50 Anos de Regioes BOOK

Fazer download em pdf ou txt
Fazer download em pdf ou txt
Você está na página 1de 315

Série Rede Ipea – Projeto Governança Metropolitana no Brasil

Volume 6

50 Anos de Regiões
Metropolitanas no Brasil e a
Política Nacional de
Desenvolvimento Urbano
no cenário de adaptação das
cidades às mudanças climáticas e
à transição digital

Organizador
Marco Aurélio Costa
Governo Federal

Ministério do Planejamento e Orçamento


Ministra Simone Nassar Tebet

Fundação pública vinculada ao Ministério do Planejamento


e Orçamento, o Ipea fornece suporte técnico e institucional
às ações governamentais – possibilitando a formulação de
inúmeras políticas públicas e programas de desenvolvimento
brasileiros – e disponibiliza, para a sociedade, pesquisas e
estudos realizados por seus técnicos.

Presidenta
Luciana Mendes Santos Servo
Diretor de Desenvolvimento Institucional
Fernando Gaiger Silveira
Diretora de Estudos e Políticas do Estado,
das Instituições e da Democracia
Luseni Maria Cordeiro de Aquino
Diretor de Estudos e Políticas Macroeconômicas
Cláudio Roberto Amitrano
Diretor de Estudos e Políticas Regionais,
Urbanas e Ambientais
Aristides Monteiro Neto
Diretora de Estudos e Políticas Setoriais, de Inovação,
Regulação e Infraestrutura
Fernanda De Negri
Diretor de Estudos e Políticas Sociais
Carlos Henrique Leite Corseuil
Diretor de Estudos Internacionais
Fábio Véras Soares
Chefe de Gabinete
Alexandre dos Santos Cunha
Coordenador-Geral de Imprensa
e Comunicação Social (substituto)
João Claudio Garcia Rodrigues Lima

Ouvidoria: http://www.ipea.gov.br/ouvidoria
URL: http://www.ipea.gov.br
Brasília, 2024
© Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada – ipea 2024

50 Anos de Regiões Metropolitanas no Brasil e a Política Nacional


de Desenvolvimento Urbano : no cenário de adaptação
das cidades às mudanças climáticas e à transição digital /
organizador: Marco Aurélio Costa. – Brasília: Ipea, 2024.
310 p. : mapas, gráfs., tabs. – (Série Rede Ipea. Projeto
Governança Metropolitana no Brasil; v.6)

Inclui Bibliografia.
ISBN: 978-65-5635-068-4

1. Regiões Metropolitnas. 2. Gestão Urbana. 3. Planejamento


Urbano. 4. Desenvolvimento Urbano. 5. Brasil. I. Costa, Marco
Aurélio. II. Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada.

CDD 307.7640981

Ficha catalográfica elaborada por Andréa de Mello Sampaio CRB-1/1650


DOI: https://dx.doi.org/10.38116/978-65-5635-068-4

Como citar:

COSTA, Marco Aurélio (org.). 50 Anos de Regiões Metropolitanas no Brasil e a Política Nacional
de Desenvolvimento Urbano: no cenário de adaptação das cidades às mudanças climáticas e à transição
digital. Brasília: Ipea, 2024. (Série Rede Ipea. Projeto Governança Metropolitana no Brasil; v.6). ISBN: 978-65-
5635-068-4. DOI: http://dx.doi.org/10.38116/978-65-5635-068-4.

As publicações do Ipea estão disponíveis para download gratuito nos formatos PDF (todas)
e ePUB (livros e periódicos). Acesse: https://www.ipea.gov.br/portal/publicacoes

As opiniões emitidas nesta publicação são de exclusiva e inteira responsabilidade dos autores,
não exprimindo, necessariamente, o ponto de vista do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada
ou do Ministério do Planejamento e Orçamento.

É permitida a reprodução deste texto e dos dados nele contidos, desde que citada a fonte.
Reproduções para fins comerciais são proibidas.
SUMÁRIO

CAPÍTULO 1
PENSAR A METRÓPOLE: TRAJETÓRIAS, TRANSIÇÕES
E CONTROVÉRSIAS.......................................................................................9
Marco Aurélio Costa

PARTE I: A CONSTRUÇÃO HISTÓRICA DA AGENDA


METROPOLITANA E A REFORMA URBANA

CAPÍTULO 2
A ESTRUTURAÇÃO DA POLÍTICA NACIONAL DE DESENVOLVIMENTO
URBANO E AS REGIÕES METROPOLITANAS: ENTREVISTA COM JORGE
GUILHERME FRANCISCONI.........................................................................25
Jorge Guilherme Francisconi
Cleandro Krause
Bárbara Oliveira Marguti

CAPÍTULO 3
PASSADO E FUTURO DAS REGIÕES METROPOLITANAS BRASILEIRAS:
A GÊNESE DA QUESTÃO METROPOLITANA, AS REDEFINIÇÕES NO
PERÍODO DEMOCRÁTICO E OS DESAFIOS ATUAIS PARA O
PLANEJAMENTO URBANO-METROPOLITANO..............................................45
Bárbara Oliveira Marguti
Cleandro Krause

CAPÍTULO 4
A QUESTÃO METROPOLITANA BRASILEIRA: ENTREVISTA
COM LUIZ CESAR DE QUEIROZ RIBEIRO......................................................75
Luiz Cesar de Queiroz Ribeiro
Marco Aurélio Costa
Luis Gustavo Martins
Carlos Henrique Carvalho Ferreira Junior
CAPÍTULO 5
AS METRÓPOLES BRASILEIRAS: A INCONTORNÁVEL
REFORMA URBANA....................................................................................97
Luiz Cesar de Queiroz Ribeiro
Sérgio de Azevedo
Juciano Martins Rodrigues

PARTE II: GOVERNANÇA INTERFEDERATIVA


E FINANCIAMENTO METROPOLITANO

CAPÍTULO 6
METRÓPOLES E GOVERNANÇA METROPOLITANA:
ENTREVISTA COM JEROEN KLINK..............................................................129
Jeroen Johannes Klink
Gerardo Silva
Marco Aurélio Costa
Carlos Henrique Carvalho Ferreira Junior

CAPÍTULO 7
O PAPEL DOS ESTADOS NO IMPASSE DA QUESTÃO
METROPOLITANA NO BRASIL....................................................................139
Gerardo Silva

CAPÍTULO 8
PASSADO E FUTURO DA GOVERNANÇA DAS REGIÕES
METROPOLITANAS: ENTREVISTA COM MILA DA COSTA............................153
Mila Batista Correa Leite da Costa
Bárbara Oliveira Marguti
Cleandro Krause
Marco Aurélio Costa

CAPÍTULO 9
A EMERGÊNCIA DA QUESTÃO METROPOLITANA: INTRODUÇÃO
DA METRÓPOLE NO PLANEJAMENTO URBANO BRASILEIRO......................171
Carlos Henrique Carvalho Ferreira Junior
Armando Palermo Funari
CAPÍTULO 10
DESAFIOS DE GOVERNANÇA E GESTÃO DA METRÓPOLE AMAZÔNICA:
ENTREVISTA COM EDMILSON BRITO RODRIGUES......................................197
Edmilson Brito Rodrigues
Marco Aurélio Costa
Carlos Henrique Carvalho Ferreira Junior

CAPÍTULO 11
ENTRE O URBANO E O REGIONAL: AS METRÓPOLES E OS
FUNDOS CONSTITUCIONAIS DE FINANCIAMENTO ...................................209
Rodrigo Portugal

CAPÍTULO 12
QUESTÕES ABERTAS DO FEDERALISMO BRASILEIRO:
ENTREVISTA COM FERNANDO REZENDE...................................................223
Fernando Antônio Rezende da Silva
Luis Gustavo Martins
Marco Aurélio Costa
Armando Palermo Funari

PARTE III: AGENDAS TRANSVERSAIS: MUDANÇAS


CLIMÁTICAS E TRANSFORMAÇÃO DIGITAL

CAPÍTULO 13
AS METRÓPOLES BRASILEIRAS NO CONTEXTO DAS MUDANÇAS
CLIMÁTICAS: ENTREVISTA COM CARLOS NOBRE.......................................237
Carlos Nobre
Marco Aurélio Costa
Laurita Hargreaves-Westenberger
Gustavo Luedemann
Armando Palermo Funari

CAPÍTULO 14
MEIO AMBIENTE E A (RE)PRODUÇÃO DAS DESIGUALDADES
SOCIAIS NAS METRÓPOLES BRASILEIRAS .................................................249
Laurita Hargreaves-Westenberger
Armando Palermo Funari
CAPÍTULO 15
TRANSFORMAÇÃO DIGITAL E A INCORPORAÇÃO DE NOVAS
TECNOLOGIAS DE INFORMAÇÃO NA GESTÃO METROPOLITANA:
ENTREVISTA COM REGINA HELENA ALVES DA SILVA................................273
Regina Helena Alves da Silva
Raphael Brito Faustino
Marco Aurélio Costa

CAPÍTULO 16
A METRÓPOLE DIGITAL: PARA A CRÍTICA DA ECONOMIA
POLÍTICA DAS TECNOLOGIAS DE INFORMAÇÃO E COMUNICAÇÃO ..........289
Raphael Brito Faustino

NOTAS BIOGRÁFICAS ...........................................................................307


CAPÍTULO 1

PENSAR A METRÓPOLE: TRAJETÓRIAS, TRANSIÇÕES


E CONTROVÉRSIAS
Marco Aurélio Costa

1 A EFEMÉRIDE COMO PRETEXTO PARA A REFLEXÃO


As efemérides não são mais do que marcas temporais que usamos como uma es-
pécie de recurso mnemônico para lembrar a passagem do tempo e refletir sobre os
possíveis significados dessas marcas. A trajetória das regiões metropolitanas (RMs)
no Brasil completa cinquenta anos de institucionalização neste 2023. A efeméride,
longe de qualquer ensaio de celebração, abre a possibilidade da reflexão em torno
do tema do planejamento, da gestão e da governança metropolitana no país no
atual contexto espaço-temporal, marcado pelas transições em curso.
Neste capítulo, resgatamos, de forma muito breve, a trajetória das RMs e
elencamos algumas das características mais marcantes das diferentes fases desse
percurso. Em seguida, exploramos o tema das transições, com destaque para as
mudanças climáticas e a transformação digital, elementos que amplificam e requa-
lificam alguns problemas estruturais e o traço excludente do urbanismo brasileiro e
de sua expressão metropolitana. Ao final, considerando-se as incertezas associadas
ao futuro metropolitano do país, ensaiamos algumas controvérsias que nos auxiliem
na construção de soluções, do desenho de estratégias que possam transmutar os
desafios dessa época de transições em oportunidades aproveitadas para promover
uma agenda de reforma urbana e metropolitana que contribua para a redução das
desigualdades socioespaciais nas RMs brasileiras.

2 UM BREVE RESGATE DOS CINQUENTA ANOS DE PERCURSO


METROPOLITANO NO PAÍS
A história metropolitana do país não se inicia com a sanção e a posterior publicação
da Lei Complementar Federal (LCF) no 14, em junho de 1973. Já havia, no país,
iniciativas voltadas para o reconhecimento do fato metropolitano, seja em São
Paulo, Porto Alegre ou Belém, mas a LCF no 14/1973 e, no ano seguinte, a Lei
Complementar (LC) no 20/1974, do ponto de vista normativo, constituem o marco
inicial da trajetória metropolitana do país, posto que o tema é tratado nessa escala
(nacional) e com esse escopo pela primeira vez, indo além de iniciativas existentes
nos planos local e regional e abrangendo importantes elementos: a definição de
10 | 50 anos de regiões metropolitanas no Brasil e a Política Nacional de Desenvolvimento Urbano

uma RM; seu campo temático básico (interesse metropolitano); e sua estrutura
de planejamento e gestão.
A criação das primeiras oito RMs do país – nove, com a criação da RM do
Rio de Janeiro, em 1974, após a fusão dos estados da Guanabara e do Rio de
Janeiro – somente pode ser compreendida a partir do entendimento do contexto
e da conjuntura daquele momento histórico. Naquela ocasião, o país, sob um
regime militar autoritário e tecnocrático, procurou alinhar-se ao paradigma de
desenvolvimento ocidental, por meio da modernização de sua economia e do
aparato normativo estatal, em um momento em que havia muito pouca reflexão
crítica em torno desse modelo de desenvolvimento.
As metrópoles, criadas e pensadas no âmbito do II Plano Nacional de Desen-
volvimento (PND), seriam os hubs do desenvolvimento nacional. Receberiam inves-
timentos que qualificariam seus espaços (econômicos), os quais estariam habilitados
a receberem investimentos que alavancariam o desenvolvimento de suas regiões e do
país, buscando se aproveitar dos recursos naturais, sociais e econômicos disponíveis
localmente, mas com vistas também à sua diversificação e ampliação. Trata-se, por-
tanto, de projeto de modernização alinhado a uma perspectiva de desenvolvimento
voltada para o crescimento e o uso intensivo dos recursos naturais e socioeconômicos.
O edifício jurídico-normativo, institucional, que daria forma às RMs no país,
até por força da matriz autoritária do regime, gerou estruturas metropolitanas com
relativa rapidez. Nas regiões estabelecidas pelas LCFs, os órgãos de planejamento
metropolitano foram criados e passaram a atuar, sobretudo, na elaboração dos
planos integrados de desenvolvimento econômico e social.
Favorecia o esforço de planejamento e gestão em construção o fato de que a
questão social e urbana trazia uma escala que era nova e potente: o grau de urbanização
do Brasil avançou muito nos anos 1960, e as grandes cidades experimentaram taxas
de crescimento muito elevadas. De certa forma, a questão urbana e a “novidade” me-
tropolitana mobilizavam atores sociais, políticos e econômicos e encontravam alguma
ressonância na opinião pública, notadamente nos estratos sociais urbanos.
A necessidade do planejamento voltado para o desenvolvimento era um axioma
que alimentava e se alimentava da própria constituição da tecnoburocracia estatal, que
estaria encarregada de criar os canais, as infraestruturas e os elementos necessários para
favorecer o desenvolvimento, entendido ali sobretudo como um quase sinônimo de
crescimento econômico. “Primeiro, vamos crescer o bolo...”, dizia-se à época.
Ainda que todo esse processo tenha se dado em contexto inicial de transfor-
mação da economia, ainda que a economia brasileira tenha sofrido com os baques
dos choques de petróleo e que tenha experimentado décadas de crise, com endivi-
damento externo, hiperinflação e baixo crescimento econômico, essa construção
Pensar a metrópole: trajetórias, transições e controvérsias | 11

metropolitana, tal como pensada em 1973, teve um período glorioso, o que foi
reforçado pelas funções de regulação urbanísticas advindas da Lei Federal no 6.766,
de 19 de dezembro de 1979, por meio do instituto da anuência prévia da autori-
dade metropolitana, para os casos previstos em lei, de projetos de loteamentos e
desmembramentos de glebas.
O nascimento das RMs brasileiras deu-se e desenvolveu-se, em seus primeiros
quinze anos, em determinado contexto/conjuntura muito particular, no qual cabia
ao Estado estabelecer algumas condições de modernização e regulação que eram
importantes para que o território metropolitano se qualificasse para a promoção
do desenvolvimento capitalista. O Estado, naquele contexto e formato, fazia-se
necessário. A conjuntura e o contexto eram favoráveis àquela construção institu-
cional. Contudo, o quadro alterou-se muito desde então.
Com o fim do período autoritário, do regime militar, a trajetória das RMs
no Brasil passa por outra fase, marcada agora por um processo de descentraliza-
ção institucional tão vigoroso quanto confuso e eivado de tensões. De um lado, a
Constituição Federal de 1988 (CF/1988) estadualizava a competência para criar
as RMs, ao permitir que cada governante desse nível de governo intermediário
lidasse com o tema de acordo com seus interesses, seus propósitos e suas estratégias.
De outro, dado o movimento do pêndulo centralização-descentralização no sentido
da valorização da esfera local, trazia o reconhecimento do município como ente
da Federação, e outras determinações presentes no quadro jurídico-institucional
intensificaram as tensões e os conflitos verticais e horizontais federativos, criando
um campo minado para as práticas de planejamento e gestão metropolitana.
Naquele período, conforme apontamos em outro lugar (Costa, Matteo e
Balbim, 2010), observa-se a paradoxal convivência da fragilização institucional
e do enfraquecimento da agenda política metropolitana com um processo intenso
de metropolização institucional.1
No período pré-CF/1988, havia apenas as nove RMs criadas por norma
federal nos anos 1970. Entre 1988 e a sanção do Estatuto da Cidade (EC), é
criada mais uma dezena de RMs; entre 2010 e o período 2015-2016, quando
passa a viger o Estatuto da Metrópole (EM), mais de quarenta RMs são criadas
no país, gerando uma dissociação entre o fato metropolitano e o reconhecimento
institucional metropolitano.
Por fim, no período mais recente, a partir do EM, verificou-se, a princípio,
uma movimentação em muitas RMs, com vistas a atingir o status da gestão plena,
tal como previsto no EM, mas as alterações legais de 2018 – em especial, a Medida

1. O termo metropolização institucional foi cunhado em contribuição feita em 2012, a qual foi o primeiro esforço para
constituir o projeto Governança Metropolitana no Brasil. Foi feito ali o primeiro balanço do número de RMs do país, com
um quadro sobre alguns aspectos de sua estrutura de gestão e sua governança. Ver Costa, Matteo e Balbim (2010).
12 | 50 anos de regiões metropolitanas no Brasil e a Política Nacional de Desenvolvimento Urbano

Provisória (MP) no 818/2018 e a Lei Federal (LF) no 13.683/2018 – acabaram


esvaziando os efeitos impulsionadores que as exigências e os prazos previstos no EM
para a elaboração e a aprovação de planos de desenvolvimento urbano integrado
(PDUIs) haviam logrado tão logo o EM fora aprovado e sancionado.
Hoje, o país conta, segundo os últimos levantamentos realizados no âmbito
do projeto Governança Metropolitana no Brasil, com 76 RMs, além das três regiões
integradas de desenvolvimento econômico (Rides), entre as quais se inclui a Ride
do Distrito Federal e do Entorno.
Desse expressivo número de RMs institucionalizadas, que em muito supera os
quinze espaços metropolitanos reconhecidos pelo Instituto Brasileiro de Geografia
e Estatística (IBGE) na pesquisa Regiões de Influência das Cidades – Regic (IBGE,
2020), cerca de dois terços sequer iniciaram o processo de elaboração dos PDUIs
e apenas duas RMs apresentam condições de pleitear o reconhecimento da gestão
plena estabelecida pelo EM.2
A figura 1, em diálogo com a periodização proposta por Klink (2013), faz um
breve resumo da trajetória metropolitana no Brasil, indo da etapa de modernização
tecnocrática à etapa atual, marcada por um quadro de incertezas.

FIGURA 1
A trajetória dos cinquenta anos de RMs no Brasil

Elaboração do autor.
Obs.: Ilustração cujos leiaute e textos não puderam ser padronizados e revisados em virtude das condições técnicas dos
originais (nota do Editorial).

2. O EM estabelece como condições para a gestão plena: i) formalização e delimitação da RM mediante lei comple-
mentar estadual; ii) estrutura de governança interfederativa própria, nos termos do art. 8o do EM; e iii) possuir PDUI
aprovado mediante lei estadual.
Pensar a metrópole: trajetórias, transições e controvérsias | 13

A trajetória dos cinquenta anos de experiências e práticas de planejamento,


gestão e governança metropolitana no país articula-se com as necessidades e as
demandas do modelo de desenvolvimento capitalista. A fase tida como “mais
bem-sucedida”, em que se estabelece um efetivo poder de política administrativo,
corresponde à fase de modernização institucional e econômico-social, na qual a
ação do Estado se fazia necessária, o que foi facilitado, por assim dizer, pelo regime
autoritário e centralizado que vigorou até a CF/1988.
A essa fase, segue-se um período inicial que vai até o começo dos anos 2000,
coincidindo com o início de vigência do EC, cujo texto legal, de viés municipa-
lista, desconsidera a realidade metropolitana. O papel das RMs naquele período
submergiu, enquanto se reforçou o neolocalismo/valorização do poder local.
Vários órgãos estaduais de planejamento foram extintos, e a gestão metropolita-
na, quando muito, limitou-se ao transporte intermunicipal; afinal, a mobilidade
das pessoas, dos trabalhadores e dos consumidores é importante para o sistema
econômico metropolitano.
Entre o EC, publicado em 2001, e o EM, estabelecido em 2015, deu-se a
metropolização institucional, com a criação de dezenas de RMs pelo país. Esse
processo tem mais a ver com a perspectiva de acesso a recursos orçamentários
(federais) e com eventuais vantagens marginais do que com qualquer esforço
efetivo de planejamento e gestão metropolitana. Busca-se pegar carona no con-
texto nacional de neodesenvolvimentismo, conformando-se uma lógica de ação
fragmentada e de competição neoliberal associada à fragilização do planejamento
e da gestão metropolitana.
Por fim, a partir do EM, abre-se uma nova etapa marcada pelas incertezas, em
que o papel do Estado na regulação do espaço regional vem sendo questionado e
esvaziado, e, a despeito da vigência da Lei Federal no 6.766/1979, o não exercício
do poder de polícia é a regra, até mesmo nas RMs criadas nos anos 1970.
Trata-se, portanto, de larga trajetória que dialoga com processos globais
mais amplos e com outros que dizem respeito às especificidades do caso brasileiro.
E, agora, incidindo sobre essa trajetória, processos globais/planetários de transição
trazem novos elementos para a mesa metropolitana e permitem um entendimento
aprofundado seja da própria trajetória, seja de disputas e conflitos presentes, os
quais trazem questões inescapáveis para pensar-se a metrópole hoje, neste período
que muitos denominam de antropoceno.3

3. Há uma literatura crescente sobre o tema do antropoceno, sobretudo nos países centrais. A tese básica é de que o
desenvolvimento capitalista baseado em uma noção de crescimento ilimitado e abundância de recursos não mais se
sustenta, ao passo que as pegadas deixadas pelo homem no planeta conformam uma nova realidade, segundo a qual
a ação do homem sobre a Terra é capaz de afetar suas condições de habitabilidade, interferindo diretamente sobre as
condições climáticas, por meio, em especial, da emissão de gases de efeito estufa (GEEs). A ação humana, a humanidade,
passa a ser uma força geológica. Entre outras referências, ver Saito (2022) e Latour (2023).
14 | 50 anos de regiões metropolitanas no Brasil e a Política Nacional de Desenvolvimento Urbano

3 AS METRÓPOLES EM TEMPOS DE TRANSIÇÕES


Vivemos um tempo de transições. A frase é curta e hermética. Para sustentá-la,
não é necessário ir além do reconhecimento de dois elementos do tempo presente:
a transformação digital, com suas repercussões no campo da produção, da circu-
lação, da logística e do consumo, do mundo do trabalho ou da vida cotidiana; e
as mudanças climáticas, com seus desafios em torno da mitigação dos efeitos e da
necessária e crescente adaptação às mudanças do clima.
De certa forma, esses dois elementos colocam em xeque as noções prevalecentes
de desenvolvimento que ainda orientam as políticas econômica, estrito senso, e de
desenvolvimento econômico setorial, inclusive – sobretudo, talvez – nos países da
periferia global.
A própria noção de desenvolvimento urbano ou metropolitano não está des-
contaminada do paradigma de desenvolvimento ocidental, pelo contrário. Nesse
sentido, os elementos recentes da transformação social, econômica, cultural e am-
biental que se encontra em curso deveriam fomentar discussões e ações em torno
do que deveria ser o desenvolvimento urbano e metropolitano, em compreensão
alternativa, descolada do paradigma de desenvolvimento econômico ocidental.
Como argumenta Latour (2023), a modernidade, com suas promessas,
nunca se concretizou efetivamente: as promessas de redução das desigualdades
socioespaciais – com distribuição da riqueza –, da possibilidade de a humanidade
viver de forma digna no planeta, tendo como corolário uma noção de recursos
abundantes/ilimitados, não se cumpriram. Nos países periféricos, tais promessas
foram ainda mais ilusórias, uma vez que o Estado do bem-estar social não se fez
presente como em outros países centrais.
Em contraste com esse quadro, tem se observado, nos últimos anos, um
aumento crescente da desigualdade socioeconômica e da concentração de renda,
inclusive nos países centrais do mundo ocidental. O advento da crise global da
covid-19 testemunhou o aumento da concentração de renda. Os ricos ficaram
ainda mais ricos e abocanharam uma porção ainda maior da riqueza global nos
tempos de pandemia.4
Paralelamente, há outra face perversa do modelo de desenvolvimento ociden-
tal, paradigma ainda perseguido pelas políticas econômicas nacionais. Trata-se das
consequências da ação do homem sobre o ambiente, notadamente com a emissão
dos GEEs. Desse modo, testemunha-se a insustentabilidade dos padrões globais
de produção e consumo, que já sinalizam a chegada do ponto de “não retorno”.

4. Segundo relatório do Banco Mundial, “a deterioração do mercado de trabalho diminuiu a renda domiciliar, com os
40% mais vulneráveis da população sendo os mais atingidos” (Pobreza..., 2022). O fenômeno da concentração de
renda na pandemia, contudo, não se restringe ao Brasil (Pesquisa..., 2022).
Pensar a metrópole: trajetórias, transições e controvérsias | 15

A cada ano, o aquecimento global mantém-se, e as temperaturas continuam subindo.


As condições de vida na Terra serão determinadas mais intensamente pelas emissões
de outrora, de modo que os efeitos de ontem se intensificam hoje – ou, dizendo de
outra maneira, o poder causal do passado aumenta inexoravelmente, até o ponto em
que realmente “é tarde demais” (Malm, 2016, p. 9, tradução nossa).
Portanto, o modelo de desenvolvimento capitalista, de um lado, falhou no
cumprimento das promessas de prosperidade e, de outro, assumiu papel destacado
na promoção da crise ambiental global. Isso foi expressado no “estado de emergência
climática”, anunciado pelo Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas
(IPCC, na sigla em inglês), em 2018.
No sexto relatório do IPCC, publicado em março de 2023, afirma-se que
as emissão de gases de efeito estufa continuaram a aumentar, sem precedentes históricos
e com crescentes contribuições decorrentes do consumo insustentável de energia, do uso e
das alterações de solo, de estilos de vida e de padrões de consumo e produção em
todas as regiões, entre os países e em seu interior e entre indivíduos (IPCC, 2023, p. 4,
tradução nossa, grifos nossos).5
Restam poucas dúvidas, se alguma, de que a situação ambiental vem sendo
produzida pelo modelo de desenvolvimento capitalista e de que os espaços urbanos –
notadamente as metrópoles – possuem protagonismo na crise corrente.
O quadro apresenta matizes com tons mais graves à medida que se constata
que os efeitos da crise climática se fazem sentir de forma diferenciada no território e
entre as pessoas. Segundo o próprio relatório do IPCC, os países tropicais sentirão
os impactos decorrentes das mudanças do clima de forma mais intensa. Ademais,
as pessoas em situação de vulnerabilidade são aquelas que mais estão expostas aos
impactos dos eventos causados pelas mudanças climáticas, o que tem fomentado
inclusive discussões em torno de estratégias para lidar com tais eventos, buscando-se
reduzir seus efeitos.6
Portanto, pensar a metrópole hoje é pensar em como se constroem os espaços
metropolitanos em face da crise climática. As questões orientadoras do debate envol-
vem saber: o planejamento e a gestão metropolitana contribuem para a mitigação da
mudança climática? Promovem alterações nos modelos de uso e ocupação do solo,
de modo a reduzir as emissões de GEEs? Buscam construir soluções para as adap-
tações às mudanças do clima no ambiente urbano? Ou fazem justamente o oposto?

5. No original: "global greenhouse gas emissions have continued to increase, with unequal historical and ongoing con-
tributions arising from unsustainable energy use, land use and land-use change, lifestyles and patterns of consumption
and production across regions, between and within countries, and among individuals".
6. Segundo matéria publicada recentemente na The Economist, os pobres do mundo precisam estar informados dos
desastres decorrentes das mudanças climáticas a tempo de se precaverem. A matéria apresenta sugestões baseadas
em inteligência artificial para defender a necessidade de alerta para eventos climáticos (The world’s..., 2023).
16 | 50 anos de regiões metropolitanas no Brasil e a Política Nacional de Desenvolvimento Urbano

Tais indagações se somam a antigas questões que se fazem presentes na reali-


dade metropolitana do país. Estas não substituem ou se sobrepõem aos problemas
estruturais – podemos dizer clássicos – das cidades brasileiras, associados à oferta
habitacional insuficiente para boa parte da população, que acaba por constituir
ocupações/assentamentos irregulares – muitas vezes em locais inadequados, como
as áreas de preservação permanente (APPs), que não fazem parte do portfólio do
mercado formal de terra e da habitação –, em áreas sem infraestrutura urbana e
social, distantes das áreas/bacias de emprego e que exigem das pessoas horas de
deslocamentos diários em transportes públicos precários e ineficientes.
Em síntese, os problemas estruturais do desenvolvimento urbano brasileiro
seguem ativos, tendo se complexificado ao longo das últimas décadas. Agora ganham
novos matizes, novos elementos, que amplificam ainda mais sua complexidade e
a necessidade de construção de soluções.
Os desafios associados às mudanças climáticas, em especial, demandam
soluções urgentes que desafiam os aparatos da gestão urbana e metropolitana e
revestem-se de certa dramaticidade, na medida em que se sabe que a população
socialmente vulnerável sentirá de forma mais intensa os efeitos das mudanças do
clima. Conforma-se um círculo vicioso: a falta de soluções para a habitação con-
tribui para o aumento de ocupações de áreas irregulares e para a constituição de
assentamentos precários, que demandarão, cada vez mais, intervenções voltadas
para a adaptação às mudanças climáticas, justamente por serem áreas que já não
eram adequadas à ocupação humana/urbana.
A desigualdade socioespacial, nestes tempos de transição, expressa-se na forma
como a apropriação do espaço urbano vai se dando, por um lado, com o mercado
formal gerando novos produtos, sobretudo habitacionais, nos quais os supostos
elementos de sustentabilidade são valorizados – terrenos com áreas verdes ou
reflorestadas, projetos arquitetônicos que valorizam os elementos naturais, o uso
sustentável e inteligente dos recursos disponíveis, incluindo-se o manejo de resíduos
sólidos e a geração e uso de energia –, enquanto, por outro lado, se observa o avanço
da ocupação da periferia metropolitana e o aumento da mancha urbana em cida-
des médias/intermediárias, que reproduzem os vícios do desenvolvimento urbano
brasileiro, como mostram os primeiros resultados do último Censo Demográfico.
Nesse sentido, vale reforçar que nem a transformação digital nem as mudanças
climáticas são neutras. Estas são produzidas/alimentadas por alguns atores e possuem
efeitos socioespaciais diversos, os quais demandam atenção. As transições conformam,
portanto, elementos de controvérsia, temas complexos, cuja reflexão pode ajudar a
desenhar caminhos negociados coletivamente para superação ou convivência com
as questões e os desafios do tempo presente. Essa é nossa hipótese, que é ao mesmo
tempo uma chave inescapável: expor os conflitos e as controvérsias do atual modelo de
Pensar a metrópole: trajetórias, transições e controvérsias | 17

desenvolvimento urbano/metropolitano e atuar para a construção de novos modelos


de desenvolvimento territorial em articulação a um outro paradigma de desenvolvi-
mento urbano/metropolitano.

4 CONTROVÉRSIAS METROPOLITANAS DO TEMPO PRESENTE: TRANSIÇÕES,


INCERTEZAS E DESAFIOS INESCAPÁVEIS
O filósofo Bruno Latour deixou contribuições valiosas para pensarmos o tempo
presente. Penso que oportunamente será o caso de explorar as possibilidades de
apropriação dessas contribuições de forma adequada e aprofundada. Nesta peque-
na seção do capítulo, esboçam-se alguns ensaios de interlocução a partir de uma
recente publicação, que traz uma entrevista realizada em 2022 (Latour, 2023).
Um ponto de partida para essa apropriação tem a ver com o entendimento
de que há uma mudança de mundo. Ainda que o autor parta de elementos muito
específicos associados ao que Latour (2023) chama de uma nova cosmogonia, há
paralelos entre suas proposições e outras no campo das ciências sociais que dão
conta das mudanças/transições que se encontram em curso. Blanco e Gomà des-
tacam essa mudança de época.
Atravessamos, sobretudo, uma mudança de época que começa muito antes de 2007.
Ao final do século XX, os principais parâmetros que haviam estruturado a primeira
modernidade balançam de forma irreversível: complexidade crescente dos contextos
vitais; individualização e novas fragilidades; riscos ecológicos socialmente produzi-
dos, internet. A sociedade líquida, de risco, do conhecimento, se amplia com força,
abrindo-se à emergência de uma segunda modernidade. A velha política não a pode
processar e os poderosos aproveitam-se dela: a crise de representação passa a ser o
contexto no qual os agentes das classes dominantes desencadeiam sua ofensiva pelo
desmantelamento de direitos e o desempoderamento cidadão. O resultado: pós-
-democracia, mais desigualdades sociais e assimetrias de poder mais intensas (Blanco
e Gomà, 2016, p. 19 e 20).
De certa forma, a transformação digital e as mudanças climáticas cortam
transversalmente o tema das transições, derramando efeitos sobre a organização
social e econômica e sobre a produção do espaço neste tempo presente acelerado
e comprimido.
Utilizando o método de Latour, destacamos aqui algumas controvérsias desse
tempo de transições, com o objetivo de refletir sobre a questão metropolitana.
Há a primeira grande controvérsia que tem a ver com a “mudança de época”
mesmo. Há uma mudança de época, de modo a fazer ruir um conjunto de valores,
toda uma visão de mundo e até mesmo uma cosmogonia, como defende Latour?
Quais as forças e os sentidos dessa mudança de época? Esta é positiva? Ou, ao
contrário, é trágica? E quais as implicações dessa mudança de época para o espaço
urbano/metropolitano?
18 | 50 anos de regiões metropolitanas no Brasil e a Política Nacional de Desenvolvimento Urbano

Partir dessa grande controvérsia pode ser muito útil, no sentido de construir
uma base para explorar as demais controvérsias que derivam da “mudança de épo-
ca”. No fundo, há aqui uma controvérsia entre quem entende que a história é uma
disciplina morta e que, no máximo, temos a passagem do tempo, em uma linha
evolutiva que se desenvolve de forma proporcional aos avanços do meio técnico e
dos usos da tecnologia; em contraposição a quem busca dar sentido à história a partir
do reconhecimento dos processos socioespaciais e econômicos que esta engendra.
Essa controvérsia é reforçada por aquela que discute se há mesmo alguma mu-
dança climática no planeta decorrente da ação do homem. Ou seja, reconhecendo-se
que há alterações no clima, tributam-se tais mudanças a processos e cíclicos que
fazem parte do próprio planeta ou se atribui à humanidade, à ação humana, a
capacidade de, pela primeira vez na história do planeta, alterar o clima e afetar as
condições de habitabilidade da Terra?
No fundo, essas controvérsias guardam relação com o modo de desenvolvimento
socioeconômico predominante há alguns séculos não apenas no mundo ocidental,
mas também em todo o planeta. É possível pensar na continuidade do atual paradig-
ma de desenvolvimento, baseado em ideias modernas de abundância e autonomia e
tendo como corolário uma visão dual de cultura e natureza, de sujeito e objeto? Ou
as evidências da mudança de época apontam para a necessidade de repensar os valores
vigentes, a partir do reconhecimento da complexidade e interdependência do mundo,
da inseparabilidade e de imbricações de cultura e natureza, de sujeito e objeto?
Se as pessoas estão desorientadas com a questão ecológica e não podem reagir rapida-
mente diante de uma situação que todos sabemos que é catastrófica; isso se deve, em
boa medida, ao fato que continuam no mundo de antes. Um mundo de objetos sem
agency e que são controlados a partir do cálculo, um mundo de ciências apropriáveis,
um mundo de abundância e conforto disponibilizado pelo sistema de produção.
Contudo, esse não é o mundo no qual estamos agora, e é nesse sentido que houve
uma mudança de mundo. Saímos de um mundo feito por objetos conhecidos pela
ciência, no qual nossas próprias ideias são ideias subjetivas para adentrarmos em
outro mundo, em que vivemos entre outros seres vivos que fazem coisas estranhas e
reagem muito rapidamente às nossas ações (Latour, 2023, p. 32-33, tradução nossa).
Esse conjunto de controvérsias globais do tempo presente possui um rebati-
mento interescalar. Pode-se não apenas discutir cada elemento dessas controvérsias
em termos planetários, mas também é possível pensá-las em escalas nacionais,
regionais e locais. Como exemplifica Latour (2023), em uma das entrevistas, o que
acontece com a produção de soja no Brasil afeta e, portanto, diz respeito, aos pro-
dutores da Bretanha que consomem essa comodity brasileira. “As ações de humanos
em um local cria para eles e para outros humanos em outros lugares condições de
inabitabilidade (...) as condições atmosféricas, alimentares e a temperatura são o
produto involuntário daqueles seres vivos” (Latour, 2023, p. 34, tradução nossa).
Pensar a metrópole: trajetórias, transições e controvérsias | 19

Falar em habitabilidade/inabitabilidade na escala planetária remete a pensar


nas condições de habitação no espaço urbano/metropolitano. Na escala global, está
em jogo a possibilidade de o planeta perder condições de habitabilidade, deixar
se desfazerem as condições de vida que foram construídas ao longo de milhões de
anos a partir da interação e da codependência de diversos seres vivos. No entanto,
na escala urbana e metropolitana, as condições de habitação há muito vêm sendo
deterioradas, por meio de processo de urbanização/metropolização predador,
consumidor de espaço e destruidor das condições ambientais.
Ademais, em tempos de mudanças climáticas, há de se reconhecer que o
espaço urbano/metropolitano sofre ainda mais os efeitos desse quadro e o faz de
modo diferencial, penalizando as populações mais vulneráveis. Como já dissemos
anteriormente, sobram para estas os espaços menos adequados e mais suscetíveis
aos efeitos negativos das mudanças climáticas: as áreas de declividade acentuada,
as áreas inundáveis; em síntese, as áreas que apresentam riscos mais elevados à
ocupação urbana.
Em qualquer que seja a escala, cuidar das condições de habitabilidade e habita-
ção, reconhecendo-se as necessidades, as condições e as demandas do meio natural,
é o ponto de partida para qualquer novo paradigma de desenvolvimento urbano.
Para Latour (2023), o trabalho de descrever o território é o ponto de partida
para a superação das controvérsias. As controvérsias não se autorrespondem, mas
são enfrentadas, por assim dizer, a partir de outro lugar. O território é esse lugar.
Não o território das coordenadas geográficas, mas o território decorrente das neces-
sidades, das demandas, das relações de dependência entre o meio natural e o social.
Reconhecer um território a partir de suas necessidades e demandas, das ne-
cessidades das pessoas e do meio natural é um ponto de partida interessante; um
desafio para os atores que pretendem lidar com as transições e incertezas destas
decorrentes. Uma construção a partir da base, de um território, digamos, signi-
ficado, implica descrição que reconhece necessidades, relações de dependência e
ações a serem desenvolvidas por atores sociais e políticos. A construção de planos
e projetos faz parte dessa estratégia.
Decerto que esse caminho não pretende fazer o planejamento metropolitano
voltar ao que era. Aliás, essa é outra controvérsia: há lugar para o planejamento e a
gestão metropolitana no tempo de hoje? Há lugar para a ação estatal? A regulação
faz sentido? Ao descrever o território a partir de suas necessidades, carências e
demandas, o sentido do planejamento e da gestão pode ser reconstruído, tendo-se
em conta a codependência das ações e dos atores sociais, políticos e econômicos; os
desafios e as incertezas associados às transições; e a necessidade de construir novas
relações institucionais, uma nova institucionalidade, baseada em entendimento
coletivo do futuro comum.
20 | 50 anos de regiões metropolitanas no Brasil e a Política Nacional de Desenvolvimento Urbano

Não há autonomia sem consequências. Não há nenhuma “mão invisível”


cuidando dos rumos do planeta. As transformações não são boas ou ruins, são o
que coletivamente fazemos destas. Tudo isso exige reflexão e construção de projeto.
Qualquer exercício de compreender e “visualizar” nosso tempo-espaço terá
como consequência a percepção da singularidade e da insignificância da experi-
ência do planeta. Mas este é nosso lugar e nosso tempo. Este é nosso território.
Este é o ponto de partida possível para superar as controvérsias do tempo presente,
aprofundando as reflexões em torno destas, ao mesmo tempo que se constroem
projetos a partir do reconhecimento das necessidades do território.
A questão metropolitana precisa de ser construída a partir desse ponto, das
necessidades e demandas do espaço metropolitano, utilizando-se uma estratégia
que passa pela construção coletiva de projetos e de uma institucionalidade, a qual,
por seu turno, não deve ser um retorno ao passado, mas uma nova construção que
reconheça o papel codependente dos atores, bem como a possibilidade de uma
governança multinível e de soluções mais flexíveis, sem que se percam de vista as
necessidades desse território ressignificado, sem transigir com os valores ecológicos
e humanos deste novo tempo que está para ser construído.

REFERÊNCIAS
BLANCO, I.; GOMÀ, R. O municipalismo do bem comum. Barcelona: Icária, 2016.
COSTA, M. A.; MATTEO, M.; BALBIM, R. N. Faces da metropolização no
Brasil: desafios contemporâneos na gestão das regiões metropolitanas. In: CAR-
DOSO JUNIOR, J. C. P. (Coord.). Infraestrutura social e urbana no Brasil:
subsídios para uma agenda de pesquisa e formulação de políticas públicas. Brasília:
Ipea, 2010. l. 6, v. 2.
IBGE – INSTITUTO BRASILEIRO DE GEOGRAFIA E ESTATÍSTICA. Região
de Influência das Cidades. Rio de Janeiro: IBGE, 2020.
IPCC – INTERGOVERNMENTAL PANEL ON CLIMATE CHANGE. Cli-
mate Change 2023: synthesis report – summary for policymakers. Geneva: IPCC,
2023. p. 1-34. Disponível em: https://www.ipcc.ch/report/ar6/syr/downloads/
report/IPCC_AR6_SYR_SPM.pdf.
KLINK, J. J. Por que as regiões metropolitanas continuam tão ingovernáveis?
Problematizando a reestruturação e o reescalonamento do Estado social desen-
volvimentista em espaços metropolitanos. In: FURTADO, B. A.; KRAUSE, C.;
FRANÇA, K. C. B. de (Ed.). Território metropolitano, políticas municipais:
por soluções conjuntas de problemas urbanos no âmbito metropolitano. Brasília:
Ipea, 2013.
Pensar a metrópole: trajetórias, transições e controvérsias | 21

LATOUR, B. Habitar la terra: converses amb Nicolas Truong, amb la col.laboració


de Rose Vidal. Barcelona: Arcàdia, 2023.
MALM, A. Fossil capital: the rise of steam power and the roots of global warning.
Londres/Nova York: Verso, 2016.
PESQUISA aponta que bilionários concentraram mais renda na pandemia. Istoé Di-
nheiro, 17 jan. 2022. Disponível em: https://istoedinheiro.com.br/pesquisa-aponta-
-que-bilionarios-concentraram-mais-renda-na-pandemia/. Acesso em: 9 ago. 2023.
POBREZA e desigualdade no Brasil: pandemia complica velhos problemas e gera
novos desafios para população vulnerável. World Bank, 14 jul. 2022. Disponível
em: https://www.worldbank.org/pt/news/press-release/2022/07/14/pobreza-
-e-desigualdade-no-brasil-pandemia-complica-velhos-problemas-e-gera-novos-
-desafios-para-populacao-vulneravel. Acesso em: 9 ago. 2023.
SAITO, K. El capital en la era del Antropoceno: una llamada a liberar la imaginación
para cambiar el sistema y frenar el cambio climático. Barcelona: Sine Qua Non, 2022.
THE WORLD’S poor need to know about weather disasters ahead of time.
The Economist, 27 jul. 2023. Disponível em: https://www.economist.com/lea-
ders/2023/07/27/the-worlds-poor-need-to-know-about-weather-disasters-ahead-
-of-time. Acesso em: 9 ago. 2023.

BIBLIOGRAFIA COMPLEMENTAR
BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Brasília:
Congresso Nacional, 1988. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/
constituicao/constituicao.htm.
BRASIL. Lei Complementar Federal no 14, de 8 de junho de 1973. Estabelece as
regiões metropolitanas de São Paulo, Belo Horizonte, Porto Alegre, Recife, Salva-
dor, Curitiba, Belém e Fortaleza. Diário Oficial da União, Brasília, 11 jun. 1973.
BRASIL. Lei Complementar Federal no 20, de 1o de julho de 1974. Dispõe sobre
a criação de estados e territórios. Diário Oficial da União, Brasília, 1o jul. 1974.
BRASIL. Lei Federal no 6.766, de 19 de dezembro de 1979. Dispõe sobre o parcelamen-
to do solo e dá outras providências. Diário Oficial da União, Brasília, 20 dez. 1979.
BRASIL. Lei no 10.257, de 10 de julho de 2001. Regulamenta os arts. 182 e 183
da Constituição Federal, estabelece diretrizes gerais da política urbana, e dá outras
providências. Diário Oficial da União, Brasília, 11 jul. 2001.
BRASIL. Lei no 13.089, de 12 de janeiro de 2015. Institui o Estatuto da Metrópole,
altera a Lei no 10.257, de 10 de julho de 2001, e dá outras providências. Diário
Oficial da União, Brasília, 13 jan. 2015.
Parte I

A Construção Histórica da Agenda


Metropolitana e a Reforma Urbana
CAPÍTULO 2

A ESTRUTURAÇÃO DA POLÍTICA NACIONAL DE


DESENVOLVIMENTO URBANO E AS REGIÕES METROPOLITANAS:
ENTREVISTA COM JORGE GUILHERME FRANCISCONI1
Entrevistado
Jorge Guilherme Francisconi

Entrevistadores2
Cleandro Krause
Bárbara Oliveira Marguti

Ipea: A questão metropolitana apenas teria começado a receber atenção do poder


central no final da década de 1960, e isso porque ali poderiam vir a se gerar focos
de instabilidade e conflitos sociais. Esta é uma avaliação feita por Lysia Bernardes
(1986) ao refletir sobre o período passado. Você concorda que o agravamento de
uma questão social teria sido o motivo (ou o principal motivo) para o início da
atenção do governo federal para as maiores cidades do país?
Jorge Guilherme Francisconi: Não. Não, porque em 1964 a secretária Sandra
Cavalcanti envia seu famoso memorando ao presidente Castello Branco e trata do
emprego, pobreza e habitação como sendo um grande problema a enfrentar (Brasil,
1971). Ela sugere que se invista fortemente na questão da habitação, bem como na
pré-fabricação e em serviços urbanos, inclusive polícia e transporte (a experiência
dela com a Cidade de Deus, no Rio de Janeiro, fora catastrófica). Para sustentar
a proposta, ela sugere a criação de banco e de agência de planejamento urbano.
O banco é o Banco Nacional da Habitação (BNH), criado pelo ministro Roberto
Campos, mas não com objetivos sociais, e sim como instrumento de poupança
do sistema financeiro. A agência será o Serviço Federal de Habitação e Urbanismo
(Serfhau). Ou seja, a política metropolitana vem depois de iniciativas orientadas
para uma política urbana desenvolvimentista e social.
Bem mais importante para a política metropolitana foram as iniciativas de
estados e municípios e também o fato de Roberto Campos ter grande interesse
(e esse foi um dos temas do antigo Escritório de Pesquisa Econômica Aplicada –
Epea, hoje Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada – Ipea) em integrar e consolidar

1. Entrevista realizada em 20 de abril de 2023, às 9h30, na residência do entrevistado, em Brasília.


2. Os entrevistadores são indicados no texto como Ipea.
26 | 50 anos de regiões metropolitanas no Brasil e a Política Nacional de Desenvolvimento Urbano

o território na política econômica desenvolvimentista. Então, diferentemente da


sua pergunta, meu pensamento é outro, porque creio que, no período autoritário
desenvolvimentista, o grande desafio era como integrar território-cidade-metrópole
na política econômica, financeira e social.
Observe que, a partir do início da década de 1960, no Instituto Brasileiro
de Geografia e Estatística (IBGE), havia duas correntes muito fortes da geografia
econômica. Primeiro, a de [Michel] Rochefort,3 que nos trouxe a experiência do
aménagement francês dos anos 1940 e 1950, a qual foi fundamental nos planos e
na organização territorial brasileira para fins de planejamento (regiões homogêne-
as, regiões polarizadas e hierarquia urbana); e, segundo, a de [Speridião] Faissol,
que concluíra seu doutorado na Universidade de Syracuse e vinha com o regional
science, a chamada nova geografia.
O Serfhau também foi parte integrante desse processo e cresceu de impor-
tância a partir de 1966, quando se tornou responsável pelo Sistema Nacional de
Planejamento do Desenvolvimento Local Integrado, criado com o objetivo
de preparar arcabouço que permitisse integrar, no próximo Plano Nacional de
Desenvolvimento (PND), o território-cidade-metrópole e a política urbana
nacional (Política Nacional de Desenvolvimento Urbano – PNDU) nos planos
e programas nacionais de desenvolvimento.
Esse casamento era a grande meta desde 1966, e em 1971, no Seminário de
Desenvolvimento Urbano e Local, o entendimento foi de que o Serfhau enfrentava
dificuldades para dar conta da tarefa. Os anais do seminário descrevem o impres-
sionante nível de detalhamento do documento que o Serfhau estava elaborando,
e as conclusões recomendam que a União – Ministério da Justiça e Ministério do
Planejamento – faça uma lei para a criação das regiões metropolitanas (RMs), o que
corresponde às Leis Complementares nos 14/1973 e 20/1974. Também recomenda
que IBGE, Ipea e Serfhau preparem o texto do capítulo da PNDU do II PND,
algo que o Serfhau não conseguiu fazer por conta da metodologia adotada, ainda
que contando com o apoio técnico de consultores qualificados da Organização
dos Estados Americanos (OEA) e de equipe em que a maioria não promovia a
integração do econômico com o territorial.
Eu entro nesse jogo porque, como coordenador do Programa de Pós-Graduação
em Planejamento Urbano e Regional (Propur), a partir de 1970, e assessor da Secre-
taria de Planejamento do Governo do Rio Grande do Sul, a partir de 1972, passei a
ter contato com a equipe do Ipea e avaliar com Roberto Cavalcanti de Albuquerque,
que dirigia o Ipea-Instituto de Planejamento (Iplan), o que seria uma política urbana
nacional. Minha concepção refletia as disciplinas e o doutorado (PhD) na Maxwell

3. Sobre a atuação de Rochefort no Brasil, ver Bomfim (2015).


A estruturação da Política Nacional de Desenvolvimento Urbano e as regiões metropolitanas | 27

School de Administração Pública e Cidadania (Maxwell School of Citizenship and


Public Affairs), que era o núcleo pensante do Partido Democrata nos anos 1960/1970,
e também a experiência de relator-geral, apoiado pela urbanista Lais Salengue e pela
geógrafa Maria Adélia de Souza, da Política de Desenvolvimento Urbano para o
Estado do Rio Grande do Sul – elaborada por professores da Universidade Federal
do Rio Grande do Sul (UFRGS), com o apoio técnico e financeiro da Secretaria de
Obras do Estado do Rio Grande do Sul, Superintendência do Desenvolvimento do
Sul (Sudesul) e Serfhau, e com participação de OEA e Ipea, em 1972.4
O doutorado em economia urbana, regiões metropolitanas e desenvolvimen-
to regional me proporcionou uma visão acadêmica da economia, do planejamento
regional e do desafio metropolitano. Minha tese foi sobre a RM de Porto Alegre;
e, nos cursos que fiz, aprendi muito sobre a geografia do regional science, estudei
muito os precursores da geografia econômica, assim como estudei administração
pública, ciência política, planejamento urbano e regional, sociologia, gestão local
e comunidades. Na época, eu era um dos poucos que tinha o conhecimento
interdisciplinar adotado na política urbana gaúcha e no Propur, que foi o pri-
meiro mestrado em planejamento urbano – não confundir com “urbanismo” –
no Brasil. Uma experiência singular que o professor Benício Viero Schmidt, da
Universidade de Brasília (UnB), relatou quarenta anos depois em publicação
da Fundação Getulio Vargas – FGV (Loureiro, Bastos e Rego, 2008).
Antes do Propur, o Serfhau tinha criado, no Instituto Alberto Luiz Coimbra
de Pós-Graduação e Pesquisa de Engenharia (Coppe),5 com apoio de universidades
inglesas, uma pós-graduação de qualidade para apoiar os novos conceitos que adotava.
Nessa época, toda a elite pensante do regional science veio ao Brasil para pensar conosco:
John Friedmann, Brian Berry e outros.
No Rio Grande do Sul, o mestrado do Propur buscava integrar, na prática
do ateliê, os conhecimentos de economistas, administradores públicos, geógrafos,
cientistas sociais, estatísticos. Todos trabalhando juntos em torno de um projeto,
porque – e isso eu sempre destaco – a pós-graduação não é feita para disciplinas, ela é
feita para o ateliê. Isso porque, para administrar o território, é necessário promover a
convergência e fusão dos saberes no território. É no território que as coisas acontecem.
Nesse contexto, o Propur conseguiu fazer projetos como Imbituba-SC,
mediante contrato com a Sudesul. Neste projeto, havia um antigo geógrafo e
professor da UFRGS que resolveu ser aluno e que inseriu a variante ambiental
no projeto. Graças a ele é que o Propur foi um dos primeiros programas, que eu
saiba, que pensava na base econômica da cidade, pensava nas relações sociais e

4. Conforme apresentado no II Seminário sobre Política de Desenvolvimento Urbano para o Estado do Rio Grande do
Sul, em Porto Alegre, em 1972.
5. Centro de ensino e pesquisa da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ).
28 | 50 anos de regiões metropolitanas no Brasil e a Política Nacional de Desenvolvimento Urbano

trabalhava na estrutura administrativa exigida para o que se desejava fazer. No


caso de Imbituba, entraram, inclusive, os ventos do Nordeste, que influenciavam
todo o cenário urbano.
Ipea: Em Imbituba, só para lembrar, era um momento de implementação de
um polo industrial carboquímico, certo?
Jorge Guilherme Francisconi: Sim. A construção de complexo carboquímico
em Imbituba utilizaria melhor o carvão catarinense, que chegava pela ferrovia
Thereza Cristina e era exportado pelo porto de Imbituba. Esta carboquímica iria
afetar a cidade, e era preciso aprovar um plano diretor urbano que organizasse
as transformações.
Retornando ao Propur, o aspecto mais importante foi o surgimento da men-
talidade multissetorial daquele grupo de professores e alunos. Vale lembrar que,
nos anos 1970, havia poucos núcleos de pesquisa e cursos de pós-graduação sobre
temas urbanos e regionais no Brasil. Nas universidades do país, havia o Propur,
com mestrado; os cursos da Universidade de São Paulo (USP); os da Coppe, no
Rio de Janeiro; e o da UnB, que começava a ganhar forma. Em paralelo e em
outro circuito, havia a FGV e o Instituto Brasileiro de Administração Municipal
(Ibam), que, apoiados pela Agência dos Estados Unidos para o Desenvolvimento
Internacional (USAID)6 e pela Secretaria de Articulação com Estados e Municípios
do Ministério do Planejamento (Sarem/Miniplan), atuavam no ensino, na pesquisa
e na elaboração de planos e projetos para prefeituras. Igualmente importante, e
orientado para o aspecto social, havia o grupo da Sociedade para Análise Gráfica
e Mecanográfica Aplicada aos Complexos Sociais (Sagmacs), do padre Lebret, que
orientou entidades católicas e fortaleceu o componente social no planejamento e
gestão urbana e regional.
Voltando às metodologias, elas foram discutidas e destacadas no Seminário de
Desenvolvimento Urbano e Local de 1972, que avaliou a política urbana gaúcha
produzida pela UFRGS em parceria com entidades federais e estaduais, por inicia-
tiva de lideranças do pensamento social católico. O trabalho foi contratado pela
Sudesul com a UFRGS, coordenado pela professora Doris Müller, do Gabinete de
Planejamento Urbano da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo (Gapur/FAU),
e elaborado por professores e estudantes de arquitetura e urbanismo, estatística,
economia, geografia, engenharia, administração pública e outros da UFRGS, com o
geógrafo Gervásio Neves, adotando o método Rochefort na análise interdisciplinar
da rede urbana estadual.
A base conceitual e teórica do método Rochefort foi adotada pelo IBGE nos
anos 1960 para promover estudos sobre a rede urbana e o conhecimento funcional

6. Do inglês United States Agency for International Development.


A estruturação da Política Nacional de Desenvolvimento Urbano e as regiões metropolitanas | 29

do território, em paralelo aos métodos quantitativos adotados pelo grupo liderado


por Speridião Faissol, que era o mais focado na questão metropolitana. Para a PNDU
de 1973, Faissol avaliou as bases econômica e social (Francisconi e Souza, 1976) de
cidades com mais de 50 mil habitantes para saber se dispunham do necessário
equipamento social e atividade econômica, ou um ou outro, ou nenhum dos dois, e
constatou que todas as cidades no interior de São Paulo tinham equipamentos
e atividades; que, no Rio Grande do Sul, a região norte7 tinha economia e social,
mas que, na região sul de fronteira, faltava o componente econômico; e que no
Nordeste, nenhuma cidade com mais de 50 mil habitantes oferecia o mínimo
exigido de serviço social ou atividade econômica.
Esse é o tipo de conhecimento que permite formular políticas públicas, por-
que não adianta saber se esse “saber” não chegar no “cara” que está sofrendo e que
exige iniciativas da gestão pública. Todo o conhecimento acadêmico teórico precisa
ser transformado em conhecimento acadêmico aplicado e adequado às políticas
públicas. Isso é fundamental para beneficiar aquele “cara” que mora na cidade
e sequer sabe de nós. Essa cadeia, esse processo é que foi muito, muito debatido e
muito positivo na época.
Respondi à sua pergunta?
Ipea: Sim! Retomando a provocação que eu lhe fiz, não teria sido uma con-
juntura de crescimento urbano explosivo que teria motivado a criação das RMs.
Estou entendendo que isso é muito anterior, na verdade.
Jorge Guilherme Francisconi: As RMs incham e ganham importância por
conta do crescimento migratório e vegetativo, mas a criação das instituições me-
tropolitanas, as RMs, surge antes do crescimento explosivo dos anos 1970 e das
primeiras iniciativas do governo federal, em que Ministério do Interior (Minter),
IBGE e Serfhau conduziram o tema. Minha dissertação de PhD tratou da RM de
Porto Alegre e me permitiu debater o tema com o pessoal do Ipea. Eles haviam
participado do seminário sobre a política urbana gaúcha da qual fui relator,8 e talvez
tenha sido por isso que me convidaram para a PNDU do II PND 1974-1979.
Ipea: Como foi que isso aconteceu?
Jorge Guilherme Francisconi: Em agosto de 1973, eu trabalhava na Secretaria
de Planejamento do Rio Grande do Sul porque o grupo da RM não me convidara
para trabalhar na equipe. Então estou eu lá sentado – de manhã trabalhava no
Propur; à tarde, na secretaria; e à noite, no Propur – e recebo um telefonema

7. Trata-se da área de colonização por imigrantes europeus, majoritariamente alemães e italianos, iniciada no estado
em 1824.
8. Conforme apresentado no II Seminário sobre Política de Desenvolvimento Urbano para o Estado do Rio Grande do
Sul, em Porto Alegre, em 1972.
30 | 50 anos de regiões metropolitanas no Brasil e a Política Nacional de Desenvolvimento Urbano

do Ministério do Planejamento (Miniplan, na época), perguntando se eu queria


redigir a política urbana nacional. Eu disse: “Pô, legal, mas eu não entendo nada
de política nacional de desenvolvimento urbano. Entendo de RM, mas de política
nacional não entendo nada”. Em seguida, fiz a pergunta-chave:
“Qual é o meu prazo?”
“Quinze dias.”
“Em quinze dias vocês querem que eu redija o capítulo da Política Nacional
de Desenvolvimento Urbano do II PND?”
“É!”
“Então vamos fazer diferente: amanhã à tarde eu vou ao Rio para conversar
com vocês.”
E desliguei.
Eu já trabalhara com a Maria Adélia [Souza] na relatoria da política urbana
gaúcha. Eu era um recém-chegado do exterior, passara quatro anos fazendo uma tese
de doutorado, não conhecia nada do Brasil. Era um gaúcho dentro das fronteiras,
limitadíssimo. Liguei para a Adélia, que tinha um doutorado com Rochefort em
Paris sobre o estado de São Paulo, e perguntei se ela topava. Falei: “se você topar,
eu topo!”. E foi assim que entramos nesse desafio.
Durante quinze dias, negociamos contratações com o Ipea. Nos organizamos
e fizemos a lista de consultores que queríamos: Flávio Villaça, Paul Singer, Chejwa
[Roiza Spindel], muita gente da USP que a Adélia conhecia e que tinha um bom
preparo acadêmico e também os representantes de cada uma das oito RMs. No meu
site9 estão os textos de cada consultor e sobre cada uma das oito RMs. As RMs sendo
consideradas básicas para integração do território na política desenvolvimentista
do governo federal.
A elaboração do documento foi contratada em setembro, e o texto, concluído
em meados de dezembro, com proposta, inclusive, de alternativas administrativas
para gestão da PNDU. Em 120 dias, Adélia e eu “fizemos” duas vezes o Brasil e
trabalhamos com cerca de cinquenta consultores, dez deles com textos específicos.
Flávio Villaça escreveu sobre o uso do solo metropolitano. Marília [Steinberger]
escreveu uma avaliação do Serfhau, tema de sua tese de doutorado. Eurico de
Andrade Azevedo escreveu sobre legislação. Os documentos dos consultores estão
disponíveis em meu site e são citados no texto que o Ipea publicou (Francisconi
e Souza, 1976).

9. Disponível em: https://www.jorgefrancisconi.com.br.


A estruturação da Política Nacional de Desenvolvimento Urbano e as regiões metropolitanas | 31

Quanto ao conteúdo e à metodologia adotados no documento, trabalhamos


inspirados no aménagement du territoire francês e nos limitamos ao “estado da arte”
naquele momento. Dessa forma, o diagnóstico e a metodologia não exigiriam
novas pesquisas; cada consultor colaborava com o que já sabia, sem se aprofundar
em mais nada. Os documentos não tinham pretensões acadêmicas, mas, sim, de
consolidação do estado da arte. Adélia e eu fomos obrigados a ler todos aqueles
calhamaços, depois nos reunimos com cada um e, ao final, nós nos fechamos em
uma sala de aula rodeada de quadros negros, na FAU da USP. Colocamos todas
as ideias nas paredes, a giz, e começamos a definir o que se interligava, o que era
prioritário e o que não era possível fazer. Passamos um dia fazendo isso.
Em paralelo, também avaliamos a “política urbana de fato”, aquela que o
governo federal praticava quando destinava recursos de fundos econômicos da
Secretaria de Planejamento da Presidência da República (Seplan/PR) ou quando
apoiava a indústria. Quais as regiões beneficiadas com recursos do Conselho de
Desenvolvimento Econômico (CDE) e do Ministério da Indústria e Comércio
(MIC) – os quais ignoravam políticas territoriais na alocação de recursos? E como
funcionavam programas como os do BNH? A surpresa, uma vez que BNH era
redistributivo, porque no Nordeste aplicava mais do que arrecadava e em São Paulo
e no Sul arrecadava mais do que gastava. Tudo isso foi detectado nesse período de
120 dias, e o texto foi entregue ao governo com duas alternativas administrativas
para a PNDU. E, durante os seis meses seguintes, a equipe de cinquenta consultores
ficou esperando a reação, e nada aconteceu.
Em julho de 1974, um telefonema me convida para ir a Brasília, e recebo o
convite para coordenar a implantação dessa política. Na loucura dos 34 anos, eu
aceitei, e, para melhor ou para pior, deu no que deu. Essa é a gênese da coisa, e é
preciso lembrar algo fundamental: tanto o presidente Ernesto Geisel como o ministro
João Paulo dos Reis Veloso, Elcio Costa Couto – secretário-executivo do ministério
que era figura-chave e morreu cedo, quando diretor do Banco Interamericano de
Desenvolvimento (BID) – e, em especial, Roberto Cavalcanti de Albuquerque,
como diretor do Ipea/Iplan, conheciam os conceitos do urbano e davam impor-
tância ao que cabia fazer. O ministro Veloso, por exemplo, reuniu toda a equipe,
durante uma manhã inteira, para analisar o conteúdo de proposta de lei para o
desenvolvimento urbano.
Além disso, como no II PND constava Brasília como região pré-metropolitana
que exigia atenção especial, o presidente Geisel chamou o governador do Distrito
Federal, nomeado por ele, chamou o ministro e disse: “vamos trabalhar nisso aí”.
O Plano Estratégico de Ocupação Territorial (Peot)10 de 1977 é produto de ação

10. Plano Estrutural de Organização Territorial do Distrito Federal, aprovado pelo Decreto no 4.049, de 10 de janeiro
de 1978.
32 | 50 anos de regiões metropolitanas no Brasil e a Política Nacional de Desenvolvimento Urbano

prevista no II PND, decidida pelo presidente Geisel, executada pelo governo


do Distrito Federal e pela secretaria executiva da Comissão Nacional de Regiões
Metropolitanas e Política Urbana (CNPU), a partir do plano de saneamento que
existia para a região. Isso porque a única coisa que havia na época era um plano
de saneamento, e não havia como passar dois anos pesquisando para depois fazer
um plano. O melhor era consolidar o que sabíamos em um plano e transformar
isso em instrumento. Outro exemplo foi a localização do III Polo Petroquímico
e o conflito de gaúchos com paulistas. Os paulistas queriam construir o polo em
Paulínia e investiram muito para isso. O governo devia definir a localização, e o
“mapinha”11 da PNDU do II PND definia São Paulo como área de contenção e
o Rio Grande do Sul como uma das áreas para incentivo. O deputado Nelson
Marchezan, na época, era um líder político do governo e “recebeu um assovio”,
avisando “olha, é hora de desconcentrar: ou coloca no Nordeste, ou coloca no Sul.
O Sudeste não é prioridade para investimentos industriais da política territorial
brasileira”. Quando Geisel soube disso, estudou as alternativas e decidiu instalar
o polo petroquímico no Sul, em Triunfo, perto de Porto Alegre.
As decisões de grandes investimentos federais seguiam a lógica de integração
territorial-desenvolvimentista. Temos que entender com muita clareza que, naquele
período, o “desenvolvimentista” era a utopia e a ideologia da época no mundo
todo, independentemente de qual regime, fosse democrático, totalitário, ditadura
ou autoritário. Quando comparo a ditadura brasileira, por exemplo, com a da
Argentina, vejo cenários diferentes. Isso porque, dentro do Ipea, por exemplo, o
ministro Veloso contratava os especialistas que criticavam políticas federais para
que escrevessem um paper justificando suas críticas. Descobri que fora integrado
ao grupo pensante do Ipea quando comecei a receber cópias desses textos de alta
qualidade, com cerca de trinta a quarenta folhas, escritos por pessoas competentes
contratadas pelo Ipea. Depois de distribuído para umas dez ou doze pessoas, o
texto era debatido com seu autor na sala de reuniões do Veloso. Isso ocorria nas
tardes de quinta-feira, entre 14h30 e 17h. Depois, havia o “fazejamento” do texto:
o chefe de gabinete de Veloso participava das reuniões, resumia o que havia sido
falado em uma folha e a entregava ao ministro.
Ou seja, dentro do Ipea, era proibido proibir. Da minha equipe de doze pes-
soas, oito delas haviam sido vetadas pelo Serviço Nacional de Informações (SNI) e
aprovadas pelo ministro Veloso, que criou uma muralha em torno do Banco Nacional
de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES), Ipea, Financiadora de Estudos
e Projetos (Finep) e IBGE, para que fosse proibido criticar por motivos ideológicos.

11. Refere-se ao mapa que consta no capítulo de política urbana do II PND, no qual estão definidas categorias de áreas
urbanas. Ver Francisconi e Cordeiro (2021, p. 174).
A estruturação da Política Nacional de Desenvolvimento Urbano e as regiões metropolitanas | 33

Eu, inclusive, tinha um inquérito policial militar (IPM) nas costas e fui
duas vezes chamado pelo SNI para conversar. Por conta deste IPM dos tempos
de universidade é que eu havia ido para os Estados Unidos, porque sabia que não
teria acesso a emprego no setor público no Brasil. Algo semelhante a um autoexí-
lio, mas diferente daqueles que se autoexilaram quando estavam no topo de suas
carreiras, como Fernando Henrique [Cardoso] e outros. Eu saí porque, se ficasse
no Brasil, não conseguiria nada. O melhor então era ir embora e continuar me
qualificando. Eu tive sorte porque alguém me ajudou a conseguir uma bolsa de
estudos no exterior.
Ipea: Professor, se pudermos voltar ainda um pouquinho no tempo, para o I
PND, ocorre essa ação muito forte do Miniplan, em querer tratar de uma questão
urbana, inclusive promovendo um encontro sobre política de desenvolvimento ur-
bano, no final de 1971, logo depois do I PND, em que aparecem referências sobre
as primeiras RMs – na ocasião, apenas Grande Rio e Grande São Paulo. Há também
uma menção sobre aquilo que seria uma região geoeconômica de Brasília, refletindo
certa tensão entre uma política urbana e uma política de integração nacional, ou
mesmo uma política urbana imersa na política de integração nacional. É sobre esses
esforços simultâneos que gostaríamos que nos falasse um pouco. Até que ponto a
integração nacional, ou a segurança nacional por parte do governo militar naquele
momento, poderia competir ou esvaziar o tratamento de uma questão metropolitana
que estava surgindo?
Jorge Guilherme Francisconi: Em primeiro lugar, a metrópole não surge
como tema isolado, ela surge dentro de uma hierarquia urbana. Nos anos 1960,
os geógrafos, principalmente Faissol e Rochefort, e os economistas do Ipea, como
Tolosa e outros, trabalham com o sistema urbano. É bem verdade que, nas bases,
os governos estaduais e as prefeituras já tinham começado a criar entidades me-
tropolitanas; no governo federal, havia incertezas e era difícil integrar o Ipea com
estados e municípios. Ou seja, existia a equipe da elite intelectual e os prefeitos
trabalhando o tema.
Na época do I PND, o governo federal não tinha instrumentos para atuar nos
aspectos regionais e urbanos das metrópoles, ainda que o Serfhau apoiasse o planeja-
mento metropolitano conduzido por governos estaduais. A gestão metropolitana surge
“de baixo para cima”, como quando a Prefeitura de Porto Alegre se une à Prefeitura
de Canoas para resolver problemas de “fronteira da urbanização” que a conurbação
havia criado. Houve assim uma vertente vinda desde cima e outra desde baixo, com
o Minter coordenando a política urbana regional no Brasil. Em São Paulo, o governo
estadual criou a Empresa Paulista de Planejamento Metropolitano (Emplasa), que
assumiu a liderança e publicou O desafio metropolitano em 1976 (Estado de São
Paulo, 1976). Este excelente livro tem texto de Eurico Andrade de Azevedo sobre
34 | 50 anos de regiões metropolitanas no Brasil e a Política Nacional de Desenvolvimento Urbano

questionamentos jurídicos da gestão metropolitana e proposta de metodologia para


o planejamento do território da RM de São Paulo, que permanecem importantes.
Retomando o II PND, a questão metropolitana permanecia em fase em-
brionária com a vertente do IBGE no topo, com prefeitos e estados na vertente
“de baixo”. Todos estavam esperando que o Serfhau definisse a vertente do
territorial-urbano, inclusive o metropolitano, da política nacional de desenvol-
vimento. O problema era que a complicada e ambiciosa metodologia adotada
pelo Serfhau incluía avaliações do custo do metro quadrado de construção e
de outros indicadores difíceis de mensurar por cidade, a produção industrial
e muito mais. Era ambicioso e detalhista no escopo, muito intraurbano e pouco
econômico-regional.
A maior lacuna do I PND e depois do Serfhau estava no método adotado
para inserir o sistema urbano na política nacional de desenvolvimento, e isso foi
alcançado no documento elaborado em 1973, com Maria Adélia e vários consultores
cuja contribuição multidisciplinar foi consolidada no documento final. Integrar
diferentes áreas do saber foi o maior desafio da PNDU.
Na fase de implementação do II PND, surgiram problemas de conceito e
de gestão administrativa. A Seplan tinha uma linha de pensamento e o Ipea não
pensava como o Minter. Como secretário-executivo (SE/CNPU), eu contava com
dois secretários executivos adjuntos para amainar tensões. No Ipea, havia Militão
de Moraes Ricardo, que depois foi secretário-executivo do Conselho Nacional de
Desenvolvimento Urbano (CNDU), criado para coordenar a política urbana no
Minter a partir de 1979, e Alfredo Gastal, que vinha do Serfhau e trabalhava com o
Henrique Brandão Cavalcanti, secretário-executivo e um grande o nome do Minter.
Outro ponto importante foi a criação da Secretaria Especial de Meio Ambiente
(Sema) em 1973, antes da CNPU, e liderada pelo paulista Paulo Nogueira Neto,
que era o grande guru ambiental da época e que virou grande amigo e parceiro.
Almoçávamos a cada quinze dias e conseguimos integrar a política ambiental com
a política urbana em tudo o que foi possível – e de tal forma que duas funcio-
nárias da CNPU no Ipea, Tania Munhoz e Nilde Lago Pinheiro, depois viraram
presidentes do Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais
Renováveis (Ibama). Elas cuidavam do tema meio ambiente na SE/CNPU, assim
como Briane Bicca, do patrimônio histórico, e Cláudia Dutra, da área jurídica. Cada
setor tinha um técnico responsável, e havia temas difíceis, como a política urbana
na Amazônia. Nilde era uma pessoa competente e divertida, e quando perguntei
se ela queria trabalhar na Amazônia, ela aceitou. Pedi um roteiro de viagem ao
Minter, ela pegou um avião e se mandou. Quando desceu no aeroporto no interior
do Pará, pediu um misto-quente, mas ninguém jamais tinha ouvido falar nisso.
E, de surpresa em surpresa, ela chegou à presidência do Ibama.
A estruturação da Política Nacional de Desenvolvimento Urbano e as regiões metropolitanas | 35

Uma das grandes dificuldades que qualquer política nacional enfrenta é a


diversidade regional do país, e quando Militão e eu chegamos à CNPU, em julho
de 1974, logo tratamos de pedir apoio à Superintendência do Desenvolvimento do
Nordeste (Sudene) para conhecer o interior do Nordeste. Por lá ficamos durante
uma semana, entrando nas prefeituras sem que ninguém soubesse quem éramos,
para ter uma ideia do que acontecia por lá. Nós conhecíamos o Rio Grande do
Sul, que tem prefeituras sólidas e boas equipes. No Nordeste não havia nada disso.
Como iríamos fazer planejamento e implantar programas urbanos? Essa coisa de
ir para o campo e caminhar eu aprendi com Jaime Lerner, que, quando sabia
de um problema, ia para a esquina e ficava olhando o que acontecia. Depois ia
para a prefeitura e buscava a solução com sua equipe.
Ipea: É somente com o II PND que há propriamente a formulação de uma
política urbana para o país. Sem dúvida, há um modelo de ocupação territorial
mais complexo e diversificado para as RMs (áreas de dinamização, contenção etc.),
e a CNPU seria o instrumento principal indicado pelo II PND. Você poderia
avaliar em que medida a CNPU, um órgão centralizador, foi (ou não) capaz de
implementar as diretrizes do plano? Como se davam (ou não) as relações com os
estados e municípios? Lembrando também que era um momento em que os órgãos
setoriais tinham um papel hegemônico, com o crescimento do poder de decisão
do BNH, não mais submetido ao Serfhau. A CNPU teria sido (ou não) capaz de
mudar a orientação setorial da política urbana?
Jorge Guilherme Francisconi: Tanto a estrutura da CNPU como a metodologia
da PNDU foram esboçadas no documento elaborado por mim e Maria Adélia e
muito aperfeiçoadas pela equipe que redigiu o II PND, e a equipe da secretaria
executiva era multiprofissional, com técnicos vindos de todas as regiões do país.
Como toda entidade, nós tínhamos amigos, inimigos e neutros. A questão
urbana ocupava um espaço privilegiado, e havia um acesso como que direto com
o presidente – e o presidente Geisel decidia rápido. Uma vez redigi uma exposição
de motivos (EM) que envolvia cinco ministérios e que foi entregue a ele às cinco da
tarde. À noite, Geisel leu esta EM – ele lia tudo que assinava com muito cuidado –
e corrigiu dois números para que coincidissem com EMs anteriores. Essa atenção
do presidente valorizava o componente técnico e exigia consistência nas políticas
públicas, e creio que conseguimos levar esta mensagem às prefeituras. Daí sermos
chamados de tecnocratas.
E o que era a Comissão da CNPU? Era composta por representantes de vários
ministérios e de quatro representantes da sociedade civil, como Hely Lopes Meirelles,
Eurico Andrade de Azevedo e outros igualmente qualificados que decidiam sobre
temas urbanos com os secretários executivos e adjuntos dos ministérios focados na
execução do II PND. Quando o MIC apresentou projeto de lei sobre poluição em
36 | 50 anos de regiões metropolitanas no Brasil e a Política Nacional de Desenvolvimento Urbano

distritos industriais, o texto foi para a Sema e para a SE/CNPU, que informalmente
avaliaram o texto e levaram seus pontos de vista à CNPU, a qual aprovou uma
diretriz ambiental e industrial para uso do território urbano. A comissão também
avaliava temas como a legislação urbana, que se tornou prioridade a partir de Hely
e Eurico, e foi assim que surgiu a Lei de Parcelamento do Solo Urbano, a 6.766, e o
anteprojeto da Lei de Desenvolvimento Urbano, que o Estadão publicou em 1976.
Os instrumentos e conceitos do anteprojeto foram reproduzidos por Roberto Bassul
no projeto de lei do Estatuto da Cidade.
A articulação da SE/CNPU com as RMs era de apoio político, técnico e
financeiro. No início foi frágil e só melhorou depois que, no final de 1974, nos
demos conta de que a política urbana não ia chegar a lugar nenhum se não tivesse
um instrumento financeiro. Foi por isso que lutamos para ficar com parte do Fundo
Nacional de Desenvolvimento Urbano (FNDU), que o Ministério dos Transportes
estava criando para a Empresa Brasileira de Transportes Urbanos (EBTU), e no
qual, graças ao apoio recebido, a CNPU ficou com a subconta outros programas
(OP/FNDU), que correspondia a 25% do total do FNDU. Um dinheiro que foi
fundamental para o “fazejamento” da política urbana.
A aplicação dos recursos obedecia a uma estratégia colaborativa com estados
e municípios, porque não tínhamos dinheiro suficiente para ter projetos próprios.
Dessa forma, descobrimos que a melhor estratégia para um órgão coordenador de
políticas é ajudar seus parceiros em momentos difíceis, como apoiar a conclusão
de obras no momento em que o dinheiro acabou.
Com o BNH, Maurício Schulman era o presidente, o primeiro almoço com
a diretoria foi estranho, mas logo passamos a trabalhar informalmente por telefone,
de forma colaborativa e produtiva. Esta preferência pelo informal se devia à tese de
doutorado, porque, quando estudei a gestão formal e a informal na RM de Porto
Alegre, descobri que Militão de Moraes Ricardo, que ocupava uma função menos
importante na prefeitura da capital, coordenava por telefone as instituições federais,
estaduais e municipais da RM e exercia seu poder informal com muita discrição.
Na CNPU, convidei Militão para ser meu vice, e o sistema que adotamos
consistia em evitar formalizações desnecessárias e promover encontros, convidar
para cafezinho ou almoço, conversar sobre temas. Era mais eficaz que o envio de
ofícios, porque o ofício cria uma situação mais rígida e limita a negociação.
Mais tarde, quando Militão assumiu a secretaria executiva do CNDU, ele teve
de ser mais burocrata que na CNPU, porque eles não contavam mais com o apoio
da Presidência da República, o titular do Minter queria ser presidente da República,
e a abertura política começava a influenciar os procedimentos da administração
federal. Faz pouco publiquei artigo sobre o sistema político e a gestão metropolitana
(1960/2020) na Revista Acervo (Francisconi, 2023), dedicada aos cinquenta anos
A estruturação da Política Nacional de Desenvolvimento Urbano e as regiões metropolitanas | 37

de criação das RMs. Neste, lembro o quanto a crise urbana dos anos 1970 e 1980
favoreceu o debate técnico e atraiu apoio internacional, como tudo mudou nas
décadas seguintes e que já está na hora de voltar a enfrentar o problema urbano e
o das RMs no Brasil.
Ipea: Como eram as relações da CNPU com as entidades metropolitanas
naquele momento?
Jorge Guilherme Francisconi: A CNPU surgiu em julho de 1974, e as entidades
metropolitanas já estavam bastante consolidadas em seus estados, com legislação
federal que definia o modelo de gestão, o perímetro de oito RMs e quais as funções
de natureza metropolitana. Todas elas dispunham de planos de uso do solo, a maioria
com o apoio do Serfhau e cadastros aerofotogramétricos financiados pelo BNH
para apoiar o planejamento e a gestão metropolitana e fortalecer a arrecadação do
Imposto Predial e Territorial Urbano (IPTU) pelos municípios, além de planos
setoriais para coleta de lixo, transporte público e outras atividades. As entidades
não atuavam em saneamento e habitação, mesmo quando apoiadas pelo BNH e
pela CNPU, porque poderosos grupos políticos e empresariais dominavam estas
atividades em cada estado. Já em transporte público e coleta de lixo, era possível
agir, mas surgiam imprevistos. No Rio de Janeiro, na primeira semana de operação
do sistema metropolitano de coleta de lixo aprovado por todos os municípios, o
prefeito proibiu a passagem de caminhões em Niterói, e tudo foi por água abaixo.
Na SE/CNPU, trabalhávamos para fortalecer as entidades metropolitanas
com os ministérios, os estados e as prefeituras. No Rio de Janeiro, depois da fusão
dos dois estados em 1974, trabalhou-se muito na consolidação da entidade carioca.
De forma informal ou não, havia um intercâmbio de experiências entre regiões e
no uso de consultores internacionais, como Ralph Gakenheimer, de Harvard,
e Jean-Claude Ziv, da Sorbonne. Mais tarde, com a criação da OP/FNDU, a
coordenação e o apoio passaram a ser mais eficazes, porque a CNPU dispunha de
recursos próprios e podia associar-se melhor a outras entidades, como o Grupo
Executivo para a Integração da Política de Transportes (Geipot), no transporte
público; e o BNH, em projetos específicos.
Além das nove RMs da legislação federal, havia conurbações que “de facto”
eram RMs, mas excluídas da norma federal. Nesse caso, a solução foi pedir ao
IBGE que criasse o conceito de aglomeração urbana e definisse o perímetro e as
características de cada uma. O estudo foi publicado na revista do IBGE,12 e o apoio
às metrópoles de menor porte foi dado pelo programa de apoio às aglomerações
urbanas. O objetivo dos programas criados pela CNPU – como os metropolitanos,
o Programa Nacional de Cidades de Porte Médio (CPM) e o Programa Nacional de

12. Revista Brasileira de Geografia.


38 | 50 anos de regiões metropolitanas no Brasil e a Política Nacional de Desenvolvimento Urbano

Centros Sociais Urbanos (CSU), hoje esquecido – era integrar o território urbano
nas políticas socioeconômicas segundo as práticas e o saber da época.
Para mim, o mais inovador e de maior sucesso foi o CSU. Emocionei-me
profundamente, em um bairro pobre de Araxá, quando entrei em um centro
social urbano funcionando integralmente, com mulheres aprendendo a costurar,
dentistas e médicos atendendo pessoas, jovens jogando futebol e basquete, crian-
ças em um parque, idosos conversando, sala de alimentação e sala de convivência
comunitária. Tudo em plena atividade. Os CSUs haviam sido concebidos para
enfrentar o inchamento (sic) urbano da época, mediante apoio aos migrantes
que chegavam sem nada nas cidades e não tinham a menor ideia do que era a
vida urbana. Foram mais de quatrocentas unidades construídas em todo o país,
e o impacto foi muito, muito bom. Depois, o programa foi extinto e nunca
chegou a ser devidamente avaliado.
Outro programa importante foi o de cidades de porte médio, previsto no
documento de 1973 e inspirado no villes moyennes de Michel Rochefort, na França,
e no Programa Cidades de Porte Médio, conduzido por Maria Adélia quando
subsecretária de planejamento em São Paulo, com Jorge Wilheim, secretário
de Estado, e Paulo Egydio Martins, governador.
Esse CPM foi criado por um grupo de trabalho coordenado por Marcos
Mendonça, integrado por técnicos de diferentes áreas do Ipea e apoiado por espe-
cialistas, em especial Michel Rochefort e Hélène Lamicq, que ficaram em Brasília
por algum tempo graças ao apoio da embaixada francesa.
Após meses de trabalho da equipe, durante seminário de avaliação da proposta
para o programa CPM, houve um fato bizarro que retrata o nível de liberdade que
dominava o Ipea. Depois da apresentação por Mendonça, surgiram elogios e todos
aplaudiram a proposta, exceto uma técnica, doutora em sociologia na França, negra
retinta, goiana, cabelo black power, que fumava um cachimbo e olhava tudo muito
quieta. Nazaré era minha “advogada do diabo” predileta, e perguntei:
“E aí, Nazaré, o que você achou disso aí?”
“Francisconi, isso aí vai dar uma merda que tu não tens ideia”.
Depois, ela elencou três ou quatro pontos e tinha toda razão. A proposta
foi corrigida e, dessa forma, surgiu o Programa Cidades de Porte Médio. Para
implantar o CPM, conseguimos algum dinheiro e, mais tarde, tivemos o apoio
do Banco Mundial. As cidades foram definidas pelo IBGE, mas em alguns estados
não havia o valor mínimo para que todas as cidades de porte médio recebessem
apoio. Isso aconteceu em Santa Catarina, estado sem metrópoles e excelente rede
de cidades de porte médio. Como havia cidade demais para o dinheiro disponível –
das sete ou oito, só havia dinheiro para cinco –, coube ao governador decidir, em
procedimento informal que nunca vazou porque criaria problemas políticos.
A estruturação da Política Nacional de Desenvolvimento Urbano e as regiões metropolitanas | 39

Na verdade, nós não conseguimos fazer muito do que pretendíamos, mas o que
fizemos foi o suficiente para ajudar alguns. No governo, o que acontece é mais ou
menos como naqueles gráficos em que a tendência de projeção é essa [explica com
a caneta inclinada no ar] e em que nunca chegamos ao desejado. Se conseguirmos
melhorar três graus, cinco graus do ângulo da tendência, já é um baita sucesso.
Tínhamos consciência de que cidades e metrópoles eram temas difíceis; os
governadores às vezes achavam que estávamos invadindo a área deles. Muitos
vinham a Brasília em busca do dinheiro, e não pelo valor do projeto. Políticos
da Câmara dos Deputados e do Senado acompanhavam governadores e prefeitos
e faziam pressão política. Eu recebi o senador José Sarney13 várias vezes, sempre
defendendo o povo do Maranhão, do Pará, e outros mais.
Trabalhávamos com este tipo de pressão, e houve fatos curiosos (agora estou
fazendo um pouco de fofoca, mas é o lado humano da coisa). Quando presidia a
EBTU, chegou um deputado federal importante, não vou citar nomes, dizendo
que ia bater em mim, me “encher de porrada” (sic) pelo que eu fizera em Goiás, que
eu prejudicara o eleitorado dele. Respondi que, se ele queria me bater, tudo bem,
mas antes devíamos ligar para o governador, porque quem definiu as cidades foi
o governo do estado, que nos encaminhou oficialmente a lista de cidades. Liguei
para o governador Irapuan, de Goiás, e o deputado resolveu o assunto com ele.
Além de mediar conflitos políticos, também era preciso ir a campo ver obras.
Houve um ano em que viajei 150 dias para ver o que acontecia nas cidades, para
conversar, para conhecer.
Acho que o sucesso de uma política pública não está só na concepção. Ou me-
lhor, está em concepção que corresponda ao que se quer, que defina como se fará e a
quem é que se quer atingir. É isso! Gostou do conceito? Acho que vou escrever um
texto sobre isso.
Ipea: Sobre as entidades, o professor Maurício Pina (diretor de planejamento
do Grande Recife Consórcio de Transporte), de Pernambuco, chama sempre atenção
para a mudança ocorrida após a Constituição Federal de 1988 (CF/1988), relativa
ao aporte de recursos para as entidades e os consórcios da época. Por exemplo, o
Grande Recife Consórcio de Transporte funcionava muito bem antes da CF/1988,
havia adesão dos municípios ao consórcio porque havia recurso. Então, quando
o senhor fala que aconteciam os apoios financeiros às RMs, da cota dos 25% que
eram do Ministério dos Transportes, gostaria de saber se existiam fluxos contínuos
para apoiar os consórcios e as entidades?

13. Então senador da República pela Aliança Renovadora Nacional; presidente, em 1985, pelo Movimento Demo-
crático Brasileiro.
40 | 50 anos de regiões metropolitanas no Brasil e a Política Nacional de Desenvolvimento Urbano

Jorge Guilherme Francisconi: Não. Não tínhamos dinheiro suficiente para


garantir um fluxo contínuo, mas ainda assim o recurso causava impacto ao apoiar
os primeiros passos de algo que deveria tornar-se autossuficiente ou quando, por
exemplo, faltavam R$ 100 mil para uma cidade concluir obra no centro. Para o
governo federal, era um valor de pouco significado, mas para aquela cidade tinha
grande importância. E, com isso, íamos ganhando a solidariedade e a confiança,
com uma integração que fortalecia as bases do sistema interfederativo.
Ainda respondendo à pergunta, alguns órgãos setoriais ofereciam conti-
nuidade. No BNH havia doze ou treze programas – saneamento, habitação,
habitação social, sistema de crédito para classe média alta, urbanização – que
permaneceram durante décadas. Em documento recente, listei estes programas
do BNH. Eles abrangiam inúmeros setores do desenvolvimento urbano e havia
até programa de financiamento para cidades construídas próximo às grandes
obras de infraestrutura, como a barragem de Itaipu.
Na área do transporte, também houve continuidade nos investimentos para obras
e pouco para gestão. Quando saí da EBTU, em 1982, o orçamento era de US$ 1,2
bilhão, destinados à construção de três trens de subúrbio e para a continuidade dos
programas. Isso depois de haver financiado corredores de transporte urbano de todas
as RMs, capitais e aglomerações. No Brasil inteiro, pavimentamos ruas e grande apoio
foi dado ao desenvolvimento tecnológico. Em parceria com a Companhia de Enge-
nharia de Tráfego (CET) paulista, foi concebido e construído o sistema de controle de
semáforos adotado no centro de São Paulo; com o Instituto de Pesquisas Tecnológicas
(IPT), foi construído o protótipo de ônibus elétrico que operou em Brasília. Usando
sempre tecnologia 100% nacional.
Na área social, pavimentar vias de ônibus em favelas foi um programa de grande
impacto, com o Banco Mundial não só financiando como também difundindo o
programa em âmbito mundial. Isso porque pavimentar vias onde os ônibus passa-
vam evitava atrasos e aumentos de tarifas por conta da pavimentação. Nas paradas
de ônibus, surgiam torneiras e latas com água, para que as pessoas limpassem os
sapatos antes de entrar no ônibus que levava ao trabalho. E não é só quem mora em
favelas que enfrenta este problema, porque, no Plano Piloto, em Brasília, já vi pessoas
saírem do trabalho e trocarem de sapato para começar a caminhar no pó e no barro.
Para atender à infraestrutura urbana, o transporte público foi o último a ser
atendido; e só em 1975 surgiu a EBTU, dez anos depois do BNH, para promover
um sistema interfederativo cujo sucesso dependia das instituições locais. Cada
setor urbano tinha seu sistema financeiro, e creio que é disso que Maurício Pina
está falando, com sistemas concebidos para serem autossustentáveis. Quanto ao
plano metropolitano de transportes de Recife, ele foi muito bem concebido e bem
implantado, enfrentou problemas de gestão e operação e permanece vivo, ainda
A estruturação da Política Nacional de Desenvolvimento Urbano e as regiões metropolitanas | 41

que com problemas. A gestão da RM de Recife pela Fundação de Desenvolvimento


da Região Metropolitana do Recife (Fidem)14 foi bem concebida e bem executada,
e algo ainda permanece, apesar de todas as tentativas feitas para acabar com ela.
Ipea: Essa é uma grande questão para as entidades metropolitanas. Acontece a
passagem para o sistema democrático, que, em alguns casos, acaba sendo abrupta
para as entidades, e você falou muitas vezes sobre “fonte de recurso”, “apoio finan-
ceiro”. Isso é algo que acaba e desestrutura as entidades. Até hoje, o apoio financeiro
é uma questão que as entidades levantam e apontam como um problema.
Jorge Guilherme Francisconi: Tem toda razão, mas por quê? O primeiro des-
monte não foi financeiro, foi político; e afetou o aspecto interfederativo, porque
a capacidade operacional da RM se devia ao fato de os prefeitos da capital e de
municípios estratégicos serem escolhidos pelo governador. Em Salvador, com seus
polos industriais, muitos prefeitos eram nomeados pelo governador porque as
cidades eram estratégicas para o desenvolvimento estadual e nacional. Isso criava
uma interligação administrativa que facilitava muito.
A RM começou a perder força quando os prefeitos das capitais passaram a
ser eleitos. Depois, a crise econômica diminuiu a capacidade financeira da União,
e, a partir da redemocratização, elas foram entregues aos estados e abandonadas
pela União. A democracia adotada fortaleceu o município e a gestão participativa a
partir do direito à cidade. Esta é a utopia que orienta o Movimento Nacional pela
Reforma Urbana, que é hegemônico faz quarenta anos, e foi a linha de pensamento
adotada pelo Ministério das Cidades em 2003, que era radicalmente contrário à
RM. Lembrando que em Recife, quando um diretor da entidade metropolitana
disse “aqui tem problema metropolitano”, Raquel Rolnik retrucou: “não existe
problema metropolitano, só existem municípios”. Procedimentos como esse aca-
baram com as atividades, lideranças e entidades metropolitanas.
Além disso, os conceitos de RMs, aglomerados urbanos e microrregiões,
que foram incluídos na CF/1988 porque haviam sido utilizados por mais de
vinte anos, foram abandonados por Ipea e IBGE no estudo sobre rede urbana
de 2001 (Ipea, IBGE e Unicamp, 2001), quando eles criam tipologias como
“aglomeração urbana”, englobando metrópoles e cidades. Este procedimento
acelerou o fim de políticas públicas para territórios urbanizados porque Ipea e
IBGE ignoraram a base conceitual, técnica, estatística e territorial exigida por
RMs, aglomerados e microrregiões e porque adotaram tipologias urbanas sem
sustentação jurídica.

14. Criada pela Lei Estadual no 6.890, de 3 de junho de 1975, hoje Fundação de Desenvolvimento Municipal, criada
em 6 de janeiro de 1994.
42 | 50 anos de regiões metropolitanas no Brasil e a Política Nacional de Desenvolvimento Urbano

A atitude de Ipea e IBGE acelerou o desmonte técnico e político-adminis-


trativo da gestão metropolitana e, como menciono no artigo da Revista Acervo
(Francisconi, 2023), também atendeu ao objetivo de fortalecer municípios e ao
poder das comunidades com as prefeituras nos municípios. Este tema foi avaliado
pelo Montandon [Daniel] no livro sobre planos diretores pós-Estatuto da Cidade
(Santos Junior e Montandon, 2011). Ele considera que preceitos e expectativas
geradas pelo estatuto não foram cumpridos por causa das forças conservadoras e
burocráticas dos gestores municipais, e isso corresponde à utopia do direito à cidade
de Henri Lefebvre e à utopia de que as comunidades terão capacidade para isso.
Creio que esse é hoje um dos grandes gargalos da gestão urbana e que precisamos,
com urgência, aprovar normas sobre procedimentos para cada escala urbana,
bairro, cidade, metrópole, como fazem os países ibéricos e outros na Europa.
No Rio Grande do Sul, o Plano Diretor de Desenvolvimento Urbano (PDDU)
de Porto Alegre, de 1979, exigia a opinião das comunidades de bairros sobre
serviços e atividades que estavam indicados na própria lei, com associações de bairro
avaliando os grandes empreendimentos. Isso foi antes do orçamento participativo.
Na CF/1988, há outro dado interessante que lembro porque passei meses
trabalhando nisso (por isso estou sendo tão rápido [risos]). Na política de saúde, foi
mantido o sistema de vacinação e a saúde pública, ampliada para o Sistema Único
de Saúde (SUS). Na educação, grande parte dos parâmetros da área educacional
foram mantidos e melhorados. Na área do desenvolvimento urbano, passaram o
apagador de giz no que havia e negaram as metrópoles.
Daí atribuir aos estados a criação e gestão das RMs. E quantas RMs existem
hoje no Brasil legalmente instituídas? 83! O que elas fazem? Já viram no mapa? A
do Amapá – RM de Macapá – é a maior delas em área, e há algumas com 30 mil
habitantes. Em Santa Catarina não sobra nada – não há metro quadrado que não
pertença a alguma RM.
Quando houve a discussão sobre o Estatuto da Metrópole, a Câmara dos
Deputados disse que o modelo ideal era o de Santa Catarina, isso está nos anais
dessa reunião. O ideal metropolitano, do ponto de vista dos deputados, era de
estados completamente cobertos por RMs! Perdeu-se completamente o conceito!
Quando o Estatuto da Metrópole foi aprovado, o número de RMs cresceu,
porque os estados estavam esperando que o governo federal “colocasse um dinhei-
rinho para nós”. Estavam trabalhando com uma visão pragmática (não chamo de
oportunista porque, se há uma oportunidade, corre-se atrás, então não é oportu-
nismo, é um “pragmatismo da oportunidade”), e, sem políticas pragmáticas, não
iremos avançar. Mas o que fazer com as oitenta RMs? A RM morreu, e é preciso
recomeçar tudo de novo.
A estruturação da Política Nacional de Desenvolvimento Urbano e as regiões metropolitanas | 43

Mas, agora, se vocês quiserem discutir o futuro, há um tema muito oportuno


e da melhor qualidade sobre o que fazer a partir de amanhã com a RM.
Ipea: Acho que não deveríamos mais voltar ao passado. Suas considerações e
análises aqui já atendem ao que gostaríamos de saber sobre aquele momento mais
inicial da década de 1970. Podemos falar sobre o futuro, sim – em uma outra ocasião.

