Feminismo e Comunismo

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as comunistas

e o feminismo
Maria Rosa Dória Ribeiro1

As divergências do movimento de mulheres em São


Paulo na segunda metade dos anos 1970, quando despontava
o feminismo, traduziam-se resumidamente na controvérsia das
questões gerais versus questões específicas. Tal polêmica teve lugar
e expressão principalmente nos Congressos da Mulher Pau-
lista e na divulgação do movimento por meio da mídia.
Entendia-se por questões gerais tudo o que dissesse
respeito aos problemas estruturais e conjunturais da rea­
lidade brasileira. Assim, nessa categoria, encaixavam-se
as lutas contra a ditadura, contra as desigualdades sociais,
contra o elevado custo de vida, contra o arrocho salarial,
contra o descaso do poder público com a saúde e a educa-
ção, entre outras.

Capa do livro que publicou os principais documentos do PCB sobre a


questão da mulher no início dos anos 1980.(Acervo pessoal de Dainis Karepovs)
Nessa perspectiva, as reivindicações que se estabeleciam iam muito
além dos problemas de gênero. Estavam fundamentadas em uma compre-
ensão de injustiça múltipla e abrangente que, entretanto, privilegiava o viés
econômico. Embora os aspectos social, político e cultural estivessem contem-
plados, esses eram subordinados ao econômico. Nesse sentido, os problemas
que as mulheres enfrentavam as atingiam na condição de trabalhadoras na
economia capitalista, de donas de casa pertencentes ao proletariado, de mães
de família da periferia na sociedade de classes, de provedoras em famílias mo-
noparentais etc. E as soluções vislumbradas faziam construir uma plataforma
que tinha como referência o socialismo. Para essa compreensão, o pessoal ain-
da não havia se transformado em política.
Já as questões específicas colocavam o foco nos problemas que atingiam
as mulheres em especial. Assim sendo, embora não desprezassem nenhum dos
demais aspectos, nem deixassem de dar importância ao econômico, enfatiza-
vam a inferioridade da mulher na estrutura androcêntrica da sociedade. A par-
tir de suas expressões, na vida política institucional, na legislação, no Código
Civil, no mercado de trabalho, nos parâmetros das políticas públicas, nas rela-
ções sociais públicas e privadas identificavam o patriarcalismo como sistema de
opressão. E estabeleciam as prioridades de suas lutas e reivindicações.
Ao contemplar os valores que fundamentavam as relações de poder
entre homens e mulheres, inclusive nas dimensões domésticas e familiares,
acrescentavam uma dimensão de conflito que trazia desconforto entre aque-
les que se situavam nas mesmas trincheiras. Aqui o pessoal já se tornava políti-
co. Todavia, e a despeito dos conflitos geral versus específico, tais discordâncias
não representavam a contradição principal dos feminismos em São Paulo, ou
no Brasil. Apesar dos procedimentos controvertidos e dos métodos antide-
mocráticos de ação política de alguns segmentos do movimento de mulheres,
as feministas na década de 1970, em São Paulo, situavam-se hegemônica e
majoritariamente no campo da esquerda.
As diferenças no movimento ocorriam por conta do maior ou menor
conservadorismo em relação à maneira de encarar a questão feminina. As di-
ferentes posições sustentadas pelos diversos matizes da esquerda organizada
diante da polêmica “específico versus geral”, travada pelo movimento feminis-
ta em São Paulo e no Brasil, assentava-se na teoria e na tradição do movimen-
to socialista e comunista internacional. Aliás, assentava-se muito mais no que
se conhecia da prática do movimento do que no que havia sido produzido em
termos de reflexão teórica e análise das experiências vividas pelo movimento
revolucionário até então.
As militantes dos segmentos da esquerda se identificavam com varia-
ções dessa tradição que expressavam momentos diferentes da discussão e

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formulações socialista e marxista sob o tema “opressão das mulheres”. Tais
identificações eram móveis, na medida em que se davam em função de um
complexo de fatores dinâmicos. O despertar para a questão, bem como o seu
valorizar, acontecia em função de vivências a que eram expostas, de referên-
cias de todo tipo, dos embates travados e das reflexões coletivas que esses
embates suscitavam.

A mulher na teoria socialista


Passando uma rápida vista de olhos pela produção teórica, verifica-se
que Marx e Engels fizeram constar a opressão da mulher em suas obras polí-
ticas e filosóficas. Engels contempla a questão da mulher com mais foco em A
origem da família, da propriedade privada e do Estado. Nessa obra, o autor afirma
que a instauração da propriedade privada ocorreu simultaneamente à subor-
dinação das mulheres aos homens e inaugurou as lutas de classe. Recupera a
tese da historicidade da família na obra do antropólogo Morgan e acrescenta
a desmistificação da família como parte da natureza humana.
Engels afirma que o aumento da produtividade do trabalho e a conse-
quente produção do excedente econômico estimularam tanto a troca como a
posse, bem como a disputa pelos bens acumulados. Quanto maior a rique-
za, mais complexo o processamento das heranças. Quanto maior a distância
entre campo e cidade, e maior a diferença entre produção social e produção
doméstica, mais acentuada a deterioração do papel da mulher. A gestação,
o parto e a amamentação que a impossibilitavam momentaneamente para o
trabalho tiravam-lhe poder econômico, “naturalizavam” o poder patriarcal e
submetiam-na às regras sociais estabelecidas pelos homens. Dessa forma, a
esposa se submeteu ao marido, a mãe se submeteu ao pai2.
A mulher passou a dever uma fidelidade compulsória para garantia da
legitimidade hereditária na transmissão dos bens. Foi levada à condição de
serviçal à disposição da luxúria do homem e instrumento da reprodução. E
assim separaram-se os universos privado e público. A produção doméstica
ficava a cargo de cada mulher em cada família, desde que seu trabalho não
extrapolasse as fronteiras do “lar”. E ao homem, provedor, correspondia o
universo público.
Na Ideologia alemã, a instituição da família aparece associada à distri-
buição desigual de trabalho e de seu produto, tanto em qualidade como em
quantidade, o que implica propriedade3. A primeira manifestação da proprie-
dade, dessa forma, estaria na família, na qual mulher e crianças seriam es-
cravas dos homens, mesmo que tal sentido de escravidão fosse ainda latente
e rudimentar. A associação da opressão da mulher à origem da família e da

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propriedade privada é reafirmada no Manifesto Comunista e serviu como base
para a meta dos comunistas de abolição da família. O argumento é que a gran-
de indústria deu novo significado à família proletária, obrigando todos os seus
componentes a trabalhar em função da composição de um único orçamento,
inclusive as crianças.
Em 1967, foi traduzido e publicado no Brasil o texto Women: the longuest
revolution, de Juliet Mitchell. A New Left Review publicara o ensaio da jovem
pensadora marxista inglesa dois anos antes.

O problema da subordinação das mulheres e a necessidade de sua libertação


foram reconhecidos por todos os grandes pensadores socialistas do século
XIX. Faz parte da herança clássica do movimento revolucionário. Contudo,
hoje, no Ocidente, o problema tornou-se elemento subsidiário, senão invi-
sível, nas preocupações dos socialistas. Talvez nenhum outro grande tema
tenha sido tão esquecido4.

De acordo com ela, o que provoca o ocaso dessa discussão no debate


socialista é a debilidade do trato que os clássicos dão ao problema e a decor-
rente falta de solução teórica. Para provar sua hipótese, a autora faz referência
a vários pensadores e às suas obras. August Bebel é um deles, com A mulher
no passado, presente e futuro. Nesse texto, que se tornou padrão para o Partido
Operário Social-Democrata alemão no começo do século XX, o autor tenta
explicar por que é tão difícil até para o socialista reconhecer a dependência da
mulher em relação ao homem, quando o que mais reconhece é a dependência
do operário em relação ao patrão. De acordo com ele, é porque essa questão
o atinge em seu íntimo de maneira mais ou menos direta. Esta abordagem
“psicologística” e moralista, diz a autora, não dá concretude ao problema.
Da mesma forma, Mitchell considera o trato da questão por Fourier e
pelo jovem Marx. O primeiro, reconhecido como defensor da libertação das
mulheres e da liberdade sexual, afirmou que o grau de emancipação das mu-
lheres é a medida de emancipação geral. Marx reaproveitou a ideia no texto
A sagrada família, numa perspectiva mais universal e filosófica, mas também
tão abstrata quanto a de seu antecessor. Posteriormente, em A ideologia ale-
mã, analisando a família, ele considera a mulher dentro dessa estrutura, e
sempre sob o enfoque da análise da economia e da evolução da propriedade.
A mulher, assim, fica subsumida na instituição família. Se Bebel afirmou que
a igualdade sexual era impossível fora do socialismo, nem por isso tornou
menos vaga a ideia de como o socialismo resolveria a questão. Lênin, embora
tenha avançado um pouco nas sugestões específicas, tampouco foi além das
generalidades nas análises ou nas formulações programáticas.

