Cartas para Varsóvia: Escritas de Crianças No Entreguerras

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DADOS INTERNACIONAIS DE CATALOGAÇÃO NA PUBLICAÇÃO (CIP)

N329c

Nawroski, Alcione -
Cartas para Varsóvia: Escritas de Crianças no
entreguerras / Alcione Nawroski. – São Paulo: Pimenta
Cultural, 2024.

Livro em PDF

ISBN 978-65-5939-977-2
DOI 10.31560/pimentacultural/2024.99772

1. Pedagogia de Janusz Korczak. 2. Educação e Infância.


3. Direito das Crianças. 4. I Guerra Mundial. 5. II Guerra
Mundial. I. Nawroski, Alcione. II. Título.

CDD: 370.323

Índice para catálogo sistemático:


I. Educação
II. Direitos Humanos
Simone Sales • Bibliotecária • CRB ES-000814/O
Copyright © Pimenta Cultural, alguns direitos reservados.

Copyright do texto © 2024 a autora.

Copyright da edição © 2024 Pimenta Cultural.

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Elizabete de Paula Pacheco Thais Karina Souza do Nascimento
Universidade Federal de Uberlândia, Brasil Instituto de Ciências das Artes, Brasil
Elton Simomukay Viviane Gil da Silva Oliveira
Universidade Estadual de Ponta Grossa, Brasil Universidade Federal do Amazonas, Brasil
Francisco Geová Goveia Silva Júnior Weyber Rodrigues de Souza
Universidade Potiguar, Brasil Pontifícia Universidade Católica de Goiás, Brasil
Indiamaris Pereira William Roslindo Paranhos
Universidade do Vale do Itajaí, Brasil Universidade Federal de Santa Catarina, Brasil

Parecer e revisão por pares

Os textos que compõem esta


obra foram submetidos para
avaliação do Conselho Editorial
da Pimenta Cultural, bem como
revisados por pares, sendo
indicados para a publicação.
SUMÁRIO
Agradecimento .........................................................................................12

Apresentação.............................................................................................13

Prefácio....................................................................................................... 16

CAPÍTULO 1
Janusz Korczak entre as mulheres......................................................23

CAPÍTULO 2
A escrita dos diários................................................................................29

CAPÍTULO 3
Mały Przegląd............................................................................................46

CAPÍTULO 4
A amizade................................................................................................... 57

CAPÍTULO 5
Dom Sierot.................................................................................................. 61

CAPÍTULO 6
A casa da Rosinha.................................................................................... 73
CAPÍTULO 7
Nasz Dom....................................................................................................86

CAPÍTULO 8
Órfãos – filhos da guerra........................................................................94

CAPÍTULO 9
Os Adultos..................................................................................................111

CAPÍTULO 10
A neve.........................................................................................................121

CAPÍTULO 11
A escola..................................................................................................... 125

CAPÍTULO 12
Os professores........................................................................................ 134

CAPÍTULO 13
A Emigração..............................................................................................141

CAPÍTULO 14
As Forças Armadas................................................................................ 172

CAPÍTULO 15
Fábulas, Imaginação e Fantasia........................................................ 178

CAPÍTULO 16
Os animais................................................................................................ 188
CAPÍTULO 17
Rei Mateuzinho I..................................................................................... 197

CAPÍTULO 18
A infância de Henryk Goldszmit........................................................ 201

Referências............................................................................................. 208
Filme................................................................................................................... 209
Jornais ............................................................................................................... 210

Índice remissivo...................................................................................... 212


SUMÁRIO

11
AGRADECIMENTO
A concretização deste livro foi possível graças as muitas e
muitas mãos que colaboraram nesse trabalho, ora de forma quase
espontânea, ora sob a pressão dos prazos, uma vez que também
fez parte das atividades desenvolvidas com os estudantes do curso
de filologia de língua portuguesa da Universidade de Varsóvia, entre
os anos de 2020 e 2022. Dessarte, evoco um especial agradeci-
mento aos estudantes Aleksandra Węglarz, Aneta Tylek, Dominika
Niestrata, Helena Dobak, Julia Bućko, Julia Tylman, Karol Zbrzeźniak,
Karolina Kłobukowska, Katarzyna Lis, Klaudia Chrzan, Magdalena
Witkowska, Marlena Ruszkowska, Marta Litwinowicz, Mikołaj Pilecki,
Sandra Spurek, Weronika Owczarek e Zuzanna Janiszewska que,
sob minha coordenação, empenharam-se em passear e desvendar
a língua portuguesa do Brasil ao praticarem a tradução da língua de
partida (polonês), falada e escrita por crianças e adolescentes da
década de 1920/1940, para a língua de chegada (português), falada
e escrita pelos brasileiros nos dias de hoje, sobretudo, esforçando-se
para manter a ternura dos escritos das crianças e adolescentes do
período entreguerras.

A autora

SUMÁRIO

12
APRESENTAÇÃO
O livro revela uma série de cartas escritas por crianças e ado-
lescente ao jornal Mały przegląd (Pequeno Jornal) sediado em Varsóvia,
no período entreguerras (1926-1939), organizado e dirigido inicialmente
por Janusz Korczak e posteriormente pelo seu primeiro-secretário
Igor Newerly. Dentre as várias ações pedagógicas coordenadas por
Korczak, pretendemos dar especial atenção ao jornal Mały Przegląd,
situado entre os anos 1926-1939, na rua Nowolipki n.º 7, em Varsóvia.
Idealizado por Janusz Korczak, durante 13 anos, o jornal deu voz as
crianças, inicialmente de Varsóvia, depois de toda a Polônia e mais
tarde de vários outros países. Foram aproximadamente 50.000 car-
tas escritas autenticamente por crianças órfãs, filhos de trabalhadores,
mercadores, industriais, intelectuais, judeus polonizados e ortodoxos.

As cartas, originalmente publicadas no jornal mencionado e


atualmente compiladas no arquivo on-line da Biblioteca Nacional da
Polônia, foram traduzidas por um grupo de estudantes-pesquisado-
res poloneses e brasileiros e compuseram a materialidade dos jornais
que constituem um dos arcabouços da imprensa pedagógica. O jornal
Mały przegląd consolidou-se como um jornal escrito por crianças para
crianças, mediados por uma equipe de adultos. Assim, evocamos as
pesquisas sobre a imprensa na educação para o nohall deste trabalho,
sinalizando que o jornal Mały przegląd constitui-se como um aporte
da imprensa pedagógica, uma vez que entre as questões da sua reali-
dade social, crianças e adolescentes abordavam, no tocante aos mui-
tos temas, a pujante realidade social da escola à suas vidas.

Para Nóvoa, “a imprensa é, provavelmente, o local que faci-


SUMÁRIO lita um melhor conhecimento das realidades educativas” (2002, p. 31).
Como pesquisadora do campo da história da educação, compreendo
que os jornais compõem uma materialidade instigante a ser desvelada,
uma vez que constituem um dos principais arcabouços da imprensa

13
pedagógica da primeira metade do século XX, quando a imprensa
escrita, assim como os programas de rádio, era fortemente propagada.
Ao se tratar do jornal Mały przegląd, também encontramos uma espé-
cie de conteúdos de cunho pedagógico, sobretudo nas fábulas assi-
nadas com pseudônimos, nas críticas encaminhadas pelos leitores e
na troca de informações entre os leitores infanto-juvenis que cada vez
mais encontravam-se sob as ameaças antissemitas.

À medida que nossas leituras se intensificaram, surgiu a ideia


de compartilhar as escritas das crianças e adolescentes do período
entreguerras, com o devido teor das alegrias e tristezas, com a comuni-
dade de leitores da língua portuguesa. Assim, começou o interesse em
traduzir alguns dos artigos, que escolhemos ano a ano, como forma de
revelar o período entreguerras sob o olhar das crianças e adolescentes
que encontravam na escrita e na leitura uma forma de manifestarem
suas emoções, sentimentos e angústias. Vale a pena salientar que, à
medida que as traduções progrediam, nossos sonhos e medos emer-
gidos dos escritos coadunavam com as ondas fascistas e neonazistas
pelo mundo nos últimos anos. A cada artigo que líamos, mais e mais
emergiam os sentimentos de uma época que foi marcada por medos
e angústias, mas também de esperanças. Ademais, os artigos encon-
tram-se permeados de informações históricas, de sonhos e desilu-
sões, de vidas e mortes no período entreguerras. Para Janusz Korczak,
as crianças sonham mais que os adultos e por isso não podemos dei-
xar que seus sonhos morram antes do tempo. O educador acreditava
que dar o poder de voz e de escrita às crianças era uma forma de dar
sentido à vida àquelas que, dada as condições sociopolíticas, tinham
pouco para acreditarem nela. Enfim, traduzir as cartas também foi uma
forma de esperançar (FREIRE, 2004) e alento em tempos marcados
pela desesperança política e pela pandemia do Covid-19.

SUMÁRIO Na condição de idealizador e primeiro editor do jornal, durante


a primeira edição, Janusz Korczak fez um convite às crianças descre-
vendo as instalações da sede do jornal, o qual funcionaria em uma
grande casa de esquina, próxima a um parque infantil e um lago com

14
barcos e pedalinhos. No inverno, também haveria uma pista de gelo
para patinação. Supostamente, nos arredores do prédio, haveria bici-
cletas, carros e aviões que entregariam as cartas vindas do mundo
todo. A sede do jornal contava com 12 aparelhos telefônicos, para os
quais as crianças poderiam telefonar para fazer perguntas e registrar
reclamações. A partir deste primeiro convite à escrita, cada vez mais
crianças foram sentindo-se impulsionadas a enviarem suas cartas
e assim Mały przegląd conquistou leitores e escritores incialmente
de Varsóvia, depois de toda a Polônia e mais tarde de todos aqueles
países que foram abrigo, principalmente para a diáspora judaica.

Alcione Nawroski

Florianópolis, 9 de outubro de 2023.

Haverá três editores - Um velho (careca, de óculos) para


evitar a bagunça. Um jovem editor para atender meni-
nos e uma jovem editora para receber as meninas. Assim
ninguém vai sentir vergonha e todos podem falar de
forma bastante honesta e em voz alta. O que estão preci-
sando? O que está se passando com cada um de vocês?
Quais são suas preocupações?

Quem quiser pode falar, quem quiser pode escrever na


hora, na própria redação do jornal. Aqui tem mesas e cola-
boradores para auxiliarem vocês, além de gavetas para
guardarem seus textos. Para aqueles que tem vergonha de
escrever ou escrevem mal, os erros serão corrigidos e se
caso não quiserem escrever porque tem vergonha da sua
escrita, os colaboradores da redação poderão ajudar. [...]

SUMÁRIO Cumprimentos

JANUSZ KORCZAK

Varsóvia, 9 de outubro de 1926.

15
PREFÁCIO
Como bisneta da Senhora Zofia Sychołda, uma das pupi-
las de Janusz Korczak, que por muitos anos viveu no orfanato Nasz
Dom (Nosso Lar), apresento com grande entusiasmo este notável
livro de Alcione Nawroski, “Cartas para Varsóvia escritas de crianças
no entreguerras”, aos leitores brasileiros. O livro vai muito além de
simplesmente celebrar os feitios pedagógicos de Janusz Korczak; é
um poderoso tributo à essência duradoura e à permanência do seu
espírito naqueles dedicados à nobre causa da educação e ao cui-
dado dos mais pequenos. Que as memórias e o legado de Janusz
Korczak não se apaguem, mas que suas marcas permaneçam inde-
léveis assim como marcam a história de minha família.

Os olhos da jovem Zofia Sychołda, carinhosamente chamada


de Zosia, percebiam o mundo de forma única, entretanto, talvez não
tão diferente da experiência das crianças de hoje, sobretudo aquelas
que vivenciam os contextos bélicos. Zosia veio ao mundo em 1907,
nascida em uma modesta família de operários poloneses. Se o tempo
da infância é o tempo do brincar, para Zosia foi um tempo diferente.
Desde muito jovem, ela testemunhou eventos que ultrapassavam a
inocência e a vivência típica de uma criança.

O início do século XX trouxe consigo desafios avassaladores


para aqueles que habitavam as terras polonesas. A cidade de Łowicz,
onde Zosia veio ao mundo, estava sob a égide do chamado Reino da
Polônia, parte integrante do vasto Império Russo. Quando Zosia tinha
apenas 5 anos, seu pai, Jakub, faleceu tragicamente em um acidente
ferroviário, deixando-a órfã de pai. Dois anos mais tarde, a Primeira
SUMÁRIO Guerra Mundial eclodiu, colocando as terras onde a pequena Zosia
residia sob o jugo das ocupações alemã e austro-húngara. Assim,
Zosia se viu imersa no turbilhão da Guerra desde muito nova.

16
Em 1915, os poloneses e outros grupos étnicos dessa região
foram deportados para o interior da Rússia. A jovem Zosia e sua mãe
Karolina, se uniram a mais de 200 mil refugiados do béženstvo - uma
evacuação em massa ocorrida durante a Primeira Guerra Mundial.1
Em meio ao caos, deixaram para trás o Reino da Polônia, cientes de
que jamais retornariam. - Por que estavam fugindo? - Foi por coer-
ção ou escolha voluntária? São questões que permanecem como
enigma. Talvez Karolina, ao ter que criar seus filhos sozinha, tivesse
ouvido rumores difundidos pela máquina da propaganda czarista,
narrativas sobre alemães hostis que incendiavam vilarejos inteiros e
dizimavam mulheres e crianças. Esses sussurros poderiam ter che-
gado até ela, através de camponeses ou de padres ortodoxos. Outra
possibilidade seria que Karolina, trabalhava em uma das fábricas
cujos donos ordenavam a fuga imediata para a Rússia. Rumavam
para o leste não apenas trabalhadores, mas também funcionários
públicos, banqueiros e acadêmicos. A fuga ocorria de várias manei-
ras - a pé, de carruagem, de trem e até por navio ou a cavalo. A
escassez de alimentos era uma realidade constante. Doenças como
sarampo, tifo e cólera se alastravam rapidamente.

A jovem Zosia não tinha noção do que o futuro lhes reservava


- poderiam ir para qualquer parte do vasto território do Império Russo.
Aqueles com mais sorte encontraram refúgio nas margens do Rio
Volga; os menos afortunados foram ainda mais longe, ultrapassando
os Montes Urais ou até mesmo chegando à Sibéria. Infelizmente,
Zosia e sua mãe não tiveram sorte - nenhuma entidade polonesa de
auxílio conseguiu resgatá-las a tempo para evitar a deportação delas
para o interior da Rússia. Provavelmente desembarcaram na estação
de Dawlekanowo, a cem quilômetros de Ufa, vindas de trem e segui-
ram a cavalo ou a pé até chegar a Ufa, na região oeste dos Montes

SUMÁRIO
1 A história de Zofia Sychołda está baseada em seu deslocamento forçado para a Rússia, sua es-
tadia lá e seu retorno à Polônia, que foi reconstruída com base nas informações sobre os deslo-
camentos contidas no livro de Aneta Prymaka-Oniszk, „Bieżeństwo, 1915. Zapomniani uchodźcy”,
Wydawnictwo: Czarne 2022.

17
Urais. Lá, assim como outros refugiados, encontraram abrigos em
escolas, mosteiros e sinagogas. Zosia, desde jovem, tornou-se uma
pequena refugiada, carregando consigo a memória angustiante da
fuga. Inicialmente, receberam ajuda dos russos. Entretanto, a par-
tir de 1916, a situação começou a mudar gradualmente; os habitan-
tes locais se tornavam cada vez mais desconfiados e a hostilidade
aos refugiados tornou-se constante com o desencadeamento da
Revolução Bolchevique.

Em 1917, a Revolução de Fevereiro surgiu como um desafio


ao regime do Czar Nicolau II Romanov. Entretanto, a guerra civil,
caracterizada por sua brutalidade, violência, hostilidade e fome, não
atingiu a cidade de Ufa imediatamente, mas um ano mais tarde.

Embora ainda não compreendesse as grandes mudanças


que estavam por vir, Zosia vivera o trauma devastador da guerra civil.
Seus olhos presenciaram o indizível, algo que nenhuma criança jamais
deveria testemunhar: a morte constante. Os corpos dos falecidos
jaziam pelas ruas, uma visão que ficara gravada na memória da Zosia.

A conquista dos bolcheviques marcou o início de uma longa


jornada de retorno à Polônia. Inicialmente, entre os anos de 1918-
1919, os que estavam mais próximos das fronteiras foram os primei-
ros a retornar. Aqueles que estavam no interior só conseguiram vol-
tar após o desfecho da Guerra Polaco-Soviética, em 1921. Zosia e sua
mãe encontravam-se entre esses retornados. A última parada em
solo russo foi em São Petersburgo, de onde partiram de trem para
Varsóvia. As lembranças da antiga capital do Império Russo, devas-
tada pela guerra, ficaram cravadas em sua mente. Após uma exaustiva
jornada, a pequena Zosia finalmente regressou à Polônia libertada,
carregando consigo as marcas de uma história de vida turbulenta.

SUMÁRIO Quando Zosia retornou à Polônia, já estava com 16 anos.


A casa que habitava antes da deportação havia desaparecido, dei-
xando apenas lembranças. Foi então que a sua mãe, Karolina, tomou
conhecimento de Nasz Dom, em Pruszków, na região metropolitana de

18
Varsóvia, inaugurada em 15 de novembro de 1919, pelo Departamento
de Assistência à Criança Operária. Mas, por que Karolina decidiu
enviar sua filha adolescente para uma instituição de crianças órfãs?
Não sabemos ao certo, mas naquela altura, sua mãe devia estar com
56 anos, a cidade estava em ruínas e faltavam estruturas básicas de
educação, saúde e moradia. Contudo, o “Nosso Lar” prometia, nas
palavras de Korczak, “uma sociedade infantil fundamentada em prin-
cípios de justiça, fraternidade, direitos e deveres”.2

Após a independência da Polônia, Janusz Korczak estava


consciente da participação das crianças para uma sociedade mais
democrática, e por isso acreditava numa autogestão infantil, onde
desde cedo as crianças tomassem conhecimento dos seus direitos
e deveres. Sobre essa questão, o autor tratou com bastante maes-
tria na parábola, espécie de Peter Pan polonês, “Rei Mateuzinho I”,
que era uma referência para seus pupilos. Curiosamente, os filhos e
netos de Zofia também cresceram ouvindo a histórias do monarca
Mateuzinho. A narrativa do pequeno rei trata de temas como lide-
rança, responsabilidade e coletividade.

O “Nosso Lar” dirigido por Falska e Korczak operava sob


diversas estruturas organizacionais - plantões, ajuda voluntária, res-
ponsabilidades laborais, tarefas práticas escolares. Zofia lembrava
com orgulho sobre as suas responsabilidades como “plantonista”,
sendo incumbida pela limpeza da casa, cuidado das crianças, pre-
paração de refeições e assistência aos enfermos. Os plantões eram
contabilizados como conquistas individuais, recompensados com
um “cartão postal comemorativo”. Zosia acumulou até quatro desses
cartões, um deles recebido no outono de 1922 por ter se levantado
cedo durante 91 dias consecutivos.

Korczak enfatizava também a importância da autoavaliação


SUMÁRIO e avaliação dos demais colegas. Conduzia plebiscitos nos quais os

2 Maryna Falska, „Zakład wychowawczy Nasz Dom, Książnica Pruszkowska, 2014, p. 180.

19
alunos avaliavam os novatos, recém-chegados. Zofia participou de
um desses plebiscitos sobre o indisciplinado Leonardo, onde corajo-
samente criticou o garoto por suas ofensas maliciosas e comporta-
mentos inadequados na casa.3

Em 1925, o “Nosso Lar” estabeleceu um limite de idade


entre 7 e 15 anos para a educação. Nesse momento, Zofia já con-
tava com 20 anos. Para permanecer na instituição, ela teve que obter
a autorização do Conselho da Casa. Matriculada em um convento
de formação de professores para escolas primárias, seu pedido foi
aprovado. Ela conseguiu permanecer por mais alguns anos. Em 1927,
“Nosso Lar” foi realocada de Pruszków para o bairro de Bielany, em
Varsóvia. Zofia continuou lá, contribuindo no cuidado das crianças.
Semanalmente, Korczak os visitava para abordar uma série de ques-
tões relativas à educação dos pequenos. Foi em 1931, que Zofia se
casou, iniciando assim sua própria família.

Quais eram as lembranças que Zofia tinha de Janusz


Korczak? A imagem dele como um pai dedicado às crianças foi pin-
tada com ternura e admiração nas suas memórias dos tempos que
ela viveu no “Nosso Lar”. A abordagem amorosa e atenciosa dele,
sua devoção incansável às crianças e seu comprometimento com a
pedagogia marcaram suas memórias. Cada vez que Korczak visitava
a casa, distribuía doces aos pupilos, os consultava, media e pesava,
conversava com eles e dedicava bastante tempo a cada um deles.
À medida que o tempo passava, Zofia compreendia cada vez mais
a magnificência do pedagogo que Janusz Korczak era. O retrato que
ela guardava dele não apenas revelava a profundidade de seu amor
pelas crianças, pelas quais ele sacrificou a própria vida, mas também
demonstrava sua habilidade excepcional de inspirar e moldar men-
tes jovens, mostrando-se como um modelo exemplar de educador.
SUMÁRIO
3 A biografia de Zofia Sycholda, com base em sua estadia em “Nosso Lar”, foi reconstruída
parcialmente graças ao livro de Maryna Falska „Zakład Wychowawczy Nasz Dom”, Książnica
Pruszkowska, 2014.

20
Como Janusz Korczak influenciou Zofia? Ela adentrou a vida
adulta como uma mulher consciente, responsável e justa. Sua deci-
são de seguir os passos do seu mestre demonstrou a força e a con-
vicção que ela absorveu da sabedoria dele. No período pós-guerra
na Polônia, optou por dedicar-se ao ensino de matemática e história.
Trabalhou na Escola Primária Pública n. 1, em Skierniewice. Durante
seus 84 anos de vida, ela atravessou momentos desafiadores, sobre-
vivendo as duas Guerras, à tragédia da morte de Janusz Korczak e
Maryna Falska, à Guerra Fria, à República Popular da Polônia, à lei
marcial e às complexas negociações da Mesa Redonda em 1990.
Zofia faleceu tranquilamente enquanto dormia em sua casa, no ano de
1991, pouco após a Polônia conquistar sua independência definitiva.

Interessante destacar que suas duas filhas também seguiram


o caminho da docência e trabalho com crianças – Minha avó Wanda
lecionou matemática e sua irmã Barbara tornou-se pediatra. Eu,
como bisneta também escolhi a missão de ensinar – honrando e pre-
servando a tradição feminina da educação iniciada por minha bisavó,
Zofia Sychołda que foi influenciada por Janusz Korczak. Como inte-
grante da quarta geração de Zofia que encontrou abrigo em “Nosso
Lar”, sinto-me profundamente conectada ao legado deixado pelo
educador. Em parte, devo a Janusz Korczak o lugar que ocupo hoje
no mundo. Enfim, a história de Zofia não é apenas para elucidar uma
homenagem a Janusz Korczak, mas também uma prova da continu-
ação do seu legado. É com imensa comoção e gratidão que escrevo
este prefácio, o qual permitiu rememorar a história de minha bisavó
e assim faço um convite caloroso para a leitura do livro.

Varsóvia, 23 de dezembro de 2023.

Agata Błoch

SUMÁRIO

21
Figura 1 – Cartão postal recebido de Janusz Korczak por ter
se levantado cedo durante 91 dias consecutivos.

SUMÁRIO

Fonte: Arquivo da Família da Zofia Sychulda. Outono de 1922.

22
1
JANUSZ KORCZAK
ENTRE AS MULHERES
Em 5 agosto de 19424, enquanto as crianças tomavam o café,
o refeitório de Dom Sierot (Lar do Órfão) foi invadido aos gritos por
um soldado alemão. Janusz Korczak, que estava na companhia das
crianças, levantou-se e dirigiu-se até o soldado para pedir que se
retirasse do recinto e conversassem lá fora. O diálogo ocorreu em
alemão, para as crianças não entenderem do que se tratava. Minutos
depois, Korczak adentrou o refeitório, dirigiu-se à senhora Stefania e
em tom de sobreaviso, advertiu: - 15 minutos. A sra. Stefa (como era
comumente chamada), dirigiu-se às crianças e avisou que vão fazer
um passeio e por isso precisam vestir suas melhores roupas, pegar
seus objetos pessoais e colocarem em suas mochilas: - temos pouco
tempo, então precisamos ser rápidos, advertiu Pani Stefa. Não há um
dado preciso, mas estima se que nesse momento, Korczak e Stefa
tutelavam cerca de 200 a 300 crianças judias, em sua maioria órfãs.

A passagem acima reconstitui uma cena do filme “As duzen-


tas crianças do Dr. Korczak”, dirigido por Andrzej Wajda, lançado em
1990, cujo título original é Korczak5. O filme se inicia pelo último dia
no orfanato Dom Sierot, situado primeiramente num antigo bairro
industrial de Varsóvia, onde funcionou até o outono de 1940, quando
após sucessivos ataques nazistas, as crianças foram transferidas
para o distrito central da cidade, cuja área era delimitada para aque-
les que carregavam a Estrela de Davi no braço, conhecido mundial-
mente como o Gueto de Varsóvia.

Enquanto as crianças arrumavam suas mochilas, Janusz


Korczak pediu que os soldados acalmassem seus cães, pois as crian-
ças irão deixar o Gueto, enfileiradas, sem tumultos. A cena a seguir
é controversa - no filme vimos crianças enfileiradas, cantarolando

4 Não se sabe a data ao certo, pois várias fontes preferem tratar das duas datas.
SUMÁRIO 5 O filme foi indicado para concorrer ao melhor filme estrangeiro, mas não foi aceito, portanto, foi
exibido fora da competição do Festival de Cannes. Um ano depois, em 1991, foi laureado com o prê-
mio alemão de melhor fotografia. Para alguns estudiosos como a historiadora de cinema Annette
Insdorf, o longa está no mesmo patamar de “Cinzas e Diamantes” lançado pelo mesmo diretor em
1958 e tem como cenário o ano de 1945, período Pós-Segunda Guerra.

24
cantigas e acreditando que vão fazer um passeio de trem. Entretanto,
críticos do filme de Andrzej Wajda, como o cineasta francês Claude
Lanzmann descrevem a cena real como mais dura e cruel, apon-
tando para uma realidade de marasmo, tristeza, fome e devassidão;
quando naquele momento, as crianças de mais idade já haviam com-
preendido que aquela era a última viagem de trem.

Nas cenas descritas, Janusz Korczak está acompanhado da


pedagoga Stefania Wilczyńska. Ambos, fundaram Dom Sierot em
1912, unidos, inicialmente, pela afinidade pedagógica, compartilha-
vam dos mesmos ideais em relação a educação das crianças e ado-
lescentes, em que prezavam sobretudo a autonomia, a responsabili-
dade, o respeito e a liberdade.

Em que pese a elucubração de um herói como descrito na


cena do filme, também reproduzido em arquivos, fotografias e livros,
os feitios pedagógicos de Janusz Korczak, para Kicińska (2015), foram
em grande medida, amparadas por mulheres, pedagogas que na his-
toriografia do século XX, ficaram em segundo plano, sendo pouco
mencionadas. Além do mais, não podemos falar de Janusz sem des-
tacar o papel da sua mãe Cecylia, contagiada pelo tifo enquanto
cuidava do filho; sua irmã Anna, com quem morou por alguns anos
em Varsóvia; e por fim, as pedagogas Stefania Wilczyńska e Maryna
Falska que estiveram ao seu lado na direção dos orfanatos Dom
Sierot e Nasz Dom, respectivamente.

Apesar de não haver provas concretas de que houve uma


relação de afeição maior entre Stefa e Korczak, como a possibilidade
de um romance sondada pelas especulações de alguns pesquisa-
dores, para Kicińska (2015), falar sobre Korczak sem mencionar a
senhora Stefania empobrece o trabalho do médico e pedagogo, uma
vez que a Sra. Stefa foi a última a embarcar no trem, juntamente com
SUMÁRIO o Sr. Korczak e as crianças em agosto de 1942. Entretanto, o maior
elo encontrado entre os dois era do compartilhamento dos mesmos
princípios de educação, onde identificamos a intensa dedicação de
Stefa para o funcionamento do orfanato Dom Sierot.

25
A senhorita Stefa nunca se casou, mas ao invés de senho-
rita com o passar dos anos, preferiu ser chamada de senhora, justifi-
cando que no período entreguerras era muito difícil para uma mulher
solteira ter um “lugar de respeito” na sociedade varsoviense. Assim,
ao invés de Panna (senhorita), a escritora Magdalena Kicińska titu-
lou seu livro de Pani (senhora) Stefa, onde tenta revelar a partici-
pação da senhora Stefania desde a ideação até os últimos anos de
vida atuando junto com Janusz Korczak no orfanato Dom Sierot, no
atendimento a centenas de crianças judias-polonesas órfãs. Assim,
enunciamos que ao lado de Janusz Korczak, havia um trabalho pri-
moroso na educação e desenvolvimento das crianças realizado pela
pedagoga Stefania Wilczyńska, a qual embarcou junto com Korczak
e as crianças para o campo de extermínio em Treblinka.

A falta de visibilidade da presença feminina na literatura é


notória no campo pedagógico. Assim sendo, ainda que nos aten-
tamos em retratar os feitios de Janusz Korczak, não podemos dei-
xar de mencionar as mulheres que participaram intensivamente das
suas realizações pedagógicas, mesmo que historicamente suas atu-
ações foram secundarizadas na produção bibliográfica. A jornalista
Magdalena Kicińska destaca que tomou interessa pela vida de Stefa,
quando em 2012, durante um passeio pelas ruas de Wola, bairro de
Varsóvia, parou para descansar por alguns minutos em frente ao
portão de Dom Sireot, lhe surtiu uma questão: - como um orfanato
deste porte, com tantas crianças, pôde ser conduzido por Janusz
Korczak? Quem eram as outras pessoas que estavam junto dele? As
questões suscitadas reverberaram no livro publicado em 2015, e que
colocaram a Senhora Stefa no centro do funcionamento do orfanato.

Stefania Wilczyńska nasceu em 1886, em Varsóvia, em uma


família judia assimilada tendo como sua primeira língua o polonês.
SUMÁRIO Para as crianças do orfanato, lia poemas de Maria Konopnicka e can-
tava o hino da Polônia com pitadas de canções judaicas. De 1906
a 1908, estudou ciências naturais e médicas em Genebra e Liège,
se dedicando especialmente ao pensamento do pedagogo alemão

26
Friedrich Fröbel. Em 1909, retornou à Varsóvia, onde solicitou um
estágio no lar de crianças judias, lugar em que conheceu o médico
Henryk Goldschmidt. Na época, ele trabalhava como pediatra no
Hospital Infantil Bersohn e Bauman e começava a se interessar mais
pelos métodos pedagógicos, além de intensificar os escritos sob o
pseudônimo de Janusz Korczak.

Stefa gostava de contar sobre as descobertas de Darwin,


distribuía livros didáticos de botânica e contava histórias sobre a
natureza durante os passeios na casa de verão, a Casa da Rosinha.
Quando brava preferia resmungar em francês, para as crianças não
entenderem. Kicińska (2015), conclui em seu livro que uma mulher
com vestes pretas ficou à sombra de Korczak. Entretanto, sua pre-
sença foi marcante para as crianças que a conheceram, como aquela
senhora que “segurava as pontas” no orfanato, mas também segurava
o molho de chaves do Dom Sierot situado inicialmente na antiga Rua
Krochmalna n.º 92, atualmente Rua Jaktorowska n.º 66. Mulher que
gostava de vestir roupas pretas, de nariz grande, bochechas enru-
gadas, olhos profundos e uma mecha de cabelo curto sobre a testa,
carregando um molho de chaves pesadas, conferindo a limpeza e a
ordem da casa, de pouca risada e fala dura. Assim foi descrita por
algumas crianças que sobreviveram ao holocausto, possivelmente
porque deixaram o orfanato antes de agosto de 1942.

SUMÁRIO 6 Após o aniquilamento de praticamente 80% da cidade de Varsóvia durante a II Guerra, com ex-
ceção da principal área comercial, conhecida hoje como Cidade Velha (Stare miasto), que após a
Guerra foi reconstruída respeitando sua originalidade, as demais partes da cidade não mantiveram
seus traços, linhas, ruas e arquiteturas originais, portanto, o nome da rua em que está situado o
orfanato Dom Sierot foi alterado.

27
Figura 2 - Janusz Korczak e Stefania Wilczyńska em Gocławk.

SUMÁRIO Fonte: Arquivo da Família da Zofia Sychulda, 1936.

28
2
A ESCRITA
DOS DIÁRIOS
Desde jovem, por volta dos 19 ou 20 anos, Henryk Goldszmit
começou a participar de concursos literários, o que o motivou a
fazer uso de um pseudônimo. Ao escrever sua primeira peça tea-
tral, aproveitou a obra “A história do belo ferreiro Janasz Korczak”
(tradução literal) retirada do livro de Józef Kraszewski para assinar
sua primeira participação literária sob o pseudônimo de Janasz
Korczak. Curiosamente, quando o tipografo copiou os nomes dos
ganhadores do concurso, trocou uma vogal do nome Janasz e assim
surgiu Janusz Korczak. Janusz é o diminutivo de Jan (João), o qual em
português, podemos traduzir facilmente por Joãozinho.

O médico Janusz desde cedo interessou se pela vida das


crianças, registrava tudo. No sótão de Dom Sierot, quando as crian-
ças já estavam a dormir, conferia as anotações do peso e medidas
das crianças recolhidas naquele dia até reflexões mais teórico-peda-
gógicas. A compilação de seus diários foi publicada postumamente,
em 1958, pelo seu pupilo Igor Newerly, onde também retrata a labuta
diária do educador por comida para as crianças, as quais, desde o
início da Guerra, encontravam-se mais magras. Pessoas pelas ruas
morriam de fome todos os dias; a perseguição e o fuzilamento de
judeus eram constantes; além da frequente circulação de esteliona-
tários e contrabandistas pelas ruas do Gueto.

As crianças andam em círculos. Só a sua epiderme parece


normal. Mas debaixo dela só há cansaço, desalento,
cólera, revolta, desconfiança, pesar, saudade (KORCZAK,
[1958], 1986, p.105).

SUMÁRIO

30
Janusz escrevia sempre, quase todos os dias. Destes escritos,
publicados postumamente, os quais foram traduzidos no Brasil por
“Diário do Gueto”, encontramos:

Os diários íntimos são uma literatura sinistra. Eis um


artista, um cientista, um político ou um militar que
entra na vida transbordando de projetos ambiciosos,
que se embrenha em uma série de manobras poderosas,
provocantes, hábeis, faz prova de uma capacidade de
ação surpreendente. A ascensão continua: ele vence os
obstáculos, alarga a suas zonas de influência e, sempre
mais farto de experiências e amigos, vai passo a passo
em direção a seus objetivos previstos no início da sua jor-
nada. Isso pode durar dez, vinte ou trinta anos. Depois...
Depois vem o cansaço, diminui o entusiasmo [...]

O que fazer? É a velhice.

Alguns resistem, retardam o prazo, trabalham como


que pelo passado, às vezes até mais, forçando seu ritmo
por medo não dar conta de tudo. Para encarar melhor,
se alimentam de ilusões ou revoltados, são envolvidos
pela fúria. Outros, resignados, vão renunciando pouco a
pouco e começam a aceitar a aposentadoria. (KORCZAK,
[1958], 1986, p. 5-6).

Para Janusz, o teatro, o rádio, a literatura, os jornais e a escrita


eram recorrentes em seus feitios pedagógicos; comumente, a cada
ano, as crianças ensaiavam alguma peça de teatro. Já no Gueto, vimos
um Korczak mais reflexivo, sobre a sua vida, mas também sobre a dos
outros e principalmente dos seus pupilos. Em relação a sua própria vida,
SUMÁRIO a compara com a cidade de Varsóvia que, após o Acordo de Versalhes,
em 1919, a capital polonesa começou a se organizar por meio de associa-
ções e movimentos populares para impulsionar o crescimento e passar

31
a viver sua independência, uma vez que por mais de um século esteve
à mercê do Czarismo Russo, e por isso não desfrutava dos prestígios de
uma capital. Se a II Guerra, além de aniquilar muito mais vidas humanas
e destruir aproximadamente 80 porcento da capital polonesa, a I Guerra
alavancou a fome, a miséria, o desemprego e as doenças epidemiológi-
cas, além da morte. Importante ressaltar que ambas as Guerras tiveram
a cidade de Varsóvia como epicentro do holocausto.

