Junior Amorim - Missao Da Igreja Hoje

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FUNDAÇÃO EDUARDO CARLOS PEREIRA

JOSÉ AUGUSTO AMORIM CUNHA JÚNIOR

MISSÃO DA IGREJA HOJE


Uma perspectiva bíblico-reformada, integral-libertadora e ecumênica.

São Paulo
2019
JOSÉ AUGUSTO AMORIM CUNHA JÚNIOR

MISSÃO DA IGREJA HOJE


Uma perspectiva bíblico-reformada, integral-libertadora e ecumênica

Trabalho de Conclusão de Curso do


Curso Livre de Teologia-EAD apresentado
à Fundação Eduardo Carlos Pereira.

Orientador: Prof. Doutor Reinaldo Olecio


Aguiar.

São Paulo
2019
“O que o homem é Cristo quis ser, para
que o homem pudesse ser, o que Cristo
é.”
Cipriano

“O trino Deus missionário é, relaciona-se


e age em parceria mútua ao enviar a
igreja ao mundo no poder do Espirito
como instrumento da missão salvadora
de Deus de restaurar relações, vidas e a
criação despedaçada.”
Sherron George

“A postura do cristão é a estrada, não o


balcão.”
Richard Shaull

“Por ser exato o amor não cabe em si.”


Djavan
AGRADECIMENTOS

Dedico este trabalho ao Triúno Deus da Graça, Soberano Amante da Vida, Rocha
minha e Redentor meu.

À minha esposa Ademária, companhia amorosa de todas as estações da vida, e aos


nossos filhos, Pedro e Sara, que me inspiram e impulsionam no caminho da vida.

À minha mãe, Solange, e ao meu pai, Augusto, raízes que busco honrar com
gratidão e amor.

À minha avó Edy e ao meu avô Jason (in memorian), que me apresentaram, ainda
na infância, o Evangelho pela via do afeto e do cuidado.

Ao Reverendo Áureo Bispo, pastor da minha juventude, que me deu “régua e


compasso” no caminho de uma fé cristã engajada e ecumênica.

À Igreja Presbiteriana Unida de Itapagipe, comunidade de fé, comunhão e serviço,


mãe e escola no caminho de Jesus.

À Igreja Presbiteriana Unida, pelo precioso legado, acolhida e desafios, e por me


proporcionar a formação em Teologia para melhor servir ao Reino.

À Reverenda Sônia Mota, minha tutora eclesial, e ao Pastor Nelson Kilpp, que muito
me ajudaram com diálogos, livros, amizade e exemplos na caminhada rumo ao
ministério pastoral.

Ao Reverendo Cláudio Rebouças, moderador do Presbitério Salvador, por sua


amizade, pastoreio e por ter sido “boca de Deus” ao me convidar mais diretamente à
aventura de ser pastor.

Ao Reverendo Reinaldo Olécio Aguiar, meu orientador na elaboração do Trabalho


de Conclusão de Curso, por sua fraterna solicitude e partilha de conhecimentos.

À FATIP, Faculdade de Teologia de São Paulo da Igreja Presbiteriana Independente


do Brasil, e Fundação Eduardo Carlos Pereira, que proporcionaram o Curso Livre de
Teologia EAD, de imensa importância para que pudesse me preparar para o
ministério pastoral.

Às irmãs e irmãos da caminhada ecumênica, pessoas do CEBIC (Conselho


Ecumênico Baiano de Igrejas Cristãs), CESE (Coordenadoria Ecumênica de
Serviço), e também da Frente de Evangélicos pelo Estado de Direito, pelas tantas
lições de fé e vida.
SUMÁRIO

INTRODUÇÃO.............................................................................................................5

1. PERSPECTIVA BÍBLICO-REFORMADA.................................................................8
1.1. Missão em perspectiva bíblica...........................................................................8
1.2. Missão numa perspectiva reformada...............................................................18
2. PERSPECTIVA INTEGRAL-LIBERTADORA E ECUMÊNCIA...............................24

CONCLUSÃO.............................................................................................................33

BIBLIOGRAFIA...........................................................................................................35
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INTRODUÇÃO

É fundamental e urgente para a Igreja refletir sobre sua missão no mundo


contemporâneo. Reflexão que sirva de subsídio para uma melhor compreensão e
vivência missionária. Reflexão que também se alimente de experiências
missionárias. A proposta, a partir do lugar da Igreja Presbiteriana Unida do Brasil no
contexto brasileiro, é pensar a vida missionária da Igreja a partir do referencial
bíblico, reformado, integral-libertador e ecumênico. Por vezes pensa-se missão de
forma fragmentada, a partir de dicotomias como corpo x alma, o que termina por
levar, a depender de que lado do binômio se dê ênfase, a compreender a missão de
forma restrita, quando não estreita.
Daí o risco de enfatizar a diaconia ou o exercício da voz profética e
negligenciar a evangelização, a organização de novas comunidades de fé ou mesmo
a dimensão mística. Ou, inversamente, até mesmo em resposta ao anseio de
crescimento da Igreja em termos quantitativos, por vezes defende-se um maior
esforço evangelizador ou no campo do discipulado e formação de novas Igrejas ou
Congregações, contudo é comum que a defesa da ênfase destes aspectos da vida
da Igreja associe-se a uma desconsideração da centralidade da diaconia e da
responsabilidade social da Igreja e de seu papel profético. “Um fundamento
inadequado para a missão e motivos e metas missionários ambíguos estão fadados
a acarretar uma prática missionária insatisfatória” (Bosch, 2014, p. 22).
Há também, no contexto brasileiro, o viés do mercado religioso que molda
em amplos segmentos protestantes/evangélicos uma noção de missão numa
perspectiva competitiva, que se relaciona com o fundamentalismo e com a dinâmica
e valores da sociedade de consumo/capitalista. A este modelo missionário vinculam-
se, inclusive, concepções e práticas de intolerância religiosa e de mercantilização da
fé. Esta perspectiva relaciona-se com a herança colonial do Brasil (racista, patriarcal,
excludente) e mesmo com o protestantismo de missão que adotava um viés
proselitista e de identificação do cristianismo com a cultura dos países de origem
dos missionários.
Tal valoração das culturas do hemisfério norte como superiores leva a uma
postura de imposição (ou promoção) de expressões culturais européias ou norte-
americanas e desvalorização (às vezes demonização) de elementos culturais
brasileiros ligados às matrizes indígenas, afro-brasileiras e da cultura popular.
7

Relaciona-se a esta vertente a compreensão de que missão se faz saindo de onde


se vive para outro lugar (é comum a ideia de ir para uma tribo indígena ou outro
país, preferencialmente na África ou Ásia, é comum também que Igrejas ajudem
financeiramente missionários em outros países, considerando que esta é a forma
por excelência de ajudar na missão).
Outro aspecto comum em abordagens sobre missão é seu caráter
denominacional, sectário ou mesmo anticatólico. O objetivo da missão seria agregar
membros a uma denominação específica ou ao campo evangélico, isto é,
“desromanizar” (Araújo, 1985, p. 119). De modo semelhante, com relação a outras
religiões, missão cristã seria necessariamente um esforço permanente para
converter todas as pessoas de todas as religiões ao cristianismo. No extremo
oposto, uma perspectiva ecumênica ou dialogal arrefeceria a paixão missionária ou
mesmo desencorajaria que se priorize a missão, em seu aspecto evangelizador, na
caminhada da Igreja.
Neste sentido, há que se evitar entendimentos unilaterais, fechados e
supostamente definitivos sobre a natureza e dinâmica missionária. Como bem
coloca Bosch:
nunca podemos nos arrogar delinear a missão com excessiva
nitidez e autoconfiança. Em última análise, a missão
permanece indefinível; ela nunca deveria ser encarcerada nos
limites estreitos de nossas próprias predileções. O máximo que
podemos esperar é formular algumas aproximações do que a
missão significa. (Bosch, 2014, p.26)

E, se por um lado há críticas pertinentes e necessárias a modelos de


missão ao longo da história, se há uma experiência de crise quanto ao modo de
pensar e realizar a missão, por outro lado o desafio é “lidar com a crise numa atitude
de máxima sinceridade, mas sem nos permitir sucumbir a ela” (Bosch, 2014, p. 24).
Lembrar, pela fé e esperança, que crises abrigam oportunidades.
“Necessitamos, antes, de uma nova visão para sair do atual
impasse rumo a uma espécie diferente de envolvimento
missionário – o que não precisa significar que joguemos fora
tudo o que gerações de cristãos fizeram antes de nós ou
condenemos com desdém todas as suas mancadas” (Bosch,
2014, p. 25).

Portanto, no contexto de um mundo plural e profundamente desigual,


marcado por várias formas de ameaça à vida, que vão desde as crises da existência
8

às graves injustiças sociais, dos conflitos de várias ordens (inclusive religiosos) às


violências diversas e riscos de colapso ecológico, o cumprimento da missão da
Igreja é imprescindível enquanto instrumento de promoção do Reino de Deus, que é
“justiça, paz e alegria no Espírito Santo”, como diria o apóstolo Paulo. “A tarefa
missionária é tão coerente, ampla e profunda quanto o são a necessidade e as
exigências da vida humana” (Gort 1980a:55; Bosch, 2014, p. 28).
Nosso desafio é pensar e fundamentar em termos bíblicos e teológicos uma
compreensão de missão reformada, integral, libertadora e ecumênica. Antes, porém,
de desenvolvermos cada um destes aspectos, vale a pena ter em vista o significado
do termo.
Missão vem do latim missio, que, por sua vez, corresponde ao
verbo grego apostéllein, de onde temos a palavra ‘apóstolo’,
em português. Todas estas palavras têm em comum o
seguinte: significam ‘envio’. Missão significa, etimologicamente,
envio. Alguém é enviado por outra pessoa para realizar alguma
ação ou entregar alguma mensagem. Note-se, porém, que
originalmente o termo não tinha caráter religioso. Ele procede
do âmbito secular, mais propriamente, militar. E mesmo em
nossos dias, designa ações de cunho diplomático, comercial,
político e até esportivo. O uso do termo na história cristã tem a
ver com a própria expansão do evangelho no Império Romano,
a partir da comunidade judaico-cristã da Palestina (Zwetsch,
1998, p. 197).