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Corre o risco de incorrer em anacronismo histórico quem pretender en-
contrar, nesses pensadores, formulações teóricas sobre temas cujas demandas
não prevaleciam em seu tempo. Porém, é digno de nota encontrá-las no pen-
samento e nas ações das teóricas socialistas. Afinal, suas vidas e produções
se aproximam mais do tempo vivido pelos citados pensadores do que dos
tempos atuais, como se verá a seguir.

O pensamento e a ação das pensadoras


socialistas sobre a condição da mulher
O movimento revolucionário socialista, como lembra Quartim de Mo-
raes5, contou com mulheres militantes que, além de dar importante contribui-
ção teórica em termos de economia, como foi o caso de Rosa de Luxemburgo,
também o fizeram quanto à questão da mulher, como Alexandra Kollontai.
Clara Zetkin se destacou na liderança da militância voltada para as questões
femininas. Dirigiu por vários anos a revista Igualdade, órgão do movimento
feminino alemão, estimulou a formação das primeiras associações operárias
femininas, bem como da associação de mulheres socialistas. Junto com Rosa
de Luxemburgo, Clara Zetkin organizou a 1ª Conferência Internacional das
Mulheres Socialistas, em 1907. E ambos foram responsáveis pela redação do
documento final aprovado naquele evento.
Alexandra Kollontai, russa, filha de família rica, estudiosa desde me-
nina, teve educação privilegiada, parte dela na Suíça e na Inglaterra. Atenta
às questões sociais, filiou-se ao Partido Operário Social-Democrata Russo e
nele se destacou como oradora popular e escritora. Escreveu sua maior obra,
Elementos sociais da questão da mulher, em 1909. Nesse livro recupera os escri-
tos de Engels e de Bebel, e acrescenta dados e informações sobre a mulher na
Rússia. Dialoga com o feminismo burguês da época, sem deixar de reconhecer
coincidências de posições, como o direito de voto, a luta pela igualdade de
oportunidades e de salários para igual trabalho. Mas também o critica, con-
siderando restritas as reivindicações de medidas que facilitassem o divórcio e
a separação de bens, o que não era exatamente um problema da mulher pro-
letária. Enfrenta seus companheiros de partido ao levar grupos de mulheres
socialistas militantes à participação no 1º Congresso de Mulheres de toda
a Rússia, convocado pelas feministas russas daquele país. Os bolcheviques
desaprovaram essa participação.
Sensível à dupla jornada de trabalho da mulher, Kollontai fala do pro-
grama de seu partido para adoção de políticas públicas que aliviassem o far-
do doméstico que recaía sobre ela: favorecer o crescimento econômico de
maneira a destruir a família como unidade econômica; transferir as tarefas

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domésticas para o Estado e o poder local (desde que administrado democrati-
camente); adotar uma legislação protetora das mães e da criança, incluída aí a
licença-maternidade; e transferir o cuidado com as novas gerações ao Estado
democrático. Reconhece, entretanto, que esse programa só poderia ser levado
a cabo pelo poder operário conquistado pela revolução.
Mas Kollontai avança nas análises e proposições. Em suas obras: A nova
moral e a classe operária, de 1918, e A ideologia proletária e o amor, a autora re-
flete sobre as relações de amor entre homem e mulher na sociedade burguesa.
Observando que a noção de amor “legítimo” ou amor “culpável” variava de
acordo com os diferentes momentos históricos, afirma que tal concepção, sob
hegemonia da cultura burguesa, é restritiva e egoísta, uma vez que volta suas
costas ao social. E diz:

[...] a tarefa da ideologia proletária não é arrancar Eros das relações sociais,
mas simplesmente de guarnecê-lo com flechas de uma nova têmpera, educar
o sentimento de amor entre os sexos no espírito de uma nova grande força
psíquica: a solidariedade-camaradagem6.

Essas mulheres foram além da formulação teórica de seus antecessores


no que dizia respeito à subordinação da mulher e enfrentaram resistência e
incompreensão de seus camaradas para muitas de suas ações. Suas biografias
revelam que suas contradições como mulheres eram maiores do que suas
contradições de classe. Kollontai se casou por amor, teve um filho e, ao cabo
de três anos, separou-se porque considerava o casamento uma “prisão”. Rosa
Luxemburgo, portadora de deficiência física, com intensa militância, teve de
batalhar muito para que seus companheiros a respeitassem como pensadora e
teórica da economia. Ambas se apaixonaram por homens mais novos, enfren-
tando por isso muita incompreensão e discriminação.
Kollontai se casou pela segunda vez com um homem 17 anos mais novo.
E Rosa se apaixonou pelo filho de sua amiga e companheira, Clara Zetkin, o
que lhe trouxe especiais censuras e dissabores. Essas situações eram mais in-
comuns na época em que viveram do que nos dias atuais. E autorizam a ideia
de que suas vivências as levaram a não abrir mão da militância em favor da
emancipação da mulher.
Nos anos 1960, a jovem Juliet Mitchell, integrante da esquerda marxis-
ta inglesa, dedicou-se a pensar e desenvolver o tema da mulher sob a ótica da
corrente à qual pertencia. Veio ao Brasil e passou por São Paulo em 1968. A
efervescência política daquele ano, contudo, fez com que sua presença fosse
praticamente ignorada. O recrudescimento da luta contra a ditadura não per-
mitiu que se aproveitasse sua estada para discutir o objeto de seus estudos. E

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tampouco a sensibilidade política havia sido despertada para o tema, que já
era candente nos Estados Unidos e começava a despertar na Europa.
De acordo com Mitchell, quem efetivamente fez avançar a reflexão so-
bre a opressão da mulher no campo do socialismo heterodoxo foi Simone
de Beauvoir, na sua obra O segundo sexo. Nela, a filósofa francesa inovou ao
fazer uma interpretação psicológica das explicações econômica e biológica ou
reprodutiva da subordinação da mulher. De acordo com essa interpretação, o
homem se afirma como sujeito e ser livre, e se distingue dos outros animais
por sua capacidade de criar e de inventar,

[...] mas tenta escapar à sua carga de liberdade dando a si mesmo uma ‘imor-
talidade’ espúria através de seus filhos. Domina a mulher tanto para aprisio-
nar outra consciência que reflete a sua própria, como para lhe fornecer filhos
que sejam seguramente seus [...]7.

Entretanto, tal interpretação não autoriza a conclusão de que o socia-


lismo teria, como um de seus pressupostos, a libertação da mulher, conforme
Beauvoir admitiu posteriormente.

Contribuição de Juliet Mitchell ao pensamento


socialista sobre a condição da mulher
É a própria Juliet Mitchell quem acrescenta considerável reflexão à ques-
tão da mulher em uma perspectiva socialista, no diálogo com o feminismo da
década de 1960. Ela critica a teoria socialista no que diz respeito à opressão
da mulher por não terem, os seus teóricos, dedicado-se a distinguir os fatores
responsáveis por essa opressão. Considera necessário abdicar da abordagem
do problema feita por Engels, que afirma que a causa da opressão é econô-
mica, bem como a de Marx, que entende ser possível tratá-la como símbolo
da opressão de classe. Desenvolve ela própria a ideia de que se trata de um
sistema particular de opressão, do qual fazem parte diferentes elementos.
Juliet Mitchell entende que a análise da condição da mulher deve pres-
supor que tal condição forma uma unidade complexa de estruturas separadas
em diferentes combinações. Segundo ela, cada estrutura pode se movimen-
tar separadamente, mas sem se isolar do todo, revelando a complexidade da
contradição. Para se compreender então a opressão da mulher, é necessário
analisar cada aspecto dessa contradição em suas especificidades históricas,
bem como a historicidade de suas possíveis combinações.
As estruturas-chave a que se refere são a produção, a reprodução, o sexo e
a socialização das crianças. Então, para se compreender a condição da mulher