REFERÊNCIAS
BERNARDES, L. Política urbana: uma análise da experiência brasileira. Análise
e Conjuntura, Belo Horizonte, v. 1, n. 1, p. 83-119, jan.-abr. 1986.
BOMFIM, P. R. de A. Michel Rochefort e o Instituto Brasileiro de Geografia e
Estatística na década de 1960. Sociedade & Natureza, Uberlândia, v. 27, n. 3,
p. 365-378, set.-dez. 2015. Disponível em: https://www.scielo.br/j/sn/a/hFnygM
NCGhgZXZnbM3zMfcG/?lang=pt.
BRASIL. Ministério do Interior. Anais do seminário de desenvolvimento urbano
e local. Brasília: Serfhau/Minter, 1971.
ESTADO DE SÃO PAULO. Secretaria de Estado dos Negócios Metropolitanos.
O desafio metropolitano. São Paulo: Imesp, 1976.
FRANCISCONI, J. G. Ciclos políticos e gestão metropolitana no Brasil (1960-2020).
Acervo, v. 36, n. 1, p. 1-22, 2023. Disponível em: https://revista.an.gov.br/index.
php/revistaacervo/article/view/1873. Acesso em: 2 jun. 2023.
FRANCISCONI, J. G.; CORDEIRO, S. H. Além de Rio e Sampa: Corumbá,
Irecê e Parintins – evolução e desafios do planejamento urbano no Brasil. Rio de
Janeiro: Topbooks, 2021.
FRANCISCONI, J. G.; SOUZA, M. A. A. Política Nacional de Desenvolvimento
Urbano: estudos e proposições alternativas. Brasília: Ipea; Iplan, 1976.
IPEA – INSTITUTO DE PESQUISA ECONÔMICA APLICADA; IBGE –
INSTITUTO BRASILEIRO DE GEOGRAFIA E ESTATÍSTICA; UNI-
CAMP – UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS. Caracterização
e tendências da rede urbana do Brasil: configurações atuais e tendências da
rede urbana. Brasília: Ipea; IBGE; Unicamp, 2001. v. 1. 396 p.
LOUREIRO, M. R.; BASTOS, E. R.; REGO, J. M. R. Conversas com sociólo-
gos brasileiros: retórica e teoria na história do pensamento sociológico do Brasil.
Rio de Janeiro: FGV; EAESP; GV, 2008. (Relatório de Pesquisa, n. 11).
SANTOS JUNIOR, O. A.; MONTANDON, D. T. (Org.). Os planos diretores
municipais pós-Estatuto da Cidade: balanço crítico e perspectivas. Rio de Janeiro:
Observatório das Metrópoles, 2011.
CAPÍTULO 3

PASSADO E FUTURO DAS REGIÕES METROPOLITANAS BRASILEIRAS:


A GÊNESE DA QUESTÃO METROPOLITANA, AS REDEFINIÇÕES
NO PERÍODO DEMOCRÁTICO E OS DESAFIOS ATUAIS PARA O
PLANEJAMENTO URBANO-METROPOLITANO
Bárbara Oliveira Marguti
Cleandro Krause

1 INTRODUÇÃO
A questão metropolitana apenas teria começado a receber atenção do poder central
no final da década de 1960, e isso porque as grandes cidades poderiam vir a ser locus
de instabilidade social. Essa é uma avaliação feita por Bernardes (1986) ao refletir
sobre o período do regime militar. Mas já havia antecedentes importantes para que
o planejamento e a gestão metropolitanos fossem postos em prática, antes mesmo
da criação, por lei federal, das primeiras regiões metropolitanas (RMs), em 1973.
Em 1963, o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) criou o
Departamento de Estudos Metropolitanos. O órgão do governo federal para
o planejamento urbano, o Serviço Federal de Habitação e Urbanismo (Serfhau), já
vinha, desde 1966, financiando trabalhos de aerofotogrametria nas áreas metropoli-
tanas. No mesmo ano, foram criados setores de desenvolvimento urbano dentro do
Ministério do Planejamento e do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea).
E em 1967, com a criação do Ministério do Interior (Minter), esse passou a ter
um setor dedicado exclusivamente a assuntos municipais (Ipea, 2010). A previsão
legal para a criação de RMs surgiu na Constituição Federal de 1967 (CF/1967).
Por sua vez, estados e municípios começavam a enfrentar o tema da conur-
bação e procediam às primeiras delimitações do fenômeno da metropolização.
Por exemplo, em abordagem “intuitiva” da Prefeitura Municipal de Porto Alegre
realizada em 1967, seriam doze os municípios metropolitanos, eventualmente
com diferenças para outras delimitações iniciais. No ano seguinte, o IBGE listou
dezesseis municípios, enquanto o governo estadual, utilizando critérios de fluxos de
transporte, funções urbanas e continuidade de área urbanizada, listou os mesmos
doze municípios da primeira delimitação (Martins, 1992). Ao mesmo tempo, os
entes subnacionais criavam entidades metropolitanas, podendo-se citar iniciativas
pioneiras, como a criação do Grupo Executivo da Grande São Paulo (Gegran),
46 | 50 anos de regiões metropolitanas no Brasil e a Política Nacional de Desenvolvimento Urbano

em 1967, e da Companhia de Desenvolvimento da Área Metropolitana de Belém


(Codem), em 1970, por exemplo.
Esse conjunto de iniciativas dos três níveis federativos revela uma tomada de cons-
ciência do fenômeno e mostra que se estava, portanto, em plena institucionalização
metropolitana no país. Em perspectiva, aquele momento contrasta fortemente com a
chamada metropolização institucional, que se aprofundou com as alterações trazidas
pela Constituição Federal de 1988 (CF/1988), produzindo-se um “descolamento
entre o reconhecimento de uma metrópole – ou seja, a identificação e a caracterização
do processo de metropolização – e a instituição de uma RM” (Ipea, 2010, p. 645).
A inversão institucionalização metropolitana-metropolização institucional trouxe,
como sintoma desse descolamento, a multiplicação do número de RMs, não
acompanhada pela efetivação da sua gestão.
Assim, a periodização coberta neste capítulo compreende dois momentos
da governança metropolitana, em diálogo com as etapas do regime de desen-
volvimento no país (Klink, 2013, p. 91): o primeiro, em uma etapa tecnoburo-
crática centralista, em vigor durante o regime militar; o segundo, de uma etapa
neolocalista competitiva, no período de redemocratização até aproximadamente
a virada do século. A seguir, suceder-se-ia uma terceira etapa, rotulada pelo autor
de embrionário social-desenvolvimentismo. A ênfase deste capítulo no primeiro e
no princípio do segundo período buscará evidenciar os quadros existentes antes
e depois da redemocratização pela qual passou o país na segunda metade da década
de 1980. Em outras palavras, assume-se que o processo de redemocratização foi
crucial para a reconfiguração da governança metropolitana e que o novo pacto
federativo, trazido pela CF/1988, impôs desafios que, em grande medida, ainda
necessitam ser enfrentados na atualidade.
Em síntese, o capítulo buscará responder: do ponto de vista da viabilização de
políticas na escala metropolitana, como estavam organizadas a gestão e a governança
das RMs antes da CF/1988? Quais desafios se impuseram com o novo pacto fede-
rativo da CF/1988? E o que enfrentam e almejam as RMs de hoje para o futuro?
Nesse sentido, o capítulo se estrutura da forma a seguir: a segunda seção
explorará o substrato do planejamento econômico que embasou a criação das
primeiras RMs. Isso inclui o advento de uma política nacional de desenvolvimen-
to urbano, que apresentou uma primeira proposta de diferenciação espacial dos
recortes metropolitanos no âmbito do 2o Plano Nacional de Desenvolvimento
(PND). A terceira seção examinará a atuação sobre as RMs a partir da perspec-
tiva do governo federal e dos instrumentos de governança por ele criados, suas
potencialidades e, também, seus conflitos. Já a quarta seção deslocará o olhar para
as entidades metropolitanas constituídas nas nove primeiras RMs, evidenciando
sua inovação e sua robustez institucionais, que resistiriam, com diferentes graus
de sucesso, à passagem do tempo e à reconfiguração do pacto federativo. A quinta
Passado e futuro das regiões metropolitanas brasileiras | 47

seção detalhará os efeitos da redemocratização sobre a governança metropolitana.


E a sexta e última seção trará questões atuais e possíveis ações futuras sobre o tema
das RMs brasileiras, constituindo-se nos apontamentos finais desta contribuição.
Cabe aqui a informação de que o tema deste capítulo inspirou seus autores a
convidar o professor Jorge Guilherme Francisconi para o rol de entrevistados deste
livro.1 Ao final, deu-se o contrário, a entrevista inspirou boa parte do capítulo e
trouxe fundamental memória da gênese e dos primeiros enfrentamentos sobre o
fenômeno metropolitano no país.

2 PLANOS ECONÔMICOS DO REGIME MILITAR, INTEGRAÇÃO NACIONAL E RMs


As bases para a construção de uma política urbana foram lançadas durante o governo
de João Goulart. Em 1963, no Seminário de Habitação e Reforma Urbana, o cha-
mado “Seminário de Quitandinha”, enfatizou-se a necessidade de uma intervenção
governamental no campo do urbano (Bernardes, 1986, p. 87). Além de uma política
habitacional mais evidente e detalhada, foi também proposta no seminário a elabo-
ração de um plano nacional territorial (PNT), que ficaria sob a responsabilidade
de um “órgão central” da política habitacional e territorial. Nele seriam fixadas “as
diretrizes gerais do Planejamento Territorial e distribuição demográfica, a interligação
de diversos planos regionais, sua vinculação aos planejamentos de caráter econômico e
aos grandes empreendimentos de interesse nacional” (Serran, 1976, p. 64, grifo nosso).
Ainda que tal plano tivesse sido proposto no período anterior ao golpe militar,
seria no pós-1964 que se multiplicariam as iniciativas de planejamento de grande
porte. E, como já sugerido na proposta do PNT, ficaria evidente que a questão
urbana não era uma questão “em si”, mas se manifestava de forma atrelada ao
planejamento econômico. Contudo, uma questão metropolitana não teria uma
resposta tão imediata por parte do planejamento governamental.
A despeito de as áreas metropolitanas terem aparecido pela primeira vez na
legislação brasileira com a CF/1967, que previu a possibilidade de seu estabeleci-
mento pela União, a primeira lei complementar (LC) sobre o tema tardaria seis
anos. De modo análogo, embora o Plano de Ação Econômica do Governo (Paeg),
de 1964, trouxesse uma intenção de “aliviar desequilíbrios regionais e setoriais”
(Bomfim, 2007, p. 72), seria preciso aguardar os planos da década de 1970 para
que houvesse menção explícita às RMs. Isso ocorreria a partir dos PNDs.
O 1o PND foi instituído para o período 1972-1974. Em “tom bastante oti-
mista (...) alardeava o êxito logrado pelo governo da ‘revolução’ em ter reconstruído
a economia nacional” (Bomfim, 2007, p. 74). Entre os meios de realização dos ob-
jetivos do plano estaria a “articulação política e econômica entre governo e setores
privados e entre estados e União como pano de fundo para a integração nacional”

1. A entrevista na íntegra compõe o capítulo 2 desta publicação.


48 | 50 anos de regiões metropolitanas no Brasil e a Política Nacional de Desenvolvimento Urbano

(op. cit., p. 75-76), a ser obtida por meio da criação das RMs e da implantação de
polos regionais. Mas já havia diferenças no modo como seria buscada essa ênfase na
integração nacional: no Nordeste, na Amazônia e no Planalto Central, ela se daria
pelo incremento de transportes, pela colonização e pelo desenvolvimento agrícola
(Bomfim, 2007), ao passo que a proposição de RMs se limitava ao Centro-Sul
e abarcava apenas a Grande Rio e a Grande São Paulo (Bernardes, 1986, p. 95).
Trata-se de um momento em que, pode-se dizer, a política regional e a política
urbana seriam como duas faces da mesma moeda, ainda que com formas de ação
e territórios de aplicação distintos. Não havia, naquele momento, um modelo de
política urbana dirigido à integração nacional, apenas o reconhecimento da “ne-
cessidade de se promover a coordenação das atividades do governo central visando
ao ordenamento territorial e à maior eficiência dos sistemas urbanos, para maior
equilíbrio da estrutura espacial do País” (Bernardes, 1986, p. 96). Tal “coordenação
das atividades do governo central” será um tema a ser retomado adiante.
O 2o PND, por sua vez, “seria a mais ampla proposta de planejamento da
época”, em “resposta” à crise provocada pelo choque dos preços do petróleo e ao
consequente desequilíbrio na balança de pagamentos (Bomfim, 2007, p. 80).
Projetado para o período 1975-1979, o plano voltava-se para a modernização e
a competitividade da economia do Centro-Sul, enquanto a ideia de integração
nacional, em sentido estrito, destacava a “ocupação produtiva da Amazônia e
do Centro-Oeste” (op. cit., p. 82), mediante a exploração de recursos florestais,
agropecuários e minerais.
Diferentemente do plano anterior, houve no 2o PND a proposição explíci-
ta de um modelo de política urbana. Afinal, estando vigente a LC no 14/1973,
que instituiu as primeiras oito RMs, “a necessidade de uma política urbana mais
abrangente” teria ficado “evidente para os níveis de decisão superiores” (Bernar-
des, 1986, p. 98). O que teria determinado o reconhecimento dessa necessidade?
Não apenas o êxodo rural, mas, também, “a constatação da tendência à crescente
concentração de renda e a verificação de que, mesmo naquelas áreas nas quais se
pretendia ‘consolidar o desenvolvimento’, ‘bolsões de pobreza absoluta’ estavam
sendo gerados e/ou ampliados” (idem, ibidem).
Ao contrário do “tratamento idêntico” dado às RMs pela LC no 14/1973,
o texto da Política Nacional de Desenvolvimento Urbano (PNDU), proposição
coordenada por Francisconi e Souza (1976) e incluído no 2o PND, trouxe um
modelo territorial mais complexo e diversificado para as RMs. Já de saída, os autores
dão “ênfase especial às regiões metropolitanas, tanto por serem locais dinâmicos do
processo desenvolvimentista brasileiro como por nelas se localizarem os principais
problemas urbanos” (Francisconi e Souza, 1976, p. 3).
Passado e futuro das regiões metropolitanas brasileiras | 49

Detalhando as “áreas urbanas de intervenção” da PNDU, foram propostos


tratamentos diferenciados (figura 1): as RMs de São Paulo e Rio de Janeiro seriam
áreas ou subsistemas “de contenção”,2 em que seria desestimulada a implantação
de certas atividades, pela restrição seja de uso do solo, seja de investimentos em
infraestrutura. As demais RMs, e também Brasília, Campinas e Santos (que ainda
não se configuravam como tais), seriam áreas “de disciplina e controle”, sugerindo
“precauções” que, “se não forem tomadas a curto prazo”, fariam com que essas áreas
apresentassem “problemas bastante semelhantes” aos das duas RMs anteriormente
citadas. Haveria ainda uma diferenciação interna das áreas de disciplina e controle,
destacando a inexistência de uma base econômica em contraste com o rápido ritmo de
crescimento nas RMs do Norte e Nordeste, ao passo que caberia às áreas do Centro-Sul
“manter suas funções de metrópole regional” (Francisconi e Souza, 1976, p. 67-69).

FIGURA 1
Estratégias nacionais de desenvolvimento urbano (1976)

Fonte: Francisconi e Souza (1976).


Obs.: Figura cujos leiaute e textos não puderam ser padronizados e revisados em virtude das condições técnicas dos originais
(nota do Editorial).

2. A própria Lysia Bernardes duvidava da eficácia dessa medida, especialmente no caso da RM do Rio de Janeiro: iria
o governo estadual abrir mão da instalação de indústrias na RM em prol de outros polos regionais? (Bernardes, 1986,
p. 101, nota 19).
50 | 50 anos de regiões metropolitanas no Brasil e a Política Nacional de Desenvolvimento Urbano

Finalmente, o 3o PND, para o período 1980-1985, foi “muito mais conciso e


lacônico que seus antecessores” (Bomfim, 2007, p. 86) e não teve quaisquer de suas
propostas implantadas. Bernardes (1986), revisitando o período, sequer menciona
a existência de um 3o PND. Para Francisconi e Cordeiro (2021, p. 190-191), o 3o
PND foi elaborado “com indicações bastante genéricas para as políticas regional
e urbana a fim de coincidir com a abertura política e a implantação de regime
democrático, o que deveria acontecer até meados de 1984”; sua política urbana
seria “desterritorializada”.
Percebe-se, contudo, “uma nítida preocupação com o inchaço das nove regiões
metropolitanas”, mas restrita ao impacto econômico do fenômeno demográfico
na “hipertrofia sobre o setor terciário” (Bomfim, 2007, p. 89), o que, segundo se
acreditava, poderia ser atenuado pelo desenvolvimento agropecuário. A preocupação
com a contenção de fluxos migratórios e o incentivo ao setor primário já seriam
“reveladores de um declínio, nunca suficientemente assumido, da indústria, tida
outrora como motor do desenvolvimento” (op. cit., p. 91).
Essa é apenas uma delimitação cronológica e documental inicial, sendo
necessário examinar com mais detalhe quais instrumentos de coordenação ou de
governança das RMs estariam disponíveis em cada momento e analisar se efetiva-
mente teriam sido utilizados, ou quais as limitações para tal.

3 INSTRUMENTOS DE GOVERNANÇA METROPOLITANA E SEUS PROBLEMAS


NO PERÍODO DO REGIME MILITAR
Inicialmente, é necessário ponderar que mesmo tendo a questão urbana/metro-
politana sido inserida na estratégia governamental na década de 1970, pautada
pela integração nacional, “isso não bastaria para que se efetivassem as medidas
decorrentes da política urbana proposta” – na avaliação de Lysia Bernardes, “em
consequência dos conflitos internos no aparelho estatal e do jogo de pressões de
toda ordem que sobre ele se exercem” (Bernardes, 1986, p. 88).
Iniciando pelos conflitos internos, destaca-se que o primeiro órgão a estar “sen-
sibilizado” quanto aos problemas urbanos foi o Serfhau, vinculado ao Minter, que
pautou sua atuação na qualificação de quadros técnicos para o planejamento urbano,
com ênfase nas escalas municipal e microrregional. Paralelamente, cresceu o interesse
do Ministério do Planejamento pela questão urbana, o que originou “verdadeira
disputa” entre os dois ministérios por um campo que “implicaria coordenação inter-
setorial e não poderia prescindir de recursos especiais, em particular para solução dos
problemas metropolitanos”. Contudo, estava ausente uma política de desenvolvimento
urbano por parte do Minter, que apenas concebia um Sistema Nacional de Desen-
volvimento Urbano e Local (SNDUL) – que integraria sistemas estaduais –, o que
“deixou espaço para a ação” do Ministério do Planejamento (Bernardes, 1986, p. 95).
Passado e futuro das regiões metropolitanas brasileiras | 51

Consequentemente, houve a inclusão de uma política urbana/metropolitana em


planos econômicos, como visto anteriormente, além do que o mesmo ministério viria
a empenhar-se em um sistema nacional de planejamento – sendo assim, coexistiriam
dois sistemas nacionais com ingerência em ações de desenvolvimento urbano.
Não bastasse isso, quanto ao “jogo de pressões” referido, trata-se de algo que
prejudicou a coordenação intersetorial da política urbana/metropolitana. É forçoso
lembrar que o problema habitacional, entre os merecedores de políticas setoriais,
era aquele reconhecido há mais tempo, e foi aquele que recebeu a maior atenção do
regime militar, com a criação do Banco Nacional da Habitação (BNH), vinculado ao
Serfhau, ambos instituídos em 1964. Contudo, o papel do BNH seria expandido, e,
além de diversificar sua atuação habitacional, atendendo a públicos de rendas mais
altas e aos interesses do capital imobiliário, incorporaria programas de saneamento
básico e transporte urbano, fazendo dele “um banco de desenvolvimento urbano,
mas sua condição de órgão financeiro gestor de programas setoriais sempre preva-
leceria no comando de suas ações” (Bernardes, 1986, p. 90).
Passando aos instrumentos de coordenação propriamente ditos, que foram
ou poderiam ser postos à disposição da política urbana/metropolitana, eles são
encontrados a partir da proposta de uma PNDU embutida no 2o PND. Antes de
apresentá-los propriamente, cabe examinar brevemente as “estratégias e diretrizes
para as regiões metropolitanas” propostas por Francisconi e Souza (1976). Primei-
ramente, dentro de uma “estratégia global” da política urbana, caberia dedicar às
RMs uma “primeira etapa de ações e iniciativas”, uma vez que essas áreas (ou sua
problemática) já estariam “um passo à frente” (op. cit., p. 197). A “primeira medida
sugerida” seria de que o governo federal assumisse “papel mais determinante nos
organismos metropolitanos, formal ou informalmente” (idem, ibidem, grifo nosso).
Essa ação mais incisiva do governo federal3 teria sido proposta após um exa-
me da situação dos organismos metropolitanos, ou entidades metropolitanas, ao
tempo da criação das primeiras RMs. No mesmo texto em que detalhou a PNDU,
Francisconi e Souza (1976) analisaram “recursos humanos e lideranças” políticas,
requisitos a serem preenchidos para a implantação de um “sistema metropolitano
de planejamento e execução de serviços” comuns (op. cit., p. 157). Dessa leitura,

3. Seguem-se as demais sugestões dos autores, nos excertos a seguir: i) “análise dos limites territoriais das áreas me-
tropolitanas de direito e de fato, com vistas a distinguir (...) regiões metropolitanas delimitadas com vistas à execução
dos serviços comuns de interesse metropolitano”; ii) estabelecimento de níveis hierárquicos de RMs; iii) “criação de
grupo jurídico ligado ao tema”; iv) “definição, análise e divulgação (...) das intenções” do governo federal quanto às
RMs, de modo a criar-se um “consenso nacional sobre o papel que cabe a cada nível de governo e a cada tipo de
serviço” urbano; v) “auxílio financeiro e técnico para elaboração de planos territoriais e implantação de um processo
de planejamento”; vi) dar condições aos organismos metropolitanos “para atuar consistente e objetivamente frente aos
problemas metropolitanos, visto não terem os Estados explorado suficientemente os potenciais da Lei Complementar
[14/1973]”; vii) “análise do problema da representação legislativa em órgãos metropolitanos”; e viii) “fortalecimento
dos poderes metropolitanos” para uma “política de uso do solo” compatível com “funções existentes” e “investimentos
realizados” (Francisconi e Souza, 1976, p. 198-199).
52 | 50 anos de regiões metropolitanas no Brasil e a Política Nacional de Desenvolvimento Urbano

constatou-se que as RMs com “melhor potencial para implantação do sistema me-
tropolitano são as metrópoles médias do Sul e Sudeste” – Porto Alegre, Curitiba e
Belo Horizonte –, sendo a situação no Norte e Nordeste “mais difícil, na medida
em que a ausência de capacidade técnica se agrava pela falta de lideranças políti-
cas interessadas, com exceção de Fortaleza” (op. cit., p. 160), onde “parece haver
condições reais para se agir em termos metropolitanos (op. cit., p. 159). Belém
se distinguiria, ainda, por “não haver consciência do fenômeno metropolitano”,
pois, “de fato, o fenômeno urbano não ultrapassa as fronteiras do município” da
capital (op. cit., p. 161).
Cabe apontar o modo como a criação da Comissão Nacional de Regiões
Metropolitanas e Política Urbana (CNPU) iria servir a esses propósitos do governo
federal, a partir de sua secretaria executiva (Francisconi e Souza, 1976, p. 198) –
devendo-se lembrar que Jorge Francisconi era, no momento em que a apresentação
do texto aqui citado foi escrita, em julho de 1975, seu titular.
Presidida inicialmente pela Secretaria Geral do Ministério do Planejamento e,
mais tarde, pela Secretaria de Planejamento da Presidência da República (Seplan/
PR), a CNPU foi, conforme Bernardes (1986, p. 102), “o grande instrumento que o
Plano [2o PND] indica, destacando suas finalidades e atribuições, algumas das quais,
aliás, conflitando frontalmente com os demais níveis de poder”. Contudo, a autora
duvida que a CNPU poderia definir as prioridades para o planejamento de cada
RM, uma vez que cabia aos governos estaduais sua implementação. Confirmava-se,
assim, o abandono da postura do Serfhau, que partiria do planejamento local e
chegaria a uma política estadual própria de cada Unidade da Federação (UF), subs-
tituída “pelo centralismo e o autoritarismo, para criar condições de implantação
para um modelo nacional de organização do território” – substituição incompleta,
é verdade, pois “os instrumentos propostos não tinham alcance para promover
uma reestruturação da organização do território” (idem, ibidem). Cabe examinar
o emprego de alguns desses instrumentos, a seguir.
A partir de 1974, caberia à CNPU apoiar a elaboração de planos, mecanismos
novos e projetos específicos para as nove RMs já criadas e aquelas em formação, para
o que “um sistema financeiro de cunho metropolitano seria criado”, devendo contar
com recursos federais (Bernardes, 1986, p. 105). Com efeito, foi instituído o Fundo
Nacional de Apoio ao Desenvolvimento Urbano (FNDU), pela Lei no 6.256/1975,
que recebeu recursos adicionais advindos da tributação de combustíveis, mas que
foram majoritariamente destinados a projetos de transporte urbano, restando 25% do
novo tributo para os programas e projetos da CNPU, destacando-se a elaboração de
planos integrados e a execução de projetos específicos.4 Mas os recursos, insuficientes

4. A Lei no 6.256/1975 criou duas subcontas: “Fundo de Desenvolvimento de Transportes Urbanos” e “Outros Programas
de Desenvolvimento Urbano”, sendo a última destinada à CNPU.
Passado e futuro das regiões metropolitanas brasileiras | 53

segundo Bernardes (1986, p. 106), teriam sido “liberados de forma atomizada” e os


“resultados alcançados seriam parcos”.
A opinião de Jorge Francisconi é distinta: em entrevista, relativiza essa ideia
de atomização dos recursos. O ex-secretário-executivo da CNPU declara que:
A aplicação dos recursos obedecia a uma estratégia colaborativa com estados e mu-
nicípios, porque não tínhamos dinheiro suficiente para ter projetos próprios. Dessa
forma, descobrimos que a melhor estratégia para um órgão coordenador de políticas
é ajudar seus parceiros em momentos difíceis, como apoiar a conclusão de obras no
momento em que o dinheiro acabou.5
Combinando as duas afirmações, de modo conclusivo, “não tínhamos dinheiro
suficiente para garantir um fluxo contínuo, mas ainda assim o recurso causava im-
pacto ao apoiar os primeiros passos de algo que deveria tornar-se autossuficiente”.6
Se o apoio financeiro às RMs, por parte da CNPU, tinha tais características, o
que se poderia esperar de seu papel nas entidades metropolitanas? Seria pautado pela
formalidade ou pela informalidade? A menção a essa dualidade no documento que
detalhou a PNDU, grifada acima, não é gratuita. Em entrevista, Francisconi revela:
Esta preferência pelo informal se devia à [minha] tese de doutorado, porque, quando
estudei a gestão formal e a informal na RM de Porto Alegre, descobri que Militão de
Moraes Ricardo, que ocupava uma função menos importante na prefeitura da capital,
coordenava por telefone as instituições federais, estaduais e municipais da RM e exercia
seu poder informal com muita discrição.
Na CNPU, convidei Militão para ser meu vice, e o sistema que adotamos consistia
em evitar formalizações desnecessárias e promover encontros, convidar para cafezinho
ou almoço, conversar sobre temas. Era mais eficaz que o envio de ofícios, porque o
ofício cria uma situação mais rígida e limita a negociação.7
Ainda, ao ser questionado sobre como eram as relações da CNPU com as
entidades metropolitanas naquele momento, Francisconi reitera que havia uma
relação informal de apoio às entidades, sendo possível dar algum apoio pequeno,
mas importante, com recursos do FNDU. A seguir, a entrevista passa a versar
sobre os programas que teriam sido implementados com esses recursos e, no que
se refere às RMs, especificamente o Programa Nacional de Centros Sociais Urba-
nos, “o mais inovador e de maior sucesso” segundo Francisconi, cujos resultados
o emocionaram e que, mais tarde, “foi extinto e nunca chegou a ser devidamente
avaliado”. Percebe-se ainda que a experiência de implementação local daquele
programa teve impacto na formação de redes, sugerindo um efeito secundário do

5. Ver capítulo 2.
6. Ver capítulo 2.
7. Ver capítulo 2.
54 | 50 anos de regiões metropolitanas no Brasil e a Política Nacional de Desenvolvimento Urbano

relacionamento da CNPU com as entidades metropolitanas, talvez, maior do que


a simples execução física dos centros sociais urbanos.
Também há destaque a ser dado à atuação da CNPU na regulamentação
do uso do solo. Ainda que fosse uma competência municipal, a definição, pelo
Decreto-Lei no 1.413/1975, de áreas críticas de poluição que abrangiam todas as
RMs “iria abrir caminho para o estabelecimento de normas legais de controle da
localização industrial” (Bernardes, 1986, p. 107). Novamente, cabe ouvir Jorge
Francisconi a respeito:
E o que era a (...) CNPU? Era composta por representantes de vários ministérios e
de quatro representantes da sociedade civil, (...) que decidiam sobre temas urbanos
com os secretários executivos e adjuntos dos ministérios focados na execução do II
PND. Quando o MIC [Ministério da Indústria e Comércio] apresentou projeto de
lei sobre poluição em distritos industriais, o texto foi para Sema [Secretaria Especial
do Meio Ambiente] e para a SE/CNPU [Secretaria Executiva da CNPU], que infor-
malmente avaliaram o texto e levaram seus pontos de vista à CNPU, a qual aprovou
uma diretriz ambiental e industrial para uso do território urbano.8
A fala denota que a CNPU ocupava um espaço privilegiado de proposições
no interior do governo federal, o que, no caso em apreço, teria contribuído para
o sucesso na definição da legislação de controle da poluição em RMs. Mas outras
iniciativas de regulamentação do uso do solo não prosperaram, tendo permanecido,
segundo Bernardes, uma “atitude de não decisão quanto ao controle do uso do
solo, cujas proposições poderiam representar ameaça ao direito de propriedade”
(Bernardes, 1986, p. 108).
Vale relatar o caso da tramitação da chamada Lei (Nacional) de Desenvolvi-
mento Urbano (LDU). A Secretaria Executiva da CNPU “participou de trabalhos
no Sudeste para a definição de novos instrumentos jurídicos, como o solo criado
e o direito de preempção, que, ao longo do tempo, foram acrescidos à minuta
inicial” da LDU (Francisconi e Cordeiro, 2021, p. 177).9 A minuta do projeto da
LDU foi aprovada pela CNPU em outubro de 1976, mas, a seguir, essa proposta
teve um “tortuoso destino” (op. cit., p. 183), com objetivos e conteúdo alternados
na própria CNPU e, posteriormente, no Conselho Nacional de Desenvolvimento
Urbano (CNDU), que viria a suceder a CNPU a partir de 1979. Nova aprovação
da proposta ocorreu no CNDU em 1983 e, enviada à Câmara dos Deputados, esta
tornou-se o Projeto de Lei (PL) no 775/1983. Conforme os autores, “permaneceu
em discussão na Câmara até ser arquivado porque, no Senado Federal, surgira o

8. Ver capítulo 2.
9. Bernardes (1986) refere-se à ausência, no anteprojeto da LDU, de qualquer referência ao “papel das entidades
metropolitanas no ordenamento do uso do solo, quando caberia criar condições, nessa lei geral, para o revigoramento
dessas entidades como instrumento da política urbana global do País” (op. cit., p. 115). A omissão ainda é “total
quanto às relações entre o órgão metropolitano e os municípios, apesar de elas serem um dos problemas cruciais da
implementação da política urbana preconizada em qualquer das regiões metropolitanas do País” (op. cit., p. 116).
Passado e futuro das regiões metropolitanas brasileiras | 55

PL no 181/1989, do qual resultaria o futuro Estatuto da Cidade, que incorporava


os instrumentos do PL 775/1983” (op. cit., p. 184).
Entretanto, outras propostas emanadas da CNPU foram bem-sucedidas,
como a de áreas especiais e locais de interesse turístico (Lei no 6.513/1977), a de
parcelamento do solo urbano (Lei no 6.766/1979) e as diretrizes básicas para o
zoneamento industrial em áreas críticas de poluição ambiental (Lei no 6.803/1980).
Mas nenhuma delas chegaria a propor restrições ao direito de propriedade como
o PL no 775/1983, o que obviamente iria contrariar os defensores do status quo.
A partir de 1979, a política urbana seria transferida para o âmbito do Minter,
ao qual se vincularia o CNDU, substituto da CNPU. Para Lysia Bernardes, o tra-
tamento da questão urbana pelo novo órgão “permaneceu em posição secundária,
a bem dizer marginal”, e não se conseguiu reverter o “agravamento (...) das desi-
gualdades inter e intrarregionais – retratadas inclusive no crescimento das regiões
metropolitanas” (Bernardes, 1986, p. 113).
Conforme Francisconi e Cordeiro (2021, p. 188), as mudanças trouxeram
uma “visão mais setorializada dos problemas”, o que resultou em “menor cre-
dibilidade do planejamento urbano” e, por sua vez, “dificultou a continuidade
da implementação da política urbana, uma vez que o CNDU não mais contava
com o poder presidencial e se via subordinado a um ministério, no mesmo nível
dos demais”. Conforme ainda revela Jorge Francisconi, houve burocratização do
CNDU porque, entre outros motivos, “a abertura política começava a influenciar
os procedimentos da administração federal”.10
Certamente, outras mudanças mais contundentes viriam com o retorno do
país à democracia. Antes de adentrar o novo período, cabe voltar um pouco atrás
para examinar como estavam as entidades metropolitanas.

4 O SURGIMENTO E O ESVAZIAMENTO DAS ENTIDADES METROPOLITANAS


Ainda na década de 1960, antes da institucionalização das primeiras RMs pelo
governo federal, o crescimento urbano acelerado, a intensificação da conurbação
e a consequente multiplicação dos problemas urbanos tornaram irremediável
a busca por soluções na escala metropolitana. Não por acaso, três movimentos
simultâneos ocorreram no biênio 1963-1964, ao que Francisconi dá o nome de
“triângulo virtuoso”.11

10. Ver capítulo 2.


11. Esse termo foi melhor esclarecido pelo entrevistado em um seminário subsequente à entrevista. O termo consta
em sua apresentação, realizada no Seminário 50 Anos das Regiões Metropolitanas, em 20 de junho de 2023, em
Brasília-DF, na sede do Ministério das Cidades – organizado pelo Fórum Nacional de Entidades Metropolitanas (FNEM).
56 | 50 anos de regiões metropolitanas no Brasil e a Política Nacional de Desenvolvimento Urbano

O primeiro deles foi a criação, em 1963, do Departamento de Estudos Metro-


politanos do IBGE, dirigido por Speridião Faissol, dando início aos levantamentos
das bases econômica e social das cidades com mais de 50 mil habitantes, além dos
estudos sobre a rede urbana e sobre a organização territorial brasileira para fins de
planejamento, liderada por Michel Rochefort. De acordo com Francisconi, “esse
é o tipo de conhecimento que permite formular políticas públicas”.12 O segundo
movimento foi o esforço realizado pela Serfhau, a partir de 1966, para a criação
do Sistema Nacional de Planejamento do Desenvolvimento Local Integrado, com
o objetivo de “preparar arcabouço que permitisse integrar, no próximo Plano
Nacional de Desenvolvimento (PND), o território-cidade-metrópole e a política
urbana nacional (PNDU) nos planos e programas nacionais de desenvolvimento”,
segundo Francisconi.13
Por fim, o terceiro movimento foi o realizado por estados e municípios
para estabelecer e delimitar suas RMs, antecipando o enfrentamento que viria
do governo central alguns anos depois. Sobre isso, Francisconi nos diz: “na época
do I PND, o governo federal não tinha instrumentos para atuar nos aspectos
regionais e urbanos das metrópoles, ainda que o Serfhau apoiasse o planejamento
metropolitano conduzido por governos estaduais. A gestão metropolitana surge
‘de baixo para cima’”.14
Por parte do governo federal, a política metropolitana viria apenas depois da
organização de “iniciativas orientadas para uma política urbana desenvolvimentista
e social”, conforme Francisconi.15
A ação das gestões locais, municipais ou estaduais para criar instâncias de
planejamento metropolitano será observada nesta seção, assim como a posterior
adequação16 diante da lei federal que criou as RMs. Aqui o olhar se volta para a
robustez do funcionamento dessas instâncias, em contraposição à delicada conexão
entre os entes federativos, em alguns casos, desfeita em pouco tempo.
Um percorrido pelas nove RMs criadas na década de 1970 evidencia a criação
de estruturas para gestão e governança metropolitanas anteriores à lei de 1973,
encabeçadas por governos estaduais e, em alguns casos, das capitais, evidenciando

12. Ver capítulo 2.


13. Ver capítulo 2.
14. Ver capítulo 2.
15. Ver capítulo 2.
16. Quando da institucionalização das primeiras RMs, a LC no 14/1973, em seu art. 2o, determinou a criação, em cada
RM, de um conselho deliberativo, presidido pelo governador do estado, e um conselho consultivo, ambos criados por
lei estadual. O primeiro deveria contar com cinco membros, nomeados pelo governador, enquanto o segundo deveria
contar com um representante de cada município integrante da RM, sob a direção do presidente do conselho deliberativo.
Como competências, o conselho deliberativo (art. 3o) deveria: i) promover a elaboração do plano de desenvolvimento
integrado da RM e a programação dos serviços comuns; e ii) coordenar a execução de programas e projetos de interesse
da RM, objetivando, sempre que possível, a unificação quanto aos serviços comuns.
Passado e futuro das regiões metropolitanas brasileiras | 57

o rebentamento da questão e a necessidade de criar estruturas para o planejamento


e a gestão dos espaços conurbados. Com a LC no 14/1973, a participação dos mu-
nicípios se demonstra compulsória, e não fruto de qualquer inovação institucional
ou coalizão de poderes. Afinal, a participação dos municípios estava, naquele
momento, mais condicionada às estratégias nacionais desenvolvimentistas do que
às necessidades dos municípios de gerir conjuntamente seus problemas comuns.
Foram os governos estaduais, em grande medida, aqueles que concentraram a
“tecnocracia responsável pela coleta de informações e elaboração dos planos diretores
metropolitanos compreensivos”, condição para receberem o repasse de recursos
financeiros da União (Klink, 2013, p. 92). Mas, como veremos, houve exceções.

4.1 Belém
Antes mesmo de lei federal criar a RM, a prefeitura de Belém criou, em 1970, a
Companhia de Desenvolvimento da Área Metropolitana de Belém (Codem).17
A partir da efetivação da estrutura estadual para o planejamento metropolitano,
em 1975, a Codem18 passou a oferecer importante apoio à Secretaria de Estado de
Planejamento e Coordenação Geral (Seplan), por meio de seus planos “compreen-
sivos” (Pinheiro e Costa, 2015), termo usual à época. Em 1975, o estado do Pará
criou o Sistema Estadual de Planejamento (SEP), anexado à Seplan, tendo como
competência a criação de políticas públicas de desenvolvimento local, municipal
e metropolitano, por meio de uma Coordenadoria de Desenvolvimento Urbano e
Metropolitano (Codeurb). Quando extinta a Codeurb, o planejamento metropo-
litano perdeu unicidade e seus diversos temas foram diluídos em distintos órgãos
e secretarias, de acordo com as decisões de cada governo eleito. Ainda que lei esta-
dual19 tenha atualizado a composição da RM, definido a criação de um conselho
metropolitano – integrado apenas por membros do poder público – e previsto a
criação de um fundo de desenvolvimento da RM, a governança metropolitana do
estado permaneceu esvaziada ao longo das décadas seguintes.

4.2 Curitiba
No Paraná, o governo do estado criou, em 1974,20 a Coordenação da Região
Metropolitana de Curitiba (Comec), tendo como competências a promoção do
planejamento integrado, de estudos, projetos, programas, pesquisas e atualização
de dados, em consonância com as diretrizes do planejamento regional; a proposição de

17. Interessante relembrar aqui a percepção de Francisconi e Souza (1976, p. 161) de, em Belém, “não haver a cons-
ciência do fenômeno metropolitano”, pois, “de fato, o fenômeno urbano não ultrapassa as fronteiras do município”
daquela capital.
18. A Codem continua existindo até os dias atuais, mas sua atuação não possui abrangência metropolitana, estando
restrita à administração do patrimônio fundiário do município de Belém.
19. LC Estadual (LCE) no 27/1995.
20. Lei Estadual no 6.517, de 2 de janeiro de 1974.
58 | 50 anos de regiões metropolitanas no Brasil e a Política Nacional de Desenvolvimento Urbano

legislação e medidas administrativas; a definição de diretrizes para os planos mu-


nicipais, em concordância com o planejamento metropolitano; e o fornecimento
de recursos técnicos e financeiro, entre outras atribuições. A mesma lei estadual
definiu a contratação do Instituto de Pesquisa e Planejamento Urbano de Curitiba
(Ippuc) para realizar as tarefas de assessoramento da Comec para o planejamento
regional e assentamento dos conselhos. Contudo, esse arranjo não se consolidou,
e essas atribuições foram internalizadas pela secretaria executiva dos conselhos,
contribuindo para a consolidação de um corpo próprio de técnicos planejadores de
políticas metropolitanas. Ainda que, no início da década de 1990, a personalidade
jurídica da Comec tenha sido modificada, sua institucionalidade não foi alterada,
permanecendo o órgão atrelado, administrativa e financeiramente, ao Poder Exe-
cutivo estadual. Apenas em 2023 a Comec deixa de existir, dando lugar à Agência
de Assuntos Metropolitanos do Estado do Paraná (Amep).21

4.3 Belo Horizonte


O ente gestor da RM de Belo Horizonte, criado em 1974 sob a forma de uma
autarquia estadual, era a Superintendência de Desenvolvimento da Região Metropo-
litana de Belo Horizonte (Plambel), surgida a partir do corpo técnico da Fundação
João Pinheiro (FJP), responsável pela elaboração do Plano Metropolitano de Belo
Horizonte. O Plambel foi extinto por lei estadual22 em 1996, e um novo modelo
de gestão metropolitana só foi implementado em 2004.

4.4 Rio de Janeiro


Em 1975, foram criados os conselhos deliberativo e consultivo e a Fundação para
o Desenvolvimento da Região Metropolitana do Rio de Janeiro (Fundrem),23 en-
tidade responsável por sua gestão, supervisionada pela Secretaria de Planejamento
e Coordenação Geral da Governadoria do Estado. Em 1983,24 com as alterações
na administração do Poder Executivo estadual, foi criada a Secretaria de Estado
para o Desenvolvimento da Região Metropolitana (Secdrem), com atribuições
sobrepostas às da Fundrem, “dando indícios de enfraquecimento dos conselhos e
da própria Fundação” (Santos e Costa, 2015, p. 16). Após mais um retalhamento,
em 1987,25 quando a Secdrem é transformada na Secretaria de Obras (Seobras),
a Fundrem foi extinta,26 e suas funções foram distribuídas entre vários órgãos da
administração estadual.

21. Lei Estadual no 21.353, de 1o de janeiro de 2023.


22. Lei no 12.153, de 21 de maio de 1996.
23. Decretos-Lei Estaduais nos 13 e 14, de 15 de março de 1975.
24. Lei Estadual no 689, de 29 de novembro de 1983.
25. Decreto Estadual no 9.850, de 15 de março de 1987.
26. Decreto Estadual no 13.110, de 27 de junho de 1989.
Passado e futuro das regiões metropolitanas brasileiras | 59

4.5 São Paulo


A RM da Grande São Paulo foi primeiramente criada pelo governo estadual, em
1967,27 junto com o Conselho Deliberativo da Grande São Paulo (Codegran)
e o Grupo Executivo da Grande São Paulo (Gegran).28 Em 1973, a RM de São
Paulo foi “recriada” pela legislação federal, e a estruturação de seu planejamento
teve início em 1975, com a criação do Sistema de Planejamento e Administração
Metropolitana (Spam).29 O Spam, vinculado à então recém-criada Secretaria de
Estado de Negócios Metropolitanos (SNM), era formado pelo Conselho Consultivo
(Consulti), pelo Codegran, pelo Fundo Metropolitano de Financiamento (Fumefi)
e pela Empresa Paulista de Planejamento Metropolitano (Emplasa), criada em
1975 (Motta e Costa, 2015, p. 27).
Caberia à Emplasa ser o órgão técnico e executivo da política metropolita-
na, e coordenar a elaboração dos planos e projetos naquela escala.30 Em 1977, a
Empresa Metropolitana de Transportes Urbanos de Recife (Emtu) foi incluída no
Spam. Ao longo da década de 1990, os órgãos que compunham o Spam foram
deslocados para a Secretaria de Transportes Metropolitanos (STM), criada em
1991, e “as atividades de planejamento e licenciamento ambiental no território
metropolitano foram transferidas da Emplasa para a Secretaria de Meio Ambiente”
(Motta e Costa, 2015, p. 27).31

4.6 Recife
A RM do Recife teve sua estrutura estabelecida em 1974,32 em lei que criou os
conselhos deliberativo e consultivo da RM, integrantes da estrutura da Secretaria de
Coordenação Geral do Estado de Pernambuco. As atribuições dos conselhos eram
compatíveis com o previsto na legislação federal, e o apoio técnico a eles se dava pela
Secretaria Executiva do Conselho de Desenvolvimento de Pernambuco (Condepe).
Em 1974 foi criada33 a Fundação de Desenvolvimento da Região Metropolitana do

27. Decreto Estadual no 47.863/1967.


28. Entidade de gestão da RM de São Paulo, elaborou o Plano Metropolitano de Desenvolvimento Integrado da Grande
São Paulo (PMDI) I, no qual “foi feito o primeiro levantamento sistemático sobre a questão da urbanização do sítio
metropolitano, considerando-se as diferentes funções regionais”. Elaborou também o Programa de Consolidação e
Compatibilização Orçamentária, que consistia em “reuniões semestrais nas sub-regiões da RM, envolvendo órgãos do
estado e os municípios daquela área, visando articular as propostas orçamentárias entre os três níveis de governo (...),
procedimento extinto com a criação da Emplasa” (Motta e Costa, 2015, p. 31).
29. Decreto Estadual no 6.111/1975, que regulamentou a LCE no 94/1974.
30. A Emplasa elaborou a Lei de Proteção aos Mananciais (LPM), Lei Estadual no 898/1975; a Lei de Zoneamento
Industrial (LZI), Lei Estadual no 1.817/1978; e os planos de desenvolvimento para a região. Em 1982 foi feita a revisão
do antigo PMDI, de 1970, resultando no PMDI I; em 1994, foi elaborado o PMDI II (1994-2010). Em 2012, deu-se início
à elaboração do Plano de Ação da Macrometrópole (PAM) e do Plano Metropolitano de Desenvolvimento Habitacional –
PMDH (Motta e Costa, 2015).
31. O organograma original do Spam consta na figura A.2 do anexo A (Motta e Costa, 2015).
32. Lei no 6.708/1974.
33. Lei Estadual no 6.890/1974.
60 | 50 anos de regiões metropolitanas no Brasil e a Política Nacional de Desenvolvimento Urbano

Recife (Fidem), responsável pelo planejamento integrado metropolitano, coorde-


nação das intervenções e execução de obras de interesse metropolitano, efetivação
das articulações com a União e municípios metropolitanos.
No mesmo ano, foi criado34 o Fundo de Desenvolvimento da Região Me-
tropolitana do Recife (Funderm). Essa robusta estrutura foi, junto com a Emtu,35
criada em 1979, tendo sido responsável pela transformação do sistema de transporte
da RM, contando com apoio da União. O reconhecimento de sua importância
surgiu na entrevista com Jorge Francisconi, para quem “a gestão da RM do Recife
pela Fidem foi bem concebida e bem executada, e algo ainda permanece, apesar
de todas as tentativas feitas para acabar com ela”.36

4.7 Porto Alegre


Em 1970, por influência de uma análise feita pelo governo do Rio Grande do Sul,
que estabeleceu a área metropolitana de Porto Alegre como região-programa, foi
criado o Conselho Metropolitano de Municípios (CMM), que congregava quatorze
prefeitos e representantes dos governos estadual e federal. Na mesma época, foi criado
o Grupo Executivo da Região Metropolitana de Porto Alegre (Germ), órgão técnico
do CMM. Outra iniciativa pioneira foi a elaboração de um plano de desenvolvimento
metropolitano, entre 1971 e 1973, que não chegou a ser implementado na íntegra
(Martins, 1992). A seguir, assim como outras RMs, a de Porto Alegre instituiu em
1974 seus conselhos deliberativo e consultivo, em conformidade com a legislação
federal.37 No ano seguinte38 foi instituída a Fundação Estadual de Planejamento Me-
tropolitano e Regional (Metroplan) como órgão executor de ações de planejamento
metropolitano (Martins e Costa, 2015). Os conselhos existiram até o final de 2011,
e, tendo passado por diversas reformas na estrutura do Estado, essas instituições
começaram a perder seu potencial de articulação (Martins e Costa, 2015, p. 39).

4.8 Fortaleza
Em Fortaleza, o órgão estadual especializado e independente de planejamento,
deliberação e execução de políticas voltadas para as questões metropolitanas era,
entre 1973 e 1991, a Autarquia da Região Metropolitana de Fortaleza – Aumef39
(Dantas e Costa, 2015). A Aumef possuía conselhos deliberativo e consultivo,
tendo sido responsável pela elaboração de planos diretores nos municípios metro-
politanos, assim como o Plano Geral de Desenvolvimento Urbano Integrado, entre

34. Lei Estadual no 7.003, de 2 de dezembro de 1975.


35. Criada pela Lei Estadual no 7.832, de 6 de abril de 1979.
36. Ver capítulo 2.
37. Decreto Estadual no 23.070/1974.
38. Decreto Estadual no 23.856/1975.
39. Instituída pela Lei Estadual no 9.800, de dezembro de 1973, e extinta pela Lei no 11.831, de julho de 1991 (Dantas
e Costa, 2015).
Passado e futuro das regiões metropolitanas brasileiras | 61

outros,40 buscando a organização físico-territorial dos municípios e a constituição


do sistema de transporte da RM.

4.9 Salvador
Em Salvador, a “área” metropolitana foi delimitada ainda em 1970 pelo Estudo
Preliminar do Plano de Desenvolvimento Integrado da Região Metropolitana
de Salvador (PDUI-RMS), realizado pelo Conselho de Desenvolvimento do
Recôncavo (Conder), entidade existente desde 1967. Após a LC no 14/1973, o
estado se adequou ao modelo único determinado pelo governo federal e criou
seus conselhos.41 Naquele momento, o Conder assumiu o papel de órgão técnico,
executando o planejamento integrado de desenvolvimento econômico e social e
das funções públicas de interesse comum (FPICs).
A partir de 1974, o Conder passou a ter personalidade jurídica de direito pri-
vado, patrimônio próprio, com autonomia administrativa e financeira, vinculado à
Secretaria do Planejamento Ciência e Tecnologia.42 Acumulando ainda mais funções,
a partir de 1975 o Conder passou a atuar como “órgão executor de obras, coorde-
nador de projetos, além de fornecer assistência técnica aos municípios da RMS”,
além de “seu papel como agente financeiro, através do Fundo de Equipamentos da
Região Metropolitana de Salvador (FEREM), repassando recursos internacionais
de projetos do governo estadual, aos municípios pertencentes à RMS”.43
Como visto, ao menos quatro RMs, das nove criadas em 1973-1974, tiveram
suas instâncias para o planejamento criadas antes da promulgação da lei federal.
As demais rapidamente estabeleceram suas estruturas de governança, evidenciando
a força da articulação interfederativa existente no período. Uma vez expostas as
possibilidades para a governança metropolitana em cada uma das RMs criadas na
década de 1970, cabe agora examinar as transformações trazidas pela (ou com a)
redemocratização do país.

5 A REDEMOCRATIZAÇÃO E SEUS EFEITOS SOBRE A GOVERNANÇA


METROPOLITANA
Não restam dúvidas, diante da observação do surgimento e do funcionamento das
estruturas para a gestão metropolitana, de que a entrada na década de 1980 deu
início à desestruturação de alguns desses arranjos. Em muitos estados, a gestão

40. Plano Diretor de Assentamentos (1976), Plano Operativo da RM de Fortaleza (1977), Plano de Estruturação Metro-
politana – PEM (1988), Plano de Ação Imediata de Transportes e Tráfego – Paitt (1981), Plano de Transporte Coletivo –
Transcol (1982) e Plano Diretor de Transporte Urbano da RM de Fortaleza – PDTU (1983) (Dantas e Costa, 2015, p. 15).
41. Lei Estadual no 3.192, de junho de 1973.
42. Lei Delegada no 8, de julho de 1974.
43. Disponível em: https://www.conder.ba.gov.br/quem-somos. Acesso em: 5 jun. 2023.
62 | 50 anos de regiões metropolitanas no Brasil e a Política Nacional de Desenvolvimento Urbano

metropolitana se fragmentou em secretarias setoriais, deixando as RMs carentes


de uma entidade exclusiva de planejamento e deliberação.
Como mencionado anteriormente, em 1979 a CNPU foi substituída pelo CNDU,
presidido pelo Minter. O FNDU teve sua composição alterada pelo Decreto-Lei
no 1.754/1979, com a absorção de seus recursos pelo orçamento da União, resul-
tando em menos recursos disponíveis para o CNDU.44 Logo no início da década de
1980, as instâncias metropolitanas começaram a perder seu potencial de articulação
nos conselhos consultivo e deliberativo. Até então, as relações se davam de maneira
vertical, com as deliberações a cargo dos estados-membros, restando aos municípios
a função consultiva.
As transformações econômicas da década de 1980 levaram as entidades go-
vernamentais a reduzir drasticamente seus gastos. Ao mesmo tempo, o processo
de reabertura democrática deu força para demandas sociais que questionavam
frontalmente a estrutura de gestão praticada até ali. Um exemplo, entre muitos, foi
a impossibilidade de pôr em prática o Decreto-Lei no 85.916/1981, que buscava
integrar os planos e programas do governo federal com os PDIs metropolitanos.
Naquele momento, a capacidade coordenadora do CNDU já estava impactada
pela sua vinculação ao Minter e pelas modificações no FNDU. Em 1984 restavam
esgotadas as fontes de recursos do governo federal para repasse às RMs, a saber: o
Imposto Único sobre Lubrificantes e Combustíveis Líquidos e Gasosos (IUCLG)
e a Taxa Rodoviária Única (TRU), extinta naquele ano.45
O arranjo federativo que possibilitava a intervenção nas RMs rapidamente
se desgastou. Sobre isso, Francisconi explica:
O primeiro desmonte não foi financeiro, foi político; e afetou o aspecto interfe-
derativo, porque a capacidade operacional da RM se devia ao fato de o prefeito da
capital e de municípios estratégicos serem escolhidos pelo governador. (...) Isso criava
uma interligação administrativa que facilitava muito. A RM começou a perder força
quando os prefeitos das capitais passaram a ser eleitos. Depois, a crise econômica
diminuiu a capacidade financeira da União, e, a partir da redemocratização, elas
foram entregues aos estados e abandonadas pela União.46
Vale lembrar que o final do regime militar e a transição para a democracia
ocorreram sob uma difícil conjuntura, combinando elementos econômicos e po-
líticos. Na economia, havia crise da dívida externa, inflação descontrolada, déficits
crescentes do setor público e quedas no ritmo de investimento, tanto público
como privado. E na política o encerramento do ciclo de mobilização pela volta da

44. Disponível em: https://www.amep.pr.gov.br/Pagina/Historico-da-Comec. Acesso em: 5 jun. 2023.


45. Disponível em: https://www.amep.pr.gov.br/Pagina/Historico-da-Comec. Acesso em: 5 jun. 2023.
46. Ver capítulo 2.
Passado e futuro das regiões metropolitanas brasileiras | 63

democracia, a deterioração do governo Sarney e a perda de sua capacidade decisória


terminariam “debilitando as bases de sustentação do contraditório arco de forças
aglutinadas no grande partido que se desenvolveu ao longo da luta contra o regime
autoritário” (Faria, 1991, p. 100).
A redemocratização e o advento da CF/1988 não apenas dissolveram o arranjo
anterior, como não previram um novo ordenamento possível para as RMs. Houve
o esvaziamento da relação entre o governo federal e os estados, sem reparação.
Em outras palavras, o planejamento como instrumento indutor e controlador do
desenvolvimento econômico foi abandonado e absolutamente nada foi colocado
em substituição.
Além de dar aos estados a atribuição de criar RMs, aglomerações urbanas
e microrregiões (Brasil, 2018, art. 25, § 3o), a CF/1988 conferiu autonomia aos
municípios de autogovernar-se a respeito dos temas de interesse local (Brasil, 2018,
arts. 29 e 30). A ausência do metropolitano na CF/1988 é explicada por aquilo que
Machado (2009) irá chamar de “absolutismo da autonomia municipal”, defendida
pelo Movimento pela Reforma Urbana no processo constituinte. Francisconi acres-
centa ainda, além do municipalismo, a utopia da gestão participativa a partir do
direito à cidade: “esta é a utopia que orienta o Movimento Nacional pela Reforma
Urbana, que é hegemônico faz quarenta anos, e foi a linha de pensamento adotada
pelo Ministério das Cidades em 2003”.47
Na mesma direção, Luiz Cesar de Queiroz Ribeiro busca justificar a ausência
da dimensão metropolitana na CF/1988 da seguinte forma: a partir do contexto
em que o campo acadêmico se debruçava sobre experiências participativas de
âmbito intraurbano, e que o modelo top-down anterior significava autoritarismo
e centralização, a única forma de pensar o desenvolvimento urbano seria a partir
do local, negligenciando, absolutamente, o metropolitano como escala necessária
para o planejamento. Nas palavras de Ribeiro (2023):
Porque um dos temas desse projeto reformista era a questão democrática, elaborada
a partir de uma crítica à democracia formal, representativa em favor da ideia de uma
democracia de base, uma democracia participativa. Isso tinha uma conexão com
algumas experiências no Brasil que estavam acontecendo. Inclusive, o surgimento
dos protótipos do orçamento participativo. Isso criou uma espécie de ideologia
municipalista, uma crença municipalista como um veículo para efetivar esse ideário
democrático. A partir dessa ideia, vinda da experiência da ditadura, concluía-se que
o centralismo, naturalmente, leva a deformações e à impossibilidade que os interesses
populares tenham de fato uma incidência nas políticas públicas.48

47. Ver capítulo 2.


48. Ver capítulo 4.
64 | 50 anos de regiões metropolitanas no Brasil e a Política Nacional de Desenvolvimento Urbano

Ainda sobre a ausência do metropolitano na Constituição, o pesqui-


sador complementa:
Ninguém pensou a dimensão metropolitana, ninguém. Também havia uma crítica
feroz aos esquemas metropolitanos. Havia uma crítica que juntava as experiências
com a visão crítica ao autoritário, ao centralizador, à burocracia. Fazia parte desse
ideário democrático municipalista uma crítica ao planejamento tecnocrático, a partir
do tema da participação. As entidades metropolitanas mais ou menos representavam
essa experiência centralizada, autoritária, burocrática. Então, acho que ninguém
pensou na dimensão metropolitana por esses motivos.49
Por fim, a dimensão metropolitana também não foi considerada no que
diz respeito ao apoio econômico do governo federal. Como lembra Klink (2013,
p. 94), “o ajuste fiscal e estrutural do governo federal fez que os macrofinancia-
mentos setoriais para saneamento, transporte e habitação alocados para as regiões
metropolitanas cessassem”. A própria extinção do BNH foi um símbolo desse fim,
ao qual seguiu-se uma fase de vazio institucional da política urbana do governo
federal: “no debate sobre a governança, a região metropolitana ficou ‘órfã’ no pacto
federativo brasileiro” (idem, ibidem).
Assim transcorreram as décadas de 1990 e 2000. A lógica passou a ser a do
“cada um por si”. Alguns estados sustentaram sua estrutura metropolitana, como
São Paulo, ou mesmo certas heranças, como o poder de anuência prévia do par-
celamento do solo ainda existente na RM de Belo Horizonte, legado da extinta
Plambel. Alguns conjuntos de municípios experienciaram o consorciamento, e as
inovações foram acontecendo à medida que a orfandade do tema metropolitano
se aprofundava.
Antes e agora, a participação dos municípios parece ser um grande entrave,
contornado na década de 1970 pela compulsoriedade de seu envolvimento, imposta
pelo regime ditatorial, mas também pelo fato de os estados, com apoio da União,
serem capazes de avançar sozinhos nas causas metropolitanas. Sempre que capazes,
mas dessa vez sem o apoio da União, os estados encabeçaram o planejamento e a
gestão de suas RMs, no esforço de construir relações de cooperação com os mu-
nicípios em um cenário repleto de obstáculos, os quais serão tratados com mais
detalhes na próxima seção, posto que persistem nas últimas duas décadas.
Do ponto de vista normativo, têm destaque, nas décadas de 1990 e 2000, os
elementos descritos a seguir.
• A criação do FNEM, em novembro de 1995, resultado de uma reunião
realizada entre as entidades de sete RMs,50 além de representantes do

49. Ver capítulo 4.


50. Metroplan-RS, Emplasa-SP, Seplan-PA, Codem-PA, Plambel-MG, Sedurb-CE, Fidem-PE, Emtu/Recife-PE e Comec-PR.
Passado e futuro das regiões metropolitanas brasileiras | 65

então Ministério do Planejamento, Orçamento e Gestão e da Secretaria


de Assuntos Estratégicos da Presidência da República.51 O FNEM foi
registrado no Serviço de Registro Civil das Pessoas Jurídicas de Porto
Alegre, em 1996, como “associação civil sem fins lucrativos, representativa
das entidades e órgãos responsáveis pelo trato de assuntos metropolitanos
brasileiros”.
• A promulgação do Estatuto da Cidade,52 em 2001, reforçando a orien-
tação autônoma e descentralizada dos municípios estabelecida pela
CF/1988,53 quando
o planejamento e a gestão urbanos, bem como a resolução de grande parte dos con-
flitos fundiários, foi remetida para a esfera municipal. É no município, por meio da
lei do Plano Diretor ou legislação complementar, que serão definidos os conceitos
de propriedade não utilizada ou subutilizada e (...) [definidas] as propriedades a
serem submetidas a sanções de instrumentos previstos no Estatuto da Cidade. É
no município ainda que serão definidas as parcerias público-privadas, as operações
urbanas, a aplicação de um grande número de instrumentos jurídicos e fiscais entre
outras iniciativas. A autonomia municipal no tratamento do tema é, portanto, muito
grande na legislação brasileira (Maricato, 2010, p. 6-7).
• A Lei dos Consórcios Públicos,54 que veio regulamentar os consórcios
intermunicipais do país. Essa forma de cooperação interfederativa se
multiplicou a partir de 1990, sobretudo nos temas que apresentavam
estímulos verticais, tal como a regionalização dos serviços do Sistema
Único de Saúde (SUS), a partir da CF/1988. A referida lei consolidou
as iniciativas de organização horizontal, que ocorriam a partir da percep-
ção dos municípios de suas limitações em lidarem com problemas que
ultrapassam seus limites administrativos.
Ainda que existam experiências de consórcios que funcionaram/funcionam
e que suprem algumas das necessidades dos municípios, eles estão longe de con-
templar a RM como um todo e de encaminhar ações que demandam articulações
multigovernamentais, multissetoriais e multiescalares. O consorciamento, por um
lado, é uma das várias possibilidades de arranjos necessários para o planejamento
metropolitano; por outro lado, responde à lógica dos localismos e está fora de um
planejamento mais abrangente.

51. Entre eles, cabe mencionar a assinatura de Jorge Francisconi.


52. Lei Federal no 10.257/2001.
53. “Capítulo IV Dos Municípios. Art. 30. Compete aos Municípios: (...) VIII – promover, no que couber, adequado
ordenamento territorial, mediante planejamento e controle do uso, do parcelamento e da ocupação do solo urbano”
(Brasil, 2018, art. 30).
54. Lei Federal no 11.107/2005.
66 | 50 anos de regiões metropolitanas no Brasil e a Política Nacional de Desenvolvimento Urbano

A prática da cooperação interfederativa e do planejamento metropolitano


quase nunca é endógena; se não surge a partir de uma limitação do município em
lidar sozinho com problemas que ultrapassam sua jurisdição, acaba surgindo por
uma pressão externa, como pré-condição para acesso a recursos de financiamentos
internacionais. Isso levou alguns estados ao comprometimento formal com o pla-
nejamento metropolitano no período anterior à sanção do Estatuto da Metrópole.
Esse foi o caso, por exemplo, da RM do Rio de Janeiro, com os recursos ofertados
pelo Banco Mundial.
O caos urbano persistiu, os problemas derivados do crescimento demográfico
nas metrópoles e da conurbação dos municípios se aprofundaram. O esvaziamento
econômico do país, o endividamento dos estados e seu enfraquecimento para lidar
com as demandas deram lugar à prevalência da lógica econômica em detrimento da
lógica territorial. Como dito por Vicente Loureiro, “deixou-se de lado a missão do
planejamento, a perspectiva do planejamento para as ações integradoras do governo”
(Santos e Costa, 2015), resultando na fragmentação da gestão, na setorização dos
serviços de interesse comum, na pressão por obras pontuais e em ações imediatistas.

6 AS QUESTÕES ATUAIS E AS AÇÕES FUTURAS: APONTAMENTOS FINAIS


Considerando o período entre o final dos anos 2000 até os dias atuais, as RMs
experimentaram um período de abundância de recursos destinados pelo governo
federal, adentrando o período “embrionário social-desenvolvimentista”, tal como
periodizado por Klink (2013).
A partir de 2007, os fartos aportes para infraestrutura urbana, direcionados
aos centros urbanos mais dinâmicos, promoveram um boom na criação, pelos
estados, de RMs, fazendo surgir um profundo abismo entre as RMs meramente
formalizadas no papel versus as metrópoles “de fato”:
vultosos investimentos em infraestrutura urbana aportados pelo governo federal por
meio dos Programas de Aceleração do Crescimento (PAC) e Minha Casa Minha Vida
(PMCMV), a partir de 2007 e 2009, respectivamente, formaram o ambiente propício
para a propagação de RMs em todo o país. Os estados, usando de sua atribuição
constitucional e da ausência de diretrizes nacionais, passaram a instituir, com crité-
rios quase sempre desarrazoados, ou mesmo sem critérios, RMs em seus territórios
buscando criar, ao menos no papel, condições de acesso aos recursos federais que
promoviam, naquele momento, o aquecimento dos mercados da construção civil e
imobiliário (...). Nesse momento tem início a “explosão” da chamada metropolização
institucional, cujo pico aconteceu em 2012/2013, com a institucionalização de 22
regiões metropolitanas apenas nestes dois anos (Marguti et al., 2020, p. 10).
Passado e futuro das regiões metropolitanas brasileiras | 67

Em alguma medida, o Estatuto da Metrópole55 veio estabelecer, em 2015,


critérios para a criação de RMs, sobretudo para aquilo que chama de apoio da
União.56 Isso teve, pelo menos, duas consequências importantes. Em primeiro lu-
gar, houve a desaceleração da criação de novas RMs: entre 2016 e junho de 2023,
apenas quatro novas RMs foram criadas (RM do Leste do Maranhão-MA, RM
de Sobral-CE, RM do Parnaíba-PI e RM do Entorno do Distrito Federal-GO).
Em segundo lugar, foi essa a lei que, pela primeira vez desde a CF/1988, causou
verdadeira movimentação de estados e municípios em busca: i) da constituição ou
adequação de sua estrutura de gestão e governança metropolitanas; e ii) de caminhos
para a cooperação interfederativa e para a elaboração dos planos metropolitanos.
Ao menos dois dispositivos do Estatuto da Metrópole foram responsáveis
por esse impulso inicial dado às RMs: o risco da improbidade administrativa aos
gestores públicos e o alcance da gestão plena para fins de apoio da União. O art. 21
estipulava que “incorre em improbidade administrativa” o governador e prefeito
que deixassem de tomar as providências necessárias para a elaboração do PDUI
e para sua transformação em lei estadual num prazo de três anos. Esse artigo foi
revogado em 2018 pela Lei Federal no 13.683, entre outras modificações. Contudo,
a pressão que exerceu nos gestores públicos e a movimentação que promoveu em
direção ao estabelecimento de governanças metropolitanas (mais) interfederativas
e cooperativas já era um caminho sem volta. Sobre o alcance da gestão plena,
Marguti et al. (2021, p. 186) pontuam:
Apesar de significativas modificações ao texto inicial do EM [Estatuto da Metrópole], a
Lei Federal no 13.683/2018, manteve o Art. 14 sem nenhuma alteração, conservando
a exigência da gestão plena como condicionante obrigatório para que as RMs e as AUs
contem com o apoio da União. Entre outras medidas, a gestão plena será alcançada, de
acordo com o item III (sem alterações) do art. 2o, com i) formalização e delimitação
mediante lei complementar estadual; ii) estrutura de governança interfederativa própria,
nos termos do art. 8o desta lei; e iii) PDUI aprovado mediante lei estadual.
Assim, mesmo com a retirada do art. 21 do Estatuto da Metrópole, muitas
RMs seguiram na elaboração de seus planos e na organização de sua estrutura de
gestão e planejamento. A modificação do art. 14 manteve intactos os critérios
para o alcance da gestão plena, e este foi o norte suficiente para que as regiões
seguissem adiante.
A partir de 2016, o período embrionário social-desenvolvimentista, tal como
apresentado por Klink (2013), foi abruptamente abortado por forças conserva-
doras e antidemocráticas. As entidades metropolitanas, quando ainda existiam,

55. Lei Federal no 13.089, de 12 de janeiro de 2015.


56. “Art. 1o Esta Lei, denominada Estatuto da Metrópole, estabelece (...) critérios para o apoio da União a ações que
envolvam governança interfederativa no campo do desenvolvimento urbano” (Brasil, 2015).
68 | 50 anos de regiões metropolitanas no Brasil e a Política Nacional de Desenvolvimento Urbano

estavam, como vimos, mais desprestigiadas do que nunca. Tem destaque, em 2019,
a extinção da Emplasa pela Lei Estadual paulista no 17.056. O encerramento de
uma instituição robusta, com seus recursos humanos e técnicos – com quase cinco
décadas de acúmulo em pesquisa, acervo de dados e bases cartográficas –, denota
o lugar ocupado pelo planejamento metropolitano nos anos mais recentes. Nesse
ano, a Emplasa presidia o FNEM, que havia sido criado em 1995, e por força de
sua dissolução as atividades do fórum também foram encerradas.
Ainda em 2019, por iniciativa de gestores públicos das RMs de Belo Horizonte,
Recife e Curitiba, tiveram início ponderações a respeito da reativação do FNEM.
A atual presidenta do FNEM, Mila Corrêa Batista da Costa, uma das responsá-
veis por rearticular a rede de entidades metropolitanas, declarou que “sentia que
a experimentação da realidade metropolitana era um pouco solitária. Porque os
municípios são agremiados em várias instâncias (...), e as regiões metropolitanas,
por seu turno, ficaram sem espaço de troca e intercâmbio depois da desativação
do Fórum”.57,58
Dessa feita, a partir do esforço da equipe da Agência de Desenvolvimento da
RM de Belo Horizonte (ARMBH), o FNEM foi reativado em 15 de dezembro de
2021, tendo realizado reuniões ordinárias, a cada seis meses, e extraordinárias, além
do Seminário de 50 Anos das Regiões Metropolitanas, em 20 junho de 2023, em
Brasília. Ao todo, quatorze entidades metropolitanas compõem o fórum, com a
participação em grupos de trabalhos organizados em eixos temáticos e realizando
articulações políticas a fim de escalonar e endereçar as pautas metropolitanas para
as esferas legislativas e decisórias de governo.
Adentrando as considerações conclusivas (e provocativas) deste capítulo,
serão apresentados a seguir os principais desafios postos no presente às entidades
metropolitanas e os caminhos vislumbrados nesse espaço de representação articu-
lada de estados e municípios, que é o FNEM. De acordo com Costa, ocorre nos
encontros do FNEM o “compartilhamento sobre ônus e bônus do modelo federativo
proposto por nossa Constituição”, sendo um dos principais desafios a adesão dos
municípios ao planejamento metropolitano: “esbarramos, cotidianamente, em
desafios de natureza política, como gestões estaduais e municipais metropolitanas
de partidos distintos, gerando conflitos, divergências e disputas que prejudicam a
continuidade e a implementação de projetos técnicos de longo prazo”.59
A respeito da necessária articulação dos governos estaduais e municipais para
a efetivação da governança interfederativa, concorrem ao menos três mecanismos
que dificultam esse processo. Em primeiro lugar está a baixa sensibilidade das

57. Entrevista concedida, em 14 de abril de 2023, ao Ipea. A íntegra dessa conversa compõe o capítulo 8 desta publicação.
58. Ver capítulo 8.
59. Ver capítulo 8.
Passado e futuro das regiões metropolitanas brasileiras | 69

gestões municipais para aquilo que são os “interesses comuns”. A ausência de uma
cultura metropolitana leva os municípios a encerrarem-se em seus próprios limites
territoriais. Na percepção de Costa, só há sensibilidade por parte dos municípios
quando se deparam com algum problema que não podem resolver sozinhos,60
como são os casos de assoreamento dos rios ou das diferentes regras sanitárias em
tempos de pandemia, entre inúmeros exemplos.
Muitos dos problemas comuns entre municípios limítrofes são justamente a
razão para o estabelecimento de consórcios intermunicipais. Mas, em geral, quando
não há articulação prévia, é ao governo estadual, à entidade metropolitana que os
municípios recorrem para lidar com suas emergências transfronteiriças.
Em segundo lugar, está o funcionamento do sistema político brasileiro, “que
não permite a continuidade do planejamento metropolitano, porque a cada dois
anos temos ruptura (...) temos uma descontinuidade de relacionamento e que, por-
tanto, representa descontinuidade de qualquer política pública”. Há a necessidade
de um “movimento diplomático constante, de convencimento dos municípios a
aderirem ao planejamento metropolitano e a pensarem junto conosco, para além
de suas fronteiras”.61
Por fim, há a falta de incentivo, de um chamariz que desperte o interesse e
a confiança dos municípios e que viabilize de fato o desenvolvimento metropo-
litano. Aqui entra a discussão sobre criação do fundo metropolitano, que estava
previsto no Estatuto da Metrópole, mas foi vetado pela Presidência da República.
Sobre o veto, Costa diz: “foi uma perda importante, porque seria uma forma de
contribuição do governo federal para o planejamento regional metropolitano”.62
A União não se ausenta apenas do debate sobre o fundo metropolitano.
Desde a sanção do estatuto, em 2015, até hoje, não houve qualquer ação de
apoio do governo federal em relação às providências para a adequação das RMs
ao Estatuto da Metrópole – financeiramente, com estudos técnicos, capacitações,
campanhas, impulsionamento dos municípios a aderirem à gestão compartilhada
ou com qualquer outra iniciativa. Há oito anos não se sabe qual o real significado
do “apoio da União” mencionado na lei. Uma das proposições do FNEM a esse
respeito é, de acordo com Costa,
envolvermos efetivamente o Congresso Nacional, a Comissão de Desenvolvimento
Urbano [da Câmara dos Deputados], o Ministério das Cidades e propormos a cria-
ção de um grupo de trabalho para revisitarmos a legislação federal, seja para propor
uma alteração da Lei no 13.089/2015, para recompor o fundo que foi vetado, seja

60. Ver capítulo 8.


61. Ver capítulo 8.
62. Ver capítulo 8.
70 | 50 anos de regiões metropolitanas no Brasil e a Política Nacional de Desenvolvimento Urbano

para analisarmos em conjunto outras formas de custeio de políticas metropolitanas,


como o transporte.63
Ainda sobre a adesão e participação dos municípios no planejamento me-
tropolitano, tem-se o PDUI como principal – se não o único – instrumento de
condução dos interesses metropolitanos sobre os interesses municipais. Contudo,
tal como estabelecido no Estatuto da Metrópole (art. 10, § 4o),64 para o alcance
da gestão plena o PDUI deve estar aprovado pela Assembleia Legislativa Estadual,
e esse tem sido um dos principais entraves para que as RMs sigam adiante com a
execução do plano metropolitano e a consequente adequação dos planos diretores
municipais às diretrizes metropolitanas.
Ora, um plano metropolitano elaborado dentro de uma instância interfede-
rativa, com envolvimento dos entes metropolitanos e da sociedade civil, tendo,
por obrigatoriedade, passado pelos processos participativos e tendo sido aprovado
pela instância colegiada deliberativa da RM, precisa ainda passar pelo crivo da
Assembleia Legislativa?
Os anos de experiências pós-Estatuto da Metrópole nos mostram que a
tramitação nas Assembleias Legislativas estaduais tem se configurado como um
verdadeiro empecilho à aplicação dos PDUIs elaborados. Em decorrência da mo-
rosidade para aprovação dos PDUIs, as informações passam a ficar defasadas, as
ações previstas não são postas em prática, perde-se o timing de realizar a revisão dos
planos diretores municipais tendo como base as diretrizes do plano metropolitano.
Além disso, em dois anos acontecem novas eleições municipais ou estaduais, o que
modifica as equipes de governo e a composição das próprias Assembleias Legisla-
tivas, desconstruindo as relações estabelecidas no ciclo anterior.
O passar do tempo acaba exigindo a revisão do plano metropolitano, que
deverá contar com um novo edital de contratação de consultoria ou uma nova
mobilização de equipe técnica do governo, gerando retrabalho e desperdício de
recursos públicos. A repetição desse ciclo não é exceção, tendo passado por ele, por
diferentes razões e com diferentes desdobramentos, as RMs de Belo Horizonte, do
Rio de Janeiro, de São Paulo, da Baixada Santista e de Goiânia. Esse fato resultou
em apenas dois PDUIs aprovados no Brasil, os das RMs da Grande Vitória e do
Vale do Rio Cuiabá.
Este capítulo se encerra com uma reflexão necessária sobre a atribuição de com-
petências às entidades metropolitanas, naquilo que se refere aos problemas comuns.

63. Ver capítulo 8.


64. “Art. 10, § 4o O plano previsto no caput deste artigo será elaborado de forma conjunta e cooperada por repre-
sentantes do Estado, dos Municípios integrantes da unidade regional e da sociedade civil organizada e será aprovado
pela instância colegiada a que se refere o art. 8o desta Lei, antes de seu encaminhamento à apreciação da Assembleia
Legislativa” (Brasil, 2015).
Passado e futuro das regiões metropolitanas brasileiras | 71

Costa considera que as instâncias metropolitanas possuem um espaço de atuação


residual, sem competências claras na CF/1988, e ressalta a importância de
realçar constitucionalmente que a autonomia do município pode, sim, ser sopesada
à luz do interesse regional metropolitano em determinadas circunstâncias, do mesmo
modo que o direito de propriedade não é absoluto quando analisado sob a ótica do
princípio da função social da propriedade.65
É preciso repensar o compartilhamento de competências para que se possa
enfrentar realmente as questões metropolitanas. No fundo, o planejamento metro-
politano nunca foi um significativo ponto de atenção na agenda pública brasileira.
Mesmo na década de 1970, quando havia relações interfederativas e recursos para
o desenvolvimento urbano, o arranjo se demonstrou frágil e vulnerável, tendo sido
desfeito rapidamente – não sem deixar alguns legados importantes.
Escolhas equivocadas no processo constituinte deixaram de criar mecanis-
mos que estimulassem a cooperação interfederativa. As associações e consórcios
municipais, por sua vez, não dão conta da dimensão metropolitana. Municípios
resistem em participar dos arranjos, seja por conflitos e interesses políticos, seja
por não vislumbrarem contrapartidas que valham a pena.
A União permanece surda aos debates e às demandas advindas dos estados.
Estes se desdobram na tentativa de angariar municípios para a resolução de seus
temas comuns, e acabam ignorados de ambos os lados, sem poder para viabilizar as
políticas metropolitanas, apesar de seus grandes esforços. Afinal, quando os problemas
comuns eclodem, é ao estado que os municípios recorrem. Em vez de um planeja-
mento regionalizado e de longo prazo, resta ao estado apenas “apagar o incêndio”.
O tema metropolitano segue, há cinquenta anos, frágil e fragilizado, mas as
entidades metropolitanas, em seus altos (?) e baixos, seguem mobilizadas e articuladas.

REFERÊNCIAS
BERNARDES, L. M. C. Política urbana: uma análise da experiência brasileira.
Análise & Conjuntura, Belo Horizonte, v. 1, n. 1, p. 83-119, jan.-abr. 1986.
BOMFIM, P. R. de A. A ostentação estatística, um projeto geopolítico para o
território nacional: Estado e planejamento no período pós-64. 2007. Tese (Dou-
torado) – Departamento de Geografia da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências
Humanas, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2007.

65. Ver capítulo 8.


72 | 50 anos de regiões metropolitanas no Brasil e a Política Nacional de Desenvolvimento Urbano

BRASIL. Lei no 13.089, de 12 de janeiro de 2015. Institui o Estatuto da Metrópole,


altera a Lei no 10.257, de 10 de julho de 2001, e dá outras providências. Diário
Oficial da União, Brasília, p. 2, 13 jan. 2015.
BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. 53. ed.
Brasília: Câmara dos Deputados, 2018.
DANTAS, R. F.; COSTA, M. A. (Coord.). Caracterização e quadros de análise
comparativa da governança metropolitana no Brasil: arranjos institucionais de
gestão metropolitana (componente 1) – relatório de pesquisa. Rio de Janeiro: Ipea,
2015. (Série Governança Metropolitana no Brasil: Região Metropolitana de Forta-
leza). Disponível em: https://portalantigo.ipea.gov.br/portal/images/stories/PDFs/
relatoriopesquisa/150928_relatorio_arranjos_fortaleza.pdf. Acesso em: 5 jun. 2023.
FARIA, V. E. Cinquenta anos de urbanização no Brasil: tendências e perspectivas.
Novos Estudos CEBRAP, n. 29, p. 98-119, mar. 1991.
FRANCISCONI, J. G.; CORDEIRO, S. H. T. C. Além de Rio e Sampa – Co-
rumbá, Irecê, Parintins: evolução e desafios do planejamento urbano no Brasil.
Rio de Janeiro: Topbooks Editora, 2021.
FRANCISCONI, J. G.; SOUZA, M. A. A. de. Política Nacional de Desenvol-
vimento Urbano: estudos e proposições alternativas. Brasília: Ipea; Iplan, 1976.
(Série Estudos para o Planejamento).
IPEA – INSTITUTO DE PESQUISA ECONÔMICA APLICADA. Faces da
metropolização no Brasil: desafios contemporâneos na gestão das regiões metropo-
litanas. In: IPEA – INSTITUTO DE PESQUISA ECONÔMICA APLICADA.
Infraestrutura social e urbana no Brasil: subsídios para uma agenda de pesquisa
e formulação de políticas públicas. Brasília: Ipea, 2010. v. 2, p. 641-682.
KLINK, J. J. Por que as regiões metropolitanas continuam tão ingovernáveis?
Problematizando a reestruturação e o reescalonamento do estado social-desen-
volvimentista em espaços metropolitanos. In: FURTADO, B. A.; KRAUSE, C.;
FRANÇA, K. C. B. de. (Ed.). Território metropolitano, políticas municipais:
por soluções conjuntas de problemas urbanos no âmbito metropolitano. Brasília:
Ipea, 2013. p. 83-113.
MACHADO, G. G. Gestão metropolitana e autonomia municipal: dilemas
das transações federativas. Belo Horizonte: Editora PUC Minas; Observatório
das Metrópoles, 2009.
MARGUTI, B. O. et al. A agenda urbana na escala supramunicipal: estudo para
uma hierarquia dos arranjos institucionais para políticas públicas. Brasília: MDR,
2020. (Nota Técnica, n. 1.3 – Agenda Urbana para Desenvolvimento Urbano/
TED 71/2019).
Passado e futuro das regiões metropolitanas brasileiras | 73

MARGUTI, B. O. et al. Gestão, governança e planos metropolitanos (2017-2020):


avaliação continuada e os impactos da Lei no 13.683/2018. In: COSTA, M. A. et al.
(Org.). Federalismo, planejamento e financiamento: avanços e desafios da gover-
nança metropolitana no Brasil. Rio de Janeiro: Ipea, 2021. p. 183-217. Disponível
em: https://repositorio.ipea.gov.br/handle/11058/10947. Acesso em: 14 ago. 2023.
MARICATO, E. O estatuto da cidade periférica. In: CARVALHO, C. S.; ROSS-
BACH, A. (Org.). O Estatuto da Cidade comentado. São Paulo: Ministério das
Cidades; Aliança das Cidades, 2010. p. 5-22.
MARTINS, C. H. B. Região Metropolitana de Porto Alegre: dinâmica legal e insti-
tucional. Indicadores Econômicos FEE, Porto Alegre, v. 20, n. 2, p. 142-159, 1992.
MARTINS, C. M. dos R.; COSTA, M. A. (Coord.). Caracterização e quadros
de análise comparativa da governança metropolitana no Brasil: arranjos insti-
tucionais de gestão metropolitana (componente 1) – relatório de pesquisa. Rio de
Janeiro: Ipea, 2015. (Série Governança Metropolitana no Brasil: Região Metro-
politana de Porto Alegre). Disponível em: https://portalantigo.ipea.gov.br/portal/
images/stories/PDFs/relatoriopesquisa/151103_relatorio_arranjos_porto_alegre.
pdf. Acesso em: 5 jun. 2023.
MOTTA, D. M.; COSTA, M. A. (Coord.). Caracterização e quadros de análise
comparativa da governança metropolitana no Brasil: arranjos institucionais de
gestão metropolitana (componente 1) – relatório de pesquisa. Rio de Janeiro: Ipea,
2015. (Série Governança Metropolitana no Brasil: Região Metropolitana de São
Paulo). Disponível em: https://portalantigo.ipea.gov.br/portal/images/stories/PDFs/
relatoriopesquisa/150730_relatorio_arranjos_saopaulo.pdf. Acesso em: 5 jun. 2023.
PINHEIRO, A. de C. L.; COSTA, M. A. (Coord.). Caracterização e quadros
de análise comparativa da governança metropolitana no Brasil: arranjos insti-
tucionais de gestão metropolitana (componente 1) – relatório de pesquisa. Rio de
Janeiro: Ipea, 2015. (Série Governança Metropolitana no Brasil: Região Metropo-
litana de Belém). Disponível em: https://portalantigo.ipea.gov.br/portal/images/
stories/PDFs/relatoriopesquisa/rel_1_1_rm_belem.pdf. Acesso em: 5 jun. 2023.
SANTOS, M. A.; COSTA, M. A. (Coord.). Caracterização e quadros de análise
comparativa da governança metropolitana no Brasil: arranjos institucionais de
gestão metropolitana (componente 1) – relatório de pesquisa. Rio de Janeiro: Ipea,
2015. (Série Governança Metropolitana no Brasil: Região Metropolitana do Rio
de Janeiro). Disponível em: https://portalantigo.ipea.gov.br/portal/images/stories/
PDFs/relatoriopesquisa/150820_relatorio_arranjos_riode_janeiro.pdf. Acesso em:
5 jun. 2023.
SERRAN, J. R. O IAB e a política habitacional brasileira (1954-1975). São
Paulo: Schema Editora, 1976.
74 | 50 anos de regiões metropolitanas no Brasil e a Política Nacional de Desenvolvimento Urbano

BIBLIOGRAFIA COMPLEMENTAR
TORREÃO, G.; COSTA, M. A. (Coord.). Caracterização e quadros de análise
comparativa da governança metropolitana no Brasil: arranjos institucionais
de gestão metropolitana (componente 1) – relatório de pesquisa. Rio de Janeiro:
Ipea, 2015. (Série Governança Metropolitana no Brasil: Região Metropolitana de
Salvador). Disponível em: https://www.ipea.gov.br/redeipea/images/pdfs/governan-
ca_metropolitana/relatorio_1.1_revisao_final_salvador.pdf. Acesso em: 5 jun. 2023.
CAPÍTULO 4

A QUESTÃO METROPOLITANA BRASILEIRA: ENTREVISTA


COM LUIZ CESAR DE QUEIROZ RIBEIRO1
Entrevistado
Luiz Cesar de Queiroz Ribeiro

Entrevistadores2
Marco Aurélio Costa
Luis Gustavo Martins
Carlos Henrique Carvalho Ferreira Junior

Ipea: Nesses cinquenta anos das regiões metropolitanas (RMs), há alguns marcos
muito importantes, na própria Constituição Federal de 1988 (CF/1988), que
trouxeram alterações significativas na forma como a questão institucional das
RMs é tratada. Depois do Estatuto da Cidade, o Estatuto da Metrópole tentou
conter o processo de institucionalização intensa que vinha ocorrendo. Assim,
pensamos em seu nome, pela sua experiência no Observatório das Metrópoles.
Nossa primeira pergunta vai nesta mesma direção: como surgiu para você a questão
da metrópole como tema? E como este processo levou ao esforço de criação do
Observatório das Metrópoles?
Luiz Cesar de Queiroz Ribeiro: Nós não começamos por aí de fato, mas por
outro tema que até hoje está muito central em nossa preocupação, que é o da re-
forma urbana. Algumas pessoas do Instituto de Pesquisa e Planejamento Urbano e
Regional (Ippur) participaram da discussão na Constituinte de 1988, colaborando
na elaboração da emenda popular para a Constituinte. Este debate contribuiu para
consolidar um campo que se formou naquele momento sobre reforma urbana e
direito à cidade. Foi a partir desta experiência que a gente começou a pensar na
ideia de constituir um observatório. A ideia do observatório era para avaliar em
que medida aqueles avanços incorporados na CF/1988 se traduziriam nas reformas
das leis orgânicas municipais e constituições estaduais, nas políticas urbanas e nas
leis de zoneamento, e, então, este foi nosso ponto de partida. Tanto que o nome
original do observatório era Políticas Urbanas e Gestão Municipal.

1. Entrevista realizada em 11 de abril de 2023, às 15h, por chamada de vídeo.


2. Os entrevistadores são indicados no texto como Ipea.
76 | 50 anos de regiões metropolitanas no Brasil e a Política Nacional de Desenvolvimento Urbano

Realizamos essa avaliação para vários estados, e aí começou a aparecer para a


gente que aquele arcabouço institucional, constitucional, legal, encontrava travas
para se transformar de fato em ações de planejamento. Articulados com este estudo,
realizamos alguns trabalhos de assessoria de alguns governos progressistas, na época,
que foram surgindo. Por exemplo, em Santo André, no Rio de Janeiro – o Partido
Democrático Trabalhista (PDT) era bastante progressista no Rio de Janeiro –, e
em outros lugares, no sentido de tentar fazer com que, de fato, as leis orgânicas,
planos diretores etc. produzissem uma prática que traduzisse, nos instrumentos
objetivos, a concepção da reforma urbana e do direito à cidade.
Nessa experiência híbrida de pesquisa e intervenção, começamos a nos dar
conta de que na escala municipal, no plano da cidade, seria impossível efetivar os
ideais, objetivos e instrumentos da reforma urbana. Porque os problemas urbanos
têm uma característica, dada a nossa rede urbana, a nossa metropolização, de se
colocar em uma escala acima do município. Assim, começamos a pensar na dimensão
metropolitana. No início, foi só uma pesquisa que fizeram no Rio de Janeiro, já
pensando a questão metropolitana dentro de um edital da Financiadora de Estudos
e Projetos (Finep).3 Então isso foi afirmando a nossa visão, a necessidade de tomar
a escala metropolitana como uma escala de referência para continuar pensando no
que estávamos pensando antes – a reforma urbana.
Naturalmente, outros temas começaram a ser absorvidos além daqueles que
estavam mais consolidados como integrantes da discussão sobre a reforma urbana.
Até então, não havia nem essa denominação “direito à cidade”, era “reforma urbana”
stricto sensu. Isso foi nos levando a essa ideia de focar aqueles temas, mas outros
também, nessa escala metropolitana. A partir de 1996, o observatório, então de
Políticas Urbanas e Gestão Municipal, tornou-se Observatório das Metrópoles.
Esse projeto, digamos, experimental, feito no Rio de Janeiro, transforma-se
em um novo projeto que incorpora São Paulo e Belo Horizonte, já com uma
perspectiva comparativa de análise em vários temas, e dentro dessa ideia também
de um grupo estruturado organicamente, funcionando a partir de um programa
unificado de pesquisa, com linhas, programas, projetos e atividades. Isso deu certo
porque contamos também com novos financiamentos que foram surgindo ao longo
do tempo. O Programa de Apoio aos Núcleos de Excelência (Pronex)4 era então
um deles, Pronex 1 e 2; depois, o Instituto do Milênio; e depois, então, o Institu-
to Nacional de Ciência e Tecnologia (INCT). E, com isso, o observatório foi se

3. Edital Plano de Ação para a Área Social – FNDCT/Finep/BID/880/OC-BR, cujo objetivo do projeto do observatório
foi avaliar os impactos metropolitanos no Rio de Janeiro do ajuste macroeconômico e da reestruturação produtiva.
4. Criado em 1996 pelo Decreto no 1.857, de 10 de abril de 1996, o Pronex é um instrumento de estímulo à pesquisa
e ao desenvolvimento científico e tecnológico do país, por meio de apoio continuado e adicional aos instrumentos hoje
disponíveis, a grupos de alta competência que tenham liderança e papel nucleador no setor de sua atuação. Disponível
em: https://www.gov.br/cnpq/pt-br/acesso-a-informacao/acoes-e-programas/programas/pronex. Acesso em: abr. 2023.
A questão metropolitana brasileira | 77

expandindo em nível nacional, incorporando outros grupos. Por um lado, foi um


pouco a experiência do que estávamos fazendo; por outro, a partir dessa percepção,
isso nos levou também a ter que tentar elaborar mais concretamente o que seria a
questão metropolitana no país.
Ipea: Luiz Cesar, aproveitando um pouco a perspectiva histórica, quando o
tema da reforma urbana estava sendo discutido naquele capítulo da política urbana
na CF/1988, a questão metropolitana não apareceu. Sabemos que a experiência
inicial das RMs foi centralizada, criada pelo governo central, com estrutura ins-
titucional bastante pesada e que deveria se replicar nos estados. Sabemos que, na
redemocratização, houve todo um movimento de valorização do governo local,
mesmo porque havia muitas experiências já em curso, muito ricas nesse sentido.
Mas o fato é que a gente olha para a Constituição e o tema do metropolitano não
estava lá. Essa afirmação é correta?
Luiz Cesar de Queiroz Ribeiro: Eu acho que isso resulta, talvez, de algumas
razões políticas e de outras cognitivas. Primeiro, acho que houve uma certa ideologia
municipalista que nos animou muito nessa ideia de um projeto reformista para
o país, porque um dos temas desse projeto reformista era a questão democrática,
elaborada a partir de uma crítica à democracia formal, representativa, em favor da
ideia de uma democracia de base, uma democracia participativa. Isso tinha uma
conexão com algumas experiências no Brasil que estavam acontecendo. Inclusive,
o surgimento dos protótipos do orçamento participativo. Isso criou uma espécie de
ideologia municipalista, uma crença municipalista como um veículo para efetivar
esse ideário democrático. A partir dessa ideia vinda da experiência da ditadura,
concluía-se que o centralismo, naturalmente, leva a deformações e à impossibili-
dade de que os interesses populares tenham de fato uma incidência nas políticas
públicas. Então, tem-se aí um lado cognitivo e um lado de crença.
Ninguém pensou a dimensão metropolitana, ninguém. Também havia uma
crítica feroz aos esquemas metropolitanos. Havia uma crítica que juntava as experi-
ências com a visão crítica ao autoritário, ao centralizador, à burocracia. Fazia parte
desse ideário democrático municipalista uma crítica ao planejamento tecnocrático,
a partir desse tema da participação. As entidades metropolitanas mais ou menos
representavam essa experiência centralizada, autoritária, burocrática. Então, acho
que ninguém pensou na dimensão metropolitana, por esses motivos. Assim, por
um lado, é uma questão de crença ou de uma visão política, ideológica.
Por outro lado, há essa dimensão cognitiva, entendida no sentido de que real-
mente as análises que foram feitas, e que fundamentaram o ideário da reforma urbana,
eram muito fundadas em pesquisas de resultados intraurbanos, realizadas muito no
Rio de Janeiro, mas também em São Paulo. São exemplos dessas análises as teses
sobre a causação circular da desigualdade, da segregação, que veio do Myrdal, depois
78 | 50 anos de regiões metropolitanas no Brasil e a Política Nacional de Desenvolvimento Urbano

influenciadas também pelo Harvey (1980); e, aqui no Rio de Janeiro, havia o David
Vetter, um norte-americano que começou a produzir essas ideias, que fazia parte do
Ippur antes daquela intervenção política no então Programa de Pós-Graduação em
Planejamento Urbano e Regional (PUR), existente à época no Instituto Alberto Luiz
Coimbra de Pós-Graduação e Pesquisa de Engenharia da Universidade Federal do
Rio de Janeiro (Coppe-UFRJ).5 Em São Paulo, também havia toda uma discussão
sobre periferia; então, havia um estado de pesquisa que tinha um olhar muito in-
trametropolitano para pensar as questões da desigualdade, e mesmo da democracia.
Esses foram dois temas que estiveram na raiz do debate da reforma urbana. Assim,
tem-se também essa dimensão cognitiva.
Ipea: Aproveitando um “gancho”, você falou que não havia condicionantes,
mas fatores que levaram a não considerar a questão metropolitana na primeira volta
da Constituinte de 1988. Por exemplo, a dimensão cognitiva. Mas, em 1996, ou
seja, menos de dez anos depois, ela se coloca. O que mudou? O que apareceu no
âmbito dessas pesquisas? Você falou que se fazia muita pesquisa baseada nessas
teses da causação circular, na dimensão intraurbana – talvez possamos dizer in-
tramunicipal. O que apareceu e fez com que se passasse, então, a ver a dimensão
metropolitana? Como se reconheceu a metrópole? A metrópole já estava lá há pelo
menos quarenta, cinquenta anos. Você falou em São Paulo, por exemplo. Mas
quando e como a metrópole vira um lugar de atenção e objeto de estudo?
Luiz Cesar de Queiroz Ribeiro: Eu acho até que virou pouco objeto de es-
tudo e lugar de atenção. Como objeto de estudo, acho que nós continuamos
muito embalados no nosso campo mais restrito ao planejamento urbano, que eu
conheço mais. Nós continuamos olhando muito para o intraurbano. Falávamos
inclusive isso: um dos problemas, dos desafios para construir a institucionalidade
metropolitana, é a ausência de um conhecimento sistemático sobre essa escala,
não só da questão urbana, mas da questão social, da questão ambiental e de vários
outros desafios. Acho que esse bloqueio continuou; então, o que aconteceu foi, na
verdade, acho eu, pois nunca fiz uma sociologia do Estatuto da Metrópole, foi um
arranjo técnico-burocrático, muito capitaneado por São Paulo. São Paulo nunca
deixou de ter completamente um estamento burocrático, uma tecnoburocracia.
São Paulo nunca deixou de dar relevância à dimensão metropolitana no ideário
de planejamento. Tanto é que a Empresa Paulista de Planejamento Metropolitano
(Emplasa) e o pessoal do Instituto Paranaense de Desenvolvimento Econômico e
Social (Ipardes) talvez sejam as únicas instituições que tiveram essa dimensão; a

5. Intervenção Ippur.
A questão metropolitana brasileira | 79

entidade de Pernambuco, Instituto de Desenvolvimento de Pernambuco (Con-


depe) também teve.6
Portanto, eu acho que foi mesmo uma operação do estamento burocrático
e técnico em aliança com alguns representantes que, no Parlamento, assumiram
esse tema como uma questão importante a ser colocada. Lembro que o Estatuto
da Cidade teve muito pé, muita mão daquele deputado de São Paulo que depois
virou secretário.
Ipea: Fábio Feldmann?
Luiz Cesar de Queiroz Ribeiro: Isso. Tem muita mão dele ali. Então, isso tam-
bém correspondeu a uma formação de opinião, no Parlamento, sobre a importância
dessa questão, por outros motivos também, não só cognitivos. Mas o fato de a
metrópole não ser uma escala de representação política também sempre bloqueou
a coalizão possível de construção, ou a ser construída, para tornar o tema metro-
politano um objeto da política, como os estados e os municípios naturalmente são.
Então eu acho que é mais isso, Carlos. Por um lado, a questão cognitiva,
porque alguns grupos de pesquisa, como nós, começaram a discutir este tema e a
falar sobre a importância de adotar aquela escala metropolitana, como confirmam
muitas pesquisas. E há ainda essa importância dada por uma tecnoburocracia que,
talvez, até por uma necessidade da sua própria reprodução, tomou a inciativa e se
juntou aos grupos de parlamentares, digamos, progressistas. Tanto é que não teve
polêmica na aprovação inicial do Estatuto da Metrópole. Também o Estatuto da
Cidade não teve polêmica, foi aprovado no apagar das luzes do governo Fernando
Henrique Cardoso.
Ipea: Olhando para a trajetória do observatório e das pesquisas nessas várias
etapas, seria possível historicizar os temas e as abordagens adotados ao longo do
tempo? Como os temas foram mudando e sendo tratados nesses mais de vinte anos
do Observatório das Metrópoles?
Luiz Cesar de Queiroz Ribeiro: A gente talvez tenha mais permanência do
que mudança. As mudanças que foram sendo operadas foram mais no enfoque
teórico, que foi sendo transformado em função de algumas hipóteses de mudança
da natureza das questões. Contudo, há mais permanência do que mudança. Porque
nós continuamos com o programa mais ou menos semelhante. Há uma dimensão
que nós tomamos – a dimensão regional –, que tem a ver com uma leitura dos
processos de metropolização, as suas diferenças regionais do ponto de vista da

6. Em 2003, por meio da Lei Complementar no 49, foi criada a Agência Estadual de Planejamento e Pesquisas de
Pernambuco (Condepe/Fidem), a partir da fusão do Instituto de Desenvolvimento de Pernambuco (Condepe) e com
a Fundação de Desenvolvimento Municipal (Fidem). Para mais informações, ver: http://www.portais.pe.gov.br/web/
condepe-fidem/apresentacao6.
80 | 50 anos de regiões metropolitanas no Brasil e a Política Nacional de Desenvolvimento Urbano

lógica econômica, mas também da lógica territorial e territorial-geográfica. Isso


continua dentro desse âmbito da questão metropolitana. Essa lógica regional é
uma questão enorme. Falamos na metropolização amazônica, na metropolização
nordestina, na do Sudeste etc., para tentar dar conta do que seriam as caracterís-
ticas diferenciais do processo de metropolização. Por trás disso, há muita pesquisa
empírico-quantitativa de medir, classificar. Então isso – a questão regional – con-
tinuou. Foram adicionadas novas questões, por exemplo, o tema da grande região
do Rio-São Paulo – ou Rio-São Paulo expandido. Essa questão é mais recente, dos
últimos cinco anos. Mas essa questão das diferenças regionais se tornou bastante
permanente, e estamos terminando um ciclo agora. Não tem muita diferença do
que fizemos antes; apenas algumas hipóteses novas foram adicionadas.
Do ponto de vista da leitura da organização interna da metrópole, também
há muita estabilidade. As novidades que ocorreram ao longo do tempo foram
no conceito de desigualdade. Trabalhávamos muito com a ideia da desigualdade
propriamente relacionada com o urbano. Aí passamos a trabalhar também com
a ideia de desigualdade de oportunidades, depois desigualdade de renda, depois
desigualdade de emprego. Mas há uma continuidade, no sentido de tentar pensar
os efeitos da organização do território na reprodução dessas desigualdades nas
centenas de âmbitos que aparecem. Então, isso conforma uma série de estudos
intrametropolitanos, uma série de estudos de segregação, sobre a organização do
território, a desigualdade, a habitação; enfim, a desigualdade tem um papel im-
portante. Mas o saneamento também tem, tudo o que tem a ver com o bem-estar
urbano tem importância. O que houve de novidade no decorrer desse desenvol-
vimento na escala da organização interna da metrópole, organizada pela temática
da desigualdade, foi a tentativa de termos um protagonismo no debate sobre o
conceito de desenvolvimento urbano. Sobre esse conceito, talvez seja interessante
fazermos uma discussão, para não negar as outras ideias sobre desenvolvimento.
Mas, se não considerarmos a questão do desenvolvimento urbano, não construímos
plenamente a concepção da reprodução das desigualdades, que pretende ir além
da visão economicista, como as que se fundam nos conceitos de desenvolvimento
humano e desenvolvimento social. Construir e mensurar empiricamente o conceito
de bem-estar urbano7 para o conjunto das cidades brasileiras, em várias escalas, foi
a grande novidade que tivemos no decorrer desse processo.
Em relação a outra grande questão, que é mais institucional-política, também
há muita permanência. No decorrer do processo, o que aconteceu de novidade
foi a introdução desse tema da cultura política e a tentativa de ler os impasses da
governança metropolitana pela existência de padrões culturais. Que, do ponto de
vista político, fazem com que, no exercício da cidadania – conectado com modelos

7. Disponível em: https://ibeu.observatoriodasmetropoles.net.br/.


A questão metropolitana brasileira | 81

de gestão política do território baseados no corporativismo, clientelismo e patrimo-


nialismo –, seja dificultada a construção de um interesse comum. Sobre este tema
realizamos um survey nacional sobre os padrões de cultura política existentes em
nossas metrópoles que bloqueiam o pleno exercício da cidadania política necessária
para a construção de instituições da governança metropolitana (Azevedo, Ribeiro
e Santos Júnior, 2012).
Depois, houve esse tema mais recente, onde deságuam essas questões dos
regimes urbanos, que é uma tentativa de fazermos um trabalho um pouco mais
sistemático, tomando a dimensão econômica, a dimensão política, cultural e
institucional para tentar ler padrões possíveis de exercício da autoridade pública
sobre o território, que poderão ser lidos através dessa ideia de regimes urbanos.
Portanto, tem pouca mudança. Há mudança no enfoque, na chave de leitura que
fomos absorvendo em função do nosso debate, junto com o debate mais geral
sobre o Brasil.
Há uma discussão atual a respeito do Brasil pós-industrial, sobre que urbano
é esse, que metropolitano é esse, que vem se constituindo no Brasil como uma
sociedade de serviços avant la lettre. Esta pergunta surge lá pelos idos de 2015,
quando realizamos um seminário em Natal para inaugurar o novo ciclo quinque-
nal de pesquisa. Assumimos trabalhar com a questão das transformações urbanas
a partir das mudanças macroeconômicas, macropolíticas, expressas pela ideia do
neoliberalismo como o novo padrão de organização do Estado e modelo de inter-
venção. E, ao mesmo tempo, a transição de uma economia industrial para uma
economia capitaneada pela lógica financeira. Esse é o debate sobre a financeirização,
que continuamos agora.
Ipea: Isso nos dá um “gancho” para pensamos sobre o que o observatório tem
feito agora – o direito à cidade na inflexão da ordem urbana brasileira. A partir
dessas primeiras impressões, já que o projeto ainda está em andamento, quais
seriam as marcas desse processo de inflexão na ordem urbana e quais seriam seus
reflexos sobre o urbano? Há ainda alguma especificidade nas metrópoles? Já que
falamos de 2015 para cá, de um reconhecimento dessa nova metropolização, desse
novo parâmetro, o que a inflexão neoliberal significa na ordem urbana e como ela
se manifesta nas metrópoles?
Luiz Cesar de Queiroz Ribeiro: Pois é, Carlos. É até bom você falar nisso,
para expressarmos a ideia que está por trás dessa noção, desse conceito de ordem
urbana, que foi um conceito elaborado para organizar a nossa leitura do que teria
mudado no Brasil de 1980 até 2010. Dois mil e dez não é exatamente a marcação
do período analisado, é a marcação apenas dos dados que nós tínhamos. Trata-se do
momento em que saímos de um modelo de Brasil pensado e que, de certa maneira,
era tratado pela política, que era uma etapa do modelo de desenvolvimentismo
82 | 50 anos de regiões metropolitanas no Brasil e a Política Nacional de Desenvolvimento Urbano

capitaneado pela indústria. Esse modelo entra em crise. Nós vivemos a implosão
de 1980-1990, uma transição com experimentos em resposta a essa implosão, em
que o neoliberalismo foi uma das iniciativas e, depois, o experimento do novo
desenvolvimentismo, que aconteceu a partir de 2003. Fala-se muito em experi-
mentos, porque, na verdade, são respostas a esse modelo em crise que não foram
completamente neoliberais e nem completamente desenvolvimentistas.
Guardamos ainda toda uma história de padrões e maneiras de pensar e de
desenhar políticas anteriores; portanto, sempre com contradições. Em função
disso, pensamos na ideia de tentar construir um conceito que capturasse como
esses modelos têm padrões de organização socioterritorial, que é essa ideia da
ordem urbana, para sair um pouco da descrição e tentar analisar de maneira mais
interpretativa. Isso resultou nessa coleção: Transformações na ordem urbana. Nessa
coletânea, tentamos capturar o que estava em transição dentro dessa ideia de mo-
vimentos que vão na direção de uma neoliberalização, mercantilização da cidade
etc., e outros movimentos que defendem a ideia de uma retomada da concepção
expressa nessa visão de um neodesenvolvimentismo. Dentro dessa ideia de que a
transição está em disputa, tentamos pegar as tendências de transição.
Para entrar na pergunta, há uma visão mais afirmada de que essa transição já
aconteceu. Nós estamos abandonando a ordem urbano-industrial que se constituiu
a partir dos anos 1930 a 1950, e durou até o final dos anos 1970, isso na escala
propriamente urbana, na escala metropolitana e na escala nacional.
Isso se verifica por uma série de afirmações de tendências que estavam já em
curso nesse momento de transição na estrutura social, no mercado de trabalho,
na política, nos padrões políticos. E o que nos tem orientado é a ideia de que en-
tramos realmente em um novo modelo, no modelo fundado naquilo que estamos
chamando de rentismo associado a um neoextrativismo. Isso tem para nós uma
série de consequências no urbano, no metropolitano e no regional, o que resulta
em uma lógica particular.
O debate em torno da lógica da expansão no Brasil e na expansão urbana,
capitaneada pela indústria, já faz parte do nosso passado. E isso está fazendo com
que emerja nas cidades brasileiras uma sociedade de serviços avant la lettre, como
eu disse anteriormente. Quer dizer, aquilo que aconteceu nos países desenvolvidos,
de uma sociedade de serviço resultar da reestruturação do próprio capitalismo, aqui
resulta da nossa condição de subordinação, dependência periférica e subordinação
a essa lógica rentista. Esse é apenas um dos aspectos com uma consequência direta
no mercado de trabalho e na estrutura social. Há também uma série de outras
consequências que a gente está trabalhando.
O que seria essa lógica rentista e neoextrativista? É a ideia de que a economia
brasileira está submetida completamente a uma inserção subordinada à demanda da
A questão metropolitana brasileira | 83

reprodução ampliada do capital global. E nós apenas assumimos algumas funções


requeridas por essa necessidade de reprodução do capital global. A desindustriali-
zação e, ao mesmo tempo, a reprimarização são efeitos imediatos desse processo, a
transformação em uma economia que é uma plataforma de valorização e de circula-
ção do capital especulativo financeiro. Isso se traduzindo em uma série de questões
macroeconômicas; por exemplo, não podemos abaixar a taxa de juros, então a taxa
de juros tem que continuar no nível em que está, porque a nossa função é oferecer o
Brasil como economia, como reciclagem desse capital sobrante da economia global.
Isso conformou interesses locais também.
Ao mesmo tempo, a reprimarização leva-nos a uma lógica de extração de
recursos naturais – seja o agrobusiness, sejam os recursos minerais –, para também
haver uma participação nessa divisão internacional do trabalho, que seria uma
maneira de pensar a ideia da necessidade de reprodução ampliada do capital em
nível global completamente subordinada. Isso traz uma série de consequências
também no âmbito metropolitano.
Antes já era difícil pensar a construção de um pacto em torno do metropo-
litano, entre outras razões, porque a própria burguesia industrial não se movia
muito pela necessidade de pensar o metropolitano, pela própria reprodução do
modelo industrial. O modelo industrial se alimentou da desordem urbana, da
incompletude do urbano metropolitano. Há, nesse sentido, uma convergência
com essa ideia do legalismo, da autoconstrução, e de que esse urbano incompleto
alimentou também o padrão do modelo de acumulação industrial brasileiro. Hoje,
esse modelo de acumulação ainda interessa, porque trata de uma burguesia asso-
ciada que se tornou uma burguesia de negócio, cuja função é facilitar essa conexão
da economia brasileira a essa lógica rentista, neoextrativista. E, portanto, menos
ainda essa burguesia tem uma vocação de se interessar por questões que não sejam
estritamente de curto prazo e de dimensões territoriais muito específicas.
É essa lógica neoextrativista que está fazendo com que apareçam novas coa-
lizões regionais dominantes, em torno do agronegócio, da exploração de recursos
naturais, em torno do próprio petróleo. E essa burguesia quer liberdade para poder
organizar este circuito – extrativista e do agro –, liberdade para administrar seus
territórios. Porque, sendo alguma parte de uma cadeia global de commodities, a
percepção dessa burguesia é de que nada pode bloquear essas cadeias de acon-
tecerem no tempo e no espaço necessários para sua conexão ser completamente
sincrônica. Pensemos, por exemplo, na quantidade de capital fixo investido na
logística nesses grandes circuitos de agronegócio; se, de repente, for bloqueado o
uso intensivo desse capital fixo, isso cria um problema de rentabilidade imediata.
Então essa burguesia, além de estar voltada para pensar a economia a partir apenas
dessa ótica da facilitação dos circuitos internos para cumprir essa função na divisão
84 | 50 anos de regiões metropolitanas no Brasil e a Política Nacional de Desenvolvimento Urbano

internacional do trabalho – e, portanto, o projeto nacional está fora da expectativa –,


está voltada para demandar liberdade econômica e liberdade territorial. É o que
vemos no Centro-Oeste – que nem é propriamente a propósito do Centro-Oeste,
a propósito do Norte. “Nós” – assim se expressaria a burguesia – “queremos é li-
berdade para poder gerir os circuitos, gerir os territórios. E, nesse sentido, vemos
muito negativamente a questão metropolitana”. Ou seja, o caos e a desorganização
socioterritorial das nossas metrópoles, a emergência de formas de controle armado
de parte dos territórios, o colapso do sistema de mobilidade urbana, a multiplicação
da precariedade urbana, o encarecimento da moradia popular, para mencionar
apenas algumas das dimensões da evidente crise urbana das nossas metrópoles,
não mobilizam as frações da burguesia rentista e extrativista que comanda o atual
bloco de poder. Ou seja, há uma radicalização do estrutural caráter antissocial e
antidemocrático do nosso capitalismo, e a consequência é o abandono pelas elites
da questão metropolitana. Se, na fase industrial, teve sentido pensarmos em termos
das contradições urbanas do capitalismo brasileiro, para o título de um célebre
livro (Moisés et al., 1978), que, na década de 1970, nos influenciou, hoje é uma
expressão historicamente anacrônica. Parafraseando o nosso Chico de Oliveira em
texto desse livro, eu ousaria dizer que o atual padrão de acumulação do capitalismo
brasileiro é antimetropolitano. Esta é a raiz, a meu ver, da nossa dificuldade de
tornar esse tema centro do debate sobre o nosso futuro como sociedade e como
nação. Não sei se consegui responder; eis uma grande questão.
Ipea: A partir dessa posição periférica, de submissão, de todo esse contexto de
transformações que você também descreveu, a questão metropolitana não é simples
em lugar nenhum do mundo. Há dificuldades de construção dessa governança
metropolitana nos países centrais também. Há soluções, às vezes, bem radicais.
O Canadá é especialista em acabar com o município,8 transformar tudo numa coisa
só, para dar conta de fazer a gestão. Mesmo na África do Sul, há uma experiência
nesse sentido. Pensando nisso, nesses desafios da nossa posição periférica, e dada a
inserção subordinada do Brasil na economia, o quadro realmente não é bom, não é?
Luiz Cesar de Queiroz Ribeiro: Sem dúvida. O que podemos imaginar? Qual
será o sujeito que poderia incorporar essa problemática metropolitana? Essa é uma
questão antiga entre nós, no observatório. Isso tem a ver com a leitura dos próprios
impasses nos países centrais. Lá também a questão metropolitana aparece como
uma questão importante, no momento em que o modelo industrial está passando
por uma transformação. No passado mais antigo do modelo, no momento mais
fordista, onde a questão metropolitana de forma mais localizada tinha uma impor-
tância no debate, essas grandes aglomerações tiveram uma importância produtiva.

