Nada Sobre Nós Sem Nós

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Por uma agenda climática

antirracista construída por


mulheres negras

1
Agradecemos aos fotógrafos e fotógrafas da Arpoador Filmes
que cederam os direitos autorais e de uso de imagem.

DESIGN E DIAGRAMAÇÃO
Lucas Jatobá

2
SUMÁRIO
APRESENTAÇÃO 3

1. CARTA DA REDE VOZES NEGRAS PELO CLIMA


PARA AS MULHERES NEGRAS QUE ENFRENTAM
A CRISE CLIMÁTICA NO MUNDO 5

2. POR QUE AS MULHERES NEGRAS PRECISAM


OCUPAR O CENTRO DO DEBATE CLIMÁTICO 7

3. SOBRE A REDE VOZES NEGRAS PELO CLIMA 11

QUEM COMPÕE A REDE 12

4. PILARES PARA AÇÃO CLIMÁTICA


DA REDE VOZES NEGRAS PELO CLIMA 18

JUSTIÇA CLIMÁTICA 19

RACISMO AMBIENTAL 19

ADVOCACY CLIMÁTICO 21

5. RACISMO AMBIENTAL E VIOLAÇÕES


DE DIREITOS HUMANOS 39

6. RECOMENDAÇÕES 22

3
APRESENTAÇÃO
JÁ FAZ ALGUM TEMPO QUE DIZEMOS que a crise e a injustiça climáticas não afetam
todas as pessoas e comunidades em proporções iguais. A constatação, mesmo que constantemente reiterada
por nós defensoras de direitos humanos, ainda não se tornou lugar comum, principalmente onde deveria sê-lo:
entre autoridades e líderes, dos níveis locais, nacionais e globais, que são os responsáveis pelas políticas a
partir das quais o rumo das vidas de milhões de seres humanos será definido.

Maior segmento populacional do Brasil, a mulheres negras constituem um grupo particularmente vulnerável
aos fenômenos extremos do clima, como as fortes chuvas, os deslizamentos, as secas prolongadas, entre
muitos outros, por conta das históricas desigualdades e discriminações a que estão submetidas, assim como
pela ausência de políticas climáticas sensíveis às suas necessidades específicas.

Ainda que estejamos vivendo fortes alterações no clima, grande parte dos incidentes e catástrofes decorrem,
na verdade, da inação ou negligência das autoridades, que não implementam políticas públicas capazes de
proteger comunidades e pessoas dos efeitos das intempéries. Políticas de habitação, saneamento, prevenção
de desastres, defesa civil, enfrentamento ao racismo, igualdade de gênero, saúde e inclusão produtiva (uma
lista mais longa caberia aqui) deveriam ser capazes de adaptar comunidades inteiras às mudanças em curso.

Ao mesmo tempo e apesar das condições desfavoráveis em que vivem, são as mulheres negras residentes
nas comunidades mais afetadas que têm liderado soluções potentes, inovadoras e coletivas, partindo das
experiências práticas de seus territórios e vivências. Soluções que muitas vezes encontram em seu caminho
limites dados pelas violações de direitos. Já imaginou como seria se seus direitos fossem garantidos?

Por isso suas vozes precisam ser ouvidas em alto e bom som!

Esse é o compromisso da Anistia Internacional Brasil: apoiar estas mulheres em seu protagonismo para que
suas vozes cheguem mais longe, aos ouvidos daquelas e daqueles que, por dever, têm que ouvir, aprender e
dar seguimento às propostas, em forma de políticas públicas que beneficiem a todas e todos, sem exceção.

É daí que surge a rede Vozes Negras Pelo Clima: desta parceria entre a Anistia Internacional Brasil e 11
mulheres negras de 8 estados brasileiros, que, estando à frente das soluções locais para os impactos da crise
de direitos humanos que chega ou se agrava com as mudanças climáticas, precisam transpor as barreiras do
racismo patriarcal cisheteronormativo para serem ouvidas nos espaços de formulação de políticas climáticas
nacionais e globais. Para nós da Anistia Internacional, a ausência de escuta é chocante e inaceitável.

Este documento é uma síntese inicial do que as integrantes da rede Vozes Negras pelo Clima consideram
essencial para haver justiça climática. É mais um passo dado por elas na direção de uma agenda que busque
superar os impactos do racismo patriarcal e amplie os horizontes disponíveis às autoridades, para a tomada de
decisões consistentes em favor dos direitos humanos.

Boa Leitura!

4
CARTA DA
REDE VOZES
NEGRAS PELO
CLIMA PARA
AS MULHERES
NEGRAS QUE
ENFRENTAM
A CRISE
CLIMÁTICA
NO MUNDO
5
E
m cada parte do mundo nós estamos É preciso reconhecer que nossos territórios
enfrentando com nossas tecnologias são sujeitos de direitos e, portanto, também são víti-
e saberes grandes batalhas para vi- mas deste sistema que não preza pelo manejo sus-
ver e garantir a sobrevivência das tentável dos seus recursos naturais!
nossas comunidades e entes que- Nós, mulheres negras historicamente silencia-
ridos frente à crise climática, uma das, somos como a pedra mor de uma sociedade
crise de direitos humanos provocada pelo racismo que teima em nos invisibilizar, denunciamos nossas
ambiental que nos expõe aos perigos da fome, sede, perdas e danos, acolhendo outras irmãs para parti-
desterritorialização, doenças, violências sexuais, re- lhar conhecimento e força.
produtivas, pobreza menstrual, físicas, psicológicas, Já demonstramos que ao chegar nos espaços
de credos e econômicas. de tomada de decisões consideramos todas as vidas
Essa mensagem chega em um momento de de forma equitativa, até porque o papel de liderança
grandes lutas por justiça socioambiental, igualdade sempre foi nosso - nas matricomunidades afrodes-
racial e de gênero, direitos que se não garantidos cendentes o papel das mulheres sempre foi prepon-
impedem a construção de políticas climáticas para derante na manutenção da política, economia, cultura
barrar a crise global. Por ora, essa crise nos atinge e sistemas de fé. Percebam, não somos Minorias,
primeiro e de forma desproporcional. Portanto, pon- mas somos Minorizadas, lembra Makota Valdina.
do em risco toda a humanidade! Por isso, encorajamos todas, em todas as par-
tes do mundo, a ecoar juntas as nossas diversas rea-
lidades, especificidades e experiências na defesa de
Nós somos cada sociedades saudáveis. Em cada território, município,
região e nação, defendemos a ampla participação
uma de vocês. das mulheres negras na elaboração, implementação
e monitoramento das políticas sociais, ambientais e
Somos as vozes do tempo que retornam em climáticas com horizontalidade e acessibilidade.
cada broto de palmeiral que insiste em crescer em
meio a devastação dos babaçuais. Vivemos em
transições e nos guiamos pela justiça. Mulheres das Não criamos
águas doces e salgadas, que se lançam na vida co-
munitária a cada maré na pesca artesanal. O vento a crise climática,
nos espalha como sementes para fazer brotar árvo-
res saudáveis, em sistemas agroflorestais e agroe- nós somos parte
cológicos que alimentam, matam nossa sede, nos
abrigam das matas aos quintais no cume dos mor- da solução.
ros. Mangues, igarapés, Ibura, encostas, florestas,
rios e mares são as nossas casas, cuja conserva- Queremos um mundo livre de agrotóxicos,
ção é o motor da nossa existência, descendendo e com a garantia dos territórios negros e indígenas au-
ascendendo da sagrada vida que nasce de nós, em tônomos, soberanos e livres, rios limpos e floresta
nosso corpo-água, corpo-território, corpo-ar. em pé. Queremos que o nosso direito ao bem-viver
O sopro de ar nos empurra para a linha de seja respeitado. Representamos as vozes das nos-
frente do presente, ecoando estrondos de memórias sas antepassadas e das ancestrais, que morreram
do saber-ser-conhecer-fazer para evitar os perigos para que a gente pudesse estar aqui.
de uma história única, feita por homens brancos,
máquinas, lucro e carbonização. Essa carta é o nosso convite ao grito de todas
Esse redemoinho de gente e poder já dizimou nós pela vida, afinal, nada sobre nós sem nós!
milhões de nós nas travessias forçadas, confina-
mentos para a exploração do centro da terra e em Com afeto, Amanda, Camila, Isabel Cristina,
areias escaldantes de onde se impulsiona a quei- Lídia, Marilza, Maria José, Iyá Mônica, Luciana,
ma do petróleo que nos sufoca. Empreendimentos Simone, Sandra e Silvana.
industriais, portuários e de mineração colocam as
populações adjacentes reféns de diferentes tipos de
poluição comprometendo os modos de vida ances-
trais destas comunidades e sua biointeração com o
Meio Ambiente.

6
POR QUE AS
MULHERES
NEGRAS
PRECISAM
OCUPAR
O CENTRO
DO DEBATE
CLIMÁTICO
7
A
crise climática é uma crise de di- Em setembro de 2023, a estiagem na região
reitos humanos que ameaça o pre- amazônica levou à perda de superfície de água
sente e o futuro da humanidade1. correspondente à área de 11 cidades do Rio de Ja-
Os eventos climáticos extremos neiro. Esta foi a maior seca da região nos últimos
como chuvas, alagamentos, secas, 40 anos e afetou diretamente os povos da floresta,
vendavais, deslizamentos de ter- comunidades ribeirinhas e indígenas que depen-
ras, agravados pelas mudanças climáticas, atingem dem do rio para garantia de sua subsistência7. Este
desproporcionalmente as mulheres, pessoas negras, também foi o ano com a menor média histórica de
pessoas com deficiência, idosos e pessoas em situa- chuvas nos últimos 32 anos em Belém, capital do
ção de pobreza extrema, que são a maioria da po- estado do Pará, que sediará a 30ª Conferência das
pulação moradora de áreas de risco e sofrerem uma Partes em 2025.
série de barreiras do acesso à direitos. Ainda, devido No extremo sul do Brasil, três ciclones8 que
às desigualdades sociais e econômicas e à falta de devastaram o estado do Rio Grande do Sul entre
políticas climáticas que abordem suas necessidades julho e setembro de 2023 foram responsáveis pela
específicas, esses grupos têm menos oportunidades maior concentração de chuva dos últimos 102 anos
para realizar ações de adaptação climática. Assim, a na região. O evento levou à morte de 41 pessoas,
Organização das Nações Unidas ressalta que a se- 223 feridos, 393 desabrigados, 8256 desalojados e
gurança climática está diretamente ligada aos direi- 147 mil pessoas afetadas em 87 municípios9. De-
tos humanos, como à vida, à alimentação, à saúde, zenas de municípios foram totalmente alagados,
à água, ao saneamento, à moradia adequada e ao ficaram sem energia10, casas foram levadas na en-
meio ambiente limpo saudável e sustentável2. xurrada da água e milhares de famílias sofreram
Os dados recentes são alarmantes: somente severas perdas e danos (de suas casas, bens e
em 2023, a Defesa Civil Nacional do Brasil mapeou entes queridos).
que existem aproximadamente 14 mil pontos de Nesse sentido, nos últimos dez anos, as con-
risco altíssimos de desastre geológico e 4 milhões sequências das fortes chuvas no Brasil somaram
de pessoas morando nessas áreas. No primeiro se- 1.997 mortes segundo a Confederação Nacional de
mestre, chuvas fortes no litoral de São Paulo3 leva- Municípios. Apenas em 2022, os óbitos decorrentes
ram à morte de 49 pessoas, deixando também 23 das chuvas somaram 532 pessoas, o que represen-
feridos, 2.251 pessoas desabrigadas e outras 1815 ta mais de 26,6% do total de mortes em dez anos.
desalojadas. Já na região Nordeste do país, atingi- Entre 2013 e 2023, estima-se que os desastres cau-
ram 31.000 famílias no Maranhão, deixando 49 ci- saram R$ 401,3 bilhões de prejuízos em todo o Bra-
dades em estado de emergência, seis vítimas fatais, sil. Por outro lado, a União destinou apenas R$ 4,9
1920 desabrigadas e 3923 desalojadas4. No Acre, bilhões para ações de gestão de riscos de desastres
cerca de 32.000 pessoas foram atingidas e no Pará entre 2013 e 2023, ou seja, apenas 1,2% dos prejuí-
pelo menos 1.800 pessoas tiveram de deixar suas zos contabilizados ao longo de dez anos11.
casas5.Em Manaus, 172 famílias perderam suas As violações de direitos à moradia adequada,
moradias e foram acolhidas em escolas municipais6. acesso ao saneamento básico, à água e a um pa-
drão adequado de vida atingem de forma despropor-
1 Anistia Internacional. Parem de queimar nossos direitos. 2021 cional as mulheres negras. Segundo o Instituto Bra-
Disponível em: https://anistia.org.br/informe/parem-de-queimar-nossos- sileiro de Geografia e Estatística (IBGE), 63% dos
direitos-baixe-nosso-relatorio-sobre-mudancas-climaticas-e-os-direitos-
humanos/ domicílios chefiados por mulheres negras no país
2 Organização das Nações Unidas. Safe climate, 2019. Disponível em: estão abaixo da linha da pobreza estipulada pelo
Safe Climate report | OHCHR
Banco Mundial (US$ 5.50, cerca de R$ 420 men-
3 G1. Litoral Norte de São Paulo tem mais de 4 mil desabrigados e
desalojados. Disponível em: https://g1.globo.com/sp/vale-do-paraiba-
regiao/noticia/2023/02/23/litoral-norte-de-sp-tem-mais-de-35-mil-
desabrigados-ou-desalojados-diz-defesa-civil-veja-numeros-por-cidade.
ghtml 7 Piauí. Sete sinais da crise climática no Brasil (2023). Disponível em:
https://piaui.folha.uol.com.br/sete-sinais-da-crise-climatica-no-brasil/
4 G1. Chuvas deixam 49 cidades no Maranhão em situação de
emergência, 25 de março de 2023. Disponível em: https://g1.globo. 8 https://g1.globo.com/rs/rio-grande-do-sul/noticia/2023/09/28/contraste-
com/ma/maranhao/noticia/2023/03/25/chuvas-deixam-49-cidades-no- termico-e-el-nino-especialistas-explicam-sequencia-de-9-ciclones-no-rs-
maranhao-em-situacao-de-emergencia.ghtml em-3-meses.ghtml

