Representações de Alunos, Familiares e Professores Sobre Os Conflitos Escolares
Representações de Alunos, Familiares e Professores Sobre Os Conflitos Escolares
Representações de Alunos, Familiares e Professores Sobre Os Conflitos Escolares
CONVIVÊNCIAS ESCOLARES:
FRANCINE SCHEFFLER
Convivências Escolares:
FICHA CATALOGRÁFICA
Francine Scheffler
CONVIVÊNCIAS ESCOLARES:
Resultado: Aprovada
BANCA EXAMINADORA:
Fernando Seffner
AGRADECIMENTOS
Agradeço à UFRGS e sua educação pública e de qualidade. Por abrir meus olhos e me
despertar para novos caminhos. Agradeço ao PPG em Segurança Cidadã, que com esforços
enormes de seus professores vem se mantendo em funcionamento.
Agradeço a todas as mulheres deste mundo que vieram antes de mim e lutaram para que
outras mulheres pudessem ser livres. Sem as lutas feministas, uma mulher, mãe, recém- parida,
jamais poderia sonhar com uma volta à Universidade para estudar. Foram tantas mulheres ao
longo da história da Humanidade que não me arrisco a citar.
Agradeço às mulheres do meu entorno. Minha orientadora Rochele, que possui uma
dose perfeita de presença e liberdade de escrita. É um exemplo de orientação que levo para a
vida.
Agradeço às duas grandes mulheres da minha vida: Fabi e mãe. Vocês sabem que são
meus amores eternos.
Agradeço às minhas amigas, que de longe ou de perto sempre torceram por mim. A cada
uma com quem me identifico e com quem divido angústias e alegrias. Mali, Lu, Sue, Leina,
Letícia, Lu Lauda, Karine, Patrícia, Fabiana, Roberta, Janaína. Vocês me fazem mais forte!
Agradeço à minha filha Elis, que veio a esse mundo quando as implantações de políticas
neoliberais à educação da Rede Municipal estavam em seu auge. Foram tantas vezes que a
peguei no colo e chorei... tão pequena... E já me acalentava sem saber... Me dava forças sem
nem entender o que estava acontecendo a sua volta... Obrigada filha por existir! Que este
trabalho, que nos privou de estarmos juntas muitas vezes, contribua para que as pautas
democráticas avancem e que teu mundo seja um pouco melhor!
Agradeço a todos os homens sensíveis às causas feministas, que no íntimo das suas vidas
cotidianas abrem espaços para que as mulheres que estão ao seu entorno realizem seus sonhos.
Dentre esses homens, Wagner, pai da minha filha e um grande companheiro, que sempre dividiu
todos os cuidados com ela para que eu pudesse estudar ou escrever. Dizem
viii
que aprendemos mais por ações do que por palavras, então, saibas que ensinas lindas lições a
ela!
Agradeço aos meus colegas de trabalho que no dia a dia das escolas públicas continuam
resistindo e lutando por um mundo melhor. Que bom poder compartilhar nossa caminhada!
Enfim, agradeço a todos que, de uma forma ou outra, me auxiliaram neste trabalho.
RESUMO
Esta dissertação trata das percepções que pais, alunos e professores têm das convivências
escolares que ocorrem numa escola da Rede Municipal de Porto Alegre. Entendemos o conceito
de convivências escolares como aquele que abarca as conflitualidades e as violências integrantes
do processo pedagógico e encara a escola como o espaço propício para a formação do ser
humano enquanto ser social e coletivo. O objetivo deste trabalho é analisar as representações
sociais que professores, alunos e pais têm sobre as conflitualidades que ocorrem no âmbito das
convivências escolares, bem como compreender os fatores e situações que desencadeiam
conflitualidades e as soluções propostas pelos sujeitos que participaram da pesquisa. A
abordagem teórico-analítica deste trabalho insere-se na perspectiva da sociologia da
conflitualidade e das representações sociais. O estudo possibilitou verificar que os conflitos
presentes na escola, em sua grande maioria, acontecem por falta de espaços de diálogo e
compreensão do ponto de vista do outro. Além disso, os que frequentam a instituição escolar
ainda acreditam e defendem uma postura punitiva como solução dos conflitos.
This dissertation deals with the perceptions that parents, students and teachers have about school
experiences that occur in a school in the Municipal Network of Porto Alegre. We understand
the concept of school coexistence as one that embraces the conflicts and violence that are part
of the pedagogical process and sees the school as the propitious space for the formation of the
human being as a social and collective being. The objective of this work is to analyze the social
representations that teachers, students and parents have about the conflicts that occur in the
context of school life, as well as to understand the factors and situations that trigger conflicts
and the solutions proposed by the individuals who participated in the research. The theoretical-
analytical approach of this work is inserted in the perspective of the sociology of conflict and
social representations. The study made it possible to verify that the conflicts present at school,
for the most part, happen due to the lack of spaces for dialogue and understanding from the
other's point of view. In addition, those who attend the school still believe and defend a punitive
stance as a solution to conflicts.
LISTA DE TABELAS
1 INTRODUÇÃO....................................................................................................................15
1 INTRODUÇÃO
Para poder responder a essas perguntas, partimos da premissa de que a escola, por sisó,
é uma instituição cultural. A sua origem está inserida na função de transmitir
16
Esse imaginário baseado numa ideia de progresso é o que embasa o pensamento sobre
cultura escolar hoje. Tal concepção escolhe e determina modelos e práticas educacionais e está
assentada sobre a ideia de igualdade e do direito à educação para todos e todas. Porém, essa
perspectiva guarda em si uma visão homogênea dos sujeitos que fazem parte da escola. Os que
são considerados ‘outros’, excluídos, minorias, os que se posicionam diferente rebateriam essa
lógica e a colocariam em xeque, levantando conflitos, criando tensões e legitimando o mal-estar
de que tantos educadores e estudantes se queixam.
Nessa perspectiva, a escola deixa de ser uma transmissora de cultura para tornar-se
uma arena de conflito de diferentes culturas. (MOREIRA; CANDAU, 2003). Esta é uma visão
progressista, que permite que as escolas não silenciem seus diversos atores, e sim abramespaços
para o diálogo nas diversidades, possibilitando a acomodação das pluralidades e das diferenças,
não mais tendendo a silenciá-las ou neutralizá-las. Desloca-se a perspectiva de uma educação
transmissora de valores para uma educação construtora de valores.
análise proposto não pretende investigar o que é conflito ou tipificá-lo, e sim compreender o
que pensam os atores sociais sobre os conflitos escolares. Para essa tarefa, utilizamo-nos da
abordagem das representações sociais, surgida na psicologia e, em seguida, aplicada na
sociologia e em outras áreas.
Partimos do pressuposto de que o conflito faz parte das relações sociais da escola,
portanto, é elemento integrante das convivências escolares. Nossa proposta é entender o que os
atores sociais julgam serem relações conflituosas, como se posicionam perante essas
conflitualidades e como resolvem ou não tais situações. O foco principal é abordar as
conflitualidades pela perspectiva de que estas fazem parte das convivências escolares, numa
tentativa de ofertar mais um olhar. Utilizamos o conceito de convivências escolares como
fenômenos que abarcam todas as relações sociais que se estabelecem no espaço escolar e
verificamos como os atores as entendem, descobrindo quais são as representações que estes têm
dos fenômenos conflitivos.
Pesquisar as representações sociais dos atores que estão diariamente na escola a respeito
de como entendem as conflitualidades que fazem parte da convivência naquele ambiente e abrir
um espaço de compreensão dessas percepções permite um entendimento aprofundado da
realidade. Ao buscarmos esse entendimento, podemos apreender como e por que ocorrem
interações consideradas conflituosas, quando essas relações acabam desencadeando violências,
em que momento se dá vazão para que esses conflitos sejam colocados numa roda de conversa,
quando são silenciados ou quando são encaminhados a outras esferas para além da escola.
A abordagem da sociologia das conflitualidades auxilia nesse pensar, pois defende que,
devido aos processos de mundialização da sociedade e da economia global, há transformações
nas formas de viver em todo o planeta e, consequentemente, novas formas de conflitos, frutos
de lutas sociais e identitárias. (TAVARES DOS SANTOS; TEIXEIRA; RUSSO, 2011). É uma
abordagem que ressignifica o sentido social do conflito e o expande, retirando a conotação
negativa do termo e a sensação de que deveria ser superado ou silenciado. O conflito é visto
como fundamental para colocar em diálogo as diversidades que começam a se apresentar em
maior volume nas escolas quando esta começa a receber todas as classes sociais. Para os autores
dessa abordagem, quando a conflitualidade não encontra espaço, a violência é a resposta.
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Assim, neste trabalho, os conflitos são entendidos como partes integrantes das
convivências escolares. Defendemos que eles têm centralidade nas convivências escolares, pois
representam o espaço do diálogo entre os diferentes e a possibilidade do avanço das pautas
democráticas dentro da instituição escolar, já que, ao se dar um ‘zoom’ no dia a dia de uma
escola, percebe-se que há muitos atravessamentos de conceitos nos imaginários daqueles que
estão inseridos na cotidianidade. Situações vistas como violências hoje talvez sejam
conflitualidades que ainda não receberam a devida atenção por parte dos atores sociais.