8. Consolidação dos municípios metropolitanos.


A questão metropolitana brasileira | 85

Era necessário administrar, planejar minimamente etc. Estamos pensando lá nos


anos 1930 e 1940.
Sobretudo agora, a minha referência são os Estados Unidos. Ali, de fato, o
tema metropolitano não se tornou um tema nacional. Ela passa a ser um tema
nacional realmente quando o capitalismo está passando por uma reestruturação
produtiva acelerada. Então, o que tinha de experiência, como na Inglaterra, foi
desfeito. Ao mesmo tempo, essa ideia de que é uma necessidade tornar esses
territórios governáveis encontra também uma transformação, nesse capitalismo,
da classe dominante, da burguesia etc. Por conseguinte, há um vazio da classe
dominante em conformar o sujeito capaz de, encarnando uma visão econômica
utilitária do território, importante como força produtiva, reconhecer que tem que
haver um mínimo de organização e muito planejamento. Essa conformação está se
desmanchando, pelo menos nos países desenvolvidos, especialmente nos Estados
Unidos, que ficaram com a parte financeira do capitalismo. O parque produtivo
do capitalismo foi para a China, onde tem planejamento, onde tem preocupação
com essas questões. Não por acaso, porque o território de lá é estratégico para o
modelo chinês de desenvolvimento. A Europa está nesse impasse absoluto de uma
espécie de crise de produtividade, da qual não consegue sair. Não consegue nem
adotar o padrão liberal, nem restaurar o padrão fordista.
Houve estagnação. De fato, essa é uma questão geral. Ocorre porque tem raiz
nessa relação entre capitalismo e território, capitalismo e metrópole. Em cada uma
dessas fases, podemos pensar que a questão pode emergir a partir das necessidades
sociais, das reivindicações, das lutas. Mas, ao mesmo tempo, quando olhamos
o que está acontecendo em termos de transformação social e transformação do
mercado de trabalho etc., essa possibilidade de mobilização das forças que estão
presentes nas metrópoles e que estão vivendo as consequências do não planeja-
mento, as consequências da não regulação, as consequências da não governança,
a probabilidade é muito mais difícil.
Se nós brasileiros temos como característica da nossa formação histórica uma
fragmentação social como constituidora da gente, então o trabalho nunca foi,
de forma forte, o universalizador da experiência social no capitalismo brasileiro,
porque o trabalho assalariado sempre foi parcial. O resto da força de trabalho era
uma grande massa de trabalhadores vivendo na informalidade, como exército
industrial de reserva. Então isso fragmentou o mundo social popular, mas que
teve uma resposta interessante em termos de unificação naquele momento da luta
pela democracia, e no qual o urbano até teve um papel importante nessa junção
de pedaços da estrutura social, inclusive com algumas ideias mais unificadoras.
Mas hoje, com essa generalização da informalidade como padrão, na “urberiza-
ção”, como muitos têm falado, o trabalho assalariado é apanágio da classe média.
86 | 50 anos de regiões metropolitanas no Brasil e a Política Nacional de Desenvolvimento Urbano

A constituição de um sujeito capaz de representar um interesse metropolitano se


torna mais difícil ainda do que já era antes, dados os efeitos dessa fragmentação.
Claro, nada impede a política. Faz bem a gente acreditar nisso!
É possível construir visões coletivas, apesar da dificuldade de unificá-las na
experiência desse coletivo. Há também valores nessa história que podem mobilizar
para além dos interesses individuais. Continuo acreditando nessa possibilidade,
mas é mais difícil, hoje, achar que, de baixo para cima, você seja capaz de constituir
uma força com poder, com capacidade de constituir um sujeito desse interesse
urbano, e muito menos metropolitano.
Ipea: Só para complementar a pergunta. Desde a origem, o observatório trata
desses grandes movimentos da economia e da sociedade, de como esses impactos
se traduzem também nos territórios; mas, pensando como um grande sistema, o
território também tem fricções. Por exemplo, mesmo do ponto vista do tema da
gestão metropolitana, algumas metrópoles ainda reúnem uma certa condição de
refletir sobre as externalidades negativas de municipalizar certos processos decisórios.
Penso na organização de parte do sistema de transporte de São Paulo, por exemplo,
que é um pouco diferente do Rio de Janeiro. Aqui não se consegue discutir nada
sobre o transporte metropolitano, quanto mais sobre metrópole!
Essa concessão da Companhia Estadual de Águas e Esgotos do Rio de Janeiro
(Cedae)9 mostrou muito bem que, aqui no Rio de Janeiro, a RM institucionalizada
se mostrou um entrave a mais, do ponto de vista legal, para se um montar a equação
econômico-financeira da concessão do saneamento. Nesse sentido, implodiram a
própria noção e a institucionalidade do metropolitano, ao pegarem partes da RM
e juntarem com municípios de outras regiões do estado. Para quem não conhece
este processo, há municípios do interior do estado do Rio de Janeiro que fazem
parte de um mesmo bloco de concessão de serviços de saneamento com municípios
da metrópole. Em certos casos, inclusive, formando um mix com apenas alguns
bairros da cidade do Rio de Janeiro. Logo, em alguns lugares, o metropolitano
e sua institucionalidade não querem dizer muita coisa, mas, em outros, ainda
há resquícios de seu papel. Em algumas RMs ainda se consegue manter alguma
estrutura de planejamento e gestão numa escala supramunicipal, o que depende
de uma série de arranjos político-institucionais, talvez porque ela seja entendida
como funcional para certos atores políticos e econômicos locais.
Nesse sentido, pergunto: a criação das RMs no Brasil, como um modelo
tecnocrático, dotado de algumas estruturas do Estado, ainda é importante? Nesse
sentido, gostaria que você falasse um pouco sobre como o observatório está tra-
balhando as dezesseis metrópoles, porque queria saber se há um movimento de

9. Disponível em: http://www.concessaosaneamento.rj.gov.br/.


A questão metropolitana brasileira | 87

fundo comum, mesmo se considerando dinâmicas locais regionais diferenciadas.


O que é possível fazer para avançar nesta temática? Ou joga-se o tema fora, porque
já perdeu o sentido?
Luiz Cesar de Queiroz Ribeiro: Nos trabalhos que vocês do Ipea fizeram antes,10
naquele trabalho que vocês identificaram, nas trajetórias das RMs, nas respostas
diferentes que existem, há um elemento disso, Gustavo, que é a própria história
institucional dos governos estaduais. A chave está muito aí. Alguns governos esta-
duais são menos desinstitucionalizados como Estado, contam com um aparelho do
Estado. Por exemplo, o Rio de Janeiro é um governo sem institucionalidade. O que
significa dizer que é um governo de arranjos ad hoc, completamente de curto prazo
e de interesses particulares, em torno de seus interesses, sem compromisso com
qualquer visão de conjunto. Talvez seja o caso mais extremado no Brasil. Mas não
acho que isso seja algo muito ausente nos outros estados, nas outras experiências;
mas acho que há graus diferentes de desinstitucionalização estatal.
Esse é um conceito que temos agora incorporado, o conceito de estatalidade.
Se fizermos um estudo comparativo, acho que veremos diferenças no grau de de-
sinstitucionalização dos governos estaduais, porque tem a ver, por um lado, com
heranças institucionais que criaram uma burocracia técnica etc. A burocracia se
move, tenta mobilizar as forças políticas por interesse ou por crença. Então, às
vezes, as duas coisas ao mesmo tempo – inclusive interesse profissional. Acho que
é uma realidade, e as diferenças têm muito a ver com as histórias institucionais
dos governos estaduais em geral, e dos aparelhos que foram constituídos para lidar
com esse tema, que terão um papel maior ou menor no sentido de restaurar algum
tipo de visão metropolitana.
A importância da questão metropolitana dá-se em função também das con-
junturas eleitorais políticas. Por exemplo, agora, no Rio Grande do Norte, há uma
governadora que tem uma relação muito forte com esse tema e abre espaço para
essa questão aparecer. Então, também as conjunturas políticas vão dando diferenças
dessa raiz mais da história institucional dos governos. Eu acho que ter planos, ter
propostas, ter diagnósticos, ter estudos, por exemplo, pode ajudar muito a gente
a vencer essa orfandade da questão metropolitana.
Acho que a política – vou falar uma coisa muito abstrata aqui, mas é como
eu penso –, a política tem que ser pensada como a confluência de uma razão que
é a razão do interesse; uma razão que é a razão dos valores; e uma razão que tem a
ver com a racionalidade propriamente dita. Portanto, a direção cognitiva pode ter
uma importância na produção do fato político. Então é possível, mesmo quando
os interesses são fragmentadores, se construir uma coisa que, embora não supere

10. Série Governança Metropolitana no Brasil. Disponível em: http://brasilmetropolitano.ipea.gov.br/.


88 | 50 anos de regiões metropolitanas no Brasil e a Política Nacional de Desenvolvimento Urbano

essa fragmentação, tenha referências passíveis de convergência desses interesses pela


razão e, ao mesmo tempo, pela crença, pela dimensão axiológica. E aí alguns temas
são hoje fundamentais para mobilizarmos como argumento mais axiológico. Por
exemplo, a questão climática: esse discurso tem um sentido mobilizador hoje. Ou
a gente faz alguma coisa ou vamos naufragar nos efeitos da transição climática,
junto com a transição energética.
Por um lado, isso tem uma dimensão cognitiva, mas tem uma dimensão
também axiológica. Acho que a questão da saúde abriu também um espaço passível
de construir um discurso com potencial unificador, em razão da covid. Eu achava
(era mais otimista antes quando a covid veio. Até cheguei a escrever sobre isso.
Eu olho lá o que eu escrevi, e penso: “realmente você é um iludido” [risos]), que
realmente a covid ia fazer um papel semelhante ao que a questão sanitária fez na
virada do século XIX para o XX, de mobilizar a sociedade, as forças, a ideia de que
alguma coisa tem que ser feita em prol de alguma ideia de interesse geral. Porque
a covid, de certa maneira, mais ou menos tinha esse potencial de democratização
que tinha o mosquito lá da febre amarela. Como pode atingir todo mundo, então,
antes que atinja todo mundo, é preciso que todo mundo pense como todo mundo,
mas, na verdade, acabou que não foi exatamente isso que aconteceu.
Mas acho que estão colocadas como pautas, antes, a saúde, a questão ener-
gética e tal. Outras questões, como a questão da mobilidade, também podem
potencialmente abrir esses espaços, projetos, unificar uma visão política, e se or-
ganizarem pelo interesse, pelos valores e pela razão. Para isso é preciso ter a gente
que formule ideias sobre essa visão coletiva, e como deve ser discutida. Então,
é preciso Ipea, é preciso universidade, é preciso burocracias técnicas. Isso pode
jogar um papel importante. Esses atores podem unificar essas gramáticas, podem
botar em discussão a questão metropolitana e tentar mobilizar as forças da política
institucional, as forças da sociedade, as forças da economia etc., numa perspectiva
mais de guerrilha do que de guerra de posição, do que de guerra de tomada de
território. Assim, podemos avançar, podemos recuar. De certa maneira, estamos
apostando nisso; nesse último ciclo de pesquisas, essa é a temática da reforma
urbana. Há uma ideia de que se chegarmos lá e dissermos que é possível ter uma
estratégia nessa direção aqui, lá nas eleições municipais, isso pode ter algum tipo
de importância no debate político-eleitoral de cada localidade. Portanto, cabe a
nós, talvez, esse papel, que é por onde podemos sair um pouco desse impasse, o
impasse da orfandade da metrópole.
Ipea: Pensando nessa orfandade e fazendo o caminho inverso, nas últimas
eleições, tivemos muita gente analisando o processo político e dizendo que faltou
aos setores progressistas, ou coisa que o valha, estar de volta às bases, às políticas
municipais, a essa esfera local como uma forma de fazer com que todos esses
A questão metropolitana brasileira | 89

processos de fragmentação em curso buscassem algum tipo de nova organização,


de uma nova unidade, justamente fazendo um contraponto a essa fragmentação.
Como é que essa análise joga com o metropolitano? Como é que você faz essa
avaliação, e como é que a questão metropolitana entra nisso?
Luiz Cesar de Queiroz Ribeiro: Sim, eu acho que a gente perdeu. Eu falo a gente,
o campo político progressista que se moveu esses últimos anos, nas últimas déca-
das, em torno de uma visão de Brasil mais democrática, mais igualitária e com uma
capacidade de se projetar para o futuro através de um desenvolvimento. Perdemos
porque acreditávamos muito na possibilidade de essas ideias terem uma conexão
com o mundo popular e as políticas sociais serem um grande veículo dessa cone-
xão. Acontece que esse mundo popular mudou muito. Então, por um lado, há a
própria mudança do trabalho, fragmentando mais ainda esse mundo; por outro
lado, tudo o que aconteceu também em termos de uma propagação da ideologia
liberal, do autoempreendedorismo. E isso só ganha força e a capacidade de mu-
dar mentalidades porque também se conecta com novos modelos socioprodutivos.
O cara acredita que é da força dele, do mérito dele, que ele vai sair do lugar em que
está, porque está lá fazendo o trabalho de, enfim, dirigir automóvel para a Uber. Então,
não é uma ideia que tem a força só por ela. Ela se conecta com uma experiência social
extremamente nova que dá essa ilusão de você poder não precisar do mundo do traba-
lho assalariado e dos seus aparatos institucionais: sindicato, associação profissional etc.
Houve também um efeito dessa penetração da ideologia do empreendedorismo
ou do autoempreendedorismo, desconectando as pessoas a tal ponto que todas
as mudanças que ocorreram – e alguns estudos mostram isso durante o período
Lula – eram percebidas por uma parcela grande do mundo popular como mérito
próprio das pessoas. E há também toda a cultura neopentecostal que grassou e grassa
entre nós, adicionando ainda mais esses elementos de uma visão individualizada do
mundo, pelo menos do mundo que tem a ver com essas questões mais coletivas.
Porque, dentro da igreja é individual, mas também há coletivo, mas que só é válido
para aqueles que fazem parte desse coletivo. Então, há um individualismo, uma
cultura como ideologia, como experiência que fez a desconexão do indivíduo com
o coletivo. E o grande desafio nosso é tentar refazer essa conexão. De certa maneira,
a eleição do Lula foi um bálsamo, embora se esperasse que fosse um pouquinho
menos complicada do que foi. Porque, se não fosse o Nordeste, a gente estaria
frito. Se fossem as áreas metropolitanas, a gente estaria frito. Então, essa é uma
questão complicada para a gente pensar: como arregimentar essas camadas sociais
em torno de um projeto mais comum, mais coletivo?
Ipea: Havíamos reservado uma pergunta que ficasse em aberto, mas sem a
expectativa ou o compromisso de uma resposta inteira. Ela parte da seguinte ideia
que tem a ver com o que você acabou de colocar. O “gancho” é o seguinte: vemos
90 | 50 anos de regiões metropolitanas no Brasil e a Política Nacional de Desenvolvimento Urbano

essas transformações do mundo do trabalho, desse norte que é a interpretação da


relação capital-trabalho, do efeito disso no espaço.
A tese da brasilianização do mundo levantada por Alex Hochuli (2021), mas
já elaborada anteriormente em A fratura brasileira do mundo, de Paulo Arantes
(2001), traz alguns pontos abordados na pesquisa Regimes Urbanos (atualmente
tocada pelo observatório) e destacados por pesquisadores e jornalistas como João
Paulo Rossati. Entre tais pontos está a transformação das cidades brasileiras em
máquinas de crescimento propiciadas pela resposta “neoliberal” às dramáticas fra-
turas sociais que opõem “bárbaros e civilizados”, despolitizando a desigualdade, a
precarização da vida e a violência entre as classes subalternas, substituindo a política
e a ação democrática por uma “gestão de tipo empresarial, destinada a substituir
a imagem problema de uma cidade dualizada pela imagem competitiva de uma
cidade reunificada em torno dos negócios da máquina urbana de crescimento”
(Rossatti, 2022).
A partir dessa tese da brasilianização do mundo, e considerando-se que, ao
longo do século XX, buscamos nas experiências, sobretudo da Europa e América
do Norte, categorias e métodos para estudarmos as metrópoles brasileiras – por
exemplo, a própria ideia de regimes urbanos, inspirada no trabalho de Kantor e
Savitch –, quais categorias e/ou métodos o campo de estudos urbanos brasileiro,
em particular a rede do Observatório das Metrópoles, pode aportar para a análise
das metrópoles, globalmente?
Luiz Cesar de Queiroz Ribeiro: É uma pergunta difícil. Mas, antes de eu respon-
der, deixa só adicionar mais um ponto no que nós estamos falando. O que aconteceu
também, no mundo das classes médias, foi que também desconstruíram atores que
antes tinham potencial de envolvimento com as questões urbano-metropolitanas.
A classe média mais profissional teve um papel importante. Se tomarmos a história
dos movimentos sociais, a história das reivindicações urbanas, aparece sempre uma
espécie de articulação entre inciativas tomadas por camadas populares e iniciativas
tomadas por alguns segmentos de classe média, exatamente movendo-se para além
dos interesses particulares para uma direção mais axiológica, mais de valores, o que
acabou tendo um protagonismo na cena urbana brasileira em alguns momentos.
E essa classe média está, hoje, em um processo de transformação muito radical e
muito acelerado, onde essa ideia da visão individual também grassa de maneira
mais forte ainda. Ou seja, o desinteresse com relação aos interesses e às questões
mais gerais. E isso também pode ser adicionado como efeito dos modelos de or-
ganização habitacional, corolários, de certa maneira, desse afastamento da classe
média dos interesses públicos.
Mas, indo à pergunta que não sei se eu consigo responder de maneira muito
precisa, esta é uma preocupação nossa. É uma preocupação nossa de travar uma
A questão metropolitana brasileira | 91

relação crítica com as teorias, os conceitos e as visões sobre o urbano, sobre os nos-
sos temas, aos quais estamos inevitavelmente relacionados e expostos. Não temos
como fazer o trabalho que fazemos se não usarmos essas categorias, seus conceitos,
porque a academia hoje é uma academia global. E a dependência também está aí.
Esses critérios que nós temos hoje, na avaliação do trabalho acadêmico, são critérios
também que vêm dessa concepção hegemônica que tende para o Norte Global.
E, se não dermos conta desses critérios, de um padrão, também ficamos fora da
academia; então, inevitavelmente temos que usar esses modelos, esses conceitos
e as categorias. O que fazemos é uma atividade crítica na maneira como incor-
poramos esses conceitos. Isso tem a ver com algumas práticas acadêmicas nossas.
Por exemplo, fazemos parte da Rede Latino-Americana Interurbana que, de certa
maneira, resulta exatamente dessa preocupação nossa (não apenas nossa, porque
tem outros atores envolvidos nessa história... mexicanos, argentinos, chilenos etc.)
de tentar construir uma visão crítica dessas teorias, e, a partir disso, tentar formular
alternativas conceituais que possam traduzir não só a nossa historicidade, mas a
crítica a esses modelos. Assim, a busca da nossa historicidade teórica faz parte da
nossa preocupação.
Por exemplo, orientei a tese de doutorado de Hector Mancilla – publicada em
livro pelo observatório (Mancilla, 2020) –, que propôs uma tese muito interessante
nessa direção. Até acho que, em algum momento, andamos discutindo uma leitura
da história do pensamento humano brasileiro do século XX, não apenas brasilei-
ro, mas latino-americano, e como essa história revela uma hegemonia das visões
do Norte em relação à nossa realidade urbana. Discutimos, usando um pouco o
conceito de geocultura do Immanuel Wallerstein, como o lugar onde essas ideias
ganham importância e capacidade de hegemonia, uma vez que cumprem um papel
de legitimação e viabilização da dominação em nível global. Esse é aquele trabalho
que nós fizemos lá no passado, que se materializou naquele livro Cidade, povo e
nação, no qual abordamos o período do século XIX e um pouco mais do século XX.
Hector Mancilla criou um conceito a partir daí, que é o urbanismo racial.
Quer dizer, o urbanismo racializado como forma de ação sobre a cidade, a partir
da dominância dessa hegemonia, desses conceitos, dessas categorias, nos modelos
de planejamento. Um trabalho bastante exaustivo o dele, porque pegou a realidade
não só brasileira, mas chilena etc. Foi ver, por exemplo, nos sistemas de ciência e
tecnologia, como o campo das ciências sociais aplicadas –, especificamente aqueles
que falam sobre a cidade, estão organizados por temas que revelam essa transmissão
de hegemonia.
Portanto, é uma atitude. Eu não sei lhe responder o que é que nós po-
demos ensinar para o mundo, embora tenha esse conceito de brasilianiza-
ção. E Paulo Arantes fez uma revisão dele mesmo agora, nos últimos tempos.
92 | 50 anos de regiões metropolitanas no Brasil e a Política Nacional de Desenvolvimento Urbano

E uma revisão que dá uma conotação pejorativa a essa ideia dentro desse de-
bate, lá entre o alemão e o americano,11 na leitura sobre como esse padrão bra-
sileiro se torna um padrão mundial. O americano mais otimista, o alemão
mais pessimista. Mas, enfim, eu não sei dizer o que que a gente produziu.
Acho que buscar a historicidade das teorias urbanas é uma das questões. E, ao mesmo
tempo, toda essa preocupação nossa de estudos comparativos também responde a
isso, porque internamente não se vê o urbano brasileiro como uma coisa homogênea,
mas através das categorias que também são homogeneizadoras a partir dos centros
internos. Então tem mais uma atitude metodológica, teórica, do que de fato uma
intenção de produzir nesta direção. É uma atitude teórico-metodológica de con-
fronto, então; no confronto, mas não estamos nessa corrente do pós-colonialismo.
Ela não faz parte, ainda, pode ser que venha a fazer parte dos ideários que são
compartilhados mais amplamente no observatório. Sei que tem gente no nosso
campo que vai nessa direção de pensar uma teoria singular pós-colonial. Mas não
estamos nessa vibe, não. Não por achar que não tenha sentido, mas porque ela não
se colocou para a gente como uma questão a ser enfrentada ainda.
Ipea: Luiz Cesar, eu queria aproveitar uma palavra que você usou, que é essa
noção de projeto. Pela minha experiência na burocracia, passa-se pelos lugares, pelas
instituições, lida-se com a política e, quando se está dialogando com o político ou
com quem está no poder, dentro de algum órgão, nota-se uma incrível ausência
de projeto, tanto no sentido mais pragmático do que é projeto, quanto no sentido
mais macro. Muitas vezes até há um projeto sob o ponto de vista ideológico, numa
ou noutra direção, mas não chega a se constituir num projeto, numa agenda de
ação, no sentido pragmático. Os processos decisórios são muito idiossincráticos,
repletos de inputs de diferentes graus de influência. Então, quando se oferta um
caminho mais claro, uma solução para um problema concreto, algumas vezes isso
ajuda a mudar os rumos da decisão.
Para o bem, para o mal, as burocracias públicas ainda têm um papel, mas você
falou que o observatório está pensando nessa lógica de agendas. Então, para sair
da visão crítica para a proposta, será que há um espaço para produzir propostas e
projetos para entregar e disputar com esses atores da política? Essa é uma proposta
que o observatório se coloca agora?
Luiz Cesar de Queiroz Ribeiro: Olha só, abri aqui até o documento que está
orientando agora o que faremos nessa nova etapa que termina ano que vem, e que
resultará numa nova coleção. O projeto se chama Estratégias para o Desenvolvimento
Urbano, Inclusivo, Democrático, Sustentável nas Metrópoles, e, dentro desse projeto,
haverá uma parte que é a formação de atores, continuando aqui – nesse projeto – o
que já vimos fazendo há algum tempo, mas agora de uma forma mais ampla, mais

11. Em referência ao debate, ver Sombini (2023).


A questão metropolitana brasileira | 93

sistemática. E há uma outra parte que resultará na publicação de uma coletânea. O


nome dessa coletânea deverá ser Metrópole e o direito à cidade, um outro futuro é possível.
Estamos menos preocupados, nesse momento, com a viabilidade política do
que faremos (sugestões de estratégias), do que com a capacidade de isso ser algo que
possa ser tomado como referência para o debate, considerando-se que essa capaci-
dade de influência que as nossas ideias podem ter é muito mais viável se ela sair do
diagnóstico para dizer o que pode ser feito.
Estamos tentando, através dessa busca, construir uma estratégia, fazer com que
essas ideias se articulem dentro dessa chave que eu falei aqui, da política também
ser objeto da razão cognitiva. E, assim, haver uma referência do que pode ser feito.
E, sim, a ideia de projeto, portanto, está aqui colocada dentro dessa perspectiva
de alguma coisa estratégica, mais do que a ideia de um projeto executivo, projeto
viável. E acho que isso tem importância.
Agora, usando o que você formulou, eu diria o seguinte: estamos mirando
nas estratégias que dizem respeito a quatro questões que são fundamentais. Uma
é a questão da desigualdade. Isso significa pensar estratégias que acionem desde
o projeto algo um pouco diferente do Bolsa Família ou da renda mínima univer-
sal, porque esse é um projeto ou tipo de iniciativa de que todo mundo é a favor,
porque não é redistributivo. Está a favor o liberal, está a favor um progressista,
está a favor o conservador, está o revolucionário, todo mundo é a favor disso. Pois
isso aí é uma ação ganha-ganha, todo mundo ganha. Agora, quando falarmos de
questões que são redistributivas, aí a coisa é um pouco mais diferente, porque é
um confronto de interesses que estão organizados na questão distributiva, que é o
fundamento da desigualdade brasileira, que tem uma expressão no urbano. Então
essa é a estratégia, no sentido de tentar pensar ações que enfrentem as desigualdades
na cidade, na metrópole, em alguns campos que elegemos (habitação, transporte
etc.). Nesses campos, o diálogo fica um pouco mais diferente.
Imagine, diante de um governador como o Sérgio Cabral,12 alguém, dizer:
“Então olha, meu amigo, nós temos que botar aqui o solo criado para a gente
capturar a mais-valia da cidade toda, produzida pelo capital incorporador, para
financiar um fundo de investimento para melhorar as moradias das favelas”. Nesse
caso, a discussão muda de tom. Então, a ideia é pensar o projeto nesse sentido
estratégico e de alguns temas. Um tema é este: como dar conta das desigualdades?
O outro tema é o climático, que tem uma conexão com a desigualdade, mas não é
a raiz da questão. Há um discurso, uma narrativa mais universalizadora, mas é uma
questão que está na pauta, para qual tem que ter respostas. A outra é a questão
democrática. Se nós, de fato, não construirmos uma democracia efetiva, colocando

12. Sérgio Cabral Filho, governador do estado do Rio de Janeiro entre 1 de janeiro de 2007 e 3 de abril de 2014,
quando renunciou ao cargo.
94 | 50 anos de regiões metropolitanas no Brasil e a Política Nacional de Desenvolvimento Urbano

nos processos decisórios atores que estão excluídos, não só no orçamento, mas
no processo decisório. Pôr no orçamento já está ótimo, mas tem que botar nos
processos decisórios também. Precisamos de uma estratégia de como democratizar
de fato, retomar a agenda da gestão democrática, inovando naquilo que foram
os limites da experiência anterior, mas retomando coisas importantes, como o
orçamento participativo.
Nunca se discutiu, nem foi muito participativo aqui no Rio de Janeiro. Em
vários lugares conservadores, o orçamento participativo é inclusive tematizado,
porque até as agências multilaterais colocaram isso como elemento de avaliação de
projeto, o quanto ele é participativo. “Olha, temos que ter participação...”; “Ah,
então vamos fazer na medida do possível...”. Aqui, se sairmos com a discussão,
tentaremos mobilizar os atores... Esse estudo será um estudo de avaliação das con-
dições institucionais, financeiras e políticas da retomada do orçamento participativo
em cada localidade; mas, no Rio de Janeiro, queremos traduzir isso na proposta
de um modelo e tentar operacionalizar a ideia, o modelo. É essa operacionalização
que é uma capacidade maior a ser incorporada no debate.
A questão democrática me parece que é fundamental; sem isso, a gente
também não vai sair do lugar. E a outra questão é o fortalecimento institucional.
Ou seja, institucionalizar o Estado, e aqui, nas RMs e no Rio de Janeiro, no nosso
caso, institucionalizar os governos sobre a cidade. Então, como é que forçamos a
adoção de padrões de governo que sejam minimamente institucionais? E como
esses padrões podem incorporar um processo decisório que seja estabilizado e
baseado em informação, baseado em argumento, numa coisa que possa ser uma
prática, um modelo que possa ter a possibilidade de mediação entre os interesses
particulares e privados, e baseado em alguma ideia de interesse geral?
Essas quatro questões não são algo que está colocado como desafio para
nossa agenda apenas, mas são um desafio para o Brasil. Inclusive essa última.
O que alcançamos de grau de institucionalização do governo federal, perdemos
de uma forma muito radical. Então é assim, em nível local; é a ideia do projeto.
Primeiro, a ideia do projeto pensando do ponto de vista estratégico, e se tendo
uma ideia prévia de que é possível; inclusive, admitida a possibilidade de coisas
utópicas, formulações utópicas. Mas a ideia é dar uma direção, uma linha para
onde possamos e devemos ir. Depois, essa ideia de estratégia fundada na discussão
desses temas: desigualdade, questão climática e energética, questão da democracia
e questão institucional.

REFERÊNCIAS
ARANTES, P. A fratura brasileira do mundo: visões do laboratório brasileiro da
mundialização. Petrópolis: Vozes, 2001.
A questão metropolitana brasileira | 95

AZEVEDO, S.; RIBEIRO, L. C. de Q.; SANTOS JÚNIOR, O. A. dos. (Org.).


Cultura política, cidadania e voto: desafios para a governança metropolitana. Rio
de Janeiro: Letra Capital, 2012. Disponível em: https://observatoriodasmetropoles.
net.br/arquivos/biblioteca/abook_file/cultura_politica_2012.pdf.
HARVEY, D. A justiça social e a cidade. São Paulo: Hucitec, 1980.
HOCHULI, A. The brazilianization of the world. American Affairs, v. 5, n. 2,
2021. Disponível em: https://americanaffairsjournal.org/2021/05/the-braziliani-
zation-of-the-world/.
MANCILLA, H. M. R. La encuesta urbana sobre geocultura: ciclos de importa-
ción, exportación y traducción de conocimiento sobre ciudades de América Latina.
Rio de Janeiro: Letra Capital; Observatório das Metrópoles, 2020.
MYRDAL, G. Teoria econômica e regiões subdesenvolvidas. Rio de Janeiro:
Iseb/MEC, 1960.
MOISÉS, J. Á. et al. (Org.). Contradições urbanas e movimentos sociais. Rio
de Janeiro: Paz e Terra/Cedec, 1978.
ROSSATTI, J. P. A hipótese da brasilianização do mundo (ou “as ideias em seu
lugar”). LavraPalavra, out. 28, 2022. Disponível em: https://www.lavrapalavra.
com/2022/10/28/a-hipotese-da-brasilianizacao-do-mundo-ou-as-ideias-em-seu-lugar/.
SOMBINI, E. Mesmo sem projeto, Lula terá sucesso se frear extrema direita, diz
Paulo Arantes. Folha de S.Paulo, 11 mar. 2023. Disponível em: https://www1.
folha.uol.com.br/ilustrissima/2023/03/mesmo-sem-projeto-lula-tera-sucesso-se-
-frear-extrema-direita-diz-paulo-arantes.shtml.
VETTER, D.; MASSENA, R. Quem se apropria dos benefícios líquidos dos
investimentos do Estado em infraestrutura? Uma teoria de causação circular. In:
MACHADO DA SILVA, L. A. (Org.). Solo urbano. Rio de Janeiro: Zahar, 1981.
p. 49-77.
CAPÍTULO 5

AS METRÓPOLES BRASILEIRAS: A INCONTORNÁVEL


REFORMA URBANA
Luiz Cesar de Queiroz Ribeiro
Sérgio de Azevedo
Juciano Martins Rodrigues

1 INTRODUÇÃO
As metrópoles navegam à deriva na trajetória do nosso desenvolvimento capitalista.
O padrão fragmentado e fragmentador da intervenção pública sobre seus territórios
evoca a hipótese de A Marcha da Insensatez, formulada pela historiadora Bárbara
W. Tuchman (2003). Baseada em vários acontecimentos históricos nos quais se
observou a adoção pelos governos de políticas contrárias aos seus próprios interesses,
da guerra de Tróia à guerra do Vietnam, a historiadora catalogou situações nas quais
uma espécie de cegueira coletiva conduziu os governantes a atitudes desastrosas,
plenamente evitáveis se a sensatez prevalecesse como critério na tomada de decisão.
Por exemplo, logo no início do seu livro, Tuchman interroga-se sobre as razões
que explicariam o fato de os dirigentes de Tróia terem permitido o ingresso dentro
de seus muros daquele cavalo de madeira, portador de todos os sinais de que algo de
muito errado e ameaçador estava anunciado. Com base em outros exemplos his-
tóricos, ela constata que, apesar dos enormes progressos da ciência e da tecnologia
com os quais os seres humanos vêm conseguindo controlar a natureza; a despeito
das condições hoje disponíveis para prever e antecipar os acontecimentos; apesar,
portanto, do aumento da capacidade de governabilidade das sociedades, verificamos
inúmeros casos de desgoverno que muitas vezes resultam em catástrofes que atingem
os próprios interessados, aqueles que detêm os mandatos. Por que os governos são
incapazes de tomar decisões, até mesmo quando estas são úteis à manutenção do
poder? A autora propõe quatro razões: tirania ou opressão; ambição desmedida;
incompetência; e, finalmente, a insensatez. Esta última se manifesta sob duas for-
mas: por uma situação na qual ocorre uma decisão equivocada; ou por uma não
decisão diante de um problema percebido como tal pela coletividade, ao mesmo
tempo que existe uma alternativa viável para enfrentá-lo.
As reflexões, a partir dos resultados das pesquisas e das reflexões desenvolvidas
pela rede Observatório das Metrópoles, indicam a existência de claros sinais da
cegueira das nossas elites econômica e política quanto aos desafios colocados pelos
98 | 50 anos de regiões metropolitanas no Brasil e a Política Nacional de Desenvolvimento Urbano

problemas acumulados em nossas metrópoles. Com efeito, estas se mostram incapazes


de mobilizarem-se em torno de um projeto de construção de instituições que aproveite
a força produtiva e o potencial concentrado em um sistema urbano-metropolitano
complexo e diversificado como o brasileiro – somente comparável a poucos países
do mundo – e que, ao mesmo tempo, evite sua anulação pelos potenciais desastres
sociais e ambientais presentes de maneira evidente nas metrópoles brasileiras.

2 A ERA DAS METRÓPOLES


As metrópoles estão no centro dos dilemas societários contemporâneos. As trans-
formações tecnológicas, sociais e econômicas em curso desde a segunda metade
dos anos 1970 – em especial, as decorrentes da globalização e da reestruturação
socioprodutiva – aprofundaram a dissociação engendrada pelo capitalismo industrial
entre progresso material e urbanização. Segundo o último relatório do Programa
das Nações Unidas para os Assentamentos Humanos (ONU-Habitat), a popula-
ção urbana de países de baixa renda, que era de 100 milhões em 1975, vai passar
para 700 milhões em 2070. Além disso, as previsões apontam que nesses países
o número de cidades com mais de 5 milhões de habitantes chegará a 15 milhões,
com uma população de 150 milhões de habitantes, contra os 18 milhões que havia
em 2020 (UN, 2022).
Ao mesmo tempo, enquanto boa parte das metrópoles do hemisfério sul
continuará a conhecer taxas explosivas de crescimento demográfico, desprovido
do necessário progresso material, aquelas que concentram as funções de direção,
comando e coordenação dos fluxos econômicos mundiais encolherão relativamente
de tamanho. Nesse cenário, podemos imaginar duas condições urbanas: a gerada
pela vertiginosa concentração populacional em grandes cidades nos países que
estão conhecendo o processo de desruralização induzido pela incorporação do
campo à expansão das fronteiras mundiais do espaço de circulação do capital; e a
condição urbana decorrente da concentração do capital, do poder e dos recursos
de bem-estar social.
Ao mesmo tempo, apesar do aumento das assimetrias, as metrópoles vêm
intensificando seu papel indutor do desenvolvimento econômico em função da
exacerbação do conhecido papel das grandes cidades na inovação social e tecno-
lógica, como já mostraram trabalhos clássicos, a exemplo dos de Jacobs (1969;
1984) e Bairoch (1988), bem como pesquisas sobre a relação entre a globalização
e as metrópoles (Veltz, 1999; 2002; Storper e Venables, 2005).
Contudo, para que as metrópoles sejam mais que mera plataforma de atração
de capitais, mas, ao contrário, constituam-se em territórios capazes de reterrito-
rializar a economia, e de impedir o aprofundamento da disjunção entre Estado e
nação, é necessário que contenham os elementos requeridos pela nova economia
As metrópoles brasileiras | 99

de aglomeração da fase pós-fordista, entre os quais se destacam os relacionados aos


meios sociais germinadores da inovação, da confiança e da coesão social.
De fato, a redução dos custos da distância e das vantagens pecuniárias – pro-
duto da revolução dos meios de transportes e comunicação e dos novos sistemas
de gestão empresariais – conta hoje menos do que os efeitos de aglomeração de-
correntes da densificação das relações sociais, intelectuais e culturais. Veltz (2002)
menciona que as novas exigências competitivas são os recursos relacionais e menos
o estoque de recursos materiais de baixo custo. É claro que, para alguns setores
organizados sob procedimentos rotineiros de produção de commodities, funcionando
em enclaves de alta produtividade, mantendo relações apenas físicos-materiais com
o território, a localização se orienta pelo estoque de recursos materiais de baixo
custo. Entretanto, para os setores dinâmicos da economia globalizada importa que
as grandes metrópoles contenham o que Veltz chama de ecossistema relacional, tanto
na organização interna da empresa quanto nas suas interações com fornecedores,
profissionais, consumidores etc. Estudos mostram, com efeito, que as metrópoles
onde prevalecem menores índices de dualização e polarização do tecido social são as
que têm levado vantagens na competição pela atração dos fluxos econômicos – ou
seja, as que recusaram a lógica da competição buscando oferecer apenas governos
locais empreendedores e as virtudes da mercantilização da cidade.
Embora não seja exclusivo, o território entendido como espaço social tornou-se um
estratégico fornecedor de tais recursos relacionais, com a organização e os esquemas
de comunicação da grande firma.

3 AS METRÓPOLES BRASILEIRAS
O Censo Demográfico, do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE),1
referente a 2022 revelou que a população brasileira superou os 203 milhões de pes-
soas. Ao mesmo tempo, é provável que seus resultados reforcem também o fato do
Brasil como um país predominante urbano, confirmando uma taxa de urbanização
superior àquela detectada pelo Censo Demográfico 2010 (IBGE, 2012), 85%. Se
considerarmos o comentado anteriormente sobre a relação entre a urbanização
e o desenvolvimento econômico, trata-se de uma boa notícia, especialmente se
consideramos a presença das metrópoles na rede urbana.
No entanto, o que são metrópoles? Em primeiro lugar, é necessário distin-
guir essa categoria de cidade da realidade institucional designada como regiões
metropolitanas (RMs) no país. Obedecendo a Constituição Federal de 1967
(CF/1967), as primeiras RMs no Brasil foram criadas em 1973, por meio da
Lei Complementar (LC) no 14. Naquela época, foram instituídas as RMs de
São Paulo, Belo Horizonte, Salvador, Recife, Fortaleza, Belém, Curitiba e Porto

1. Disponível em: https://censo2022.ibge.gov.br/panorama/index.html.


100 | 50 anos de regiões metropolitanas no Brasil e a Política Nacional de Desenvolvimento Urbano

Alegre. Em 1974, com a fusão e a extinção do estado da Guanabara, foi criada


a RM do Rio de Janeiro. Durante muitos anos, o conjunto desses nove recortes
territoriais constituiu o quadro de referência metropolitano no país.
A partir de 1988, a responsabilidade pela criação e organização das RMs foi
transferida do governo federal para os estados, de acordo com o § 3o do art. 25
da Constituição Federal de 1988 (CF/1988), inaugurando um novo e contínuo
ciclo de institucionalização de novas unidades urbanas regionais. Desde então, mas
sobretudo após os anos 2000, o quadro oficial das unidades territoriais urbanas
vem sofrendo alterações, tanto na composição interna das RMs, com a inclusão e
a exclusão de municípios, quanto na criação de novas RMs, com o surgimento de
categorias de organização territorial com outras denominações: as regiões integradas
de desenvolvimento econômico (Rides) e aglomerações urbanas (AUs).
Até 31 de julho de 2021,2 o Brasil contava com 78 RMs, três Rides e três
AUs, definidas por lei federal ou estadual. Algumas regiões contam ainda com
colares metropolitanos, áreas de expansão metropolitana e entorno metropolitano
definidos em lei. No caso das Rides, vale lembrar, ainda, que sua composição inclui
municípios de diferentes Unidades da Federação (UFs).
Embora a maioria dessas unidades regionais institucionalizadas seja nucleada
por capitais estaduais ou por cidades que exercem peso populacional e funções
regionais imediatas relevantes, grande parte destas é criada por força da lei, sem
considerar nenhum critério que considere o fenômeno metropolitano concreto.
Muitas das vezes, essas unidades incluem municípios alheios a qualquer relação
com a dinâmica metropolitana e, ao mesmo tempo, estão longe de refletir qualquer
aderência a uma base conceitual consagrada (Moura et al., 2007).
Nesse contexto, diversos esforços empíricos têm procurado avançar na iden-
tificação dos polos de irradiação de uma dinâmica metropolitana de fato, que se
caracteriza não apenas pelo compartilhamento de funções de interesse comum –
como nas áreas de saneamento e transporte – e pela atração de fluxo de outros
municípios, como também pela identificação do território funcional de cada
metrópole. Tal território é compreendido pelos municípios que efetivamente têm
relações de interdependência no plano da produção, do mercado de trabalho, do
ambiente construído, da natureza e da vida coletiva.
A série de estudos Regiões de Influência das Cidades (Regic), do IBGE, tem
se consolidado como a principal referência sobre a caracterização da rede urbana
brasileira e a evolução do fenômeno urbano no país. A tabela oferecida por essa

2. Pode ser que, no momento da divulgação deste capítulo, a tabela já tenha se alterado, em virtude da própria dinâmica
de institucionalização de RM por parte de cada estado. Esse dado corresponde ao número de unidades territoriais urba-
nas institucionalizadas na data de referência do último levantamento disponibilizado pelo IBGE: 31 de julho de 2021.
As metrópoles brasileiras | 101

publicação é baseado no estabelecimento de hierarquias e vínculos entre as cidades,


bem como na delimitação das áreas de influência. Sua última edição, disponibi-
lizada em 2018, é resultado do aperfeiçoamento contínuo dos aportes teóricos e
metodológicos de trabalhos desenvolvidos desde a década de 1970 (IBGE, 2020).
Estudo de Ribeiro et al. (2012) é outro exemplo de esforço que buscou
identificar como cada município se posiciona na rede urbana, mas com foco na
integração à dinâmica da metropolização. A metodologia aplicada no relatório
Nível de Integração dos Municípios Brasileiros em RMs, Rides e AUs à Dinâmica da
Metropolização (Ribeiro et al., 2012) permitiu estabelecer uma classificação na qual
os municípios do país, que no momento do estudo faziam parte dos recortes oficiais,
são identificados segundo sua integração, contando com as seguintes categorias:
muito alta, alta, media, baixa e muito baixa, na dinâmica da metropolização.
Esse estudo parte do pressuposto de que a observação interna desses espaços –
até mesmo na escala municipal – pode fornecer relevantes informações sobre sua
configuração e como esse aspecto se relaciona à dinâmica socioespacial e à gestão dos
espaços metropolitanos. Além dos diferentes níveis de integração, uma das principais
características desses espaços são os contrastes persistentes entre o município-núcleo –
a maioria é capital de estado – e os demais municípios. Em termos populacionais,
por exemplo, os núcleos metropolitanos já apresentavam tendência de menor ritmo
de crescimento desde a década de 1990. Além disso, as mudanças econômicas no
último quarto do século XX afetaram diretamente parte desses territórios, que se
formaram como áreas de concentração dos setores mais modernos e dinâmicos da
economia e, agora, se tornam cada vez mais centros de serviços.
Por sua vez, mantendo uma trajetória iniciada nos anos 1980, os municípios
dos entornos dos núcleos apresentam tendência de crescimento além da média
do país. O estudo de Ribeiro et al. (2012) mostra que, até 2010, os municípios
classificados com alta e média integração à dinâmica metropolitana apresentaram
maior crescimento populacional nos últimos dois períodos intercensitários (1991-
2000 e 2000-2010). Esses municípios representam uma espécie de segundo anel
de evolução na maioria das estruturas metropolitanas, o que indica tendência de
expansão metropolitana em direção a municípios mais distantes dos núcleos, uma vez
que nem esses nem os municípios considerados extensão-polo ou com muito alta inte-
gração apresentam as taxas de crescimento que experimentaram em décadas anteriores.
Esses são apenas exemplos das mudanças na dinâmica populacional de tais
espaços, que, por sua vez, estão relacionadas tanto à consolidação desses espaços
como pontos de concentrações urbanas de natureza metropolitana, quanto à confi-
guração espacial, econômica e populacional que lhes confere poder para influenciar
outros pontos da rede urbana. São, por demais, espaços extremamente dinâmicos
dos pontos de vista demográfico e espacial.
102 | 50 anos de regiões metropolitanas no Brasil e a Política Nacional de Desenvolvimento Urbano

Nesse sentido, a própria consolidação dos espaços indiscutivelmente metropo-


litanos articula-se também com o surgimento de novas AUs e o fortalecimento de
centros não aglomerados no interior dos estados – as cidades médias, por exemplo –,
o que contribuiu para um reforço da rede urbana nacional (Moura, 2009; 2013).
Embora esse estudo forneça elementos importantes para entendermos de quais
objetos espaciais estamos falando quando acionamos o conceito de metrópole, a
edição 2018 do Regic (IBGE, 2020) de fato oferece não somente o estudo mais
atual sobre a rede urbana, mas também o mais completo e bem fundamentado
teórica e metodologicamente, consolidando-se como o principal quadro de refe-
rência sobre a rede urbana brasileira. Para além da óbvia necessidade de definição
de recortes territoriais que possam tornar mais claros os objetivos e os objetos de
intervenção pública, outras se impõem quando se trata da identificação das con-
centrações urbanas de natureza metropolitana. Trata-se da própria necessidade de
definir unidades de análise para os estudos que visam compreender os diversos
fenômenos que envolvem esses territórios. Mais que isso – e para além do que pode
parecer preciosismo acadêmico –, entendemos que é preciso discutir a concepção de
recortes institucionais que reflitam suas espacialidades econômica e físico-ambiental.
O ponto de partida, portanto, seria reconhecer um recorte territorial que possibilite
diagnósticos coerentes sobre os problemas que extrapolam os limites municipais e
as soluções que levem em conta as funções de interesse comum.
Como vimos, o estudo Regic 2018 (IBGE, 2020) identificou quinze centros
urbanos principais. São, por sua vez, pontos do território capazes de influenciar
todas as cidades no país, formando grandes regiões de influência direta. Um detalhe
metodológico fundamental desse estudo é que esses centros urbanos correspon-
dem ao que o IBGE definiu em estudo anterior – também a partir da noção de
integração – como arranjo populacional (AP), entendido como um agrupamento
de municípios muito integrados por possuírem deslocamentos frequentes de po-
pulações para trabalho e estudo (IBGE, 2016). Foram identificados 294 arranjos
populacionais no país, cobrindo 953 municípios.
Vale lembrar, também, que esses quinze espaços considerados metropolita-
nos têm enorme importância na concentração das forças produtivas nacionais.
Em 2012, esses mesmos espaços centralizavam 62% da capacidade tecnológica
do país, medida pelo número de patentes e artigos científicos, pela população
com mais de doze anos de estudos e pelo valor bruto da transformação indus-
trial (VTI) das empresas que inovam em produtos e processos; concentravam
também 55% do valor de transformação industrial das empresas que expor-
tam. Quando utilizamos o termo metrópole, portanto, estamos tratando de
espaços urbanos complexos e grandes (aglomerações com mais de 1 milhão de
habitantes), de conjuntos de unidades político-administrativas (municípios)
As metrópoles brasileiras | 103

diversas, com diferentes tamanhos e níveis de integração entre essas unidades,


que conjuntamente apresentam caráter metropolitano.
Apesar de muitos olhares apontarem tendências de desconcentração po-
pulacional a partir das metrópoles, pode-se notar que, no geral, estas seguem
abarcando significativa parcela da população brasileira. Embora com menores
ritmos de crescimento (0,38% ao ano – a.a.), segundo os primeiros resultados do
Censo Demográfico 2022,3 a participação da população metropolitana permanece
constante, em torno de 35%. Entre 2010 e 2022, os dados indicam uma sensível
queda na participação das metrópoles (35,2% para 34,7%).4 Apesar disso, houve
aumento absoluto de aproximadamente 3,1 milhões de habitantes, e, atualmente,
mais de 73 milhões de brasileiros residem nas metrópoles – em 214 municípios,
em um universo de 5.570. Esse conjunto de espaços considerados efetivamente
metropolitano está, em grande medida, inserido no quadro metropolitano brasi-
leiro oficial, que são as RMs institucionalizadas pelos estados, as Rides e as AUs.
Entretanto, diferem em tamanho e em conteúdo econômico e social da maioria
desses recortes institucionalizados por força da lei. O conjunto de municípios que
compõem esses recortes oficiais, embora some 1.215 no total, corresponde a apenas
23,7% da população do país e, entre os dois últimos censos, cresceu a 0,96% a.a.
Nos núcleos das metrópoles, os dados do Censo Demográfico 20225 mos-
tram uma perda de participação, com queda de 20,3% em 2010 para 19,2%.
Os municípios do entorno dos núcleos metropolitanos, por sua vez, ganharam 0,4%
de participação na população total do país (de 15% para 15,4%), apresentando
maior ritmo de crescimento populacional (0,78% a.a.) em comparação com os
do núcleo. Nesse caso, o que chama atenção é o aumento absoluto da população,
que passa de 28,5 milhões de habitantes em 2010 para 31,3 milhões em 2022,
aumento superior a 2,7 milhões de pessoas. O conjunto de recortes oficiais, com-
posto por RMs, Rides e AUs, abrange em torno de 23,7% da população do país,
com aumento de 0,9% na participação, a uma taxa de 0,91% a.a.
No caso dessas aglomerações, a taxa de crescimento populacional é praticamente
idêntica entre núcleos (0,91% a.a.) e nos entornos (0,9% a.a.). Entre 2010 e 2022,
a participação dos demais municípios do país diminuiu de 42,2% para 41,7%. Esses
municípios apresentam baixa taxa de crescimento populacional, embora maior que
as metrópoles; são municípios que crescem menos que os entornos metropolitanos e
os recortes oficiais e, também, estão abaixo da média de crescimento do país como
um todo (0,52% a.a.).

3. Disponível em: https://censo2022.ibge.gov.br/panorama/index.html.


4. De acordo com a prévia da População dos Municípios divulgado pelo IBGE, com base nos dados do Censo Demográfico
2022 coletados até 25 de dezembro de 2022.
5. Disponível em: https://censo2022.ibge.gov.br/panorama/index.html.
104 | 50 anos de regiões metropolitanas no Brasil e a Política Nacional de Desenvolvimento Urbano

Essa tendência geral de diminuição dos ritmos de crescimento da população


pode e deve ser analisada quando forem divulgados os demais dados do censo
realizado em 2022, sobretudo para que possam ser analisados também à luz das
mudanças na dinâmica demográfica, considerando-se aspectos como migração,
fecundidade e mortalidade. No caso específico das metrópoles, como são espaços
que primeiramente apresentam os indícios das mudanças no perfil e nos com-
portamentos da população, as taxas de crescimento mais reduzidas nesses espaços
muito se explicam por fatores relacionados à dinâmica especificamente demográfica,
seguindo o comportamento observado inclusive desde os anos 1980.

TABELA 1
População e taxa de crescimento em metrópoles, RMs, Rides e AUs, bem como nos
demais municípios do país (2010-2022)
2010 2022 2010-2022

Recorte espacial Taxa de


População População Variação
População População crescimento
(%) (%) absoluta
(%)

15 metrópoles 67.234.505 35,2 70.386.517 34,7 3.152.012 0,38


Núcleos 38.672.631 20,3 39.039.766 19,2 367.135 0,08
Entornos dos núcleos 28.561.874 15,0 31.346.751 15,4 2.784.877 0,78
63 RMs, Rides ou AUs 43.110.363 22,6 48.035.247 23,7 4.924.884 0,91
Núcleos 18.516.726 9,7 20.643.843 10,2 2.127.117 0,91
Entornos dos núcleos 24.593.637 12,9 27.391.404 13,5 2.797.767 0,90
Demais municípios do país 80.410.931 42,2 84.640.748 41,7 4.229.817 0,43
Total 190.755.799 100,0 203.062.512 100,0 12.306.713 0,52

Fonte: Censos Demográficos do IBGE. Disponível em: https://www.ibge.gov.br/estatisticas/sociais/populacao/9662-censo-


-demografico-2010.html?edicao=10503&t=resultados; https://www.ibge.gov.br/estatisticas/sociais/populacao/22827-
-censo-demografico-2022.html?edicao=37225. Acesso em: 7 nov. 2023.

Outras informações sobre inserção no mercado de trabalho, geração de renda


e riqueza também comprovam as enormes diferenças nesses universos. As quinze
metrópoles identificadas pelo Regic 2018 (IBGE, 2020) detinham, em 2020,
44,9% do produto interno bruto (PIB) do país e 37,7% do valor adicionado (VA)
da indústria. Chama atenção, ainda, que, nos quinze núcleos dessas metrópoles,
estão concentrados 27% do PIB. Por sua vez, nas 69 unidades territoriais oficiais
abarcavam em torno de 23% do PIB e 22,8% do VA da indústria, conforme a
tabela 2. Apesar dessas diferenças, o percentual de ocupados sobre a população
total de cada recorte espacial – não sobre o total do país – é relativamente próximo,
47,2% nas metrópoles e 46% nas outras 43 aglomerações.
As metrópoles brasileiras | 105

TABELA 2
Participação no PIB e no VA da indústria nas metrópoles, RMs, Rides e AUs e demais
municípios do país (2010 e 2022)
(Em %)
2010 2020
Recorte espacial
PIB VA da indústria PIB VA da indústria
15 metrópoles 50,0 41,8 44,9 37,7
Núcleo 32,0 20,1 27,2 15,0
Entorno do núcleo 18,0 21,7 17,7 22,8
69 RMs, Rides ou AUs 21,1 24,1 23,0 25,6
Núcleo 10,1 10,3 10,3 9,8
Entorno do núcleo 11,0 13,8 12,6 15,9
Demais municípios do país 28,9 34,1 32,1 36,6
Total 100,0 100,0 100,0 100,0

Fonte: Tabulação especial do IBGE.

Temos, pois, uma rede urbana que se organiza em multiescala e elevado


grau de heterogeneidade, com destaque para o grau de importância dos espaços
identificados como metropolitanos pelo IBGE. Além disso, o Brasil insere-se en-
tre os países do mundo com mais cidades com população acima de 1 milhão de
habitantes. Mais que um país com metrópoles, é possível dizer que o Brasil é um
país metropolitano, considerando-se que a evolução da rede urbana brasileira é
marcada também por elevada concentração nessas áreas, que passam a operar cada
vez mais como transmissoras de recursos humanos, materiais e de conhecimento,
redesenhando uma forte articulação em rede entre diversos pontos do território
nacional. Ao mesmo tempo, enquanto os espaços metropolitanos são cada vez do-
tados de funções políticas e econômicas superiores e concentradoras de ocupações
em atividades da indústria e dos serviços avançados, a maior parte de suas áreas
periféricas permanece desempenhando atividades tradicionais e apresentando altos
níveis de pobreza (Moura, 2009).
Assim, o panorama da metropolização brasileira mostra que, na região Sudeste,
São Paulo, Rio de Janeiro e Belo Horizonte continuam mantendo suas importâncias
econômicas e demográficas, enquanto Vitória exerce influência sobre uma extensa
região, apesar de sua proximidade com os principais centros urbanos do país. No
Sul, Curitiba, Porto Alegre e, mais recentemente, Florianópolis polarizam com
grande força as redes urbanas regionais. No Centro-Oeste, além de Brasília, que
já desempenha um importante papel na gestão do território nacional desde sua
fundação, Goiânia desponta como uma metrópole em franco processo de con-
solidação e com alta capacidade para polarizar uma grande região organizada em
torno da economia do agronegócio. As metrópoles da região Nordeste (Fortaleza,
106 | 50 anos de regiões metropolitanas no Brasil e a Política Nacional de Desenvolvimento Urbano

Recife e Salvador), cada qual com suas especificidades, continuam se expandindo


ainda com forte influência da industrialização e, nos últimos tempos, do chamado
imobiliário turístico, levando alguns autores a criarem inclusive o conceito de “me-
tropolização turística” (Dantas, Ferreira e Clementino, 2010). No Norte, Belém é
um importante centro que abastece de serviços os numerosos projetos econômicos
implantados no estado do Pará e em outras áreas da Amazônia Legal. Manaus, por
sua vez, além da primazia urbana sobre uma vasta área da Amazônia, constitui um
importante polo econômico por conta da presença da Zona Franca.
Ao mesmo tempo, não se pode esquecer da tendência de formação de uma
cidade-região em formação em torno da RM de São Paulo. A hipótese da emergência
de uma cidade-região6 no Brasil vem sendo objeto de vários trabalhos de investi-
gação, que colocam em evidência empírica tal tendência. O trabalho pioneiro de
Tolosa (1991) já apresentou alguns indicadores que apontam para a constituição
de uma região urbana global integrando o eixo Rio de Janeiro-São Paulo. Poste-
riormente, esse mesmo tema foi objeto da reflexão de Diniz (2006), que assume
certa cautela quanto ao conceito proposto pelo primeiro autor, ao considerar que
a existência de grande distância territorial seria um fator de constrangimentos
limitador à configuração dessa região. De qualquer forma, seja que escala assumir,
parece haver consenso entre especialistas sobre a emergência de metrópoles com
enorme complexidade, o que aumenta ainda os traços de multiescalaridade e he-
terogeneidade da nossa rede urbana.
Por fim, vale lembrar que o Regic 2018 (IBGE, 2020) identificou, além das
metrópoles, outros quatro níveis de hierarquia urbana: capital regional, centro
sub-regional, centro de zona e centro local. As metrópoles subdividem-se em três
níveis: grande metrópole nacional, metrópole nacional e metrópole. As capitais
regionais também se subdividem em três níveis: capital regional A, capital regional
B e capital regional C. Os centros sub-regionais, em dois níveis: centro sub-regional
A e centro regional B. Por fim, os centros de zona subdividem-se em centro de
zona A e centro de zona B.
Entre esses níveis, estão, portanto, as quinze concentrações urbanas iden-
tificadas como metrópole: São Paulo, Brasília, Rio de Janeiro, Belo Horizonte,

6. Esse quase conceito vem sendo debatido na literatura internacional nas áreas da economia e da geografia e decorre de
algumas interpretações a respeito dos impactos da globalização e da reestruturação produtiva nas grandes metrópoles
que foram berço do desenvolvimento industrial anterior. Estas passam a constituir-se em centros de serviços e comando
da economia global em diversas escalas, por abrigarem atividades financeiras, de serviços à produção, comercializáveis
a distância. Geralmente, as atividades que conferem as novas funções das antigas metrópoles estão concentradas nas
áreas mais centrais, mas conformam um território econômico em nova escala e com nova configuração; elementos
novos que criariam um território articulado com rede de interações econômicas. Parte dessa rede seria formada pelas
atividades que dão suporte a essa função de comando, coordenação e direção da economia globalizada. Vale a pena
a observação de Diniz (2006) sobre a necessidade de considerar, no exame das tendências, a conformação desse novo
modelo de cidade, não apenas as decorrentes das transformações do sistema socioprodutivo, mas também as encarnadas
pelos atores econômicos e por suas estratégias políticas na apropriação do território.
As metrópoles brasileiras | 107

Fortaleza, Salvador, Porto Alegre, Curitiba, Recife, Manaus, Goiânia, Belém,


Florianópolis,Vitória e Campinas. No segundo nível, encontram-se as capitais re-
gionais nível A, que correspondem aos arranjos populacionais de Aracaju, Maceió,
Ribeirão Preto – o único que não é capital de estado –, João Pessoa, Natal, São
Luís, Cuiabá, Teresina e Campo Grande. Trata-se, também, de um conjunto de
espaços urbanos de inequívoca importância, tanto por seus portes populacionais
como pelo papel que exercem nas redes urbanas regionais nas quais estão inseridos.
Juntos das metrópoles, esses espaços somam mais de 85 milhões de habitantes
e compõem os principais nós da rede urbana brasileira. Na figura 1, é possível
visualizar esses principais arranjos populacionais sobrepostos à extensa rede de
transporte rodoviário que estrutura o território nacional.

FIGURA 1
Brasil: núcleos das metrópoles e capitais regionais

Fonte: IBGE. Disponível em: https://www.ibge.gov.br/geociencias/downloads-geociencias.html. Acesso em: 7 nov. 2023.


Elaboração dos autores.
Obs.: Ilustração cujos leiaute e textos não puderam ser padronizados e revisados em virtude das condições técnicas dos
originais (nota do Editorial).

Consideramos que tais características da sociedade urbana podem ser conside-


radas como ativos se levarmos em consideração que as grandes cidades, especialmente
as metrópoles, aumentaram seu papel indutor do desenvolvimento econômico
nacional, como bem já mostraram trabalhos clássicos mencionados anteriormente.
108 | 50 anos de regiões metropolitanas no Brasil e a Política Nacional de Desenvolvimento Urbano

4 OS PASSIVOS METROPOLITANOS
Nas metrópoles brasileiras, estão concentrados também os históricos passivos
decorrentes do nosso modelo de desenvolvimento concentrador, desigual e com
um Estado com frágil capacidade de planejamento. Deste, resultou um modelo de
urbanização organizado essencialmente pela combinação entre as forças de mercado
e um Estado historicamente autoritário, mas flexível e permissivo com todas as
formas de apropriação privatistas das cidades. Não se trata de constatar e procurar
entender a ausência do planejamento governamental no intenso e acelerado pro-
cesso de urbanização. A omissão planejadora do Estado decorreu da utilização da
cidade como uma espécie de fronteira amortizadora dos conflitos sociais7 inerentes
ao capitalismo concentrador e excludente que aqui se implantou.
Por esse motivo, as metrópoles estão hoje despreparadas, material, social e
institucionalmente para o crescimento econômico baseado na dinâmica da inovação
e na economia do conhecimento, que demandam não apenas as forças produtivas
geradas por relações mercantis, mas também aquelas que decorrem da densificação
das relações sociais e de ambiente institucional favorável. Nas metrópoles brasileiras,
está conformado um conjunto de passivos cujo enfretamento é imperativo para que
forças produtivas consteladas na complexidade de nossa rede urbana possam ala-
vancar o desenvolvimento nacional. Examinaremos três dimensões desses passivos.

4.1 Crise da mobilidade e precariedade do habitat popular


Desde as grandes manifestações ocorridas nas grandes cidades brasileiras, em junho
de 2013, ficou mais evidente a existência de uma crise de mobilidade urbana no país,
cujo epicentro são as metrópoles. No entanto, para além do círculo acadêmico, pouco
tem se discutido sobre o fato de estarmos diante dos efeitos de problemas estruturais e
com forte conexão com a questão da moradia. Trata-se das consequências da política
autoritária e permissiva na organização do território urbano das metrópoles articulada
com a privatização dos serviços urbanos. Historicamente, inexistem sistemas públicos
e coletivos de transportes nas metrópoles capazes de estruturar o uso e a ocupação
do espaço e, ao mesmo tempo, se contrapor à submissão da dinâmica urbana à do-
minação do automóvel, hoje gerador de desigualdades de acesso às oportunidades
urbanas e de enormes “deseconomias” e externalidades negativas. No conjunto das

7. Essa ideia encontra amparo em trabalhos clássicos de autores que pensaram a formação do capitalismo brasileiro,
como Maria Conceição Tavares. Em curto texto pouco conhecido, mas com grande poder de síntese sobre os meca-
nismos que anularam as possibilidades da emergência do conflito de classes pela gestão política do território, Tavares
assim se expressou.
O recurso periódico a uma ordem autoritária busca suas razões de Estado tanto na preservação do território nacional
quanto ao apoio à expansão capitalista, em novas fronteiras de acumulação, onde lhe cabia impedir a luta de classes
aberta, dos senhores da terra e do capital entre si, e garantir a submissão das populações locais ou emigradas, que se
espraiaram pelo vasto território brasileiro. Por sua vez, o processo de deslocamentos espaciais maciços das migrações
rural-urbanas das nossas populações e as mudanças radicais das condições de vida e de exploração da mão de obra
não permitiram, até hoje, a formação de classes sociais mais homogêneas, capazes de um enfrentamento sistemático
que pudesse levar a uma ordem burguesa sistemática (Tavares, 1985, p. 457).
As metrópoles brasileiras | 109

quinze metrópoles, os dados revelam que a frota de veículos automotores é composta


majoritariamente por automóveis e motos: 74,2% são carros (automóveis, cami-
nhonetes e camionetas) e 18,2%, motos (motocicletas, motonetas e ciclomotores);
outros tipos de veículos somados representam apenas 7,5%. A sistematização das
informações realizada pelo Observatório das Metrópoles, a partir de dados disponi-
bilizados pelo Departamento Nacional de Trânsito (Denatran), mostra ainda que o
Brasil terminou 2022 com mais de 73,2 milhões de automóveis e 31,3 milhões de
motos. Com isso, a taxa de motorização no país (número de automóveis para cada
cem habitantes) chegou a 34,3. Nas quinze metrópoles, essa mesma taxa atingiu um
valor ainda maior: 41,7 automóveis para cada cem habitantes. Em algumas destas, é
superior a cinquenta carros para cada cem habitantes; são os casos de Belo Horizonte
(58,0), Campinas (55,6), Curitiba (59,0), Florianópolis (53,8) e São Paulo (51,8).
Na maior metrópole do país, o número de carros supera 11,1 milhões de veículos,
enquanto as motos terminaram 2022 somando 2,3 milhões.
A imagem das cidades completamente tomadas por automóveis materializa-se
nos congestionamentos e é nitidamente refletida nos números: segundo dados do
Censo Demográfico 2010 (IBGE, 2012), 30% da população leva mais de uma
hora no deslocamento casa-trabalho. Em dez das principais RMs, entre 1992 e
2009, ocorreu aumento no tempo médio de deslocamento casa-trabalho, como
mostra estudo do Instituto de Pesquisa Econômica e Aplicada (Ipea). Segundo esse
mesmo trabalho, diversos fatores podem ter contribuído para a piora nas condições
de deslocamento; entre estes, o aumento da frota de veículos.
Nas grandes cidades, os congestionamentos não são novidade. No entanto,
como era de se esperar, as desigualdades também se manifestam quando se trata
de problemas como esse. São Paulo, por exemplo, em 2013, ultrapassou Nova
York e passou a ter a maior frota de helicópteros do mundo (São Paulo…, 2023).
Enquanto os “players do mercado” circulam pelo ar, os trabalhadores enfrentam
as piores consequências desse modelo de urbanização, buscando formas de estar
próximos aos espaços onde se concentram os empregos e a renda, driblando as
barreiras que se impõem à maioria da população.
No entanto, além da qualidade, o problema da mobilidade também se
revela nos elevados preços dos transportes coletivos organizados sob o regime da
concessão do poder público e que constituíram um verdadeiro feudo político nas
cidades brasileiras. O vale-transporte não ameniza tal situação, pois apenas 40% da
população economicamente ativa e 24% da população em idade ativa desfrutam
desse benefício. No caso específico da cidade de São Paulo, desde 1994, os preços
de metrô e ônibus aumentaram em 430% e 540% contra 332% de inflação.
Em 2021, o urbanista Nabil Bonduki, em artigo na Folha de S.Paulo, lembrou
que está em curso um verdadeiro colapso dos sistemas de transportes coletivos
110 | 50 anos de regiões metropolitanas no Brasil e a Política Nacional de Desenvolvimento Urbano

(Bonduki, 2021). Com a erosão da demanda decorrente da diminuição da atividade


econômica até mesmo antes da pandemia, do desemprego e da queda brutal da renda,
empresas concessionárias vêm sucateando frotas, diminuindo a frequência das linhas
e, inclusive, abandonando concessões. Segundo estudo da Associação de Empresas
de Transportes Urbanos (NTU), entre março de 2020 e abril de 2021, ocorreu a
interrupção da prestação dos serviços por 25 operadoras e um consórcio operacional,
além da demissão de 76.757 trabalhadores. Nesse período, treze operadoras e um
consórcio suspenderam as atividades; e duas operadoras, um consórcio operacional
e um sistema BRT – do Rio de Janeiro – sofreram intervenção na operação. Além
disso, cinco operadoras simplesmente encerraram as atividades e quatro tiveram
seus contratos suspensos. Esse estudo registrou também 238 movimentos grevistas,
atingindo 88 sistemas de transporte público por ônibus no país.
Com variações sutis, de norte a sul do país, manchetes sobre esse apagão
multiplicaram-se em mídias digitais e impressas desde então. Não é por menos:
como mostra levantamento do Instituto de Defesa do Consumidor (Idec), o
agravamento da crise foi marcado por greves, lockouts, comissões parlamentares
de inquérito (CPIs), rompimentos contratuais, intervenções e interrupções na
prestação do serviço. Um dos casos mais emblemáticos é possivelmente o da cidade
de Teresina. Na capital do Piauí, motoristas e cobradores mantiveram-se em greve
durante todo o mês de fevereiro de 2022. Além disso, o serviço também ficou
intermitente por falta de recursos para custear o combustível.
Na cidade do Rio de Janeiro, segundo o sindicato das empresas de ônibus, o setor
acumulou um deficit financeiro da ordem de R$ 1,2 bilhão durante a pandemia. A entidade
aponta como motivo para esse desempenho a queda na receita – considerando-se que parte
do sistema é financiado diretamente pelo pagamento de passagens – e a permissividade
em relação ao transporte clandestino. No caso da perda de passageiros e receita, é algo que
atinge o país como um todo. Segundo estimativas da NTU, da Associação Nacional dos
Transportes Públicos (ANPTrilhos) e da Fuwndação Getulio Vargas (FGV), o prejuízo
acumulado das empresas de ônibus urbanos no país é de R$ 11,57 bilhões, e o número
de passageiros caiu pela metade entre março de 2020 e fevereiro de 2021.
A esse conjunto de problemas do lado da oferta dos serviços somam-se os
decorrentes da dissociação entre as tarifas e os claros sinais de empobrecimento
da população. A título de exemplo, até mesmo com a grave crise social provocada
pela pandemia, a concessionária dos trens no Rio de Janeiro anunciou, no início
de 2023, aumento de R$ 5,00 para R$ 7,40 no valor da passagem. Diante de re-
ajuste que impactará diretamente no orçamento das famílias, o governo estadual
instituiu o que denominou tarifa social ferroviária. Na prática, essa ação significa
a manutenção do valor de R$ 5,00, mediante a utilização de um bilhete único
intermunicipal (BUI). Sem esse abatimento, o custo, considerando uma viagem
de ida e volta em um mês com 23 dias úteis, seria de R$ 340,40, mais de um
As metrópoles brasileiras | 111

quarto do novo salário mínimo. Sem nenhum tipo de integração tarifária, esse
custo pode ser ainda maior, uma vez que muitos passageiros são obrigados a fazer
baldeação, com o objetivo de acessar as estações ou chegar aos seus destinos. Esse
é um dos muitos exemplos que colocam a metrópole do Rio de Janeiro como um
dos espaços onde os claros sinais da crise da mobilidade urbana se manifestam de
forma bastante evidente. O gráfico 1 é eloquente na evidência do colapso do seu
sistema de transporte.

GRÁFICO 1
Movimento médio diário de passageiros segundo os transportes rodoviário e ferroviário –
município do Rio de Janeiro (1995-2020)

Fonte: Prefeitura do Rio de Janeiro. Disponível em: https://www.data.rio/documents/PCRJ::-movimento-de-passageiros-segundo-


-os-transportes-rodovi%C3%A1rio-ferrovi%C3%A1rio-hidrovi%C3%A1rio-e-aerovi%C3%A1rio-no-munic%C3%ADpio-
-do-rio-de-janeiro-entre-1995-2022/about. Acesso em: 7 nov. 2023.
Elaboração: Observatório das Metrópoles.
Obs.: Ilustração cujos leiaute e textos não puderam ser padronizados e revisados em virtude das condições técnicas dos
originais (nota do Editorial).

Ao mesmo tempo, a grave crise de mobilidade que atinge nossas metrópoles


vai ao encontro das permanências que marcam a organização interna das nossas
metrópoles, que combinam movimentos complementares e contraditórios de
concentração do emprego e dispersão da população. Nas últimas décadas, os
municípios da periferia apresentam maiores taxas de crescimento populacional e
uma imigração expressiva de pessoas que saíram dos núcleos metropolitanos; estes,
por sua vez, também revelam um estoque e incremento populacional absoluto que
não pode ser desconsiderado, além, claro, de ainda concentrarem a maior parte
dos postos de trabalho metropolitanos – o que expressa a pressão sobre as áreas
centrais, mais evidente especialmente pelo drama da mobilidade urbana, traduzido
no que a literatura consagrou como movimento pendular.
112 | 50 anos de regiões metropolitanas no Brasil e a Política Nacional de Desenvolvimento Urbano

A distribuição espacial do emprego na maioria das metrópoles é marcada por


alta concentração nos núcleos, com tendência de estabilidade há pelo menos uma
década. Esse aspecto da configuração espacial da metrópole gera efeitos importantes
sobre o modo de vida de seus habitantes. Suas consequências são sentidas sobretudo
na mobilidade cotidiana, uma vez que a localização concentrada dos empregos
resulta em deslocamento em massa das áreas mais distantes em direção às áreas
mais centrais. Esse padrão de deslocamento exige da infraestrutura e dos serviços
uma capacidade fora do comum, e, diante da grave crise que se agravou com a
pandemia, os efeitos dessa concentração podem tornar-se ainda mais perversos.
Ao mesmo tempo, a pressão pela ocupação das áreas centrais resulta da combi-
nação das transformações do mercado de trabalho; especialmente, as ocorridas nos
anos 1980 e 1990 – cujo principal traço foi o crescimento da ocupação informal,
transitória ou precária, particularmente no setor de serviços e, sobretudo, nos
serviços pessoais e domésticos –, com a reconhecida crise da mobilidade urbana
e o colapso das formas de provisão de moradia. Como a renda e o emprego con-
tinuam concentradas nos núcleos metropolitanos, pode-se concluir que uma das
principais características da dinâmica socioterritorial nas metrópoles é, também, o
conflito pela centralidade na ocupação e no uso do solo urbano. O gráfico 2 ilustra
o resultado dessa pressão em termos do crescimento das moradias precárias nas
áreas mais centrais das nossas metrópoles, ocorrida nos últimos anos.

GRÁFICO 2
Percentual acumulado de população, da massa de renda pessoal e da moradia em
favela segundo a distância ao centro metropolitano

Fonte: IBGE (2000).


Elaboração: Observatório das Metrópoles.
Obs.: 1. Conjunto das quinze metrópoles.
2. Ilustração cujos leiaute e textos não puderam ser padronizados e revisados em virtude das condições técnicas dos
originais (nota do Editorial).
As metrópoles brasileiras | 113

Observamos que nas quinze metrópoles quase três quartos dessas moradias
consideradas subnormais pelo IBGE distribuem-se por um raio de até 10 km
a partir dos seus núcleos. As características dessas moradias são a ilegalidade, a
irregularidade, a construção em solos pouco propícios à função residencial, o
adensamento da ocupação da moradia e, em muitos casos, o emprego de parcelas
consideráveis da renda no aluguel.
Essas características não estão homogeneamente presentes em todas as me-
trópoles, pois são altamente influenciadas pela história das formas de produção
da moradia popular e do regime político de gestão do território urbano. Em São
Paulo, por exemplo, as favelas apresentam maior precariedade quanto ao tipo de
terreno ocupado e maior afastamento das áreas centrais. Ermínia Maricato (1996)
estima que 49,3% das favelas da cidade de São Paulo estão localizadas em beira
de córrego; 32,2%, em terrenos sujeitos a enchentes; 29,3% foram construídas
em terrenos com declividade acentuada; e 24,2%, em terrenos sujeitos à erosão.
Os mapas de localização das favelas de São Paulo evidenciam seu distanciamento
em relação ao núcleo econômico e social da metrópole, mas em áreas que per-
mitem o acesso. Em compensação, os cortiços parecem constituir estratégia de
proximidade, em razão de sua localização nas áreas mais centrais. Por sua vez,
na RM do Rio de Janeiro, o regime urbano permite um modelo de proximidade
das favelas com os bairros que concentram as moradias dos segmentos superiores
da estrutura social.

4.2 Crise da sociabilidade urbana


Ao lado desse conflito, as metrópoles brasileiras concentraram, durante décadas,
os aspectos mais dramáticos da crise de sociabilidade, cujo lado mais evidente é
a exacerbação da violência. Os índices da criminalidade violenta nas metrópoles
brasileiras atingiram tais níveis que levaram o historiador Luiz Mir (2004) a cunhar
a expressão “metrópoles da morte”: a taxa de homicídios dobrou em vinte anos; a
média da taxa de vítimas de homicídio entre 1998 e 2002 foi de 46,7 vítimas por
100 mil habitantes. Esse valor estava bem acima da média nacional, que, naquele
período, foi de 28,6. Ou seja, a incidência de homicídios nas RMs chegou a ser duas
vezes maior que a incidência nacional. E, como é sabido, as vítimas de homicídio
concentram-se no segmento dos jovens do sexo masculino.
Nos últimos anos, os dados registram queda acentuada na taxa de homicídios.
Nas metrópoles, a taxa caiu de 35,1 homicídios por 100 mil habitantes em 2010
para 20,3 em 2019. Nos núcleos, a taxa passou de 32,7 homicídios/100 mil para
19,4, enquanto nos entornos teve queda de 30,2 para 21,2 entre esses dois anos.
114 | 50 anos de regiões metropolitanas no Brasil e a Política Nacional de Desenvolvimento Urbano

Em que pese a diminuição geral desse índice no conjunto das metrópoles, a


taxa de homicídios de pessoas entre 15 e 29 anos permanece alta. Nas metrópoles,
apesar da queda em relação a 2010, quando foram registrados 70,3 homicídios por
100 mil habitantes jovens, a taxa registrada em 2019 foi 51,2, muito superior aos
demais recortes. Nas RMs, Rides e AUs e nos demais municípios do país, a taxa nesse
último ano foi de 31,2 e 32,5 homicídios por 100 mil habitantes, respectivamente.
É nas metrópoles onde também é mais evidente a presença de organizações
criminosas que exercem controle armado sobre o território. O caso mais emblemá-
tico, mais uma vez, é o Rio de Janeiro. Segundo dados sistematizados pelo Grupo
de Estudos dos Novos Ilegalismos da Universidade Federal Fluminense (Geni/
UFF), os chamados grupos milicianos controlam 56,8% do território da cidade do
Rio de Janeiro, exercendo controle sobre uma população de mais de 2,1 milhões
de pessoas. Autores que estudam o tema vêm apontando que “as milícias são uma
ameaça à democracia em todas as suas dimensões” (Hirata et al., 2022, p. 378).
Como exemplo, podemos mencionar o controle que tais grupos exercem sobre o
transporte clandestino por intermédio de vans e similares. Essa é uma realidade
muito presente no cotidiano da população de muitas partes da metrópole do
Rio de Janeiro, em que o transporte é expressão do controle agressivo que esses
grupos armados exercem sobre o território e a vida das pessoas.
Nesse contexto, apesar também da queda geral na taxa de homicídios, é
preciso sublinhar que algumas metrópoles ainda apresentam taxas superiores à
média nacional. São os casos de Belém, Fortaleza, Goiânia, Porto Alegre, Recife,
Vitória, Manaus e Salvador. Nas duas últimas, a taxa é mais que o dobro da média
nacional, com 49,5 e 48,1 homicídios por 100 mil habitantes, respectivamen-
te. Nessas duas metrópoles, com Recife, a taxa de homicídios de pessoas entre
15 e 29 anos é mais que o triplo da média nacional (32,9). Tais resultados têm
colocado em discussão os nexos entre os processos de distanciamento territorial,
social e simbólico entre as classes e os grupos sociais, decorrentes da segregação
residencial e da segmentação territorial das nossas metrópoles, aliados à fragili-
zação dos mecanismos de coesão social e seus impactos na dimensão societária
(Silva, 2004a; 2004b).
As metrópoles brasileiras | 115

TABELA 3
Taxa de homicídio geral e da população entre 15 a 29 anos nas metrópoles, RMs, Rides
e AUs, bem como nos demais municípios do país (2010 e 2019)

Fonte: Atlas da Violência do Ipea. Disponível em: https://ipea.gov.br/atlasviolencia/. Acesso em: 7 nov. 2023.
Obs.: Tabela cujos leiaute e textos não puderam ser padronizados e revisados em virtude das condições técnicas dos originais
(nota do Editorial).

4.3 Segregação residencial e reprodução das desigualdades sociais


O terceiro aspecto decorre das conexões entre a segregação residencial e os me-
canismos de reprodução das desigualdades sociais. A utilização da cidade como
fronteira amortizadora dos conflitos implicou a instituição de um regime dual de
bem-estar, combinando as variantes “famílistico-mercantil” (Esping-Anderson,
1995) com a atuação de um Estado de bem-estar social fortemente seletivo.
Foram transferidas às famílias e às comunidades as principais funções de reprodução
social, ao mesmo tempo que se instaurou a mencionada política urbana perversa
de tolerância total para com todas as formas e condições de ocupação da cidade,
tanto pelo capital quanto pelo trabalho. A fisionomia, a organização do território,
a vida social – enfim, todos os aspectos de nossa realidade urbana –, expressam as
várias facetas desse regime de reprodução social.
Ao longo dos anos, o Observatório das Metrópoles realizou diversos estudos
que constataram a existência, nos grandes aglomerados urbanos, dos efeitos con-
centrados da crise social decorrente da mudança no modelo de desenvolvimento.
116 | 50 anos de regiões metropolitanas no Brasil e a Política Nacional de Desenvolvimento Urbano

Constatamos, por exemplo, que os contextos sociais conformados pelos processos


de segregação residencial e segmentação territorial têm impactos no desempenho
do sistema escolar municipal. Verificamos, por exemplo, como tais contextos de
precariedade do habitat urbano e isolamento das conexões com o conjunto do
espaço social explicam em grande medida os baixos índices de eficácia e equidade
das escolas públicas localizadas nas metrópoles, quando comparadas com aquelas
que estão em outros municípios (Ribeiro e Kolinsky, 2009; Ribeiro et al., 2010).
Observou-se, com efeito, que os resultados educacionais – de acordo com o Índice
de Desenvolvimento da Educação Básica (Ideb) de 2005, referente à primeira e
à segunda fases –, nos municípios localizados nas áreas metropolitanas, foram
sistematicamente mais baixos do que aqueles alcançados nos municípios não me-
tropolitanos. Essas constatações são surpreendentes, uma vez que as metrópoles
concentram mais riqueza, renda e capacidade governamental. As diferenças são
mais marcantes justamente nas regiões Sul, Sudeste e Centro-Oeste. Por exemplo,
no estado do Rio de Janeiro, a média de 2005 do Ideb de primeira fase – ou seja,
referente ao primeiro segmento do ensino fundamental – nos municípios fora da
RM foi de 4,1, enquanto nos municípios metropolitanos foi de somente 3,6. Por
sua vez, os resultados de 2007 foram de 4,3 e 3,8, respectivamente.
As análises realizadas apontaram que a menor qualidade da educação oferecida
por municípios metropolitanos estava relacionada ao menor índice de condição social
apresentado por estes – o índice de condição social mede as condições deficientes
de moradia no que diz respeito ao saneamento, ao abastecimento de água e à coleta
de lixo. Em outro exemplo, o estudo mostrou que, mantendo-se outras caracterís-
ticas dos municípios constantes, os municípios com 130 homicídios por 100 mil
habitantes – média observada para municípios metropolitanos do estado do Rio de
Janeiro – tiveram o Ideb estimado em 3,8 pontos. Para aqueles que apresentavam
uma taxa de 85 homicídios por 100 mil habitantes (média da taxa de homicídios
em municípios fora das RMs no Rio de Janeiro), o Ideb estimado é de 4,0.
Por fim, outra questão central, a negligência em relação à pré-escola, pode
explicar a menor qualidade da educação oferecida nas metrópoles. Para um muni-
cípio em que as vagas oferecidas na pré-escola cobrem 20% da demanda (média da
cobertura em municípios metropolitanos do Rio de Janeiro), o Ideb de primeira
fase é estimado em 4,0. Por sua vez, em um município cuja cobertura da pré-escola
chega a 60% (média do atendimento em municípios não metropolitanos no estado),
o Ideb estimado de primeira fase é de 4,3.
A organização espacial interna de nossas metrópoles provoca também efeitos
sobre as condições de acesso à estrutura de oportunidades via mercado de trabalho.
De acordo com Ribeiro, Rodrigues e Corrêa (2010), verificou-se que existem
variações consideráveis na taxa de desemprego, na fragilidade ocupacional e na
remuneração dos trabalhadores, conforme o contexto social do local de moradia.
As metrópoles brasileiras | 117

Em um dos estudos realizados pelo Observatório das Metrópoles, constatamos,


portanto, que adultos entre 30 e 59 anos de idade têm menores chances de estarem
empregados, de conseguirem melhores empregos ou melhores rendimentos por
estarem inseridos em contextos sociais de moradia de baixo status educacional em
comparação com indivíduos que moram em contextos sociais de alto status, mesmo
que esses indivíduos possuam as mesmas características de cor ou raça, idade e sexo.
Na Ride do Distrito Federal, por exemplo, as chances de um indivíduo que
reside em contextos sociais de baixo status estar desempregado é 123% maior que
aquele indivíduo que é morador de áreas de alto contexto social. Esse mesmo in-
dicador também é elevado em metrópoles como Salvador (100%), Rio de Janeiro
(88%), Natal (74%) e Goiânia (60%).
Esses estudos nos apontam para uma crise social decorrente dos efeitos da
fragilização desse regime dual de bem-estar, cujos mecanismos são as transforma-
ções do mundo do trabalho e a fragilização das estruturas sociais nos planos da
família e do bairro, combinados com os mecanismos de segregação residencial e
segmentação territorial. A fragilização das estruturas sociais familiar-comunitárias
tem ocorrido pela ação de três tendências, conforme a seguir descrito.
1) A crescente incorporação à cidade dos territórios populares marginalizados
via lógica mercantil, com a constituição de mercados paralelos de moradias
(sem titulação formal), segurança pública (as milícias privadas) e serviços
coletivos (“gatonet”, “gatogás”, “gatoluz” e transportes alternativos),
aprofunda a separação entre a população que nesses territórios mora e as
instituições garantidoras da coesão social, por meio de sua incorporação
aos direitos de cidadania. Estima-se que, na cidade do Rio de Janeiro,
essa economia paralela mobilize vultosas somas. Notícias já deram conta
de que as atividades econômicas exploradas pelas milícias gerem um fatu-
ramento de R$ 280 milhões por ano. No “gatonet”, R$ 120 milhões; no
sistema de vans, R$ 145 milhões; e gás clandestino, R$ 16 milhões.
2) A difusão de uma sociabilidade violenta como ordem social e suas con-
sequências na vida coletiva prevalecente nestes territórios.
3) A tendência à concentração territorial dos segmentos vivendo relações
instáveis com o mercado de trabalho e seu consequente isolamento so-
ciocultural, no que concerne ao conjunto da cidade.

