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RESUMO
Cíntia Valente Gonçalves1
Lúcia Rota Borges2 Objetivos: Avaliar o estado nutricional, a adequação da terapia nutricional enteral, os fatores
Silvana Paiva Orlandi2 que interferem na sua administração e a sobrevida de pacientes críticos. Método: Estudo obser-
Renata Torres Abib Bertacco2 vacional prospectivo, com pacientes internados na Unidade de Terapia Intensiva de um Hospital
Universitário. Foram incluídos pacientes com idade superior a 18 anos que receberam nutrição
enteral por período superior a 72 horas.O estado nutricional foi avaliado pela Avaliação Subjetiva
Global e a terapia nutricional enteral foi considerada adequada quando superior a 70% (valor
prescrito/administrado quanto a calorias e proteínas). A sobrevida após seis meses da alta foi
analisada pelo teste de Mann Whitney. Resultados: Foram avaliados 32 pacientes, com idade
média de 56,4±17,4 anos, sendo 59,4% homens. Na admissão, 75% dos pacientes apresen-
tavam algum grau de desnutrição. A adequação foi de 72,3% para valor calórico e 70,2% para
proteínas. A principal causa de interrupção da nutrição enteral foi pausa para procedimentos
e exames (81,3%). Pacientes bem nutridos no momento da internação apresentaram sobrevida
significativamente maior que pacientes com algum grau de desnutrição após seis meses (p=0,03).
Conclusão: A maior parte dos pacientes apresentou desnutrição na admissão e a meta calórica-
proteica proposta foi alcançada pela maioria. A sobrevida em seis meses dos pacientes bem
Unitermos: nutridos foi significativamente maior do que os demais.
Nutrição Enteral. Necessidades Nutricionais. Unida-
des de Terapia Intensiva. Estado Nutricional. Análi-
ABSTRACT
sede Sobrevida.
Objectives: To evaluate the nutritional status, the adequacy of enteral nutritional therapy,
Keywords: the factors that influence enteral nutrition management and the survival analysis of critically
Enteral Nutrition. Nutritional Requirements. Intensive ill patients. Methods: A prospective, observational study conducted with patients admitted to
Care Units. Nutritional Status. Survival Analysis. the intensive care unit of a university hospital. Patients above 18 years under exclusive enteral
nutrition therapy for at least 72 hours were included. Nutritional status was evaluated by the
Endereço para correspondência: Subjective Global Assessment and enteral nutritional therapy was considered adequate up to
Cíntia Valente Gonçalves 70% of the prescribed (energy and protein). Survival after six months of discharge was analyzed
Rua Visconde de Paranaguá, 102 – Rio Grande, RS, by Mann Whitney test. Results: 32 patients were included; the mean of age was 56.4±17.4
Brasil – CEP: 96200-190. years and 59.4% were man.On admission, 75% of patients had some degree of malnutrition.
E-mail: [email protected]
The adequacy was 72.3% for calories and 70.2% for proteins. The main cause of interruption
Submissão: of enteral nutrition was breaks procedures and tests (81.3%). Well-nourished patients at admis-
17 de setembro de 2017 sion had a significantly longer survival than patients with some degree of malnutrition after six
months (p=0.03). Conclusion: Most of the patients presented malnutrition at admission and
Aceito para publicação: the proposed caloric-protein target was reached by the majority. The survival rate at six months
14 de novembro de 2017 of well-nourished patients was higher than others.
1. Nutricionista do Serviço de Nutrição e Dietética do Hospital Universitário Dr. Miguel Riet Correa Júnior (FURG), Rio Grande; RS, Brasil; Mestre
em Nutrição e Alimentos, Programa de Pós-graduação em Nutrição e Alimentos da Universidade Federal de Pelotas (UFPel), Pelotas, RS, Brasil.
2. Doutorado – Universidade Federal de Pelotas (UFPel). Professora-Adjunta da Faculdade de Nutrição, UFPel, Pelotas, RS, Brasil.
Figura 1 - Sobrevida em seis meses em relação ao estado nutricional no momento da internação na UTI (a; p=0,03) adequação calórica (b; p=0,82), adequação proteica
(c; p=0,40): Hospital Universitário Dr. Miguel Riet Correa Júnior. Rio Grande - RS, 2014 (n=19).*Teste de Mann Whitney.
de 45% nos seis meses posteriores à alta da UTI. A Figura 1 comprometimento do estado nutricional no momento da
mostra a sobrevida após seis meses em relação ao estado admissão, o qual piorou ainda mais entre os pacientes
nutricional (Figura 1a), à adequação calórica (Figura 1b) e desnutridos e suspeitos de desnutrição no decorrer da
à adequação proteica (Figura 1c) dos pacientes internados internação.