Os alunos, em sua quase totalidade, são moradores desses blocos e vêm caminhando
para a escola, muitos acompanhados de seus pais ou outros familiares. Já os professores vêm de
diversas partes da cidade e muitos de municípios vizinhos, como Alvorada e Canoas, em
locomoção própria ou de ônibus. A região é abastecida pelas linhas municipais T6, Rubem
Berta/Cairú, Rubem Berta/Sertório, Rubem Berta/Protásio Alves e algumas linhas de lotação,
o que facilita a acessibilidade até a escola.
Partindo das diferentes perspectivas de vida que os atores sociais possuem, a questão
específica que norteou este trabalho é quais são as representações sociais que professores,
alunos e pais têm sobre as conflitualidades que ocorrem nas relações estabelecidas na esfera
escolar? Como perguntas secundárias, elegemos: quais fatores e situações desencadeiam as
conflitualidades na opinião desses atores sociais? Há espaço para a valorização das diferenças
ou estas são silenciadas quando as conflitualidades ocorrem? Como esses processos de diálogos
ou silenciamentos acontecem?
20
Muito se fala nos jornais, editoriais e na mídia em geral sobre a questão da violência nas
escolas. É um tema global, que vem despertando interesse não só do mundo científico, mas
também da sociedade em geral, forçando o surgimento de políticas públicas e gerando, muitas
vezes, observações apressadas e conclusões precipitadas. Os discursos sobre o que deve ser e
o que deve acontecer na escola estão em disputa nos dias de hoje. Há desde pessoas que
defendem a ‘escola sem partido’ até outras a favor da autonomia da mesma, alegando que ela
nunca é neutra, entre tantos outros discursos presentes. Além disso, há todo um imaginário social
sobre para que e a quem ela deveria servir.
diagnósticos. Sabemos qual escola tem a melhor nota, mas não sabemos absolutamente nada
sobre o clima escolar dentro dessas escolas.” (KIANEK; ROMANI, 20191).
Abordar os conflitos pela perspectiva das convivências escolares é uma forma de tratar
do assunto sem pré-julgamentos, debatendo estudos que valorizem a percepção de seus
integrantes e dando voz àqueles que convivem diariamente por tantas horas. As pesquisas têm
focado seus esforços no mapeamento das violências, possivelmente pelo fato de esse fenômeno
representar um rompimento da concepção de escola como um espaço de formação e
desenvolvimento humano. (CAMACHO, 2001; ABRAMOVAY, 2002; LEME, 2008). O uso
do conceito de representações sociais permite que possamos ampliar a compreensão desses
fenômenos, abordando-os através do olhar dos envolvidos.
Neste trabalho, o relevante é dar visibilidade aos sujeitos que participam do processo
escolar, às suas experiências individuais confrontadas com suas vivências coletivas, por meio
das falas de famílias, professores e alunos. Portanto, a importância deste trabalho reside na
possibilidade de um olhar subjetivo, de se entender como se dão as percepções sobre as
conflitualidades, as resoluções que se encontram e se tais respostas satisfazem aos diferentes
atores sociais.
1
Entrevista disponível no endereço: https://veja.abril.com.br/brasil/lider-na-agressao-de-professores-brasil-
convive-com-violencia-nas-escolas/.
22
1.3 OBJETIVOS
1.4 HIPÓTESES
As hipóteses deste trabalho baseiam-se nas concepções trazidas pela sociologia das
conflitualidades, em que o conflito social é entendido como um processo de disputas de
diferentes pontos de vista que modelam processos e regras, gerando vínculos sociais e novos
pontos de vista. (TAVARES DOS SANTOS apud VISCARDI; ALONSO, 2013). Desse modo,
dispomos das seguintes hipóteses:
As representações que os atores sociais têm sobre o ambiente escolar, sobre si,
sobre seus pares e sobre outros agentes que dividem o espaço escolar estão
colocadas sob a égide da violência, ou seja, os fatos conflituosos que ocorrem na
escola são compreendidos como violências.
Os conflitos são silenciados e/ou controlados pelos atores sociais, havendo
poucos espaços adequados para que as conflitualidades sejam discutidas.
Os atores sociais – pais, alunos e professores – esperam ações punitivas para a
resolução das conflitualidades que ocorrem no âmbito das convivências
escolares.
23
O trabalho foi realizado a partir de um estudo de caso em uma escola da rede municipal
de Porto Alegre. A opção pela instituição deu-se pelo motivo da inserção da pesquisadora como
professora na mesma, o que ampliava as possibilidades de coleta de dados e atendia aos
interesses do Mestrado Profissional em Segurança Cidadã, gerando novas perspectivas para o
campo de atuação profissional.
Conforme André (1984), um estudo de caso tem características próprias, pois dialoga
com aspectos não previstos e dimensões que não foram vistas a priori, ou seja, o entendimento
sobre o objeto vem dos dados coletados e em função deles. O estudo de caso privilegia o
contexto, o ponto de vista dos entrevistados e suas representações e precisa de uma variedade
de fontes de informação, retratando a realidade de forma mais aprofundada e revelando
múltiplas dimensões de um mesmo objeto.
Muito provavelmente o grupo ouvido não representa uma maioria, e este estudo não
pretende ter validade quantitativa. A sua riqueza se estabelece na tentativa de configurar
algumas de suas vozes que nos ofereçam novas perspectivas. Segundo Mosquera e Stobäus
(2001, p. 97), “frequentemente nos custa muito parar para ouvir os outros, estamos muito mais
preocupados em que nos ouçam, porém pouco dispostos a ouvir”. Este trabalho quis ocupar
esse lugar de escuta, quis possibilitar novos olhares, gerando ações menos censuradoras e
reflexões com mais (auto)críticas do que de costume.
2
Segundo Boni e Quaresma (2005), entrevistas semiestruturadas são aquelas realizadas mediante um
questionário estruturado, no qual as perguntas são previamente formuladas, tendo-se o cuidado de não fugir a
elas, porém respeitando o espaço de fala se outras questões surgirem. O pesquisador faz o movimento de sempre
voltar à pauta.
24
Essa situação complexifica-se ainda mais quando se desenvolvem análises dentro do seu
próprio local de trabalho, pois as posturas assumidas enquanto trabalhador(a) estarão, mesmo
que involuntariamente, ligadas a essa construção contínua da pesquisa. Esse fato faz com que
realizemos análises críticas constantes e repensemos formulações e ações enquanto vamos
atuando no nosso fazer laboral. É dar-se conta ‘no ato’; um processo de escuta e observação
constante de si e do entorno. São vozes que ecoam na cabeça o tempo todo, sinais imperceptíveis
que agora tomam uma nova dimensão durante a execução do trabalho. É desafiar-se a ver a
teoria na prática em modo constante. É tornar-se pesquisadora- trabalhadora.
E nesse desafio metodológico, como realizar os recortes? Como decidir o que ‘entra’ e
o que ‘sai’ na pesquisa? Há perguntas norteadoras, os objetivos e as hipóteses. Entretanto, como
fazer uma definição daquilo que é relevante quando se está ‘vendo tudo’ o tempo todo? Que
técnica metodológica utilizar? Entrevistas, grupo focal, diário de campo, questionários,
fotografias, descrições de cenas? Esse foi o maior desafio metodológico do trabalho. Estava
tudo a mão, o tempo todo. Em paralelo, dificuldades para reunir as pessoas, horários diferentes,
negociações para entrar em salas de aula durante o andamento dos dias letivos, complicações
para envolver as famílias que nem sempre tinham tempo e vontade disponíveis.
3
Alterno, nesse trecho, o uso da primeira pessoa do singular para formular uma narrativa fidedigna da minha
experiência metodológica como pesquisadora e trabalhadora em uma mesma instituição, construindo também,
nessa alternância, impressões muito individuais.
25
agradavam. Nesse caldeirão de informações, foi necessário recorrer a Bachelard (1977), que
nos lembra da importância da vigilância epistemológica. Precisava utilizar-me dela para fazer
uma vigilância de mim mesma. A vigilância como a “(...) consciência de um sujeito que tem
um objeto: e consciência tão clara que o sujeito e seu objeto se esclarecem ao mesmo tempo,
acasalando-se (...)”. (BACHELARD, 1977, p. 93).
Para realizar a gravação das entrevistas e dos grupos focais, utilizou-se um celular marca
Motorola, modelo Moto G6, versão PPSS29.55.37-7-6, e o aplicativo chamado Gravador de
Voz, baixado da loja Play Store e instalado no celular. O aplicativo salvou as
4
A Rede Municipal de Educação é ciclada, composta de três ciclos (A, B, C), cada um com duração de três
anos.
26
conversas em mp3, com a qualidade de 44 kHz, e estas foram depois transcritas para o programa
Microsoft Word.