4.4 Frágil coesão social


Os três mecanismos reforçam-se mutuamente, constituindo uma sociedade ur-
bana com frágeis laços de coesão. Essa é uma das principais marcas atuais da or-
dem urbano-metropolitana. Observamos, em nossos estudos, evidências empíricas
nessa direção. Além das já conhecidas tendências ao autoisolamento das camadas
118 | 50 anos de regiões metropolitanas no Brasil e a Política Nacional de Desenvolvimento Urbano

superiores em cidadelas fortificadas – conhecidas como “condomínios fechados” –,


constatamos a formação de territórios que concentram uma população que vive o
acúmulo de vários processos de vulnerabilização social. São bairros periféricos e favelas
onde habitam pessoas que mantêm laços instáveis com o mercado de trabalho e vivem
sob condições de fragilização do universo familiar – territórios que tendem a concentrar
uma espécie de “capital social negativo”, segundo a terminologia de Wacquant (2001).
Em estudo realizado pelo Observatório das Metrópoles (Ribeiro, 2010), cons-
tatamos que o risco de jovens de 17 a 24 anos ficarem em situação de desafiliação
institucional – ou seja, sem estudar, sem trabalhar, nem procurar ocupação – aumenta
em 30% se moram em bairros com forte concentração de responsáveis por domicílios
que mantenham frágeis e instáveis laços com o mercado de trabalho. E que o risco
de desproteção escolar-familiar de crianças e jovens de 4 a 14 anos aumenta 28%.

5 CONCLUSÃO: UMA URGENTE REFORMA URBANA

Em meio milênio de história, partindo de uma


constelação de feitorias, de populações indígenas
desgarradas, de escravos transplantados de outro
continente, de aventureiros europeus e asiáticos
em busca de um destino melhor, chegamos a
um povo de extraordinária polivalência cultural,
um país sem paralelo pela vastidão territorial e
homogeneidade lingüística e religiosa. Mas nos
falta a experiência de provas cruciais, como as
que conheceram outros povos, cuja sobrevivência
chegou a estar ameaçada. E nos falta também um
verdadeiro conhecimento de nossas possibilidades,
e principalmente de nossas debilidades. Mas não
ignoramos que o tempo histórico se acelera, e
que a contagem desse tempo se faz contra nós.
Trata-se de saber se temos um futuro como nação
que conta na construção do devir humano. Ou
se prevalecerão as forças que se empenham em
interromper o nosso processo histórico de formação
de um Estado-Nação (Furtado, 1992, p. 35).
As metrópoles são, portanto, ativos importantes para um projeto de desen-
volvimento nacional que supere o estrutural padrão concentrador vigente até os
anos 1970. Entretanto, também contêm os passivos – antigos e novos –, cujas
evidências mais expressivas apresentamos sinteticamente. Estas indicam prevale-
cerem em nossas metrópoles uma dinâmica de fragilização da coesão social desses
territórios, com impactos societários no plano da nação. O quadro social vigente
nas metrópoles desencadeia, com efeito, mecanismos que limitam a diminuição
As metrópoles brasileiras | 119

durável das desigualdades e bloqueiam a necessária densificação das relações so-


ciais. Podemos afirmar que as promessas de um padrão de crescimento inclusivo
e homogeneizador da sociedade se confrontam com o mal-estar urbano e seus
efeitos desiguais. Políticas econômicas de crescimento que se orientam apenas na
utilização das metrópoles em plataforma de exportação de commodities ou como
palco da indústria global do entretenimento8 podem propiciar ciclos de expansão
limitados, porque são condicionados à inserção volátil na divisão mundial da
produção e do consumo. Estes prescindem da metrópole como espaço social e
diversificado, com suas potencialidades criativas e inovadoras. São circuitos de
acumulação que demandam apenas territórios de produção ou de consumo deli-
mitados, organizados e protegidos, podendo muito bem coexistirem com a crise
social do conjunto metropolitano e seus passivos. Em nossa realidade metropolitana,
isso pode significar eternizar, congelar, a dualidade do modelo urbano instaurado
pela nossa industrialização subdesenvolvida.
O desafio é duplo: de um lado, construir a governabilidade das metrópoles e
a política de reforma urbana que enfrente os mecanismos de descoesão social nestas
presentes. O primeiro desafio implica a discussão dos temas a seguir.
1) Reforma política e a governabilidade das metrópoles – Comecemos pela
mais óbvia das razões da marcha da insensatez: a total dissociação entre
o desenho da geografia política do Estado brasileiro e as metrópoles.
É imprescindível repensar o pacto federativo que inscreva as metrópoles
no sistema de governo da nação. No atual quadro institucional, é pouco
provável que os três níveis de governo empreendam ações de construção
da governabilidade das metrópoles. O nível estadual terá pouco interesse
em dotar os territórios metropolitanos de poder real, na medida em que a
regra máxima é que o poder somente pode existir se quem o detém tenha
a capacidade de exercício e acumulação de mais poder. Como disse o
sociólogo Nobert Elias: “o poder é um sistema hierárquico, e quem não
sobe, cai”. Por sua vez, não se pode esperar dos governos municipais a
capacidade de empreender ações de baixo para cima na direção de um
sistema cooperative, o qual deve criar instituições públicas capazes de
elaborarem políticas públicas estáveis e eficientes que instaurem a governa-
bilidade metropolitana na base da cooperação intergovernamental. A Lei
dos Consórcios Públicos é, sem dúvida, uma conquista jurídica recente
da sociedade, mas esta apenas permite pensar ações cooperativas tópicas
e temáticas, pois não cria uma autoridade pública com legitimidade para
encarnar as funções de governança metropolitana. A CF/1988 criou a

8. A indústria global do divertimento inclui o complexo de serviços associados ao turismo de todo o tipo, que atualmente
contém os circuitos de acumulação que promovem os megaeventos como a forma mais organizada.
120 | 50 anos de regiões metropolitanas no Brasil e a Política Nacional de Desenvolvimento Urbano

figura do município como ente federativo, mas na prática constituiu


um dilema político: os municípios não são suficientemente fortes para
impor e negociar a cooperação com os governos federal e estaduais e,
tampouco, suficientemente frágeis para serem objetos de políticas que
prescindam da barganha político-eleitoral. O resultado é que a coopera-
ção intergovernamental nas metrópoles depende do jogo da política de
clientela e da sua racionalidade instrumental de curto prazo, incapazes
de considerar interesses gerais. Também é necessário pensar como as
metrópoles, como territórios economicamente relevantes e socialmente
fundamentais, poderiam adquirir uma capacidade de representação no
sistema político brasileiro. Prevalece nesse sistema político, por diversas
razões, uma dinâmica que não permite a representação desse território na
Câmara Federal e nas assembleias legislativas. Duas expressões desse fato:
a sub-representação das metrópoles nas bancadas de deputados federais e
estaduais e a representação paroquial na escala municipal e interurbana,
como vêm mostrando várias pesquisas realizadas pelo Observatório das
Metrópoles (Carvalho, 2009; Corrêa, 2011; Ribeiro e Corrêa, 2012).
É importante assinalar que estamos diante de um desafio político que é
próprio do fenômeno metropolitano em vários outros países. Com efeito,
a pesquisa realizada por Lefévre, ao concluir um vasto balanço das expe-
riências europeias de governança metropolitana, constatou o seguinte.
As áreas metropolitanas não servem de “territórios de referência” para a
organização política da sociedade. Nenhum setor da sociedade, até agora,
identificou as áreas metropolitanas como territórios para estruturação
representativa de seus membros. Os partidos políticos, por exemplo, têm
sua base de representatividade no âmbito da província ou do Estado, mas
não em nível metropolitano. Isso é claramente o que sucede na Europa e
nos Estados Unidos (Lefévre, 2005, p. 222, tradução nossa).
A atrofia política das metrópoles como fenômeno generalizado nos Estados
contemporâneos resulta de complexo conjunto de fatores, que podem
ser identificados em duas grandes categorias. Na primeira, estariam os
resultantes das forças de rescaling of statehood (Brenner, 2004), produzidas
pela globalização e pela neoliberalização das economias nacionais. As forças
e os interesses econômicos, ao se estruturarem na dialética global-local,
criam novas escalas de representação nos planos supranacional, ao mesmo
tempo que buscam se articular com as forças presentes nas instâncias
municipais. Observa-se, em consequência, a crescente incompatibilidade
entre a dinâmica econômica e a dinâmica política constituída a partir
da geografia institucional dos Estados nacionais. As coalisões políticas
tendem, nesse quadro, a se realizarem em arenas informais e instáveis,
As metrópoles brasileiras | 121

no âmbito das quais se constroem a representação política dos interesses


econômicos e os pactos em torno de políticas territoriais. A segunda ca-
tegoria de fatores decorre dos efeitos da dinâmica interna das metrópoles
que bloqueiam sua constituição como espaços políticos. As metrópoles
são territórios marcados por dinâmicas de fragmentação social, cultural
e territorial que impedem o surgimento de instituições necessárias à sua
transformação em comunidade política.
2) No médio prazo, seria virtuoso o debate das vantagens da criação de um
distrito eleitoral na escala metropolitana que suscitasse a constituição da
sua representação no sistema político brasileiro. Seria, talvez, um cami-
nho para mobilizar forças em torno dos interesses metropolitanos e de
enfretamento da dinâmica fragmentadora resultante do clientelismo
político e do seu par, a representação paroquial.
3) Superar o quadro da fragmentação das políticas públicas setoriais: a marcha da
insensatez também é movida pela dinâmica fragmentada e fragmentadora
das políticas setoriais, resultado igualmente anacrônico do descompasso
do desenho institucional da organização do Estado. É mais que evidente
que, no quadro das metrópoles, nenhuma política pública é capaz de
realizar seus objetivos isoladamente, em razão das conexões entre os
objetos. Não há como realizar a provisão de moradias sem articulação
com as ações públicas que se realizam no âmbito do saneamento, dos
transportes, da educação etc. São muitos os exemplos de ineficácia e
ineficiência das intervenções públicas pensadas e executadas na ótica da
autarquia dos problemas das metrópoles, para dispensar-se o desenvol-
vimento do argumento.
4) A médio prazo, poder-se-ia repensar os desenhos das políticas públicas
setoriais por meio da incorporação da dimensão territorial na fase da
formulação e da implementação. Ao mesmo tempo, poder-se-ia cons-
tituir instâncias de interações dessas políticas, no estilo das câmaras
intragovernamentais, que propiciasse a interlocução e a coordenação das
intervenções públicas nas metrópoles.
5) New Deal metropolitano: por último, o tema da reforma urbana. É ne-
cessário mudar o paradigma com o qual temos discutidos os problemas
metropolitanos. Pelo que buscamos desenvolver neste texto, trata-se de
não apenas enfrentar os passivos acumulados nas metrópoles, mas também
de pensar as ações decorrentes na ótica do desenvolvimento nacional que
assegurem as promessas de uma inflexão do padrão do desenvolvimento
capitalista no país. Por que não pensar em um New Deal metropolitano?
Seria muito virtuoso no enfrentamento das ameaças de que nos fala Celso
122 | 50 anos de regiões metropolitanas no Brasil e a Política Nacional de Desenvolvimento Urbano

Furtado, se pudéssemos desenhar um vigoroso programa de investimentos


em habitação, transportes públicos eficientes e a baixo custo, saneamento
ambiental e áreas de lazer, na reforma do habitat popular precário. Poderia
responder aos imperativos colocados à sociedade brasileira de promover
um novo ciclo de crescimento econômico, não mais fundado no efeito
China e seu inevitável efeito perverso de reprimarização, como foi feito
em ciclo recente, ou nas concessões de incentivos fiscais aos empresários
para promoverem o aprofundamento de endividamento das famílias, a
exemplo dos amplos incentivos para a compra de carros.

REFERÊNCIAS
BAIROCH, P. Cities and economic development: from the dawn of history to
the present. Chicago: The University of Chicago, 1988.
BONDUKI, N. Crise pode levar a um apagão no sistema de transporte. Folha de
S.Paulo, 19 set. 2021. Disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/colunas/
nabil-bonduki/2021/09/crise-pode-levar-a-um-apagao-no-sistema-de-transporte-
-coletivo.shtml#:~:text=A%20radiografia%20da%20crise%20est%C3%A1,que%20
j%C3%A1%20era%20sentido%20anteriormente. Acesso em: 18 jun. 2023.
BRENNER, N. New State spaces: urban governance and the rescaling of state-
hood. Nova York: Oxford University Press, 2004.
CARVALHO, N. R. de. Geografia política das eleições congressuais: a dinâmica de
representação das áreas urbanas e metropolitanas no Brasil. Cadernos Metrópole,
São Paulo, v. 11, n. 22, p. 367-384, 2009.
CORRÊA, F. S. Conexões eleitorais, conexões territoriais: as bases socioterritoriais
da representação política na metrópole fluminense. 2011. Dissertação (Mestrado) –
Instituto de Pesquisa e Planejamento Urbano e Regional, Universidade Federal do
Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2011.
DANTAS, E. W. C.; FERREIRA, A. L.; CLEMENTINO, M. L. M. (Org.). Turis-
mo imobiliário nas metrópoles. Rio de Janeiro: Letra Capital, 2010. v. 1, 224 p.
DINIZ, C. C. Dinâmica espacial e ordenamento do território. Brasília: CEPAL;
Ipea, 2006.
ESPING-ANDERSON, G. O futuro do welfare Staten na nova ordem mundial.
Lua Nova: Revista de Cultura e Política, n. 35, p. 73-111, 1995.
FURTADO, C. Brasil: a construção interrompida. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1992.
As metrópoles brasileiras | 123

HIRATA, D. et al. A questão dos ilegalismos: a crescente militarização e milicia-


lização das cidades. In: RIBEIRO, L. C. Q. (Org.). Reforma urbana e direito
à cidade: questões, desafios e caminhos. Rio de Janeiro: Letra Capital, 2022.
p. 363-384.
IBGE – INSTITUTO BRASILEIRO DE GEOGRAFIA E ESTATÍSTICA.
Censo Demográfico 2000. Rio de Janeiro: IBGE, 2000. Disponível em: https://
www.ibge.gov.br/estatisticas/sociais/populacao/9663-censo-demografico-2000.
html?edicao=10192. Acesso em: 7 nov. 2023.
IBGE – INSTITUTO BRASILEIRO DE GEOGRAFIA E ESTATÍSTICA. Censo
Demográfico 2010. Rio de Janeiro: IBGE, 2012.
IBGE – INSTITUTO BRASILEIRO DE GEOGRAFIA E ESTATÍSTICA. Ar-
ranjos populacionais e concentrações urbanas no Brasil. 2. ed. Rio de Janeiro:
IBGE, 2016. Disponível em: https://www.ibge.gov.br/geociencias/organizacao-
-do-territorio/divisao-regional/15782-arranjos-populacionais-e-concentracoes-ur-
banasdo-brasil.html?edicao=15944&t=acesso-ao-produto. Acesso em: set. 2021.
IBGE – INSTITUTO BRASILEIRO DE GEOGRAFIA E ESTATÍSTICA. Re-
giões de Influência das Cidades 2018. Rio de Janeiro: IBGE, 2020. Disponível
em: https://biblioteca.ibge.gov.br/visualizacao/livros/liv101728_folder.pdf. Acesso
em: set. 2021.
JACOBS, J. La economía de las ciudades. Barcelona: Península, 1969.
JACOBS, J. Cities and the wealth of nations: principles of economic life. Nova
York: Random House, 1984.
LEFÈVRE, C. Governabilidad democrática de las áreas metropolitanas: experiencias
y lecciones internacionales para las ciudades latinoamericanas. In: ROJAS, E. et al.
(Ed.). Gobernar las metrópolis. Washington: IADB, 2005. p. 195-262. Disponível
em: https://cendoc.esan.edu.pe/fulltext/e-documents/BID/gobernarmetropolis.pdf.
MARICATO, E. Metrópole na periferia do capitalismo: ilegalidade, desigualdade
e violência. São Paulo: Hucitec, 1996.
MIR, L. Guerra civil: Estado e trauma. São Paulo: Geração Editorial, 29 out. 2004.
MOURA, R. Arranjos urbanos-regionais brasileiros: uma análise com foco em
Curitiba. 2009. Tese (Doutorado) – Programa de Pós-Graduação em Geografia,
Universidade Federal do Paraná, Paraná, 2009.
MOURA, R. Configurações espaciais da metropolização brasileira. Revista e-metro-
polis, Rio de Janeiro, n. 13, p. 29-39, jun. 2013.
MOURA, R. et al. O metropolitano no urbano brasileiro: identificação e fronteiras.
In: RIBEIRO, L. C. de Q.; SANTOS JUNIOR, O. A. dos. (Org.). As metrópo-
124 | 50 anos de regiões metropolitanas no Brasil e a Política Nacional de Desenvolvimento Urbano

les e a questão social brasileira. 2. ed. Rio de Janeiro: Revan; Observatório das
Metrópoles, 2007. p. 127-156.
RIBEIRO, L. C. de Q. Desigualdades de oportunidades e segregação residen-
cial: a metropolização da questão social no Brasil. Cadernos CRH, v. 23, n. 59,
p. 221-233, maio/ago. 2010.
RIBEIRO, L. C. de Q.; CORRÊA, F. P. Cultura política, cidadania e representa-
ção na urbs sem civitas: a metrópole do Rio de Janeiro. Sociologias, v. 14, n. 30,
p. 156-193, maio-ago. 2012.
RIBEIRO, L. C de Q.; KOSLINSKY, M. C. Efeito metrópole e acesso às oportu-
nidades educacionais. Revista Eure, v. 35, n. 106, p. 101-129, 2009. Disponível
em: http://dx.doi.org/10.4067/S0250-71612009000300006.
RIBEIRO, L. C. de Q.; RODRIGUES, J. M.; CORRÊA, F. S. Segregação resi-
dencial e mercado de trabalho nos grandes espaços urbanos brasileiros. Cadernos
Metrópole, São Paulo, v. 12, n. 23, p. 15-41, jan./jun. 2010.
RIBEIRO, L. C. de Q. et al. (Org.). Desigualdades urbanas, desigualdades
escolares. Rio de Janeiro: Letra Capital; Observatório das Metrópoles, 2010.
RIBEIRO, L. C. de Q. et al. (Coord.). Nível de integração dos municípios bra-
sileiros em RMs, Rides e AUs à dinâmica da metropolização. Rio de Janeiro:
Observatório das Metrópoles, dez. 2012.
SÃO PAULO ultrapassa NY e tem maior frota de helicópteros do mundo. Veja
Mercado, 19 ago. 2023. Disponível em: https://veja.abril.com.br/economia/sao-
-paulo-ultrapassa-ny-e-tem-maior-frota-de-helicopteros-do-mundo/.
SILVA, L. A. M. Sociabilidade violenta: por uma interpretação da criminalidade
contemporânea no Brasil urbano. In: RIBEIRO, L. C. de Q. (Org.). Metrópoles:
entre a coesão e a fragmentação, a cooperação e o conflito. Rio de Janeiro: Revan;
Observatório das Metrópoles, 2004a. p. 291-351.
SILVA, L. A. M. Sociabilidade violenta: uma dificuldade a mais para a ação coletiva
nas favelas. In: SILVA, L. A. M. et al. (Org.). Rio: a democracia vista de baixo. Rio
de Janeiro: Ibase, 2004b. p. 33-44.
STORPER, M.; VENABLES, A. J. O burburinho: a força econômica da cidade.
In: DINIZ, C. C.; LEMOS, M. B. (Org.). Economia e território. Belo Horizonte:
Ed. UFMG, 2005. p. 21-56.
TAVARES, M. C. Império, território e dinheiro. In: FIORI, J. L. (Org.). Poder e
dinheiro: uma econômia política da globalização. Petrópolis: Vozes, 1985. p. 27-54.
TOLOSA, H. C. Pobreza no Brasil: uma avaliação dos anos 80. In: VELLOSO,
J. P. R. (Org.). A questão social no Brasil. São Paulo: Nobel, 1991. p. 105-136.
As metrópoles brasileiras | 125

TUCHMAN, B. W. A marcha da insensatez: de Tróia ao Vietnã. Rio de Janeiro:


José Olympio, 2003.
UN – UNITED NATIONS. United Nations Human Settlements Programme.
World Cities Report 2022: envisaging the future of cities. Nairobi: UN
Habitat, 2022.
VELTZ, P. Mundialización, ciudades y territories: la economía de archipiélago.
Barcelona: Ariel, 1999.
VELTZ, P. Firmes et territoires: je t’aime moi non plus. In: SEMINARIO EN-
TREPRENEURS VILLES ET TERRITOIRES, 2002, Paris, França. Anais…
Paris: École de Paris du Management, 2002. Disponível em: http://www.ecole.
org/seminaires/FS4/EV_03/EV_090102.pdf.
WACQUANT, L. Os condenados da cidade. Rio de Janeiro: Revan; Observatório
das Metrópoles, 2001.

BIBLIOGRAFIA COMPLEMENTAR
FARIA, V. Cinquenta anos de urbanização no Brasil. Novos Estudos Cebrap, n. 29,
p. 98-119. mar. 1991.
RIBEIRO, L. C. de Q. (Org.). Hierarquização e identificação dos espaços ur-
banos. Rio de Janeiro: Letra Capital; Observatório das Metrópoles, 2009.
RIBEIRO, L. C. de Q.; RIBEIRO, M. G. (Org.). Ibeu: índice de bem-estar
urbano. 1. ed. Rio de Janeiro: Letra Capital; Observatório das Metrópoles, 2013.
Parte II

Governança Interfederativa e
Financiamento Metropolitano
CAPÍTULO 6

METRÓPOLES E GOVERNANÇA METROPOLITANA:


ENTREVISTA COM JEROEN KLINK1
Entrevistado
Jeroen Johannes Klink

Entrevistadores2
Gerardo Silva
Marco Aurélio Costa
Carlos Henrique Carvalho Ferreira Junior

Ipea: Para darmos início à entrevista, a primeira pergunta que gostaríamos de fazer
é sobre a governança interfederativa: muito se fala da governança interfederativa
quando o assunto é governança metropolitana. De fato, o conceito de governança
interfederativa é um dos mais destacados no Estatuto da Metrópole. Contudo,
nós consideramos esse conceito como sendo de difícil operacionalização. Não é
simples colocar em prática a governança interfederativa. Como você avalia isso?
Quais seriam, em termos institucionais, as razões para essas dificuldades em colocar
o conceito em prática? Você considera que há mesmo essa dificuldade?
Jeroen Klink: Para começar, eu concordo com essa afirmação. É de fato
muito difícil operacionalizar o conceito de governança interfederativa, por várias
razões, mas eu queria ressaltar no mínimo três temas que perpassam essas razões.
O primeiro, que é também o mais óbvio, é que falar de governança implica falar
de governo, planejamento e, a partir disso, do papel do Estado na governança dos
territórios metropolitanos. Nesse sentido, eu sigo a definição do planejamento
de autores como Savini, Majoor e Salet (2015), que diz que é a articulação entre
financiamento, intervenção física no ambiente construído e regulação. Do ponto de
vista das responsabilidades dos estados, seria a arte de articular essas três dimensões.
No caso da governança interfederativa nas áreas metropolitanas, essa capacidade
estatal de lidar com essas três dimensões está, a meu ver, totalmente enfraquecida
e fraturada, a começar pelo fato de o Estatuto da Metrópole ter sido aprovado sem
o braço financeiro. E com relação às outras duas dimensões, é preciso dizer que o
planejamento, através das intervenções físicas e da regulação, não pode ficar apenas
no plano físico, regulando o setor privado e a ocupação do uso do solo, mas deve

1. Entrevista realizada em 19 de abril de 2023, às 10h, via chamada de vídeo.


2. Os entrevistadores são indicados no texto como Ipea.
130 | 50 anos de regiões metropolitanas no Brasil e a Política Nacional de Desenvolvimento Urbano

poder ir além e ser capaz de desencadear mudanças e transformações, para não cair
na armadilha de ficar apenas no blá-blá-blá, no discurso. Então eu acho que essas
duas dimensões também estão fraturadas, porque a ação física nessas transformações
não está alinhada com o arcabouço da regulação. Ou seja, a estatalidade é frágil.
A partir disso, é preciso também articular com os demais atores. A governança
implica ir para fora e além do planejamento tecnoburocrático. E aí a conclusão que
eu tiro é muito semelhante, porque, principalmente na governança metropolitana
brasileira, a participação e/ou articulação com a sociedade civil é muito frágil.
A sociedade civil tem muita dificuldade em se interessar pelo tema, e não percebe
que a vida se faz na metrópole, mais do que na cidade – a metrópole como espaço
privilegiado para a reprodução da vida. E, nessas condições, o Estado tem muita
dificuldade em mobilizar a sociedade civil. Então, na prática, quem realiza ou
preenche esse vácuo da governança metropolitana é o setor privado.
Ipea: O tema da mobilização da sociedade civil traz a reboque a questão da
participação. Acontece que quando tratamos de participação na cidade, pensando
na elaboração do plano diretor e, eventualmente, no conselho de política urbana
ou conselho da cidade, é muito comum a presença de atores sociais voltados para
determinadas políticas urbanas, com um olhar muito direcionado para setores
específicos, como, por exemplo, habitação e transporte, mas que não conseguem
olhar de maneira integrada os problemas da cidade, nem perceber a importância
da escala metropolitana. E, como sabemos, na escala metropolitana a coisa fica
mais complicada, porque de fato não há um governo metropolitano capaz de
mobilizar a sociedade civil. Então, como lidar com esse desafio da participação na
escala metropolitana?
Jeroen Klink: Para responder a essa pergunta precisamos reconstituir um pouco
uma parte da história. Eu concordo que há uma camada do processo em que o plano
diretor participativo buscou avançar na transformação do planejamento, passando
de uma perspectiva técnico-burocrática para um planejamento mais comunicativo e
participativo. E, de certa forma, em alguns momentos, o conseguiu. Porém, o projeto
da reforma urbana foi direcionado para a escala urbana, e não para a escala metropo-
litana. Isso, sem dúvida, foi uma escolha da Constituinte, em que novos movimentos
sociais urbanos e prefeitos eleitos, vinculados a essas agendas, ancoraram o projeto
político na escala local. Mas o resultado em contextos metropolitanos, a meu ver, foi
uma armadilha escalar. A outra parte da história, que é conhecida – mas que é bom
ressaltar, porque eu acho que tem a ver com a pergunta –, é a cultura tecnoburocrática
das redes de infraestrutura, ou seja, daquelas FPICs,3 de acordo com a linguagem
jurídica, que são redes de infraestrutura enraizadas na trajetória da criação de compa-
nhias como a Companhia de Saneamento Básico do Estado de São Paulo (Sabesp),

3. Funções públicas de interesse comum, definidas no inciso II, art. 2o da Lei Federal no 13.089 – Estatuto da Metrópole.
Metrópoles e governança metropolitana: entrevista com Jeroen Klink | 131

por exemplo. Para se ter uma ideia, eu não consigo fazer pesquisa sobre a estrutura
tarifária dos serviços da Sabesp sem ter que acessar os meios legais para conseguir os
dados. É muito emblemático isso. Existe uma cultura tecnoburocrática instalada nas
companhias estaduais que não se transformou, e que compõe circuitos muito fechados,
centrados no seu próprio business. O fato é que essas companhias não são pressionadas
porque a sociedade não está mobilizada, não percebe a importância dessas redes. Então
se cria novamente um vácuo, uma fratura entre uma tecnoburocracia estadual e uma
fragilidade na mobilização de uma escala local, que não consegue se conectar com a
metrópole, que é uma escala diferente.
Ipea: Já que você falou da Constituinte, há pesquisadores que participaram
ativamente do movimento da reforma urbana e que acham que o movimento foi
insensível à dimensão metropolitana, e que isso só se tornou evidente mais adiante,
quando começaram a ser percebidas as consequências.
Jeroen Klink: Eu também acho que foi uma escolha, mas que dá para jus-
tificar porque todo mundo estava associando a agenda metropolitana com o
regime militar, e a agenda local, pelo contrário, parecia mais vinculada à abertura
democrática. Ou seja, dá para entender a escolha, mas que foi um erro estratégico
importante, foi, com consequências até os dias de hoje. O que reforça também a
ideia da armadilha escalar.
Ipea: Você acompanhou bastante a elaboração do Plano de Desenvolvimento
Urbano Integrado (PDUI) em São Paulo. Se você pudesse comentar essa experiência,
nos ajudaria a entender um pouco melhor como se processa, em uma situação con-
creta, a questão da participação e dos embates políticos no contexto metropolitano.
Jeroen Klink: Na realidade não foi um envolvimento direto, foi pelo fato de eu
ter coordenado a elaboração do Plano Diretor Regional do ABC, a partir de uma
parceria entre o Consórcio do ABC e a Universidade Federal do ABC (UFABC).
Ali tinha três grandes agentes, ou players, com interesses específicos. O governo do
estado, através da Empresa Paulista de Planejamento Metropolitano (Emplasa), trazia
a carteira de projetos e o plano de ação para a macrometrópole paulista. Essa era sua
grande peça de negociação. A Prefeitura de São Paulo trouxe o plano diretor como
um instrumento já testado e interessante, que teve um certo grau de mobilização,
mas que não tinha a dimensão metropolitana. Acho que a perspectiva metropoli-
tana na gestão Haddad foi muito frágil. Ainda assim eles pregavam a exportação
ou o reescalonamento do plano municipal da cidade polo. O terceiro player era o
Consórcio do ABC, que não era o único, porque tinha vários consórcios na Região
Metropolitana (RM) de São Paulo, mas que trazia a experiência do plano diretor
regional em andamento. Houve várias reuniões, algumas bastante tensas. Basicamente,
a Emplasa estava interessada na sua carteira e projetos – para a macrometrópole.
São Paulo tinha um modelo mais participativo, porém sem nenhuma articulação
132 | 50 anos de regiões metropolitanas no Brasil e a Política Nacional de Desenvolvimento Urbano

intermunicipal. E o Plano Diretor Regional do ABC, embora menos participativo,


tinha maior sensibilidade intersetorial e intermunicipal. O certo é que se avançou
após certo nível de consenso ou de pactuação, mas o processo que afetou a Emplasa,
e que levou à sua dissolução, acabou afetando também o andamento do PDUI.
Essa foi um pouco a experiência, que eu achei, apesar de tudo, muito interessante.
E aprendemos bastante.
Ipea: Para além do caso de São Paulo, como você avalia esse instrumento, que
é um dos principais dentro do estatuto, e que é obrigatório? No Brasil há alguns
casos bem-sucedidos, como o da RM de Vitória-ES, que conseguiu elaborar o plano
e começar a executá-lo, ou de Belo Horizonte, cujo plano diretor metropolitano é
anterior ao estatuto e que também está em execução, embora não exatamente como
foi pensado. Contudo, neste último caso, a agência funciona, ela tem poder de po-
lícia, emite anuência para processos de parcelamento do uso do solo metropolitano,
por exemplo. Ou seja, ela tem um papel na regulação. Enfim, o que você acha desse
instrumento, o PDUI?
Jeroen Klink: Em primeiro lugar, quando foi aprovado o Estatuto da Me-
trópole, em 2015, e depois revisado, eu já naquele momento era bastante crítico,
em função daquilo que falei no início da nossa conversa. Acho que o PDUI é um
natimorto, porque ele nasce sem o braço do fundo – de Investimento Metropoli-
tano –, que a presidenta Dilma vetou. Não que aquele fundo fosse proporcionar
uma solução, porque era um fundo totalmente voluntário, e não correspondia aos
parâmetros de financiamento adequados para o problema metropolitano, que são
investimentos de trinta ou quarenta anos de maturação, e que exigem, portanto,
previsibilidade e transparência. Isso não se faz com recursos voluntários ou com
transferências, que não vão além do ciclo político eleitoral. Era preciso alguma coisa
mais robusta, um funding ancorado na própria estrutura tributária. E isso dentro
do próprio Estatuto da Metrópole. Então, sem o fundo, não há poder de regulação,
nem sobre os investimentos públicos, nem sobre os investimentos privados, o que
rebate também no braço da intervenção física. Ou seja, não se tem dinheiro para
fazer incentivos seletivos e promover a engrenagem das três dimensões mencionadas
anteriormente. E três anos depois, para agravar a situação, foi tirada a cláusula
da improbidade administrativa, que foi, digamos assim, o tiro de misericórdia,
porque então pode fazer o PDUI se quiser. Voltando à pergunta, o PDUI poderia
ser um instrumento importante sim, porque é preciso um arcabouço que norteie
o planejamento e a gestão metropolitana no longo prazo, o que poderia fortalecer
a articulação das três dimensões. De certa forma, essa foi a ideia do reescalona-
mento do Estatuto da Cidade para a metrópole, embora o desafio metropolitano
seja muito mais complexo.
Ipea: Em que sentido mais complexo?
Metrópoles e governança metropolitana: entrevista com Jeroen Klink | 133

Jeroen Klink: No sentido em que acredito que o fenômeno metropolitano


não se esgota no PDUI. Ele – o fenômeno metropolitano – precisa também de
instrumentos de planejamento estratégico, de mobilização produtiva dos territórios.
Mesmo no seu formato virtuoso, capaz de articular as dimensões mencionadas, o
PDUI pode cair na armadilha do planejamento tecnoburocrático. Nesse sentido, a
Câmara Regional do ABC foi uma experiência muito interessante. Ela mobilizou
a grande indústria, as pequenas associações e os sindicatos de trabalhadores, de um
modo ao mesmo tempo formal e informal. O ideal seria, portanto, em termos de
planejamento da metrópole, o PDUI estar acompanhado dessa perspectiva mais
estratégica, mesmo que esses arranjos dependam muitas vezes das vontades e dos
ciclos políticos. Hoje muita gente critica a Agência de Desenvolvimento do ABC,
mas, apesar das dificuldades, ela continua ativa, e acho que pode ser um comple-
mento importante para o PDUI.
Ipea: Com relação à governança metropolitana, em particular no que diz
respeito à participação dos municípios, na Cidade do Cabo amalgamaram todos
eles e transformaram em apenas um. As vantagens em termos de gestão de servi-
ços públicos são evidentes, mas isso é impensável no Brasil. Talvez uma instância
intermediária, que não comprometa as autonomias locais, seria o máximo que
poderíamos conceber. A questão é a seguinte: sendo que no Brasil as realidades
locais são muito heterogêneas e cheias de desigualdades, e que a questão metropo-
litana foi afetada pela reforma constitucional, sobretudo na relação entre estados,
municípios e governo federal, como lidar com essa complexidade institucional e
territorial para tornar possível a cooperação entre os entes da Federação, isto é, a
governança interfederativa da qual fala o próprio Estatuto da Metrópole?
Jeroen Klink: Eu concordo plenamente que não é possível pensar em solu-
ções como as da Cidade do Cabo. Na verdade, não existem soluções milagrosas.
Eu acredito que o primeiro ponto importante é haver uma política nacional para
as áreas metropolitanas, vincular a questão do financiamento, que é uma das
dimensões mais importantes, a alguns parâmetros mínimos para criação de áreas
metropolitanas e organização das institucionalidades. Com risco de ser chamado
de centralista, eu acho que não há nenhum problema em existirem critérios para
o repasse de recursos. Não tem cabimento jogar dinheiro nas áreas metropolita-
nas sem condicionalidades, isso não existe. Nos Estados Unidos, se um ente quer
dinheiro para uma autoestrada ou metrô, ele precisa criar uma instância metropo-
litana de mobilidade. Se não quiser criar, não pega o dinheiro. Eu acho, portanto,
que tanto os repasses voluntários quanto os repasses via fundo precisam de uma
reflexão institucional mais aprofundada. Além disso, há incentivos seletivos para
cutucar o governo estadual e os municípios. Nesse sentido, eu não acho que a
autonomia municipal seja a causa de todos os problemas. Na verdade, o ambiente
financeiro institucional não proporciona incentivos para transformar a autonomia
134 | 50 anos de regiões metropolitanas no Brasil e a Política Nacional de Desenvolvimento Urbano

municipal em eficiência coletiva. Voltando então para a pergunta, eu não acho que
grandes operações ou grandes mudanças serão viáveis. Ao mesmo tempo, existe
uma discussão que eu não acompanhei nos detalhes, mas que passa pelas FPICs,
principalmente pelas de saneamento ambiental, e que pode proporcionar um debate
interessante sobre esse assunto: é a ação direta de inconstitucionalidade em que
o Supremo Tribunal Federal (STF) resolveu, em 2013, em favor da titularidade
metropolitana do saneamento ambiental, ou seja, da dimensão compartilhada entre
estados e municípios dos serviços de saneamento. Embora a questão não tenha sido
encerrada com essa resolução, até porque não é tarefa do Supremo preencher essas
definições, ao menos pacificou momentaneamente a questão. Porém, o relógio,
que no momento está parado por causa de embargos, voltará a marcar o tempo, e
o debate retornará. E aí os entes precisam resolver como é que será, quais serão os
arranjos de cooperação interfederativa, plano de rateio, financiamento, número
de cadeiras para estados, municípios e movimento social etc. E aqui tudo está em
aberto. O interessante é que, qualquer que seja o entendimento, esses arranjos
institucionais e de governança deverão ser obrigatórios. Abre-se, por exemplo,
a possibilidade de um consorciamento interfederativo, que não é um consórcio
intermunicipal voluntário, mas uma instância de governança interfederativa.
Então eu acho que o tema das FPICs é um ponto de partida interessante para
preencher essas lacunas da governança metropolitana. Senão as coisas acontecerão
através da iniciativa privada, o que irá piorar ainda mais a situação das metrópoles.
Em resumo, a chave é realizar reformas ousadas, mas ao mesmo tempo incrementais,
que partem do arcabouço e da cultura federativa que já existe no Brasil.
Ipea: Muita gente diz que o acórdão4 do STF diz respeito apenas ao caso
do Rio de Janeiro, ao saneamento no Rio de Janeiro, mas que isso não implica a
questão metropolitana como um todo.
Jeroen Klink: Pois é, eu estive, em 2014, em Brasília discutindo aquela emen-
da constitucional para as áreas metropolitanas. Havia na época a sensação de
que o acórdão era bastante confuso: ao mesmo tempo que resolvia, não resolvia.
Então a ideia era centralizar a discussão e avançar no debate sobre uma emenda
constitucional, ou seja, resolver de uma vez esse assunto. Isso acabou trazendo a
responsabilidade da questão metropolitana para o governo federal, no sentido de
estabelecer determinados parâmetros para a governança das RMs. Certamente,
esses parâmetros se tornaram objeto de discussão e interpretação, mas o que ficou
claro é que a discussão transbordou o saneamento ambiental – e o caso do Rio
de Janeiro. Portanto, eu sou bastante otimista com relação à discussão iniciada.
Ipea: Talvez esse seja o problema principal, a ausência dessa dimensão constitu-
cional de uma instância metropolitana, pelo menos de administração, considerando

4. Acórdão da Ação Direta de Inconstitucionalidade no 1.842, de 6 de março de 2023.


Metrópoles e governança metropolitana: entrevista com Jeroen Klink | 135

que uma instância política está fora de cogitação. Qual é sua avaliação? Seria esse o
entrave, a falta de uma dimensão constitucional vinculante da governança metro-
politana, ou seria suficiente a institucionalidade que nós já temos?
Jeroen Klink: O movimento que foi feito em 2014-2015 era no sentido de
aproveitar a confusão do acórdão para criar uma emenda constitucional para re-
solver de vez a criação de uma entidade que tenha capacidade administrativa, mas
também de alavancagem de legitimidade política, de promoção de uma democracia
participativa e descentralizada no nível metropolitano. Mas era, e ainda é, um tema
escorregadio no Brasil, à luz da trajetória do debate tecnoburocrático. Ao mesmo
tempo, eu acho que com arranjos apenas voluntários – do tipo dos consórcios – será
muito difícil. É um pouco o dilema do planejamento: de um lado, se enfatizar-se
demasiada a ideia de comando e controle, perde-se o dinamismo das áreas me-
tropolitanas, a efervescência e a criatividade dos agentes. Por outro lado, se vai-se
para o outro extremo e se deixa tudo no âmbito do laissez-faire, o que se obtém é
a efemeridade dos arranjos, a falta de uma perspectiva mais consistente e de longo
prazo, que é de trinta ou quarenta anos. Nesse sentido, eu li o acórdão e acho que
o Supremo levanta preocupações corretas, sobretudo em termos de previsibilidade
para questões que demandam longo tempo de maturação. E que se precisa fazer
isso com participação. Mais cedo ou mais tarde, o relógio andará de novo, e, daqui
a dois anos, muito provavelmente teremos que retomar essa discussão. Mas será
preciso muito cuidado para poder avançar nessa direção. Talvez o próprio Estatuto
da Metrópole – que, diga-se de passagem, ninguém esperava – tenha que ser revisto,
para encontrarmos formas institucionais mais consistentes.
Ipea: No cerne dessa discussão, temos também a questão da cooperação,
ou da falta dela, entre os municípios, sobretudo nos territórios metropolitanos.
O fato de você ter participado ativamente do Consórcio do ABC paulista talvez
ajude a entender um pouco melhor essa dimensão da governança, que é a cooperação
horizontal entre os municípios, sob quais atributos ou condições isso é possível.
Complementando a pergunta anterior: são os consórcios públicos intermunicipais
o caminho para a cooperação no âmbito metropolitano?
Jeroen Klink: Bom, eu sou um defensor dos consórcios. De fato, eu participei
diretamente dessa discussão sobre o fortalecimento dos consórcios intermunicipais,
e sobre a ideia de consorciamento em geral, que culminou inclusive na aprova-
ção da lei em 2005, e da sua regulamentação em 2008. Eu defendo, portanto, o
consorciamento. No caso do ABC, ele foi muito importante porque mobilizou de
forma voluntária agentes estatais e não estatais. O consórcio começou, em 1991,
com questões específicas de interesse comum, como planejamento de resíduos
sólidos e problemas do desenvolvimento econômico, mas logo isso transbordou
para outros agentes. Do consórcio, por exemplo, nasce a Câmara Regional do
136 | 50 anos de regiões metropolitanas no Brasil e a Política Nacional de Desenvolvimento Urbano

ABC, que é também uma grande conquista institucional dessa mobilização.


Ao mesmo tempo, acredito que o consórcio resolve determinadas questões, mas
não resolve outras. Acho muito difícil existir um consórcio metropolitano que
proporcione soluções sustentáveis para o funding, por exemplo, ou para o plane-
jamento e a gestão das áreas metropolitanas no longo prazo, porque existem brigas
e ciclos políticos que fazem parte dessa dinâmica. Nesse sentido, o Consórcio do
ABC é bastante emblemático, porque recentemente alguns prefeitos decidiram
abandoná-lo; existem problemas de inadimplência e conflitos políticos que não
são os mesmos que antes. Então, considero os consórcios um instrumento muito
bom para a mobilização produtiva, para o planejamento estratégico, que consegue
contaminar positivamente os demais agentes, mas ele é frágil em termos do que
o planejamento das redes exige. Há também o que os economistas instituciona-
listas ortodoxos chamam de “custo transacional”, que é o agrupamento de um
número grande de municípios com interesses muito diversificados. Ou seja, os
consórcios são importantes, mas precisa-se de uma reforma mais profunda – no
nível constitucional –, que garanta investimentos, transparência e previsibilidade
por um prazo de vinte, trinta ou quarenta anos. Estranha essa resposta por parte
de quem participou ativamente do movimento de fortalecimento dos consórcios
intermunicipais, né? Mas, enfim, essa é a minha postura hoje. Acho que podemos
pensar em termos de complementaridade.
Ipea: Na sua fala há uma aposta forte nas capacidades estatais, pelo menos
na definição das regras do jogo para a governança metropolitana. A impressão é
que o tripé regulação, intervenção física e funding, para funcionar, demanda um
protagonismo do Estado. Contudo, vivemos em um mundo onde não somente
essas capacidades estatais estão sendo duramente questionadas, como também os
sentidos da metrópole, ou do metropolitano, estão mudando. Não haveria aí um
risco de continuarmos a defender um tipo de intervenção pública que ficou um
pouco presa no passado, quando o Estado era um ator relevante e com elevada
legitimidade institucional e política?
Jeroen Klink: Por isso que precisamos do povo! Então a chave é a questão
da participação. Mas aqui enfrentamos um paradoxo. Vivemos no espaço metro-
politano, no entanto, ninguém parece estar muito consciente disso. Ninguém dá
muita bola. Apenas para um grupo muito pequeno de acadêmicos e de gestores
reflexivos, que sobrevivem nas autarquias estaduais, esse assunto guarda alguma
relevância. Com base nisso, não é possível ser muito otimista. Eu, particularmente,
sou pessimista. Inclusive na dimensão constitucional da qual falamos nas pergun-
tas anteriores, sem apoio popular dentro e fora dos órgãos legislativos, será difícil
avançar. Será preciso certo grau de radicalidade nas propostas, de insurgência.
Não esqueçamos junho de 2013, que começou com o tema da mobilidade. E que
não foi apenas pelos vinte centavos, mas pela raiva contra a especulação imobiliária,
Metrópoles e governança metropolitana: entrevista com Jeroen Klink | 137

que empurra a população para as periferias e áreas de risco, o custo das passagens
e a precariedade do transporte. Ou seja, há uma linha difusa entre o planejamento
participativo e o planejamento insurgente que é preciso trabalhar politicamente.
Isso é estratégico para as áreas metropolitanas.
Ipea: Talvez o paradoxo ao qual você se refere possa ser “solucionado” através
de uma espécie de letramento metropolitano, ou alguma coisa do tipo. A escala
local, por exemplo, é muito identificada com o município, embora saibamos
que pode ir além dele, dependendo da abrangência das questões territoriais em
pauta. Trata-se de um problema de representação do espaço vivido, para utilizar
os conceitos de Henri Lefebvre. Assim, as designações habituais de metrópole e
metropolitano, entre outras, não parecem dar conta do fato de que as pessoas não
percebem que habitam nesses espaços, o que supõe problemas de administração e
gestão de problemas comuns. O máximo que as pessoas conseguem enxergar em
termos metropolitanos são os problemas de congestionamento. Então a pergunta
é: que tipo de pesquisa-ação poderíamos fazer para renomear a metrópole para as
pessoas perceberem esse espaço como vital?
Jeroen Klink: Devo começar dizendo que eu não sou um especialista e que
provavelmente vocês (Ipea) já têm uma bagagem ou um repertório para responder a
essa pergunta. Mas eu acho que o espaço é tridimensional. Ele não é apenas físico e
social, mas também representacional. Então essa dimensão – representacional – do
espaço metropolitano é chave, porque coincide com a percepção de vocês de que a
população está totalmente alienada do espaço metropolitano que habita. Ninguém
sabe muito bem o que é a metrópole, porém cidade, sim. Todos sabem em qual
cidade moram. Na minha tese de doutorado sobre a região do ABC paulista, eu
usei o conceito de “cidade-região” para tentar dar conta do fato de que o ABC é ao
mesmo tempo uma região e uma cidade, mesmo que as pessoas não percebam isso
completamente. À luz da importância do fenômeno urbano, inclusive do fato de a
institucionalidade no federalismo fiscal brasileiro ser ancorado no município, acho
que é importante retomar essa ideia de “cidade metropolitana”. Na África do Sul, já
que se falou da Cidade do Cabo, embora seja um contexto bastante diferente, eles
utilizaram a terminologia de united cities para dar essa ideia de unicidade ao espaço
metropolitano. Então eu acho que é preciso trabalhar a ideia de pertencimento,
que passa necessariamente pela questão da representação. É um tema de ponta.
Ipea: Chegamos no final da nossa entrevista. Gostaríamos de lhe agradecer
novamente pela disponibilidade e lhe perguntar se deseja acrescentar alguma coisa.
Jeroen Klink: Eu que agradeço! Aprendemos juntos com esse tipo de diálogo.
Gostaria, sim, de tocar em três pontos que me parece que complementam a reflexão.
O primeiro é a necessidade de não perder de vista que as nossas metrópoles não só
funcionam de maneira muito precária, mas que também apresentam territórios de
138 | 50 anos de regiões metropolitanas no Brasil e a Política Nacional de Desenvolvimento Urbano

precariedade que exigem intervenções urgentes. Salvo engano, o déficit habitacional


do país está concentrado nas áreas metropolitanas, que apresentam sérios problemas
com a população de rua, ocupações e favelas. Esses problemas demandam ações
articuladas entre diferentes setores da administração pública e estratégias multiesca-
lares. Portanto, a governança interfederativa é fundamental nessas intervenções. O
segundo ponto é reforçar a ideia de que o acórdão pode ser uma boa oportunidade
de avançar nas questões metropolitanas, uma vez que, ao decidir pela dimensão
metropolitana do saneamento ambiental – e, em consequência, nem municipal, nem
estadual –, obriga não somente a estabelecer formas de cooperação institucional ente
os entes, mas a desenvolver uma “cultura metropolitana”, que é, como dissemos,
uma perspectiva estratégica. Por fim, o terceiro ponto se refere à fragilidade da
conjuntura política atual. O fenômeno Bolsonaro precisa ser levado muito a sério.
A vitória do Lula e do PT foi por margem muito estreita. Então a sociedade exigirá
do governo respostas contundentes, inclusive em âmbito metropolitano. Esse talvez
seja hoje o nosso principal desafio.

REFERÊNCIA
SAVINI, F.; MAJOOR, S.; SALET, W. Dilemmas of planning: intervention,
regulation, and investment. Planning Theory, v. 14, n. 3, 2015.
CAPÍTULO 7

O PAPEL DOS ESTADOS NO IMPASSE DA QUESTÃO


METROPOLITANA NO BRASIL
Gerardo Silva

1 INTRODUÇÃO
Foi por meio da Lei Complementar no 14/1973, e de acordo com o art. 164
da Constituição Federal de 1967, o qual estabelecia que “a União, mediante lei
complementar, poderá, para a realização de serviços comuns, estabelecer regiões
metropolitanas, constituídas por municípios que, independentemente de sua
vinculação administrativa, façam parte da mesma comunidade socioeconômica”
(Brasil, 1967), que foram criadas as primeiras oito regiões metropolitanas (RMs)
no país: São Paulo, Belo Horizonte, Porto Alegre, Recife, Salvador, Curitiba, Belém
e Fortaleza – Rio de Janeiro seria criada um ano depois (Brasil, 1973). Na origem,
portanto, as RMs foram consideradas assunto de interesse e relevância da União,
embora estados e municípios fossem contemplados nos arranjos institucionais da
governança previstos na legislação.
Com a Constituição Federal de 1988 (CF/1988), entretanto, essa incumbên-
cia (de definição e criação de RMs) passou para as mãos dos estados, de maneira
conjunta com outras atribuições contempladas no título III, capítulo III – Dos
Estados Federados. Concretamente, no inciso 3 do referido capítulo, a letra da
Constituição afirma.
Os Estados poderão, mediante lei complementar, instituir regiões metropolitanas,
aglomerações urbanas e microrregiões, constituídas por agrupamentos de municí-
pios limítrofes, para integrar a organização, o planejamento e a execução de funções
públicas de interesse comum (Brasil, 1988).
Embora o termo “poderão” não designe, necessariamente, uma faculdade
exclusiva, nem obrigatória, entende-se que fica como prerrogativa estadual a criação
de RMs no seu território.
Evidentemente, as RMs já criadas contavam com essa definição, sendo ne-
cessária apenas sua revalidação pela legislação estadual. Contavam inclusive com
agências metropolitanas próprias, como parte do seu processo de institucionaliza-
ção. Contudo, após a sanção da CF/1988, o número de RMs reconhecidas como
tais pelos estados passou de 9 para 83, sendo o período imediatamente anterior
140 | 50 anos de regiões metropolitanas no Brasil e a Política Nacional de Desenvolvimento Urbano

à sanção do Estatuto da Metrópole (Lei no 13.089/2015) o momento de maior


crescimento dessa multiplicação. Não é necessária uma avaliação detalhada da si-
tuação para perceber que alguma coisa resultou diferente do esperado, ou seja, da
expectativa da maioria dos estudos acadêmicos e não acadêmicos sobre a questão
metropolitana no Brasil.
Em termos gerais, a definição de metrópole como âmbito de planejamento
abrange questões físicas ou geográficas, demográficas e funcionais. Entre as pri-
meiras, a conurbação entre cidades ou municípios diferentes tem sido um critério
bastante aceito, independentemente se essa conurbação segue o padrão de uma
mancha contínua ou descontínua e se agrega também espaços rurais (que, de
qualquer forma, são residuais em âmbitos metropolitanos). Entre as segundas, há
o entendimento de que o conjunto do território conurbado alcance no mínimo
1 milhão de habitantes. Por fim, no que diz respeito às funções, elas se destacam
pela sua capacidade de produção e influência econômica, cultural e política, tanto
no nível regional quanto no nacional e internacional – o que o geógrafo Milton
Santos chamava de “sofisticação” (Silva, 2009).
Sem dúvida, não somente as nove RMs criadas oficialmente antes da CF/1988
respondiam a esses critérios, mas existiam outras aglomerações de cidades ou conur-
bações que estariam legitimamente em condições de pleitear essa condição, como
Vitória, Campinas, São Luiz e Manaus (e também Brasília, porém com dificulda-
des institucionais por ser o município-sede da capital do país). Em contrapartida,
como vimos, a CF/1988 também fala de aglomerações urbanas e microrregiões,
de modo a deixar abertos os critérios de classificação para uma possível política de
desenvolvimento destinada à solução de problemas de interesse comum. Em outras
palavras, nem todas as aglomerações de cidades ou conurbações teriam condições
de se transformar em RMs, sem prejuízo do reconhecimento institucional como
âmbito urbano ou microrregional caracterizado.
O Estatuto da Metrópole seguiu idêntico critério de classificação, mas, dessa
vez, ampliando o conjunto de definições, conforme a seguir descrito.
1) Metrópole: espaço urbano com continuidade territorial que, em razão
de sua população e relevância política e socioeconômica, tem influên-
cia nacional ou sobre uma região que configure, no mínimo, a área de
influência de uma capital regional, conforme os critérios adotados pela
Fundação Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE).
2) Região metropolitana: unidade regional instituída pelos estados, me-
diante lei complementar, constituída por agrupamento de municípios
limítrofes para integrar a organização, o planejamento e a execução de
funções públicas de interesse comum.
O papel dos estados no impasse da questão metropolitana no Brasil | 141

3) Área metropolitana: representação da expansão contínua da malha urbana


da metrópole, conurbada pela integração dos sistemas viários, abrangen-
do, especialmente, áreas habitacionais, de serviços e industriais com a
presença de deslocamentos pendulares no território.
4) Aglomeração urbana: unidade territorial urbana constituída pelo agrupa-
mento de dois ou mais municípios limítrofes, caracterizada por comple-
mentaridade funcional e integração das dinâmicas geográficas, ambientais,
políticas e socioeconômicas.
O estatuto ainda agrega que as disposições da lei também se aplicam, no
que couber:
• às microrregiões instituídas pelos estados, com fundamento em funções
públicas de interesse comum com características predominantemente
urbanas; e
• às unidades regionais de saneamento básico definidas pela Lei no 11.445/2007.
Há pelo menos duas ambiguidades na lei. A primeira é a falta de definição
do que é uma microrregião e o que a diferencia das outras classificações. Se por
microrregião se entende qualquer recorte territorial que não se enquadre nas di-
mensões metropolitanas e das aglomerações urbanas, o leque de possibilidades é
bastante abrangente. A segunda é a tentativa de estabelecer distinções na própria
dimensão metropolitana, sem indicar claramente como as subcategorias metrópole,
região metropolitana e área metropolitana se relacionam entre si. Dessa forma, a
divisão regional do estado de Santa Catarina, com base na lei, em onze RMs, não
feriria o Estatuto da Metrópole, uma vez que tal divisão se ajusta à definição de
RM ali estabelecida (Moraes, Guarda e Zacchi, 2018). Como sabemos, a urba-
nização de Santa Catarina não se caracteriza pela presença de núcleos urbanos de
porte metropolitano.
Essas ambiguidades ou brechas na lei, entretanto, não explicariam a multipli-
cação de RMs pelo país, banalizando, em certo modo, o conceito e as problemáticas
que lhes são próprias. Parece existir uma alta dose de oportunismo por parte dos
estados nesse fenômeno, cujo motivo principal, acreditamos, seja a possibilidade de
criação de um fundo de desenvolvimento metropolitano vinculado à lei. Se assim
for, os estados estariam utilizando a questão metropolitana como via de acesso a
recursos, em um contexto (pós-CF/1988) no qual eles têm perdido capacidade de
investimento e de atração de recursos federais para a implementação de políticas
de desenvolvimento social e econômico (Monteiro Neto, 2014). Contudo, essa
banalização e/ou descaracterização da questão metropolitana no nível estadual
também revela a fraca adesão dos estados a essa problemática territorial, o que
contrastaria com a responsabilidade constitucional assignada.
142 | 50 anos de regiões metropolitanas no Brasil e a Política Nacional de Desenvolvimento Urbano

O objetivo deste capítulo é explorar alguns fatores que poderiam ajudar na


compreensão desse fenômeno de multiplicação de RMs que coloca os estados no
centro da indagação. A hipótese que aqui se sustenta é a de que, além das brechas
do Estatuto da Metrópole já consideradas nesta introdução, existem outros fatores
que incidem na dificuldade de os estados se comprometerem com respostas mais
consistentes ao problema metropolitano. Para compreender esses fatores, este ca-
pítulo se divide em quatro seções, além desta introdução. A seção 2 trata do que
chamamos de “anomalia das metrópoles”, que abarca as dificuldades de assimilação
institucional do fenômeno metropolitano na ordem federalista. A seção 3 aborda
a relação entre estados e municípios após a CF/1988. A seção 4, refere-se ao vín-
culo dos estados com a questão metropolitana. Por fim, na seção 5, indicamos a
relevância de outros aspectos (que não as brechas do Estatuto da Metrópole), os
quais nos ajudariam a entender melhor o papel dos estados no impasse da questão
metropolitana no Brasil.

2 A ANOMALIA DA METRÓPOLE
O fato metropolitano representa uma anomalia em termos territoriais e institu-
cionais. Desde sua origem, o federalismo brasileiro, assim como outros federalis-
mos latino-americanos (Linhares, 2014; Carmagnani, 1993), reconhece quatro
instâncias principais de governo: a União, os estados, os municípios e o Distrito
Federal. Trata-se de uma forma de organização institucional que estabelece regras de
funcionamento do sistema político com base em uma Constituição escrita (Dalla-
ri, 2019; Anderson, 2009). Diferentemente dos regimes unitários, o federalismo
estabelece uma forma de distribuição de atribuições e poderes governamentais
entre os entes a partir da autonomia política destes, quer dizer, da prerrogativa de
cada ente escolher seu próprio governo (inclusive, hoje, o Distrito Federal). Como
resultado dessa organização, instituem-se os princípios federativos de coordenação
e cooperação entre os entes, que são próprios e característicos desse regime.
Uma dimensão muitas vezes negligenciada da ordem federativa é o fato de os
entes corresponderem a territórios específicos, isto é, de se tratar de recortes territo-
riais. Não se trata, evidentemente, dos únicos recortes territoriais possíveis, como os
geógrafos bem sabem, mas de recortes territoriais dotados de uma institucionalidade
relevante, que fazem parte da organização do Estado desde sua origem. Tanto os
estados quanto os municípios têm limites jurisdicionais claramente estabelecidos,
além de responsabilidades administrativas e de governo. São recortes que também
expressam relações de poder e constituem o sistema de representação nas diferentes
instâncias em que este se ordena. Em resumo, nenhum outro recorte territorial,
com exceção da dimensão soberana do Estado-nação, tem a força política desses.
O papel dos estados no impasse da questão metropolitana no Brasil | 143

Uma particularidade da CF/1988 foi dar aos municípios o status de ente da


Federação, o que trouxe consequências institucionais importantes (como veremos
na próxima seção do texto). Em termos especificamente urbanos, além do empode-
ramento político dos municípios, a CF/1988 trouxe instrumentos de intervenção
nas cidades de grande valia, sob o guarda-chuva da função social da propriedade e da
cidade (parcelamento e edificação compulsórios, desapropriação por interesse público,
imposto progressivo sobre a propriedade urbana). Por sua vez, a sanção do Estatuto da
Cidade (Lei no 10.257/2001) trouxe, entre outros aspectos, a obrigação de elaboração
e implementação do Plano Diretor Participativo para municípios de mais de 20 mil
habitantes e também para os municípios metropolitanos. Com isso, ficou estabelecido
um vínculo que favorece o protagonismo municipal nas questões urbanas.
O planejamento da cidade é um problema de longa data. Desde a segunda
metade do século XIX, com as intervenções de Haussmann em Paris e os urbanistas
que nele se inspiraram, um poderoso campo de reflexão e ação foi se constituin-
do, com correntes de pensamento bem estabelecidas. Nesse sentido, o Estatuto
da Cidade surpreende por sua ousadia política, mas não pela sua temporalidade
(início do século XXI), nem pelo assunto de que trata. A metrópole, entretanto, é
um fenômeno mais recente e tem a ver, pelo menos no Brasil, com o crescimento
desordenado das periferias das grandes cidades, isto é, com a conformação de cidades
que não mais correspondem a um município, mas a um conjunto deles. Assim, os
problemas urbanos adquirem uma outra escala, as dinâmicas de funcionamento
se tornam mais complexas e outros atores entram em cena.
O problema é que essa nova configuração das cidades, cuja dinâmica de
desenvolvimento territorial é de alguma forma incontornável, não somente não
está prevista (com a mesma força que as cidades) no núcleo duro do pensamento
urbano, como tampouco na reflexão institucional. Nesse sentido, a metrópole se
torna uma anomalia. Mesmo com o reconhecimento da sua existência, seja com
a Lei Complementar no 14/1973, seja com a CF/1988, seja com o Estatuto da
Metrópole, as RMs precisam de um arranjo de governança (e de governo) que não
é evidente. Exige, por exemplo, cooperação entre entes da Federação, sendo que
a forma dessa cooperação tem de ser construída sobre uma institucionalidade já
definida em termos constitucionais, na qual as atribuições de cada um dos entes
que compõem a Federação estão estabelecidas. Em outras palavras, trata-se de
construir uma institucionalidade débil (cooperativa) sobre uma institucionalidade
forte (definida constitucionalmente em concordância com a participação de cada
um dos entes).
O reconhecimento dessa condição é importante porque a dimensão cooperativa
(ou mesmo associativa) vai depender de fatores que remetem a aspectos estruturais
do regime federativo e de organização do Estado. Aspectos esses que, muitas vezes,
144 | 50 anos de regiões metropolitanas no Brasil e a Política Nacional de Desenvolvimento Urbano

não favorecem a criação de novas institucionalidades percebidas como alteração


do poder distribuído entre os entes. No caso dos estados, por exemplo, aos quais
foi atribuído o poder de criar RMs, isso significa ter que compartilhar as políticas
de provisão de serviços seguidas pelas empresas estaduais; por sua vez, no caso
dos municípios, ter que aceitar tomar decisões compartilhadas, particularmente
no âmbito do ordenamento territorial, representa uma ameaça à sua autonomia,
consagrada constitucionalmente. Isso não impede, é claro, o estabelecimento de
formas institucionais para a governança metropolitana, como as agências de desen-
volvimento metropolitano e/ou os consórcios intermunicipais, que, no entanto,
também podem ser vistos como instrumentos ad hoc para uma situação anômala.
Essas dificuldades podem ainda ser identificadas na passagem do Estatuto
da Cidade para o Estatuto da Metrópole. Enquanto o primeiro se baseia em
uma institucionalidade já constituída, no segundo, esta precisa ser desenhada.
Embora o próprio estatuto estabeleça diretrizes do regime de governança em âm-
bito metropolitano, tais como uma instância executiva e outra deliberativa, com
representação da sociedade civil, uma instância técnica e outra de administração
financeira, caberia a cada estado da Federação, como responsável pela sua criação,
definir parâmetros de funcionamento para essas instâncias. Em contrapartida, a
lei estabelece a obrigação, nas regiões já criadas ou a serem criadas, de elaboração
do Plano de Desenvolvimento Urbano Integrado (PDUI), na mesma lógica dos
Planos Diretores Participativos do Estatuto da Cidade, porém com um grau de
complexidade muito maior, ao qual os municípios têm que se ajustar. Em ambos os
casos, não fica claramente estabelecido como esses processos deverão ser conduzidos.
Por último, é importante destacar que essa situação não é exclusiva do Brasil.
Não existem, até agora, na experiência internacional, modelos de governança que
possam ser considerados, ao mesmo tempo, bem-sucedidos e dotados de certo grau
de universalidade na sua tradução ou aplicação. Ou seja, a experiência e a literatura
internacional reforçam, em grande medida, o caráter anômalo da condição metropo-
litana. Uma das principais questões que esse caráter anômalo levanta é que permitiria
explicar por que as soluções institucionais que têm sido propostas estão sempre sendo
testadas e, com raras exceções, nunca parecem alcançar resultados satisfatórios.

3 ESTADOS E MUNICÍPIOS NO FEDERALISMO BRASILEIRO


A relação entre estados e municípios no federalismo brasileiro é bastante complexa
e tem evoluído ao longo do tempo. Historicamente, desde a sanção da primeira
Constituição Republicana, em 1891, os municípios permaneceram subordinados
aos estados, que, com a União, eram os principais componentes da organização
federalista do país. O tema foi desde o início controverso, uma vez que a ideia de
uma organização institucional como federação de municípios (ou que contemplasse
O papel dos estados no impasse da questão metropolitana no Brasil | 145

os municípios) já estava presente nos debates da época. De acordo com Torres


(2017), a questão precedia inclusive a Constituinte, o que pode ser corroborado
no entendimento do Visconde de Uruguai de que o Ato Adicional de 1834 tinha
sido hostil aos municípios.
Segundo o mesmo autor, o que acabou prevalecendo no federalismo brasi-
leiro foi a concepção segundo a qual as relações entre estados e municípios são de
índole administrativa, enquanto a dos estados e da União são de natureza política.
Contudo, as pretensões de autonomia financeira e política dos municípios não
cessaram e foram progressivamente atendidas. Na Constituição Federal de 1934, de
curta duração e/ou aplicação, os prefeitos passaram a ser eleitos pelo voto popular,
e não mais designados pelos governadores (Nunes e Serrano, 2019). Também se
reconhecia, por parte dos municípios, a capacidade de arrecadação própria, por
meio de impostos e taxas, a autonomia na aplicação das suas rendas e a organização
dos serviços da sua competência (op. cit., p. 159).
Embora as sucessivas constituições (1937, 1946 e 1967 e a Emenda Consti-
tucional de 1969) não tenham inovado sobre a matéria, e nem sempre favorecido
a autonomia dos municípios, estes foram se robustecendo no seu papel institucio-
nal, principalmente como atores políticos. Não é por acaso que a última ditadura
militar (1964-1985) tenha decidido intervir nas capitais do país e nos municípios
considerados estratégicos para a segurança nacional. Também não é por acaso
que as resistências que conduziram à abertura gradual da democracia ao longo da
década de 1980 tenham tido as cidades como palcos privilegiados. Os municípios
do ABC Paulista, por exemplo, em particular São Bernardo do Campo, estão
indissoluvelmente associados às lutas operárias dos metalúrgicos, assim como São
Paulo à fundação do Partido dos Trabalhadores.
Ao mesmo tempo, para a grande maioria dos municípios brasileiros, histori-
camente mais limitados no seu poder de barganha do que as capitais ou municípios
com algum grau de desenvolvimento econômico, a relação com os estados é mais
complexa e sempre tem sido atravessada por vínculos clientelísticos ou de favores
políticos. Sem respaldo do governo federal e sem autonomia financeira e capaci-
dade institucional para tomar decisões de impacto em nível local, o que resta é o
jogo político que propõem os governos estaduais, os quais, além de terem uma
agenda própria, também impõem exigências e condições pelo apoio ou respaldo
ao desenvolvimento municipal. Embora esse jogo institucional possa variar ao
longo do tempo, dependendo das políticas implementadas, ele permanece bastante
estrutural, inclusive nos estados das regiões mais avançadas do país. As mudanças
trazidas pela CF/1988, às quais nos referiremos a seguir, de profundas implicações
na relação entre estados e municípios, ainda não se mostraram capazes de mudar
radicalmente a natureza desses vínculos.
146 | 50 anos de regiões metropolitanas no Brasil e a Política Nacional de Desenvolvimento Urbano

Uma das inovações institucionais mais relevantes da CF/1988 foi dar aos muni-
cípios o status de “ente da Federação”, no mesmo patamar que os estados e o Distrito
Federal. Afirma o art. 1o: “A República Federativa do Brasil [é] formada pela união
indissolúvel dos estados e municípios e do Distrito Federal” (Brasil, 1988). Dessa
forma, os municípios ganharam um peso institucional que nunca antes tinham tido
e, logicamente, saíram fortalecidos na sua relação com os estados. Mais uma vez,
isso vai variar de município para município, porém, isso trouxe, de maneira geral,
um aumento substantivo do seu poder de barganha – mesmo quando as condições
financeiras para sua autonomia não tenham acompanhado o ganho político. Em
contrapartida, os estados, que saíram fortalecidos do processo constituinte, foram
perdendo protagonismo ao longo da década de 1990, afetados, em boa medida, pelas
mudanças nas regras do jogo no novo cenário econômico-financeiro, no contexto
do Plano Real (Ismael, 2014; Regis, 2009).
Os motivos que levaram os estados a perderem protagonismo no âmbito
federativo (recuperado, em parte, durante a pandemia de covid-19) são variados e
complexos. Porém, ao menos dois deles merecem uma consideração. O primeiro
é a privatização das empresas públicas que realizavam investimentos diretos do
governo federal no âmbito dos estados, o que representava, para estes, uma fonte
importante de recursos direcionados para o desenvolvimento local e regional. O
segundo é a privatização dos bancos estaduais, por meio dos quais os estados faziam
a rolagem das suas dívidas, repassando para a União o ônus dos empréstimos. Com
essa medida e com a sanção da Lei de Responsabilidade Fiscal (LRF) em 2000,
que estabelece limites para gastos com as receitas públicas, ficou configurado um
panorama bastante restritivo para os estados com relação ao que tinha sido em
períodos anteriores.
Embora os municípios também tenham sido atingidos por essa situação restri-
tiva e fossem, em grande medida, dependentes dos repasses do governo federal por
meio do Fundo de Participação dos Municípios (FPM), eles foram os principais
beneficiários da redistribuição das receitas públicas. Como podemos observar na
tabela 1, no que diz respeito à distribuição dos recursos públicos entre os entes da
Federação, tem havido, desde a CF/1988, uma clara tendência de favorecimento
aos municípios, que passam de 13,3% das receitas totais disponíveis em 1988
para 19,4% em 2014. Por sua vez, os estados têm uma leve variação negativa de
1,6% no período considerado, sendo a União a instância ou ente que mais cede
recursos nessa redistribuição.
O papel dos estados no impasse da questão metropolitana no Brasil | 147

TABELA 1
Distribuição federativa das receitas
(Em %)
Ano União Estados Municípios
1988 60,1 26,6 13,3
1995 56,2 27,2 16,6
2000 55,8 26,3 17,9
2005 57,3 25,5 17,1
2010 56,5 25,1 18,4
2014 55,6 25,0 19,4

Fonte: Oliveira e Chieza (2018 apud Arruda e Siqueira, 2022).


1

Para finalizar, os processos de descentralização, iniciados na década de 1980,


mas consolidados nas décadas seguintes, favoreceram principalmente os muni-
cípios. Como amplamente demonstrado por diversos autores, os processos de
descentralização foram implementadas como estratégia de tornar mais eficiente
a ação do Estado na provisão de serviços públicos, tais como saúde, educação e
habitação (Arretche, 1999; 2004; Bercovici, 2002; Almeida, 1995). Contudo, esses
processos tinham como justificativa a democratização da sociedade e a participação
da sociedade civil, cujos vínculos com a escala local consideravam-se evidentes.
Assim, os estados foram ficando em um segundo plano nas decisões públicas que
tinham como principal ator o governo federal aliado aos municípios. Em termos
de planejamento urbano, por exemplo, no contexto do Estatuto da Cidade, o
protagonismo ficou nas mãos dos municípios.

4 ESTADOS E REGIÕES METROPOLITANAS


As considerações anteriores permitiram identificar e singularizar dois fatores de peso
que incidem sobre a dimensão institucional da governança metropolitana: a anomalia
metropolitana, que exige soluções institucionais ad hoc de difícil implementação,
e o debilitamento do papel dos estados em questões territoriais, particularmente
as relacionadas com o planejamento urbano. Ora, a questão metropolitana é con-
siderada assunto de planejamento urbano, tem os estados como agentes centrais
e desempenha um rol muito importante no desenvolvimento econômico do país.
Como vimos no início do capítulo, houve, entretanto, uma multiplicação de RMs
criadas pelos estados, o que levou ao questionamento deles mesmos terem maturi-
dade institucional para lidar com o problema (com exceções, é claro).

1. Oliveira, F. A. de; Chieza, R. A. Auge e declínio da Federação brasileira: 1988-2017. In: Fagnani, E. (Org.). A reforma
tributária necessária: diagnósticos e premissas. Brasília: Anfip; Fenafisco, 2018. p. 560-586.
148 | 50 anos de regiões metropolitanas no Brasil e a Política Nacional de Desenvolvimento Urbano

Para compreender melhor essa situação, revisamos, neste último ponto, a rela-
ção dos estados com as RMs. Independentemente da atribuição constitucional, os
estados desenvolvem de fato políticas que podem ser consideradas metropolitanas,
mas que, na maioria das vezes, servem ao seu próprio interesse. Na verdade, existem
políticas metropolitanas (ou de efeito metropolitano) que nem sequer são reconhecidas
como tais. Um exemplo que pode ser arrolado nesse sentido é o do Rodoanel Mário
Covas, em São Paulo (Silva e Tavares, 2022). Concebido como uma via de descarga
do tráfego pesado na cidade, ele atravessa e, ao mesmo tempo, vincula os municípios
periféricos da RM de São Paulo. De alguma forma, ele reforça e constitui a própria
dimensão metropolitana, mesmo que não tenha sido essa sua intenção principal.
Por sua vez, o Arco Metropolitano do Rio de Janeiro, que até agora não conseguiu
atingir seu propósito, foi pensado como estratégia de desenvolvimento dessa região.
Uma outra forma de intervenção direta é por meio do transporte público. No
Brasil, pode-se afirmar que os estados são os principais responsáveis pela mobilidade
metropolitana. No caso de São Paulo, a Empresa Metropolitana de Transportes
Urbanos de São Paulo, (Emtu/SP) é a encarregada de atender ao transporte in-
termunicipal de passageiros, entre os 39 municípios que compõem a região, com
mais de 300 milhões de viagens em 2020, ainda na pandemia (Emtu/SP, 2020) –
destaque-se o fato de a empresa ter uma perspectiva metropolitana de desenvolvi-
mento do serviço desde sua origem. Em Curitiba, a Lei Complementar estadual
no 153/2013 dispõe que “o transporte coletivo público intermunicipal de passageiros
do estado do Paraná, como serviço público, terá sua organização, gerenciamento
e planejamento providos pela Administração pública estadual” (Paraná, 2013). O
mesmo acontece em Porto Alegre, sendo a Fundação Estadual de Planejamento
Metropolitano e Regional (Metroplan) seu braço executivo. Em síntese, no âmbito
da mobilidade, os estados têm uma ingerência metropolitana bastante significativa,
ainda que não seja uma experiência generalizável a todos eles.
Um terceiro âmbito de ação estadual sobre os territórios metropolitanos são
as companhias estaduais de serviços, tais como saneamento, água e energia elétrica.
Embora a abrangência desses serviços não seja restrita aos âmbitos metropolitanos,
eles têm nesses territórios parcela considerável dos usuários e/ou domicílios – no
caso do Rio de Janeiro, por exemplo, 76% da sua população está concentrada
na RM. Acontece com as companhias estaduais, na sua política de provisão dos
serviços, em boa medida terceirizadas e/ou privatizadas por meio de concessões
públicas, nas quais os critérios territoriais se ajustam às dinâmicas empresariais
que as acompanham, sendo a questão das tarifas e da capacidade de pagamento
dos usuários um fator estratégico do seu funcionamento. Como consequência, a
dimensão propriamente metropolitana da ação dessas companhias acaba sendo
secundarizada, quando não ignorada, no desenho da ampliação e na cobertura
das redes – além da natureza altamente setorializada da prestação desses serviços.
O papel dos estados no impasse da questão metropolitana no Brasil | 149

Esse alijamento da questão metropolitana por parte das companhias estaduais


fica claramente exposto no contencioso perante o Supremo Tribunal Federal (STF)
sobre a ingerência e jurisdição estadual do serviço de saneamento na RM do Rio
de Janeiro (Ação Direta de Inconstitucionalidade – ADI-RJ no 1.842/2013) e na
RM de Salvador (ADI-BA no 2.077/2013), na qual ambos os estados são questio-
nados sobre a possibilidade de assumir a gestão dos serviços sem participação dos
municípios nas decisões estratégicas (Santos, 2018). Nesse sentido, de maneira
bastante auspiciosa, o STF entende que funções de interesse comum em âmbito
metropolitano são de ingerência e jurisdição metropolitanas, não pertencendo de
maneira exclusiva nem aos estados, nem aos municípios.
[Do reconhecimento] do poder concedente e da titularidade do serviço ao colegiado
formado pelos municípios e pelo estado federado. A participação dos entes nesse cole-
giado não necessita de ser paritária, desde que apta a prevenir a concentração do poder
decisório no âmbito de um único ente. A participação de cada município e do estado
deve ser estipulada em cada região metropolitana de acordo com suas particularidades,
sem que se permita que um ente tenha predomínio absoluto (STF, 2013, p. 3-4).
Essas manifestações da incidência estadual nas dinâmicas metropolitanas
mostram que os estados não são atores ausentes, mas relevantes. O que falta,
evidentemente, é o comprometimento com a dimensão metropolitana de acordo
com suas exigências institucionais, isto é, de estratégias de governança que assu-
mam, de maneira convergente e sistemática, o recorte metropolitano. Se há, por
um lado, como parecem indicar as ADIs, a necessidade de “pacificar” a relação
entre os estados e municípios em questões metropolitanas, por outro lado, as ações
estaduais permanecem presas a lógicas setoriais, o que rebate na ausência de uma
perspectiva metropolitana, cuja lógica predominante é territorial. Em resumo,
identificamos na relação entre estados e RMs um paradoxo, em que os estados são
atores relevantes das dinâmicas metropolitanas e, ao mesmo tempo, são incapazes
de dar consistência institucional a estas.

5 À GUISA DE CONCLUSÃO
Exposta a complexidade que acompanha a questão metropolitana no Brasil e iden-
tificadas as dimensões críticas da intervenção estadual, resta ainda o interrogante
que deu origem a este capítulo: por que os estados multiplicaram a criação de
RMs ao ponto de descaracterizar o sentido e propósito do Estatuto da Metrópole?
Independentemente das brechas da lei e do oportunismo que pode ter guiado essa
estratégia, ante a possibilidade de criação de um fundo metropolitano, ou, ainda,
por comportamento mimético, existem elementos que nos permitem avaliar melhor
a situação que pode ter ocasionado a adoção dessa atitude.
Em primeiro lugar, a anomalia metropolitana, como foi definida neste capítulo,
faz com que as soluções pretendidas sejam objeto de negociação, isto é, de acordo
150 | 50 anos de regiões metropolitanas no Brasil e a Política Nacional de Desenvolvimento Urbano

entre as partes, o que exige vontade política e continuidade para além dos ciclos
políticos. Ora, a forma como se processam as disputas políticas no Brasil, com
alto grau de fragmentação partidária e orientadas principalmente para a obtenção
de benefícios individuais dos entes e/ou dos representantes, não favorece a ação
coletiva, que é decisiva em âmbitos metropolitanos.
Em segundo lugar, o “retraimento” dos estados perante os municípios, esti-
mulado pela aliança, em termos de políticas públicas, destes últimos com a União,
determinou uma mudança nas relações institucionais entre os entes subnacionais.
Assim, o desenvolvimento de relações de cooperação metropolitana, fundamentais
para o estabelecimento de estratégias de governança, parece ter ficado preso em
um impasse institucional, originado na CF/1988, no qual a hegemonia tradicio-
nal dos estados sobre os municípios sofre um forte abalo. Consequentemente, a
capacidade dos estados de alavancar a questão metropolitana, que depende dessa
relação, também foi afetada de maneira direta.
Por fim, em terceiro lugar, não parece haver disposição, por parte dos estados,
de compartilhar decisões estratégicas de desenvolvimento em territórios da metró-
pole. Por um lado, investimentos infraestruturais, como os relativos à circulação
e transporte, respondem a lógicas tecnoburocráticas, isto é, sem participação dos
municípios ou da sociedade civil, a não ser em questões de impacto local. Por outro
lado, as companhias estaduais desenham suas estratégias territoriais de acordo com
suas próprias demandas operacionais, sem conexão com a dimensão institucional da
governança metropolitana. Esse resultado é provavelmente o mais desconcertante,
posto que, diferentemente dos anteriores, que podem ser chamados de “resultados
derivados da ordem institucional”, estes são, em certo modo, propositais.
Sem dúvida, esta indagação parte de uma perplexidade diante do que acontece
com a questão metropolitana no Brasil, isto é, a criação e multiplicação, por parte
dos estados, de RMs que, na maioria dos casos, não correspondem a sua definição
tradicional nem sustentam os desafios de cunho metropolitano. Contudo, como
tentamos argumentar neste capítulo, é preciso encontrar as razões para se ter chegado
a essa situação para além do simples oportunismo da ação estadual. Nesse sentido,
observamos que a fragilidade da questão metropolitana nesse âmbito deriva tanto
da anomalia institucional do fenômeno metropolitano quanto das ambiguidades
da sua práxis institucional nesses territórios, assim como também das indetermina-
ções do próprio Estatuto da Metrópole. Assim, poderíamos pensar que os estados
acabaram fazendo um uso “abusivo” de uma faculdade e de um instrumento que,
apesar da atribuição constitucional, não tinham de fato conquistado suficiente
legitimidade nessa instância.
O papel dos estados no impasse da questão metropolitana no Brasil | 151

REFERÊNCIAS
ALMEIDA, M. H. T. de. Federalismo e políticas sociais. Revista Brasileira de
Ciências Sociais, São Paulo, v. 10, n. 28, p. 88-108, 1995.
ANDERSON, G. Federalismo: uma introdução. 1. ed. Rio de Janeiro: FGV,
20 ago. 2009.
ARRETCHE, M. Políticas sociais no Brasil: descentralização em um estado federa-
tivo. Revista Brasileira de Ciências Sociais, v. 14, n. 40, p. 111-141, jun. 1999.
ARRETCHE, M. Federalismo e políticas sociais no Brasil: problemas de coordena-
ção e autonomia. São Paulo em Perspectiva, São Paulo, v. 18, n. 2, p. 17-26, 2004.
ARRUDA, C. P.; SIQUEIRA, H. Federalismo e descentralização territorial: os
governos estaduais no pacto federativo brasileiro. Revista de Políticas Públicas,
v. 26, n. 2, p. 598-615, 2022.
BERCOVICI, G. A descentralização de políticas sociais e o federalismo cooperativo
brasileiro. Revista de Direito Sanitário, v. 3, n. 1, p. 13-28, mar. 2002.
BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil de 1967. Brasília:
Congresso Nacional, 1967.
BRASIL. Lei Complementar no 14, de 8 de junho de 1973. Estabelece as regiões
metropolitanas de São Paulo, Belo Horizonte, Porto Alegre, Recife, Salvador,
Curitiba, Belém e Fortaleza. Diário Oficial da União, Brasília, 8 jun. 1973.
BRASIL. Constituição Federal de 1988. Brasília: Congresso Nacional, 1988. Dis-
ponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm.
CARMAGNANI, M. (Coord.). Federalismos latino-americanos: México/Brasil/
Argentina. México: Fondo de Cultura Económica, 1993.
DALLARI, D. de A. O Estado federal. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 2019.
EMTU/SP – EMPRESA METROPOLITANA DE TRANSPORTES URBANOS
DE SÃO PAULO. Relatório integrado 2020. São Paulo: Emtu/SP, 2020. Disponível
em: https://www.emtu.sp.gov.br/emtu/pdf/Caderno%20RELAT%C3%93RIO%20
INTEGRADO%202020.pdf.
ISMAEL, R. Governos estaduais no ambiente federativo inaugurado pela Cons-
tituição Federal de 1988: aspectos políticos e institucionais de uma atuação cons-
trangida. In: MONTEIRO NETO, A. (Org.). Governos estaduais no federalismo
brasileiro: capacidades e limitações em debate. Brasília: Ipea, 2014. p. 183-212.
LINHARES, P. de T. F. S. (Org.). Federalismo sul-americano. Rio de Janeiro:
Ipea, 2014.
152 | 50 anos de regiões metropolitanas no Brasil e a Política Nacional de Desenvolvimento Urbano

MONTEIRO NETO, A. Governos estaduais no federalismo brasileiro: capacida-


des e limitações no cenário atual. In: MONTEIRO NETO, A. (Org.). Governos
estaduais no federalismo brasileiro: capacidades e limitações em debate. Brasília:
Ipea, 2014. p. 21-60.
MORAES, S. T.; GUARDA, A.; ZACCHI, G. S. A caracterização das regiões
metropolitanas catarinenses e o Estatuto da Metrópole. Geosul, Florianópolis,
v. 33, n. 67, p. 38-60, maio-ago. 2018.
NUNES, S. G. S.; SERRANO, A. C. A. P. O município na história das consti-
tuições do Brasil de 1824 a 1988. Cadernos Jurídicos, São Paulo, v. 20, n. 52,
p. 153-168, nov.-dez. 2019.
PARANÁ. Lei Complementar no 153, de 10 de janeiro de 2013. Dispõe que o
transporte coletivo público intermunicipal de passageiros do Estado do Paraná,
como serviço público, terá sua organização, gerenciamento e planejamento providos
pela administração pública estadual. Diário Oficial Executivo, Paraná, n. 8.874,
p. 64, 10 jan. 2013. Disponível em: https://www.legislacao.pr.gov.br/legislacao/
pesquisarAto.do?action=exibir&codAto=85006&indice=1&totalRegistros=1&
dt=31.2.2021.9.22.6.83. Acesso em: 10 abr. 2023.
REGIS, A. O novo federalismo brasileiro. Rio de Janeiro: Forense, 2009.
SANTOS, M. de O. Análise institucional: Estatuto da Metrópole e outros instru-
mentos normativos que tratam da questão metropolitana. In: MARGUTI, B. O.;
COSTA, M. A.; FAVARÃO, C. B. (Org.). Brasil metropolitano em foco: desafios
à implementação do Estatuto da Metrópole. Brasília: Ipea, 2018. p. 55- 105.
SILVA, G. O meio técnico-científico informacional e os novos territórios metro-
politanos. Revista Periferia, Duque de Caxias, v. 1, p. 132-145, 2009.
SILVA, G.; TAVARES, S. R. Articulando los territorios metropolitanos: un compara-
tivo México Brasil. In: ULLOA, C. N. (Org.). Metrópoli en red: claves para pensar
en nuestras ciudades. 1. ed. Zapopan: Colegio de Jalisco, 2022. v. 1, p. 95-111.
STF – SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. Ação Direta de Inconstitucionali-
dade no 1.842. Rio de Janeiro: STF, 2013. (DJE, n. 181). Disponível em: https://
redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=AC&docID=630026. Acesso
em: 11 abr. 2023.
TORRES, J. C. de O. A formação do federalismo no Brasil. Brasília: Câmara
dos Deputados, 2017.
CAPÍTULO 8

PASSADO E FUTURO DA GOVERNANÇA DAS REGIÕES


METROPOLITANAS: ENTREVISTA COM MILA DA COSTA1
Entrevistada
Mila Batista Correa Leite da Costa

Entrevistadores2
Bárbara Oliveira Marguti
Cleandro Krause
Marco Aurélio Costa

Ipea: A princípio, imaginamos esta entrevista subsidiando o capítulo que propusemos


para o livro, que pretende falar sobre o passado e o futuro das regiões metropolita-
nas (RMs). A intenção é olhar para a estrutura de governança, para as motivações
de criação das RMs, o que mudou a partir do processo de redemocratização e da
Constituinte de 1988, passando pelas décadas de 1990 e 2000, e entender como,
por que, por quais canais e atores a metrópole volta a ser uma escala importante
de análise dos problemas urbanos. Sobre o futuro – e por isso há a participação do
Fórum Nacional de Entidades Metropolitanas (FNEM) –, queremos olhar para o
que está sendo feito agora e para o que as RMs precisam daqui para a frente. Como
as RMs estão agindo, e como pensam em agir daqui em diante, para se articularem
e fazerem acontecer a política metropolitana.
Complementando, esperamos muito uma contribuição sua para este capítulo.
Falamos sobre um declínio, um enfraquecimento das entidades metropolitanas,
especialmente a partir do fim da década de 1980 e na década de 1990. Aparente-
mente, a Constituição tem algo a ver com isso, mas, quando começamos a olhar
um pouco para o passado – adiantando para você que pretendemos entrevistar o
professor Jorge Francisconi3 –, podemos pensar que essas entidades foram muito
fortes e depois enfraqueceram, o que não parece ser bem verdade. São momen-
tos diferentes. Talvez falar de gestão e governança na década de 1970 seja algo
anacrônico, em um período autoritário, quando, no máximo, esperava-se algum

1. Entrevista realizada em 14 de abril de 2023, às 13h, via chamada de vídeo.


2. Os entrevistadores são indicados no texto como Ipea.
3. Jorge Francisconi, juntamente com Maria Adélia Souza, foi responsável pelo capítulo de política urbana que fez parte
do II Plano Nacional de Desenvolvimento (PND), em 1974-1975, com a publicação do Ipea (1976), em que é possível
ver esse projeto detalhado.
154 | 50 anos de regiões metropolitanas no Brasil e a Política Nacional de Desenvolvimento Urbano

papel dos estados, mas em um momento em que os municípios não eram agentes
autônomos; então, não é a mesma coisa.
Tudo isso estará dentro do mesmo capítulo; será muito interessante olhar para
esses dois momentos do tempo, antes e depois da Constituição Federal de 1988
(CF/1988). Esperamos sua contribuição com o olhar para esse segundo momento,
de 1988 para cá, assim como para o futuro. Contudo, se você quiser recuperar
alguns “ecos” do passado, já que Belo Horizonte foi uma metrópole cuja RM foi
uma das mais bem estruturadas naquele momento, fique à vontade também.
Então, começando lá no passado, sabemos que o FNEM foi reativado há
relativamente pouco tempo, com sua primeira reunião ordinária no início de
2022. Podemos dizer que ele tem procurado construir uma agenda voltada para o
enfrentamento dos desafios com os quais lidam as RMs do país. Queria que você
contasse um pouco da história do FNEM, fizesse uma avaliação da experiência
anterior e comentasse sobre as motivações e movimentos que possibilitaram sua
reativação. Quais são os objetivos atuais do FNEM?
Mila Batista Correa Leite da Costa: Eu não participei desse momento anterior
do fórum, que foi desativado em 2019, exatamente quando eu ingressei na Agência
RMBH.4 Ele foi criado na década de 19905 e se manteve ativo até 2019. Minas
Gerais sempre foi um estado com atuação importante – inclusive é signatário da
carta e do estatuto de criação do FNEM –, tendo sido representado, naquele mo-
mento, pela Secretaria de Desenvolvimento Urbano (Sedru). Minas Gerais parti-
cipou também da presidência do fórum em outras fases, até que, em 2019, com a
extinção da Empresa Paulista de Planejamento Metropolitano (Emplasa),6 entidade
metropolitana que presidia o fórum naquele ano, ele acabou sendo desativado.
Eu entrei em exercício no cargo de diretora-geral da Agência RMBH em
julho de 2019, após cumprir as etapas de análise curricular em processo seletivo
técnico, passar por votação do Conselho Metropolitano e ingressar em lista tríplice
para escolha do governador, conforme previsto na legislação mineira. Logo após,
fui convidada para participar de um evento em Recife, organizado pela Agência
Estadual de Planejamento e Pesquisa de Pernambuco (Condepe-Fidem) sobre

4. Agência de Desenvolvimento da Região Metropolitana de Belo Horizonte.


5. O FNEM é uma associação civil sem fins lucrativos instituída em 1995. Congrega entidades e órgãos públicos estaduais
responsáveis por temas relacionados às RMs brasileiras. Com sede itinerante, o FNEM objetiva promover a valorização
do planejamento e gestão do espaço metropolitano, bem como a participação efetiva de organismos metropolitanos na
formulação e implementação das políticas de desenvolvimento urbano e regional. A criação do FNEM resultou de reunião
realizada em 1995 em Porto Alegre. No ano seguinte, foi assinada a Carta de Brasília por representantes de entidades
estaduais das dez RMs até então instituídas. Com a adesão desses diversos organismos metropolitanos, o FNEM foi
registrado no Serviço de Registro Civil das Pessoas Jurídicas de Porto Alegre em 1996, como associação civil sem fins
lucrativos, “representativa de entidades e órgãos públicos estaduais responsáveis pelo trato de assuntos relacionados
às regiões metropolitanas brasileiras”. Disponível em: https://fnembrasil.org/institucional/.
6. Ver Estado de São Paulo (2019).
Passado e futuro da governança das regiões metropolitanas: entrevista com Mila da Costa | 155

Plano Diretor Metropolitano (PDDI); foi quando eu conheci Cid Blanco, que
participou do seminário apresentando a experiência do Plano de Desenvolvimento
Urbano Integrado (PDUI) do Rio de Janeiro. Eu fui convidada para detalhar o
regramento referente ao poder de polícia da Agência RMBH, por ser uma das
poucas entidades que têm essa atribuição prevista na legislação.
Naquela oportunidade, Luiz Quental, servidor da Agência Condepe-Fidem há
alguns anos, mencionou a desativação do FNEM. Eu compartilhei a minha angústia
por não existir uma instância de compartilhamento de desafios e, ao mesmo tempo,
de agendas positivas, de experiências bem-sucedidas das outras RMs. Eu sentia
que a experimentação da realidade metropolitana era um pouco solitária, porque
os municípios são agremiados em várias instâncias – existe a Associação Mineira
de Municípios (AMM), a Associação dos Municípios da Grande Belo Horizonte
(Granbel), existem as agremiações nacionais –, e as RMs, por seu turno, ficaram
sem espaço de troca e intercâmbio depois da desativação do fórum.
Foi quando solicitei à Clarice do Vale, hoje chefe do Núcleo de Assessoramen-
to Técnico, e à Gabriele Sperandio, atualmente diretora de regulação da Agência
RMBH, que me ajudassem a buscar informações para reativação do fórum. Fiz
contato com o último presidente da Emplasa, Luiz José Pedretti, também presidente
do FNEM em 2019, que me atualizou sobre o status do fórum, compartilhou in-
formações sobre a gestão do site, sobre o regulamento – que é registrado em Porto
Alegre –, e trouxe outros dados relevantes.
A equipe da Agência RMBH resgatou a citada documentação, mapeou as
entidades metropolitanas existentes que possuíam arranjo metropolitano consoli-
dado – por existirem mais de oitenta RMs no Brasil –, e contatou os respectivos
dirigentes para, finalmente, reativarmos o diálogo metropolitano.
Não foi possível, por impossibilidade de acesso, reabilitar o uso da página
original do FNEM, que, em 2019, era mantido pela Emplasa. Hoje, mantemos
uma página do fórum no site da Agência RMBH. E combinamos que cada enti-
dade que vier a presidir o FNEM hospedará a página em seu próprio site, até que,
eventualmente, seja possível reativar a antiga página. Apesar de estar desatualizada,
ela foi um ponto de partida para buscarmos essas entidades.
Hoje, no FNEM, temos quatorze entidades e, desde 2021, estamos intercam-
biando informações. Criamos grupos de trabalho estruturados em eixos temáticos
que considerávamos funções públicas de interesse comum (FPICs) importantes
para as RMs. Sabemos que cada RM tem suas particularidades. A Coordenação
da Região Metropolitana de Curitiba – Comec (hoje Agência de Assuntos Metro-
politanos do Paraná – Amep), por exemplo, em Curitiba, faz a gestão do trans-
porte, enquanto a Agência RMBH faz anuência prévia e, portanto, licenciamento
156 | 50 anos de regiões metropolitanas no Brasil e a Política Nacional de Desenvolvimento Urbano

urbanístico, que a RM da Grande Vitória, onde atua o Instituto Jones dos Santos
Neves (IJSN), não possui.
Guardadas as particularidades, temos desafios comuns e políticas públicas
a serem enfrentadas numa perspectiva comum. Assim, desde 2021, realizamos
encontros, trocamos experiências a partir dos temas que propusemos e, em 2022,
conseguimos, finalmente, com o recuo da pandemia, organizar os quatro encontros
presenciais, em Brasília, Vitória, Curitiba e Belo Horizonte.
Para esse ano de 2023 (último ano das RMs de Belo Horizonte, Recife e
Curitiba – presidente, 1o vice e 2o vice-presidente, respectivamente – na Diretoria
Executiva do FNEM), estamos propondo uma agenda que começa por Brasília, já
que houve uma recomposição do Congresso Nacional e uma mudança de gestão
no governo federal, que recriou o Ministério das Cidades, com uma secretaria
voltada para a pauta metropolitana.
Já no ano passado, começamos o movimento de diálogo com os parlamenta-
res, pensando na possibilidade de concepção de uma frente parlamentar em defesa
dos interesses metropolitanos. Começaríamos por Brasília e, ao mesmo tempo,
participaríamos de um painel sobre integração e governança metropolitanas na
Cumbre Internacional del Hábitat de América Latina y el Caribe,7 que irá ocorrer
em agosto, em Guadalajara, México, proposto por Cid Blanco.
O FNEM tem se consolidado, hoje, nesse momento, pós-1988, como ins-
tância de compartilhamento sobre ônus e bônus do modelo federativo proposto
por nossa Constituição. O grande bônus é a celebração do municipalismo, pois
os municípios tornaram-se entes federados no cerne de um regime democrático
que transformou a gestão metropolitana. Além disso, nosso conselho hoje tem a
participação da sociedade civil, temos uma governança que permite a participação
dos atores metropolitanos de uma forma bastante democrática. Porém, temos um
desafio, que é enfrentar a convergência ou a não convergência das gestões munici-
pais em relação ao planejamento regional, metropolitano, em razão da autonomia
local concebida pelo texto constitucional.
A pandemia evidenciou o nó górdio atinente a este desafio: como foi difícil
conciliar a autonomia dos municípios, no que se referia à condução das medidas
de enfrentamento à pandemia, com a lógica metropolitana que pressupõe conur-
bação, fronteiras fictícias, movimento pendular dos cidadãos, onde há o transporte
metropolitano que atravessa os limites dos municípios. Foi caótico.
Esse caos que a pandemia evidenciou/demonstrou a necessidade de traba-
lharmos melhor, do ponto de vista normativo, o desafio da gestão metropolitana.