Trataremos no primeiro capítulo da base bíblica e de alguns elementos


essenciais da perspectiva reformada. No segundo capítulo, serão abordados os
aspectos integral-libertador e ecumênico. Em seguida, apresentaremos uma
conclusão de caráter aberto e provisório. Afinal, o intuito é de promover
possibilidades, buscas, reflexões e práticas que transformem e se permitam
transformar.
9

1. PERSPECTIVA BÍBLICO-REFORMADA

1.1. Missão em perspectiva bíblica

Um dos princípios da Reforma Protestante é “só a Escritura” (Sola


Scriptura), apontando para a autoridade proeminente das Escrituras Sagradas na
vida da Igreja e dos cristãos, referencial primeiro para orientar desde a vivência
cotidiana da fé ao pensar teológico. É justamente na Bíblia que primeiramente
buscaremos embasar nossa reflexão sobre a missão da igreja no mundo
contemporâneo. Ainda que de modo panorâmico, tentaremos considerar os sentidos
de missão ao longo da Bíblia, do Antigo ao Novo Testamento.
Por um lado, no Antigo Testamento não há um teor missionário tal qual no
Novo Testamento. Não havia para o povo de Israel a perspectiva de propagar a fé
em Javé a todos os povos, “até os confins da terra”, por exemplo. Mas, por outro
lado, as raízes e lastro do Novo Testamento estão no Antigo. Na medida em que se
conhece como Javé se revela ao povo de Israel em sua formação e caminhada, em
suas relações internas e com outros povos, em suas memórias, acontecimentos e
promessas, é que se pode compreender melhor o significado da missão de Jesus e
da igreja no mundo, na força do Espírito Santo.
Importante considerar que há uma diversidade de olhares e vozes no Antigo
Testamento, às vezes convergentes e complementares, às vezes divergentes e que
concorrem entre si. Há também o aspecto da “revelação progressiva”, o
desenvolvimento de uma experiência e compreensão de Deus e das relações
humanas aos poucos mais abrangente e misericordiosa, o que não se dá de forma
linear ou uniforme. Vejamos, então, alguns referenciais vétero-testamentários
decisivos para nossa busca sobre os sentidos bíblicos da missão.
De início, podemos considerar a experiência fundante do povo de Israel com
Javé que se revela como o Deus libertador, Deus sensível ao sofrimento de um povo
escravizado e seus clamores, Deus solidário que desce ao encontro deste povo
oprimido, convoca e envia um líder – Moisés – para tirar seu povo do jugo do império
egípcio. E Javé não só liberta como também ensina aquele povo a viver em
liberdade, estabelece uma Aliança na qual a relação com o Divino está atrelada a
uma nova forma de organização social, marcada pela fraternidade e justiça.
10

A fé de Israel, inclusive, se diferenciava das religiões dos povos vizinhos


quanto a esta ênfase na autorrevelação de Deus através dos eventos históricos.
Bosch bem coloca esta questão nos seguintes termos:
A essência dessa fé é a firme convicção de que Deus salvou os
pais e as mães do Egito, conduziu-os pelo deserto e instalou
na terra de Canaã. Eles só se tornaram um povo por causa da
intervenção de Deus. E mais: Deus firmou uma aliança com
eles no monte Sinai, e essa aliança determina toda a sua
história subsequente. Nas religiões dos vizinhos de Israel,
Deus está presente no ciclo eterno da natureza e em certos
lugares cultuais. Em Israel, entretanto, a história é a arena da
atividade divina. O foco é o que Deus fez, está fazendo e ainda
fará de acordo com sua intenção expressa (cf. Stanley 1980:
57-59). Deus é, nas palavras do título do conhecido livro de G.
E. Wright (1952), o ‘Deus que age’. (Bosch, 2014, p. 35)
Outro aspecto a ser salientado é que o Deus da Aliança é também o Deus
da promissão. Assim como agiu na vida dos patriarcas e atuava no presente,
prometia agir no futuro do seu povo, garantindo, por exemplo, descendência
numerosa a Abraão, a Terra Prometida ao povo liberto, um porvir ao qual o povo
poderia se dirigir com confiança, pois podiam contar com o cuidado de Deus. Deste
modo,
festas da natureza como as das primícias e da colheita são, em
correspondência com essa lógica, transformadas
gradativamente em festas de acontecimentos históricos como o
êxodo do Egito e a selagem da aliança no Sinai; isto é, as
festas da natureza tornam-se celebrações de acontecimentos
da história da salvação. E essas celebrações são mais do que
ocasiões para recordação; elas são, ao mesmo tempo,
celebrações que antecipam o envolvimento futuro de Deus com
seu povo, o fato de Deus estar à frente de seu povo (Bosch,
2014, p. 36).
Além disso, o relacionamento de Javé com o povo de Israel é marcado pela
eleição. Javé escolhe Israel para ser seu povo “entre todos os povos da terra” (Dt
7.6). Esta característica de povo escolhido tem implicações decisivas tanto em suas
relações internas quanto em seus encontros e confrontos com outros povos.
Internamente, a fidelidade a Javé está vinculada ao conhecimento e prática de seus
mandamentos, estatutos e normas, que levariam o povo a uma vida de liberdade,
partilha, solidariedade, poder descentralizado, prosperidade e laços fraternos (Ex 16,
Ex 18, Lv 19 e 25, Dt 6.20-25). Deveria haver, inclusive, um cuidado especial com as
pessoas e grupos mais vulneráveis: o pobre, o órfão, a viúva, o estrangeiro (Dt
11

24.17-18). “Sempre que o povo de Israel renova sua aliança com Javé, reconhece
que está renovando suas obrigações com as vítimas da sociedade” (Bosch, 2014, p.
36).
No que diz respeito à relação de Israel com outras nações, há
ambiguidades, tendências divergentes e variações ao longo de sua história. A
alteridade era um tremendo desafio também ao povo eleito. Pode-se delinear ao
menos duas correntes que se desenvolvem com muitas nuances no transcorrer do
Antigo Testamento, uma nacionalista e excludente, outra universalista e inclusiva.
Num primeiro momento, Israel caminhou em conformidade com o contexto religioso
do Antigo Oriente, onde prevaleciam os chamados “deuses nacionais” (Ex 23.20-33).
Cada povo cria num deus particular e contava com sua companhia e proteção, bem
como com sua ajuda nas guerras nas quais as vitórias eram atribuídas à respectiva
divindade e os vitoriosos impunham seu deus e religião. Israel sofreu e praticou este
modelo de imposição religiosa.
No império de Davi e Salomão, a fé javista foi imposta aos
vencidos. Durante a supremacia Assíria, os reis de Judá foram
obrigados a colocar estátuas, altares e símbolos de divindades
assírias no templo de Jerusalém. Em vez de missão havia
imperialismo (Zwetsch, 1998, p. 200).
Este viés exclusivista atravessa a maior parte do Antigo Testamento e é
majoritário. No período pós-exílio babilônico, em meio a conflitos com populações
vizinhas e sob domínio estrangeiro, a defesa da identidade de Israel passou por um
ideal de pureza e segregação quanto a outros povos. Os casamentos com
estrangeiros foram proibidos (Ne 10) e até mesmo desfeitos (Ed 10). Na visão
Cronista, a ênfase é dada ao culto e ao templo, assim como à proeminência de Judá
(I Cr 17.21). Segundo Allmen,
É verdade que os últimos profetas anunciam que as nações se reunirão
em Jerusalém para orar a Deus em seu templo (Ag 2.6-9, Zc 8:20-23) e
proclamarão sua glória (Is 66.18ss), mas sob a condição de praticar o
culto judeu e submeter-se escrupulosamente à lei (Zc 14.16ss): as
nações deverão se assimilar ao povo santo, tornar-se seus escravos (Is
61.5ss) ou desaparecer por ocasião do grande massacre dos povos (Jl
3.12ss)... Em suas visões apocalípticas, Daniel vê as grandes nações
gentias sob a forma de animais perigosos, cujo poder lhes será tirado
para serem submetidos ao povo dos santos do Altíssimo (Dn 7). O
exclusivismo chega ao ódio a tudo que não é judeu, de que está
impregnado o livro de Ester (Et 9). (Allmen, 1972 p. 273)
12

Em paralelo à proposta etnocêntrica, gradativamente se desenvolve um viés


alternativo em Israel no qual ser povo eleito deixa de significar superioridade,
extermínio, exclusão ou domínio sobre outros povos. Esta vertente tem raízes numa
antiga convicção israelita, respaldada na herança abraâmica, de que “Em você,
todas as famílias da terra serão abençoadas” (Gn 12.3). Neste sentido, o povo de
Israel é compreendido como meio de comunicação das bênçãos de Deus aos outros
povos. Em Amós, a justiça divina atingirá tanto o povo de Israel, por conta de sua
infidelidade, quanto outras nações (Am 1 e 2), visto que a eleição é uma graça que
não deve levar à soberba (Am 9.7s), mas sim a um senso de responsabilidade (Am
3.2).
No contexto do exílio babilônico, o povo de Israel teve a oportunidade de
aprofundar sua reflexão sobre a relação com Deus e com o outro (o não-judeu).
Estavam sem templo, sem rei, longe da terra natal, por isso, neste período,
instituições como a circuncisão e o sábado, bem como a sinagoga, foram mais
valorizados. No Dêutero-Isaías, desta época, em meio a sofridas adversidades, é
proclamada a soberania do Deus único (Is 44.6), que também é o criador (Is 45.12),
Deus de todos os povos (Is 45.22ss), sem que anulasse a eleição de seu povo (Is
41.8ss; 54.10). Ali o povo eleito se descobre servo, que será libertado para ser luz
das nações (Is 49.6) e mediador da aliança (Is 42. 5ss).
Ao retornar do exílio, também houve vozes dissonantes, ainda que
minoritárias, à ortodoxia nacionalista. O livro de Rute representa bem esta
dissonância. Nele as personagens principais são mulheres, pobres e viúvas, o que já
colocava em xeque com sua narrativa os projetos de reconstrução centrados nos
homens e poderosos dentre os repatriados. Além disso, a protagonista era
estrangeira, abraça a fé em Javé pelas margens e em solidariedade à sogra judia,
demonstrando que estrangeiros também podem integrar (e de forma extremamente
importante!) o povo de Deus. Rute foi, conforme a narrativa, bisavó de Davi, rei que
ficou no imaginário de Israel como aquele que governou com justiça e fidelidade a
Javé.
Em Jonas, esta visão inclusiva alcança seu ponto alto. O “profeta fujão” atua
como espelho para os “eleitos” que se viam como proprietários da misericórdia
divina, detentores de prerrogativas diante de Deus, cujo bem-estar se dava em
detrimento dos outros povos ou da aniquilação dos inimigos. De acordo com Kilpp,
13