Para conduzir as entrevistas, foram planejados sorteios antecipados com todos os alunos
presentes na lista de chamadas a partir do 3º ano do 2º ciclo. No entanto, como a escola enfrenta
um número significativo de evasões, infrequências e transferências, percebeu-se que esta não
seria a melhor forma, já que, muitas vezes, os alunos não estavam frequentando a escola ou não
traziam a autorização assinada pelos responsáveis para poder participar da pesquisa. Dessa
forma, optou-se por outra técnica: a pesquisadora ingressou no dia 10/10/19 (Tabela 1) em todas
as salas a partir do 3º ano do 2º ciclo – totalizando 12 turmas, tanto no turno da manhã como no
turno da tarde – explicando o que era um curso de pós-graduação, os procedimentos básicos e
a temática geral e os convidou a participar. Houve uma euforia, em alguns grupos, em querer
fazer parte da pesquisa, então limitou-se a dez autorizações por sala de aula para que os alunos
levassem para casa e solicitassem assinatura e ciência da família para participar dos grupos
focais ou entrevistas. Cada conjunto de alunos reagiu de um modo; uns mais participativos,
outros menos. Ao todo, foram entregues 107 autorizações para serem encaminhadas aos
responsáveis, contendo uma breve explicação de como o trabalho seria desenvolvido, conforme
apêndice A, e solicitando suas assinaturas.
Das 107 autorizações, retornaram 32 assinadas. A partir das autorizações que voltaram,
sorteamos quatro alunos e iniciamos o agendamento das entrevistas. Segundo Haguette (1997,
p. 50), a entrevista é um “(...) processo de interação social entre duas pessoas na qual uma delas,
o entrevistador, tem por objetivo a obtenção de informações por parte do outro, o entrevistado.”
Com esse foco, a primeira entrevista com os alunos ocorreu dia 18/10/2019, pela manhã; a
segunda entrevista, no mesmo dia, pelo período da tarde. A terceira aconteceu dia 25/10/2019,
pela manhã, e a última entrevista, dia 25/10/2019 pela tarde (Tabela 1).
No dia 16/10/2019 (Tabela 1), a pesquisadora fez uma breve fala na sala dos professores
explicando o caráter da pesquisa e tirando dúvidas dos docentes. Definiu-se que, para as
entrevistas, seriam sorteados três professores, um de cada ciclo, a partir da lista que se
encontrava na secretaria da escola.
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Após o convite a cada professor sorteado (sendo que todos haviam aceitado), as
entrevistas aconteceram no horário de almoço ou nas chamadas ‘janelas’, quando os docentes
não possuíam turmas a atender. As entrevistas aconteceram na sala dos professores, em uma
parte mais reservada. Algumas precisaram ser retomadas em outros momentos, ou aconteceram
em duas partes, para que todo o roteiro semiestruturado preestabelecido fosse cumprido. A
primeira entrevista aconteceu no dia 23/10/2019, a segunda, dia 30/10/2019 e a última, dia
06/11/2019 (Tabela 1).
A utilização de mais de uma técnica foi possível porque havia facilidade de acesso ao
campo e vontade da pesquisadora em ofertar mais momentos de interação. Como elucida
Bourdieu (1999), a escolha do método de pesquisa não deve ser rígida, e sim exigente; ou seja,
o pesquisador não necessita fazer uso de um único modo de captação de informações, mas, ao
serem aplicados, os procedimentos devem ter rigor (Tabela 2).
Os grupos focais ocorreram durante os períodos de aula, com o consentimento oral dos
professores responsáveis por aquele momento, que liberaram os alunos para sair de sala de aula.
O primeiro grupo foi formado pelos oito alunos, provenientes do turno da manhã, no dia
03/11/2019 (Tabela 1). O segundo grupo ocorreu dia 22/11/2019 (Tabela 1), do qual
participaram cinco jovens no período da tarde. Três estudantes estavam ausentes naquele dia e,
portanto, não participaram. Dirigimo-nos a uma sala de aula vazia, onde as discussões tiveram
duração de mais de uma hora e encerraram-se com a proximidade do fim do turno de aulas. Para
iniciar, depois de uma breve apresentação da pesquisadora, todos os alunos diziam seus nomes,
turma e idade e o roteiro era seguido, atentando-se ao cumprimento das perguntas-chave, porém,
ofertando-se espaços para que outras questões entrassem em jogo caso os alunos as trouxessem
como contribuição.
construído por Abramovay, Cunha e Calaf (2009), no livro “Revelando tramas, descobrindo
segredos; violência e convivência nas escolas”, sobre seus pesquisados – alunos e professores
da rede pública do Distrito Federal.
Uma das ferramentas utilizadas para a análise das respostas dos participantes às
perguntas da pesquisadora foi o software NVIVO, versão 12. Desse programa, o recurso
utilizado foi a opção “Contagem de palavras”, em que as falas em análise dos participantes são
copiadas e coladas em janelas que verificam as palavras mais recorrentes, ofertando, assim, as
palavras-chave dos assuntos abordados. Essa ferramenta possibilita uma análise mais dinâmica
de um volume grande de informações. Conforme Alves, Figueiredo Filho e Henrique (2015, p.
124),
É importante ressaltar que esses programas são facilitadores no processo
analítico dos dados e não substituem a responsabilidade do pesquisador na
interpretação substantiva dos resultados. Portanto, é uma ferramenta que
possibilita análises interessantes, mas não exime o pesquisador de criar suas
próprias análises para fazer um bom uso da ferramenta.
Essa ferramenta não foi usada em todos os trechos das transcrições dos grupos focais e
entrevistas, somente naqueles que a pesquisadora achou pertinente. Quando se tratava de
perguntas que abordavam o mesmo assunto para pais, alunos e professores, cabia verificar as
palavras-chave de cada segmento sobre determinada temática.
(Tabela 3). A construção dessas dimensões baseou-se no trabalho de Melo (2015), que criou
dimensões para avaliar o clima escolar em escolas públicas de São Paulo.
Além de servirem de guia para a coleta dos dados, as dimensões também foram
utilizadas para organizar as informações e compuseram o capítulo 4, em que são analisadas as
respostas dos participantes a respeito de cada dimensão.
34
Para este trabalho, defendemos que os conflitos fazem parte das relações humanas, são
saudáveis e fundamentais para a existência democrática entre os sujeitos. Acreditamos que um
conflito não resolvido pode gerar ações violentas como discriminações, ameaças, vandalismos,
entre outras. Olhar de forma mais ampla os fenômenos, entendendo-os como parte das
convivências escolares, possibilita-nos defender que a escola é capaz de prevenir alguns tipos
de violências desencadeadas pelas conflitualidades mal resolvidas, já que é um fenômeno
construído socialmente e, portanto, capaz de ser evitado através do diálogo.
Sabemos que a escola sozinha não consegue modificar problemas estruturais que
transpassam as paredes escolares, mas cremos que ela pode desenvolver um olhar menos
condenatório e mais democrático sobre os acontecimentos. Nessa linha de raciocínio,
aprofundamo-nos em três conceitos teóricos importantes, que geraram três subcapítulos: o
conceito das violências escolares, dos conflitos escolares e, por fim, das convivências escolares.
5
Segundo Breda (2016), o ensino brasileiro tornou-se obrigatório na Constituição de 1934, através do artigo
150, alínea a. Entretanto, a lei não previa como ser implementada essa obrigatoriedade, nem indicava a idade
escolar ou a série. Em 1967, então, a lei fixou a faixa etária de 7 a 14 anos como a idade escolar obrigatória;
em 2005, a idade de 6 a 14 anos, e, em 2009, a idade de 4 a 14 anos. “Os índices de frequência em instituições
escolares nas três últimas décadas do século XX para as crianças entre cinco e nove anos de idade eram de 44%
em 1980, 62% em 1990 e 85% em 2000” (p. 13). Portanto, foi entre a década de 80 e os anos 2000 que grande
parte da população brasileira começou a ter acesso ao ensino fundamental público pela primeira vez.
36
Para o autor, não há fronteiras definidas entre violências físicas e violências simbólicas.
As violências estariam difusas (TAVARES DOS SANTOS, 2004), ou seja, em todos os lugares,
presentes de várias formas, ampliando o conceito ao extremo, abarcando as violências
simbólicas, as violências brutas e as sensações de insegurança. A vida cotidiana estaria baseada
nesses tipos de violência, que “abarca (...) uma inter-relação entre mal-estar, violência simbólica
e sentimento de insegurança.” (TAVARES DOS SANTOS, 2002, p. 22). Todas as mudanças
que a sociedade está vivendo, apontadas pelo autor, não poupam nenhum espaço social, estando
a instituição escolar também exposta às transformações. Para exemplificar, determinado
palavrão pode ser considerado um ato violento em sala de aula, enquanto no campo de futebol,
não. Da mesma forma, podem-se aceitar certos palavrões entre colegas de aula, mas condená-
los quando dirigidos a professores. Defendemos que o espaço escolar possui singularidades
culturais que atuam sobre as representações que os sujeitos têm das violências, causando
sensações diferentes entre os agentes sociais.