Varsóvia pertence a mim e eu lhe pertenço. Digo mais:


eu sou esta cidade. Dividi com ela minhas alegrias e
minhas tristezas; o seu tempo era o meu, a sua chuva e a
sua lama também. (KORCZAK,[1958], 1986, p.33).

Na véspera do seu aniversário, em 21 de julho de 1944, Janusz


escreve, não sei se amanhã faço 63 ou 64 anos. Korczak brincava
com sua idade, justamente por não ter certeza se nasceu em 1878 ou
1879. Essa dúvida sempre o acompanhou e era motivo para divertir-se
com as duas idades. Isso aconteceu por ser registrado anos mais
tarde e estima-se que o pai tenha ficado em dúvida entre o calendário
judaico e o calendário cristão católico, fato que marca a sua biografia.
Por outro lado, muitas vezes manifestou seu incomodo por tamanho
relapso de um pai que era advogado. Aliado a esse fato, Korczak, em
alguns de seus escritos, evidenciou que em muitos momentos da
sua vida, sentiu-se um órfão mesmo com o pai vivo.

Na ausência do pai, a literatura e o teatro foram seu con-


forto. O médico e pedagogo acreditava que o teatro era uma boa
estratégia pedagógica para trabalhar com o imaginário das crianças.
Para o ano de 1944, havia escolhido a peça Dakghar (Agência de
Correios) do indiano Rabindranath Tagore. A peça foi apresentada
pela primeira vez em abril daquele ano e as demais apresentações
SUMÁRIO da peça ocorreram até o dia 18 de julho de 1944. Dois dias mais tarde,
as deportações para o Campo de Treblinka haviam se intensificado e
não ocorreram mais novas apresentações.

32
Figura 3 - Janusz Korczak com as crianças numa apresentação de teatro.

Fonte: Instituto de História Judaica, 18 jul.1942.

No dia que antecedeu a última partida de trem, escreveu pela


última vez em seu diário:

Reguei as flores, pobres plantas deste orfanato (...).


O soldado atrás do muro está vigiando meu trabalho.
Será que estou o irritando ou ele está apreciando meu
trabalho pacífico às 6 horas da manhã (...). Minha careca
na janela é um bom alvo? Ele está com um rifle. - Por
que será que ele está parado, olhando calmamente? Ele
não deve receber ordens. Ou, talvez ele tenha sido um
professor em uma escolinha do campo; um escrivão; um
varredor de rua em Leipzig ou um garçom em Colônia?
O que será que ele faria se eu acenasse com a cabeça para
ele? Ou se eu estendesse a mão amigavelmente? Talvez
ele não saiba como é isso aqui? Talvez ele tenha chegado
ontem de algum lugar distante ...”.

Último registro de Korczak, escrita na manhã de 4 de


SUMÁRIO agosto de 1942.(KORCZAK,[1958], 1986, p.129).

33
Entre as últimas anotações nos diários, destacamos com frequ-
ência a palavra “morte” – pois, em sua volta, tudo morria. Mesmo assim
o educador não deixava de almejar a vida, acreditava que a morte era
superada pela vida e assim continuava a fazer planos para depois da
Guerra. Janusz, assim como muitos ativistas da sua geração, partici-
param ativamente dos históricos conflitos militares, como a Guerra
Russo-Japonesa; a Grande Guerra; a Guerra Polonesa-Soviética e a II
Guerra Mundial. A incerteza política era certa, do resto, Korczak e seus
interlocutores buscavam apostar na formação humana por meio de
uma educação progressista - de amor e afeto - para com as crianças e
adolescentes, as vítimas mais desassistidas das catástrofes humanas.

Janusz já havia superado outras guerras e está era mais uma


que, de acordo com seus escritos, deveria ser passageira, por isso,
até os últimos dias de sua vida, fez questão de vestir a antiga farda do
exército polonês. Defensor da nação polonesa, buscava na educação
humanizadora o caminho para a liberdade constantemente amea-
çada pelos países vizinhos. Escrever era uma forma de esperançar e
queria passar isso para seus pupilos como podemos ver na carta de
Ester de Łodż que era ainda jovem e estava descobrindo o sol por
traz da janela, que sempre aparece depois da tempestade.

Meu centésimo dia no trabalho

É um dia qualquer de verão, infectado por pessoas ansio-


sas e febris. Fora da janela, o zumbido irritante da cidade,
dos carros, dos bondes e táxis. Na sala estão sentadas
algumas garotas concentradas no seu trabalho. Agulhas
passeiam pelas mãos tremulas, vestidos e roupas infantis.
Enquanto trabalham, as meninas conversam e riem alto.

SUMÁRIO Estou sentada na máquina de costura enfiada no canto


da sala. A lançadeira da minha máquina está coberta por
um tecido azul. As pernas se mexem constantemente:
pernas... arranhões... rodas... agulhas...

34
Vejo uma fileira de crianças para quem estamos costu-
rando as roupas: grandes e pequenas que reluzem a luz
do sol, vestidos curtos e brilhantes, uma fileira de cabeças
menores e maiores, crianças pobres e ricas, tristes e felizes.

Estou com o pensamento fincado em uma garota que


estava aqui a pouco, de aproximadamente quatro anos.

A mãe da menina ficava repetindo constantemente


a mesma coisa: – “Vejam como a minha filha é uma
criança fantástica!”

– “Lizenko, querida, diga-me.”

– Quem é Hitler?

“Hitler é...” a criança começou a gaguejar baixinho.

“Bárbaro, querida ...” a mãe confirmou.

A menina enfim se satisfez.

– “E o que Hitler faz?” continuou a mãe a indagar.

– Ele bate nos Judeus.

“Eu não disse?” gritou a mãe triunfante.

“Vejam como ela já conhece bem a política.

Em seguida contou uma longa história em que fez ques-


tão de dizer quão grandiosa é a inteligência da sua filha.

– Vejam que criança maravilhosa. Ela cumprimenta


quase todo mundo na rua. Afirmou a mãe alegremente.

A máquina em que eu costurava desapareceu por um


SUMÁRIO
momento. As rodas giravam cada vez mais e estavam
cada vez maiores, por fim desapareceram, comecei a
diminuir a velocidade. A lançadeira branca da máquina

35
de costurar se perdia no tecido azul. Aos poucos fui
parando, até me acalmar.

Sobre o tecido azul, parou um raio de sol. Somente


agora me dei conta quanto da luz do sol se espalhou
pela sala. Começo a pensar que as janelas fecham a vida
para as pessoas. Do lado de fora da janela moradores
perambulam pelas ruas. O ar circula sorrindo. A roda
que move a lançadeira volta a girar lentamente. A agulha
volta a perfurar o tecido e repete a palavra áspera:

– Vida, vida.

Memórias vem a minha cabeça. Pensamentos rodopiam


e atingem as sombras do meu pensamento. Novos fatos
reverberam memórias antigas, familiares, dispersas
pela realidade, mas como nuvens de fumaça começam a
juntar-se e tornarem-se vivas.

As costas doem, a garganta está seca. Largue tudo isso


e vai embora. Eu já não quero mais isso. Eu realmente
não aguento mais. Olho para a minha vizinha mais pró-
xima, futura amiga, também estudante. No início não
dei muita atenção a ela, mas ela começou a falar sobre
nós, jovens trabalhadoras.

– A decisão e força de vontade só depende de vocês. E se


voltou para todas nós:

– As decisões de vocês não devem contribuir com este


sistema nefasto e pobre. A sociedade precisa de pessoas
inteligentes que falem e expressem o que sentem.
SUMÁRIO
Por que será que ela está falando isso? – penso enquanto
estou debruçada sobre o tecido azul em cima da
máquina. Mesma coisa que meio ano atrás eu estava

36
pensando, mas eu fui honesta e continuei a trabalhar,
mesmo que hoje já não estou mais aguentando isso. Por
que será que eu penso assim? Será que preciso “amar”
o trabalho já que não tem escola para mim. Será que só
posso consertar roupas?

– A senhorita é um pouco ingênua – gritou uma jovem


menina que estava sentada do outro lado da sala.
Todas nós voltamos os olhares surpresos para a jovem
menina. (Eu quase nunca faço isso, de me meter na con-
versa do grupo).

Antes de mais nada, vou precaver minha vizinha e


futura amiga enquanto visto o manequim com o ves-
tido azul. Não podemos assim, do nada, largar os nossos
trabalhos. É a única coisa que nos resta. Nós simples-
mente não temos outra saída. Ou você acha que só a
qualificação será suficiente para conseguir um emprego
melhor? Bom seria se isso acontecesse. Eu mesma,
sou jovem, tenho saúde, formada no liceu e no ensino
profissionalizante do qual gosto muito, mas vou con-
seguir um emprego melhor? Quantas assim como nós
estão sem trabalhar.

Antes do almoço terminei o trabalho, respirei aliviada


e saí. Rapidamente corri pelas ruas, elas quase não
mudam. A aparência das ruas muda raramente. As lojas
estão organizadas quase sempre do mesmo jeito.

Eu olho para as pessoas quase com indiferença. Anos


atrás era diferente. Uma imagem nebulosa aparece
diante dos meus olhos. Eu sou uma garotinha. Sempre
SUMÁRIO paro na rua cheia de esperança e expectativa, porque a
qualquer momento poderá aparecer no meio da multi-
dão um herói que me pegará pela mão e levará para longe

37
desta cidade, onde há campos de florestas e pássaros.
Ou enquanto caminho na noite e ouço meus passos
fazendo barulho pelos becos, atravessando os obstácu-
los e espinhos das ruas e dou de cara com o rosto de uma
senhora, posso até ver seu pescoço e suas mãos. Quando
me dei conta estava no portão em frente ao prédio onde
moro, dei risada de mim mesma, pois lembrei que pre-
ciso subir até o quarto andar.

ESTER

Łodż, 1 de setembro de 1939.

O artigo de Ester foi publicado no último número de Mały


przegląd. Em seguida, no outono de 1939, a sede foi fechada pelos
nazistas. Não sabemos quantas cartas deixaram de ser publicadas,
estima-se que milhares, mais elaboradas, mais reflexivas e menos
esperançosas do que aquelas primeiras, em 1926. Os autores se mul-
tiplicavam, alguns multiplicavam seus artigos, que conforme a idade
e os anos escolares se somavam, mais conteúdos traziam para o jor-
nal. Ester, como vimos, relatou um dia do seu trabalho, onde mostrou
as angústias de uma jovem que sonhava por um mundo melhor em
meio as intempéries, às vésperas do início da II Guerra. Entretanto,
nos diários publicados nos primeiros anos de funcionamento, con-
seguíamos enxergar mais vida, e sobretudo mais esperança, seja nas
fábulas ou na chegada de um novo ano como podemos ver abaixo.

Algumas coisas que as pessoas perguntam

Quando se escreve um diário, deve-se fazer algumas


perguntas, pelas quais as pessoas sempre passam..
SUMÁRIO
Além das perguntas, como você se sente? Quando se é
um ator de cinema ou vai ser. Os adultos, ficam especu-
lando a vida porque acham que você tem muito dinheiro.

38
Meu Deus! Para que tanta especulação. - Eu nunca
penso em dinheiro. Pelo menos até que alguém me per-
gunte, se é bom ser um milionário. Eu respondo dizendo
que um cachorro bonito custa muito caro. Mas, falando
entre nós, todos os cachorros que eu tive não custaram
nenhum centavo. Acho que eram vira-latas, mas eram
cachorrinhos agradáveis visto que o valor do cachorro
consiste na afeição com o seu dono e não pelo quanto se
paga por ele. Se o cachorro gosta de você e respeita suas
ordens; se ele é esperto e consegue se comunicar com
você, então é um cachorro amável. Por isso, não presto
atenção na raça.

No capítulo 8, estava escrevendo um pouco sobre


dinheiro, porém, quero acrescentar algumas coisas
ainda para aqueles que estão falando que sou “afortu-
nado”. Primeiro porque tenho sorte e segundo porque
meu pai é o meu produtor. Sobre esse negócio de ator,
escuta se frequentemente a palavra produtor. Não sabia
o que isso significava e perguntei ao meu paizinho.

“Significa aquilo que o negócio exige de nós e nós damos


a ele o que ele cobra de nós” disse meu estimado pai. Em
seguida, fui acompanhar os cachorros pensativo.

Cheguei a conclusão de que a propaganda está acima


de tudo, inclusive de fazer rir e por isso exige alguma
coisa – vocês estão entendendo o que eu quero dizer. As
mulheres gostam de chorar. Isto significa que, literal-
mente, elas não gostam de chorar, mas elas têm motivos,
construídos socialmente, para fazerem isso. Os homens
assoam seus narizes em vez de chorar. Mas é a mesma
SUMÁRIO coisa. Quando vejo alguém da plateia tirar o lenço do
bolso, percebo que toquei a sensibilidade desta pessoa.

39
Cinco anos atrás (em 1922, quando tinha 8 anos e meio)
preparamos a peça chamada Zmartwienie (Preocupação).
Provavelmente, é minha peça preferida porque tem mui-
tas cenas cômicas e outras tristes, ou melhor dizendo,
tocantes. Sim, essa é a melhor palavra. Nessa peça há
uma cena em que um velho se aproxima. Eu visto nesta
cena os piores trapos. Tento muito preencher essa cena
com tristezas e alegrias. Estou certo de que as pessoas não
sabem – se riem ou choram, então fazem as duas coisas.

A segunda coisa que eu gosto em ”Zmartwienie” - são


minhas roupas. Elas mostram, na verdade, o quadro
de miséria e penúria, mas eu me sinto bem nelas. Não
suporto fantasias. Nunca foi tão difícil de atuar no papel
em Niech żyje król (Viva o Rei) porque tinha que estar
enfeitado como um príncipe. Eu tinha 7 uniformes
elegantes, todos quentes e alinhados, os sapatos enver-
nizados, colarinhos altos, gorros do exército e espadas
que me incomodavam.

O senhor Arthur Conan Doyle chegou ao auge da sua car-


reira, me lembro, quando fazia, Niech żyje król (Viva o Rei)
– lembro ainda que era tão difícil de entender o que ele
falava. Falava inglês perfeitamente, mas eu ouvia as pala-
vras e, ficava perplexo quando eu entendia finalmente suas
intenções. Em seguida, eu corria para a minha mãe.

“Olha filhinho, senhor Arthur fala inglês e nós falamos


americano”- disse mamãe e me aconselhou a escutar
cuidadosamente como fala o famoso autor do Sherlock
Holmes. Voltei e comecei a falar sobre meu cachorro
Butzi; como se perdeu, como encontrei-o, o quanto
SUMÁRIO esperto ele é, etc. E sobre isso o Senhor Arthur não pode
dizer nem uma palavrinha.

40
Senhor Arthur era um grande gentleman e estava feliz
porque vestia roupas bonitas. Eu precisava falar para
minimamente chegar a sua altura, visto que pega-
ria muito mal - um menino que veste trapos e não
entende nada de nada.

Mamãe guarda todos os figurinos que eu uso nas peças,


eles estão bem guardados no guarda-roupa. Um dos úni-
cos figurinos completos, dos quais não faço questão de
guardar é o figurino de Niech żyje król (Viva o Rei!), odeio
ele. O pior de tudo era vestir aquilo no verão, quando
seria bem melhor fazer uns buracos naquela roupara
para refrescar o corpo.

Certa vez, eu encontrei mamãe perto do guarda-roupa,


segurando o velho suéter que eu tinha usado para fazer o
papel de Bęben (Tambor).

Mamãe, o que está fazendo aí? – perguntei. Parecia que


mamãe estava chorando um pouco, agarrou-me e abra-
çou. Eu falei que não havia nenhum motivo para chorar.
Mas ela respondeu que eu ainda era um pouco criança e
não entendia isso. As mulheres as vezes tem dessas cosias.

Alegre ou pouco alegre, minha mãe é um milagre tanto


como meu papai. Fiz um bom negócio escolhendo esses
pais. Não encontrei semelhantes em qualquer parte do
mundo. As pessoas sempre me perguntam se eles são rígi-
dos comigo e eu responde que, às vezes sim, às vezes não.

Apenas agora, quando sou um pouco mais adulto,


entendo como era inteligente meu pai quando se dirigia
a mim e eu achava que ele estava sendo injusto comigo.
SUMÁRIO Ele impunha várias regras inquebráveis que era preciso
cumprir. Apesar de ele sentir se forçado a fazer isso, de
me forçar a obediência, fazia isso com muita bondade.

41
Mamãe não era muito melhor. O que significava que
eu não tinha permissão de gritar e correr até ela,
queixar-se, fazer manhas. Impossível. Minha mãe era
boa, mas sempre categórica, como se escreve nos livros.
Cheia de graça, mas categórica. Sou feliz que fui tão obe-
diente na minha estúpida cabeça e atendi as recomen-
dações deles, do contrário poderia se tornar um fede-
lho terrível e estou C-E-R-T-O que não sou um desses.

Senhoras e Senhores, não pensem que sou um


menino levado.

Varsóvia, 11 de janeiro de 1928.

Fábula criada sob o pseudônimo de Jackie Coogan.

***

Páginas de um diário

Tick-tock, tick-tock… O relógio soa à meia-noite, estou


rolando-me de um lado para o outro sem sono. Na sala de
jantar é possível ouvir o rádio. Os pais estão conversando.

O que é hoje? – me pergunto mesmo.

Ah, verdade! o primeiro dia do Ano Novo. O Ano Novo. A


nova época da minha vida está começando. Os novos fra-
cassos e preocupações, novas vitórias e nova vida. Este
fato me faz chorar, mas eu não sei porquê. Se eu me arre-
pendesse do ano que já terminou? Não sei. Imagino que
a terra da felicidade é como rochas vazias, donde saltam
SUMÁRIO veludos. Das montanhas está descendo uma senhora,
que veste um veludo preto. Ela é uma rainha da felici-
dade. Eu adormeço lentamente.

42
Eu me levanto, pego o violino e vou para a casa da minha
professora de música. Ela mora perto do colégio e é muito
longe. Muito frio. A aula terminou e eu volto para casa. O
almoço. Eu estou comendo silenciosamente. O rádio que
meu pai comprou ontem tocou. Até 3 de janeiro são dias
de folga, então eu não tenho que ir à escola.

O sol está se pondo. O brilho fogoso espalha-se por


toda a cidade. Está nevando. Eu estou vendo os flo-
cos de neve, enquanto voam constantemente. O vento
brinca com eles.

À noite, eu visitei os meus vizinhos que moram no ter-


ceiro andar. Um menino e duas meninas. Ele tem 16
anos e chama-se Luś, elas se chamam Firka e Sanka. Os
convidados chegaram e nós fizemos uma festa.

As pessoas dançaram. Um menino tocou piano. Eu


estou lendo o segundo volume da “Selva”. Meus poemas
e novelas foram lidos na festa. Eu fui convidado para
dançar. Se havia ironia na voz deles, eu não sei. Embora
eu não dançava. Eu fui para a cama muito cedo.

Acordei às 9 horas. Fiz minhas tarefas de casa. Eu e


meus amigos andamos de trenó. À noite, encontrei de
novo com eles. Às vezes sinto saudade. Nesse momento,
eu quero ir embora. Aonde? Tanto faz, o mais distante
possível da cidade.

Amanhã eu vou para a escola.

Eu estou estudando numa escola polonesa, sou o único


judeu do terceiro ano. Hoje cantamos:
SUMÁRIO
– Ei, ao trabalho, nós estudantes!

43
Há alguns meninos bons. Eu não faço amizades com
qualquer um. Quando eu voltava para casa, chovia.
Degelo. As temperaturas continuam abaixo de zero.

À noite eu joguei pingue-pongue na casa do meu amigo.


Eu treino pingue-pongue como se fosse uma prepara-
ção para o tênis.

Na escola ensaiamos a “Arca de Noé”.

Eu li hoje em Mały Przegląd, os diários do Mendel. Eu


tentava imaginar como ele é. Não consegui.

Eu pensava, o que eu vou estudar quando chegar à uni-


versidade. Provavelmente direito. Talvez meus diários
sejam lidos por algum condenado inocente e ele não
saberá que eu sou juiz… Quem sabe?!

Eu visitei a professora de música. Na verdade, eu prefiro


mais piano do que violino. Eu não quero ficar melan-
cólico. Por que mais o violino? E mais, eu escrevo poe-
mas e não faço nada. Apesar de ser inverno, cheira
como a primavera.

A escola. As aulas. Os intervalos. As sinetas. Os amigos.


Tudo junto - caos e desordem.

Eu voltei para casa com a Sanka ou melhor, com a


senhora Susan, porque ela já se tornou uma senhora. À
noite eu os visitei, mas em breve eu fui chamado para
voltar a minha casa. O que aconteceu? O Kiepura vai
cantar às oito e meia da noite. Tanto barulho por causa
de um concerto fraco. Eu não sou fã das suas músi-
SUMÁRIO cas. Discretamente eu fugi novamente lá para cima.
Apenas a finlandesa ficou. Ela me ensinou as canções.
Depois - o jantar.

44
Depois eu fui para a cama. Acordei durante a noite.
Escuro. O casaco se transformará em uma vaca, o armá-
rio - num dragão. A toalha está pendendo como uma
cobra. Estou encharcado de suor. Os meus pensamentos
se reviram.

Depois eu sonho sobre a minha terra de felicidade. Onde


está? Entre as rochas. Quais? Afinal, quais?

SUMÁRIO

45
3
MAŁY PRZEGLĄD
A década de 1920 foi peculiar para a restauração do país,
com a Independência, a República da Polônia volta a se configu-
rar como Estado e assim escolas, universidades, hospitais, parques,
orfanatos e demais instituições governamentais voltam a funcionar
na língua que o povo fez questão de deixar viva. Muitas placas de
ruas, escolas e demais escritórios oficiais do governo substituem o
russo e/ou alemão por placas polonesas. A escrita era um elemento
importante nesse período. O médico Korczak dizia que não gostava
da língua russa porque foi forçado a estudar na escola e por conse-
guinte, a escola era forçada a ensinar russo, tampouco fazia questão
de falar alemão, preferia o polonês.

Como ferramenta de escrita, em 1926, Janusz Korczak e uma


pequena equipe de jovens redatores, organizam um Mały Przegląd
(Pequeno Jornal), escrito por crianças para as crianças. Durante 13
anos, foi um excelente material para crianças aprenderem a ler e
escrever, a desenvolverem o pensamento crítico, mas sobretudo a
tomar consciência do seu lugar no mundo. A última sexta-feira em
que o jornal foi publicado, foi em 1 de setembro de 1939, exatamente
no dia em que as tropas alemãs invadiram a Polônia.

Figura 4 - Janusz Korczak com os redatores do jornal Mały Przegląd.

SUMÁRIO

Fonte: The Ghetto Fighters’ House, Izrael, 1930.

47
Em 3 de outubro de 1926, Korczak publicou uma primeira
chamada para as crianças e adolescentes, leitores e escritores da lín-
gua polonesa. Como forma de mobilizar, Korczak, o doutor careca de
óculos, escreveu sobre suas experiências pessoais na primeira edi-
ção do diário como forma de angariar curiosos escritores em forma-
ção. Assim, aproveitara a primeira edição para apresentar a proposta
do jornal e levantar alguns pontos que considerava ser relevantes
para a fomentação de um jornal que se chamaria “pequeno jornal”:
- 1) O que você gosta de fazer? - 2) Como você passa seu tempo
livre? - 3) Quais são seus jogos favoritos? - 4) Você está enfrentando
algum problema? - 5) Você é uma pessoa calma? - 6) Você vai bem
na escola? - 7) Alguém te chama de preguiçoso? - 8) Quais aulas
você frequenta na escola? - 9) Onde e com quem você reparte a car-
teira escolar? - 10) Você tem bons professores? - 11) Seus pais gritam
com você? - 12) Quem são as pessoas da sua família? - 13) Você tem
irmãos? - 14) Quem é a pessoa mais velha da sua família?

Desse primeiro movimento, em 9 de outubro de 1926, foi


publicado pela primeira vez um suplemento do jornal Nasz Przegląd,
um dos principais jornais judeus publicados em língua polo-
nesa, pela comunidade judaica todas as sextas-feiras que se cha-
maria Mały Przegląd.

Primeiras Correspondências

Recebi 47 cartas. 31 cartas de meninos e 16 cartas de


meninas. 40 são de Varsóvia e 7 de outras cidades. Além
do nome e sobrenome, 32 delas constam de endereço.
É melhor colocar o endereço porque os sobrenomes
podem se repetir. Graças ao endereço, sei que Adam e
Helena M. moram juntos, que o esperto Leon N. escreveu
SUMÁRIO uma carta junto com seu irmão, e depois ainda escreveu
uma outra carta sozinho. Quatro cartas estão assinadas
somente com o nome, sem o sobrenome, e uma carta

48
com pseudônimo. – Recebi 27 cartas em envelopes, 9
em cartões postais e 11 em folhas de caderno escolar.
Duas cartas foram ditadas por crianças que ainda não
sabem escrever.

Todas as cartas foram numeradas e catalogadas, pedi-


mos sobretudo a assinatura legível: porque se alguma
letra não estiver legível podemos até adivinhar, mas se
as letras realmente não estiverem legíveis corremos o
risco de escrever o nome do autor errado.

Sabemos que cada um de vocês quer logo uma resposta


para sua carta, mas isso é impossível. É preciso pensar
bem como responder porque as respostas precisam
ser inteligentes e não qualquer coisa como fazem esses
jornais infantis.

Assim a redação escreve:

– Sua cartinha nos alegrou muito. Nos deixou muito pre-


ocupados. Estamos felizes porque nosso jornal te agrada.
– Ficamos felizes porque você está indo bem na escola.
Ficamos preocupados porque você estava com dor de
barriga. Nos escreva quando sua barriga parar de doer.

A redação ora fica feliz, ora preocupada. Na verdade, ela


se esforça em demonstrar que se preocupa com todos os
colaboradores desse jornal de forma séria e pede a Deus
para protegê-los das dores.

Nós não vamos ser falsos e pedimos para que os leitores


também não sejam. – Pedimos, para não escrever quem
SUMÁRIO nos idolatra porque isso é um desperdício de papel.
Também não precisa escrever, quem quer apenas que
sua carta seja publicada.

49
Mozes escreve pouco:

“Queria saber sobre os aviões, telefone e rádio”.

S. Najdorf escreve:

“Queria saber sobre a guerra”.

Eluś Segał escreve:

“Quero saber se ‘Mały Przegląd’ será impresso com


letras grandes”.

“Henio Justman teve que resolver um problema de


matemática e não sabe nada”.

Um texto curto pode ser interessante e um texto longo


pode ser chato. Muitas vezes de um livro grande a gente
aprende muito pouco enquanto de um livro pequeno
aprende muitas coisas.

Escreveram para o jornal: Miecio Klajnlerer, Samuel Mozes,


Alinka Gerberbaum, Heniuś Edelsburg, Ludwik Sigalin,
Mietek – Władyław, Felicja Zangerówana, Judyta,
“o velho”, Leon e Z. Nissenbaum, Musiu Seeleufreund,
Ch. Lewin, Sara Foremówna, Z. Bodkier, Madzia
Markuze, S.Bieżuner, Hanna Frydmanówna, Jadw.
Sieradzka, Boluś Jonas, Cesia L., Józef Ratusznik,
Lutek, Leitora do passado, Marysia Bentmanówna,
Adam Miński, Henio Justman, Rlimcia Rozenperl,
S.Najdorf, J.Grundland, Dorka Hirszfeldówna, B. Mozes,
Leon Kornic, Helena Mińska, Leon Nissenbaum,
Oleś Wertheim, L. Zysman, Marek Merecki, Tołczyńska,
SUMÁRIO M. Rendel, Beni. Berenius, Jasio, Jerzy Silherman, Kuba,
Traub, G. Ber, Eluś Segał, Róża Gutmanówna.

Varsóvia, 9 de outubro de 1926.

50
Não demorou muito para o jornal dimensionar sua popula-
ridade entre a diáspora judaica e assim, cartas de lugares mais dis-
tantes passaram a ser enviadas para Varsóvia. Um ano depois da
abertura do Jornal, encontramos notícias do Brasil, como segue:

Uma carta de Varsóvia e três cartas do Brasil

Meus amigos foram com seus familiares para o Brasil


Eles moram na cidade de Porto Alegre. Eles escrevem
na carta dizendo que lá é muito triste. Então, eu mandei
alguns recortes do Mały przegląd para eles; acho que eles
vão gostar. Seria bom, se os leitores soubessem como
nossos emigrantes estão vivendo no exterior. Também
estou enviando as cartas dos meus amigos de Varsóvia.

Celina R., aluna do quinto ano.

***
As crianças famosas

A moça com quem eu compartilho a carteira da escola,


não vou falar, mas ela é bonita. Tem os olhos cinzentos,
o narizinho pequeno, rosto desenhado, ao lado do nariz
tem algumas sardas que não diminuem seu encanto.
Nos olhos - razão. Quando está rindo, aparecem os
dentinhos saudáveis e bonitos. Não é alta, muito ativa,
seu rosto não é só bonitinho, mas atraente e amável.
Ela é muito alegre. Ela dança bem. Em sua companhia,
todos ficam alegres. Faz piadas muitas vezes, mas são
brincadeiras, tem um bom coração e não faz mal a nin-
guém. Só tem um defeito, ela muda frequentemente os
seus namoradinhos. Não é muito rápido, mas sempre
SUMÁRIO
está mudando. Ela sempre pode sair com todos. Todos
gostam dela, só algumas meninas que invejam ela.
As professoras gostam muito dela. Como não gostar

51
- é uma criatura tão agradável, sempre rindo, não faz
mal a ninguém. Gosta de se apresentar no palco e tocar
piano. Seu pai ama muito a sua única filha.

Varsóvia, 3 de dezembro de 1927.

***
As botas do condutor

Naqueles dias havia um grande feriado. Uma fileira de


bondes movia-se entre os trilhos lisos e a multidão. Ao
fundo, vinha o barulho de uma rua festiva.

Todos nós estávamos reunidos na parada. Fazíamos


bagunça. O bonde 1 que estava voltando para o quartel dos
bombeiros, acabou de chegar. Todos viraram suas cabeças
para o bonde. E de repente decidi - não vou ser mais um
qualquer desse grupo – vou subir e ficar do lado de fora.

Subi no bonde e fiquei na escadaria.

Enquanto o bando gritava, o líder do grupo gritou mais


alto: - desce daí. Não reagi. O bonde começou a andar.

Já me arrependi de ter iniciado tal jogo, mas agora era tarde


demais. O bonde já estava andando veloz pela rua Dzika.

Eu estava sozinho desse lado, além do condutor que estava


na segunda plataforma mais a frente. Eu queria pular, mas
estava com medo, porque pedras cairiam atrás de mim,
quando as luzes de algumas casas começaram a se ascen-
der. Estava tremendo pensando que eu poderia me machu-
car. Pensava sobre minha mãe que está esperando por mim
SUMÁRIO com o jantar e certamente já estava ficando preocupada.

De repente aconteceu o imprevisto. O condutor do


bonde me vendo do outro lado do veículo e antes que

52
eu pudesse perceber, ele parou do meu lado. Levantou
sua perna que calçava botas pesadas de cano longo e
chutou-me. Eu caí direto na calçada tão violentamente
que meu dente bateu no chão e quebrou.

Meu rosto estava sujo e ensanguentado. Mal voltei vivo


para casa.

Eu bati timidamente na porta. Felizmente, a porta foi


aberta pelo meu tio. Ele ficou apavorado quando me viu,
porém assegurei-o que eu estava bem, só escorreguei e
caí, falei. Ele me lavou à pia. Depois, adentrei no quarto
onde meu pai e minha mãe estavam sentados. Fui jantar,
mas o dente quebrado incomodava muito. De repente a
porta se abriu e entrou o “bando” que estava no bonde.

Moniek, líder do grupo, falou à minha mãe:

— Viemos, senhora, anunciar que o seu filho foi escola-


chado do bonde pelo condutor, quase quebrando as per-
nas e os braços. Viemos dizer isso para a senhora, porque
este sem noção poderia se quebrar e ficar doente. Adeus!

Fiquei branco como um giz. Só faltava isso — pensei.


E ainda se justificam, canalhas, por se preocupar com a
minha saúde. Quanta gentileza.

O que aconteceu depois — foi que desde então não posso


mais andar de bonde.

Cwi Nechusztan.

Varsóvia, 11 de outubro de 1935.

SUMÁRIO
Com o passar dos anos, ao fazer as leituras, observamos que
nas primeiras edições havia poesias, fragmentos de contos de fadas,
magia e fantasia. Era uma forma de provocar a imaginação e o encanto

53
das crianças, que começavam a ser substituídos por artigos mais lon-
gos e mais reflexivos a partir de meados da década de 1930, quando
as perseguições aos judeus se intensificavam. Os próprios escritores
assíduos, com o passar dos anos enviavam textos mais bem elabora-
das, como resultados reflexivos sobre suas vidas, expondo os encan-
tos e desencantos com os quais tinham que lidar diariamente.

Com a ascensão do nazismo na Alemanha, mais e mais famí-


lias judias começavam a deixar a Polonia, emigrando para diferen-
tes lugares, donde as cartas também começavam a chegar. Cartas
da Palestina, do México, do Uruguai, do Brasil, da Bolívia e outros
países europeus eram endereçadas constantemente a sede de Mały
Przegląd em Varsóvia. Temas como a viagem, a escola, a vida num
novo país, com novo horário, com nova língua, novas comidas e novos
amigos. As cartas traziam o propósito que inicialmente Korczak elen-
cou por meio de algumas perguntas, as quais foram inspiradoras às
crianças. Mas não só respondiam as perguntas levantadas pelo edi-
tor, uma vez que suas respostas se ampliavam e consequentemente
seus problemas e preocupações também.

Entre os brasileiros, possivelmente, um dos autores mais


assíduos e conhecidos de Mały Przegląd, foi o menino de 13 anos,
morador de Poznan, Zygmund Bauman, que publicou em 3 de feve-
reiro de 1939, o seu último artigo “Um balde de água fria para Dyci de
Zamość” solicitando uma defesa de Dyci, a quem teceu uma crítica,
mas ao buscarmos pela réplica, constatamos que a resposta de Dyci
nunca foi publicada, nem sequer sabemos se ela realmente chegou
a ser escrita. Zygmund escreve que acompanha as publicações do
jornal desde que aprendeu a ler e menciona em seu artigo que per-
cebe que os escritos têm melhorado com o passar dos anos, pois
escreveu um artigo em 1933, quando encontrava-se em processo de
SUMÁRIO alfabetização. A exemplo de Zygmund Bauman, podemos ver que o
jornal era fidelizado por seus leitores e conforme cresciam, amplia-
vam seu vocabulário e os textos ficavam mais longos e críticos.

54
Zygmund escreve uma crítica ao artigo escrito por Dyci, o
qual na sua percepção, o autor se posicionou muito pouco, mas ras-
gou seda ao editor do jornal Janusz Korczak. Por fim, acenou que não
se deve “puxar saco” ou bajular o organizador de um concurso lite-
rário, principalmente quando se quer apresentar uma ideia original.

Um balde de água fria para Dyci de Zamość

Passado (escrevo passado porque eu era um infeliz aluno


do primeiro ano naquela época) quando foi derramado
um balde de água fria em Aneri. Passou alguns anos, saí-
ram os mais velhos, vieram os mais novos (inclusive você)
e assim culminou que o balde vai cair agora em você.

Eu não posso negar que você tem um talento para a


escrita. A sua resposta me agradou muito e me dói
muito ter que fazer uma crítica (mas até os mais reno-
mados escritores não escapam de uma crítica. E então o
que dizer a você que está apenas começando e eu acho
que você merece essa crítica.

Você não me chamou para a discussão, mas sinto que é


minha obrigação responder a essa questão por aquilo
que eu sinto. Claro que eu não precisava escrever, ape-
nas relembrá-lo que não quero atacar o orgulho de quem
sonha em se casar com a filha de um cedru libanês e
pisoteá-lo antes do seu tempo. Também não quero pla-
giar o rabino Aquiba. Não é esse o caso.

Como já sinalizei, você tem um talento imensurável para


a escrita. Mas o que está ruim. Por ter as mesmas habi-
lidades que outros gênios, você não precisa escrever um
SUMÁRIO texto com o título enaltecedor “Meus heróis”. A redação
do jornal não premiou você com o primeiro prêmio, ape-
nas mencionou você como um escritor bastante assíduo.

55
Mas eu (e acho que todo leitor que pensa de forma obje-
tiva vai concordar comigo), sou da opinião que o traba-
lho do Wat é muito melhor, mesmo que a redação não
estivesse interessada nesse tema. Acho que você está
indo pelo caminho errado. Vejo que para você, Janusz
Korczak é um homem genial e eu não vou desmerecer
o seu herói. Mas o seu próprio bom senso deveria lhe
avisar que não é bom mandar um trabalho para um con-
curso elogiando o fundador e redator do jornal que está
promovendo o concurso. Não é sobre a redação dos seus
escritos, mas como isso aparente aos olhos dos leitores.