5 CNN. Cerca de 30 mil pessoas foram afetadas pelas cheias dos rios 9 Globo. Ciclones no RS, 2023. Disponível em: https://oglobo.globo.
no Acre, 25 de março de 2023. Disponível em: https://www.cnnbrasil. com/brasil/noticia/2023/09/08/ciclone-no-rs-numero-de-afetados-
com.br/nacional/cerca-de-30-mil-pessoas-foram-afetadas-pelas-cheias- desabrigados-desalojados-e-feridos-sobe-em-novo-balanco.ghtml
dos-rios-no-acre/ 10 https://www.band.uol.com.br/noticias/jornal-da-band/videos/ciclone-
6 G1, Escolas são disponibilizadas para acolher famílias desabrigadas no-rs-12-cidades-sofrem-com-a-falta-de-energia-17179850
após chuvas em Manaus, 25 de março de 2023. Disponível em: 11 Confederação Nacional de Municípios. Desastres ambientais nos
https://g1.globo.com/am/amazonas/noticia/2023/03/25/escolas-sao- últimos 10 anos. Disponível em: https://www.cnm.org.br/comunicacao/
disponibilizadas-para-acolher-familias-desabrigadas-apos-chuva-em- noticias/desastres-municipios-tiveram-prejuizos-de-r-401-3-bi-enquanto-
manaus.ghtm governo-destinou-r-4-9-bi-para-prevencao-nos-ultimos-dez-anos

8
sais)12, índice que representa mais que o dobro da construídas com base nas especificidades e vivên-
média nacional (em que 25% da população encon- cias das comunidades19. A Comissão Interamerica-
tra-se abaixo da pobreza). Ainda, entre as mulheres na de Direitos Humanos destaca o dever do Estado
brancas, 39% dos domicílios chefiados por elas es- em garantir – e, portanto, criar medidas para ultra-
tão abaixo da linha da pobreza. passar barreiras socialmente construídas - o direito
Entre 2019 e 2022 no Brasil, a população ne- de mulheres negras na participação de decisões
gra foi a mais atingida pelos desastres ambientais sobre as respostas à crise climática para criação de
como o desastre de Brumadinho, as chuvas em Re- medidas de transição justa.
cife, as enchentes no Sul da Bahia, em Goiás e em Medidas de adaptação e mitigação, relaciona-
Petrópolis, além do derramamento de óleo no Nor- das à Defesa Civil, criação de sistemas de alerta,
deste13. Nesse mesmo período (2019-2022), 40% monitoramento, acesso à informação são essenciais
dos mais de 5 mil municípios brasileiros declararam para proteção do direito à vida e à seguridade física
estado de emergência por tempestades, inunda- de homens e mulheres que residem em territórios
ções, enxurradas ou alagamentos14. de risco. O Comité dos Direitos Humanos da Organi-
Apesar dos esforços em manter os dados so- zação das Nações Unidas, no seu Comentário Geral
bre os impactos dos eventos climáticos extremos n.º 36, esclareceu que "a degradação ambiental, as
atualizados e transparentes, ainda não há uma com- alterações climáticas e o desenvolvimento insusten-
pilação oficial, isto é, da Defesa Civil e outros órgãos tável estão entre as ameaças mais prementes e gra-
do governo, que desagregue os dados por perfil so- ves ao gozo do direito à vida pelas gerações presen-
cioeconômico, racial e de gênero das principais víti- tes e futuras"20. Este contexto pode, portanto, gerar
mas tais como das comunidades em risco. O Gru- "ameaças diretas à vida ou impedir as pessoas de
po de Trabalho de Especialistas sobre Pessoas de usufruir do seu direito à vida com dignidade"21.
Ascendência Africana da Organização das Nações O Brasil é um dos Estados-membros da Con-
Unidas destaca a importância de se produzir e publi- venção-Quadro das Nações Unidas sobre a Mu-
cizar dados desagregados15 para efetiva garantia da dança Climática (na sigla em inglês, UNFCC), que
justiça racial na.; elaboração de políticas públicas16. é discutida anualmente em um evento denominado
A Anistia Internacional Brasil e a Rede Vo- Conferência das Partes (COP) que reúne todos os
zes Negras pelo Clima reforçam que as respostas países que assinaram os tratados internacionais
à crise climática não serão eficientes se não ga- climáticos. Além disso, é signatário do Acordo de
rantirem a justiça racial e de gênero17, o que inclui Paris, assinado pelos Estados-membros em 2015
a participação de mulheres negras, seus saberes e que estabeleceu compromissos para contenção
e tecnologias, nos espaços de tomada de decisão da emergência climática a partir dos pilares de mi-
sobre políticas climáticas18. Esta é uma obrigação tigação, adaptação, financiamento e reparação por
dos Estados e deve ser encarada como um elemen- perdas e danos. No entanto, o país ainda carece
to indispensável para que medidas efetivas sejam de políticas climáticas efetivas e que garantam não
só a participação das comunidades atingidas como
12 Dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística compilados sejam sensíveis as necessidades e demandas dos
pelo Gênero e Número. Casas de mulheres negras na pobreza.
Disponível em: https://www.generonumero.media/reportagens/casas- grupos mais vulneráveis, como as mulheres negras.
mulheres-negras-pobreza/#:~:text=De%20acordo%20com%20o%20 A Anistia Internacional Brasil e a Rede Vozes
IBGE,casal%20sem%20filhos%3A%209%25.
Negras pelo Clima sintetizam as principais violações
13 Gênero e Número (2022). A cor das tragédias ambientais. Disponível
em: https://www.generonumero.media/reportagens/raca-tragedia-clima- de direitos humanos experienciadas pelas 11 lide-
governo-bolsonaro/ ranças, mulheres negras, que compõem o grupo e
14 Dados dooficiais calculados pelo Instituto Brasileiro de Geografia e
Estatística, sintetizado por e mencionados pela Piauí. Sete sinais da crise
que ativamente tem construído estratégias de adap-
climática no Brasil (2023). Disponível em: https://piaui.folha.uol.com.br/ tação para a crise climática.
sete-sinais-da-crise-climatica-no-brasil/
Para elaboração desse documento, foram
15 Organização das Nações Unidas. Declaração de Durban contra o
Racismo e a Xenofobia, 2001. Disponível em: https://brasil.un.org/sites/ realizadas entrevistas entre julho e agosto de 2023
default/files/2021-10/declaracao_durban.pdf com as 10 das 11 lideranças da Rede Vozes Ne-
16 UNDOC, G19/243, Organização das Nações Unidas. Disponível em: gras pelo Clima. Para sistematização das violações
https://documents-dds-ny.un.org/doc/UNDOC/GEN/G19/243/55/PDF/
G1924355.pdf?OpenElement
17 A/77/549: Report of the Special Rapporteur on contemporary forms
of racism, racial discrimination, xenophobia and related intolerance, E. 19 Organização das Nações Unidas. Informe del Relator Especial sobre
Tendayi Achiume - Ecological crisis, climate justice and racial justice, 25 la cuestión de las obligaciones de derechos humanos relacionadas con
de outubro de 2022. Disponível em: https://www.ohchr.org/en/documents/ el disfrute de un medio ambiente seguro, limpio, saludable y sostenible,
thematic-reports/a77549-report-special-rapporteur-contemporary-forms- 15 de julio de 2019, A/74/161, p. 57-58.
racism-racial 20 Organização das Nações Unidas. Conselho de Direitos Humanos,
18 UOL, Jurema Werneck, As injustiças climáticas atingem as mulheres Observación General 36: Derecho a la Vida (artículo 6) , p. 26.
negras e periféricas. 2023. Disponível em: https://www.amnesty.org/en/ 21 Organização das Nações Unidas. Conselho de Direitos Humanos,
latest/news/2010/04/brazil-court-upholds-law-protects-torturers-2/ Observación General 36: Derecho a la Vida (artículo 6) , p. 26.

9
de direitos humanos e contextualização dos territó-
rios houve a documentação por meio da consulta às
fontes secundárias como relatórios, informes, dados
oficiais disponibilizados pelas prefeituras, notícias
de jornais e revistas e outros documentos disponí-
veis online. Como um processo de pesquisa cola-
borativa, as mulheres da Rede Vozes Negras pelo
Clima não só revisaram os dados coletados e sis-
tematizados como também participaram ativamente
na documentação por meio da disponibilização de
informações, leis, decretos, ações judiciais etc. que
se conectavam aos seus casos.

10
SOBRE A REDE VOZES NEGRAS PELO CLIMA

SOBRE A
REDE VOZES
NEGRAS
PELO CLIMA

11
A
Rede Vozes Negras pelo Clima é uma iniciativa de 11 mulheres negras,
representantes de territórios distintos dos biomas do Sudeste, Centro-
-Oeste e Nordeste do Brasil, que lutam por uma justiça climática antirra-
cista, centrada na atuação das mulheres nos territórios e por meio de seus
diversos saberes e vivências. O principal objetivo é incidir em espaços de
decisão para que as vozes de mulheres negras atingidas pelos efeitos
da crise climática sejam escutadas e levadas em consideração na formulação de planos e
estratégias de ação de governo, empresas e outros atores.
A Rede Vozes Negras pelo Clima foi criada a partir da participação de lideranças no
projeto "Mulheres Negras e Justiça Climática", da Anistia Internacional Brasil22, que busca
ampliar as capacidades de um coletivo de mulheres negras brasileiras, que já trabalham
em seus territórios na promoção dos direitos humanos, para enfrentar o racismo climático e
promover justiça socioambiental. Além disso, o projeto busca amplificar vozes negras pelo
clima e visibilizar a ação climática de mulheres negras que foram historicamente invisibiliza-
das em diversos espaços de reivindicação de direitos.23

QUEM COMPÕE A REDE

AMANDA COSTA SÃO PAULO AMANDA COSTA, 27 ANOS, é internacionalista,


ativista climática, jovem conselheira do Pacto Global da Organização
das Nações Unidas (ONU), fundadora do Instituto Perifa Sustentável
e apresentadora do #TemClimaParaIsso? um programa audiovisual
sobre crise climática. Tem realizado uma série de ações de educação
ambiental no distrito da Brasilândia, São Paulo, seu território. Segundo o
Mapa da Desigualdade23, a Brasilândia está entre os locais com menor
renda, menos árvores, menor cobertura de saneamento básico e com
mais de 300 mil habitantes na capital de São Paulo. Foi reconhecida
como #Under30 na revista Forbes, TEDx Speaker, LinkedIn Top Voices
e Creator e em 2021 foi vice curadora do Global Shapers, a comunidade
de jovens do Fórum Econômico Mundial. Em 2023, Amanda recebeu o
prêmio Humanitarian Award, do the Global Presence, reconhecida como
liderança na categoria meio ambiente. Ela também recebeu, em 2022, o
Prêmio Jovem Brasileiro na categoria Meio Ambiente.

Amanda se identifica com o Sankofa como uma imagem que reverbera


o retorno às raízes, a ancestralidade para construir um presente e
SP futuro prósperos. Ela iniciou sua trajetória em organizações de base
e juventude e considera a favela espaço de afeto, união e saberes
Na foto Amanda Costa, uma mulher
negra, sorridente, com cabelos soltos diversos como o Slam, batalhas de rima que mistura música, poesia e
cacheados, na altura do pescoço. Veste dança de rua, promovidas pela juventude para expressar suas opiniões.
uma camiseta estampada regata.
Redes sociais: @souamandacosta @perifasustentavel

Saiba mais sobre a luta de Amanda

22 Anistia Internacional Brasil. Projeto sobre Justiça Climática, 2023. Disponível em: https://anistia.org.br/informe/anistia-
internacional-brasil-lanca-projeto-sobre-justica-climatica/
23 Rede Nossa São Paulo. Mapa da Desigualdade, 2022. Disponível em: https://www.nossasaopaulo.org.br/wp-content/
uploads/2022/11/Mapa-da-Desigualdade-2022_Tabelas.pdf

12
CAMILA ARAGÃO BAHIA
CAMILA ARAGÃO, 38 ANOS, é ativista, feminista,
arte educadora, educadora popular, consultora em acessibilidade
e Agente Comunitária de Saúde. Atua e vive no bairro de Cassange
em Salvador, Bahia, e mora em um condomínio próximo a um aterro
sanitário e empresas que despejam resíduos nas áreas de proteção
ambiental, rios e córregos da região. É integrante de diversos coletivos
como a Rede Nacional de Mulheres Negras pelo Combate à Violência,
o Movimento Brasileiro de Mulheres Cegas e de Baixa Visão, a
Associação Brasileira de Lésbicas, o Fórum Baiano de Pessoas
Cegas, entre outros. No local em que mora com seu filho, o condomínio
Coração de Maria, empreendimento do "Minha Casa, Minha Vida" ela
desenvolve atividades de sensibilização dos moradores para o manejo
adequado dos resíduos sólidos, com especial atenção para a proteção
dos trabalhadores e trabalhadoras que coletam os materiais recicláveis.