Sposito (2001) explica que a violência escolar apresenta uma variedade de conceitos, o
que dificulta definir o que pode ser considerado violência e o que seria indisciplina. Para
explicar o que ocorre nas escolas brasileiras, a autora prefere utilizar o conceito de incivilidades.
As incivilidades abordam as pequenas violências cotidianas, que acabam não sendo registradas
e, muitas vezes, nem notadas. Algumas não são nem consideradas, por consenso, como
violências: os apelidos jocosos, as pequenas ameaças, as algazarras e os barulhos que perturbam
a ordem pública, por exemplo. Essas microviolências seriam as causadoras de rupturas da boa
convivência nos locais públicos. Ou seja, ocorreriam quando se faz um mau uso do espaço
coletivo, destruindo as concepções de cidadania e de segurança pública. (ABRAMOVAY;
CUNHA; CALAF, 2009).
Sposito, em 2002, publica um estudo sobre políticas públicas no meio escolar e seu
impacto pela perspectiva dos jovens. Ali, são apresentadas as diferenças entre violência social
e violência escolar. A violência social seria aquela que está no entorno da escola, que tem
relação com o aumento da criminalidade, mas não pode ser definida como uma violência
escolar. Seriam aqueles delitos criminosos que afetam o dia a dia de qualquer cidadão e que,
eventualmente, ocorrem dentro da escola, como estupros, furtos ou roubos.
37
Já a violência escolar é classificada pela autora em dois tipos: o primeiro tipo é aquele
que danifica o patrimônio escolar – pichações, vidros quebrados, banheiros danificados –, e o
segundo tipo, aquele que está na esfera das relações interpessoais, quando as pessoas inseridas
no meio escolar agridem-se verbal ou fisicamente. Esse segundo tipo de violência é difícil de
ser classificado, pois entrelaça-se às vivências de um determinado coletivo ou de um indivíduo,
já que aquilo que ofende a si ou a um grupo pode não fazer diferença nenhuma para o outro.
Camacho (2001) apresenta um estudo realizado com alunos de classe média, utilizando
o conceito de moratória social, que se refere a pessoas que possuem tempo e condições
financeiras para viver um período de suas vidas com relativa despreocupação e isenção de
responsabilidades. Ao pesquisar o meio escolar desses alunos, a autora também percebe, tal
como no estudo mencionado no parágrafo anterior, uma dificuldade em separar indisciplina de
violência, não sendo possível distingui-las enquanto fenômenos. Camacho utiliza Durkheim
para explicar disciplina a partir dos processos de socialização. Para Durkheim, segundo ela, nos
processos de socialização, está incutido o desenvolvimento do disciplinamento, sendo dever
dos adultos transformar as crianças em seres sociais e morais, ea escola constitui o espaço ideal
para esse evento. Contudo, a autora ressalta que hoje a escola passa por uma crise em relação a
sua função de socialização, pois a ideia rígida de subordinação do aluno ao professor não faz
mais sentido. Além disso, os novos modelos de educação ainda necessitam de aprofundamentos
sobre o que seja indisciplina escolar, uma vez que a hierarquia anteriormente posta transformou-
se na busca por autonomia, com a desobediência, inclusive, chegando a ser vista como positiva.
“Muitas vezes, ela (a indisciplina) se torna instrumento de resistência à dominação, à submissão,
às injustiças, às desigualdades e às discriminações em busca da identidade e dos direitos.”
(CAMACHO, 2001, p. 130).
uma convivência democrática. Tal fato gera frustração e eleva o número de práticas violentas
dentro da escola, aumentando o nível de tensão de todos os envolvidos.
Charlot (2002) faz uma distinção importante: ele explicita a diferença entre a violência
na escola, violência à escola e a violência da escola. A violência na escola é aquela em que a
instituição é a arena do conflito. Ela poderia acontecer em qualquer outro espaço – na rua, na
igreja, dentro das casas; a escola é apenas o ‘pano de fundo’. Já a violência à escola é aquela
que atinge diretamente a parte física (fogo em banheiros, pichações) e seus agentes (bater em
professores, destratar funcionários). Por último, temos a violência da escola, que é aquela
violência institucional, intrínseca ao espaço, simbólica (os maus tratos verbais, o racismo, a
homofobia). Para o autor, essa distinção é importante, porque “(...) se a escola é largamente
(mas não totalmente) impotente face à violência na escola, ela dispõe (ainda) de margens de
ação face à violência à escola e da escola.” (CHARLOT, 2002, p. 435). Esses dois últimos tipos
de violência precisariam ser, em primeiro lugar, assumidos pela escola como um problema real
e, em segundo lugar, como algo a ser combatido e entendido por todos, paraque a educação
democrática saísse fortalecida.
Abramovay, Cunha e Calaf (2009, p. 20) afirmam que não se pode compreender a
violência como algo dado e concreto. A violência é “(...) uma espécie de ameaça constante. Ela
permeia o cotidiano, mas nem sempre se fundamenta em atos ou crimes reais: a violência é,
também, algo que paira sobre os indivíduos como uma espécie de sentimento de insegurança”.
Essa sensação de insegurança não pode ser confundida com o medo, que está no âmbito
pessoal, e sim considerada um fato que abarca uma percepção coletiva, posta nas
39
mais diversas situações e locais; mesmo a escola, que participava de uma visão romântica, na
qual a sociedade a via como um espaço idealizado para reproduzir valores éticos, encontra-se
hoje enredada também nesses sentimentos de insegurança.
Em vista disso, tais pesquisas também apontam que as grandes preocupações das escolas
deveriam ser as incivilidades que acabam passando despercebidas no dia a dia da instituição e
que ferem muito mais as subjetividades e as identidades dos sujeitos do que seus corpos. Elas
acabam em danos físicos somente em casos extremos; contudo, atingem as dimensões
subjetivas, minando a existência do outro e alimentando o sentimento de insegurança de todos
na escola. Segundo Abramovay e Castro (2006, p. 53), “(...) nas escolas tais atitudes raramente
são penalizadas, sendo tratadas como delitos secundários ou comportamentos naturais, típicos
de determinadas fases ou idade”. Por ‘cair no esquecimento’, as incivilidades acabam gerando
um sentimento de impunidade e insegurança às vítimas, aumentando a sensação de falta de
cidadania e justiça. Ou, ao contrário, são punidas sem uma reflexão de quem cometeu o delito
e de seus pares – com advertências, afastamentos e até expulsões – resolvendo os problemas
de forma simplista, sem um avanço na pauta da prevenção, e sim um reforço na agenda da
punição, rompendo com o espaço democrático de discussão e negando a escola como um local
que abraça as pautas progressistas.
cada um por si. Ficam todos com medo de represálias ou de serem estigmatizados, e, aos
poucos, a cultura do medo ou da impunidade vai se ampliando e desorganizando o espaço
público da escola, gerando um sentimento de falta de pertencimento, corroendo relações de
amizade e de solidariedade.
Para avançarmos nessa pauta, e não apenas diagnosticar atos de incivilidades ou outros
tipos de violência, faz-se necessário um entendimento de como os atores envolvidos –
professores, alunos e famílias – entendem essas violências e as subjetivam. No dia a dia das
escolas, há uma série de conflitualidades que são fontes de tensão e que rapidamente
transformam-se em violências, nem sempre havendo espaços para a reflexão e a busca de novas
relações que permitam o conflito. A conflitualidade acaba sendo anulada e a violência
exacerbada, invertendo a agenda da democracia e da pluralidade.
Um exemplo desse fato é quando um professor recebe um bilhete escrito a próprio punho
por um pai autorizando-o a colocar seu filho de castigo caso este não se comporte. O caso ilustra
uma legitimação do uso da violência e um cessar do diálogo por parte daqueles que estão em
uma postura de autoridade perante aquela criança/adolescente. A conflitualidade é negada, e a
violência impera como uma resposta para os problemas postos naquela situação.
41
Collins (2009) faz um resgate da teoria sociológica do conflito, expondo que este
aparece já nos escritos de Heráclito em 500 a.C., porém não tendo sido contemplado em todos
os períodos históricos desde então. O autor defende que, para se ter uma análise não
romantizada de uma certa sociedade, seria importante que o conflito fosse valorizado como
estrutura social. Ele explicita que essa ferramenta teórica foi utilizada por Marx e Engels ao
explicar a teoria das classes sociais, na qual “(...) demonstraram como qualquer luta política
pode ser analisada a partir dos conflitos e alianças entre classes sociais que perseguem diferentes
interesses econômicos”. (COLLINS, 2009, p. 64). A ótica sociológica do conflito também foi
empregada na teoria do conflito político, na qual as diferentes classes entrariam em conflito no
espaço político para manter ou melhorar sua situação social e, ainda, na teoria da estratificação
sexual, desta vez elaborada somente por Engels, que começou a apontar uma desigualdade entre
os gêneros.
O conflito seria o alicerce de uma sociedade mais justa, pois, “(...) quando o conflito não
é explícito, ocorre um processo de dominação.” (COLLINS, 2009, p. 49). Ou seja, o conflito
poderia ser uma resposta para o mal-estar que vivemos atualmente e um espaço para
valorizarmos nossas diferenças, opondo-se ao extremo que vivemos hoje, em que o diálogo é
silenciado e o ódio alimentado, fenômeno visto nas mais diversas esferas das relações humanas.