7. Disponível em: https://cihalc.org/.


Passado e futuro da governança das regiões metropolitanas: entrevista com Mila da Costa | 157

Não basta existir um texto constitucional que disponha sobre regionalização, ou


ter um Estatuto da Metrópole (Lei no 13.089/2015) que estabeleça a necessidade
de concepção de um arranjo metropolitano, se não há possibilidade de estímulo
ou de promoção real de adesão dos municípios ao planejamento metropolitano.
Esbarramos, cotidianamente, em desafios de natureza política, como gestões es-
taduais e municipais metropolitanas de partidos distintos, gerando-se conflitos,
divergências e disputas que prejudicam a continuidade e a implementação de
projetos técnicos de longo prazo.
O único instrumento previsto na legislação que realmente tem o condão de fazer
prevalecer o projeto metropolitano sobre a vontade municipal é o PDDI ou PDUI,
e que deve ser convertido em lei estadual, nos termos do Estatuto da Metrópole,
para produzir o efeito citado. No Brasil, apenas duas RMs possuem plano diretor
aprovado por lei estadual, o que prejudica a aplicação do dispositivo que determina
a necessidade de ajuste dos planos diretores municipais ao plano metropolitano.
São muitos os desafios e, ao mesmo tempo, variadas as experiências que temos
trocado no fórum. Ontem, inclusive, voltei de um seminário que aconteceu no
Rio, promovido pela Prefeitura do Rio de Janeiro, que possui uma Secretaria de
Integração Metropolitana. Planejamento metropolitano é competência estadual.
Mas o município do Rio de Janeiro possui essa secretaria, como forma de buscar
aproximar a capital dos municípios da RM do Rio de Janeiro.
A Prefeitura do Rio promoveu esse seminário tendo como eixos centrais
mobilidade, mudanças climáticas, população em situação de rua, e um painel foi
sobre integração metropolitana. Participamos eu, Gilson Santos,8 de Curitiba, o
subsecretário de Integração Metropolitana do Rio de Janeiro e o Vicente Loureiro,9
que já foi presidente e criador do Instituto Rio Metrópole. Foi um painel muito
interessante e, uma vez mais, convergimos sobre a imensa dificuldade de se realizar
gestão metropolitana hoje, diversamente do contexto da década de 1970, quando
vigia um modelo federativo diferente e, mais do que isso, existiam estruturas mais
robustas de planejamento metropolitano.
Não que seja possível comparar aquele contexto com o pano de fundo
constitucional atual, mas, ao mesmo tempo, quando consideramos o que era o
Planejamento da Região Metropolitana de Belo Horizonte (Plambel), estrutura
metropolitana da RM de Belo Horizonte existente até a década de 1990, e o que
é a Agência RMBH hoje, detectamos uma diferença considerável de tamanho, de
estrutura, de recursos financeiros e de número de servidores. Naquele momento,

8. Gilson Santos, presidente da nova Amep e segundo vice-presidente do FNEM.


9. Vicente Loureiro foi diretor-executivo da Câmara Metropolitana do Rio de Janeiro, responsável pela elaboração do
Plano Estratégico de Desenvolvimento Urbano Integrado (Pedui) da RM do Rio de Janeiro, que deu lugar, em 2018,
ao Instituto Rio Metrópole.
158 | 50 anos de regiões metropolitanas no Brasil e a Política Nacional de Desenvolvimento Urbano

havia repasse de recursos do Banco Nacional de Habitação (BNH), no eixo da


política habitacional. Existia, ainda, compartilhamento de parte do tributo federal
de combustível destinado à pauta metropolitana, além de um orçamento estadual
grande para a matéria.
Quando foi vetada a criação do fundo previsto no Estatuto da Metrópole,
foi uma perda importante, porque seria uma forma de contribuição do governo
federal para o planejamento regional metropolitano. Em Minas Gerais, há um
fundo metropolitano estadual, mas que não se compara ao tamanho de um fundo
como o que estava previsto na lei federal.
Ipea: Creio que podemos passar para questões que estão mais relacionadas com
a construção da agenda. Na resposta anterior, você falou um pouco sobre os grupos
de trabalho realizados no âmbito do FNEM; então, de alguma forma, os temas em
debate acabam refletindo-se em uma agenda. O que você imagina, considerando
esse grupo de entidades metropolitanas que o FNEM congrega, serem as principais
demandas das RMs aos demais entes federativos? Quais são os temas que têm de-
mandado mais atenção do FNEM e das entidades que o compõem? E, tomando sua
experiência nesses últimos dois anos, tanto na Agência RMBH quanto no FNEM,
quais são os temas que você avalia como mais importantes para uma agenda metro-
politana? Quanto tempo dura cada gestão do FNEM?
Mila Batista Correa Leite da Costa: O mandato da Diretoria Executiva do
FNEM tem duração de dois anos. Em reunião plenária, as entidades propuseram
a alteração do estatuto, que previa apenas um ano para essa missão, o que não seria
factível para realizar eleição, trocar a equipe de liderança do processo de condução,
migrar o site, estabelecer cronograma de reuniões e de encontros presenciais. Nosso
mandato se iniciou em 2021 e termina agora.
Sobre as agendas que são prioritárias, aqui em Minas Gerais, nós temos doze
FPICs no arcabouço de atuação das duas agências metropolitanas. Dessas doze funções
públicas, existem aquelas que nunca foram objeto de atuação da autarquia, por exemplo,
a gestão de gás canalizado. Já a temática do saneamento ganhou proeminência com
o novo marco. O Instituto Rio Metrópole tem feito uma atuação bastante enfática e
incisiva nessa FPIC, o que parece ser uma iniciativa inovadora e bem-sucedida.
Quanto mais protagonismo dermos para as entidades metropolitanas nessas
políticas públicas que transcendem os limites dos municípios, mais força daremos
para a pauta metropolitana. Essa iniciativa do saneamento, protagonizada pelo Ins-
tituto Rio Metrópole, é importante, assim como é relevante o fato de que a Amep é
quem realiza a gestão do transporte metropolitano na RM de Curitiba há cinquenta
anos. A gestão não é realizada por uma secretaria, pela administração direta, como
ocorre de modo geral nas demais RMs, mas pela própria entidade metropolitana.
Passado e futuro da governança das regiões metropolitanas: entrevista com Mila da Costa | 159

Isso fortalece tanto a função pública, quanto a atuação da entidade e da pauta, pela
natureza intermunicipal.
O IJSN, na RM de Vitória-Espírito Santo, por sua vez, tem um papel de
planejamento. Já a Agência RMBH atua, primordialmente, na FPIC relativa à
gestão do uso do solo com o licenciamento urbanístico – emissão de anuência
prévia nos processos de parcelamento do solo, nos termos do art. 13 da Lei Federal
no 6.766/1979. Não existe um loteamento ou desmembramento acima de 20 mil m2
que não passe pela anuência da Agência RMBH ou da Agência de Desenvolvimento
da RM do Vale do Aço.
Cada RM e respectiva entidade, portanto, tem suas nuances. Mas as políti-
cas públicas mais sensíveis e que perpassam todas elas são gestão do uso do solo,
transporte metropolitano, saneamento e infraestrutura, com ênfase em macrodre-
nagem. Foram essas as políticas metropolitanas definidas como prioritárias pelo
vice-governador Mateus Simões, na RM de Belo Horizonte, inclusive, justamente
em razão da relevância.
A questão da infraestrutura é um tema metropolitano que não costuma
ser delegado para as entidades. Normalmente é atribuída a uma secretaria de
obras ou secretaria de infraestrutura de cada estado, não é uma temática com
competência efetivamente delegada às entidades metropolitanas. Na RM de Belo
Horizonte, atuamos em parceria com a Secretaria de Estado de Infraestrutura e
Mobilidade (Seinfra).
Uma outra temática enfrentada pelas entidades é a gestão de recursos hídri-
cos. Esse é um problema com o qual lidamos na RM de Belo Horizonte. Desde
o rompimento da barragem de Brumadinho, em janeiro de 2019, a captação de
água no Paraopeba foi comprometida, e isso realçou uma dificuldade, lançou luz
sobre a necessidade de enfrentamento do tema da escassez hídrica e aguçou o en-
frentamento do problema pelo viés metropolitano, uma vez que o abastecimento
da capital e dos outros municípios da RM de Belo Horizonte é alimentado por
sistemas espalhados pelo território da nossa RM. Nesse sentido, parte dos recursos
do acordo judicial travado no caso de Brumadinho foi destinada para a elaboração
de um Plano de Segurança Hídrica da RM de Belo Horizonte.
Esses temas, FPICs sensíveis, foram escolhidos pelas entidades para a criação de
grupos de trabalho destinados ao intercâmbio de experiências e de soluções no âmbito
do FNEM, justamente por serem os maiores desafios que enfrentamos no cotidiano.
Uma FPIC que foi realçada como questão metropolitana, pelo contexto
pandêmico, foi a saúde. Em Minas Gerais, a saúde é uma FPIC, mas a Agência
RMBH não havia lidado tão diretamente com o tema, em razão da estruturação
160 | 50 anos de regiões metropolitanas no Brasil e a Política Nacional de Desenvolvimento Urbano

já consolidada do Sistema Único de Saúde (SUS) no país, com a atuação das se-
cretarias municipais e estaduais de saúde, e dos conselhos.
A entidade metropolitana foi chamada a resolver problemas de várias ordens
que a pandemia nos trouxe, que iam desde a falta de leitos hospitalares em deter-
minados municípios até a gestão de linhas e horários do transporte metropolitano
após a redução drástica do número de passageiros, gerando aumento de fiscalizações
e a concepção de uma parceria proposta pela Seinfra e pela Agência RMBH para
execução pelo governo do estado, em conjunto com os municípios.
A pandemia escancarou a natureza metropolitana dos desafios que enfren-
tamos. A pandemia mostrou como essas FPICs precisam ser pensadas de maneira
conjunta pelos 34 municípios da RM de Belo Horizonte juntamente com o estado,
como devem ser pensadas de forma costurada, pois saúde não pode ser tratada de
forma isolada, saneamento não pode ser tratado de forma isolada; de igual forma,
os sistemas de abastecimento hídrico e de transporte.
Vicente Loureiro realçou esse ponto no seminário realizado no Rio de Janei-
ro: como, no Brasil, temos uma tendência de segmentar o tratamento dos temas,
das políticas públicas, segmentar o nosso modo de atuação e a própria forma de
estruturação. A pergunta que lancei no seminário foi: qual é o primeiro desafio
das entidades metropolitanas? Temos que fazer diplomacia com os municípios
cotidianamente. É um movimento diplomático constante, de convencimento dos
municípios a aderirem ao planejamento metropolitano e a pensarem junto conosco,
para além de suas fronteiras.
Não bastasse o desafio com os municípios, há também um desafio diplomático
interno aos governos estaduais, porque a política de habitação, por exemplo, que é
uma FPIC de competência das entidades metropolitanas, é também competência da
Secretaria de Desenvolvimento Social; a política de regularização fundiária é compe-
tência das entidades metropolitanas, mas também das secretarias estaduais de política
urbana – aqui em Minas, da Secretaria de Desenvolvimento Econômico; a política de
transporte é compartilhada entre entidade metropolitana e as secretarias de infraestrutura
e mobilidade; a política de saneamento, também compartilhada com as secretarias de
meio ambiente.
Vejam que é um movimento diplomático constante para fora e para dentro.
Isso é positivo, é uma construção, mas, ao mesmo tempo, tem um dispêndio de
energia e também uma dependência constante da abertura dos municípios e dos
dirigentes das secretarias e das entidades para essa troca e construção comparti-
lhada. Era mais simples quando tínhamos a agremiação das políticas urbanas em
apenas uma pasta, a Sedru, porque diminuía o número de atores no processo
construtivo das políticas públicas, mas o modus operandi era o mesmo. Em todas
as RMs, temos esse desafio para dentro e para fora. A recriação do Ministério das
Passado e futuro da governança das regiões metropolitanas: entrevista com Mila da Costa | 161

Cidades vai nessa linha, de tentativa de agremiação das políticas urbanas centrais
das cidades juntas em uma única pasta.
Essas são as FPICs que demandam mais atenção das RMs. No caso da RM de
Belo Horizonte, a FPIC do uso do solo é muito evidente, pois a ocupação irregular
hoje é um problema grave no Brasil, e em nossa RM não é diferente.
Ipea: A partir da sua resposta sobre a infraestrutura, gostaria de fazer a seguinte
pergunta. As agências que têm um papel maior no planejamento procuram fazer
algum tipo de agenda voltada para infraestrutura, em transporte, por exemplo?
Especificamente no caso de Belo Horizonte, por conta de Brumadinho, o governo
do estado está com recursos para um rodoanel, por exemplo. A Agência RMBH
participou dessa conversa? A agência teve um papel importante na definição dessa
via que é metropolitana, atravessa vários municípios?
Mila Batista Correa Leite da Costa: A ideia de um rodoanel foi gestada ainda
no período do Plambel, na década de 1970. Foram sucessivos projetos e tentativas.
Entre 2019 e 2023, a Seinfra definiu um traçado de diretriz, licitou e o contrato
foi assinado. Quem tem competência e recurso para fazer gestão do tema infra-
estrutura, mesmo na RM, é a Seinfra. Inclusive, a Agência RMBH, agora, com a
reforma administrativa que tramita na Assembleia, passará a ser vinculada à pasta.
Nós participamos das audiências organizadas pela secretaria e de várias reuniões
com os municípios, além de contribuirmos com subsídio técnico, com a matriz
origem-destino de cargas, que demonstra o impacto econômico do rompimento
da barragem de Brumadinho na RM de Belo Horizonte e o estrangulamento do
sistema viário existente, em especial do anel rodoviário, que era uma estrutura
viária interna ao município de Belo Horizonte e que passou a ser usado como
anel metropolitano, porque todo o escoamento de cargas do estado passa hoje por
essa via. Mas a gestão do contrato, a contratação da consultoria com recurso de
Brumadinho e a definição do traçado foram conduzidas pela Seinfra.
Além desse, temos outros exemplos, como o Programa de Aceleração do
Crescimento (PAC) Arrudas, que é um projeto custeado pela Caixa Econômica
Federal, pelo governo do estado, com a participação dos municípios de Contagem
e de Belo Horizonte, para enfrentamento das inundações do ribeirão Arrudas, e
que também é conduzido pela Seinfra. O projeto engloba obras de requalificação
urbana e ambiental do ribeirão Arrudas, com a construção de bacias de conten-
ção de cheias, remoção das famílias com construção de unidades habitacionais e
urbanização, e drenagem de vias.
São exemplos de projetos de caráter metropolitano em que a Agência RMBH
atuou com algum subsídio, mas, de modo geral, as entidades metropolitanas não
costumam liderar projetos robustos de infraestrutura nas RMs, porque não possuem
162 | 50 anos de regiões metropolitanas no Brasil e a Política Nacional de Desenvolvimento Urbano

recurso para essa finalidade; normalmente, o orçamento é destinado à secretaria afeta


ao tema. No nosso caso, participamos como entidade de planejamento; a elaboração
e a execução são da Seinfra, com o Departamento de Estradas e Rodagens (DER).
Ipea: O enfrentamento dos temas e das questões que afetam o planejamento
e a gestão metropolitana passam pela construção de uma governança interfedera-
tiva e deveriam basear-se em relações de cooperação. União, estados e municípios
deveriam se articular para a construção da governança, com a participação da ini-
ciativa privada e da sociedade civil, e deveriam contribuir para fortalecer a agenda
metropolitana. Pensando de modo geral sobre a governança interfederativa e a
construção de relações baseadas em cooperação, quais as maiores dificuldades na
“construção” da cooperação interfederativa? Quais os limites da cooperação inter-
federativa, inviabilizando a construção do diálogo e a resolução dos problemas?
Com todas as mudanças que mencionamos no início da entrevista, especial-
mente após a CF/1988, você acha que é possível dizer que, na maioria dos casos,
os estados são os principais protagonistas da governança metropolitana? Qual
papel os estados têm desempenhado no incentivo à cooperação metropolitana?
Estados mais incentivam ou conduzem sozinhos a gestão metropolitana? Como
você avalia que estão sendo estabelecidas as relações nas RMs? Houve algum tipo de
avanço com relação à sensibilidade dos municípios? Eles têm demonstrado maior
interesse pelos temas metropolitanos ou não? Existem iniciativas metropolitanas
“puxadas” por municípios?
Mila Batista Correa Leite da Costa: Sobre a questão da cooperação, gostaria de
fazer um relato pessoal. Sou advogada, mas já desejei ser diplomata, por isso eu me
graduei em relações internacionais, embora tenha desistido, em razão de projetos
pessoais; e nem mesmo fiz o concurso do Itamaraty, optando por seguir a trajetória
jurídica. O que quero dizer é que, em teoria de relações internacionais, o tema
da cooperação é estudado de uma maneira bastante enfática, justamente porque,
assim como os municípios nas RMs, os países têm independência, autonomia e,
ainda que exista a Organização das Nações Unidas (ONU), não há enforcement,
influência efetiva sobre a conduta dos países. Se um país quiser declarar guerra
a outro, não há quem evite, como é o caso entre Rússia e Ucrânia. Na RM, é
bastante semelhante; os custos da cooperação são muito altos, diferentemente dos
anos 1970, quando os municípios não eram entes da Federação e havia recursos
para estímulo ao engajamento no planejamento metropolitano.
Havia um estímulo real para adesão ao planejamento metropolitano via desti-
nação de recursos; hoje isso não existe. Um parlamentar me fez essa pergunta: qual
é a vantagem de um município pertencer hoje a uma RM? Hoje, não há, em razão
da ausência de recursos, em especial recursos federais, destinados especificamente
para municípios e políticas forjadas para RMs formalmente constituídas. Em
Passado e futuro da governança das regiões metropolitanas: entrevista com Mila da Costa | 163

Minas Gerais, existe o Fundo de Desenvolvimento Metropolitano, que depende


da contribuição do governo do estado e dos municípios metropolitanos, utilizado
para custear projetos; ele não custeia política pública especificamente, que é o que
os municípios normalmente demandam.
Alguns municípios entraram formalmente em RMs, no passado, porque não
possuíam transporte municipal, para poder usufruir do transporte metropolitano.
Temos na RM de Belo Horizonte municípios que não têm transporte municipal,
apenas o metropolitano. Antigamente existia um status de pertencer a uma RM,
porque havia um valor econômico. Hoje, talvez não haja mais.
O custo da transação para cooperação é alto. Você me pergunta onde a co-
operação esbarra, qual o limite. Ela esbarra na autonomia dos municípios. Uma
demanda antiga, por exemplo, na temática do transporte, é a proposição de um
bilhete único para o transporte na RM de Belo Horizonte. No ordenamento jurídico
em vigor, estabelecer a obrigatoriedade de adesão do município a uma proposta
como essa ensejaria vários questionamentos acerca da sua constitucionalidade.
Na rotina da gestão metropolitana, esbarramos sempre na possibilidade de
inconstitucionalidade de sobreposição do interesse metropolitano sobre o interesse
municipal. Você pode dizer que isso está legalmente previsto, que é um princípio
do Estatuto da Metrópole a preponderância do interesse metropolitano sobre o
interesse local. Sim, inclusive eu defendi isso durante a pandemia. Em diálogo com
a Advocacia-Geral do Estado, mencionei que existe um regramento próprio para
as RMs estabelecido no Estatuto da Metrópole. E defendi que, considerando um
quadro pandêmico, que é quadro de exceção, podemos sim pensar na sobrepo-
sição do interesse metropolitano, para podermos, por exemplo, buscar a adoção
de protocolos comuns entre os municípios, diante do nível de conurbação e do
movimento pendular das pessoas entre os municípios.
Existem discussões jurídicas interessantes, mas, ao final, sempre vamos esbarrar
no limite da autonomia municipal e das competências municipais que estão na
Carta de 1988. Temos ali um rol muito extenso de atribuições para os municípios.
Você me pergunta se há sensibilidade, por parte dos municípios, para aderirem
ao planejamento metropolitano. Existe a necessidade de solucionarmos problemas que
os municípios não conseguem resolver de forma isolada. Um exemplo é o problema de
inundação causado pelo Rio das Velhas, que atravessa a RM de Belo Horizonte. O rio
entra na RM por Itabirito, que está na borda do colar metropolitano, e passa por cinco
municípios: Rio Acima, Raposos, Nova Lima, Santa Luzia e Sabará. Em janeiro de
2022, o rio transbordou de uma maneira bastante aguda e os municípios, percebendo
a natureza metropolitana do problema, solicitaram apoio do estado para desenharmos
em conjunto soluções técnicas para a demanda.
164 | 50 anos de regiões metropolitanas no Brasil e a Política Nacional de Desenvolvimento Urbano

Existe o empoderamento do município como ente da Federação hoje no


Brasil, pela CF/1988 e pelo rol de atribuições a ele designadas, o que é um em-
poderamento positivo, porque é no território do município que a vida acontece;
mas, ao mesmo tempo, há uma fragilização das iniciativas de cooperação e do
planejamento metropolitano de longo prazo. Na rotina, atuamos na construção
de soluções para problemas emergenciais.
No caso do Rio das Velhas, em alinhamento com os municípios e em parceria
com o Instituto Mineiro de Gestão das Águas (Igam) e com várias secretarias de
estado, propusemos a elaboração de um plano de macrodrenagem para a mancha
de inundação do Rio das Velhas nesses locais, para elaborarmos um diagnóstico
efetivo e apontarmos as ações técnicas passíveis de resolver o problema. Porque a
demanda que recai sobre os municípios é de realização de ações emergenciais de
curto prazo, como o desassoreamento, e sabemos que precisamos de soluções
de longo prazo. A sensibilidade para a cooperação partiu, nesse caso, de um pro-
blema real. Outro exemplo é a pandemia. A água e as pandemias não respeitam
os limites fictícios dos municípios.
O estado é o protagonista das questões metropolitanas? Com certeza, porque o
município não pode transcender seus limites territoriais. Mas, ao mesmo tempo, em
especial após a vivência de tantos intercâmbios no FNEM, sinto que, de modo geral,
falta sensibilidade para o olhar metropolitano, principalmente das capitais, de reconhecer
a interdependência entre os municípios metropolitanos e a necessidade de articulação
para a solução de problemas comuns. As capitais, em razão até de sua robustez financeira
e autossuficiência em várias políticas públicas, têm menos propensão à cooperação do
que os outros municípios.
Ipea: Mila, sabemos como a questão da autonomia municipal impõe desafios
para a construção dessa governança. Recordando o acórdão do Supremo Tribunal
Federal (STF) sobre a questão do saneamento no Rio de Janeiro,10 o texto do
acórdão, mas também os votos, insistem na questão de o interesse metropolitano
prevalecer sobre o interesse local. Temos o Estatuto da Metrópole, o acórdão como
uma referência jurídica para isso, mas, de fato, isso não está pacificado. As formas
como esse interesse metropolitano se sobrepõem, na prática, não estão pacificadas.
É necessário ter isso judicializado? Por exemplo, a iniciativa do bilhete único, que
para o cidadão é superimportante, como lidar com ela? A Agência RMBH tem feito
um trabalho interessante no sentido de sempre buscar a negociação, um trabalho
de diplomacia, um trabalho de convencimento, de tentar avançar para construir
acordos. Para além da diplomacia, você vê um caminho possível para lidar com
isso? Será necessário judicializar cada caso, para que o STF afirme e assim haja
segurança jurídica para agir?

10. Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) no 1.842, de 6 de março de 2023.


Passado e futuro da governança das regiões metropolitanas: entrevista com Mila da Costa | 165

Mila Batista Correa Leite da Costa: Sempre que vou ministrar aulas de direito
urbanístico, estimulo os alunos a se debruçarem sobre os temas metropolitanos, para
podermos pensar soluções jurídicas factíveis, porque, hoje, o único instrumento
jurídico-urbanístico existente no ordenamento que se sobrepõe ao planejamento
municipal é o PDDI.
Vide a pandemia. O governo federal também provocou o STF para poder
definir o que era atribuição do governo federal, dos estados e dos municípios. Em
Minas Gerais, foi criado o Minas Consciente, programa para gestão compartilhada
de protocolos de enfrentamento à covid, em que o estado estimulava a adesão dos
municípios. Mais uma vez, a autonomia de escolha dos municípios é a baliza. E
na pandemia restou evidenciado que a cooperação somente acontece quando há
um problema que depende de solução compartilhada.
O PDDI mesmo, como instrumento de obrigatoriedade de cumprimento, pre-
cisa ser convertido em lei, o que considero uma disposição questionável. Não temos
um arranjo metropolitano? A aprovação do Conselho Metropolitano não deveria ser
suficiente? Qual a justificativa para a necessidade de conversão de um produto da
aprovação do conselho em lei estadual? Uma lei estadual que, em verdade, se modificar
muito o conteúdo do plano, pode ser juridicamente questionada, em razão da ampla
gestão democrática e participação social envolvidas no processo de construção do plano.
Quando o PDDI chegar ao Parlamento, ele pode ser alterado? Qual é a
flexibilidade de mudança de um projeto de lei de um PDDI participativo? Ao
mesmo tempo, é possível cercear a autonomia do parlamentar dentro do processo
legislativo? É necessário um equilíbrio.
Sou consultora da Assembleia, estou cedida para o governo do estado. E, na
consultoria da Casa Legislativa, a primeira análise realizada sobre uma proposição é
relativa à autoria, qual o ente da Federação competente para propor a matéria. E o
estado tem competência residual. De modo geral, a competência é da União ou do
município. Acontece o mesmo com a nossa atuação metropolitana – ela é residual.
Precisamos deixar de ter um espaço de atuação residual, para termos com-
petências mais claras e definidas na Constituição. A Carta de 1988 menciona
en passant o planejamento metropolitano. Importante, nesse caminho, realçar
constitucionalmente que a autonomia do município pode, sim, ser sopesada à luz
do interesse regional metropolitano em determinadas circunstâncias, do mesmo
modo que o direito de propriedade não é absoluto quando analisado sob a ótica
do princípio da função social da propriedade.
Em interpretação sistemática ampliada do ordenamento brasileiro, é possível
entender que a autonomia municipal não é um direito absoluto. Contudo, hoje, da
forma como está estruturada, até em razão da fragilização do tema metropolitano
166 | 50 anos de regiões metropolitanas no Brasil e a Política Nacional de Desenvolvimento Urbano

apontado ao longo da entrevista – seja em razão de sobreposição de competências


e não compreensão da necessidade de planejamento regionalizado, seja em razão
da ausência de recursos destinados para as políticas em caráter metropolitano –, há
um esvaziamento das entidades que cuidam da gestão das RMs, em vários aspectos.
Inclusive porque as entidades metropolitanas, de modo geral, são estruturas muito
pequenas, com corpo técnico hoje reduzido para lidar com tamanhos desafios. Se
isso não for definido com mais clareza, vamos continuar atuando na esfera do “caso
a caso”, sem planejamento metropolitano real de longo prazo.
Virá outra pandemia, algum ator legitimado no debate judicializará a demanda,
para que, novamente, o Poder Judiciário defina a forma de atuação do federalismo brasi-
leiro naquele tema, e não teremos posicionamento consolidado sobre a matéria de modo
sistêmico; será sempre à luz do caso concreto. Como jurista, analisando o arcabouço
jurídico que temos hoje e o regramento constitucional que estabelece eleições a cada
dois anos, gerando descontinuidade perene no relacionamento entre União, estado e
municípios metropolitanos, eu suponho que a alternativa será sempre a judicialização.
Ipea: O que você está dizendo está no Estatuto da Metrópole, estava no acór-
dão da ADI, que é anterior, e reforça essa ideia de uma governança compartilhada,
sem a prevalência de nenhum dos entes. No entanto, na prática, o que vemos em
2023 é que, ou o estado é o protagonista ou não há ação. Onde o estado, por vários
motivos, até por uma questão de institucionalidade histórica, tem um papel e uma
burocracia que tenta dar conta da RM, ali ele é o protagonista, ou então não existe
iniciativa. De fato, você chama atenção para uma coisa muito importante: temos
que repensar esse compartilhamento de competências.
Mila Batista Correa Leite da Costa: Na minha leitura, temos que repensar
as vísceras do regramento dessa governança compartilhada, que, na realidade da
rotina metropolitana, acaba sendo fictícia. Que compartilhamento seria esse? Afi-
nal, o que os municípios metropolitanos compartilham com a Agência RMBH
em termos decisórios, por exemplo? Hoje, compartilhamos o mesmo processo de
licenciamento urbanístico, que, em breve síntese, se inicia no município, passa
pela anuência da autarquia como fase administrativa intermediária, e termina no
município. A Agência RMBH analisa os processos de parcelamento juntamente com
os municípios, porque há uma determinação prevista em norma federal: parágrafo
único do art. 13 da Lei Federal no 6.766/1979, lei que, se fosse sancionada depois da
CF/1988, provavelmente não conteria esse dispositivo:11 todo parcelamento do solo
em município integrante de RM demanda anuência da autoridade metropolitana.

11. “Art. 13. – Aos Estados caberá disciplinar a aprovação pelos Municípios de loteamentos e desmembramentos nas
seguintes condições: I – quando localizados em áreas de interesse especial, tais como as de proteção aos mananciais ou
ao patrimônio cultural, histórico, paisagístico e arqueológico, assim definidas por legislação estadual ou federal; II – quando
o loteamento ou desmembramento localizar-se em área limítrofe do município, ou que pertença a mais de um município,
nas RMs ou em aglomerações urbanas, definidas em lei estadual ou federal; III – quando o loteamento abranger área
superior a 1.000.000 m². Parágrafo único – No caso de loteamento ou desmembramento localizado em área de município
integrante de RM, o exame e a anuência prévia à aprovação do projeto caberão à autoridade metropolitana” (Brasil, 1979).
Passado e futuro da governança das regiões metropolitanas: entrevista com Mila da Costa | 167

Não fosse esse dispositivo, não haveria governança compartilhada dessa


FPIC tão relevante que é a gestão do uso do solo sob a ótica metropolitana, não
haveria compatibilização do olhar municipal com o olhar estadual metropolitano
responsável pelo planejamento regional. Afinal, um grande parcelamento voltado
para a configuração de empreendimento de impacto aprovado em determinado
local do município de Belo Horizonte terá impacto no município de Santa Luzia.
É uma discussão corrente enfrentada sob o viés da mobilidade e do saneamento,
por exemplo, em razão da aprovação de parcelamentos na área limítrofe entre os
municípios de Belo Horizonte e Nova Lima, hoje.
E assim são variados os casos semelhantes que enfrentamos cotidianamente
nos 34 municípios da RM de Belo Horizonte e seus vetores. Quem tem o olhar
metropolitano para pensar a ocupação do território de forma macro é o estado, é
a entidade metropolitana, para definir, de forma compartilhada com os municí-
pios, locais de vocação para habitação de interesse social, de acordo com a forma
de deslocamento das pessoas no espaço; locais para equipamentos relevantes de
grande porte, como aeroportos, por serem hubs logísticos importantes; áreas a
serem preservadas em conformidade com a existência de mananciais de abasteci-
mento etc. Claro que sem usurpar o desejo do município e seu vasto espectro de
discricionariedade, definido na respectiva legislação urbanística local.
Um exemplo. Havia no estado um projeto metropolitano chamado Aerotró-
pole Mineira, com o intuito de transformar o Aeroporto Internacional de Confins
em um hub estratégico para a RM, de modo a induzir a concepção de nichos de
atividades econômicas por vetores metropolitanos: atividades relacionadas à moda
em Vespasiano e Santa Luzia; estruturação de espaço hoteleiro próximo ao Inho-
tim, em Brumadinho, em função do museu; nicho voltado para a aeronáutica e
para produção de determinados produtos de valor agregado, em Lagoa Santa etc.
Se o município não adere a uma proposta como essa de planejamento inte-
grado, não é possível avançar.
Ipea: Nem todas as RMs têm essa estrutura. Antigamente, sim, mas a história
recente mostra que, mesmo em lugares onde havia, que é o caso de Porto Alegre,
já não acontece o exercício desse poder.
Mila Batista Correa Leite da Costa: Exatamente, Vitória não tem, o Rio
também não. Quando eu mencionei a anuência prévia no seminário no Rio, não
sabiam que as RMs de Belo Horizonte e de Curitiba, por exemplo, exercem essa
competência atribuída pela legislação.
Ipea: Olhando para o futuro, o FNEM tem dialogado com os poderes Legis-
lativo e Executivo estaduais e nacionais? Em caso positivo, quais são as principais
proposições que a entidade tem feito? E quais seriam as propostas do FNEM em
relação ao apoio da União às RMs?
168 | 50 anos de regiões metropolitanas no Brasil e a Política Nacional de Desenvolvimento Urbano

Consta no Estatuto da Metrópole o apoio da União, mas não se sabe que


apoio é esse, quais frentes ele terá. Então, pergunto se já existiu, ou o FNEM
pensa em estruturar um canal de comunicação e negociação entre o FNEM e a
União. E, por fim, uma última pergunta que reúne isso tudo: o que constaria em
uma eventual carta enviada ao Congresso Nacional pelo FNEM? Você chegou a
mencionar mudanças na Constituição; quais mudanças seriam essas? E o que seria
necessário mudar no planejamento e na gestão metropolitana, para que tenham
maior efetividade?
Mila Batista Correa Leite da Costa: Talvez por ter desejado ser diplomata e
ter encontrado a necessidade de exercício da diplomacia no cotidiano da tentativa
de coordenação da gestão compartilhada da RM, observo que tudo é relaciona-
mento. Um necessário de ser enfrentado (e esse o Ipea poderia colocar no livro),
é o modus operandi do sistema político brasileiro, que não permite a continuidade
do planejamento metropolitano, porque a cada dois anos temos ruptura, seja
com as eleições estaduais, seja com as municipais. A cada dois anos, temos uma
descontinuidade de relacionamento, que, portanto, representa descontinuidade
de qualquer política pública.
Esse é um problema grave. Inclusive, no seminário do Rio, Vicente Loureiro
também colocou isso como um empecilho. Aqui em Minas, o fato de a legislação
prever a escolha do diretor-geral por um processo de eleição indireta no Conselho
Metropolitano foi uma tentativa do legislador de atenuar essa descontinuidade, no
sentido de atribuir critérios à escolha do dirigente que conduzirá uma entidade de
viés técnico. Mas, ainda assim, acontecem rupturas; atenuadas por esse formato
que temos hoje, mas acontecem.
Tudo isso para dizer que existe um excelente diálogo do FNEM. Mas co-
meçamos agora a construção de um relacionamento, seja entre as entidades, seja
com os prefeitos metropolitanos, seja com os governadores. E relacionamento
demanda tempo de maturação. Existe, portanto, a construção de um diálogo que
está sendo consolidado, tanto entre governos e entidades, quanto entre poderes.
No final do ano passado, demos um passo importante, com a realização de um
evento na Assembleia Legislativa de Minas Gerais que pretendemos transpor para
o Congresso Nacional.
Algo que considero muito importante e que vejo como uma proposição efetiva
do fórum para uma mudança legislativa real é, nesse próximo encontro do dia 19
de abril de 2023, envolvermos efetivamente o Congresso Nacional, a Comissão de
Desenvolvimento Urbano, o Ministério das Cidades, e propormos a criação de um
grupo de trabalho para revisitarmos a legislação federal, seja para propor uma alte-
ração da Lei no 13.089/2015 – para recompor o fundo que foi vetado –, seja para
analisarmos em conjunto outras formas de custeio de políticas metropolitanas, como
Passado e futuro da governança das regiões metropolitanas: entrevista com Mila da Costa | 169

o transporte. Acredito que hoje, com o Ministério das Cidades, essa proposta ganha
força e espaço. Podemos envolver a consultoria do Senado, que tem um corpo técnico
muito qualificado.
Poderíamos criar um grupo de trabalho no Congresso, com a consultoria
temática dentro da comissão, por exemplo, que tem a competência para discutir
o tema do desenvolvimento regional e urbano, para propormos mudanças reais,
até para avaliarmos a conveniência da obrigatoriedade de aprovação do PDDI por
lei complementar estadual, como consta no Estatuto da Metrópole.
Hoje, por exemplo, não fosse o disposto no Estatuto, a RM de Belo Horizonte
já teria PDDI em vigor desde 2016, quando foi aprovado pelo Conselho Metro-
politano, e já existiria a obrigatoriedade de adequação dos 34 planos diretores ao
PDDI. Nesse lapso temporal de sete anos, quantos planos diretores municipais
já foram alterados desconsiderando o PDDI, porque ele não foi convertido em
lei estadual?
Essas mudanças precisam ser pensadas, analisadas em “governança comparti-
lhada”. A criação de um grupo de trabalho dessa natureza, envolvendo o Ministério
das Cidades, o Congresso Nacional, as entidades metropolitanas estaduais e os
municípios, para pensarmos alternativas para o planejamento metropolitano, é a
saída mais democrática e tecnicamente mais factível. Para além disso, eu proporia
o retorno do fundo federal no escopo do Estatuto da Metrópole. Penso que o
FNEM tem condições de propor mudanças e contribuições reais depois desse
tempo de maturação, de convivência e de intercâmbio dos nossos desafios e das
questões que temos em comum.

REFERÊNCIAS
BRASIL. Lei no 6.766, de 19 de dezembro de 1979. Dispõe sobre o parcelamento
do solo urbano e dá outras providências. Diário Oficial da União, Brasília, 20
dez. 1979.
ESTADO DE SÃO PAULO. Decreto no 64.588, de 13 de novembro de 2019.
Dá nova redação a dispositivo do Decreto no 52.053, de 13 de agosto de 2007,
que reestrutura o Grupo de Análise e Aprovação de Projetos Habitacionais (GRA-
PROHAB) e dá providências correlatas. Diário Oficial do Estado de São Paulo,
13 nov. 2019.
FRANCISCONI, J. G.; SOUZA, M. A. A. de. Política Nacional de Desenvol-
vimento Urbano: estudos e proposições alternativas. Brasília: Ipea; Iplan, 1976.
(Série Estudos para o Planejamento).
CAPÍTULO 9

A EMERGÊNCIA DA QUESTÃO METROPOLITANA: INTRODUÇÃO


DA METRÓPOLE NO PLANEJAMENTO URBANO BRASILEIRO
Carlos Henrique Carvalho Ferreira Junior
Armando Palermo Funari

1 INTRODUÇÃO
Entre as décadas de 1930 e 1970, a acelerada urbanização brasileira fez-se sentir com
maior intensidade nas capitais de vários estados, em particular no Rio de Janeiro
e em São Paulo. Naquele período, ambas as cidades ultrapassaram os 5 milhões
de habitantes, extrapolando os limites de seus municípios. Essa transformação
ressignificou o sentido da palavra metrópole.
O recém-criado Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), com
outras instâncias de análise social e econômica do país, pela primeira vez, identificou
e nomeou a questão urbana metropolitana como a reconhecemos hoje. A melhor
organização dos censos e a realização de pesquisas permitiram a elaboração de
diagnósticos e prognósticos que motivaram a necessidade de desenvolvimento
de políticas públicas específicas para o espaço metropolitano, lidando com a ne-
cessidade de articulação interfederativa e a solução para os problemas de escala e
reorganização da rede urbana em função das metrópoles emergentes. A excessiva
concentração econômica e a hipertrofia metropolitanas eram um prognóstico que
motivava a ação mediante o planejamento voltado para o desenvolvimento urba-
no e territorial mais equilibrados. O prognóstico em parte realizado nos remete
a desafios semelhantes. Este capítulo explora percepções e propostas que podem
ser resgatadas para pensarmos a governança das metrópoles e a administração das
funções públicas de interesse comuns hoje.
Organizamos o capítulo em cinco seções, além desta introdução. Começamos
pela criação do IBGE e de outras entidades dedicadas à produção e à análise de
dados no âmbito da institucionalização da burocracia profissional, assunto abor-
dado na seção 2. Processo realizado sob influência do movimento municipalista,
no período democrático (1946-1964), e que estabeleceu fóruns de discussões
sobre o desenvolvimento urbano, de onde recuperamos o surgimento da questão
metropolitana. A seção 3 recupera, por meio de dados, o acelerado crescimento e
concentração econômica e populacional, entre os anos 1920 e 1970, em algumas
172 | 50 anos de regiões metropolitanas no Brasil e a Política Nacional de Desenvolvimento Urbano

capitais, e que serviu ao diagnóstico e à fundamentação da necessidade de agir na


escala metropolitana. As seções 4 e 5 reproduzem parte dos resultados do debate
municipalista sobre as metrópoles, com a introdução da questão metropolitana e
as proposições para tratá-la enquanto política pública e estratégia de desenvolvi-
mento urbano e territorial, respectivamente. Finalmente, na seção 6, apontamos
elementos que uma nova política nacional de desenvolvimento urbano (PNDU)
pode recuperar dessa experiência pregressa, de quando primeiro se tratou das me-
trópoles brasileiras, considerando-se as instituições democráticas e as dificuldades
das relações interfederativas.

2 FORMAÇÃO DAS INSTÂNCIAS PRECURSORAS DOS ESTUDOS URBANOS


E DA METRÓPOLE
Nas primeiras décadas do século XX, houve uma transformação qualitativa nas
instituições de apoio ao Estado no Brasil. Verifica-se a mudança de protagonismo
de pessoas ligadas ao Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro (IHGB), no século
XIX, para outras pessoas precursoras e integrantes de entidades como o IBGE e
a Fundação Getulio Vargas (FGV). A coleta e a análise de dados úteis ao poder
público ganharam instâncias próprias e profissionalizadas. Com a consolidação
de uma administração profissional, é atribuída ao Estado a tarefa de coletar dados
e produzir as informações necessárias para a ação governamental. Em paralelo,
cria-se uma categoria de entidades congregando agentes políticos, profissionais de
carreira, entes públicos, seus órgãos e seus representantes, bem como organizações
não estatais, para, a partir dos dados coletados, refletir sobre o país e seus projetos e
propor políticas públicas. Assim, ao passo que o Estado profissionalizou a burocracia
criando agências especializadas com quadros profissionais de carreira, favoreceu,
também, a formação de âmbitos de integração com a sociedade, ainda que restritos
a alguns grupos de pessoas e à troca de informações (Ferreira Junior, 2019).
Essa integração tanto se deu entre órgãos de um mesmo ente como entre entes
diferentes, com representantes de estados e municípios colaborando com a União.
De tal modo, estabeleceram-se condições para que os agentes de carreira desses
órgãos tivessem contato com líderes e representantes políticos da sociedade, com o
objetivo de debater os problemas do país, por intermédio das demandas de agentes
locais e das informações levantadas pelas novas entidades (Ferreira Junior, 2019).
Assim, foram criados órgãos e autarquias, a exemplo do Departamento Ad-
ministrativo do Serviço Público (Dasp) e do IBGE, em 1938 – gestado a partir
do Instituto Nacional de Estatística, estabelecido no ano anterior. O primeiro foi
criado para elaborar e aplicar parâmetros objetivos na gestão do interesse público
de maneira racional e previsível (administração). O segundo foi criado como uma
autarquia, com a função de descrever o país em dados e cartas geográficas, também
a partir de parâmetros objetivos e científicos.
A emergência da questão metropolitana | 173

Até 1967, o IBGE foi organizado e dirigido por representantes de todos


os entes federativos (União, estados e municípios). Dessa forma, criou-se um
modelo de cooperação interfederativa (Cabral e Dezouzart, 2010). O modelo foi
bem-sucedido, viabilizando a instalação de mais de 1,5 mil agências estatísticas
em todos os municípios do país, a partir de convênios firmados entre a União e
os municípios com a intermediação do IBGE. A capacidade de mobilização do
IBGE serviu de base para a convocação dos congressos brasileiros de municípios,
idealizados para, a partir dos dados estatísticos e geográficos levantados pelo insti-
tuto, deliberarem-se diretrizes e recomendações para a administração pública; em
particular, a administração local (Ferreira Junior, 2019).
Em outra frente, a inciativa para a organização de uma escola de administração
pública (Escola Brasileira de Administração Pública – Ebap) deu-se por integrantes
do Dasp e de seus equivalentes estaduais. A Ebap foi o ponto de partida para a
instituição da FGV, em 1944, que veio a tornar-se referência para a formação de
pessoal da administração pública na América Latina; em particular, a partir
de acordos estabelecidos com a Organização das Nações Unidas – ONU (Abreu, 2010).
Agentes oriundos dessas instituições e de órgãos de Estado propuseram a
criação de entidades constituídas como associações de civis, fora da administração
pública, mas subvencionadas por esta, reunindo representantes políticos, burocratas
e a sociedade civil, com o intento de cumprir compromissos assumidos dos acordos
com a ONU, entre outros estabelecidos em conferências continentais. O propó-
sito dessas entidades era debater os projetos relativos aos objetivos de Estado, em
particular da administração local (municípios e seus aspectos urbanos), inclusive
redefinindo-os (Melo, 1993).
Assim, criou-se a Associação Brasileira de Municípios (ABM), que se es-
tabeleceu como o fórum de discussão das questões municipalistas. Os próprios
fundadores da ABM atribuem a iniciativa de sua criação à Resolução no 7-A da
Comissão Pan-Americana de Cooperação Intermunicipal,1 na qual se acordou
a criação de entidades nacionais dedicadas ao estudo dos problemas locais e ao
acompanhamento técnico das administrações municipais, que encontrou impulso
no movimento de restauração democrática após o fim do Estado Novo, em 1946
(Ferreira Junior, 2019).
A associação foi assim descrita.
A Associação Brasileira de Municípios (A. B. M.) é uma entidade de natureza
técnica destinada à investigação, análise e discussão dos problemas locais. Exerce,
ao mesmo tempo, amplas atividades consultivas, na defesa dos interesses legítimos

1. Com sede em Havana – comissão instituída por acordo durante a VI Conferência Internacional Americana em Havana,
de 1928. Acordo esse ratificado pelo II Congresso Interamericano de Municipalidades, reunido em Santiago do Chile,
em setembro de 1941.
174 | 50 anos de regiões metropolitanas no Brasil e a Política Nacional de Desenvolvimento Urbano

das Municipalidades brasileiras às quais vem prestando, desde sua fundação, valiosa
assistência (IBGE, 1948, p. 665).
A associação chegou a ter apoio institucional do Dasp e financiamento estatal
por intermédio da influência de seu primeiro secretário-geral, Araújo Cavalcanti, que
apresentou relatório à Comissão de Finanças da Câmara dos Deputados e do Sena-
do, incluindo-se uma subvenção à entidade no orçamento de 1950 (IBGE, 1949).
Além dos agentes políticos, seu estatuto contemplou como “sócios naturais”
os municípios que assim solicitassem. Também podiam se associar às associações
técnicas, aos institutos de ensino e pesquisa, às publicações técnicas (revistas de
autarquias públicas) e às sociedades civis e comerciais que desejassem colaborar na
consecução dos objetivos. Entre os sócios individuais, o primeiro estatuto inclui:
profissionais liberais, professores, economistas, fazendeiros, industriais, comerciantes
e quaisquer pessoas interessadas nos assuntos cujo estudo e solução constituam
objeto da ABM, conforme a seguir descrito.
1) Estudar, permanentemente, a organização, o funcionamento, as condições
e os métodos de trabalho dos municípios brasileiros, com vistas ao seu
melhor rendimento.
2) Promover o maior intercâmbio possível entre os municípios e com estes
colaborar no planejamento, na orientação, na assistência técnica e na
implantação de quaisquer modificações ou reformas administrativas.
3) Receber, estudar e difundir sugestões sobre assuntos de administração
municipal, promovendo para tal fim, em colaboração com os órgãos
federais e estaduais – por meio de palestras, documentário, congressos,
publicações etc. –, ampla difusão de ensinamentos sobre os princípios,
os problemas e a técnica da administração municipal.
4) Prestar aos municípios completa e efetiva assistência.
5) Realizar os objetivos de cooperação expostos nos estatutos da Comissão
Pan-Americana de Cooperação Intermunicipal, nas formas recomendadas
e ratificadas pelos Congressos Pan-Americanos de Municípios e pela VI
Conferência Internacional Americana (IBGE, 1948).
A realização de estudos e a publicação de ensaios, livros também compunham
os objetivos da ABM. Entre as publicações, previu-se uma revista brasileira de
administração municipal, que não chegou a ser publicada pela associação. Por sua
vez, a revisão do estatuto, em 1952, incorporou a Revista Brasileira dos Municípios
(RBM) como sua publicação oficial e que já vinha sendo editada desde 1948 (IBGE,
1952, p. 547). É nessa publicação em que se encontram as principais discussões
acerca das consequências da urbanização acelerada e da metropolização de algumas
cidades verificada nos vinte anos de sua publicação, entre 1948 e 1968.
A emergência da questão metropolitana | 175

Os conflitos de interesse entre membros da ABM, especificamente entre os


vinculados às carreiras burocráticas e os representantes políticos, como prefeitos
e legisladores, implicaram a incapacidade da associação em prestar a assistência
prometida aos municípios. Temia-se que a ABM fosse instrumentalizada pelo
governo federal para a cooptação dos prefeitos e políticos locais, o que bloqueou
as tentativas de instrumentalizá-la como instância de atuação federal de aperfei-
çoamento da administração local.
A solução veio em 1952, com o II Congresso Brasileiro de Municípios, no qual
foi criado o Instituto Brasileiro de Administração Municipal (Ibam), a princípio,
como instância executiva da ABM, com o objetivo de capacitar a administração
local e regional segundo diretrizes da política municipalista elaborada pela ABM.
O Ibam também foi instituído como uma pessoa jurídica de direito privado, a ser
integrada por técnicos contratados além de outros ligados a órgãos e centros de
pesquisa. A princípio, os serviços do instituto destinavam-se aos sócios cooperadores
(municípios, estados e entes autárquicos que contribuíssem financeiramente); no
entanto, logo se tornaram acessíveis aos demais governos locais mobilizados pelas
ações da ABM. Além dos serviços de assessoria e formação, o Ibam passou a enviar
gratuitamente sua publicação2 contendo artigos e informações sobre administração
municipal. A revista funcionou como um meio importante na difusão do debate
urbano e no reconhecimento de fenômenos como a metropolização, bem como
para a necessidade de adoção de instrumentos para a articulação de políticas locais
em escala supramunicipal (Mello, 1957, p. 157).
A ABM ficou responsável pela promoção de reuniões gerais: “promover sessões
especiais de estudos, conferências, debates, mesas redondas etc., não só na sede
como em quaisquer outros locais, na Capital do País e nos Municípios” – art. 21
do estatuto da ABM de 1952 (IBGE, 1952, p. 5473 apud Ferreira Junior, 2019,
p. 107). Por sua vez, o Ibam, paulatinamente, ocupou o espaço de capacitação de
técnicos, assessoria e elaboração de planos diretores e outros voltados para a política
urbana, inclusive com recorte metropolitano.
A ABM cumpriu por duas décadas, coincidindo mais ou menos com o perí-
odo democrático (1946-1964), um papel como fórum de discussões municipais e
urbanas, articulando informações, diagnósticos e demandas para serem defendidas
nas arenas políticas e, uma vez aprovadas, difundidas pela sua revista, a RBM. Tal
papel somente foi possível graças à profissionalização da produção de dados esta-
tísticos e geográficos proporcionada pela criação do IBGE. Igualmente, o sucesso
com a capilarização do IBGE em todos os municípios permitiu a produção de

2. A publicação adotou o nome previsto para a publicação da ABM, Revista Brasileira de Administração Municipal,
depois de ser chamada de Notícias Municipais e Revista de Administração Municipal.
3. IBGE – Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística. Estatutos da ABM. Revista Brasileira dos Municípios, Rio de
Janeiro, v. 5, n. 20, p. 546-547, out.-dez. 1952.
176 | 50 anos de regiões metropolitanas no Brasil e a Política Nacional de Desenvolvimento Urbano

diagnósticos unindo “as pontas” do processo de urbanização, identificando causas e


consequências da migração sem precedentes do campo, de vilas e de cidades menores
para as cidades grandes, que resultou na metropolização nas décadas seguintes.
Importante destacar que se articularam instâncias técnicas e políticas de todos
os níveis da Federação, no contexto de um movimento municipalista pragmático,
com o objetivo de criar um arranjo institucional. Este contribuiu para a discussão
de soluções que contemplassem as questões de autonomia federativa e a necessária
articulação entre os diferentes entes, com o intuito de lidar com os problemas
impostos pela emergência da escala metropolitana no espaço urbano.
Dado o arranjo institucional que possibilitou a identificação, o estudo e a
discussão do processo de metropolização, apresenta-se, na seção a seguir, o quadro
de transformações demográficas que sedimentaram o conceito de metrópole e as
propostas de instrumentos e arranjos político-administrativos para lidar com essa
nova escala urbana. Conforme o arranjo descrito, ao mesmo tempo que o IBGE,
o Dasp e outras entidades produziam dados e estudos, tais elementos eram objeto
de discussões e análises nas demais instâncias, como a ABM, o Ibam e a FGV, que
identificavam problemas e desafios, bem como propunham soluções.

3 CONCENTRAÇÃO E CRESCIMENTO NAS CAPITAIS AO LONGO DO SÉCULO XX


A ONU, em 1969, publicou um estudo (UN, 1969) com dados de populações
nacionais, urbanas e rurais, entre 1920 e 1960, em que se observa a dimensão do
desafio latino-americano e, particularmente, brasileiro, no que tange à temática da
urbanização e do crescimento metropolitano: em termos relativos, nenhuma outra
região do globo, naquele período, teve crescimento populacional mais intenso que
a América Latina. Nos quarenta anos abrangidos pelo estudo, a população da região
cresceu mais de 135%. Por sua vez, a população urbana aumentou 440%. O Brasil,
em 1960, integrava uma lista restrita de nove países com mais de cinco aglomerações
de mais de 500 mil habitantes, sendo, então, o único latino-americano mencionado.
Contudo, até 1940, apenas a cidade do Rio de Janeiro, então Distrito Federal, e a
cidade de São Paulo estavam nessa condição, segundo os dados do estudo.4 Vinte
anos depois, entretanto, somar-se-iam às aglomerações mencionadas Recife, Belo
Horizonte, Salvador e Porto Alegre.
Essa concentração populacional, em tão pouco tempo, foi mais um agravante
para as profundas transformações por que passava a sociedade brasileira, a partir
dos processos conjugados de industrialização (tardia) e urbanização. Ao mesmo
tempo, a matriz produtiva nacional era alterada, com a indústria ganhando espaço
em saltos qualitativos e quantitativos, de forma simultânea ao crescimento acelerado
das aglomerações urbanas, com a conformação de mercados de trabalho e consumo

4. Algo corroborado pelas estatísticas populacionais no IBGE para o período.


A emergência da questão metropolitana | 177

urbanos, carregando muito dos vícios e das desigualdades encastrados na herança


colonial, escravocrata e subdesenvolvida.
Cano (1981; 2007; 2011) revela que esse processo também foi geograficamente
concentrado, tendo São Paulo como epicentro. Entre 1920 e 1970, a capital paulista
passou por enorme crescimento populacional e econômico, concentrando parcelas
relevantes do produto interno bruto (PIB) nacional, ainda que em contexto geral de
crescimento em grande parte do território nacional. Essa concentração nas capitais dos
estados pôde ser observada em diversos estados, de diferentes regiões, especialmente
nas áreas de ocupação mais antiga. A partir da década de 1970, o autor aponta uma
reversão, inicialmente ainda em contexto de expansão econômica, passando o restante
do país a crescer a taxas superiores às da capital paulista. Dado que provavelmente
reflete os primeiros resultados dos planos nacionais de desenvolvimento (PNDs), que
tiveram como matriz a criação de polos regionais para a desconcentração econômica,
como pontua Jorge Guilherme Francisconi em sua entrevista publicada nesta obra.5
Analisando-se os dados populacionais e das contas regionais do IBGE, pode-se
observar esse processo de concentração realizando-se algumas agregações de dados.
De tal modo, foram montadas séries para o PIB (disponíveis para 1920,6 1939, 1959,
1970 e 1975) e população (1920, 1940, 1950, 1960, 1970 e 1980), em duas sistema-
tizações distintas. A primeira toma o conjunto de capitais estaduais diante do agregado
conformado pelos dados estaduais subtraídos os referentes a essas capitais.7 A segunda
série baseia-se no confronto do agregado conformado por São Paulo, Rio de Janeiro,
Recife, Belo Horizonte, Salvador e Porto Alegre ante as demais capitais estaduais.
Adotamos a agregação por capitais como uma aproximação da concentração
verificada nestas e nos municípios imediatamente ao seu redor e que, a partir de
1973, vieram a conformar as respectivas regiões metropolitanas (RMs). Isso para
destacar que, nos agregados estaduais menos as capitais, estão computados os dados
relativos aos municípios contíguos e próximos a estas conformadores das respectivas
áreas metropolitanas. Outra advertência é de que o ritmo de metropolização não foi
o mesmo e dependeu de características intrarregionais de cada capital. Por exemplo,
São Paulo e Rio de Janeiro “largaram” na frente por serem, já desde os anos 1920,
sede das maiores aglomerações urbanas do país – portanto, já nas décadas de 1940 e
1950 –, apresentavam características metropolitanas. No mesmo sentido, Recife
e Porto Alegre apresentam, com certa precocidade com relação a porte, processos
de conurbação e redistribuição produtiva entre os municípios vizinhos, dados os
vetores de crescimento guiados pela infraestrutura ferroviária ou o próprio tamanho

5. Ver capítulo 2.
6. Os dados do PIB para 1920 foram retirados de bases municipais, havendo potencialmente subdimensionamento dos
registros. Também foram utilizadas bases municipais para algumas UFs, que não tinham registros nas bases históricas
do IBGE consultadas: Acre, Manaus, Amapá, Mato Grosso do Sul e Tocantins, além de Rondônia e Roraima – até 1959.
7. No caso de Tocantins, cuja capital, Palmas, foi fundada em 1989, adotaram-se dados de Porto Nacional.
178 | 50 anos de regiões metropolitanas no Brasil e a Política Nacional de Desenvolvimento Urbano

relativamente reduzido de seus territórios. Salvador, Belo Horizonte e, mais tarde,


Fortaleza verificaram mais tardiamente as características típicas da metropolização,
tais como conurbação e rearranjo espacial das atividades produtivas.

GRÁFICO 1
PIB das capitais estaduais e do agregado – UFs menos capitais (1920-1975)
1A – Em R$ 1 milhão¹
800

700

600

500

400

300

200

100

0
1920 1939 1949 1959 1970 1975

Capitais UFs-capitais

1B – Composição (%)
80,00
75,30
70,00
63,77
60,34 59,44 58,30 58,36
60,00

50,00
40,56 41,70 41,64
39,66
40,00 36,23

30,00
24,70
20,00

10,00

0,00
1920 1939 1949 1959 1970 1975

Capitais UFs-capitais

Fonte: Ipeadata, a partir de dados das Contas Regionais do IBGE. Disponível em: http://www.ipeadata.gov.br/Default.aspx.
Acesso em: 16 maio 2023.
Elaboração dos autores.
Obs.: UFs – Unidades da Federação.
Nota: ¹ Em valores de 2010.

Observa-se que o agregado das capitais estaduais, entre 1920 e 1970, tem sua
participação ampliada no PIB, com sinais muito leves de reversão a partir dos dados
de 1975 ante os de 1970. Isso se deu em contexto de forte expansão do PIB nacional.
A emergência da questão metropolitana | 179

Exercício similar foi feito com dados populacionais, a partir desses mesmos
agregados, entre 1920 e 1980.

GRÁFICO 2
População das capitais estaduais e do agregado – UFs menos capitais (1920-1980)
2A – Contagem em números absolutos
100.000.000
90.000.000
80.000.000
70.000.000
60.000.000
50.000.000
40.000.000
30.000.000
20.000.000
10.000.000
0
1920 1940 1950 1960 1970 1980

Capitais UFs-capitais

2B – Composição (%)
100,00
88,75 86,39
90,00 84,29
81,75 79,04 76,68
80,00
70,00
60,00
50,00
40,00
30,00
23,32
20,96
20,00 18,25
13,61 15,71
11,25
10,00
0,00
1920 1940 1950 1960 1970 1980

Capitais UFs-capitais

Fonte: Ipeadata, a partir de dados do IBGE. Disponível em: http://www.ipeadata.gov.br/Default.aspx. Acesso em: 17 maio 2023.
Elaboração dos autores.

Em termos populacionais, o agregado conformado pelas capitais estaduais


também foi ganhando maior expressão conforme se desenrolava o processo de urba-
nização. Isso mostra que as capitais estaduais e os principais centros urbanos foram,
nesse período, principais destinos para os fluxos relativos ao intenso êxodo rural.
Outra sistematização empregada tomou o conjunto de capitais estaduais,
tendo, de um lado, São Paulo, Rio de Janeiro, Recife, Belo Horizonte, Salvador
180 | 50 anos de regiões metropolitanas no Brasil e a Política Nacional de Desenvolvimento Urbano

e Porto Alegre, e de outro as demais capitais. Os resultados absolutos e relativos


para PIB e população estão ilustrados nos gráficos a seguir.

GRÁFICO 3
PIB das capitais São Paulo, Rio de Janeiro, Recife, Belo Horizonte, Salvador e Porto
Alegre e do agregado – demais capitais (1920-1975)
450 1.000
400 900
350 800
700
300
R$ 1 milhão¹

600
250
500

%
200
400
150
300
100 200
50 100
0 0
1920 1939 1949 1959 1970 1975

São Paulo, Rio de Janeiro, Recife, Demais capitais (R$) Relação (%)
Belo Horizonte, Salvador e Porto Alegre (R$)

Fonte: Ipeadata, a partir de dados das Contas Regionais do IBGE. Disponível em: http://www.ipeadata.gov.br/Default.aspx.
Acesso em: 16 maio 2023.
Elaboração dos autores.
Nota: ¹ Em valores de 2010.

GRÁFICO 4
Distribuição do PIB entre as capitais São Paulo, Rio de Janeiro, Recife, Belo Horizonte,
Salvador e Porto Alegre e do agregado – demais capitais (1920-1975)
(Em %)
100,00
88,03 89,41 89,55 86,70 86,15
90,00 83,80
80,00
70,00
60,00
50,00
40,00
30,00
20,00 16,20 13,85
11,97 13,30
10,59 10,45
10,00
0,00
1920 1939 1949 1959 1970 1975

São Paulo, Rio de Janeiro, Recife, Demais capitais


Belo Horizonte, Salvador e Porto Alegre

Fonte: Ipeadata, a partir de dados das Contas Regionais do IBGE. Disponível em: http://www.ipeadata.gov.br/Default.aspx.
Acesso em: 16 maio 2023.
Elaboração dos autores.
A emergência da questão metropolitana | 181

Em que pese a já alta proporção das capitais selecionadas no comparativo, pode-se


observar que, entre 1920 e 1960, houve aumento relativo da parcela do PIB associada
a São Paulo, Rio de Janeiro, Recife, Belo Horizonte, Salvador e Porto Alegre. A partir
de 1960, a expansão do PIB nessas capitais prossegue, porém em ritmo menos intenso
que o observado para o conjunto conformado pelas demais capitais, mantendo-se, ainda
assim, em patamar bastante elevado. Vejamos em termos populacionais o que ocorreu.

GRÁFICO 5
População das capitais estaduais São Paulo, Rio de Janeiro, Recife, Belo Horizonte,
Salvador e Porto Alegre e do agregado – demais capitais (1920-1980)
25.000.000 350

300
20.000.000
250
15.000.000 200

%
10.000.000 150

100
5.000.000
50

0 0
1920 1940 1950 1960 1970 1980

São Paulo, Rio de Janeiro, Recife, Demais capitais Relação (%)


Belo Horizonte, Salvador e Porto Alegre

Fonte: Ipeadata, a partir de dados do IBGE. Disponível em: http://www.ipeadata.gov.br/Default.aspx. Acesso em: 17 maio 2023.
Elaboração dos autores.

GRÁFICO 6
Distribuição da população entre as capitais estaduais São Paulo, Rio de Janeiro, Recife,
Belo Horizonte, Salvador e Porto Alegre e do agregado – demais capitais
(Em %)
90,00
80,00 75,04 76,74 76,66
74,00
72,05 69,87
70,00
60,00
50,00
40,00
27,95 30,13
30,00 24,96 26,00
23,26 23,34
20,00
10,00
0,00
1920 1940 1950 1960 1970 1980

São Paulo, Rio de Janeiro, Recife, Demais capitais


Belo Horizonte, Salvador e Porto Alegre

Fonte: Ipeadata, a partir de dados do IBGE. Disponível em: http://www.ipeadata.gov.br/Default.aspx. Acesso em: 17 maio 2023.
Elaboração dos autores.
182 | 50 anos de regiões metropolitanas no Brasil e a Política Nacional de Desenvolvimento Urbano

Os dados populacionais apresentaram comportamento similar, com o con-


junto de capitais destacados perfazendo elevada parcela no conjunto total. Nota-se,
entretanto, que a reversão verificada na tendência de concentração ocorreu primeiro
em termos populacionais, a partir de 1960, mas, conforme explicado, não revela
o espraiamento da concentração para a periferia metropolitana, com o vetor de
crescimento apontando para os municípios ao redor dos maiores centros metro-
politanos. Somente a partir dos anos 1980 e, com mais evidência, 1990 é que as
demais capitais e aglomerações urbanas não capitais incrementarão sua participação
total na população urbana.
Vale lembrar que esse movimento relativo também se deu em contexto de
expansão econômica. Com efeito, Cano (2011) aponta que, até o fim da década
de 1950, em que pesem as altas taxas de expansão populacional nos principais
centros urbanos, a urbanização seria “suportável”. Mais que uma caracterização da
qualidade dessa urbanização até então – que certamente elevou os dramas cotidia-
nos das parcelas populacionais de mais baixa renda nesses espaços –, a qualificação
oferecida diz respeito ao que se verificaria posteriormente, com a explosão do que
grande parte da literatura estabelecida convencionou chamar de “caos urbano”,
com os principais problemas urbanos atingindo patamares ainda mais alarmantes.

4 A METRÓPOLE COMO QUESTÃO URBANA


Em estudo sobre o papel do campo do planejamento urbano e regional na consolida-
ção de atribuições e características dos municípios brasileiros, Ferreira Junior (2019)
analisa as transformações da palavra metrópole para designar dado espaço. O estudo
buscou a definição da escala e características relativas do espaço urbano designado
sob essa categoria. O objetivo foi o de determinar os arranjos político-institucionais
criados envolvendo os municípios para lidar com essa escala. A tese registra que o
sentido de metrópole foi paulatinamente mudando até assumir os contornos atuais.
O significado de metrópole, se compreendido como um intervalo, no qual a pala-
vra ainda se refere a um conjunto semelhante de sentidos, é uma relação de forças
endógenas e exógenas ao município. Do ponto de vista institucional, a metrópole
originalmente não está contida no município, mas é nele que se manifesta (Ferreira
Junior, 2019, p. 177).
Essa transformação teve forte influência das novas instituições descritas
anteriormente. Enquanto constatavam a formação e a expansão das aglomerações
metropolitanas e que vieram a compor as primeiras nove RMs,8 estas também
realizaram estudos e discussões para entender as causas da urbanização acelerada
e da série de consequências desencadeadas. Esses estudos compuseram as bases de
um primeiro “letramento metropolitano”, no sentido sugerido por Jeroen Klink,

8. Belém, Fortaleza, Recife, Salvador, Belo Horizonte, Rio de Janeiro (1975), São Paulo, Curitiba e Porto Alegre.
A emergência da questão metropolitana | 183

referindo-se à necessidade atual de um reconhecimento político e social dessa


questão, em sua entrevista neste livro. Tais discussões e estudos ficaram registrados
nas páginas da Revista Brasileira de Municípios, que, por vinte anos, funcionou
como um indexador de informações municipais e urbanas, inclusive de projetos e
propostas de arranjos administrativos para a cooperação entre municípios, como
demonstrado por Ferreira Junior (2019).
Por sua vez, ainda hoje, fora dos meios especializados, existe alguma difi-
culdade em manejar a terminologia que designa os espaços urbanos. É recorrente
chamar qualquer assentamento urbano de cidade, usando-se o diminutivo “zinha”,
para os lugares menos populosos, ou o adjetivo grande, para as relativamente
mais populosas. Quando se quer falar de lugares não capitais, adota-se a palavra
“interior” em oposição à costa; entretanto, nem todo “interior” está longe da costa
e nem toda capital é costeira. Ainda em Ferreira Junior (2019), vê-se que a termi-
nologia foi mais rica e precisa com vilas, arraiais e aldeias, além de cidades. Até o
início do século XX, a categoria cidade era formalmente reservada para o núcleo
urbano sede de instituições de governo de amplo alcance territorial, subordinando
outros núcleos urbanos, além de ser sede de instâncias do Judiciário centralizado.
As vilas foram por muito tempo uma categoria intermediária, traduzindo lugares
com autogoverno e algum agenciamento do território não urbano imediatamente
a estas subordinado, mas vinculadas às instituições de alguma cidade (capital ou
sede de comarca).
Tal arranjo deu conta da rede urbana existente. Havia, essencialmente, os centros
mais importantes, responsáveis pela polarização de dada região e pelas comunicações
com as demais regiões e o “mundo” para os quais a categoria e as instituições da cidade
cabiam sem problemas. Contudo, no século XX, algumas cidades consolidaram e
expandiram suas funções de comando e controle do território e acabaram, também,
por se tornarem lugares de acumulação concentrada de capital e população, ao ponto
de extravasarem fisicamente os limites dos municípios em que se encontram e os
subordinarem diretamente ao desenvolvimento urbano de vilas e cidades vizinhas.
Para essas novas urbes, compostas de uma cidade central e outras capturadas pelas
suas dinâmicas, é que se precisou criar uma categoria.
O que nos leva à pergunta: afinal, o que é metrópole? Pela definição legal
atual, temos no art. 2o que
V – metrópole: espaço urbano com continuidade territorial que, em razão de sua
população e relevância política e socioeconômica, tem influência nacional ou sobre uma
região que configure, no mínimo, a área de influência de uma capital regional, conforme
os critérios adotados pela Fundação Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística –
IBGE (Brasil, 2015, art. 2o, grifo nosso).
184 | 50 anos de regiões metropolitanas no Brasil e a Política Nacional de Desenvolvimento Urbano

Do conceito legal, depreendemos a noção de hierarquia urbana, por inter-


médio das chaves influência nacional ou sobre uma região e capital regional. Capital
regional é uma categoria de classificação de núcleos urbanos adotada pelo IBGE,
particularmente no estudo Região de Influência das Cidades (Regic), realizado
desde os anos 1980, sendo o mais recente de 2018. O conceito atribuído à categoria
não faz referências a características morfológicas do espaço urbano, mas sim à sua
função na rede, como um centro urbano “com alta concentração de atividades
de gestão, mas com alcance menor do que as metrópoles” (IBGE, 2020, p. 11).
Tal definição produz uma tautologia ao remeter o conceito de metrópole à pró-
pria metrópole. Um recuo às discussões que levaram à sua formulação, inclusive
no âmbito do IBGE, pode contribuir para situá-lo nas diferentes dimensões do
fenômeno urbano (hierarquia, rede e escala).
Os vinte anos analisados por Ferreira Junior (2019), 1948-1968, coincidem,
aproximadamente, com a acentuação da concentração urbana, a consolidação das
primeiras metrópoles, a ponto de, já em 1967, as RMs aparecerem como categoria
institucional na Constituição Federal daquele ano. Nas três décadas compreendi-
das entre a primeira e a última referência à palavra metrópole na RBM, a ideia de
espaço metropolitano foi reelaborada em escala e características.
A tese aponta que, no contexto original da antiguidade, metrópole se refere
a uma relação hierárquica entre uma cidade, enquanto entidade política indepen-
dente, e outras por esta criadas ou conquistadas. Nesse sentido, a metrópole seria o
centro político de um conjunto de urbes. Assim, por exemplo, Roma foi metrópole
de seu império. Essa relação se estende ao surgimento da figura dos municípios;
estatuto jurídico específico criado em Roma para regular a relação entre as cidades
conquistadas e a metrópole (Medeiros, 19489 apud Ferreira Junior, 2019, p. 155).
Com o surgimento do Estado moderno, a metrópole passa a ser identificada
com o território do Estado organizado, e não apenas com sua capital. É esse o
sentido encontrado quando se refere à metrópole portuguesa e ao território metro-
politano em textos que descrevem o processo de colonização e as relações entre as
instituições, as vilas e as cidades criadas no território brasileiro, bem como a sede
do poder (Ferreira Junior, 2019).
Com a independência e a formação do Estado nacional brasileiro, o sentido
de metrópole novamente migrou para o de uma urbe ou cidade sede do poder po-
lítico e prevalecente sobre o conjunto das demais cidades e do território. Assim, no
Império, a metrópole era identificada como a corte ou a cidade do Rio de Janeiro.
Entretanto, as dimensões continentais do país, a diversidade regional e as tensões
acumuladas no processo de formação do Estado levaram à adoção do federalismo.

9. Medeiros, O. de. Introdução à sociologia jurídica do município brasileiro. Revista Brasileira dos Municípios, Rio de
Janeiro, v. 1, n. 1-2, p. 3-16, jan.-jun. 1948.
A emergência da questão metropolitana | 185

Tal transformação política impactou novamente o sentido político da metrópole,


o que fundamentou a reivindicação de uma nova metrópole nacional e o reconhe-
cimento de outras metrópoles regionais. Essa noção foi a base das discussões sobre
a transferência da capital para um ponto mais central da Federação, mais apto ao
exercício das relações de comando e controle, todavia com um sinal hierárquico
trocado no contexto democrático e de construção federalista no pós-guerras.
A metrópole nacional seria síntese, e não gênese do poder federal. Em A Localização
da Nova Capital da República, o general Poli Coelho descreve:
e como a nova Brasília não seria a metrópole de uma região, nem a réplica sertaneja
do Rio e São Paulo, nem mesmo a grande feira de uma área possuidora de desen-
volvida agricultura, nem ainda um formidável centro industrial como se destina
a ser Belo Horizonte – pouco importaria que em suas vizinhanças não existissem
grandes rebanhos, fartas searas, poderosas usinas, ou centros mineiros em exploração.
Surjam por todo o País essas áreas de trabalho organizado, onde as condições locais
estimulem ou favoreçam o seu desenvolvimento. E que elas abasteçam a metrópole
nacional, tendo-a como um dos seus mercados (Freitas, 194910 apud Ferreira Junior,
2019, p. 180).
Em diálogo com as ideias de Poli Coelho, Teixeira de Freitas (Freitas, 1949
apud Ferreira Junior, 2019, p. 180), um dos fundadores do IBGE, introduziu a
noção de hierarquia de metrópoles. Para ele, haveria uma metrópole nacional,
metrópoles estaduais e até mesmo municipais. Trata-se de reconhecimento da
descentralização política e, logo, das demais funções sociais econômicas, contudo,
que ainda produziria centros de concentração econômica e populacional regionais
e sub-regionais. Essas noções já delineiam as ideias contemporâneas de hierarquia e
formação urbana em rede.
Ainda em Ferreira Junior (2019), os debates da RBM registram, já nos anos
1940, o “inchaço urbano” da cidade do Rio de Janeiro, que acumulava problemas
com favelas, crescimento desordenado e a expansão em direção ao subúrbio fer-
roviário. Niterói e municípios da baixada fluminense, naquela época, formaram
com a cidade uma aglomeração urbana com migração pendular favorecida pela
rede ferroviária e de barcas. Ademais, identificava-se na metrópole do Rio de Ja-
neiro uma série de “vícios” a serem combatidos e evitados nas demais cidades em
processo de metropolização. As queixas iam desde a violência à precariedade das
moradias e à mobilidade ruim, todas associadas ao descontrole do crescimento
urbano. Falava-se da excessiva concentração econômica, inclusive de recursos
públicos consumidos pelo governo do então Distrito Federal em detrimento das
demais regiões. Circunstâncias que influenciaram os debates da época tanto na
caracterização das metrópoles quanto na elaboração de propostas.

10. Freitas, M. A. T. de. A localização da nova capital da República: carta ao general Djalma Poli Coelho. Revista Brasileira
dos Municípios, Rio de Janeiro, v. 2, n. 6, p. 273-286, abr.-jun. 1949.
186 | 50 anos de regiões metropolitanas no Brasil e a Política Nacional de Desenvolvimento Urbano

Não se desenvolvendo as metrópoles como consequência natural e harmoniosa de uma


plena-vida da coletividade, e não lhe constituindo as grandes usinas das energias sociais,
econômicas e políticas que o estado de saúde do corpo social exige, mas formações
artificiais, teratológicas e parasitárias, a reservar para si toda a seiva da coletividade
que exploram, resulta daí que somente nelas se oferecem possibilidades de bem-estar,
de civilização, de êxito pessoal (Freitas, 194811 apud Ferreira Junior, 2019, p. 181).
Nessa atividade de pensar e “fazer o país”, confundem-se ideias propositivas
de políticas públicas e diagnósticos obtidos por meio de dados estatísticos, cuja
diferenciação depende do agente, do contexto e do veículo em que são expostas.
No tocante à metrópole, Freitas (1948 apud Ferreira Junior, 2019, p. 181-182)
transitou, em suas teses municipalistas, entre as distorções causadas pela concen-
tração – econômica, demográfica e das despesas públicas – no Rio de Janeiro e
os projetos de descentralização. Nele, percebe-se o que talvez seja o embrião do
capítulo urbano da futura Política Nacional de Desenvolvimento, ao propor
metrópoles (polos) regionais dotadas com as principais atividades institucionais,
econômicas e políticas.

5 PROPOSIÇÕES PARA PLANEJAMENTO E ADMINISTRAÇÃO DAS METRÓPOLES


Nos anos 1950 e 1960, delineiam-se as características de inserção das metrópoles
brasileiras na rede urbana. É o exemplo do trabalho de Milton Santos, como em
O papel metropolitano da Cidade do Salvador. Nas discussões sobre a caracterização da
metrópole, Santos recorre às noções de hierarquia e rede para suprir as insuficiências
do critério populacional ou tamanho mínimo para caracterizar a metrópole. Para
ele, a metrópole é a cidade que, no “ápice da organização urbana”, não se subordina
a outras com características semelhantes na rede que integra. Assim, a metrópole é
aquela cidade que “exerce sobre a área que a circunda uma ação, ‘fagedenismo’,12
o avanço da área urbana sobre outras áreas urbanas e rurais” (Santos, 195613 apud
Ferreira Junior, 2019, p. 182).
O que não quer dizer que qualquer cidade no “ápice” seja uma metrópole
igual às demais. Recorrendo a Pierre George,14 Santos identifica Salvador como
uma das metrópoles produzidas pela “especulação comercial”, incapazes de prover
ao território sob sua dependência os “instrumentos indispensáveis à sua moder-
nização” (Santos, 1956 apud Ferreira Junior, 2019, p. 183). Em outras palavras,
Santos refere-se à inserção periférica de Salvador, funcionando mais como ponto
de concentração e exportação de capitais, sem efetivamente gerar desenvolvimento

11. Freitas, M. A. T. de. O problema do município no Brasil atual. Revista Brasileira dos Municípios, Rio de Janeiro, v. 1,
n. 1-2, p. 85-100, jan.-jun. 1948.
12. De fagedenia, em analogia ao crescimento da extensão indefinida como “uma úlcera, que parece corroer as carnes”.
13. Santos, M. O papel metropolitano da cidade do Salvador. Revista Brasileira dos Municípios, Rio de Janeiro, v. 9,
n. 35-36, p. 185-190, jul.-dez. 1956.
14. Geógrafo francês de recorte pós-estruturalista, intérprete do marxismo na geografia. Ver Pedrosa (2013).
A emergência da questão metropolitana | 187

econômico ou retroalimentar as áreas à metrópole vinculadas. Como proposição,


Santos recomendou uma “ação assertiva do Estado”, com o objetivo de romper o
ciclo de estagnação das cidades menores que levava a emigração da população para a
metrópole e ocasionava seu consequente inchaço. Ele defendia ainda a dinamização
das atividades metropolitanas para promover um alcance regional maior, sem a
necessidade de recorrer a outros centros; também propôs a adoção de instrumentos
que reforçassem a conexão da metrópole com o espaço a esta vinculado (Santos,
195615 apud Ferreira Junior, 2019, p. 183).
Ainda naquela década, o Censo de 1950, até hoje considerado um marco
de excelência, possibilitou a realização de estudos como o de João Jochmann,16
Tamanho das Cidades e Padrão de Vida do Operário Industrial, que tematizou as
condições urbanas do trabalho, inclusive nas metrópoles. Jochmann foi um técnico
de carreira do IBGE que se especializou nas condições de vida do trabalhador, ao
realizar a pesquisa para o censo industrial. Na década de 1940, publicou um trabalho
(Jochman, 1949) caracterizando a indústria brasileira e seu desenvolvimento
desigual tanto em termos tecnológicos como espaciais e como tais condições se
refletiam nas grandes cidades (Ferreira Junior, 219, p. 184). Em artigo publicado
na RBM, pontuou que as metrópoles eram “um fato muito sério”. Relacionou os
fatores de atração de empresários e pessoas de “outras camadas do povo” (Jochman,
1954, p. 131 apud Ferreira Junior, 2019) para as grandes cidades, demonstrando
que não havia vantagens competitivas para a indústria, nem condições melhores
de vida para os operários. Por sua vez, a concentração dos poucos investimentos
públicos é que acabava levando à concentração econômica: “aconselharíamos aos
elogiadores das metrópoles viajar, só poucas vezes, nos trens elétricos da Central
do Brasil nas horas em que esses coletivos trazem e levam os operários” (Jochman,
1954, p. 13117 apud Ferreira Junior, 2019, p. 184).
De maneira empírica, Jochmann concluiu que o tempo e o desgaste no deslo-
camento diário em grandes cidades, em especial nas duas metrópoles consolidadas
(Rio de Janeiro e São Paulo), eram prejudiciais à produtividade e ao bem-estar dos
trabalhadores. Segundo seu estudo, as metrópoles não conseguiam absorver todo
o contingente migratório. Era nestas onde a indústria se modernizava com maior
velocidade, adotando máquinas mais recentes e dispensando empregados; portanto,
reduzindo as oportunidades de trabalho. Com o rápido crescimento, as munici-
palidades metropolitanas, incluindo-se as das cidades centrais, não conseguiam
prestar os serviços públicos essenciais, como habitação, saneamento e eletricidade,
piorando as condições de vida e reprodução do trabalhador; fatores que deprimiam

15. Santos, M. O papel metropolitano da cidade do Salvador. Revista Brasileira dos Municípios, Rio de Janeiro, v. 9,
n. 35-36, p. 185-190, jul.-dez. 1956.
16. Estatístico e funcionário do IBGE e chefe do Serviço de Documentação e Estatística deste instituto.
17. Jochmann, J. Tamanho das cidades e padrão de vida do operário industrial. Revista Brasileira dos Municípios, Rio
de Janeiro, v. 7, n. 27, p. 125-132, jul.-set. 1954.
188 | 50 anos de regiões metropolitanas no Brasil e a Política Nacional de Desenvolvimento Urbano

a renda disponível e a força de trabalho. Para Jochmann, era evidente que a vida
operária era melhor nas cidades intermediárias, com alguma vantagem sobre as
menores. Nestas, o custo de vida e as características urbanas não prejudicavam
tanto o trabalhador (Jochman, 1954, p. 131 apud Ferreira Junior, 2019, p. 184).
Rio de Janeiro e São Paulo, então com mais de 2 milhões de habitantes cada,
foram classificadas em categoria própria. Nessa categoria, a renda e o acesso a bens de
consumo eram maiores; por sua vez, a precariedade da oferta de habitação e de serviços
essenciais também eram mais acentuadas. No comparativo geral, apenas as cidades do
Nordeste apresentavam situação ainda pior que as duas metrópoles (Ferreira Junior,
2019, p. 184). Na mesma linha de Milton Santos e Teixeira de Freitas, Jochmann
também propunha algum estímulo público para a manutenção e o fomento das fábricas
em cidades médias e pequenas, somada ainda a fixação do trabalhador nestas, por
meio de uma política de casas próprias por exemplo (Ferreira Junior, 2019, p. 184).
Assim como as demais cidades, as metrópoles foram tratadas como espaço
urbano com características particulares desafiadoras para a administração pública
e a gestão territorial. Em comum, os levantamentos e as interpretações sobre as
cidades do tipo metrópole apontavam para esta como uma urbe “exagerada”, que
transbordava para além dos limites do município central, resultado da ausência de
planos que ordenassem seu crescimento “anormal”, além de outros fatores econô-
micos incontornáveis. Reconhecidos os fatos, o debate debruçava-se sobre como
coordenar o planejamento e a prestação de serviços no contexto metropolitano
(Ferreira Junior, 2019, p. 185).
Em meados da década de 1950, a urbanidade específica das metrópoles, que já
não era uma questão isolada, tornou-se objeto de discussões no nível internacional
com repercussões domésticas. No I Congresso Ibero-Americano de Municípios,
as “principais conclusões” dos anais publicados elencaram as questões e as solu-
ções possíveis para as metrópoles latino-americanas (Bogotá, Buenos Aires, Lima,
México, Rio de Janeiro, Santiago e São Paulo). Em linha com os princípios políticos
e econômicos do pós-guerras, reafirmaram as funções urbanas metropolitanas: “sob
o ponto de vista social, a administração da metrópole deve procurar, em primeiro
lugar, o bem-estar e a elevação do nível de vida do maior número de habitantes”
(IBGE, 1955, p. 32418 apud Ferreira Junior, 2019, p. 185). O planejamento urbano
e regional seria o responsável por conceber e adotar medidas para o “conhecimento
completo do seu território e o estabelecimento de uma política do solo em bases
sadias” (IBGE, 1955, p. 324 apud Ferreira Junior, 2019, p. 185). Do ponto de
vista político-administrativo, aparecem as primeiras soluções para governança das
áreas metropolitanas, tais como: a criação de entidades para “reger e administrar”

18. IBGE – Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística. I Congresso Ibero-Americano de Municípios. Revista Brasileira
dos Municípios, v. 8, n. 32, p. 324-326, out.-dez. 1955.
A emergência da questão metropolitana | 189

os serviços comuns; a consolidação dos municípios ao redor do município central;


a supressão dos municípios metropolitanos substituídos por ente subnacional
intermediário entre município e estado; e a criação de órgãos ad hoc para fins
ou serviços metropolitanos. Por fim, entendeu-se que seria mais apropriado que,
para cada metrópole, fosse adotada a melhor solução para a gestão desses serviços
comuns, “de acordo com sua natureza homogênea ou análoga” (IBGE, 1955,
p. 324 apud Ferreira Junior, 2019, p. 185). Quer dizer, não há apenas um modelo
de gestão metropolitana, mas sim objetivos comuns a todas as metrópoles.
A década de 1960 inicia-se com a inauguração de Brasília, a consolidação de
um projeto desenvolvimentista, a construção da “metrópole nacional” propugnada
pelos municipalistas como elemento de equilíbrio para o desenvolvimento urbano
e territorial do país. Contudo, a continuidade da “marcha para o oeste” não foi
suficiente para absorver a migração sem precedentes para as capitais consolidadas,
nem a migração do Nordeste para o Sudeste. Belo Horizonte e Porto Alegre, bem
como, em menor medida, Recife, Salvador e Fortaleza, como observado na seção
2 deste capítulo, verificaram forte crescimento, assumindo as mesmas feições me-
tropolitanas que nas décadas anteriores caracterizaram Rio e São Paulo; entretanto,
sem a mesma base econômica, o que agravou os problemas nestas verificados.
A difusão da urbanização em grandes cidades e os problemas decorrentes alimen-
taram o efervescente movimento pela reforma urbana naquele período.
Contudo, as discussões sobre a política urbana, a gestão municipal e as metró-
poles, realizadas no arranjo de instituições constituído por ABM, Ibam, FGV, IBGE,
entre outras, diminuíram no pós-1964. Ferreira Junior (2019, p. 121), baseado na
assertiva de Hely Lopes Meireles sobre o fim da Federação e do municipalismo, em
artigo publicado na RBM em 1965, acerca do Ato Institucional no 2, aponta que,
sem democracia, não havia mais as condições para o funcionamento dos fóruns
que alimentaram o debate sobre as questões urbanas até então.
Não obstante, em 1966, Hely Lopes Meireles (1966, p. 162) escreve sobre o
cargo de prefeito da região de Paris em Informações Internacionais – Administração
de área metropolitana, sugerindo que a cidade de São Paulo e a “área metropolitana
do ABC e outros municípios adjacentes” poderiam adotar estrutura semelhante.
É um dos primeiros a pensar a metrópole desde o direito, alegando que os urbanistas
insistiam na necessidade do planejamento conjunto das chamadas áreas metro-
politanas. É um dos pioneiros do conceito atual de funções públicas de interesse
comum ao reconhecer que, dada uma cidade central, os municípios metropolitanos
formam “com esta uma unidade geoeconômica”, com implicações recíprocas nos
serviços sob sua alçada (Meireles, 1966, p. 16219 apud Ferreira Junior, 2019, p. 187).

19. Meireles, H. L. Administração de área metropolitana. Revista Brasileira dos Municípios, v. 19, n. 75-76, p. 162-163,
jul.-dez. 1966.
190 | 50 anos de regiões metropolitanas no Brasil e a Política Nacional de Desenvolvimento Urbano

Em 1967, as metrópoles foram finalmente objeto de previsão normativa no


art. 157, § 10 da Constituição daquele ano: “A União, mediante lei complementar,
poderá estabelecer regiões metropolitanas, constituídas por Municípios que, inde-
pendentemente de sua vinculação administrativa, integrem a mesma comunidade
socioeconômica, visando à realização de serviços de interesse comum” (Brasil,
1967, art. 157).
O artigo Instituição de regiões metropolitanas no Brasil, de Eurico de Andrade
Azevedo, foi publicado naquele ano. Seu objetivo é estabelecer uma estrutura ad-
ministrativa para a prestação dos serviços de interesse comum. Dada a ausência de
parâmetros legais objetivos no texto constitucional para identificar os municípios
metropolitanos, apresenta sugestões baseadas na obra de Hely Lopes Meireles. Ele
retoma a ideia de um conjunto de municípios “que gravitam em trono da cidade
grande, formando com ela uma unidade geoeconômica” (Azevedo, 1967, p. 12320
apud Ferreira Junior, 2019). Para Azevedo, a RM “caracteriza-se por um conjunto
de aglomerações urbanas em torno da cidade grande, com a qual desenvolvem uma
série de relações, que passam a constituir um sistema socioeconômico próprio que,
no conjunto, é mais importante do que a simples soma de suas partes” (Azevedo,
1967, p. 123 apud Ferreira Junior, 2019, p. 185).
Àquela altura, a questão metropolitana já se fazia presente no cenário político,
pressionando os agentes públicos estaduais e federais além dos municipais. Azevedo
(1967 apud Ferreira Junior, 2019) justificou a necessidade de criação das regiões
metropolitanas na escala que a demanda por recursos assumiu nas metrópoles.
Por exemplo, a estimativa para o custo de implantação da rede de abastecimento
e saneamento apenas da cidade de São Paulo era quatro vezes superior a todo o
seu orçamento para 1967. Para delimitar as RMs, o autor defendia um critério
jurídico-geográfico, com a lei indicando a cidade principal (polo da região) e a
realização de estudos e levantamentos técnicos, com o objetivo de determinar
os municípios metropolitanos com base na extensão da metrópole e que seriam
inclusos posteriormente, por decreto no arranjo.
Sobre a estrutura de política de governo, Azevedo entendia que a RM “não se
trata de um governo intermediário entre o Estado e o Município, mas sim do esta-
belecimento de uma área, para a realização de serviços comuns sob uma autoridade
única” (Azevedo, 1967, p. 123-125 apud Ferreira Junior, 2019, p. 185-186). Dada
a organização federativa do país, tal autoridade deveria conjugar a participação
dos municípios, dos estados e da União. Os estados, em sua visão, teriam maior
proeminência nessa estrutura que poderia assumir a forma de uma autarquia, com

20. Azevedo, E. A. Instituição de regiões metropolitanas no Brasil. Revista Brasileira dos Municípios, v. 20, n. 79-80,
p. 123, jul.-dez. 1967.
A emergência da questão metropolitana | 191

autonomia administrativa e financeira, com participação obrigatória da União e


dos municípios integrantes da região.
Registraram-se, ainda, na RBM outras propostas para a organização e o
planejamento urbano que consideravam a escala metropolitana. A mais elaborada
destas sendo a de Freiras (1949 apud Ferreira Junior, 2019, p. 191), com a criação
de consórcios municipais que atenderiam não apenas às metrópoles, mas também
funcionariam como estruturas administrativas intermediárias entre os estados e
os municípios, promovendo a estruturação planejada da rede urbana com centros
locais (vilas), níveis intermediários (cidades) e avançados (metrópoles) funcionando
como nós da rede, interconectando todas as regiões do país. Esses três níveis cor-
responderiam a arranjos de governança e administração próprios. No que interessa
às metrópoles, em uma primeira versão, estas seriam organizadas aos moldes do
novo Distrito Federal (Brasília), com um governo eleito próprio descentralizado
em administrações para os municípios integrantes.
Em 1957, Teixeira de Freitas aperfeiçoou essa proposta no seu substitutivo
ao projeto de lei pró-município (Freitas,1957), no qual sistematizou suas ideias na
forma de um amplo estatuto com diretrizes para a gestão do território. Nesta pro-
posta de estatuto, constavam instrumentos de planejamento para as três esferas da
Federação e de cooperação interfederativa, bem como critérios para a formação de
municípios e o financiamento federal e estadual para os consórcios.
Os consórcios seriam administrados pelo conselho de prefeitos e poderiam
ser presididos pelo rodízio destes ou pela eleição direta de alguém específico para
o cargo. Freitas sabia das dificuldades em coordenar os municípios entre si e da
busca do equilíbrio necessário entre a autonomia local e as necessidades do planeja-
mento integrado. Portanto, entendia os consórcios como entidades administrativas
“obrigatórias”, compostas pelos representantes políticos dos municípios integrantes.
O artigo, reproduzido a seguir, projeto Lei Pró-Município, evidencia a busca pela
adaptabilidade dos consórcios e a adesão a normas gerais comuns que viabilizassem
a cooperação interfederativa. O teor da disposição guarda semelhanças com a Lei
no 11.107/2005 (Lei de Consórcios Públicos). Outra similaridade é a adoção dos
consórcios públicos como instrumento de desenvolvimento urbano integrado pelo
Estatuto da Metrópole, conforme é descrito no art. 26.
Nos acordos ou Cartas Estatutárias, que declararem instituídos os Consórcios Muni-
cipais, procurar-se-á adotar de modo uniforme e sem prejuízo de cláusulas específicas,
impostas por peculiaridades locais ou regionais e por disposições constitucionais ou
legais, as diretrizes e bases gerais para que se estabeleça, a prática administrativa, a
solidariedade nacional subentendida nos objetivos referentes ao soerguimento dos
Municípios (Freitas, 1957 apud Ferreira Junior, 2019, p. 194).
192 | 50 anos de regiões metropolitanas no Brasil e a Política Nacional de Desenvolvimento Urbano

Por fim, um trabalho posterior à criação das RMs, de 1987, reuniu vários –
senão todos – dos arranjos existentes para a administração do espaço metropolitano.
Trata-se dos verbetes sobre sistemas de governo local, de Diogo Lordello de Mello
(1987), publicados no Dicionário das Ciências Sociais da FGV. Nestes, são retomadas
as ideias de consolidação de municípios em apenas um, arranjos administrativos
autárquicos, distritos especiais, autarquias setoriais e arranjos interfederativos.
Mello foi um pesquisador do municipalismo pragmático, consolidando várias das
proposições do período pré-ditatorial em textos que reinterpretavam as instituições
federativas na nova Constituição de 1988.

6 CONSIDERAÇÕES PARA A PNDU


Como pontua Luiz Cesar Ribeiro em sua entrevista,21 também neste livro, a questão
metropolitana revela-se em dimensão não muito evidente às reinvindicações sociais
e políticas. Portanto, foi apenas quando se estabeleceram fóruns como a ABM as-
sessorados por instâncias como Ibam e FGV, que se possibilitou o cruzamento dos
dados coletados pelos órgãos de pesquisa e administração, IBGE principalmente,
com as demandas políticas e sociais dos municípios que passavam pelo processo
de metropolização.
O reconhecimento da metropolização como questão urbana particular logo
levou à elaboração de proposições, com o intuito de lidar com os aspectos específicos
dos problemas metropolitanos. Firmou-se o entendimento que a questão, embora se
manifestasse na escala local, tinha implicações regionais e com toda a rede urbana.
Acreditamos que a coincidência com o período democrático e o conteúdo
municipalista da Constituição de 1946, em parte reproduzido na de 1988, e os
debates promovidos pelo arranjo de instituições apresentados sirvam de referência
para uma genealogia dos instrumentos de gestão metropolitana ainda hoje em
desenvolvimento. Estudos como os de Teixeira de Freitas e Hely Lopes Meireles
guardam o mérito de pensar a partir do território desde campos disciplinares pró-
prios, como o direito, a geografia e a política. Os consórcios municipais de Freitas
e as discussões federalistas de Meireles podem servir de base para produção de
novas soluções em governança metropolitana.
Talvez boa parte dos méritos do I e do II PND, planos estes reconhecidos ainda
hoje por agentes políticos metropolitanos, como o prefeito de Belém, Edimilson
Rodrigues, ou técnicos que participaram do PND, como Francisconi – ambos com
entrevistas publicadas nesta obra22 –, deva-se à matriz criada nas décadas precedentes
à implantação das primeiras RMs. Ambos os entrevistados apontam para a partição

21. Ver capítulo 4.


22. Ver capítulos 2 e 10.
A emergência da questão metropolitana | 193

de técnicos oriundos de centros de formação com vínculos institucionais com as


entidades e os órgãos que promoveram as discussões sobre a questão metropolita,
seja por meio de professores, seja diretamente, no caso do IBGE.
Nesse sentido, seria interessante o atual Ministério das Cidades (MCidades)
restabelecer os laços entre as instituições remanescentes, como o próprio IBGE e a
FGV, somando-se a outras – como a Frente Nacional dos Prefeitos, a Confederação
Nacional dos Municípios, a própria ABM, a Federação Nacional das Entidades
Metropolitanas – e a programas em planejamento urbano e regional para retomar
as discussões sobre as questões do planejamento e da governança metropolitana.
As discussões sobre a emergência da questão metropolitana parecem apontar
para governança pública, embora essa categoria ainda não apareça. A governança
metropolitana sugere-se nos consórcios públicos de Teixeira de Freitas, na proposta
de Eurico Azevedo, como compromisso de solução entre a autonomia de governo
inerente aos municípios e a necessidade de administração coordenada e conjugada
das funções públicas de interesse comum.
Retomar os estudos dessas propostas apresenta-se como bom ponto de partida
para superar os desafios federativos apontados por Fernando Rezende em sua entre-
vista. Pode contribuir para o letramento metropolitano político dos representantes
que enxerguem em estruturas compartilhadas de administração metropolitana um
espaço de oportunidades para o incremento do desempenho de seus governos na
escala municipal e estadual, e não um lugar de competição e subordinação.

REFERÊNCIAS
ABREU, A. A. de; MAGALHÃES, M. Associação Brasileira dos Municípios. In:
ABREU, A. A. de et al. (Coord.). Dicionário histórico-biográfico brasileiro:
pós-1930. Rio de Janeiro: CPDOC, 2010. Disponível em: www.fgv.br/cpdoc/
acervo/dicionarios/verbete-tematico/associacao-brasileira-de-municipios-abm.
Acesso em: set. 2023.
BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil de 1967. Brasília:
Congresso Nacional, 1967. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/
constituicao/constituicao67.htm. Acesso em: jun. 2023.
BRASIL. Lei no 13.089, de 12 de janeiro de 2015. Institui o Estatuto da Metrópole,
altera a Lei no 10.257, de 10 de julho de 2001, e dá outras providências. Diário
Oficial da União, Brasília, 13 jan. 2015. Disponível em: https://www.planalto.
gov.br/ccivil_03/_ato2015-2018/2015/lei/l13089.htm. Acesso em: jun. 2023.
194 | 50 anos de regiões metropolitanas no Brasil e a Política Nacional de Desenvolvimento Urbano

CABRAL, L. M.; DEZOUZART, E. Fundação Instituto Brasileiro de Geografia


e Estatística (IBGE). In: ABREU, A. A. de. et al. (Coord.). Dicionário histórico-
-biográfico brasileiro: pós-1930. Rio de Janeiro: CPDOC, 2010. Disponível em:
http://www.fgv.br/cpdoc/acervo/dicionarios/verbete-tematico/fundacao-instituto-
-brasileiro-de-geografia-e-estatistica-ibge. Acesso em: 20 ago. 2019
CANO, W. Raízes da concentração industrial em São Paulo. São Paulo: T.A.
Queiroz Editores, 1981.
CANO, W. Desequilíbrios regionais e concentração industrial no Brasil: 1930-
1995. 3. ed. São Paulo: Ed. Unesp, 2007.
CANO, W. Ensaios sobre a crise urbana do Brasil. Campinas: Ed. Unicamp, 2011.
FERREIRA JUNIOR, C. H. C. Como tudo virou cidade: uma contribuição à
história do planejamento urbano e regional a partir do municipalismo na Revista
Brasileira dos Municípios. 2019. Tese (Doutorado) – Instituto de Pesquisa e Pla-
nejamento Urbano e Regional, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de
Janeiro, 2019. Disponível em: http://objdig.ufrj.br/42/teses/886404.pdf. Acesso
em: jun. 2023.
FREITAS, M. A. T. de. Lei Pró-Município. Revista Brasileira dos Municípios,
Rio de Janeiro, v. 10. n. 37-38, p. 13-27, jan./jun. 1957.
IBGE – INSTITUTO BRASILEIRO DE GEOGRAFIA E ESTATÍSTICA. Asso-
ciação Brasileira de Municípios. Revista Brasileira dos Municípios, Rio de Janeiro,
v. 1 n. 1-2, p. 121-123, jan./jun. 1948. Disponível em: https://biblioteca.ibge.
gov.br/biblioteca-catalogo.html?id=7180&view=detalhes. Acesso em: jun. 2013.
IBGE – INSTITUTO BRASILEIRO DE GEOGRAFIA E ESTATÍSTICA.
Associação Brasileira de Municípios. Revista Brasileira dos Municípios, Rio de
Janeiro, v. 2, n. 7, p. 665-668, jul./set. 1949. Disponível em: https://biblioteca.ibge.
gov.br/biblioteca-catalogo.html?id=7180&view=detalhes. Acesso em: jun. 2013.
IBGE – INSTITUTO BRASILEIRO DE GEOGRAFIA E ESTATÍSTICA. Es-
tatutos da ABM. Revista Brasileira dos Municípios, Rio de Janeiro, v. 5, n. 20,
p. 546-547, out./dez. 1952.
IBGE – INSTITUTO BRASILEIRO DE GEOGRAFIA E ESTATÍSTICA. Re-
giões de Influência das Cidades: 2018. Rio de Janeiro: IBGE, 2020.
JOCHMAN, J. Aspectos da nossa indústria. O Observador Econômico e Finan-
ceiro, Rio de Janeiro, ano 13, n. 156, p. 22-28, jan. 1949.
PEDROSA, B. V. Pierre George: um ilustre desconhecido. GEOgraphia, v. 15,
n. 29, p. 99-117, 4 out. 2013. Disponível em: https://periodicos.uff.br/geographia/
article/view/13655. Acesso em: jun. 2023.
A emergência da questão metropolitana | 195

MELO, M. A. B. C. de. Municipalismo, nation-building e a modernização do Estado


no Brasil. Revista Brasileira de Ciências Sociais, v. 8, n. 23, p. 8-100, out. 1993.
MELLO, D. L. de. Racionalização do governo municipal no Brasil. Revista Bra-
sileira dos Municípios, v. 10, n. 39-40, p. 151-160, jul./dez. 1957.
MELLO, D. L. Governo local. In: SILVA, B. (Coord.). Dicionário das ciências
sociais. 2. ed. Rio de Janeiro: FGV, 1987. p. 524-526
UN – UNITED NATIONS. Growth of the world’s urban and rural population:
1920-2000. Nova York: UN, 1969. (Population Studies, n. 44).