Não quero te culpar e nem te fazer sentir-se culpado. Só


chamar sua atenção para que você se posicione perante
essa situação. Espero pela sua resposta.

3 de fevereiro de 1939.

Zygmunt Bauman (Poznań).

SUMÁRIO

56
4
A AMIZADE
O tema da amizade era recorrente nos escritos desde os primei-
ros números do jornal. Portanto, merece um capítulo para ser melhor deta-
lhado sob diferentes perspectivas como as críticas aos amigos escritores,
a exemplo de Zygmund Bauman, de cartas curtas a amigos nominados
ou simplesmente a exaltações dos melhores amigos da escola, do orfa-
nato, do local de trabalho e também das ruas, como podemos ver a seguir.

A amizade para as crianças

Uma carta de Tadek

Vou para a nova escola, tenho muitos colegas e um amigo


lá. Vocês querem saber qual é o nome dele? Seu nome
é Tadeusz Rozenberg. Ele é meu melhor amigo. Brinco
com ele o tempo todo, desde que comecei a ir à escola.

Na sexta-feira fizemos um acordo que eu topei, então


tive que cumprir, porque acordo é acordo. Tadek come-
çou a correr e, como sempre, puxou minha bermuda, até
eu dizer a ele que o tempo se esgotou. Então Tadek dimi-
nuiu o ritmo e começamos a dar risada.

Quando estive na casa do Tadek, nesta sexta, fizemos um


coração de madeirite e desenhamos uma rosa no meio,
porque o nome da nossa professora é Rosa e o coração
é para ela.

Daniel Klajnerman (7 anos)

***
O melhor amigo

Izio é mais velho que eu. Está no quinto ano da escola


SUMÁRIO primária, é inteligente e agradável. Ele nunca aparenta
que é mais velho do que eu e brinca comigo como seu eu
fosse um menino da sua idade.

58
Quando vou na casa dele, ele me mostra seus livros e
cadernos. Com frequência, falamos sobre matérias esco-
lares e religião. Ele me conta lindas histórias da religião
que eu ainda não conheço.
Às vezes, seus amigos vêm também e então brincamos
de esconde-esconde juntos ou de polícia e ladrão. Nós só
paramos de brincar quando tenho que ir para casa.

Quando estamos sozinhos, jogamos vários jogos como


dominó, damas, ludo e muito mais. Na escola, nós gosta-
mos da carpintaria, é o melhor lugar. Tem ferramentas
próprias que são necessárias para as aulas de ZTP - aulas
de trabalhos manuais. Lá tem alicates, martelo, serrote,
pregos e madeiras compensadas. Colocamos as ferra-
mentas na mesa e começamos a trabalhar. Serramos,
martelamos pregos e pintamos. Uma vez, serramos qua-
tro pernas, um encosto e um acento de madeira com-
pensada, martelamos com pregos e conseguimos fazer
uma bela cadeira. Antes de ir embora, Izio me deu essa
cadeira. Estou muito grato a Izio por me proporcionar
tantas coisas boas.

Marek Klepfisz (8 anos)

***

Confiável Mina

Eu frequento o terceiro ano da escola primária. Tenho


muitas colegas e uma amiga. Eu gosto dela, porque ela é
confiável e mantém o que digo em segredo.
Minha amiga Mina não vive em harmonia com todos.
Mina e algumas colegas foram brincar no parque. Eu
SUMÁRIO fiquei na janela do vestiário com as outras estudantes da
escola, quando elas começaram a fofocar.

59
Lusia foi a primeira:
– Olha, olha, como ela é depravada!
E Niusia acrescentou:
-Sádica!
E eu fiquei ao lado delas e escutei toda a conversa. Final-
mente, pararam de conversar. Eu rapidamente sai do
vestiário e chamei Mina. Contei o que as meninas da
escola estavam falando sobre ela. Ela manteve sua pala-
vra e não contou a ninguém o que eu disse. De repente, o
sinal tocou e voltamos para a sala de aula.

Varsóvia, 24 de fevereiro de 1939.

Sara Weinberg (8 anos).

SUMÁRIO

60
5
DOM SIEROT
Figura 5 - Dom Sierot

Fonte: Nawroski, 2019.

Impulsionado pelas práticas pedagógicas de Johann Pestalozzi


e Friedrich Fröbel, Janusz Korczak passou o verão de 1899, na Suíça,
de onde intensificou-se o seu interesse pelas ideias progressistas
em educação. Anos mais tarde, após o diploma de medicina, espe-
cializou-se em pediatria em Berlim e em seguida passou por Paris e
Londres para visitar alguns centros de educação. Influenciado por
Maria Montessori, John Dewey, Ovid Decroly e Leon Tolstói, Janusz
Korczak, em 1909, se uniu a Stefania Wilczyńska, que compartilhava
dos mesmos referenciais para a criação de um educandário.

Três anos mais tarde, fruto das doações de associações judai-


SUMÁRIO cas, foi inaugurado um dos primeiros prédios modernos de Varsóvia,
na rua Krochmalna 92, projetado para receber aquecimento central,
arquitetado por Henryk Stifelman. Construído numa região indus-
trial que comportava em sua maioria trabalhadores das fábricas,

62
Dom Sierot funcionou neste espaço até o outono de 1940, quando
após sucessivos ataques nazistas, as crianças foram transferidas para
a região central da cidade, área delimitada para o Gueto de Varsóvia.

Dom Sierot visava comportar 107 crianças de 7 a 14 anos,


mas nos anos que sucederam a inauguração do prédio, esse número
costumeiramente ultrapassava seu limite7. Desde o início, o edifício
foi projetado como uma instituição de ensino e pesquisa em educa-
ção, onde além de comportar a educação das crianças, também era
um espaço para a formação de professores, especialmente pedago-
gos em formação que encontravam na instituição um espaço para
estágios e monitorias.

Figura 6 – Janusz Korczak e Stefania Wilczynska


rodeada pelos moradores do orfanato.

Fonte: Museu de Varsóvia, 1935.

7 Segundo Dąbrowska (2012), havia dois grandes salões onde, de um lado, dormiam os meninos e
SUMÁRIO de outro lado, as meninas, cada qual com banheiro e no centro um quarto para o educador de
plantão. No térreo, havia uma cozinha, um depósito para mantimentos, lavanderia e uma caldeira.
No salão maior do prédio funcionava o refeitório e no sótão ficava o quarto de Janusz Korczak, local
em que o educador escreveu boa parte das suas publicações, especialmente a noite, quando as
crianças se recolhiam. Durante a II Guerra, parte do sótão foi destruída e não foi mais reconstruída.

63
De acordo com Dąbrowska (2012), as refeições no orfanato
eram modestas, mas nutritivas. Korczak tinha como hábito medir e
pesar as crianças e isso virou um hábito metrificado em gráficos,
os quais serviam de parâmetro para o desenvolvimento físico das
crianças. Do ponto de vista cognitivo emocional, o educador bus-
cava amparo em Jean Jacques Rousseau, o qual era avivado por
Johann Pestalozzi, que pode ser mais bem detalhada no livro “Como
amar uma criança8”.

O ritual matinal de ir para a escola era marcante para as


crianças que, após o café da manhã, desciam para o vestiário, lim-
pavam seus próprios sapatos, vestiam seus casacos, colocavam sua
merenda na mochila e despediam-se dos tutores. Na escola estu-
davam principalmente canto, artes, língua hebraica e aprendiam a
tocar alguns instrumentos musicais.

Jean Piaget foi um dos educadores que visitou o orfanato e


nas palavras do educador, destacou: “Fiquei impressionado, sobre-
tudo com a organização do parlamento da justiça infantil, cujo fun-
cionamento é totalmente assegurado pelas crianças” (Piaget, 1977,
p. 101). O parlamento de justiça das crianças foi criado como forma de
autogestão em que as próprias crianças deveriam tomar as decisões
para o bom funcionamento de Dom Sierot. A ideia de um parlamento
infantil está mais evidenciada no livro “Rei Macius (Mateuzinho) I”.

Com o passar dos anos, conforme as crianças cresciam, o


educador via que a divisão do prédio em dois grandes dormitórios
não possibilitava espaço de mais privacidade às crianças, principal-
mente para aquelas maiores. Então, decidiu colocar um grande armá-
rio no refeitório com muitas gavetas, onde cada criança teria a sua
gaveta para guardar seus pertences. Guardavam os cartões postais,
moedas que recebiam dos adultos por alguma recompensa na rua,
SUMÁRIO seus dentes de leite, seus diários e anotações, além dos pertences

8 Livro traduzido pela primeira vez no Brasil, em 1983, pela editora Paz e Terra.

64
familiares, quando possuíam algum. Também não era permitido
mexer na gaveta dos colegas, se isso viesse a ocorrer, o parlamento
da justiça era convocado e as próprias crianças precisava decidir
sobre a punição que deveriam dar a quem desrespeitou as regras.

Numa espécie de brigadas, as crianças se auto-organizavam


com suas responsabilidades na casa sob a mediação dos tutores.
Para os educadores da casa, essa era uma prática fundamental para
a formação de adultos responsáveis. Do princípio de preparar crian-
ças e jovens para o mundo adulto, atos controversos surtiam nas
práticas desempenhadas pela pedagogia de Korczak, e aqui pode-
mos citar a frustração dos seus ex-púpilos que, após completarem 14
anos, precisavam deixar Dom Sierot e lá fora, se deparavam com um
mundo desumanizado, desempregado e antissemita, sem o funcio-
namento de um parlamento da justiça onde poderiam criar suas pró-
prias punições. Muitos destes jovens continuavam a escrever para o
jornal Mały Przegląd onde compartilhavam sobre as alegrias e frus-
trações de serem jovens judeus-poloneses em meio ao antissemi-
tismo como os escritos de Mirjam que agora trabalhava num hospital.

Trabalho noturno

Belas parecem as luzes da cidade refletidas nas profun-


dezas da água. A cidade toda está escura; as lanternas
balançam; na frente do portão um policial vigiando, anda
constantemente de um lado ao outro. É tudo que se vê da
janela do quarto de vigilância. Observo a escuridão atrás
da janela e penso que o hospital deve ficar sempre alagado
durante as inundações – enfim está localizado na beira
do Rio Vístula. No departamento cirúrgico geral, frente a
frente com minha janela, acende-se uma lamparina e vejo
SUMÁRIO um policial. É o assassino do Strelczuk, que ingressou
no nosso hospital. Solto a cortina e me afasto da janela.
São doze horas da noite. Silenciosamente, sem um ruído,

65
inspeto a sala. Nunca havia tanta gente. Todas as camas
estão ocupadas. O Wacek de quatorze anos observa-me
com seus olhos perdidos e inconscientes. Tem pus atrás
da orelha, ainda não pode ser operado; o termômetro
mostra 40 graus de febre. Levanto a cabeça dele, der-
ramo com dificuldades um pouco de suco de laranja na
sua boca. Está ardendo, por um momento segura a minha
mão e sinto o pulso batendo nos seus dedos.

Não há graves incidente nesta ala. Deixo-a e, passando


pelo quarto do cirurgião, entro na outra ala. Dormem
pesadamente crianças doentes, sonham, talvez, com
a primavera e o sol. São somente meninas, deitadas na
mesma sala depois de terem sido operadas de apendi-
cite. Arrumo as colchas, cubro os pés de algumas e sigo
em frente. O corredor está iluminado com luzes brancas
e quentes. Uma fileira de portas envidraçadas à esquerda
e à direita vasos de flores nas janelas. Dei uma olhada
em todas as salas e aproximei-me da sala 7. Deitado aqui
está um russo, filho de um sacerdote ortodoxo, baleado
com um revólver. Brincando com a arma, os amigos dele,
deram um tiro. A bala entrou perto do baço e saiu nas
costas. Os intestinos estão furados, o pus está drenando
bem como uma corrente. A cada duas horas tenho que
dar uma injeção de cânfora e assim mantém-se vivo.

Acendo a luz. Um doente, cansado mortalmente, dorme.


Olheiras, o rosto pálido e a cabeça jogada para trás. Por
um instante meu coração para, porque penso que já está
morto. Depois me acalmo: o pulso está batendo, fraco e
lento, mas batendo. Hoje, durante a troca de curativo,
SUMÁRIO perguntou-me: “Irmã, quando morrerei?”. Meu Deus,
ele tem somente quinze anos, quase meu colega, apenas
dois anos mais novo, tão lindo, um grande menino,

66
filho único do seus pais. Saí do quarto, vou ter que vol-
tar daqui há alguns minutinhos. Desço e dou uma inje-
ção numa menina com meningite. Atrás da janela está
um breu e a noite é impenetrável. Barulho de buzina.
Uma ambulância apareceu no portão. Observo para
onde está se dirigindo e peço a Deus que não vá para o
nosso departamento. Mas passou por nós e seguiu para
o departamento geral. O tempo corre. Sinto-me, como lá
na sala 7, em cima da cabeça do menino, inclinado para
a morte. Contudo, não para uma morte horrível como
imaginamos, mas suave e tranquila, a mais gentil para
aqueles desesperadamente doentes.

Nebuloso e obscuro é o amanhecer. Nuvens cinzas acu-


mulam-se e dominam o céu. Então, cinco da manhã. O
Grisza respira mais tranquilo. Os médicos disseram que
se aguentasse até as doze, talvez sobrevivesse. Agora são
cinco horas. Está aliviado o meu coração. Comecei a distri-
buição dos medicamentos e termômetros. O hospital está
acordando. O dia está começando. Passou a noite, dura,
triste noite, alguns levando o sono leve e aliviado, outros
apenas a continuação do sofrimento. Sinto me cansada e
penso com prazer no conforte da minha cama em casa.

Varsóvia, 5 de junho de 1936.

Mirjam.

Após o ano de 1935, com as “Leis de Nuremberg9” as perse-


guições aos judeus foram acirradas, sendo considerado judeus todo
aquele que mesmo tendo passado pelo processo de aculturação
SUMÁRIO
9 Conjunto de leis antissemitas criadas em setembro de 1935, pelo Reichstag, durante a reunião
anual do Partido Nacional Socialista dos Trabalhadores Alemães (NSDAP) em Nuremberg. As leis
previam sobretudo a separação de arianos e não-arianos que visavam sobretudo a proteção do
sangue e da honra alemã.

67
tinha um avô de origem judaica. Assim, com o início da II Guerra,
judeus até a terceira geração, eram marcadas com uma braçadeira
estampada com a estrela de Davi, o que os condenava a discrimina-
ção, perseguição e extermínio.

Eu era judeu e ele polonês e católico. Ele estará um dia no


paraíso; quanto a mim, com a condição de nunca pronun-
ciar palavras feias e levar-lhe docilmente açúcar furtado
de casa, poderei entrar após minha morte em alguma
coisa que não é propriamente o inferno, mas é escura [...].
A morte – judeu – o inferno. O escuro paraíso judeu. Dava
o que pensar. (KORCZAK,[1958], 1986, pp. 12-13).

Com o início oficial da Guerra, em 1939, todo judeu estava obri-


gado a usar a braçadeira, a qual foi recusada por Korczak, que o levou
a ser preso e solto após pagamento de fiança. Entretanto, seus pupilos
não foram poupados e, marcados pela braçadeira, eram impedidos de
ultrapassarem os muros do Gueto. A vida aprisionada por muros era
uma constância de sofrimentos e não compatível com os princípios da
coletividade, solidariedade e democracia que as crianças aprenderam
a exercer pela autogestão, a exemplo das leis do parlamento infan-
til publicadas no livro “Rei Mateuzinho I” (Król Maciuś I 10), publicado
por Janusz Korczak em 1922, que possibilitou pensar sobre os “direitos
das crianças, momento em que a Polônia se reconstituía como Estado
independente, impulsionada pelo Tratado de Versalhes.

Em 2019, quando visitamos o orfanato Dom Sierot, a insti-


tuição atendia 20 crianças, mesmo que seu espaço físico e histó-
rico ainda comportaria aproximadamente 200 crianças. Contudo, a
atmosfera da instituição estava permeada de marcas, sentimentos,
SUMÁRIO
10 O Rei Mateuzinho I, conta a história de um garoto que herda a coroa após a morte de seu pai.
Ele, ainda criança assume o trono e se esforça muito para fazer com que seus súditos vivam da
melhor maneira possível, dando voz de participação às crianças, as quais tem idade próxima a sua,
desestabilizando os parlamentares adultos.

68
lembranças de um tempo que marcou a história do mundo. Hoje,
encontramos neste prédio um arquivo pedagógico, do qual foi possí-
vel coletar fontes para este livro. Um espaço para a reflexão de edu-
cadores e um laboratório sobre os feitios pedagógicos de Korczak,
portanto, um espaço vivo da pedagogia. Entretanto, diferente do
orfanato Nasz Dom (Nosso Lar), o orfanato Dom Sierot (Lar do Órfão)
encontrava-se na mira das perseguições nazistas, por conta do aten-
dimento, desde a sua origem, às crianças judias.

Sobre os moradores de Dom Sierot, destacamos a carta


escrita por Chaim M., que escreveu sobre as artimanhas de um estu-
dante para conseguir duas moedas que lhe foram solicitadas pelo
rabino para o Lag-Boemer.

A história de uma złotówka

O Rabi1 Lejb levantou-se da cadeira e disse: “Crianças,


já estão liberados”. Só lembrem-se que depois de
amanhã é Lag-Boemer2: cada um de vocês trará duas
złotówkas3, alugaremos um carrinho e iremos à floresta,
como fazemos há anos”. Como resposta, emergiu uma
turma alegre e tagarela. Dez pares de olhos brilharam,
dez pares de braços depressa fecharam os livros. Logo,
cobriu a rua uma radiante criançada. Já era tarde. Ainda
flutuaram no ar as vozes de alguns rapazes do cheder4.
“Ah! Se o tempo no dia depois de amanhã for tão bom
como hoje” – suspirou uma das crianças. No lado de fora
da porta, a criançada dispersou-se – “Tchau garotos!” –
gritou o mais rico da sala, Lejzer Mesil – “e lembrem-se
de trazer duas złotówkas. Pois quem não trazer, não irá!”.

“Claro, não vamos esquecer” – e os garotos dispersaram-se


SUMÁRIO
para todos os lados.

69
Só um, Jankiel não estava com pressa. Porque – hones-
tamente – não tinha para quê. Ele já sabia, que não ia
ganhar duas złotówkas – no máximo uma. E por aquela
złotówka precisava chorar muito. Bem... a casa é pobre,
apesar dos pais trabalharem muito duro. Talvez, peça
a segunda złotówka à irmã Dwojra? Ah, mesmo assim,
essas duas złotówkas que ela traz cada dia pra casa, são
tomadas pelos pais. Fazer o quê, então? Caem em vão as
tentativas de uma criança dar algum jeito. De repente,
Jankiel parou, veio à cabeça uma nova ideia: vender o seu
chumasz5. Mas no mesmo instante, uma mágoa abraçou
seu coração. Vender seu belo chumasz, impresso com
letras douradas, do qual todos os amigos tinham inveja?
Com um sorriso nos lábios, recorda Jankiel, como foi
bonito o dia que que segurou esse livro tão belo. Com-
prou-o com o dinheiro de Chanucá (festa antes do Natal)
– com duas złotówkas! Depois de amanhã, todos os
garotos do cheder saberão, que o chumasz do Jankiel é o
mais belo, e tudo mundo vai tentar sentar-se lado dele –
“e este livro que devo vender?” – pensou o menino - “não
farei isto por nada deste mundo!”. De repente, a mão de
alguém tocou no ombro dele. Jankiel se assustou e olhou
para trás: era um amigo dele - o Motel. Feliz, pois final-
mente tinha a quem pedir um conselho, contou rapida-
mente sobre seu problema.

– O que você pensa, Motel – perguntou – vender o


chumasz ou não?

– Não – respondeu seriamente o Motel – não faça isso.


Um livro tão belo! Mas eu te darei um outro conselho:
SUMÁRIO seus pais têm uma pensão, não é? Vá atrás do caixa e leve
uma złotówka de lá. Ninguém perceberá, com certeza!

70
– Mas Motel – interrompeu com pavor Jankiel – isso
caracterizaria um roubo!

– Não fale bobagens – riu Motel – que roubo! Dos pró-


prios pais e ainda no Lag-Boemer. Te digo Jankiel,
é o único jeito!

Quando Jankiel chegou em casa, a primeira sala estava


lotada de gente e saia fumaça de grandes cigarros
apodrecidos. Ao lado do caixa ficava a mãe, que tendo
visto o filho chegar, chamou-o com um gesto impaciente
- “cuide daqui por um momento” – sussurrou – “preciso ir
para a outra sala um pouco”. O coração do garoto bateu. De
uma gaveta entreaberta, seduziu-o algumas moedinhas
de valor inferior. Eis, uma cinquentinha, umas de vinte...
“Vou segurá-las somente na mão...” – pensou o Jankiel. Daí,
da outra sala apareceu a mãe. Instintivamente o moleque
botou a mão no bolso. Não sabia, como foi parar na frente
de casa. Encostado num muro suspirou profundamente –
“oxalá que a mãe não descubra isso”. De repente, o olhar
dele focou-se no chão: aos pés dele havia uma carteira
masculina. Pegou-a e olhou para dentro: estava vazia.
Daí surgiu uma ideia: tirou da bolsa a złotówka levada
do caixa, botou-a dentro da carteira e gritou: “Mamãe,
Dwojra, olhe o que achei!”. Algumas pessoas saíram
correndo da pensão e rodearam o menino. – “Mostre o
que tem aí dentro” – perguntaram um em cima do outro.
Finalmente a mãe pegou a carteira, abriu-a e contou
o dinheiro – “Mais que złotówka” – expressou Dwojra
e acrescentou – “Você tem sorte Jankiel, que bem que
achou... Será útil para o Lag-Boemer. Tanto chorou que
SUMÁRIO de verdade ele mereceu”...

Daí a porta da pensão abriu-se e entrou um bêbado.

71
– Será que alguém achou alguma carteira? – pergun-
tou em voz baixa interrompida por soluços – devo ter
perdido por aqui...

– Oh, aqui está, tome – interrompeu a mãe – e da outra


vez tome cuidado, nem sempre vai encontrar alguém
tão honesto...

– Obrigado – murmurou o homem. E voltou a sua sala.


Todos dispersaram-se. Jankiel olhou ao seu redor,
como se estivesse acordado de um sonho e as lágri-
mas explodiram...

Glossário

1 Rabi – professor de cheder; é um título de honra


atribuído por um cargo religioso.

2 Lag-Boemer - um feriado religioso judaico de caráter


festivo, celebrado após a Páscoa.

3 Złotówka - moeda da Polônia; literalmente uma moeda


de um złoty; nome oficial da moeda polonesa, Złoty
Polski – um złoty ou uma złotówka; é dividido em cem
grosze (centavos), (pol., sing. grosz; pl. grosze). Em outros
países poderíamos adaptar para 1 euro, 1 dólar ou 1 real.

4 Cheder - escola religiosa.

5 Chumasz - Livro do Êxodo constituído de vastos


comentários - um Torá simplificado.

O artigo “A história de uma złotówka“ foi escrito pelo


Chaim M. em língua iídiche e depois traduzido
SUMÁRIO para polonês.

Varsóvia, 3 de julho de 1936.

72
6
A CASA DA ROSINHA
Em 1921, Korczak recebeu a doação de um sítio de 5,6 hecta-
res de terra na aldeia de Czaplowizna, atual bairro de Wawer, doado
por Maksymilian Cohen e sua esposa, os quais queriam homenagear
a filha Róża (Rosa), que falecera prematuramente e por isso, o lugar
ficou conhecido por Różyczka, ou “Rosinha”, em homenagem à filha
do casal. A Casa da Rosinha era perfeita para as crianças estarem
em contato com a terra, principalmente no cultivo das hortaliças e na
colheita das frutas, que ocorria a cada ano, sendo registrada a última
visita das crianças de Dom Sierot, em 1940.

Assim como para seus principais interlocutores pedagógicos


- Rousseau e Pestalozzi - para Korczak era importante ter um espaço
onde as crianças pudessem estar em contato com a natureza, com
o ar puro e a água dos rios. Uma condição bastante limitada para
aquelas que vivam no orfanato e nos últimos anos, até andar pelas
ruas de Varsóvia era perigoso, dada a crescente perseguição, espe-
cialmente pelos parques da cidade, onde não era permitida a cir-
culação de judeus. Nesse sentido, era importante ter uma casa de
campo para as crianças puderem desfrutar da natureza durante
às férias de verão.

Defensor do contato com a natureza, em abril de 1927, a natu-


reza apareceu de forma acentuada numa série de artigos publica-
dos pelo jornal Mały Przegląd que, instigados pelo editor principal
do jornal, trataram da primavera, como aquela estação alegre que
anuncia a chegada do verão.

Primavera

Não se pode descrever a primavera inteira, é demasiada


grande, demasiado difícil. É melhor descrever bem um
detalhe do que descrever tudo, pouco a pouco e a partir
SUMÁRIO
do que se consegue ver.

74
Nachman não escreve sobre as cotovias, porque não
consegue ver nem ouvir, não escreve sobre os campos
e as florestas que estão muito longe. Ele encontrou em
pequeno fragmento da primavera na Rua Ceglana e o
resto floresceu em seu coração.

Nachman mencionou em sua carta que se as crian-


ças quisessem saber mais sobre onde passam os par-
dais durante o inverno rigoroso, quando as ruas estão
cobertas de neve, deveriam jogar mais comida para
eles – a assim ouviriam o seu cantar, não só agora. Mas
Nachman percebeu que os pardais cantam mais alegre-
mente durante a primavera.

Não admira que em Otwock, Zamość, Tomaszów se


possa ver mais coisas nesta primavera.

Não dos livros, mas do que os olhos veem, o que


o coração sente.

Editor, O Velho Doutor.

A primavera na cidade

Os raios do sol acordam-me. Os raios são quentes, o sol


verdadeiro esquentou a minha cara. Talvez esta é a con-
tinuação do meu sonho? Mas não! Está mais agradável,
é mais realidade do que sonho.

Então, primavera, primavera, primavera!

Estou abrindo os olhos. Por que há outra razão para dei-


tar-se na cama? É um desperdício de cada minuto, cada
SUMÁRIO segundo. Preciso abrir a veneziana - não, melhor a janela
inteira. As nuvens escuras fugiram e revelaram um céu

75
claro e azul. O mundo é o mesmo, o sol é o mesmo, mas
está mais perto, aqui, ao meu lado - dentro de mim.

A primavera está em todo o lado, mesmo na cidade, com


suas paredes espessas. O canto dos pardais tornou-se
alto e alegre, por todo inverno foi com fome e frio.

O relógio desperta às sete horas.

Ainda não vou sair da janela. Tenho pena do sol. É como


se eu quisesse voar até o céu e cantar como um pássaro,
cantar em voz alta.

Sentimentos indescritíveis enchem-me o coração. Estou


olhando para o sol. Ontem ainda estava frio, muito longe
do calor. Tive de olhar para ver se o encontrava, eu olhava
indiferente, - hoje sinto-o no meu rosto.

Estou fazendo uma inspiração profunda, para respirar


mais forte, para apanhar algum ar de primavera. Nem
uma caneta, nem um pincel vai colocar a primavera no
papel. Só você pode falar-nos sem palavras. Olá, olá.

Nachman da Rua Ceglana.

Como chega a Primavera em Otwock

A Primavera está chegando muito festiva. As pessoas


preparam mais coisas do que na Páscoa; pintam as
pedras, que estão enfileiradas ao longo das avenidas,
plantam árvores, pintam as suas casas. Em alguns
lugares aparecem brotos nas árvores, o sol esquenta,
os pássaros cantam. Eu não fui à escola hoje, porque
SUMÁRIO estou resfriada.

76
A minha amiga veio me ver, segurando um ramalhete
de flores. Ela diz que a professora disse para escre-
ver a cada dois dias o que acontece com os brotos dos
ramos das flores.

Eu fiquei feliz e escrevi esta carta para Mały Przegląd.

Miriam.

A primavera na escola

Os alunos sentados nas carteiras da escola. Alguns boce-


jam, outros olham pela janela. A sonolência prevalece.
Oh! Como eu gostaria que as férias já viessem. O pro-
fessor chama a atenção dos meninos para que prestem
atenção. Em vão - nada ajuda! A aula dura muito tempo.
Os alunos ficam impacientes: quando a sineta vai tocar?
Finalmente, os estudantes saem da sala de aula aos gri-
tos e fazendo barulho. Há alegria.

Jakób

***

A manhã de hoje estava muito linda. Saí para a escola


bastante cedo. O céu estava limpo sem uma nuvem. Só
um ligeiro nevoeiro. O céu tinha uma cor azul pálido e
um rosa ao fundo, como um rosto cor de ouro rodeado
de cabelo. Logo cedo, o sol ainda não era visível, por-
que as paredes das casas o escondiam, - só acima dos
telhados se podia ver os primeiros raios que mais tarde
chegariam aos quartos para fazer feliz o momento de se
levantar para o trabalho.
SUMÁRIO
As árvores ainda estão sem folhas; numa das ruas, aonde
duas filas de árvores formam uma avenida, parecia

77
adorável. Eu pensei comigo, esta rua da esperança e no
fim dela está a porta do paraíso. Vim para a escola. As
aulas dentro das quatro paredes fechadas. O sol chegou
à sala de aula de repente, não esqueceu de nós - apa-
receu a esperança.

Estas são algumas palavras, que eu estou enviando;


duvido que sejam publicados. Eu estou sentido que eu
não posso expressar a sensação que tive nesse dia. Todas
as manhãs e os dias estão lindas agora. Mas neste dia eu
senti algo mais forte.

Pola de Tomaszów

***

Fiquei à porta do nosso pequeno quarto e olhei pela


janela, à distância. Havia um pouco de neve nos telha-
dos. Como se fosse inverno, como se não fosse. Eu gosto
do inverno, quando neva muito, mas não há nada além
disso. Ao cair em si, senti uma bela primavera vir sobre
mim. Eu olho para cima - ah! O sol mostra o seu rosto
claro e dourado. Ainda envergonhado, está com medo:
talvez seja mal-recebido; ele é um forasteiro, ainda não
é o seu tempo, talvez estrague o encanto do inverno,
enquanto as sirenes soam, a geada faz desenhos nas
plantas e as janelas estão esculpidas pela neve. O sol
parece tímido. O pouco de neve que há nos telhados
começa a brilhar.

O mundo está claro e feliz. Estou levantando as mãos


para o céu. Oh! O solzinho querido, eu quero ser bem-
-vinda pelas pessoas assim como você ilumina o mundo
SUMÁRIO
com seu olhar alegre a carinhoso.

Hania de Zamość

78
***

A primavera trouxe muitas cartas sobre alegria e sau-


dade para Maly przegląd. Ela reavivou a ideia sobre feli-
cidade em todas as pessoas.

A primavera alegre desperta o pensamento sobre a feli-


cidade para os animais e para o povo.

Alguns temas das cartas tratam do amor e da beleza.


Outros - fé, esperança e amor.

A Pola escreveu que está feliz. A carta dela - como primeiro


broto – deixou o correio de Maly przegląd mais verde.

“Mais agora estou muito feliz, que a primavera chegará


em breve” (Pola, 1927).

Varsóvia, 8 de abril 1927.

A chegada da primavera, pelos raios de sol, demonstrava o


esperançar, pois era assim que as crianças se referiam a chegada
dela. Para as crianças de Dom Sierot, a primavera, também sinali-
zava a proximidade como o verão e com as férias escolares; para as
crianças de Dom Sierot, o momento de viajar para a Casa da Rosinha,
onde se passava momentos de intenso contato com a natureza. Em
julho de 1927, antes de sair de férias, o editor principal escreveu para
o jornal Maly przegląd uma carta com o título “despedida” contando
um pouco mais sobre como funcionam as férias na Casa da Rosinha.

Despedida

Queridos leitores e leitoras.


SUMÁRIO
Estou saindo para as férias de verão. Não muito longe:
vou de bonde, depois mais uns 20 minutos de cami-
nhada e já estarei no lugar. De um lado há salas de leitura

79
e do outro lado duas quadras de areia e uma mata. A
mata é bonita. Mas para chegar ao rio é preciso andar
50 minutos de trem. É melhor ir no verão que o rio está
mais baixo. Não há grandes obstáculos.

Estou indo para uma colônia de verão: 100 adolescentes


que já vão à escola e mais 50 crianças. Vamos morar juntos.

Antes de eu sair, preciso agradecer a vocês pelas car-


tas encaminhadas para Mały Przegląd. Especialmente
aos mais novos, para quem ainda é difícil escrever. No
inverno tinham mais tempo, escreviam cartas longas,
depois durante a primavera, começaram a escrever
apressadamente e as cartas diminuíram de tamanho,
mas mesmo assim escreviam, se algo interessante acon-
tecia, se tivessem feito alguma coisa boa ou se tinham
uma ideia interessante. Também, agradeço aos maiores,
que não ignoraram os pequenos e também escreveram
para Mały Przegląd. Enfim, agradeço aos mais velhos que
ajudaram na edição, mesmo já lendo jornais de adultos e
livros grossos. Até já fazem críticas aos jornais em geral.
Dizendo que os artigos nem são mais tão interessantes.

Depois do meu agradecimento a todos, preciso agora me


desculpar. Muitos leitores de Mały Przegląd, manifesta-
ram preocupação comigo, mas eu não queria deixar nin-
guém preocupado. Nem todas as coisas vão bem, mesmo
que se esforcemos. Estou com a consciência tranquila,
porque não deixei de ler nenhum número do jornal, não
me atrasei nenhuma vez para deixar o jornal pronto,
mesmo quando estava com dor de cabeça ou quando
SUMÁRIO estava com sono. Mesmo quando não estava muito a fim
de escrever, escrevia dizendo que estava “difícil”. Os leito-
res aguardam, não podem ficar angustiados sem o jornal.

80
As vezes saía uma edição não muito interessante, escrito
sob sonolência. Mesmo assim, peço para não fica-
rem preocupados.

Depois que agradeci e me desculpei de todos, vou falar


agora, o que vou fazer depois das férias: vou pensar, como
podemos melhorar. Durante um ano, aprendi muitas
coisas, porque cada um de vocês escreveu o que não lhe
agrada, o que precisa mudar. Fizemos diferentes experi-
mentos, mas tinha que ser feito às pressas, por isso nem
tudo deu certo. Mas é assim mesmo, se no início não é
encaminhado corretamente, depois é difícil consertar.
Todos falam isso: mas, agora eu sei e por isso vou enca-
minhar diferente para o próximo ano. Então será assim.

Para terminar essa carta de despedida, vou pedir aos lei-


tores que não se esqueçam durante as férias do jornal
Mały Przegląd. Escrevam coisas interessantes, nem que
sejam lembranças, nem que sejam sobre os títulos boni-
tos dos livros que vocês estão lendo.

E agora desejo para todos, boas férias, viagens agradáveis


e bons banhos de rio. Brinquem bastante e que o verão
seja bem aproveitado. Desejo isso pra mim também.

O prédio da Casa da Rosinha com duas grandes salas seme-


lhantes ao Dom Sierot era propicio para abrigar centenas de crian-
ças. Atrás do prédio principal havia um parque infantil com estru-
turas de escalada, inclusive para as crianças bem pequenas. Em
1925, foi construído um novo pavilhão de madeira com uma grande
varanda envidraçada, localizado perpendicularmente ao primeiro
SUMÁRIO edifício. No pavilhão havia dois quartos para 30 crianças cada, além
disso, mais de cem crianças poderiam dormir na própria varanda.
Ao lado, havia um prédio menor de tijolos com uma varanda e cinco

81
quartos para os monitores que, em sua maioria, eram ex-pupilos de
Dom Sierot. Mais adiante também havia uma casa onde morava o
caseiro Sr. Koszur, o qual era o responsável pela manutenção do
espaço durante o ano todo.

Figura 6 - Crianças no parque na Casa da Rosinha

Fonte: Benedykt Rotenberg/Benedykt Jerzy Dorys, 192811.

***

Sobre as férias na Casa da Rosinha, em 1935, o leitor de Mały


Przegląd, Ludwig publicou um artigo sob o título “Os Jasmins”.

Os Jasmins

Os Jasmins e a Casa da Rosinha.

– O quê?

Oh sim. Nem pinheiros, nem tuberculose, mas sim…


jasmins.
SUMÁRIO

11 Fotografia feita por Benedykt Rotenberg, ainda no início da sua carreira. Durante a Guerra, Ro-
tenberg permaneceu preso no Gueto de Varsóvia onde manteve um estúdio fotográfico entre os
anos 1940-1942. Ao fugir do Gueto mudou seu nome para Benedykt Jerzy Dorys.