Jonas 3.10 pode ser considerado o cerne da mensagem do


livro de Jonas: o Deus de Israel é um Deus misericordioso com
todas as nações. A misericórdia não é propriedade exclusiva
do povo de Israel. Não se pode limitar a atuação divina ao povo
eleito. Nem o povo eleito tem privilégios especiais. Se a
salvação é anunciada ao povo de Jerusalém depois de sua
contrição e conversão, como mostra, por exemplo, o texto de
Joel 2.12-18, ela igualmente pode ser anunciada à cidade de
Nínive. (Kilpp, 2008, p. 96).
A misericórdia de Deus não cabe em quaisquer fronteiras! O envio da
Palavra e do Espírito soa como prelúdio do Novo Testamento. Deus envia sua
Palavra para que realize na terra sua vontade, Palavra que não volta vazia (Is 55.11,
Sl 107.20, 147.15). Deus envia seu Espírito para que renove a face da terra (Sl
104.30; Ez 37.9ss). Expressões que reverberam em Jesus, Palavra encarnada, e na
Igreja, que nasce e vive no sopro transformador do Espírito pelo mundo. Não
poderíamos deixar de mencionar que a tradução do Antigo Testamento para o grego
no século III a.C., a Septuaginta, proporcionou a adesão de muitos não-judeus à fé
de Israel, os chamados prosélitos.
Os aspectos do Antigo Testamento até aqui mencionados são essenciais e
servem de base para compreendermos o Novo Testamento, inclusive enquanto
“documento missionário” (Bosch, 2014, p. 35). É certo que, de certa forma, “o
contrário também bem que pode acontecer”, pois lemos o Antigo à luz do Novo
Testamento, sobretudo a partir da centralidade de Jesus, a Palavra de Deus
encarnada. De acordo com Zwetsch,
O Novo Testamento é um livro missionário. Seus materiais são
prédicas, narrações e exortações para a vida cristã. Os
evangelhos, as cartas de Paulo e os demais escritos visavam
as comunidades cristãs. Ao mesmo tempo se tornaram
documentos de propagação da mensagem do evangelho
(Zwetsch, 1998, p. 201).
No Novo Testamento encontramos o testemunho sobre a vida, morte,
ressurreição e exaltação de Jesus, o referencial missionário supremo para a fé
cristã. “Um fundamento teológico da missão, diz Kramm, ‘só é possível se nos
referirmos continuamente à base de nossa fé: a autocomunicação de Deus em
Jesus Cristo’” (Bosch, 2014, p. 27). Vale salientar que há uma variedade de ângulos
e ênfases sobre missão entre os autores e livros neotestamentários. Variedade que
se complementa, tensiona e se amplia mutuamente. Por outro lado, o Novo
Testamento suscita uma diversidade de leituras válidas, como sustenta Paul
14

Ricoeur, afinal o sentido de um texto não se restringe a uma interpretação unívoca e


fechada. Isto não quer dizer que quaisquer interpretações sobre Jesus e sobre o
Novo Testamento sejam coerentes e aceitáveis. Deste modo,
podemos de fato, como propôs Schleiermacher (cf. Gerrish
1984: 196), considerar o Novo Testamento a norma do que é
autenticamente cristão. Uma tarefa crucial para a igreja hoje é
verificar continuamente se sua compreensão de Cristo
corresponde à compreensão das primeiras testemunhas (Küng
apud Bosch, 2014, p. 41).

Para isto, se faz necessário não desvincular o Jesus do Novo Testamento de


seu contexto histórico. Separar o “Cristo da fé” do “Jesus da história” é incorrer em
equívocos e distorções sobre ele.
Por isso, há que se considerar que o ministério de Jesus se deu na periferia
do vasto Império Romano, que impunha sua Pax pela força das armas e exércitos,
junto com um sistema tributário marcado pela exploração do povo. Havia também
grandes propriedades de terra que, de modo gradativo, se espalharam pela
Palestina em detrimento das pequenas propriedades comunitárias. Os camponeses
pobres tornavam-se reserva de mão de obra para os latifundiários. Era um tempo de
diversidade no judaísmo, sectarismos e hegemonia local de sacerdotes e saduceus,
bem como de trânsito entre Oriente e Ocidente, quando mercadores e soldados
carregavam, de um lado a outro, novas ideias e crenças.
Jesus, o missionário por excelência, é Palavra de Deus que se encarna na
história. Se por um lado o significado de sua vida não pode ser exaurido numa
determinada interpretação histórica ou teológica, por outro, não há como estabelecer
uma busca adequada pelos sentidos de sua existência no mundo sem captar sua
inserção e participação nas relações sociais de seu tempo. Ele se apresenta como
enviado do Pai, aquele de quem fala o profeta Isaías (Lc 4.17-21; cf. Is 61.1s). Ao
recebê-lo ou rejeitá-lo, recebe-se ou rejeita-se Aquele que o enviou (Lc 9.48; 10.16),
ou seja, o próprio Pai que tudo entregou em suas mãos e que, no Filho, se revela
(Mt 11.27). No Evangelho de João, a cada um dos discursos, o envio do Filho pelo
Pai se repete 40 vezes como um estribilho (Jo 3.17; 10.36; 17.18). O que alimenta
Jesus é “fazer a vontade d’Aquele que o enviou” (Jo 4.34) e mesmo na sua Paixão,
consumação de sua obra, enxerga o retorno Àquele que o enviou (Jo 16.5; 17.11).
15

Inscreve-se na tradição profética e é reconhecido como tal (Mt 3.13-17;


21.10-11). No centro de seu modo de vida e pregação está a Boa Nova do Reino de
Deus.
Pode-se até dizer que, para Jesus, o reinado de Deus é o
‘ponto de partida e contexto para a missão’ (Senior e
Stuhlmueller 1983: 144) e questiona ‘os valores tradicionais do
judaísmo antigo em pontos decisivos’ (Hengel apud Bosch,
2014, p. 52)

O Reino de Deus vivido e proclamado por Jesus tem as marcas da compaixão


solidária e da inclusividade. Diferente de algumas visões correntes em sua época,
que pensavam a salvação apenas para um resto de Israel ou que estabeleciam leis
e ritos excludentes para a maioria dos israelitas no que diz respeito à comunhão
com Deus e com o próximo, ele preocupou-se com todos e priorizou os
marginalizados, os últimos. Pessoas e grupos desprezados daquele tempo contam
com a especial atenção e ação de Jesus: pobres, leprosos, cegos, coxos, famintos,
crianças, mulheres, prostitutas, pecadores.
Cobradores de impostos, considerados “traidores da causa judaica,
colaboradores dos romanos e exploradores de seu próprio povo” (Bosch, 2014, p.
47) não são ignorados por Jesus. São emblemáticos os exemplos de Levi (Mateus),
convidado por ele a deixar seu posto e segui-lo (Mt 9.9) e Zaqueu que, ao receber
Jesus em sua casa, muda decisivamente seus valores e comportamento. Ambos
encontram-se com sua abertura transformadora e experimentam graça,
reconciliação, novidade de vida. Samaritanos, vistos como impuros do ponto de vista
étnico e religioso pelos judeus, foram alvo de expressões de Jesus no sentido de
superar barreiras e preconceitos.
Fez isto no encontro com a mulher samaritana (Jo 4), quando com sua
acolhida e diálogo transpôs os muros da hostilidade étnica, da má reputação dela,
do patriarcado e divergência cúltica. E assim, aquela vida transformada tornou-se a
primeira missionária junto ao seu povo. Colocou justamente um samaritano em uma
de suas mais belas e significativas parábolas como exemplo de amor ao próximo em
contraponto aos reconhecidos levitas e sacerdotes, ensinando que a prática da
misericórdia é o que há de mais sagrado, mais importante, inclusive, que uma vida
devocional ou conhecimento teológico (Lc 10.25-37). Impediu que seus discípulos
extravasassem sua intolerância religiosa sobre samaritanos que não os acolheram
(Lc 9.51-56).
16