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na atualidade, é preciso analisar cada uma dessas estruturas-chave e como
elas se relacionam, ou seja, trata-se de reunir dados sobre os diferentes papéis
da mulher e analisar suas interconexões.
No que se refere à produção, Mitchell desmitifica a justificativa da di-
ferenciação biológica para explicar a divisão do trabalho. Divisão essa que
fundamentaria a superioridade masculina. O fato é que as mulheres, por sua
constituição física, são impossibilitadas apenas para determinados tipos de
trabalho que demandam maior força física. Afirma que o pressuposto de que
o trabalho no capitalismo incorpora significativamente a mulher no mercado
de trabalho por conta da tecnologia, a qual, dessa forma, poderia libertar a
mulher de sua condição de subordinação econômica, é uma meia-verdade
perigosa. Se o trabalho industrial e a tecnologia automatizada acenam com
a libertação da mulher (e do homem), é importante levar em conta que esses
acenos não passam de precondições.
Passados mais de 40 anos depois de Mitchell ter escrito seu texto, cons-
tatamos que a incorporação da mulher como força de trabalho na grande in-
dústria, considerada sob o parâmetro de classe social, promoveu a sobrecarga
de trabalho e o rebaixamento dos salários, mais do que sua libertação. No
Brasil, a maioria das mulheres operárias ou trabalhadoras do setor de serviços
não reverteu sua condição subalterna no casamento, tampouco se emancipou
economicamente mantendo-se solteira. E, apesar disso, muitas vezes se veem
na contingência de chefiar famílias monoparentais.
Não se pode negar, entretanto, que as mulheres que contaram com
melhores oportunidades de educação e formação profissional conquistaram
em maior quantidade sua autonomia. Sempre relativizada, todavia, de acor-
do com suas situações de mães, esposas, donas de casa e trabalhadoras.
Pode-se afirmar que a maioria das mulheres que exerce atividade remune-
rada e integra o mercado formal ou informal de trabalho no Brasil ainda
tem de conciliar funções e encargos que não fazem parte do repertório de
atividades ou obrigações masculinas8.
No que se refere à estrutura-chave reprodução, Mitchell diz que o pa-
pel social da ideologia da maternidade e da família tem conseguido relegar
à mulher a condição de “complemento” espiritual do homem, particular-
mente nas sociedades capitalistas. Critica o slogan socialista de “abolição”
da família como esvaziado de significado, uma vez que a função biológica
da maternidade, fato universal e atemporal, não tem sido submetida às
categorias marxistas de análise histórica. Se a mulher, por meio da ma-
ternidade, acaba se responsabilizando pela estabilidade e onipresença da
família, então fica justificada a desigualdade sexual, bem como sua ausência
na produção e na vida pública.

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Afirma, a autora, que não é possível analisar a condição da mulher pelo
viés da reprodução se não se questionar seu papel na família, inter-relacionan-
do reprodução, sexualidade e a socialização das crianças. Efetivamente, à mulher
casada não cabia escolha quanto à reprodução até o século XIX, quando foi
inventado um método racional de contracepção. Desde então, esses métodos
foram sendo aperfeiçoados até se chegar à pílula anticoncepcional, que final-
mente torna a maternidade uma opção ou permite maior controle da mulher
sobre quando, e em que condições, ter filhos, bem como quantos ter.
A sexualidade das mulheres tem sido um tabu sempre embutido na ca-
tegoria das relações conjugais. E tem sido escondido na sua interligação com a
reprodução. Voltando mais uma vez aos clássicos, Mitchell coloca em evidência
duas das ideias de Marx sobre o casamento, escritas em textos diferentes. Na
obra A sagrada família, ele expressa admiração pelo preceito moral que reveste
o mandamento da natureza com a forma de um vínculo emocional e funda-
menta a lei que controla os instintos mediante uma relação exclusiva.
No segundo texto, A ideologia alemã, Marx considera o casamento como
sendo, sem dúvida, uma forma de propriedade privada exclusiva, e que o
comunismo não seria a “comunização” das mulheres. Engels, que dedicou
maior reflexão ao tema, ao comparar a poligamia com a monogamia, afirma
que essa não surge como uma reconciliação que teria estabelecido a paridade
nas relações entre homem e mulher. Longe disso, estabelece a subjugação de
um sexo pelo outro, fazendo ver uma relação de conflito.
Mas se a autora chama atenção para os limites das análises dos pensa-
dores marxistas quanto ao casamento, e para a omissão quanto à sexualidade,
também o faz em relação ao pensamento liberal. Este critica a repressão se-
xual registrada nas sociedades do Ocidente sem falar da mulher. E usa equi-
vocadamente a poligamia presente em várias sociedades do Oriente, ao longo
do tempo, como argumento da liberalidade sexual. Diz a autora: “A poligamia
jurídica sem limites – qualquer que seja a sexualização da cultura que a acom-
panha – é claramente uma anulação da autonomia da mulher, e constitui uma
forma extrema de opressão”9.
Muitos estudos já se realizaram para demonstrar como o casamento nas
sociedades ocidentais representou uma associação de preceito religioso com
repressão sexual. No caso do catolicismo, com uma acentuada marca antifemi-
nina herdada do judaísmo. Já sob a ótica do protestantismo, e de acordo com os
valores burgueses, a instituição do casamento eleva o status da mulher, confe-
rindo-lhe direitos pela condição de esposa e mãe. Tal mudança, entretanto, não
inclui nenhuma alteração no caráter patriarcal, que é preservado pelo aspecto
econômico da relação. E muito menos altera a condição repressiva da relação
sexual. Formalmente, essa agora se estende também aos homens.

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Destarte, aplica-se a racionalidade capitalista à mentalidade que estabe-
lece a união como um contrato marital entre partes iguais. Tal qual a igual-
dade formal existente no contrato de trabalho nas empresas capitalistas, essa
também é hipócrita, uma vez que a relação real é caracterizada pela explora-
ção e pela desigualdade. Registra-se nova contradição: uma maior paridade
formal nas relações entre homem e mulher é obtida ao preço da democratiza-
ção da repressão sexual, o que cria, mas não determina, as condições para a
conquista de libertação sexual para ambos os sexos.
A história dos sentimentos é outro instrumento que permite entender o
enraizamento da repressão sexual às mentalidades. O componente do amor,
cujo culto remonta ao século XII, foi agregado a formas maritais legais, que,
obviamente, até então não pressupunham exclusividade alguma. A mulher
passou a objeto do amor galanteador e tornou-se presa fácil (mais que o ho-
mem) da paixão. O casamento, em sua forma burguesa, adquiriu a conotação
de consagração do amor romântico. E, embora tenha se tornado a tentativa de
capturar a paixão por meio de uma escolha livre para toda a vida, não resolveu
a contradição formal: “o caráter contratual voluntário do casamento e o caráter
espontâneo incontrolável do amor”10. E, no último século, em um processo in-
versamente proporcional à liberação dos costumes, a ideia de que a paixão só
ocorre uma vez na vida veio perdendo força. De tal maneira que o casamento
é hoje uma instituição em flagrante crise11.
A sexualidade feminina vem saindo do limbo para se tornar objeto de
estudos, de exploração comercial, de descobertas existenciais, de conflitos,
de discriminação, de censura, de protesto, de denúncia e, sobretudo, de cres-
cente domínio das interessadas. Em todo caso, sendo a sexualidade uma das
estruturas-chave para se compreender a situação da mulher, e considerando
que nenhuma delas pode funcionar isoladamente, por mais que se registrem
mudanças nos comportamentos em relação ao sexo, isso não basta para que
alterações maiores nos papéis sociais da mulher venham a ocorrer.
Importa considerar ainda que, por mais que se registrem mudanças de
comportamento por parte de mulheres em relação à liberdade com que vi-
venciam sua sexualidade, essas mudanças ainda estão restritas a nichos so-
ciais. E convivem com conservadorismos que vigiam, censuram e condenam
o exercício livre da sexualidade daquelas que contestam o casamento como
seu “destino manifesto”. Ao lado da imagem da “solteirona”, estão a da “cheia
de amor pra dar”, a da “mal comida” (e por isso mal-humorada), entre outras
que revelam a dificuldade no trato social da questão. E revelam também que,
na maioria dos casos, se a mulher escolhe e assume um comportamento que
saia dos padrões convencionais, desviando-se da condição passiva na qual é a
escolhida ou preterida, a sociedade frequentemente a trata como ameaçadora.

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A ideologia da maternidade vinculada à família se reinventou e se atu-
alizou. Anteriormente as mulheres passavam vários anos de suas vidas dedi-
cadas à gestação e à amamentação12. O recurso ao aborto, tanto mais precário
e perigoso quanto mais clandestino, era uma das possibilidades de autopre-
servação. Mesmo sendo essa prática condenada pela moral religiosa e pela lei
civil, a menor expectativa de vida em função de recorrentes complicações de
saúde derivadas do excessivo uso de seus órgãos de reprodução fazia com que
se recorresse a esse expediente.
Em todo caso, a ideologia criada em torno do amor materno restringia
bastante essa prática. A internalização dessa ideologia fazia (e ainda faz) com
que interromper uma gestação tivesse a conotação de renegar um filho. Tal
situação vinha carregada de uma autocondenação difícil de sustentar para a
maioria das mulheres. O peso da maternidade também exerceu papel inibi-
dor da sexualidade. A preocupação com mais uma gravidez provocava ansie-
dades e inibições nas mulheres casadas em relação ao sexo. E, naturalmente,
dificultava a percepção da dimensão do prazer.
A ressignificação da maternidade corre paralela à diminuição da famí-
lia. À medida que se reduziu o número de filhos, aumentou a responsabilidade
da mãe na socialização deles. O papel fisiológico da mãe na reprodução deu
lugar ao papel sociológico da educação. A produção de novos conhecimentos
na área da Psicologia contribuiu para que a família se reajustasse aos novos
tempos e revolucionou a maneira de ver e tratar a criança. As teorias de Rous-
seau, de Freud e de seus seguidores valorizaram a infância, de tal forma que
os primeiros anos de vida, desde então, foram vistos como decisivos para o
desenvolvimento de sua personalidade. A popularização desse conhecimento
aumentou a importância qualitativa da socialização da criança em seus pri-
meiros anos de vida e o papel da mãe como responsável por esse processo.
A socialização das crianças, como é entendida hoje, obedece à mudança
da função da família. Em sua versão reduzida, ela já não desempenha uma fun-
ção significativa no sistema de produção, nem no sistema de poder político. E
muito raramente funciona como único fator de integração na sociedade.
Novas teorias desenvolvidas no século XX permitem que se comple-
mente a visão da reprodução e da maternidade com novos enfoques. A psica-
nálise possibilita interpretar a maternidade como uma compensação para a
ausência do trabalho produtivo, de tal forma que a criança seria considerada
um produto criado pela mãe, da mesma forma que um bem seria criado pelos
operários. Tal visão pressupõe que um ser humano pode criar outro, e que a
continuidade dessa criação justificaria o sentimento de posse dos pais em re-
lação aos filhos. A aspiração à autonomia por parte dos filhos se confrontaria
com a renúncia à própria autonomia que a mãe se impôs para se dedicar aos

