As Melhores Redações Da FUVEST 2010: Uma Análise Dialógica

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UNESP UNIVERSIDADE ESTADUAL PAULISTA

“JÚLIO DE MESQUITA FILHO”


Faculdade de Ciências e Letras
Campus de Araraquara - SP

Mariana Conti

AS MELHORES REDAÇÕES DA FUVEST 2010:


UMA ANÁLISE DIALÓGICA

ARARAQUARA – SP
2012
1

Mariana Conti

AS MELHORES REDAÇÕES DA FUVEST 2010:


UMA ANÁLISE DIALÓGICA

Trabalho de Conclusão de Curso (TCC),


apresentado ao Conselho de Curso da Faculdade de
Ciências e Letras – UNESP/Araraquara, como
requisito para obtenção do título de Bacharel em
Letras.

Linha de pesquisa: Linguística

Orientador: Profao Drao Renata Coelho


Marchezan

ARARAQUARA – SP

2012
2

Conti, Mariana

As melhores redações da FUVEST 2010: uma análise


dialógica / Mariana Conti – 2012.
Mariana Conti
24 f. ; 30 cm

Trabalho de conclusão de curso (Graduação em


Letras)- Universidade Estadual Paulista, Faculdade de
Ciências e Letras, Campus de Araraquara

Orientadora: Renata Coelho Marchezan

1. Dialogismo. 2. Redação. 3. Vestibular. I. Título


3

Mariana Conti

AS MELHORES REDAÇÕES DA FUVEST 2010:


UMA ANÁLISE DIALÓGICA

Trabalho de Conclusão de Curso (TCC),


apresentado ao Conselho de Curso da Faculdade de
Ciências e Letras – UNESP/Araraquara, como
requisito para obtenção do título de Bacharel em
Letras.

Linha de pesquisa: Linguística

Aprovado em:

__________________________________________
Prof. Dr. Renata Coelho Marchezan
Universidade Estadual Paulista-UNESP
4

Sumário

1. Introdução ....................................................................................................................................... 6

2. O dialogismo .................................................................................................................................... 6

2.1. Enunciado concreto ................................................................................................................. 9

2.2. Os gêneros do discurso.......................................................................................................... 11

3. Análise das redações ..................................................................................................................... 12

3.1. Temática ................................................................................................................................ 14

3.2. Linguagem e escrita ............................................................................................................... 16

3.3. Argumentação ....................................................................................................................... 17

3.4. Citações ................................................................................................................................. 19

3.5. Estrutura ................................................................................................................................ 21

3.6. Gênero do discurso................................................................................................................ 24

4. Conclusão ...................................................................................................................................... 26
5

RESUMO

O presente trabalho analisa as 53 melhores redações do vestibular do ano de 2010, da


FUVEST - Fundação Universitária para o Vestibular, que foram publicadas no site da
instituição, com a indicação de terem sido consideradas as melhores do exame. O objetivo da
análise foi, com base na abordagem dialógica, identificar semelhanças e diferenças entre as
redações. Foram analisados aspectos como: o modo como os vestibulandos abordaram o
tema; a linguagem e a organização da escrita; as diferentes formas de argumentação; as
citações mais utilizadas; a estrutura dissertativa e a maneira como os vestibulandos
consideraram gênero do discurso “redação”. O trabalho comparou também as redações com a
maneira pela qual o gênero é abordado nas escolas e cursinhos pré-vestibulares; o que nos
forneceu parâmetros para avaliar até que ponto esse ensino pode auxiliar o aluno e até que
ponto pode atrapalhá-lo. Com a análise, pode-se depreender o que a instituição valoriza, o que
auxilia a desmistificação de algumas das conhecidas “fórmulas” para uma boa redação.

Palavras chave: redação; dissertação; vestibular; dialogismo.

ABSTRACT

This research analyzes the 53 best university entrance exams essays of 2010 of FUVEST -
University Foundation for University Entrance Exams, which were published on the
institution website, indicating that they were considered the best in the exam. The objective of
the analysis was to identify similarities and differences between the essays, based on dialogic
approach. We analyzed aspects such as: the way students addressed the subject, the language
and organization of writing; the different ways of argumentation; the most used quotes;
dissertation structure and the way the students considered the discourse genre "writing". The
study also compared the essays based on the way in which the genre is addressed in schools
and pre-university preparatory courses, which gave us parameters to evaluate the extent to
which this teaching can help students or otherwise confuse them. Through the analysis, we
can deduce what the institution values, which helps to demystify some of the so-called known
“recipes” for good writing.

Keywords: essay writing; dissertation; university entrance exams; dialogism.


6

1. Introdução

Este trabalho analisa as 53 melhores redações do vestibular do ano de 2010, da


FUVEST- Fundação Universitária para o Vestibular, que foram publicadas no site da
instituição com a indicação de terem sido consideradas as melhores do exame. A análise tem
como base o dialogismo, termo a que se nomeia as contribuições do chamado Círculo de
Bakhtin.
A FUVEST é a instituição responsável pela realização dos exames vestibulares de
escolas de nível superior do Estado de São Paulo, sobretudo para a Universidade de São
Paulo- USP. Realizado em duas fases, o vestibular da FUVEST é o maior do Brasil, com
quase 140.000 inscritos todos os anos, disputando uma das 10.652 vagas disponíveis.
Cerca de 50 redações são selecionadas todos os anos pelos corretores com a indicação
de terem sido as melhores na avaliação e ficam disponíveis no site da instituição.
É importante observar que as redações são publicadas de forma aleatória, e não
seguem o ranking da primeira melhor redação até, neste caso, a quinquagésima terceira, mas
foram publicadas como as 53 redações que mais chamaram a atenção dos corretores.
A escolha das contribuições do Círculo de Bakhtin, como fundamentação teórica da
reflexão, é uma forma de aprofundar os conhecimentos obtidos durante a graduação. Além
disso, essa teoria nos permite analisar as redações e nos auxilia na compreensão de diversos
aspectos encontrados nas redações do exame.
Serão analisados aspectos como a temática, a estrutura textual, as citações utilizadas
pelos alunos, a argumentação e a linguagem. Através desses aspectos é possível avaliar o que
o corretor espera de uma redação e quais elementos as diferenciam das demais redações.
Consideramos que a análise das redações, aqui proposta, pode auxiliar tanto os
vestibulandos que pretendem entender quais são as questões avaliadas e valorizadas em uma
redação, quanto os professores e pesquisadores que se interessam por reflexões sobre as
produções de redação e por parâmetros para a sua avaliação.