Simmel, segundo Collins (2009, p. 102), segue uma linha da compreensão da teoria do
conflito tratando-o como um importante elemento da sociedade, mas que não produz mudança
social. A visão de Simmel foi refinada por Coser, que encontrou três princípios fundamentais
para a teoria: o conflito é a percepção sobre os limites de um grupo; ele é mais intenso entre
grupos ou indivíduos que são mais próximos; e, por fim, os conflitos externos forçam uma
coesão do grupo atingido.
Além desses autores, Collins refere-se a vários outros sociólogos que demonstraram o
quanto o conflito está presente na organização das sociedades. Alguns deles são Mannheim,
que apresenta a teoria da racionalidade substantiva e racionalidade funcional6 ; C. Wright Mills,
nos EUA, em 1956, com o livro The Power Elite; Dahrendorf, que “(...) toma emprestada a
concepção de classe formulada por Marx e Engels, a generaliza num sentido weberiano, fazendo
com que o conflito pelo poder tenha um caráter mais essencial” (COLLINS, 2009, p. 95),
ampliando essa concepção para além do marxismo, e tantos outros pesquisadores.
A teoria do conflito é amplamente utilizada na área das ciências sociais até hoje,
originando os estudos da Sociologia das Conflitualidades, que, no Brasil, têm como seus
expoentes os pesquisadores Tavares dos Santos, Sérgio Adorno, César Barreira e tantos outros.
A teoria do conflito também alcança outras áreas das ciências humanas e acaba sendo aplicada
em estudos na área da educação. Os pesquisadores utilizam o conceito de conflito não como
um inimigo da ordem ou da normatização, mas sim como uma noção na qual se entende que os
diferentes e as diferenças podem conviver no espaço escolar. Assim, nessa teoria, o conflito é o
espaço da diversidade, da tolerância e do diálogo nas relações sociais.
6
A racionalidade substantiva seria a percepção humana em relação ao modo como os meios levam a certos
fins, e a racionalidade funcional seria o cumprimento de regras e regulamentações ao pé da letra, que permitiria
um funcionamento mais eficiente da sociedade (COLLINS, 2009, p. 88).
44
parte da vida humana (ir/não ir; casar/não casar; comprar/não comprar) e aceitar que ele é parte
integrante da vida social.
Para Estevão (2008), a escola deveria ser a arena do conflito onde jogos de poder,
confrontos, alianças, pactos e coligações acontecem, estimulando a micropolítica entre os
alunos; isso implica uma necessária e constante vigilância no sentido de não se favorecer os já
favorecidos ou aumentar o poder de quem já é poderoso. Também, segundo o autor, faz-se
necessário evitar o autoritarismo, a retirada de direitos dos alunos, a falta de transparência e a
impunidade, a avaliação como arma para hierarquizar, a rotulagem etc. “(...) O conflito na
escola ganha um novo sentido: ele é encarado de modo positivo e até como necessário ao
crescimento dinâmico do ser humano.” (ESTEVÃO, 2008, p. 510).
Para a autora, uma vida sem conflito seria uma vida apática, na qual o ser humano não
conseguiria participar da vida social nem evoluir como pessoa. A escola deveria ser o espaço
em que o aluno é acolhido quanto aos seus conflitos pessoais e também a desencadeadora de
novos conflitos, que seriam estimulados por uma educação coletiva. Por meio de suas pesquisas,
Galvão (2004) mapeou três tipos de tendências em relação aos conflitos escolares. A primeira
seria a de camuflar, tentando resolvê-los sem uma devida análise e reflexão, ou seja,
“empurrando-os para debaixo do tapete”. A segunda tendência seria a de atribuir a
responsabilidade de todo e qualquer conflito para o aluno ou seus pais através de alegações
relacionadas ao que é externo: “a aluna é problemática”, “a família é desestruturada” etc.,
transferindo o conflito para uma esfera na qual ‘ninguém’ é responsável. A terceira tendência
seria a de vivenciar o conflito como fracasso, quando professores e alunos desestruturam-se
com suas ocorrências, sentem-se incompetentes para lidar com o fato e, muitas vezes, desistem
ou são coniventes.
A pesquisadora conclui que a violência ocorre quando os conflitos não são explicitados;
ao mesmo tempo, lembra-nos de que eles nem sempre têm solução, mas que o
45
fato de serem olhados poderia possibilitar uma melhor gestão, eliminando o discurso do culpado
e avançando para uma vida mais plena.
A pesquisa aqui realizada vai ao encontro dos conceitos trazidos pela abordagem
francesa, que acredita que os conflitos, quando não resolvidos, podem se transformar em
violências e são importantes para se compreender os fenômenos das convivências escolares,
partindo da perspectiva de que o que acontece na esfera das relações sociais deve ser
considerado convivência, pois estão no campo das relações interpessoais.
Ortega e Rey (2002) expõem que as relações interpessoais são redes sociais de
participação em que todos estão inseridos, conscientemente ou não. Essa inserção gera
identidades sociais, aprendizagens e processos de desenvolvimento, e a educação – tanto a
formal quanto a informal – tem um papel importante nisso.
Portanto, é importante não negar os conflitos, pois eles são intrínsecos às relações
sociais, conforme o campo da sociologia das conflitualidades. Segundo Fachinetto (2018, p.
71), “(...) o conflito não se constitui um processo necessariamente desagregador da sociedade,
mas inerente às relações sociais e potencialmente criador de outras relações sociais”. O conflito
é um elemento pertencente às normas vigentes – conscientes e inconscientes – e nem sempre
traduz violência, mas sim formas opostas de se relacionar, que muitas vezes são diferentes e,
portanto, conflitantes. (TAVARES DOS SANTOS, 2009).
(...) a escola deverá dar uma resposta: ou fechar-se no seu casulo, procurando
deste modo escapar às vicissitudes do seu meio mantendo-se imaculada; ou
então transformar-se internamente num espaço público exposto, numa
organização educativa essencialmente comunicativa e convivencial,
assumindo a responsabilidade social de contribuir para a resolução dos
problemas da coletividade ao mesmo tempo que procura internamente
construir consensos de uma forma argumentada, mas sem desprezar o conflito
ou o dissenso. (ESTEVÃO, 2008, p. 509)
Viscardi e Alonso (2013, p. 32) corroboram essa visão trazendo o conceito de políticas
de convivência, pautados na ideia de que a convivência escolar é um conceito político, pois se
trata de um direito social. Para assumirmos esse entendimento, algumas dimensões deveriam
ser consideradas essenciais: a não naturalização daquilo que acontece na escola, entendendo- se
que qualquer situação é uma construção social; a educação para cidadania como eixo do
trabalho a ser desenvolvido, sem criminalizar adolescentes e jovens, compreendendo-se que
estes estão em processo de formação cidadã; e o afastamento da visão tutelar/assistencialista,
avançando-se na construção do conceito do jovem como um sujeito de direitos.
Esses autores defendem que a convivência escolar deve ser situada como uma política
pública orientada para a ampliação do exercício da democracia. Ela é o estado do convívio que
expressa tensões do mundo da vida cotidiana, das práticas pedagógicas e das relações dos atores
sociais. Logo, em termos de políticas públicas, a convivência escolar pode ser uma saída para
orientar a resolução de conflitos através de dinâmicas dialógicas, nas quais o sujeito esteja em
uma posição de cidadão, gerando acordos coletivos, promoção da participação, exercício de
direitos e vínculo com a comunidade escolar em que está inserido e aumentando sua
participação na vida democrática. (VISCARDI; ALONSO, 2013, p. 34-35).
Conforme esses autores, para que a convivência escolar seja afirmada como política
pública, é necessário que se identifiquem os espaços mais excludentes e as relações mais
discriminatórias das escolas. Deve-se levar em consideração que muitos dos discursos
pedagógicos falam em comunidade escolar e em participação de todos, no entanto, na prática,
isso não ocorre, pois há hierarquias dentro da própria escola que precisariam ser revistas, que
dificultam o desenvolvimento do sentimento de pertença e uma identificação com o coletivo.
48
As convivências escolares abrangem todas as relações sociais que têm como pano de
fundo a escola, não importando se são consideradas pacíficas ou violentas. Defendemos que as
pessoas que estão vinculadas à escola encontram-se inseridas em processos de aprendizagem;
portanto, suas ações são discutíveis e passíveis de soluções justas e democráticas. Sabemos que
as maiores partes dos acontecimentos ocorridos na escola estão na área das incivilidades, sendo
fundamental solucioná-los de forma não condenatória, e sim reflexiva, que leve a uma
possibilidade de mudanças de postura. (SPOSITO, 2001, p. 100). Além disso, a própria escola
concebe processos de exclusão, apesar de legalmente se dizer universal, possuindo normas e
regulamentações que podem gerar desistências de quem está lá, reforçando uma postura de
normatização e hierarquização social.