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filhos. Sendo a posse uma extensão do eu, a mãe se veria ameaçada existen-
cialmente em sua função reprodutora.
Esta compreensão, que indica manipulação emocional dos filhos pela
mãe, não altera a sujeição econômica de uns e de outra ao pai. O culto social
do poder das mães sobre os filhos mascara a falta de poder socioeconômico
sobre eles. Esse ângulo de visão complementa o entendimento da dinâmica
da família, segundo a qual o “lar” é o lugar de descanso para o homem, o
lugar de relaxamento do “guerreiro”. Enquanto este trava suas batalhas e tra-
balha fora de casa, a mulher se ocupa com sua função primeira, definida por
sua fisiologia: a maternidade e tudo o que ela implica.
Sem desconsiderar a necessidade da atenção mais cuidadosa e inte-
ligente à educação da criança em seus primeiros anos, cabe notar que nes-
sa fase assiste-se a uma construção ideológica que reconduz à valorização
da maternidade de uma maneira mistificada. Aproveitam-se, assim, apenas
parcialmente, os aportes recentes da Psicologia à ciência da Educação. Estes
consideram que a delicadeza do processo de socialização demanda justa-
mente socializadores serenos e amadurecidos, que a família não oferece no
papel da mãe. Sobretudo se ela focaliza sua existência exclusivamente na
criação de seus filhos.
Mitchell retoma uma observação de Lênin a Clara Zetkin sobre a liber-
dade sexual, que, tomada isoladamente, pode ter servido como fundamento
para as feministas de São Paulo sustentarem suas posições na década de 1970.
Afirmava ele que essa reivindicação era de natureza burguesa e não passava
de um exercício intelectual, já que qualquer solução geral para a exploração
das mulheres só poderia ser encontrada mediante uma estratégia que envol-
vesse todas as estruturas que, imbricadas, destinam-se a esse fim.
Para a segunda onda do feminismo, entretanto, a autora observa que as
duas posturas pretensamente marxistas para as lutas das mulheres levavam ao
imobilismo: (1) a crítica às bandeiras levantadas (igualdade de oportunidades
e de salários, luta por creches, dupla jornada de trabalho, entre outras) como
reformistas, uma vez que não passavam de pequenas e paliativas mudanças;
ou (2) a crítica ao caráter voluntarista das exigências, incapazes de obter apoio
das massas por estarem muito à frente das possibilidades atuais, como aboli-
ção da família, liberação sexual ou separação obrigatória de pais e filhos.

A tradição socialista do trabalho político


voltado para as mulheres
O Segundo Congresso da III Internacional considerava que o prole-
tariado estava às vésperas da revolução socialista. E essa posição pouco se

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alterou nos demais congressos. Essa crença torna mais fácil a compreensão
da necessidade do trabalho político voltado para as massas de mulheres. A
orientação para que as militantes comunistas não se aliassem às “feministas
burguesas” também se torna mais compreensível quando levamos em conta o
contexto da, então recente, separação da II Internacional.
Foi no Terceiro Congresso da III Internacional, em junho de 1921, que
aconteceu a aprovação das recomendações para o trabalho político junto às
mulheres. Coincidindo com a realização do Terceiro Congresso, teve lugar a
2ª Conferência Internacional das Mulheres Comunistas. Ao destacar a impor-
tância da incorporação das mulheres às lutas, o documento deixava claro que
não se podia perder de vista o objetivo principal, que era a conquista do poder
pelo proletariado nos países onde isso ainda não havia acontecido, e o estabe-
lecimento da ditadura do proletariado naqueles em que já haviam empreen-
dido o assalto ao poder. Afirmava também que a tarefa não se cumpriria sem
“o apoio ativo da massa feminina do proletariado e semiproletariado”13. No
entanto, dizia que as iniciativas das mulheres pela sua integral e verdadeira
libertação, bem como o reconhecimento de sua completa igualdade pessoal,
não seriam realizáveis sem o apoio dos partidos comunistas.
Os termos utilizados na ata do Congresso permitem perceber um reco-
nhecimento das causas das lutas das mulheres, os limites das lutas feministas
burguesas, a consideração de que as proletárias e semiproletárias eram mais fa-
cilmente manipuláveis em termos ideológicos pelos valores da família e da moral
burguesa, a necessidade de se educá-las para apoiar e colaborar nas lutas do pro-
letariado pela conquista do poder, sem deixar dúvidas quanto às prioridades.
Aludindo à dupla opressão feminina – a exploração econômica e a
dependência familiar e doméstica –, afirmava o documento que as mulhe-
res deviam ser chamadas a integrar a luta geral do proletariado e condenava
qualquer aproximação ou colaboração com o chamado “ feminismo burguês”.
O argumento/promessa principal era que apenas o comunismo resolveria as
inquietações das mulheres quanto às desigualdades que as colocavam em si-
tuação subalterna.
Esclarecia, entretanto, que tal regime redentor só seria alcançado após
a transição socialista, caracterizada pela ditadura do proletariado. Nas re-
comendações para o trabalho e nas orientações para a organização dos tra-
balhos femininos, deixava entrever a necessidade de supervisão e acompa-
nhamento de dirigentes homens, aludindo à inconveniência das discussões
femininas desassistidas. E determinava, aos partidos comunistas, que as
protegessem em seus papéis de mães e que as integrassem em todas as ta-
refas, inclusive às tarefas militares. Esta determinação revela incongruência
entre as considerações e as orientações, que ora entendiam as mulheres

129
como fazendo parte do que consideravam “massa atrasada”, ora recomenda-
vam que fossem integradas à luta até nos postos militares, entendidos como
eminentemente masculinos.
A tônica dos pressupostos e diretrizes era impedir que as mulheres se
pusessem ao lado das forças atrasadas e subjugadas ideologicamente à bur-
guesia. De acordo com o documento citado, as forças do atraso eram a família
burguesa e a moral religiosa cristã. Esses valores, interiorizados pela esmaga-
dora maioria das mulheres, refletiriam sua condição de produtos inferiores e
reprodutoras da ideologia burguesa14.
Não houve diferença entre as orientações da III e da IV Internacional
para os trabalhos dirigidos às mulheres, uma vez que esta referendava aquela
no tocante a seus quatro primeiros congressos. O feminismo não batia à porta
da sociedade então. As militantes comunistas vinculadas às organizações po-
líticas de inspiração trotskistas foram, dessa forma, ainda menos influencia-
das pelas orientações daquela associação.

O trabalho político das comunistas


junto às mulheres no Brasil
No Brasil, entre os anos 1945 e 1964, foram as militantes comunistas as
principais responsáveis pela organização e encaminhamento das lutas femi-
ninas. Fundaram uniões, comitês e ligas femininas em diversos municípios,
mas principalmente nas grandes cidades. Em 1949, buscaram unificar o mo-
vimento com a criação da Federação das Mulheres Brasileiras, com sede no
Rio de Janeiro. Esta, entretanto, não foi a única.
Essas entidades encamparam diferentes bandeiras e atuaram respeitan-
do as condições regionais. Dessa forma, enquanto no Espírito Santo o traba-
lho voltava-se para “a denúncia do conteúdo nocivo das revistas em quadri-
nhos para as crianças”15, no Ceará, criou-se um lactário. No Rio de Janeiro, a
partir de 1958, foi feito um trabalho no campo da assistência social: cursos
de trabalhos manuais para 300 mulheres, curso de puericultura e instalação
de serviços assistenciais. Desenvolveram-se campanhas pela instalação de es-
colas públicas, obtendo-se sucesso em Manaus, Uberaba e Areia Branca, na
Paraíba. Em São Paulo, no Paraná e no Rio de Janeiro elas atuavam em defesa
dos direitos da criança. Já em outros estados, como Goiás, Pernambuco e tam-
bém no interior do Rio de Janeiro, o trabalho se voltava mais para a conquista
de direitos trabalhistas para as mulheres camponesas.
Outras bandeiras levantadas pelas entidades femininas foram à luta por sa-
lário igual para igual trabalho, a distribuição de gêneros alimentícios mais baratos
pelas organizações femininas nos bairros do Rio, a defesa das famílias despejadas