BIBLIOGRAFIA COMPLEMENTAR
MÁRIO Augusto Teixeira de Freitas. Memória IBGE, [s.d.]. Disponível em:
https://memoria.ibge.gov.br/historia-do-ibge/pioneiros-do-ibge/20978-mario-
-augusto-teixeira-de-freitas.html. Acesso em: jun 2023.
TAFFAREL, A. Eurico de Andrade Azevedo: 1928-2011. Folha de S. Paulo, 24 ago.
2011. Disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/fsp/cotidian/ff2408201114.
htm. Acesso em: maio 2023.
CAPÍTULO 10

DESAFIOS DE GOVERNANÇA E GESTÃO DA METRÓPOLE


AMAZÔNICA: ENTREVISTA COM EDMILSON BRITO RODRIGUES1
Entrevistado
Edmilson Brito Rodrigues

Entrevistadores2
Marco Aurélio Costa
Carlos Henrique Carvalho Ferreira Junior

Ipea: Como prefeito de um município metropolitano com características tão pecu-


liares como Belém, com mais de 2 milhões de habitantes na região metropolitana
(RM), enquanto gestor municipal, como você percebe a questão metropolitana e
como ela afeta a gestão?
Edmilson Brito Rodrigues: Creio que a questão começa com aquele esforço
feito no início dos anos 1970, que envolveu a geógrafa Maria Adélia Aparecida
de Souza (Universidade de São Paulo – USP), o cientista social Amílcar Tupiassu
(Universidade Federal do Pará – UFPA), entre outros, em uma equipe multidisci-
plinar que teve a incumbência de pensar uma política de desenvolvimento urbano
para o Brasil.
É uma grande contradição que a ditadura militar tenha proporcionado um
esforço de planejamento territorial. O regime, mesmo sendo autoritário e centra-
lizador, deu relativa autonomia à equipe técnica envolvida. A criação do Serviço
Federal de Habitação e Urbanismo (Serfhau)3 e, posteriormente, do Fundo de
Garantia do Tempo de Serviço (FGTS), como espécie de contrapartida ao fim da
estabilidade no emprego, fazia parte da estratégia que pautou a dinâmica urbana no
contexto do planejamento territorial. Até hoje, o FGTS cumpre papel importante
no que diz respeito a investimentos de infraestrutura social nas cidades brasileiras.
Um importante resultado disso foi a criação formal das primeiras nove áreas ou
RMs, inclusive a de Belém, como metrópole da região amazônica.

1. Entrevista realizada em 26 de abril de 2023, às 14h, via chamada de vídeo.


2. Os entrevistadores são indicados no texto como Ipea.
3. Entidade autárquica criada pela Lei no 4.380, de 21 de agosto de 1964, é a elaboradora e coordenadora da política
nacional no campo de planejamento local integrado, estabelecida dentro das diretrizes da Política de Desenvolvimento
Regional, em articulação com o Ministério do Planejamento e o Ministério de Coordenação dos Organismos Regionais
(Decreto no 59.917/1966). Disponível em: camara.leg.br.
198 | 50 anos de regiões metropolitanas no Brasil e a Política Nacional de Desenvolvimento Urbano

Hoje, há RMs criadas onde não há sequer uma conexão física entre os mu-
nicípios que as compõem, nem mesmo uma conexão técnica entre lugares que
as justifiquem. Há o caso de Manaus, que é recente, onde foram incorporados
municípios não conurbados.
Diferentemente do estado do Amazonas, onde a implantação da Zona Franca
de Manaus transformou-a em polo industrial e, em consequência, ocorreu um
processo de macrocefalia urbana que fez da capital uma cidade-estado, o estado do
Pará recebeu vários “polos de desenvolvimento”, conforme os planos nacionais de
desenvolvimento (PNDs) e os planos de desenvolvimento da Amazônia (PDAs),
onde estavam inseridas as diretrizes da política nacional de desenvolvimento urbano
do regime militar. A criação de vários polos (mineral, metalúrgico e hidrelétrico)
em locais geográficos muito distantes entre si trouxe uma configuração urbana
multipolar no estado.
Belém passou a ser polo de uma RM, mas, para que não fosse RM de um
único município, incluiu-se Ananindeua, àquela altura, um município peque-
no, mas já com sinais de conurbação. Então, havia uma justificativa técnica.
Em seguida, começou-se a construir conjuntos habitacionais nesse município
(foram seis grandes conjuntos habitacionais – Cidade Nova 1, 2, 3, 4, 5, 6), que
formaram uma grande cidade-dormitório dentro do município. Hoje, Ananindeua
extrapola os 500 mil habitantes e está realmente conurbada com Belém.
O sentido da RM permitir pensar a dinâmica e as políticas urbanas para além
dos municípios. A região é um conjunto de municípios compondo uma grande
cidade. Então, foi importante esse esforço de ter um conjunto de RMs quando o
Brasil passava por um processo de industrialização, de transformação da economia
brasileira para outro estágio do desenvolvimento capitalista, no qual a urbanização
e o processo de metropolização eram parte dos objetivos estratégicos voltados a
inserir o Brasil no circuito da acumulação capitalista monopolista. Belém, por
ser a capital mais populosa da Amazônia nos anos 1970, ganhou a condição de
município polo de uma RM, mesmo ainda não sendo uma metrópole. Hoje é
uma metrópole “sangrada”.
Pode-se caracterizar a metropolização brasileira como sanguinária, conforme
adjetiva a geógrafa Maria Brandão. No Brasil, as pessoas falam com orgulho do
número de habitantes de suas cidades como sinal de progresso. Há quem ache
que Belém é menos desenvolvida do que Manaus porque a capital amazonense
tornou-se bimilionária em termos populacionais – Milton Santos (1981), no seu
Manual de geografia urbana, classifica como milionárias as cidades com mais de 1
milhão de habitantes. Mas, quais são os índices concretos e objetivos, que parâme-
tros devem ser considerados para medir o desenvolvimento metropolitano? Como
estão o saneamento, o emprego, a mobilidade urbana, o sistema de transporte
Desafios de governança e gestão da metrópole amazônica | 199

e trânsito, a economia? Como estão nossas florestas e nossa biodiversidade? Como


estão o exercício da democracia pelos cidadãos, a transparência, o controle social
das políticas públicas, o poder de decidir para além do voto a cada quatro anos?
Belém é realmente uma metrópole incrustada na floresta, o que é um aspecto
importante de sua configuração geográfica. As suas 39 ilhas com grande grau de
preservação florestal representam dois terços do território. Isso a torna uma ver-
dadeira metrópole amazônica?
Não é suficiente ser metrópole apenas por ser um município milionário em
termos populacionais. Para usar o exemplo de Belém, que é uma cidade milionária
porque alcançou mais de 1 milhão e meio de habitantes, mas, infelizmente, ela é
antimilionária quando se trata da sustentabilidade financeira, do que é necessário
para garantir qualidade de vida para o povo, ou seja, o exercício pleno da cidada-
nia aos seus habitantes. Não se exagera ao afirmar que a urbanização brasileira se
expressa em Belém como uma urbanização sanguinária.
Então, defende-se a ideia de sustentabilidade urbana no sentido do equilíbrio
ecológico, da justiça social e da democracia, com esse tripé e uma visão totalizante
de desenvolvimento inteiramente preocupado com a dignidade humana e os direitos
da natureza. O que se percebe é um empobrecimento intenso das grandes cidades.
Fui prefeito de Belém entre 1997 e 2004. Hoje, mais experiente e mais bem for-
mado, tenho mais dificuldades para governar, porque a cidade ficou mais pobre.
O padrão de acumulação capitalista no Brasil, conforme concebia Chico de
Oliveira, é muito desequalizador das relações inter-regionais e intrarregionais, o
que explica o fato de em Capão Redondo, no município de São Paulo (terceiro
maior produto interno bruto – PIB da América Latina), verificar-se uma expec-
tativa de vida de pouco mais de 50 anos, quando o Brasil já alcança patamares de
expectativa de vida próximos a 80 anos.
No entanto, a Amazônia, como região, vem se distanciado da garantia de
acesso ao direito à cidadania em suas várias dimensões. Aqui, enfrentamos o em-
pobrecimento regional gradativo. E, no caso de Belém, o empobrecimento mais
intenso do que em outras cidades, inclusive dentro do Pará, haja vista ser uma
cidade não industrial e não mineradora.
O esforço local para modificar esse quadro de empobrecimento não é suficiente.
Transformar Belém em uma cidade inteligente e baseada no uso de tecnologias da
informação (TIs), de modo a contrarrestar a ausência de indústrias convencionais,
pode ser um caminho. Mas, para se ter uma ideia, enquanto se tem trinta e tantas
empresas de TI em atividade, em Londrina, serão contadas trezentas empresas.
É esse o esforço que estamos fazendo aqui, “correndo atrás do prejuízo”. Mas ocorre
que a Lei Complementar no 63/1990, que estabelece parâmetros para a divisão
da cota-parte do Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Serviços (ICMS),
200 | 50 anos de regiões metropolitanas no Brasil e a Política Nacional de Desenvolvimento Urbano

gerou distorções distributivas, e a vigência da Lei Kandir (Lei no 87/1996), que


desonerou de ICMS a exportação dos produtos primários e semielaborados, ativou,
ainda mais, o gatilho da distorção brutal em desfavor de cidades não mineradoras
ou agroexportadoras. Segundo Alcântara (2022), presidente do Sindicato dos
Servidores do Fisco Estadual do Pará (Sindifisco/PA),
juntos, Ananindeua e Belém têm uma população estimada em 2,035 milhões de habitan-
tes, enquanto a população de Canaã dos Carajás e Parauapebas soma 256 mil habitantes.
Em 2022, a cota-parte ICMS de Ananindeua é de 2,86%, a de Belém, 11,14%. Por outro
lado, as de Canaã e Parauapebas são de 9,65% e 14,85%, respectivamente.
E conclui que Canaã e Parauapebas receberam um ICMS per capita quatorze
vezes superior ao ICMS per capita de Ananindeua e Belém.
Esses dados explicam o porquê de a urbanização ser sanguinária, mostram
como o padrão de acumulação capitalista brasileiro impõe distorções distributivas
que redundam em injustiças sociais. Políticas nacionais precisam ser alteradas.
Uma política de desenvolvimento urbano baseada no planejamento territorial
brasileiro urge.
Um italiano que chegue a Porto Alegre não sente muita diferença na infraes-
trutura urbana dos dois países, Itália e Brasil. Mas, em Belém, o mesmo cidadão
verá uma desgraceira de áreas de favelas e condições bastante precárias de infraes-
trutura de saneamento. Metade da cidade é constituída por áreas de baixada, áreas
alagáveis que pertencem à União, onde habita 70% da população, visto que uma
boa parte ainda vive em sistemas de palafitas. Há de se reverter as desigualdades
entre as cidades brasileiras das diferentes regiões e as desigualdades intraurbanas,
que são gritantes, mesmo nas cidades ricas da região concentrada (Sul e Sudeste).
Sabe-se que o uso do território brasileiro beneficia fundamentalmente quem
lucra com seus recursos. A hegemonia privada do uso do território, em desfavor
do seu uso como bem social, impede que o território brasileiro seja, como sonhava
Milton Santos, um abrigo para todos os brasileiros.
Se o planejamento metropolitano da ditadura gerou, formalizou um conjunto
de RMs, o período pós-ditadura não conseguiu democratizar as estruturas e não
conseguiu avançar em um verdadeiro sistema de desenvolvimento urbano. A criação,
pelo governo Lula, do Ministério das Cidades, deve ser reconhecida como avanço
na perspectiva de se elaborar uma nova política urbana nacional, mas, quando o
ministério passou a ser controlado pelo Partido Progressista e houve o consequente
afastamento de urbanistas que o haviam idealizado, abandonou-se o esforço nacional
de construção participativa de uma política urbana e, desse modo, mesmo princípios
constitucionais e conquistas legais infraconstitucionais passaram a ser letras mortas.
Desafios de governança e gestão da metrópole amazônica | 201

Houve uma vitória quando da regulamentação do capítulo da Constituição


Federal de 1988 (CF/1988) sobre o desenvolvimento urbano, com a criação do Estatuto
da Cidade. Se é verdade que estamos no capitalismo e a Constituição impõe respeitar o
direito de propriedade, é também verdade que a função social do solo urbano também
deve ser garantida. E como se garante isso? Com instrumentos de reforma urbana.
Há dezenas de instrumentos previstos no Estatuto da Cidade. O solo criado é um.
Outro é o imposto progressivo no tempo e no espaço. Não é justo o país ter 8 milhões4
de imóveis vazios em cidades maiores, metrópoles, e 6,5 milhões de pessoas sem teto,
segundo a Fundação João Pinheiro (FJP).5 Por que não taxar progressivamente com
imposto territorial esses imóveis abandonados, em desuso, como forma de especulação
imobiliária, para desincentivar a especulação e viabilizar, portanto, o acesso cidadão
e democrático de todos à terra urbana, ao fruto do direito de moradia e ao direito de
propriedade do pobre sobre o teto onde mora? O país é muito injusto, porque essa
lei virou praticamente letra morta.
O arquiteto baiano Zezéu Ribeiro6 foi relator do Estatuto da Metrópole,
sancionado, pela presidenta Dilma, em janeiro de 2015, quando da crise que
culminou com o golpe e, na sequência, um governo “fascista” já se instalara.
O abandono de qualquer esforço sistemático de planejamento territorial e a ação
do Estado baseada em investimentos desconectados de uma política, mormente
com a instituição do orçamento secreto (“emendas de relator”), agravou ainda
mais a crise urbana brasileira.
O Estatuto da Cidade e o Estatuto da Metrópole foram transformados quase
em letra morta – digo quase, porque continuam vigentes e nós podemos recuperá-los.
Esse é o desafio para o novo governo Lula. O governo tem um ministro das Cidades
paraense, e que não é um político de esquerda, mas tem demonstrado vontade de
retomar as políticas implementadas positivamente, e demonstra sensibilidade para
ouvir críticas e superar erros cometidos pelo próprio ministério.
Temos que realizar avanços importantes, ter um plano nacional, democra-
ticamente elaborado, a Política Nacional de Desenvolvimento Urbano (PNDU).
Nós temos que ter planos regionais, conforme prevê o Estatuto da Metrópole;
planos regionais, entendidos como planos de desenvolvimento metropolitano, são
também fundamentais, além dos planos de desenvolvimento municipal, planos
diretores. Não há plano nacional, nem planos metropolitanos, e esse é o principal
imbróglio, é a principal dificuldade brasileira para o desenvolvimento metropolitano.

4. O dado mais recente do IBGE, do Censo 2022, aponta 11,4 milhões de domicílios vagos. Para mais informações, ver
Panorama do Censo 2022. Disponível em: https://censo2022.ibge.gov.br/panorama/indicadores.html?localidade=BR.
5. A fonte sobre os dados do déficit encontra-se no seguinte relatório da FJP. Déficit habitacional no Brasil: 2016-2019.
Belo Horizonte: FJP, 2020. Disponível em: https://fjp.mg.gov.br/wp-content/uploads/2021/04/21.05_Relatorio-Deficit-
-Habitacional-no-Brasil-2016-2019-v2.0.pdf.
6. José Eduardo Zezéu Vieira Ribeiro nasceu em Salvador, em 1949, e morreu em São Paulo, em 2015.
202 | 50 anos de regiões metropolitanas no Brasil e a Política Nacional de Desenvolvimento Urbano

É possível pensar uma política metropolitana para resíduos sólidos se os mu-


nicípios da RM, usando o princípio do Estado federativo, que garante autonomia,
abrirem mão de participar da política de limpeza urbana e gestão dos resíduos
sólidos, alegando não haver interesse? Os prefeitos têm autonomia para dizer que
não se obrigam a participar da política voltada ao conjunto de municípios de
uma determinada aglomeração urbana ou RM, baseados no princípio do interesse
comum, como sendo de interesse público,7 e no princípio da autonomia? Isso é
um contrassenso.
Nós não temos hoje um modelo como o da Itália, em que as províncias
funcionam como organismo de gestão transmunicipal. No caso da Espanha, em
Barcelona, por exemplo, há um funcionamento metropolitano, com instâncias de
participação. Há participação das esferas do Estado em todas as políticas. Discute-se
transporte coletivo em Barcelona, e o governo central não faz que não está vendo a
crise. O governo regional – Catalunha – também não faz que não está vendo; isso
porque a estrutura normativa e organizacional pública prevê a corresponsabilidade,
inclusive financeira, na sustentação das políticas. O sistema de transporte coletivo
de Barcelona é subsidiado em 70% pelas esferas regional e nacional, cabendo ao
município os demais 30%. No Brasil, por exemplo, nem há planejamento, não há
plano integrado metropolitano. Portanto, não há um plano integrado de mobilida-
de metropolitana. De modo que, em alguns locais, quando o prefeito é amigo do
governador, esse se dispõe a ajudar, a garantir alguns subsídios e melhorar o sistema,
mas o governo federal está fora. E, em outros municípios, a crise está instalada.
Tenho defendido há muitos anos a tese de que o Sistema Único de Saúde (SUS) é
uma vitória e, por isso, deve inspirar a criação de mecanismos de gestão metropolitana.
Eu fui prefeito, e o governador não queria repassar ao município quatorze
unidades de saúde que pertenciam ao município, devido ao processo de municipa-
lização instalado a partir do dia 26 de janeiro de 1997. Como é que o governador
teve que passar? Quando nós pedimos uma reunião da Tripartite,8 na qual o mu-
nicípio, o estado e a União estão representados, que decidiu suspender o repasse
de recursos fundo a fundo para o governo estadual, até que as referidas unidades
fossem repassadas ao controle municipal. Isso foi uma violência ou um desrespeito
à autonomia do estado? Não! Autonomia não pode significar imposição de um
ente a outro, ou de descumprimento de normas, a fim de negar o que é direito de
outro ente federativo.

7. O princípio do interesse público não é expresso, mas tácito, na CF/1988, e legitima a atuação da administração e
dos governantes.
8. A Comissão Tripartite está prevista no art.-A da Lei no 8.080/1990 – Lei Orgânica da Saúde. “Art. 14-A. As Comissões
Intergestores Bipartite e Tripartite são reconhecidas como foros de negociação e pactuação entre gestores, quanto aos
aspectos operacionais do Sistema Único de Saúde – SUS” (Brasil, 1990).
Desafios de governança e gestão da metrópole amazônica | 203

Outro exemplo: doentes do município de Ananindeua, traumatizados, politrau-


matizados em acidentes – serviços especializados de média e alta complexidade –, eram
atendidos em Belém. Eram tratamentos caríssimos. Em 1997, os gastos eram supe-
riores a R$ 4 milhões, o que era muito dinheiro para uma cidade pobre como Belém.
O prefeito de Ananindeua alegava que não havia interesse comum entre Ananindeua
e Belém para discutir o tratamento dos seus cidadãos. Ora, um prefeito com o meu
perfil ideológico jamais exigiria comprovação de domicílio para quem precisasse de
atendimento de urgência e emergência, ou outros. O correto, então, para evitar injustiça,
foi exigir do prefeito vizinho o respeito aos nossos cidadãos. Quem recebe recurso e
não tem o serviço, paga para quem o realiza. Essa é a beleza do SUS. Está tudo muito
regulado, o que evita conflitos e torna possíveis políticas metropolitanas. No caso do
planejamento metropolitano, não propriamente setorial, complica-se. Por exemplo,
as políticas de mobilidade e limpeza e gestão dos resíduos sólidos exigem participação
dos entes federativos diretamente envolvidos. Penso que se deve criar um plano – como
previsto no Estatuto da Metrópole –, para que todas as RMs tenham seu instrumento
institucional de planejamento e gestão.
Eventualmente, numa RM formal com x municípios, alguns realmente podem
não estar integrados numa política de coleta e tratamento dos resíduos sólidos.
Muitas vezes, pelas condições geográficas, esses municípios podem estar mais bem
integrados a uma outra região, ou preferem realizar os serviços através de consórcio
próprio. O problema é que hoje não temos mecanismos de coordenação disso, e
cada município é levado a agir por conta própria.
As cidades empobrecem e os problemas metropolitanos se agravaram com
o aumento da população e das demandas sociais, o que torna mais difícil hoje
resolver a crise urbana brasileira do que há vinte anos. Os desafios dos prefeitos e
os desafios, em particular, do governo federal são grandes. Espero que haja muita
vontade e não se fique apenas nos programas estanques, que podem ser muito po-
tentes, mas pouco eficazes para humanizar a dinâmica urbana. Pode haver muito
investimento no Minha Casa Minha Vida (MCMV), deixar felizes os empreiteiros
e alguns moradores que se beneficiem. Mas isso, se não for baseado em um plane-
jamento sério, vai repetir o MCMV 1, que manteve o mesmo padrão do Banco
Nacional da Habitação (BNH) de criar verdadeiros vazios urbanos, encarecendo
e inviabilizando levar, para empreendimentos até 70 km distante do centro, os
sistemas de infraestrutura urbana.
Então, o que justifica eu estar concluindo obra neste mandato, em Mosqueiro,
no bairro de Carananduba? São mil e poucas “casinhas de pombo” horizontalizadas
que implicaram a destruição de uma área de floresta. O que fazer? Abandonar de
vez a obra, paralisada no governo anterior, ou retomar as obras? Decidi retomar
e concluir a obra, haja vista os gastos públicos e o desmatamento já realizados.
204 | 50 anos de regiões metropolitanas no Brasil e a Política Nacional de Desenvolvimento Urbano

Entretanto, quem é que pode concorrer às casas? Quem está no cadastro, ou seja,
aquela família que mora no bairro do Guamá, a 85 km, ou São Brás, a 76 km etc.
Felizmente, apesar das resistências, conseguimos convencer a Caixa Econômica
Federal (Caixa) de que a prioridade deve ser para quem mora no Mosqueiro. Como
jogar um cidadão que trabalha no centro de Belém para 80 km de distância, ou 160
km para ir ao trabalho e voltar para casa? Infelizmente, isso foi regra no Sistema
Financeiro da Habitação do regime militar (BNH) e, contraditoriamente, virou
marca do MCMV. O padrão caracteriza-se por, em primeiro lugar, dizimar a floresta;
em segundo, fazer a terraplanagem, para tornar o terreno plano; posteriormente,
construir centenas ou milhares de casinhas idênticas. Essa é a regra que o governo
Lula tem anunciado não mais seguir.
O MCMV foi muito importante, e eu lutei muito como deputado federal
para garantir a manutenção dos recursos que o ex-presidente Temer retirou, e
contra a destruição que o ex-presidente Bolsonaro ocasionou. No entanto, ele
tem que ser melhorado. E a grande melhora é agir com base no planejamento
do desenvolvimento urbano, mas, enquanto o trem anda e temos que pular nos
vagões, um caminho é usar os espaços vazios nas áreas mais antropizadas das urbes.
Isso porque não é justo, enquanto há tantos imóveis desocupados, inclusive federais,
optar-se por desmatar a 30 km, 100 km de distância para fazer o trabalhador sofrer,
para dificultar o seu deslocamento, reduzir seu tempo de lazer, o tempo dedicado
à família, à relação com os amigos, às relações de comunidade, enfim, infernizar a
vida do trabalhador impondo-lhe deslocamentos de até seis horas no dia. Então,
garantir moradias onde haja sinal de internet, energia, rede de água potável, entre
outros serviços, é o que se deve esperar do programa MCMV, agora relançado com
as ideias do presidente Lula de viabilizar residenciais com varandas e churrasqueiras.
Vale destacar que a criação de uma Secretaria Nacional da Periferia, dentro
do Ministério das Cidades, deve potencializar o MCMV Entidades, que fez com
que o edifício Nove de Outubro, em São Paulo, e outros prédios de hotéis e outras
instituições abandonados décadas atrás pudessem, com recursos do programa, ser
reestruturados, ter implantados condomínios administrados coletivamente e auto-
nomamente. Vários movimentos sociais de lutas por moradia, como o Movimento
dos Trabalhadores Sem-Teto (MTST), ao qual o deputado Guilherme Boulos é
ligado, tornaram realidade empreendimentos dessa natureza.
As grandes empreiteiras elegem terrenos distantes do centro para obrigar o
estado e o município a investirem em infraestrutura em favor de seus imobiliários
especulativos, encarecendo imensamente os gastos públicos. Ora, a carência de re-
cursos acaba por inviabilizar a dignidade de quem mora nesses residenciais distantes
das áreas já infraestruturadas. A esses problemas ainda se agrega outro problema
Desafios de governança e gestão da metrópole amazônica | 205

político e social, qual seja, o controle desses residenciais carentes da presença do


Estado pelas quadrilhas milicianas e demais organizações criminosas.
Já está convocada uma Conferência Nacional das Cidades. E nós já estamos
preparando a nossa conferência municipal para daqui a dois meses. Serão eleitos
delegados do estado todo, de todos os estados e todos os municípios do Brasil.
Então, mesmo que os problemas permaneçam, há um esforço de participação
que envolve o povo, mas envolve também o saber técnico. A população tem que
exercer a cidadania e lutar pelo seu direito. Mas, para ter uma solução para um
problema técnico, há de se chamar um profissional preparado para isso, seja da
saúde, da educação ou do urbanismo. Mas creio que hoje há uma vontade expressa
do governo federal de viabilizar espaços de participação.
Por exemplo, estive com alguns membros do governo federal e soube que há
um esforço para o Plano Plurianual (PPA). O ex-deputado federal Renato Simões
está coordenando uma espécie de orçamento participativo nacional dentro da
Secretaria Geral do Governo (ministro Márcio Macedo); portanto, há um es-
forço de participação nacional, ainda que limitado, mas importante. Inclusive a
plataforma que nós usamos e desenvolvemos aqui, inspirados em Barcelona, para
instalarmos o Fórum Permanente de Participação Cidadã, o “Tá Selado”,9 foi
apropriada para essa experiência nacional de participação, que se iniciará com os
debates sobre o PPA 2024-2027. Reunimos, durante a pandemia, 45 mil pessoas
nas várias fases de participação, dos 78 bairros, e, ao mesmo tempo, das políticas
setoriais, por interesse da sociedade organizada. Há cerca de oitocentos conselheiros
eleitos representando os bairros e outros oitocentos eleitos a partir das plenárias
de negros e negras, pessoas com deficiência, comunidade LGBTQIA+, mulheres,
comunidade indígena urbana. Todos os setores da cultura se mobilizaram, teatro,
cinema, música. Uma representação linda da sociedade, tanto pela referência mais
geográfica quanto pela referência na luta do interesse antirracista ou outros interesses.
Por causa dessa experiência, fui procurado pelo Renato Simões, e estamos aportando
essa tecnologia por nós desenvolvida.
Estou esperançoso de que nós possamos ter avanços nesse esforço de pla-
nejamento territorial e na política de desenvolvimento urbano que pense o país
como um território nacional, as regiões, as RMs, os municípios, mas pense como
engrenagens de uma grande máquina que pode e deve funcionar de forma cada
vez mais igualitária.
Ipea: Prefeito, você tocou em várias questões importantes: as dificuldades da
coordenação interfederativa; as tensões que existem entre municípios e estados,
às vezes não alinhados politicamente, e isso gera consequências; a questão da

9. Disponível em: https://agiliza.belem.pa.gov.br/servicos/programa-de-participacao-cidada-ta-selado/.


206 | 50 anos de regiões metropolitanas no Brasil e a Política Nacional de Desenvolvimento Urbano

autonomia municipal, inclusive a dificuldade de ela ser plenamente exercida pela


ausência de autonomia financeira, pois vários municípios vivem de repasses, e,
mesmo para os municípios grandes, como Belém, os repasses, as transferências
constitucionais são importantes para o orçamento.
Voltando a um ponto em que você tocou, o papel da União na governança
metropolitana, planejamento, gestão e governança. A princípio, havia as RMs
criadas por lei complementar federal; a União dava as diretrizes e estabelecia não
só o desenho institucional da gestão, mas também todo o plano de investimento
passava por um olhar regional, nos dois sentidos. Nesse paradoxo da nossa demo-
cracia, qual o papel da União? Ela tem um papel no financiamento e não cumpre?
Ela deveria ter um papel também na governança? O que podemos pensar, desde
essa perspectiva tão rica de Belém?
Edmilson Brito Rodrigues: Se estivéssemos na França, e o Macron decidisse
fazer um sistema de trem em Lille (ele manda como presidente de uma república
unitária semiparlamentarista), então, o Parlamento aprovaria o recurso e o sistema
seria executado, até mesmo diretamente, pelo governo nacional. Os municípios
não têm autonomia. Aqui, no Brasil, tem-se a única federação tripartite do mundo.
Temos, no Brasil, as experiências daquilo sobre o que o Celso Daniel se esforçou
tanto para refletir: o poder local, o poder de determinação local – local entendido,
na minha visão, como o lugar para além do município propriamente, mas tendo
vinculação com o município. Uma RM pode ser entendida como local e como
lugar, na visão miltoniana, como o espaço do acontecer solidário.
A solidariedade não somente no sentido ético da palavra, mas a solidariedade
como complementação de esforços e sinergia baseada no interesse comum como
um princípio importante. Então, o papel da União é puxar as conferências, investir,
porque não é barata a participação, a democracia não é barata. Deslocar milhares de
pessoas para Brasília ou para qualquer outro município de todo o país para discutir
política urbana, delegados eleitos das conferências municipais. O governo federal
que acredita no poder popular, que acredita na democracia, incentivará cada mu-
nicípio, não importando a que partido pertença o prefeito. Trata-se de incentivar
a participação dos cidadãos. E como é que se incentiva? Um prefeito pode dizer
que não quer municipalizar a saúde; ele tem direito, mas ele não recebe os fundos,
ele dependerá do governador para repassar uma Unidade de Pronto Atendimento
(UPA) ou para ele manter uma unidade básica; mas é um direito do município
exercer sua autonomia, o SUS prevê isso.
Acho que um sistema de gestão metropolitana também pode criar mecanismos
em que os municípios integrem políticas sem perder a autonomia. Por exemplo,
como garantir a participação de um município que pretenda, por decisão do prefeito,
se negar a participar do sistema de mobilidade urbana, mas onde se reconhece haver
Desafios de governança e gestão da metrópole amazônica | 207

conurbação com a cidade polo da região? Na RM de Belém, 54% dos veículos que
circulam no município de Belém têm origem e destino em Belém, mas 46% são
de municípios metropolitanos. Como é que um prefeito que despeja centenas de
ônibus até o centro da capital, criando dificuldades enormes para o trânsito, pode
dizer que não há interesse comum? Nessa hipótese, a participação é impositiva.
E isso não representa violência institucional nem agressão ao princípio da autonomia.
O que é o interesse comum? Não pode ser um princípio usado à revelia
do bom senso. O governo federal precisa fazer um esforço para mobilizar o país
a partir de todos os municípios e abrir o debate, atraindo o povo, mas atraindo
também os grandes urbanistas. Chamemos nossos professores, os institutos, como
o Instituto de Pesquisa e Planejamento Urbano e Regional (Ippur), o Instituto de
Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), os cursos de urbanismo da USP, da UFPA.
Em todas as regiões estão os conselhos de engenharia (Creas), conselhos de arquite-
tura e urbanismo (CAUs), estão os fóruns nacionais de luta por moradia, o Fórum
Nacional de Reforma Urbana. Foi assim durante a Constituinte. Flávio Villaça, meu
mestre, estava lá, no fórum nacional, para que a Constituição fosse efetivamente
cidadã e pensasse uma política urbana para um país urbano. Diferentemente de
outros, quando a Organização das Nações Unidas (ONU) disse, no ano 2000,10
que viramos um mundo urbano, com 52% da população vivendo em aglomerados
urbanos ou grandes cidades, no Brasil, a Amazônia, já estava com 66%. E o último
Censo (2010) colocava o Brasil acima de 80%.11 Hoje, a Amazônia está com 80%.
Só Belém e Manaus, as duas RMs, acumulam 5 milhões e 200 mil pessoas. Então,
o país tem um processo de urbanização sanguinária e totalmente descontrolada,
porque não há um esforço nacional democrático de planejamento. Não dá para
permanecer assim: “vamos criar fóruns metropolitanos e nós vamos coordenar”.
O esforço federativo impõe respeito às autonomias, não há uma relação hierárquica.
Em Belém, o ex-governador Almir Gabriel mandou um projeto de lei que
não foi viabilizado porque ele determinava que um secretário de Planejamento
do estado devia coordenar como autoridade hierárquica as políticas metropo-
litanas. Acabou-se a ditadura, não somos prefeitos nomeados por um governa-
dor, não somos secretários para assuntos municipais de governos estaduais ou
do federal. Diferentemente das outras Federações, inclusive da Federação-mãe
(Estados Unidos), o Brasil tem uma Constituição que diz que são entes federativos
a União, os estados, o Distrito Federal e os municípios. O interesse comum tem
que ser respeitado, a autonomia tem que ser respeitada. Agora, o respeito não

10. O Relatório anual do ONU-Habitat de 2022 aponta para 55% da população vivendo em áreas urbanas. Para mais
informações, ver: relatorio-anual-2022.netlify.app. O documento original em inglês está disponível em: https://unhabitat.
org/sites/default/files/2022/06/wcr_2022.pdf.
11. Segundo o Censo 2010, a taxa de urbanização do Brasil era de 84%. Disponível em: https://agenciadenoticias.
ibge.gov.br/agencia-sala-de-imprensa/2013-agencia-de-noticias/releases/13937-asi-censo-2010-populacao-do-bra-
sil-e-de-190732694-pessoas.
208 | 50 anos de regiões metropolitanas no Brasil e a Política Nacional de Desenvolvimento Urbano

significa que se possa fazer qualquer coisa. Mesmo a soberania, que em tese é o
direito autônomo mais radical, não pode ser exercida a ponto de se ver as guerras
acontecerem, a ocupação de territórios à revelia das normas internacionais que
determinam limites e possibilidades para as ações tansterritoriais.
Acho que a autonomia é debatível, é normalizável de forma democrática,
para que não se tenha um país, o território transformado em norma, como se
preocupava Milton Santos. As normas na hegemonia liberal acabam sendo sempre
para uso dos agentes hegemônicos, cuja lógica do lucro nega o território como
abrigo de todos. Direito à cidadania para todos é o direito à cidade, como o Henri
Lefebvre propugnava.

REFERÊNCIAS
ALCANTARA, C. A cota-parte do ICMS: injusta, insana, insustentável. Fenafisco,
16 ago. 2022. Disponível em: https://fenafisco.org.br/18/04/2022/artigo-a-cota-
-parte-do-icms-injusta-insana-insustentavel/.
BRASIL. Lei no 8.080, de 19 de setembro de 1990. Dispõe sobre as condições para
a promoção, proteção e recuperação da saúde, a organização e o funcionamento
dos serviços correspondentes e dá outras providências. Diário Oficial da União,
Brasília, 20 set. 1990.
SANTOS, M. Manual de geografia urbana. São Paulo: Hucitec, 1981.
CAPÍTULO 11

ENTRE O URBANO E O REGIONAL: AS METRÓPOLES E OS


FUNDOS CONSTITUCIONAIS DE FINANCIAMENTO
Rodrigo Portugal

1 INTRODUÇÃO
As metrópoles, sob um ponto de vista estritamente administrativo, estão contidas
nas macrorregiões, assim como as macrorregiões contêm as grandes metrópoles
nacionais. Dessa forma, seria relativamente simples a conciliação do estudo das
regiões e das metrópoles como modos de caracterização do território, de forma a
melhor compreender os fenômenos urbanos e regionais no Brasil.
Contudo, a categorização analítica não é tão simples, em especial se tratando
de alinhamento de financiamento de políticas públicas. No Brasil, historicamente,
políticas voltadas para as regiões se alinharam às matrizes econômicas de desen-
volvimento, com o intuito de reduzir desigualdades regionais, enquanto políticas
metropolitanas foram sendo construídas pensando, entre outros elementos, nas
aglomerações surgidas do crescimento econômico e seu rebatimento sobre a cidade.
A conexão entre a matriz metropolitana e regional foi bastante investigada
na segunda metade do século XX, a partir dos investimentos possibilitados pelas
superintendências de desenvolvimento regional, criadas inicialmente em 1959
sob a coordenação de Celso Furtado, para o Nordeste (Superintendência do
Desenvolvimento do Nordeste – Sudene), e replicadas nos anos 1960, para a
Amazônia (Superintendência do Desenvolvimento da Amazônia – Sudam) e o
Centro-Oeste (Superintendência do Desenvolvimento do Centro-Oeste – Sudeco).
As instituições buscavam orientar os gastos públicos e privados de acordo
com planos de desenvolvimento, com a justificativa de promover investimentos
estratégicos nas macrorregiões periféricas, com as metrópoles regionais tendo um
papel central.
Segundo pesquisas do Observatório das Metrópoles sobre Fortaleza, Recife
e Salvador (Costa e Pequeno, 2015; Souza e Bitoun, 2015; Carvalho e Pereira,
2014), os incentivos fiscais da Sudene tiveram grande influência na montagem
de parques industriais nas metrópoles, causando um reordenamento na dinâmica
produtiva, social e populacional vista até então.
210 | 50 anos de regiões metropolitanas no Brasil e a Política Nacional de Desenvolvimento Urbano

Na esteira dos incentivos fiscais, a Sudene atrai indústrias para o Nordeste que vão
se concentrar, em especial, nas três grandes capitais da região – Salvador, Recife e
Fortaleza –, acelerando o processo de urbanização (Costa e Amora, 2015, p. 42).
O trecho mostra que é presente na literatura uma interpretação de que as
políticas de desenvolvimento regional influenciaram a produção do espaço me-
tropolitano, em especial na região Nordeste.1 Entretanto, a partir dos anos 1990,
as superintendências se enfraqueceram, assim como seu modelo de financiamento
por incentivos fiscais (Portugal e Silva, 2020). A Sudam e a Sudene foram extintas
em 20012 e não foram mais recepcionados novos projetos para o Fundo de Inves-
timento da Amazônia (Finam) e o Fundo de Investimento do Nordeste (Finor),
que consistiam na redução de impostos para empresas sediadas no Sudeste que
apresentassem projetos produtivos nas áreas de abrangência das superintendências.
Dado esse panorama de fragilização do modelo, novos elementos de finan-
ciamento do desenvolvimento regional foram sendo criados, como os fundos
constitucionais de financiamento (FCFs) surgidos a partir da Constituição Federal
de 1988 (CF/1988).
Os FCFs têm como objetivo prover linhas de crédito subsidiadas para empre-
endimentos de menor porte nas regiões Norte, Nordeste e Centro-Oeste do Brasil
(Brasil, 1989), com recursos oriundos, primordialmente, de 3% da arrecadação
do Imposto de Renda (IR) e do Imposto sobre Produtos Industrializados (IPI), do
qual 1,8% é destinado para o Nordeste – metade para o semiárido –, 0,6% para
o Norte e 0,6% para o Centro-Oeste.
Na região Norte, o Fundo Constitucional de Financiamento do Norte
(FNO) é administrado pelo Banco da Amazônia S. A. (Basa), cuja sede se localiza
em Belém; no Nordeste, o Fundo Constitucional de Financiamento do Nordeste
(FNE) é administrado pelo Banco do Nordeste do Brasil (BNB), com sede em
Fortaleza; e no Centro Oeste, a gestão do Fundo Constitucional de Financiamento
do Centro-Oeste (FCO) é realizada pelo Banco do Brasil, cuja sede fica em Brasília,
visto que não há banco de desenvolvimento na região.
De acordo com Portugal e Silva (2020), os FCFs inverteram a lógica de
financiamento do desenvolvimento regional, focando empreendimentos de me-
nor porte, ao contrário do modelo de apoio a grandes empresas construído pelo
Finam e o Finor. Ademais, a lógica dos fundos pressupõe a dispersão do crédito
no território macrorregional, algo que reduz o foco sobre as áreas metropolitanas.

1. Na Amazônia oriental, e no caso de Belém em específico, Cardoso, Fernandes e Bastos (2015, p. 36) mostram que
os investimentos possibilitados pela Sudam eram voltados para projetos de assentamento rural, construção de usinas
hidrelétricas, abertura de rodovias, projetos de extração mineral e de madeira, mas que também mantiveram a centralidade
de Belém, por meio do fortalecimento de atividades de comércio e serviços vinculadas a esses novos empreendimentos.
2. A Sudeco já havia sido extinta em 1990.
Entre o urbano e o regional | 211

Sendo assim, são mais de trinta anos de operacionalização dos FCFs, em uma
dinâmica produtiva regional e urbana brasileira que se modificou intensamente
entre 1990 e 2020. Do crescimento acelerado das metrópoles se verifica uma
estagnação persistente, assim como é cada vez mais constante a centralidade do
debate sobre as cidades médias, redes urbanas e redes policêntricas de cidades
no debate urbano e regional.
Tais mudanças, certamente, tiveram reflexos na produção do espaço metro-
politano, e o texto busca investigar aspectos do estágio atual da relação entre as
metrópoles e o financiamento do desenvolvimento regional a partir dos FCFs.
A segunda seção pergunta como as metrópoles estão representadas nos
normativos (leis, portarias, planos) relacionados aos FCFs. Elas estão presentes e
são estratégicas para o desenvolvimento regional? Para respondê-la, analisa-se sua
relação com a atual Política Nacional de Desenvolvimento Regional (PNDR) e
apresentam-se características gerais dos fundos e as possibilidades de interlocuções
das contratações com as metrópoles.
A terceira seção indaga qual o volume de contratação dos FCFs nas metrópoles
em relação ao volume total das contratações e ao seu direcionamento quanto ao
setor produtivo. Onde estas aconteceram em 2022 e quais as principais atividades
econômicas alcançadas? Para esta pergunta, busca-se explorar dados dos recursos
contratados em municípios metropolitanos.

2 AS METRÓPOLES NOS FUNDOS CONSTITUCIONAIS


Os FCFs foram criados pela CF/1988 e regulamentados no ano seguinte, pela Lei
no 7.827/1989. Em 2022, foram contratados R$ 54,2 bilhões com recursos oriun-
dos dos fundos para investimentos nas regiões Norte, Nordeste3 e Centro-Oeste.
A principal característica dos recursos é o direcionamento para tomadores de
menor porte, como agricultores familiares ou empresários urbanos, sendo destinados,
primordialmente, para investimentos produtivos. Os alvos são empreendimentos
privados, sejam pessoas físicas ou jurídicas,4 e os recursos são bastante despendidos
para o setor rural e para a agricultura familiar, nos termos do Programa Nacional
de Fortalecimento da Agricultura Familiar (Pronaf ).
Os FCFs podem financiar investimentos privados voltados para a infraestrutura
urbana, como transporte público ou distribuição de energia elétrica; no entanto,

3. No Nordeste, o FNE beneficia investimentos na área de atuação da Sudene, que, além da região, engloba o norte
de Minas Gerais e o Espírito Santo.
4. Em 2017, foram incluídos no rol de beneficiários estudantes regularmente matriculados em cursos superiores não
gratuitos. Uma tentativa de os FCFs se tornarem o funding do Fundo de Financiamento Estudantil (Fies).
212 | 50 anos de regiões metropolitanas no Brasil e a Política Nacional de Desenvolvimento Urbano

como são investimentos de maior vulto, dependem do tamanho do patrimônio


líquido (PL) dos fundos para serem executados.
O PL é a riqueza do fundo para os acionistas e mede o tamanho deste a partir
da diferença entre ativos e passivos, além de dar indicações sobre seu desempenho
financeiro. É um importante indicador de gestão financeira e patrimonial dos
recursos. Nos últimos anos, o PL dos fundos cresceu, sendo que os do FNO e do
FCO ficaram em torno de R$ 30 bilhões cada, enquanto o do FNE ultrapassou
os R$ 100 bilhões.5
No caso do FNE, a regra delimita que empresas individuais podem contratar
até 1% do PL; grupos econômicos, 1,5%; e projetos estratégicos definidos pelo
Plano Regional de Desenvolvimento do Nordeste (PRDNE), 3%.6
Por exemplo, o PL do FNE foi de R$ 107 bilhões em 2021, logo, investimen-
tos metropolitanos, como a ponte Salvador-Itaparica na Bahia, orçada em torno
de R$ 9 bilhões, não poderiam ser financiados em sua totalidade, ficando restritos
a R$ 3 bilhões, caso estivessem delimitados enquanto prioritários no PRDNE.
O objetivo da restrição é não concentrar os recursos em poucos projetos,
cabendo a outras instituições financeiras públicas, como o Banco Nacional de
Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES), ou a fundos de investimento
internacionais dar aporte de recursos para os investimentos.
Do mesmo modo, os FCFs não financiam entes federativos. Municípios
metropolitanos reunidos para resolver problemas legais decorrentes da aglomeração
urbana, como instalação de aterro sanitário determinado pela Política Nacional de
Resíduos Sólidos (Lei no 12.305/2010), teriam dificuldades de acessar os fundos
constitucionais. Por outro lado, empreendimentos vencedores de licitações realiza-
das pelos entes metropolitanos poderiam acessar os recursos, por serem destinados
ao setor privado.
A instituição que define os setores e espaços prioritários de aplicação dos FCFs
são os conselhos deliberativos (Condels) das superintendências de desenvolvimento
regional, compostos por representantes dos governos estaduais, dos bancos regionais
de desenvolvimento, da sociedade e dos ministérios setoriais.
As superintendências foram recriadas em 2007 (Sudam e Sudene) e em 2009
(Sudeco), e seus respectivos conselhos têm a prerrogativa de votar anualmente quais
atividades produtivas e recortes espaciais são estratégicos para o desenvolvimento
da sua área de abrangência.

5. Ver Brasil (2018) e CMAP (2020).


6. Ver BNB (2022, p. 24).
Entre o urbano e o regional | 213

As decisões podem se pautar por interesses específicos, planos regionais de


desenvolvimento, planejamentos setoriais ou questões macroeconômicas. Contudo,
desde 2007, as principais orientações para os FCFs quanto às prioridades espaciais
são provenientes da PNDR, que possui uma regionalização própria para definir
seus territórios prioritários.
As tipologias da PNDR foram criadas para regionalizar o território nacional em
quatro tipos, de acordo com a renda e o dinamismo da região. Até 2019, os territórios
eram divididos em alta renda, dinâmica, estagnada e baixa renda, em que as regiões
classificadas como de alta renda eram as únicas assinaladas como não prioritárias – isto
é, possuíam condições de crédito via FCF menos favorecidas que as demais regiões.
A partir de 2019, a metodologia se alterou, e os territórios foram classificados
de acordo com a renda (alta, média e baixa) e o dinamismo (alto, médio e baixo),
porém as regiões de alta renda, não importando seu dinamismo, continuaram não
sendo prioritárias.
Portanto, as metrópoles não surgem diretamente enquanto classificação deter-
minante para as prioridades dos FCFs, por não estarem discriminadas na tipologia
da PNDR. Entretanto, indiretamente, as regiões de alta renda coincidem com as
capitais dos estados, municípios centrais nas metrópoles do Norte, Nordeste e
Centro-Oeste, o que não as torna prioritárias para os FCFs.
Classificações, como a hierarquia urbana, desenvolvida pelo Instituto Brasileiro
de Geografia e Estatística (IBGE) para as regiões de influência das cidades (Regic),
utilizam as metrópoles e, no exercício de compatibilização com as tipologias da
PNDR, é possível perceber que, nos municípios circunscritos nas metrópoles,
somente as capitais estão classificadas como alta renda.
Os municípios metropolitanos no entorno das capitais têm classificação di-
ferenciada. Como exemplo, de acordo com a pesquisa Regic 2018 (IBGE, 2020),
a metrópole de Belém na região Norte é composta por Belém, Ananindeua, Ma-
rituba e Benevides, e somente a capital do estado é classificada como alta renda
na PNDR, com diferenciação dos demais municípios componentes da metrópole.
Ananindeua e Marituba possuem média renda e médio dinamismo, enquanto
Benevides é qualificada como média renda e alto dinamismo na tipologia da PNDR
de 2019. Portanto, tornam-se alvos prioritários dos FCFs. O mesmo é visualizado
nas demais metrópoles das regiões Norte, Nordeste e Centro-Oeste do Brasil,
classificadas na Regic 2018 (IBGE, 2020), como Manaus, Salvador, Fortaleza,
Recife, Brasília e Goiânia, em que os empreendimentos privados das capitais não
são o alvo, mas, sim, aqueles localizados nos demais municípios componentes da
aglomeração. Logo, o foco dos FCFs são os empreendedores privados localizados
nos municípios periféricos das metrópoles.
214 | 50 anos de regiões metropolitanas no Brasil e a Política Nacional de Desenvolvimento Urbano

A explicação para os empreendimentos localizados nas capitais não serem alvo


de políticas que buscam reduzir as desigualdades entre as regiões pode estar nos
próprios conceitos subjacentes às políticas de desenvolvimento regional.
Nas concepções mais tradicionais de teorias de desenvolvimento regional,
a economia precisa se dispersar no território para fora das aglomerações que têm
tendência natural de polarização, como o caso das metrópoles. O papel das políticas
públicas seria transbordar o desenvolvimento para áreas periféricas onde é mais
custoso o acesso ao crédito.
Autores tradicionais, como François Perroux, dos polos de crescimento e
desenvolvimento, ou Albert Hirschmann, dos efeitos de encadeamento produtivo
no espaço a partir de um setor estratégico, defendiam escolhas setoriais e espaciais
estratégicas para o transbordamento dos efeitos do desenvolvimento.
Desse modo, existem interpretações de que os FCFs são instrumentos para a
dispersão do desenvolvimento via crédito subsidiado, que, de certa forma, já seria
consolidado nas capitais, uma vez que possuem melhor estrutura de acesso bancário.
Um exemplo normativo da dispersão do crédito e direcionamento para o interior é
a alocação de metade dos recursos destinados ao FNE para o semiárido nordestino
(Brasil, 1989), região sem incidência de metrópoles, nos termos da Regic 2018
(IBGE, 2020). A própria lei dos FCFs afirma que um dos objetivos dos fundos é
“apoiar a criação de novos centros, atividades e polos dinâmicos, notadamente em
áreas interioranas” (Brasil, 1989).
Outro elemento que explica o fato de as capitais não serem alvo dos FCFs
é o diagnóstico das recentes transformações territoriais no país, a partir do qual
se identificou o avanço das cidades médias em relação às áreas metropolitanas
tradicionais no papel de intermediação entre espaços urbanos de diferentes portes
(Macedo e Porto, 2021; Moura e Ferreira, 2021), o que redireciona os FCFs.
Contudo, a tendência de dispersão dos FCFs não foi feita de forma exacerbada,
uma vez que, na revisão da PNDR em 2012, o texto da política foi corrigido para
consolidar uma rede policêntrica de cidades que não necessariamente exclui as áreas
metropolitanas (Alves e Rocha Neto, 2014), tornando-as possíveis catalisadoras
de efeitos de dispersão sobre o território.
Em termos práticos, os espaços prioritários da PNDR, que, no âmbito metropo-
litano, se traduzem nos municípios adjacentes às maiores capitais, apresentam como
diferenciação ao acesso ao crédito dos FCFs duas vantagens, conforme a seguir descrito.
1) Maior limite financiável de investimentos: um empreendimento de grande
porte localizado em uma região de alta renda só pode financiar 70% do seu
investimento com recursos dos fundos, ao passo que, para empreendimentos
localizados em espaços prioritários, é possível um percentual mais elevado,
como 100%, a depender do porte e do município.
Entre o urbano e o regional | 215

2) Encargos financeiros inferiores: na metodologia de cálculo dos FCFs, uma


das variáveis utilizadas é o fator de localização. Caso o município esteja
enquadrado nos espaços prioritários, o fator de localização é inferior, e,
portanto, os encargos financeiros, como a taxa de juros, tendem a ser
reduzidos em relação aos demais.
Destaca-se que as contratações de recursos dos fundos não são proibidas nas
capitais, somente existem condições de crédito menos favorecidas de limite financiável
e encargos financeiros em relação aos espaços prioritários. Em contrapartida, variáveis
como garantias e análise de risco, determinantes para a concessão do crédito, não
são afetadas pela localização do empreendimento e não criam diferenciação entre os
empreendedores localizados nos municípios metropolitanos e o restante das tipologias.
Esse é um problema importante, uma vez que impacta o acesso ao recurso
dos fundos e pode gerar impeditivos de acesso aos recursos em empreendedores
de municípios menos dinâmicos.

3 OS FUNDOS CONSTITUCIONAIS NAS METRÓPOLES


Na terceira seção, busca-se dimensionar as contratações dos FCFs nas metrópoles
em geral e entender qual a sua participação nos valores totais dos fundos. O objetivo
é dar um panorama das contratações em 2022 e identificar para quais atividades
econômicas estão sendo direcionados.
Como visto, no fenômeno metropolitano, os municípios do entorno das
capitais têm condições especiais para a tomada de crédito. Tais condições podem
ser as mesmas de municípios de fora das regiões metropolitanas (RMs), uma vez
que os FCFs são guiados pela tipologia da PNDR e pelos espaços prioritários
definidos pelos Condels das superintendências de desenvolvimento regional, que
não delimitam explicitamente as metrópoles.
Em 2022, os FCFs contrataram R$ 54,2 bilhões, dos quais 9% (R$ 4,9
bilhões) foram destinados para municípios classificados na Regic 2018 como
metropolitanos,7 um percentual baixo se considerado o poder de atratividade dos
centros econômicos, demonstrando que a política regional tem efeito na dispersão
direta do crédito, se tomada a premissa que as metrópoles são áreas mais ricas.

7. i) Metrópole de Manaus: Manaus; ii) Metrópole de Belém: Belém, Ananindeua, Marituba e Benevides; iii) Metrópole
de Goiânia: Goiânia, Abadia de Goiás, Aparecida de Goiânia, Aragoiânia, Bonfinópolis, Brazabrantes, Caldazinha,
Goianira, Guapó, Hidrolândia, Nerópolis, Nova Veneza, Santo Antônio de Goiás, Senador Canedo e Trindade; iv) Região
Integrada de Desenvolvimento do Distrito Federal (Ride-DF): Águas Lindas de Goiás, Brasília, Cidade Ocidental, Luziânia,
Novo Gama, Padre Bernardo, Planaltina, Santo Antônio do Descoberto, Valparaíso de Goiás; v) Metrópole de Fortaleza:
Aquiraz, Caucaia, Eusébio, Fortaleza, Itaitinga, Maracanaú, Maranguape e Pacatuba; vi) Metrópole de Salvador: Ca-
maçari, Candeias, Dias D’avila, Lauro de Freitas, Madre de Deus, Mata de São Joao, Salvador, São Francisco do Conde,
São Sebastião do Passe, Simões Filho; e vii) Metrópole do Recife: Abreu e Lima, Aracoiaba, Cabo de Santo Agostinho,
Camaragibe, Igarassu, Ilha de Itamaracá, Ipojuca, Itamaracá, Itapissuma, Jaboatão dos Guararapes, Moreno, Olinda,
Paudalho, Paulista, Recife e São Lourenço da Mata.
216 | 50 anos de regiões metropolitanas no Brasil e a Política Nacional de Desenvolvimento Urbano

A maior parte das contratações gerais dos FCFs está localizada em munícipios
classificados como centros locais, para os quais mais de 54% dos recursos em 2022
(R$ 29 bilhões) foram destinados. Os centros locais são cidades com população
média de 12,5 mil habitantes, cuja influência é restrita ao próprio limite territorial,
isto é, o perfil das aplicações dispersa diretamente o crédito para os municípios e
não os centraliza em municípios maiores, com possíveis efeitos indiretos sobre a
capilaridade dos fundos.
São munícipios como Jaborandi, na Bahia, distante da metrópole de Salva-
dor, que em 2022 contratou mais recursos (R$ 323 milhões) que as metrópoles
de Belém e Goiânia. O município é sede da Santa Efigênia, empresa produtora de
grãos e sementes, e está situado no Matopiba, acrônimo dos estados do Mara-
nhão, Tocantins, Piauí e Bahia, uma área de expansão agrícola de soja e milho,
confirmando a destinação interiorana do crédito dos FCFs e novas configurações
territoriais fora das metrópoles.
Com relação às metrópoles, o gráfico a seguir demonstra os valores em milhões
de reais das contratações em 2022.

GRÁFICO 1
Contratações dos FCFs nas RMs (2022)
(Em R$ 1 milhão)

Fonte: Ministério da Integração e do Desenvolvimento Regional (MIDR). Disponível em: https://dadosabertos.mdr.gov.br/dataset/


fundos-constitucionais-de-financiamento/resource/2d467a0e-afe3-4149-b3b7-83559351df8b. Acesso em: 16 maio 2023.
Obs.: Ilustração cujos leiaute e textos não puderam ser padronizados e revisados em virtude das condições técnicas dos
originais (nota do Editorial).

O gráfico mostra que, em 2022, as duas maiores RMs do Nordeste (Fortaleza


e Salvador) foram as que receberam mais recursos dos FCFs, seguidas por Recife.
Entre o urbano e o regional | 217

Manaus e a Ride-DF vêm atrás, com cerca de 10% das contratações, e depois
aparecem Goiânia e Belém.
Ademais, duas constatações são importantes para analisar os resultados.
A primeira é que as capitais dos estados e cidades principais das metrópoles
(Recife, Salvador, Fortaleza, Manaus, Belém, Goiânia e Brasília) representaram
R$ 2,4 bilhões em contratações (49% do total nas RMs), significando que, apesar das
restrições ao crédito dos FCFs, as capitais são destino de quase metade dos recursos
contratados nas metrópoles. Isso demonstra que, em termos de dispersão do crédito
nas áreas metropolitanas, os fundos não chegaram a ter êxito no ano em análise.
A segunda constatação é a distribuição de recursos segundo atividades econô-
micas nas metrópoles. Segundo os dados para 2022, obtidos do painel do MIDR,8
as maiores contratações foram destinadas para infraestrutura, para geração de energia
elétrica, em municípios periféricos nas áreas metropolitanas. Foram destinados
R$ 575 milhões para os municípios de Camaçari, na metrópole baiana, Maracanaú
e Caucaia, na metrópole cearense. Em Caucaia, está sendo construído um parque
eólico com 48 turbinas offshore e 11 semi-offshore, totalizando 548 MW de energia,
uma tendência recente de investimentos no Nordeste brasileiro.
Nos demais resultados referentes às atividades econômicas, foi possível per-
ceber uma diferenciação nas atividades beneficiadas de acordo com a região onde
a metrópole se encontra.
Na região Norte, as contratações para a indústria de transformação, tanto
em Belém quanto em Manaus, ainda são salutares. Em Manaus persiste o Polo
Industrial de Manaus (PIM), um dos maiores símbolos do período de investimentos
possibilitados por incentivos fiscais, enquanto, em Belém, o resultado surpreende,
visto o declínio da atividade na região, como demonstraram Monteiro Neto, Silva
e Severian (2019), a partir da medição da transformação do nível de empregos
industriais nos últimos quinze anos em aglomerados industriais relevantes (AIRs).
O comércio também foi relevante nas metrópoles da região Norte, um fe-
nômeno antigo, como mencionado por Cardoso, Fernandes e Bastos (2015), que
destacaram a importância dos estabelecimentos nas cidades de maior porte em
relação às atividades produtivas do interior.
Por sua vez, também ganha relevância a infraestrutura, por meio da produ-
ção e distribuição de eletricidade, gás e água, como uma das atividades de maior
contratação, uma atividade com potencial de integrar a metrópole.

8. Disponível em: https://dadosabertos.mdr.gov.br/dataset/fundos-constitucionais-de-financiamento. Acesso em: 28


abr. 2023.
218 | 50 anos de regiões metropolitanas no Brasil e a Política Nacional de Desenvolvimento Urbano

No Nordeste, as metrópoles de Salvador e Fortaleza apresentaram contrata-


ções para geração de energia elétrica nos municípios periféricos, ligados aos novos
parques eólicos que estão sendo construídos na região. Todavia, a metrópole do
Recife apresentou comportamento mais pulverizado nas atividades econômicas,
com investimentos em hotéis e no cultivo de cana-de-açúcar, uma atividade an-
cestral na região.
No Centro-Oeste, as atividades rurais vêm se destacando ao longo dos anos, mas
esperava-se que as características ficassem restritas aos municípios não constantes nas
metrópoles. Ao contrário do esperado, em Brasília, principal cidade da Ride-DF, os
maiores volumes de contratações foram destinados para pessoas físicas, o público-alvo
do Pronaf, e também para a contratação para atividades pós-colheita. Em Goiânia,
apesar de o crédito ser mais disperso, também foi evidenciado um direcionamento
para o transporte de cargas, atividade atualmente vinculada ao transporte de grãos
no Centro-Oeste.
A tabela a seguir demonstra as diferenças retratadas entre as regiões, destacando
as três principais atividades econômicas contratadas em 2022.

TABELA 1
Maiores contratações nas metrópoles por atividade econômica (2022)
Contratações
Região RM CNAE
(R$ 1 milhão)
Comércio; reparação de veículos automotores, objetos
147
pessoais e domésticos
Manaus
Indústrias de transformação 127
Produção e distribuição de eletricidade, gás e água 150
Norte
Comércio; reparação de veículos automotores, objetos
86
pessoais e domésticos
Belém
Indústrias de transformação 22
Transporte, armazenagem e comunicações 127
Atividades do operador portuário 536
Geração de energia elétrica 139
Salvador
Lojas de variedades, exceto lojas de departamento ou
146
magazines
Fabricação de produtos de trefilados de metal padronizados 43
Nordeste
Fortaleza Geração de energia elétrica 436
Gestão e administração da propriedade imobiliária 74
Aluguel de imóveis próprios 25
Recife Cultivo de cana-de-açúcar 93
Hotéis 118
(Continua)
Entre o urbano e o regional | 219

(Continuação)
Contratações
Região RM CNAE
(R$ 1 milhão)
Atividades de pós-colheita 14
Comércio atacadista de máquinas e equipamentos para uso
Ride-DF 36
comercial; partes e peças
Pessoa física 251

Centro-Oeste Fabricação de outros produtos de metal não especificados


12
anteriormente
Serviços de diagnóstico por imagem com uso de radiação
Goiânia 12
ionizante, exceto tomografia
Transporte rodoviário de carga, exceto produtos perigosos e
17
mudanças, intermunicipal, interestadual e internacional

Fonte:MIDR. Disponível em: https://dadosabertos.mdr.gov.br/dataset/fundos-constitucionais-de-financiamento/resource/2d467a0e-


afe3-4149-b3b7-83559351df8b. Acesso em: 16 maio 2023.
Obs.: CNAE – Classificação Nacional de Atividades Econômicas.

Com relação aos setores, percebe-se que o direcionamento é dado para ativi-
dades historicamente relacionadas a grandes efeitos multiplicadores ou impactos
no território, como o investimento em energia elétrica ou outro tipo de infraes-
trutura econômica que possa beneficiar um estado inteiro, ou mesmo a indústria
de transformação, que aciona elementos mais modernos de uma cadeia produtiva.
Ainda resiste uma mística sobre os grandes impactos no território, mas
deve-se avaliar se os fundos podem ser tais elementos ou se funcionam como um
modelo de financiamento para efeitos regionais mais restritos territorialmente, no
qual se incluem as metrópoles e seus mecanismos de aglomeração, mas também
de conectividade com o território, em particular com as regiões no entorno das
capitais dos estados.

4 CONSIDERAÇÕES FINAIS
Os fenômenos metropolitanos e regionais no Brasil pouco dialogam, ainda mais
em termos de financiamento de políticas públicas. Nesse sentido, o texto buscou
traçar um panorama entre o financiamento possibilitado pelos FCFs, os principais
instrumentos da política de desenvolvimento regional, e os espaços metropolitanos
no Brasil.
Para tanto, perguntou-se, em primeiro lugar, como os normativos (leis,
normativos, planos) dos FCFs discutem as metrópoles. Elas estão presentes e são
estratégicas para o desenvolvimento regional? Em segundo lugar, indagou-se sobre
a magnitude dos valores das contratações em municípios entendidos como me-
tropolitanos pela hierarquia urbana do IBGE. Onde foram contratados em 2022
e quais as principais atividades econômicas alcançadas?
220 | 50 anos de regiões metropolitanas no Brasil e a Política Nacional de Desenvolvimento Urbano

Os resultados mostraram que a atual PNDR tem a sua própria classificação


do território que não explicita a escala metropolitana como alvo evidente da
política. Contudo, implicitamente, as metrópoles são abrangidas nas prioridades
espaciais por conterem municípios periféricos classificados como baixa e média
renda, classificações tidas como prioritárias pela PNDR. As capitais dos estados
não gozam de condições diferenciadas de crédito por estarem classificadas como
territórios de alta renda, uma vez que a PNDR busca a dispersão das contratações.
Contudo, isso não significa que o enfoque metropolitano ou as políticas de-
senvolvidas para o bem-estar nesse recorte espacial, como o Estatuto das Metrópoles
(Lei no 13.089/2015), não possam estar presentes na política regional. O caminho
para a metrópole se tornar prioridade espacial na política regional passa pelas re-
soluções dos Condels das superintendências, que atualmente seguem os recortes
estabelecidos pela PNDR e também podem decidir por outro tipo de espacialização
favorável ao desenvolvimento regional, desde que entendam que seja favorável à
dispersão dos efeitos positivos a partir de uma rede policêntrica de cidades.
Caso a metrópole seja selecionada como um recorte espacial estratégico, os
tomadores de recursos localizados nesta podem gozar de taxas de juros diferenciadas e
maiores limites financiáveis. É importante reforçar que entes municipais não podem
legalmente acessar os recursos dos FCFs, que são destinados para empreendedores
privados localizados nas regiões Norte, Nordeste e Centro-Oeste do país.
Para a segunda pergunta, os resultados mostraram que os munícipios lo-
calizados nas metrópoles tomaram apenas 10% do total de recursos contratados
em 2022, e os principais tomadores estiveram localizados nos centros locais, nos
quais mais de 50% do total dos recursos foi contratado. Isso mostra que o perfil
das contratações dos FCFs age diretamente na dispersão do crédito, operando
em municípios que recebem menos influências das metrópoles. O objetivo seria
aumentar os efeitos no território local.
Nas metrópoles, as contratações se dividiram entre as capitais e os munícipios
periféricos das RMs, apesar de os últimos terem condições especiais para a tomada
de recursos.
Com relação aos setores produtivos, as principais atividades econômicas
beneficiadas nas metrópoles tiveram uma diferenciação regional. As metrópoles
do Norte se destacaram pela contratação nas indústrias de transformação; as do
Nordeste, para a energia elétrica, em especial os parques eólicos que se avolumam
na região; enquanto o Centro-Oeste se voltou para atividades ligadas ao setor rural,
uma tendência também da região.
Entre o urbano e o regional | 221

Percebe-se que as contratações se destinam para atividades econômicas, tradi-


cionalmente apontadas como geradoras de efeitos de maior alcance no espaço, como
a geração de energia elétrica, que pode beneficiar todo um estado ou a construção
de estruturas portuárias para navegação em largas distâncias. Investimentos em
infraestruturas urbanas, como modais viários que integram a metrópole, pouco
foram visualizados com as contratações dos FCFs.
Dessa forma, não foram encontrados direcionamentos específicos para te-
máticas metropolitanas, como sistemas de integração de transportes nas grandes
cidades ou tratamento de resíduos sólidos, uma vez que os FCFs se destinaram para
o interior e para municípios de menor porte. Contudo, tais possibilidades não são
inalcançáveis. É necessário articulação para inserção das metrópoles nos sistemas
de governança dos FCFs, que envolvem os bancos de desenvolvimento regional.

REFERÊNCIAS
ALVES, A. M.; ROCHA NETO, J. M. da. A nova Política Nacional de Desen-
volvimento Regional – PNDR II: entre a perspectiva de inovação e a persistência
de desafios. Revista Política e Planejamento Regional, Rio de Janeiro, v. 1,
n. 2, p. 311-338, jul.-dez. 2014.
BNB – BANCO DO NORDESTE S. A. Programação regional: FNE 2022.
Fortaleza: BNB, jan. 2022. Disponível em: https://www.gov.br/mdr/pt-br/assuntos/
fundos-regionais-e-incentivos-fiscais/DocumentoProgramaoFNE2022v4.1_vFinal.pdf.
BRASIL. Lei no 7.827, de 27 de setembro de 1989. Regulamenta o art. 159, inciso
I, alínea c, da Constituição Federal, institui o Fundo Constitucional de Financia-
mento do Norte (FNO), o Fundo Constitucional de Financiamento do Nordeste
(FNE) e o Fundo Constitucional de Financiamento do Centro-Oeste (FCO), e
dá outras providências. Diário Oficial da União, Brasília, 27 set. 1989. Seção 1.
BRASIL. Ministério da Fazenda. Secretaria de Acompanhamento Fiscal, Energia e
Loteria. Relatório de avaliação dos fundos constitucionais de financiamento.
Brasília: Sefel, dez. 2018.
CARDOSO, A. C. D.; FERNANDES, D. A.; BASTOS, A. P. V. A inserção da
RMB na Amazônia e na rede urbana brasileira. In: CARDOSO, A. C. D.; LIMA, J.
J. F. (Ed.). Belém: transformações na ordem urbana. Rio de Janeiro: Letra Capital;
Observatório das Metrópoles, 2015.
CARVALHO, I. M. M. de; PEREIRA, G. C. (Ed.). Salvador: transformações na
ordem urbana. Rio de Janeiro: Letra Capital; Observatório das Metrópoles, 2014. Dis-
ponível em: https://transformacoes.observatoriodasmetropoles.net.br/livro/salvador/.
222 | 50 anos de regiões metropolitanas no Brasil e a Política Nacional de Desenvolvimento Urbano

CMAP – CONSELHO DE MONITORAMENTO E AVALIAÇÃO DE PO-


LÍTICAS PÚBLICAS. Relatório de avaliação Fundos Constitucionais de Fi-
nanciamento do Norte (FNO), Nordeste (FNE) e Centro-Oeste (FCO): ciclo
2020. Brasília: CMAP, 2020.
COSTA, M. C. L.; AMORA, Z. B. Fortaleza na rede urbana brasileira: de cidade à
metrópole. In: COSTA, M. C. L.; PEQUENO, R. (Ed.). Fortaleza: transformações
na ordem urbana. Rio de Janeiro: Letra Capital; Observatório das Metrópoles,
2015. p. 31-76.
COSTA, M. C. L.; PEQUENO, R. (Ed.). Fortaleza: transformações na ordem
urbana. Rio de Janeiro: Letra Capital; Observatório das Metrópoles, 2015. Dispo-
nível em: https://transformacoes.observatoriodasmetropoles.net.br/livro/fortaleza/.
IBGE – INSTITUTO BRASILEIRO DE GEOGRAFIA E ESTATÍSTICA. Re-
giões de Influência das Cidades 2018. Rio de Janeiro: IBGE, 2020. Disponível
em: https://biblioteca.ibge.gov.br/index.php/biblioteca-catalogo?view=detalhes
&id=2101728.
MACEDO, F. C. de; PORTO, L. R. Evolução regional do mercado de trabalho
no Brasil (2000-2018): apontamentos para a Política Nacional de Desenvolvi-
mento Regional (PNDR). Brasília: Ipea, 2021. (Texto para Discussão, n. 2652).
MONTEIRO NETO, A.; SILVA, R. de O.; SEVERIAN, D. Perfil e dinâmicas
das desigualdades regionais no Brasil em territórios industriais relevantes.
Brasília: Ipea, 2019. (Texto para Discussão, n. 2511).
MOURA, R.; FERREIRA, G. Ensaios operacionais para a identificação de
cidades médias. Brasília, Ipea, 2021. (Texto para Discussão, n. 2649).
PORTUGAL, R.; SILVA, S. A. da. História das políticas regionais no Brasil.
1. ed. Brasília: Ipea, 2020. v. 1, 130 p.
SOUZA, M. A. de A.; BITOUN, J. (Ed.). Recife: transformações na ordem urbana.
Rio de Janeiro: Letra Capital; Observatório das Metrópoles, 2015. Disponível em:
https://transformacoes.observatoriodasmetropoles.net.br/livro/recife/.
CAPÍTULO 12

QUESTÕES ABERTAS DO FEDERALISMO BRASILEIRO:


ENTREVISTA COM FERNANDO REZENDE1
Entrevistado
Fernando Antônio Rezende da Silva

Entrevistadores2
Luis Gustavo Martins
Marco Aurélio Costa
Armando Palermo Funari

Ipea: Olhando para a economia brasileira nos últimos sessenta anos e o seu padrão
tributário e fiscal, temos uma herança da década de 1970 que coloca as bases
tributárias a partir de dinâmicas e arranjos particulares, dentro de um processo
de industrialização com crescimento econômico, com a condução de política
econômica centralizada no período da ditadura. As dinâmicas econômica e social,
entretanto, colocaram o Brasil em outro percurso a partir da crise da dívida e
a hiperinflação, com rumos particulares também para a integração do Brasil à
ordem econômica mundial a partir da década de 1990.
Como você avalia a herança da década de 1970, do ponto de vista dos arranjos
e padrões fiscais? Seria possível identificar alguma lacuna histórica nesse padrão?
Como se relaciona com a temática metropolitana?
Fernando Rezende: O assunto metropolitano vem sendo conduzido muito mal
desde a criação das regiões [metropolitanas], lá em 1973. Em realidade, até antes,
porque o problema é que nunca se discutiu federalismo fiscal no Brasil a sério.
Na verdade, tenho um comentário sobre isso a que posso retornar depois;
participei com alguns amigos de uma discussão relacionada a isso. O [ex-presi-
dente] Sarney, quando era presidente do Senado Federal, criou uma comissão para
discutir um problema: uma intervenção do Superior Tribunal de Justiça (STJ),
considerando serem inconstitucionais as transferências de recursos do governo
federal para os estados que não estavam cumprindo a regra que deveria ajudar a
reduzir as disparidades interestaduais. Nessa comissão, que foi criada na época, um
dos participantes, que também é meu amigo, Everardo Maciel, em uma pesquisa,

1. Entrevista realizada em 27 de abril de 2023, via chamada de vídeo.


2. Os entrevistadores são indicados no texto como Ipea.
224 | 50 anos de regiões metropolitanas no Brasil e a Política Nacional de Desenvolvimento Urbano

descobriu uma situação que eu nem sabia e acho que a maioria dos brasileiros não
sabe: a Federação brasileira nunca foi discutida. Nem na criação. A Federação brasi-
leira foi criada por um decreto provisório da dupla Floriano [Peixoto] e Deodoro
[da Fonseca], quando assumiram o poder, no fim do período imperial, e mandaram
para o exílio o então imperador Pedro II. Editaram um decreto provisório criando
a República Federativa do Brasil. Quer dizer, nem a República nem a Federação
foram discutidas naquele momento. Algo absurdo! Mas criaram a República
Federativa do Brasil [Estados Unidos do Brasil até 1967] por um decreto provi-
sório. A Federação era uma coisa muito demandada.
Rui Barbosa, se não me falha a memória, era um admirador do federalismo
norte-americano. Encantado com o federalismo norte-americano. Assim, quis
criar uma Federação à semelhança do federalismo norte-americano. Autonomia
dos estados total, não havia municípios autônomos independentes, tudo de-
pendia dos estados, e os estados eram entidades autônomas dentro do regime
federativo. Claro que isso tudo não deu certo, não tinha qualquer semelhança
entre o regime norte-americano e o que vigia no Brasil naquele momento.
A Constituição de 1891, a primeira que absorveu a ideia de federalismo, logo
teve que ser posta de lado. Foram surgindo várias mudanças, desde o período Vargas
até 1988. E em 1988, fizeram pior: fizeram duas mudanças que suscitaram gran-
des problemas para o federalismo brasileiro. Uma foi o congelamento dos fundos
de participação dos estados e municípios. Até hoje estão congelados os critérios de
rateio. E a segunda foi a decisão de cancelar a proibição que existia antes de remu-
nerar os vereadores em municípios com menos de 300 mil habitantes. Esses foram
dois fatores que acabaram provocando muitos problemas na Federação brasileira.
E as regiões metropolitanas (RMs), que foram criadas na década de 1970,
também não tinham condições de operar satisfatoriamente, porque não havia espaço
suficiente nem condições políticas para organizar uma coordenação das ações dos
estados e dos municípios que participavam das respectivas RMs. Naquele momento,
foram criadas as dez regiões; a última foi a RM do Rio de Janeiro, um ano depois,
porque havia, naquele momento, uma discussão grande no Rio de Janeiro, para
discutir a fusão dos antigos estados do Rio de Janeiro e da Guanabara. De lá
para cá, a coisa veio andando para trás.
Depois, participei de alguns trabalhos sobre RMs do Brasil. Elas foram se
multiplicando, mas sem quaisquer condições de operar satisfatoriamente. Por quê?
Pelo mesmo motivo: porque não havia condições políticas para estados em que
as RMs eram criadas controlarem a ação dos municípios que foram incluídos
nessas regiões. No meio ainda havia um problema pior: eleições a cada dois anos,
primeiro para os estados, depois para os municípios. Ora, eleições a cada dois
anos significavam que, num momento, havia uma relação política provavelmente
Questões abertas do federalismo brasileiro | 225

satisfatória entre o estado e os municípios da região, e, no momento seguinte, as


eleições municipais poderiam destruir essa relação. As eleições municipais poderiam
incluir outras pessoas que não tinham nada a ver com o assunto.
A lei orçamentária em vigor ainda é de 1964, Lei no 4.320. Minha tese é
que precisamos fazer uma reforma orçamentária. Fiz um trabalho com a Fundação
Getulio Vargas (FGV) durante alguns anos, sobre a reforma orçamentária, a úni-
ca que não foi discutida no Brasil. Fizeram um regime de gestão fiscal que não
existe no mundo. Despesas obrigatórias e despesas discricionárias. Não existe isso!
Despesas obrigatórias ocupam 100% do orçamento. Há um critério da Secretaria
do Tesouro Nacional (STN) que dá uma voltinha por cima, para dizer que não é
100%. Porque eles criaram despesas obrigatórias com controle de fluxo. Isso parece
uma coisa absurda. São outros gastos de investimento e de custeio não relaciona-
dos com educação e saúde. Porque só é obrigatório o gasto com pessoal; gastos de
investimentos e outros não são obrigatórios. Assim, criaram o seguinte: empenha-se
o percentual exigido pela Constituição, mas não se gasta. Empenha-se e depois
joga-se em restos a pagar. Não vou entrar nessa discussão do orçamento, que iria
muito longe nessa nossa conversa.
Ipea: Essa é uma conversa muito importante?
Fernando Rezende: Essa discussão é fundamental. O Brasil não vai sair desse
buraco [sem discuti-la].
Ipea: Depois veio a Lei de Responsabilidade Fiscal (LRF) e todo ano mudam-se
as regras por meio da Lei de Diretrizes Orçamentárias (LDO), que tem vigência
anual, ou mesmo aproveitando as leis do Plano Plurianual (PPA).
Fernando Rezende: As regras orçamentárias inseridas na Constituição Federal
de 1988 (CF/1988) foram ótimas. Só não foram aplicadas. O orçamento está
dividido em três fases: i) o planejamento de longo prazo; ii) uma lei de diretrizes
orçamentárias, que corresponderia, mais ou menos, a um orçamento de quatro
anos, se fosse aplicado a sério; e iii) um orçamento anual.
Nada disso foi obedecido, isso é ignorado. Se se pusessem essas regras em
vigor, seria um avanço enorme; não precisaria nem fazer reforma constitucional
nessa área, está tudo ali.
Ipea: O presidente fez uma introdução muito boa, no início da entrevista,
contextualizando vários elementos, chegando até a CF/1988, destacando dois
problemas graves. O congelamento das transferências federativas e a questão da
remuneração dos vereadores em municípios de menos de 300 mil habitantes.
Nessa introdução, o presidente fala da criação das RMs nos anos 1970, que isso
se deu num contexto em que já não havia recursos disponíveis para os estados de
226 | 50 anos de regiões metropolitanas no Brasil e a Política Nacional de Desenvolvimento Urbano

fato assumirem os desafios de gestão e investimento que estavam previstos para a


temática metropolitana.
Muitas avaliações dessa história das RMs veem como positiva aquela iniciativa
dos anos 1970, no sentido de dizer que havia um diálogo entre o desenvolvimento
regional nacional e o desenvolvimento urbano metropolitano, de maneira que, ainda
que estivéssemos num período politicamente mais difícil, autoritário, havia uma
“nuvem” de planejamento esboçada na criação daquelas primeiras RMs. A partir
da CF/1988, há uma mudança nisso, mas, do ponto de vista fiscal-tributário, a
impressão que há é que o mesmo padrão, o mesmo modelo, continuou persistindo,
sem mecanismos de financiamento para o desenvolvimento metropolitano, cuja
criação, agora, foi totalmente colocada na mão dos estados. A União deixou de
ser a responsável por instituir RMs, salvo no caso das Rides3 (Brasília e Teresina),
que envolvem mais de uma Unidade da Federação (UF). Como você avalia essa
história a partir da CF/1988?
Fernando Rezende: Minha avaliação é que essas mudanças introduziram ainda
maiores distorções, maiores problemas na gestão das RMs, por algumas razões que
eu poderia detalhar. Uma das medidas que cresceu violentamente depois do cance-
lamento da proibição de criar e remunerar vereadores de municípios com menos de
300 mil habitantes foi a multiplicação de municípios em estados, principalmente
aqui do Sul e Sudeste. Basicamente do Sul – Rio Grande do Sul, Paraná, Santa
Catarina –, Minas Gerais e outros. Com isso, criaram-se municípios pequenos,
ganhava-se algum apoio político, e com isso se fazia vantagem política para quem
estava na direção naquele momento. Vê-se hoje as estatísticas; num trabalho, há
um tempo, para o Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID), uma colega
lá da FGV fez um levantamento excelente mostrando a distribuição da população
em municípios de pequeno porte, por região, por estado. Há mais municípios com
menos de 20 mil habitantes, hoje, no Brasil – 70%, se não me falha a memória –,
e com menos de 50 mil habitantes, cerca de 90%. Os municípios maiores
têm mais de 100 mil habitantes. Isso criou, inclusive, uma organização mu-
nicipal chamada Frente Nacional dos Prefeitos (FNP), que busca cuidar dos
municípios metropolitanos e de maior porte. Essa situação gerou o seguin-
te problema: nas RMs tradicionais, que abrigam as capitais e os municípios
metropolitanos de maior população, da FNP, municípios com mais de 80 ou 90
mil habitantes, que reúnem o maior número de municípios com sérios problemas
sociais, sem condições orçamentárias de cuidar do problema e, na outra parte, há
70% dos municípios em regiões com pouca população, poucos problemas e muito
dinheiro, por conta do critério de rateio, que não foi alterado também, dos fundos
municipais; isso gera essa situação.

3. Ride – Região Integrada de Desenvolvimento.


Questões abertas do federalismo brasileiro | 227

Isso é um absurdo, uma situação como a brasileira, cuja velocidade da urba-


nização foi uma das mais rápidas do mundo moderno, e isso gerou essa situação:
onde há muita gente, há pouco dinheiro; e onde há muito dinheiro, há pouca
gente. Essa situação virou uma realidade impressionante: onde há problema, não
há dinheiro; e onde há muito dinheiro, não há problema. Claro que estou exa-
gerando na expressão. Existem problemas, mas as dimensões dos problemas são
muito diferentes.
Ipea: Você traz uma vantagem muito importante para esse debate, por toda
a sua trajetória de discussões sobre finanças públicas, que abrange todo o debate
sobre tributação, e o traz para esse contexto federativo. E você observa isso desde
quando entrou no Ipea, pegou todo o período do regime militar e, depois, todo
o processo da Constituinte, fazendo parte de comissões para revisão do aparato
tributário, tendo, inclusive, contribuições mais recentes sobre isso. Em alguns
artigos, você afirma que há países em regime unitário que trabalham melhor tanto
essa questão tributária, quanto do ponto de vista das atribuições e da forma como
se prestam os serviços nas escalas mais locais. Existe essa dimensão, fazer gestão
metropolitana é complexo em qualquer lugar do mundo. Financiar o desenvol-
vimento metropolitano é complexo por uma série de razões. Seria interessante se
você pudesse recuperar um pouco esse debate, de quais são esses limites, quais são
essas dificuldades, no sentido mais amplo, de atuar em RMs, e as especificidades
de se trabalhar no campo metropolitano aqui no Brasil, também do ponto de
vista institucional, aproveitando essa sua visita histórica que pegou esses períodos
importantes. Quais suas impressões sobre esses desafios, quais ainda persistem e
quais seriam os novos, a partir das exigências que hoje se tem nas grandes cidades
e metrópoles?
Fernando Rezende: O pano de fundo disso tudo está na situação já mencio-
nada. RMs e metrópoles, em geral, nunca foram objeto de discussão política no
Brasil. Nem federalismo. Foi tudo tratado só no ambiente interno, no plano dos
governos e das medidas constitucionais. Mais recentemente, criaram uma outra
besteira: estados podem instituir RMs. E criaram um estatuto das metrópoles.
Ora, não tem condições no Brasil de os estados criarem RMs e muito menos de
fazê-las funcionar, porque municípios e estados são entes que não se entendem.
Já mencionei aqui o fato das diferenças nas regras eleitorais, e posso mencionar
outros, mas eu acho que as limitações são de três naturezas. No passado, criaram
a ideia também de comissão de RMs, CNPU.4 Depois, o grupo de trabalho
interfederativo, que também não tinha condições de funcionar. E um fundo me-
tropolitano de desenvolvimento.

4. Comissão Nacional de Regiões Metropolitanas e Política Urbana – Decreto no 74.156, de 6 de junho de 1974.
228 | 50 anos de regiões metropolitanas no Brasil e a Política Nacional de Desenvolvimento Urbano

Agora, as limitações incluem, primeiro, a descentralização fiscal. A descen-


tralização fiscal foi um fato muito importante na Federação brasileira, junto com
os fatores que mencionei anteriormente. Os estados se tornaram cada vez mais
incapazes de articular as ações desenvolvidas dentro do território de uma RM.
Esse é um fato que vale a pena ser explorado. Uma outra limitação tem a ver com
o tema das disparidades no contexto de autonomia federativa. Já mencionei alguns
dados sobre isso. Quer dizer, forma-se uma RM, mas os integrantes da RM são
unidades inteiramente desiguais, com disparidades, sejam fiscais, sejam econômicas
ou institucionais. Não há como administrar isso num contexto onde o estado não
tem como articular os componentes de uma RM, seus municípios, principalmente.
Existe a questão institucional já mencionada rapidamente.
Fez-se, lá atrás, uma lei de cooperação intergovernamental, que não funcio-
na, obviamente, porque não há como o estado impor uma lei em condições de
administrar e de gerir. E mais recentemente, essa figura no Estatuto da Metrópole,
que é outra bobagem, porque, no federalismo brasileiro, o estado não tem como,
já comentei, administrar uma metrópole.
Agora, tudo tem a ver com um fato que comentei no início: o federalismo
brasileiro nunca foi discutido politicamente, foi imposto de cima para baixo.
Não foi uma Federação como a norte-americana nem como a Argentina, onde os
antigos estados e províncias discutiram profundamente a questão do tratamento
e da coordenação metropolitana. No Canadá também.
Não existe modelo de federalismo no mundo que possa ser replicado.
Eu acompanhei durante mais de dez anos os debates do Forum of Federations.
Nessa época, viajei por mais de dez países, acompanhando os eventos sobre fede-
ralismo. Não existe um caso como o brasileiro, todas as outras Federações foram
discutidas politicamente. Na Índia, no Canadá. A única diferença é a Federação
alemã, onde, no pós-Guerra, os Estados Unidos impuseram um regime de fe-
deralismo que é único nesse universo. Na Federação alemã, quem manda são os
governos estaduais; o Senado não é eleito pelo povo, é nomeado pelos governos
dos estados. Cada caso é um caso, não existe figurino único.
No Brasil, há essas particularidades que nós já tínhamos mencionado no
início, todas negativas. Fazer o quê? Vamos discutir uma reforma federativa?
Eu não vejo condições de se discutir uma reforma federativa no Brasil hoje, no âmbito
constitucional nem no infraconstitucional. Tudo aquilo que já comentamos – as
disparidades entre municípios são enormes e os recursos que são repartidos entre
estados e municípios não têm nenhuma relação com as necessidades da população
que vive em cada território. Principalmente a questão das responsabilidades sociais
do estado, como já comentei. Esse é um problema com que o Ipea tem de lidar
também; acredito que seja importante tomar um partido.
Questões abertas do federalismo brasileiro | 229

Ipea: Temos um problema político de empoderamento local, sem muitas


vias de solução. Os municípios têm esse padrão de desigualdade gigantesco.
Às vezes, municípios vizinhos têm uma condição financeira completamente
diferente. No caso de municípios com royalties, por exemplo, um está no céu
e o vizinho, ao lado – porque a linha de limite do município não alcança a
plataforma continental – vive, talvez, com um décimo da capacidade de gasto
per capita. Cooperar nessas condições, como você falou, fica impossível.
Nesse cenário, é difícil enfrentarmos essa questão política, porque simples-
mente a base municipal não quer fazer essa discussão. Você vê alguma possibilidade
de um arranjo nos mecanismos de financiamento ou estratégias, por exemplo, de
fundos ou na própria atuação do governo federal na hora de repassar os recursos
de transferência voluntária? Você enxerga alguma possibilidade de avançar nesse
campo? Ou de se constituir um fundo nacional, como já se pensou, com contri-
buição dos estados, dos municípios e da União? O que você pensa sobre esse tipo
de arranjo, tendo em vista a dificuldade política em se mexer mais estruturalmente
na Federação e nesse empoderamento municipal?
Fernando Rezende: A primeira coisa que se precisa pôr na frente desse debate
é a discussão do federalismo fiscal brasileiro, que, como eu disse, foi sendo des-
truído, a começar pelo congelamento do rateio dos fundos constitucionais – essa
é a primeira peça desse xadrez. Não existe nenhum motivo para se congelar os
rateios, foi uma besteira. Claro, na época, os municípios e os estados menores
queriam manter o critério de rateio para poder continuar ganhando mais espaço,
financiamento. Mas, obviamente, isso, com o tempo, é modificado com a
dinâmica socioeconômica da população. Então, isso criou uma situação cada vez
mais díspar entre o que eu mencionei antes, de onde é que estão os problemas
e onde estão os recursos para solucionar esses problemas.
Vejam-se as estatísticas que foram feitas no passado, as disparidades financeiras
entre os entes de uma Federação. Acho que esse é o primeiro passo. Agora, como
é que se enfrentará esse debate?
Na Constituição, houve uma reforma inclusive no contexto das lutas políti-
cas; no momento, não vejo muito espaço para isso. Mas há espaço para discutir o
problema e propor algumas soluções. Esse, eu acho, é o primeiro caminho e ponto
que precisa ser observado.
Dentro dessa mesma discussão do federalismo fiscal, voltamos lá atrás, em
como esse federalismo fiscal foi construído, naquele contexto que mencionei antes,
das distorções federativas, e como é que a gente poderia pensar em inserir, nessa
reforma que está sendo chamada de novo arcabouço fiscal, uma discussão sobre
isso. Porque não vejo nesse arcabouço fiscal também nada que tenha condições de
funcionar. Nós temos que discutir isso, inclusive levando em conta as questões que
230 | 50 anos de regiões metropolitanas no Brasil e a Política Nacional de Desenvolvimento Urbano

estão sendo discutidas no Supremo Tribunal Federal (STF), que é outro problema
da Federação brasileira: a independência dos poderes foi abandonada.
Ipea: Em algumas situações, fica muito difícil administrar essa situação da
forma como o próprio Judiciário atua. A União quer punir um estado ou muni-
cípio por alguma indisciplina fiscal ou dívida, mas o município ou estado recorre
ao Judiciário, alegando que pagar a União ou ter repasses de fundos arrestados
para pagar compromissos irá prejudicar suas políticas sociais. E ganham a disputa
no STF. Isso acaba também estimulando essas situações de inadimplência que, às
vezes, nem se justificam. Acaba por se gerar um protagonismo do Judiciário, por
falta de uma boa regulamentação da parte do Legislativo. Por um lado, as regras
não são claras e, por outro, o Poder Judiciário pode pautar-se por interpretações
que teriam bases legais menos sólidas para tomar suas decisões, como nesse caso.
Fernando Rezende: Essa dificuldade cria problemas de toda natureza. A notícia
de hoje de manhã, a multiplicação dos casos de dengue e chikungunya no Rio de
Janeiro, é uma coisa absurda. Discute-se, há anos, uma política nacional
de saneamento e não se consegue chegar a uma conclusão, porque não há acordo
sobre uma política nacional de saneamento básico. Cada caso é visto da sua
perspectiva, equivocadamente.
São três políticas fundamentais para a Federação atender às necessidades
das pessoas de mais baixa renda; saneamento urbano é uma delas. O transporte
metropolitano precisa ser integrado. Durante a pandemia, nós vimos mais essa
questão fora do lugar. A questão da educação, também, está posta de uma maneira
que não faz muito sentido. Tem a ver com o desequilíbrio na repartição dos recur-
sos entre os municípios, que são os principais responsáveis pela educação básica.
E a questão da saúde. O Sistema Único de Saúde (SUS) foi pioneiro. Criaram
primeiro na Inglaterra a política de atenção integral à saúde. No Brasil havia
um pessoal lá no Rio de Janeiro que estudava isso; copiou-se o regime inglês.
Funcionou durante um certo período, de forma relativamente satisfatória, e depois,
entrou no buraco. Na época da pandemia, os estados tentaram resgatar um pouco
do seu protagonismo nessa área. Mas aí temos outra coisa que não se discute no
Brasil: as mudanças decorrentes das alterações demográficas e socioeconômicas.
Onde está o problema? Onde está a pobreza? Isso tudo ninguém sabe mais, essas
coisas não são estudadas. A questão que eu proporia para debate é a seguinte:
como essas transformações acarretaram todo o problema que as pessoas no Brasil
estão vivendo, e o que precisa mudar? Não é uma coisa simples.
Novamente, fizeram outra coisa no Brasil que não existe em outros regimes
federativos. O orçamento, no início, na sua aprovação, tem sua execução já entre-
gue ao Judiciário, ao Legislativo e ao Executivo. Há uma regra de distribuição no
ano. Pega-se o total do orçamento e divide-o em duodécimos, e cada um executa
Questões abertas do federalismo brasileiro | 231

o seu pedaço. Não é assim em outras federações. O orçamento é uma coisa só, é
da Federação, não há orçamento para os poderes de uma Federação. Mas, enfim.
Estamos aí, como se diria antigamente, num “mato sem cachorro”.
Ipea: Nesse “mato sem cachorro”, há muita dificuldade para encontrar-se
uma solução, especialmente nas RMs, tomada a questão da autonomia municipal.
Por mais que, em tese, saibamos que não existe autonomia absoluta, ela acaba
sendo usada para restringir as possibilidades de articulação interfederativa, que é
agravada pelo desnível, pelas desigualdades entre os municípios.
Temos municípios metropolitanos, que são esses que você já referiu, que acu-
mulam problemas sociais e não têm condições fiscais de enfrentar esses problemas,
que são vizinhos de outros municípios que têm eventualmente maior dinamismo,
e, neles, a terra é cara, habita uma população de nível de renda maior. Em toda
RM, identifica-se um arranjo desse: o centro metropolitano; um ou dois muni-
cípios que têm um padrão de renda mais alto, que acabam apresentando menos
problemas; e um conjunto grande de municípios que não têm renda, têm uma
arrecadação municipal baixa e acumulam muitos problemas. Considerando-se
a forma como o arranjo da distribuição de recursos fiscais é feita no Brasil, é difícil
imaginar, no curto prazo, uma saída que não passe por um protagonismo maior da
União, especialmente se pensando no financiamento do desenvolvimento urbano
e metropolitano. Qual o papel da União nesse “mato sem cachorro”? O que a
União deveria estar fazendo e eventualmente não está, uma vez que essas reformas
estruturais parecem muito difíceis?
Fernando Rezende: Eu acho que o meu papel seria tentar pôr em debate a
discussão dos critérios de rateio dos fundos constitucionais. Existe o fundo constitu-
cional dos estados, dos municípios, e já houve, também, um fundo metropolitano,
em alguns momentos, mas que saiu também do relógio. Essa é uma discussão fun-
damental, quer dizer, qual é o papel do governo federal na tentativa de equalizar os
recursos que são necessários para tratar dos problemas mais sérios que a Federação
enfrenta; nesse caso, os problemas sociais, um tema extremamente importante
nessa discussão de agora. Então, porei em discussão. Não todas as questões fede-
rativas, mas os fundos, que têm uma história já antiga, antecedem à Constituinte.
Aí há uma história, uma experiência que poderia ser avaliada e discutida. Agora,
não é só isso. Isso pode ser o ponto de partida para tratar da questão do financia-
mento das metrópoles brasileiras. De pronto, eu não teria resposta. Tenho mais
perguntas do que respostas. Acho isso muito importante; ao invés de tratar das
respostas, precisamos primeiro tratar das perguntas. O que precisa ser analisado e
discutido? E como tratar do assunto?
Ipea: Uma questão muito importante nas RMs é a da mobilidade. Os mu-
nicípios não têm a menor condição de fazer frente aos investimentos que seriam
232 | 50 anos de regiões metropolitanas no Brasil e a Política Nacional de Desenvolvimento Urbano

necessários para enfrentar a questão da mobilidade. Os governos estaduais, tam-


pouco. Os estados do Rio de Janeiro, de Minas Gerais, do Rio Grande do Sul,
todos têm índices fiscais muito ruins, com pouca capacidade de investimento.
Para aquelas RMs que de fato a União entende serem espaços metropolitanos que
demandam investimentos, deveria haver uma forma de fazer com que municípios
e estados cooperassem a partir de algum estímulo. Se a União não comparecer
com recursos para, de alguma maneira, viabilizar a ação conjunta ou criar alguma
forma de captação de recursos da iniciativa privada, ficará difícil para que estados
e municípios colaborem mais. Por exemplo, durante a pandemia de covid-19, em
Belo Horizonte, um determinado município impedia que outros ônibus atravessas-
sem o seu território. Eram ônibus que levavam pessoas para atendimento médico
em hospitais em Belo Horizonte. A prefeitura restringia a passagem de ônibus
pelo município, afirmando sua autonomia municipal e defendendo que a gestão
do território do município, pela Constituição, era dele. Outro problema comum
ocorre quando os municípios não querem participar da integração do transporte
metropolitano, que é uma questão que afeta diretamente a vida das pessoas, tanto
em termos de custo do transporte quanto da logística, o que as obriga a fazerem
baldeações. Parecer ser possível imaginar os municípios aderindo a um transporte
metropolitano integrado somente se alguém apresentar uma solução financeira
que não dependa deles.
Fernando Rezende: Mas tem uma pergunta! Sempre digo que deveríamos co-
meçar pela pergunta e não pela resposta. Como é que se responde a uma pergunta
dessa natureza? Quais são os problemas? Como é que discutimos as alternativas?
Por aí se pode chegar perto de alguma resposta, mas não é fácil, porque, como
mencionado, entra a questão da autonomia municipal, e, se não houver alguém
em cima, o dinheiro de cima para organizar, não vai andar.
Ipea: Uma impressão deixada ao longo da conversa é que acabamos por
discutir as relações de solidariedade entre os municípios e os entes federativos.
Há países não federativos onde há mais solidariedade entre as instâncias do que no
Brasil, uma Federação que pouco consegue oferecer. Há algo de particularmente
curioso na discussão, olhando para a frente, porque está-se discutindo uma reforma
tributária. Embora seja um pequeno pedaço desse grande arcabouço de coisas que
faltam, como você enxerga as oportunidades dessa reforma tributária, muito embora
seja mais provável que várias oportunidades de ajustes estejam sendo perdidas por
essa proposta de reforma?
Fernando Rezende: Eu não vejo nenhuma vantagem nessa proposta de re-
forma tributária; acho que ela está andando para trás, ao invés de ir para a frente.
As relações econômicas mudaram no mundo, com o avanço da chamada economia
digital. Então, o território deixou de ser a questão fundamental para a cobrança
Questões abertas do federalismo brasileiro | 233

de impostos. Essa proposta de reforma ainda se assenta na velha ideia do impos-


to sobre o valor adicionado, e eu vejo muitos defeitos nela. Eu preferia que não
fosse aprovada e se discutissem, primeiro, os problemas que o Brasil enfrenta no
campo da tributação, no meio dessa mudança nas relações econômicas internas e
externas. Porque, hoje, por exemplo, as grandes empresas, e até algumas meno-
res, podem transacionar facilmente na economia digital, usando as possibilidades
que a computação fornece. Ninguém está estudando isso. É a mesma coisa: qual
é o problema? Para essa pergunta eles trazem uma resposta apoiada no passado.
Conheço a maior parte do pessoal que está trabalhando nisso, já me indispus com
vários que trabalharam comigo na reforma constitucional na época do Fernando
Henrique Cardoso. Serra me chamou para uma comissão para discutir mudanças
na tributação. Estamos parados no mesmo sinal vermelho, que não nos deixa ir
para a frente.
Ipea: Você não acha que há alguém com alguma proposta interessante hoje
nessa direção?
Fernando Rezende: Não, nessa área tributária eu não vejo.
Ipea: Parece ser um desafio enorme. Não conseguimos “arranhar” esse assunto
desde 1988. O último debate profundo mesmo foi o de 1988. De lá para cá, não
houve avanço praticamente nenhum?
Fernando Rezende: A minha tese, eu já falei, é que precisávamos discutir, pri-
meiro, a reforma orçamentária. Como se distribuem os gastos, como se distribuem
os recursos, e que mudanças precisam ser feitas para que os recursos sejam mais bem
distribuídos e atendam de fato às necessidades da população que precisa do Estado
para ter acesso a empregos de qualidade. O que eu estou vendo agora, olhando para
a frente, é o seguinte: qual é o futuro dos jovens brasileiros cuja família não tem
renda para financiar o acesso a escolas privadas de qualidade? Esse jovem terá que ir
para as escolas públicas, que perderam muita qualidade, as universidades públicas.
E esse jovem terá emprego onde? Nas economias desenvolvidas? Ou ficará para
trás? Eu acho que ficará para trás. Então minha pergunta é: qual será o futuro do
Brasil se os jovens brasileiros não tiverem condições de acessar empregos de boa
qualidade, em trabalhos que exijam esse tipo de qualificação? Mas, enfim, essa é
uma questão paralela.
Parte III

Agendas Transversais: mudanças


climáticas e transformação digital
CAPÍTULO 13

AS METRÓPOLES BRASILEIRAS NO CONTEXTO DAS MUDANÇAS


CLIMÁTICAS: ENTREVISTA COM CARLOS NOBRE1
Entrevistado
Carlos Nobre

Entrevistadores2
Marco Aurélio Costa
Laurita Hargreaves-Westenberger
Gustavo Luedemann
Armando Palermo Funari

Ipea: Os trabalhos que tratam de governança metropolitana/gestão metropolitana


são muito autocentrados e voltados para a dimensão institucional: os arranjos
institucionais; a questão da governança interfederativa; a forma como os muni-
cípios, os estados e a União se articulam para produzir os efeitos desejados para a
questão metropolitana. Contudo, nesta avaliação dos cinquenta anos [das regiões
metropolitanas], ao contrário de outros momentos em que fizemos um balanço
com parceiros estaduais, resolvemos fazer um exercício diferente. Estamos fazendo
uma avaliação um pouco mais crítica do que habitualmente se fala sobre o tema e
escolhemos as dimensões sociais e ambientais, a partir de uma perspectiva urbana,
para lidar com a questão do meio ambiente urbano – trazendo um enfoque para
a questão ambiental. Pedimos essa intermediação para contatá-lo – porque não é
possível falar em desenvolvimento urbano e metropolitano sem entender os pro-
cessos que estão em curso e que afetam a vida na cidade e que afetarão mais ainda,
demandando esforços para lidar com as adaptações das mudanças, que são cada
vez mais visíveis. Então, consideramos que toda essa discussão não esteja tradicio-
nalmente presente nas reflexões acadêmicas da área de planejamento urbano; claro
que há iniciativas, mas, quando olhamos para a produção do encontro bianual que
fazemos na Associação de Pós-Graduação em Planejamento Urbano e Regional
(Anpur), o tema é tratado de forma marginal. [Neste trabalho], queremos colocá-lo
no centro. Não adianta fugir ou fingir que não há nada acontecendo. Temos um
processo em curso, e isso diz respeito ao cotidiano na vida urbana, e todas as tensões
que existem entre a questão social e a ambiental precisam ser abordadas.