Nossa contribuição reside em descobrir como os atores sociais inseridos nesse contexto
compreendem e subjetivam as relações sociais que estabelecem. A esfera da subjetividade e a
forma como os fenômenos impactam as pessoas também são partes do desdobramento do
conceito de convivências escolares. Propor-se a entender essas relações significa compreender
como os conflitos são incorporados, resolvidos ou ignorados pelos agentes sociais. Para avançar
nesse tipo de pesquisa, é necessário contar com o conceito de representações sociais, que nos
instrumentaliza a compreender os imaginários que fazem parte daqueles inseridos no contexto
escolar.
49
O conceito de representações sociais tem sua origem nos estudos da Psicologia. Um dos
primeiros autores a abordar o tema é Serge Moscovici, que, em 1976, tenta entender como a
psicanálise era assimilada pelo leigo, ou seja, como o senso comum entendia o saber científico.
O autor inaugura uma nova forma de pensar, em que o sujeito é produtor e produto de uma
determinada sociedade. A representação social é, assim, uma construção do sujeito sobre o
objeto, ou seja, como ele ressignifica o objeto para si. (SANTOS, 2005).
As representações são, então, ‘blocos de sentido’ que determinados grupos sociais dão
a certos conceitos, permitindo a quem analisa aprofundar-se na forma de pensar de um grupo.
Essa teoria é capaz de descrever e mostrar a realidade pelo viés daqueles que estão inseridos no
fenômeno, fornecendo novas ferramentas de análise.
Além disso, pode-se dizer que as representações sociais são maneiras como certos
grupos entendem os fatos que ocorrem na vida cotidiana, variando ao longo da história. Sua
preocupação reside no entender “(...) os sentidos, os valores e as crenças que estruturam a vida
social.” (PORTO, 2006, p. 250). Por exemplo, há pouco tempo, muitas das relações sociais
tinham a violência física ou de efeito moral como forma de regulamentação. Na escola, havia
o uso de palmatórias, de ‘orelhas de burro’, o ato de ajoelhar em milhos ou tampinhas, a cadeira
do castigo para crianças pequenas, entre outros métodos que eramconsiderados educativos.
Hoje, tais formas de agir sobre as crianças ou adolescentes seriam consideradas abusivas. Essa
mudança do olhar sobre o objeto faz com que as percepções das pessoas alterem-se a respeito
do que pode ser considerado um ato de violência.
Na seara das violências, em específico, Porto (2015) explica que, no Brasil, devido a
nosso processo histórico recente de redemocratização, as violências eram consideradas, até
pouco tempo atrás, como importantes regulamentadoras das relações sociais. As violências que
ocorriam dentro da esfera doméstica ou institucional eram, inclusive, concebidas como de ordem
privada. Assim, as violências não foram nomeadas como tal, o que retardou os estudos sobre
esse objeto sociológico, que esteve inserido em dois processos aparentemente contraditórios.
Por um lado, o uso recorrente, na sociedade civil, das violências como forma de resolução de
conflitos; por outro, o surgimento de um movimento de recusa do uso desses atos. Esse segundo
movimento fomenta, a partir dos anos 90, a discussão sobre as violências, que passaram a
ocupar centralidade no entendimento da história brasileira, sendo, então, construídas como
objeto de estudos sociológicos. (PORTO, 2015).
Porto (2015, p. 33) elucida que a teoria das representações sociais, apesar de ter nascido
na esfera da psicologia social, diferencia-se dela ao ser utilizada pela sociologia, pois, para esta
disciplina, a teoria tem um caráter ‘utilitarista’ e a característica de ser uma ferramenta
metodológica que analisa o todo e o plural das redes de significações criadas. Para a autora, há
quatro pontos importantes (PORTO, 2015, p. 33):
A história de vida de cada um interage com a vida dos outros das mais diversas formas,
criando cenas nos corredores, pátios e salas de aulas, relações que se estabelecem e se misturam
com a própria história da educação brasileira e da instituição. Além das características próprias
de cada local, os sujeitos que nela circulam pautam-se pelos traços da comunidade em que estão
inseridos e do contexto ao qual pertencem.
Este capítulo tem por finalidade contextualizar brevemente essa conjuntura, partindo de
uma situação macro para uma situação micro. A primeira parte pretende elucidar brevemente
como chegamos enquanto país a uma diversidade tão grande presente na escola, na qual
meninos e meninas, negros(as) e brancos(as), jovens e velhos(as), com mais ou menoscondições
financeiras, provenientes de famílias ‘tradicionais’ ou de lares de passagem fazem parte.
Depois, propõe-se delinear como a rede municipal de educação entrelaça-se à história pessoal
de cada um, influenciando a vida daqueles que fazem parte do conjunto residencial Rubem
Berta e o dia a dia da escola pesquisada, pois todos esses elementos contribuem para nossa
compreensão de como os participantes desta pesquisa entendem seu local de estudo ou trabalho.
Partindo do pressuposto de que tudo tem um início, quem inventou a escola? Como ela
chegou até o Brasil, com tanta diversidade e tantos desafios? Por que entendemos que temos
tantos conflitos na escola hoje? Quais são as subjetividades e relações que estão ali colocadas?
Entendendo os conflitos, como podemos melhorar a convivência e fazer expandir tal conceito,
aceitando que ele faz parte do dia a dia das atividades humanas e escolares?
A educação sempre fez parte da história, inicialmente, nas sociedades primitivas, mais
informais, visando ao ensino de coisas práticas da vida coletiva e sem a estrutura da escola
54
que conhecemos hoje. Depois, com a expansão da cultura grega, surge o termo scholé, que
significa “lazer, tempo livre”. Esse termo era usado para nomear os locais onde a educação da
elite grega ocorria. O mestre filósofo era o responsável pelos ensinamentos dos seus discípulos,
ministrando Política, Artes, Aritmética e Filosofia. (DUSSEL, 2003). Embora o termo
signifique ‘tempo livre’, já havia certa estrutura posta.
Na Idade Média europeia, o conhecimento ficou restrito aos mosteiros e a cargo da Igreja
Católica. A educação era elitizada, para os nobres que precisavam aprender a governar, e restrita
aos homens. Nessa época, começa-se a considerar interessante a ideia de oferecer ensinamentos
já na infância, apesar dessa categoria ainda não existir. (DUSSEL, 2003).
[...] os docentes devem começar por tornar seus alunos dóceis e atentos,
basear-se em seus gostos e suas vontades, e educar seu entendimento e suas
memórias. Essas são as raízes do ensino-aprendizagem. (COMENIO, 1986,
p. 156-158 apud DUSSEL, 2003, p. 68)
Há uma preocupação com os ritos, os tempos e um controle sobre corpos e mentes que,
até então, era exclusivo de outras instituições, como a religiosa. Essa ideia de controle dos
tempos e corpos prolonga-se até os dias de hoje, já que o imaginário do senso comum sobre
escola a tem como um espaço de ordenamento e ritos.
O Brasil não fica de fora desse processo, uma vez que as primeiras escolas daqui foram
as responsáveis por ‘educar’ os indígenas, por meio de instituições religiosas, principalmente
pelos jesuítas, que, inspirados nessa filosofia europeia do vigiar, punir e hierarquizar, seguiram
impondo sua cultura sobre a cultura indígena. Esse processo durou de meados de 1550 até 1760,
quando os jesuítas tiveram que sair do país. Em 1808, foi aprovado um tipo de método de ensino
baseado em filosofias extremamente rígidas no qual os melhores alunos eram usados como
monitores e auxiliares. Essa forma de organização exigia regras predeterminadas, rigorosa
disciplina, distribuição ordenada dos alunos e um sistema de
56
Esse movimento altera profundamente os discursos vigentes até então, de uma escola
posta sob a luz da rigidez e da exigência de uma postura sóbria por parte dos professores.
Avançam as manifestações sobre os direitos das crianças pelo mundo e um novo olhar sob essa
categoria social, o que faz com que a escola também repense suas formas de organização.
No Brasil, as teorias da escola nova defenderam que a ciência deveria ser a base do
progresso, a democracia deveria ser o centro do processo, bem como o autoritarismo deveria
ser rechaçado, para preparar o indivíduo a viver em uma sociedade mutável. (SAVIANI, 2005).
Era um sopro do pensamento progressista que chegava por aqui. A filosofia da educação da
época trazia a escola nova como um processo que abria espaço para o aluno se manifestar, em
que o diálogo ganhava centralidade e a forma de construir o conhecimento se alterava
profundamente. De uma ideia de um professor que tudo sabia, passava-se à concepção da
construção do conhecimento, uma visão mais voltada para o processo do que para o resultado.
Contudo, a educação, nessa época, ainda não era para todos, apesar de os intelectuais da
época defenderem arduamente essa ideia. As políticas educacionais do país não atingiam grande
parte da população brasileira, que foi ter acesso à escola somente depois da abertura
democrática.