2. O dialogismo

O Círculo de Bakhtin foi um grupo formado por estudiosos russos, no século XX, que
se reuniam para discutir principalmente questões filosóficas. O grupo tinha como membro o
pensador Mikhail Bakhtin e contava com outros pensadores, entre eles Valentim Voloshinov
e Pavel Medvedev. Depois de algum tempo, houve, em seus estudos, uma valorização da
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linguagem, tornando-a o centro de suas pesquisas. É essa abordagem da linguagem que


tomamos como base da análise aqui proposta.
A partir do conceito de que a língua é um objeto permanentemente dinâmico, já que
acompanha o ritmo e a evolução da vida social, o Círculo de Bakhtin se volta para o caráter
dialógico da linguagem, o que ficará conhecido como “dialogismo”. De acordo com essa
perspectiva, os enunciados são dialógicos, e, nesse sentido, relacionam-se tanto com o que já
foi proferido anteriormente, como com o que será dito (ou escrito) em resposta.
Entende-se que, ao tomar a palavra, o enunciador está, de alguma maneira,
respondendo a enunciados prévios, e, com seu próprio enunciado, provoca também respostas.
A enunciação constitui, assim, um elo de comunicação. Todo enunciatário responderá, de
alguma forma, ao que lhe foi dito. Ainda que não explicite sua opinião, ou que não a expresse
publicamente, o enunciatário não ficará alheio a um enunciado, estará sempre interagindo
com o que ouve ou lê.
Todo tipo de comunicação - verbal ou não verbal - pode ser caracterizada como
dialógica. Em todo enunciado, existe um enunciatário e espera-se que todo enunciatário
produza uma resposta, seja verbal ou não (uma expressão facial, por exemplo), falada ou
escrita. Podemos pensar em um quadro famoso: tal arte foi criada pelo artista, mas passa a ter
um significado amplo quando é visto pelo público, que pode aprovar, compartilhando com o
que a pintura enuncia, ou até desaprová-la, quando o receptor não vê sentido nela ou
simplesmente não concorda com o que está sendo enunciado. Toda e qualquer pessoa que
olhar para uma obra de arte, apreciando-a ou não, enunciará uma resposta, portanto o diálogo
estará sendo realizado.
Na comunicação há, obviamente, respostas explícitas: quando lemos um jornal ou uma
revista, logo nas primeiras páginas podemos nos deparar com a resposta do leitor, que são
pequenas cartas escritas aos editores dizendo o que pensam sobre determinados assuntos que
foram veiculados na publicação anterior da mídia. Essas cartas representam uma parcela dos
leitores que decidiram explicitar sua opinião. No entanto, não significa que foram somente
essas pessoas que tiveram uma resposta ao que leram. Todos os leitores, por terem entrado em
contato com o texto, responderam de uma dada maneira, seja conversando com alguém sobre
o assunto, ou apenas pensando no tema.
Da mesma forma, podemos pensar em um discurso da presidente da república na
televisão. Apesar de estar em frente às câmeras, ela elabora seu discurso de acordo com o
público que pretende atingir, e todas as pessoas que a ouvirem darão uma resposta, seja
comentando suas palavras com alguém, escrevendo um editorial, ou simplesmente pensando a
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respeito. Em termos bakhtinianos, temos, aí, uma situação dialógica, mesmo que não se dê
face a face.
Em um diálogo face a face, espera-se uma resposta imediata do enunciatário. Já no
editorial de um jornal, por exemplo, o editor salienta a posição do jornal diante dos fatos, e
tenta persuadir o leitor a concordar com suas palavras ou, no mínimo, pensar na questão
discutida. Mesmo que não seja imediata, o editor sempre receberá uma resposta de seus
enunciatários, e essa resposta poderá chegar até ele de diversas maneiras, expressando
opiniões individuais ou da massa social.
Como vivemos em um meio social, Bakhtin afirma que todo enunciado é construído
sobre outro enunciado, ou seja, nenhum enunciado é completamente novo, que nunca antes
tenha sido pensado ou proferido, já que o enunciado é uma resposta a algum enunciado
anterior.
Quando falamos de um livro, de um político, de um acontecimento, ou o que quer que
seja, estaremos sempre citando a fala de outra pessoa e incorporando a ela, explicitamente ou
não, nossa visão de mundo. Ouvindo a um discurso político, podemos nos surpreender com a
solução que um sujeito dá a determinado problema da sociedade. Porém, por mais que a
solução seja inovadora, ela só surgiu de uma dificuldade, uma carência social. Por todas essas
questões, um enunciado terá sempre, no mínimo, duas vozes.
Tudo que se enuncia gera uma resposta. Foi pensando nesse contexto que Bakhtin
pensou no diálogo não apenas como uma alternância de vozes face a face, mas como uma
comunicação mais ampla, verbal ou não, face a face ou não. Cada enunciação carrega como
significado o contexto social em que está inserido.
Assim, não há enunciado que seja completamente novo, os enunciados, no entanto,
não são cópias uns dos outros. Um enunciado é sempre um diálogo com algo anterior, e
certamente servirá para futuros enunciados. É a “relação da palavra à palavra de outrem”
(MARCHEZAN, 2006, p.123).
De acordo com a teoria, os enunciados são uma espécie de diálogo constante com o
que já foi dito, e com certos enunciados que ainda não foram ditos. Podemos pensar nessa
questão, de modo analógico à formulação do célebre químico Antoine Lavoisier no século
XVIII: "na natureza nada se cria, nada se perde, tudo se transforma". Da mesma forma, nada
de novo será dito, mas sempre haverá uma relação com o que já se disse anteriormente. Cada
enunciado dialoga, de forma positiva ou negativa, concordando ou discordado, com algo que
já foi dito. Da mesma forma, o receptor do texto agirá de modo semelhante. Dizendo ou
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calando-se, escrevendo ou interiorizando um enunciado; ele sempre concordará, discordará,


ou concordará parcialmente com o que está sendo enunciado.

2.1. Enunciado concreto

O Círculo de Bakhtin criou a teoria do enunciado concreto, no qual afirma que a


linguagem passa por um processo constante de mudança e desenvolvimento. E, já que a
língua é um produto da vida social, segue sua evolução.
Acerca desse conceito, Souza (2002), em seu livro Introdução à teoria do enunciado
concreto, nos explica o conceito enunciado concreto:

[...] o todo do enunciado concreto é o produto da interação entre falantes


num determinado contexto e no interior de uma situação social complexa.
Esse é o cenário, onde o enunciado concreto, o discurso deve ser
compreendido. (SOUZA, 2002, p. 74)

Se ele [o enunciado] é concreto, é histórico; se ele é histórico, é humano; se


ele é humano, é social; se ele é social, é ético; se ele é ético, é consciente,
tudo isso em interação orgânica. (SOUZA, 2002, p. 93)