1. Entrevista realizada em 18 de abril de 2023, às 11h, via chamada de vídeo.


2. Os entrevistadores são indicados no texto como Ipea.
238 | 50 anos de regiões metropolitanas no Brasil e a Política Nacional de Desenvolvimento Urbano

Ipea: Você sempre defendeu uma agenda de adaptação às mudanças climáticas,


e que esta deveria tratar também das medidas de mitigação, tanto na perspectiva
de aumento da resiliência quanto na mitigação dos efeitos das mudanças climá-
ticas. Como você acredita que deva ser ponderada essa conjugação/relação entre
as medidas de adaptação, voltadas para o aumento da resiliência, e as medidas de
mitigação – tidas como radicais – para atacar o cerne da relação entre os impactos
ambientais e a produção material? A ideia dessa pergunta seria ouvir um pouco
mais da sua perspectiva, do seu trabalho, sobre a importância de unir essas medidas
e qual seria a sinergia entre elas.
Carlos Nobre: Em primeiro lugar, é importante destacar que atingir os desa-
fiadores objetivos do Acordo de Paris estabelecidos e reforçados na Conferência
das Nações Unidas sobre Mudança do Clima (COP26)3 de Glasgow, de impedir
que a média de elevação da temperatura global ultrapasse 1,5 oC, é sem dúvida
um dos maiores desafios que a humanidade já enfrentou. Alguém pode falar que
não, mas sim as pandemias, pois o risco delas seria muito maior. Contudo, hoje,
com o avanço da ciência, as pandemias não são um risco do tamanho que é o
risco climático, se nós não tivermos sucesso. Então, é lógico que essas metas de
não deixar a temperatura global passar de 1,5 oC – visto que as temperaturas nos
continentes já atingiram uma elevação de 1,5 oC-2,0 oC, e nos oceanos, de 0,88 oC –
são os maiores desafios, na minha opinião.
Nós continuamos a aumentar as emissões. Houve uma pequena redução
de 5% a 7% durante a pandemia (2020), por causa da diminuição da queima de
combustíveis fósseis – durante os lockdowns.4 Mas depois, em 2021, aumentou,
e, em 2022, o setor de energia aumentou 1%; o setor de usos da terra ainda não
produziu esse número, mas não deve ter havido nenhuma diminuição; e, no setor
da agricultura, não deve ter havido nenhuma diminuição também. A agricultura
até aumentou as suas vendas em 2022; então, não acredito que tenha havido uma
redução. Provavelmente, 2022 baterá o recorde de aumentos de emissão, ultra-
passando os valores pré-pandemia de 2019. Ainda que a velocidade de mudança
para as energias renováveis esteja crescendo no mundo – e estão crescendo muito
rapidamente –, ainda assim, é um percentual muito pequeno. Por exemplo, quase
70% das emissões de gases de efeito estufa são provenientes da queima de com-
bustíveis fósseis, carvão, petróleo e gás natural, constituindo um grande desafio.
O Acordo de Paris estabeleceu a necessidade de reduzir em 50% as emis-
sões até 2030. Por que é tão importante reduzir em 50% as emissões até 2030?
Algumas discussões, inclusive no mundo científico, dizem que é impossível reduzir

3. COP é a sigla em inglês para Conference of the Parties United Nations Framework Convention on Climate Change (UNFCCC).
4. Medidas restritivas de circulação de pessoas adotadas em diversas cidades do país e do mundo, com intuito de
retardar a propagação do vírus SARS-covid-19.
As metrópoles brasileiras no contexto das mudanças climáticas | 239

em 50% as emissões até 2030 e zerar as emissões líquidas até 2050. Apostam no
desenvolvimento de novas tecnologias, de modo que as emissões líquidas continuem
aumentando até 2030 e, depois, sejam reduzidas lentamente até 2050, e haja enorme
remoção de CO2 da atmosfera até o final do século, com técnicas de geoengenharia.
Nesta técnica chamada de overshooting em inglês, a elevação da temperatura chega-
ria a 2,3 oC e até a 2,5 oC até 2050, e seria reduzida a 1,5 oC até 2100. O grande
problema dessa estratégia é que existem inúmeros riscos associados a continuar
permitindo o aquecimento do planeta: os chamados pontos de não retorno; em
inglês, tipping points. Por exemplo: mesmo com 1,5 oC de aquecimento, nós iremos
perder talvez mais de 100 bilhões de toneladas de gás carbônico e de metano, equi-
valente a mais de 100 bilhões de toneladas de gás carbônico e metano no permafrost.
Permafrost é o solo congelado há milhões e milhões de anos na Sibéria, no Alasca
e no Canadá (altas latitudes no Polo Norte). A perda desse carbono – na forma de
gás carbônico e metano – dificultará a manutenção da elevação da temperatura de
1,5 oC. Outro exemplo: eu tenho feito, há mais de 35 anos, pesquisas mostrando
esse risco da Amazônia, do chamado ponto de não retorno da Amazônia (tipping
point).5 Ultrapassando 1,5 oC e chegando a 2 oC, em conjunto com a continuação
dos desmatamentos, na Amazônia, existe um enorme risco de “savanização” do bio-
ma – isto é, de ele se tornar um ecossistema aberto como as savanas tropicais, mas
bastante degradado. Com isso, podemos perder mais de 200 bilhões de toneladas
de gás carbônico provenientes da perda de biomassa da floresta. Estou dando dois
exemplos de muitos pontos de não retorno. Há muitos mais.
O aquecimento dos oceanos pode levar a uma gigantesca perda de metano
que está no fundo dos oceanos. Há muitas nuvens baixas em cima das águas frias
na costa do Pacífico da América do Sul e em vários outros lugares. Essas nuvens são
formadas exatamente porque há água mais fria naquela área. Essa água oceânica
mais fria faz o vapor d’água condensar e, por serem baixas, refletem aproximada-
mente 30% a 50% da radiação solar incidente. O aquecimento do oceano leva
ao desaparecimento dessas nuvens, o que leva ao aquecimento de toda a região,
uma vez que o oceano reflete apenas 6% da radiação solar. Esses são apenas alguns
exemplos dos tipping points. Eu poderia passar horas dando outros exemplos.
Aumentar a média da temperatura global acima de 2 oC-2,5 oC aumenta
muito o risco desses pontos de não retorno. Diante deste cenário, não podemos
esperar até 2050 para reduzir e zerar as emissões líquidas de CO2.
Por que emissões líquidas? Porque algumas emissões sempre vão continuar.
Por exemplo, é muito improvável que nós humanos, que já somos 8 bilhões, iremos
diminuir o consumo de carne bovina – responsável pela grande emissão de um
poderoso gás de efeito estufa, o metano, através da fermentação entérica no boi.

5. Literalmente, ponto da ponta, limite antes do transbordamento ou queda, ou pontos de não retorno.
240 | 50 anos de regiões metropolitanas no Brasil e a Política Nacional de Desenvolvimento Urbano

Aliás, o consumo de carne bovina está aumentando mundialmente. É um fator


cultural muito significativo. Conforme os países pobres reduzem o grau de pobreza
e alcançam condições melhores de vida, o padrão de consumo tende a se modificar.
Por exemplo, mais de 300 milhões de chineses atingiram a classe média, aumentan-
do muito o consumo de carne bovina na China. A China é o maior consumidor
de carnes suínas e de frango no mundo. Esse crescimento no consumo de carne
é difícil de ser revertido, principalmente quando envolve mudança de hábitos
alimentares da população mundial. É muito difícil imaginar que até 2050 iremos
reduzir as emissões da agricultura e da pecuária. O consumo de carne, portanto, é
um aspecto relevante para reduzir e zerar as emissões líquidas (net zero).
Essas emissões difíceis de zerar necessitam que haja não apenas redução das
emissões, mas uma remoção do gás carbônico, principalmente, que continue para
o resto do século e, mais adiante, no século XXII. Esses exemplos demonstram a
urgência da questão climática e os grandes desafios enfrentados pela humanidade.
Não dá para esperar 2050 e aí começar a fazer todas as reduções e remoções, por
conta dos riscos que mencionei.
O recém-lançado sumário do sexto relatório do Painel Intergovernamental
sobre Mudanças Climáticas (Intergovernmental Panel on Climate Change – IPCC),
cujos relatórios foram lançados em 2021 e 2022, faz uma avaliação acerca deste
tema e aponta para o aumento das emissões até 2025 e, com uma janela de apenas
cinco anos, para a redução das emissões em 50%. Todos estão considerando isso
muito difícil; muitos estão considerando isso impossível. E qual o problema da-
queles que estimam que isso é impossível? Aqueles que consideram isso impossível
estão começando a criar um movimento mundial, inclusive dentro da comunidade
científica, que é – como mencionado antes – o chamado overshooting.6 Eles divulgam
que não iremos conseguir controlar as emissões, e que a temperatura média global
atingirá um aumento de 2,3 oC-2,5 oC em meados do século; e que, a partir da
segunda metade do século, as tecnologias de remoção do gás carbônico na atmosfera
se tornarão muito mais viáveis em escala. Essas tecnologias consistem em filtrar o
ar, realizar reações químicas com a molécula de CO2 que produzam, por exemplo,
calcário. Há 3,5 bilhões de anos, quando surgiu a vida na terra, tínhamos 80% de
gás carbônico na atmosfera. Com o surgimento das cianobactérias e a fotossíntese,
grande parte desse carbono virou compostos geológicos, fósseis, calcários etc. Hoje,
a tecnologia é capaz de transformar até o CO2 em combustível, por meio de reações
químicas. A engenharia conseguiu sintetizar compostos; contudo, esse processo
custa em torno de US$ 200,00 a US$ 500,00 por tonelada, o que corresponderia
a um grande risco econômico: se os combustíveis fósseis fossem substituídos a esse

6. Hipótese ou corrente que estipula uma tolerância a um aumento superior 1,5ºC da temperatura média global, en-
quanto são implementadas tecnologias de sequestro de carbono, promovendo uma redução da concentração de CO2
e, consequentemente, das temperaturas.
As metrópoles brasileiras no contexto das mudanças climáticas | 241

preço, imagine o aumento do preço dos alimentos. Então, essa tecnologia serve para
outros usos. Espera-se que esse custo possa diminuir com o aperfeiçoamento da
tecnologia, mas, ainda assim, seria difícil deixar o overshooting. Como eu mencionei,
muitos defendem esse overshooting, e o risco de ultrapassarmos a temperatura média
global de 1,5 oC é enorme.
Muitos estudos têm demonstrado que a elevação da temperatura média em
1,5 oC e zerar as emissões líquidas até 2050 já seria perigoso, uma vez que a tempe-
ratura em cima dos continentes chegaria a 2 oC-2,5 oC e os oceanos se aqueceriam
lentamente. Mesmo o cenário de 1,5 oC levaria ao derretimento lento do manto de
gelo da Groenlândia e ao aumento do nível do mar em 3 metros. O derretimento
do manto corresponderia a 50% do derretimento do gelo e a 50% da expansão
térmica. Se todo o gelo da Groelândia fosse derretido, seriam 7 metros de aumento
do nível do mar somente por conta do derretimento, sem contar o aumento do
nível por expansão térmica, mas isso não ocorre no cenário de 1,5 oC. Importante
destacar que, mesmo se fôssemos diminuindo a temperatura novamente, isso não
levaria à recomposição completa do gelo da Groelândia. Contudo, levaria milhares de
anos para formar novas montanhas de gelo na Groelândia, que chegam a até 3 km.
Mesmo o aumento da temperatura média global em 1,5 oC provocaria mudan-
ças irreversíveis como estas e a extinção de espécies. Milhares, dezenas de milhares
de espécies seriam extintas, muitas de origem oceânica. Por isso, eu e vários outros
cientistas não apoiamos o overshooting. Nós temos feito manifestações muito claras
de lutar o máximo possível para vencer esse desafio de reduzir em 50% as emissões
até 2030 e zerar as emissões líquidas antes de 2050. Acho que respondi um pouco
à primeira pergunta do que é tão radical nessas metas de mitigação e redução de
risco, e o porquê de não podermos fugir delas. Mas não falei da adaptação ainda.
Ipea: Parece que esse encadeamento deixa muito claro e vivo que essa sequ-
ência de eventos requer algum tipo de ação preparatória. Se você puder, comente
um pouco sobre isso.
Carlos Nobre: Infelizmente, o que tem acontecido é o seguinte: a maior par-
te das comunicações científicas muito marcantes, produtivas, sobre os riscos do
aquecimento global, vem dos relatórios do IPCC. O relatório do IPCC é inter-
governamental, e todo o seu sumário (summary for policymakers – SPM) tem que
ser aprovado pelos governos. Eu mesmo participei de vários relatórios do IPCC.
O relatório desenvolveu uma linguagem de comunicação da quantidade de evidência
e grau de consenso científico, ao longo do tempo, em torno da noção de maior e
menor confiabilidade dos achados. Nos primeiros relatórios do IPCC, não foram
inseridas as projeções em que havia apenas 10% de probabilidade de o evento ocor-
rer; e, portanto, determinada informação era deixada de fora do SPM. Poderia ser
mencionada, mas nas milhares de páginas dos relatórios, e não no SPM, que é o que
242 | 50 anos de regiões metropolitanas no Brasil e a Política Nacional de Desenvolvimento Urbano

é lido. A menção à informação era vaga. Podemos citar como exemplo a projeção
em torno do desaparecimento do gelo no oceano Ártico em decorrência do aqueci-
mento global. O relatório do IPCC de 2003 afirmava que este evento só ocorreria
no século XXII. Hoje, no sexto relatório, o IPCC aponta que o gelo desaparecerá até
antes de 2050, no fim do verão. Todo o oceano Ártico ficará sem gelo por semanas e
até por mais de um mês antes de 2050. Esse fenômeno conjuga fatores relacionados
ao aquecimento global e à variabilidade natural do clima. Esta variabilidade pode
conduzir a um período de ar quente para o Ártico que, em conjunto com o aqueci-
mento global, levaria ao derretimento total do gelo. O sexto relatório do IPCC traz
com muita clareza que o aumento dos extremos climáticos é de responsabilidade
do aquecimento global. A frequência com que os eventos extremos (ondas de calor,
secas pronunciadas, chuvas intensas, chuvas prolongadas e aumento das ressacas) está
aumentando hoje se atribui claramente ao aquecimento global, e não à variabilidade
natural. Houve um ou outro evento que o IPCC previu que ainda não aconteceu,
mas, na grande maioria dos casos, o IPCC estava atrasado em relação à frequência e à
intensidade que alguns eventos atingiram, como o gelo do Ártico, que ocorreu vinte
anos antes. Esses eventos se anteciparam em relação à previsão do IPCC. Portanto,
muitas das ações de adaptação pautadas nas mensagens que o IPCC comunicava
foram insuficientes para conter os efeitos dos extremos climáticos.
Atualmente, o aumento da temperatura média global é de 1,1 oC-1,15 oC;
de 0,88 oC nos oceanos; e de 1,5 oC-1,6 oC nos continentes. E tudo isso que vi-
mos já aconteceu (o aumento da frequência de extremos). Quando o aumento da
temperatura média global atingir 1,5 oC, os continentes atingirão um aumento
da temperatura média de 2 oC-2,5 oC maior; e os oceanos, em muitos séculos, de
1,5 oC. Esses aumentos da temperatura média provocarão uma frequência ainda
muito maior dos eventos extremos. Por quê? A evaporação da água dos oceanos
aumenta exponencialmente quando a temperatura da superfície passa de 26,5 oC.
Por que não temos áreas com furacões no Atlântico Sul, mas temos furacões no
Caribe? A área de oceano que atinge essa temperatura no Atlântico Sul é muito
pequena, somente no Nordeste brasileiro. Já no Caribe, há uma imensa área que
recebe um sistema de baixa pressão que vem da África e vem evaporando uma
massa imensa de água, e é essa água evaporada que gera as nuvens, e, quando
começa a formar gotículas de água, ela condensa, libera calor que foi usado para
a evaporação, chamado calor latente, e gera uma área de baixa pressão. É por essa
e por outras razões que não existem furacões onde não há essas altas temperatura
na superfície, como as do Caribe. Com o aumento da temperatura sobre os oce-
anos, como quando o aumento dos oceanos chegar a 1,5 oC, o que ainda levará
séculos, haverá esse fenômeno com frequência em outras regiões onde ele não
ocorre hoje, principalmente em locais tropicais, subtropicais e, até mesmo, no
verão, em latitudes médias no Hemisfério Norte. Isto tudo já acontece, sabemos
As metrópoles brasileiras no contexto das mudanças climáticas | 243

que ocorrerá com maior frequência, e podemos perguntar: estamos, de fato, bus-
cando ações de adaptação? Esses fenômenos são de grande escala, não há como
impedir a sua ocorrência.
Grande parte dos países tem poucas políticas efetivas de adaptação, e nor-
malmente elas se encontram nos países desenvolvidos. Nos Estados Unidos, em
Hamburgo (Alemanha) e na Holanda (Países Baixos), por exemplo, as zonas costeiras
têm recebido grande atenção, com políticas de adaptação para conter as ressacas.
A ressaca é puramente a transferência de energia cinética do vento para o oceano.
Ele perturba o oceano, que transporta esse efeito como uma onda de gravidade que
se quebra ao chegar na costa. Por que a frequência de ressacas está aumentando?
As tempestades em cima dos oceanos estão aumentando a intensidade do fenôme-
no porque tem mais vapor d’água na atmosfera, devido à maior evaporação dos
oceanos. Por exemplo, os portos na Holanda e em Nova York recebem inúmeras
políticas de adaptação para diminuir o risco de ressacas. Neste contexto, são poucas
as políticas de adaptação, de aumento da resiliência de todos os sistemas sociais,
econômicos, humanos, agrícolas, em países em desenvolvimento; no Brasil, é quase
zero. No Brasil, foi desenhada uma política nacional de adaptação, que chegou a
ser publicada em 2016 pelo Ministério do Meio Ambiente. Contudo, a política
tornou-se apenas um documento sem implementação efetiva de fato.
No Brasil, tivemos o maior número de desastres naturais da história de dezem-
bro de 2021 até abril de 2023. As inundações no sul da Bahia, em Minas Gerais,
na Região Metropolitana de São Paulo, em Petrópolis – em 2020 –, em Angra dos
Reis, na Grande Recife e, mais recentemente, no litoral norte de São Paulo e na
zona costeira do sul da Bahia, que mataram mais de quinhentas pessoas. Além das
chuvas intensas e prolongadas, ocorreram recordes de temperaturas no Rio Grande
do Sul, com as secas mais prolongadas do registro histórico nesta região de 2020
a 2022; secas contínuas de 2012 a 2018 no Nordeste; no Sudeste, entre 2014 e
2015; no Centro-Oeste, em 2016 e 2017. Diante desses eventos, pergunta-se quais
são as políticas efetivas de adaptação no Brasil. Nenhuma, o Brasil não tem, na
escala nacional, políticas efetivas de adaptação.
Ipea: A heterogeneidade territorial das cidades brasileiras expõe questões relacio-
nadas aos efeitos desiguais das mudanças climáticas nas cidades. A literatura propõe
que o adensamento seria a melhor opção para o aproveitamento do espaço urbano.
Levando-se em consideração a questão urbana, quais os efeitos do padrão de urbani-
zação brasileiro sobre as mudanças climáticas no risco associado aos eventos extremos?
Carlos Nobre: No que tange à questão urbana, a maior parte das pessoas
afetadas pelos desastres associados com esses extremos climáticos é de populações
urbanas; por exemplo, da Grande Recife, de Petrópolis etc., em eventos recen-
tes. São populações urbanas que vivem sob condições de exposição em áreas de
244 | 50 anos de regiões metropolitanas no Brasil e a Política Nacional de Desenvolvimento Urbano

alto risco e alta vulnerabilidade social, conforme mostrou o Centro Nacional


de Monitoramento e Alertas de Desastres Naturais (Cemaden); isto é, mais de
10 milhões de brasileiros vivem em área de risco de deslizamentos, inundações e
enxurradas. Desse total, 2 milhões vivem em áreas de altíssimo risco. Diante desse
contexto, podemos constatar que o Brasil não tem políticas efetivas para aumentar
a resiliência da população que vive em áreas de risco e desastres.
A importância de colocar o aspecto da área urbana na discussão se deve ao
fato de que as cidades criam – além de também serem afetadas pelas mudanças
climáticas globais – as próprias mudanças climáticas urbanas, as chamadas ilhas
de calor. No caso de São Paulo, o centro e os bairros principais já atingiram
3,5 oC-4,0 oC de aumento da temperatura. Desse valor, no máximo 1,5 oC-2 oC
corresponde ao aquecimento global, enquanto o restante corresponderia ao efeito
de urbanização. Este se relaciona com a remoção da vegetação nas cidades, redu-
zindo a disponibilidade de água para evaporação e estabilidade da temperatura.
Com isso, o concreto, os pavimentos, e os asfaltos absorvem mais radiação, que
será eliminada durante a noite. No caso de São Paulo, a temperatura subiu mais de
4 oC. Esse aquecimento gera fenômenos mais intensos, que podem ser explicados
pelo efeito de urbanização. Na década de 1930, São Paulo não tinha chuvas acima
de 100 mm em 24 horas. Atualmente, as chuvas na cidade ultrapassam esse valor,
e nós, os cientistas, atribuímos essa mudança tanto ao aquecimento global quanto
ao efeito de urbanização. No Brasil, faltam políticas de adaptação para combater
os riscos do aumento da temperatura e promover a resiliência. No que tange à
agricultura, o Brasil é o quarto maior produtor de alimentos e ocupa a segunda
posição na exportação de alimentos. Ainda assim, as práticas para aumentar a
resiliência da agricultura brasileira frente aos extremos climáticos são incipientes.
O resultado implica a quebra de safras, como ocorreu no Rio Grande do Sul, secas,
às vezes, e até chuvas intensas.
Ipea: Com relação aos governos municipais, o que eles podem fazer em termos
de políticas de mitigação e adaptação, considerando-se as desigualdades existentes
e os desafios para a coordenação de uma ação interfederativa?
Carlos Nobre: Como mencionei, o Brasil não tem políticas efetivas de adapta-
ção da agricultura. Embora o grande número de negacionistas no Brasil esteja no
setor do agronegócio, felizmente o país tem um dos menores números de negacio-
nistas das mudanças climáticas do mundo. Ainda assim, muitas pessoas argumen-
tam que não estaríamos atravessando o aquecimento global, mas sim algo diferente,
em decorrência do recorde de baixas temperaturas no Centro-Oeste, em Mato
Grosso do Sul, no ano passado. Na verdade, isso está diretamente relacionado com
a questão das mudanças climáticas. O número de dias frios do ano está diminuindo
como um todo, mas eventos extremos com recordes de frio estão ocorrendo.
As metrópoles brasileiras no contexto das mudanças climáticas | 245

Esse fenômeno está relacionado com a perturbação do jato polar pelas mudanças
climáticas. Estas perturbaram o movimento circular do jato, que passou a adotar
a forma de meandros. Em um lado do meandro, o ar frio chega nas latitudes
médias; do outro lado, o ar quente chega aos polos. Por exemplo, no verão do
Hemisfério Sul do ano passado, a temperatura bateu recorde na Antártida neste
meandro. No lado do meandro que chegou o ar frio, observou-se no ano pas-
sado o recorde de temperaturas baixas em Mato Grosso do Sul. Um recorde de
temperatura fria não implica ausência do aquecimento global. Na verdade, é o
próprio aquecimento que não está segurando o jato polar circular. Esses episódios
de recordes de frio têm um grande impacto na saúde e na agricultura global.
Como eu disse, o Brasil não tem políticas claras para aumentar a resiliência
da agricultura, como é o caso das agriculturas regenerativas. A agricultura regene-
rativa é muito importante, pois ela é capaz de estabilizar a temperatura quando há
recorde de altas ou baixas temperaturas. A agricultura regenerativa ajuda a reduzir
a temperatura e impedir a erosão do solo quando ocorrem tempestades muito
severas. O Brasil possui 2,8 milhões de quilômetros quadrados em agricultura e
pecuária; contudo, em apenas 6% da área se pratica o plantio direto. Atualmente,
as plantações de cana-de-açúcar e a soja praticam o plantio direto como parte da
agricultura regenerativa. Contudo, esta inclui questões relacionadas à cultura e à
presença do bioma original, uma vez que ele ajuda a proteger a agricultura dos
extremos climáticos. Outro benefício da agricultura regenerativa é a absorção de
carbono pelo solo. Nesta perspectiva, a agricultura regenerativa pode ser compreen-
dida como uma medida de mitigação que visa proteger a agricultura dos extremos
climáticos. Como mencionado, este tipo de agricultura é pouco presente no Brasil
e nos Estados Unidos. A China, por sua vez, está buscando aumentar a participação
da agricultura regenerativa na sua produção de alimentos. Contudo, ela ainda se
mantém incipiente frente à agricultura mundial, pois outros países provavelmente
adotarão em um futuro não muito distante marco legal semelhante ao europeu de
não importar – ou exportar – produtos da agricultura associados a desmatamentos
de florestas globalmente.
Ipea: O Plano Nacional de Adaptação à Mudança do Clima (Brasil, 2016), que
foi publicado no último dia de um governo que foi interrompido, e o AdaptaBrasil,7
no âmbito do Ministério de Ciência, Tecnologia e Inovação, foram reduzidos dras-
ticamente. Embora as discussões da Política Nacional de Desenvolvimento Urbano
tenham incluído questões ambientais, elas ocorreram de maneira desconectada –
ou seja, sem a presença de um poder que coordenasse as ações. Neste momento,
as questões relacionadas às mudanças climáticas ganham um novo enfoque, que
não receberam no final de 2016. Agora é o momento em que precisamos ouvir

7. Disponível em: https://adaptabrasil.mcti.gov.br/.


246 | 50 anos de regiões metropolitanas no Brasil e a Política Nacional de Desenvolvimento Urbano

recomendações e buscar caminhos para essas questões, tendo em vista a diversidade


geográfica e climática, a quantidade de metrópoles que estão próximas ao oceano e
outras que não estão, e a desigualdade social no Brasil. Quais seriam suas palavras
a respeito das políticas públicas nos níveis municipal e metropolitano? Como os
diversos entes federativos podem coordenar as suas políticas para enfrentar as mu-
danças do clima, seja para se adaptar aos seus efeitos, seja para as cidades também
poderem funcionar de maneira que, no conjunto, reduzam as emissões de gases
do efeito estufa?
Carlos Nobre: A redução das emissões nas cidades produz um benefício con-
junto para a sociedade e o ambiente. No Brasil, as emissões brutas chegaram, em
2021, a quase 2,2 bilhões de toneladas de CO2; 10,5 toneladas por habitantes por
ano per capita. Esse valor é mais alto que o da Índia, que produz 2 toneladas de CO2
por habitante, e semelhante aos 10,5 de CO2 toneladas por habitante da China.
E estes valores são apenas um pouco mais que os da Alemanha; só perdemos para
os Estados Unidos e alguns países árabes. Neste contexto, em que o Brasil ultrapas-
sou os valores emitidos pela Índia e pela maioria dos países em desenvolvimento,
torna-se fundamental elaborar e implementar políticas para a redução na emissão
desses gases. Importante destacar que, na China, quase 80% dessas emissões es-
tão ligadas à queima de combustíveis fósseis, enquanto no Brasil esse valor é em
torno de 18% a 20% (Our World in Data).8 A maior parte das emissões do Brasil
está relacionada ao transporte, e não à geração de energia elétrica – isto é, o carro
movido a combustível fóssil, diesel, gasolina e gás natural. A queima do diesel em
carros e caminhões é a maior fonte de poluentes humanos no Brasil. Portanto, uma
política muito importante é a eletrificação de toda a frota de ônibus e a criação
de anéis rodoviários, para que os caminhões não tenham que passar pelas cidades,
diminuindo muito a poluição nos centros urbanos. Um estudo antigo, que eu
acho que não está muito correto, apontava que morriam por ano em torno de 4
mil pessoas na cidade de São Paulo em decorrência da poluição. Outros belíssimos
trabalhos, como os do professor Paulo Saldiva (2018), mostraram que o paulistano
tem reduzida em dois anos a expectativa de vida, e o paulistano pobre, oriundo
de espaços vulneráveis, tem reduzida em quatro anos sua expectativa de vida em
decorrência da poluição.
São Paulo é a cidade mais poluída do Brasil. Portanto, eletrificar a frota de
transporte reduz a principal fonte de emissões em São Paulo, ou em qualquer cidade,
salvando milhares de vidas, e aumentando e melhorando a expectativa e a qualidade
de vida. Esse é um exemplo muito clássico. Um ônibus elétrico atualmente é
mais barato do que o ônibus a combustível, não em relação ao preço de compra,

8. Para mais detalhes, ver Our Word in Data. Energy consumption by source, China. Disponível em: https://ourworldindata.
org/grapher/energy-consumption-by-source-and-country?stackMode=absolute&country=~CHN. Acesso em: nov. 2023.
As metrópoles brasileiras no contexto das mudanças climáticas | 247

mas pelo tempo de duração. O ônibus elétrico tem como tempo de vida 25 anos;
além disso, a energia elétrica no Brasil é atualmente mais barata que a energia a
combustível fóssil, por mover o motor dos veículos com eficiência acima de 70%,
enquanto esse valor é em torno de 30% a 40% com o uso de combustíveis fósseis.
No que se refere às medidas para reduzir os desastres naturais em áreas de
risco, será necessário um grande investimento em habitações seguras, acesso ao
transporte e trabalho. Quando ocorreu aquele famoso desastre no Rio de Janeiro,
na região serrana, em 2011, este foi um dos motivos que levou ao surgimento do
Cemaden.9 O governo afirmou que investiria na redução dos riscos de desastres.
Contudo, em menos de quatro anos, 35% das pessoas que perderam suas casas
voltaram para as mesmas áreas de risco e reconstruíram novas casas. Os projetos
para a construção de habitações seguras, longe da beira dos rios e encostas, como
em Petrópolis, Teresópolis e Nova Friburgo, atenderam apenas poucos milhares
de pessoas. As pessoas que voltaram para as regiões de risco em Petrópolis dizem
que as moradias construídas para elas foram feitas a mais de 40 km de Petrópolis,
dificultando o acesso ao trabalho. Os lugares perto das áreas de risco, onde essas
pessoas residem, muitas vezes não permitem a construção de novas moradias
seguras. Embora o Cemaden tenha diminuído o número de mortes, as pessoas
que conseguiram se salvar perderam suas residências. Reafirmo que não existem
soluções triviais. São enormes os desafios para encontrar as soluções adequadas
no que concerne à moradia e ao transporte. Contudo, o Brasil precisa atacar esses
desafios, pois a intensificação dos extremos climáticos tem colocado em risco a
vida de muitas pessoas.

REFERÊNCIAS
BRASIL. Ministério do Meio Ambiente. Plano Nacional de Adaptação à Mudan-
ça do Clima: volume I – estratégia geral – Portaria MMA no 150, de 10 de maio
de 2016. Brasília: MMA, 2016. Disponível em: https://www.gov.br/mma/pt-br/
assuntos/ecossistemas-1/biomas/arquivos-biomas/plano-nacional-de-adaptacao-a-
-mudanca-do-clima-pna-vol-i.pdf.
SALDIVA, P. Vida urbana e saúde: os desafios dos habitantes das metrópoles.
São Paulo: Contexto, 2018.

9. Disponível em: https://www.gov.br/cemaden/pt-br.


CAPÍTULO 14

MEIO AMBIENTE E A (RE)PRODUÇÃO DAS DESIGUALDADES


SOCIAIS NAS METRÓPOLES BRASILEIRAS
Laurita Hargreaves-Westenberger
Armando Palermo Funari

1 INTRODUÇÃO
Atualmente, o Brasil ocupa as primeiras posições no que tange às desigualdades
socioeconômicas no mundo. O contexto das mudanças climáticas evidencia as
questões em torno da justiça social e dos riscos ambientais, à medida que os es-
tratos sociais mais vulneráveis mostram-se mais expostos aos efeitos dos extremos
climáticos. Assim, a mudança climática global traz à tona a emergência do debate
acerca das populações e dos espaços socialmente vulnerabilizados nos centros urbanos.
Tendo isso em conta, este capítulo aborda os processos e as dinâmicas que
contribuem para a apropriação desigual dos espaços urbanos no Brasil como ca-
racterística indissociável do processo conjugado de industrialização-urbanização.
Isso se mostra como um aspecto importante para compreender as relações entre a
ocupação das metrópoles e a sua dinâmica de classes, marcada por contundentes
desigualdades sociais que impactam sobremaneira a vida das populações metro-
politanas, configurando uma dimensão crucial para análise das heterogeneidades
no território.
Esse cenário de heterogeneidades se torna mais agudo diante da baixa
resiliência dos espaços urbanos em relação aos riscos associados às mudanças
climáticas, talvez o maior desafio global pautado em nosso tempo. Sua comple-
xidade decorre, entre outros fatores, das distintas redes e das camadas sobrepostas
e emaranhadas de relações políticas, sociais, culturais e econômicas, pondo em
confronto visões e interesses distintos. Isso se desenvolve em múltiplas escalas,
seja em âmbito continental, seja em âmbito nacional, com participação e efeitos
distintos em diferentes pontos do globo, seja no espaço intraurbano.
Nesse nível, em particular, a ocupação inadequada do solo, associada à limi-
tada infraestrutura urbana, contribui para que a segregação socioespacial relegue
as populações de baixa renda às áreas de mais elevado risco ambiental. Como
exemplo que ilustra bem essa dinâmica, as variações extremas no regime de chuvas
demonstram os efeitos climáticos não homogêneos sobre o espaço metropolitano.
250 | 50 anos de regiões metropolitanas no Brasil e a Política Nacional de Desenvolvimento Urbano

A tentativa de construir um nexo entre as dimensões social e ambiental


levanta importantes reflexões acerca de segurança hídrica, saneamento, moradia
segura, coleta de resíduos em espaços socialmente vulneráveis nas metrópoles bra-
sileiras, entre outros temas. Dessa forma, este capítulo busca dar contornos para
delimitar a dupla dimensão da participação das metrópoles como concentrações
populacionais com grande potencial de agravamento das condições ambientais
e climáticas, sendo nódulos das principais práticas econômicas vigentes; e como
espaço de disputas intraurbanas que intensificam as disparidades entre diferentes
camadas da sociedade.
Este capítulo discute, em uma abordagem histórica, sobre a apropriação
desigual do espaço urbano nas metrópoles. Em seguida, destaca a emergência da
temática ambiental no âmbito das cidades e os impactos desiguais das mudanças
climáticas sobre as metrópoles, com ênfase no ônus climático sobre as popula-
ções socialmente vulneráveis. Por fim, reflete sobre estratégias para a superação
dessa dinâmica entre as mudanças climáticas e as desigualdades socioespaciais
nas cidades.

2 APROPRIAÇÃO DESIGUAL DOS ESPAÇOS URBANOS NAS METRÓPOLES:


A (RE)PRODUÇÃO DA VULNERABILIDADE SOCIAL
Entre as diversas bases interpretativas para o processo histórico de urbanização,
creditamos espaço destacado para as contribuições do filósofo francês Henri
Lefebvre. Em seu livro O Direito à Cidade (publicado originalmente em 1968),
identificou a unicidade entre urbanização e industrialização, observando as trans-
formações sociais em cidades europeias. Ainda que precedam ao capitalismo, as
cidades passariam, segundo o autor, a submeter-se aos ditames e às possibilidades,
marcadas pela luta de classes, oferecidas pelo desenvolvimento das novas bases
técnico-produtivas capitalistas e pela sua matriz social.
Elementos associados aos ganhos de escala, aos efeitos e aos estímulos das
aglomerações populacionais, à relação campo-cidade, à divisão social e técnica
do trabalho e à aceleração dos ciclos de acumulação de capital entrelaçariam os
destinos de indústria e espaço urbano. Tais processos e dinâmicas, à medida que se
sofisticaram, avançaram sobre a cidade, trazendo consigo imperativos calcados no
valor de troca e oferecendo às práticas, às rotinas e à gestão urbanas possibilidades
e constrangimentos muito específicos, monotônicos. Lefebvre levantou duras
críticas à lógica econômica, ou “economista”, como a nomeou, e à maneira como
ela assolapou as cidades, com o lucro exercendo primazia sobre as necessidades e
as soluções concretas da reprodução social da vida material. O filósofo foi além
e identificou que o espaço urbano não seria mero palco ou tabuleiro, mas passaria
progressivamente a assumir formas e cumprir funções destacadas no processo de
acumulação capitalista.
Meio ambiente e a (re)produção das desigualdades sociais nas metrópoles brasileiras | 251

Atualmente, tornando-se centro de decisão ou antes agrupando os centros de decisão,


a cidade moderna intensifica, organizando-a, a exploração de toda a sociedade (não
apenas da classe operária como também de outras classes sociais não dominantes).
Isto é dizer que ela não é um lugar passivo da produção ou da concentração dos capi-
tais, mas sim que o urbano intervém como tal na produção – nos meios de produção
(Lefebvre, 2001, p. 63).
Ao se tomar o processo na América Latina e, particularmente, no Brasil, parece
relevante apontar algumas mediações necessárias, ainda que se parta de uma visão
inspirada nas contribuições de Lefebvre. Existem diferenças qualitativas significativas
que precisam ser enfatizadas, por exemplo, a questão temporal pode ser abordada
com base em dois aspectos principais. Em primeiro lugar, a industrialização e a
urbanização conjugadas do continente europeu ocorreram ao longo de um perí-
odo muito mais extenso do que o vivenciado na América Latina. Em segundo,
o próprio contexto histórico em que esses processos ocorreram impôs condições
específicas à sua manifestação na periferia do capitalismo mundial, resultando
no que se consideram pesados fardos do subdesenvolvimento da sociedade e da
economia no Brasil. Assim, os processos que levaram mais de dois séculos para
se desdobrarem na Europa foram observados, aqui, em aproximadamente meio
século. Estudo realizado e publicado pela Organização das Nações Unidas (ONU),
com dados de populações nacionais, urbanas e rurais, entre 1920 e 1960,1 atesta
que nenhuma região do globo teve crescimento populacional mais intenso – em
termos relativos – do que a América Latina. Entre 1920 e 1960, a população dessa
região passou por um crescimento de 137%. No que tange à população urbana,
entretanto, o crescimento foi da ordem de 440%. Sob esse aspecto, a intensidade
das transformações parece ter sido maior em nosso território, especialmente em
relação à concentração temporal das mudanças.
De forma associada, essas transformações foram impulsionadas, em grande
medida, pelos avanços técnicos prévios provenientes da industrialização dos países
considerados centrais e pela forma específica de integração dos países da América
Latina na economia global,2 servindo como (ainda que limitado) mercado e
provedores de baixo custo de mão de obra, matérias-primas, recursos naturais
e ambientais, em estímulo para a continuidade da acumulação de excedentes
econômicos dos países desenvolvidos, suas empresas e suas capitalistas, no processo
de expansão geográfica de acúmulo de capital.3
Esse conjunto de transformações, que, na sua manifestação mais superficial,
remetem ao aumento da população urbana em associação à expansão do produto
industrial, envolvem, em realidade, uma gama diversa e elaborada de mudanças

1. Ver UN (1969).
2. Ver Furtado (1973) e Prado Junior (1970).
3. Ver Harvey (2005).
252 | 50 anos de regiões metropolitanas no Brasil e a Política Nacional de Desenvolvimento Urbano

sociais, econômicas, culturais e espaciais. No Brasil, a maior parte da historiografia


identifica a entrada na década de 1930 como esse marco referencial. Em 1930,
apenas 20% da população do país residia em áreas urbanas. De acordo com os
dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), esse número
chegaria a cerca de 56% em 1970. Cano (1981), por exemplo, destaca como
causas para o elevado percentual de população rural, em 1930, a industrialização
nacional ainda incipiente e o atraso rural, especialmente nas áreas economica-
mente periféricas do país, o que resultava em bolsões relativamente isolados de
população. Não são triviais os elementos amalgamados nas profundas transfor-
mações que se sucederiam. Se já citamos o processo de expansão geográfica do
capital, em busca de novas oportunidades de acumulação a partir das economias
centrais, é preciso compreender que encontrariam, no Brasil, uma sociedade cuja
principal inserção na economia global se dava, naquele período, pela cultura e
pela comercialização do café.
Muito mais relevante que isso, porém, é o conhecimento das profundas formas
de heterogeneidade que aquela sociedade sustentava em um país continental, de
base agrário-exportadora, com estruturas políticas, sociais, econômicas e culturais
marcadas pelo processo de colonização e de emprego massivo de mão de obra es-
cravizada. Em que pese já haver uma estrutura industrial instalada – especialmente
no seu principal centro populacional, o Rio de Janeiro, capital federal à época –,
Cano (1981) aponta que a dinâmica de estruturas, processos e agentes envolvidos
no complexo cafeeiro em São Paulo já indicava, mesmo antes de 1930, os grandes
processos de transformação que ocorreriam a partir da crise de 1929 e das medidas
adotadas para superá-la, impulsionando o desenvolvimento da indústria de maneira
mais sistemática. O autor investiga, dessa forma, quais foram as condições que pro-
porcionaram à industrialização experimentada no Brasil sua concentração geográfica
em São Paulo. Não sendo o foco desse esforço, parece suficiente aqui indicar que
a historiografia econômica aponta fases distintas para a industrialização brasileira,
“restringida”, “pesada”, em que não só houve ampliação da produção industrial,
mas também sua transformação qualitativa. Houve a incorporação crescente de
segmentos e ramos da indústria de maior sofisticação técnica e requisitos de escala
e capital, beneficiando-se, especialmente após a Segunda Guerra Mundial, de
capitais oriundos dos países centrais para dar conta desses saltos qualitativos.
Esse esforço exigiria, além de mercado, mão de obra disponível e mobilizaria
a produção de insumos, apoio de atividades acessórias, engendrando transforma-
ções, inclusive no campo, com o emprego crescente de maquinário nas principais
culturas, particularmente nas mais capitalizadas e de orientação para o comércio
internacional. O movimento populacional, marcado pela imigração e pelo êxo-
do rural, foi um esforço colossal que impulsionou rapidamente o crescimento
dos principais centros urbanos, notadamente Rio de Janeiro e São Paulo. Dessa
Meio ambiente e a (re)produção das desigualdades sociais nas metrópoles brasileiras | 253

maneira, de forma associada, a produção industrial necessitaria de mão de obra e


abasteceria, em um reforço mútuo e com insumos importantes, por exemplo, o
setor de construção civil, de infraestruturas urbanas. Acomodar o enorme fluxo
de pessoas que se mudavam para as cidades em busca de trabalho e melhores
condições de vida, entretanto, foi um desafio com o qual a sociedade brasileira
não conseguiu lidar de forma satisfatória. A população paulista cresceu quase
quatro vezes entre 1920 e 1970, passando de aproximadamente 4,6 milhões para
pouco mais de 17 milhões de pessoas.4 No mesmo período, a população da capital
paulista passou de 579 mil habitantes para cerca de 6,3 milhões. No entanto,
mesmo com o crescimento econômico e a expansão da indústria, empregos estru-
turados eram escassos, o que contribuiu para o surgimento de bolsões de pobreza
e marginalização nas cidades.
O processo de urbanização-industrialização no Brasil teve, dessa forma,
contornos tanto particulares quanto contundentes: transformações rápidas –
em contexto específico de integração à ordem econômica mundial, como país
subdesenvolvido – que potencializaram marcas profundas do passado histórico
e que se traduzem em um dos mais resilientes perfis da sociedade brasileira –
sua desigualdade/heterogeneidade. Ou seja, um país com história econômica
marcada por orientação centrífuga, de proporções continentais e de passado
escravocrata, uma das sociedades mais desiguais do mundo, passou, no século
XX, por intenso processo de transformação, introjetando no contexto nacional
os arquétipos, as estruturas e as rotinas tipicamente associadas ao capitalismo,
em um amálgama muito particular, sem necessariamente superar as estruturas
e as relações arcaicas e tampouco abraçar integralmente o novo.5
Marca essencial desse processo é a ideia de que, sobre uma herança social
talhada a partir de desigualdades, em seu contexto agrário-exportador, subde-
senvolvido e extremamente excludente, aplicou-se intensa e rápida dinamização
e transformação (a industrialização) com grande potencial de novos rumos, mas
expedientes também desiguais, opondo parcelas da sociedade – dentro de uma
nova configuração – para a reprodução da vida material. Promoveu-se a associa-
ção entre as parcelas dominantes e as novas classes dirigentes, com grande lastro
de possibilidades para manutenção de mercado de trabalho mal remunerado e
convivência com rotinas de superexploração, que se traduzem, em termos urba-
nos, na ocupação de áreas longínquas, impróprias para ocupação e construção,
áreas alagáveis, encostas, áreas de nascentes, a partir de autoconstrução, sem
acesso a apoio técnico ou infraestruturas básicas. É impossível ignorar o padrão

4. Ver Bassanezi (1999).


5. Ver Oliveira (2003).
254 | 50 anos de regiões metropolitanas no Brasil e a Política Nacional de Desenvolvimento Urbano

de continuidades que se desenrola ao longo do processo de transformações que


integram a urbanização-industrialização brasileira.
Poucos autores, além de Sevcenko (1992), conseguiram ilustrar com tanta
clareza o que já se apresentava como destino para as metrópoles brasileiras. Em
um quadro multifacetado do epicentro da industrialização brasileira, a obra Orfeu
extático na metrópole, que retrata a São Paulo dos anos 1920, traz elementos sociais,
econômicos, culturais, políticos e urbanos constituintes da metrópole paulistana
antes do período que marca a industrialização e, de muitas formas, acaba apontando
justamente as continuidades, o que se preservaria daquela sociedade mesmo depois
de intensas transformações.
A área total da cidade era submetida a uma tal prática especulativa, sem qualquer
regulamentação, que, além de tolher a ação administrativa da autoridade pública –
via de regra, aliás, conivente com ela –, tornava desconexos entre si os vários bairros
e setores do município, ao mesmo tempo que centralizava o comércio e os serviços,
criando dificuldades extremas de transportes e saturação dos fluxos, já por si agrava-
dos pela topografia acidentada, pelos rios, alagados e trilhos ferroviários (Sevcenko,
1992, p. 109).
Veremos em mais detalhe, adiante, algumas das implicações e das dinâmicas
de que trata o excerto. Por ora, parece relevante passar a noção de que o grande
influxo populacional que buscou os dois principais centros urbanos do país
passou por transformação relevante. Se, em um primeiro momento, a entrada
de imigrantes estrangeiros e seu emprego, seja nas indústrias, seja no campo,
eram consideráveis, correspondendo à maior parte desses registros, depois de
1930 o fluxo de migrantes nacionais, principalmente para São Paulo, superaria
o primeiro, ainda que, no estoque de 1820 a 1960, os imigrantes estrangeiros
perfizessem 53,17% do acumulado (Nogueira, 1964). No juízo de Cano (2011),
ainda que marcada por esse intenso fluxo populacional, a urbanização, até a
década de 1950, teria sido “suportável” – em que pese as considerações que já
apresentamos. Mais do que uma avaliação da qualidade da integração à vida urbana
da população que saiu do campo em busca de melhores oportunidades de vida
nas cidades, pode-se interpretar a sentença como uma contraposição àquilo que
se verificou na sequência e que se apresentou como “insuportável”. A partir da
década de 1960, esse autor afirma que se ampliaram os conflitos e que se tornou
muito mais difícil negar ou suprimir as contradições e os antagonismos que se
instalaram no âmago do processo de urbanização/industrialização.
A dinamização das estruturas produtivas no período não logrou superar a
heterogeneidade social marcada pela herança desigual do campo, avalia Cano
(2011). A estrutura de empregos urbanos, ainda que em menor grau, reproduziu
dinâmicas desiguais, de forma análoga ao que lá se verificou. A abundância relativa
de mão de obra foi essencial para a industrialização, garantindo rápida expansão e,
Meio ambiente e a (re)produção das desigualdades sociais nas metrópoles brasileiras | 255

em menor grau, a conformação de um frágil mercado consumidor. Frágil porque os


baixos salários praticados fizeram mais a favor de quem organiza a oferta de postos
de trabalho do que a favor de quem depende desses empregos para sobreviver na
cidade. Essa situação pôde ser sustentada justamente pelo contingente de pessoas
que buscavam emprego e estavam propensas a aceitar qualquer salário para poder
se instalar onde sua renda lhes permitisse. Esse período, não ao acaso, contribuiu
muito para a disseminação de duas das mais comuns práticas de “submorar” e
“subviver” nas cidades: as habitações precárias de autoconstrução e os assentamentos
em locais completamente desprovidos de infraestrutura e condições de habitação.
Isso ainda foi agravado pela intensificação da modernização agrícola, que ampliou
a expulsão dos trabalhadores rurais, e pelas políticas de arrocho salarial do governo
ditatorial, a partir de meados dos anos 1960.
Adicionalmente, a década de 1970 marca o ponto em que as migrações
inter-regionais atingiram seu ápice em números absolutos – em termos de volume
de pessoas e com relação à década anterior. O estado de São Paulo recebeu 57%
do fluxo migratório da década de 1970, ampliando suas recepções líquidas para
quase 3 milhões de pessoas. Desse fluxo intenso de pessoas, Cano (2011) estima
que entre 750 e 900 mil tenham se alocado fora da Região Metropolitana (RM)
de São Paulo e que cerca de 600 mil teriam ido para a região de Campinas. No
ano de 1973, em que se deu a institucionalização das primeiras RMs, portanto,
a questão urbana já havia atingido contornos extremamente dramáticos, e a “ex-
portação” do modelo paulista era uma grande ameaça em marcha para as demais
realidades metropolitanas e avaliações que, de forma recorrente, diagnosticam o
“caos urbano”.
Destacamos, aqui, dois autores com contribuições profícuas para o entendi-
mento da questão metropolitana, particularmente intraurbana, desse elo indisso-
ciável entre a temática urbana e econômica: Lúcio Kowarick e Flávio Villaça. Com
muita clareza, as obras deles contribuíram para ecoar as vozes excluídas no processo
de urbanização, seus expedientes e suas implicações. Nesse sentido, sobressaíram-se
ao demonstrarem como a exclusão social vivenciada nas principais metrópoles do
país não era mero “subproduto” das transformações econômicas e sociais que se
processavam em meio à industrialização-urbanização, mas, sim, parte essencial da
forma como isso se processou no Brasil.
Kowarick (1979) mostra como, no Brasil, crescimento econômico e urbani-
zação se valem de expedientes exploratórios extraordinários, por meio dos quais se
impõem à classe trabalhadora dinâmicas e subterfúgios que, em última instância,
asseveram sua condição precarizada através da superexploração da força de trabalho.
Periferização, moradias precárias, favelas, cortiços e autoconstrução surgem como
síntese de processos capitalistas de produção associados à especulação imobiliária.
Ele indica que a “lógica da acumulação que preside ao desenvolvimento brasileiro
256 | 50 anos de regiões metropolitanas no Brasil e a Política Nacional de Desenvolvimento Urbano

recente apoia-se exatamente na dilapidação da força de trabalho” (Kowarick, 1979,


p. 42). Isso tem como foco o que chama de “espoliação urbana”:
é o somatório de extorsões que se opera através da inexistência ou precariedade de
serviços de consumo coletivo que se apresentam como socialmente necessários em
relação aos níveis de subsistência e que agudizam ainda mais a dilapidação que se
realiza no âmbito das relações de trabalho (Kowarick, 1979, p. 59).
Desse modo, essa precariedade sistemática acaba por exercer uma dupla
função. Por um lado, relega aos trabalhadores, especialmente aos mais pobres,
piores condições de vida e habitação, os quais têm de contornar a ausência de
infraestruturas e serviços públicos com soluções não raro inadequadas, por vezes
insalubres, com maior vulnerabilidade diante dos efeitos das mudanças climáticas
e dos maiores tempos de deslocamento não pago na jornada de trabalho. Por outro
lado, contribuem para que se rebaixe o custo de reprodução da força de trabalho,
mantendo os salários em patamares achatados e sob pressão. A autoconstrução,
por exemplo, caracteriza-se como a principal alternativa aberta aos trabalhadores
que buscam a construção de seu domicílio próprio, uma vez que os baixos salários
não dão conta de equacionar a questão da moradia adequada. Essa dinâmica e seu
absurdo são ilustrados da seguinte forma por Kowarick (1979), a partir de dados
do Dieese para abril de 1975.
Favelas, casas precárias da periferia e cortiços abrigam a classe trabalhadora, cujas
condições de alojamento expressam a precariedade dos salários. Essa situação tende a
se agravar, na medida em que se vêm deteriorando os salários. Para os gastos básicos
de uma família – nutrição, moradia, transporte, vestuário, etc. – aquele que em 1975
ganhava um salário mínimo deveria trabalhar 466 horas e 34 minutos mensais, isto
é, cerca de 16 horas durante 30 dias por mês (Kowarick, 1979, p. 41).
Villaça (2001) também entende a centralidade da luta de classes que atua
sobre o espaço urbano, propondo, inclusive, que os antagonismos centrais se pro-
cessam através disso, o que reforça as disparidades advindas do processo material
de reprodução social. Segundo o autor, o urbanista concede importância destacada
à questão da apropriação desigual das vantagens (ou desvantagens) advindas da
localização urbana, tendo como parâmetro de partida a desigualdade econômica
existente entre as classes sociais (em termos de renda, riqueza e possibilidades de
acessar e mobilizar recursos).
Nossa tese é a de que, para as metrópoles brasileiras – e quase certamente também
para as latino-americanas –, a força mais poderosa (mas não a única) agindo sobre a
estruturação do espaço intraurbano tem origem na luta de classes pela apropriação
diferenciada das vantagens e desvantagens do espaço construído e na segregação
espacial dela resultante. Esta, como será mostrado, é uma condição necessária para
o exercício da dominação por meio do espaço intraurbano (Villaça, 2001, p. 45).
Meio ambiente e a (re)produção das desigualdades sociais nas metrópoles brasileiras | 257

Assim como Kowarick, ele propõe a ideia de que, à exploração e à dominação


mercantil-capitalista (através do comando sobre o trabalho e da apropriação privada
do excedente do trabalho social), somam-se dispositivos de apropriação diferen-
ciada dos espaços urbanos, das localizações. Nesse sentido, quanto maior fosse a
diferenciação social entre classes, maior seria sua expressão espacial em termos de
segregação urbana. Constrói-se certa homogeneidade interna de características e
atributos sociais em determinada parcela da metrópole, sustentando fortes con-
trastes com o que está fora dela. Portanto, na dinâmica proposta pelo urbanista,
a segregação, enquanto processo, assenta-se sobre as desigualdades e as diferenças
na capacidade de cada classe social de comandar e escolher atributos locacionais e
controlá-los, colecionando vantagens em diversas frentes, seja com deslocamentos
mais eficientes, seja com vantagens de paisagem – locais aprazíveis ou livres de
maiores complicações de assentamento –, simultaneamente relegando para o restante
da sociedade o ônus disso.
Mesmo que se manifestasse apenas em termos relativos, a capacidade das
camadas de mais alta renda para se apropriarem das localizações mais vantajosas
ainda assim amplificaria as desigualdades socioeconômicas e urbanas. Isso posto,
parece claro que nem sempre essa disputa se circunscreve a ganhos relativos. Basta
olharmos de forma concreta para os espaços vulnerabilizados nas metrópoles, onde,
de forma preocupantemente comum, as moradias e os deslocamentos das camadas
mais pobres da população estão sujeitos a condições temerárias. Não apenas arcam
com piores condições de mobilidade, mas estão mais sujeitas a enfrentar alagamentos
e são expostas às emissões de poluentes; não apenas vivem em moradias inadequadas
do ponto de vista técnico, mas também em localidades sujeitas a deslizamentos e
desabamentos, em áreas alagáveis, sem infraestrutura básica ou serviços ligados ao
saneamento e à coleta de resíduos, ampliando a exposição a enfermidades.
Villaça (2001) argumenta que o padrão de segregação mais predominante
no Brasil é aquele que contrasta o centro e a periferia, em que o centro concentra
a maior parte dos serviços urbanos, sejam públicos, sejam privados, enquanto a
periferia, mais distante, tem acesso limitado à infraestrutura e a serviços disponíveis.
Como reflexo da profunda desigualdade social no país, as camadas de mais alta
renda ocupam áreas próximas ao centro. Ademais, a expansão se dá de forma radial,
como evidenciado pelo crescimento das áreas de moradia das classes de alta renda
em São Paulo, por exemplo, no vetor estabelecido a partir do quadrante sudoeste
da metrópole.6 Essa expansão radial seria uma forma de manter o acesso ao centro
e às suas vantagens locacionais.

6. Diferentemente do Rio de Janeiro, onde se conformou um subcentro específico para as classes de alta renda, em São
Paulo os subcentros focaram as classes de baixa renda, segundo Villaça. A elite não se desligou do centro da mesma
maneira que ocorreu no Rio.
258 | 50 anos de regiões metropolitanas no Brasil e a Política Nacional de Desenvolvimento Urbano

As classes de mais alta renda escolhem a direção de crescimento, em função de atrativos


de sítio natural (...) e principalmente, em função da simbiose, da “amarração” que
desenvolvem com suas áreas de comércio, serviços e emprego, ou seja, em virtude da
sua inserção na estrutura urbana que elas próprias produzem (Villaça, 2001, p. 320).
Para tanto, segundo o urbanista, pesa o controle que essas classes detêm sobre
o mercado imobiliário e o próprio Estado. A área de concentração das classes de
alta renda em São Paulo, por exemplo, embora somasse 13,72% da população
da área metropolitana, reunia 50% dos médicos e 56% dos dentistas em 1996.7
Com isso, Villaça quer mostrar o poder de atração que essas camadas têm sobre
extensa gama de serviços e comércio. Dessa maneira, à medida que se processa a
segregação, as áreas ocupadas pelas classes de alta renda passam a atrair escolas,
hospitais, comércios, serviços e até mesmo os aparelhos de Estado. Trata-se da capa-
cidade, inclusive, de apresentar seus desejos e seus anseios como se fossem aqueles
da coletividade como um todo, ditando o que seria qualificado como “a cidade”.
Separamos, assim, duas formulações que expressam bem a síntese do que se
trabalhou até aqui. O próprio Villaça, em citação a Harvey, reafirma que “os ricos
podem comandar o espaço, enquanto os pobres são prisioneiros dele” (Harvey,
1976, p. 1718 apud Villaça, 2001, p. 181). Lefebvre, por sua vez, ilustra algo similar
da seguinte forma: “os moradores do Olimpo e a nova aristocracia burguesa não
habitam mais. Andam de palácio em palácio, ou de castelo em castelo; comandam
uma armada ou um país inteiro de dentro de um iate; estão em toda parte e em
parte alguma (...) eles transcendem a cotidianidade” (Lefebvre, 2001, p. 118).
A partir dessa configuração, a atuação do Estado precisaria romper com as
amarras históricas em seu padrão de intervenções, muito mais sensível e alinhado
aos desígnios das classes dominantes, como trata de forma extensiva a bibliografia
crítica,9 a partir da ideia de que apenas tratamentos profundamente desiguais
podem romper com essa concertação, dadas as capacidades grotescamente distintas
de apropriação das diferentes parcelas da população. Em que pese o arcabouço
lançado com a Constituição Federal de 1988 e sua posterior regulamentação quanto
à política urbana e metropolitana, os desafios desde então apenas se avolumaram.
A modernização ocorrida juntamente com a abertura econômica e com a integra-
ção mais flexível nos mercados internacionais de capital e produção desempenhou
um papel significativo na disseminação da precarização do mercado de trabalho
(Dedecca e Baltar, 2001). Houve aumento da terceirização, o que levou a tenta-

7. Ver Villaça (2001, p. 316).


8. Harvey, D. Labor, capital, and class struggle around the built environment in advanced capitalist societies. Politics &
Society, v. 6, n. 3, 1976. Disponível em: https://journals.sagepub.com/doi/10.1177/003232927600600301.
9. Sevcenko (1992) mostra que esse padrão antecede a industrialização em São Paulo, inclusive, Villaça (1999; 2001)
também é profícuo em exemplos e resgates de situações absurdas de intervenção estatal, particularmente associada
a interesses especulativos e de enriquecimento privado – para citar alguns dos autores que já foram mencionados.
Meio ambiente e a (re)produção das desigualdades sociais nas metrópoles brasileiras | 259

tivas de descaracterizar a relação de trabalho, resultando no surgimento de maior


número de “empresários” e “empreendedores” que desempenhavam as mesmas
funções, mas agora sem a proteção das leis trabalhistas, contratados por meio de
operações comerciais de prestação de serviços. As novas tecnologias têm permitido
acesso mais confortável e rápido a uma gama de serviços e produtos, ancorando-se,
entretanto, sobre a superexploração do trabalho e de condições acachapantes nas
jornadas de trabalho.
Se o período conhecido como “desenvolvimentista” resultou em crescimento
econômico elevado através da manutenção das desigualdades sociais, o período
mais recente poderia ser identificado pela precarização modernizadora das condi-
ções de vida, de direitos e do mercado de trabalho, também com manutenção das
desigualdades sociais. Como já apontamos, talvez seja esse o traço mais resiliente
da sociedade brasileira, do qual as metrópoles são certamente exemplo. Se agora
o crescimento econômico se dá a taxas menores, preserva-se a remuneração das
camadas de mais alta renda e a valorização do capital em um patente avanço às
condições de vida e à reprodução do cotidiano da maior parte das pessoas.
Avança-se, adicionalmente, sobre a máquina pública e suas rotinas, seja
por meio das privatizações, seja da assunção da mercantilização de aspectos da
vida urbana, além da adoção de critérios e parâmetros privados para sua gestão,
reproduzindo as sensibilidades monotônicas da atividade privada no aparelho
de Estado. Os serviços urbanos e direitos são contornados ou corroídos, dando
espaço na sua operação para preocupações de valorização, antes da universalização
ou do acesso. Estabelece-se, adicionalmente, um contexto de crise orçamentária
permanente, com restrições recorrentes à própria capacidade da ação estatal mais
contundente, o que nos coloca em situação particularmente difícil.
Os últimos estudos e projeções sugerem de forma inconteste que a emergência
climática e os seus efeitos são o maior desafio global humanitário recente (ainda que
gestado ao longo de séculos), em um chamado para transformações nos padrões
que nos trouxeram ao atual estado de coisas. O enorme potencial transformador de
seu enfrentamento é simultaneamente seu principal entrave, pois exige tratar
de forma inovadora as mazelas e as distorções acumuladas, considerando-se as
diferentes realidades sociais, sua exposição e sua capacidade de atuação.
260 | 50 anos de regiões metropolitanas no Brasil e a Política Nacional de Desenvolvimento Urbano

3 O PAPEL DAS CIDADES METROPOLITANAS NA CONSTRUÇÃO DO NEXO


ENTRE A DIMENSÃO SOCIOESPACIAL E AMBIENTAL

3.1 A emergência da temática ambiental nas cidades


As questões relacionadas às mudanças climáticas têm se tornado centrais na agenda
política global. A aceleração dos extremos climáticos e seus efeitos mais perver-
sos em regiões mais vulneráveis no mundo têm mobilizado atores multilaterais,
como a ONU, para a adoção de diretrizes que visam à erradicação da pobreza e
à promoção dos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS) até 2030.10
Em 2016, a Conferência Habitat III aprovou a Nova Agenda Urbana (NAU), que
visava ao desenvolvimento urbano resiliente e sustentável (Klug, 2018). O Painel
Intergovernamental sobre Mudança do Clima (IPCC) também destacou a impor-
tância das áreas urbanas no que tange às dimensões de vulnerabilidade, impactos
e adaptação às mudanças climáticas (Klug, Marengo e Luedemann, 2016; IPCC,
2014; 2022). As diretrizes apresentadas pelos órgãos internacionais destacam a
importância das cidades na adoção de estratégias para adaptação e mitigação dos
efeitos climáticos. Além disso, essas diretrizes trazem uma agenda internacional
com o intuito de promover cidades justas e resilientes. Embora questionáveis do
ponto de vista da justiça social e da assimetria de poderes entre os países do Norte
e do Sul, as diretrizes da NAU se impõem como referência global nessa temática.
Nesse contexto, esta subseção refletirá sobre o papel das cidades e, em especial,
das metrópoles nas mudanças climáticas, além dos efeitos nas áreas socialmente
mais vulneráveis das cidades.
A importância histórica das cidades tem aumentado exponencialmente
desde a Revolução Industrial, quando o fluxo migratório em direção aos centros
urbanos se intensificou. Esse rápido crescimento das cidades tem alterado o
ritmo de interação entre os seres humanos e o meio ambiente, negligenciando
fatores importantes como participação social e representatividade, justiça social
e ambiental, além de mudanças nos padrões de produção e consumo com maior
consciência ecológica (Shaban, 2019). Isso porque, de forma análoga ao que se
expôs na seção anterior, há uma clara subordinação dessa questão aos imperativos
da acumulação capitalista. Nesse sentido, as preocupações de cunho ambiental
tomaram nova dimensão muito após os desdobramentos e as implicações do ace-
lerado processo de urbanização experimentado em termos globais, principalmente
no século XX. A dinâmica de expansão das cidades está associada ao aumento
progressivo da população urbana mundial, em um processo que se retroalimenta:
a expansão urbana historicamente avança sobre áreas não ocupadas, com presença
de ativos ambientais. Ao mesmo tempo, aumenta-se a pressão sobre as escalas de

10. A ênfase deste capítulo está no ODS 10 (redução das desigualdades) e no ODS 11 (promoção de cidades e comu-
nidades sustentáveis), o que visa ao combate às mudanças climáticas.
Meio ambiente e a (re)produção das desigualdades sociais nas metrópoles brasileiras | 261

produção e de consumo, ampliando-se a demanda por mais energia e materiais


para suprir as necessidades sociais. Por conseguinte, observa-se uma interação
menos harmoniosa entre as dimensões social e ecológica, além do vertiginoso
aumento do metabolismo social.11
Esse aumento intensificou o fluxo de energia e materiais entre as sociedades
modernas e a natureza. Estas organizaram seus modos de produção e consumo
nos centros urbanos, os quais passaram a emitir significativas quantidades de
gás carbônico (CO2), principalmente, e outros gases de efeito estufa (GEEs) na
atmosfera, além de adotar uma gestão insustentável do uso do solo. De acordo com
os dados apresentados pelo IPCC, de 2014, as cidades têm emitido quantidades
substanciais e crescentes de GEEs.12 Entre as principais demandas dos centros
urbanos que contribuem para esse cenário, destacam-se a geração de energia e a
produção de bens de consumo duráveis, alimentos, transportes etc. De acordo
com Brand e Wissen (2021), esse modelo de desenvolvimento é pautado em
ideais imperialistas, na medida em que orienta padrões de produção e consumo
calcados no uso de combustíveis fósseis, caracterizados pelo uso predatório dos
recursos naturais, a partir de desígnios de países do centro econômico mundial
(ou Norte global).
A expansão das cidades orientadas a partir de sensibilidades voltadas princi-
palmente para a valorização do capital econômico – limitadas ao que concerne à
participação social e democrática, impessoais no tempo e no espaço, socialmente e
ecologicamente insustentáveis – remete às relações entre a lógica neoliberal capitalista
e o uso predatório dos recursos naturais. Spash (2015) argumenta criticamente que
a lógica neoliberal baseada apenas na valorização do capital viola questões éticas em
relação à natureza. A comodificação da biodiversidade da fauna e da flora ultrapassa
seus valores intrínsecos. Em outras palavras, a introdução da dimensão ambiental
no circuito monetário proporciona novas formas de manifestação do capital, de
modo que seja possível uma substituição perfeita entre os recursos naturais e o
capital econômico. Essa abordagem conduz a uma falsa ideia de comensurabilidade
dos valores da natureza ao atribuir-lhes preços, isto é, enfatiza apenas o valor de
troca dos recursos naturais na forma de commodities para atender às demandas dos
padrões de produção e consumo de massa do sistema capitalista. O’Neil e Spash
(2000) apontam que o meio ambiente possui múltiplas identidades complexas
que não se encaixam dentro dos limites de mercado de valorização do capital.
O desmatamento de determinado bioma, por exemplo, pode levar à extinção de

11. O fluxo de materiais e energia entre a sociedade e o meio ambiente foi cunhado na literatura como metabolismo social.
12. Os GEEs são principalmente caracterizados por vapor d’água, CO2 e metano. Eles são capazes de reter calor na
atmosfera e garantir baixa oscilação térmica, de modo a proporcionar a vida na Terra. Contudo, as atividades humanas
têm modificado a concentração desses gases, principalmente pela conversão do carbono encontrado na natureza em
CO2 (Klug, Marengo e Luedemann, 2016).
262 | 50 anos de regiões metropolitanas no Brasil e a Política Nacional de Desenvolvimento Urbano

espécies impossíveis de serem recuperadas. Desse modo, os padrões de produção


e consumo imperialistas, assim definidos por Brand e Wissen (2021), orientam-se
apenas para a valorização do capital econômico e sua incorporação nas práticas
sociais cotidianas. Assim, esse modelo de desenvolvimento falha em atribuir os
valores intrínsecos da “natureza perdida” e promove a dominação humana sob a
esfera ambiental.
As atividades humanas têm se estruturado em torno de um regime de produção
e consumo insustentável, ultrapassando os limites e a capacidade de regeneração
dos ecossistemas naturais (Raworth, 2017). De acordo com a abordagem doughnuts
economics, o modo de vida nas cidades atualmente situa-se fora das fronteiras que
acomodam o bem-estar social e os limites do meio ambiente. Em outras palavras,
milhões de pessoas vivem sob condições de vulnerabilidade social (pobreza, inse-
gurança hídrica, risco de desastres, falta de acesso aos serviços de saúde, educação,
transporte, entre outros), ao mesmo tempo que o modo de vida nas cidades amplifica
os efeitos das mudanças climáticas, causando perda de biodiversidade e reduzin-
do a capacidade de regeneração do meio ambiente. Esses desequilíbrios entre as
relações humanas e a natureza sinalizam a necessidade de estratégias que atendam
tanto às demandas sociais das presentes e futuras gerações quanto à proteção dos
recursos naturais. Raworth (2017) defende a adoção de medidas que promovam
o bem-estar social dentro dos limites ambientais do planeta.
Nessa perspectiva, as cidades têm se tornado espaços fundamentais para
analisar as relações dos atuais padrões de produção e consumo e as mudanças
climáticas. Desde a segunda metade do século XX, as cidades experimentam uma
rápida expansão dos mercados e das cadeias de produção em nível global, além de
maior facilidade na comunicação para as transações comerciais. Essa transformação,
conhecida como globalização, tem intensificado a manutenção de um modo de vida
(ou mode of living) baseado no amplo consumo de energia e no uso de materiais
(Brand e Wissen, 2021). A título de exemplo, a construção de moradias energe-
ticamente ineficientes demanda maior uso de energia e queima de combustíveis
fósseis. O incentivo do transporte individual, aliado à necessidade de atender a
um modelo de vida pautado no consumo acelerado e emergente, também ilustra
o amplo uso de recursos materiais para atender às demandas sociais. Esse modo
de vida contribui para maior emissão de CO2 e, consequentemente, modifica a
composição dos gases na atmosfera. Essa alteração pode ser atribuída, em grande
parte, às atividades humanas, que têm induzido mudanças no clima para além
das variabilidades climáticas naturais (Klug, Marengo e Luedemann, 2016), por
exemplo, a mudança no regime de chuvas em determinada região, de modo que
as chuvas se tornam mais frequentes, o que afeta mais intensamente áreas de risco
onde habitam populações socialmente vulneráveis.
Meio ambiente e a (re)produção das desigualdades sociais nas metrópoles brasileiras | 263

No Brasil, as principais fontes de emissão de GEEs até meados da década


de 2000 estavam relacionadas às alterações “do uso da terra e das florestas, com
destaque para o desmatamento” (Klug, Marengo e Luedemann, 2016, p. 86).
A partir de 2004, essas emissões se tornaram predominantemente de origem
energética, com destaque para o setor de transportes. A mudança na origem das
emissões de CO2 demonstra o crescente papel estratégico das cidades para a ado-
ção de medidas de adaptação e mitigação diante das mudanças climáticas (Klug,
Marengo e Luedemann, 2016, p. 86).
Alguns governos têm buscado elaborar e implementar medidas de adaptação
e mitigação das mudanças climáticas, em particular nas metrópoles. De acordo
com Klug, Marengo e Luedemann (2016), alternativas conjuntas de adaptação e
mitigação das questões originárias são necessárias para a viabilização da política
climática. Essas medidas não se referem apenas à contenção das emissões de CO2
e ao uso de energia renovável, mas também à gestão sustentável dos recursos natu-
rais para atender às demandas sociais. De acordo com o IPCC, mitigação pode ser
compreendida como “toda intervenção humana para reduzir as fontes ou aumentar
os drenos de GEEs”, enquanto adaptação envolve “o processo de ajustamento ao
clima atual ou projetado e seus efeitos” (IPCC, 2014).
O cientista Carlos Nobre afirma13 que as políticas efetivas de adaptação vêm
sendo implementadas especialmente nos países desenvolvidos, como os Estados
Unidos, a Alemanha e a Holanda. Eles têm investido em medidas de adaptação
para, por exemplo, reduzir os riscos derivados das ressacas nas zonas costeiras
ou, de forma mais geral, aumentar a resiliência dos sistemas econômicos, sociais,
agrícolas e humanos. Em contraste, os países em desenvolvimento apresentam quase
nenhuma política efetiva de adaptação aos riscos trazidos pelas mudanças climáticas.
Nobre14 ainda ressalta que as áreas urbanas induzem mudanças climáticas dentro
do próprio espaço urbano, por exemplo, as chamadas ilhas de calor. A remoção da
vegetação em decorrência do processo de urbanização dificulta a manutenção
da estabilidade das temperaturas nas áreas urbanas. O aquecimento se dá por conta da
maior absorção de radiação pelo concreto, pelos pavimentos, pelo asfalto e devido à
ausência de vegetação para evaporação da água. A radiação absorvida é eliminada
à noite, de modo que as temperaturas mínimas tendem a subir, como no caso
da RM de São Paulo. Esse aquecimento gera, muitas vezes, fenômenos mais intensos,
como secas ou chuvas severas, afetando sobremaneira as áreas socialmente mais
vulneráveis. A maior parte desses fenômenos pode ser explicada pela conjugação
de urbanização e desigualdade social, aliadas ao aquecimento global.

13. A entrevista na íntegra compõe o capítulo 13 desta publicação.


14. Ver capítulo 13.
264 | 50 anos de regiões metropolitanas no Brasil e a Política Nacional de Desenvolvimento Urbano

Fenômenos como as ilhas de calor e o aumento das ressacas confirmam a


insuficiência das medidas tomadas até o momento. Apesar das diretrizes legais
no âmbito internacional, países em desenvolvimento, como o Brasil, apresen-
tam um grande passivo na implementação de políticas urbanas para mitigar e se
adaptar às mudanças climáticas. O relatório do IPCC de 2022 destacou que as
atividades humanas têm induzido diversas mudanças nos padrões climáticos e
nos ecossistemas, como alterações nos regimes de chuvas; acidificação e aumen-
to do nível dos oceanos; deterioração dos ecossistemas e de sua capacidade de
adaptação e de regeneração; perda de biodiversidade; e aumento da temperatura
global do planeta.

3.2 Os impactos desiguais das mudanças climáticas nos espaços urbanos e
metropolitanos
A crescente variabilidade dos extremos climáticos denuncia os riscos de desastres
associados à dimensão socioespacial das cidades. O rápido processo de urbanização
no século XX, em conjunto com a baixa provisão de bens públicos, produziu um
déficit na infraestrutura urbana. Como resultado, observou-se elevado grau de
ocupação das áreas de risco e ampliação das desigualdades socioespaciais, como
indicado em seção anterior deste capítulo. Essa configuração estaria diretamente
relacionada com as condições de acesso e apropriação de valores de uso urbanos,
econômicos, culturais, políticos e lúdicos (Funari, 2017, p. 135). A disputa das
elites pelas áreas mais vantajosas dentro do espaço urbano, como destacamos an-
teriormente, produziu espaços socialmente segregados. A organização das cidades,
nesse contexto de heterogeneidade urbana, destaca as desigualdades sociais dentro
do território e suas relações, também, com os riscos de desastres associados às
mudanças climáticas.
A ausência e/ou as deficiências do planejamento urbano na maior parte
das cidades brasileiras, o intenso fluxo migratório e as práticas no mercado de
trabalho urbano deram origem aos assentamentos informais que compreendem
as comunidades urbanas em áreas vulneráveis, sujeitas às variabilidades de extre-
mos climáticos e riscos de desastres (Klug, Marengo e Luedemann, 2016, p. 12).
A ocupação dessas áreas revela a displicência do Estado na condução de um processo
de urbanização ordenado, justo, resiliente e seguro para todos os moradores das
cidades. Na verdade, como se propôs na seção anterior, a participação histórica do
Estado sobre a questão mais coaduna com os interesses particulares na acumulação
do que com a superação desse modelo desigual e excludente (Villaça, 2001).
Como mencionado, a crise climática não se circunscreve apenas à dimen-
são ecológica; ela afeta diretamente a vida humana, em particular as populações
que vivem em áreas vulneráveis nas cidades. O uso predatório dos recursos na-
turais e a degradação dos ecossistemas pelas atividades humanas têm exposto as
Meio ambiente e a (re)produção das desigualdades sociais nas metrópoles brasileiras | 265

áreas urbanas vulneráveis aos impactos mais severos das mudanças climáticas
(UN-Habitat, 2015). Eventos extremos mais frequentes, como variações no regi-
me de chuvas, impactam a produção de alimentos, reduzem a segurança hídrica
e aumentam o risco de desastres socioambientais. A escassez relativa de alimentos
em decorrência dos regimes desregulados de chuvas afeta os setores da indústria
dependentes da água e o preço dos alimentos, o que afeta ainda mais as populações
mais vulneráveis, uma vez que possuem menor renda. Ao mesmo tempo, os efeitos
dos regimes de chuvas extremos se mostram mais danosos ou até mortais para essas
populações. Áreas alagáveis próximas às margens dos rios ou em vales com ocupa-
ções irregulares, bem como a ausência de infraestrutura adequada de drenagem,
são fatores que contribuem para maiores efeitos sobre essas populações. Ademais,
essas mudanças impõem diversos desafios para a conservação dos ecossistemas
aquáticos, a manutenção da pesca sustentável, que conta com participação ainda
relevante de comunidades tradicionais, a remuneração e o acesso à água potável
(Frangetto, 2022; Nobre15).
Além dos impactos diretos dos eventos climáticos extremos, vale destacar
os efeitos indiretos nas populações urbanas, como a crescente exposição à poeira
atmosférica e a aeroalérgenos, que tendem a aumentar os problemas cardiovas-
culares e respiratórios. Ademais, eventos extremos, como inundações ou secas,
podem pressionar e dificultar o acesso aos serviços de saúde e o abastecimento de
regiões mais remotas, acarretar a perda da agricultura de subsistência, propagar
vetores de contaminação por meio da água e dos alimentos, bem como ocasionar o
surgimento de novas doenças. Esse cenário exacerba as condições de vida precárias
das pessoas em vulnerabilidade social.
A vulnerabilidade aos impactos das mudanças climáticas vai além da mera exposição
aos eventos de clima extremo. Nos países em desenvolvimento, muitas cidades “se
encontram em uma ‘perfeita tempestade’ de crescimento populacional, o que aumenta
as necessidades de adaptação e o substancial déficit de desenvolvimento criado pela
escassez de recursos financeiros e humanos; levando, por sua vez, ao crescimento da
informalidade, a uma governança insuficiente, à degradação ambiental, perda de bio-
diversidade, pobreza e aumento da desigualdade” (IPCC, 201416 apud UN-Habitat,
2015, p. 3).
O impacto desigual da crise climática nas diversas áreas do planeta é geralmente
sentido mais fortemente pelas populações de espaços urbanos mais vulneráveis.
Estes são caracterizados por baixa capacidade de resiliência, maior exposição aos

15. Ver capítulo 13.


16. IPCC – THE INTERGOVERNMENTAL PANEL ON CLIMATE CHANGE. Climate change 2014: synthesis report. Genebra:
IPCC, 2014. Disponível em: https://www.ipcc.ch/site/assets/uploads/2018/02/SYR_AR5_FINAL_full.pdf.
266 | 50 anos de regiões metropolitanas no Brasil e a Política Nacional de Desenvolvimento Urbano

riscos de desastres e acesso precário aos serviços básicos.17 De acordo com Klug
(2018), as cidades com maiores graus de vulnerabilidade aos riscos ambientais
estão situadas nos países em desenvolvimento. No caso brasileiro, a pouca infraes-
trutura e a má gestão da organização socioespacial das cidades abrem espaço para
que pessoas em situação de vulnerabilidade social ocupem encostas de morros e
construam moradias irregulares em áreas de preservação ambiental, sem qualquer
acesso a apoio técnico nesse processo, inclusive. Variações no regime de chuvas têm
provocado inundações, enxurradas, alagamentos, secas, tempestades e epidemias,
causando grandes prejuízos. Assim, “as precariedades urbanas e a vulnerabilidade
social ampliam os riscos e os impactos das mudanças do clima e uma inflexão
nessa trajetória [torna-se] imperativa” (Klug, Marengo e Luedemann, 2016, p. 3).
De acordo com o cientista Carlos Nobre,18 a maior parte das pessoas afetadas
pelos desastres associados com os extremos climáticos no Brasil concentra-se nos
espaços urbanos, como a Grande Recife, o litoral norte de São Paulo e Petrópolis,
os quais abrigam mais de 10 milhões de pessoas que vivem em área de risco de
deslizamentos, inundações e enxurradas. Desse total, mais de 2 milhões estão em
áreas de altíssimo risco. Esse cenário demonstra, mais uma vez, a insuficiência das
políticas urbanas para a gestão dos riscos de desastres e a promoção da resiliência.
No caso do Brasil, há pouquíssimas políticas efetivas de adaptação para
lidar com os efeitos das mudanças climáticas. Klug (2018) também afirma que,
do ponto de vista social e ambiental, a preocupação com a resiliência dos espaços
urbanos socialmente vulneráveis torna-se fundamental para a redução dos riscos de
desastres. O mau planejamento e a gestão das cidades colocam milhares de pessoas
sob a insegurança hídrica (falta de água potável por vários dias), além de maior
exposição aos eventos climáticos extremos. Problemas relacionados ao saneamento
básico, ao manejo correto de resíduos sólidos, à drenagem das águas pluviais e à
construção de habitações adequadas trazem à tona a necessidade de endereçar essas
questões à agenda pública e avançar nas diretrizes estabelecidas pela NAU (Klug,
Marengo e Luedemann, 2016).

4 REFLEXÕES E DESAFIOS PARA UMA AGENDA PÚBLICA SUSTENTÁVEL NO


ÂMBITO DAS METRÓPOLES
Conforme Klug, Marengo e Luedemann (2016), as políticas de desenvolvimento
urbano poderiam tornar-se instrumentos efetivos de adaptação às mudanças cli-
máticas. A construção de uma abordagem sistêmica que trate das questões atuais
e que antecipe problemas futuros permitiria a adoção de medidas de adaptação

17. De acordo com Klug, Marengo e Luedemann (2016), resiliência pode ser compreendida como a capacidade de os
sistemas econômicos, sociais e ambientais manterem seus funcionamentos e sua estrutura após serem afetados por
eventos perigosos.
18. Ver capítulo 13.
Meio ambiente e a (re)produção das desigualdades sociais nas metrópoles brasileiras | 267

diante dos possíveis cenários de desastres naturais – frutos das mudanças climáticas
agravadas pelo processo de urbanização. Importante salientar que os riscos sociais
e ambientais não estão apenas no espaço intraurbano. A análise entre cidades se
faz relevante na medida em que muitas metrópoles brasileiras encontram-se na
faixa litorânea e, consequentemente, estão mais expostas aos extremos climáticos
em relação à subida do nível do mar. Nessa direção, as cidades carregam um papel
estratégico no debate de adaptação e mitigação das mudanças climáticas: potencial
de redução das emissões de GEEs e necessidade de gerir os riscos de desastres nas
áreas vulneráveis.
Como mencionado, ao mesmo tempo que o processo de urbanização cria
oportunidades, também aumenta os riscos associados às mudanças climáticas.
A falta de planejamento urbano adequado e de governança acarreta custos sociais,
econômicos e ambientais (UN-Habitat, 2017). Em particular, a pouca atuação
dos governos, principalmente na escala local, corresponde a um claro gargalo
para a adoção de medidas de mitigação e adaptação às mudanças climáticas.
A pouca infraestrutura em áreas de risco nas cidades, onde se estabelecem os
assentos informais, eleva o grau de vulnerabilidade social naquela área e denuncia
a necessidade de intervenção de atores sociais e políticos para contornar os efeitos
negativos da apropriação desigual do espaço urbano.
De acordo com o relatório da UN-Habitat (2017), a atuação conjunta das
diversas esferas de governo seria mais eficaz para combater os riscos de desastres,
tendo em vista que se compartilhariam mecanismos para integrar ações verticais
e horizontais. Além disso, o maior engajamento dos setores privado, público,
acadêmico e da sociedade civil tornaria a tomada de decisão e sua implementação
mais efetivas. Nesse sentido, as cidades se alçariam como espaços propícios para o
desenvolvimento de políticas urbanas mais sustentáveis. O relatório ainda identifica
cinco fatores cruciais para o gerenciamento de desastres associados às mudanças
climáticas nas cidades: i) planejamento urbano; ii) governança; iii) economia urbana;
iv) participação e inclusão; e v) tecnologia da informação e comunicação (TIC).
O planejamento urbano se refere à construção de cidades mais integradas,
inclusivas e conectadas para a promoção da eficiência dos serviços e do uso dos
recursos. Nessa perspectiva, o planejamento urbano promoveria transformações
no uso da energia, na baixa emissão de carbono e na redução dos riscos inerentes
aos espaços socialmente vulneráveis. O segundo aspecto, no que diz respeito à
governança, destaca a relevância de institucionalizar marcos regulatórios e legis-
lativos. Estes formariam uma dimensão integradora entre as mudanças climáticas
e a gestão dos riscos de desastres para todas as esferas de governo. A governança
assegura transparência, accountability e participação de diferentes grupos de interesse
para a tomada de decisão e a implementação de medidas que reduzem os riscos de
268 | 50 anos de regiões metropolitanas no Brasil e a Política Nacional de Desenvolvimento Urbano

desastres. O terceiro fator está relacionado aos investimentos públicos e privados


necessários para a adoção de estratégias que envolvam governança, desenvolvi-
mento, uso eficiente dos recursos e resiliência, evitando grandes perdas futuras.
O quarto ponto destaca a importância da participação e da inclusão de todos os
grupos da sociedade para planejar e implementar medidas de combate às mudanças
climáticas. A maior participação desses atores promoveria o compartilhamento
de dados, informação, conhecimento e soluções que atendessem às demandas
locais. Por fim, a TIC exerceria um papel central no desenho, na construção e na
proteção dos ambientes urbanos. Essa tecnologia requer transparência e qualidade
dos dados para o avanço do debate acerca do papel das cidades na gestão dos riscos
e dos desastres associados às mudanças climáticas e à redução da vulnerabilidade
social (UN-Habitat, 2017). Tal abordagem holística permitiria identificar as
necessidades prioritárias de cada cidade, bem como estabelecer os elos entre
as medidas de adaptação e mitigação, com o intuito de construir espaços urbanos
mais resilientes, inclusivos e sustentáveis.
Diante desses apontamentos, os desafios brasileiros parecem ainda maiores,
tornando a superação de entraves históricos ainda mais necessária. Isso porque
a atuação estatal tem se mostrado, no mínimo, difusa e pouco coesa, quando
não antagônica com a construção de cidades e metrópoles mais equilibradas e
menos desiguais. As diferentes escalas institucionais também colecionam poucas
experiências coesas nesse sentido. Um protagonismo federal pode reunir os
elementos que contribuam para que se aproximem os agentes e os instrumentos
para atuação sobre esse conjunto de temas, a partir desse olhar transversal, pro-
curando dar espaço e voz a diferentes camadas da sociedade.
Essa perspectiva, entretanto, esbarra em discussões e nós extremamente com-
plexos. São necessários novos acordos relacionados à autonomia federativa, por
exemplo, para a construção de novos entendimentos e práticas na relação entre os
entes federados. Passa, ainda, pela superação de abordagens setorializadas, abrindo
espaço para perspectivas transversais e integradas. Por fim, é imprescindível ousar
e rever práticas do mercado de trabalho e imobiliárias que reforçam direta ou
indiretamente a nossa extensa coleção de desigualdades urbanas.

REFERÊNCIAS
BASSANEZI, M. S. C. B. (Org.). São Paulo do passado: dados demográficos
1920. Campinas: Ed. Unicamp, 1999. v. 6. Disponível em: https://www.nepo.
unicamp.br/publicacoes/censos/1920.pdf.
BRAND, U.; WISSEN, M. The imperial mode of living: everyday life and the
ecological crisis of capitalism. Londres: Verso, 2021.
Meio ambiente e a (re)produção das desigualdades sociais nas metrópoles brasileiras | 269

CANO, W. Raízes da concentração industrial em São Paulo. São Paulo: T. A.


Queiroz, 1981.
CANO, W. Ensaios sobre a crise urbana do Brasil. Campinas: Ed. Unicamp, 2011.
DEDECCA, C. S.; BALTAR, P. E. Precariedade ocupacional e relações de tra-
balho no Brasil nos anos 90. In: CONGRESSO DA ASSOCIAÇÃO LATINO-
-AMERICANA DE SOCIOLOGIA, 21., 1997, São Paulo. Anais... São Paulo:
Dieese, 2001. Disponível em: https://www.revistas.usp.br/ee/article/view/161319.
FRANGETTO, F. W. Apoio à formulação da PNDU: meio ambiente e sustenta-
bilidade. Brasília: Ipea, 2023. (Nota Técnica, n. 10). Versão Preliminar. Disponível
em: https://drive.google.com/file/d/1Uj3MkIs-tvQi9Phx1XIaDslrqdCan_vx/view.
FUNARI, A. P. Apropriação desigual da cidade: elementos para avaliação da
segregação urbana em São Paulo 2000- 2010. 2017. Tese (Doutorado) – Programa
de Pós-Graduação em Desenvolvimento Econômico, Universidade Estadual de
Campinas, Campinas, 2017.
FURTADO, C. O mito do desenvolvimento econômico. Rio de Janeiro: Paz
e Terra, 1973.
HARVEY, D. A produção capitalista do espaço. São Paulo: Annablume, 2005.
252 p.
IPCC – THE INTERGOVERNMENTAL PANEL ON CLIMATE CHANGE.
Climate Change 2014: synthesis report. Genebra: IPCC, 2014. Disponível em:
https://www.ipcc.ch/site/assets/uploads/2018/02/SYR_AR5_FINAL_full.pdf .
IPCC – THE INTERGOVERNMENTAL PANEL ON CLIMATE CHANGE.
Summary for policymakers. In: IPCC – THE INTERGOVERNMENTAL PA-
NEL ON CLIMATE CHANGE. Climate Change 2022: impacts, adaptation,
and vulnerability. Cambridge, Londres; Nova York: Cambridge University Press,
2022. p. 3-33. Disponível em: https://www.ipcc.ch/report/ar6/wg2/downloads/
report/IPCC_AR6_WGII_SummaryForPolicymakers.pdf.
KLUG, L. Resiliência e ecologia urbana. In: COSTA, M. A.; MAGALHÃES,
M. T. Q.; FAVARÃO, C. B. (Org.). A nova agenda urbana e o Brasil: insumos
para sua construção e desafios a sua implementação. 1. ed. Brasília: Ipea, 2018.
v. 1, p. 83-90.
KLUG, L.; MARENGO, J. A.; LUEDEMANN, G. Mudanças climáticas e os
desafios brasileiros para implementação da Nova Agenda Urbana. In: COSTA,
M. A. (Org.). O Estatuto da Cidade e a habitat III: um balanço de quinze anos
da política urbana no Brasil e a Nova Agenda Urbana. 1. ed. Brasília: Ipea, 2016.
v. 1, p. 303-322.
KOWARICK, L. A espoliação urbana. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1979.
270 | 50 anos de regiões metropolitanas no Brasil e a Política Nacional de Desenvolvimento Urbano

LEFEBVRE, H. O direito à cidade. 2. ed. São Paulo: Centauro, 2001.


