticos mesmo, em cada um dos elementos que foram
aparecendo e colocando alguma coisa, anexando alguma coisa, e não apenas fazer
um capítulo de transformação digital. Precisamos de elementos para dizer onde
isso – as questões da transformação digital – está.
Como é um plano com propostas, essas propostas não devem ser compar-
timentadas, mas sim decodificadas e simplificadas para chegar a determinados
lugares. Elas devem gerar, talvez, uma campanha. Como todo plano, as propostas
deveriam estar distribuídas nesses lugares todos, muito claramente, faladas de uma
forma que as pessoas de cada lugar compreendam e, de preferência, façam cone-
xões. A ideia é quase construir um diagrama de interação. Nesse sentido, penso
em uma imagem, uma forma de tratamento matricial. Talvez assim seja possível
uma realização, na cabeça das pessoas, de uma compreensão mais interligada. Algo
mais sutil, um letramento mesmo.
CAPÍTULO 16
1 INTRODUÇÃO
A precariedade urbana pode ser considerada um dos maiores fenômenos globais
contemporâneos. Em múltiplas escalas e com significativas diferenças entre regiões,
principalmente quando comparadas cidades do Norte e Sul global, a ausência de
acesso a boas condições de moradia, infraestrutura urbana e sustentabilidade am-
biental nos grandes centros urbanos coloca-se como um dos grandes desafios atuais.
Promover intervenções e alterações nas cidades, entretanto, não se trata de
tarefa trivial. Harvey (2012) considera que construir e reconstruir cidades é um
dos mais negligenciados direitos humanos. Ao mesmo tempo, é vasta a literatura
que avalia a cidade como lócus fundamental na reprodução do capital e do sistema
capitalista. Nas palavras de Burgos (2014):
segundo contribuições de diversos estudiosos sobre a cidade, direito à cidade e espaço
urbano, a cidade deve ser entendida, antes de tudo, como obra. Ou seja, no sentido
de sua construção social, resultante de agentes diversos, interesses múltiplos, tensões,
conflitos e campo sempre aberto para o possível, em contraposição ao pensamento
da cidade enquanto produto, lócus de reprodução privilegiada do capital (Burgos,
2014, p. 117).
A fim de melhor compreender as possibilidades de intervenção na cidade
contemporânea, é fundamental realizar uma breve consideração sobre o paradigma
neoliberal, que caracteriza o atual estágio do capitalismo. É na perspectiva neoliberal
que se interpreta a modificação no formato de atuação do Estado, bem como as
possibilidades de gestão e governança urbana, alterando a intervenção estatal para
uma forma de promoção de um ambiente de negócios seguro para os investimentos
privados (Dardot e Laval, 2016).
Nesse cenário disseminam-se, em período recente, as possibilidades de uti-
lização de novas tecnologias como forma de solução dos problemas urbanos, em
especial por meio dos projetos de cidades inteligentes. O processo contemporâneo
de transformação digital, quando compreendido na perspectiva de intervenção
290 | 50 anos de regiões metropolitanas no Brasil e a Política Nacional de Desenvolvimento Urbano
nas cidades, deve partir do entendimento da forma como estes se encaixam nos
preceitos neoliberais.
Não se trata, por suposto, de uma negação a priori das possibilidades advindas
do avanço tecnológico e de suas inúmeras formas de uso.1 Contudo, é necessário
compreender como o avanço tecnológico faz parte dos processos de desenvolvimento
das forças produtivas fundamentais para o sistema capitalista, bem como – ainda
que oferte externalidades positivas para um conjunto da população – a própria
lógica de reprodução do sistema impede que os benefícios desenvolvidos por estes
avanços sejam amplamente universalizados (Lopes, 2013). Segundo o autor,
não é o caso, aqui, de esmiuçarmos as características da grande transformação da
ordem capitalista [...], no que nos interessa mais de perto, conferiu inaudita cen-
tralidade econômica às novas tecnologias de informação e comunicação. E isto não
só por elas (as TICs) constituírem a infraestrutura necessária para que o capital se
libertasse das amarras do modelo anterior, dito fordista (tanto no que se refere à esfera
produtiva, agora tornada mais “flexível”, quanto na conquista da intensa mobilidade
do capital financeiro) mas por constituírem novas territorialidades de acumulação
(Lopes, 2013, p. 43).
A incorporação das transformações tecnológicas na gestão e governança urbanas
tem sido discutida a partir do desenvolvimento das chamadas cidades inteligentes.