Todo enunciado é construído de acordo com o meio social do enunciador. Por essa
razão, os textos escritos deixam transparecer o tempo em que foi criado. Por exemplo, num
romance histórico, o leitor reconhecerá que a história não se passa no momento em que vive,
já que o texto será evidenciado pelo seu meio social, através de costumes ou objetos que se
diferenciam dos da atualidade do momento da leitura. Mas ainda que o leitor não se interesse
pelos fatos passados, ele pode se identificar com o texto: apesar de espaços e tempos diversos,
certas situações que ocorriam no passado continuam a ocorrer, o que nos dá a sensação de que
o tempo passa, mas certas coisas nunca mudam. É comum esse tipo de situação ocorrer na
linguagem escrita no caso de documentos mais duradouros, como certos livros. Mas o
reconhecimento ao meio social pode vir de outros materiais além do escrito, como vídeos e
gravações de áudio.
Cada enunciador tem um estilo próprio para se comunicar e dá interpretações a cada
palavra que usa. Sentimos isso quando reconhecemos quem é o autor de um texto somente
pela linguagem que utiliza, ou pelo modo como o texto é escrito. Isso só pode acontecer
quando o enunciador cria sua própria “marca” na linguagem, quando usa expressões próprias,
ou até quando trata de temas rotineiros, criando uma espécie de “enunciado personalizado”.
Desse modo, podemos notar que a mesma língua pode se adequar a diferentes pessoas, com
personalidades distintas. Da mesma forma que cada enunciador cria seu próprio enunciado, de
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forma bastante pessoal, ele também irá adequar seu discurso de acordo com seu enunciatário.
O receptor determinará diretamente as escolhas lexicais e as de gêneros, já que ele poderá ter
diferentes funções sociais.
Segundo Bakhtin, todos os enunciados são direcionados a um público:

Enquanto falo, sempre levo em conta o fundo aperceptivo sobre o qual


minha fala será recebida pelo destinatário: o grau de informação que ele tem
da situação, seus conhecimentos especializados na área de determinada
comunicação cultural, suas opiniões e suas convicções, seus preconceitos (de
meu ponto de vista), suas simpatias e antipatias, etc.; pois é isso que
condicionará sua compreensão responsiva de meu enunciado. Esses fatores
determinarão a escolha do gênero do enunciado, a escolha dos
procedimentos composicionais e, por fim, a escolha dos recursos
linguísticos, ou seja, o estilo do meu enunciado.
(BAKHTIN, 1997, p.321)

Quando falamos com nossos avós, por exemplo, não falamos da mesma forma que
falamos com nossos amigos. A forma de tratamento é diferente, assim como as escolhas
lexicais, e, não obstante, a maneira como os temas são tratados.
No caso das redações de vestibular, muitos podem ser os artifícios arquitetados para
alcançar a aprovação do corretor. O uso, por exemplo, de referências que não são pertinentes
ao mundo do enunciador. O aluno, muitas vezes, mudará seu modo de enunciar ou até de
enxergar o mundo, para escrever aquilo que ele pensa que o corretor deseja encontrar em seu
texto. Essa ideia é errônea, visto que a redação pode parecer artificial, e o corretor,
certamente, julga (ou deveria julgar) o modo como o vestibulando expressa sua opinião.
Um enunciado não se caracteriza apenas por o que diz, mas traz consigo uma carga
social de um dado tempo. Um mesmo enunciado pode ter diferentes sentidos quando se trata
de épocas e contextos diversos.
Um enunciado que em um dia pode ser trivial, pode passar a ter um novo significado
depois de, por exemplo, ser proferido por alguém que tenha algum tipo de influência social.
Podemos pensar, a propósito, numa expressão americana muito conhecida atualmente: “Yes,
we can!”. Essa expressão poderia ter sido usada por todos nós, em contextos diversos. Porém,
a partir do momento que o candidato à presidência dos Estados Unidos, Barack Obama, no
ano de 2008/2009, tornou essa frase o slogan de sua campanha eleitoral, a frase adquiriu uma
carga de sentido muito forte e um tanto específico. Depois desse fato, qualquer pessoa que
pronunciar tal frase se lembrará do presidente americano, pelo menos por um dado tempo.
Da mesma maneira, um enunciado pode ter inúmeros significados, dependendo do
contexto e da entonação do interlocutor. Expressões como “infelizmente” pode ter o sentido
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de “felizmente” em certas situações. É o contexto que dará uma significação ao todo. Quando
alguém diz a palavra “burro”, pode estar se referindo ao animal, ou querendo ofender a outra
pessoa. Toda oração que for vista fora de contexto pode ter o significado deturpado, levando-
se em conta a interpretação de cada um, diferente de um texto, que podemos ter uma imagem
de todo o discurso, e, mesmo que haja variações, elas serão menores.

2.2. Os gêneros do discurso

Outro conceito importante, que faz parte das obras do Círculo, é o de gênero do
discurso. Por meio dele, busca-se apreender organização textual e o entendimento do fazer
diversificado do homem que se manifesta por meio da linguagem. Seu estudo se caracteriza
pela noção do ato de linguagem, mostrando que a língua não está viva somente num diálogo
face a face, mas também em um livro teórico, ou em um romance, por exemplo.
Bakhtin definiu dois tipos de gêneros - o primário e o secundário - para descrever a
alternância dos enunciados, e o modo como são feitos e absorvidos pelo público, apesar de, na
maioria das vezes, o uso dos gêneros ser inconsciente.
O gênero primário compreende as comunicações espontâneas, e constitui a dinâmica
da linguagem, com falas que se alternam. Como gêneros primários, pensamos na linguagem
usual, espontânea, como um diálogo entre duas pessoas.
O gênero secundário é uma comunicação mais complexa. Pode-se pensar que os
gêneros secundários retiram a dinâmica do dia-a-dia, não é um diálogo imediato nem
espontâneo, como no gênero primário. Aparecem em meio a uma comunicação cultural mais
complexa, principalmente na modalidade escrita, costumam compartilhar dos valores de uma
sociedade, e atuam em uma área particular, como na ciência ou na religião. Temos como
exemplo de gênero secundário, um romance.
Essa classificação é importante porque mostra a variedade do discurso, e é dentro de
determinado discurso que se pode analisar mais profundamente as relações dialógicas que
compreendem um texto.
Pensemos na formação dos enunciados. O homem, a partir do momento que adquire a
linguagem no meio em que está inserido, passa a se utilizar dela, de modo que depende da
linguagem inclusive para formar um raciocínio, ainda que seja rotineiro. Porém, precisa ser
esclarecido que a consciência não vem da palavra, mas do enunciado que nos proporciona o
entendimento da realidade. A partir do momento que se usa uma linguagem, será certamente
através dela que os pensamentos se guiarão.
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Uma pessoa pode estar muito acostumada a usar gêneros do discurso político, mas
pode não se expressar tão bem numa conversa completamente informal com amigos, já que as
pessoas se acostumam a usar certos gêneros de discursos.
Utilizamos diversos gêneros do discurso, tanto orais como escritos, e, mesmo se não
refletirmos sobre a diferença entre eles, usamos com destreza cada um deles. Não precisamos
conhecer a teoria para usar os enunciados, assim como usamos a língua mesmo sem dominar
uma dada reflexão sobre sua gramática, ou conhecemos os números mesmo sem dominar suas
funções.
De acordo com Bakhtin (1997, p. 301), “esses gêneros do discurso nos são dados
quase como nos é dada a língua materna, que dominamos com facilidade antes mesmo que lhe
estudemos a gramática”.