NOGUEIRA, O. O desenvolvimento de São Paulo: imigração estrangeira e
nacional e índices demográficos, demógrafo-sanitários e educacionais. São Paulo:
CIBPU, 1964.
OLIVEIRA, F. de. Crítica à razão dualista: o ornitorrinco. São Paulo, Boitempo,
31 dez. 2003.
O’NEILL, J.; SPASH, C. L. Conceptions of value in environmental decision-
-making. Environmental Values, v. 9, n. 4, p. 521-535, 2000.
PRADO JUNIOR, C. História econômica do Brasil. São Paulo: Brasiliense, 1970.
RAWORTH, K. Doughnut economics: seven ways to think like a 21st century
economist. Londres: Random House, 2017.
SEVCENKO, N. Orfeu extático na metrópole: São Paulo, sociedade e cultura
nos frementes anos 20. São Paulo: Companhia das Letras, 1992.
SHABAN, A.; DATTA, A. Towards ‘slow’ and ‘moderated’ urbanism. Economic
and Political Weekly, v. 54, n. 48, p. 36-42, 2019.
SPASH, C. L. Bulldozing biodiversity: the economics of offsets and trading-in
nature. Biological Conservation, v. 192, p. 541-551, 2015.
UN – UNITED NATIONS. Growth of the world's urban and rural population:
1920-2000. Nova York: UN, 1969. (Population Studies, n. 44).
UN-HABITAT – UNITED NATIONS HUMAN SETTLEMENTS PROGRAM-
ME. Documentos temáticos da habitat III: 17 – cidades, mudanças climáticas e
a gestão de riscos de desastres. In: CONFERÊNCIA SOBRE HABITAÇÃO E
DESENVOLVIMENTO URBANO SUSTENTÁVEL, 3., 2016, Quito. Anais...
Nova York: United Nations, 2015. Disponível em: https://habitat3.org/wp-content/
uploads/17-Cidades-Mudan%C3%A7as-Clim%C3%A1ticas-e-a-Gest%C3%A3o-
-de-Riscos-de-Desastres_final.pdf. Acesso em: ago. 2023.
UN-HABITAT – UNITED NATIONS HUMAN SETTLEMENTS PRO-
GRAMME. Habitat III: issue papers. In: CONFERÊNCIA SOBRE HABITA-
ÇÃO E DESENVOLVIMENTO URBANO SUSTENTÁVEL, 3., 2016, Quito.
Anais... Nova York: United Nations, 2017. Disponível em: https://habitat3.org/
wp-content/uploads/Habitat-III-Issue-Papers-report.pdf.
VILLAÇA, F. Uma contribuição para a história do planejamento urbano no Brasil.
In: DEÁK, C.; SCHIFFER, S. R. (Org.). O processo de urbanização no Brasil.
São Paulo: Ed. USP, 1999. p. 169-243.
VILLAÇA, F. Espaço intra-urbano no Brasil. 2. ed. São Paulo: Studio Nobel, 2001.
Meio ambiente e a (re)produção das desigualdades sociais nas metrópoles brasileiras | 271

BIBLIOGRAFIA COMPLEMENTAR
IPCC – THE INTERGOVERNMENTAL PANEL ON CLIMATE CHANGE.
Summary for policymakers. In: IPCC – THE INTERGOVERNMENTAL PANEL
ON CLIMATE CHANGE. Global warming of 1.5 °C. Cambridge, Londres; Nova
York: Cambridge University Press, 2018. p. 3-24. Disponível em: https://www.
ipcc.ch/site/assets/uploads/sites/2/2022/06/SPM_version_report_LR.pdf.
UN – UNITED NATIONS. Objetivo de desenvolvimento sustentável 11: cidades
e comunidades sustentáveis. Nação Unidas Brasil, [s.d.]. Disponível em: https://
brasil.un.org/pt-br/sdgs/11.
FURTADO, C. Formação econômica do Brasil. 18. ed. São Paulo: Companhia
Editora Nacional, 1982.
CAPÍTULO 15

TRANSFORMAÇÃO DIGITAL E A INCORPORAÇÃO DE NOVAS


TECNOLOGIAS DE INFORMAÇÃO NA GESTÃO METROPOLITANA:
ENTREVISTA COM REGINA HELENA ALVES DA SILVA1
Entrevistada
Regina Helena Alves da Silva

Entrevistadores2
Raphael Brito Faustino
Marco Aurélio Costa

Ipea: O processo contemporâneo de transformação digital incorpora ao planeja-


mento urbano e metropolitano aspectos relacionados ao campo da comunicação
e da tecnologia. Na busca por um panorama sobre a inserção desses campos no
planejamento urbano, quais possibilidades, limites e pontos de atenção você con-
sidera centrais na intersecção entre essas áreas do conhecimento?
Regina Helena Alves da Silva: No Brasil se fala disso há muito tempo. O Brasil
tem um problema. Falamos, discutimos e participamos de congressos internacionais,
escrevemos etc., mas não pomos os pés no chão.
Acredito que, na transformação digital, não temos uma preocupação do go-
verno com a implementação mais assertiva. Para ser justa, começamos a ouvir/falar
(em termos de governo, e não de governança) sobre a vinculação com a questão
urbana desde o governo Fernando Henrique Cardoso (FHC), quando se entendia
que era preciso distribuir o acesso. A discussão continuou no primeiro e no segundo
governos Lula. As pessoas entenderam então que, se não houver acesso, sem cabear
tudo, não adianta se discutir isso. Essa discussão foi por muito tempo pensada, e
depois ela se perdeu.
Se se quer pensar em transformação digital, deve-se unir essas questões.
É necessária uma compreensão da necessidade de conexão. E é necessário compreen-
der que se trata de uma questão de comunicação. Em um momento, eles – governo –
entenderam que era uma ideia de informação – “eu falo, você aprende” –, e tanto
faz o jeito de fazer isso. A comunicação requer a interação, e, para ter interação,
é preciso dar os mesmos elementos para todos. Então precisa haver acesso para

1. Entrevista realizada em 17 de abril de 2023, às 10h, via chamada de vídeo.


2. Os entrevistadores são indicados no texto como Ipea.
274 | 50 anos de regiões metropolitanas no Brasil e a Política Nacional de Desenvolvimento Urbano

todos. Não estou falando de smartphone para pobre na favela. Não é disso que eu
estou falando. É necessário haver uma estrutura no município, e isso é complexo.
A infraestrutura não é discutida. Não se vê a discussão do acesso à tecnologia.
Uma prefeitura compra um sistema de sinal de trânsito, aí o conecta com os sinais
e pronto. Isso não é transformação digital. A transformação digital é igual a uma
estrada: se não houver infraestrutura, uma coisa não vai de um lado para o outro.
Isso vi sumir um pouco, como pensar a infraestrutura de cabeamento.
No governo FHC, havia a distribuição de antenas por satélite para chegar
a áreas bem remotas do Brasil. Depois, no primeiro governo Lula, havia toda a
infraestrutura de telecomunicações; cediam-se as concessões etc. se colocassem
orelhão nos lugares mais distantes e sem acesso. Havia, por parte das empresas de
telecomunicações, a obrigação de fazer algumas coisas. Então iam lá no cabrobó do
Judas [sic] para pôr um orelhão; a infraestrutura deveria ser levada.
A internet, para interligar todo mundo, tem a mesma lógica. É possível
acessá-la via satélite etc., mas é necessário ter esse acesso. Nenhum município
faz uma transformação digital se não tiver acesso. Na nota técnica,3 insisti na
inclusão digital por causa disso. As pesquisas do Centro Regional de Estudos
para o Desenvolvimento da Sociedade da Informação (Cetic) mostram quantas
prefeituras estão cabeadas, quantas têm site, têm plataforma etc., mas não adianta
nada se o município não tiver acesso. Então há essa parte da infraestrutura como
primeiro ponto.
Uma outra parte é saber lidar com isso. Os municípios compram o acesso à
tecnologia, mas eles não sabem lidar com isso. Eles fazem contratos com empresas.
Ora, terminei a nota técnica com a questão da inteligência do município.
Porque, se o município não tiver inteligência para lidar com isso, não adianta con-
tratar uma empresa de cidade inteligente, um grupo de pesquisa da universidade.
É necessário que haja uma inteligência para lidar com isso, e a inteligência de cada
cidade é diferente.
É um outro problema do Brasil. O Brasil vive por tutoriais, cria um e o espalha
da Amazônia a São Paulo. Certa vez em Goiânia, em um encontro de estudos urba-
nos, uma pessoa falou que havia um plano diretor no interior de Goiás que tinha
um capítulo sobre a proteção da Serra do Mar. É um copia-e-cola; o povo faz um
pacote de transformação digital para São Paulo e o leva lá para o interior do Pará.
Então é necessário que se tenha uma inteligência instalada para lidar com
isso, e a transformação digital requer que se saiba o que é digital e o que é virtual.
As pessoas confundem isso, e a gestão pública também confunde isso. O digital

3. Nota 9: Transformação digital. Disponível em: http://brasilmetropolitano.ipea.gov.br/#biblioteca.


Transformação digital e a incorporação de novas tecnologias de informação | 275

é digitalização, é a transformação de coisas no digital. O virtual é um ambiente


que não se diferencia do real, mas que possibilita uma série de coisas no mesmo
espaço e a distância. São duas coisas diferentes. Se visitarmos qualquer município
hoje e entrarmos na diretoria de tecnologia, ninguém fará essa distinção. Não há
digitalização dos municípios e não há municípios trabalhando no ambiente digi-
tal. Os municípios compram plataformas, e isso não é a mesma coisa. O meio de
interação também é pouco discutido.
E a terceira coisa é: o que fazer com isso? Não há nos municípios brasileiros
pessoas tecnicamente qualificadas para lidar com o que isso gera. E o que é que isso
gera? Dados. O Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) produz um monte
de dados e vem com o “bê-á-bá”. Gerou os dados assim, foi feito assim, serve para
isso. O corpo técnico dos municípios sabe para que servem as plataformas que têm
os dados. O Índice de Desenvolvimento Humano (IDH), por exemplo, todo o
município sabe sobre ele, mas não sabe como gerar a informação e o que significam
essas coisas para a vida do município. É raro encontrar alguém que entende disso.
E mais, como o Brasil fez uma política de digitalização e geração de dados –
sem coordenação –, cada um para um lado, a maioria dos dados brasileiros não
conversam entre si. Eles não conversam entre si dentro dos municípios e das
regiões metropolitanas.
Temos muitas plataformas de dados, algumas muito boas, mas que não se
interconectam. Não se gera análise de dados a partir do digital. Assim, a relação
entre as diversas bases, que permitiria a automação de uma parte da análise de
dados, não ocorre. As bases fazem um pouco de análise, mas o humano não con-
segue lidar com essa análise. Vamos no município, dentro da prefeitura, e eles não
conseguem fazer isso, e temos pouca inteligência artificial para oferecer. Ciência de
dados é uma coisa muito pouco disseminada no Brasil. Por exemplo, tem todo um
trabalho que o município poderia estar qualificado para fazer porque é ele quem
vai fazer o cruzamento. Esse trabalho pode ser rápido, semiautomatizado, mas não
é feito, nem mesmo em regiões metropolitanas.
Por exemplo, havia uma plataforma que alguns alunos fizeram de agregação
de dados dos gastos de uma prefeitura. A plataforma tem os gastos, as empresas
com contratos, as áreas de atuação – é um portal da transparência voltado para
os setores de uma prefeitura. No entanto, para coleta de dados, tem um portal
da transparência para Belo Horizonte; outro feito de outra forma para Betim;
outro para Contagem, para usar uma grande região metropolitana como exemplo.
Há esses portais para esses vários municípios, mas isso não gera inteligência de
análise de um planejamento integrado. Ou seja, vimos vários planos metropolitanos,
mas não vimos ainda uma análise de gasto integrado, uma análise de dados integra-
dos automatizada. Ao fazer um grande plano metropolitano, realiza-se uma grande
276 | 50 anos de regiões metropolitanas no Brasil e a Política Nacional de Desenvolvimento Urbano

quantidade de pesquisa, gera-se grande quantidade de dados, faz-se uma proposta, e


pouca informação gerada é utilizada. Não há uma plataforma integrada que se utilize
disso para gerar conhecimento, para que isso tenha continuidade. Transformação
digital é isso.
Esse grande plano metropolitano que foi feito na Região Metropolitana
de Belo Horizonte, há um tempo, por exemplo, gerou dados que já mudaram.
Ele gerou propostas que já mudaram. Sabemos lidar com o espaço, mas não
sabemos lidar com o tempo. Transformação digital ocorrerá quando soubermos
lidar com o tempo.
Precisamos de vários elementos. A interação humano-máquina também é
muito ruim; essa questão está contida na inclusão digital. Nesse aspecto, também
estamos muito ruins. O Brasil é um dos países do mundo que trabalhou a ideia de
inclusão digital, como pacote Office, aula de informática e pesquisa no Google –
essa foi a inclusão digital no Brasil, e não se trata disso.
Por exemplo, existe uma plataforma com a qual trabalhamos na Universidade
Federal de Minas Gerais (UFMG) que se chama Lemonade. Ela possibilita fazer
algum tipo de programação sem precisar desenvolver algoritmos. Existem “caixi-
nhas” com dados de um lado, e propomos: “quero cruzar saúde com saneamento”.
Porém, deve-se estar o tempo todo enchendo a “caixinha” de saúde, a caixinha
de saneamento. O tempo todo, é necessário colocar dados; não se pode parar de
colocar dados. Não se pode parar e colocar apenas os dados de 2010. Há outras
bases de dados, e precisa-se continuar alimentando a plataforma. Em determinado
momento, ao juntar essas duas caixinhas com índice de violência, por exemplo,
em vez de programar um algoritmo, selecionam-se as caixinhas, e isso gera uma
análise de dados automatizada. Quem sabe mexer com isso? Ninguém. Quase
ninguém. É fácil mexer, mas a lógica de transformação digital nos municípios
não chega a isso.
Outro exemplo: no município de Brumadinho, depois daquele desastre do
rompimento, vimos os postos de saúde preencherem um papel – é uma folha de
ofício –, e funcionários preenchem o dia inteiro os atendimentos, as perícias, as
vacinas etc. No final do dia, as informações são levadas para a prefeitura, e, no dia
seguinte, alguém digita aquilo tudo em um e-mail e o manda para uma empresa
no Espírito Santo. Então essa empresa coloca isso na base do Sistema Único de
Saúde (SUS). Não é possível transformação digital no município dessa maneira.
Logo após o rompimento, quando estavam tentando desesperadamente resgatar
pessoas soterradas, foi tentada a localização por sinal do celular. Mas como fazer
isso em um município sem conexão? Um município onde apenas uma pequena
parte do território tem sinal para celular?
Transformação digital e a incorporação de novas tecnologias de informação | 277

Outra possibilidade é uma transformação total na governança, porque a


transformação digital possibilita uma governança integrada, inclusive das grandes
regiões metropolitanas, em termos técnicos da gestão urbana, do poder público, o
que possibilita uma grande participação técnica. Governança não é só ficar votando
projeto para ver o quanto vai e aonde vai um pedacinho do orçamento. Não é isso.
Primeiro, ele possibilita o entendimento sobre o orçamento.
A ideia inicial do orçamento participativo, no fim da ditadura militar, quando
começamos a pensar nisso, era a população de um município compreender o que
era o orçamento do município e entender a forma como esse orçamento era uti-
lizado e poderia ser utilizado. Não era para votar em “projetinhos” para periferia,
centro cultural e posto de saúde. Nunca foi isso, mas acabou se transformando
nisso. A inteligência da coisa, a interação, a capacidade de compreensão do que é
a gestão do coletivo sumiram.
Uma transformação digital só funciona assim. Vi, há muitos anos, uma
série de possibilidades de participação em projetos (é disso que se trata; não é
orçamento participativo) em que se escolhia o projeto, mas podia-se colocar uma
parte do projeto, podia-se fazer a discussão. Então um orçamento participativo,
nos moldes do Brasil, teria que ser assim, mas nem isso é. Essa governança em uma
efetiva transformação digital, a governança das questões todas, passa por outros
caminhos que não esses que nós estamos pensando, mas em termos de prestação
de contas à população.
Por exemplo, há cidades com uma plataforma com acesso pelo número do
Imposto sobre a Propriedade Predial e Territorial Urbana (IPTU) ou do Cadastro
de Pessoas Físicas – CPF (um número que todos tenham) na qual se pode marcar
uma obra da prefeitura na pracinha em frente à sua casa. Escreve-se o que se quer, e
isso aparece em vermelho na plataforma para todo mundo ver. Assim, a solicitação
está on-line. A prefeitura recebe a solicitação e a encaminha para o órgão respon-
sável. Quando chega ao órgão responsável, vê-se a prefeitura a encaminhando e
o status do processo de solicitação ficando amarelo. Em resumo, processa-se uma
série de coisas, e, quando resolvidas, o status fica verde. Todo mundo vê que isso
é uma plataforma de accountability, de prestação de contas, de transparência, e
nós não temos isso. Essa interação humano-máquina tem que ser uma interação
representante-representado, tem que ser uma interação democrática.
Isso também não existe dessa maneira porque, para todos entenderem como
funciona, é preciso que todos vejam como funciona, e não uma prefeitura ligar
para alguém e falar assim: “Resolvemos o problema da sua praça”. Nem isso será
visto no aplicativo. Isso não é a transformação digital. Aparecer no aplicativo que
receberam uma denúncia e que a encaminharam para solução apenas na conta
278 | 50 anos de regiões metropolitanas no Brasil e a Política Nacional de Desenvolvimento Urbano

individual do aplicativo. Tem que ser uma coisa para o município como um
todo, para a cidade como um todo, para o coletivo. São várias etapas para termos
efetivamente uma transformação digital. Qual é a mais fácil? Creio que no Brasil
é a questão dos dados, porque essa forma de governança está muito longe, mas
trabalhar com os dados ainda é uma coisa extremamente possível atualmente.
Ipea: Essas transformações tecnológicas, que temos acompanhado nos últimos
anos, são interessantes porque, ao analisar um município, imagina-se que o básico
seria ter as informações do município digitalizadas e disponibilizadas para consulta
das pessoas, das empresas que querem fazer algum empreendimento etc. Porém,
é uma dificuldade enorme ter essas plantas cadastrais digitalizadas; pouquíssimas
prefeituras têm isso; e menos ainda são disponibilizadas para o grande público.
Ao mesmo tempo, existe esse movimento de venda das cidades inteligentes, um
grande mercado das cidades inteligentes. Por um lado, o que vemos são municípios
em que não há nada digitalizado, informações não disponibilizadas, inclusive para
os próprios empreendedores. Por outro lado, há projetos de cidades inteligentes
nesses mesmos municípios. Projetos que são na verdade grandes loteamentos
econômicos. Como é que avançaremos, pensando especialmente nas regiões
metropolitanas? Como ter um olhar metropolitano se não temos a integração
dessas informações?
Regina Helena Alves da Silva: Há uma expressão que repito sempre: o Brasil
faz política pública por edital. Não há efetivamente política. Acompanho alguns
grupos de cidades inteligentes, e eles são basicamente grupos de editais e de
empresas de soluções pontuais. Não há uma política, no Brasil, efetiva de trans-
formação digital, e não de cidades inteligentes. Afinal, toda cidade é inteligente;
caso contrário, ela teria morrido. A inteligência não significa sucesso, significa
sobreviver. Contudo, nesses grupos, só vemos editais e outras coisas pontuais.
É isso o que estamos discutindo aqui. É necessária uma política pública
efetiva. Reconheço que há alguns investimentos, mas é preciso tirar o dinheiro do
edital e colocá-lo aí. Na verdade, destruímos aos poucos o Estado. Nós retiramos
essa capacidade técnica do Estado.
Temos um Ipea, existe um Ipea no Brasil. Olha o tamanho do Brasil. Existe
uma Fundação João Pinheiro,4 uma escola de governo, uma escola de administra-
ção. Quem sabe disso? Para onde vão essas pessoas? Qual é o investimento nisso?

4. Instituição de pesquisa e ensino do governo do estado de Minas Gerais cuja missão é “contribuir estrategicamente
para efetividade de políticas públicas relevantes para a sociedade, interligando competências técnico-científicas e gestão
governamental”. Disponível em: https://fjp.mg.gov.br/.
Transformação digital e a incorporação de novas tecnologias de informação | 279

Há pouquíssima capacidade técnica digital nos servidores do governo. Temos


em alguns lugares, e isso não está bem distribuído. Tem uma área tecnológica nesse
ministério, uma área tecnológica no outro, mas uma conversa com a outra?
Existe uma política efetiva para chegar aos municípios? Não! Falta uma com-
preensão melhor do que é a política pública de transformação digital. Nós temos
planos.5 Temos uma série de coisas, mas a maioria fica no papel. Não chega até a
ponta. Quando chega, é cobrança, por exemplo, tem que ter um plano diretor.
O município entende o que é um plano diretor? Os prefeitos do Brasil sabem o
que é um plano diretor ou sabem que têm que comprar um? Sabem usá-lo para
a gestão ou pensam apenas que é um instrumento que limita os seus poderes?
Essa é uma desinteligência.
A política de transformação digital urbana ou municipal, o nome que queira-
mos dar para isso, não se iniciou ainda no Brasil. Ela nem começou a ser discutida.
Ela ainda não faz sentido. Ela é muito papel escrito e pouca ação. E essa lógica
do inteligente, da cidade inteligente… Quem é inteligente já se apropriou disso
e já tem seus loteamentos. Quem captou a possibilidade de conseguir um finan-
ciamento para isso já o pegou. Mas não pegou para uma efetiva transformação
digital do município. Acho que há uma desconexão nessa forma, uma desconexão
na política pública. Tínhamos dois lugares em que a política pública conseguia
chegar até a ponta um pouco melhor, que era na saúde e na educação. Agora
implodiu a educação.
Com isso, vem a outra questão – o letramento digital. Não gosto de usar
a expressão inclusão digital. Sem letramento digital, não se leem os dados. Só se
geram os dados. Assim é que se faz uma política de edital. Quem entende faz uma
proposta, mas a maioria das pessoas que conheço, as que vendem pacotes de cidade
inteligente, não entendem de nada urbano, não entendem de planejamento urba-
no. Elas nunca passaram por isso, não sabem o que significa a integração de um
município com o outro, não sabem o que é uma região metropolitana. Entendem
o espaço como o espaço virtual de criação de rede com vários lugares. Ok, isso
é necessário, mas o espaço físico limítrofe não passa pela cabeça de quem tem a
lógica virtual, e isso é um problema gravíssimo, porque as regiões metropolitanas
no Brasil são intensamente interativas e integradas, com problemas, coisas boas
e coisas ruins.
Os meus colegas dessa área que vendem pacotes de cidades inteligentes têm
a dimensão da área deles, e isso é outro problema, um parcelamento do conheci-
mento sobre o urbano. Por exemplo, uma pessoa entende de mobilidade urbana,
então azar do resto, das demais áreas. Ela vai vender um pacote de mobilidade

5. Disponível em: https://www.gov.br/governodigital/pt-br/transformacao-digital e https://www.gov.br/governodigital/


pt-br/sisp/guia-do-gestor/ptd.
280 | 50 anos de regiões metropolitanas no Brasil e a Política Nacional de Desenvolvimento Urbano

urbana. Ela pode até entender que o povo que mora em Vespasiano trabalha em
Belo Horizonte, mas o pacote é para integração em rede. Ela pode integrar
em rede Vespasiano, porém Vespasiano não tem nada na prefeitura. É uma falta
de compreensão de como funcionam as relações municipais no Brasil, entre quem
propõe essas coisas tecnológicas.
Como nós temos uma universidade do século XIX, não temos o conhecimento
integrado. Nós não temos no Brasil uma universidade que integre os profissionais
da computação com o pessoal do planejamento urbano, com o pessoal das ciências
sociais. Eles vão aprender isso na marra. Contratam-se técnicos que entendem
apenas do campo restrito deles.
Ipea: Considerando essa discussão importante sobre a necessidade de inte-
gração entre os diferentes campos, uma outra questão que permeia as conversas
sobre a cidade inteligente, sobre a transformação digital no urbano, tem relação
com o papel das grandes empresas de tecnologia. Você entende que essa conexão
está sendo feita a partir do viés das grandes empresas de tecnologia?
Em caso afirmativo, quais as consequências disso? Considerando as capaci-
dades estatais em conduzir esse processo, haveria alternativas sem a participação
dessas grandes empresas?
Além dessa dimensão global, a partir das big techs, como você mesmo des-
creveu, temos empresas locais que também se impõem sobre a governança do
município. São essas pequenas soluções locais que acabam conduzindo, ao menos
em parte, essas discussões. Existe, então, uma questão global, das grandes empresas
de tecnologias, que se impõe sobre a questão do Estado. Existe, também, um bloco
local de empresas nacionais que vão oferecer pequenos serviços e tentar oferecer
pequenas soluções para os municípios. Como conduzir esse processo e promover
o interesse comum?
Regina Helena Alves da Silva: Para quem trabalha com transformação digital
urbana, essa discussão não aparece. Tem a ver com o que falei, temos uma formação
muito compartimentada. Já presenciei discussões nas quais as pessoas nem fazem
esse raciocínio, nem passa por aí. Por exemplo, chega com seu pacote a uma cidade
e lá descobre que tem um provedor de internet do irmão do prefeito. E aí vira
aquela meleca. Então essa grande não aparece.
E estamos em um momento de grande transformação das bases daquilo que
vivemos nos últimos séculos, poucos séculos. O papel do estado hoje e do Estado
nacional está balançando. Poderia responder assim: o Estado tem que assumir isso,
assim como assumiu o subsolo. Se ele não assumir, não tem jeito. Porém, não é a res-
posta para os tempos atuais.
Transformação digital e a incorporação de novas tecnologias de informação | 281

Acho que nós estamos em um intenso momento de transformação e para


o qual não temos resposta. Criamos esses híbridos sem sentido, tudo o que foi
abordado aqui. Falta inteligência ao Estado, faltam técnicos ao Estado. Vivenciamos
uma grande onda de esvaziamento da capacidade técnica do Estado.
Vejo uma grande dificuldade. Creio que tenhamos possibilidades, por exemplo,
de trabalho integrado entre áreas do Estado. O exemplo que citei da plataforma
da UFMG, sobre oferecer a formação em ciência de dados... Vamos dar formação
em ciência de dados para servidor público federal. A plataforma está instalada
no Ministério da Saúde; tentamos no Ministério dos Direitos Humanos, e não
deu certo. Está no Ministério Público daqui – Minas Gerais. Ou seja, temos uma
capacidade dentro do Estado que o próprio Estado não conhece, mas que a área
privada conhece muito bem.
Falando pelo lado da universidade, temos horror a trabalhar com a área pri-
vada, mas todas as universidades federais no Brasil estão sendo sustentadas pela
área privada. Mas isso nós só não contamos.
Quando estive na Finlândia, visitei um desses polos de inovação e startup
dentro da Universidade de Helsinque. Ao chegar lá, era um monte de menino,
um monte de jovens. Eles me falaram o seguinte: “aqui é uma startup da univer-
sidade, então os alunos criam suas empresas, treinam e aprendem trabalhando
para o Estado”.
Há poucos dias, dei uma palestra aqui em Belo Horizonte, em um prédio no
centro da cidade, que foi totalmente restaurado pelo governo do estado de Minas
Gerais com dinheiro do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social
(BNDES). É um prédio para alugar para startup. Elas pagam o aluguel e é assim
que o governo recebe uma grana. Abre-se uma startup lá e trabalha-se para quem
quiser. Gerenciado por quem? Pela Federação das Indústrias do Estado de Minas
Gerais (FIEMG). E quem de Belo Horizonte abriu uma startup lá? Ninguém!
Quem que está ocupando um pouco do prédio? O governo do estado.
Mesmo com o fim do Estado, que não verei, mas os meus netos, sim, ve-
rão o fim desse Estado nacional. Ele está morrendo. Agora há uma inteligência
constituída pelo Estado que não integramos; trata-se novamente de integração.
Entendo que o papel do Estado no Brasil, seja o governo de esquerda, seja o de
direita, é o esvaziamento. Porém, os motivos são diferentes, mas esvaziamento é
o que observamos. Olha o que o Ipea já foi e o que o Ipea é hoje, em termos de
importância, de inteligência, de pesquisa para o governo. Duvido muito de que
alguém de algum ministério que não seja ligado ao Ipea leia o que o Ipea produz.
Não temos essa integração do Estado. Acho que, em termos de transformação
digital, é possível, mas apenas se verificarmos o Estado trabalhando com o Estado.
282 | 50 anos de regiões metropolitanas no Brasil e a Política Nacional de Desenvolvimento Urbano

Na verdade, no primeiro momento, reage-se e fala-se assim: é igual ao petróleo,


e o Estado tem que fazer a infraestrutura. Mas ele vai prover depois? Nós não somos
China ou Rússia. Não será possível, porque na China há possibilidade de escolha.
Nós estamos patinando nas relações com as big techs; os outros Estados nacionais
têm tentado regular essa relação, impor limites às big, trazê-las para dentro do
Estado e regulá-las de acordo com as imensas capacidades que elas têm. Como
lidar com megaempresas transnacionais profundamente capilarizadas? Como criar
uma relação que possa trazer benefícios ao país e organizar a gestão dessa relação?
Tudo isso é novo. Aqui no Brasil não temos uma discussão amadurecida sobre
isso. Quando falamos disso, discutimos um Projeto de Lei (PL) das fake news.
Ou seja, fomos capturados pela borda das relações com essas empresas, bordas que
já têm legislação e ações de monitoramento e punição. Deixamos de lado o que as
big podem trazer para o país e olhamos apenas pela lente desfocada.
Ipea: Essa discussão inclui, também, fatores geopolíticos, que são as disputas
entre grandes Estados e as questões da tecnologia contemporânea, e o Brasil se
coloca nessa discussão de maneira muito subordinada. Aqui aceitamos ou rece-
bemos a tecnologia que nos é disponibilizada. Temos uma discussão que trata
da soberania dos Estados nacionais sobre tecnologia, a qual depois se reflete nas
questões locais. Boa parte das soluções tecnológicas incorporadas nos projetos de
cidades inteligentes é definida por grandes corporações globais, o que, no nosso
entendimento, limita ou até retira parte da autonomia local nesse processo. Para o
caso brasileiro, esse processo torna-se ainda mais complexo devido à subordinação
tecnológica que o país enfrenta. Em âmbito local, como equacionar esse problema,
que está em esfera nacional e global, e reavaliar as relações urbanas/metropolitanas
com a tecnologia, os dados e a infraestrutura?
Regina Helena Alves da Silva: Acredito que teremos que desenvolver essa
habilidade de pensar assim. Para problemas locais, será necessária uma habilidade
de pensar transnacionalmente. Essa grande onda global compreende que existem
especificidades locais; caso contrário, ela não funcionaria. Não é à toa que há essa
onda toda de diversidade, compreensão local, culturas locais – não é só pela nossa
luta. É um bom exemplo desse conhecimento local. Ele é importantíssimo para
essas grandes formas de atuar no mundo, mas ele é importantíssimo para o local
também. E isso nós – brasileiros – jogamos fora. Achamos isso menor.
Antigamente apostávamos demais no município. De repente, começamos a
apostar no governo federal. Mas antes apostávamos na compreensão do município.
Algo que temos e que deve ser reconhecido como ouro são os nossos alunos
de computação que entraram na universidade por cotas, que são pobres, que vie-
ram da periferia, que são pretos e que estão no Canadá, na maior universidade de
computação do mundo. Por quê? Por causa da diversidade. Eles compreendem os
Transformação digital e a incorporação de novas tecnologias de informação | 283

vários elementos da sociedade. Eles – estudantes – estão lá fazendo mil análises,


estão fazendo doutorado etc.
E os chineses hoje invadiram todas as áreas de computação do mundo, as
grandes universidades, e eles levam as questões locais para servir de análise nos
doutorados deles. Podemos ver que tem uma quantidade significativa de produção
acadêmica chinesa publicada nas grandes revistas do mundo falando de questões da
China. Acredito que temos que passar a compreender melhor esse conhecimento
local. No final dos anos 1970, começo dos anos 1980, criamos o Bairro a Bairro,
a região metropolitana, e os ônibus tinham cores. Quando era recém-formada
em ciências sociais, trabalhei naquele projeto. O que fizemos? Fomos entender a
inteligência local, que é como termina a nota técnica.6 De qual bairro para qual
bairro saem pessoas? Na região metropolitana, como ocorrem os deslocamentos?
Criamos toda a estrutura de ônibus públicos da região de Belo Horizonte e da
Região Metropolitana de Belo Horizonte. Isso é uma inteligência local.
Há uma compreensão dessas inteligências locais e são elas que constituem
a grande inteligência global. Não é à toa que o Google pegou gente daqui e dali.
O buscador do Google funciona localmente. Ao acessar o Google aqui do seu
computador, ele traz uma coisa. Se formos para Barcelona e ficarmos morando lá
por mais de três meses, o Google nos levará a outro resultado. Ele assume deter-
minadas questões culturais e locais. Se eu fizer a busca, será diferente de você fazer
a busca mesmo aqui no Brasil.
Os elementos da inteligência artificial trazem questões do micro. Para mim,
essa é uma saída possível, mas como fazer transferência de tecnologia? Por que
buscá-la na China? Porque sabemos que é possível pedir isso lá. Quando o Brasil
resolveu fazer a Copa, cabearam todas as sedes da Copa do Mundo de Futebol de
2014 por causa da Copa. Costumo ir a uma praia que se chama Santo André-BA,
onde ficou hospedada a seleção alemã de futebol. Cabearam a cidade de Santo
André. Mas, quando acabou a Copa, acabou o cabeamento de Santo André.
Por quê? Existe uma empresa local, em Santa Cruz de Cabrália, dona do provedor
local. Quando foi necessário, o Estado fez isso. Está lá a infraestrutura. O que o
Estado fez com isso? Jogou fora ou negociou com a empresa local? Não sei o que
aconteceu. Havia cabeamento, e agora não tem mais. Tem apenas para aquelas
pousadas que pagam o provedor local ou pagam às grandes empresas de telefonia
celular. Portanto, voltou para o que havia. Mas, durante a Copa, tinha internet
veloz e boa em Santo André. Em outras cidades, a internet já foi melhor. Qual foi
a negociação feita pelo Estado? Não se sabe. Houve transferência de tecnologia?
Sei que, para a área de construção, não teve, o que foi um equívoco, porque a

6. Referida anteriormente no texto.


284 | 50 anos de regiões metropolitanas no Brasil e a Política Nacional de Desenvolvimento Urbano

Inglaterra fez isso com a Olimpíada, e a França fará agora (Paris 2024). Nós não
tivemos transferência de tecnologia de engenharia.
Há uma desinteligência nacional também. Falta formação para transformação
digital dentro dos governos. No [governo] federal também. O Estado nacional
não vai sobreviver porque ele é uma imposição. Ele é imposição violenta e cruel
sobre povos. Historicamente esses povos não são assim. Tem mais tempo de os
povos não serem assim do que de os povos serem assim. Ele [Estado nacional] vai
funcionar de outra maneira.
Como se colocar com uma inteligência local dentro desse mundo das big
techs? Qual é a interação possível? O que vamos dar em troca disso? Se for entre-
gar dinheiro, está-se no capitalismo. Se for entregar toda a infraestrutura, está-se
também no capitalismo.
Em uma fala recente, o presidente Lula destacava: “nós vamos fazer coisas, nós
vamos produzir produtos, nós não vamos ficar só nas commodities”. O presidente
Lula finalmente entendeu isso, mas é só o discurso por enquanto, porque ele foi
à China para nos colocar quase 100% dependentes de commodities, porque é a
nossa tradição. É isso o que fazemos, mas há algo no governo, e não no Estado,
que é um outro problema no Brasil, que compreende que temos que ter alguma
outra coisa para vender.
A nossa produção de dados hoje dialoga com o transnacional, porém tem
que dialogar de outra maneira. A nossa inteligência de dados tem que dialogar de
outra maneira. Foi o que o Google comprou aqui, uma inteligência de busca local.
Enfim, para uma relação com o transnacional, é fundamental entendermos o que
temos no local se vierem aqui ocupar um espaço (como foi na Copa e na Olim-
píada). Então, tem que ter transferência de tecnologia. Se quiserem nossos dados,
então o que queremos? Se quiserem se instalar em nosso espaço físico ou virtual,
o que queremos? Finalmente, o que pode agregar valor aos interesses que aqui
veem? Também temos, e tem custo.
Ipea: A utilização de inovações tecnológicas como parte da formulação de
políticas para áreas metropolitanas, em grande medida, incorpora a utilização
de dados coletados em diversos locais e variadas formas. Assumindo o pressuposto de
que dados não são neutros e que são gerados a partir de tecnologias de fácil uso e
ampla disseminação, escoradas em algoritmos de grande complexidade, acabam por
dificultar sua avaliação crítica. Tal fato pode impedir interpretações divergentes sobre
os dados e limitar a autonomia do planejamento. Como o campo da comunicação
pode oferecer suporte crítico para os temas vinculados ao planejamento urbano e
metropolitano? Como conduzir esse processo de forma democrática e promover
o interesse comum, ao mesmo tempo que se incorpora o avanço tecnológico na
formulação de políticas públicas?
Transformação digital e a incorporação de novas tecnologias de informação | 285

Regina Helena Alves da Silva: Existem duas abordagens possíveis. Para o campo
do planejamento, das nossas áreas etc. Como nós coletamos o dado? Temos me-
todologias qualitativas e quantitativas muito consolidadas, mas para coletar dados
que passam a ser fixos. Não entendemos e ainda não propusemos coletas de dados
dinâmicas. Falo por nós como pesquisadores.
É um pouco do que venho tentando fazer, mas não sou da área tecnológica.
Então, atuo mais na área de metodologia qualitativa de como trabalhar com
dados dinâmicos.
Há uma coisa que, tecnicamente, no Brasil, as pessoas não realizam: tem-se
que trabalhar nos dados desde a coleta e na forma como se produz o dado. Tem
muita inteligência nesse aspecto.
O Ipea, por exemplo, trabalha com dados coletados por outros lugares.
A forma como se buscam, agregam dinamicamente etc. esses dados é algo que
não temos trabalhado no Brasil, porque há uma mudança grande.
Sobre as coletas de dados dos algoritmos, lembro que trabalhamos em um
algoritmo em conjunto com um ex-presidente da Fundação de Amparo à Pesquisa
do Estado de Minas Gerais (Fapemig), com uma inteligência capaz de pensar as
formas de coletar dados e formas de fazer pesquisa na universidade e com empresas.
Ele não tinha inteligência de como fazer pesquisa da universidade com o Estado,
mas com empresa, sim.
Trabalhei em um projeto para a Fiat. Nesse projeto, entendi melhor os algorit-
mos e o que podem fazer. Nesse mesmo projeto, desenvolvi metodologia para uma
colega buscar os dados e analisá-los. Antes, ela me ensinou o que esses algoritmos
podem fazer. Ela me explicou: “Olha só, você tem as pessoas no Facebook, no
Twitter, em redes sociais. Elas assinaram o Facebook da Fiat… Existiam 150 mil
pessoas que interagiam no Facebook da Fiat”. E o que ela fazia? Ela desenvolveu
um algoritmo que seguia essas pessoas. Por exemplo, alguém está na página da
Fiat porque comprou um carro Fiat. É um carro e alguém quer discutir o motor;
essa pessoa faz essa discussão dentro da página da Fiat. O usuário sai da página
e passa a ser acompanhado em sua página pessoal no Facebook. Estou citando o
Facebook porque naquela época era a principal ferramenta. O usuário – em sua
página pessoal – fala onde ele comprou uma camisa, ele fala que é atleticano, ele
fala que gosta de uma música etc. O algoritmo busca tudo isso junto, e a Fiat
entrega uma propaganda para o usuário que é atleticano, que gosta da cor vinho.
O algoritmo entrega aquilo que a pessoa gosta, aquilo que ela quer. O algoritmo
entregará o que ela buscou.
É a lógica da publicidade. Esses algoritmos de redes sociais etc. surgem da lógica
da publicidade. A publicidade já fazia isso, fazia um monte de pesquisa. Se alguém
286 | 50 anos de regiões metropolitanas no Brasil e a Política Nacional de Desenvolvimento Urbano

queria lançar um produto mais inovador, lançava em Belo Horizonte e Curitiba,


que são as capitais mais conservadoras do Brasil e o acompanhava. A publicidade
sempre fez isso, mas tornou isso um algoritmo, e esse algoritmo, além de buscar a
cor que se gosta e o que se quer, busca dados sobre a pessoa. Ele constrói a pessoa.
Vejo amigas falando: “Eu procurei um colchão e agora só tem propaganda
de colchão”. No meu caso, procuro colchão e raramente volta para mim uma
propaganda de colchão. Por quê? Porque sei como procurar para a propaganda
não voltar para mim.
Entrei na plataforma utilizada na campanha eleitoral do ex-presidente dos
Estados Unidos, Donald Trump, trazida para o Brasil, a Cambridge Analytica, e
fiz meu perfil. Pelo resultado, sou um homem de 40 e poucos anos, inglês, cien-
tista. A plataforma responde por uma lógica que foi dada para ela. Pela lógica da
plataforma, não posso ser uma mulher de 60 e poucos anos por quê? Por causa
do que eu leio, por causa do que eu compro, por causa das pessoas com quem eu
converso. Há uma lógica equivocada no algoritmo também.
A inteligência artificial desenvolve algoritmos que aprendem. Eles vão
aprendendo com o uso e há um humano que vai ensinando isso para eles. Já fiz
isso para uma pesquisa eleitoral. Selecionam-se opções de: sim, não, sim, não,
sim, não, sim, não... Coloca-se uma equipe fazendo isso. É o que o Facebook faz.
Apareceu um peito (seio), a resposta é não, não, não. Não existe peito indígena,
entendeu? Existe peito. E as pessoas dizem: “Estão censurando os indígenas”.
Não estão censurando os indígenas, estão censurando peito. Falta uma inteligência
para nós também, para saber como a coisa funciona. Alguém acha que o Facebook
quer censurar indígenas? Não, pois ele ganha com isso.
Basta passarmos para uma lógica mais capitalista que percebermos que isso
é uma besteira. Então o letramento digital é um letramento de como entender
as coisas. Se olharmos para essa onda de extrema direita no mundo… A extrema
direita sabe como os algoritmos funcionam. Nós não sabemos.
Por exemplo, a Finlândia sofreu um ataque massivo da Rússia, foi um ne-
gócio absurdo por causa de coisas como Organização do Tratado do Atlântico
Norte (Otan), guerra com a Ucrânia, entre outros assuntos. A Rússia fez um
ataque massivo de fake news na Finlândia sobre o perigo da Otan, o perigo dos
Estados Unidos, uma coisa absurda. Colou? Não. Porque há uma inteligência, há
um letramento digital na Finlândia. O cidadão começa a aprender isso no ensino
infantil, passa pelo fundamental, passa pelo médio, passa pela universidade, passa
pelo dia a dia, por tudo.
No Brasil as pessoas falam assim: “Eu não vou dar meu CPF na farmácia”.
Idiota, porque está perdendo os descontos da farmácia, porque o seu CPF está na
Transformação digital e a incorporação de novas tecnologias de informação | 287

rede. O CPF é um número de identificação pública, não é ele que tornará alguém
um “refém” da farmácia.
As pessoas brigam contra aquilo que apresenta benefícios, mas não brigam
com governos que vendem nossos dados. Quando eu me aposentei, no dia seguinte,
havia oferta de crédito consignado disponível para mim. Por quê? Porque alguém
vendeu meus dados de trabalho.
Essa falta de letramento, de compreensão do mundo digital... Os meus filhos
navegam no virtual maravilhosamente bem. Eles têm uma compreensão intuitiva
do mundo digital. Agora, transformar isso em conhecimento ainda é pouco.
No caso do Brasil, é nada.
Estamos vendo que muitas pessoas estão se recusando a receber o censo. Por
quê? Por causa de dados; não querem dar os dados. São de direita, são bolsonaristas,
não me importa. Antes não existia isso. Como isso foi incorporado pela pessoa a
ponto de ela recusar um censo? É essa pergunta que tem que ser feita. Não é se ela
é isso, se ela é aquilo, mas sim o que afetou essa pessoa. E, sim, foi esse discurso
de que estão roubando os nossos dados que a afetou. Ajudamos nisso também.
Vamos coletar dados que são fundamentais para o país. O censo é fundamental
para um país, e ninguém sabe disso. Antes respondíamos o censo na toada, mas
não houve um letramento de compreensão informando para que servem os dados.
É necessário fazermos algo em termos de educação. Por exemplo, esse novo
ensino médio. Não é para voltar para o que havia antes, pois também era péssimo.
Em nenhum momento da formação, na educação, se discutem essas questões.
Mas está cheio de professor falando: “não entreguem seus dados”. O nosso dia a
dia é de medo dos dados. É achar que é uma invasão da nossa privacidade. Nós
não sabemos nem o que é privacidade. Não entendemos o que é isso. A gestão
pública não entende o que é a privacidade pública de dados.
É necessário e fundamental, no dia a dia, no cotidiano, compreendermos para
que servem os dados e, mais, o que fazemos com eles. É muito longe da realidade
das pessoas. O Ipea, uma universidade, as entidades que trabalham com dados
estão muito longe do dia a dia das pessoas. Elas não entendem isso.
Elas não entendem, por exemplo, que a lista do supermercado é um conjunto
de dados. Há um programa com o qual brincamos. Nele fazemos uma lista de
supermercado para entender essa coisa da dinâmica dos dados. Nós não temos essa
relação do cotidiano, do dia a dia, com os dados. Criamos as preferências, o gosto,
temos vários diferentes, temos os canais que usamos. Nós estamos criando dados
para nós. Nós fazemos uma pesquisa para saber qual série da Netflix queremos,
e ela é integrada com uma série de questões do cotidiano da nossa vida, da nossa
cultura de vida.
288 | 50 anos de regiões metropolitanas no Brasil e a Política Nacional de Desenvolvimento Urbano

Então o Brasil comeu mosca nessa. E aí é o Brasil. Existem muitos países que
não perderam tempo e que não são de ponta, como a Finlândia, anteriormente
citada. Eles compreendem um pouco melhor essa utilização dos dados.
Ipea: Como a Política Nacional de Desenvolvimento Urbano (PNDU) ou
como as propostas de políticas públicas voltadas para a gestão urbana e metropo-
litana podem contribuir para as questões que você levantou? Como sair de uma
política de educação, entrar na política urbana e abordar isso pela política urbana?
Regina Helena Alves da Silva: Penso que não pode ser um capítulo separado.
Estou falando em termos práticos mesmo, em cada um dos elementos que foram
aparecendo e colocando alguma coisa, anexando alguma coisa, e não apenas fazer
um capítulo de transformação digital. Precisamos de elementos para dizer onde
isso – as questões da transformação digital – está.
Como é um plano com propostas, essas propostas não devem ser compar-
timentadas, mas sim decodificadas e simplificadas para chegar a determinados
lugares. Elas devem gerar, talvez, uma campanha. Como todo plano, as propostas
deveriam estar distribuídas nesses lugares todos, muito claramente, faladas de uma
forma que as pessoas de cada lugar compreendam e, de preferência, façam cone-
xões. A ideia é quase construir um diagrama de interação. Nesse sentido, penso
em uma imagem, uma forma de tratamento matricial. Talvez assim seja possível
uma realização, na cabeça das pessoas, de uma compreensão mais interligada. Algo
mais sutil, um letramento mesmo.
CAPÍTULO 16

A METRÓPOLE DIGITAL: PARA A CRÍTICA DA ECONOMIA POLÍTICA


DAS TECNOLOGIAS DE INFORMAÇÃO E COMUNICAÇÃO
Raphael Brito Faustino

1 INTRODUÇÃO
A precariedade urbana pode ser considerada um dos maiores fenômenos globais
contemporâneos. Em múltiplas escalas e com significativas diferenças entre regiões,
principalmente quando comparadas cidades do Norte e Sul global, a ausência de
acesso a boas condições de moradia, infraestrutura urbana e sustentabilidade am-
biental nos grandes centros urbanos coloca-se como um dos grandes desafios atuais.
Promover intervenções e alterações nas cidades, entretanto, não se trata de
tarefa trivial. Harvey (2012) considera que construir e reconstruir cidades é um
dos mais negligenciados direitos humanos. Ao mesmo tempo, é vasta a literatura
que avalia a cidade como lócus fundamental na reprodução do capital e do sistema
capitalista. Nas palavras de Burgos (2014):
segundo contribuições de diversos estudiosos sobre a cidade, direito à cidade e espaço
urbano, a cidade deve ser entendida, antes de tudo, como obra. Ou seja, no sentido
de sua construção social, resultante de agentes diversos, interesses múltiplos, tensões,
conflitos e campo sempre aberto para o possível, em contraposição ao pensamento
da cidade enquanto produto, lócus de reprodução privilegiada do capital (Burgos,
2014, p. 117).
A fim de melhor compreender as possibilidades de intervenção na cidade
contemporânea, é fundamental realizar uma breve consideração sobre o paradigma
neoliberal, que caracteriza o atual estágio do capitalismo. É na perspectiva neoliberal
que se interpreta a modificação no formato de atuação do Estado, bem como as
possibilidades de gestão e governança urbana, alterando a intervenção estatal para
uma forma de promoção de um ambiente de negócios seguro para os investimentos
privados (Dardot e Laval, 2016).
Nesse cenário disseminam-se, em período recente, as possibilidades de uti-
lização de novas tecnologias como forma de solução dos problemas urbanos, em
especial por meio dos projetos de cidades inteligentes. O processo contemporâneo
de transformação digital, quando compreendido na perspectiva de intervenção
290 | 50 anos de regiões metropolitanas no Brasil e a Política Nacional de Desenvolvimento Urbano

nas cidades, deve partir do entendimento da forma como estes se encaixam nos
preceitos neoliberais.
Não se trata, por suposto, de uma negação a priori das possibilidades advindas
do avanço tecnológico e de suas inúmeras formas de uso.1 Contudo, é necessário
compreender como o avanço tecnológico faz parte dos processos de desenvolvimento
das forças produtivas fundamentais para o sistema capitalista, bem como – ainda
que oferte externalidades positivas para um conjunto da população – a própria
lógica de reprodução do sistema impede que os benefícios desenvolvidos por estes
avanços sejam amplamente universalizados (Lopes, 2013). Segundo o autor,
não é o caso, aqui, de esmiuçarmos as características da grande transformação da
ordem capitalista [...], no que nos interessa mais de perto, conferiu inaudita cen-
tralidade econômica às novas tecnologias de informação e comunicação. E isto não
só por elas (as TICs) constituírem a infraestrutura necessária para que o capital se
libertasse das amarras do modelo anterior, dito fordista (tanto no que se refere à esfera
produtiva, agora tornada mais “flexível”, quanto na conquista da intensa mobilidade
do capital financeiro) mas por constituírem novas territorialidades de acumulação
(Lopes, 2013, p. 43).
A incorporação das transformações tecnológicas na gestão e governança urbanas
tem sido discutida a partir do desenvolvimento das chamadas cidades inteligentes.
A partir de sua relação com as novas tecnologias de informação e comunicação
(TICs), o tema das cidades inteligentes e transformação digital inevitavelmente per-
passa discussões sobre o campo da comunicação. Lytras e Visvizi (2018) destacam os
campos de pesquisa sobre cidades inteligentes e reforçam que a interseção entre
os problemas sociais urbanos e as TICs permanece pouco explorada.
Considerando suas especificidades, o tema das cidades inteligentes acaba por
ser discutido a partir de diversas áreas do conhecimento, em especial na perspectiva
dos estudos urbanos, de setores ligados à comunicação, inovação e tecnologia, ou
mesmo em seus aspectos econômicos. Apresenta-se, assim, um desafio significativo,
uma vez que avaliar criticamente suas possibilidades e seus limites como forma
de enfrentamento dos problemas urbanos esbarra em articulações entre essas di-
ferentes áreas e visões.
Com essa perspectiva, este capítulo visa aprofundar as possibilidades de in-
terpretação do fenômeno urbano, bem como suas possibilidades de intervenção,
representadas aqui pelas propostas de cidades inteligentes, de forma a promover
uma visão multidisciplinar sobre o tema e, assim, discutir as possíveis articulações

1. Tarachucky e Baldessar (2019) apresentam exemplos de aplicativos que buscam estimular a mobilidade urbana por
meio de pequenas viagens a pé. As autoras consideram que existem impactos positivos dessas iniciativas tanto na esfera
social, quanto no planejamento urbano. Morozov e Bria (2019) apresentam diversos casos ao redor do mundo para
exemplificar possibilidades contra-hegemônicas a partir dos avanços tecnológicos, como a utilização de dados abertos,
construções colaborativas, plataformas de governo eletrônico, entre outras.
A metrópole digital | 291

entre os processos de transformação digital e a gestão e governança metropolitana.


Para tal, sugere-se uma análise multidisciplinar que incorpore, para além das con-
siderações dos estudos urbanos críticos, as possibilidades advindas da economia
política da comunicação (EPC).
Essa abordagem permite avançar nas interpretações sobre o tema objeto
deste texto. Como destaca Rafael Zanatta no prefácio do livro A cidade inteligente:
tecnologias urbanas e democracia, compreender os projetos de cidades inteligentes
nos leva a uma discussão sobre a economia política dos usos das novas tecnologias.
Para o autor, a discussão deve olhar para estas propostas como parte de uma agenda
neoliberal que impacta na governança das cidades e depende de uma constante
privatização de serviços públicos e novas camadas de utilização intensiva de dados.
Para Mota e Santos (2015), a EPC é um campo multidisciplinar por natureza
que, mesmo ao referendar a importância de uma economia da informação e co-
municação, destaca a insuficiência de abordagens econômicas e tecnicistas sobre os
fenômenos sociais. É neste sentido que os autores destacam a necessidade de abor-
dagens multidisciplinares que se conectem com diferentes áreas do conhecimento.
Ainda segundo Mota e Santos (2015), a EPC oferece modelos de interpretações
sobre os objetos estudados ou a possibilidade de olhar estes objetos a partir de sua
evolução histórica. Sobre as novas TICs, os autores destacam que:
no que tange aos fenômenos da comunicação e das chamadas tecnologias da infor-
mação e da comunicação (TICs), a EPC tem como papel estudar as relações sociais,
em especial as relações de poder, que constituem a produção, distribuição e consumo
de recursos, incluindo os recursos da comunicação (Mota e Santos, 2015, p. 5).
Dois aspectos vinculados às TICs estão diretamente relacionados com os
projetos de cidades inteligentes e transformação digital na gestão urbana: a infra-
estrutura de novas tecnologias e a captura e utilização de dados. Em geral, pode-se
considerar um amplo conjunto de equipamentos e tecnologias ligadas às cidades
inteligentes que compõem a infraestrutura necessária, por exemplo, inteligência
artificial, big data, machine learning, internet das coisas, tecnologia 5G, computação
em nuvem, entre outras. Ainda que não plenamente desenvolvidas e aplicadas, é
possível apontar a utilização dessas tecnologias em ampla gama de áreas vinculadas
à gestão urbana, como mobilidade, saneamento, energia e relacionamento entre
cidadão e governo.
A captura e utilização de dados deve compor o escopo de avaliação das cidades
inteligentes, também na perspectiva de sua economia política. Duarte e Álvares
(2019) consideram que as possibilidades advindas das TICs permitem novas formas
de compreender o fenômeno urbano a partir de uma infinidade de dados, que, no
período contemporâneo, ganham status de ativo financeiro (Morozov e Bria, 2019)
292 | 50 anos de regiões metropolitanas no Brasil e a Política Nacional de Desenvolvimento Urbano

e acabam por modificar os métodos de entendimento da realidade, bem como


torná-la mensurável. Como reflexo, Vanolo (2014) aponta os problemas associados
a reduzir o planejamento urbano a indicadores e números, com impactos signifi-
cativos nas formas de produção das cidades, como veremos adiante.
Torna-se necessário, também, compreender os impactos da informação e
comunicação na produção dos espaços e territórios. Neste sentido, o campo da co-
municação oferece dois aspectos teóricos importantes para entender as propostas de
cidades inteligentes. Primeiramente, o papel da sociedade em rede, na perspectiva do
desenvolvimento tecnológico. Segundo Moreira (2012), a organização da sociedade
em rede é basilar no contexto contemporâneo e se configura a partir dos avanços da
tecnologia digital para a comunicação.
O segundo aspecto diz respeito às relações entre os setores público e privado,
no contexto das transformações tecnológicas contemporâneas. Moreira (2012)
considera que as relações entre modelos públicos e privados guiam o uso de tec-
nologias e outras formas de comunicação, construindo um mercado de comuni-
cação, ao mesmo tempo, local e global. Esses aspectos devem ser entendidos como
fundamentais nas discussões sobre cidades inteligentes. Não por outro motivo,
destaca Vanolo (2014), as propostas de cidades inteligentes desenvolvem-se a partir
de parcerias público-privadas (PPPs), por intermédio de coalisões entre agentes
públicos e privados, normalmente não eleitas democraticamente.
Dessa forma, neste capítulo, pretende-se discutir os processos de transformação
digital contemporâneos, aplicados à gestão e ao desenvolvimento urbano, carac-
terizados pela introdução das discussões sobre cidades inteligentes. Este capítulo
sugere a necessidade de haver um olhar integrado entre os trabalhos desenvolvidos
no campo da comunicação, área que tradicionalmente discute o tema das TICs, e
os estudos urbanos. Para tal, o capítulo está estruturado em três partes, além desta
breve introdução.
Na seção 2, pretende-se apresentar uma síntese do conceito de cidade inte-
ligente, disseminado em parte da literatura e mesmo incorporado pelas empresas
de tecnologia que participam do mercado criado sobre o tema. Ao mesmo tempo,
consideram-se a limitação dessa abordagem e os problemas encontrados na restrita
conceituação do termo.
Na seção 3, discute-se a participação das grandes empresas de tecnologia,
as chamadas big techs, nos projetos de cidades inteligentes, em conjunto com a
perspectiva de coleta e utilização de dados como instrumento definitivo de gestão e
governança. Mais uma vez, pretende-se apontar os limites das alternativas propostas,
bem como a necessidade de ampliar esforços para que a população seja capaz de
avaliar criticamente os processos intensivos de uso da tecnologia.
A metrópole digital | 293

Por fim, na seção 4, sugere-se uma breve conclusão, considerando que cenários
marcados por extrema desigualdade, como o caso brasileiro, devem buscar espaços
para a incorporação das tecnologias de forma a garantir a superação de problemas
urbanos históricos, e não apenas incorporar soluções previamente disseminadas
pelos detentores das inovações tecnológicas e suas propostas de intervenção urbana.

2 CIDADE INTELIGENTE: APRESENTANDO UM CONCEITO INDEFINIDO


A deterioração das condições dos grandes centros urbanos surge como um dos prin-
cipais problemas globais no século XXI, processo que foi amplamente divulgado a
partir de 2020, com a pandemia de covid-19 (Simoni, 2020). Este cenário realçou
a condição de vida nas cidades como central para compreender os processos de
desigualdade existentes em escala global, ressaltando que este fenômeno apresenta
formas diferenciadas quando se avaliam países do Norte e do Sul global.
Esse processo, evidentemente, não se inicia com a pandemia em 2020, em
particular com as diversas formas de estruturação do espaço urbano. A busca por
formas de intervenção nas cidades, ora com o intuito de promover melhores con-
dições de vida e desenvolvimento econômico e social, ora como solução para os
entraves da acumulação capitalista (Harvey, 2013), pode ser interpretada como
característica da atuação do Estado ao longo de todo o século XX e, mais recen-
temente, em linha com as transformações recentes do capitalismo, ampliando-se
como esfera de acumulação privada.
No início do século XXI, ganham protagonismo as propostas de interven-
ções urbanas vinculadas à utilização de dispositivos tecnológicos e construção do
imaginário de novas cidades, as chamadas cidades inteligentes, que teriam seus
problemas solucionados por estes aparatos, bem como novas formas de utilização
da tecnologia. A cidade inteligente seria, neste sentido, a solução para o conjunto
de problemas urbanos presentes em maior ou menor escala em todas as cidades
ao redor do mundo.
A construção imaginária da cidade ideal permeia boa parte das discussões
sobre cidades inteligentes no período contemporâneo. Figueiredo (2016) destaca
como a utilização do termo “inteligente”, conceito humano atribuído à cidade,
carrega importante consideração sobre a pertinência do seu uso e a construção de
símbolos imaginários. Vanolo (2014) também considera que o termo “cidades inte-
ligentes” ocupa atualmente parte da história dos imaginários urbanos, em conjunto
com termos como cidade sustentável ou cidade informacional. Ainda segundo esse
autor, este imaginário cativante acaba por influenciar profundamente as políticas
urbanas definidas a partir dos olhares das cidades inteligentes.
Nesse ponto, cabe uma síntese sobre as definições de cidades inteligentes. A
própria construção imaginária sobre o ideal de cidades resulta em uma multiplicidade
294 | 50 anos de regiões metropolitanas no Brasil e a Política Nacional de Desenvolvimento Urbano

de definições sobre o termo. Morozov e Bria (2019) apontam que parte importante
do imaginário sobre cidades inteligentes advém dos conceitos definidos por grandes
empresas de consultoria e tecnologia, envolvidas no desenvolvimento de infraestrutura
e dispositivos tecnológicos previstos nos projetos a serem implementados.
Hiroki (2019) buscou sistematizar diferentes abordagens para identificar as
divergências sobre o conceito de cidades inteligentes presente em vasta literatura
sobre o tema. Nas referências selecionadas pela autora, predominam construções
que buscam solucionar problemas urbanos, a partir das novas TICs, ao mesmo
tempo que se promove melhoria na qualidade de vida nas cidades, bem como me-
lhores serviços públicos. Discutem-se, ainda, as possibilidades de desenvolvimento
econômico promovidas pelos ganhos de eficiência e produtividade advindos da
tecnologia, articulados, em especial, com uma cidade ambientalmente sustentável.
Dessa forma, Hiroki (2019) apresenta a seguinte definição:
Cidades Inteligentes são um espaço urbano com uma gestão focada em eficiência e
inovação, resultado da colaboração entre iniciativa pública, privada e sociedade civil.
Esta parceria desenvolve projetos que gerenciam a cidade, principalmente através
de plataformas de tecnologia, o que resulta em grande produção e análise de dados
sobre a população. Dessa maneira, promove-se a sustentabilidade na utilização de
recursos e um espaço urbano resiliente, ou seja, preparado às suas adversidades. Aliado
a isso, para evitar que a cidade pereça em um regime de controle e vigilância (...) a
integração das interferências tecnológicas junto ao espaço urbano deve ocorrer de
forma de cima para baixo – top down – e, ao mesmo tempo, de baixo para cima –
bottom up (Hiroki, 2019, p. 34).
Em complemento, Angelidou (2017) apresenta um conjunto de características
que passaram a organizar os critérios de avaliação sobre cidades inteligentes, utili-
zando como referência os estudos de caso encontrados em literatura selecionada.
Dessa forma, a autora definiu o seguinte conjunto de características: i) utilização
de tecnologia, TICs e internet; ii) desenvolvimento de capital humano e social;
iii) promoção de empreendedorismo; iv) colaboração global e rede; v) privacidade
e segurança; vi) estratégias adaptadas localmente; vii) abordagem participativa;
viii) coordenação top-down; ix) estrutura estratégica explícita e viável; e x) planeja-
mento interdisciplinar. Estes critérios, que permitem comparação entre os diversos
exemplos de cidades inteligentes ao redor do mundo, reforçam a perspectiva de
tratar-se de um conceito amplo, capaz de englobar inúmeros tópicos relacionados
ao desenvolvimento e às soluções urbanas.
Ainda que as definições apresentadas anteriormente apoiem-se em ampla
literatura disseminada sobre o tema, bem como sirvam de referência para as dis-
cussões propostas neste estudo, faz-se necessário apontar seus principais problemas,
de forma a destacar as análises críticas propostas inicialmente.
A metrópole digital | 295

Para o padrão identificado nas formas de intervenção voltadas à perspectiva


de cidades inteligentes, parcela importante das características apontadas pode ser
alcançada a partir das novas TICs, dos dispositivos eletrônicos, como sensores,
smartphones etc., bem como a coleta e a utilização de dados para definição de ações
relacionadas às cidades. Importante ressaltar, como considera Mendes (2020), que
estes conceitos de cidades inteligentes aplicados ao planejamento urbano pouco
levam em consideração olhares territorialmente integrados, tratando de propostas
de intervenção segmentadas em temas e áreas específicas.
Vanolo (2014) sugere que o adjetivo smart busca promover a relação entre
o espaço urbano e a tecnologia, em múltiplas escalas, que compreendem a pro-
moção de infraestrutura tecnológica para TICs, inovação e formas de governança
eletrônica que são consideradas como solução para o enfrentamento das questões
urbanas. O autor aponta que a visão de que as tecnologias vão nos salvar acaba por
proteger essas formas de atuação de críticas. Ao mesmo tempo, sugere que a ideia
sobre redes tecnológicas e ações estatais vinculadas ao uso de tecnologia assumem
que automaticamente serão garantidas cidades melhores, independentemente das
condições locais, do desenvolvimento econômico, social e tecnológico prévios.
Para Figueiredo (2016), a própria definição de uma smart city é muitas vezes
apresentada como um esforço de branding, na tentativa de posicionar uma determinada
cidade em um cenário de competição global, esvaziando ainda mais o já problemático
conceito que buscamos definir. O autor afirma que este processo ocorre em razão
de esforços para organizar uma série de projetos smart, que somados implicariam
necessariamente uma smart city. Porém, ainda segundo o autor, trata-se de uma visão
ingênua, fortalecida por um modelo neoliberal e empresarial da gestão urbana.
Como destacam Oliveira e Castro (2019), o que se projeta é uma imagem
futurista de cidades inteligentes, que funciona de forma prescritiva, apoiada em bases
próprias da tecnologia dos projetos. As autoras questionam, assim, se o conceito
de cidades inteligentes não compõe mais uma das grandes narrativas modernas, o
que poderia ser interpretado como um paradoxo da cidade do futuro, que deixa
de ser o território da fábrica para ser o território da informação.
Conforme definido por Oliveira e Castro (2019), a organização desse cenário
digital, em conjunto com a agilidade, eficiência e eficácia da gestão de dados, tor-
naria possível organizar prognósticos e promover as devidas soluções aos problemas
urbanos. As autoras ressaltam, contudo, que organizar e classificar estes bancos de
dados acaba por influenciar os resultados e os fins das propostas de intervenção.
Em linha com esta interpretação, Duarte e Álvares (2019) afirmam que é preciso
compreender que dados e tecnologia não são elementos neutros, mas sim constru-
ídos politicamente, e devem ser submetidos a debates sociais – e não apenas como
ferramenta única de tomada de decisão.
296 | 50 anos de regiões metropolitanas no Brasil e a Política Nacional de Desenvolvimento Urbano

É importante, também, compreender os aspectos globais dos novos formatos


de intervenção urbana e sugestão de políticas públicas,2 tanto na perspectiva
das grandes empresas de tecnologia, quanto dos Estados. Silva (2019) consi-
dera que as cidades inteligentes compõem um novo modelo de comunicação
global, que reorganiza as possibilidades de construção do espaço a partir da via
de comunicação e abre espaços para novas formas de interação e informação;
porém, também de controle e monitoramento.
Ainda segundo Silva (2019), esse novo padrão de comunicação global visa à
disseminação de modelos a serem adotados em diversos locais, tratando a cidade
como um produto em um mercado globalizado. Esta perspectiva de um modelo de
comunicação global deve ser avaliada de forma crítica justamente por seus impactos
na produção e organização dos espaços urbanos. Figueiredo (2016) considera que
esta perspectiva se apoia em uma crença de que todos os problemas urbanos foram
identificados e que a tecnologia existente seria a melhor opção para solucioná-los.
O autor reforça que tal abordagem é resultado de grave equívoco analítico, que
entende a cidade sem considerar seus processos e conflitos sociais.
Conceituar a cidade inteligente, a partir da incorporação de infraestrutura
tecnológica, geração e captura de dados, para posterior desenvolvimento de políticas
públicas, pode ser considerada tarefa inconclusa. Como destacado, as definições
apresentadas possuem viés específico sobre a tecnologia, carecendo de interpreta-
ções críticas que, no caso das relações com os espaços urbanos e metropolitanos,
devem ser consideradas.

3 INFRAESTRUTURA, BIG TECHS E DADOS: SOLUÇÕES OU PARTE DA


DESPOLITIZAÇÃO DO PLANEJAMENTO URBANO?
Outro aspecto relevante presente na literatura sobre cidades inteligentes diz respeito
ao papel de grandes corporações de tecnologia nestas iniciativas. Gandy Junior e
Nemorin (2018) destacam que a força motriz dos projetos de cidades inteligentes
é a busca pela expansão dos mercados transnacionais das empresas de tecnologia
que criaram soluções integradas para este tema, por exemplo, IBM, Cisco, Intel,
Microsoft, Huawei, entre outras. Ao mesmo tempo, Morozov e Bria (2019) incluem
neste grupo empresas como Siemens e Phillips, além de uma gama de empresas
de consultoria, como Accenture e Deloitte; em conjunto com as plataformas de
prestação de serviço contemporâneas, como Uber ou Airbnb.

2. Esse tema pode ser avaliado a partir do conceito de mobilidade de políticas públicas, consolidado em trabalhos no
campo da ciência política. Peck e Theodore (2010) ressaltam que as políticas circulam, em múltiplas escalas (locais,
nacionais, globais), porém, ao longo deste processo e durante sua fase de implementação, transformam-se e geram
resultados diferentes a depender de especificidades locais.
A metrópole digital | 297

O protagonismo dessas empresas e suas iniciativas vinculadas aos projetos


de cidades inteligentes deve ser analisado a partir das modificações nas formas de
atuação do Estado neoliberal, como previamente apresentado na introdução.
Gandy Junior e Nemorin (2018) apontam que os processos de desregulamentação
e privatização, em linha com as propostas do urbanismo neoliberal, acabam por
estimular arranjos que incluem as grandes corporações.
Em um cenário de crise econômica e austeridade, a busca por investimentos
privados surge como variável central na forma de ação nas cidades nos últimos
anos. Vanolo (2014) reforça que no discurso sobre cidades inteligentes está a trans-
ferência da responsabilidade das cidades em solucionar problemas como proteção
ambiental, atualização tecnológica e melhoria na qualidade de vida, fazendo com
que grande parte dos esforços sejam direcionados a oferecer as melhores condições
de negócios para estas grandes corporações. O autor ainda destaca que esse forma-
to acaba por negar outras perspectivas para a solução dos problemas urbanos, ou
mesmo a possibilidade de repensar o sistema capitalista em outras perspectivas.
Neste sentido, Harvey (2018) afirma que:
as indicações sombrias de Marx a respeito do pensamento e da política equivocada
que derivam do fetichismo tecnológico demandam atenção. Por exemplo, é simples-
mente ridícula a ideia de que a construção de cidades inteligentes, geridas por meio da
mineração de vastos conjuntos de dados, possa ser a resposta para erradicar todos os males
urbanos, como a pobreza, as desigualdades, as discriminações racial e de classe e a extração
de riqueza por meio de despejos e outras formas de acumulação por espoliação. É contra-
producente, se não contrarrevolucionária. Cria uma névoa fetichista – uma grande
distração – entre o ativismo político e as realidades urbanas, os prazeres e os desafios
da vida cotidiana que precisam ser enfrentados (Harvey, 2018, p. 127, grifo nosso).
É preciso, também, compreender como se dão as relações entre as empresas e
corporações do setor da comunicação e as cidades. Como descreve Moreira (2012),
a cidade é o lugar da indústria da comunicação e tecnologia, que organizou a partir
dos anos 1990 o conjunto das cidades midiáticas globais e suas representações do
espaço urbano. As propostas de cidades inteligentes podem ser interpretadas nesta
perspectiva, uma vez que, em grande medida, também acabam por cumprir um
papel de representação midiática das cidades, esta desenvolvida em consonância
com os interesses de grandes empresas de tecnologia.
Faz-se necessário, ainda, entender qual o papel e as formas de atuação das
empresas privadas responsáveis pela coleta e utilização de dados no âmbito dos
projetos de cidades inteligentes. Sadowski (2020) analisa os projetos de segurança
pública operados em associação com empresas privadas, que possuem como des-
taque a utilização de TICs em sua forma de atuação. O autor considera que estes
projetos acabaram por promover uma certa smartificação da forma como o espaço
298 | 50 anos de regiões metropolitanas no Brasil e a Política Nacional de Desenvolvimento Urbano

público é gerido, e reforça que tais empresas não estão dispostas apenas a oferecer
complementos aos serviços públicos, mas sim possuir e operar alternativas privadas.
No contexto de expansão das novas TICs, em conjunto com sua utilização
como instrumento de planejamento e gestão urbana, as cidades transformam-se nas
grandes geradoras de dados do período contemporâneo (Duarte e Álvares, 2019).
Diversas tecnologias acabam por se integrar de modo a capturar e utilizar grande
quantidade de dados produzidos pelos centros urbanos e seus residentes. As fron-
teiras de expansão são ainda bastante relevantes quando pensamos em tecnologias
em fase inicial de aplicação como redes 5G, internet das coisas, computação em
nuvem ou inteligência artificial (Mosco, 2019).
Duarte e Álvares (2019) nos mostram como uma infinidade de sensores dis-
postos nos centros urbanos organizam uma multiplicidade de dados, organizando
grandes bancos de dados, com informações pessoais, de grupos sociais e ambiente,
bem como o modo que estas informações se relacionam. Este aspecto associa-se
com os projetos de cidades inteligentes, como afirma Mosco (2019), ao demons-
trar que estas tecnologias acabam por se tornar elementos-chave na regulação de
áreas como transporte, comunicação, educação, energia, entre outras, e considera
fundamental compreender como estes sistemas de comunicação tornam-se per-
feitamente integrados à vida cotidiana.
A incorporação da tecnologia e a geração de dados advindas desse processo na
vida cotidiana colocam-se como relevantes na discussão sobre cidades inteligentes.
Sennett (2018) utiliza a expressão livre de fricção, criada por Bill Gates, para des-
crever como tecnologias de fácil utilização pelos usuários, mas bastante complexas
em seu funcionamento, os impede de avaliá-las criticamente.
Na leitura de Sennett (2018), uma das propostas de cidades inteligentes, baseada
em um modelo prescritivo, de acúmulo de dados e orientada por feedbacks para
promover a gestão urbana e aperfeiçoar serviços, apresenta impactos no planejamento
urbano por promover uma estrutura ‘livre de fricção’ das diferentes formas de gestão
e organização das cidades. Nos modelos de cidades inteligentes avaliados pelo autor,
o trabalho dos técnicos, ou planejadores, é responder ao conjunto pré-estabelecido
de ações em resposta às fórmulas, algoritmos e outros dados que fazem as máquinas
funcionar e responder ao funcionamento das cidades. Neste caso, as respostas são fáceis
para quem está no comando das ações e o planejamento deixa de ser experimental,
tornando-se estático (Santos e Faustino, 2021, p. 3).
Inúmeras formas de análise crítica sobre esses processos foram desenvolvidas
nos últimos anos. A partir de abordagens distintas, a depender da área do conhe-
cimento e das articulações multidisciplinares, os trabalhos desenvolvidos buscam
compreender os impactos da coleta e utilização dos dados aplicados aos programas
de smart cities. Lytras e Visvizi (2018) apresentam pesquisa sobre a visão dos cidadãos
A metrópole digital | 299

e sua preocupação com a intensificação do uso da tecnologia. Os autores destacam


que 44% dos usuários têm como maior preocupação a segurança e proteção das
tecnologias e outros 25% afirmam que a privacidade dos dados é o elemento de
maior preocupação.
Gandy Junior e Nemorin (2018) reforçam que essa percepção é central na
discussão sobre cidades inteligentes, uma vez que isso pode implicar dilemas para
os cidadãos, visto que estes precisarão decidir entre oferecer uma grande quantidade
de dados para empresas e entidades governamentais ou ter algum tipo de restrição
ou acesso negado em práticas cotidianas consideradas importantes. Nesse sentido,
os autores sugerem que:
está se tornando bastante claro que os residentes dessas cidades saberão cada vez
menos sobre os tipos de dados que estão sendo coletados, ou sobre os tipos de perfis,
previsões, prescrições e proibições sendo gerados em apoio à sua orientação por meio
de estímulos, orçamentos, ou restrições arquitetônicas (Gandy Junior e Nemorin,
2018, p. 6, tradução nossa).
Surgem ainda questões referentes à desigualdade, não apenas entre países ou
cidades, mas também em uma mesma localidade. Duarte e Álvares (2019) destacam
que grande quantidade de dados são coletados e analisados em metrópoles como
Nova York ou São Paulo, mas isso não ocorre em cidades médias ou pequenas, em
especial no Sul global. Importante ressaltar que o mesmo fenômeno pode ocorrer
em cidades caracterizadas por grandes processos de desigualdade, como as brasilei-
ras. Neste sentido, é preciso compreender onde e como os dados e as informações
são capturados e analisados, de forma a identificar a possibilidade de formação de
bancos de dados que reforçam a desigualdade, a depender do território responsável
pela origem da informação, o que pode implicar considerável viés na interpretação
e formulação de políticas.
Ainda em relação aos processos de coleta e utilização de dados, Silva (2019)
afirma que os parâmetros definidos nos projetos de cidades inteligentes acabam
por servir a interesses financeiros e tecnológicos, buscando localidades onde estes
segmentos terão mais retorno sobre seus produtos e serviços. Acrescenta, ainda,
que as cidades se tornam objeto de consumo privilegiado,3 em que determinadas
classes sociais teriam acesso aos aparatos e aplicativos disponíveis para este novo
modo de viver o cotidiano. Para o autor,
assim, a “desumanidade” nas Smartcities pode ser compreendida considerando essa
relação dialética entre atores hegemônicos e não hegemônicos distribuídos e utili-
zando os territórios. Santos, nesse sentido, indica que, para os atores hegemônicos, o

3. É possível compreender os sistemas tecnológicos, na construção das cidades inteligentes, como uma nova camada
de infraestrutura sobre as cidades, tal qual outros bens e serviços da infraestrutura urbana, como saneamento básico,
mobilidade urbana, coleta e destinação de resíduos sólidos, entre outros. Não é difícil imaginar que estes sistemas
acrescentarão uma nova forma de desigualdade de acesso aos serviços.
300 | 50 anos de regiões metropolitanas no Brasil e a Política Nacional de Desenvolvimento Urbano

território usado é um recurso e para os atores não-hegemônicos é seu abrigo (Santos,


2000, p. 124 apud Silva, 2019, p. 199). Os primeiros utilizando o território para os
seus interesses particulares com investimentos específicos para cada parte do território,
o que amplia, ainda mais, as divisões social e territorial do trabalho; já os segundos,
para garantir a sua sobrevivência buscam adaptar-se aos locais criando a recriando
estratégias nos lugares (Silva, 2019, p. 199).
A inserção da tecnologia de captura de dados e informações pode ter impac-
to na configuração urbana e na própria gestão urbana. Oliveira e Castro (2019)
destacam que a utilização dos dados pode ser vista como um estágio cognitivo
das experiências e aplicação de tecnologias em âmbito urbano. Neste sentido,
complementam as autoras, a comunicação surge como motor de um capitalismo
cognitivo, em conjunto com as cidades, dividida entre a infraestrutura (tecnologia)
e superestrutura (dados).
A configuração urbana é influenciada pelas pessoas e atividades presentes na
cidade, bem como pelos processos de comunicação e mobilidade que impactam a
configuração dos territórios, pautados por fluxos cada vez mais intensos (Tarachucky e
Baldessar, 2019). As autoras afirmam que as novas tecnologias modificam o padrão de
atividades nas cidades e, consequentemente, suas formas e produção do espaço urbano.
As novas tecnologias de mídia somadas à computação ubíqua criaram uma camada
digital sobre a topografia das cidades. As cidades geram dados constantemente tanto
em plataformas físicas quanto digitais, e fornecem informações em tempo real que,
ao serem acessadas, interferem nos fluxos, ritmos e padrões de atividades incidentes
sobre o espaço urbano, gerando impactos na vida social (Tarachucky e Baldessar,
2019, p. 63).
Por fim, é importante ressaltar os impactos dos olhares sobre os elementos
técnicos das ferramentas de comunicação e informação como solução para os
problemas sociais. Nas visões relacionadas às cidades inteligentes, as dimensões
socioespaciais passam a ser reduzidas a problemas técnicos, que constroem soluções
técnicas e despolitizadas (Gandy Junior e Nemorin, 2018).
Não se deve desconsiderar a inclusão de dispositivos tecnológicos e captura
de dados como elementos de formulação e tomada de decisão em políticas pú-
blicas, uma vez que podem se configurar como importante elemento de análise
e fundamentos para o desenvolvimento de projetos. Nesse sentido, as discussões
propostas sugerem a necessidade de avaliação crítica sobre o modelo de política
pública adotado e o papel das informações coletadas e aplicadas.
Para Vanolo (2014), esse é um aspecto fundamental da discussão sobre smart
cities, na medida em que esta forma de governança urbana acaba por afastar as

4. Santos, M. Por uma outra globalização. São Paulo: Record, 2000.


A metrópole digital | 301

discussões políticas dos representantes eleitos, passando para o protagonismo de


agentes privados e sistemas sociotécnicos. Para esse autor, o enfoque técnico das
soluções por meio de cidades inteligentes acaba por reduzir os conflitos políticos
sobre as questões sociais urbanas em favor de uma cidade “disciplinada” e regida
por uma nova racionalidade político-tecnológica. Segundo Vanolo (2014, p. 9,
tradução nossa):
sob o título de discurso da cidade inteligente, as questões urbanas correm o risco de
se deslocar cada vez mais para o campo da pós-política: a cidade inteligente pode se
tornar cada vez mais um alvo genérico e facilmente acordado, sem discussões críticas
adequadas e sem “política”, pretendida como o confronto e debate entre diferentes
ideias e posições.
A despolitização de ações públicas é considerada como parte do deslocamento
da tomada de decisão para agentes não estatais (Willems, Dooren e Hurk, 2017).
A discussão sobre cidades inteligentes permite que este elemento seja considerado
no campo do planejamento urbano, em que o processo de despolitização ainda é
pouco explorado. Não se trata, diretamente, da ausência de participação dos atores
públicos, como também enfatizam Willems, Dooren e Hurk (2017). Para os auto-
res, os agentes públicos continuam responsáveis pelas análises e decisões, contudo,
perdem o caráter contestador do processo de governar. As definições advindas de
dispositivos tecnológicos e sustentadas pelo conjunto de dados coletados passam
a subsidiar as ações públicas, reduzindo a possibilidade de atuação por parte do
poder público ou mesmo avaliações por parte da população.
Em linha com os pontos destacados anteriormente, vale ressaltar a análise de
Harvey (2018) ao considerar as soluções pretendidas pela utilização de grandes bancos
de dados como resultado do protagonismo da ciência econômica no período contem-
porâneo. O autor critica essa proposta, originalmente identificada nas formulações
da economia, sobre as possibilidades advindas com o avanço computacional para
construir e analisar conjuntos de dados para quase todas as questões. Nesse sentido,
complementa que, apoiada por grandes corporações, cria-se uma tecnoutopia da
gestão racional (Harvey, 2018), como no caso das cidades inteligentes. Considera,
ainda, que se trata de uma fantasia em que o que não pode ser mensurado na forma
de dados torna-se algo irrelevante.
Ao mesmo tempo, é importante ressaltar que a criação de um modelo gestão
urbano-comunicacional, como proposto pelos projetos de smart cities, deve ser in-
terpretado como uma possibilidade de indução no comportamento dos cidadãos e
estímulos a determinadas formas de ação. Gandy Junior e Nemorin (2018) chamam
atenção para as possibilidades advindas de estratégias de manipulação nas formas de
comunicação a partir dos sistemas sociotécnicos aplicados em cidades inteligentes.
302 | 50 anos de regiões metropolitanas no Brasil e a Política Nacional de Desenvolvimento Urbano

Torna-se relevante, portanto, que sejam incorporados às discussões sobre cidades


inteligentes aspectos referentes à ampliação da participação social e inclusão digital,
como mecanismos de resistência ao papel das grandes empresas de tecnologia, sua
incorporação e seus impactos na vida cotidiana, além da disseminação de uso de sis-
temas informacionais na gestão e governança urbana. O papel do letramento digital
(Silva, 2021) deve ser entendido como aspecto fundamental para que a população
seja capaz de avaliar criticamente os processos aqui descritos.

4 TRANSFORMAÇÃO DIGITAL: O USO DA TECNOLOGIA EM CENÁRIOS


DE DESIGUALDADE
A partir das considerações de Figueiredo (2016), é possível identificar dois grupos
de ações voltadas para projetos de cidades inteligentes, vistas como mutuamente
excludentes. Para esse autor, em um primeiro grupo, estão as cidades que promovem
investimentos em infraestrutura de tecnologia e processamento de dados. Em um
segundo grupo, “iniciativas relacionadas à promoção da educação, empreendedo-
rismo, inovação, inclusão social e participação popular” (op. cit., p. 4).
As considerações apresentadas ao longo do texto sugerem a necessidade de
um olhar crítico sobre os processos de transformação digital contemporâneo e sua
incorporação ao campo do planejamento urbano e metropolitano. Como apontado,
não se trata de excluir as possibilidades advindas do desenvolvimento tecnológico.
Cabe, porém, um conjunto de considerações sobre as possibilidades relacionadas às
cidades inteligentes, em particular quando se pretende promovê-las na perspectiva
de reduzir a desigualdade, bem como promover a inclusão e a participação social.
Morozov e Bria (2019) reforçam que, na perspectiva contemporânea, as dis-
cussões sobre direito à cidade devem incluir tópicos sobre soberania tecnológica,
uma vez que o termo ganha novo elemento em um contexto de tecnologias aplicadas
às cidades, tradicionalmente controladas por empresas privadas. Em conjunto, o
desafio colocado a partir dessa condição deve levar em conta que o setor de TIC
é caracterizado por tendência à grande concentração e formação de monopólios,
gerando elevado poder de mercado para as corporações e dificultando sobremaneira
a ação estatal (Mendes, 2022).
Surge, assim, um conjunto de desafios para a escala local, uma vez que grande
parte dos elementos discutidos encontram uma base de discussão em esfera global,
incorporando inclusive aspectos da geopolítica mundial e suas disputas na fron-
teira tecnológica. A escala local torna-se espaço de disputa em uma “rede global
digital”, adentrando esses espaços de maneira diversa e desigual (Silva, 2021).
A autora destaca que:
para Sorj (2006), os processos de globalização das TICs são passíveis de uma
análise dialética: há os que acreditam que a expansão destas tecnologias vai
A metrópole digital | 303

apenas ampliar o abismo das desigualdades sociais e há aqueles que defendem


a sua capacidade de facilitar a vida também dos setores menos favorecidos da
sociedade, além de serem mobilizadas para o serviço de estratégias sociais e
políticas públicas distributivas (Sorj, 20035 apud Silva, 2021, p. 19).
A partir das referências e considerações apontadas anteriormente, este capítulo
reforça a necessidade de interpretações críticas e multidisciplinares sobre o tema
das cidades inteligentes, em especial em contextos de marcante desigualdade social,
como no caso brasileiro. A condição de países periféricos em uma discussão sobre
os aspectos abordados ao longo do texto é bastante complexa, tanto do ponto de
vista da incorporação do desenvolvimento tecnológico, quanto da perspectiva da
produção de uma visão crítica sobre o tema que incorpore as condições locais.
Maricato (2002), em ensaio fundamental para compreender as condições
urbanas no Brasil, aponta como o planejamento urbano acaba por modificar-se com
as alterações nas influências ideológicas vigentes. Tal perspectiva ajuda a explicar a
chegada das propostas de cidades inteligentes no Brasil, em linha com a inflexão
neoliberal vigente no país nos últimos anos. A autora reforça como tradicional-
mente o planejamento urbano brasileiro acaba por importar soluções para seus
problemas, desconsiderando suas peculiaridades políticas, econômicas, territoriais,
as chamadas ideias fora do lugar, outra abordagem que nos permite importantes
considerações no âmbito das questões sobre cidades inteligentes.
Torna-se necessário que essa discussão seja incorporada na formulação das
políticas de planejamento urbano e metropolitano, utilizando-se de um conjunto de
experiências bem-sucedidas em outros países e resistindo à tentação de sugestões
de políticas disseminadas globalmente a partir de grandes empresas de tecnologia
ou outros atores com o mesmo viés, pouco relacionadas com a redução das grandes
desigualdades presentes nas cidades brasileiras.
Surge, assim, importante desafio na perspectiva do planejamento urbano e
metropolitano. Abre-se não apenas relevante agenda de discussão e pesquisa com
o intuito de promover amplo debate sobre a incorporação de novas tecnologias e
transformação digital no âmbito urbano; torna-se relevante o desenvolvimento de
propostas de políticas públicas que possam fazer uso das inovações tecnológicas.
Nesse sentido, o processo de transformação digital pode traduzir-se em po-
líticas públicas para a escala metropolitana, incorporando o letramento digital na
perspectiva formativa para a população, como discutido anteriormente. Ademais,
pode ser utilizado como mecanismo de participação popular e reconhecimento de
demandas da população, funcionando como estrutura colaborativa de formulação
de políticas, por exemplo. Além disso, pode incorporar a construção de soluções

5. Sorj, B. [email protected]: a luta contra a desigualdade na sociedade da informação. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2003.
304 | 50 anos de regiões metropolitanas no Brasil e a Política Nacional de Desenvolvimento Urbano

tecnológicas em software livre, o que diminuiria a dependência tecnológica em


relação às grandes empresas de tecnologia.

REFERÊNCIAS
ANGELIDOU, M. The role of smart city characteristics in the plans of fifteen
cities. Journal of Urban Technology, v. 24, n. 4, p. 3-28, 2017.
BURGOS, R. Da urbis inteligente ao direito à cidade. Revista Tríade, Sorocaba,
v. 2, n. 3, p. 116-126, jun. 2014.
DARDOT, P.; LAVAL, C. A nova razão do mundo: ensaio sobre a sociedade
neoliberal. São Paulo: Boitempo, 2016.
DUARTE, F.; ÁLVAREZ, R. The data politics of the urban age. Palgrave Com-
munications, v. 5, n. 54, p. 1-7, 2019.
FIGUEIREDO, G. M. P. de. Cidades inteligentes no contexto brasileiro: a importân-
cia de uma reflexão crítica. In: ENCONTRO DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE
PESQUISA E PÓS-GRADUAÇÃO EM ARQUITETURA E URBANISMO, 4.,
2016, Porto Alegre, Rio Grande do Sul. Anais... Porto Alegre, 2016.
GANDY JUNIOR, O. H.; NEMORIN, S. Toward a political economy of nudge:
smart city variations. Information, Communication and Society, v. 22, n. 8,
p. 1-15, 2018.
HARVEY, D. O direito à cidade. Lutas Sociais, São Paulo, n. 29, p. 73-89,
jul.-dez. 2012.
HARVEY, D. Os limites do capital. São Paulo: Boitempo, 2013.
HARVEY, D. A loucura da razão econômica: Marx e o capital no século XXI.
São Paulo: Boitempo, 2018.
HIROKI, S. M. Y. Parâmetros para identificação dos estágios de desenvolvimen-
to das cidades inteligentes no Brasil. 2019. 184 f. Tese (Doutorado) – Programa
de Pós-Graduação em Tecnologias da Inteligência e Design Digital, Pontifícia
Universidade Católica de São Paulo, São Paulo, 2019.
LYTRAS, M. D.; VISVIZI, A. Who uses smart city services and what to make
of it: toward interdisciplinary smart cities research. Sustainability, v. 10, n. 6,
p. 1-16, jun. 2018.
LOPES, R. S. A convergência digital e os desatinos do sistema mundo capitalista.
In: CARVALHO, J. M. de; MAGNONI, A. F.; PASSOS, M. Y. (Org.). Economia
política da comunicação: digitalização e sociedade. 1. ed. São Paulo: Cultura
Acadêmica, 2013. v. 1, p. 41-48.
A metrópole digital | 305

MARICATO, E. As ideias fora do lugar e o lugar fora das ideias. In: ARANTES, O.;
VAINER, C.; MARICATO, E. A cidade do pensamento único: desmanchando
consensos. Petrópolis: Vozes, 2002. p. 121-192.
MENDES, T. C. M. Smart cities: iniciativas em oposição à visão neoliberal.
Observatório das Metrópoles: Rio de Janeiro, 2020. (Texto para Discussão, n. 11).
Disponível em https://www.observatoriodasmetropoles.net.br/wp-content/uplo-
ads/2020/01/TD-011-2020_Teresa-Mendes_Final.pdf.
MENDES, T. C. M. Smart city na disputa pela hegemonia digital. In: RIBEIRO,
L. C. de Q. et al. (Org.). Metrópole e pandemia: presente e futuro. 1. ed. Rio de
Janeiro: Letra Capital, 2022. p. 313-347.
MOREIRA, S. V. Por que geografias, no plural, para a comunicação? In: MOREI-
RA, S. V. (Org.). Geografias da comunicação: espaço de observação de mídia e
de culturas. São Paulo: Intercom, 2012. p. 9-17.
MOROZOV, E.; BRIA, F. A cidade inteligente: tecnologias urbanas e democracia.
São Paulo: Ubu, 2019.
MOSCO, V. The smart city in a digital world. Londres: Emerald, ago. 2019.
MOTA, J. dos S.; SANTOS, A. D. G. dos. Economia política da comunicação
no Brasil: um subcampo em construção. In: CONGRESSO BRASILEIRO DE
CIÊNCIAS DA COMUNICAÇÃO, 38., 2015, Rio de Janeiro. Anais... São
Paulo: Intercom, 2015.
OLIVEIRA, A. L. de; CASTRO, G. G. da S. Smart cities: comunicação e con-
sumo de um futuro prescrito no espaço urbano. Interin, Paraná, v. 24, n. 1,
p. 209-225, 2019.
PECK, J.; THEODORE, N. Mobilizing policy: models, methods, and mutations.
Geoforum, v. 41, n. 2, p. 169-174, 2010.
SANTOS, J. M. dos; FAUSTINO, R. B. Governança e autonomia tecnológica
nas Cidades Inteligentes: democratização do espaço público ou privatização do
planejamento urbano. In: SIMPÓSIO INTERNACIONAL DE GEOGRAFIA
DO CONHECIMENTO E DA INOVAÇÃO, 4., 2021, Campinas, São Paulo.
Anais... Campinas, 2021.
SADOWSKI, J. Too smart: how digital capitalism is extracting data, controlling our
lives, and taking over the world. Cambridge, Estados Unidos: MIT Press, mar. 2020.
SILVA, P. C. Smartcities, modelo de comunicação global: uma abordagem da ge-
ografia da comunicação. In: MOREIRA, S. V. et al. (Org.). 10 anos: o percurso
do grupo de pesquisa Geografias da Comunicação no Brasil. 1. ed. São Paulo:
Intercom, 2019. v. 1, p. 189-206.
306 | 50 anos de regiões metropolitanas no Brasil e a Política Nacional de Desenvolvimento Urbano

SILVA, R. H. A. Discussão para transformação digital. Brasília: Ipea, 2021.


(Nota Técnica, n. 9).
SENNETT, R. Construir e habitar: ética para uma cidade aberta. Rio de Janeiro:
Record, 2018.
SIMONI, C. A covid-19 e o direito à cidade dos pobres no Brasil. In: GESP –
GRUPO DE GEOGRAFIA URBANA CRÍTICA RADICAL. (Org.). Covid-19
e a crise urbana. 1. ed. São Paulo: FFLCH/USP, 2020. v. 1, p. 25-34.
TARACHUCKY, L.; BALDESSAR, M. J. (Re)desenhando a cidade: o uso de
dispositivos móveis para o estímulo de alternativas de transporte urbano. In: MO-
REIRA, S. V. et al. (Org.). 10 anos: o percurso do grupo de pesquisa Geografias
da Comunicação no Brasil. 1. ed. São Paulo: Intercom, 2019. v. 1, p. 61-74.
VANOLO, A. Smartmentality: the smart city as disciplinary strategy. Urban
Studies, v. 51, n. 5, p. 883-898, 2014.
WILLEMS, T.; DOOREN, W. van; HURK, M. van den. PPP policy, depoliticisa-
tion, and anti-politics. Partecipazione e Conflitto, v. 10, n. 2, p. 448-471, 2017.
NOTAS BIOGRÁFICAS

Armando Palermo Funari


Doutor em desenvolvimento econômico pela Universidade Estadual de Campinas
(Unicamp) na área de economia, espaço e meio ambiente. Pesquisador bolsista do
Subprograma de Pesquisa para o Desenvolvimento Nacional (PNPD) na Diretoria
de Estudos e Políticas Regionais, Urbanas e Ambientais do Instituto de Pesquisa
Econômica Aplicada (Dirur/Ipea). Consultor em planejamento urbano na Risco
Arquitetura Urbana desde 2013. E-mail: [email protected].

Bárbara Oliveira Marguti


Doutoranda em geografia pelo Programa de Pós-Graduação em Geografia da
Universidade de Brasília (PósGea/UnB). Pesquisadora bolsista do PNPD na
Dirur/Ipea. E-mail: [email protected].

Carlos Henrique Carvalho Ferreira Junior


Doutor em planejamento urbano e regional pelo Instituto de Pesquisa e Planeja-
mento Urbano e Regional da Universidade Federal do Rio de Janeiro (IPPUR/
UFRJ). Pesquisador bolsista do PNPD na Dirur/Ipea. Pesquisador associado ao
Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia em Políticas Públicas e Desenvolvi-
mento Territorial (INCT/INPuT). Advogado, especialista em política urbana.
E-mail: [email protected].

Carlos Nobre
Cientista e climatologista aposentado do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais
(Inpe), atualmente pesquisador colaborador do Instituto de Estudos Avançados da
Universidade de São Paulo (IEA/USP). Copresidente do Painel Científico para a
Amazônia, participou da criação do Centro Nacional de Monitoramento e Alertas
de Desastres Naturais (Cemaden) em 2011. E-mail: [email protected].

Cleandro Krause
Doutor em planejamento urbano e regional pelo IPPUR/UFRJ. Técnico de pla-
nejamento e pesquisa na Dirur/Ipea. E-mail: [email protected].

Edmilson Brito Rodrigues


Doutor em geografia humana pela USP. Prefeito do município de Belém. E-mail:
[email protected].
308 | 50 anos de regiões metropolitanas no Brasil e a Política Nacional de Desenvolvimento Urbano

Fernando Antônio Rezende da Silva


Economista e ex-presidente do Ipea. Professor na Escola Brasileira de Administração
Pública e de Empresas (Ebape).

Gerardo Silva
Professor da área de planejamento e gestão do território da Universidade Federal
do ABC (UFABC). Pesquisador bolsista do PNPD na Dirur/Ipea. E-mail: gerardo.
[email protected].

Gustavo Luedemann
Técnico de planejamento e pesquisa na Dirur/Ipea. E-mail: gustavo.luedemann@
ipea.gov.br.

Jeroen Johannes Klink


Doutor em arquitetura e urbanismo pela USP; mestre em economia internacional
e economia financeira pela Universidade Católica de Brabant, Tilburg-Holanda.
Foi secretário de desenvolvimento e ação regional da prefeitura de Santo André
e diretor suplente na Agência de Desenvolvimento Econômico do Grande ABC.
E-mail: [email protected].

Jorge Guilherme Francisconi


Mestre em planejamento regional e PhD em ciências sociais pela Maxwell
School of Public Administration and Citizenship da Syracuse University, com
ênfase em economia urbana, planejamento regional e regiões metropolitanas.
E-mail: [email protected].

Juciano Martins Rodrigues


Pesquisador do Núcleo Rio de Janeiro e integrante do Comitê Gestor do INCT
Observatório das Metrópoles. Bolsista de pós-doutorado do Conselho Nacional
de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq). Professor colaborador no
IPPUR/UFRJ. E-mail: [email protected].

Laurita Hargreaves-Westenberger
Doutoranda em economia e ciências sociais pelo Instituto Alemão de Estudos
Globais e de Área (Giga), filiada à Universidade de Hamburgo. Pesquisadora
bolsista do PNPD na Dirur/Ipea. E-mail: [email protected].
Notas biográficas | 309

Luiz Cesar de Queiroz Ribeiro


Pesquisador visitante emérito da Fundação Carlos Chagas Filho de Amparo à
Pesquisa do Estado do Rio de Janeiro (FAPERJ) no Programa de Pós-Graduação
em Sociologia Política da Universidade Estadual do Norte Fluminense Darcy
Ribeiro (UENF). Pesquisador 1A do CNPq. Professor colaborador do IPPUR/
UFRJ. Coordenador nacional do INCT Observatório das Metrópoles. E-mail:
[email protected].

Luis Gustavo Martins


Mestre em planejamento urbano e regional pelo IPPUR/UFRJ. Analista de planeja-
mento e orçamento, atuando na Dirur/Ipea. E-mail: [email protected].

Marco Aurélio Costa


Doutor em planejamento urbano e regional pelo IPPUR/UFRJ. Técnico de pla-
nejamento e pesquisa na Dirur/Ipea. Coordenador nacional do INCT/INPuT.
E-mail: [email protected].

Mila Batista Correa Leite da Costa


Secretária adjunta de governo, foi diretora-geral da Agência de Desenvolvimento da
Região Metropolitana de Belo Horizonte e dirigiu o Fórum Nacional das Entidades
Metropolitanas (FNEM). E-mail: [email protected].

Raphael Brito Faustino


Economista e doutorando em planejamento urbano na USP. Pesquisador bolsista
do PNPD na Dirur/Ipea. E-mail: [email protected].

Regina Helena Alves da Silva


Doutora em história social pela USP, pós-doutora em arquitetura e urbanismo
pela Universidade Federal da Bahia (UFBA), na área de planejamento urbano
e regional, além de pós-doutora em cidades e culturas urbanas pelo Centro de
Estudos Sociais (CES) da Universidade de Coimbra, na área de visões contempo-
râneas: urbanismo, territorialidade e espaço público. Professora associada IV da
Universidade Federal de Minas Gerais, atua nos programas de pós-graduação em
história e em comunicação social. E-mail: [email protected].

Rodrigo Portugal
Economista da Superintendência de Desenvolvimento da Amazônia (Sudam).
Doutor em planejamento urbano e regional pelo IPPUR/UFRJ e pesquisador
bolsista do PNPD na Dirur/Ipea. E-mail: [email protected].
310 | 50 anos de regiões metropolitanas no Brasil e a Política Nacional de Desenvolvimento Urbano

Sérgio de Azevedo
Professor titular aposentado do Programa de Pós-Graduação de Sociologia Política
da UENF. Foi pesquisador integrante do Comitê Gestor e coordenador nacional
do INCT Observatório das Metrópoles. E-mail: azevedo.sergio@observatoriodas-
metropoles.net.
Ipea – Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada

EDITORIAL

Coordenação
Aeromilson Trajano de Mesquita
Assistentes da Coordenação
Rafael Augusto Ferreira Cardoso
Samuel Elias de Souza
Supervisão
Ana Clara Escórcio Xavier
Everson da Silva Moura
Revisão
Alice Souza Lopes
Amanda Ramos Marques Honorio
Barbara de Castro
Brena Rolim Peixoto da Silva
Cayo César Freire Feliciano
Cláudio Passos de Oliveira
Clícia Silveira Rodrigues
Olavo Mesquita de Carvalho
Regina Marta de Aguiar
Reginaldo da Silva Domingos
Jennyfer Alves de Carvalho (estagiária)
Katarinne Fabrizzi Maciel do Couto (estagiária)
Editoração
Anderson Silva Reis
Augusto Lopes dos Santos Borges
Cristiano Ferreira de Araújo
Daniel Alves Tavares
Danielle de Oliveira Ayres
Leonardo Hideki Higa
Natália de Oliveira Ayres
Capa
Danielle de Oliveira Ayres
Imagens da capa
Freepik

The manuscripts in languages other than Portuguese


published herein have not been proofread.

Ipea – Brasília
Setor de Edifícios Públicos Sul 702/902, Bloco C
Centro Empresarial Brasília 50, Torre B
CEP: 70390-025, Asa Sul, Brasília-DF
Composto em adobe garamond pro 11/13,2 (texto)
Frutiger 67 bold condensed (títulos, gráficos e tabelas)
Brasília-DF
Missão do Ipea
Aprimorar as políticas públicas essenciais ao desenvolvimento brasileiro
por meio da produção e disseminação de conhecimentos e da assessoria
ao Estado nas suas decisões estratégicas.

O sexto livro da série Governança Metropolitana no Brasil reúne contribuições que bus-
cam refletir a efeméride dos 50 anos da criação das primeiras regiões metropolitanas no
país no contexto de construção da Política Nacional de Desenvolvimento Urbano, resulta-
do de um Termo de Execução Descentralizada cujo aditivo foi celebrado com o Ministério
das Cidades. Dividida em três eixos temáticos, a publicação traz entrevistas e artigos que
contribuem para entender a questão urbana do país em perspectiva histórica, mas atenta
para os desafios contemporâneos. A primeira parte do livro aborda a trajetória da agenda
metropolitana no país em suas relações com a reforma urbana, com destaque para a
necessidade de um olhar voltado à diversidade socioespacial do país. A segunda parte
trata dos desafios associados ao financiamento metropolitano e à questão da governan-
ça interfederativa, com visões que permitem refletir sobre os caminhos para superar os
conflitos horizontais e verticais do federalismo tripartite brasileiro. Por fim, a terceira parte
do livro aborda temas transversais ao desenvolvimento urbano/metropolitano, a saber, as
mudanças climáticas e a transformação digital, os quais se colocam como indispensáveis
para qualquer reflexão sobre os rumos do planejamento e da governança metropolitana
no país. Em um contexto marcado por desafios que demandam de forma veemente a
construção de políticas urbanas efetivas, espera-se que a publicação dos aportes aqui
reunidos seja, de fato, um subsídio para que se desenhem e se implementem políticas
públicas que contribuam para cidades brasileiras mais justas, solidárias e sustentáveis.

Você também pode gostar