Pixaim, Conto de Cristiane Sobral - Cristiane Sobral
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Rio de Janeiro. Qualquer dia da semana num tempo que passa morno, sem
novidades. Num bairro distante no subúrbio da zona oeste, uma criança negra
de dez anos e pequenos olhos castanho-escuros meio embaçados pelo
horizonte sem perspectivas é acusada injustamente. Em meio ao espanto,
descobre que existem pessoas descontentes com a sua maneira de ser e
decide lutar para manter intactas as suas raízes.
Os ataques começaram quando fui apresentada a uns pentes estranhos,
incrivelmente frágeis, de dentes finos, logo quebrados entre as minhas
madeixas acinzentadas. Pela primeira vez ouço a expressão cabelo “ruim”.
Depois uma vizinha disse a minha mãe, que todos os dias lutava para me
pentear e me deixar bonitinha como as outras crianças, que tinha uma solução
para amolecer a minha carapinha “dura”.
Pela primeira vez foram violentadas as minhas raízes, senti muita dor, e fiquei
frágil, mas adquiri também uma estranha capacidade de regeneração e de ter
idéias próprias. Eu sabia que não era igual às outras crianças. E que não podia
ser tratada da mesma forma. Mas como dizer isso aos outros? Minha mãe me
amava muito, é verdade, mas não percebia como lidar com as nossas
diferenças.
Eu cresci muito rapidamente, e para satisfazer aos padrões estéticos não podia
mais usar o cabelo redondinho do jeito que eu mais gostava, pois era só lavar e
ele ficava todo fofinho, parecendo algodão. Uma amiga negra que eu tinha
costumava amarrar uma toalha na cabeça, e andar pela casa, fingindo que
tinha cabelo liso e dizia que o sonho dela era ter nascido branca. Eu achava
estranho. Não percebia como alguém poderia ser algo além daquilo que é.
Minha mãe decidiu que o meu pixainho tinha que crescer e aparecer. Lembro
do pente quente que se usava na época, para fazer o crespo ficar “bom”, e da
marca do pente quente que tatuou meu ombro esquerdo, por resistir àquela
imposta transformação. Era domingo, íamos todos a uma festa, e eu tinha que
ficar bonita como as outras. No caminho, caiu uma chuva, dessas de verão, e
em poucos minutos, houve o milagre, pois a água anulou o efeito do pente. Eu
chorava porque achava que o meu cabelo nunca voltaria ao normal, e minha
mãe ficou brava porque eu estava parecendo comigo, de um jeito nunca antes
visto!
Por um tempo tive paz. Fazia o que bem entendia com meus fios, mas sabia
que algo estava sendo preparado. A tal vizinha apareceu lá em casa dizendo
que viajaria por uns dias, mas que quando voltasse traria um produto para dar
jeito no meu rebelde. Lamentava o fato de que eu não era tão escurinha, mas
tinha um bombrilzinho! Dormi com medo. Sonhei com uma família toda pretinha
e com uma vó que me fizesse tranças como aquelas que eu vi numa revista,
cheias de desenhos na cabeça, coisa que só a minha carapinha permitia
fazer...Mas minha mãe não sabia nada dessas coisas...
O henê era um creme preto muito usado pelas negras no subúrbio do Rio de
Janeiro, que alisava e tingia os crespos. A propaganda da embalagem mostrava
uma foto de uma mulher negra sorridente com as melenas lisas. Só que o efeito
do produto não era eterno, logo que crescesse um cabelinho novo, era
necessário reaplicar o creme, dormir com bobies, fazer touca, e outras ações
destinadas a converter o cabelo “ruim”, em “bom”. O produto era passado na
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27/12/2023, 20:00 Pixaim, conto de Cristiane Sobral | Cristiane Sobral
cabeça bem quente e mole, mas quando esfriava endurecia. Uma hora depois,
a cabeça era lavada com água fria em abundância até a sua total eliminação.