3. Análise das redações

Após essa introdução à reflexão bakhtiniana, dedicamo-nos à análise das redações já


mencionadas. Segue abaixo a proposta de redação:
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14

A proposta tem como tema central a imagem, e traz uma figura e duas citações: a
primeira citação, do antropólogo Gilbert Durand, diz que o ser humano cria imagens para dar
equilíbrio a sua vida, como forma de apaziguar seus problemas. Já a segunda, de Tânia
Pellegrini, afirma que nos utilizamos da imagem para representar a realidade.
Um dos propósitos dos elaboradores da prova de redação é o de formular um tema do
cotidiano, afirma Maria Thereza Fraga Rocco, coordenadora de redação da FUVEST, em
entrevista ao site Guia do Estudante, da editora Abril (sem data). Por essa razão o exame não
exige um profundo conhecimento prévio do aluno. O que se espera numa redação de
vestibular é que o aluno saiba dissertar a respeito de um assunto cotidiano, expondo sua
concepção acerca do tema. Por essa razão, os temas escolhidos estão sempre em pauta, não
são fatos acabados. Dessa forma, podemos dizer que todos os temas já foram pensados ou
discutidos, por isso todos os enunciados já foram proferidos anteriormente, e fazem um
paralelo com o que já foi dito. Além do mais, os alunos citam teóricos e pensadores que já
dissertaram sobre o tema. Ora, se outras pessoas já falaram sobre isso, temos uma relação
dialógica, de acordo com Bakhtin.
No caso das redações de vestibular, o público alvo são os corretores contratados pela
instituição que elabora e corrige as provas, neste caso, a FUVEST. Ainda segundo Rocco, são
72 corretores divididos em pares. Os corretores são profissionais da área, que passaram por
cursos preparatórios para fazer esse tipo de correção. Cada redação é avaliada por um desses
pares de corretores, e, caso haja uma divergência grande entre as notas, a redação passa por
uma terceira correção, de acordo com a entrevista e com o manual do vestibular.
Da mesma forma que o aluno direciona seu discurso para o enunciatário, que neste
caso é o corretor, o enunciatário se transformará em enunciador, e dará uma resposta sobre o
enunciado. Essa resposta não será face a face: será a nota do corretor. Segundo o manual da
FUVEST, o aluno deve demonstrar competência para leitura e compreensão de textos,
capacidade de expressão de seus conhecimentos, reflexões e pontos de vista. Essas
competências serão analisadas pelos corretores para determinar a nota de sua redação.

3.1. Temática

Apesar do foco dado por Durand na primeira citação que a proposta apresenta, de que
a imagem é usada pelo homem como forma de apaziguar seus problemas, essa abordagem ao
tema é pouco recorrente nas redações, apenas duas das 53 redações seguem essa linha.
Segue o trecho de uma das redações que abordam a temática dessa forma:
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A efemeridade, as diferentes classes sociais e as épocas passadas são fatores


responsáveis por essa era da imagética. Os indivíduos constroem imagens
irreais para diversas situações, afim de conseguirem fugir da realidade e
enxergar o mundo com os próprios olhos, de forma a torná-lo encantador e
perfeito.
(Exemplo 1- Questão de sobrevivência) 1

Já a segunda citação, de Tânia Pellegrini, que possui temática mais ampla e genérica
que a anterior, dizendo que dependemos cada vez mais da imagem para representar nossa
realidade é bastante abordada nas redações:

[...] continuamente sintetizados em imagens, simultaneamente simplificando


e ampliando o leque de significações possíveis. Assim, as imagens atuam
com extrema importância em nossa interpretação dos acontecimentos e
comunicação interpessoal.
(Exemplo 22- Imagens: Síntese dos fatos)

O trecho nos mostra, de forma geral, que o ser humano, ao entrar em contato com o
mundo, se utiliza de um recurso que passa a ser natural: a imagem. Portanto, a imagem que
criamos é uma interpretação da realidade, ou seja, a forma como percebemos a realidade.
Apesar disso, a temática mais abordada foi a da preocupação que as pessoas têm com a
própria imagem, em detrimento a sua essência - a famosa essência versus aparência. Cerca de
30% das melhores redações abordam essa vertente:

O aumento da importância da imagem na vida humana tem acarretado a


sobreposição do mundo imaginário ao mundo real. Gradativamente, o
homem tem optado por priorizar o exterior ao interior. Isso é consequência
de uma sociedade que exige a propagação e dinamização dos padrões
estéticos e sociais, que levarão o homem à descaracterização massificadora.
(Exemplo 16- Narcisos do Século XXI)

Ou no trecho:
[...] construir a imagem de uma pessoa muitas vezes significa construir sua
idealização. Assim, seria exigido o processo inverso para atingir a essência:
a desconstrução.
(Exemplo 18- Persona)

1
As citações serão feitas tais como constam nas redações, sem nenhum acerto ou adequação.
16

3.2. Linguagem e escrita

Muitos professores de língua portuguesa afirmam que uma redação de vestibular não
pode ser escrita com letras de forma, já que os corretores do exame não aceitam esse tipo de
escrita. Porém, nas melhores redações encontramos letras bem diversas umas das outras com
letras de forma, de mão, as duas formas misturadas, letras quase ilegíveis, que causam
dificuldade na leitura e outras bem legíveis. Tudo isso desmitifica alguns mitos acerca da
forma de escrita exigida no vestibular.
Outra informação que é dada pelos professores de redação que pode ser questionada é
a de não exceder a quantidade máxima de linhas. Porém, as redações selecionadas mostram o
contrário: apenas 28,3% escrevem o texto em até 30 linhas. As demais redações têm entre 31
e 34 linhas, sendo que a maior parte das redações é escrita em 34 linhas, 30,1%. Além disso,
muitos alunos que estão na fase do vestibular têm dúvidas quanto às rasuras do texto. Das 53
redações, 29 possuem rasuras, que são facilmente descartadas com um traço sobre o trecho ou
a palavra errada, o que nos prova que o aluno não será prejudicado se precisar rasurar seu
texto.
A análise das melhores redações nos mostra que não é necessário utilizar palavras
rebuscadas e fora do contexto social do aluno para se obter um bom resultado, já que não
encontramos redações escritas com um vocabulário excessivamente rebuscado. Esse tipo de
escrita fluida deixa a linguagem mais clara e dentro da realidade dos alunos. A forma como
foram escritas não intimidaria, por exemplo, um aluno de escola pública a se inspirar para
também escrever uma redação exemplar.
A linguagem fluida das redações analisadas dribla um problema comum em redações
que procuram explorar um vocabulário rebuscado – a artificialidade. Muitas vezes, um aluno
que fica preocupado com a linguagem de sua redação perde o foco do texto e o apresenta sem
riquezas de ideias. Um vocabulário excessivamente rebuscado tende a ser artificial,
evidenciando que aquela palavra ou expressão não é recorrente no vocabulário do enunciador.
Muitas vezes, ao usar uma palavra muito elaborada, o aluno usa de forma errada,
prejudicando seu texto. O importante é que o aluno faça suas ideias fluírem, e, para isso, ele
terá que dominar a linguagem e o gênero que está usando. Podemos concluir, dessa forma,
que uma redação se destacará das outras se o aluno estiver acostumado a escrever esse tipo de
texto, e isso poderá ser alcançado se o aluno praticar.
Vejamos o trecho abaixo, de uma das redações:
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De acordo com as concepções psicanalíticas de Sigmund Freud, a interação


entre pessoas depende, necessariamente, da figura do outro que é projetada
na própria imaginação. São criadas, portanto, imagens associadas às
características apreendidas e que relacionam-se com as expectativas pessoais
do receptor. Essa associação entre realidade e imagem sustenta a exacerbada
valorização da aparência e a superficialidade das relações.
(Exemplo 26- Pessoas imaginárias)