82
– Está surpreendido, Querido leitor?

– Que você possa imaginar amigo, que você tem 15 anos


e que estamos na primavera…

– Sente o cheiro do jasmim?

Então, foi assim:

O sol enamorado não era da cor de ouro, nem amarelo,


tinha simplesmente a cor de sol… Era gentil e caloroso
– era virginal. O sol de primavera é assim. Depois, ele
está torrando a terra como as dores do parto, a ator-
mentando, gerando o grão, no fervor abafado e ociosos
de julho… Mas nestes dias eu não pensei ainda o que vai
acontecer. Deixo isso para depois.

O vento balançou os galhos dos abetos, que estão sus-


surrando. Sobre o que contam os abetos?... Sobre o
aparecimento das folhas, que as folhas vão crescer. Vão
crescer como eu. Sim, agora o abeto falou sobre mim,
mas pode falar sobre você. Em todo o caso, sobre fala
sobre a juventude.

Parecia que a floresta ficou em silêncio. De repente, uma


canção tranquila começou a tocar que se transformou
em grito de triunfo ou angústia, e depois acalmou.

Em seguida, luzia o sol de cobre. Queria gritar de felici-


dade. Os topos de árvores, casas – tudo ficou com cor de
ouro… A floresta balançava com a hora do crepúsculo.
Ainda mais calma do que antes da tempestade.
No quarto exalou o cheiro dos jasmins… os quais nos
SUMÁRIO próximos meses... vão florescer.
A mão está segurando o lápis.

83
“A harpa ficou em silêncio.
Com a fragrância da corriola.
Vai perfumar – às cordas barulhentas.”
Eu quero terminar. São rimas ineficientes. – Não consigo!

Os Jasmins.

– Você não entende?

– O céu está perfumado e embaçado de cores.

A turquesa tem coloração prata, a cor de ouro troca lugar


com o bronze, o bronze flui para bordô. Nos restos de
azul claro, a lua está acordando. O esquadro da janela,
onde me sento – está escurecendo, mas eu não me sinto
triste, ou estou triste, mas sem amargura.

Está tranquilo. De longe pode-se ouvir o latido abafado


do cachorro… A lua fica mais brilhante. O quarto está
perfumado, intoxicado… Eu estou embalado e agitado.

Alguém começou a falar. Não foi um ser humano mau.


Mas começou a falar sobre as pessoas e… os jasmins
pararam de exalar seu perfume.

Na mesma noite eu acordei com um grito:

– Oh Jasmins!!!!!?

Vão perfumar?

Entre as pessoas?

Nas terras altas da humanidade??


SUMÁRIO
Apenas não deixe seu amigo esquecer – Deixe-o imagi-
nar que era primavera e ele só tinha 15 anos...

84
Em setembro de 1939, toda a região de Wawer foi ocupada
pelos nazistas, sob a tutela de Adolf Hitler e Heinrich Himmler
que assistiam desde a torre da Igreja de Nossa Senhora da Coroa
Polônesa (Matki Boskiej Królowej Korony Polskiej), um dos pontos
mais altos da cidade. Apesar do bairro ser devastado, o prédio da
Casa da Rosinha suportou a Guerra e permaneceu como espaço de
cultura até o final da década de 1960, quando o prédio foi demolido.
Atualmente encontramos no local, o centro poliesportivo “Syrenka”
no bairro de Wawer, em Varsóvia.

Figura 7 - Janusz Korczak com monitores e algumas crianças na “Casa da Rosinha”.

Fonte: Museu de Varsóvia, 1938.

SUMÁRIO

85
7
NASZ DOM
Durante a I Guerra Mundial, Janusz Korczak prestou assistên-
cia médica às crianças, vítimas da guerra no exército do Czar em Kiev,
onde conheceu a pedagoga e ativista polonesa Maryna Rogowska-
Falska. A pedagoga que, após a perda do marido e da filha de dois
anos, vinha dedicando-se ao ativismo das crianças polonesas, os
então chamados filhos da Guerra, na capital Ucraniana, encontrou na
parceria com Korczak a continuidade do seu trabalho em Varsóvia.

Após o fim da Grande Guerra, Varsóvia tentava voltar ao seu


posto de capital do país e a cidade começava a se reerguer sob o
aspecto de uma capital moderna da Europa. Muitas crianças órfãs
foram trazidas para a capital, mas não havia espaço para abrigá-las.
Portanto, em 1919, após retornar à cidade, Korczak reuniu forças com
Maryna Falska e Maria Podwysocka para fundar um centro de edu-
cação para crianças, filhos e filhas de civis e militares poloneses, a
quem a guerra tirou a vida. Diante desse contexto, em 15 de novem-
bro de 1919, foi inaugurado Nasz Dom (Nosso Lar). Primeiramente em
Pruszków, região metropolitana da capital e anos mais tarde, em 1927,
a casa com apoio da recém primeira-dama Aleksandra Piłsudska,
ganhou novo espaço num prédio novo de três andares no bairro de
Bielany em Varsóvia, para onde as crianças foram transferidas.

Figura 8 - Nasz Dom em Bielany.

SUMÁRIO

Fonte: Nawroski, 2019.

87
Semelhante a afinidade pedagógica com a Senhora Stefania
Wilczyńska, Korczak impulsionou a criação de um segundo educan-
dário com as mesmas intenções de Rousseau, Pestalozzi, Froebel e
Montessori. A relevância da pedagoga Maryna Falska na organiza-
ção de Nasz Dom tende a ser semelhante à da Sra. Stefa em Dom
Sierot. De acordo com as inspirações pedagógicas, identificadas por
uma pedagogia progressista, não queriam fundar um orfanato, mas
uma casa que fosse uma espécie de centro de educação e acolhi-
mento a quem precisasse de um lar.

No início da década de 1930, a função social de Nasz Dom foi


motivo de divergências entre Maryna Falska e Janusz Korzcak, espe-
cialmente no que tange a participação filantrópica da igreja, uma
vez que Falska se declarava ateia e não a aceitava. Se para Korczak
a casa deveria ser um lar que se preocupava com a educação de
um determinado grupo de crianças órfãs, para Falska, a casa deve-
ria também acolher as crianças e adolescentes trabalhadores dos
entornos de Nasz Dom, que ao meio-dia vinham até a casa pedir
por comida. Mesmo assim, apesar das divergências e afastamento,
nunca romperam com a relação de amizade.

Segundo o filme Dr. Korczak de Andrzej Wajda, em 1942, ao


ficar sabendo da provável deportação das crianças de Dom Sierot,
Maryna Falska ofereceu ajuda ao seu amigo, o qual recusou, mas
aceitou que salvasse algumas crianças, dando acolhimento às crian-
ças menores que ainda não estavam marcadas pela braçadeira com
a Estrela de Davi. Dois anos mais tarde, em 1944, quando a pedagoga
Falska recebeu o aviso dos nazistas de que precisava desocupar
Nasz Dom junto com as crianças, em meio ao tumulto, veio a óbito
em 7 de setembro, por conta de uma parada cardíaca.

Voltando a Varsóvia do início da década de 1930, apresen-


SUMÁRIO tamos o artigo de um leitor da rua Waliców que escreveu para Mały
Przegląd sobre os vendedores de rua.

88
Vendedores de rua

Os vendedores nas ruas diferem-se dos outros vende-


dores, porque eles têm um comércio pequeno: toda a
riqueza deles, fica em um cesto, escondido da polícia;
são pobres e alguns deficientes. A princípio, todos eles
parecem iguais, mas notei que na verdade, cada um
deles é diferente. Portanto, eu vou descrever alguns,
que eu encontro e observo com mais frequência.

O Semente, ele está lá em pé, menino na idade de 15


anos, com um casaco destroçado, veste um gorro
que fica inclinado. Na frente dele fica o Basquete, um
homem muito alto, em frente ao Basquete há uma
tabua; há também uma tabua em frente ao Semente
que vende sementes. Ele carrega uma balança nas
mãos. Mastiga algumas sementes lentamente. Se apa-
recem compradores, os olhos dele brilham, grita ale-
gremente e bem alto:

Torrada! Crua! Pesa e alegra-se.

Quando está chovendo, os gritos deslizam mais profun-


damente pela sua garganta. Olha para o além e às vezes
com os lábios frios, o grito pode ser ouvido no além, um
grito que se transforme em um pedido resignado:

Torradaaa...

Frequentemente, quando ele ganha bastante dinheiro e


está certo de que haverá um jantar, canta:

Comprem batatinhas.
SUMÁRIO
Porém, a maior parte do tempo ele permanece triste.

89
Há o Tuberculoso. Na porta há um velho, magrelo judeu
enrolado em uma capa. Ele veste meias em suas mãos,
não grita, não elogia seus produtos. O mundo é tão
triste e apático … O velho judeu é um ser indiferente ao
mundo. Por vezes os pulmões adoentados, sufocam a
seca e grave tosse. O judeu cospe sangue. O Tuberculose.
Sim, é uma vida de animal, a vida nesta porta ou prova-
velmente no porão desta porta, não deve ser saudável,
especialmente para uma pessoa velha.

Extraordinária novidade:- Na esquina eu vejo uma mul-


tidão de pessoas. O que aconteceu? Nada importante.

Novo aparelho de ventilação! - grita um homem numa


mesa de tábua.

O aparelho mede a capacidade dos pulmões. Nada


complicado. É preciso soprar pelo tubo para dentro da
máquina, o ar enche um balão pra cima, para as alturas,
cada vez que alguém faz isso o balão sobe diferente.

Inacreditável!

Cada pessoa pode soprar um pouco, pagando 5 centavos.


A novidade, os comércios estão indo bem: - as pessoas
sopram e o novo empresário está sorrindo, o dinheiro
zumbindo. Uma novidade – fazendo um sucesso
incrível. Se o comércio continuar indo bem, haverá
peixe no sábado.

Está assobiando alegremente, porque o aparelho tra-


balha sozinho. Seu companheiro que fica de guarda na
esquina chega correndo e cochicha:
SUMÁRIO
– Polícia!

90
O aparelho nas costas, a tábua debaixo do braço, começa
a fugir para o outro lado da rua. Os curiosos supervisores
já partiram. Em poucos minutos, pode ser ouvido nova-
mente na esquina:

Quatro por dez! - Agora eles frequentemente gritam:

Quatro por dez!

Ou seja, só dez centavos por quatro caramelos.

O vendedor deve ser um menino com os pulmões for-


tes, porque é preciso gritar alto, muito mais alto do que
o grito da concorrência no mercado. A mercadoria fica
na cesta ou num carrinho. O grito do novo comerciante
pode ser ouvido em toda a rua.

Quatro para dez! Dois para cinco!

O parceiro dele é um “passageiro” com carrinho que


transporta os caramelos. Anuncia:

Fabrico “Martelos”! Apenas de leilão! por 20 e por 40!

Por fim, bancarrota! - Recentemente na rua apareceram


os carrinhos com papelaria muito barata - 10 envelopes
com papel por 10 centavos. As caixas são baratas também.
O vendedor é um homem muito alegre e forte. Rege pela
Rua Eleitoral, agrada todas as pessoas:

Uma vez por ano!

Somente da bancarrota!

Incrível ocasião - semi-gratuito!


SUMÁRIO
Somente da bancarrota…

91
A balança - Esta máquina declina atualmente. No inverno,
no outono e no início da primavera, quando as
pessoas vestem casacos, ninguém quer se pesar.
Talvez alguma criança vá se pesar com botas enchar-
cadas de chuva e ficará feliz porque engordou. Além
disso, a pesagem tem outros inconvenientes. Primei-
ramente, a balança é muito cara, nem todos os nego-
ciantes podem comprar; segundo, é muito pesada, não
é possível fugir com isso nem esconder da polícia. Você
tem que ficar com ela para que todos possam vê-la. No
inverno, deve constantemente mudar o lugar em que ela
fica, no outono fica molhada e no verão o sol a aquece.
Muito ruim. Não é um bom negócio.

Fresco, noturno! - O “Bagelante” é difícil para descrever.


Este tipo de comércio é ocupado pelos velhos e jovens,
homens e mulheres. Eu vou descrever um deles. Perto
da cesta com os bagels quentes, há duas meninas.

É frio, elas aquecem suas mãos, ocasionalmente comem


os bagels. Mercadoria sempre atual, especialmente no
inverno, mas apesar disso é preciso incentivar as pes-
soas. Portanto gritam intensamente com um sotaque
muito característico:

– Bagels frescas para a noite!

Já está escuro, todos os comerciantes desapareceram,


apenas as bagelantes ficam aí. Elas sempre, quase sem-
pre são judias. Uma vez, na Rua Twarda, apareceu uma
bagelante cristã, mas o sotaque dela era estranho e a
SUMÁRIO
voz era estrangeira e anunciava timidamente os bagels.

92
Este som não combinava com ela, mas não sei exata-
mente porquê. Então, o comércio de bagels permanece
nas mãos de judeus. O bagelante pode ser encontrado
em todas as ruas, porque cada pessoa gosta dos quenti-
nhos e frescos para a noite.

Delicatessen é um pãozinho - Frequentemente é pos-


sível encontrar nas ruas mais ativas os comerciantes
que têm uma panela especial para salsichas. Na água
quente, elas são aquecidas. Um vapor de água lança
quando se tira a tampa. O cheiro agradável se espalha.
Com alguns centavos, você consegue comprar um pão-
zinho com salsicha quente, então as pessoas compram
com muita vontade…

Delicatessen quentes!

Naturalmente, a pessoa que quer vender seus produtos,


deve destacar-se das outras pessoas. Sendo assim, o pro-
prietário das salsichas com pãezinhos tem os punhos
brancos, e na sua mão direita está segurando um garfo.
O rosto vermelho, quente como uma salsicha.

SUMÁRIO

93
8
ÓRFÃOS – FILHOS
DA GUERRA
Janusz não gostava da palavra órfãos, argumentava que sabia
muito bem o que significava ser órfão. Ele mesmo, em suas reflexões,
se colocava no lugar de um órfão quando criança, mesmo com seus
pais vivos. O menino Henryk Goldszmit não teve uma relação de pro-
ximidade com o pai em vida e por isso sentia se órfão dos carinhos e
afetos paternais. Ele sabia o que significava ser uma criança, a quem
os beijos e abraços do pai eram negados e por isso, nunca tentou
faltar com o carinho de pai para aqueles que já não os tinham.

Sobre as crianças (filhos da Guerra), podemos ler uma carta


escrita e publicada no jornal Mały Przegląd, contando com uma
sequência de quatro publicações nas primeiras quatro edições do
jornal durante o mês outubro de 1926.

Diário de uma órfã

Diário – Isso não é um romance. Diário – são aventu-


ras e percalços da vida humana. Ninguém escreve pelo
outro, mas cada um escreve por si. O diário é verdadeiro.
Imprimimos de boa vontade essa história, a qual está
escrita sob o seguinte título - “Uma pequena história
sobre a minha vida”.

Finalmente, aos 14 anos de idade, decidi escrever sobre


a minha experiencia de vida. Desde muito cedo fiquei
órfã. Não conheci meu pai. Até hoje não sei se o que eu
vi, era um sonho ou realidade do dia que meu pai fale-
ceu, eu tinha 2 anos. Não sei qual era sua aparência.
Restou-me somente uma lembrança.

Era noite. Minhas irmãs e meu irmão dormiam, e eu


não conseguia pegar no sono, desci da cama e fui para a
SUMÁRIO cozinha. Lá estava minha mãe (da minha mãe eu lembro
um pouco porque eu tinha 3 anos quando ela faleceu).

95
Em seguida, ao voltar pro quarto, parei em frente a porta
do quarto dos meus pais. Na minha frente estava a cama,
onde meu pai estava deitado. Só lembro da barba preta
e o peito descoberto, empastado com alguma pomada.
Anos mais tarde, quando contei essa cena para meu
irmão, ele me falou que de fato, esse era meu pai. E agora
fico imaginando que neste dia eu vi meu pai pela pri-
meira e última vez.

O que fiz depois, se voltei para a cama, isso eu não lembro.

Com certa frequência, volto meus pensamentos para


esse dia.

Me sinto bem, ao imaginar que uma garotinha de pijama


parada no centro da porta, provavelmente torcendo as
mãos e os olhos sonolentos.

Sei que meu pai faleceu de pneumonia e minha mãe


de preocupação.

Sobraram 4 crianças órfãs. Um adolescente de 12 anos e


três meninas.

Quando ficamos sozinhos, não tinha outra alternativa,


se não ir para a casa dos parentes. Então, eu fui para a
casa da minha tia.

Lembro quando meu irmão e minha irmã desciam as


escadas. Meu irmão foi para Varsóvia e minha irmã para
Lublin e a outra irmã para Minsk. Lembro que ao se des-
pedir, meu irmão me deu um caramelo.

SUMÁRIO Eu dormia na cama com a ajudante da minha tia, ela era


bastante suja. Eu sentia saudades e chorava porque que-
ria ir para casa. Lembro que minha tia teve mais um filho

96
e quando eu tinha 5 ou 6 anos, fiquei sabendo pelas crian-
ças do pátio que há uma escola pública e eu precisava
estudar. Imediatamente corri com uma menina para
essa escola. O professor era um jovem rapaz, provavel-
mente do quarto ano. Ele me aceitou e disse para voltar
no dia seguinte. Voltei aliviada para casa.

No dia seguinte fui para a escola. Não falei nada pra nin-
guém porque eu estava orgulhosa de que eu encontrei
uma escola sozinha. Queria fazer uma surpresa para a
minha tia, mostrar que eu sabia ler e escrever.

Quando voltei, minha tia me esperava ao invés da minha


mãe que provavelmente iria abraçar seus filhos e agra-
decer pelo nosso bom comportamento na escola. Mas
minha tia com a cara amarrada, aos berros, me pergun-
tou onde eu estava. Desconsiderei sua raiva e comecei a
contar sobre a minha aventura.

Mas ela não queria nem escutar, me ameaçando com


raiva, dizendo que se eu ainda voltasse para lá, iria me
mandar embora da casa. – Agora eu preciso dar um jeito.

Lembro, que a titia me falou que se eu não fosse mais a


escola, iria me dar um pão com manteiga. No dia seguinte,
saiu para o centro e eu não aguentei esperar, deixei o
filho dela e a casa aberta, fui correndo para a escola.

Ao perceber que não levaria mais nenhuma vantagem


comigo, minha tia decidiu me entregar ao meu tio. Tal-
vez ela estivesse ressentida: afinal cuidou de mim tan-
tos anos. Talvez agora meu tio devesse me aguentar um
pouco. – Mas eu não entendia isso, me joguei no chão e
SUMÁRIO não queria ir de jeito nenhum. Porque eu já estava acos-
tumada aqui e eu tinha muito medo do tio (A história
continua na próxima edição).

97
Diário de uma órfã. (continuação)

A tia me deu uma boneca e por fim eu fui embora com


a sua ajudante. Mas meu tio não quis me aceitar, falou
que não tinha lugar para eu dormir lá e não podia me ver
assim tão mal-vestida, mas também não tinha dinheiro
para comprar roupas pra mim. Por fim, retornamos
para casa da minha tia, mas ela já não quis mais me acei-
tar, gritava com sua empregada e pediu para voltarmos e
me deixar lá. Meu tio era mais rico que minha tia e isso a
deixa mais furiosa ainda.

Chovia, fazia frio e eu estava com fome e cansada.

Por fim, chegamos na entrada da casa. Nem deu tempo


de olhar direito e a empregada me largou sozinha ali e
foi embora. Meu tio abriu a porta e começou a gritar:
“– O que você está fazendo aqui até agora?” Assustada
com essa recepção, não respondi nada. Ah, Meu Deus!
Como eu chorei nessa noite. Da mesma forma que a
chuva caia lá fora, caiam lágrimas amargas dos meus
olhos e não havia ninguém para enxugá-las.

Permaneci encolhida na antessala da entrada, enquanto


escutava da sala gritos de briga porque meu tio queria
que eu ficasse enquanto sua esposa dizia que não permi-
tiria que eu permanecesse nem mais um minuto aqui.
Por fim, o táxi me levou novamente a casa da minha tia.
Assim, pela segunda vez, voltei para o mesmo lugar.

Enfim, depois de algum tempo minha prima me aco-


lheu. Aqui era melhor, eu dormia nas cadeiras do quarto,
não me deu nenhum trabalho e começou a me ensinar.
SUMÁRIO
Mas isso não durou muito tempo. Sabia que eu deveria ir
para Varsóvia, na casa de outros parentes. Ela começou a
me preparar para a viagem.

98
Um dia antes de viajar, fui encontrar com a irmã que
também foi mandada embora de Lublin e agora estava
na casa do tio. Nos despedimos e nos separamos sem
nenhuma de nos chorar. E por que iríamos chorar? Por-
que nem eu nem ela, lembrávamos quando foi a última
vez que ficamos sob o mesmo teto. Ah! Eu aguardava
ansiosa por esse momento de poder sair. Eu estava
inquieta porque parece que minhas tristezas iriam aca-
bar. Porque vai começar uma nova vida, vou poder estu-
dar numa escola de verdade.

Ao chegar em Varsóvia, fui para a casa de um parente


distante. Imediatamente meu irmão foi informado de
que eu estava aqui. Entrei assim que a porta se abriu e
encontrei um rapaz grande que era o meu irmão, o qual
eu não reconheci imediatamente e ele também não me
reconheceu. – Comecei a chorar. Chegou o dono da casa
e meu irmão pediu para ele me acolher até encontrar
um novo lar para mim. O pedido do meu irmão foi aten-
dido e eu fiquei com ele por um tempo.

Só agora eu posso perceber que sou uma órfã solitária e


que ninguém liga pra mim.

Os filhos do dono da casa me importunavam a cada


farelo de pão que eu comia. Eu não via a hora de chegar
à noite porque meu irmão retornava, me abraçava, brin-
cava comigo e me animava para seguir em frente.

Eu já deveria estar aos cuidados de um internato, mas


estava demorando para ser aceita. Enquanto isso,
meu hospedeiro estava cada vez mais impaciente e as
SUMÁRIO
crianças aproveitavam toda trapaça para colocarem
a culpa em mim.

99
Por fim, fui chamada para o internato. Meu irmão deve-
ria pagar pela escola, mas estava dando um jeito para
ser de graça. Ele ganhava pouco e mal dava para pagar
as contas dele.

O orfanato ficava em Żyrardów. Finalmente acabou o meu


martírio. Me acostumei rapidamente a conviver com as
outras crianças e com os funcionários. Era mais fácil
viver com estranhos do que com os próprios parentes.

Finalmente comecei a estudar com outras crianças.

Em Żyrardów, passei um ano quando o internato foi


transferido para Varsóvia. (A história continua na
próxima edição).

Diário de uma órfã. (continuação)


II.

Agora eu pensava em sair o quanto antes do internato.


Em pouco tempo fiquei sabendo que começaria a tra-
balhar numa fábrica de espartilhos. Comecei a chorar
e pedir para não me mandarem para esse trabalho, que
eu preferia ir para uma costureira, onde essa palavra –
espartilho – tinha sentido para mim, assim como calça.
Estava envergonhada, mas me disseram se eu não acei-
tar, vão me colocar para fora do internato.

Mesmo sendo algo de boa vontade, são trabalhadores,


cansados, com a voz sonolenta – e eu preciso ir nesse
lugar – que eu não gostaria de estar. Mas pensando bem,
se eu estiver trabalhando, vou ser independente.
SUMÁRIO Me mudei para um novo quarto perto do novo trabalho.
No dia seguinte, desci as escadas com a carta de recomen-
dações, cheguei no horário marcado. Minha responsável

100
me chamou para uma sala onde eu deveria trabalhar e
para minha surpresa não havia ninguém ali.

Me falaram que eu deveria vir todos os dias às 9 da


manhã, às três horas era o almoço e às dezenove horas
vou poder voltar para casa.

No dia seguinte, recebi a ordem de varrer e limpar o


quarto e me deram um espartilho rasgado. Essa situação
perdurou por três semanas, até o quarto ficar totalmente
polido, eu precisei limpar os móveis, estender os lençóis
e o pior de tudo, lavar as janelas. Apesar da senhora me
garantir que se eu me segurasse seria seguro lavar as
janelas, mesmo assim eu tinha medo porque estava no
terceiro andar. Diante da minha expressão de medo, a
senhora me falou que eu poderia pensar até amanhã se
ainda queria trabalhar neste lugar ou então, nem pre-
cisava vir mais, porque eu sou magra e eles estão pre-
cisando de meninas fortes. Por um longo tempo, andei
pelas ruas e pensava no que eu poderia fazer, até eu ir
à casa da monitora do orfanato, mas ela não estava em
casa. Aproveitei o tempo para revisitar os temas da
escola, fiz todos os deveres, para a minha monitora não
reclamar quando chegaria. Por fim, voltei mais alegre
pra casa. Esperei por uma semana quando no escritó-
rio do internato fiquei sabendo que estavam procurando
uma pessoa para trabalhar numa loja.

Cheguei numa grande loja de vestidos. Aqui trabalha-


vam muitas moças jovens. Eu circulava entre as vendas
e a produção, mas não me era dado trabalho pesado.

Neste trabalho conheci uma professora que começou


SUMÁRIO a me dar aulas. No final do dia eu reservava um tempo
para as aulas. Só não fazia isso quando havia muito
trabalho na loja.

101
No quarto, moravam duas, agora três moças. Éramos
uma família.

Nesse tempo também voltei para visitar o internato. Os


meus colegas estavam vivendo bem e sossegados. Mas
me incomodava saber que daqui a pouco acabaria essa
calmaria para eles também. Eles precisavam sair daqui
e começarem a se virar por conta própria. As crianças
ricas querem crescer e logo ficar grandes, mas nós não
queremos deixar o conforto do orfanato. Lá fora, a vida é
bem pior conosco.

Eu e minhas companheiras de quarto mudamos para


um quarto maior. O proprietário era alguém sempre
incomodado. Todos os sábados brigava com a esposa e
conosco todos os dias. Não podíamos falar demais, nem
muito alto. É meio óbvio que três adolescentes após um
dia de trabalho gostariam de conversar um pouco e isso
o incomodava. Além disso reclamava que gastávamos
muito água para se lavar e muita querosene nos lampi-
ões que ficavam acessos por um longo tempo.

O inverno era estridente, mesmo assim abríamos a


janela do quarto todos os dias porque o quarto era
muito pequeno, até a fechadura da janela quebrar. Daí
começamos a fechar a janela com um prego. E quando
estava mais quente, minha colega abria a janela só
com uma cotovelada. O proprietário já não falava de
nós pelas costas, mas dizia abertamente que éramos
moças muito mimadas.

No verão, a loja era fechada porque todo mundo deixava


SUMÁRIO a cidade. E para não perder tempo, eu ficava responsável
por cuidar das penas e plumas.

102
Uma senhora mais velha, ficava sentada no centro, e cui-
dava do trabalho de todas nós, para que fossemos ágeis.
E quem não era, ela perguntava:

– Meninas.. Tá difícil de se concentrar aqui?

Lembrei-me que me falaram uma vez que a música mais


bonita é aquela cantada enquanto trabalhamos. (A histó-
ria continua na próxima edição).

Diário de uma órfã. (continuação)

Eu ficava perto do fogão onde as penas ferviam. Traba-


lhamos entre 20 meninas. A sala tinha cheiro de tinta
fresca e por isso ficava com dor de cabeça frequente-
mente. Após passar três meses, eu pude voltar ao meu
antigo espaço, das vendas.

Meu irmão raramente escrevia. Ganhava pouco, mas


estava estudando. Não dizia nada nas cartas se estava
juntando dinheiro para viajarmos e eu sonhava tanto
com uma viagem.

No quarto com as colegas, ficávamos conversando até


altas horas sobre nosso sonho de viajar. Iríamos à Paris,
conheceríamos a cidade, aprenderíamos a língua e irí-
amos encontrar um trabalho. Era assim que planejáva-
mos até chegar a primavera.

Oh primavera, quantos corações se alegram quando ela


se aproxima, até as ervas daninhas, as lagartas e outros
bichinhos ficam felizes. A senhora alegria se encontra
em todos os lugares. Ela está por todos os lados. Ela
SUMÁRIO está em todos os lugares, mas há um problema. E pro-
vavelmente ela vai estranhar ao saber que lá no quarto

103
andar há tristeza. E provavelmente vai se envergo-
nhar de chegar lá.

Começaram a pintar a casa onde morávamos, foi colo-


cada uma torra de madeira na nossa janela e por isso não
podíamos mais fechar a janela.

E pra piorar, a primavera não foi generosa conosco.


A chuva começou e durou por vários dias, até a minha
melhor amiga ficar resfriada e eu comecei a tossir.

Passei a noite cuidando dela, ela me importunava muito


por causa do seu estado. Assim que seu estado de saúde
piorou, ela me falou que estava com pneumonia, infec-
ção no sangue e assim por diante. Mas ela estava mesmo
com febre. Imagina a minha situação. Finalmente, levei
ela para o hospital. Fiquei sozinha no quarto, logo quando
tinha mais trabalho na loja, mas o máximo que consegui
foi chegar até a cama, onde passei a semana inteira.

Quando pensei em voltar ao trabalho, logo na entrada


fui advertida, que trabalhadores doentes não podem
trabalhar aqui.

Novamente voltou a preocupação.

Não sabia o que fazer comigo mesma. Entreguei ao car-


teiro a minha carta de demissão.

Voltei à casa da monitora do orfanato que buscou para


mim um lugar para crianças, em que um médico garan-
tiu que as crianças podem lá ficar por um longo tempo.
Mesmo assim eu estava muito fraca.
SUMÁRIO
Infeliz é o homem que luta contra a pobreza, mas mais
infeliz ainda é o homem que luta contra a doença. Feli-
zes são os que tem saúde.

104
Fui para Otwock. Oh, mas como estava sendo difícil sair
daqui por todo o cansaço que eu estava sentindo. Apesar
de estar feliz por ter um novo emprego.

Não tinha jeito, eu precisava ir até a prefeitura, lá pedi-


ram para eu aguardar. Fiquei lá sentada até o fim do dia.
Um entra e sai de pessoas, mas ninguém falava comigo.
Pelo menos poderiam dizer, onde vou dormir esta noite,
mas nada. Alguém saí, fuma um cigarro e volta pra sala,
mas ninguém fala comigo.

Já foi trazido a janta para mim, a luz nas principais salas


já foi apagada, alguns cachorros soltos pela rua começa-
vam a latir. E eu aqui sentada e esperando.

Eu não ganhei nenhum número. Ninguém se prontifi-


cou a me levar para casa. Vou ter que dormir aqui.

A filha do guarda enfileirou umas cadeiras e me deu uma


manta. Volta e meia eu acordava e olhava para fora se já
estava clareando. Fiquei com medo de adormecer e as
seis horas da manhã começarem a chegar as primeiras
pessoas para o trabalho.

Finalmente parece que já amanheceu. Levantei-me,


me ajeitei. O relógio tocou pela primeira vez. Somente
depois de quatro dias, fui dormir num novo pavilhão.

Fui me acostumando, e também fui conhecendo os


novos moradores. Eu era uma das mais novas.

Mas por quatro semana me relutaram em me segurar


no pavilhão porque me falaram que poderiam me man-
SUMÁRIO ter lá somente por quatro semanas. Uma das monitoras
falou que iria buscar trabalho para mim em Otwock.
Mas o pior de tudo é que não havia trabalho para mim.

105
Por um acaso, alguém deixou 50 rublos para mim e
então eu pude ficar mais um mês.

Mas o que será depois disso?

A única coisa que conseguia pensar até agora, é que


eu não tinha o que fazer. Pensando sobre todo o meu
passado, cheguei à conclusão de que eu estava muito
doente. De que pessoas doentes ninguém quer. Que
ninguém gosta de mim e ninguém se importa comigo.
Estou abandonada, como uma maçã verde esquecida na
árvore. Uma luta está sendo travada no meu coração.

O que me ajudou foi a oração.

Rezava pelos meus falecidos pais – apesar da recomen-


dação do médico, eu deixei o pavilhão e fui andar pela
chuva, até obter algum sinal. Enquanto isso eu continu-
ava rezando pela saúde, para não ser um estorvo para
ninguém. Crianças doentes nenhuma família quer.

Quando temos saúde e somos simpáticos, todo mundo


gosta da gente. Quando estamos tristes, ninguém olha
para nós, não emitem uma palavra.

Oh mães! Não deixam seus filhos endurecerem, sempre


deem um sorriso para eles, especialmente para as crian-
ças mais fracas. Porque vocês não sabem o peso que é
não receber um sorriso.

Sei muito bem que as instituições para crianças pre-


cisam de crianças saudáveis, porque elas aprendem
mais rápido e assim o professor vê logo o resultado do
SUMÁRIO seu esforço. Principalmente essas crianças que as mães
andam de mãos dadas. Mas quem tem culpa por eu ser
assim. O que eu posso fazer?

106
III

Quatro anos já se passaram. Quando escrevi pela última


vez. Quatro anos. Quantas mudanças.

Deus meu! Se alguém me dissesse naquela época que eu


ganharia uma pensão para me aquecer, eu pensaria que
estavam brincando comigo.

Muitas mudanças aconteceram. Já não escrevo mais


como uma pessoa tímida e melindrosa, que ninguém
gosta. Escreva, na verdade, como uma pessoa madura –
que passou por sofrimento e tornou-se madura.

Se estou feliz? Não. Mas quando penso no que pas-


sei, nos meus objetivos, pelos quais eu luto – sinto que
já tenho muito.

Hoje recebei a visita do meu tio (aquele que me acolheu


a contragosto naquela noite fatídica). Me pediu descul-
pas pelo que ocorreu. Começou a perguntar o que eu
estava fazendo. Se desculpou por não me comprar um
presente, porque não sabia o quanto grande eu era.
Mas perguntou se eu gostaria de ir com ele no cinema.
Queria me dar 5 rublos. Agradeci sorrindo.

– Obrigada, mas meu irmão me manda. Do resto, eu dou


minhas aulas e tenho meu dinheiro.

Após ele despedir-se, comecei a chorar: tanta dor foi


relembrada, tanta coisa do passado veio à tona.

SUMÁRIO O diário de uma órfã não foi assinado. Mas sua história revela
a vida de uma adolescente de 14 anos que conta sobre os percalços
vividos no período pós-guerra. A perda dos pais precocemente, a

107
passagem pela casa de vários familiares, a vontade de estudar, a vida
nos internatos e a dureza de trabalhar desde muito cedo revelam a
vida de muitas crianças órfãs do período entreguerras.

No ano seguinte, em março de 1927, a temática das crianças


órfãs voltou a ser tema do jornal Mały Przegląd.

Mês do órfão

A ajuda da América

Depois da guerra, a América enviava dinheiro, comida


e roupas. A América viu que a Guerra destruiu a Polô-
nia, que muitas casas forma queimadas, que os exérci-
tos espezinharam os campos semeados, que os famintos
ficaram doentes e não podiam trabalhar.

As pessoas ficavam doentes e morriam. Os órfãos ficavam.


A América enviou muito para os órfãos. Depois, a guerra
terminou; a América disse:

– Já chega! Vocês têm que ser independentes.

Começou a enviar menos, todos os anos menos.

Os senhores chegavam da América, viam o que aconteceu


conosco e diziam:

– Nós ajudamos os nossos, vocês ajudam os seus. Aque-


les, que trabalham devem cuidar daqueles que não
podem trabalhar.

Entende-se que mais difícil é para as crianças. Por-


tanto, a América ainda envia dinheiro para as crian-
SUMÁRIO
ças, mas não muito.

108
As crianças infelizes

Há pessoas que perguntam por que querem saber. Há


pessoas, quem não têm paciência para escutar e ainda
ficam irritados quando dizemos algo diferente do
que eles pensam.

Às vezes, não é mal quando alguém não sabe como está


na verdade; mas é pior, quando ouviu uma fábula e acha
que essa é a verdade, conta para os outros e fica mal por-
que ninguém acredita.

Há duas fábulas sobre os órfãos: uma fábula que a


madrasta bate e não dá comida e a outra que o órfão
morre na neve.

É verdade, há madrastas malvadas, mas há boas tam-


bém. Sim, há órfãos pobres, mas há também órfãos
ricos. Por vezes, a madrasta pode ser boa assim como
a mãe e há crianças pobres que têm pais. Um exemplo:
um menino tem pais, mas o pai não trabalha e a mãe está
doente. Ou um filho está doente, embora tenha pais.
Os infortúnios surgem de muitas formas.

Os órfãos

Os órfãos - são como as outras crianças. Alguns inte-


ligentes, alguns estúpidos, outros bons ou maus, feli-
zes, tristes, saudáveis e doentes, esforçados e pregui-
çosos, educados e malcriados também. Há pessoas
diferentes no mundo.