Camila é uma artista e em seus desenhos se inspira pela espada de


Na foto Camila Aragão, mulher negra,
BA
Ogum, orixá iorubano que simboliza a tecnologia na construção de sorrindo e de olhos semifechados.
ferramentas e estratégias de proteção e o machado do orixá Xangô, Está com os cabelos presos, brincos
deus da justiça e rei do Império de Oió. redondos e veste camiseta amarela.

Redes sociais: @camila_araga0 @mbmb.oficial


@rede.nacionalmulheresnegras

Saiba mais sobre a luta de Camila

LÍDIA LINS PERNAMBUCO LÍDIA LINS, 30 ANOS, é advogada, aceleradora cultural,


articuladora social, educadora popular, ativista antirracista, dos direitos
humanos e socioambientais. É cofundadora coordenadora do Coletivo
Ibura Mais Cultura. Nasceu e reside no bairro do Ibura, localizado na
periferia da zona sul de Recife, um dos bairros mais atingidos pelas
chuvas de 2022 que provocaram alagamentos e deslizamentos que
levaram à morte de pelo menos 44 pessoas, incluindo idosos, mulheres
e crianças.

Lídia sempre esteve ligada ao ativismo por direitos humanos e


ambientais, por muitos anos prestou assessoria jurídica para
organizações populares e o primeiro projeto que idealizou foi focado na
construção de hortas comunitárias em seu bairro.
A folha da samambaia, símbolo Adrinkra que remete a resiliência e
resistência é uma das suas inspirações. Já o Coco de Roda, o Maracatu,
Afoxés e diversas expressões populares da cultura pernambucana, são
ritmos e movimentos que alimentam ela e seu coletivo, uma organização
que nasceu para o fortalecimento cultural do seu território.
PE Redes sociais: @iburamaiscultura @lidialins.adv
Na foto Lídia Lins, mulher negra, está
séria e de braços cruzados. Possui
cabelos longos, cacheados e soltos, Saiba mais sobre a luta de Lídia
veste roupa branca, óculos e um
batom vermelho.

13
LUCIANA SOUZA DE OLIVEIRA ESPÍRITO SANTO
LUCIANA SOUZA, 51 ANOS, é técnica de Enfermagem,
representante da Comissão de Atingidos de Regência Augusta e Entre
Rios – Foz Sul do Rio Doce - Linhares –, que sofreu em sua calha o
maior crime ambiental do Brasil. Membra titular do Conselho Municipal
de Cultura de Linhares do segmento Cultura Popular e Tradicional.
Representante das minorias no Comitê Estadual de Vulnerabilidade
Social do Espírito Santo e representante dos atingidos em instâncias
da governança da Câmaras Técnica de Participação, Diálogo e Controle
Social.

Luciana é uma liderança comunitária que desenvolve projetos em torno


da proteção ambiental e cultural do seu território. Em Regência ela
mobiliza a Banda de Congo Mirim Vila Regência, integra um grupo de
mulheres artesãs e com arte e cultura organiza estratégias de educação
ES ambiental aliadas à luta por reparação.
Na foto Luciana Souza, mulher negra,
afro-indígena está de braços cruzados, Saiba mais sobre a luta de Luciana
cabelos cacheados parcialmente soltos.
Veste uma blusa aberta em xadrez preta
e branco e camiseta branca por baixo.

ISABEL CRISTINA SILVA DE SOUZA CEARÁ


I SA B E L C R I ST I N A , 43 A N O S, é ativista do
Movimento Quilombola do Ceará. Liderança quilombola na
Associação Remanescentes do Quilombo dos Caetanos em Capuan,
Caucaia. Atualmente conselheira do Conselho Estadual de Política
Cultural do Ceará. Comitê de Expressões Afro culturais. Coletivo
de Mulheres Quilombolas da Coordenação Nacional de Articulação
das Comunidades Negras Rurais Quilombolas - CONAQ. Estudante
UNILAB CE, graduação em Pedagogia. Desempenha ações de defesa
do território e da vida nos quilombos.

Rede social: @cristina.capuan

Saiba mais sobre a luta de Isabel

CE
Na foto Cristina Silva, mulher negra,
está com punho cerrado erguido e os
cabelos presos. Veste boné verde e uma
bata com estampas africanas.

14
MARIA JOSÉ PACHECO BAHIA
MARIA JOSÉ, 50 ANOS, é assistente social, moradora
de Salvador (BA) e trabalha há 20 anos com comunidades pesqueiras.
É membro do Conselho Pastoral de Pescadores (CPP), da Coletiva
Mahin, da Coalizão Negra por Direitos e Especialista em Direitos
dos Povos e Comunidades Tradicionais pela Faculdade de Direito da
UFBA.

Zezé, como gosta de ser chamada, realiza diversos trabalhos de


assessoria às comunidades pescadoras, marisqueiras, quilombola e
tradicionais atingidas por um modelo de desenvolvimento predatório
que provoca conflitos fundiário, degradação ambiental e violações de
direitos humanos para essas populações. Ela contribui na ampliação
das denúncias de racismo ambiental, apoio jurídico e mobilização
para cobrança de soluções junto ao poder. Entre as comunidades
acompanhadas estão os quilombos Boca do Rio, Riacho de Santo
Antônio, Quilombo Zumbi e comunidades da Ilha de Maré.
Na foto Zezé Pacheco, mulher negra,
BA
sorridente, usa cabelo estilo Black
O Mangue inspira Zezé por ser o berço de muitas espécies, um Power solto. Veste uma camiseta
ecossistema importantíssimo o mundo com raízes imensas que estão estampada e uma outra blusa
branca que aparece metade de um
ao ar livre, mostrando que a vida deve ser respeitada em todas as
rosto feminino.
suas formas.

Saiba mais sobre a luta de Maria José

MARILZA BARBOSA FLORIANO RIO DE JANEIRO


Marilza Barbosa, 57 anos, é articuladora de território, mãe, avó, assistente social.
Moradora do Morro do Sossego, localizado no bairro Pantanal, no município de
Duque de Caxias. Faz parte da Rede de Mães e Familiares de Vítimas de Violência
da Baixada Fluminense e da Frente Estadual pelo Desencarceramento (RJ).
Desenvolve o trabalho dos quintais produtivos, colocando em prática os conceitos da
agroecologia através das composteiras, da reciclagem, da consciência ambiental, da
produção de alimentos sem agrotóxico e da troca de saberes com os moradores do
Morro, em especial as mulheres.

Em um território altamente militarizado com altas taxas de mortalidade por conflitos armados,
Marilza promove um ambiente de cuidado da saúde física e mental para mulheres, vítimas das
violências do Estado, por meio das práticas de agroecologia. Com os quintais produtivos nos
fundos das casas, lajes e espaços antes abandonados, o Coletivo de Mulheres do Morro do
Sossego tenta recuperar o direito ao espaço urbano e meio ambiente saudáveis, ao mesmo
RJ tempo em que cria alternativas para segurança e soberania alimentar.
Na foto Marilza Floriano, mulher
negra, sorridente, cabelos
Para Marilza trabalhar com a terra é uma cura. Ela admira a resistência das árvores
cacheados, curtos e grisalhos. corta-vento e se movem, dobram, mas não se quebram.
Veste uma camiseta branca e
um casaco preto. Rede social: @marilzabarbosafloriano

Saiba mais sobre a luta de Marilza

15
MÔNICA PATRÍCIA BALDINO RIO DE JANEIRO
MÔNICA PATRÍCIA, 48 ANOS, é natural de São
Paulo, técnica em edificações por formação, atuando por 12 anos
como Consultora de Qualidade nas normas ISO9001 e PBQP-H
especialista em construção civil. É feminista, capelã, ativista,
Iyalorixá do Ilé Asé ebun Sango fun mi, candomblé nação ketu com
descendência do Engenho Velho da Casa Branca - BA. Transferiu
seu terreiro para Guapimirim, Rio de Janeiro no ano de 2015.
Realiza práticas agroecológicas, coleta seletiva e reaproveitamento
de alimentos e de materiais recicláveis. Fundadora e presidenta da
Sociedade da Mulher Guerreira desde o ano de 2018, idealiza e
coordena os projetos sociais, culturais e socioambientais, bem como,
as ações socioassistenciais realizadas na organização. Além da
Sociedade da Mulher Guerreira, também lidera o Fórum Permanente
das Mulheres Negras de Guapimirim realizando ativismo permanente
contra o racismo.
Na foto Iyá Mônica, mulher negra, está
RJ
de braços cruzados, cabelos trançados, Redes sociais: @sociedadedamulherguerreira / @iyamonicadeoba
está maquiada, usa acessórios brincos,
pulseiras. Veste bata vermelha de Saiba mais sobre a luta de Mônica
estampas Africanas.

SANDRA PEREIRA BRAGA GOIÁS


Sandra é agricultora rural, formada em turismo, faz parte da
Coalização Negra por Direitos, do Coletivo de Mulheres Negras da
Coordenação Nacional de Articulação de Quilombos (CONAQ), é
pertencente e liderança do Quilombo Mesquita no estado de Goiás.
Militante da causa negra feminina quilombola e da luta por direitos.
É Coordenadora Executiva da CONAQ na região Centro Oeste e
Coordenadora Estadual da CONAQ – GO.

Rede social: @sandrabraga.tur

Saiba mais sobre a luta de Sandra

CE
GO
Na foto Sandra Braga, mulher
negra, de cabelos cacheados
soltos na altura do ombro. Veste
uma blusa estampada floral.

16
SILVANA BARBOSA MARANHÃO
Silvana Barbosa, 41 anos, é maranhense, quebradeira de coco
babaçu, presidente da Rede Mulheres do Maranhão. Luta em favor do
babaçu livre e da floresta em pé.

Na Rede Mulheres do Maranhão Silvana contribui para o


desenvolvimento de toda a cadeia produtiva das catadoras de Coco
Babaçu, desde a luta pela preservação dos babaçuais, o fortalecimento
das mais de 200 mulheres e 15 empreendimentos e cooperativas que
beneficiam o Babaçu para feitura de óleo, biscoito, cocada, artesanato,
mesocarpo, passando pela comercialização desses produtos e a
gerência de programas de formação e empoderamento para promoção
de direitos.

O Tambor de Criola, manifestação ícone da cultura negra no Maranhão


MA é o ritmo que inspira Silvana e as quebradeiras de Coco Babaçu. Nas
Na foto Silvana Barbosa, mulher parda,
feiras e comunidades as quebradeiras mantêm seus grupos de tambor
sorridente e está com cabelo um para embala a lida com o Coco e a luta por justiça socioambiental.
pouco preso. Usa batom e veste uma
camiseta branca. Redes sociais: @bsilvanabarbosa878 / @redemulheresdomaranhao

Saiba mais sobre a luta de Silvana

SIMONE LOURENÇO PERNAMBUCO


Simone Lourenço, 43 anos, mulher negra, é pedagoga, educadora
popular, feminista, filha de sindicalista, nascida no Cabo de Santo
Agostinho (litoral sul de Pernambuco). Assessora de formação
no campo das metodologias populares para o trabalho de base,
membro do conselho diretor do Centro das Mulheres do Cabo,
membro da Coordenação Nordeste da Rede de Educação Cidadã
(RECID) e coordenadora geral da Associação Fórum Suape Espaço
Socioambiental.

No Fórum Suape, Simone atua com ações pedagógicas, jurídicas e


de visibilidade das comunidades atingidas pelos conflitos fundiários,
poluição das águas e morte da biodiversidade provocado pela
instalação do complexo industrial portuário de Suape, com mais de
200 empresas e refinarias.

O baobá é um símbolo que inspira sua luta por direitos


PE
Na foto Simone Lourenço, mulher negra,
socioambientais. A árvore é abrigo, fonte de água, resistência e afro-indígena está maquiada e com
lembrança das raízes africanas que constituiu os povos do seu parciais tranças nagôs no cabelo, outra
território e do Brasil. parte solta. Veste uma camiseta marrom
e usa um colar.

Rede social: @forumsuape

Saiba mais sobre a luta de Simone

17
PILARES
PARA A AÇÃO
CLIMÁTICA
DA REDE VOZES
NEGRAS PELO
CLIMA
18
JUSTIÇA CLIMÁTICA as pessoas são impactadas de forma bem diferen-
tes pela crise ambiental25.
“A injustiça A abordagem de justiça climática está preo-
cupada com as causas profundas da crise climática
climática é mais e com a forma como as mudanças no clima se ba-
seiam e aumentam as desigualdades entre países
uma violência e no interior deles26. Para essa abordagem ”justiça
climática” significa resolver esses desequilíbrios e
dentre as muitas injustiças, começando pelos grupos e comunidades
mais afetadas pela crise climática. Assim, justiça de
que nós passamos” gênero; racial; de classe; a redução das desigualda-
Marilza Barbosa em entrevista
des, o fim do capacitismo e do etarismo são essen-
ciais para alcançar a justiça climática27.