O trecho nos mostra uma linguagem clara e simples, que faz parte do cotidiano de um
aluno de ensino médio que faz boas leituras. Não existe nenhuma palavra extraordinária, que
outros alunos não conheçam. Esse enunciador soube escolher seu vocabulário: utilizou-se de
uma linguagem formal, sem gírias, clichês ou repetição abusiva de palavras, além de dominar
o assunto em que estava tratando.
Nas instruções da redação do vestibular analisado, pede-se para o aluno dar um nome
a sua redação. Obviamente, em um exame, é importante que as solicitações da prova sejam
consideradas. Nas redações selecionadas não encontramos títulos simplistas, como “A
Imagem” (artigo e substantivo), ou “A bela imagem” (artigo, adjetivo e substantivo). 33% das
redações utilizam o tema principal “imagem” em seu título. Seu uso não ficará prejudicado se
não for usado um título simplista. Alguns exemplos de bom títulos: “A representação dos
fatos”, “Baile de máscaras”, “Sob o tecido da imagem”, “Persona”, “Imagem: A realidade
invertida”.

3.3. Argumentação

Em nossa análise constatamos que o exame considera que, para um argumento bom
construído, não se faz necessário citar teóricos ou intelectuais, o importante é que o
enunciador tenha domínio do tema tratado e conduza o leitor a uma interpretação. Um
exemplo disso é uma redação que citou personagens de desenhos animados infantis para
figurar seu argumento:

O mundo de hoje está repleto de Tio Patinhas e Donalds. De um lado, os


primeiros, “homens poderosos” controladores da massa. Eles realizam todo
tipo de ação, desde a venda de produtos simples até a execução de atos
criminosos a fim de maximizar seus lucros. De outro, os Donalds, homens
que aceitam as inescrupulosas ações do tio e agem da mesma forma, em
nome do lucro, da fama, do poder. A maior parte dos demais indivíduos
assistem a essa realidade indiferentes, à medida que a monte capitalista se
infiltra em toda sociedade. Esta visão acarreta a alienação das pessoas [...].
Assim, os indivíduos vivem num mundo imoral sem sequer perceber.
(Exemplo 2- A realidade por imagens)
18

Ora, como podemos imaginar uma redação séria, escrita no maior vestibular do Brasil,
citar personagens de desenhos animados e ainda ficar entre as melhores redações? Devemos
admitir que o vestibulando utilizou muito bem essa linguagem figurativa para falar do
capitalismo, de modo que qualquer leitor compreende com facilidade o que o enunciador quis
dizer. Isso demonstra capacidade argumentativa com criatividade.
Constata-se também que o vestibulando não precisa mostrar em sua redação que é
politicamente correto, ou que pensa igual a todos. Possuir uma boa capacidade de
argumentação não significa ter ideias inovadoras, nem querer pensar igual ao corretor da
redação. Porém, é importante que o aluno tenha capacidade de expressar seus conhecimentos,
reflexões e pontos de vista.
As redações são bem diversificadas, o que nos leva a conclusão de que os estudantes
tiveram formação escolar e, principalmente, vivências bem diferente uns dos outros, conforme
os exemplos abaixo:

“Tudo é discurso”, adverte Ferdinand Saussure, e temos que reconhecê-la.


Tanto a imagem mais enganosa do sabonete que transforma você numa
estrela de cinema até a notícia mais direta e evidente do último atentado
terrorista no Oriente Médio, tudo é discurso. Mas o que diferencia, então,
uma imagem falaciosa de outra de presença real? Os processos de
significação se utilizam de expedientes de recriação e falseamento do mundo
dos fatos concretos?
(Exemplo 15- Fatos e simulação pela imagem)

Podemos notar, neste trecho, que a formação desse vestibulando não se restringe a
conhecimentos adquiridos especificamente no ensino médio, já que geralmente um estudante
dessa modalidade não conhece estudiosos da linguística. O aluno trata com propriedade do
tema, o que nos leva a crer que realmente haja interesse por essa área da linguagem.
Nos trecho a seguir, notamos um interesse por outras áreas de conhecimento:

De acordo com a Física Quântica, o mundo e suas representações constituem


nada menos que a posição daquilo que se vê em função da bagagem cultural
própria do indivíduo. A partir disso, é possível concluir que uma imagem
comum pode representar algo completamente diferente a uma pessoa do que
representa a outra, e ainda assim não representarem a realidade em sua
essência. Em um mundo cheio com as mais variadas imagens e concepções
da realidade, a visão unilateral do ser humano pode acarretar discriminação e
hierarquização ao passo que cria imagens sobre pessoas.
(Exemplo 27- Da reeducação do olhar diante das imagens)
19

O cérebro humano, entre suas tantas complexidades, possui a característica


de agrupar as inúmeras e variadas informações que recebe. Com esses
grupos de informações Armazenadas, nossa mente concebe “imagens” que
compõem nossa realidade. [...]
(Exemplo 7- O real ideal, formado e transformado)

No exemplo 27 o aluno utiliza seus conhecimentos em física quântica para argumentar


sobre a imagem; já no exemplo 7, o aluno fala sobre cérebro humano. Os três exemplos nos
indicam que os vestibulandos construíram seus argumentos sobre o mesmo tema de diversos
modos; provavelmente, apoiando-se em sua área de maior conhecimento ou interesse.

3.4. Citações

A análise das melhores redações nos faz perceber que os enunciadores se preparam
bem para o exame. Algumas das citações vão além da realidade de um estudante do ensino
médio de uma escola pública, o que nos aponta que toda essa qualidade de leitura vem de
pessoas que têm um conhecimento elevado para sua idade, amadurecidas, provavelmente, por
leituras de teóricos, muitas vezes inacessíveis à grande parcela da população. Mas também
devemos levar em consideração que a maioria dos vestibulandos tem entre 18 e 21 anos, e
muitos deles passaram por cursos pré-vestibulares. Porém, algumas citações como de
linguistas ou sociólogos, por exemplo, nos levam a crer que alguns dos vestibulandos já
possuem formação superior.
Tomemos como exemplo o trecho a seguir:

Da matriz platônica, onde o real transcende o mundo e aristotélica, na qual


os sentidos são mediadores dessa realidade, até a fenomenologia de
Heidegger, Sartre, Merleau-ponty e o estruturalismo de Lacan, para quem o
real é desejo atravessado pelo símbolo seria insuficiente, dada a
complexidade do tema e o grande número de escolas filosóficas e da
psicanálise que se alternaram historicamente pela hegemonia do conceito,
como diria Gramsci.
(Exemplo 13- A realidade dos fatos e a verdade dos símbolos)