na UTI. No que concerne ao início da TNE, apenas 50% dos
O estado nutricional dos pacientes no momento da pacientes iniciaram a TNE antes de completar 48 horas
internação teve impacto importante sobre a sobrevida após de jejum. A demora na instalação da TNE entre os demais
seis meses da alta hospitalar, uma vez que os pacientes bem pacientes ocorreu principalmente devido ao uso de altas
nutridos (ASG A) tiveram uma mediana de sobrevida de 180 doses de drogas vasopressoras (83,3%) e à presença de
dias, que foi significativamente maior (p=0,03) do que a dos sonda nasogástrica aberta em frasco (16,6%). Cartolano et
pacientes com algum grau de desnutrição, cuja mediana al.16 realizaram um estudo no Brasil sobre indicadores de
foi de 38 dias. A sobrevida dos pacientes que apresen- qualidade em TNE e encontraram tempo médio de início
tavam adequação calórica (mediana = 49 dias) não diferiu para nutrição enteral entre 25,3 e 28,6 horas em 2005 e
significativamente dos que não tiveram adequação calórica 2008, respectivamente, estando de acordo com o proposto
(mediana = 55 dias). Da mesma forma, a sobrevida dos pelas diretrizes internacionais em terapia intensiva17.
pacientes que apresentavam adequação proteica (mediana A TNE iniciada precocemente associa-se a menor inci-
= 34 dias) não diferiu significativamente dos que não tiveram dência de úlcera de estresse e de lesão trófica intestinal,
adequação proteica (mediana = 52 dias). Não foi observada menor produção de citocinas inflamatórias e menor morbi-
associação entre adequação calórica (p=0,82) e proteica dade infecciosa, além de uma tendência à diminuição da
(p=0,40) com a sobrevida após seis meses nesses pacientes. mortalidade 3. Entretanto, Huang et al.18, em estudo realizado
em Taiwan, que objetivou determinar a gravidade da doença
e início da nutrição enteral, não encontraram diferenças entre
DISCUSSÃO
os resultados de alimentação precoce ou tardia em pacientes
Este trabalho avaliou o estado nutricional, a adequação menos severos, porém entre os pacientes mais graves, a
da oferta energética e proteica, os fatores que influenciam alimentação precoce melhorou os níveis de albumina sérica
na administração da TNE, e a sobrevida dos pacientes após e pré-albumina, porém ocorreram mais complicações rela-
a alta da UTI do Hospital Universitário da FURG, em Rio cionadas à nutrição enteral e maior tempo de UTI.
Grande/RS, Brasil. Em relação à TNE, ocorreu diferença significativa entre
Em relação ao estado nutricional ao longo da inter- os valores energéticos e proteicos prescritos e administrados,
nação, houve diminuição do percentual de pacientes consi- porém as médias encontradas de adequação calórica e
derados bem nutridos na admissão (25%) em relação ao proteica foram consideradas adequadas perante o prescrito.
fim da internação (9,4%). Em contrapartida, o percentual Heyland et al.19,em um estudo canadense que relacionou a
de pacientes gravemente desnutridos aumentou de 12,5% TNE com a ocorrência de infecções na UTI, encontraram
para 40,6% no fim da internação. Resultados semelhantes médias de adequação energética de 48,9% e proteica de
foram encontrados em estudo na Coreia do Sul realizado 45,1% e alta prevalência de infecções e mortalidade. Do
por Kim & Choi-Kwon15, que avaliou alterações no estado mesmo modo, Franzosi et al.20, avaliando pacientes em TNE
nutricional de pacientes recebendo nutrição enteral na UTI em uma UTI no Brasil, encontraram valores de adequação
e demonstrou que, entre os avaliados, 75% apresentaram energética de 84% e proteica de 72,5%, não havendo
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Monitoramento da Terapia Nutricional Enteral em UTI
diferença entre adequação energética e proteica em relação de intolerância alimentar em 35% dos pacientes e esta foi
ao tempo de internação, tempo de ventilação mecânica e associada com pior adequação, repercutindo em maiores
mortalidade. Esses dados demonstram a grande variação índices de mortalidade.
existente entre as médias de adequação de energia e prote- A mortalidade após a alta da UTI foi substancial, prin-
ínas em estudos recentes. cipalmente nos primeiros meses posteriores, corroborando
Alguns estudos demonstram que pacientes internados com dados de estudos recentes7,8. Brinkman et al.7 conclu-
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em UTI comumente não atingem suas necessidades íram em seu estudo que a mortalidade hospitalar subestima
energéticas e proteicas5,19,21,22 e que o hipermetabolismo a verdadeira mortalidade dos pacientes de UTI, pois muitas
contribui para o déficit nutricional15. Neste estudo, a difi- mortes ocorrem nos meses seguintes e que a maioria dos
culdade no alcance dos valores energéticos e proteicos foi pacientes ainda tem risco aumentado de morte, mesmo nos
evidente, juntamente com as intercorrências relacionadas anos subsequentes.