C
para Anistia Internacional, 2023
Lidar com as mudanças climáticas, portanto,
arregar latas d’água na cabeça requer responsabilização de setores transnacio-
por quilômetros em becos e vie- nais da economia (que independem das fronteiras
las, ficar dias sem coleta de lixo, entre as nações) e dos países que mais contribuí-
viver em casas sem alvenaria, ram para chegarmos nessa crise, ou seja, os mais
esgotamento sanitário, suscetí- poluidores, as indústrias que exploram combustí-
vel a doenças e violências são veis fósseis e as economias desenvolvidas. Esses
realidades que acompanham pessoas vulnera- setores, no ciclo de carbonização do mundo, acu-
bilizadas pelo sistema capitalista, o mesmo que mularam riquezas e têm mais condições de bancar
contribuiu para a intensificação da crise climática alternativas globais de mitigação, adaptação e re-
e faz dela um catalisador de violações de direitos, paração por perdas e danos causados por eventos
como explica Marilza. O acesso à moradia dig- climáticos extremos.
na, aos serviços de saúde, saneamento básico, à
alimentação adequada, à água e à educação de
RACISMO AMBIENTAL

D
crianças, além do direito à vida, são os principais
direitos violados pelo impacto das mudanças do
clima, que tendem a ser mais severos e graves escreve a forma como as popula-
naquelas comunidades que sofrem historicamen- ções negras e indígenas são mais
te com a violações desses direitos. Esses ciclos afetadas de forma desproporcional
de desigualdades aparecem a cada nova emer- pelos impactos ambientais negati-
gência climática e precisam ser superados com vos, como a poluição do ar, a con-
políticas estruturais que assegurem a participa- taminação da água, as enchentes e
ção das pessoas afetadas por essas desigual- o desmatamento28.
dades, especialmente daquelas pertencentes as Quem são as pessoas mais afetadas pelos
mulheres negras. eventos climáticos extremos, com pouco acesso à
A ideia de justiça climática surge como um infraestrutura, água e esgoto? Quem são as que
desdobramento da noção de “justiça ambiental”24. moram em regiões de alto risco de deslizamentos,
Esta significa que, no mundo, alguns grupos e alagamentos etc.? Para a Organização das Nações
pessoas têm muito poder sobre os recursos na- Unidas (ONU), o racismo ambiental “consiste na
turais para, assim, acumular ainda mais poder,
25 Robinson, M. Justiça climática: esperança, resiliência e a luta por um
dinheiro e gerar desigualdades. É no contexto de futuro sustentável. 2021, Civilização Brasileira. Disponível em: https://
acesso desigual aos recursos naturais que grande books.google.com.br/books?hl=pt-BR&lr=&id=Ys9GEAAAQBAJ&oi=fn
d&pg=PT9&dq=justi%C3%A7a+climatica&ots=swykgo1CUm&sig=3Ia
parte dos desequilíbrios socioambientais, como RCzVRm0W_MqBT8TCR74YzPmI#v=onepage&q=justi%C3%A7a%20
as chamadas catástrofes climáticas acontecem. climatica&f=false

E sabemos que estas atingem desproporcional- 26 Anistia Internacional. Parem que queimar nossos direitos. 2021
Disponível em: https://anistia.org.br/informe/parem-de-queimar-nossos-
mente territórios e populações que já vivem as direitos-baixe-nosso-relatorio-sobre-mudancas-climaticas-e-os-direitos-
consequências das desigualdades de raça, gêne- humanos/
27 Anistia Internacional. Parem que queimar nossos direitos. 2021
ro, classe social e das hierarquias culturais (que Disponível em: https://anistia.org.br/informe/parem-de-queimar-nossos-
dizem que determinadas práticas e saberes valem direitos-baixe-nosso-relatorio-sobre-mudancas-climaticas-e-os-direitos-
humanos/
mais que outros). Assim, é possível concluir que
28 Conectas Direitos Humanos. Como o racismo ambiental afeta a vida
das comunidades negras e indígenas, 2023. Disponível em: https://www.
24 United Nations Dvelopment Programm. Environmental justice, 2021. conectas.org/noticias/entrevista-como-o-racismo-ambiental-afeta-a-vida-
Disponível em: https://www.undp.org/rolhr/justice/environmental-justice das-pessoas-negras-e-indigenas/

19
contaminação sistêmica do ambiente e na aplica-
ção de outras políticas ambientais que prejudicam
desproporcionalmente determinadas comunidades CAMILA ARAGÃO, liderança do Vozes Negras
racializadas, diante de medidas insuficientes toma- pelo Clima, vive no bairro de Cassange, Salvador, no
das pelo governo para prevenir ou conter essas des- condomínio de apartamentos do Minha Casa Minha
vantagens”29. Vida, entregues, em 2016, pelo Governo Federal. Esse
Além disso, segundo a Relatora Especial das condomínio, além de ser construído dentro da Área de
Formas Contemporâneas de Racismo da ONU30, os Proteção Ambiental (APA) de Ipitanga, está próximo de
povos dos antigos territórios colonizados, chamados micro lixões, distante de hospitais, centros comerciais,
de não-brancos também têm de lidar com as piores da rede de ensino e com pouco acesso ao transporte
consequências da extração, do processamento e da público, podendo ser considerado uma favela vertical:
queima de combustíveis fósseis.
O Grupo de Trabalho de Especialistas em Po- “Um monte de prédio no meio do nada, em uma APA.
vos de Ascendência Africana explica que o racismo As pessoas não foram sensibilizadas a entender que
ambiental e a crise climática afetaram desproporcio- contexto ambiental estavam, de saber lidar e conviver
nalmente as pessoas negras, devido, em parte, à com a natureza. Não tinha transporte. A gente teve que
história da dominação colonial, ao comércio de afri-
fazer protesto, queimar pneus para ter transporte
canos escravizados e à discriminação e segregação
sistemáticas dos povos de ascendência africana. A
público [...] O lixo é lucro. Temos um aterro no fundo
injustiça climática está diretamente associada ao ra- da microárea que recebe 1 milhão de resíduos por dia.
cismo e as desigualdades de gênero. A devastação que esse aterro faz na comunidade da
A crise climática afeta mais alguns territórios Carobeira, na fauna e na flora e no clima, é enorme.
que outros, como é o caso das favelas, periferias e Por mais que o aterro diga que cuida da área, eles
comunidades tradicionais. Nesses endereços mo- fazem um trabalho assistencialista: dão brinquedo no
ram as pessoas mais pobres, marginalizadas, de Natal, Dia das Crianças, promovem cursos de ninho
maioria negra e indígena31. No Brasil, esses locais sustentável e móveis com palete”
tendem a ser mais quentes em termos de ilhas de
Camila Aragão em entrevista
calor e, urbanisticamente, apresentam baixa quali- para a Anistia Internacional, 2023
dade do ar, estão em áreas de risco de deslizamen-
tos e são têm maior chance de sofrerem de inunda-
ções e enchentes32. Além disso, populações negras Outro exemplo é o caso do território de Luciana Souza,
e tradicionais têm seus territórios e bairros invadidos em que mais de 80% das pessoas atingidas pelo
por empreendimentos que utilizam produtos tóxicos, rompimento da barragem de Fundão, em novembro de
usualmente despejados em rios e no entorno de co- 2015, são negras e tem enfrentado barreiras para acessar
munidades, trazendo problemas de saúde. o processo de reparação dos danos33. As mulheres não
foram consideradas atingidas ou produtoras da cadeia
da pesca, mas vistas, pela Samarco/Vale, como “donas
de casa” e “dependentes” de seus maridos- o que
aprofundou as desigualdades e violências de gênero34.

A desigualdade socioambiental, associada às


desigualdades raciais e de gênero, também afeta o acesso
a oportunidades econômicas e sociais. As comunidades
onde vivem as pessoas já discriminadas historicamente,
têm menos acesso a empregos, educação e serviços
públicos de qualidade. Sem condições de adaptação
diante de adversidades, elas enfrentam um ciclo vicioso de
injustiças, aprofundadas pela crise climática.

29 A/HRC/54/70, Disponível em: https://documents-dds-ny.un.org/doc/


UNDOC/GEN/G23/140/55/PDF/G2314055.pdf?OpenElement
30 OHCR. A/77/549: Informe de la Relatora Especial sobre las formas 33 Fundação Getúlio Vargas. Racismo e o processo de remediação do desastre da
contemporáneas de racismo, discriminación racial, xenofobia y formas barragem de Fundão, 2021. Disponível em: https://www.mpf.mp.br/grandes-casos/
conexas de intolerancia, E. Tendayi Achiume - Crisis ecológica, justicia caso-samarco/documentos/fgv/2021/fgv_racismo-e-o-processo-de-remediacao-do-
climática y justicia racial | OHCHR, 2022. Disponível em: https://www. desastre-da-barragem-de-fundao-1.pdf
ohchr.org/es/documents/thematic-reports/a77549-report-special- 34 Fundação Getúlio Vargas. O rompimento da barragem de Fundão na perspectiva
rapporteur-contemporary-forms-racism-racial das mulheres atingidas, 2022. Disponível em: https://bibliotecadigital.fgv.br/
31 Nexo Jornal. A crise climática perpetua relações coloniais e racismo, dspace;StartDocandlt:/bitstream/handle/10438/34095/75_O%20Rompimento%20
2022. Disponível em: https://pp.nexojornal.com.br/opiniao/2022/A-crise- da%20Barragem%20de%20Fund%c3%a3o%20na%20Perspectiva%20das%20
clim%C3%A1tica-perpetua-rela%C3%A7%C3%B5es-coloniais-e-racismo Mulheres%20Atingidas.pdf?sequence=1&isAllowed=y

32 Belmont, Mariana (orgs.). Racismo Ambiental e Emergências


Climáticas no Brasil, 2023.

20
ADVOCACY Isso quer dizer que fazer ação política climática é
CLIMÁTICO: AÇÃO exercitar a cidadania.
Em geral, a ação política climática ocorre em
POLÍTICA CLIMÁTICA

A
três eixos estratégicos. O primeiro é a comunicação
com foco em informar a causa e os objetivos35. O
terminologia “advocacy” é vista segundo é o ativismo, que inclui a defesa, mobiliza-
como termo estrangeiro, colonizador ção e a manifestação pública de ideias. O terceiro
e em disputa narrativa, mas que as é a incidência que é o exercício de dialogar com os
lideranças reconhecem na sua prá- tomadores de decisão, transmitindo a mensagem de
tica cotidiana de incidência política. um grupo. No nosso caso a defesa do reconheci-
mento do racismo ambiental, da vulnerabilidade de
mulheres negras frente a crise climática e da impor-
“Eu me identifico tância das tecnologias que elas desenvolvem para
chegar a soluções.
pois sei que
faço advocacy
e incidência. Eu
sei que eu faço,
mas esse termo
estrangeiro me
deixa em dúvida.
É um termo que
é usado como se
todos soubessem,
e nós não
entendemos e nos
perguntamos “esse
pessoal tá falando
pra quem”?
Eu sei que eu faço
muita coisa!”
Marilza Barbosa

Considerando essa terminologia, “vinda de


fora” e pouco representativa, a Rede Vozes Negras
pelo Clima propõe conceitualizar essa atividade
como “ação política climática”. Assim, a Rede enten-
de o conceito como uma metodologia e estratégia
para influenciar tomadores de decisão (líderes, po-
líticos, gestores públicos e empresários) em prol de
uma causa cidadã, para alcançar a transformação
social e comunitária, garantindo acesso aos direitos. 35 Engajamundo. Guia de Ação Climática Local. Disponível em: https://
conteudo.engajamundo.org/guiaacaoclimaticalocal

21
RACISMO
AMBIENTAL
E VIOLAÇÕES
DE DIREITOS
HUMANOS

22
A
crise climática é uma crise de di-
reitos humanos, uma vez que suas
consequências afetam despropor-
cionalmente o gozo dos direitos
dos grupos sociais historicamente
discriminados como mulheres, pes-
soas negras, moradoras de favelas, indígenas, qui-
lombolas, idosos, crianças, adolescentes, pessoas
com deficiência e outros marcadores sociais da dife-
rença/diversidade. Assim, é preciso chamar atenção
para os impactos das mudanças climáticas na vida
dessas pessoas, comunidades e povos. Também é
importante dar visibilidade a ações de adaptação e
de resiliência climática.
Abaixo demonstramos como a crise climáti-
ca afeta a vida das mulheres da Rede a partir de
dois termos centrais nas discussões internacionais
sobre mudanças climáticas. Estes serão os princi-
pais eixos nas negociações da COP 28: adaptação
climática e perdas e danos. As mulheres da Rede
Vozes Negras Pelo Clima desenvolvem formas de
adaptação à crise climática que vão desde o ma-
nejo sustentável dos recursos hídricos, biomas e
resíduos, ações de educação ambiental, até siste-
mas comunitários de alerta para eventos climáticos
extremos. Por outro lado, enfrentam cotidianamente
os efeitos da crise climática, traduzidos em inúmeras
violações de direitos sociais, econômicos e culturais
ainda sem políticas de reparação. Adiante nessa se-
ção, apresentamos como a crise afeta os direitos à
água, moradia adequada, alimentação, vida, auto-
determinação, acesso à saúde e ao meio ambiente
limpo, saudável e sustentável.

23
ADAPTAÇÃO CLIMÁTICA PERDAS E DANOS

As consequências inevitáveis e irreversíveis


Mudanças locais e emergenciais de forma que vemos agora e continuaremos a ver
natural ou criados por pessoas que buscam crescer se os esforços de adaptação e
reduzir os danos das mudanças climáticas. mitigação do clima não forem suficientes
para frear as mudanças climáticas36.