Não é bom esperar que todas as crianças sejam iguais.


Não se pode simplesmente gostar das melhores. Algu-
SUMÁRIO mas vezes, fica-se irritado quando uma criança faz algo
errado. Não tem importância se ela tem pais ou não.

109
Entre os órfãos estão alguns que fazem manhas para
obter algo, mas há também muitos que são orgulho-
sos, outros envergonhados. Eles pensam que é errado
cuidar deles. Há crianças também, que não gostam
de receber dinheiro dos seus pais, mas outras nem se
preocupam com isso.

Um favor?

A criança não é culpada pela morte dos pais. Não é cul-


pada por ser pequena e fraca. Um filho não é culpado,
porque não sabe ou não conseguiu fazer algo bom. Ele
é inocente mesmo quando está errado, porque quer
fazer reparações.

Os pais cuidam da criança e dizem-lhe o que deverá fazer.


Quando não tem pais, alguém tem de cuidar dele. Por
vezes, um órfão será cuidado por uma avó, um tio, uma
tia. Mas, frequentemente não conseguem porque são
pobres e já têm os seus filhos, ou são velhos, ou não são
boas pessoas e não querem ter problemas. Alguém deve
cuidar da criança e isto não é um favor, mas uma obriga-
ção. Todos que trabalham devem lembrar-se que podem
tornar-se órfãos. Todas as religiões falam, que é preciso
ajudar, que é preciso ser bem e pensar nos outros.

SUMÁRIO

110
9
OS ADULTOS
Em Mały Przegląd, os adultos eram os outros, aqueles que
tinham pouco contato com o jornal, mesmo assim o jornal também
tratava das pessoas adultas. O editor mor do jornal inclusive pre-
meditava que Mały Przegląd para os adultos não passava de uma
passagem de bobagens escritas pelas crianças.

Os pais e nós

Os pais — os grandes nós, e nós — os pequenos pais.

As meninas pequenas têm bonecas minúsculas. As


meninas grandes têm bonecas grandes — bebês. Há
uma diferença: as pequenas mãezinhas brincam com
suas bonecas de acordo com sua própria vontade e as
bonecas obedecem a tudo. As mães grandes querem
fazer a mesma coisa com seus filhos, mas crianças —
elas já são pessoas. Elas têm suas opiniões e é aqui que
começam as disputas e os desentendimentos.

Quando um filho ou filha não pode satisfazer o desejo de


um dos pais, ouve:

— Eu te criei. Custou-me tanto esforço e trabalho e é


assim que você me trata?

Não entendemos o sacrifício dos pais? Entendemos.


Somos gratos a eles por seu cuidado, sua preocupação e
seu trabalho. Mas nem sempre podemos nos submeter à
vontade deles, afinal, isso também nos machuca.

Na escola, várias cadeiras quebradas ou inteiras ficam


de pé na sala de espera, cheia de mães e pais. Todos eles
vieram para a entrega dos boletins.
SUMÁRIO

112
Na porta, sentou-se uma mulher toda preocupada,
malvestida. Ao lado dela, uma outra senhora rica com
um casaco de pele.

— A senhora tem uma filha aqui?

— Pergunta a senhora rica.

— Sim, minha filha está no quinto ano.

— A pobre responde.

— A minha está no nono.

— Oh, será que minha filha poderá ir à escola até o nono


ano... — suspira a mulher pobre.

— Por que ela não deveria ir?

— Por que? Porque tem que ter dinheiro!

— Se você é pobre, não precisa estudar — se intromete


um marmanjo. — Eu também não terminei o nono ano
e ainda estou vivo. Agora qualquer retardado, qualquer
maluco, quer ser médico. Para quê? Para quê? Há tantos
médicos quanto cães.

A mulher pobre não responde. Ela quer que sua filha


estude. Ela sabe que a garota é talentosa nas letras e
muito fraca para o trabalho manual.

A rica, por outro lado, retruca:

— Você tem que ser um estudioso, no entanto. Não custa


nada ter completado pelo menos o 9º ano. Eu não con-
SUMÁRIO sigo imaginar uma garota inteligente que não tenha ter-
minado o ensino fundamental.

113
Um pouco mais adiante, falava-se de esporte. Os
pais eram a favor de que a educação da juventude
fosse endurecida.

— São crianças, no entanto. Quando eles vão se divertir,


aproveitar, se não for agora.

— Mas os esportes são muito perigosos. — diz uma


das mães. — Você não consegue ficar firme no gelo e
eles são competitivos uns com os outros. O amigui-
nho do meu filho quebrou a perna no gelo e ficou na
cama por dois meses.

— Esta perna nunca mais vai quebrar de novo neste


lugar. — Confortou um pai.

— Eles nos deixam terrivelmente nervosos. A minha, eu


lhe digo, nadaria o dia todo. Sempre falo:

– Você pode se afogar. Você pode ter apendicite.

Aff! Olha se formos pensar assim, caminhar na rua


deveria ser proibido. Há poucos acidentes na rua?

De repente, um homem de talvez quarenta anos


fala lá da ponta:

— Esportes como esportes, mas de onde conseguir


dinheiro para isso? A escola custa dinheiro e aí vem a
criança com novas demandas. Uma viagem, por exemplo.

— Os passeios são muito úteis.

— Assim como tapar o buraco de uma ponte.


SUMÁRIO Alguns falam sobre o progresso de seus filhos.

114
— Como eu gostaria que meu filho aprendesse bem.
Mas, ele só está recebendo notas vermelhas.

— Talvez seja incapaz.

— Não. Preguiçoso.

— Minha filha é uma ótima aluna. Você já deve ter ouvido


falar sobre ela — a primeira aluna da turma.

(menciona o nome).

— Ouvi dizer que ela não é boa... Mas, talvez eles estivessem
falando de outra.

Quando as mães não trabalham, mas cuidam do lar, elas


se interessam mais pelas nossas coisas, controlando o
que lemos e com quem nos encontramos.

— Quantos anos tem seu novo amigo?

— A mesma idade que eu.

— O que faz o pai dela?

— Eu não sei.

— Você não sabe?

— Ele é um médico.

— Ela deve ser uma garota inteligente.

Ou:

— Qual é o nome dela?

— Goldberg.
SUMÁRIO
— O pai dela é um comerciante?

— Eu acho que sim.

115
— Humm... Eu acho que ela é uma dos Goldbergs.

— Eu não sei quais.

— Da Rua Dzika.

A maneira como a maioria dos pais quer criar os adoles-


centes é ainda muito retrógrada. Eles não permitem que
sua filha tenha um amigo ou que ele venha ao aparta-
mento deles. Parece a eles que nada pode nos conectar,
a não ser alguns flertes.

O pior é que os pais nem sempre avaliam nosso traba-


lho adequadamente. Para eles, parece que não fazemos
nada, não pensamos em nada.

Alguns pais vão ler isto e pensar:

— Quanta arrogância! Mal acabou de sair das fraldas e já


está nos criticando.

Eu não quero ofendê-lo e não posso orientá-los. Eu


sei que nem todos estudam psicologia, mas é preciso
conhecer a alma de uma criança. Não é uma coisa fácil.
Mas, tentem nos entender.

Obs.: Não tenho escrito sobre pais trabalhadores ou


jovens trabalhadores porque sei muito pouco sobre
essa vida. Além disso, sei que o que escrevi também não
esgota o assunto, que é complexo. Só quero mostrar que
temos algumas palavras a dizer e que os pais possam
tirar proveito dela.

Mesmo que o jornal não alcançava substancialmente o


SUMÁRIO mundo adulto, seus artigos tocavam no seu mundo sob a perspectiva
das crianças. Ademais, encontramos artigos, onde mencionam a vida
adulta que se volta ao passado, mas também aquela que se projeta
com um plano futuro.

116
Não é verdade que antigamente era melhor

Eu sempre achei estranho e me perguntava: - Como é pos-


sível que adultos falam de uma maneira dura e severa:-
“Você não vai”, que castiguem e proíbem. Eles também
já foram crianças ou pelo menos adolescentes? Será
que eles corriam, brincavam e reivindicavam os seus
direitos? Então, o que mudou? Por que eles não tentam
entender os jovens? Por outro lado, por que retornam as
memorias da infância, tantas vezes, em diferentes cir-
cunstâncias? E porque revivem os tempos velhos, agora,
com prazer, quando são adultos e já sofreram tanto?

Fico atento quando eles conversam entre si:

– Não, isso não é o que era antigamente.

Na fala deles, há um saudosismo pela infância que


já passou e isso me faz começar a pensar sobre os
velhos e bons tempos.

Muitas vezes, converso sobre isso com minha mãe. Ela


pensa, que após alguns anos, quando a gente passar a
ter mais preocupações, responsabilidades e ansiedades,
a infância vai parecer o período da vida mais agradável,
mesmo que não era perfeito.

– Antigamente, não existiam as escolas primarias – disse


minha mãe. Quem queria estudar, frequentava as esco-
las privadas. Mais quem tinha dinheiro para isso? Men-
salidades escolares eram muito altos. Além disso, era
difícil conseguir um emprego. Hoje, podemos adquirir
conhecimento básico por uma taxa mínima. Mesmo
SUMÁRIO que escolas são frequentadas por pessoas mais ricas,
o restante tem possibilidade de obter escolaridades e
reduções de custos.

117
Antigamente, as crianças que tinham 10 anos iam para o
trabalho. Entenda, que aos 10 anos, elas deixavam de ser
crianças. Não é verdade que a juventude do meu tempo
era mais séria, não, parece que são assim porque eles
foram ridicularizados através de disciplina severa.

Marysia, as crianças de hoje desfrutam de uma posição


melhor do que antes, você tem que saber disso. Hoje, os
pais são muito mais compreensivos, tentam entender
os filhos – diz minha mãe – e mais do que isso, acom-
panham as mudanças do tempo. Antigamente, as crian-
ças tinham menos em comum com seus pais, porque
não era lhes dada nenhuma atenção. Além disso, eram
hostilizadas, tudo era proibido para elas e não tinham
ninguém para responder as suas dúvidas atormentado-
ras. Com quem podia conversar uma menina pequena e
assustada, ou um garotinho miserável junto com todos
seus “porquês”? Provavelmente não era com a pessoa
que mantinha um sinistro chicote nas mãos ou com os
pais que tinham um pensamento retrógrado. Mesmo
alguns filhos de ricos frequentam só a escola- “cheder”
onde aprendiam a rezar e era considerado suficiente.

Eu me lembro - mamãe não parava de falar. Uma manhã


chuvosa, eu ia à escola. Eu estava compulsivamente segu-
rando alguns rublos na minha mão que deveria ser o
pagamento da escola. Estava com a cabeça nas nuvens,
não olhava para baixo. De repente, escorreguei e rela-
xei meus dedos que seguravam o envelope molhada.
O dinheiro chorado e minguado, se espalhou na terra.
Imediatamente, um grupo de pessoas me cercou. Eles
SUMÁRIO estenderam suas mãos e o dinheiro desapareceu rapida-
mente. Meus olhos se encheram de lágrimas. Limpei o
envelope só para conferir se não tinha mais nada. Eu pre-
cisava pedir, esforçar-se e juntar de novo. A partir disso,

118
quero te-dizer que não concordo com as pessoas que ten-
tam convencer outras falando que os velhos tempos eram
melhores em todos os sentidos. Se os tempos tivessem
sido melhores, se as pessoas tivessem um bom coração
– Será que estendiam seus braços avarentos por alguns
rublos de uma pobrezinha estudante?

***

Precisamos trabalhar

– Você tem que fazer suas malas – disse minha tia – Em


dois dias, as aulas começam.

Eu olhei ao meu redor com tristeza. Vai ser difícil para


mim deixar tudo isso que eu tanto amo; pinheiros altos
e compridos, com pássaros que gorjeiam tão bonitinho
todas as manhãs, o riacho prateado murmurando agra-
davelmente. Com toda essa amada liberdade que tenho
aqui, provavelmente, o que mais vou sentir falta é da
minha Janka loirinha. Nossa amizade dura três meses,
desde que eu cheguei no campo.

Nos dois se amamos muito, mesmo que somos tão dife-


rentes: ela é gentil - eu agitado; ela é tranquila - eu rude;
ela é prudente - eu faço castelos no ar, como os velhos
falam. Mesmo assim, nós nos amamos.

Quando eu penso sobre a separação, sinto vontade de


chorar. Neste momento, percebi que Janka que está
vindo em direção da varanda.

-Peguei a cesta e fomos para a bosque juntar pinhas. E


SUMÁRIO não fiquei triste porque quando ela viu que eu estava
ficando deprimido, me abraçou. Durante dois dias ainda
podemos brincar muito. Feliz com esta boa perspectiva,
eu pulei atrás de Janka.

119
Mas, no bosque não queríamos brincar mais. Sérios e
silenciosos, sentamo-nos numa tora.

– O que você gostaria de ser quando crescer?

– Eu vou ser o que a vida me obrigar ser. Não quero


sonhar, para poder se desiludir só depois.

– Eu tenho um sonho. – Eu a interrompi. Mas não sei se vai


cumprir-se. Eu quero ser um poeta! Quero escrever para
as pessoas sobre o brilho do sol nascente, sobre as ondas
tempestuosas dos mares durante as tempestades. Quero
escrever sobre o sofrimento e a alegria humana, sobre a paz
e o amor. E além disso, quero fama. Você está me ouvindo?

Janka endireitou-se e olhando para mim com um olhar


suave e puro, falou:

– Cabritinho, não é suficiente dizer “quero”, não. Nada


vai cair do céu, temos que trabalhar.

Sem desviar do caminho escolhido uma só vez, sem


suscetibilidade e tentação. Você vai atingir seu objetivo.
Acredite em si mesmo firmemente, trabalhe e um dia
você vai vencer.

Janka ficou em silêncio. Logo será noite. Estava numa


reflexão profunda. Quando todas as estrelas acenderam
e soprava uma brisa no campo, nos levantamos e fomos
para casa. As árvores murmuravam, mas pensei que
estavam cochichando.

– Para atingir seu objetivo, você tem que trabalhar, tra-


balhar persistentemente, acreditar absolutamente e
estar focalizado.
SUMÁRIO
Sentia saudade de algo distante, desconhecido, que
você precisa obter, merecer, algo pelo qual você pode se
conhecer melhor e se testar.

120
10
A NEVE
A espera pela neve e a sua chegada, presente no primeiro
semestre escolar, o semestre de inverno, sinaliza como será o ano
escolar, seja de espera, seja de magia como uma coberta de penas
que acabou de estourar ou de lama e morte de um velho senhor de
três meses de idade, chamado outono.

A primeira neve

A lama

Os primeiros flocos de neve já caíram! Mas que neve!


Pequenas estrelas cairão, ficarão ali estendidos por 15
minutos, derreterão e vai ter lama.

Eu vou para a escola e penso:

– Ah, como seria bom se já nevasse!

Eu estou sentado em casa. A chuva está constantemente


batendo nas janelas. Eu continuo pensando na neve. Tal-
vez haverá amanhã, ou ainda hoje.

***

Tímido

Todos na aula estavam felizes por estar nevando. Eu


disse que a última neve foi no dia 21 de março. Um colega
gritou que uma coberta de penas foi furada e que por
isso estava nevando. Hania percebeu uma mancha em
seu caderno de anotações. Eu disse que um floco de neve
caiu sobre o caderno e deixou uma mancha.

Não ficamos felizes por muito tempo. Parou de nevar.


SUMÁRIO Gritavam: “A neve se foi!”

Algumas das crianças gritaram que a neve se assustou


e fugiu.

122
***

Rostos sorridentes

No dia 16 de novembro, há uma hora da tarde, enquanto eu


voltava da escola para casa, pequenos flocos de neve come-
çaram a cair. Estávamos caminhando todos em grupo.

Uma de nós chamou:

— Está mesmo nevando ou eu estou apenas sonhando?

A outra estava sonhando:

— Não vai demorar muito até que alguém vai escorregar


no gelo.

— Salve, viva a neve!

E assim caminhamos com um sorriso nos lábios. Todos


estavam sorrindo naquele dia, olhando para a primeira
neve. Mas depois das 4 horas da tarde desapareceu.

Meus amigos protestaram:

— Por que temos que esperar novamente?!

— Não, nós não concordamos!

***

O gatinho foi o primeiro a notar

Sentei-me no sofá com um livro. Havia vozes que vinham


da outra sala — era minha irmã falando com seus amigos.

Ao meu lado, meu gato estava sentado. De repente, o gato


se levantou e correu para a cozinha. Não prestei atenção
SUMÁRIO nele, pois o livro estava interessante.

Fiquei sentado e continuei lendo. Então minha leitura foi


interrompida pelo miado do gato e pela voz de minha irmã:

123
— Irenka, venha depressa.

Eu corri.

— Veja.

Olhei e para alegria estava saltitante. Lá, fora da janela,


flocos de neve brancos estavam voando. No chão e no
parapeito da janela havia uma cobertura branca de neve.

***

O inverno está chegando

Em lençóis sujos e manchados, o outono está deitado.

Atenção! Adiante! Armem-se com lâminas afiadas em


pingentes de gelo para matar um velho senhor de três
meses de idade. O outono está morrendo. Ele está solu-
çando alto. Está chorando lágrimas espessas e pesadas
de saudade. Ele está lacrimejando desesperadamente,
sacudindo os ramos das árvores. Com raiva impotente,
derruba as últimas folhas, roxas de dor. Seu rosto sem
sangue, com pele de pergaminho e olhos queimados de
febre, está cercado por cabelos de geada cinza. Com um
olhar infinitamente triste, ele está abraçando o passado
e está gemendo em voz alta, jogando os restos das lem-
branças com seus dedos gordos.

Atenção! Não deixe que ele nos apanhe... Ele está apenas
espalhando a lama de neve. É seu último golpe de morte,
ele ataca a harpa estilhaçada nos corações umas cem vezes
e algemado pelos grilhões da impotência, está se arras-
tando de quatro, deixando para trás um manto de gelo.
SUMÁRIO Ele se agachou no chão nu e treme sob a explosão gelada
trazida pelo opressor de prata, o inverno, que está acele-
rado em seu corcel Ford.

124
11
A ESCOLA
Aos oito anos, Henryk Goldszmit começou a estudar na
escola primária Augustyn Szmurła, na Rua Freta, em Varsóvia. Sobre
está experiência, mais tarde ele escreve, “esmagaram um aluno lá”,
referindo-se à humilhação que viu quando um colega de sala foi
achincalhado pelos professores. Ao experienciar algumas situações
de castigos corporais nas escolas, fez da escola a sua adversária.
Mais tarde, entre os anos de 1886-1897, Henryk se mudou para o
colégio masculino, no bairro de Praga, em Varsóvia.

Figura 9 - Ginásio masculino do bairro de Praga/Varsóvia.

Fonte: Museu Praga Judaica, 1894.

Mesmo que Korczak não tenha uma boa relação com a


escola nos seus primeiros anos escolares, assim mesmo ela não
ficava de fora dos temas escritos pelas crianças e adolescentes,
uma vez que estava bastante presente entre eles e por isso era tema
SUMÁRIO recorrente nas publicações do Mały Przegląd. O próprio editor-chefe
advertiu os problemas com a escola, a relação com os professo-
res e tutores na primeira chamada do jornal em setembro de 1926.

126
Contudo, à medida que a escola era tema de artigos, novos críticos
leitores foram surgindo no decorrer dos anos, como podemos ver na
carta publicada em 2 de fevereiro de 1934, assinada por Henryk.

O direito à educação

Meus amigos me diziam que Mały Przegląd está se tor-


nando cada vez mais uma revista séria. Todavia, eu não
concordo com isso. Enquanto o jornal crescia também
era acometido de uma terrível doença: os artigos se tor-
naram folhetins, cada vez mais difícil de ver resultados.

No último número de “Mały Przegląd” havia um monte


de artigos sobre questões escolares. Contudo, percebi
que apesar de sua aparente seriedade, caracterizavam-
-se de certa incompetência.

– Pode-se passar de ano sem apanhar? - pergunta Ida e


responde: “não”.

– Passar uma cola ou ficar calado? - perguntam Jadzia


e Tosia. E assim, não sabem se devem passar uma cola
ou ficar calados?

Eu concordo com a Ida. Bater não pode. Porém,


há pessoas que trabalham sob o chicote e sem ele
não trabalhariam.

A nossa escola é somente para os ricos. Não importa se


querem estudar. Têm que estudar.

Os pobres, se eles tiveram tido sorte — como eu tive —


podem estudar de graça. Se eles não conseguiram — não
SUMÁRIO importa se querem ou não querem estudar: eles não vão
conseguir. Então aqueles que estudam — estudam sob
o chicote — para ter uma nota, para o exame nacional.

127
E, compreensivelmente, toda a natureza da escola está
voltada para a educação obrigatória para uns e a ina-
cessibilidade para outros. É compreensível que os estu-
dantes passam cola uns ao outros nos exames, que há
trapaça nos testes, que a ciência não se baseia no racio-
cínio, mas na memorização sem sentido.

Vamos ver um artigo de “Zyga Grodna” intitulado


“Cirurgia”. Eu considero este artigo amador e modesto.
Limitando seus sonhos a uma prova, a um fato isolado
e não a aprender a refletir sobre isso é um erro terrível.

Noemi de Brześć, cuja tragédia testemunhamos recen-


temente, está admirando o professor. Eu penso que
nenhuma pessoa pelo menos decente, não se tornaria
um professor do ensino médio para preparar os jovens
para o exame nacional, para atenderem somente à von-
tade dos pais e das mães.

Só há uma saída, uma grande mudança: somente aque-


les que se deixam aprender têm o direito de aprender.
Desaparecerá então a necessidade de chicote, passando
com cola nos exames.

Estou afirmando isso sobre os fatos. Temos uma turma


de autoeducação. Vêm aqueles que querem. Não há
notas, por isso não precisa colar nos exames.

Eu exijo dos jovens que digam: se eles sentem-se capazes


de mudar o mal existente?

Ou talvez eles pensem que o status quo é bom?


Então pergunto:

SUMÁRIO Para que servem as notas, ou colas nos exames e estudos?

Será que nas turmas de semi-internatos, a abolição das


notas seria uma saída?

128
Será que aqueles que querem aprender poderiam ter o
direito de aprender?

Henryk se mostra bastante crítico da forma como a escola


trabalha e classifica os conteúdos ensinados. Sobre isso, é impor-
tante destacar que a formação de um senso crítico também era
um dos propósitos do jornal Mały Przegląd, arguidos muitas vezes
pelos próprios editores adultos. A seguir, podemos encontrar outros
artigos com temática semelhante, como estes retirados da edição
de setembro de 1930.

Primeiro dia de aulas

Segundo ano

– Então, você vai repetir de ano? Lolek – Sim, vou. Fiquei


no primeiro ano. - Isso foi justo? Lolek: - Digo que não foi
justo. - E por quê? Lolek: - Porque o Icek passou e eu não.
Aronek e Jankiel:- Ele estava animado dizendo; “Icek vai
ficar e eu vou passar!” E perdeu. Lolek: -Não, não foi
assim! Eu nem estava tão animado. Só pensava assim,
porque quando chegamos no primeiro ano, Icek tam-
bém não sabia nada. A professora nos ensinou a contar
até cem. Quando ela me-perguntou quanto é 10 vezes 10,
eu não lembrei. Deu-me uma nota ruim.

Uma vez um diretor chegou. Estava verificando o conhe-


cimento das contas, mas eu não tinha que responder,
mesmo que já soubesse isso. Segunda vez, ele chegou na
aula de polonês. Estávamos lendo. As palavras eram difí-
ceis. Todos os alunos liam por muito tempo, mas eu li
SUMÁRIO pelo mais longo tempo. Por exemplo, tive que ler “Lolek”.
Então, estava contando as letras; L e o, será Lo, l e e – le,
Lolek e ainda mais k. E fiquei.

129
Hoje fiquei triste na minha antiga sala de aula. Chega-
ram novas meninas e meninos. Uma começou a chorar,
porque não queria estudar junto com os meninos.

Sem sapatos.

-Pensei que hoje poderíamos entrar na escola com sapa-


tos, portanto não trouxe chinelos. Mesmo que era o pri-
meiro dia, eles não me deixaram entrar com sapatos.
Então, tirei os meus sapatos e entrei só com as meias.
A diretora leu os nomes dos novos colegas e disse para
irmos para a sala.

Auto-organização

– Aronek esqueceu: a diretora primeiramente leu uma


lista de normas. Depois, falou sobre as novidades do
novo ano. Disse que a nossa escola é a mais limpa de
toda a Polônia. Só então ela nos disse para ir à sala.
A aula parecia que costumava ser sempre a mesma; um
púlpito de madeira, dois quadros, as paredes um pouco
brancas e um pouco...não sei que cor é esse... azul, mas
vamos dizer que é verde. E nas paredes algumas ima-
gens. A professora nos disse que temos que escolher
um líder do jeito que foi no ano anterior. Como repre-
sentantes da turma, escolhemos dois meninos e uma
menina. Tínhamos três fileiras na sala, então cada um
escolheu uma para verificar a higiene de cada um - a
limpeza das unhas, orelhas, mãos e colarinhos, bem
como observar quem está sujo. Depois, escolhemos dois
meninos para verificarem se nossos sapatos estão guar-
dados e se trazemos chinelos para usar na sala. Além
SUMÁRIO disso, uma menina foi escolhida para conferir blocos e
cadernos, outra para organizar brincadeiras durante os
intervalos e uma terceira para emparelhar todos na fila.

130
Depois, chegou o professor de religião da primeira
classe. Ele disse: - a senhora foi gentil... Nossa professora
saiu. Ele teve a primeira aula conosco. Estava explicando
como Moisés cruzou o Rio Jordão. Em seguida, tocou o
sinal. A professora chegou e pediu para guardarmos os
chinelos, canetas e a borracha.

Problemas com os pais

Era 12:50. O Professor entrou na aula, conversou por


cinco minutos como fossemos colegas. E saiu. Depois,
entrou de novo. E assim por diante. Entrava por cinco
minutos e saia por quinze. Ele estava fazendo isso por-
que havia pais no corredor com quais tinha problemas.
E quando ele saia, a sala de aula virava uma bagunça. O
menino que mexia com todos era um valentão. Estava
batendo em todos. Amanhã, vamos ter a mesma aula.

Bagunça

– Não sabíamos onde se encontrava a nossa sala. No pri-


meiro andar havia mães. Os meninos perguntaram ao
zelador da escola. Ele gritou: - vão para o terceiro andar!
Então fomos lá. Não havia professores. Alguns rapazes
brincavam de pega-pega, os outros montavam cavalinho
em seus amigos e ainda outros estavam brigando. Eu fui
até a porta. Vejo que alguns dos rapazes mexeram na
maçaneta. Virei o parafuso, tirei a maçaneta e coloquei-a
no banco de trás e assim a porta não abriu mais. Escondi
o parafuso no bolso. O professor chegou. As portas não
se abriam. Quando pressionou mais, a maçaneta caiu.
SUMÁRIO Consertem a maçaneta - ele mandou. E logo saiu, porque
precisava cuidar das outras três classes. Os rapazes cor-
reram para a porta. Posso ver que todo mundo é capa-
taz com os seus.

131
Vou devolver a maçaneta - pensei. Se eles são tão espertos,
deixe-os consertar. Porque eles vão quebrá-la e eu serei o
responsável por isso.

Eles foram para a segunda classe e encontraram


o professor.

– Vocês acham que podem fazer tudo o que gostem no


primeiro dia de aula?!

Alguns malandros conseguiram fugir da aula. O profes-


sor veio até nós. Verificou se tínhamos mãos, colarinhos
e unhas limpas. Eu não coloquei meu colarinho e tinha
unhas compridas. Felizmente, o professor não se apro-
ximou de mim e do Abramek.

***

Brasil

Um bom país

Queridos amigos, estou aqui. Graças a Deus estou bem.


Se vocês me vissem agora, provavelmente não me reco-
nheceriam. Estou muito grande.

Vou encaminhar uma folhinha de aroeira pra vocês.


Coloquem ela no sol, ela vai abrir. Depois coloquem ela
num livro e fechem.

Agora vou escrever para vocês sobre a minha nova


escola. Ela tem mil estudantes. Aqui não tem pré-es-
cola. As escolas só tem 5 séries que correspondem aos
8 anos na Polônia. A nossa escola parece um palácio.
SUMÁRIO Cada turma tem seu espaço para brincar. Em cada sala
há piano e outros instrumentos musicais. Além disso, há
um auditório para as crianças, onde a cada semana elas

132
fazem uma apresentação de teatro. Na escola também
tem um grande parque, onde brincamos.

As pessoas aqui são boas. Certa vez, no caminho para


escola, um menino me atacou e quis me bater. Ao ver
isso, seu irmão mais velho veio correndo e encheu o
irmão mais novo de porrada. Penso que se fosse na
Polônia, um rapaz maior, era capaz ainda de ajudar seu
irmão a bater em mim, porque sou judia. Aqui não há
ódio aos judeus.

O Brasil talvez seja 20 vezes maior e mais bonito que a


Polônia. A pouco tinha carnaval. Todas as pessoas esta-
vam nas ruas dançando fantasiadas. A música tocava
e as pessoas derramavam perfumes como se fosse
água, jogavam serpentinas e outras coisas que vocês
precisam conhecer.

Querida Salu! Peço que escreva pra mim. Mandei


uma carta pra você, mas esqueci de colocar o ende-
reço. Somente escrevi no envelope: Varsóvia, Mokotów
e seu nome.

Envio meus cumprimentos a todos os meus amigos e à


professora do Ensino Fundamental nº 28.

SUMÁRIO

133
12
OS PROFESSORES
Janusz não era propriamente um amigo dos professores, nem
escrevia muitos textos para exaltar os méritos deles. Mas, estava
interessado no que as crianças pensavam a respeito dos seus pro-
fessores. Dessarte, desde os primeiros números do jornal, instigava
as crianças a escreverem sobre as escolas e sobre seus professores.
Em 1929, o jornal Mały Przegląd, publicou uma série de artigos sob o
título prima aprilis que tratou das brincadeiras na escola por ocasião
da data de primeiro de abril – Dia da Mentira.

Dia da Mentira

III

Nós nos divertimos muito no Dia da Mentira do ano pas-


sado. Compramos um talco para espalhar no ar e espirar
– atchim. A nossa primeira aula era de história. A profes-
sora percebeu que o ar não estava muito bom na sala de
aula. Ela se sentou à mesa e começou a fazer a chamada.
A professora, tendo mencionado alguns nomes, come-
çou a espirrar, as meninas riram.

Durante o recreio, o atual 6º ano, alfinetou um pedaço


de papel num colega com um menino desenhado e a
seguinte frase escrita: ele é um noivo.

Na segunda aula, organizamos um museu da natureza,


porque era aula de biologia. Juntamos alguns galhos
e umas palhas e colocamos numa garrafa como um
buquê. A mesa – empurramos para longe da janela, e lá
colocamos uma caneca transparente com florezinhas
de salgueiro e vários outros raminhos. Era nosso aquá-
rio. Viramos a lata de lixo de cabeça para baixo. A pro-
SUMÁRIO fessora nem ficou zangada, ela riu conosco. Depois ela
quis desenhar uma planta no quadro, mas em vez do giz
havia um pedaço de queijo.

135
Na terceira aula de geografia, viramos a mesa de cabeça para
baixo, nos pés da mesa colocamos toalha da mesa de plás-
tico, uma menina ficou de baixo da toalha de mesa de plás-
tico. A professora, surpresa que a mesa parecia diferente,
mexeu na toalha da mesa e em seguida nossa amiga saltou.
A princípio, a professora se assustou depois riu também.

Na quarta aula, colocamos a lata de lixo sobre a mesa,


a vestimos com um sobretudo, um chapéu e colocamos
um guarda-chuva quebrado. A professora de polonês,
ao ver essa figura, gritou: Por favor, desça da mesa: eu
já estou farta dessas pegadinhas. Depois a professora
olhou bem para o nosso personagem (ela era um pouco
cega) e viu que era uma pegadinha nossa e deu risada da
sua própria confusão.

III

O dia 1º de abril é dedicado às pegadinhas e às chara-


das. Nesse dia tudo é permitido fazer. Nos reunimos no
vestiário e depois decidimos nos esconder (o vestiário
é adjacente à sala de aula e você pode ver e ouvir tudo
pelas frestas).

Com todas as pastas e mochilas escondidinhas no vesti-


ário. Sino, o professor entrou na sala de aula. Olhou sur-
preso para a classe vazia e silenciosa e foi embora.

De repente, ouvimos os passos da coordenadora.

Pegamos as pastas e mochilas rapidamente nos senta-


mos nas carteiras como se nada tivesse acontecido.

SUMÁRIO A coordenadora e o professor entraram. Levantamo-nos.


O professor olha para nós. A coordenadora olha para o
professor. Nós gritamos: Dia da Mentira! Começamos a
rir. A coordenadora e o professor riram também.

136
Anos mais tarde, a editora do Jornal, Naomi, após ler
algumas cartas, resolveu emitir sua opinião a respeito
do que pensava sobre os professores e assim escreveu.

Professores

Estou escrevendo impressionado com os nossos pro-


fessores – e em geral, pelas correspondências dos alu-
nos que surgiu na nossa caixa de correio. Li duas cartas
e fiquei impressionada com seu tom de amabilidade.
Fiquei impressionado com os professores que tem tan-
tos afazeres escolares e não-escolares, respondem as
perguntas mais banais.

Novamente penso no relacionamento mútuo entre pro-


fessores e estudantes. Cada um de nós conhece diferen-
tes tipos de professores. Eu normalmente não tenho
grande respeito por eles, crítico dou risada, falo mal.
E parece que cada um de nós faz um pouco isso. No
entanto, os covardes somos nós, que esperamos deles
atos heroicos, quase sobre-humanos: não podem errar,
nem pecar. Podemos ter dor de cabeça, ser rudes, estar-
mos preocupados com os nossos problemas, impacien-
tes ou tristes. Eles não; eles devem ter paciência, tole-
rância e serem bondosos.

Nós podemos não fazer as atividades ou não vir a escola.


Eles vêm frequentemente pra escola, mesmo com febre.
Nós queremos que eles cantem como “gênios” – mas eles
devem escutar as nossas respostas mais estupidas. Fora
isso, eles precisam atender o diretor e os pais. Pelo fato
SUMÁRIO de não sermos responsáveis; eles também são responsá-
veis por nós. Precisam atender as ordens do diretor que
vem da secretaria da educação.

137
Eles precisam resistir aos ataques dos pais e até da
sociedade como um todo. Todo mundo quer se meter
na educação e dar suas opiniões. Enfim, eles precisam
atender a tudo isso.

É uma profissão difícil, mas muito importante. É preciso


fazer com que os alunos saibam sobre tudo o que acon-
teceu no passado. Não podem ensinar como grandes
estudiosos e escritores pensaram no passado, sem antes
estudar para nós ensinar.

Há diferentes tipos de professores: alguns isolados na


aldeia da Polésia e isolados do mundo, lutam contra o
analfabetismo em condições deploráveis. Eles são, sem
exagero, os pioneiros da cultura. A escada do conheci-
mento sobe cada vez mais alto e no último degrau dela
estão os professores que possuem os conhecimentos
mais complexos e difíceis. Quando eu penso, sobre a
escala do alfabeto até a teoria da relatividade. Eu sinto
profundo respeito pela palavra: professor.

Salek de Lublin, publicou em 1935, sobre a postura dos pro-


fessores em seu último dia de aula do ginasial, o dia da entrega dos
certificados finais, que a partir de então representaria uma vida
nova, fora da escola.

Os frutos

Tivemos uma última aula de língua polonesa. Durante a


aula — cochichamos — talvez venha o nosso professor e
entregue os nossos diplomas.
SUMÁRIO
O tempo estava bom. O professor estava perto da janela
e provavelmente também pensava que essa aula não
fazia mais sentido para ninguém. Pois, de repente,

138
ele se virou para nós, pediu que fechássemos os livros
e começou a perguntar a todos, o que iríamos fazer
depois da formatura.

Um disse que vai frequentar o ensino médio na cidade


porque o pai dele é secretário municipal. O segundo
revelou que irá à escola de artesanato em Łomża. O ter-
ceiro irá a Palestina; o quarto para a casa do tio que dará
trabalho no seu comércio, etc. Eu, com mais dois ami-
gos, decidimos ir a Varsóvia.

Eu estava sentado na mesa e sonhava com a capital. Sabia


que o diploma será bom, mas será que é suficiente? O
sinal tocou. O professor disse adeus para nós. Entrou o
nosso professor representante com os certificados na
mão. Lentamente os colocou na mesa e com uma voz
séria começou a falar:

— Hazorym be’dyma, berina ikeoru!!!