Com relação aos gentios, os ditos e feitos de Jesus apontam para a


universalidade do Evangelho que encarnou e pregou. Já no cântico de Simeão,
encontramos a percepção de que Jesus era “luz para iluminar as nações” (Lc 2.30-
31). Os gentios são colocados como advertência aos judeus quando Jesus
rememora a passagem em que ninivitas se arrependem diante da pregação de
Jonas, enquanto que, diante “de quem é maior que Jonas”, seus conterrâneos não
se convertiam de suas maldades e infidelidade a Deus. Quando o centurião romano
lhe pede que cure a paralisia de um empregado, ele não só cura como exclama:
“nunca encontrei uma fé como esta em ninguém de Israel!” (Mt 8.10). Por sua vez,
diante da perseverança da mulher cananéia que buscava ajuda para sua filha
“cruelmente atormentada por um demônio”, Jesus ultrapassa o exclusivismo judaico,
admira-se diante da atitude dela –“Mulher, é grande a sua fé! Seja feito como você
quer” (Mt 15.28) – e cura sua filha (Mt 15.21-28).
No trecho da cura do empregado do centurião romano, os gentios - “muitos
que virão do Oriente e do Ocidente” - chegam a ser postos como participantes do
banquete escatológico junto com Abraão, Isaac e Jacó, enquanto que herdeiros do
Reino (ali uma advertência aos judeus) ficarão de fora (Mt 8.5-13). E Jesus ainda vai
mais longe e fundo. Além dos marginalizados e dos diferentes, propõe, com o
próprio exemplo de vida e ensino, amar os inimigos. “Vocês ouviram o que foi dito:
‘Ame o seu próximo e odeie o seu inimigo! ’ Eu, porém, lhes digo: amem os seus
inimigos” (Mt 5.43-44a). Assim, exprime a radicalidade e amplitude de sua
desconcertante maneira de viver e comunicar a mensagem de amor a Deus sobre
todas as coisas e ao próximo como a si mesmo.
O Reino de Deus proclamado por Jesus tem algumas peculiaridades. Uma
delas diz respeito à temporalidade. Este reinado virá e por sua vinda se ora no Pai
nosso, por exemplo. Este Reino será pleno no futuro (Jo 6.40), mas não se restringe
ao futuro. Jesus o inaugura aqui. Em parte, o Reino já se faz presente com Jesus
(Jo 5.24), nele o futuro foi, em alguma medida, trazido para o presente, o novo sob o
sol começa a irromper aqui e agora, sua busca deve ser prioridade no novo modo de
viver ao qual Jesus convida (Mt 6.33). O Reino de Deus está próximo (Mc 1.15; Mt
4.17), “no meio de vocês” (Lc 17.20-21), deste modo
a maioria dos pesquisadores concordam que a tensão entre o
‘já’ e o ‘ainda não’ do reinado de Deus no ministério de Jesus
faz parte da essência de sua pessoa e consciência, não
devendo ser resolvida; é precisamente nessa tensão criativa
17

que a realidade do reinado de Deus tem significância para


nossa missão contemporânea (Burchard apud Bosch, 2014, p.
53).
Outro aspecto é que o Reino de Deus refere-se e engloba as múltiplas
dimensões da vida humana no mundo. Assim como não concerne apenas ao futuro,
não tem que ver somente com o espiritual ou qualquer outra faceta humana em
separado. “No ministério de Jesus, pois, o reinado de Deus é interpretado como
expressão da autoridade solícita de Deus sobre a totalidade da vida.” (Bosch, 2002,
p. 56). Envolve o enfrentamento das mais diversas manifestações do mal e sua
superação pelo poder e amor de Deus dos modos mais variados. As curas,
exorcismos, ensinos, denúncias, anúncios, partilhas, expressões de misericórdia e
afeto, tudo isto era ao mesmo tempo ação de Jesus e sinal de chegada parcial do
Reino. Segundo Bosch,
“O mal era vivenciado como algo muito real e tangível no
mundo da Antiguidade. Por isso não deveríamos nos
surpreender se os evangelistas usam termos ‘religiosos’ para
descrever o que Jesus fez em face de doença, possessão
demoníaca e exploração. Um desses termos é ‘salvar’ (em
grego sozein), que para nós tornou-se um termo
exclusivamente religioso. Entretanto, em pelo menos 18 casos
os evangelistas usam-no para referir-se a curas de doentes
realizadas por Jesus. Assim, no ministério de Jesus não há
tensão entre salvar do pecado e salvar de enfermidade física,
entre o espiritual e o social. O mesmo aplica-se ao termo usado
para designar ‘perdão’ (em grego: aphesis); ele inclui uma
ampla gama de acepções, desde a libertação de escravos até
o cancelamento de dívidas monetárias, libertação escatológica
e o perdão de pecados. Todas as nuanças de sentido desses
termos expressam a natureza oniabrangente do reinado de
Deus; visam dissolver todas as formas de alienação e derrubar
muros de hostilidade e exclusão” (Bosch, 2014, p. 54).
Logo no início de seu ministério, após o batismo por João, Jesus já
demonstra que sua missão não será realizada de modo solitário. Chama, convive,
prepara e envia seus discípulos. “A vocação dos discípulos é um chamado para
seguir Jesus e um ser posto à parte para atividades missionárias. A vocação, o
discipulado e a missão constituem uma unidade” (Pesch apud Bosch, 2014, p. 58).
Ele envia os discípulos para que façam o que seu Mestre fazia: pregar,
evangelizar, ensinar, curar, expulsar demônios, anunciar o Reino (Lc 9.1s; Lc 10.1s).
Alerta-os para as durezas deste caminho, que vão como ovelhas no meio de lobos
(Mt 10.16s), mas que este é o caminho da salvação (Mt 10.22). Ensina-lhes que esta
18

caminhada de vida e missão deve ser pautada não pelo ser servido, mas pelo servir,
pela diaconia (Mc 10.45; Jo 13.1-17).
A vida de serviço e entrega de Jesus culmina na cruz. Ali se mostra sua
mais completa fidelidade ao Reino e as consequências que esta fidelidade implica
na história face os implacáveis e “podres poderes” (naquele tempo, as lideranças
religiosas judaicas, os representantes políticos do império romano e a multidão
manipulada). Para os discípulos foi uma experiência de medo, profunda tristeza e
desânimo, decepção e de quase desistência da caminhada à qual Jesus os chamou
a trilhar (Lc 24.13-24). Todavia, pelo poder e ação de Deus, a morte e a opressão
foram subvertidas pela Ressurreição (Lc 24.25-35)! O encontro dos (as) discípulos
(as) com o Cristo ressurreto os reanima para a vida e missão. “Esta é, pois, iniciativa
divina e chamado para a tarefa de Deus (Mc 16; I Co 1.21).” (Zwetsch, 1998, p. 202).
“Como o Pai me enviou, também eu vos envio” (Jo 20.21), esta expressão
“ilumina o sentido profundo do envio final dos Doze, quando das aparições do Cristo
ressuscitado: ‘Ide...’ Eles irão, portanto, anunciar o Evangelho (Mc 16.15), fazer
discípulos de todas as nações (Mt 28.19), levar a toda parte o seu testemunho (At
1.8)” (Allmen, 1972, p. 602). Não o farão com suas próprias forças e méritos, mas
sim pela força do Espírito Santo, que foi prometido por Jesus e cuja promessa se
cumpre no dia de Pentecostes, quando nasce a Igreja. “O Espírito é o Cristo
Ressurreto atuante no mundo. No dia de Pentecostes, Cristo, através do Espírito,
escancara as portas e impele as discípulas ao mundo” (Bosch, 2014, p. 63).
A ousada comunidade missionária nascente, sob o protagonismo do
Espírito, tem as marcas da unidade na diversidade (At 2.5-11), do ensino dos
apóstolos, da oração e comunhão fraterna, do anúncio da Palavra e celebração
(Santa Ceia), da partilha e do serviço (At 2.42-47; At 6). Supera preconceitos e
barreiras, como no encontro de Pedro com Cornélio, no qual Pedro (símbolo da
Igreja) se converte de seus preconceitos para poder proclamar o Evangelho a
Cornélio (símbolo do mundo), encontro mediado e conduzido pelo Espírito que leva
Pedro a compreender que Deus não faz acepção de pessoas (At 10). (cf. Santos,
1974, p. 78, grifo do autor)
Paulo, na mesma direção, transpôs as fronteiras da cultura judaico-
palestinense. Defendeu decididamente que não é necessário ser judeu para ser
cristão e “tornou-se o mais radical defensor da abertura para os outros. Evangelho é
graça! Este passo – sair do judaísmo para a gentilidade – foi o primeiro e mais
19

importante para o entendimento da universalidade do Evangelho” (Zwetsch, 1998, p.


202).
O Evangelho de Jesus promove igualdade, os referenciais de superioridade
e inferioridade são desmontados, grego e judeu, homem e mulher, criança e velho
são um em Jesus. Desta forma, as relações e estruturas patriarcais e senhoriais
eram minadas. Não se pode esquecer que “os cristãos confessavam Jesus como o
Senhor de todos os senhores – a demonstração política mais revolucionária que se
podia imaginar no Império Romano dos primeiros séculos da era cristã” (Bosch,
2014, p. 71). Muitos, inclusive, deram seu testemunho na acepção de origem da
palavra, enquanto enfrentamento do martírio.
Pode-se perceber que o viés universalista e includente, que aos poucos se
desenvolve no Antigo Testamento, em contraponto ao nacionalismo etnocêntrico
judaico, assume preponderância no Novo, sobretudo em Jesus e a partir dele.
Especialmente nas narrativas sobre a vida das primeiras comunidades cristãs (Atos)
e nas cartas paulinas. Observa-se também que entre a vinda e a volta de Jesus
(escatologia) está a missão do Deus Pai-Filho-Espírito Santo à qual a Igreja é
formada para participar.
O trino Deus missionário é, relaciona-se e age em parceria
mútua ao enviar a igreja ao mundo no poder do Espírito como
instrumento da missão salvadora de Deus de restaurar
relações, vidas e a criação despedaçadas. (...) Jurgen
Moltmann explica: ‘Pelo envio do Espírito criador, a história
trinitária de Deus passa a ser uma história aberta ao mundo,
aos homens e ao futuro. Pela experiência do Espírito vivificador
na fé, no batismo e na comunidade, os homens integram-se na
história da Trindade. (Moltmann apud George, 2006, p. 31).