Nº 9, Ano 7, 2013 130


nos bairros populares de Salvador, a luta pela proteção da mãe e da criança, pelo
desenvolvimento da educação e da saúde pública e a promoção da paz.
A Federação de Mulheres do Brasil foi fundada com o objetivo de “coor-
denar e unificar a ação das mulheres brasileiras na defesa de seus direitos, dos
da criança, da juventude, por um futuro melhor para os seus”16. Mas, além da
pauta considerada feminina, a Federação se preocupava com – e efetivamente
os realizou – trabalhos de capacitação de mulheres para divulgar a importân-
cia da participação dessa parcela da sociedade nas lutas democráticas e nas
campanhas patrióticas.
Dessa maneira, elas registraram suas presenças nas grandes campanhas,
como a que se deu em função do petróleo, “O petróleo é nosso”. E outras, como
a que se desenvolveu em defesa da escola pública no final dos anos 1950, por
ocasião da discussão da primeira Lei de Diretrizes e Bases. Junto com a União
de Mulheres Universitárias, também lutaram pela reforma do Código Civil, pela
revogação dos artigos que limitavam os direitos das mulheres casadas, promo-
vendo debates e mesas-redondas com parlamentares e juristas.
Realizaram eventos como a Assembleia Nacional de Mães, que enfa-
tizava um dos papéis sociais da mulher, bem como outros voltados espe-
cialmente para as mulheres trabalhadoras, como a Conferência Nacional de
Trabalhadoras, realizada entre 18 e 20 de maio de 1956, no Rio de Janeiro,
e o Encontro Nacional da Mulher Trabalhadora, que teve lugar em 1963, em
São Paulo. Com apoio da Federação das Mulheres Brasileiras, a primeira abriu
os trabalhos com as denúncias das discriminações. E do temário constavam a
necessidade de creches, a extensão dos direitos trabalhistas às trabalhadoras
do campo, a organização de associações profissionais, a campanha para sin-
dicalização das trabalhadoras, a participação das trabalhadoras nas direções
dos sindicatos, a eliminação das discriminações, a elaboração de novas leis de
proteção às trabalhadoras, entre outras reivindicações.
Por sua vez, o evento em São Paulo foi realizado em conjunto com a Ju-
ventude Operária Católica. A ênfase foi dada à reivindicação de salário igual
para trabalho igual. Mas as militantes também trataram da aplicação efetiva
das leis sociais e trabalhistas em defesa da mulher e do papel da mulher na
sociedade e nas lutas sindicais. Dele participaram operárias de diferentes ra-
mos da indústria, trabalhadoras rurais e algumas do setor de serviços, como
escriturárias e professoras. Eram principalmente da capital do estado e dos
municípios próximos.
Não faltou nesse período um órgão de comunicação caracterizado como
imprensa feminina, pois havia o Momento Feminino, que noticiava essa movi-
mentação de mulheres e era feito por mulheres. Interessante também registrar
sua surpreendente duração: foram dez anos de existência, de 1947 a 1956.

131
Essa atuação de mulheres brasileiras no que se poderia considerar “vida
pública”, no período entre 1945 e 1964, embora tenha acontecido com hege-
monia das militantes comunistas, não seguiu exatamente as recomendações
da III Internacional, que, aliás, já havia sido extinta.
A primeira onda do feminismo burguês no Brasil, depois de conquistado
o direito de voto em 1932, havia arrefecido. Contribuiu para isso a ditadura
do Getúlio Vargas, o Estado Novo. As mulheres voltaram a se organizar em
1945, com o apoio daquela que se destacou na liderança da fase anterior do
movimento de mulheres na campanha pelo direito de cidadania, Bertha Lutz.
Não havia dúvida quanto ao pertencimento dela aos quadros da burguesia.
Nem por isso se deixava de reconhecer seu mérito na luta pela conquista do
direito ao voto feminino.
As instabilidades da política, as oscilações econômicas, as alterações
na condição de existência do Partido Comunista (PCB), que terminou por se
dividir, conclamavam as mulheres a atuarem de maneira muito mais assis-
tencialista do que revolucionária. A referência da tradição cultural patriarcal,
machista e autoritária era muito mais forte do que poderia ser a referência po-
lítica/ideológica. E, no que se referia à composição política, as alianças eram
feitas com mulheres de outras organizações, burguesas ou não, mas certa-
mente pouco “revolucionárias”, como as próprias militantes, que, não raro,
aliás, eram oriundas da burguesia e da pequena burguesia.
Com um espírito pragmático, elas atuavam na vida pública e na política
brasileira de maneira aguerrida e desprendida. Sem dúvida, muito contribuí-
ram para ampliar os horizontes de inúmeras mulheres, tirando-as de seu con-
finamento doméstico. A atuação daquelas militantes efetivamente contribuiu
para aumentar o espectro de mulheres das camadas médias e populares sen-
síveis e atentas aos acontecimentos políticos. Sua ação política, independen-
temente do reconhecimento que obtiveram de seu partido, e de elas próprias
terem desenvolvido maior capacidade de análise, fez com que aumentasse a
quantidade de mulheres participantes da vida pública, por meio da política.
Em todo caso, atuaram, na maioria das vezes, em sintonia com a tá-
tica e a estratégia do partido ao qual se vinculavam, uma vez que o próprio
PCB, a partir de uma leitura própria do processo histórico brasileiro, pre-
conizava a revolução burguesa como etapa do processo revolucionário. As
militantes comunistas, imbuídas do “romantismo socialista”, podiam até re-
crutar camaradas para o partido, o que não significava aumentar as fileiras
dos combatentes revolucionários.
Quanto à recomendação de incorporar as mulheres em igualdade de
condições no partido e nas demais entidades nas quais atuavam, também essa
não foi seguida. Prevaleceu a concepção machista e autoritária, acentuada

Nº 9, Ano 7, 2013 132


pela presença significativa de militares naquela agremiação. E essa concepção
pode ser constatada pela desproporção crescente entre homens e mulheres
à medida que se elevavam o posto e a responsabilidade na hierarquia parti-
dária, entendimento que não era contestado pelas mulheres militantes. Não
havia preocupação em se questionar o estereótipo feminino nem os papéis
convencionalmente impostos à mulher pela sociedade.
Nesse sentido, por um lado, elas eram vistas e se viam de maneira
idealizada e generalizada17, como mães abnegadas, como donas de casa de-
dicadas, como esposas laboriosas. E, por outro lado, também se atribuíam a
elas características menos positivas, como a competitividade, a propensão aos
comentários indevidos, a compulsão por falar, a frivolidade, a complicação de
maneira geral. Mas, certamente, pesava sobre as militantes o ideário heroico
da mulher corajosa, estoica, desprendida em relação ao que mais valorizava
(o casamento, a família, entre outros), inteligente, racional, ousada, com de-
senvoltura na oratória, que não se deixava intimidar pelas situações de risco e
enfrentava os adversários e os inimigos políticos destemidamente.
Em conjunto ou isoladamente, esses atributos eram valorizados e per-
seguidos pelas mulheres que se empenhavam na condição de militante comu-
nista. Como exemplo, pode-se citar o feito da costureira Elisa Branco diante
de uma parada militar em São Paulo, em 7 de setembro de 1950. Em vista
da probabilidade do envio de tropas brasileiras para a Guerra da Coreia, ela
abriu, na frente dos militares de mais alta patente, uma faixa com os dizeres
“Os soldados, nossos filhos, não irão para a Coreia”. Estava acompanhada
por outras mulheres, mas o fato de ter sido apanhada com a faixa na mão lhe
valeu uma condenação de quatro anos e meio de prisão. Por força de solidarie-
dade, a pena foi cumprida parcialmente. Aquela não havia sido sua primeira
prisão e não seria a última. Em função do episódio, foi agraciada com o Prê-
mio Internacional Stalin da Paz, no Palácio do Kremlin, em 1953.

A III Internacional no Centro da Mulher Brasileira


- setor São Paulo
A eclosão da segunda onda feminista, nos anos 1970, iria promover
uma volta ao passado, na busca de referências para a oposição ao feminismo.
Parcelas das militantes comunistas, organizadas principalmente no Partido
Comunista do Brasil, Partido Comunista Brasileiro, no Movimento Revolu-
cionário 8 de Outubro, retomaram as orientações da III Internacional para o
trabalho feminino, contrapondo, com maior ou menor ênfase, o movimento
feminino ao movimento feminista. É o que se pode confirmar em documentos
partidários e obras de militantes como Ana Montenegro, pertencente aos qua-

133
dros do PCB. Em obra publicada em 1981, Ser ou não ser feminista, essa autora
revela não admitir o pessoal como político.

Embora seja normal que surja, na onda da questão feminina, o tema da li-
bertação sexual, é falso e prejudicial ao movimento de mulheres [...] inseri-lo
prioritariamente na realidade feminina, dando-lhe status de causa. E quando
se fala na articulação das mulheres, para as lutas por sua libertação como par-
te das lutas sociais, surge então uma teoria fragmentada, através do casuísmo,
elaborada segundo experiências pessoais18.