Pausa. Silêncio. O professor começou a explicar o signifi-


cado desse provérbio; que não se trata apenas de semear e
colher, mas do trabalho em geral. Aqueles alunos — falava
o professor — que trabalharam durante todo o ano, estu-
daram, fizeram as lições de casa, agora vão colher os fru-
tos do seu trabalho pelos seus diplomas. Todavia, aque-
les que por longo tempo não fizeram nada, que ficaram
ociosos, importunaram pessoas, perturbaram nas aulas
— verão seus frutos serem miseráveis. Apesar disso —
terminou — não devemos nos preocupar muito, pois com
boa vontade podemos superar todas as dificuldades.

E começou a distribuir os diplomas. 15 diplomas distri-


SUMÁRIO
buídos — nenhum som de choro. Que estranho! Mas
logo apareceram resultados ruins e houve choro, gritos,
espasmos das meninas, reclamações e desespero.

139
O nosso professor nos desejou boas férias e foi embora.
O bate-papo começou.

— Isso não é tão terrível. No ano passado, até 15 pessoas


reprovaram — disseram os estudantes que acharam as
frutas doces, conforme as palavras do professor.

— Eu adoraria comer alguma fruta doce — gabava-se


Jakób que repetia o ano.

— Heniek, você tem um certificado cheio de dezenas,


coloque-o na água e você terá água de frutas.

— Estes são frutos morais — respondeu Heniek —


Você pode emoldurá-lo para admirá-lo na parede, mor-
rendo de fome, porque eles não dão nenhuma prote-
ína ao nosso corpo.

Nós ficamos no fundo do poço por um longo tempo (não


mais este da sabedoria, mas o do quintal), brincando
e revelando nossos planos para o futuro. O mundo se
aproximou de nós e ficou atrás o velho, antigamente
verde, o portão da escola.

Quando dei por mim, me senti como um homem


que tinha perdido um amigo e ainda não tinha
encontrado outro.

SUMÁRIO

140
13
A EMIGRAÇÃO
Ao escrever um livro, cujo título trata das cartas enviadas
para Varsóvia, escritas na língua polonesa, consequentemente algu-
mas delas vão tratar dos processos de emigração, uma vez que car-
tas de outros países somavam-se a cada ano, dada a intensifica-
ção do antissemitismo que repercutia na acentuada necessidade de
deixar o país. Assim, escolhemos algumas cartas encaminhadas de
diferentes países por crianças que mesmo distantes, continuavam
colaborando com seus escritos, como foi o caso de Rosa e Lonia,
que escreveram contando como foi sua viagem ao Brasil, o estabele-
cimento e a escola em Porto Alegre.

Querida Cesia!

Informamos que estamos bem de saúde graças a Deus.


A viagem para o Brasil foi muito interessante. O Brasil é
muito difícil. Assim que entramos no navio, começamos
a ficar com enjoo. Três dias ficamos deitados completa-
mente imóveis, sem comida e sem nada - nem mesmo a
cabeça se podia levantar.

No quarto dia estava um pouco melhor, então subi-


mos ao convés e podemos ver diferentes vistas do mar.
Durante a noite, a música tocava e os mais velhos dan-
çavam. Quando estava nublado, esperávamos por livros.
Passamos os dias assim até chegarmos à capital de Bra-
sil, Rio de Janeiro. Lá nós embarcamos num segundo
navio. Esse navio menor foi completamente para outro
lado. Eles só davam comida duas vezes por dia, o espaço
era pequeno e sujo, na cozinha, eram as pessoas negras
que preparavam a comida na sujeira. Dormir era ainda
pior do que comer. Graças a Deus isso já passou. Agora
SUMÁRIO estamos indo na escola! Estamos nós familiarizando
com uma nova língua. Quando nos lembramos da nossa
partida de Varsóvia, lamentamos e choramos porque
sabemos que não vamos nos ver mais. Carrego uma

142
culpa tão grande porque não consegui me despedir de
todos os meus amigos. Nossa escola está localizada em
uma única sala. Há muitas crianças. As aulas começam
às 9 horas e terminam às 12 horas. Mas durante todo
esse tempo não há nenhuma pausa. Estamos na escola
como se estivéssemos em uma prisão. Daí você já pode
imaginar que escola é, você pode vir a hora que quiser.
Nós estamos no 3º ano. Não ganhamos nenhuma lição
para fazer em casa, isso nada nos agrada. No começo,
não sentimos tanta falta, mas agora sentimos saudades
da escola e dos amigos.

E então, quais são as principais diversões em Varsóvia


agora? São as mesmas das outras cidades menores?

Bem, aqui é a mesma coisa. Rio de Janeiro é uma cidade


divertida para passar um tempo, mas aqui em Porto Ale-
gre é muito triste. Temos que abraçar todos na escola,
conhecidos e estranhos. Temos que beijar nosso tutor e
de longe todos os professores. Também temos que cum-
primentar o inspetor e as senhoras da limpeza.

Nós nunca teríamos acreditado que estivéssemos tão


distantes de vocês. Pedimos que se vocês aprenderem
versos bonitos na escola, escrevam num pedaço de
papel e mandem pra nós, ou recortem algumas coisas
do jornal Mały Przegląd e também nos encaminhem.
Escrevam quem reprovou e quais são as professoras que
estão dando aulas pra vocês neste ano.

Gieni e Ida mandam um abraço. Ficamos esperando


pela resposta.
SUMÁRIO
Obs [do jornal]. Da redação. Das três cartas de Rosa e
Loni, escolhemos uma para publicar no jornal. As três
cartas serão entregues como lembrança para Cesia.

143
As cartas do Brasil foram encaminhadas nominalmente para
umas das editoras do jornal, à monitora Cesia e uma delas foi publi-
cada no jornal na primeira sexta-feira de dezembro de 1928.

Minhas lembranças

(...)

Finalmente chegou o grande dia – 7 de setembro! -


chegamos (navegando) em Londres.

A bordo do navio havia vários jogos, brincadeiras e con-


certos, e os oficiais me apresentaram todas as repar-
tições do navio. Eu tinha comigo um diário fantástico,
emoldurado em couro, chamado: “Minha viagem para o
exterior”, onde tentava escrever diariamente. Contudo,
passava alguns dias e eu esquecia, outros, quando não
acontecia algo interessante eu deixava as folhas vazias.

Quando chegamos a Londres, aí sim – quanta multidão


por aqui! Foi por pouco que um carro não bateu em nós.
Me assustei, achei que minha mãe seria atropelada.
Porém, o guarda sinalizou travessia e atravessamos a
rua sem nenhum acidente. A Guarda em Londres é
muito educada com seus capacetes gigantes abotoados
embaixo do queixo, e os punhos brancos com listras
azuis nas mangas. A polícia londrinense não carrega
revolveres. Pensei que era algo extraordinário. Pergun-
tei a um deles, se não tinha medo de andar sem nenhum
revólver, caso acontecesse alguma coisa. Respondeu-me
que não, que as pessoas sempre se comportam e por isso
não há muitos homicídios ou latrocínios como em Nova
SUMÁRIO York, onde a polícia anda armada.

Fomos ao cais e vimos o nosso navio com carga de roupa e


leite que estava se preparando para dar partida à Grécia.

144
Aproveitamos também para ir até a Torre de Londres
onde ficam guardadas as jóias da Coroa Britânica e na
porta os vigias estavam vestidos como se fossem a uma
festa à fantasia.

Scotland Yard é uma organização maravilhosa que


administra o Museu do Crime. Se eu pudesse passar o
ano inteiro lá, assistindo as exposições de vários delitos,
desde martelos de ferro até anéis que portavam veneno.
Umas cordas e uns revólveres, uns bastões e várias
máquinas mortíferas – Nossa, que coleção!!!

A mãezinha – assim como as donas têm por hábito -


foi fazer compras. É uma loja que se chama “Wolność”
(Liberdade) que na verdade não é tão americana, e há
muitas coisas orientais e bonitas. Também há o grande
magazine Selfridges e que parece completamente inglês:
lá, servem chá aos clientes – parece ser meio americano.
Anunciam que tem todos os tipos de produtos – “desde
agulhas até elefantes”. Uma vez um cliente pediu: -
“1/4 de plugas” – e eles providenciaram.

Em Londres, por pouco não enlouqueci por causa do trân-


sito. Imaginem – tem que andar pelo lado esquerdo da rua.
Cada vez quando partíamos de carro, eu fechava os olhos
porque parece que a toda hora iríamos bater em alguém.

De Londres fomos a Paris. Eu queria chegar em Paris


voando num grande aeroplano da empresa Handley
Page Aircraft Company, mas mamãe não queria, por-
tanto, fomos pela ferrovia e depois, no canal, pegamos
o navio, e novamente pela ferrovia até Paris, onde até as
SUMÁRIO crianças falavam francês. Eu não entendi quase nada e
conseguia dizer apenas: parlez-vous (você fala?) e merci
(obrigado), mas só isso não ajudou muito.

145
A pessoas em Paris nem de perto são tão corteses como
os londrinos, dão risadas dos guardas que usam barba
e uniformes azuis-marinhos. Naturalmente, nem todos
têm barbas, porém nunca vi um sem bigode. Em geral,
são gentis, mas, a multidão de pessoas amassou o carro
em que estávamos para deslocar-se até o hotel e quebra-
ram os para-brisas. Papai enfureceu-se e quando che-
gamos no Hotel Crillon, me carregou nos ombros para
atravessar a multidão, dois agentes da guarda impedi-
ram as pessoas para deixarem mamãe passar.

Em Roma, tivemos uma audiência particular com a san-


tidade máxima, o Papa que conversou comigo e apertou
minha mão, me deu benção especial e uma medalhi-
nha de prata que vou guardar até o fim da minha vida.
Também nos encontramos com Senhor Mussolini que
também apertou minha mão e agradeceu. Não faço ideia
porque isso, penso que eles me viram no cinema e me
acharam engraçado.

De Roma partimos a Brindisi e lá embarcamos no navio


para Pireu, uma cidade portuária. O mar estava bravo...
Me alegrei, quando nossa viagem de navio acabou. Em
Atenas, aonde chegamos depois de uma hora de trem,
pensei que seriamos assassinados pela multidão, con-
tudo aquilo era só a maneira deles expressarem sua ale-
gria e apreciação pela carga da comida, leite e roupa. Posso
escrever um livro sobre as coisas que eu vi em Atenas.
Na Acrópole, chegou uma multidão de pessoas, rezei lá,
também rezavam outras pessoas, soprava um forte venda-
val com areia e poeira.
SUMÁRIO De Atenas, depois da distribuição da roupa e do leite às
várias organizações filantrópicas e orfanatos, partimos
a Budapeste, Viena, Berlim, Genebra e de novo a Paris.

146
Ai, que tempos gostosos! Ganhamos muitos presentes.
Enviamos à casa 6 (Dom Sierot) vários pacotes de pre-
sentes, recebidos de várias pessoas dos vários lugares.
Navegamos para a América em 11 de novembro – fica-
mos no bom e velho Los Angeles. Somente agora passa-
das cinco ou seis semanas, me dei conta de quanta coisa
maravilhosa aconteceu.

***

Tel-Aviv

Quem chega à Palestina, visita principalmente Tel- Aviv.


As ruas e quadras são muito bonitas e até o barulho
dos carros e carinhos é agradável ao ouvido. Tel-Aviv é
a única cidade em todo o mundo, que é tudo completa-
mente em hebraico: o prefeito da cidade e os funcioná-
rios públicos, policiais e comandantes da polícia - todos
eles são judeus. Todos os anúncios e letreiros acima das
farmácias, lojas e hotéis são em hebraico. Todos os regu-
lamentos governamentais são em hebraico. Não existem
palavras para descrever quão bonita e legal é esta cidade.
Venha e veja por si mesmo.

Szachar - estudante do segundo ano da escola Real


em Tel-Aviv.

***

De Varsóvia para o México

12 de novembro

Vou lembrar deste dia por muito tempo, porque partimos


SUMÁRIO
de Varsóvia. Na estação ferroviária havia muitos familia-
res e amigos. Vieram também umas amigas da minha
irmã mais velha. Dos meus amigos veio um único, o Jurek.

147
Despedimo-nos cordialmente de todos. Recebemos um
monte de presentes para a nossa viagem, chocolates, dois
enormes buquês de flores e uns livros. Estou sentado no
vagão da segunda classe do expresso internacional Mos-
cou-Varsóvia-Berlim-Paris. Temos que abrir os bombons,
porque a alfândega vai tomar de nós na fronteira.

Está tarde. No vagão há camas dobráveis que durante o


dia servem como bancos. Não dormi até a uma hora da
manhã. Somente quando o trem partiu de Poznań, ador-
meci e acordei no território alemão. Ao entrar nas cabi-
nes, os funcionários dizem Guten Morgen (Bom dia). Aqui
as estradas de asfalto são lisas como um tapete – as casas
das aldeias são erguidas com tijolos a vista. Muitas casas
têm antena de rádio. Não consigo ver bem as paisagens,
porque o trem está se locomovendo com a velocidade de
80 quilômetros por hora.

Passámos pela estação Frankfurt an der Oder e já esta-


mos em Berlim. Na estação, esperávamos por um familiar
que iria nos acolher em sua casa enquanto esperávamos
para a próxima embarcação.

Berlim - é uma cidade grande e linda. Há mais de dez mil


carros, cem linhas de bonde e cinquenta de ônibus. Car-
ruagens de cavalos não há. Há belos parques, jardins e
edifícios de oito andares. Ainda bem que sei um pouco de
alemão, senão poderia me dar mal por aqui. Os berlinenses
são muito limpos e pontuais. Moram aqui cinco milhões
de habitantes, cinco vezes mais do que em Varsóvia. A lista
telefônica tem mais de mil páginas de letras minúsculas.

SUMÁRIO As pessoas são feias e seus pés são enormes. Por exem-
plo: em uma loja vi uma mulher experimentando sapa-
tos do tamanho 43 e ainda não serviam.

148
Andei de metrô – trem subterrâneo. Entrámos pela rua
abaixo em um andar subterrâneo. Comprámos bilhe-
tes lá. O trem andava por um túnel estreito. Fomos até
o Karstadt. É um enorme armazém comercial. Possui
doze andares para cima e três para baixo. No térreo,
localiza-se a estação de metrô...

O edifício é maravilhoso. Na seção de alimentos, há legu-


mes, presuntos, frutas – poderia se alimentar toda Ber-
lim com tudo aquilo que está ali para vender.

De jeito nenhum usámos uma escada simples e qualquer.


Pode-se escolher uma das mais de dez escadas rolantes.
Escada rolantes assim são organizadas, que anda sozinha
de cima para baixo quando alguém pisar nela. Quando o
degrau, no qual se está alcança certo andar, desce-se dela.
No último andar mais, há uma floricultura e um terraço,
de onde pode-se ver toda Berlim. Prédios como este exis-
tem muitos em Berlim, mas há também menores e não tão
elegantes. Fizemos compras e fomos para casa, novamente
com o trem subterrâneo.

Berlim

Berlim fica lindíssima à noite. Milhares de luzes, out-


doors refletindo no asfalto molhado. Os prédios, onde
encontram-se os cinemas, são todos iluminados de cima
para baixo. Aqui nas ruas não têm nenhum papelzinho,
nenhuma pedra sobressaindo e nenhum buraco na cal-
çada. Todas a ruas são pavimentadas e iluminadas.

A moeda é esta: 1 marco alemão divide-se em 100 féni-


gues e custa 2 zlotys i 20 grosz. Há mais carros privados
SUMÁRIO
do que táxis. Na frente de cada casa, há um jardim. Cada
prédio tem um elevador e as escadas são pavimentadas.
Cada apartamento possui aspirador de pô.

149
Hambúrgo

Estou em Hamburgo, onde chegamos em 4 horas. Via-


java conosco a esposa do familiar que nos hospedou em
Berlim. Foi a única que se despediu de nós quando par-
timos de navio. Em Hamburgo, ficámos em um hotel. É
uma cidade grande e linda, com dois milhões de habi-
tantes. Atravessam a cidade dois rios: Elba e Alster. Aqui
existem muitos belos jardins, fileiras de mansões, entre
elas, a do Duque Zeppelin.

No bairro velho da cidade estão localizados canais


estreitos e casas velhas acima deles. O edifício da prefei-
tura é muito bacana. Há um túnel que começa num lado
do Elba, segue debaixo da água, debaixo de todo o rio, e
termina na outra margem. Chegam ao túnel grandes ele-
vadores de ar que são transferidos para debaixo da terra
por canos grandes.

Luzes lindas refletem sobre o rio - parece uma ilumina-


ção. Hamburgo é muito mais interessante que Berlim.
Várias associações de navegação têm suas sedes aqui,
encontram-se também muitas docas portuárias. À noite
andam pelas ruas marinheiros bêbados e cantam can-
ções grosseiras. Visitei o Jardim Zoológico de Ham-
burgo. É um jardim enorme, organizado e uma forma
que os animais tenham uma sensação de liberdade.
O terreno destinado aos ursos brancos, é caracterizado
por uma paisagem polar, e os papagaios lindos e atrevi-
dos estão como se fossem numa floresta subtropical. Vi
pinguins preto e brancos – que aves engraçadas. Pare-
cem senhores vestidos de casaca e quando os assusta-
SUMÁRIO mos, afastem-se lentamente com esmero. As azas deles
são muito curtas para que possam voar. São belas as
zebras listradas em sua forma parecidas com cavalos.

150
Cangurus cinzas pulam de forma engraçada. Andar não
podem, porque suas pernas da frente são mais curtas
do que as de trás. Vi girafas com pescoços mega com-
pridos. Quando querem pegar algo do chão, precisam
baixar a cabeça e estender as pernas para os lados.
Grandes elefantes cinzas têm trombas longas e presas
brancas brilhantes.

Adeus Europa

Despedi-me da Europa ao bordo do navio Rio Panuco.


O porto não se encontra no litoral, contudo na beira do
Elba, mas o rio é tão largo que os navios livremente che-
gam ao porto. Rio Panuco é um pequeno e belo navio.
Possui somente primeira e segunda classe. As camas
estão fixadas uma em cima da outra. Há espaço para
fumantes e um clube onde joga-se cartas ou leitura.

Dentro do porto há enormes guindastes que levam mer-


cadorias a bordo. Os marinheiros vestem chapéus com o
nome da associação Ocean Linie escrito. No total, há um
capitão, cinco oficiais e vinte marinheiros.

Na segunda classe, há doze garçons e um oberstewart (o


comandante). No porto um cargueiro, aparentemente
é um polonês, pois gritou: Do widzenia! (em polonês:
Até nos vermos!)

A bordo estão quase exclusivamente alemães. Há tam-


bém uns húngaros, búlgaros, franceses e belgas. Polo-
neses também tem alguns. Muito simpáticos. O mar é
lindo. Atravessámos o Canal da Mancha, passámos por
Boulogne. Aqui embarcou mais um polonês. Ultrapassa-
SUMÁRIO
ram-nos muitas embarcações. Passámos ao lado de uma
ilha inglesa (Wight). À tarde estivamos em Southampton.

151
O mar

Teve uma tempestade no Atlântico. O navio balançava


tanto que parecia que ia virar de ponta pro ar. Fiquei
três dias vomitando, sem comer, nem saber se era dia
ou noite. Na mesma posição encontravam-se outros
passageiros. Estavam deitados nos seus quartos e quei-
xavam-se: “Ah, que este maldito navio afunde logo e que
isso tudo acabe!”

Depois de três dias já podia ir ao bordo, mas precisava


deitar-me numa espreguiçadeira. Depois de cinco dias
fiquei sano, mas o mar continuava inquieto. Outros pas-
sageiros ainda passavam mal.

As refeições duravam muito tempo porque toda hora as


cadeiras se afastavam das mesas e era preciso esperar
até a próxima onda para elas regressarem as mesas e
podermos continuar comendo. As mesas eram fixadas
com parafusos. Mesmo assim, muita coisa caia e se que-
brava. Por causa desta tempestade, atrasamo-nos dois
dias. Passámos pelos Açores. Têm um farol lá. Depois o
mar acalmou-se. O tempo melhorou.

30 de novembro – calor. O sol brilhava. A bordo esten-


deram um pano. Ontem à noite teve um baile na pri-
meira classe. Exibiram as bandeiras de todos os paí-
ses, a polonesa também. Os passageiros dançavam e
bebiam champanhe.

Preciso atrasar meu relógio, senão a meia noite irá


cair no pôr do sol. Teve um baile de máscaras. Fan-
tasias lindíssimas. Do mastro caiu um marinheiro e
SUMÁRIO
quebrou seu braço.

152
6 de dezembro – Hoje, para o café da manhã, serviram
laranjas verdes, as quais come-se somente por causa
do suco. É preciso colocar açúcar, apertar com uma
colher e tomar o suco. Elas são muito grandes, poderia
espremê-la num copo inteiro ou mais. Passou do nosso
lado um navio comercial. Vimos baleias. São enormes
e sopram água até um metro de altura. Novamente,
foram organizados dois bailes. O último na ocasião de
chegada à América.

Um calor horrível. Foi aberta a piscina da embarcação


– é pequena e rasa. De vez em quando, a água salgada
nojenta entra na boca. É mesmo gostoso mergulhar em
água fria durante os calores de dezembro. Nós passámos
por uma ilha. Tinha poucos habitantes. Crescem só pal-
meiras e grama. Ao lado de uma das ilhas havia um navio
vazio. As Ilhas Bahamas pertencem à Inglaterra.

Na última noite, tivemos jantar e baile de despedida.


O calor continua terrível. A cada quinze minutos eu
tirava uma peça de roupa, até ficar só de bermuda de
ginástica. Navegávamos muito lentamente, porque o
capitão não quer chegar ao porto no domingo, pelo fato
de que nos fins de semana, custa para mais caro para
o navio aportar.

Havana

10 de dezembro – Ainda está noite, mas as estrelas


empalideceram. Dá para ver o porto. Há um farol. Saí
com a mãe, a Gienia e a Fredzia e mais umas dezenas
de passageiros. Chegámos ao litoral com uma lancha.
SUMÁRIO Assim que saímos do barco, fomos rodeados por mole-
ques bronzeados cubanos, oferecendo coisinhas para
comprar, comprarmos algumas coisas.

153
Havana é menor do que Varsóvia, mas têm carros lin-
dos que nunca tinha visto em Varsóvia. Os cubanos e as
cubanas são pretos. Muito lindo é o parlamento. Exis-
tem muitas manufaturas de charutos. A riqueza é devida
aos charutos e a riqueza devido a sua beleza.

Vimos um bairro maravilhoso com pequenos palá-


cios, como se fossem “As mil e uma noites”. Descrever
simplesmente não dá. Eles pertencem aos fabrican-
tes de charutos.

Fazia bastante calor, mas eles vestem-se de maneira


muito quente. Dizem que estão ainda no inverno. Ima-
gino o que será aqui no verão. Os senhores compravam
charutos. Nós também levámos um pacote para o paizi-
nho. 25 charutos, custavam um dólar. Em Varsóvia, um
charuto custa 3 złoty. Fotografámo-nos com uma man-
são ao fundo, depois regressámos para o porto e o navio.

Lá estavam estacionados navios: um alemão, um fran-


cês, um americano e um espanhol. Todo o dia doía-me
a cabeça, era tão quente. Vimos peixes voadores. São
muito pequenos. De vez em quando pulam em cima
da água e escondem-se de novo. Em Havana embarca-
ram dois cubanos.

Para o México

Está muito quente e no navio tudo é de ferro e lata. Me


queimo quando toco qualquer coisa. A mãe já arrumou
os travesseiros na mala, porque amanhã vamos chegar
no destino. Eu botei o cobertor debaixo da cabeça.
Chegámos à Vera Cruz. Antes de nós deixarem descer,
SUMÁRIO
verificaram todos os papéis. No porto esperava o
paizinho. Fizeram também uma revisão.

154
Vera Cruz é um porto muito grande, mas a cidade é suja e feia.
Calor, então tudo é construído para que o ar possa circular.
Os mexicanos são muito gentis. No nosso hotel, toda a
parede é virada para a rua, aberta: os bondes também
têm os lados abertos.

O nosso hotel chama-se México (leia: Méhico). É o mais


elegante da cidade, mas é também muito sujo. Acomo-
daram-se aqui todos os amigos que fizemos no navio.
Do Rio Panuco, desceram quase todos os passageiros,
somente uns ainda vão até Tampico.

Em cima das camas há mosquiteiros pendurados con-


tra mosquitos. A moeda é esta: 1 peso – 100 centavos e é
igual aos 4 zloty e 40 grosz. As frutas são muito baratas.
Os sapatos limpa-se na rua.

13 de dezembro – planejávamos partir hoje, mas andar


no dia 13, sexta-feira é bem perigoso. Os trabalhadores
ferroviários estão de greve, então fomos com uma outra
linha. O trem é muito feio. Ao andar vi cactos, palmei-
ras, campos e nelas tropeiros montados a cavalo com
chapéus grandes.

A estrada é linda. Atravessa-se montanhas e túneis. Nos


túneis fecha-se as janelas. Embarcámos de tarde e chegá-
mos de manhã à Cidade de México. Terminou a viagem.

***

Cartas da Palestina

I.
SUMÁRIO
Meus queridos!

Não fiquem zangados comigo por não ter escrito


há tempo. Já vou explicar por que isso aconteceu.

155
Saí de Varsóvia na segunda-feira, - estava viajando toda
a semana. Vocês almoçaram 7 vezes e jantaram 7 vezes e
eu ainda estava indo e indo.

Primeiramente, viajei pela ferrovia por uma parte da


Polônia, depois pela Tchecoslováquia, Áustria e Itália.
Em Trieste, embarquei no navio e novamente pela Itália,
perto da Albânia e Grécia, até o porto na Palestina. Mas
o mar estava violento, inquieto, ondas tão grandes levan-
tavam o navio que não conseguimos chegar a Jaffa, e por
isso a viagem demorou mais um dia, desembarcamos
no porto de Haifa. O navio não pôde chegar exatamente
ao porto, porque a água lá é muito rasa. Então, eles nos
buscaram de barco.

Noite escura, a chuva está caindo. Não pensem que a


chuva é como a de vocês. Grandes, fortes e pesadas gotas
batem, latejam, golpeiam as paredes do navio. Com tanta
chuva, um homem gordo fica molhado em um minuto,
um garoto pequeno em meio minuto. Então esta chuva
bate nos barcos e eles vão e vêm, os barcos são condu-
zidos por árabes. Eles falam tanto!!! Mesmo que quatro
frotas brigassem, não haveria tanto barulho como fazem
esses árabes. Eles gritam, rugem e carregam ferozmente
as nossas malas e nós mesmos para o barco. Escuro, um
aguaceiro e um grito feroz de boas-vindas à Palestina.

Mas no dia seguinte o sol estava lindo, esquenta como em


maio, o mar azul e estranho, um mundo estranho. Judeus
policiais, judeus condutores nas ferrovias, judeus são fun-
cionários nos correios, judeus pedreiros constroem casas,
judeus nos campos. Letreiros hebraicos em todos os luga-
SUMÁRIO res. Árabes de todas as cores de pele: preto, marrom,
amarelo e vermelho. Vestidos de formas diferentes, mas
principalmente com os pés descalços. E essas pernas!

156
Ańdzia e Josek podem ficar com ciúmes, porque aqui
ninguém manda lavar os pés. Camelos com expressões
estúpidos trabalham com seriedade e dignidade. Mas os
burros pequenos são os mais numerosos - eles carregam
pessoas, sacos, cestos pesados ​​e caixas. Lamento muito
não poder enviar laranjas para vocês. Depois da última
tempestade, ficaram mais baratas e hoje se pode com-
prar por um centavo. Pensa só: com um pão de Varsóvia,
se pode obter 10 laranjas aqui. E a halva aqui custa três
vezes menos do que em Varsóvia, então os trabalhado-
res a comem com pão. Só custa muito tempo para essas
laranjas e tangerinas crescerem. É preciso esperar seis
anos antes que a árvore plantada dê frutos para comer.
Frydman, que antigamente quando criança morava em
Varsóvia, agora um jardineiro alto, me mostrou quanto
trabalho é preciso para uma arvorezinha crescer bem.
Ainda lá, onde ele trabalha é bom, porque tem água. Eles
precisaram cavar 60 metros para debaixo da terra e per-
furar, antes que a água saísse. Mas nos lugres onde não
tem água, a compram e carregam devagarinho, como
um tesouro para não derramar, como o vinho mais caro.
No entanto, após 6 anos, quando a arvorezinha está coberta
de frutas, ela fica dourada de laranjas. Uma pequena
árvore tem mais laranjas do que a maior macieira na Polô-
nia. Estou saudando todos e quem quiser, me escreva.

II.

Aqui na nossa aldeia, em Ben-Shemen, celebra-se linda-


mente o Shabat Shalom. Todos as 150 pessoas sentam-
-se ao redor da mesa na maior sala de jantar. Está quase
SUMÁRIO escuro, mas não se acendem as luzes. Abre-se uma parede
para um quarto adjacente, onde alguém está tocando
violino e piano. Silenciosamente. Todos estão ouvindo e
sentados calmamente, embora na mesa estejam postos

157
cestos de laranjas e halva. Mais tarde em coro, num único
som, todos cantam não em voz alta. Pequenos e grandes,
meninas e meninos. O professor conta um conto de fadas
sobre um menino que procurava luz. Conta lindamente,
como se não falasse sozinho, mas como se três pessoas
apresentassem a estória. Depois, música e canto de novo.
Está completamente escuro agora. O sábado já passou,
mas a noite ainda é livre, então, se acendem todas as luzes
e se pode dançar um pouco mais até o jantar - a polca
palestina, e naturalmente “hore”. Mas é apertado dançar
numa sala pequena, então, em vez de um grande círculo,
eles dançam separadamente entre 2 ou 3 pares. Mas pra
que uma grande sala de dança, quando se precisa dela
só para os 2 meses de chuva e pelos 10 próximos meses
se pode dançar lá fora, no campo, na rua à beira-mar. E
agora estão se banhando no mar - calor - na praia durante
o dia é muito quente, mas à noite faz frio e por isso é cha-
mado aqui de inverno. E depois do sábado, eles vão para
a escola com boa vontade. É difícil ser preguiçoso aqui -
todo mundo trabalha. E as crianças veem como os adul-
tos trabalham duro. Eu vou nas aulas da I e II classe, por-
que é mais fácil para mim entender o que eles dizem em
hebraico. Na primeira classe, o mais velho tem 6 anos e
meio. Agora estamos confeccionando nas aulas chapéus
e máscaras para a festa de Purim. Você pode não querer
fazer, mas não pode ser preguiçoso. Há xadrez e damas na
prateleira. Quem acabou o trabalho, joga xadrez. Este é o
jogo favorito deles. Gostei muito dos seus trabalhos: dese-
nhos recortados, vitrais e calendários. Enquanto a profes-
sora explica na primeira classe o que significava a neve na
foto de Binem Heller, um menino de 7 anos gritou:
SUMÁRIO
– Que bom que não temos essa neve! O que seriam das
amendoeiras? Não teríamos amêndoas.

158
As crianças do jardim de infância ganharam uma boneca.
Elas ficaram muito felizes. Chamaram a boneca de Sara.
Tive que contar a eles sobre vocês: em que casa vocês
moram e quais brinquedos vocês têm. Uma menina de
quatro anos desenhou esta boneca e eu estou mandando
o desenho para vocês. Estou morando em Ein-Harod, há
uma semana em uma casinha, é uma casa de madeira
sem piso. Pássaros e insetos entram voando através dos
buracos na parede e corajosamente governam nosso
quarto com toda ousadia. As portas nas casas de aldeia
não têm fechaduras, nada nunca se fecha e nunca nada
se perde. Pela janela se pode ver o céu, assim, com que
você sonhou, Pinkus - diferente de todo mundo. Um azul
profundo durante o dia e cheio de estrelas à noite. Às
vezes, antes de adormecer, se pode ouvir os gritos dos
chacais. Choram como crianças pequenas, ou os guizos
dos camelos voltando às aldeias árabes. Quando vem
uma caravana (uma longa fila de camelos), um burrinho
anda sempre na frente e conduz todos. É por isso que se
diz:- Burro na frente.

III.

Realmente não sei como explicar isso para vocês. Se eu


escrever que aqui tudo está florescendo verde e colo-
rido, talvez vocês se lembrem das nossas arvorezinhas
de sabugueiro, quando germinam na primavera. Ou dos
nossos vasos de flores na sacada em maio. Não, aqui, flo-
resce outra coisa o ano todo, tomates, rabanetes, laranjas
e muitas outras plantas até duas vezes por ano. Agora os
prados estão vermelhos de papoulas, o campo está azul
SUMÁRIO de flores. Aqui, o cereal é verde e no pomar, os damascos
rosas florescem nas árvores. Não é à toa que as árvores
crescem tão rápido, pois têm um ano inteiro para isso,
não como em nosso lugar, durante a curta primavera e

159
verão. Os cactos, que vocês têm em vasos, são altos aqui,
como um humano adulto. Os árabes fazem uma cerca
espinhenta com eles - o maior ladino não se atreveria
passar por ela. Mas quando o vento está soprando, ele
espalha os espinhos afiados do cacto e frequentemente
machuca os olhos dos árabes. E também por isso que
eles são grandes porcalhões. Há muitos árabes cegos.

Vou falar agora sobre as crianças judias. Elas são gran-


des, saudáveis ​​e fortes. Porque também bebem óleo de
peixe. A maioria bebe 10 gramas duas vezes por dia e
vocês deveriam beber 15 gramas uma vez e apesar disso
deixam de fazer.

Quase como cuidam das crianças, cuidam dos animais.


Aqui é bom para as vacas, galinhas e abelhas. O estábulo
e os galinheiros são espaçosos, claros e limpos. Como as
galinhas são lavadas, alimentadas, mimadas e tratadas
aqui! Mas não pensem que essa galinha está chocando
seus lindos, grandes e brancos ovos.

As pessoas olharam o que e como uma galinha faz


para chocar um pintinho e construíram uma máquina
enorme. Coloca-se 600-800 ovos numa caixa grande,
aquece, vira, guarda os ovos e, após três semanas de tra-
balho exata, 500-700 ou mais pintinhos saem dos ovos.

Vocês escreveram na última carta sobre os ensaios para


uma apresentação na festa de Purim. Aqui em Purim
dura 3 dias. Então tive tempo para ver como eles cele-
bram na cidade e no campo. Quando ouvi os tiros de pis-
tolas e munições de revolveres, fiquei um pouco triste.
SUMÁRIO Lembrei-me de Josek e Heniek, os quais para não cair na
tentação de atirar, me deram seus revólveres para guar-
dá-los e eu os tranquei em uma gaveta.

160
IV.

– Temos colmeias no jardim. Muitas. Gosto de ver


como se lida com elas. Uma senhora cuida das abelhas
- Rache! é o nome dela, - ela me empresta a máscara e
me fala sobre as abelhas. Conta coisas interessantes,
às vezes, muito engraçadas. Mais e melhor do que nos
livros da escola. Essas abelhinhas são tão inteligentes.
Pelo cheiro, usando só o aroma, vão encontrar o cami-
nho para sua colmeia a uma distância de três quilôme-
tros. Elas chegaram até aqui por conta própria. E como
reconhecem as cores! Se você despejar água fresca nas
caixas de cores diferentes e colocá-las na janela, as abe-
lhas nunca vão chegar às pretas. Elas gostam mais do
amarelo e do azul e o preto as irrita muito. Não se chega
até elas com um avental preto - elas ficam muito bravas.
O pior é quando não há flores suficientes no campo e no
jardim, quando sentem que não terão tempo suficiente
para preparar as reservas de mel para o inverno. Então
elas ficam furiosas. E no outono, as pessoas são mais
picadas por elas. E elas não tem pena, cravam um ferrão
essas abelhas zangadas - dói e incha. Depois de soltar
o ferrão elas se encolhem até as entranhas e morrem. -
Tem seu castigo.

Uma vez, Rachel me disse: - as abelhas viviam selva-


gens num país quente, na Índia. Moravam livremente
nos galhos das árvores. E quando foram trazidos para
a Europa, começaram a ser criados em ocas e em
colmeias escuras.

Mas agora as pessoas pensam: - Por que tiramos o


SUMÁRIO sol das abelhas?

Estão construídos cada vez mais estábulos melhores,


chiqueiros e galinheiros- com janelas, se cuida mais

161
dos animais. Então os cavalos trabalham melhor, as
vacas produzem mais leite, as galinhas põem mais ovos.
Por isso fazem janelas nas colmeias também para que
as abelhas tenham o sol a que estão habituadas na sua
terra natal. E as abelhas são mais saudáveis, fortes, tra-
balham melhor e não ficam tão irritadas quando moram
em colmeias claras.