1.2. Missão numa perspectiva reformada

Missão é um tema central na vida da Igreja. Numa perspectiva reformada, a


ênfase na soberania de Deus e os “5 solas” (só a Graça, só a Fé, só a Escritura, só
Cristo, só a Deus a Glória) servem de balizas para uma reflexão sobre o sentido
missionário da Igreja, bem como as idéias de “sacerdócio universal dos santos” e
“igreja reformada sempre se reformando”. Esta herança reformada pode muito
ajudar no sentido de que sejam evitadas compreensões de missão que sejam
fragmentadas, sectárias, mercadológicas e até mesmo intolerantes.
20

A compreensão da Soberania de Deus é fundamental para a teologia


reformada.
Afirma-se, com frequência, que a tradição reformada enfatizou
a ‘soberania de Deus’ (ver Institutas, 1.12.1 n.1) e, a despeito
de quaisquer debates teológicos sobre a propriedade deste
termo, a percepção básica é: Deus, como criador, significa
Deus como soberano Senhor que chamou à existência tudo o
que existe, incluindo a própria espécie humana. (McKim, 1998,
p. 324).

Reconhecer isto deve inspirar gratidão e confiança. Assim expressa


Calvino:
Sempre que chamarmos a Deus de criador do céu e terra,
tenhamos em mente, ao mesmo tempo, a dispensação de
todas as coisas que ele fez com sua própria mão e poder, bem
como que, de fato, somos seus filhos, aos quais ele acolhe em
sua proteção fiel para nutrir e educar (Calvino apud Mckim,
1998, p. 324).

Por outro lado, “As criaturas do Deus soberano devem ser servas do
soberano Deus” (McKim, 1998, p. 324). Portanto, a soberania de Deus requer
obediência e fidelidade por parte do ser humano. Assim, junto com a ênfase na
adesão à vontade do Deus soberano, assume relevo a ênfase na gravidade do
pecado humano. No pecado o ser humano “erra o alvo” de viver segundo a vontade
Divina e para sua Glória e inclina-se a uma autossuficiência egoísta e destrutiva.
Por suas próprias forças, o ser humano não consegue superar o pecado. “O
pecado prejudicou seriamente o relacionamento entre a criatura e o criador.
Basicamente, esta ruptura só pode ser vencida pela obra de graça realizada por
Jesus Cristo” (McKim, 1998, p. 324). Ao refletir sobre o legado teológico de Calvino,
Mota Dias esclarece que o reformador enfatizava o caráter misericordioso e justo de
Deus, que se revelou ao povo de Israel e de forma plena na pessoa de Jesus Cristo.
Assim, Deus misericordiosamente se adapta, se acomoda aos limites da condição
humana para expressar sua glória e verdade, principalmente, na pessoa de Jesus
Cristo. Neste sentido,
só podemos vislumbrar o que Deus é, de fato, na pessoa de
Jesus Cristo. E isto sob a unção do Espírito e a graça do Pai.
Aqui Calvino faz eco às formulações de Agostinho que, por sua
vez, ressoa a compreensão eclesiológica de Paulo. Esta
perspectiva acerca da soberania de Deus que se revela ao
mundo e aos seres humanos o faz colocar a majestade e a
21

glória divinas como o centro da vida dos humanos (Dias, 2017,


p. 27).

Decerto, muitos debates, polêmicas, distorções aconteceram ao longo da


história da tradição reformada acerca da soberania de Deus. Chegou-se mesmo a
considerar que tudo o que acontece é por conta da Sua vontade. Viés problemático
quando, por exemplo, se consideram as maldades presentes no decorrer da história
humana. Como bem coloca Aulén, “nem tudo o que acontece é expressão da
vontade divina, no sentido de ser reflexo da vontade de Deus. Só identificando o
pecado com a vontade divina seria possível sustentar tal ponto de vista” (Aulén,
2002, p. 125).
A discussão sobre a soberania de Deus vincula-se ao tema da
predestinação. O próprio Calvino defendia a chamada “dupla predestinação”, ou
seja, que havia pessoas predestinadas à salvação e outras à condenação. Este não
foi um posicionamento dogmático nem muito menos central na teologia de Calvino,
diferente do que ocorreu com discípulos seus, a exemplo de Theodoro de Beza, que
conferiram centralidade à “dupla predestinação” na teologia calvinista, com um
recorte racionalizante e sistemático (Costa e Soares, 2017, p. 246-247).
Em uma apostila intitulada Contemporaneidade da Doutrina da
Predestinação, o reverendo João Dias de Araújo faz algumas importantes e
esclarecedoras considerações sobre este tema. Pontua que a dupla predestinação
foi uma conclusão lógica de Calvino, mas que biblicamente chega-se a outro
entendimento. Em resumo, explica 1) que a vontade intencional de Deus é para o
bem de todos (Tg 1.17); 2) que não é da vontade Divina a perdição dos não eleitos
(Ez 18.32; Mt 18.14; II Pe 3.9); 3) pelo contrário, a vontade de Deus é a salvação de
todos os seres humanos (Ez 18.23; I Tm 2.3-4, 4.10; Jo 3.16; Tt 2.11; Rm 5.18); 4)
Deus permite, mas não deseja o mal e a perdição; 5) os seres humanos podem
contrariar a vontade intencional de Deus.
Segundo João Dias, dentre as principais objeções à doutrina da dupla
predestinação está a tendência ao fatalismo, à anulação do sentido de liberdade e
responsabilidade humana, o desencorajamento à ação e, acrescentamos, à missão
cristã. Como bem assinala Bosch,
A ênfase na soberania de Deus exerceu, algumas vezes, uma
influência paralisante, inclusive na ideia de um envolvimento
missionário; em outras ocasiões, a soberania divina e a
22

responsabilidade humana se mantiveram em uma tensão


criativa” (Bosch, 2014, p. 318).

Tensão criativa que também orientou a compreensão de que o agir de Deus


na história abrange como um todo a vida humana no mundo e que este agir não está
subordinado às estruturas de poder humanos e a condicionamentos históricos, mas
que por dentro destes a sua Graça surpreende, opera o inesperado, o “novo sob o
sol”. Isto também implica aos que creem no soberano Deus uma atitude de
insubordinação quanto aos poderios humanos que se apresentam como absolutos e
perenes. Pode-se dizer que
O reconhecimento da soberania de Deus e da gravidade do
pecado humano levou as igrejas reformadas a compreender
que sua missão na sociedade se baseia fundamentalmente na
obediência ao soberano Deus criador. Isto significa que todos
os seus esforços pelo evangelho de Jesus Cristo, sob
quaisquer formas que tais esforços sejam feitos, se enraízam
nesta obediência básica que Deus requer. Ao mesmo tempo,
ao reconhecer o pecado como uma realidade que não pode ser
ignorada, a tradição reformada reconhece a mais crucial
necessidade deste mundo para seu ministério e testemunho a
Deus em Jesus Cristo. As próprias igrejas da tradição têm sido
parte da condição pecaminosa à qual elas buscam ministrar.
Mas, pela graça de Deus, confiam que sua obediência ao Deus
soberano, ainda que seja uma obediência quebrada, pode, não
obstante, ser usada por Deus para sua honra, glória, majestade
e louvor. Dessa maneira, segundo a fé reformada, a soberania
de Deus e a gravidade do pecado são poderosos incentivos
para as igrejas servirem, vigorosa e zelosamente, na sociedade
(Mckim, 1998, p. 325).

Passemos a ponderar sobre os “5 Solas” relacionados aos desafios


missionários. Só a Graça é um princípio que nos ensina que a salvação é iniciativa
de Deus, que Ele nos amou primeiro, que o amor de Deus é incondicional e que não
somos salvos por méritos nossos, pelas obras, mas para as obras (Ef 2.8-10). Por
semelhante modo, a missão é iniciativa de Deus, de seu amor fundante, de seu agir
salvífico. Portanto, antes de mais nada, a missão é de Deus e a igreja co-participa
desta missão divina, não como alvo, mas como instrumento.
A Graça precede, perpassa e ultrapassa a ação da Igreja, daí que cabe à
Igreja discernir as marcas do agir de Deus que antecedem o seu agir, revelar estas
marcas já presentes e anunciar, por palavras e ações, o Evangelho da Graça em
sua integralidade. Cabe também à Igreja, tal qual o exemplo de Pedro em seu
23

encontro com Cornélio (Atos 10), converter-se de seus preconceitos para comunicar
com coerência e relevância a Boa Nova da paz por meio de Jesus Cristo, na força
do Espírito e sob a misericórdia do Pai.
Visto que o Deus que se revela em Jesus Cristo é um Deus Soberano, mas
não totalitário, Ele não impõe a sua Graça (o que já serve de crítica e interdição a
entendimentos e práticas missionárias impositivas, imperialistas, intolerantes). O
modo pelo qual o ser humano pode dizer sim à Graça é através da Fé. Só a Fé é um
princípio que nos ensina que a resposta afirmativa à Graça é confiança e fidelidade,
afinal “o justo vive pela fé” (Romanos 1.17). Assim, a missão não se fia em recursos
materiais, simbólicos, institucionais ou circunstanciais da Igreja, mas na fé no Triúno
Deus, na sua misericórdia e poder.
Para o cumprimento da missão libertadora e redentora para a qual Deus a
chamou, a Igreja precisa estar alicerçada nas Sagradas Escrituras (só a Escritura),
encontrando nelas, permanentemente, sob a iluminação do Espírito, a Palavra de
Deus, de onde provêm o discernimento e a força para fazer a vontade Divina, na
busca incansável do Reino de Deus e sua justiça. Necessário se faz ter cuidado
para não incorrer em interpretações literalistas ou descontextualizadas. É
imprescindível buscar conhecer tanto o contexto histórico em que os textos bíblicos
foram escritos quanto o contexto histórico em que vivemos a fim de evitar
fundamentalismos e cultivar uma leitura popular e libertadora da Bíblia.
Há que se considerar que o centro das Escrituras, a Palavra que se fez
humano e habitou entre nós é Jesus Cristo. “Nele, por Ele e para Ele são todas as
coisas” (Romanos 11.36). Jesus é o mediador entre os humanos e Deus, é modelo
central para a missão. Sua radicalidade no amor não pode ser preterida pela Igreja.
Por isso, ainda que a história seja farta de exemplos das contradições e erros da
Igreja, é incabível, em sua atuação no mundo, toda e qualquer prática coercitiva,
violenta, soberba ou alinhamento a pessoas e grupos que exploram, oprimem,
ameaçam e destroem a vida.
Jesus é o caminho da misericórdia, da solidariedade, da justiça, da paz.
Veio para trazer vida em plenitude e eterna. Na direção de seus passos é que a
Igreja pode participar de modo autêntico da missão que o Pai confiou ao Filho e que
o Espírito Santo forma e impulsiona a Igreja para dar continuidade, ainda que não
esteja a ela subordinado e que seu agir não seja exclusivamente através dela.
24