Para ilustrar o fato, o artigo 205 da Constituição Federal (BRASIL, 1988) delibera que
Esse artigo garante situações importantes para a ampliação da ideia de educação. Ali
está colocado não apenas que a educação formal é importante, mas também a relevância das
aprendizagens que acontecem para além da escola, bem como aquela ofertada pela família,
exigindo que a sociedade também se sinta responsável pelos cidadãos em formação. O objetivo
primeiro seria o ‘pleno desenvolvimento da pessoa’, ou seja, não apenas as aprendizagens
consideradas curriculares (português, matemática, história), mas também conteúdos e assuntos
que auxiliem no avanço da democracia. Há o intuito de que as pessoas sejam vistas como
merecedoras de respeito e consideração por parte do estado e da comunidade a qual pertencem.
O segundo objetivo trazido pela redação fala sobre ‘preparo para o exercício da
cidadania’. Segundo Vianna (2006, p. 135), a cidadania ali retratada não é apenas de direitos
políticos, mas também “(...) voltada para qualificar os agentes da vida do Estado, reconhecendo
cada indivíduo como pessoa integrada na sociedade estatal.”. Portanto, a meta é
58
uma educação voltada para a ampliação dos avanços sociais, com um Estado que se submeta às
vontades da população. O último objetivo é a ‘qualificação para o trabalho’, que não retrata
apenas a instrumentalização para o seu desempenho, mas também valoriza o exercício da justiça
social e o sentimento de pertença e contribuição à sociedade.
Na sua origem, a LDB surge como uma forma de complementar a Constituição Federal
trazendo a necessidade de um novo pacto social, pois nossa sociedade passa de uma perspectiva
ditatorial para uma democrática. Os artigos fundamentais da Constituição Federal retratam essa
perspectiva:
Art. 2º A educação, dever da família e do Estado, inspirada nos princípios de
liberdade e nos ideais de solidariedade humana, tem por finalidade o pleno
desenvolvimento do educando, seu preparo para o exercício da cidadania e sua
qualificação para o trabalho.
Art. 3º O ensino será ministrado com base nos seguintes princípios:
I - igualdade de condições para o acesso e permanência na escola;
II - liberdade de aprender, ensinar, pesquisar e divulgar a cultura, o
pensamento, a arte e o saber;
III - pluralismo de ideias e de concepções pedagógicas;
IV - respeito à liberdade e apreço à tolerância;
V - coexistência de instituições públicas e privadas de ensino;
VI - gratuidade do ensino público em estabelecimentos oficiais;
VII - valorização do profissional da educação escolar;
VIII - gestão democrática do ensino público, na forma desta Lei e da
legislação dos sistemas de ensino;
IX - garantia de padrão de qualidade;
59
Esses dois artigos, que tratam dos princípios e fins da educação nacional, representam
essa visão democrática de ensino, inspirada nos princípios franceses da liberdade, igualdade e
fraternidade, próprios da democracia constitucional. Neles estão garantidos vários
fundamentos, todos visando à ampliação dos direitos sociais.
Juntamente às leis que dão um espírito mais crítico à educação brasileira, várias são
deliberadas para forçar a entrada da camada da população excluída socialmente e que agora está
tendo possibilidade de ingressar na instituição escolar pela primeira vez, além de todas as
minorias que começam a ter seus direitos garantidos na participação da vida escolar, como
indígenas, comunidades quilombolas, alunos com necessidades especiais, entre outros. Dessa
forma, traz-se uma diversidade para a escola pública que, enquanto país, ainda não tínhamos
experimentado. Apesar disso, a escola continuou organizada da mesma forma que sempre foi,
em um formato que atende bem as classes médias, que já têm certo poder de pressão sobre o
Estado, mas é insuficiente com a população mais carente, já que se desorganiza quando
60
precisa receber a camada mais pobre da população. Esse grupo nem sempre traz os elementos
esperados, como a valorização do ensino por parte da família, ou um comportamento tido como
adequado para aquele ambiente por parte dos alunos. Essa conjuntura força a readequação dos
currículos, que agora precisam atender também a temáticas relativas a questões de classe social,
etnia, gênero e outros.
Com esses breves relatos da história da educação do Brasil, concluímos que há vários
documentos oficiais que retratam de diferentes formas a relevância das relações humanas na
escola – como a LDB, em que há regulamentações específicas para certas minorias, os PCN,
que retratam a importância dos temas transversais, como o eixo ‘Ética’, ou o mais recente
documento, chamado de BNCC, com suas habilidades socioemocionais. Esses materiais
orientam posturas esperadas dos alunos e professores Brasil afora, são uma arena de disputa
sobre visões de mundo – de pensadores da linha crítica ou pós-crítica à linha neoliberal – e
influenciam o clima escolar e a forma como entendemos essa instituição, sua organização e sua
influência sobre as pessoas.
61
A Rede Municipal de Porto Alegre inicia sua história em 1955, como um departamento
de assistência, e consolida-se como Rede de Ensino entre 1960 e 1963, na mesma época em que
foi aprovada a primeira LDB (1961). A LDB da época defendia a democratização da educação,
com oferta gratuita para todos os cidadãos dos sete aos 14 anos. Mesmo a lei não tendo
conseguido atingir a maior parte da população brasileira, em Porto Alegre, as escolas municipais
expandiram sua atuação com um viés humanista, instalando-se nas partes mais periféricas da
cidade. (SMED, 2019).
7
Segundo Torkarnia (2018), atingimos o índice de 97,8% das crianças brasileiras ingressando na escola, em
2017, no primeiro ano do Ensino Fundamental. Esse dado significa praticamente um atendimento universal,
apesar de que, em números totais, ainda há uma grande quantidade de crianças fora da escola. Atualmente,
nosso problema reside na manutenção desses alunos na escola, que evadem ao longo do Ensino Fundamental
e Médio.
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Segundo lembra Bossle (2008), essas reuniões garantiam um espaço privilegiado para
troca de informações, tomadas de decisões, reforçando laços de amizades e solidariedade,
diminuindo conflitos e elevando a sensação de eficiência daqueles que estavam em sala de aula
todos os dias. No entanto, as reuniões não ocorrem mais desde 2017, o que impacta as relações
pessoais dos professores e consequentemente o trabalho docente e a sua relação com os alunos,
gerando conflitos que antes conseguiam ser discutidos nessas reuniões.
Em 2005, inicia-se a gestão de José Fogaça (PPS), e a Escola Cidadã passa por
reformulações, perdendo seu caráter popular e inclusivo com o avanço da burocratização e a
diminuição da participação das comunidades. (SOUZA, 2010). Além disso, outro fator que
impactou as relações sociais foi que o último governo (2017-2020) utilizou-se do discurso da
flexibilização dos currículos sem uma política educacional clara. Isso fez com que houvesse
uma
Além disso, desde 2017, as escolas não possuem mais Guardas Municipais nas entradas
e saídas das aulas. A reportagem de Fonseca e Silva (2018) feita com diretores de escolas
municipais, publicada na GaúchaZH online, mostra que a impressão destes era de que os
conflitos e debates cotidianos passaram a resultar em episódios de violência depois da retirada
da guarda da porta das escolas. Apresentamos trecho da reportagem:
centralização das ações nos professores e individualização das atividades de cada escola,
desconstruindo a ideia de rede, fizeram com que a sensação de violência aumentasse entre todos
os segmentos. (AGUIAR, 2019).
A escola pesquisada fica localizada no bairro Rubem Berta, uma região distante do
centro da cidade. O bairro foi criado e delimitado pela Lei Municipal nº 3.159, de 09/07/1968,
e abrange uma grande extensão. Segundo os dados do IBGE (2011), o bairro conta com uma
população de 82.260 pessoas, que representam cerca de 6% da população de Porto Alegre. Ele
é composto por uma série de loteamentos, vilas e conjuntos habitacionais.
Como as obras eram inacabadas – alguns prédios estavam mais avançados em suas
construções, enquanto outros tinham somente as paredes –, essa ocupação exigiu uma grande
8
As políticas públicas na área das moradias ganham força no final da década de 60 e começo da década de 70,
após o início do movimento de urbanização brasileiro, que fez com que as cidades crescessem
desordenadamente. Nessa época, surgiu o Sistema Financeiro de Habitação (SFH), que financiou moradias
através de recursos do Fundo de Garantia por Tempo de Serviço (FGTS) e de recursos individuais das
cadernetas de poupança. Quem geria essa política pública nos estados e municípios eram as Cohab
(Companhias de Habitação). Porém, tal política pública não atingiu os mais pobres, já que o financiador
precisava ter a capacidade de pagar integralmente pelo imóvel ao longo do período financiado. (HOLZ;
MONTEIRO, 2008).
65
união das pessoas, que precisaram fazer reuniões e mutirões para terminar os prédios – muitos
ainda sem rebocos ou escadas – e melhorar a qualidade de vida, já que, no início, não havia
água encanada, esgoto ou luz elétrica. (FIGUEIREDO, 2014). Dessa união surgiu a Associação
Comunitária do Rubem Berta (Amorb), que hoje tem sede própria, localizada em frente à escola
pesquisada.