Para Rachel também será mais confortável, porque


quando ela olha pela janela, já sabe se está tudo bem na
colmeia. Não tem que abrir a colmeia, afinal isso irrita as
abelhas. Mesmo porque a colmeia não pode ser aberta
por mais de 2 minutos, é difícil ver tudo.

***

O Navio

Morávamos numa casa de veraneio. Todas as minhas


amigas se reuniam na nossa vila para brincar. Havia
Eitka, Maniusia com o irmãozinho e Judyta que morava
com a gente na vila. Um dia desses, estávamos plane-
jando de que poderíamos brincar.

Havia duas carroças um pouco mais adiante, uma ao


lado da outra. Decidimos brincar de navio.

Brincamos de navio com destino à África. As carroças se


transformaram em navio e nós estávamos viajando. Aí
um menino chegou. Josek, muito mais velho do que nós
e concordou em ser o comandante.

Durante a viagem, foram muitas as aventuras. O coman-


SUMÁRIO dante puxou um cepo e empurrou para a gente. Isso era
uma baleia. Saltamos do navio e começamos a fugir.
Maniusia estava se afogando, tivemos que salvar ela, con-
tinuamos nadando e a baleia continuou nos perseguindo.

162
E então, (apareceu o cachorro do síndico), imaginamos
que ele era o cachorro do tripulante e matou a baleia.
Depois, nos deparamos com uma rocha e o navio nau-
fragou. Chegou um bote para nós salvar, sentamos e fica-
mos circulando até um navio chegar para nós levar daqui.
Finalmente, o navio chegou. (Josek puxou a segunda car-
roça) e finalmente embarcamos no outro navio.

Enfim, chegamos à África. Fomos atravessar o deserto,


quando fomos atacados por animais selvagens e tive-
mos que lutar contra eles. Quando chegamos às aldeias,
não conseguimos nos comunicar com as pessoas. Em
seguida, voltamos à Polônia trazendo um elefante
domesticado. (O cachorro foi nosso elefante). Já estáva-
mos perto do destino, quando o navio naufragou nova-
mente e voltamos nadando para a Polônia.

E assim acabou a brincadeira.

***

Lido

Se algum de vocês chegar por volta das 10 horas, na rua


Rivadegli Schiavoni, próximo à praça de São Marcos,
em Veneza, terá uma vista estranha. Você verá milha-
res de pessoas, despidas com pacotes debaixo do braço,
correndo para a estação Vaporino. Uma pessoa ingênua
pode pensar que está ocorrendo uma manifestação,
uma colônia de nudismo ou algum evento semelhante.
Bem, não é isso. Todo mundo está indo para o Lido.

Lido é uma ilhota a dez minutos de Veneza viajando


SUMÁRIO com Vaporetto, com uma praia badalada - um dos luga-
res favoritos de Croesus de todo o mundo. Embora eu
ainda não seja um desses senhores, a compra de uma

163
passagem me dá o direito de invadir o quartel-gene-
ral dos milionários. Lá vamos nós... O Vaporetto não é
muito espaçoso, tem um convés inferior e outro supe-
rior, mas a multidão é enorme. Sol e água... é magné-
tico, que atrai a sociedade internacional. As conversas,
como em toda Veneza, ocorrem em todas as línguas
possíveis. A cada momento, gargalhadas irrompem,
a jovem fraternidade se regozijando em suas vidas.
A estrada passa pelo Canale Grande. Devido ao baixo
nível da água, o Vaporetto dirige pelo ziguezague mais
amplo ao longo de duas fileiras de corrimão que apon-
tam para lugares mais profundos. Passamos por palá-
cios ainda magníficos, erguendo-se dos dois lados do
canal. Eles apresentam uma visão um pouco engra-
çada. Isso parece como que um elegante cavalheiro de
smoking entrou em uma tigela de água. Vocês imagi-
nam um palácio alto imerso na água. Não só isso: exis-
tem trilhos das portas luxuosas que conduzem direta-
mente para a entrada do canal.

Aparentemente, um turista que esteve aqui uma vez per-


guntou se houve alguma inundação recente em Veneza.
Nós estamos lá no local. Ouve-se um barulho terrível.
O navio está reduzindo. Agora, um dos trabalhadores
da marina está jogando uma corda no Vaporetto, o con-
dutor a prende a uma estaca de ferro e o barco é rebo-
cado até a costa.

– Saia...

A multidão variporetto é derramada como uma onda


larga. Todo mundo se apressa em uma direção diferente.
SUMÁRIO Fui deixado sozinho.

– Quo vadis, Davide? – me pergunto.

164
Há um bonde no Lido, mas prefiro ser um vagabundo a
pé. Então, estou caminhando ao lado de um beco largo,
ricamente florido. Existem praias à esquerda e hotéis
à direita. São os belos palácios que são as verdadeiras
maravilhas da arquitetura. Seria bom conhecer ainda
mais Lido, porém, a medida que o meio-dia se aproxima,
torna se mais e mais calor. Vou para a praia então. Aqui,
no entanto, surge uma dificuldade de natureza finan-
ceira. Há muitas praias e os preços também são muito
altos. Depois de uma longa busca, finalmente encontro
uma pequena praia, onde posso relaxar a um preço aces-
sível por três liras a hora. Bem, o que posso fazer?

Momentos depois, o correspondente italiano de Mały


Przegląd, veste o traje de banho para continuar a viagem.
Logo no início, ele concluía que a praia do Lido é muito
diferente de lugares semelhantes à beira do rio Vístula.
Nós, estamos acostumados em despir se num banheiro
e depois corremos felizes para a praia, expondo nossos
corpos pálidos aos raios do sol, como se fosse pela pri-
meira vez. Os grupos são formados, jogando futebol com
entusiasmo e outros jogos não menos sérios. Aqui, no
entanto, toda a vida está delimitada às áreas das cabi-
nes extensas, correspondendo a um quartinho com um
alpendre, que se estendem por três fileiras ao longo da
praia, paralelas à costa do mar. Os preços destas cabines
variam dependendo da posição: o primeiro custa mais,
depois o segundo, finalmente o terceiro mais barato.
Também decide voluntariamente em que lado queria
ficar no Lido. Por exemplo, uma cabana na primeira fila
na praia perto do Hotel Excelsior custa apenas vinte liras
SUMÁRIO (10 PLN) por hora. Bem, cada família aluga uma cabine
assim, e raramente vai além de recinto dela. Enfim, cada
macaco no seu galho.

165
Por ora o Lido está quieto e calmo. Vamos adiante: cada
cabana é uma nova família como diz um velho provér-
bio. É preciso agora ter muito cuidado para não pisar
em nenhum ser humano deitado na areia olhando devo-
tamente para o sol. Está ficando cada vez mais quente.
Valeria a pena um banho. Ah, certo, existe um mar...
Então vamos dar uma olhada nele também. Que decep-
ção. Acontece que é simplesmente água que sobe e desce
(aqui deveria haver uma descrição maravilhosa de como
o sol brinca alegremente com as ondas, mas desejo pou-
par aos leitores tormentos desnecessários. Entro o píer,
isto e, uma ponte de concreto, ao longo de 50 m, que leva
ao mar. Um momento de hesitação, então salto na água.
Nessa ocasião, meu corpo tomou contato com o mar
pela primeira vez.

Se eu fiquei muito satisfeito com ele, não direi isso.


Em primeiro lugar, bebi alguns litros de água salgada,
em segundo lugar, as ondas começaram a balançar-me
e quase me perdi, ou melhor, quase boiei para Riga.
Somente agora eu entendi o grande tormento pelo qual
os judeus passaram - ao cruzar o Mar Vermelho.

No entanto, não é hora de banhar quando a obrigação


chama. Eu me vesti e prossegui. Desta maneira chego
ao hotel Excelsior, o maior do Lido, onde está aconte-
cendo uma exibição de filmes. É difícil descrever todo
o esplendor deste hotel. Isso pode parecer o palácio das
mil e uma noites. Este hotel poderia servir de tema para
inúmeras romances. Pois aqui hospedam-se todas as
personagens famosas que aparecem no Lido. E então,
SUMÁRIO no ano passado, foi aqui que Jan Kiepura, Marta Eggerth,
Marjon Davies, Kay Francis e um bando inteiro de artis-
tas italianos passaram.

166
Também havia os milionários. Então eu vi com os meus
próprios olhos, Randolphe Hearst, a quem pertence a
maior parte da imprensa americana. Ele ocupava um
apartamento de seis cômodos, pagava trezentas liras por
dia (150 zlotys) e, além dos seus próprios criados, tinha à
disposição dois copeiros, duas empregadas e duas cozi-
nheiras. O Creso Segundo, o rei americano do óleo, Bloch,
mantinha contato telefônico constante com a América.

A variedade de pessoas que se espalhavam pelo saguão do


hotel Excelsior era enorme. Então vimos algumas excên-
tricas francesas, constantemente desfilando com maiô
e um enorme cachorro ao seu lado, alguma americana
com um macaco no ombro e outras criaturas humanas,
com as quais Deus não poupou dinheiro, mas poupou
com a mente deles. Toda esta irmandade leva uma vida
despreocupada, a crise para os poucos deles não existe...
Saí fora. Quão levemente é respirar depois da atmosfera
abafada do hotel. O anoitecer já está caindo. O disco do
sol dourado se esconde no fundo do mar. Há silêncio. É
fofo... O homem começa a sonhar. Sonha que a crise não
existe, mas que o mundo é para todos...

***

Viagem para a América do Sul

Por fim, ancoramos em Buenos Aires. Buenos Aires é


uma cidade maravilhosa, grande e bonita. O lugar mais
bonito de Buenos Aires é provavelmente o Parque de
Palermo, que possui fontes coloridas com muitas flo-
res lindas, palmeiras, em geral, um milagre. De Buenos
SUMÁRIO Aires, viajamos de trem por 78 horas até La Paz, capital
da Bolívia. La Paz é a capital mais alta do mundo cha-
mada de “telhado do mundo” localizada nas terras altas,

167
rodeada por montanhas (Andy - Cordillera) com um tom
de rosa. Uma dessas montanhas é chamada de Illimani
e tem um topo nevado. Quando o sol está se pondo, você
pode ver seu topo prateado com um brilho vermelho e
amarelo. Branco e índio vivem na Bolívia. As mulheres
indígenas se vestem de uma forma extraordinariamente
colorida: vestem vários lenços com fundo plissado, um
sobre o outro e cada um de uma cor diferente, vermelho,
verde, centaurea, amarelo, laranja, etc. As blusas têm
cores diferentes. No verso, lenços coloridos. A mora-
dora de La Paz quando tem um filho pequeno, coloca-o
nas costas em um saco colorido. Eles também carregam
itens para vender nessas bolsas. Eles têm tranças lon-
gas, pretas e lisas e na cabeça usam bolas altas. Vou para
a escola. Eu fui para o meu quarto ano. Agora há férias
e verão aqui. No meu grupo, há meninas de oito a dez
anos e meio. Estou apenas no meio porque tenho 9 anos.
Estou aprendendo espanhol e inglês. Sim, a Bolívia é um
país muito interessante e exótico! -

***

Domingo em Paris

– Nove horas da manhã. Em meu requintado aparta-


mento, no quarto andar da pensão de Madame Bonnet
(tout confort! - com todo o conforto!), há um silêncio
imperturbável. Me desculpem – perturbá-los pelo meu
leve ronco. Afinal, o domingo é apenas um em uma
semana e, embora, não reste muito pouco tempo antes
dos exames, às vezes também é preciso dormir! Fui
subitamente despertado, dos meus felizes esquecimen-
SUMÁRIO tos dos grandes volumes de roteiros ainda não lidos, por
uma batida brusca na porta. A batida foi tão forte que foi
impossível fingir por mais de dois minutos que não se

168
ouviu nada. Portanto, murmurei não muito alto e num
tom não muito encorajador: -Entre! A porta se abriu e
Kai ficou na entrada. O Kai é pequeno em altura e tem
os olhos enviesados. Ele é chinês e um dos rapazes mais
simpáticos que eu conheço. Realmente gosto muito
dele. Mas desta vez eu não tive o menor desejo de vê-lo.
Deixe-me em paz - rosnei antes que ele pudesse abrir a
boca. - Quero dormir e pronto.

Kai me olhou gentilmente e com um encolher de ombros,


dirigiu-se de volta a porta.

Espere! Para onde você vai? – Gritei.

Se você quiser dormir, durma! Me retrucou.

...Mas a sonolência já me havia deixado completamente.


Diga-me! Por que você veio aqui? - perguntei, deslizando
hesitantemente uma perna para fora do edredom.

Vamos conhecer Paris! - sugeriu Kai sem nenhuma


iniciativa.

– Tinha vergonha de admitir, mas na verdade, além do


Bairro Latino, ainda não vimos nada. Era a mais pura
verdade. Kai e eu estávamos ambos em Paris, pela pri-
meira vez. Cada um de nós, ao chegar, se instalou ime-
diatamente no Quartier Latin, o bairro estudantil de
Paris e quase não metemos o nariz para fora de casa
durante todo o inverno.

Explicaram-nos que toda a vida estudantil estava cen-


trada nesse maravilhoso bairro boêmio. Tínhamos
SUMÁRIO tudo aqui: universidade, cafés, cinemas, amigos - o que
mais precisa um estudante para ser feliz? A propósito,
viver em Paris e não saber nada sobre a cidade - é uma
vergonha. Portanto, a princípio, não me importei com a

169
proposta da Kai. Mas mais por decência do que por con-
vicção - disse: Está bem... Mas, porém, temos que estu-
dar....Kai olhou para mim com pena, depois se dirigiu
novamente para a porta.

Espere, idiota! - eu rugi - Para onde você vai novamente?


Você quer estudar - Kai explicou suavemente. Kai, como
convém a um chinês, nunca se zanga. Ele é sempre irri-
tantemente educado e, ao mesmo tempo, tem o hábito
insuportável de levar a sério tudo o que é dito. Assim,
rapidamente, e de maneira nada parecida com os costu-
mes chineses, contei-lhe o que pensava dele e com uma
agitada pressa comecei a me vestir. Após dez minutos
já estávamos descendo as escadas do quarto andar da
pensão. No primeiro andar encontramos Atylla e Ilonka,
que vinham ao meu encontro. (Atylla e Ilonka são húnga-
ros - daí seus nomes estranhos para os nossos ouvidos).
Conheciam Paris - ou melhor, não o conheciam – assim
como nós, portanto, quando souberam do propósito do
nosso passeio, ficaram felizes e se juntar a nós.

– Por onde começamos? - Perguntei.

– Do café da manhã - respondeu Kai brevemente.

– Ainda não comi nada e estou com muita fome. Aceito


por unanimidade - anunciou Atylla. Depois de um
tempo estávamos em um pequeno “bistrô” no balcão e
bebíamos - de pé, porque era mais barato - café branco
e os pãezinhos mais saborosos do mundo - croissants.
Depois de sair do bistrô, paramos indecisos.

Vamos ao Jardim do Luxemburgo - sugeriu Ilonka.


SUMÁRIO
Que bobagem! Nós o conhecemos como a palma de
nossa mão! - Protestei. O Jardim de Luxemburgo está

170
localizado no Bairro Latino e estudamos frequente-
mente pelos seus becos. Mas Ilonka insistiu e tivemos
que dar lugar a ela, como única menina do grupo. Pas-
seamos por vielas inundadas pelo sol de junho, vimos
crianças lançando pequenos veleiros na lagoa, e com a
permissão silenciosa de Ilonka, saímos novamente para
a rua. Não muito longe do jardim há o café mais popu-
lar do Quartier Latin, que todo parisiense conhece, nem
que seja por sinais de propaganda: Chez Dupont tout est
bon (no Dupont - este é o nome do proprietário do lugar
– aqui tudo está bom). Ao ver o olhar ansioso lançado por
Atylla no agora café, eu disse apressadamente: Proponho
agora pegar o metrô e ir para o Louvre.

Você está louco? - Ilonka ficou indignada - Você não pode


ir ao Louvre com uma perna só. Para ver realmente algo,
você tem que ir lá todos os dias durante alguns meses!

Portanto, como nunca conseguiremos fazer isso, vamos


dar uma olhada nos salões dele. Pense, Ilonka, como
vai se apresentar diante de sua família em Budapeste
e admitir que não esteve no Louvre! O argumento foi
devastador. Depois de um tempo, já estávamos sentados
no metrô, nos dirigindo ao Louvre.

SUMÁRIO

171
14
AS FORÇAS
ARMADAS
A ascensão do nacionalismo após a I Guerra Mundial aumen-
tou o desejo pela expansão dos governos e territórios e da defesa dos
mesmos, fazendo com que cada vez mais cidadãos civis tivessem
interesse pelo alistamento na carreira militar para a defesa da nação
e da pátria. Destarte, a atuação das forças armadas não ficou de fora
do jornal Mały Przegląd, como a demonstração das forças aéreas em
Varsóvia no distrito de Pole Mokotowski e a marcha do exército em
frente ao Grande Teatro. Ademais, encontramos um artigo do corres-
pondente da Escócia, Teodor Lewitte que escreveu sobre a celebra-
ção pela paz, ocorrida em 11 de novembro de 1937, realizada por 4 mil
estudantes na Universidade de Edimburgo.

A semana de L.O.P.P.*

* Forças áereas da Polônia - uma organização


para-militar que funcionou na Polônia até a
Segunda Guerra Mundial.

Acordei e em seguida olhei para fora da janela. A manhã


estava bonita. O céu, como se estivesse preparado para
uma grande festa, se desfez das nuvens, mesmo as mais
leves. O fundo azul-cristalino lembrou a primavera.

Na manhã de setembro tão lindo fui com a delegação da


nossa escola para o bairro de Pole Mokotowski.

A multidão de pessoas, crescia a cada minuto no aero-


porto. As arquibancadas já estavam lotadas. A polícia
pedestre teve problemas com a manutenção da ordem.
Cada um pressionava para ir mais pra frente, nas pri-
meiros filas, para poder assistir melhor.

SUMÁRIO Começaram as acrobacias.

O avião, fugindo do grupo de pessoas que o rodeavam,


se arrastava em linha reta como uma mariposa grande

173
na grama verde, depois as suas asas sobiam em direção
ao céu, se ouvia o ronco do motor e o avião decolava da
terra. Começava a dançar no ar, desenhando círculos e
fazendo o contorno do oito, caia como uma folha levada
pelo vento e em seguida voltava a subir.

Em seguida esvoaça tão levemente como um borbo-


leta e de novo voava agilmente como um pássaro, só o
motor fazia barulho.

O avião deslizava no ar ficando mais baixo, mais perto da


terra e finalmente tocava a pista do aeroporto com suas
rodas. Os aplausos, os aplausos eram ensurdecedores.

***

O retorno do exército

Eu me levantei depois das nove horas de manhã. Não


consegui vencer para ir à escola, então passei voando
diretamente pelo Plac Teatralny (Praça Teatral). O céu
parecia cinzento, as nuvens estavam pálidas como se
fossem congeladas. As nuvens tão pálidas nunca anun-
ciavam algo bom. Não importa. “Há de ser nada”. Porém,
a chuva começou a cair sem parar. As pessoas abriram
os guarda-chuvas.

Enxugando o rosto com um lenço, corri da Rua Senator-


ska até Plac Teatralny. Lá estava um policial perigoso e
ameaçador. Talvez ele não me deixe entrar? Mas, sem
nenhum problema, deixou.

Tropas militares começaram a marchar em frente ao


SUMÁRIO edifício de Grande Teatro. As delegações com estandar-
tes ficaram perto de colunas dos edifícios teatrais, as
delegações de jovens ficaram nos terraços do primeiro
andar do teatro.

174
Às 12:30, o prefeito da cidade Stefan Starzyński saudou
as tropas. Depois de posicionarem as armas, os militares
foram presenteados com as flores, cestas decorativas e
um quadro que retrata a entrega do bastão para o Mare-
chal Śmigły-Rydz.

Uma chuva de flores caiu sobre as tropas que


retornavam à capital.

***

11 de novembro em Edimburgo

(Correspondência da Escócia)

O dia 11 de novembro é celebrado de diferentes formas


nos diferentes países. Isso depende não somente da situ-
ação daquele país ou estado no tempo de cessar-fogo,
mas também do caráter nacional e da atual situação
política. O desafio que escolhi foi descrever a tomada de
atitude dos jovens acadêmicos na Escócia em relação à
ideia de paz e aproximação internacional.

No dia 11 de novembro, no maravilhoso pátio da Univer-


sidade de Edimburgo juntaram-se 4000 estudantes para
honrar com três minutos de silêncio a lembrança dos
mortos nos campos de batalha, adicionando um tijolo ao
monumento de construção pela paz. Os 4000 estudan-
tes de gênero feminino e masculino são representantes
de diferentes raças, nacionalidades e religiões. Come-
çando com ingleses, escoceses, galeses e irlandeses, e
todas as raças negras desde os mais claros aos muito
escuros, como chineses, indianos, árabes e americanos
SUMÁRIO e todos os representantes da Europa (do norte ao sul, do
leste ao oeste), todos estão em pé com as cabeças eleva-
das, unidos pela alma da fraternidade e igualdade, alma
de comunhão e liberdade.

175
O reitor da universidade em sua roupa solene e todos os
professores usando togas e barretes ficaram em pé na
frente do magnifico prédio em silêncio. Finalmente, res-
soou o tiro de um canhão, saindo do castelo antigo dos
Reis da Escócia e com este sinal levantamos as cabeças
e durante três minutos ficamos braço a braço em com-
pleto silêncio. Novamente, ressoou o tiro de canhão e no
palco apareceu o reitor da universidade, e ao lado dele
um alto padre escocês que fez uma saudação para nós.
Uma vez mais as paredes antigas da universidade escu-
taram as palavras fortes, mas simples que manifestaram
o sentido de amor fraternal nos corações dos ouvintes.

O azul sem manchas do céu, os dourados raios do sol de


novembro estranhamente harmonizaram-se com o som
puro de um conteúdo muito simples e claro para todos.
E talvez por causa desta companhia misturada, o verda-
deiro encontro dos jovens do mundo todo, talvez exa-
tamente esta mobilização me influenciava, que eu me
senti ser alguém diferente, uma pessoa melhor, que pela
primeira vez entendi o sentido da frase “alma elevada”.
Novamente acreditei na paz mundial e no fato, que todo
mundo é irmão, que o mal passará, o mundo se consti-
tuirá em gentileza, fraternidade, liberdade e igualdade.
A palavra “paz” significará solidez infinita e a palavra
“guerra” de uma vez por todas será eliminada.

O curso dos meus pensamentos foi interrupto com uma


palavra “amém” dita pelo padre. Quatro soldados do
exército escocês em seus vestuários nacionais tomaram
as gaitas de foles e ressoaram os sons da marcha fúnebre
SUMÁRIO do exército de Reino Unido. Os nossos ouvidos, que não
eram habituados a escuta das gaitas de foles, pressenti-
ram alguns rangidos numa melodia flutuante e poderosa.

176
E um pouco assim, com um pouco de medo de que novos
perigos interrompesse a homenagem de paz.

Novamente os músicos das gaitas de foles tomaram


seus instrumentos e começaram as palavras do hino
inglês “God save the King”. O que é interessante é que a
primeira palavra que aparece no hino da potência mais
poderosa é exatamente “God” - Deus.

A curta homenagem da academia terminou. As pessoas


começaram a movimentar-se, aumentaram as conver-
sas e discussões. Cada um de nós pregou na lapela uma
flor de papoula vermelha com uma inscrição: peace
(paz). Estas palavras, pois, florescem nas covas das cen-
tenas de soldados da Grã-Bretanha, mortos nos cam-
pos das grandes batalhas. Vermelho com longo caule,
cresce hoje em dia, na terra dos túmulos, espalhando-se
no mundo todo e o seu vermelho, o símbolo de sangue
derramado, não chama a vingança, mas traz a memória
que basta de massacres, basta de ódio – que este seja o
último vermelho.

SUMÁRIO

177
15
FÁBULAS,
IMAGINAÇÃO
E FANTASIA
Adepto da escrita, literatura e teatro, Janusz Korczak também
buscou na fábula, na imaginação e na fantasia uma forma das crian-
ças e adolescentes não deixarem de sonhar por um mundo melhor
do que aquele que elas já conheciam, ou como verbalizamos em
algum momento, uma forma das crianças e adolescentes “esperan-
çarem” suas vidas. Nos artigos publicados pelo jornal, especialmente
aqueles publicados por pseudônimos, como o da “caixa mágica”
escrito sob o pseudônimo de Paul Roger consta que eram fábulas
escritas pelos próprios editores do jornal, que visavam sobretudo,
passar diferentes conhecimentos de uma forma cativante aos seus
leitores, os quais reverberassem nas emoções possibilitando que
sonhassem, mas que também trouxessem sabedorias às suas vidas.

Passeio noturno

Fomos fazer um passeio durante a noite. Fomos à flo-


resta. De longe, víamos uma nuvem escura. Do outro
lado, a lua estava brilhando lindamente. Começaram a
surgir as luzes das cabanas. Por fim, a parede negra da
floresta. Ela parecia arrepiante. Eram 8 horas e deverí-
amos estar de volta à meia-noite. Quando entramos na
floresta, pensei que era um sonho. Tive uma impressão
meio estranha. Medo, mas agradável. Eu aconcheguei-me
na minha amiga e fechei os olhos. Talvez algum ban-
dido surja e dispare algum tiro? Chegamos à clareira,
começamos a cantar. Sentei-me no cobertor e escutei
as canções. A lua nos espiava entre as árvores. Começa-
mos a dançar. Rememoramos o livro sobre as ninfas e
deusas das águas (rusałki). Talvez agora as ninfas este-
jam rapidamente boiando. Continuamos nossa jornada.
De repente, avistamos uma linda e pequena colina.
SUMÁRIO Sentamo-nos e cantamos de novo. Os pássaros, acor-
dados pelos nossos gritos, choramingavam baixinho.
Finalmente fomos para casa. Pegamos os biscoitos,

179
tiramos os casacos e fechamos os olhos. As árvores
ainda deliravam na minha cabeça. Eu não me arrependo
nenhum um pouco porque fiz uma viagem noturna,
embora estive com medo.

***

Salmon

a captura de Belzebu

Quando Salmon decidiu construir um santuá-


rio para o Senhor, ele reuniu os velhos e sábios de
Israel e assim falou:

– Eu trouxe enormes rochas para estabelecer os alicer-


ces do templo. E agora me digam, com o que devo cor-
tar as pedras para torná-las lisas, já que Deus ordenou
através de Moisés:

– Não as alisem com ferro.

E os velhos disseram:

– Ouvimos dizer que há um bichinho no mundo, que


Deus criou às vésperas de sábado e que tem um poder
milagroso. Ele consegue rachar rochas com a força
do seu pequeno corpo. Agora é preciso procurar esse
bichinho e quando o senhor o colocar em cima de uma
rocha, a rocha irá rachar-se em um instante. Não foi o
que Becalel fez?

Em seguida, o rei pergunta:

– E onde está este bichinho Szamir?


SUMÁRIO
– Nós também não sabemos – responderam os velhos.
Talvez os demônios saibam.

180
Então o rei dirigiu-se aos demônios:

– Onde vive Szamir?

– Não sabemos - responderam.

– Talvez o nosso rei Belzebu saiba. Ele vive na monta-


nha da escuridão.

Nessa montanha tem um poço, coberto por uma enorme


pedra e selado com o selo do Belzebu. Sempre que o Bel-
zebu volta de suas viagens à terra, examina primeiro o
selo se está intacto, depois quebra-o, remove a pedra e
mata sua sede. Em seguida, cobre o poço de novo, sela-o
e vai embora. É assim que ele sempre faz.

Salmon chamou o seu comandante leal Bnaje ben Jeho-


jada e deu a ele um amuleto de ferro com o poder mila-
groso e um anel sagrado. Instruiu-o em como tratar
disso e mandou-o trazer Belzebu a todo custo. Bnaja ben
Jehojada foi para a montanha indicada. O poço estava
selado. Belzebu não estava lá. Bnaja cavou apressada-
mente um buraco profundo abaixo do poço, conectou-o
ao poço através de um cano, e assim trouxe toda a água
do poço para o buraco. Depois colocou vinho no poço
e fechou o buraco com areia. Em seguida, subiu numa
árvore para esperar Belzebu.

E aí vem Belzebu. Ele era horrível. Tinha pés de gali-


nha, uma barba de cabra e uma chama de fogo jorrava
das suas narinas. Bnaja ficou assustado. No entanto,
ele confiou no talismã que o rei lhe tinha dado. Belzebu
aproximou-se do poço e descobriu que o selo estava
SUMÁRIO intacto. Ele rolou a pedra e já queria beber, quando de
repente sentiu que em vez de água, havia vinho. Belzebu
ficou com raiva.

181
Não bebeu. Sentou-se em uma pedra, zangado, con-
torcendo-se. Mas, finalmente, ele foi dominado pela
sede e empanturrou-se de vinho, ficou bêbado e ador-
meceu. A montanha estava tremendo – tão alto era o
ronco de Belzebu.

Quando o Bnaja ouviu isso, saltou da árvore e


algemou Belzebu.

Belzebu despertou. Olhou bem, minhas mãos estão alge-


madas. Ficou furioso e tentou rompê-las. Aí a Bnaja gritou:

– Eu te exorcizo em nome do Senhor.

Belzebu ficou em silêncio e obedientemente seguiu Bnaja.

***

Caixa mágica

Uma história semi-fantasiosa

Quando eu tinha oito anos, os meus livros preferidos


eram os contos mágicos. Ficava horas sentado entre os
livros, dos quais conhecia cada palavra, de cor e salte-
ado. A história da Cinderela me fazia chorar de pena
e rir de alegria, tanto na décima leitura quanto na pri-
meira. A qualquer hora do dia ou da noite, eu poderia
ouvir os contos das incontáveis aventuras do Pequeno
Polegar ou de João e Maria. Eu sonhava com as fadas
que apareciam nos meus sonhos e devaneios. Às vezes,
deitado na cama com os olhos bem abertos, eu pensava
como seria bonito se, de repente, uma fada esbelta de
cabelos loiros aparecesse diante de mim e dissesse com
SUMÁRIO
uma voz melodiosa:

182
– Diga-me menino, quais são seus três maiores desejos.
Prometo-te que todos eles serão realizados.

Quando meus sonhos chegavam nesse ponto, a minha


cabeça começava a matutar intensamente. Pois era
necessário decidir o que pedir à boa fada. Obviamente,
em primeiro lugar, uma nova bola de futebol. A velha
estava furada e meu pai nunca teve dinheiro para uma
bola nova. O segundo desejo também era evidente por si
só: um monte de chocolate e de bolos com cobertura. E,
claro, garantir boas notas na escola! Mas rapidamente
cheguei à conclusão de que havia ainda muitas outras
coisas que eu não havia incluído nos três desejos. Como:
alguns novos selos; para que papai começasse a ganhar
mais dinheiro; para que mamãe não adoecesse com tanta
frequência… E agora: do que desistir e em que insistir?
Após uma hora de reflexão e enrolação na minha cama,
cheguei à conclusão de que seria melhor se nenhuma
boa fada viesse e me pedisse para expressar meus maio-
res desejos. Entretanto, isto não significa que nos recan-
tos mais íntimos de minha alma infantil não havia uma
crença feroz em gnomos, duendes, elfos e anões.

Numa certa manhã de verão – bom pra estar no campo


– meus pais saíram para um passeio, confiando-me
aos cuidados da empregada Marcysia. Uma simpática
garota, porém, sem nenhuma justificativa, ela decidiu
que naquele dia era mais interessante e agradável passar
seu tempo com uma amiga que morava na vizinhança
em vez de cuidar de um “fedelho insuportável” e, como
resultado, eu tive total liberdade de fazer o que queria
SUMÁRIO durante todo o dia. Encantado com esta possibilidade,
saí correndo do apartamento sem terminar meu café
da manhã – e em frente a varanda, de repente paralisei:

183
diante de mim havia um gnomo, o mais real e o mais
autêntico do mundo! Vestindo roupas pobres, com a
barba por fazer e sujo, não muito mais alto do que eu.
Numa das mãos segurava um pequeno pacote e com a
outra, quando me viu, fez algum tipo de movimento
como se fosse me saudar ou esconder seu rosto do sol.
Eu fiquei tão comovido que não consegui pronunciar
uma palavra. Assim, por alguns minutos estivemos
frente a frente – eu e o gnomo – se olhando bem de perto.
Enfim, perguntei com uma voz trêmula:

– O senhor é um feiticeiro, não é? Oh, você pode me dizer


qualquer coisa, eu não direi nada a ninguém!

O estranho abriu bem os olhos, deu um passo para trás


e coçou a cabeça como se estivesse confuso. Mas, depois
de um tempinho seu rosto se iluminou.

– Mas se sua mãe sair e me ver…

– Não há ninguém em casa – eu lhe asseguro. – Até


Marcysia saiu. Me fala, por favor, quem é o senhor!

Imediatamente, eu o convidei para sentar-se na varanda,


servi-lhe um prato de morangos e depois, sem qualquer
dificuldade, o gnomo me confessou que era o príncipe
do país de Rosika e que seu nome era Roland. Por mui-
tos anos, nada haveria de impedir-lhe sua felicidade. No
entanto, recentemente, a tia dele, a fada Mimosa, decidiu
conquistar o seu país. Então, durante a noite, ela o atacou
com o seu poder mágico e atiçou um feitiço converten-
do-o em penas e penugens. Todos os cidadãos de Rosika,
aterrorizados pela tia maligna, vieram para o lado dela e
SUMÁRIO
escafederam com o antigo rei pelos quatro ventos.

184
– E agora – acabou Roland, endireitou orgulhosamente
seu pequeno semblante – o propósito da minha vida é
voltar para Rosika e recuperar o meu antigo poder.

Eu o escutava prendendo meu fôlego. Minhas bochechas


queimavam de emoção, minhas mãos tremiam. Uma
palavra de Roland e eu estaria disposto a segui-lo e aju-
dá-lo a defender o seu trono. Mas, o gnomo não estava
me oferecendo essa oportunidade. Quando não sobrou
um único morango sequer no prato que lhe entreguei,
ele se levantou do banco e anunciou solenemente:

– Ouça-me, garoto, você me mostrou mais coração e com-


preensão do que qualquer homem durante minha jornada
até agora. Quero recompensá-lo por isso… Mas precisamos
entrar em um quarto para que ninguém possa nos ver…

Comovido e ansioso, eu levei o convidado para dentro do


quarto. Após dar uma rápida olhada em todos os objetos
da casa, Roland sentou-se em uma cadeira e lentamente
começou a desenrolar seu pequeno pacote. Depois de
algum tempo, ele tirou uma pequena caixa. Colocou-a
cuidadosamente sobre a mesa e disse-me:

– Agora, querido menino, deixe-me por alguns minutos.


Devo lançar alguns poderes para tornar o meu presente
útil para você. Você deverá voltar quando eu o chamar.

Assim, após alguns instantes, impacientemente espe-


rando, olhei através do buraco da fechadura e fiquei
surpreso por não ver mais o gnomo na cadeira ao lado
da mesa. Finalmente, após mais alguns instantes, ouvi
Roland me chamar. Roland estava sentado à mesa, como
SUMÁRIO
havia estado quando o deixei e segurava misteriosa-
mente a caixa em suas mãos.

185
– Aproxime-se – disse suavemente. – Veja, eu lhe dou a
caixa encantada. Qualquer coisa que você desejar, basta
inclinar-se sobre ela e sussurrar o seu desejo e ele se rea-
lizará imediatamente. Agora devo ir — acrescentou ele,
levando o pacote já amarrado sob o seu braço.

Encantado, eu olhava para o gnomo. Então agora eu pode-


rei pedir não só os três desejos como imaginei em meus
sonhos mais loucos, mas todos os que me vem à mente.
É claro que não tinha dúvidas sobre o poder mágico de
Roland, mas eu queria experimentar o poder da caixa na
sua presença, só por precaução. Mas o gnomo não que-
ria nem me ouvir falar sobre isso.

– Tal tentativa destruiria tudo! – declarou com firmeza.


Ele pressionou o chapéu rasgado sobre suas orelhas,
apertou mais forte o pacote e se foi num instante.

Eu fiquei sozinho. Não largando o precioso presente das


minhas mãos, sentei-me na varanda. É claro, meu pri-
meiro pensamento foi tentar o poder mágico da caixa. De
acordo com as instruções de Roland, inclinei-me sobre a
caixa e depois de pensar por um minuto, sussurrei:

– Quero uma barra de chocolate meio amargo com nozes!