A partir de sua relação com as novas tecnologias de informação e comunicação
(TICs), o tema das cidades inteligentes e transformação digital inevitavelmente per-
passa discussões sobre o campo da comunicação. Lytras e Visvizi (2018) destacam os
campos de pesquisa sobre cidades inteligentes e reforçam que a interseção entre
os problemas sociais urbanos e as TICs permanece pouco explorada.
Considerando suas especificidades, o tema das cidades inteligentes acaba por
ser discutido a partir de diversas áreas do conhecimento, em especial na perspectiva
dos estudos urbanos, de setores ligados à comunicação, inovação e tecnologia, ou
mesmo em seus aspectos econômicos. Apresenta-se, assim, um desafio significativo,
uma vez que avaliar criticamente suas possibilidades e seus limites como forma
de enfrentamento dos problemas urbanos esbarra em articulações entre essas di-
ferentes áreas e visões.
Com essa perspectiva, este capítulo visa aprofundar as possibilidades de in-
terpretação do fenômeno urbano, bem como suas possibilidades de intervenção,
representadas aqui pelas propostas de cidades inteligentes, de forma a promover
uma visão multidisciplinar sobre o tema e, assim, discutir as possíveis articulações
1. Tarachucky e Baldessar (2019) apresentam exemplos de aplicativos que buscam estimular a mobilidade urbana por
meio de pequenas viagens a pé. As autoras consideram que existem impactos positivos dessas iniciativas tanto na esfera
social, quanto no planejamento urbano. Morozov e Bria (2019) apresentam diversos casos ao redor do mundo para
exemplificar possibilidades contra-hegemônicas a partir dos avanços tecnológicos, como a utilização de dados abertos,
construções colaborativas, plataformas de governo eletrônico, entre outras.
A metrópole digital | 291
Por fim, na seção 4, sugere-se uma breve conclusão, considerando que cenários
marcados por extrema desigualdade, como o caso brasileiro, devem buscar espaços
para a incorporação das tecnologias de forma a garantir a superação de problemas
urbanos históricos, e não apenas incorporar soluções previamente disseminadas
pelos detentores das inovações tecnológicas e suas propostas de intervenção urbana.
de definições sobre o termo. Morozov e Bria (2019) apontam que parte importante
do imaginário sobre cidades inteligentes advém dos conceitos definidos por grandes
empresas de consultoria e tecnologia, envolvidas no desenvolvimento de infraestrutura
e dispositivos tecnológicos previstos nos projetos a serem implementados.
Hiroki (2019) buscou sistematizar diferentes abordagens para identificar as
divergências sobre o conceito de cidades inteligentes presente em vasta literatura
sobre o tema. Nas referências selecionadas pela autora, predominam construções
que buscam solucionar problemas urbanos, a partir das novas TICs, ao mesmo
tempo que se promove melhoria na qualidade de vida nas cidades, bem como me-
lhores serviços públicos. Discutem-se, ainda, as possibilidades de desenvolvimento
econômico promovidas pelos ganhos de eficiência e produtividade advindos da
tecnologia, articulados, em especial, com uma cidade ambientalmente sustentável.
Dessa forma, Hiroki (2019) apresenta a seguinte definição:
Cidades Inteligentes são um espaço urbano com uma gestão focada em eficiência e
inovação, resultado da colaboração entre iniciativa pública, privada e sociedade civil.
Esta parceria desenvolve projetos que gerenciam a cidade, principalmente através
de plataformas de tecnologia, o que resulta em grande produção e análise de dados
sobre a população. Dessa maneira, promove-se a sustentabilidade na utilização de
recursos e um espaço urbano resiliente, ou seja, preparado às suas adversidades. Aliado
a isso, para evitar que a cidade pereça em um regime de controle e vigilância (...) a
integração das interferências tecnológicas junto ao espaço urbano deve ocorrer de
forma de cima para baixo – top down – e, ao mesmo tempo, de baixo para cima –
bottom up (Hiroki, 2019, p. 34).
Em complemento, Angelidou (2017) apresenta um conjunto de características
que passaram a organizar os critérios de avaliação sobre cidades inteligentes, utili-
zando como referência os estudos de caso encontrados em literatura selecionada.