Ela ironiza a inclusão do corpo na pauta feminista afirmando que, en-


quanto aquele era descoberto e redescoberto, ia acontecendo a despreocupa-
ção com o sistema. E ironiza também o feminismo dos anos 1960 dizendo que
a visão que o exaltava como se se tratasse da etapa definitiva das lutas pela li-
bertação da mulher expressava um estrangeirismo para a realidade nacional.
No capítulo intitulado “Enfocando aspectos essenciais do feminismo”, a
autora faz uma breve referência crítica aos pensadores que considera terem con-
tribuído mais diretamente para o surgimento da segunda onda feminista. Dessa
maneira, passa por Wilhelm Reich, Herbert Marcuse, Erich Fromm, Simone de
Beauvoir, observando suas ideias de que o materialismo histórico se preocupa
em estudar as leis que regulam os acontecimentos sociais e menospreza as leis
do comportamento dos indivíduos, descobertas pela psicanálise.
A crítica a esses pensadores é feita desde uma leitura ortodoxa e dog-
mática do marxismo, condenando qualquer associação entre essa doutrina e a
psicanálise, uma vez que “[...] de fato para os marxistas não há um indivíduo se-
parado da sociedade”19. Na mesma perspectiva ortodoxa, critica Juliet Mitchell
através de frases descontextualizadas dessa intelectual, sem dialogar com o
conjunto de suas ideias. E muito menos a considera no campo do socialismo.
A obra em questão simplifica e esquematiza quando considera que há
duas formas de opressão, a material e a psicológica. A material atingiria am-
plas camadas exploradas da população feminina. A psicológica, identificada
como problema sexual, afetaria mais as mulheres que não tinham problemas
materiais de existência, isto é, as burguesas e pequeno-burguesas. Trata as
diferentes classes sociais de maneira simplificada e padronizadora, como se
fossem homogêneas e isentas de contradições e nuances20.
Ana Montenegro reconhece a legitimidade da primeira onda femi-
nista em sua reivindicação de igualdade formal e jurídica da mulher. Mas
o feminismo que ressurgiu na década de 1970 a autora considera uma radi-
calização que coloca as mulheres contra os homens, numa priorização das
questões específicas que atingem as primeiras, à margem de todo o contexto

Nº 9, Ano 7, 2013 134


social. Assim considera apropriado radicalizar, ela também, na resposta e
contestação a ele.
Para compreender melhor as ideias dessa veterana militante comunista,
participante da movimentação de mulheres entre 1945 e 1964, é importante
saber de que lugar ela fala. E aqui a palavra lugar refere-se tanto à posição
política e ideológica como também à sua trajetória no exílio. Foi a primeira
mulher brasileira que saiu para o exílio em 1964. Tendo vivido inicialmente
no México, foi em Berlim Oriental que passou a maior parte do seu longo
exílio. Lá trabalhou como redatora da Revista Mulheres do Mundo Inteiro, órgão
da Federação Democrática Internacional de Mulheres, cuja sede se situava na-
quela cidade. A referida Federação, vinculada à Unesco, reunia organizações
de mulheres que atuavam na perspectiva socialista da questão feminina, isto
é, com uma visão utilitária e instrumentadora da mobilização de mulheres.
Ana Montenegro, anistiada, radicou-se na Bahia e se tornou uma refe-
rência importante para as ativistas comunistas e simpatizantes do movimento
feminista em São Paulo. Especialmente para aquelas organizadas junto ao
Centro da Mulher Brasileira, depois que as feministas dele se desligaram. Não
por coincidência, as feministas que se tornaram históricas, como Regina Ste-
la, Schuma Schumaher, Marise Egger, entre outras, deixaram de se identificar
com as posições daquela entidade, e dela foram se desligando ao longo dos
anos de 1980 e 1981.
A veterana militante, entretanto, não seguia as posições oficiais do PCB,
definidas como “política para o trabalho com mulheres”, que eram expressas e
veiculadas pela dirigente e integrante do Comitê Central, Zuleika Alambert, em
diversas ocasiões, conforme se verá mais adiante. A resistência das militantes
comunistas agrupadas no Centro da Mulher Brasileira em seguir a orientação
da direção partidária para o trabalho junto às mulheres pode ser atribuída
à luta interna desencadeada naquele partido em função de uma prolongada
crise de direção.
Passaram a se digladiar os que eram acusados de eurocomunistas (re-
visionistas) e os ortodoxos ou dogmáticos. Essas posições foram reduzidas
e traduzidas no que ficou conhecido como “direitismo versus esquerdismo”.
Entretanto, o processo era bem mais complexo do que se mostrava e havia
mais do que dois lados na querela. Em São Paulo, uma direção situacionista
tratava de afirmar sua autoridade combatendo esquerdistas, direitistas, pres-
tistas. Sempre em nome da disciplina, não faltaram expulsões, proibições de
livros e condenações por acusação de feminismo, “desvio” considerado intole-
rável, como a que se abateu sobre Marise Egger, em 1983.
Dessa forma, é possível entender por que a resolução intitulada A condi-
ção da mulher no Brasil e a luta para transformá-la: visão e política do PCB, apro-

135
vada pelo Coletivo Nacional de Dirigentes Comunistas, não foi aceita e muito
menos acatada pelo conjunto das militantes.

A herança da III Internacional sobre


outros segmentos da esquerda
O PCdoB, força política importante na aglutinação e mobilização
das mulheres da periferia nos movimentos de luta por creche e contra
a carestia, junto com a Igreja e com o PCB, mostrou sua concepção de
várias maneiras. Uma delas no episódio do racha do jornal Brasil Mulher,
quando suas militantes, junto com as de outras organizações de esquer-
da, isolaram Joana Lopes e o grupo fundador do jornal, que acabou por
sair. Isso por considerá-las com fortes tendências feministas. O PCdoB e
as outras forças políticas que conquistaram o controle do jornal o fizeram
para garantir que não se desviasse o foco das questões colocadas pela luta
democrática, tratadas no jornal, para as questões específicas não ligadas
ao trabalho da mulher.
As ideias de Ana Montenegro também serviram de inspiração para o
documento A mulher e a revolução brasileira, do MR8 – Resoluções do ativo sobre
o trabalho entre as mulheres, realizado em outubro de 1980 e publicado pela
Editora Quilombo em janeiro de 1981. Esse documento, em uma linguagem
mais agressiva, apresenta uma versão maniqueísta da luta de classes entre
proletários e burgueses como sendo a luta do bem contra o mal21.
Todavia, manifesta menosprezo pelo movimento popular de mulheres
abrigado e incentivado pela Igreja Católica, que teve lugar ao longo da década
de 1970, ao ignorá-lo. Revela ainda desconsideração em relação aos estudos e
às teorias quando declara guerra à autonomia do movimento, defendida pelas
feministas. Tal autonomia, de acordo com o documento, não tem nada a ver
com o verdadeiro feminismo (que é o da proletária) e obtém como resultado o
enfraquecimento da luta da mulher por seus direitos e a divisão do proletaria-
do na luta sindical e política.
O documento se coloca contra as organizações que aglutinavam exclu-
sivamente mulheres, porque as entidades representativas, como as estudantis,
as sindicais e o PMDB já existiam e eram capazes de canalizar “o anseio de
participação das amplas massas femininas”. Além da visão instrumental das
lutas femininas, expressam a convicção de que as mulheres não são capazes
de levar suas lutas sem a proteção dos homens.

As mulheres sentem que seus principais problemas [...] são os que sofrem
em comum com os homens de nosso povo: os baixos salários, as péssimas

Nº 9, Ano 7, 2013 136


condições de vida, a falta de liberdade etc. Ao mesmo tempo, o esmagamento
secular que pesa sobre a mulher e que entrava sua participação na vida social
e política, faz com que intuitivamente não se sinta confiante para sustentar
mobilizações de vulto em torno de bandeiras específicas, isoladas da massa
dos homens trabalhadores.22 (MASSOCA, 1981, p. 26)

O feminismo alcança as militantes do PCB no exílio


Zuleika Alambert, integrante do Comitê Central do PCB, exilou-se
no Chile e depois seguiu para Paris. Após ter trabalhado para a organização
de mulheres brasileiras no Chile, dentro dos moldes tradicionais socialis-
tas, quando foi para Paris, teve chance de reexaminar suas convicções.
Fundou inicialmente o grupo de estudos que recebeu o nome Grupo de
Mulheres Brasileiras em Paris, juntamente com outras intelectuais. Com
o objetivo de estudar os clássicos do socialismo, esse grupo resistiu um
pouco a dialogar com as novas ideias feministas, mas, exposto ao convívio
com o Movimento de Libertação Feminina (MLF), não pôde se furtar a
reconsiderar suas posições23.
Os documentos produzidos pela Seção Feminina do PCB desde en-
tão revelam a aproximação em relação ao feminismo. No documento de 1975,
consta a referência à fundação do Grupo de Mulheres Brasileiras em Paris,
indicando que já era tempo de se ocupar com a questão feminina desde outra
ótica. E tomaram-se algumas premissas como base do trabalho novo na Fran-
ça: o trabalho feminino é específico e exige estudos concretos e organizações
de mulheres que permitam aprofundar o problema e propor soluções no qua-
dro da luta de classes.
No documento de 1978, são analisados os temas tratados no Círculo de
Mulheres Brasileiras em Paris: 1. Diferença entre opressão e exploração; 2. Au-
tonomia do movimento feminino; 3. Ideia da superioridade do homem em re-
lação à mulher; 4. Família; 5. Necessidade de coerência entre a posição política
dos militantes de esquerda e seu comportamento na vida privada; 6. Sexua-
lidade. Consideram a diferenciação entre opressão e exploração feita pelas
integrantes do Círculo. A primeira se aplicaria às mulheres por parte dos ho-
mens, independentemente da classe a que pertencessem, e se verificaria por
meio da superioridade e dos privilégios masculinos. E a segunda, a explora-
ção, se aplicaria de uma classe a outra, independentemente do sexo. Propu-
nham então uma solidariedade ou irmandade feminina que unisse todas as
mulheres. As comunistas incorporaram a ideia de opressão e da irmandade,
mas criticaram a desconsideração da exploração de classe que muitas vezes
contrapunham as mulheres24.