A caixa nem cedeu: abri cuidadosamente a tampa. Con-


segui abri-la sem qualquer dificuldade, revelando-se
seu interior sujo. Repeti a tentativa mais uma vez, nova-
mente sem sucesso. Depois de dez minutos eu desisti
das nozes, e depois das outras cinco tentativas eu só
pedi um biscoito pequeno. Mesmo o doce mais medío-
cre não saiu da caixa. Quando Marcysia retornou de sua
SUMÁRIO
visita à vizinha, ela encontrou-me afogando em lágri-
mas, agarrado à caixa mágica com toda minha força.

186
Ela me encheu de perguntas e é claro, não conseguiu
nenhuma resposta de mim. Foi naquele dia que eu dei-
xei de acreditar em gnomos.

Por fim, eu esqueceria sobre a coisa mais importante.


Quando os meus pais voltaram do passeio, notaram em
seguida pela falta do relógio de ouro e algumas outras
bugigangas da casa. Eu contei aos meus pais tudo nos
menores detalhes. Eles riam tanto que até esquece-
ram da falta do relógio. E eu me encontrava sentado no
canto, todo vermelho, chorando pela perda da minha
crença em fantasias…

SUMÁRIO

187
16
OS ANIMAIS
Sob o olhar das crianças, a vida dos animais estava cons-
tantemente referenciada nos escritos de Mały Przegląd, especial-
mente quando se encontravam muito próximos dos seus interlocu-
tores, a quem muitas vezes eram estendidos os seus laços de ami-
zade. como podemos ver nos artigos abaixo. Entre as cartas, consta
a crueldade para com os animais, como essa que ocorreu com a
cachorra Sonia, mãe de Dziakuś, morta pelo seu próprio dono, sob a
custódia de seus amigos.

Da triste morte da cachorra Sonia, publicado em maio de


1927, também encontramos a fábula do peixe voador, quando em
agosto de 1939, foi publicado a história do peixe que suplicou ao
Deus Jupiter por barbatanas para pelo menos uma vez na vida sentir
a sensação dos pássaros.

Da vida dos cachorros

Aconteceu em Otwock. Comecei a escrever em agosto.


Amik e Sonia são cachorros dóceis. Mas Kruk e Dziakuś
são maus. Kruk é bravo e quieto: quando ele está prestes
a morder, ele vem se esgueirando. Dziakuś não morde,
porque tem apenas dois meses e meio de vida, mas
quando alguém chega, ele late muito. Eu gosto mais de
Amik, da Sonia e de Dziakuś do que de Kruk. O zelador
é uma pessoa ruim porque ele matou Sonia, e quando os
cachorros vão para o canil, ele os espanca sem piedade.

Há quatro cachorros em nosso quarteirão. O primeiro


se chama Kruk. Ele é um cachorro grande preto com
um pescoço branco. Esse cachorro é sorrateiro e pre-
guiçoso. Ele é da raça vira-lata. A segunda é uma fêmea
- seu nome é Sonia. Ela é de cor marrom. Esta é pequena,
SUMÁRIO
é uma cachorrinha pinscher. Suas orelhas são grandes.
O terceiro é o filho de Sonia, que se parece com Kruk.

189
Seu nome é Dziakuś. Ele tem apenas dois meses e meio
de vida. Dziakuś cavou um buraco e quando o perseguem,
ele escapa para dentro da sua cova. O quarto é Amik, uma
mistura de cães e lobos. Ele é de cor caramelo. Ele tem face
e pernas gordas. Todos estes cachorros gostam muito uns
dos outros. Kruk passa o dia todo preso em uma corrente;
enquanto Sonia, Amik e Dziakuś ficam soltos.

Todos os dias Sonia vem e pula em cima de mim. Eu gosto


de os acariciar. Uma vez, ao pé da casa do zelador, ouvi
um grito estridente. Em seguida avistei uma coisa estra-
nha: Amik estava deitado de costas, de um lado Kruk e
do outro lado Sonia e Dziakuś. Kruk estava mordendo
Amik, enquanto Sonia e Dziakuś estavam rosnando ter-
rivelmente. A filha do zelador deteve Kruk e amarrou-o.
Kruk saltou para dentro do canil e adormeceu.

Há dois cachorros na outra vila: Brytan e Lord. Eles vêm


ao nosso condomínio e chamam Kruk com o latido.
Kruk que fica deitado no corredor escuro de passagem,
ao escutar, se levanta, lambe seu pelo, abaixa a cabeça e
vai ao encontro dos visitantes. Saltitante ele se aproxima
da cerca e eles latem, uns para os outros. Hoje, fechei os
menores em casa e fui pra perto da cerca para mandar
embora o Brytan e o Lord. Conforme eu ameaçava, eles
começavam a ceder. Mas Kruk se esquivou de mim e
correu de volta. Eu afastei Lord com um martelo. Em
seguida, fiquei cercado pelos dois lados. Eu comecei a
afastá-los. O filho do zelador sai e acorrentou o Kruk. À
noite, pedi ao zelador que liberasse o Kruk e aproveitei
para passear pelo bairro com ele. Na volta quando me
SUMÁRIO
aproximei de seu canil - ele pulou em cima de mim e
esticou suas patas grandes.

190
Esta manhã, Sonia estava deitada debaixo de uma árvore,
eu comecei a acariciá-la. De repente, Amik veio cor-
rendo, então para evitar ciúmes, comecei a acariciá-lo
também. A ciumenta Sonia começou a rosnar, por isso
eu voltei a acariciei e ela se deitou de barriga para cima.

O filho mais novo do zelador é muito mau, ele pegou um


pau e bateu na cabeça do Kruk. Hoje vi Sonia sentada
no purgatório de Kruk, e Kruk não a deixou ir embora.
Mas quando o Kruk se desconcentrou, Sonia fugiu. Kruk
estava amarrado, por isso não podia correr atrás de
Sonia. O Sr. Mietek colocou Sonia no depósito do pré-
dio. Depois foi para casa. Fui até a janela dele e pedi-lhe
que libertasse Sonia. Então, ele me deixou tirar Sonia do
depósito. Eu vi sair uma Sonia entristecida. Sonia cor-
reu para o canil de Kruk, e Kruk não a deixou sair nova-
mente. Sonia latiu para ele, mostrando seus pequenos
dentes brancos. De repente, vi o zelador vindo em dire-
ção ao canil com um cordão. Pensei que ele ia bater no
Kruk, mas eu estava errado. O zelador deixou Kruk em
paz, mas tirou Sonia do canil, fez uma espécie de cola-
rinho de corda e caminhou com Sonia em direção ao
pátio. Sonia não queria ir porque definitivamente sabia
o que lhe esperava. O zelador devolveu o cordão à filha,
tirou uma barra de ferro do galinheiro e foi com Sonia
em direção à cerca. Sonia se arrastou pelo caminho,
sentindo o que a esperava. Vi a filha do zelador virar a
cabeça para longe. Eu perguntei o que seu pai faria com
Sonia, mas ela não me respondeu. Achava que o zelador
iria matá-la, então me afastei para evitar olhar. Dziakuś
estava deitado na grama, sem perceber que eles iriam
SUMÁRIO
matar sua mãe. Depois de um momento, ouvi um estalo
que partiu os ossos. Cheguei ao lugar onde o zelador

191
tinha matado Sonia e vi Sonia deitada amarrada a uma
árvore. A cabeça dela estava esmagada e o sangue estava
jorrando de seu focinho. Ela ainda abanava seu rabo. O
zelador levantou a cabeça dela, depois foi para um ter-
reno baldio ao lado e cavou um buraco debaixo de um
pé de ameixa. Ele voltou aonde havia matado Sonia,
pegou-a pela perna traseira e caminhou em direção ao
buraco. O zelador a jogou na cova e a enterrou. Todos
fomos embora. O Kruk estava forçando a corrente e se
soltasse ele morderia todos. Estava com sangue nos
olhos. Até eu tinha medo de me aproximar dele. No fim
do dia, Kruk correu com o nariz pressionado sobre o
chão porque queria encontrar o túmulo de Sonia. Dois
cachorros vieram correndo em direção ao nosso condo-
mínio - Brytan e Lord, e eles morderam Kruk. O Kruk
ficou irritado, pois suas feridas eram muito dolorosas.
Dziakuś não se importava nada com sua mãe. O Kruk,
após três horas de busca, encontrou o túmulo de Sonia,
até mesmo começou a desenterrá-lo, mas foi expulso
dali. Uma vez andando pelo condomínio, vi a zeladora
sentada em um tronco e as meninas estavam de pé ao
seu lado. Eu perguntei: Por que o zelador matou Sonia?
e ela respondeu: “Eu não podia alimentá-la, afinal, tenho
que alimentar o Kruk, o Amik e o Dziakuś de qualquer
maneira”. A seus pés estava Amik. Eu comecei a acarici-
á-lo e ele tentou agarrar minha mão.

***

Um dia, ouvi um cão ladrando do lado de fora da cerca.


Eu olhei na direção dela. Vi Brytan e Lord chamando por
SUMÁRIO
Kruk. Corri os olhos para ver onde estavam Dziakuś e
Kruk e tentei afastar Brytan e Lord. O Kruk se levantou,
avermelhou seu pelo, caminhou lentamente em direção

192
à cerca, levantou-se e com suas enormes patas alcançou
a cerca. Os três cachorros, Brytan e Lord de um lado e
Kruk do outro começaram a latir uns para os outros.
O Dziakuś começou a latir também, de vez em quando
pulando em cima de mim, depois pulando em cima de
mim e ladrando para Brytan e Lord. Eu estava dizendo ao
Dziakuś: “Dziakuś, leve-o daqui!” e ao Kruk: “Kruk, não se
mexa! Pare de se mexer!”. Eu joguei uma pedra pela cerca,
para que Brytan ou Lord se afastassem. Eu poderia atin-
gi-los com ela. Os cachorros mantiveram uma distância
decente. Eu coloquei um cipó na cerca para que quando
Brytan se aproximasse, eu o atingisse, mas Brytan se
aproximou e pegou meu cipó. Eu o manipulei e aproveitei
para pegar uma mão de areia e jogar nos olhos de Brytan,
ele fugiu e começou a latir pro Kruk. Me chamaram para
o café da manhã. Enquanto caminhava em direção à
varanda, vi Brytan indo embora. Eu senti medo porque
o Brytan morde. Mas quando passou o susto, bati com o
pé no chão e Brytan fugiu. Entrei pela varanda. Atrás de
mim, o Dziakuś, de vez em quando, olhava e ladrava em
direção ao Brytan e Lord. Sentei me na varanda, Dziakuś
correu atrás de mim. Comecei a comer. O Dziakuś estava
me observando. Joguei-lhe um pedaço de pão, ele comeu
e lambeu-o. Joguei um pouco de suco de cereja no chão.
Tomei meu café da manhã e saí com Dziakuś. O Kruk não
ladrava mais em direção a Brytan e Lord.

***

Um dia, Lord veio correndo em direção do nosso con-


domínio. O filho do zelador notou isso e atirou-lhe uma
varra grossa, mas falhou e não acertou. Eu não me afas-
SUMÁRIO
tei um pouco com meu estilingue, e disparei, Lord virou
a cauda, e acertei sua orelha, rosnava, e fugia o mais
rápido que podia. Caminhei em direção a casa do zelador.

193
Eu vi Amik acorrentado e uivando. Comecei a acariciá-lo
e fazer cócegas. Em seguida, me afastei em direção à
nossa varanda. Junto à varanda estava o Dziakuś. Após
o almoço, saímos para passear.

***

Peixe voador

Existe um tipo de peixes, que pode voar por algum


tempo porque eles estão equipados com um aparelho
respiratório. Às vezes, eles pulam da água e voam para
as árvores, quase sempre coqueiros. De onde vieram os
“peixes voadores”? Conta a lenda que:

Há muitos, muitos séculos atrás, nenhum peixe tinha o


privilégio de respirar na terra. Só na água os peixes se
sentiam bem, mas quando algum deles subia sua boca
acima do nível do rio ou mar, logo sentia que estava per-
dendo o fôlego. A situação parecia insuportável para um
peixe jovem e ambicioso. Não conseguiam entender por
que os pássaros e os demais animais podem viver e res-
pirar na terra e o mesmo era impossível para os peixes.
Fixava o olhar invejoso na superfície da água por horas e
com certa inveja observava os pássaros com asas habili-
dosas cortando o ar. Finalmente um dia ousou e fez um
grande pedido ao próprio Júpiter.

– Senhor todo poderoso Júpiter – suplicou, dobrando


suas pequenas barbatanas em sinal de oração – nunca te
pedi nada. Hoje, pela primeira vez na minha vida, estou
suplicando por uma coisa: faça com que eu possa voar
como um pássaro no ar. Dê-me asas, Senhor!
SUMÁRIO
Júpiter cumpriu o pedido suplicante. De repente, o peixi-
nho notou que suas pequenas nadadeiras se ampliaram

194
e se alargaram até atingir o comprimento do seu corpo.
Contente, alargou suas novas nadadeiras - asas, e para
sua alegria indescritível - ascendeu no ar. Ah, que prazer
finalmente escapar da água terrível! O peixinho olhava
com orgulho para os pássaros que cruzavam seu cami-
nho. Não precisa mais invejá-los, porque agora posso
voar no ar tanto quanto eles!

Quando sentiu-se cansado, pousou em uma árvore. Fez


mais alguns círculos e, um pouco cansado, decidiu que
já havia voado o bastante pela primeira vez. Inebriado na
alegria, ele voltou para o rio.

Na água, o primeiro peixe voador do mundo olhava


com desprezo para seus antigos companheiros. Afinal,
nenhum deles podia voar! Portanto não falava com
ninguém, levantando orgulhosamente a boca. No dia
seguinte, subiu no ar novamente, mas naquele dia não
pode contar com tanta sorte quanto no dia anterior.
Porque de alguma forma, uma enorme ave de rapina o
avistou e o perseguiu até o deixar cansado. Caindo de
cansaço, finalmente encontrou abrigo na água que tanto
desprezava. Mas, aqui descobriu que também não estava
completamente seguro. Porque seus antigos inimigos
peixes, vendo-o exausto do voo, o atacavam mais feroz-
mente do que o normal, quando tinha que ficar cons-
tantemente atento.

A cada dia, o “peixe voador” se sentia mais infeliz e can-


sado. Enquanto voava, aves de rapina o perseguiam,
quando voltava para a água, seus eternos inimigos peixes,
dos quais não tinha força para defender-se, o atacavam.
SUMÁRIO
Finalmente, o peixinho decidiu-se e fez novamente um
pedido a Júpiter.

195
– Senhor todo poderoso Júpiter - tire minhas asas,
para eu não ficar atentado a flutuar no ar. Não me deixe
ser diferente de todos os meus irmãos. Desfaça o seu
presente, Senhor!

Houve silêncio por um tempo. De repente, bem pró-


ximo do seu ouvido, o peixe ouviu uma voz fraca,
embora poderosa:

– Saiba, peixe orgulhoso e insolente, que quando eu lhe


dei asas, sabia perfeitamente que se tornariam uma mal-
dição. Mas você mereceu essa lição porque não poderia
agradecer com o que era destinado para sua família.
Agora mantenha o que você pediu como punição!

E desde então, existem peixes voadores no mundo, que


ocasionalmente emergem da água e respiram da mesma
forma que todas as criaturas que vivem na terra.

SUMÁRIO

196
17
REI MATEUZINHO I
Na fábula Król Maciuś Pierwsyz (Rei Mateuzinho I), Korczak
tratou do parlamento infantil quando as crianças protagonizaram o
exercício da gestão democrática por meio da participação em assem-
bleias, brigadas e conselhos. Após a morte dos pais, Mateuzinho
se viu obrigado a governar um país com apenas 10 anos de idade.
Inicialmente sentiu-se acuado pelos parlamentares adultos, mas
mesmo criança, precisava enfrentá-los. Com ideias ousadas, enfren-
tara vários dilemas especialmente com o mundo adulto. O livro, tam-
bém conhecido como uma espécie de Peter Pan polonês destina-se
a um público de diferentes idades.

Para Rogoż (2013), Rei Mateuzinho I é a obra de Janusz


Korczak com mais reedições nos últimos anos, também adaptada
para filmes, séries e espetáculos televisivos, além de ser traduzido
para diversas línguas, como russo, alemão, francês, italiano, hebraico
e inglês. Desta obra, traduzimos alguns fragmentos:

Maciuś levantava sozinho as sete horas da manhã, se


levava, se vestia e limpava seus sapatos. Adquiriu esses
hábitos do seu bisavô, o valente Rei Paulo, o virtuoso.

Arrumado, Maciuś tomava um copo de óleo de bacalhau


e sentava-se para tomar o café, que não poderia demorar
mais do que dezesseis minutos, trinta e cinco segundos.
Esse era o tempo de refeição do grande avô de Maciuś, o
generoso Rei Juliusz Cnotliwy. Depois disso ele se diri-
gia ao trono da sala, onde regularmente fazia bastante
frio para atender os ministros. Na sala do trono, não
havia aquecimento porque a bisavó de Maciuś, a esperti-
nha Anna Nabożna, quando ainda criança quase morreu
asfixiada pelo calor da lareira, se salvando por pouco.
SUMÁRIO Depois do susto, por precaução, a lareira foi retirada e a
sala ficou sem aquecimento por todos esses anos.

198
Maciuś sentado no trono, sentindo frio até os dentes, via
os ministros se perguntarem: O que está acontecendo
com nosso país? Esse momento não era nada agradável
porque todas as notícias eram ruins.

O ministro das relações exteriores perguntava quem


estava a fim de se mexer e quem queria brigar com os
inimigos - Maciuś não entendia quase nada do que se
estava passando.

O ministro da guerra, contava quantas fortalezas foram


derrubadas, quantos canhões foram destruídos e quan-
tos soldados foram baleados.

O ministro dos transportes solicitava quais novas loco-


motivas deveriam ser compradas (Korczak, 2017, p. 7).

Diferente de um conto de fada, o livro não é somente desti-


nado às crianças, ainda que possa ser lido para elas, mas, destina-
-se aos mais diversos públicos e, por conta disso, talvez tenha seus
encantos particulares a partir do imaginário de cada leitor. Uma obra
que além de despertar nos adultos o olhar dos pequenos sobre o
mundo governando por soberbos, desperta nos adultos os sonhos,
as vontades e as curiosidades dos tempos de crianças que adorme-
ceram e, portanto, ficaram esquecidas.

Janusz Korczak demonstrava grande habilidade no manejo


das sensibilidades infantis, e por vezes, percebemos em seus escri-
tos, quando ele mesmo preferia acreditar nas fábulas ao invés de
se debater com as dificuldades do dia a dia, ou pelo menos, fazia
SUMÁRIO uso delas para tornar a realidade mais leve, a exemplo da peça
Dakghar, quando as perseguições dos nazistas se intensificavam.

199
O educador se aproveitou da literatura para dar às crianças oportuni-
dades de sonharem, mas também de refletir sobre as condições huma-
nas, ilustradas em alguma medida nas publicações de Mały Przegląd.

Anedotas e particularidades são descritas com bastante pre-


cisão por aqueles que passaram por Dom Sierot. Algumas delas são
trabalhadas pelo diretor Andrzej Wajda no filme Korczak, a exemplo
de quando uma criança tenta vender o seu dente de leite que ainda
não caiu para o doutor por 50 groszy (50 centavos).

O parlamento infantil, palco central em Rei Mateuzinho I tam-


bém é retratado pelo filme. Importante destacar que a obra possi-
bilitou a ascensão dos direitos das crianças e assim contribuiu na
ideia das crianças como sujeitos de direito durante o século XX12.
“Não há crianças, há pessoas” - era uma frase recorrente do edu-
cador ao afirmar que as crianças eram mais do que crianças, elas
eram antes de mais nada seres humanos e só por isso, mereciam
ser tratadas como tal.

SUMÁRIO 12 Declaração de Genebra (1924); Declaração dos Direitos da Criança (1959); Convenção Internacional
sobre os Direitos da Criança (1989). No Brasil, temos a Constituição Federal Brasileira (1988); o
Estatuto da Criança e do Adolescente (1990) e a Lei 11.525 (2007).

200
18
A INFÂNCIA
DE HENRYK GOLDSZMIT
O pai, nascido em Lublin, na região leste e a mãe em Kalisz,
do outro lado da capital; ambos quando jovens, foram morar em
Varsóvia para estudar e tentar uma carreira profissional. Os pais de
Janusz se conheceram em Varsóvia, onde seus filhos nasceram e
viveram em um prédio que não existe mais na rua Bielańska, perto
da rua Długa. Janusz Korczak ou Henryk Goldszmit conforme consta
em sua certidão de nascimento, sempre usou duas datas para com-
provar sua idade porque como já mencionamos nem seu pai tinha
certeza se ele havia nascido em 22 de julho de 1878 ou 1879.

Como consta em alguns de seus escritos, a exemplo de “Rei


Mateuzinho I”, o menino Henryk teve uma infância bastante solitá-
ria e os livros foram seu refúgio, onde ele pôde encontrar e procriar
suas ideias e entre elas, uma reflexão sobre a não demonstração e
a falta de afeto, despertando desde muito cedo uma preocupação
com as crianças de rua, justamente por elas também desconhece-
rem os laços afetivos intrafamiliares. Desta sua preocupação, bus-
cou desenvolver uma filosofia de educação, pautada nos escritos de
Jean Jacques Rousseau e Johann Heinrich Pestalozzi em que subli-
nhava a atenção para com os pequeninos, dando especial atenção
aos afetos e emoções.

Henryk não era um menino próximo do seu pai, acreditava


que ele se preocupava apenas em garantir o provimento dos bens
materiais, mas negligenciava o relacionamento íntimo com a família,
especialmente na questão do apoio emocional e espiritual. Henryk
estava com onze anos quando acompanhou pela primeira vez seu
pai a um hospital psiquiátrico. Depois de alguns anos, escrevera em
seu diário: “Fiquei apavorado com o hospital doido, ao qual meu pai
foi encaminhado várias vezes. Então, eu sou filho de um louco? Eu
tenho uma carga genética hereditária relacionada à loucura? Várias
SUMÁRIO décadas se passaram e até agora, esse pensamento me incomoda”
(KORCZAK, 1958, p. 82).

202
Em 1896, após a morte do pai, consequentemente perdeu o
conforto material da casa em que vivia. Korczak junto com sua mãe e
irmã precisaram se mudar para uma casa mais simples. O jovem que
gostava de literatura desde cedo, começou a trabalhar como profes-
sor, dando aulas de reforço para as crianças que precisavam. Aos 20
anos, ingressou na escola de medicina da Universidade de Varsóvia.
Korczak frequentou a escola polonesa, num período em que a cidade
de Varsóvia se encontrava sob o domínio da Monarquia Russa. A
língua russa era forçosamente ensinada nas escolas públicas, era
também a língua das repartições públicas, dos escritórios, da polícia
e do exército. Em 1901, resultante do seu olhar sensível para com as
crianças de rua, Korczak publicou seu livro de estreia “As crianças de
rua” (tradução nossa).

Em contrapartida, o menino Henryk era muito próximo da sua


mãe, cuja memória se estendia desde a infância quando caminhava
de mãos dadas com ela no Parque Saski, um jardim não muito longe
da sua casa, na região central de Varsóvia. Filho de uma mãe pro-
gressista, Korczak nutria imenso amor pela mãe, que depois de ficar
viúva e com pouco dinheiro abriu sua casa para receber alunos das
escolas públicas e privadas, onde anunciou que além de hospedar
os estudantes, ajudaria nas lições e deveres de casa. Korczak viveu
muitos anos com sua mãe. A morte dela, em 1920, foi um grande
martírio para ele porque sentia-se culpado pela sua morte. Sua mãe
Cycilia, fora infectada pelo tifo, doença que Korczak trouxe do perí-
odo em que esteve em confronto com os bolcheviques (1919-1920).
Ao retornar para casa doente, a mãe com o intuito de cuidar do filho,
contraiu a doença e não resistiu.

Durante o curso de medicina, trabalhou como pediatra no


Hospital Infantil Bersonów e Baumanów, onde se mostrava empático
SUMÁRIO com seus alunos e com as crianças hospitalizadas, demonstrando
que a sensibilidade humana era necessária para se conectar com as
pessoas, especialmente com aquelas que se encontravam em situa-
ções de fragilidade.

203
Figura 10 - Hospital Infantil Bersohn e Bauman.

Fonte: Nawroski, 2019.

Desta empatia para com as crianças e preocupado com


a saúde delas, o doutor Korczak advertiu em 1926, já no primeiro
número de Mały przegląd um artigo sobre a epidemia da escarla-
tina, como podemos ver:

Escarlatina

A escarlatina é uma doença que os adultos raramente


contraem, mas as crianças sim. A doença pode ser leve
ou fatal. Nos hospitais, em Varsóvia, há quase 1000
crianças que têm escarlatina e em casa provavelmente
muito mais. A escarlatina é uma doença contagiosa e se
muitas pessoas contraem uma doença contagiosa ime-
SUMÁRIO diatamente, se fala em epidemia. Agora temos a epide-
mia da escarlatina e se escreve nos jornais o que tem que
se fazer para não ficar doente e nem contrair a doença.

204
Não queremos discutir nos primeiros números com os
jornais para adultos, só vamos fazer algumas referên-
cias sobre o que eles publicam. Sim, as vacinas são muito
importantes, também é importante manter as mãos lim-
pas, lavar as mãos ao sair da escola ou ao voltar da rua ou
do passeio; é importante enxaguar a boca e escovar os
dentes; é importante limpar cuidadosamente o nariz. É
importante não pegar nada do chão, na rua ou no jardim
- e não pôr as coisas desnecessárias na boca. Os estudio-
sos provaram que um homem com fome fica infectado e
doente mais facilmente, e nas escolas há muitas crianças
com fome. Ninguém se preocupa com a alimentação das
crianças que têm fome. Estudiosos provaram também
que o homem necessita de ar fresco e em muitas escolas é
muito apertado, poucas janelas e mesmo no intervalo não
há lugar para brincarem. - E mesmo se o dia for muito
bonito não se vê excursões e passeios. - Ninguém diz para
fazer mais passeios e menos trabalhos durante a epide-
mia. O homem feliz e contente está mais imune à peste,
mas quem só se aborrece, pode ficar doente mais cedo.
Então deve haver mais entretenimento e lazer agora. Por-
que as crianças sempre devem estar alegres e ainda mais
quando há epidemia. - Sobre isso, os jornais para adultos
esquecem de escrever, então, o nosso dever é lembrá-los.

Korczak foi um incentivador das crianças como sujeitos


de direitos, sobretudo da educação e saúde, e da propagação do
conceito de infância em tempos de guerras. Em Rei Mateuzinho I
trouxe à tona os direitos das crianças e adolescentes, especialmente
ao mostrar que as crianças pensam e por só isso já merecem ser
SUMÁRIO ouvidas. Em tempos de Guerras, tentou trazer por meio da litera-
tura, do teatro e da escrita a esperança ou o “ato de esperançar”
para que os sonhos das crianças não morressem. O menino Henryk
Goldszmit, desde muito pequeno, foi um assíduo leitor, (talvez para

205
amenizar a ausência do pai), leu Fausto de Goethe, Victor Hugo,
Henryk Sienkiewicz e Karol Marx – de quem tomou a categoria
proletários para nomear seus pupilos de pequenos proletários de
Varsóvia (NAWROSKI, 2019).

A ascendência judia de Korczak não lhe privou de fazer da


língua polonesa, a sua língua, como a principal dos seus escritos.
Contudo, suas ações pedagógicas se dividiam de um lado com as
crianças judias atendidas pelo Dom Sierot, sob a administração de
Stefania Wilczynska e de outro, as crianças polonesas atendidas pelo
Nasz Dom administrado por Maryna Falska.

Em muitas passagens do jornal Mały Przegląd, criticou a sis-


tematização da organização das escolas e a ação de alguns profes-
sores e rabinos, tomando como experiencia a sua própria vivência de
aluno na escola primária, onde compreendeu que eram desumanos
os castigos aplicados pela escola, sobretudo aqueles que viu na sua
primeira passagem pela instituição. Das vivencias e sobrevivências
nas guerras, tornou sensível a luta pelo direito das crianças, especial-
mente aquelas, vítimas das catástrofes, suprindo minimamente as
faltas (dos pais, irmãos, avós, escolas, professores, casa, amigos, ani-
mais e vizinhos). Em meio as faltas, as organizações de Dom Sierot
e Nasz Dom, juntamente com Stefania Wilczyńska, Maryna Falska e
Maria Podwysocka procuravam de alguma forma estarem atentas
às crianças que de tudo precisavam, e entre estas atenções, o jornal
Mały Przegląd foi um instrumento pedagógico de atenção, escuta,
leitura e escrita. Hoje, o jornal nos mostra como as crianças, em sua
maioria judias, viam o mundo no período entreguerras.

O jornal Mały Przegląd serviu de material auxiliar às escolas, de


leitura, de politização e sobretudo da conscientização social sobre os
problemas sociais que as crianças enfrentavam no período entreguerras.
SUMÁRIO Durante a leitura das cartas, podemos ver com o passar dos anos,
a complexidade dos conteúdos emitidos nas cartas. Se inicialmente
as cartas eram mais curtas e, postadas com mais intensidade dos

206
arredores de Varsóvia, com o passar do tempo, os rementes se tor-
navam mais distantes, com cartas da Australia, México, Brasil, China,
Uruguai, Bolívia, Palestina, além de outros países da Europa, o que
também demonstra uma grande onda de emigração. A paz em tem-
pos de guerras era almejada, e assim a cada novo número do jornal
Mały Przegląd, mais leitores e cartas eram acumuladas, recheadas
de alegrias, tristezas, angústias, sonhos e medos, mas que, ao serem
publicadas, regozijavam seus autores.

Figura 11 - Janusz Korczak (o quarto de cima pra baixo) entre os tutores


da Colônia de Férias Wilhelmówska para crianças polonesas.

Fonte: Museu de Varsóvia, 1908.

SUMÁRIO

207
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SUMÁRIO

209
JORNAIS
Pamietnik sieroty. Nr. 277. 9.X.1926

Pamietnik sieroty. Nr. 283. 15.X.1926.

Pamietnik sieroty. Nr. 290. 29.X.1926.

Pierwsza Poczta. Nr. 277, 2.X.1926

List z Warszawy i trzy listy z Brazylii. Nr.332. 2.XII.1926.

Sławne dzieci. Nr.332. 2.XII.1926..

Miesąc Sieroty. Nr.63. 4.III.1927.

Wiosna. Nr. 98. 8.IV.1927.

Z życia psów. Nr. 143. 27.V.1927.

Pożegnanie. Nr. 179. 1.VII.1927.

Rzeczy o które ludzie pytają. Nr. 5. 11.I.1928

Tel-Awiw. Nr 109. 06.VIII.1928.

Moje Pamiętniki. Nr. 4. 11.VIII.1928.

Prima Aprilis. Nr. 88. 29.III.1929.

Nocna Wycieczka. Nr.312. 15.X1.1929.

Z Warszawy do Mexika. Nr. 94. 4.IV.1930.

Pierwszy dzien szkolny. Nr. 262. 19.IX.1930.

Brazylia. Nr. 146. 29.V.1931

Sprzedawcy uliczni. Nr. 132. 15.05.1931.


SUMÁRIO Kartki z pamietnika. Nr. 132. 15.05.1931.

Okręt. Nr. 92.1.IV. 1932.

210
Salmon. Pojmanie Belzebura. Nr. 188. 8.VII. 1932

Rodzice a my. Nr. 27. 27.I.1933.

Pierwszy śnieg. R.8, nr 1. 6.I.1933.

Nauczyciel. Nr. 19. I. 1934.

O prawo do nauki. Nr.33. 2.II.1934.

Jaśmin. Nr.253. 6.IX. 1935.

Owoce. Nr 23. 14.VI. 1935

LIDO. Nr. 176. 21.VII.1935

Egzotyka. Nr. 239. 23.VIII.1935.

Konduktorski but. Nr 286. 11. X. 1935.

Historja jednej Zlotowki. Nr. 194. 3.VI.1936

Tydzień L.O.P.P. Nr. 42. 15.X.1937

Powrót wojska. Nr. 42. 15.X.1937

11-ty listopada w Edinburgu. 364. 24.XII.1937.

Nieprawda, ze dawniej było lepiej. Nr. 49. 18.II.1937.

Czarodziejskie pudełko. Nr. 182 1.VI.1938.

Trzeba pracować. Nr.35, 2. IX. 1938

Kubel Zimnej wody dla Dyci z Zamościa. Nr. 3.II. 1939.

Dzieci o przyjaźni. Nr. 55. 24.II. 1939

Latająca ryba. Nr. 34. 25.VIII. 1939

Niedziela w Paryzu. Nr. 223. 11.VIII. 1939.


SUMÁRIO
Mój zwykły dzień Setni. Nr. 244. 1. IX. 1939.

211
ÍNDICE REMISSIVO
A experiências 31, 48
amizade 57, 58, 88, 119, 189 F
antissemitismo 65, 142 fábulas 14, 38, 109, 179, 199
arte 64 Falska 19, 20, 21, 25, 87, 88, 206
C família 16, 20, 26, 48, 102, 106, 165, 166, 171, 196, 202
cartas 13, 14, 15, 38, 48, 49, 51, 54, 58, 79, 80, 103, 137, 142, 143, felicidade 42, 45, 79, 83, 184
144, 151, 189, 206, 207
G
comportamento 97
guerra 18, 21, 50, 87, 94, 107, 108, 176, 199
conflitos 34
Gueto de Varsóvia 24, 63, 82
crianças 12, 13, 14, 15, 16, 17, 19, 20, 21, 24, 25, 26, 27, 30, 31, 32, 33,
34, 35, 47, 48, 49, 51, 54, 58, 63, 64, 65, 66, 68, 69, H
74, 75, 79, 80, 85, 87, 88, 95, 96, 97, 99, 100, 102, histórias 19, 27, 59
104, 106, 108, 109, 110, 112, 114, 116, 117, 118, 122, 126, honra 67, 72
132, 135, 142, 143, 145, 158, 159, 160, 171, 179, 189,
198, 199, 200, 202, 203, 204, 205, 206, 207 humanidade 84
Czar 18, 87 I
D independência 19, 21, 32
diários 29, 30, 31, 34, 38, 44, 64 infância 16, 117, 159, 201, 202, 203, 205
direitos 19, 68, 117, 200, 205 inocência 16
intelectuais 13
E
educação 13, 16, 19, 20, 21, 25, 26, 34, 62, 63, 87, 88, 114, 127, 128, J
137, 138, 202, 205, 209 judeus 13, 30, 48, 54, 65, 67, 68, 74, 93, 133, 147, 156, 166
emigração 141 justiça 19, 64, 65
ensino 133, 209 L
entreguerras 12, 13, 14, 16, 26, 108, 206 liberdade 25, 34, 119, 150, 175, 176, 183
esperança 37, 38, 78, 79, 205 literatura 26, 31, 32, 179, 200, 203, 205
Estrela de Davi 24, 88 M
estudantes 12, 13, 43, 59, 77, 128, 132, 137, 140, 173, 175, 203 mulher 21, 26, 27, 113, 148
SUMÁRIO

212
O revolução 18
orfanato 16, 24, 25, 26, 27, 33, 58, 63, 64, 68, 69, 74, 88, S
100, 101, 102, 104
Segunda Guerra Mundial 173
órfãos 94
silêncio 83, 84, 120, 167, 168, 175, 176, 182, 196
P soldados 24, 176, 177, 199
paz 120, 169, 173, 175, 176, 177, 191, 207 solidariedade 68
pedagogia 208 sonhos 14, 128, 182, 183, 186, 199, 205, 207
pedagógica 13, 14, 25, 32, 88, 209
V
pobreza 104
Varsóvia 12, 13, 15, 16, 18, 19, 20, 21, 24, 25, 26, 27, 31, 32, 42, 48,
Polônia 13, 15, 16, 17, 18, 19, 21, 26, 47, 68, 72, 108, 130, 132, 133, 50, 51, 52, 53, 54, 60, 62, 63, 67, 72, 74, 79, 82, 85,
156, 157, 163, 173 87, 88, 96, 98, 99, 100, 126, 133, 139, 142, 143, 147,
professores 20, 48, 63, 126, 131, 134, 135, 137, 138, 143, 176, 206 148, 154, 156, 157, 173, 202, 203, 204, 206, 207, 209
progresso 114 vida 14, 18, 20, 21, 26, 30, 31, 32, 34, 36, 38, 42, 54, 68, 87, 90, 95,
psicologia 116 99, 102, 107, 108, 116, 117, 120, 138, 146, 165, 167, 169,
185, 189, 190, 194
R
violência 18
refugiados 17, 18
república 21, 47

SUMÁRIO

213

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