É imprescindível que a Igreja tenha clareza que sua participação na missão


de Deus não visa gloriar-se, mas glorificá-lo (Só a Deus Glória). Ela precisa diminuir
para que Cristo cresça, assumir não a condição de senhora, mas de serva, esvaziar-
se para que o Deus vivo a plenifique, conforme o exemplo de Jesus. A missão tem
no seu âmago um sentido diaconal e evangelizador. Seu papel é amar a Deus e ao
próximo, expressar o amor através do servir a Palavra, o Pão, à Paz. Para a glória
de Deus!
O “sacerdócio universal dos santos” nos desafia a perceber que a missão
não diz respeito apenas a algumas pessoas que assumem a designação de
“missionários (as)”, nem tampouco a um grupo específico no corpo da Igreja, mas
que diz respeito a todo (a) cristão (ã), a toda a comunidade cristã (inclusive numa
abrangência ecumênica).
De outro ângulo, o princípio da “Igreja reformada sempre se reformando”,
sinaliza que a Igreja precisa ser flexível, dialogal com a cultura em que está inserida,
bem como sub-missa ao Sopro do Espírito que gera criatividade e vitalidade em
Cristo para que consiga traduzir a mensagem do Evangelho de forma relevante e
transformadora. Estes são alguns referenciais básicos que, enquanto herdeiros da
reforma, temos disponíveis para nos ajudar a participar da Missão de Deus em meio
às turbulências e ameaças do presente. Na certeza de que o Senhor da seara (que
é o mundo) não nos abandona, mas que caminha conosco até a “consumação dos
séculos”.
25

2. PERSPECTIVA INTEGRAL-LIBERTADORA E ECUMÊNICA

Muitas críticas foram e tem sido feitas a concepções e práticas missionárias,


dentro e fora das Igrejas, ao longo da história. Críticas pertinentes e desafiadoras.
Como foi dito no início deste trabalho, a proposta aqui não é de chegar a uma
palavra final e definitiva sobre a missão da Igreja (ou, em termos mais precisos,
sobre sua participação na missão de Deus). Mas também não é o caso nem de
desistir, nem de silenciar ao seu respeito. Defende-se aqui a urgência de, com
“humilde ousadia” e permanente autocrítica, discernir possibilidades, referenciais,
horizontes para a missão cristã numa perspectiva Integral-Libertadora e Ecumênica.
Buscamos aproximações no sentido de compreender melhor sentidos
saudáveis, coerentes (à luz da herança bíblica e reformada) e construtivos acerca da
missão, o que implica também reconhecer a necessidade de afastamentos quanto a
algumas concepções, modelos e práticas missionárias. Sem almejar o monopólio da
verdade fundamentalista, mas também sem se acomodar ou omitir no relativismo.
Afinal,
Nossas teologias são parciais e influenciadas cultural e
socialmente. Elas jamais podem reivindicar serem absolutas.
Isso, contudo, não as torna relativistas, como se estivéssemos
a sugerir que na teologia – uma vez que jamais podemos, em
realidade, conhecer ‘de forma absoluta’ – tudo seja válido. É
verdade que só vemos parcialmente, mas é certo que vemos
(Hiebert 1985a:9). Estamos comprometidos com nossa
compreensão da revelação, mas igualmente mantemos uma
distância crítica quanto a ela. Em outras palavras, mostramo-
nos, em princípio, abertos para outros pontos de vista, uma
atitude que, no entanto, não se opõe a um compromisso total
com nossa própria compreensão da verdade. (...) Trata-se de
um equívoco pensar que o compromisso e uma atitude
autocrítica se excluam reciprocamente (Bosch, 2014, p. 233-
234).

Algumas características e exemplos de compreensão e prática missionária


exigem, por suas incoerências em relação ao Evangelho e por seus
desdobramentos históricos, criticidade e afastamentos. É o caso dos “motivos
impuros” identificados por Verkuyl:
a) o motivo imperialista (tornar os ‘nativos’ sujeitos dóceis de
autoridades coloniais); b) o motivo cultural (‘missão’ como
transferência da cultura ‘superior’ do missionário); c) o motivo
26

romântico (o desejo de ir a países e povos distantes e


exóticos); e d) o motivo do colonialismo eclesiástico (o anseio
de exportar nossa própria confissão e ordem eclesiástica a
outros territórios) (Bosch, 2014, p. 21).

Há outros motivos missionários que, de certa forma, são pertinentes em


termos teológicos, mas que se apresentam ambíguos e restritivos na prática. São
eles: “a) o motivo da conversão, que enfatiza o valor da decisão e do compromisso
pessoais – porém tende a estreitar o reinado de Deus de modo espiritualista e
individualista ao total de almas salvas; b) o motivo escatológico, que fixa os olhos
das pessoas no reinado de Deus como realidade futura, mas, em sua ânsia de
apressar a irrupção daquele reinado final, não tem interesse nas exigências desta
vida; c) o motivo da plantatio ecclesiae (plantação ou instalação da igreja), que
acentua a necessidade de reunir uma comunidade das pessoas comprometidas,
porém se inclina a identificar a igreja com o reino de Deus; e d) o motivo filantrópico,
pelo qual a igreja é desafiada a buscar a justiça no mundo, mas que facilmente
equipara o reinado de Deus a uma sociedade melhorada” (Bosch, 2014, p. 21-22).
Na América Latina, por exemplo, a partir do período da colonização pelos
povos ibéricos (séculos XV-XVI), o cristianismo chega como a religião dos
colonizadores. A missão estava intimamente relacionada com a conquista de terras,
povos, riquezas, com a dominação de civilizações nativas e povos indígenas. Houve
missionários que se insurgiram contra este modo distorcido e cruel de realizar a
missão imbricada com o colonizador. Bartolomeu de Las Casas representa bem este
grupo minoritário. Las Casas denunciava as atrocidades da exploração espanhola,
dizia que os indígenas eram como “Cristos açoitados”. Refere-se à forma como
espanhóis destruíram nações do Caribe e América Central como através de uma
“guerra injusta, cruel, tirânica e sangrenta” (Zwetsch, 1998, p. 205).
A relação do cristianismo colonizador com a escravidão teve também os
traços da violência, exploração e perversidade. O sistema escravocrata deixou
marcas profundas em sociedades como a brasileira, onde o racismo continua
estrutural, excludente, intolerante e genocida. Aplica-se a esta realidade as palavras
de Las Casas, quando dizia que
haveremos de dar conta não somente dos nossos pecados,
como também dos danos alheios cuja causa sejamos nós
mesmos. Ora, a aliança entre missão e colonialismo foi fatal
para a evangelização. Ela ficou tão corrompida que pode-se
perguntar se de fato aconteceu (Zwetsch, 1998, p. 231).
27

A partir do século XVII, o movimento missionário, de origem protestante,


desenvolveu-se e alcançou o ápice de seu expansionismo nos séculos XIX e XX. Foi
responsável pela propagação de teologias e formas eclesiológicas marcadas pelo
etnocentrismo (semelhante ao Catolicismo, neste aspecto), de recorte Ocidental e
capitalista, com bases na cultura européia e norte-americana, raízes nos
movimentos evangelicais avivalistas, nos quais preponderava o Evangelicalismo.
Conforme Mota Dias,
o Evangelicalismo vai se caracterizar pela forte ênfase na
conversão individual como a marca do verdadeiro Cristianismo.
Os estudiosos desse movimento são acordes em destacar que
a conversão pessoal se constitui na principal e definidora
característica do evangelicalismo, sendo as outras o biblicismo
acrítico, o anti-intelectualismo e o compromisso com o
evangelismo (proselitismo). (Dias, 2017, p. 118).

Grande parte do protestantismo brasileiro é herdeiro desta perspectiva. João


Dias de Araújo sinaliza ainda que a motivação básica que impulsionou o
presbiterianismo em suas primeiras décadas no Brasil foi justamente “desromanizar”,
ou seja, converter católicos ao protestantismo. Dúvidas foram colocadas quanto a
esta visão, principalmente com o advento do movimento ecumênico.
Bosch indica que a missão cristã começou a enfrentar um processo de
profunda crise, no contexto de turbulência e mudança de paradigma não só
teológico e missionário, mas na “experiência e pensamento do mundo inteiro”
(Bosch, 2014, p. 20). Isto se deu pelo menos desde as devastadoras duas grandes
guerras do século XX.
Somam-se a estes fatos as revoluções russa e chinesa, os horrores
cometidos pelos países comprometidos com o nazismo, o fascismo, comunismo e
capitalismo, os processos de descolonização, as lutas contra o racismo e sexismo,
as ameaças das bombas atômicas, a secularização (não só no Ocidente), as novas
tecnologias de transporte e comunicação, a globalização, um sentimento de
desconfiança quanto à ideia de progresso, o crescente abismo entre ricos e pobres,
o pluralismo religioso e cultural, os riscos de colapso ecológico.
Não se tratava, portanto, de mudanças pontuais ou reversíveis, mas de uma
mudança de época, com questões que ainda não haviam sido colocadas para a
humanidade. Para Mota Dias, ainda estamos atravessando uma fase de transição.
Assim, para acalmar nossas ansiedades e temores com
relação às contradições e inseguranças com que temos de
28

viver, atualmente, basta-nos, em princípio, compreender os


tempos atuais como um período transicional, um tempo de
passagem para um novo momento histórico que ainda não
sabemos bem que caráter terá. Trata-se, no entanto de um
período de crises, de angústias e sofrimentos em função da
incerteza do futuro. (Dias, 2017, p. 110).