137
O PCB adere ao feminismo?
A análise do documento A condição da mulher no Brasil e a luta para
transformá-la: visão e política do PCB, resolução aprovada, ainda no exílio,
pelo Coletivo Nacional de Dirigentes Comunistas, permite constatar tanto a
distância que a visão partidária para o trabalho feminino toma em relação à
III Internacional como as resistências encontradas na aproximação com as
teses feministas.
Dessa maneira, em vários momentos do referido documento encon-
tram-se nítidas influências das ideias feministas. Condenam-se como precon-
ceito e como ideias retrógradas as conclusões que levam à “natureza feminina”
para justificar a inferioridade das mulheres no mundo do trabalho. Conside-
ra-se que, por mais que se admita a incidência do condicionamento secular,
que faz com que as mulheres, muitas vezes, intimidem-se diante da partici-
pação na produção social, sua condição subalterna não se justifica. Encon-
tram razões para essa desigualdade na conjugação de fatores, como orientação
escolar e familiar carregada de preconceitos quanto aos papéis que cabem a
cada um dos sexos; inadequação da formação profissional, entre outros. Tam-
bém na análise da maternidade como função social se nota a aproximação
com o feminismo “[...] se, por questões biológicas, coube à mulher o papel
principal na reprodução da espécie, isso não significa que a ela, somente, cai-
ba a responsabilidade pela educação e cuidado dos filhos”25. Essa concepção
leva à paternidade e à maternidade conscientes e responsáveis, que devem
ser amparadas por política pública de planejamento familiar. Leva também à
demanda conjunta de equipamentos sociais que façam com que a sociedade
se ocupe e se responsabilize igualmente pelas crianças, possibilitando uma
maior participação das mães na vida ativa do país. Aparece também no do-
cumento uma tímida incorporação do conceito de patriarcado, tão caro ao
feminismo, quando analisa a estrutura familiar brasileira. Considera que suas
relações são baseadas na hierarquia e no autoritarismo patriarcal do chefe, a
quem estão subordinados a mulher e os filhos26.
Aparece melhor a apropriação desse conceito na fala de Zuleika Alambert,
em palestra proferida em dezembro de 1979, em evento organizado pela Associa-
ção das Mulheres.

O que todas nós juntas aqui queremos é sair do gueto em que nos ilharam
historicamente; ocupar na sociedade o lugar que nos cabe; ganhar uma fisio-
nomia nova, própria, como seres pensantes e como tais criativos. O que de-
sejamos é mostrar que valemos pelo que somos individualmente, com nossas
qualidades e defeitos, e não porque somos uma imagem, um reflexo do pai,
do irmão ou do marido com quem vivemos. Queremos é aparecer na socie-

Nº 9, Ano 7, 2013 138


dade com força e luz própria e todos esses quereres só podem nos unir, nos
irmanar, nos tornar elos de uma mesma corrente, afluentes de um mesmo rio,
independentemente da classe da qual somos oriundas. E essa unidade se forja
entre nós pelo fato de sermos mulheres e, como tal, seres esmagados e oprimi-
dos dentro de uma sociedade feita e organizada para o homem27.

Voltando à resolução, observa-se que reconhece a diferença entre mo-


vimento de mulheres e movimento feminista, atribuindo a este o papel de
vanguarda, uma vez que se define como amplo, democrático, extrapolando as
fronteiras de classe e reunindo mulheres em suas múltiplas formas de organi-
zação, buscando os mesmos objetivos maiores: transformação das condições
de vida das mulheres, sua libertação e emancipação. Enfatizando seu caráter
plural e a especificidade da questão da mulher, reafirma a sua necessária au-
tonomia, condição que deve ser respeitada pelos partidos que nele atuam.
Na plataforma de luta pela igualdade de direitos da mulher, cuja versão
atualizada em abril de 1982 foi publicada junto com o documento analisado,
há uma breve referência ao direito da mulher sobre o próprio corpo. E no pró-
prio documento, outra menção à sexualidade, quando afirma que

[...] será através do exame crítico de seu dia a dia (o trabalho doméstico, a ma-
ternidade, a criação dos filhos, a vida conjugal, sua sexualidade, os problemas
do bairro) [...] que a mulher ganhará consciência de sua real situação dentro
da sociedade e energias para lutar contra ela28.

As militantes que participaram da elaboração do documento, poste-


riormente aprovado pelo Coletivo Nacional de Dirigentes Comunistas, lem-
bram-se que havia resistências, mesmo entre elas, com relação à bandeira da
sexualidade29. Consideravam-na uma questão burguesa. Para o senso comum
no Brasil, o sexo era tabu, além de alvo de preconceito e moralismo, o que
se refletia no conjunto dos militantes do PCB. Essa situação se tornava mais
delicada ao se considerar o conflito de gerações em tempos de mudanças tão
radicais de valores nas décadas de 1960 e 1970. Se, para o feminismo francês, a
posse do corpo e o domínio da própria sexualidade eram pontos de honra, no
Brasil ainda representavam o limite das lutas feministas. Esse tema esbarrava
no conservadorismo e causava polêmica30.

Autocrítica?
Digna de nota é a autocrítica que o documento registra ao afirmar que,
por incompreensão da dimensão da opressão feminina e subestimação do
papel da mulher na sociedade, o partido não havia dado a devida atenção

139
à questão. Pela mesma razão, havia encarado com sectarismo o trabalho de
massas junto às mulheres.

Afastamos dele os melhores quadros, por serem “bons demais” para o traba-
lho feminino. As demais foram relegadas às tarefas de infraestrutura do cole-
tivo (tesoureiras, caseiras, tradutoras, datilógrafas) ou permaneceram simples
donas de casa, a pretexto de constituírem a retaguarda de seus maridos e
filhos. O machismo, o paternalismo, o patriarcalismo milenares refletiram-
se em nossa concepção sobre o papel da mulher na sociedade, o que levou à
subestimação de suas potencialidades políticas e à aceitação da velha divisão
de trabalho por sexo também dentro do Coletivo31.

Sem negar a importância do trabalho realizado pelas militantes com as


mulheres, entre 1945 e 1964, foi feita, no entanto, a ressalva de que aquele
era tratado de uma perspectiva instrumentalista, isto é, nunca voltando sua
reflexão e seu olhar para a condição da mulher, e sim referendando sempre
as lutas gerais.
As contradições pessoais e políticas das comunistas nem sempre as le-
varam à adesão ao Feminismo. Tal adesão parece ter exigido um enfrentamento
pessoal mais profundo das suas convicções ideológicas. Significava sair comple-
tamente das suas zonas de conforto para reexaminar valores, rever e refazer es-
colhas, posturas, costumes, comportamentos... Significava fazer transformações
que demandavam enorme esforço e disposição para revolucionar a própria vida
e a vida dos que lhes eram mais próximos. Nem todas as comunistas se dis-
puseram a empreender essa revolução. Algumas, que inicialmente resistiram à
novidade que o feminismo trazia, posteriormente preferiram a condição de sim-
patizantes. Estabeleceram um vínculo mais tênue com o movimento por meio
da defesa de uma ou outra bandeira do feminismo, sem maiores compromissos.
Outras se opuseram de maneira aguerrida, combatendo qualquer discurso ou
postura que pusessem em questão suas verdades conservadoras.
A revolução que o Feminismo incitava também colocava em cheque o
próprio conceito de revolução que muitas haviam abraçado na perspectiva da
luta pelo socialismo. Embora essa luta tenha implicado muitas vezes sacrifício
pessoal, a revolução proletária no Brasil nunca chegou a acontecer, portanto
nunca promoveu nenhuma transformação radical em termos políticos, econô-
micos e/ou sociais. Ficava dessa maneira no ar a pergunta: o que significava
exatamente ter sido ou continuar sendo uma revolucionária?