Jamais esquecerei a minha primeira sessão de tortura. Era um bonito dia de sol
e céu azuladíssimo. Eu brincava no quintal distraída quando ouvi o chamado
grave de minha mãe, já com a panela quente nas mãos, e pensei com pavor na
foto da mulher com cabelo alisado. Nesse momento tive a certeza de que
mamãe queria me embranquecer! Era a tentativa de extinção do meu valor!
Chorei, tentei fugir e fui capturada e premiada com chibatadas de vara de
marmelo nos braços. Fim da tentativa inútil de libertação. Sentei e deixei o henê
escorrer pelo pescoço enquanto gelava por dentro, até sentir a lâmina fria da
água gelada do tanque de concreto penetrando em meu couro cabeludo.
Depois, já era tarde, minha mãe encheu minha cabeça de bobies. Segui inerte.
Chorei insone aprisionada pelos bobies amarrados na cabeça, sentindo uma
imensa dor e o latejar dos grampos apertados.
Dia seguinte. Minha mãe me chamou inesperadamente carinhosa e me colocou
frente ao espelho. Pela primeira vez disse:
- Você está bonita! Pode brincar, mas não pule muito para não transpirar e
encolher o cabelinho.
Eu olhei e não acreditei. Já tinha a expressão da mulher da caixa de henê.
Chorei pela última vez e jurei que não choraria mais. Porque era tão difícil me
aceitar? Dei adeus aquilo que jamais consegui ser, me despedi silenciosamente
da menina obediente, e comecei a me transformar.
Os vizinhos ficaram felizes com a confirmação da profecia. Diziam que preto
não prestava mesmo. Todo mundo se sentia no direito de me dar uns tapas,
para me corrigir, para o meu bem. Eu era tudo de péssimo, ingrata, desgosto da
mãe, má, bruxa. Meus irmãos também colaboravam me chamando de feia,
bombril, macaca. Era o fim.
Eu já não resistia e comecei a acreditar no que diziam. Todos os dias eram
tristes e eu tinha a certeza de que apesar do cabelo circunstancialmente “bom”,
eu jamais seria branca. Foi aí que eu tive uma inesperada luz. Minha mãe
queria me embranquecer para que eu sobrevivesse a cruel discriminação de ser
o tempo todo rejeitada por ser diferente. Percebi subitamente que ela jamais
pensara na dificuldade de ter uma criança negra, mesmo tento casado com um
homem negro, porque que ela e meu pai tiveram três filhos mestiços que não
demonstravam a menor necessidade de serem negros. Eu era a ovelha mais
negra, rebelde por excelência, a mais escura e a que tinha o cabelo “pior”. Às
vezes eu acreditava mesmo que o meu nome verdadeiro era pixaim.
O negro sempre foi para mim o desconhecido, a fantasia, o desejo. Cresci
tentando ser algo que eu não conhecia, mas que intuitivamente sabia ser meu,
só meu. O meu cabelo era a carapaça das minhas idéias, o invólucro dos meus
sonhos, a moldura dos meus pensamentos mais coloridos. Foi a partir do meu
pixaim percebi todo um conjunto de posturas que apontavam para a
necessidade que a sociedade tinha de me enquadrar num padrão de beleza, de
pensamento e opção de vida.
Quinze anos depois, em Brasília, no coração do planalto central, é segunda-
feira, dia de começos. Uma mulher madura de olhar doce e fértil vê sua imagem
no espelho e ajeita com cuidado as tranças corridas, contemplando com
satisfação a história escrita em seu rosto e a beleza que os pensamentos
dignos conferem à sua expressão. É uma mulher livre, vencedora de muitas
batalhas interiores, que se prepara para a vida lutando para preservar a sua
origem, pois sabe que é a única herança verdadeira que possui. Ela aprendeu e
jamais esquecerá. A gente só pode ser aquilo que é.
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