• Coleta de água da chuva para reutilização. • Suspensão do abastecimento de água e da rede


de esgoto em casos de deslizamentos, enchentes
• Promoção de ações de educação e alagamentos.
ambiental e gestão dos resíduos sólidos
(coleta seletiva comunitária). • Perda de bens materiais, culturais (como objetos
e edificações usadas em rituais, livros e cadernos
• Criação de quintais produtivos em lajes de de receitas) e de valor sentimental (como objetos
casas e terrenos acidentados em favelas, de acervos de familiares, fotografias).
baseada nos princípios da agroecologia e da
segurança alimentar. • Desapropriação de famílias e comunidades de
suas casas e territórios: deslocamento forçado e
• Preservação do meio ambiente e uso consciente violação ao direito à moradia.
do solo em terreiros de religiões de matriz africana.
• Violação do direito à vida: mortes por eventos
• Criação de sistemas de alertas comunitários para climáticos extremos.
localização de vítimas e registro de perdas e
danos de eventos climáticos extremos. • Impacto na saúde mental por conta das perdas
e danos, com aumento de casos de depressão,
sofrimento social e ansiedade.

• Contaminação do solo e dos rios por metais


pesados, além de contaminação dos peixes
e violação do direito à alimentação saudável
e à subsistência.

• Aumento da temperatura: ondas de calor,


agravamento de doenças crônicas, incidência de
arboviroses como Dengue, Chikungunya e Zika.

• Insegurança alimentar e fome.

• Necessidade de comprar água mineral para


consumo próprio.

• Alteração dos modos de vida tradicionais


(suspensão de festas, mudança nos calendários
culturais, impossibilidade de manter a alimentação
baseada em agricultura familiar e extração de
recursos naturais etc.).

• Desmatamento, queimadas e podas de árvores,


levando ao aumento da poluição atmosférica e
das doenças respiratórias.

Fonte: Elaboração própria com base nas entrevistas realizadas com as mulheres da Rede Vozes Negras pelo Clima, 2023.36
36 United Nations. Climate change – Loss and Damage, 2022. Disponível em: https://www.un.org/en/climatechange/adelle-thomas-loss-and-damage

24
IGUALDADE RACIAL, tremos40. Elas triplicam sua carga de trabalho não
DE GÊNERO E remunerado para apoiar não só a sua família, mas
toda a comunidade a se reconstruir41. Elas também
PARTICIPAÇÃO SOCIAL

A
ficam vulneráveis a violações dos direitos sexuais,
reprodutivos e de saúde em geral, pois quando uma
Declaração Universal dos Direitos emergência climática aumenta os serviços de pro-
Humanos 37 define que toda pes- teção e saúde da mulher são os primeiros a serem
soa tem todos os direitos e liber- precarizados ou interrompidos. 42Em momentos de
dades proclamados sem distinção crises sanitárias e climáticas os serviços de prote-
de qualquer natureza, seja de ção e garantia de direitos das populações negras,
raça, cor ou gênero. No Brasil, se- em especial das mulheres, são reduzidos impedido
gundo dados do Censo de 202238, 56% da popu- seu acesso pleno. Essa situação foi evidenciada
lação se autodeclara negra (preta ou parda), den- na pandemia de COVID-19, quando os serviços de
tre os quais mais de 1 milhão são pertencentes a atendimento as mulheres vítimas de violência pas-
comunidades quilombolas, e 0.88% de indígenas. saram por interrupções e modificações, no caso o
Apesar disso, as desigualdades raciais e de gê- acesso online, que foi uma barreira para quem não
nero impedem que a população negra e indígena tinha internet43. Ou nos casos de interrupções de
desfrute de todos esses direitos proclamados. pré-natal, e planejamento familiar com a justificati-
Conforme já mencionado, o racismo ambiental va de suprir uma necessidade mais urgente no mo-
diz respeito à forma como as pessoas negras e indí- mento, como a abertura de leitos para quarentena.
genas são mais afetadas por eventos climáticos ex- No Brasil, segundo dados da Pesquisa Nacio-
tremos, estando suscetíveis a um ciclo de violações nal de Amostra por Domicílios (PNAD), em 2022,
de direitos que gera danos mais graves, e impondo as mulheres exerciam 9 horas a mais de trabalho
menor capacidade de recuperação. com afazeres domésticos por semana do que os
No Brasil, em cidades como Belém, 75% da homens. Enquanto elas dedicam cerca de 21h por
população que mora em áreas de risco é negra e semana, eles dedicaram apenas 12h44. Ainda, 37%
sua renda domiciliar média é de R$ 1,7 mil. Uma em das mulheres negras foram responsáveis pelo cui-
cada cinco moradias (21%), nas áreas de risco, é dado de alguém em 2022.
chefiada por mulheres de baixa renda (com até um
salário-mínimo). Já nas cidades de São Paulo, terri-
tório de Amanda Costa, e Recife, município de Lídia
Lins, aqueles que residem em áreas de risco são,
respectivamente, 55% e 68% de negros, com ren-
da média de R$ 1,1 mil por domicílio39. As moradias
chefiadas por mulheres com até 1 salário-mínimo
em áreas de risco é de 27%.
As mulheres negras são mais afetadas pelas
mudanças climáticas. Nos contextos urbanos, suas
comunidades geralmente são impedidas de ter
acesso aos recursos naturais básicos como aces-
so a fontes naturais de água para consumo, lazer
e arborização dos espaços públicos. Nos contextos
rurais e em comunidades tradicionais em que são
dependentes dos recursos naturais para seu susten-
40 Organização das Nações Unidas. Women, gender equality and
to, moradia, medicina e identidade cultural, contudo climate change, 2009. Disponível em: https://www.un.org/womenwatch/
tem seu acesso prejudicado pela contaminação e feature/climate_change/downloads/Women_and_Climate_Change_
Factsheet.pdf
escassez. Em ambos os contextos há pouco inves-
41 Organização das Nações Unidas. What does gender equality have
timento em estrutura para mitigação, adaptação e to do with climate change?, 2023. Disponível em: https://climatepromise.
gestão de redução de desastres - o que se configura undp.org/news-and-stories/what-does-gender-equality-have-do-climate-
change
como uma faceta do racismo ambiental.
42 Desai, B. H., & Mandal, M. Role of climate change in exacerbating
As mulheres, crianças e idosos estão quan- sexual and gender-based violence against women: A new challenge for
do estes são atingidos pelos eventos climáticos ex- international law. Environmental Policy and Law, 51(3), 137-157, 2021.
Disponível em: https://www.un.org/sexualviolenceinconflict/wp-content/
uploads/2021/10/report/role-of-climate-change-in-exacerbating-sexual-and-
37 Organização das Nações Unidas. Declaração Universal dos gender-based-violence-against-women-a-new-challenge-for-international-
Direitos Humanos, 1948. Disponível em: <https://www.unicef.org/brazil/ law/epl_2021_51-3_epl-51-3-epl210055_epl-51-epl210055.pdf
declaracao-universal-dos-direitos-humanos>. Acesso em: 25 de outubro 43 Reis, A. P. D., Góes, E. F., Pilecco, F. B., Almeida, M. D. C. C. D.,
de 2023 Diele-Viegas, L. M., Menezes, G. M. D. S., & Aquino, E. M. (2021).
38 Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística. Censo de 2022, Desigualdades de gênero e raça na pandemia de COVID-19: implicações
Panorama. Disponível em: https://censo2022.ibge.gov.br/panorama/ para o controle no Brasil. Saúde em Debate, 44, 324-340.
39 Instituto Pólis. Racismo ambiental e justiça socioambiental nas 44 Gênero e Número, Trabalho Doméstico, Mulheres. 2023. Disponível
cidades, julho de 2022. Disponível em: https://polis.org.br/estudos/ em: https://www.generonumero.media/reportagens/trabalho-domestico-
racismo-ambiental/ mulheres/

25
nhecidas e terem seus direitos garantidos. Apenas
“Dependendo do no Rio de Janeiro, estado em que Iyá Mônica lidera
o Ilé Asé ebun Sango fun mi, no município de Guapi-
local, a repercussão mirim, foram identificados 77 casos de racismo reli-
gioso, sendo um deles contra a liderança45.
dos desastres
climáticos é “As religiões de
diferente e sabemos matriz africana
que em nossos são espaços de
territórios é tudo preservação e cura
ainda mais cruel e e necessitam ser
difícil. Temos que defendidos - São
chegar nesse lugar promotores da
de decisão, pois sustentabilidade.
nós como mulheres Por isso, focamos
negras vamos no resgate,
trazer para o chão preservação e
a realidade que visibilidade do modo
não é olhada.” de conviver em
Maria José Pacheco
harmonia com as
As religiões de matriz africana majoritaria- forças da natureza
mente lideradas por mulheres, como o Candomblé,
também preservam a cultura negra e entendem os e da ancestralidade.
territórios e meio ambiente como sendo importantes
para o resgate da ancestralidade. Esses espaços Sem natureza não
são sustentáveis, pois, preservá-los necessaria-
mente envolve educação ambiental, processos pro- há Orixá.”
dutivos que não causem extinção dos recursos natu- Iyá Mônica em entrevista para a Anistia Internacional, 2023
rais, além de contarem com práticas integrativas de
saúde e alimentação saudável feitas coletivamente. Apesar de toda contribuição para a construção
Essas comunidades de resistência movidas pela fé do meio ambiente saudável, as mulheres seguem
e suas lideranças são pilares na organização comu- sendo excluídas e silenciadas dos espaços de par-
nitária, defesa dos direitos humanos e proteção da ticipação social, seja pela estrutura que privilegia os
natureza. Diante da escassez de espaços verdes, homens, seja pela sobrecarga do trabalho do cui-
produção e descarte inadequado de lixo nos espa- dado que as impede de realizar ativismos “fora de
ços rurais e urbanos, os terreiros são diretamente casa”. No Brasil e no mundo, os espaços de tomada
atingidos em seus direitos à livre prática religiosa e a de decisão sobre as discussões climáticas são ocu-
manutenção dos seus modos de vida. pados majoritariamente por homens brancos.
Os conhecimentos ancestrais são metodo-
logias de educação para enfrentamento da crise
climática. As comunidades são responsáveis pela
preservação de espécies, línguas e modo de vida,
45 Observatório Quilombola. Mapa de Intolerância Religiosa, 2023.
no entanto são duramente perseguidas pelo racismo Disponível em: https://www.google.com/maps/d/u/1/viewer?hl=pt-BR&m
religioso e ambiental que as impede de serem reco- id=15rhh5dFrZGmmOvblU0vETmiMcAI&ll=-13.539230390466617%2C-
53.038402800000014&z=4

26
“Nós muitas vezes temos a vivência e temos o conhecimento
técnico, mas ainda assim sofremos com as barreiras e não somos
escutadas em todos os espaços. Como morador, às vezes é fácil
descredibilizar, sempre colocam a sua fala no lugar emocionado
ou numa fala que não entenda o problema que não tem a dimensão
do que está se passando, de que não tenha propostas que sejam
relevantes para serem consideradas.”
Lídia Lins em entrevista para a Anistia Internacional, 2023

“O racismo institucional
e estrutural e ambiental
tem avançado bastante
e estamos na defesa de
nossas vidas e corpos. “Geralmente a mulher preta
A gente se constrange jovem é aquela que está nos
quando nos olham bastidores, que está servindo a
diferente, mas a gente se água, que está limpando o evento.
ergue também por isso Então acho que o racismo se
dizemos que não devemos manifesta de diferentes formas,
deixar de ocupar as vezes apenas pelo olhar, as
esses espaços.” vezes por palavras sutis que
Isabel Cristina em entrevista querem te fazer engolir que
aquele lugar não te pertence, que
para a Anistia Internacional, 2023

aquele lugar não é o seu lugar.