RESUMO
Este artigo analisa os estranhamentos e as aproximações das militantes co-
munistas com o feminismo, tanto nas formulações teóricas quanto em suas

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práticas políticas, em diferentes momentos históricos. O texto procura con-
templar as contradições enfrentadas pelas comunistas em relação a diversos
fatores que marcaram suas formações políticas e ideológicas. Suas reações,
rejeições, reflexões e, em alguns casos, adesões ao novo conjunto de ideias
que o feminismo representava aconteciam de acordo com a maneira com que
vivenciavam suas contradições.

PALAVRAS-CHAVE
Mulheres comunistas; mulheres na teoria socialista; feminismo.

Communist women and the feminism.

ABSTRACT
This article analyzes the strangeness and rapprochements of female commu-
nist militants with Feminism, with both theoretical formulations and politi-
cal practices, in different historical moments. The text seeks to address the
contradictions faced by Communist women in relation to several factors that
have marked their political and ideological formations. Their reactions, rejec-
tions, and reflections, and in some cases adhesions to the new set of ideas that
represented Feminism happened in accordance to the way they experienced
their contradictions.

KEYWORDS
Women communists; women in socialist theory; Feminism.

NOTAS
1
Doutora em História Social pela Universidade de São Paulo. Docente do College
of New Rochelle – New York, na condição de Fulbright Scholar. O artigo foi desen-
volvido com base em capítulo da tese orientada pelo prof. livre-docente Wilson do
Nascimento Barbosa: RIBEIRO, Maria Rosa Dória. Relações de poder no feminismo
paulista – 1975 a 1981. Tese (doutorado em História) – Universidade de São Paulo, São
Paulo, 2011. Contato da autora: [email protected].
2
MORAES, Maria Lygia Quartim de. Vinte anos de feminismo. Tese de livre-docência.
1996. Departamento de Sociologia do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas –
IFCH, da Universidade Estadual de Campinas.
3
Idem.
4
MITCHELL, Juliet. “Mulheres, a revolução mais longa”. Revista Civilização Brasileira,
Rio de Janeiro, n. 14, p. 6, jul. 1967.
5
NEHRING, Maria Lygia Quartim de Moraes. Família e feminismo: reflexões sobre
papéis femininos na imprensa para mulheres. Tese (Doutorado em Ciências Políti-
cas), Departamento de Ciências Sociais da FFLCH-USP, São Paulo, 1981.
6
NEHRING, M. Op. cit., p. 26.

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7
MITCHELL, J. Op. cit., p. 11.
8
“[...] 96% das mulheres trabalhadoras arcam sozinhas com a orientação e a exe­
cução dos afazeres domésticos.” Porto, Marta. “Em busca de kairos”. In: VEN-
TURI, Gustavo; RECAMÁN, Marisol; OLIVEIRA, Suely (Org.). A mulher brasileira
nos espaços público e privado. São Paulo: Editora Fundação Perseu Abramo, 2004.
9
MITCHELL, J. Op. cit., p. 22.
10
Ibidem, p. 24.
11
Embora o texto de Mitchell seja bastante datado e escrito há mais de 40 anos, ela
observa um processo que, desde então, só aumentou em quantidade e em qualidade.
Trata-se do questionamento de valores e da mudança de atitudes em relação à ética
das relações sexuais até então vigentes: a virgindade, a fidelidade, o sentimento de
posse e o controle exercidos mutuamente, o “para sempre”, entre outros.
12
Embora Mitchell tenha ilustrado essa afirmação com dados comparados entre
1890 e 1960 na Inglaterra, é possível carregar tal afirmação para o Brasil na compa-
ração de dados entre meados dos anos 1950, quando a média do número de filhos
era bem maior, e os primeiros anos do século XXI. MITCHELL, J. Op. cit.
13
Cf.: Atas do primeiro, segundo, terceiro e quarto congressos da III Internacional, p.
101. Disponível em: <www.scribd.com/doc/18977242/ Atas-do-primeiro-segundo-
terceiro-e-quarto-congresso-da-Terceira-Internacional>. Acesso em: 31 out. 2010.
14
Nas considerações feitas pelo Congresso quanto às condições das mulheres,
aparece: “b. A grande passividade e o estado de atraso político das massas femini-
nas, defeitos explicáveis pelo distanciamento secular da mulher da vida social e por
sua escravidão na família” [grifo nosso]. Cf.: Atas do primeiro, segundo, terceiro e
quarto congressos da III Internacional. p. 102. Disponível em: <www.scribd.com/
doc/18977242/Atas-do-primeiro-segundo-terceiro-e-quarto-congresso-da-Terceira-
Internacional>. Acesso em: 31 out. 2010.
15
MONTENEGRO, Ana. “Ser ou não ser feminista”. Cadernos Guararapes, Recife, n.
3, 1981.
16
MONTENEGRO, A. Op. cit., p. 68.
17
“A mulher brasileira é profundamente sentimental. Ama sua família, ama seus
filhos e é capaz de dar provas de abnegação e amor. Além disso é uma criatura
alegre e gosta de coisas bonitas. Poucas são as casas de favela, de mocambos, cor-
tiços ou casa de cômodos que, apesar da pobreza, não ostentam um vaso de flores,
uma toalhinha bordada. A mulher trabalhadora quer casar, ter filhos e um lar.”
Excerto do informe sobre o primeiro ponto da Ordem do Dia da Conferência Na-
cional de Trabalhadoras, realizada no Rio de Janeiro, de 18 a 20 de maio de 1956.
MONTENEGRO, A. Op. cit..
18
MONTENEGRO, A. Op. cit., p. 48.
19
Ibidem, p. 34.
20
“Nas classes dominantes ou nas camadas médias e da pequena burguesia, o ma-

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chismo, em geral, tem um efeito muito mais individual; pode não ter as conse-
quências de transformar as mulheres em mão de obra mais barata e marginal, mas
assim mesmo, à medida que cresce a participação da mulher de todas as camadas na
produção social, de qualquer forma ele a discrimina. [...] No entanto, como o proble­
ma não se apresenta, para essas camadas sociais, tão tragicamente agudo, e como as
implicações são mais de ordem familiar e individual, elas o consideram limitado ao
sexo, e vêm justamente dessas camadas os movimentos feministas.” (MONTENE-
GRO, Ana. Op. cit., p. 59-60).
21
“[...] A situação de cada mulher é determinada por dois fatores: sua classe, que é o
principal, e seu sexo [...]. No caso da mulher trabalhadora, como vimos, ela amarga
dupla opressão. Sofre os tormentos que são comuns à sua classe, mas sua situa-
ção é ainda agravada pela opressão de que é vítima enquanto mulher. No caso da
mulher burguesa, sua situação é outra. [...] Enquanto membro da classe burguesa,
compartilha os privilégios de sua classe e está interessada em manter a exploração
e a opressão das massas trabalhadoras [...].” MASSOCA, Paulo (Ed.). MR8: resoluções
sobre o trabalho entre as mulheres. São Paulo: Quilombo, 1981, p. 15.
22
MASSOCA, P. (Ed.). Op. cit., p. 26.
23
Essa autora dedica sua obra Feminismo, o ponto de vista marxista “às companhei-
ras e amigas feministas brasileiras junto às quais vivi durante o longo exílio [...]
Sem elas, com suas opiniões críticas, ideias e sugestões; sem elas, com suas lutas
criadoras, eu jamais teria sido sacudida até os alicerces de minhas concepções dogmáti-
cas e reunido forças suficientes para colocar no papel as reflexões que exponho neste
livro”. (Grifo nosso.) Alambert, Zuleika. Feminismo, o ponto de vista marxista. São
Paulo: Nobel, 1985, p. VI.
24
“Temas que aparecem no Círculo de Mulheres Brasileiras em Paris e sobre os quais
devemos elaborar uma posição”. Documentos do Partido Comunista Brasileiro, fe-
vereiro de 1978.
25
Coletivo Nacional de Dirigentes Comunistas. Os comunistas e a questão da mulher.
São Paulo: Cerifa/Novos Rumos, 1982, p. 28-29.
26
Quando o documento foi escrito ainda vigorava o antigo Código Civil Brasileiro,
com muitos artigos, especialmente os concernentes ao Direito da Família, que con-
sagravam a inferioridade da mulher.
27
ALAMBERT, Zuleika. A situação e organização da mulher. São Paulo: Global, 1980, p. 24.
28
Coletivo Nacional de Dirigentes Comunistas. Op. cit., p. 73.
29
Ruth Tegon, em entrevista por telefone realizada em novembro/dezembro de 2010.
30
Um exemplo disso foi a absolvição de Doca Street no julgamento pelo assassinato
de sua mulher, Angela Diniz, em 1979. Esse caso ficou famoso pelo fato de a defesa
ter alegado a “legítima defesa da honra”, com base no Código Civil Brasileiro.
31
Coletivo Nacional de Dirigentes Comunistas. Op. cit., p. 63-64.

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