A missão cristã, neste contexto de crises, foi forçada a se repensar. Na


medida em que países que foram colonizados por países cristãos ocidentais se
emancipam politicamente (principalmente na 2ª metade do século XX), projetos
missionários são rejeitados, seja por conta da adesão a outras religiões, seja pela
busca de teologias e modos de missionar enraizadas nas histórias e culturas locais,
um esforço para descolonizar a vivência da fé cristã. Amplia-se o reconhecimento da
liberdade religiosa como um direito humano, o que fez com que grupos cristãos
precisassem reavaliar sua maneira de enxergar e tratar outras religiões.
Alguns defenderam que os missionários deveriam voltar para suas terras de
origem, outros até chegaram a levantar a questão a respeito de se a missão ainda
seria válida. Bosch chama a atenção para a sábia compreensão de crise dos
japoneses, que envolve a noção de perigo, mas também de oportunidade. E
defende,
Arrepender-se de equívocos do passado não equivale a abrir
mão da essência daquilo que se estava realizando; nas
palavras de Panton (p. 75), ‘um chamado ao arrependimento
não é um chamado para renunciar a uma obra importante, mas
para fazê-la diferentemente. A Missão da Igreja permanece’
(Bosch, 2014, p. 439).

Justamente, no início do século XX, diante do escândalo da divisão,


concorrência e mesmo hostilidade das igrejas cristãs nos campos missionários é que
foram dados os primeiros passos no sentido da cooperação e respeito mútuo das
diversas ramificações protestantes na missão evangelizadora. A 1ª Conferência
Missionária Mundial, em 1910, na cidade de Edimburgo/Escócia, foi um marco deste
nascente esforço ecumênico.
É em meio a estas crises, mudanças, autocríticas e busca de alternativas
quanto à missão da igreja no mundo contemporâneo que, segundo Bosch, surge o
paradigma ecumênico emergente. Vale lembrar que, diante de mudanças, é comum
acontecer ou um apego ao passado (bem característico do fundamentalismo) ou
uma ruptura com o passado (bem característico de vanguardas extremadas). Bosch
defende que
29

As duras realidades do presente nos compelem a reconceber e


reformular a missão da igreja, a fazer isso de maneira ousada e
imaginativa, mas também em continuidade com o melhor
daquilo que a missão foi nas últimas décadas e séculos.
(Bosch, 2014, p. 25).

Este paradigma ecumênico emergente de missão está em curso, em


construção, e convive com paradigmas antigos remodelados. É tributário de
diferentes olhares teológicos que não se excluem, mas que se complementam,
enriquecem mutuamente e mesmo se contestam e desafiam. Ao invés de buscar um
conceito de missão fechado, a ideia é buscar “mapear o perfil de ‘um pluriverso de
missiologia num universo de missão’ (Soares-Prabhu 1986:87; apud Bosch, 2014, p.
25).
Se por um lado há diversidade no chamado paradigma ecumênico, há
também a busca de um compromisso comum com a justiça e a defesa da vida.
Tentativas de obter a unidade precisam estar em sintonia com
o chamado bíblico de busca de justiça. Nosso chamado para a
prática da justiça pode às vezes envolver a quebra de falsas
unidades que silenciam e oprimem. A unidade genuína traz
inclusão e respeito por outros. (Revista Caminhos de Diálogo,
2014, p. 119-120).

Entendemos que o paradigma ecumênico emergente ao qual Bosch se


refere engloba o aspecto Integral e Libertador da missão. Envolve desde as Igrejas
vinculadas ou que se relacionam com o Conselho Mundial de Igrejas, “que tem sido
capaz de ir ao encontro de novas compreensões de missão e de unidade nas Igrejas
Católica, Ortodoxa, Anglicana, Protestante, evangélica, Pentecostal e Indígenas de
todas as partes do globo” (Revista Caminhos de Diálogos, 2014, 9.118), até os
grupos que se relacionam com o Movimento de Lausanne para Evangelização
Mundial, de traço evangelical.
Nesta perspectiva, a noção de Missio Dei ajuda
a articular a convicção de que nem a igreja nem qualquer outro
agente humano pode, alguma vez, ser considerado o autor ou
portador da missão. Ela é, primordialmente e em última análise,
a obra do Deus Triúno, Criador, Redentor, e Santificador por
amor ao mundo, um ministério do qual a igreja tem o privilégio
de participar (cf. LWF 1988:6-10). A missão possui sua origem
no coração de Deus. Deus é uma fonte de amor que envia.
Esse é o manancial mais profundo da missão. É impossível
penetrar mais fundo; existe missão porque Deus ama as
pessoas. Reconhecer que a missão é de Deus representa um
avanço crucial em relação aos séculos precedentes (van’t Hof,
30

1972:177). É inconcebível que pudéssemos voltar de novo a


uma concepção estreita e eclesiocêntrica de missão. (Bosch,
2014, p. 470).

Desde os anos 50, em várias conferências missionárias internacionais, tem


sido defendido que é necessário “a igreja inteira levando o evangelho inteiro ao
mundo inteiro”. Esta compreensão aponta para o fato de que
nem uma igreja secularizada (isto é, uma igreja que se
preocupa apenas com atividades e interesses deste mundo),
nem uma igreja separatista (isto é, uma igreja que só se
envolve em salvar almas e preparar os convertidos para o
além) podem articular fielmente a missio Dei (Bosch, 2014, p.
29).

Por vezes, a defesa da vivência do Evangelho vinculada ao compromisso


com a justiça social pode levar a descuidos quanto ao cultivo da espiritualidade (em
sua dimensão subjetiva), por exemplo. Contudo,
A vocação missionária da Igreja e seu chamado evangélico não
resistirá ao confronto com as duras realidades da vida diária se
não for sustentada pela fé, uma fé apoiada na oração, na
contemplação e na adoração. ‘Reunião e dispersão,
recebimento e doação, louvor e trabalho, prece e luta – este é
o verdadeiro ritmo do engajamento cristão no mundo’. Os
cristãos devem levar seus corações, mentes e vontades ao
altar de Deus, sabendo que da adoração vem a sabedoria, da
prece vem a força e da fraternidade a resistência. (Missão e
Evangelização: uma Afirmação Ecumênica, 1983, p. 34).

Outro risco que correm os setores engajados da Igreja é não priorizar a


evangelização. Por conta da crítica (pertinente) a modelos de evangelização
proselitistas ou a compreensões de evangelização que se restringem à proclamação
verbal, defende-se que a evangelização pode ser substituída pela humanização
(defesa de relações sociais justas e direitos da pessoa humana respeitados). Se, por
um lado, a evangelização não deve ser confundida com proselitismo, nem se
restringe à proclamação verbal, por outro sua dimensão verbal (pregação, conversa,
convivência) é imprescindível. Assim como a evangelização é indispensável à
missão. Semelhante ao testemunho, a evangelização precisa ser desenvolvida de
modo respeitoso e fraterno, não como um processo de mão única, mas com escuta,
diálogo, aprendizado mútuo.
João Dias de Araújo colocou a necessidade de superar a dicotomia
evangelização x humanização com muita propriedade. Diz ele,
31

Uma das maiores heresias afirmadas abertamente por muitos


cristãos chamados ortodoxos e fundamentalistas é que ‘a Igreja
nada tem a ver com os problemas sociais’. Dizer isto é mutilar o
Evangelho de Cristo e a mensagem do Reino de Deus. Mas os
cristãos que caem nessa heresia secular da igreja partem do
princípio pagão da dicotomia da natureza humana que dá valor
extremo à alma e despreza o corpo. Não sabem esses cristãos
que Jesus não ensinou essa dicotomia, essa separação
herética. Mas ensinou, sim, que o homem é uma unidade, um
todo e que Ele veio salvar esse todo. (...) Por isso a
evangelização que não considera o corpo e a realidade integral
do homem está incompleta e errada. Outro exemplo errado da
evangelização entre os cristãos está em afirmar que o dever da
igreja é humanizar sem proclamar, sem pregar. Foi o extremo
do chamado ‘Evangelho Social’. É também mutilar o Evangelho
de Cristo, dizer que a única missão da igreja é melhorar a
situação social, e cuidar do corpo do homem. Porque não basta
isso. Ainda há um meio termo entre essas duas posições
extremadas que também está errado. Alguns dizem:
‘Preguemos a tempo e a fora de tempo e depois, se der tempo,
cuidaremos dos problemas sociais.’ Outros dizem:
‘Humanizaremos primeiro, e , quando a sociedade estiver
evoluída e ideal, então poderemos pregar o Evangelho.’ Ambos
estão errados, porque não foi isso que Cristo fez. A obra de
Cristo foi levantar o homem, restaurá-lo em todos os sentidos e
em todas as suas implicações existenciais. Isto significa colocar
o homem debaixo da Soberania de Deus, fazendo a vontade
do Pai Celeste. (Costa; Soares, 2017, p. 267-268).