Ou quando te chamam para a
pré-reunião, que é a reunião de
montar, mas querem escutar suas
ideias, mas não te chamam no
evento, não te chamam para falar
no evento.”
Amanda Costa em entrevista
para a Anistia Internacional, 2023

27
DIREITO À ÁGUA

T
contaminados 50. O rio é reconhecido pela co-
munidade como essencial para a garantia da
odas as pessoas têm direito a vida e, desde o desastre da Samarco, as chu-
ter acesso a água potável, limpa vas reconduzem a lama pela calha da foz, fato
e segura em quantidade e quali- que gera a renovação constante dos danos.
dade igual às suas necessidades
básicas, conforme estabelecido
na Conferência da Organização “A água é a
das Nações Unidas (ONU) sobre a Água desde
197746. O Comentário Geral nº 15 do Comitê de representação
Direitos Econômicos, Sociais e Culturais da Orga-
nização das Nações Unidas reforça que o direito absoluta da vida;
à água é indispensável para garantia de uma vida
com dignidade e um pré-requisito para o exer- quando falamos de
cício de outros direitos humanos como alimen-
tação, saúde, à vida etc.47. Ainda, a Resolução saúde de um rio,
64/292/2010 da Assembleia Geral da Organiza-
ção das Nações Unidas reforça a importância da estamos falando
garantia do acesso à água e saneamento como
um direito associado à dignidade da pessoa hu- do direito a existir,
mana, devendo-se respeitar a qualidade, ou seja,
a água há de ser potável; a quantidade, ou seja, de ter um direito à
o suficiente para a sobrevivência; a prioridade de
acesso humano, em caso de escassez; e a gratui- água potável, de se
dade –, ao menos no que diz respeito ao mínimo
necessário para a sobrevivência humana48. alimentar de forma
No cotidiano de todas as lideranças da
Rede Vozes Negras pelo Clima, a água é uma segura, tem a ver
questão, seja pela dependência direta dos
rios e mares, seja por pertenceram a culturas com a saúde das
afro-centradas que determinam seus modos
de vida. Os casos de Luciana Souza e Marilza florestas, da fauna,
Barbosa são ilustrativos das consequências da
violação do direito à água no contexto das mu- da flora e todas
danças climáticas.
Luciana Souza, mulher afro-indígena as espécies que
atingida pelo rompimento da barragem de Fun-
dão e moradora de Regência 49, Espírito San- precisam de uma
to, desde 2015 sofre com a contaminação do
Rio Doce por metais pesados. A situação gera mínima segurança
a necessidade não só de aquisição de água
potável para consumo, um custo com o qual para existir e
poucas pessoas atingidas podem pagar, como
também viola diretamente o direito à alimenta- coexistir.”
ção, já que a pesca segue proibida na região Luciana Souza, em entrevista
por decisão judicial e os peixes encontram-se para a Anistia Internacional, 2023

Há mais de 600km de distância e em meio a


46 Organização das Nações Unidas. Marcos do Direito à Água, 2022. uma paisagem urbana marcada por morros e vielas,
Disponível em: https://www.un.org/waterforlifedecade/pdf/human_right_
to_water_and_sanitation_milestones_por.pdf Marilza Barbosa, mulher negra, residente do Morro
47 Organização das Nações Unidas. Comitê de Direitos Econômicos, do Sossego, em Duque de Caxias, relata que sofre
Sociais e Culturais (CDESC). Comentário Geral nº 15. Disponível em: desde a infância com a falta de acesso à água potá-
docstore.ohchr.org/SelfServices/FilesHandler.ashx?enc=4slQ6QS-
mlBEDzFEovLCuW1AVC1NkPsgUedPlF1vfPMJGPrCK5aXxG4bAqt2RQ vel encanada. Recentemente, ela construiu um poço
8OBgsAGw8XJOuajoG9jmUjYRQ5MFTYfmhvQ3AV3OHC0EpYsH2tVR- artesiano em sua casa, mas, por décadas, foi obri-
bnt70368ltdOVYd
48 United Nations General Assembly. Resolution A/HRC/15/9. Right
to Water, 2010. Disponível em: http://www.un.org/ga/search/view_doc. 50 Fundação Getúlio Vargas. Região Estuarina, Costeira e Marinha
asp?symbol=A/HRC/RES/15/9 do Espírito Santo: reconhecimento, responsabilidade e danos
49 A Vila de Regência Augusta é uma comunidade pesqueira socioeconômicos decorrentes do desastre da Samarco, 2022. Disponível
estabelecida na margem direita do Rio Doce, sendo a pesca e, mais em: https://bibliotecadigital.fgv.br/dspace/bitstream/handle/10438/30903/
recentemente, o turismo as principais atividades econômicas, ambas FGV_Regi%c3%a3o%20Estuarina%20Costeira%20e%20Marinha%20
dependentes do meio ambiente associado ao rio e ao mar. do%20Esp%c3%adrito%20Santo.pdf?sequence=1&isAllowed=y

28
gada a subir e descer o morro diariamente em busca
de água para suprir suas necessidades básicas.

“O problema não é
morar no Morro do
Sossego, mas que
“Aqui não tem
as políticas públicas
saneamento básico,
não chegam aqui.
não tem rede de
Eu por exemplo só
esgoto, aqui é fossa
consegui meu poço
e filtro. A água é
para tomar banho
da cachoeira e
de chuveiro depois
temos um grande
de 30 e poucos
problema com
anos. Eu tinha que
grandes chuvas. Se
tomar na casa da
chove muito, eles
patroa, se não
fecham a água por
precisava carregar
conta da sujeira
água e ainda tem
da cachoeira. Teve
muita gente vive
um período que
assim”.
Marilza Barbosa em entrevista
ficamos 40 dias
para a Anistia Internacional Brasil, 2023
sendo abastecido
Iyá Mônica também sofre com a escassez da
água em períodos de alto verão, quando diminuem por caminhão pipa
as águas das cachoeiras próximas da cidade em
que vive. Também lhe falta água quando chove mui- [...] no período da
to e o abastecimento é interrompido para limpeza.
Na sede do seu terreiro, quando há grandes chuvas estiagem também
e inundações sem condições de escoamento por
inexistir captação de águas pluviais, o acúmulo já ficamos sem água.”
causou danos ao solo com decalque, morte e que- Iyá Mônica em entrevista
da de árvores. Também são frequentes os casos de para a Anistia Internacional Brasil, 2023
doenças causadas pelo acúmulo da água parada.
Em todo o bairro da Parada Ideal, no qual reside Iyá
Mônica, a distribuição de água é irregular e não exis-
te tratamento de esgoto. Esses fatores põem em ris-
co a população da localidade, que convive com risco
constante de enchentes e alagamentos.

29
saneamento, sendo que 40% são mães negras e
“Aqui na Brasilândia solteiras52. Assim, as mulheres negras – e pobres –
são sistematicamente afetadas pela falta de acesso
periferia de São à água e ao saneamento, comprometendo sua dig-
nidade, autonomia e o direito à vida. Tal fenômeno é
Paulo, a questão fruto do racismo sistêmico e históricas desigualda-
des raciais e de gênero que criam as barreiras para
do saneamento é o acesso à água, uma vez que esses grupos resi-
dem em territórios com pouco acesso seguro, limpo
crítica, pois não e adequado.

tem saneamento DIREITO À


em alguns bairros. ALIMENTAÇÃO
ADEQUADA,
Então, nas casas, DIREITO À SAÚDE

A
você vê a água E À VIDA DIGNA

saindo direto ideia de direito à alimentação ade-


quada foi definida pelo Artigo 11
e indo para os do Pacto Internacional de Direitos
Econômicos, Sociais e Culturais53.
córregos, a gente O documento reconhece o direito
fundamental de toda pessoa de estar protegida da
tem o córrego do fome e da insegurança alimentar. Já a Declaração
Universal dos Direitos Humanos, de 1948, no artigo
canivete, córrego XXV, define que todo ser humano tem direito a um
padrão de vida capaz de assegurar-lhe e a sua fa-
do bananal, que mília, saúde e bem-estar. O Comentário Geral nº 12
do Comitê54 55 reforça a necessidade de garantir ao
são córregos que mais alto padrão possível de saúde física e mental à
todas as pessoas.
estão poluídos por A falta de acesso à águapode ser uma expres-
são do racismo ambientale impacta a subsistência
conta dessa falta de comunidades tradicionais e pessoas que depen-
dem dos rios e mares para garantir sua alimenta-
de saneamento ção – como peixes e frutos do mar. A insegurança
alimentar também é experienciada por mulheres
básico.” negras residentes de favelas, que são a maioria
Amanda Costa em entrevista para a Anistia Internacional, 2023
das chefes de família abaixo da linha da pobreza,
mais de 94% das beneficiárias do Bolsa Família e,
portanto, são desproporcionalmente afetadas pela
No Brasil, segundo dados do Instituto Brasi- insegurança alimentar e pela ausência do acesso
leiro de Geografia e Estatística51, 45,3% da popula- à alimentos frescos e saudáveis. Marilza Barbosa,
ção negra convive com a ausência de, ao menos, Isabel Cristina e Silvana Barbosa são exemplos de
um serviço de saneamento básico contra 27,9% da mulheres negras que atuam na contramão desta vio-
população branca. O aspecto da coleta de esgoto, lação e buscam assegurar, por meio da produção
segundo o Sistema Nacional de Informações sobre
Saneamento (SNIS), de 2018, indica que 38,85% 52 Trata Brasil. O saneamento e a vida da mulher brasileira. 2021.
Disponível em: https://tratabrasil.org.br/saneamento-e-a-vida-da-mulher-
dos negros não possuem acesso ao saneamento, brasileira/
enquanto os brancos são 26,5%. Já a porcentagem 53 Organização das Nações Unidas. Pacto pelos Direitos Econômicos,
Sociais e Culturais. Disponível em: https://www.oas.org/dil/
da população negra sem acesso regular à água port/1966%20Pacto%20Internacional%20sobre%20os%20Direitos%20
é uma média de 29% contra 18,6% da população Econ%C3%B3micos,%20Sociais%20e%20Culturais.pdf
branca. Ainda, no país, 41 milhões de mulheres não 54 Organização das Nações Unidas. Comentário Geral nº 12 do
Comitê de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais (DESC) The Right to
têm acesso adequado à infraestrutura sanitária e ao Adequate Food (Art. 11 of the Covenant), 1999. Disponível em: https://
www.refworld.org/docid/4538838c11.html
55 Organização das Nações Unidas. Pacto pelos Direitos Econômicos,
51 Notícia Preta. 2021. Negros sofrem mais com a falta de saneamento Sociais e Culturais. Disponível em: https://www.oas.org/dil/
básico. Disponível em: https://noticiapreta.com.br/pesquisa-negros- port/1966%20Pacto%20Internacional%20sobre%20os%20Direitos%20
piores-saneamento-basico/ Econ%C3%B3micos,%20Sociais%20e%20Culturais.pdf

30
agroecológica, da preservação de floresta e baba-
çuais para a produção de sistemas agroflorestais, o
direito de famílias à alimentação saudável com so-
berania e segurança alimentar.
A maioria das mulheres da Rede são mães,
profissionais e líderes do território, além de serem
atingidas pelas mudanças climáticas e terem seus
direitos violados e questionados (sobretudo por con-
“Quando eu cheguei na comunidade
ta do racismo e do sexismo). A sobrecarga mental não tinha cobertura e equipe de
de lideranças comunitárias, especialmente mulheres
negras que já acumulam distintos papéis de cuida- saúde. O posto não tinha internet,
do, é um fenômeno invisível56 e pouco considerado:
elas sofrem com depressão, ansiedade e têm medo só tinha alguns atendimentos
de quando será a próxima tragédia. Elas assumem
ainda a responsabilidade pelo acesso à saúde de seletivos. Me aproximei das pessoas
todos os membros da sua família, em especial os
mais vulneráveis, como idosos e crianças.
para atendimento eletivo de saúde
Na Rede Vozes Negras pelo Clima, Camila pensando na integralidade do ser,
Aragão e Luciana Souza são profissionais de saú-
de do Sistema Único e trabalham identificando, respeitando as diversidades. Tenho 3
em suas comunidades, demandas de saúde físi-
ca, mental, além de riscos e acompanhamento de anos no território. Quando cheguei o
casos crônicos. São elas que “chegam primeiro”
no atendimento quando os eventos climáticos ex- índice de sífilis era muito alto, o índice
tremos ocorrem. Também são elas que lutam pela
efetivação das políticas nacionais de saúde integral
de hipertensos e diabéticos não
da população negra, das populações do campo, das
florestas e das águas e de atenção à saúde integral
identificados e/ou descompensados
da mulher. era muito alto; gravidez na
adolescência era altíssimo; pessoas
sem benefícios previdenciários,
pessoas com deficiência; pessoas
sem acesso a terapias integrativas.
Muita gente com depressão, muita
gente com casos de tentativa de
suicídios – tivemos alguns casos.
As pessoas usavam uma estrutura
de caixa d’água abandonado para
cometer suicídio. Eu estou lutando
para tirar aquilo. As pessoas também
se jogam dos prédios.”
Camila Aragão em entrevista para Anistia Internacional, 2023

56 El País, Carga Mental: a tarefa invisível das mulheres que ninguém,


2019 Disponível em: https://brasil.elpais.com/brasil/2019/03/01/
politica/1551460732_315309.html

31
“A nossa demanda é uma enxurrada e deixou um filho de 2 anos que mal
conheceu o pai”. Esta também é a vivência de Lídia
por água potável, é Lins, residente do Ibura, periferia de Recife, localida-
de atingida pelas fortes chuvas, em 2022, que leva-
pelo rio minimamente ram à morte de seis pessoas, todas negras59. Nesse
mesmo período a Defesa Civil registrou pelo menos
reparado, queremos nossa 50 mortes na capital de Pernambuco, entre elas
segurança hídrica de volta, crianças, adolescentes, adultos e idosos que perde-
ram a vida devido a deslizamentos de barreiras e so-
queremos nossa saúde terramentos60 O nome do Ibura, originário da língua
tupi, significa “água que arrebenta”, possivelmente
de volta. Estamos em em decorrência de fontes de água existentes ali.
Milhares de pessoas atingidas que sobrevive-
uma situação miserável ram ficaram não só desabrigadas como também não
tinham acesso a recursos básicos, como a água po-
de vulnerabilidade social, tável, tendo o coletivo de Lídia Lins, Ibura + Cultura,
os jovens estão entrando articulado a sua distribuição à época. Milhares de
pessoas atingidas que sobreviveram ficaram não só
muito cedo nas drogas desabrigadas como também não tinham acesso a
recursos básicos, como a água potável, tendo o co-
(...) os nossos índices letivo de Lídia Lins, Ibura + Cultura, articulado a sua
distribuição à época.
de meninas grávidas na Os parâmetros internacionais de direitos hu-
manos definem que toda a pessoa tem direito à livre
adolescência voltaram a associação e liberdade de expressão e que devem
ser garantidos e elas devem ser protegidas aos
crescer, em patamares de exercê-los. Na Declaração sobre os Defensores de
20 anos atrás.” Direitos Humanos, que em 2023 completa 25 anos,
ficou estabelecido que os Estados são responsáveis
Luciana Souza, em entrevista para a Anistia Internacional, 2023 por “adotar todas as medidas adequadas para pro-
teger todas as pessoas, individualmente e em as-
DIREITO À VIDA, sociação com outras, contra qualquer forma de vio-
lência, ameaças, retaliação, discriminação negativa
INTEGRIDADE FÍSICA de fato ou de direito, coação ou qualquer outra ação
E SEGURANÇA arbitrária resultante do fato de a pessoa em questão