à interrupção da TNE. Tripathy et al.9 encontraram aproximadamente 46% de
Entretanto, o alcance da totalidade do volume da mortalidade após 12 meses de alta da UTI em seu estudo
nutrição enteral prescrita é questionado por alguns autores. com pacientes idosos. Wei et al.25, em estudo que avaliou
Oliveira et al.13 sugerem que protocolos de nutrição enteral a associação da adequação nutricional e sobrevida em
com valores de adequação entre prescrito e administrado pacientes que necessitaram de ventilação mecânica prolon-
superiores a 70% parecem não interferirem na mortalidade gada, concluíram que o tempo de sobrevida é menor nos
e que, devido à grande ocorrência de interrupções da dieta pacientes com inadequação energética e que, quanto maior a
em razão de intolerâncias gastrointestinais e jejum para adequação, maior é o tempo de sobrevivência e recuperação
exames e procedimentos, a obrigatoriedade no alcance de física nos primeiros três meses, mas não em seis meses após
valores próximos a 100% do prescrito pode ser contestada. a alta da UTI.
Arabi et al.23, em estudo que examinava o efeito da hipoali- Entre as limitações do estudo, pode-se destacar que por se
mentação permissiva (entre 60% e 70% dos requerimentos tratar de um hospital de médio porte e uma UTI com apenas
calóricos) em terapia insulínica em pacientes de UTI na seis leitos, o número de pacientes avaliados e o tempo de
Arábia Saudita, concluíram que esta hipoalimentação pode sobrevida em seis meses pode não ter sido suficiente para
estar associada com menor mortalidade em comparação encontrar associações significativas entre adequação da TNE
à meta nutricional (entre 90% e 100% dos requerimentos e a sobrevida. Talvez a continuidade no acompanhamento
calóricos). dos pacientes mostrasse a ação da adequação da TNE em
As principais causas identificadas que interferiram nega- longo prazo. Além disso, a adequação energética e proteica
tivamente na oferta da TNE foram pausas para exames e foi influenciada, pois houve ausência de algumas opções que
procedimentos, piora clínica dos pacientes, intolerâncias faziam parte do protocolo de administração da TNE.
do trato gastrointestinal, erros na administração da TNE e A adequação entre a prescrição e o volume de fato admi-
problemas com a SNE. Esses fatores comprovam que, mesmo nistrado ao paciente deve ser verificada constantemente, a fim
a instituição tendo protocolos padronizados de administração de melhorar a assistência nutricional do paciente internado,
da TNE, ocorreu erros que interferiram na oferta adequada principalmente o paciente em estado crítico, o qual necessita
de calorias e proteínas. de mais atenção e controle mais rígido no cumprimento de
O estudo brasileiro realizado por Martins et al.4, que protocolos existentes. Para isso, ressalta-se a necessidade
investigou fatores que reduzem a oferta de nutrição enteral de treinamento constante da equipe de assistência, para
ao paciente também identificou como as principais causas minimizar erros e aumentar a qualidade do atendimento.
da suspensão da dieta problemas de logística operacional Em síntese, o estudo mostrou que a maioria dos pacientes
do serviço de nutrição (em 99,4% dos pacientes), estase atingiu a adequação calórica e proteica e a principal causa
gástrica (em 34% dos pacientes), perda acidental da sonda de interrupção da TNE foi pausa para exames e procedi-
(em 34% dos pacientes) e procedimentos médicos (em 25,9% mentos. A mortalidade atingiu quase a metade dos pacientes
dos pacientes). nos seis meses posteriores à alta da UTI e foi influenciada pelo
Já Ribas et al.6, também em estudo brasileiro, encon- estado nutricional no início da internação, demonstrando
traram como principais intercorrências da administração que pacientes considerados bem nutridos em sua admissão
da TNE a recusa do paciente em receber a dieta (33,6%), na UTI cursam com maior tempo de sobrevida, porém esta
problemas logísticos (19,3%) e pausas para exames e não foi relacionada com a adequação da terapia nutricional
procedimentos (18,5%). Em contrapartida, uma pesquisa enteral durante o período de internação. Mais estudos são
canadense conduzida por Gungabissoon et al.24, que estu- necessários para avaliar a adequação energética e proteica
daram 167 unidades de terapia intensiva, mostrou incidência frente aos desfechos existentes.
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Gonçalves CV et al.
Local de realização do trabalho: Faculdade de Medicina da Universidade Federal de Pelotas, Pelotas, RS, Brasil.