Dessa forma, a autora definiu o seguinte conjunto de características: i) utilização
de tecnologia, TICs e internet; ii) desenvolvimento de capital humano e social;
iii) promoção de empreendedorismo; iv) colaboração global e rede; v) privacidade
e segurança; vi) estratégias adaptadas localmente; vii) abordagem participativa;
viii) coordenação top-down; ix) estrutura estratégica explícita e viável; e x) planeja-
mento interdisciplinar. Estes critérios, que permitem comparação entre os diversos
exemplos de cidades inteligentes ao redor do mundo, reforçam a perspectiva de
tratar-se de um conceito amplo, capaz de englobar inúmeros tópicos relacionados
ao desenvolvimento e às soluções urbanas.
Ainda que as definições apresentadas anteriormente apoiem-se em ampla
literatura disseminada sobre o tema, bem como sirvam de referência para as dis-
cussões propostas neste estudo, faz-se necessário apontar seus principais problemas,
de forma a destacar as análises críticas propostas inicialmente.
A metrópole digital | 295
2. Esse tema pode ser avaliado a partir do conceito de mobilidade de políticas públicas, consolidado em trabalhos no
campo da ciência política. Peck e Theodore (2010) ressaltam que as políticas circulam, em múltiplas escalas (locais,
nacionais, globais), porém, ao longo deste processo e durante sua fase de implementação, transformam-se e geram
resultados diferentes a depender de especificidades locais.
A metrópole digital | 297
público é gerido, e reforça que tais empresas não estão dispostas apenas a oferecer
complementos aos serviços públicos, mas sim possuir e operar alternativas privadas.
No contexto de expansão das novas TICs, em conjunto com sua utilização
como instrumento de planejamento e gestão urbana, as cidades transformam-se nas
grandes geradoras de dados do período contemporâneo (Duarte e Álvares, 2019).
Diversas tecnologias acabam por se integrar de modo a capturar e utilizar grande
quantidade de dados produzidos pelos centros urbanos e seus residentes. As fron-
teiras de expansão são ainda bastante relevantes quando pensamos em tecnologias
em fase inicial de aplicação como redes 5G, internet das coisas, computação em
nuvem ou inteligência artificial (Mosco, 2019).
Duarte e Álvares (2019) nos mostram como uma infinidade de sensores dis-
postos nos centros urbanos organizam uma multiplicidade de dados, organizando
grandes bancos de dados, com informações pessoais, de grupos sociais e ambiente,
bem como o modo que estas informações se relacionam. Este aspecto associa-se
com os projetos de cidades inteligentes, como afirma Mosco (2019), ao demons-
trar que estas tecnologias acabam por se tornar elementos-chave na regulação de
áreas como transporte, comunicação, educação, energia, entre outras, e considera
fundamental compreender como estes sistemas de comunicação tornam-se per-
feitamente integrados à vida cotidiana.
A incorporação da tecnologia e a geração de dados advindas desse processo na
vida cotidiana colocam-se como relevantes na discussão sobre cidades inteligentes.
Sennett (2018) utiliza a expressão livre de fricção, criada por Bill Gates, para des-
crever como tecnologias de fácil utilização pelos usuários, mas bastante complexas
em seu funcionamento, os impede de avaliá-las criticamente.
Na leitura de Sennett (2018), uma das propostas de cidades inteligentes, baseada
em um modelo prescritivo, de acúmulo de dados e orientada por feedbacks para
promover a gestão urbana e aperfeiçoar serviços, apresenta impactos no planejamento
urbano por promover uma estrutura ‘livre de fricção’ das diferentes formas de gestão
e organização das cidades. Nos modelos de cidades inteligentes avaliados pelo autor,
o trabalho dos técnicos, ou planejadores, é responder ao conjunto pré-estabelecido
de ações em resposta às fórmulas, algoritmos e outros dados que fazem as máquinas
funcionar e responder ao funcionamento das cidades. Neste caso, as respostas são fáceis
para quem está no comando das ações e o planejamento deixa de ser experimental,
tornando-se estático (Santos e Faustino, 2021, p. 3).
Inúmeras formas de análise crítica sobre esses processos foram desenvolvidas
nos últimos anos. A partir de abordagens distintas, a depender da área do conhe-
cimento e das articulações multidisciplinares, os trabalhos desenvolvidos buscam
compreender os impactos da coleta e utilização dos dados aplicados aos programas
de smart cities. Lytras e Visvizi (2018) apresentam pesquisa sobre a visão dos cidadãos
A metrópole digital | 299
3. É possível compreender os sistemas tecnológicos, na construção das cidades inteligentes, como uma nova camada
de infraestrutura sobre as cidades, tal qual outros bens e serviços da infraestrutura urbana, como saneamento básico,
mobilidade urbana, coleta e destinação de resíduos sólidos, entre outros. Não é difícil imaginar que estes sistemas
acrescentarão uma nova forma de desigualdade de acesso aos serviços.