T
ter exercido legitimamente os direitos.”61.
odas as pessoas devem ter o di- Em especial, no que tange as responsabilida-
reito à vida, à integridade física e des dos Estados em prevenir e proteger as mulheres
segurança, assegurados pelos Es- contra a violência, a Convenção de Belém estabele-
tados, conforme descrito na Carta ce no Artigo 3 que toda a mulher tem direito a uma
das Nações Unidas de 1945 57. O vida livre de violência62. O Acordo de Escazú63, do
Artigo 6 do Pacto Internacional de qual o Brasil é signatário, mas ainda não ratificou
Direitos Civis e Políticos define que o direito à vida a participação, define, no Artigo 4, que é preciso
é inerente à pessoa humana e ninguém poderá ser garantir um ambiente propício para o trabalho das
privado arbitrariamente dela58. Como já menciona-
do anteriormente, no Brasil, nos últimos 10 anos, 59 Folha de Pernambuco. Maior tragédia do século em Pernambuco,
2022. Disponível em: https://www.folhape.com.br/noticias/maior-tragedia-
1967 pessoas morreram em decorrência de even- do-seculo-em-pernambuco-mortes-pelas-chuvas-de-2022/228963/
tos climáticos extremos. 60 G1. Mortos por chuvas em Pernambuco, 2022. Disponível em: https://
Para Marilza Barbosa, em excesso, a água tor- g1.globo.com/pe/pernambuco/noticia/2022/05/28/veja-quem-sao-os-
mortos-em-deslizamentos-de-barreiras-causados-pelas-chuvas-no-
na-se motivo de apreensão e medo, uma vez que grande-recife.ghtml
o território tende a alagar e gerar riscos de desli- 61 Resolução 53/144 da Assembleia Geral das Nações Unidas, de 9 de
zamentos, desabamentos, e consequentemente, à Dezembro de 1998. Declaração sobre o Direito e a Responsabilidade
dos Indivíduos, Grupos ou Órgãos da Sociedade de Promover e Proteger
vida dos moradores daquela comunidade. Ela relem- os Direitos Humanos e Liberdades Fundamentais Universalmente
bra de um vizinho que “foi eletrocutado no dia de Reconhecidos. Disponível em: https://www.ohchr.org/sites/default/files/
Documents/Issues/Defenders/Declaration/declarationPortuguese.pdf
62 Brasil. Convenção de Belém. Decreto 1973, 1996. Disponível em:
57 Organização das Nações Unidas. Carta, 1945. Disponível https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto/1996/d1973.htm
em: https://www.oas.org/dil/port/1945%20Carta%20das%20 63 Comissão Econômica para América Latina e Caribe (CEPAL).
Na%C3%A7%C3%B5es%20Unidas.pdf Acordo Regional sobre Acesso à Informação, Participação Pública
58 Brasil. Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos, Decreto e Acesso à Justiça em Assuntos Ambientais na América Latina e no
0592, 1990. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/ Caribe, 2018. Disponível em: https://repositorio.cepal.org/server/api/core/
decreto/1990-1994/d0592.htm bitstreams/29b2d738-4090-45c5-a289-428b465ab60c/content

32
pessoas, associações, organizações e grupos que sinatos de defensores de direitos humanos68. Em
promovam a proteção do meio ambiente, proporcio- média, a cada mês, três defensores e defensoras
nando-lhes reconhecimento e proteção. são assassinados no país69. Em agosto de 2023, a
O Brasil tem falhado na implementação de Ialorixá Mãe Bernadete foi brutalmente assassinada
medidas para proteção de defensores de direitos hu- na Bahia após ter denunciado ameaças ao Progra-
manos e ambientalistas, não havendo uma política ma de Proteção que a acompanhava desde 201770.
nacional coordenada que atenda a todo o território Ela foi a 11ª quilombola assassinada na Bahia nos
nacional. Desde 2007, está pendente a elaboração últimos 10 anos, segundo a Coordenação Nacional
do Plano Nacional de Proteção aos Defensores de de Articulação de Quilombos (CONAQ)71.
Direitos Humanos, iniciativa que estabeleceria me- Exposição a riscos diretos e indiretos, difama-
tas, objetivos e diretrizes para efetivação da política. ções, perseguições e ameaças são relatadas pelas
Na Ação Civil Públic a no. 5005594- mulheres enquanto consequência das suas lutas
05.2017.4.04.7100/TRF, o Tribunal Regional Fede- diárias pela garantia dos direitos à terra, território
ral da 4ª Região determinou ao Estado a elaboração e aos direitos humanos. Somente em 2022, foram
de um plano nacional de proteção a defensoras e 553 ocorrências de violência por conflitos no campo,
defensores de direitos humanos. O atual Programa sendo 47 casos de assassinato, que representa um
de Proteção aos Defensores de Direitos Humanos, aumento de 31% do cenário registrado em 202172.
Comunicadores e Ambientalistas (PPDDH), instituí- Com isso, o Brasil não tem cumprido de forma
do pelo Decreto 6.044 de 2007, não está amparado efetiva com os compromissos firmados nacional e in-
por uma lei que garanta a institucionalização da po- ternacionalmente para proteção dos defensores de di-
lítica64. O Programa, em sua versão atual, não de- reitos humanos e povos e comunidades tradicionais.
fine enfoques diferenciados de gênero, raça, etnia,
diversidade sexual e território para proteção de de-
fensores e defensoras65. Outro ponto de atenção diz
respeito ao fato de que apenas nove estados da fe-
deração possuem programas estaduais e, no caso
dos outros 16 estados as pessoas defensoras são
acompanhadas por uma Equipe Técnica do Gover-
no Federal, cuja distância fragiliza as medidas de
proteção66. O Programa acompanha, atualmente,
segundo dados disponibilizados pelo Ministério dos
Direitos Humanos e Cidadania por meio da Lei de
Acesso à Informação, 940 casos ativos, sendo que
671 são considerados como efetivamente incluídos
e 269 estão ainda sob análise. Entre as pessoas
acompanhadas, 30% são indígenas, 44% negros e
9% brancas. Além disso, 61% são homens e 39%
mulheres.
É importante destacar que todas as lideranças
da Rede Vozes Negras pelo Clima se consideram
defensoras de direitos humanos e ativistas climáti-
cas, e se sentem em risco, sobretudo considerando
que o Brasil é o quarto país que mais mata defen-
sores do meio ambiente do mundo, segundo a Glo-
bal Witness67. A Relatora Especial da Organização
das Nações Unidas sobre a situação dos defenso-
res dos direitos humanos indicou que entre 2015 e
2019 o Brasil ocupou o segundo lugar em assas- 68 Organização das Nações Unidas. A/HRC/46/35. Final warning: death
threats and killings of human rights defenders. Disponível em: https://
www.ohchr.org/EN/Issues/SRHRDefenders/Pages/CFI-killings-human-
64 Brasil. Decreto 10815 de 27 de setembro de 2021. Disponível rights-defenders.aspx
em: https://www.in.gov.br/en/web/dou/-/decreto-n-10.815-de-27-de- 69 Terra de Direitos e Justiça Global. Na linha de frente, 2023. Disponível
setembro-de-2021-348154009 em: https://terradedireitos.org.br/nalinhadefrente/
65 Terra de direitos e Justiça Global. Começo do fim? O pior momento 70 Instituto Socioambiental, Mother Bernadette Pacific is murdered and
do Programa de Defensores de Direitos Humanos, 2021. Disponível the quilombola movement demands justice, August 18, 2023, https://
em: https://terradedireitos.org.br/uploads/arquivos/Relatorio---Comeco- www.socioambiental.org/en/socio-environmental-news/mother-bernadete-
do-Fim.pdf pacifico-is-murdered-and-the-quilombola-movement-charges-for
66 Atualmente, o PPDDH é executado por meio de Convênio nos 71 G1. Mãe Bernadete é a 11a quilombola na Bahia nos últimos 10
estados de Minas Gerais, Bahia, Mato Grosso, Pará, Pernambuco, anos. August 18, 2023. Available at: https://g1.globo.com/ba/bahia/
Paraíba, Rio de Janeiro, Ceará e Maranhão. noticia/2023/08/18/mae-bernadete-e-a-11a-quilombola-morta-na-ba-nos-
67 Global Witnesss. Enviromental Activists, 2021. Disponível em: https:// ultimos-10-anos-aponta-conaq-relembre-casos.ghtml
www.globalwitness.org/en/press-releases/global-witness-reports-227- 72 Comissão Pastoral da Terra. Conflitos no Campo 2022, 2023.
land-and-environmental-activists-murdered-single-year-worst-figure- Disponível em: https://www.cptnacional.org.br/publicacoes-2/
record/ destaque/6354-conflitos-no-campo-brasil-2022

33
“E hoje temos um “A gente tem
cenário complicado pensado muito
dos riscos de quem faz depois da morte
a defesa de direitos de Mãe Bernadete,
humanos. Temos que deixou todo
tomado os cuidados mundo apavorado,
para garantir de fato na questão da
a segurança de todas segurança digital.
nós. Precisamos ir E temos pensado
amadurecendo isso numa ideia
na rede. A defesa de segurança
que nós fazemos, o integral e um
discurso que usamos, grande desafio
eles tocam nas é a presença
feridas, incomodam. e relação do
Eu percebo as caras tráfico com os
dizendo “chegou ela”.” empreendimentos
Simone Pereira em entrevista
para Anistia Internacional, 2023
e os fazendeiros.
Isso tira qualquer
coragem do povo.”
Maria José Pacheco em entrevista
para Anistia Internacional, 2023

“Esses riscos e ataques estão ligados a discriminação e


marginalização. Insulto as nossas origens, saberes, contextos e ao
nosso espaço. Os espaços e políticas governamentais não tem nos
protegidos. Temos poucas condições de segurança individual, de
treinamento, mas que não garante muito a proteção. A gente tem
medo. Nina Simone diz que liberdade é não ter medo. E margarida
Alves dizia “eu prefiro morrer na luta a morrer de fome’”
Camila Aragão em entrevista para Anistia Internacional, 2023

34
DIREITO À MORADIA
ADEQUADA

O
direito à moradia adequada é re-
conhecido no Artigo 11 do Pacto
“Eu nasci, cresci e hoje
de Direitos Econômicos, Sociais e vivo na Brasilândia, uma
Culturais e definido pelo Comentá-
rio Geral nº 4 do Comitê de Direitos das maiores periferias
Econômicos, Sociais e Culturais a
partir da ideia de que toda pessoa deve ter acesso a da cidade de São Paulo.
um nível de vida sustentável para si e sua família, o
que inclui ter um espaço seguro, calmo e digno para Brasilândia. Ela se formou
habitar73. Conforme expresso pelo Comitê de Erradi-
cação da Desigualdade Racial da Organização das
a partir da construção
Nações Unidas74, a população negra tem maior pro- de algumas avenidas do
babilidade de não ter acesso à moradia adequada
e de viver em bairros segregados, desfavorecidos, centro, onde pessoas
perigosos e mais suscetíveis à poluição e devasta-
ção ambiental75. que moravam em torno
Segundo os parâmetros internacionais de
direitos humanos, o deslocamento forçado76 repre- e em alguns cortiços
senta um dos impactos mais graves causados pela
chegada de projetos de infraestrutura e eventos ex-
foram expulsas, essas
tremos77, segundo a Organização das Nações Uni-
das78. A população negra, os povos indígenas e as
pessoas foram migrando
comunidades tradicionais são mais afetadas, à me- e assim chegaram os
dida que, ao se deslocarem, perdem seus meios de
subsistência, cruciais para garantia de seus modos primeiros moradores do
de vida, cultura e identidade.
Na Rede Vozes Negras pelo Clima, Lídia Lins, meu território. Tem mais
Amanda Costa, Camila Aragão e Marilza Barbosa
são residentes de bairros periféricos e favelas, pai- ou menos cerca de 300
sagens marcadas pela violação do direito à mora-
dia adequada, o que inclui a oferta de saneamento
mil habitantes, quase
básico, a segurança das edificações e os meios de uma cidade, é muito
acesso à cultura e outros serviços públicos essen-
ciais como saúde e educação. grande. (...) no Jardim
Paraná a questão do
saneamento é crítica,
não tem saneamento
73 Comitê de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais da ONU.
nos bairros, que é onde o
Perifa Sustentável atua
Comentário Geral nº 4 – Direito à moradia, 1991. Disponível em: https://
www.refworld.org/docid/47a7079a1.html
74 Organização das Nações Unidas. Promoção e proteção dos direitos
humanos e das liberdades fundamentais das pessoas africanas e
afrodescendentes contra o uso excessivo da força e outras violações dos
com mais força. Então,
direitos humanos por agentes policiais, 2021. Disponível em: https://www.
ohchr.org/sites/default/files/2022-02/A_HRC_47_53_E_PORT.pdf nas casas você vê a água
75 Organização das Nações Unidas. A/HRC/27/68 /Add.1; A/HRC/42/59/
Add.2; A/HRC/45/44/Add.1–2; https://spcommreports.ohchr.org/
TMResultsBase/DownLoadPublicCommunicationFile?gId=25814. saindo direto e indo para
os córregos.”
76 UNESCO. Direito à moradia adequada, 2015. Disponível em: https://
unesdoc.unesco.org/ark:/48223/pf0000225430
77 Comitê de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais da ONU.
Comentário Geral nº 11 – Deslocamentos forçados. Disponível em: Amanda Costa em entrevista
https://www.refworld.org/docid/47a7079a1.html para Anistia Internacional, 2023
78 O termo é definido pelo CESCR como “remoção permanente ou
temporária contra a vontade de indivíduos, famílias e comunidades
das casas e/ou terras que ocupam, sem a provisão e acesso a formas
apropriadas de proteção legal ou outra”.