Em apenas um parágrafo encontramos sete citações, seis de filósofos e uma de um


psicanalista, Lacan. Por haver muitas citações em um único parágrafo, elas acabam sendo
superficiais, exigindo conhecimento prévio do leitor para que possibilite a inter-relação dos
objetos citados.
Nas 53 redações, encontramos 61 teóricos diferentes, alguns citados em diversas
redações. Dentre as 61 citações, 21 são de filósofos, o que corresponde a quase 35% das
citações. Isso nos leva a crer que a instituição que elabora o exame valorize este tipo de
20

citação. Porém, um dado interessante é que, de acordo com a análise dos cinco últimos anos
do vestibular da FUVEST, disponíveis no site da instituição, a maior parte das citações fica a
cargo da literatura brasileira, e o autor que fica na frente é Machado de Assis, seguido por Eça
de Queiroz. Nestas redações, encontramos apenas três citações de Machado de Assis, e
nenhuma de Eça de Queiroz.

[...] O que motiva o casamento tradicional é a imagem atribuída a ele, de


união de corpos. Não é, necessariamente, essa a imagem que melhor o
caracteriza: o casamento pode ser idealizado no início, mas eventualmente as
altas expectativas se frustram, como aconteceu com Bento Santiago no livro
“Dom Casmurro”.
(Exemplo 28- Isso não é um cachimbo”)

Outro dado interessante é que o nome mais citado nas redações selecionadas foi
Platão, filósofo do período clássico da Grécia antiga, que aparece em 6 das 53 redações,
seguido pelo pintor Renè Magritte, pintor belga surrealista, com 4 citações, tratando das
obras: “Os amantes” e “Cachimbo”.
A preocupação do homem quanto à sua figura existe há séculos. O mito de
Narciso, que se apaixonou por seu reflexo na água e na busca por ele,
morreu afogado, é um exemplo. Platão também discutia isso. Para ele, o
amor imaginário, impossível de se realizar, é melhor, pois pode ser perfeito,
ao passo que na realidade nunca é.
(Exemplo 16- Narcisos do século XXI)

[...] Magritte, em sua obra “Os amantes”, retrata dois indivíduos mascarados
se beijando; um não conhece o rosto do outro, pois o que prevalece é a
massificação, o uso de máscaras sociais- jamais o amor.
(Exemplo 2- A realidade por imagens)

A partir dessa informação e das mudanças atuais da escola, podemos pensar que essas
citações de filósofos e sociólogos podem ter sido dadas pela inclusão obrigatória da filosofia e
sociologia na grade dos alunos de escola pública, a partir de 2009/2010. Porém, não se pode
descartar que a disciplina já era ministrada em escolas particulares e cursos pré-vestibulares.
Além disso, as citações em provas de vestibular, seja na proposta de redação, ou nas
questões objetivas e dissertativas, influenciam os vestibulandos na escolha de suas leituras.
Nos cinco últimos anos do vestibular alguns filósofos e sociólogos foram citados, como é o
caso de Zygmunt Bauman, citado três vezes, e Aristóteles, o filósofo mais citado nos últimos
exames.
21

3.5. Estrutura

O ensino de que a redação pode organizar-se em introdução, desenvolvimento e conclusão é


importante por auxiliar os alunos a entenderem que essas partes são imprescindíveis a uma redação.
Isso não significa que o aluno deva seguir os passos à risca, e mecanicamente, delimitando todas essas
partes. Quando o aluno pratica bastante esse gênero, lendo e escrevendo diversas redações, ele tende a
fazer uma boa redação, com início, meio e fim, mas de forma que não fique evidente uma separação
mecânica.
Caracterizamos como desenvolvimento a apresentação dos argumentos utilizados para formar
as ideias centrais do texto. Geralmente os desenvolvimentos vêm separados por parágrafos, mas,
evidentemente, não se trata de uma prescrição.
Grande parte das redações ainda utiliza o esquema introdução, 2 ou 3 parágrafos de
desenvolvimentos, e a conclusão. Das 53 melhores redações, 25 possuem o esquema com 3
parágrafos de desenvolvimento, e 21 possuem 2 parágrafos de desenvolvimento. O exemplo a
seguir nos mostra claramente a divisão de desenvolvimentos em parágrafos separados:

No filme “A vida é bela”, cujo contexto é o da segunda guerra mundial, um


homem, prisioneiro em um campo de concentração, tece uma gama de
imagens positivas e divertidas para que seu filho, uma criança, pense estar
em meio a uma brincadeira. Neste caso, a fuga da realidade por meio da
inventividade humana, significou o alheamento do indivíduo, mas isso lhe
garantiu a sobrevivência, pois o garoto resiste até o fim para que possa
receber sua recompensa.
Em “O náufrago”, o personagem interpretado por Tom Hanks, imagina uma
bola falante, dotada de pensamento, a qual foi dada o nome de “Wilson”.
Esta criação do náufrago evitou que a solidão o levasse à loucura e ao
suicídio, até ser resgatado. Ambos os exemplos dados são substituições da
realidade por imagens visando o “eu”, assim como ocorre na sociedade atual,
em que o individualismo cresce, a competição acirra-se e cria-se uma
realidade hostil, a fuga torna-se uma questão de sobrevivência.
(Exemplo 3- Sem limites)

Esse texto se constitui da seguinte forma: no primeiro parágrafo temos a introdução, no


segundo, terceiro e quarto o desenvolvimento (dois parágrafos citando filmes e um citando uma
personalidade histórica) e, por fim, temos um parágrafo de conclusão. Este é o esquema clássico
ensinado pelas escolas de ensino médio e cursinhos pré-vestibulares.
Para distinguir essas três partes indispensáveis para o texto, consideraremos da seguinte
forma: introdução é o início do texto, onde se expõe o tema a ser desenvolvido; o desenvolvimento é o
corpo do texto, com a organização do pensamento de modo que componha os argumentos; e a
conclusão é a síntese do problema tratado no decorrer do texto, com o fechamento da redação.
22

Encontramos algumas redações que não apresentam os argumentos do desenvolvimento


separados por parágrafos, mas demonstram maturidade em relação ao estilo de escrita da redação.
Segue um exemplo:
Impressiona em filmes antigos como, por exemplo, Laranja Mecânica,
embora o próprio seja hoje um símbolo, a ausência de logotipos em seu
cenário e mesmo nas peças que compõe seu figurino, comparando com as
filmagens atuais. Vivemos numa sociedade em que a marca das instituições,
seja um clube de futebol ou uma rede de “fast food” passou a ter mais
relevância do que a própria qualidade dos seus produtos ou serviços. Uma
observação, no entanto, pode ser feita nesse cenário: A imagem transcendeu
seu papel de representação do real na sociedade contemporânea.
(Exemplo 10- A tirania das marcas)