300 | 50 anos de regiões metropolitanas no Brasil e a Política Nacional de Desenvolvimento Urbano
5. Sorj, B. [email protected]: a luta contra a desigualdade na sociedade da informação. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2003.
304 | 50 anos de regiões metropolitanas no Brasil e a Política Nacional de Desenvolvimento Urbano
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306 | 50 anos de regiões metropolitanas no Brasil e a Política Nacional de Desenvolvimento Urbano
Carlos Nobre
Cientista e climatologista aposentado do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais
(Inpe), atualmente pesquisador colaborador do Instituto de Estudos Avançados da
Universidade de São Paulo (IEA/USP). Copresidente do Painel Científico para a
Amazônia, participou da criação do Centro Nacional de Monitoramento e Alertas
de Desastres Naturais (Cemaden) em 2011. E-mail: [email protected].
Cleandro Krause
Doutor em planejamento urbano e regional pelo IPPUR/UFRJ. Técnico de pla-
nejamento e pesquisa na Dirur/Ipea. E-mail: [email protected].
Gerardo Silva
Professor da área de planejamento e gestão do território da Universidade Federal
do ABC (UFABC). Pesquisador bolsista do PNPD na Dirur/Ipea. E-mail: gerardo.
[email protected].
Gustavo Luedemann
Técnico de planejamento e pesquisa na Dirur/Ipea. E-mail: gustavo.luedemann@
ipea.gov.br.
Laurita Hargreaves-Westenberger
Doutoranda em economia e ciências sociais pelo Instituto Alemão de Estudos
Globais e de Área (Giga), filiada à Universidade de Hamburgo. Pesquisadora
bolsista do PNPD na Dirur/Ipea. E-mail: [email protected].
Notas biográficas | 309
Rodrigo Portugal
Economista da Superintendência de Desenvolvimento da Amazônia (Sudam).
Doutor em planejamento urbano e regional pelo IPPUR/UFRJ e pesquisador
bolsista do PNPD na Dirur/Ipea. E-mail: [email protected].
310 | 50 anos de regiões metropolitanas no Brasil e a Política Nacional de Desenvolvimento Urbano
Sérgio de Azevedo
Professor titular aposentado do Programa de Pós-Graduação de Sociologia Política
da UENF. Foi pesquisador integrante do Comitê Gestor e coordenador nacional
do INCT Observatório das Metrópoles. E-mail: azevedo.sergio@observatoriodas-
metropoles.net.
Ipea – Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada
EDITORIAL
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Missão do Ipea
Aprimorar as políticas públicas essenciais ao desenvolvimento brasileiro
por meio da produção e disseminação de conhecimentos e da assessoria
ao Estado nas suas decisões estratégicas.
O sexto livro da série Governança Metropolitana no Brasil reúne contribuições que bus-
cam refletir a efeméride dos 50 anos da criação das primeiras regiões metropolitanas no
país no contexto de construção da Política Nacional de Desenvolvimento Urbano, resulta-
do de um Termo de Execução Descentralizada cujo aditivo foi celebrado com o Ministério
das Cidades. Dividida em três eixos temáticos, a publicação traz entrevistas e artigos que
contribuem para entender a questão urbana do país em perspectiva histórica, mas atenta
para os desafios contemporâneos. A primeira parte do livro aborda a trajetória da agenda
metropolitana no país em suas relações com a reforma urbana, com destaque para a
necessidade de um olhar voltado à diversidade socioespacial do país. A segunda parte
trata dos desafios associados ao financiamento metropolitano e à questão da governan-
ça interfederativa, com visões que permitem refletir sobre os caminhos para superar os
conflitos horizontais e verticais do federalismo tripartite brasileiro. Por fim, a terceira parte
do livro aborda temas transversais ao desenvolvimento urbano/metropolitano, a saber, as
mudanças climáticas e a transformação digital, os quais se colocam como indispensáveis
para qualquer reflexão sobre os rumos do planejamento e da governança metropolitana
no país. Em um contexto marcado por desafios que demandam de forma veemente a
construção de políticas urbanas efetivas, espera-se que a publicação dos aportes aqui
reunidos seja, de fato, um subsídio para que se desenhem e se implementem políticas
públicas que contribuam para cidades brasileiras mais justas, solidárias e sustentáveis.