35
Esses territórios estão sob risco de desliza- DIREITO À TERRA,
mento, desabamento e alagamentos por contas TERRITÓRIO E
das chuvas, o que gera um risco à vida da popula-
ção, mas também ao pleno gozo do direito à mora- AUTODETERMINAÇÃO

O
dia, uma vez que, como ocorre em Recife - território
de Lídia - e em Duque de Caxias - território de Ma- s parâmetros internacionais de direi-
rilza -, centenas de famílias atingidas precisam se tos humanos reconhecem o direito à
deslocar de suas casas, permanecendo desabriga- autodeterminação, ao acesso à ter-
das e desalojadas após a ocorrências de eventos ra, ao acesso aos recursos naturais
climáticos extremos. dos territórios onde vivem e ao res-
peito e preservação das tradições. O
princípio da autodeterminação dos povos assegura
“Eu cresci numa casa com a independência, a liberdade, a religião e o direito de
organização própria dos povos79.
risco de deslizamento Para as mulheres da Rede Vozes Negras pelo
Clima, assim como para as comunidades tradicionais
e que foi atualmente que elas assessoram, território é central no desenvol-
vimento das relações sociais e pessoais, sendo base
condenada. Eu não moro da sua identidade e construção de cidadania.
mais nela, mas minha irmã Na Rede, um exemplo ilustrativo é o de Isabel
Cristina, uma mulher negra quilombola, residente do
mais velha ainda mora. Quilombo dos Caetanos no Ceará80, membra da As-
sociação dos Quilombos dos Caetanos – Caucaia e
Está nesse processo de da CONAQ, além de atingida pela construção de par-
ques eólicos na região. Sua principal reivindicação é
sair porque foi condenada pelo reconhecimento e titulação das terras comunitá-
rias, que representam não só um meio de subsistên-
e tem uma ordem de cia como também estão associadas à sua cultura e
despejo. Sempre fomos ancestralidade. Sandra Braga, mulher negra quilom-
bola de Goiás, também tem lutado pela garantia do
atingidos.” direito à terra dos quilombos de sua região.

Lídia Lins em entrevista


para Anistia Internacional, 2023

“Se alaga aqui, você passa


com água no joelho, lá
embaixo, na praça, a água
tampa até os banquinhos.
As casas vão subindo, e ali
sempre alagou, desde que
eu sou pequena. Por que
se autorizou fazer casas
ali?”
Marilza Barbosa em entrevista
para Anistia Internacional, 2023

79 É um princípio com origem no costume internacional, tendo sido


consagrado em vários tratados. A título de exemplo, no n.º 2 do artigo
1.º, artigo 55.º e artigo 73.º da Carta das Nações Unidas, de 26 de junho
de 1945.
80 Comissão Pró-Índio. Quilombo dos Caetanos. Disponível em: https://
cpisp.org.br/conceicao-dos-caetanos/#tab-07369e91b654f00fed6

36
A nossa comunidade é mais do que centenária, somos
descendentes do quilombo Itururu, do quilombo Água Preta e
Caetanos. A partir de uma coincidência, a gente soube do 1º
território quilombola do estado do Ceará e tivemos um primeiro
intercâmbio entre territórios e eu fui adentrando a luta. As
minhas tias iniciaram a luta, viram nosso povo, negros e negras
e resolveram ir atrás da nossa história/origem no começo
dos anos 2000. (...) Nós temos os nossos quintais produtivos,
desenvolvemos muito a agricultura familiar, temos o cultivo da
banana, do inhame, outros produtos. Valorizamos os nossos
costumes das comidas tradicionais. (...) Houve seca, fome,
não tivemos a sobrevivência garantida, mas hoje somos uma
comunidade centenária com 150 famílias no território. Nosso
maior objetivo é a regularização fundiária e titulação do território,
isso é a base para exigirmos os demais direitos sociais. Na
maioria dos territórios, são as mulheres que lideram.
Isabel Cristina, em entrevista para Anistia Internacional, 2023

No Brasil, existem mais de 6 mil territórios que DIREITO AO MEIO


AMBIENTE SAUDÁVEL

F
se autodeclaram quilombolas e, segundo o Censo
de 2022, mais de 1.2 milhão de pessoas reivindi-
cam essa identidade81. Apenas 8% dos territórios oi só em 2022 que as Nações Unidas
quilombolas foram delimitados82, 54% possuem declararam que um meio ambiente lim-
registros administrativos e 38% são reconhecidos po, saudável e sustentável é um direito
apenas como agrupamentos quilombolas83. Assim, humano, na Resolução 76-300 aprova-
a realidade de Isabel se conecta a um espectro mais da na Assembleia Geral. No entanto,
amplo de luta pela garantia do direito à terra por desde a Constituição de 1988, o Brasil
meio da titulação fundiária. reconhece o direito ao meio ambiente ecologica-
Diariamente, Maria José Pacheco e Simone mente equilibrado84. A contaminação de rios, cór-
Loureiro apoiam tecnicamente comunidades tradi- regos, mares e afluentes de água, por esgoto, tal
cionais, ribeirinhas, de pescadores tradicionais e de como por metais pesados despejados por ativida-
remanescentes de quilombos na luta por reconhe- des industriais, além de lixo erroneamente descar-
cimento e respeito frente aos empreendimentos de tado, é comum em todos os casos da Rede Vozes
exploração de petróleo, portos e outras indústrias Negras pelo Clima. Elas são atingidas pelo racismo
químicas que invadem esses territórios para explo- ambiental ao estarem expostas a riscos ambien-
ração dos recursos naturais. Essas populações en- tais, químicos e que comprometem diretamente
frentam verdadeiras guerras químicas responsáveis seu direito à saúde, vida e integridade física, con-
pelo aumento dos índices de câncer, assassinatos, forme já pontuado neste documento. Além disso,
despejos e redução da biodiversidade. a falta de coleta de resíduos sólidos gera não só o
risco de contaminação dos rios como do solo, além
81 O Globo. Brasil tem mais de 1 milhão de quilombolas, 2022 https://
oglobo.globo.com/brasil/noticia/2023/07/27/ibge-brasil-tem-mais-de-1- de causar outros danos à saúde das comunidades
milhao-de-quilombolas-no-brasil.ghtml que vivem no entorno. No Brasil, segundo dados
82 Observatório de Terras Quilombolas, 2023. Disponível em: https:// do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística,
cpisp.org.br/direitosquilombolas/observatorio-terras-quilombolas/
83 Politize. Processo de regularização fundiária quilombola. Disponível
em: https://www.politize.com.br/automatico-titulacao-de-terras- 84 Brasil. Constituição Federal de 1988. Disponível em: https://portal.stf.
quilombolas-no-brasil/ jus.br/constituicao-supremo/artigo.asp?abrirBase=CF&abrirArtigo=225

37
em 2019, 12.5% das pessoas negras residiam em
domicílios sem coleta de lixo, uma taxa duas vezes
maior se comparada à população branca (6%)85.
O desmatamento de biomas como a Mata
Atlântica (que atualmente só possui 10% de sua co-
bertura original) também é uma das causas e con- “Em outros territórios,
sequências, simultaneamente, para o aumento da
temperatura local dos municípios, principalmente, vemos vários conflitos por
na faixa urbana, em que as lideranças residem.
A quebradeira de coco babaçu, e, portanto, conta de recursos, rios,
pertencente a uma comunidade tradicional extrati-
vista, Silvana Barbosa, tem sofrido com o desma-
lagos etc. A gente busca
tamento e derrubada das palmeiras de babaçu. Ela
menciona que:
nos carregar de parceiros
e parceiras para construir
uma luta coletiva para
“Nós nos reconhecemos
defender o clima, o meio
como defensoras do
ambiente, a mãe terra e
Meio Ambiente e do
das nossas vidas. Nós
Clima, porque somos
temos os nossos quintais
extrativistas do Coco
produtivos, desenvolvemos
Babaçu e nossa prática
muito a agricultura
protege os Babaçuais,
familiar, temos o cultivo da
as Palmeiras de Babaçu.
banana, do inhame, outros
Nós estamos lutando pela
produtos. Valorizamos
sustentabilidade, a defesa
os nossos costumes das
do meio ambiente, estamos
comidas tradicionais.
tentando preservar o
Então são elementos que
máximo possível o meio
vem avançando dentro
ambiente, preservando
do território e a gente não
a natureza, fazendo
deixa parar. Temos as
reflorestamento nas
feiras agroecológicas e
margens do rio e cuidando
artesanais. A agricultura
dos palmeirais e da prática
familiar é mais um elemento
ancestral das Quebradeiras
para que a gente lute.”
de Coco Babaçu” Isabel Cristina em entrevista
para Anistia Internacional, 2023
Silvana Barbosa em entrevista
para Anistia Internacional, 2023

85 Notícia Preta. 2021. Negros sofrem mais com a falta de saneamento


básico. Disponível em: https://noticiapreta.com.br/pesquisa-negros-
piores-saneamento-basico/

38
RECOMENDAÇÕES

39
G
arantir a participação de mulheres negras em espaços como a Conferência das Partes é funda-
mental no sentido de fazer ecoar suas experiências e tecnologias na defesa do meio ambiente
saudável e da justiça socioambiental frente às mudanças climáticas. Essas mulheres exercem
lideranças em suas comunidades, são responsáveis pelo compartilhamento de conhecimentos,
já produzem alternativas sustentáveis, descarbonizadas e de base comunitária e devem ser
incorporadas na elaboração, implementação e monitoramento das soluções para os problemas
que as atingem diretamente, ou seja, na criação de políticas climáticas com igualdade de gênero e raça.
Para elaborar políticas climáticas mais sensíveis às necessidades das mulheres negras e garantir uma
efetiva justiça climática baseada na justiça racial e de gênero, a Rede Vozes Negras pelo Clima e a Anistia In-
ternacional destacam que o Estado brasileiro deve se comprometer com os seguintes pontos:

1o 5o 10o
Garantia de que todos os dados, Garantia de mecanismos de parti- Criação e reformulação de planos
informações, programas e políticas cipação, controle e monitoramento de contingência já existentes com
referentes ao meio ambiente e riscos social do novo Plano Nacional de participação social e adoção de uma
e impactos do clima na população Adaptação Climática, com a devida perspectiva que leve em conta as
apresentem recortes de raça, gênero, paridade racial, de gênero e de terri- desigualdades raciais, de gênero e de
território, deficiência e outros fatores tório. acessibilidade.
s o c i o e c o n ô m i c o s . A l é m d i s s o,
o acesso à informação deve ser
acessível e sem discriminação. 6o 11o
Implementação de políticas voltadas Implementação de programas e
para a garantia do direito à alimenta- políticas que visem a efetivação de
2o ção adequada, a partir de produção cidades carbono neutro até 2050 com
Formulação e implementação de agroecológica e extrativismo de base a devida atualização da Contribuição
um Plano Nacional de Combate ao liderada por mulheres. Nacionalmente Determinada (NDC)
Racismo Ambiental com recorte de do Brasil para uma meta nacional
raça e gênero e ampla participação mais ambiciosa e descentralização em
da sociedade civil, em especial das 7o metas municipais. Tal meta deve estar
comunidades atingidas, até 2025. Reformulação do Programa Nacional alinhada ao imperativo de manter o
de Proteção aos Defensoras/es de aquecimento global abaixo de 1,5 grau
Direitos Humanos e climáticos, com acima da temperatura pré-industrial.
3o recorte de raça e gênero e garantia além disso, é preciso garantir a
Titulação imediata de territórios dos de ampla participação social. participação, controle e monitoramento
povos e comunidades tradicionais social do processo com paridade de
como garantia de política de reparação gênero, raça e território.
integral de danos e como uma forma 8o
de mitigação de impactos contra as Ratificação e implementação imediata
mudanças climáticas. do Acordo de Escazú pelo Brasil. 12o
Garantia de financiamento e
fortalecimento do Sistema Único
4o 9o de Saúde (SUS) e das políticas
Garantia do direito de participação Criação de um modelo de acesso direto específicas de saúde da população
social na elaboração de políticas e e transparente ao Fundo de Perdas e negra, dos povos do campo, da
programas voltadas à transformação da Danos, com priorização a mulheres floresta e das águas considerando
matriz energética (conselhos, câmaras negras e comunidades vulneráveis os impactos da crise climática na
técnicas etc.) e de desenvolvimento de e atingidas, além de garantia de saúde mental e física da população,
projetos de mega infraestrutura. Além participação e controle social na tomada e p r i o r iza n d o a c o n str u ç ã o d e
disso, é preciso garantir a adoção dos de decisão e monitoramento dos protocolos de saúde para situações
protocolos de consulta livre, prévia, dispêndios do Fundo. de desastres ambientais.
informada e vinculante (Convenção
169 da OIT) com consentimento das
comunidades para implementação
das medidas do Plano de Transição
Ecológica e do novo Programa de
Aceleração do Crescimento (PAC).

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