Nota-se que o desenvolvimento antecede a introdução. O vestibulando inicia seu texto citando
um filme, e somente depois faz uma introdução ainda no mesmo parágrafo, mostrando neste momento
do que se tratará seu texto. Esse é um recurso interessante que induz o leitor a querer conhecer o texto
todo. O recurso é muito utilizado em editoriais de jornais, que apresentam os fatos, para depois
discuti-los.
Ainda no mesmo texto, a conclusão vem junto com o último parágrafo do desenvolvimento:

Em um de seus trabalhos Arnaldo Antunes diz que papel é o nome do papel


e não o papel (Nome Não). A imagem que concebemos de um átomo é um
modelo que os cientistas reconhecem as falhas dessa representação. Não é de
hoje que se conhece os limites da imagem e da representação. Contudo, é na
sociedade contemporânea que elas extrapolaram o objetivo de representar as
coisas e passaram a ditar regras de mercado e, por tomarem posse de
conceitos de estilo de vida, reprimir, sobretudo, a parcela mais carente da
população.
(Exemplo 10- A tirania das marcas)

Neste trecho temos o último argumento do desenvolvimento, e, no mesmo parágrafo, inicia-se


a conclusão. Este recurso, assim como o primeiro, é interessante porque rompe com a rigidez de
esquema (1 parágrafo para introdução, 2 ou 3 parágrafos para o desenvolvimento e 1 parágrafo para a
conclusão), deixando o texto com mais personalidade, pois temos a sensação de que o enunciador
escreve seu texto com mais autonomia, por estar acostumado a este tipo de gênero. Ao ler um texto
que tem uma estrutura diferenciada, a tendência é que o leitor se sinta mais a vontade.
Já no próximo exemplo temos um parágrafo com o desenvolvimento, seguido por um
parágrafo de introdução:
23

“Mad Men” é um seriado norte-americano sobre a década de 1960, período


de ápice do “American way of life”, os nostálgicos anos dourados dos
Estados Unidos. O protagonista é um publicitário que cria um mundo de
sonhos para vendê-los à massa [...]. Todos podemos se identificar com tal
dualismo.
Somos educados desde a infância para não revelarmos nossa essência,
podendo, assim, encaixarmo-nos na sociedade. A individualidade é
superficialmente admirada, porém passa a ser condenada quando
determinadas convenções são contrariadas. [...].
(Exemplo 12- Baile de máscaras)

A redação se inicia com a apresentação de um seriado de televisão, e logo em seguida,


o enunciador justifica o porquê da citação, fazendo uma introdução ao tema que tratou e que
irá tratar. Essa construção o diferencia das demais redações que dividem fielmente o texto em
introdução, desenvolvimento e conclusão, e deixa o enunciatário mais “confortável”, ao ler
um texto com estrutura menos severa. Essa característica mostra criatividade e proficiência
por parte do enunciador.
A famosa “receita” pode ser devastadora quando serve para separar as estruturas do
texto. Usar o famoso “concluindo” para iniciar a conclusão do texto torna-o pobre e o
avaliador facilmente notará que o aluno se utiliza com frequência dessa expressão como
fórmula para deixar seu texto dentro da estrutura padrão. Porém, vinte das melhores redações
iniciam a conclusão com expressões similares, como “enfim”, “portanto”, “dessa forma”,
“assim”.

Enfim, mesmo com o imaginário, devemos nos ater ao “ser”[...]


(Exemplo 50- Símbolos: imagens reais ou imaginárias?)

Portanto, seja nas artes, no cinema ou no mundo real [...]


(Exemplo 14- Sob o tecido da imagem)

Muitas das redações são ótimas, evidenciam um amplo conhecimento de mundo e


ideias maduras, mas quando os alunos chegam na conclusão da dissertação, apresentam
resumos simplistas de suas ideias e acabam por empobrecer seu texto. É importante que a
conclusão faça um apanhado das ideias apresentadas e aponte a posição do enunciador, mas o
aluno deve ter cuidado para não reduzir as expectativas de seu texto na conclusão.

[...] Assim o fazem as grandes corporações contemporâneas, elegendo e


difundindo ícones e símbolos para gravas suas marcas em nossas cabeças. E
assim, de imagem a imagem, caminha a humanidade.
(Exemplo 5- Assim caminha a humanidade)

Essa redação mostra como a imagem é valorizada em nossa sociedade. O


desenvolvimento apresenta a importância da imagem desde a antiguidade, falando da
24

arquitetura, da mídia, das grandes empresas. Na última oração da conclusão, o vestibulando


insere uma expressão que será o título de sua redação. Se a última oração não existisse, não
haveria prejuízo alguns ao significado, e não empobreceria a redação.
A seguir temos outro exemplo de redação que segue essa linha de boa redação, mas
que se resume, na conclusão, a uma expressão “lugar comum”. Seu texto diz que não se pode
avaliar passivamente as imagens que nos chegam. O texto é muito bem construído, porém sua
conclusão deixa a desejar, trazendo a expressão “transformar o mundo num lugar melhor”.
Expressões desse tipo não são interessantes do ponto de vista da riqueza textual, e o reduz a
um ideal que não condiz com a realidade.

Estando em acesso a apenas o pensamento único, fica-se alienado, correndo


o risco de perder a capacidade de “formar imagens” mentais, de questionar, e
por fim, de transformar o mundo num lugar melhor.
(Exemplo 39- A simbolização alienante)

3.6. Gênero do discurso

Com base na reflexão bakhtiniana sobre gêneros do discurso, podemos sustentar que
as redações fazem parte do gênero secundário, que é uma comunicação mais complexa,
evoluída, menos sujeita a mudanças, e, neste caso, na modalidade escrita. Como vimos, esse
gênero costuma compartilhar dos valores de uma sociedade, e atuam em uma área particular,
como na ciência ou na religião. No caso das redações, essa teoria fica clara: a dissertação
segue uma estrutura padrão e, por ser escrita, é uma comunicação mais complexa, que enuncia
valores.

Os gêneros secundários do discurso – o romance, o teatro, o discurso


científico, o discurso ideológico, etc. – aparecem em circunstâncias de uma
comunicação cultural, mais complexa e relativamente mais evoluída,
principalmente escrita: artística, científica, sociopolítica.
(BAKHTIN, 1997, p. 282)

Uma dissertação pode ser vista como um discurso ideológico, no sentido de expressar
ideias e convicções do pensamento individual. Se esse discurso expressasse as mesmas ideias,
mas informalmente, em um discurso oral, por exemplo, provavelmente estaríamos diante de
um gênero primário. Porém, esse tipo de texto apresenta uma ideologia de forma elaborada e
complexa, pois não é um discurso trivial, cotidiano. O gênero secundário é mais preso a
situações discursivas formais, em que é exigida uma estrutura específica, e, principalmente,
está incluído em um domínio que exige competência(s)/conhecimento(s) particular(es) da
sociedade. No caso analisado, pode-se dizer que sem um conhecimento prévio, reflexões ou
leituras de redações, seria praticamente impossível uma pessoa escrever um texto dissertativo.
25