Esta maneira de entender a evangelização serve de alerta também aos


grupos que, em nome da ênfase no trabalho evangelístico, na vivência devocional e
plantação de igrejas, subestimam o papel central da diaconia, do exercício da voz
profética e do compromisso com a justiça socioecológica no contexto da missão. O
desafio é buscar um equilíbrio dinâmico e sinergia entre estas dimensões da missão,
em submissão ao agir da Trindade.
Importante considerar como, gradativamente, o entendimento de missão foi
ampliado ao mesmo tempo em que se propunha e buscava uma integração das
várias dimensões missionárias.
Por volta da época da Conferência do CoMIn em Jerusalém
(1928), ficou evidente que a maioria das definições eram
irremediavelmente inadequadas. Jerusalém cunhou a
expressão ‘abordagem abrangente’, o que representou um
avanço significativo em relação a todas as definições anteriores
de missão. O encontro do CoMIn em Whitby (1947) utilizou,
então, os termos kerygma e koinonia para sintetizar sua
compreensão de missão. Em um estudo famoso, publicado
32

pela primeira vez em 1950, Hoekendijk (1967b:23) acrescentou


um terceiro elemento: diakonia. A Conferência de Willingen
(1952), adotou a fórmula ampliada, agregando a noção de
‘testemunho’, martyria, como o conceito abrangente: ‘Esse
testemunho é dado por proclamação, comunhão e serviço’
(apud Margull 1962:175). Durante as próximas três décadas,
essa formulação dominou as discussões missiológicas como
imagem mais apropriada e abrangente do que a missão é ou
deveria ser. É possível encontrá-la em quase todo livro sobre
teologia da missão depois de 1952. Naturalmente, existem
algumas variações nas definições. Às vezes, tratam-se martyria
e kerygma como conceitos intercambiáveis e sinônimos (cf.
Snyder 1983:267). Outros acrescentam leitourgia, ‘liturgia’,
como elemento a mais (cf. Bosch 1980:227-229). (Bosch, 2014,
p. 609-610).

Acrescentaríamos a estas dimensões da missão mencionadas a didaquê,


ensino-aprendizagem da Palavra de Deus revelada nas Sagradas Escrituras e suas
relações com a existência humana no mundo. Mesmo com esta ampliação no
conceito de missão, Bosch adverte que é preciso manter em aberto o seu
entendimento, para não cair na tentação de enclausurar de acordo com predileções,
reducionismos ou visões unilaterais o que é infinito. Indica os limites da teoria e
sugere que a poiesis (imagens evocativas) seja uma forma mais propícia de
comunicar o que seja missão. Isto nos faz lembrar expressões populares e
instigantes presentes nos Evangelhos como “sal da terra”, “luz do mundo”, que
exprimem de forma aberta e fecunda o papel (e a missão) do cristão (ã).
Vale frisar que a participação da Igreja na Missão de Deus é o que dá
sentido à sua existência, mas não lhe confere controle ou exclusividade sobre o agir
Divino. A presença e ação amorosa, libertadora e salvífica da Trindade não está
presa (nem se permite confinar) nas fronteiras da comunidade cristã. Zwinglio, ao
trazer a contribuição do missiólogo indiano M. Thomas Thangaraj, coloca que, do
ponto de vista dos Evangelhos, a missio Dei se dá por dentro da missio humanitis,
tarefa e responsabilidade às quais todos os seres humanos são chamados a
assumir com uma vida solidária e “com espírito de mutualidade” (Thangaraj).
De acordo com Mota Dias,
se a sustentação e a promoção da vida é uma tarefa que
repousa sobre a responsabilidade de todos os humanos (ainda
que nem sempre entendida e realizada por todos) isto quer
dizer que não cabe aos seguidores de Jesus nenhuma
pretensão de hegemonia e, muito menos, de imposição de sua
perspectiva no esforço comum de percepção e construção da
33

vida. Mas, é óbvio que, para a vida cristã, a missio humanitis se


torna qualificada e plenificada pela missio Dei conforme esta se
manifestou na vida e na obra de Jesus. Esta afirmação da
especificidade da comunidade cristã resguarda os seguidores
de Jesus do relativismo empobrecedor e do ecletismo
desmobilizador, abrindo-a à experiência da diversidade e à
riqueza inesgotável das múltiplas manifestações de Deus
vivenciadas pelos humanos em suas diferentes expressões
culturais. Ao mesmo tempo preserva a comunidade cristã da
petulância triunfalista, da auto-suficiência, muitas vezes
etnocêntrica e universalista, que termina por negar a
transcendência. (Dias, 2017, p. 114).

Este é um parâmetro para a caminhada ecumênica, para o diálogo inter-


religioso e relações interculturais.
O diálogo é um modo de afirmar nossa vida e nossos objetivos
em termos de defesa da vida e integridade da criação. O
diálogo no nível religioso é possível somente se partimos da
expectativa de encontrar Deus, que nos precede e tem estado
entre as pessoas dentro de seus diferentes contextos. Deus
está lá antes de chegarmos (Atos 17) e nossa tarefa não é
levar Deus, mas testemunhar o Deus que já está presente lá. O
diálogo providencia um encontro honesto em que cada grupo
traz à mesa tudo que entre eles já é vivido, do modo aberto,
paciente e respeitoso. (...) Evangelização e diálogo são
distintos, mas estão inter-relacionados. (...) a evangelização
não é o objetivo do diálogo. No entanto, como o diálogo é
também ‘um encontro mútuo de compromissos’, a partilha da
Boa Nova de Jesus Cristo tem nele um espaço legítimo.
(Revista Caminhos de Diálogo, 2014, p. 126).

A missão da comunidade cristã passa pelas dimensões políticas e


econômicas da sociedade. À luz dos valores do Reino de Deus revelados por Jesus
nos Evangelhos, cabe à Igreja se opor a projetos políticos opressores e sistemas
econômicos que produzem pobreza e miséria, pautados pela acumulação de
riquezas, pela exploração e exclusão humana e destruição dos ecossistemas da
Terra. Neste sentido, estabelecer um diálogo com a Carta da Terra, a Confissão de
Acra (confissão de fé Reformada) e a encíclica Laudato Si, do Papa Francisco, pode
ser um referencial salutar e bem fundamentado para pensar e agir em relação à
promoção do bem viver e cuidado com a Casa Comum.
34

CONCLUSÃO

Diante das várias, profundas e amplas ameaças à vida presentes em nosso


tempo, faz-se urgente uma reflexão e prática missionária que articule memória, ação
e esperança no futuro da plenitude do Reino. Deste modo,
o desafio que se coloca para o estudo da missão pode ser
descrito (nas palavras de van Engelen 1975:310) como o de
relacionar o sempre relevante acontecimento-Jesus de 20
séculos atrás com o futuro do reinado prometido de Deus por
meio de inciativas significativas para o aqui e agora” (Bosch,
2014, p. 43).

A exemplo da própria Trindade, Deus comunhão-amor, que age em parceria,


a missão integral-libertadora e ecumênica precisa continuar e ampliar o caminho da
cooperação. Nesta direção, George levanta um questionamento que vem a calhar.
No protestantismo latino-americano, as igrejas evangelicais
priorizam a evangelização enquanto as igrejas ecumênicas
destacam mais o diálogo entre as religiões e a ética social. O
que os movimentos ecumênico e evangelical podem aprender
um do outro na prática da missão integral de Deus diante dos
tremendos desafios em nosso mundo hoje? (George, 2006, p.
44).

Com vistas a estabelecer e ampliar parcerias, salienta George, é


imprescindível superar muros e estabelecer pontes entre Igrejas do Sul e Igrejas do
Norte, entre Igrejas Ecumênicas e Igrejas Evangelicais, entre Católicos e
Protestantes, entre Protestantes/evangélicos e Pentecostais. Ainda nos anos 70,
João Dias de Araújo, em contraponto à ideia de “desromanizar” enquanto motivo
missionário, defendia a cooperação entre protestantes e o “autêntico cristianismo
católico reformado” no sentido de levar as populações brasileiras a uma “adesão
pessoal’ ao Cristo com todas as suas implicações individuais e sociais” (Araújo,
1985, p. 119).
Mas se há necessidade de cooperação, há também a necessidade de
disputas. Não no sentido de concorrência no mercado religioso por mais membros
na igreja. E sim no sentido de se opor a interpretações bíblicas, práticas eclesiais e
atuações missionárias que reproduzam um viés neocolonialista, racista, sexista, que
mercantilize a fé e dissemine a lógica da ganância, o individualismo, que legitime ou
promova ideias e ações discriminatórias, bem como discursos e práticas de ódio e
violência.
35

De maneira semelhante ao que fez Jesus em seu tempo, ressignificando


referências religiosas e reorientando as pessoas e relações na direção de uma
experiência de Deus que conduzia à compaixão e solidariedade, à simplicidade e
não-violência, hoje esta é uma tarefa que faz parte da missão. Sobretudo quando se
tem em vista o quanto o cristianismo ainda tem servido a várias formas de opressão
e injustiça.
Há que se buscar as margens, as periferias, os marginalizados, os
vulneráveis, num processo de escuta, misericórdia e cuidado. Daí a importância, à
luz do Evangelho, de aproximação, diálogo e busca de formas de exercer
solidariedade a quem enfrenta o machismo, o racismo, a lgbtfobia, a pobreza,
doenças como a depressão, por exemplo. Missionar com as mãos e com o coração.
Frequentemente, desempenhamos tarefas missionárias apenas
com nossas mãos e não com nossos corações. Não tiramos
tempo para ‘nos colocar no lugar das outras pessoas’, para
ouvir respeitosamente e para entender a perspectiva delas.
Nossa tendência é resolver os problemas ao invés de
experienciar seu impacto e buscar suas causas, das quais nós,
talvez, façamos parte. (George, 2006, p. 38).

Não há receitas prontas para a missão. Tentamos delinear um norte,


aproximações na direção de uma perspectiva bíblico-reformada, integral-libertadora
e ecumênica. Uma pergunta vale muito a pena ser trabalhada comunitariamente nas
Igrejas: “como podemos tornar nossa obra missionária mais holística (integral)”? Em
oração, estudo da Palavra, reflexão, planejamento conjunto e participativo, ações,
creio que podemos ser surpreendidos pela Graça!
36

BIBLIOGRAFIA

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“Juntos a favor da vida: Missão e evangelização em cenários de mudança”. In:


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