Segundo Bakhtin, enunciar é enunciar valores. No caso das dissertações, um


enunciador mostra, em seu texto, quem ele é e o que ele pensa, ou, pelo menos, como
quer/consegue se apresentar, apontando fatos e os sustentando de acordo com sua opinião, ou
seja, enunciando seus valores. A instrução que manuais e professores de redação dão é que a
redação não deve ser escrita em 1ª pessoa do singular, já que a opinião deve ser exposta de
forma genérica, como se todas as pessoas pensassem da mesma forma.
Porém, dentre as 53 melhores redações da FUVEST 2010, temos 2 que foram escritas
na 1ª pessoa do singular, 21 na primeira 1ª pessoa do plural e 30 na 3ª pessoa do plural.
Seguem os dois casos de redações na 1ª pessoa do singular, transparecendo o posicionamento
pessoal:
Pensar o fato como imagem da realidade, é pensá-lo historicamente no
contexto da Modernidade, mas insisto que a perspectiva fenomenológica é
um belíssimo caminho.
(Exemplo 13- A realidade dos fatos e a verdade dos símbolos)

Os fatos não mudam mas os símbolos sim e é por isso que se discute, ou pelo
menos deveria se discutir, o que já se passou. Apossando-me de uma frase de
F. Nietzche “Não existem fatos externos, como não existem verdades
absolutas” completo dizendo que o sentido que se atribui é aquele a quem
lhe convier. Talvez o mundo real se faça pelo conflito dos símbolos que ele
próprio gerou.
(Exemplo 51- Fatos: símbolos na memória)

Em seguida, vemos um exemplo de redação em 1ª pessoa do plural:

Percebemos, assim como as imagens das pessoas influenciam o indivíduo e a


sociedade como elemento de identificação e coesão de grupos sociais e o
poder desses símbolos sobre o homem, e também como figura deixa de
retratar aquele indivíduo e, no dia-a-dia, passa a representar uma doutrina,
um ideal ou uma luta.
(Exemplo 43- A face de um ideal)

O próximo exemplo é de uma redação escrita em 3ª pessoa do plural, a forma mais


usada entre as melhores redações:

Os seres humanos empregam enormes quantidades de tempo, recursos e


saúde para manterem suas imagens perante a sociedade. Contudo, todo esse
empenho na criação de imagens ideais mostra-se vão quando da morte do
indivíduo, uma vez que não lhe garante uma vantagem real. Os homens, tal
como Dorian Gray, deixam uma porção imensa de suas vidas trancadas em
um local escuro do espaço e do tempo para criar suas imagens, simulacros
que, no fim, de nada servirão.
(Exemplo 45- Retrato simulado)
26

As redações escritas em 3ª pessoa geralmente utilizam expressões como “o ser


humano”, “a humanidade”, “os homens”, para se referirem a grande parte da população.
Dessa forma, o enunciador consegue se ausentar, de certa forma, do texto. Esta é a opinião do
enunciador do texto, neste caso, um vestibulando, mas a forma como é apresentada cria um
efeito de sentido de ser uma verdade absoluta, indiscutível.

4. Conclusão

Após a análise das melhores redações da FUVEST de 2010, pode-se notar que
algumas regras que as escolas e os cursinhos pré-vestibulares ditam, muitas vezes não
funcionam, uma vez que generalizam questões que devem ser analisadas de forma individual.
Um exemplo disso é o foco narrativo: a regra difundida é que se use 1ª pessoa do plural ou a
3ª pessoa do singular, e nunca a 1ª pessoa do singular. Porém, esse foco que “não se pode usar
nesse tipo de texto” está presente em duas redações. Ora, se realmente não fosse apropriado,
não encontraríamos essa forma entre as melhores redações, de vestibular tão importante no
contexto brasileiro.
Além disso, a análise da organização da escrita, levando em consideração o tipo de
letra, a quantidade de linhas utilizada, e as rasuras, nos permite sustentar que o corretor está
mais interessado em avaliar a qualidade do texto, do que a forma de apresentação do resultado
final.
Esta pesquisa nos mostra que muitas vezes as redações surpreendem por abordar a
temática que forma simples, sem uma linguagem mais sofisticada e sem citações
extraordinárias. Fica mostrado, desta forma, que esses recursos podem enriquecer o texto, mas
não são imprescindíveis para sua eficácia.
Imprescindível é que o vestibulando tenha uma boa argumentação, e que domine o
assunto que está tratando. Quando existe esse domínio, tanto de gênero (que só é alcançado
com prática nesse tipo de texto) quanto de tema, a probabilidade de termos uma redação clara
e objetiva é maior.
Obviamente, alguns elementos dão mais riqueza e valorizam o texto, como é o caso de
citações bem construídas. A citação deverá ser feita com propriedade, portanto, por mais
simples que seja o teórico ou o exemplo citado, o enunciador deve conhecer muito bem o que
está citando. Muitas vezes o enunciador conhece algum exemplo que seria interessante citar,
mas não domina o assunto, e acaba desvalorizando o seu texto com informações vazias e
imprecisas.
27

Uma redação deve ser avaliada individualmente, como um todo de significado. Um


corretor, ou professor, não pode ficar preso a fórmulas e convenções, deve ler uma redação
avaliando o grau de conhecimento do aluno perante o tema e a capacidade do aluno de adaptar
o tema à realidade em que vive.
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REFERÊNCIAS

BAKHTIN, M. Estética da criação verbal. 3. ed. São Paulo: Martins Fontes, 1997.

FUVEST. Fundação Universitária para o Vestibular. Vestibular 2010. Algumas das melhores
redações. Disponível em: <http://www.fuvest.br/vest2010/bestred/bestred.html>. Acesso em 02 abril
2012

MARCHEZAN, R. C. Diálogo. In: BRAIT, B. (Org.) Bakhtin: outros conceitos-chave. São


Paulo: Contexto, 2006, p. 115-131.

___________________. Gêneros do discurso: o caso dos artigos de opinião. In: PAULA, L.;
STAFUZZA, G. Círculo de Bakhtin: teoria inclassificável. vol. 1, Série Bakhtin- Inclassificável.
Campinas, SP: Mercado de Letras.

NARZETTI, C.; BAQUIÃO, R.C.; MARCHEZAN, R.C. Dialogismo: Reflexão teórica e análise. In:
MARCHEZAN, R. (org). Estudos linguísticos da FCLAr: desafios na Pós-Graduação. São Paulo:
Cultura Acadêmica, 2011.

ROCCO, M.T.F. O poder do verbo: A coordenadora de redação da Fuvest, o maior vestibular do


país, fala sobre os bastidores da prova e ensina o bê-á-bá para fazer o texto perfeito. São Paulo:
Editora Abril, sem data. Disponível em:
<http://guiadoestudante.abril.com.br/redacao/materias_280334.shtm>. Acesso em 09 jun. 2012

SOUZA, G. T. de. Introdução à teoria do enunciado concreto: Do círculo Bakhtin/ Volochinov/


Medvedev. São Paulo: Humanitas FFLCH/USP, 2002.

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