Atualmente, o conjunto habitacional faz fronteira com o bairro Mário Quintana ao sul,
com o Loteamento Timbaúva a leste, com a vila Jardim Leopoldina a oeste e com habitações
individuais ao norte. Os dados censitários mostram que a Cohab do Rubem Berta possui uma
população de 17.562 moradores, que vivem tanto nos apartamentos como nas chamadas
‘garagens9’ – construções posteriores à Cohab que se configuram como uma espécie de
‘puxadinho’ entre um bloco e outro. (FIGUEIREDO, 2014).
Como já mencionado, os prédios foram construídos nos anos 70, formando o total de 39
núcleos residenciais, com quatro conjuntos de blocos em cada núcleo e 32 apartamentos de em
média 50m² em cada bloco. Foi durante a época da ocupação que houve uma grande procura
por vagas nas escolas da região, que precisaram readequar seus espaços para atender à demanda.
A escola foi inaugurada em 1986, já com um número significativo de alunos. Em março de
2020, fará 34 anos.
Obtivemos acesso a relatos em pesquisas realizadas por alunos da própria escola com
moradores da região, entre os anos 90 e 200010, nos quais descobrimos que a escola não estava
pronta para receber um número tão grande de pessoas que precisavam de um lugar para estudar,
havendo falta de recursos materiais e de funcionários. Também não havia linhas de ônibus que
transportassem os trabalhadores, constituindo uma dificuldade para aqueles que trabalhavam
diariamente na escola e também para as famílias que precisavam se deslocar para outras regiões
da cidade. A escola surge concomitantemente à Constituição Federal, criadora
9
Há o documentário Dasgaragens (2005), elaborado pelo Núcleo de Estudos e Projetos do Departamento de
Arquitetura da Ufrgs, abordando o relato de pessoas que moram nas garagens e suas percepções sobre esses
locais. (DASGARAGENS, 2005).
10
Esses trabalhos escolares foram encontrados na biblioteca da escola na forma de folhas mimeografadas ou
escritas à mão, com o nome dos alunos autores e dos professores que orientaram essas pesquisas. São fontes
de dados muito interessantes, pois possuem relatos e fotos da época da criação da escola e dos anos posteriores.
66
de políticas públicas de obrigatoriedade de todos na escola, e gera, como se pode constatar, uma
demanda até então inexistente.
Desde então, a escola atende um número grande de alunos, variando ao longo dos anos.
Em 2019, foram 1054 estudantes atendidos11, em três turnos: matutino, vespertino e noturno.
Observando-se os dados da secretaria da escola, percebemos que ao longo das décadas o número
de alunos vem diminuindo, o que condiz com a queda da taxa de natalidade que vem ocorrendo
no Rio Grande do Sul, seguindo uma tendência demográfica brasileira. Segundo Pessoa (2017,
p. 1), o Rio Grande do Sul “(...) vem apresentando uma baixa dinâmica populacional, a ponto
de, entre 2000 e 2010, aparecer como o estado brasileiro que teve a menor taxa de crescimento”.
Em 2018, a taxa de crescimento do Rio Grande do Sul foi de 0,42% ao ano, sendo que a média
nacional foi de 0,79% ao ano. Porto Alegre foi a capital que apresentou o menor crescimento
populacional do país em 2018, resultando em uma média de 0,32%, menor que a taxa média
estadual e a brasileira. (PESSOA, 2017).
A escola oferece educação infantil a partir dos quatro anos, ensino fundamental
completo e educação de jovens e adultos de nível fundamental. Fornece café da manhã, lanche
e almoço para os alunos da manhã, almoço e lanche para os alunos da tarde e janta para os
alunos da noite. À noite, as aulas são exclusivas da educação de jovens e adultos. A instituição
organiza-se em turmas de educação infantil e mais três ciclos (A, B e C); cada um desses ciclos
possui três anos de duração. O primeiro ciclo compreende os níveis A10, A20,
11
Dados retirados da secretaria da escola através do Censo Escolar, organizado pelo Ministério da Educação,
que utiliza a data de corte de 30 de maio de todos os anos para uma ‘fotografia’ da escola e de todas as escolas
brasileiras. Esse número é utilizado para fomentar as políticas públicas em educação, como as verbas federais
que chegam nas escolas.
67
A30; o segundo ciclo, B10, B20 e B30, e o terceiro ciclo, C10, C20 e C30, todos com duração
anual. As turmas do noturno são organizadas em forma semestral, distribuídas em seis blocos
(T1, T2, T3, T4, T5 e T6), perfazendo três anos. Todos esses níveis totalizam 1054 alunos nos
três turnos.
Quanto aos professores, a escola possui 68 docentes que atendem os três turnos, além
de trabalharem nos setores como biblioteca, supervisão escolar, orientação escolar, direção ou
laboratório de aprendizagem. Atualmente são 67 professores concursados e uma professora em
contrato temporário.
Figura 1 – Localização da escola
Este subcapítulo propõe-se a traçar um perfil dos alunos que participaram da pesquisa
realizada na EMEF Grande Oriente do RS. Na primeira parte do texto, trazemos as
peculiaridades dos alunos de periferia e suas relações escolares; em um segundo momento,
expomos o perfil dos alunos participantes da pesquisa.
68
Sabemos que o Brasil é marcado por profunda desigualdade social. São marcas
históricas que carregamos na pele, nas condições de vida e no acesso aos bens materiais. A
escola pública também é assinalada por essas desigualdades e tantas outras. Sem ser considerada
prioridade nacional, é um dos poucos espaços públicos, ainda que muitas vezes precários, com
o acesso plenamente garantido pelo Estado. A lei exige vaga para todos na Educação Básica,
não importa quem seja o(a) aluno(a), sua origem ou local de moradia. Essa diversidade chega
às escolas todos os dias. São jovens que provêm de famílias cujos pais não terminaram os
estudos, ou que são partes da minorias sociais como negros, deficientes, pessoas do sexo
feminino, além de adolescentes que se descobrem homossexuais e tantas outras variáveis das
identidades de cada sujeito. Essas singularidades geram confrontos internos na escola, pois se
deparam com tantas outras identidades, suscitando tensionamentos entre a estrutura escolar
tradicional, os professores, os alunos e todos os que participam do dia a dia da escola.
O termo periferia é usado para designar locais onde vivem pessoas com menores rendas
econômicas, sendo o oposto do centro, onde se situam os bens e os serviços. Assim, a ‘pessoa
de periferia’ entra na “(...) lógica do ‘vi um, vi todos’ (...) como se uma pessoa do grupo
traduzisse ou representasse a forma de ser e ver o mundo todo do grupo ao qual pertence”.
(MECENA, 2011, p. 86). A periferia constitui-se por cenários de alteridades, essas relações
entre centro e periferia que marcam identidades de seus moradores que frequentam a escola
pública.
A relação que cada aluno constrói com a escola de periferia – que é a representante mais
constante do Estado na vida desses jovens – é marcada por singularidades e subjetividades que
não podem ser explicadas sem se entender a história de cada um. A escola não é uma instituição
social qualquer; ela é a garantidora do saber baseado na ciência. Quem são esses jovens que se
mantêm em um lugar com tal peculiaridade?
*Os alunos autoidentificaram-se quanto a sua etnia e para fins de pesquisa optamos por manter a autodeclaração,
mesmo sabendo que oficialmente não existem certas denominações étnicas.
*Os alunos autoidentificaram-se quanto a sua etnia e para fins de pesquisa optamos por manter a autodeclaração,
mesmo sabendo que oficialmente não existem certas denominações étnicas.
70
Analisando-se os dados dos alunos que participaram das entrevistas e dos grupos focais,
podemos afirmar que 12 são meninas, perfazendo 70,6% dos integrantes, enquanto cinco são
meninos, perfazendo 29,4% dos participantes.
Destes, dois alunos têm 10 anos, um tem 11 anos, quatro têm 12 anos, quatro têm 13
anos, cinco têm 14 anos e um tem 15 anos. As idades apresentam algumas distorções de idade-
série12, como nos seguintes casos: a entrevistada número 2 tem 13 anos e se encontra em uma
turma de B30; o aluno cinco do grupo focal um tem 14 anos cursando a C10; a aluna um do
grupo focal dois tem 13 anos cursando a B30; o aluno três do grupo focal dois tem 15 anos
estudando em uma C20. Todos esses casos relatados de distorção-idade série, porém, não
extrapolam mais que dois anos de diferença. Não temos alunos com mais de 15 anos
entrevistados, pois, em sua maioria, quando chegam nessa idade, os alunos acabam sendo
encaminhados para EJA (Educação de Jovens e Adultos)13, que ocorre normalmente no período
noturno.
Quanto às turmas, temos três alunos de B20, três alunos de B30, seis alunos de C10, três
alunos de C20 e dois alunos de C30.
Essa forma de responder sobre a própria cor vai ao encontro do que pesquisas de larga
escala também têm verificado. Esses estudos mostram mais da metade de suas respostas uma
única vez, em função de uma variedade infindável de denominações para a cor, que seguem
variações regionais. Rocha e Rosemberg (2007, p. 762) explicam-nos que a especificidade da
12
A distorção idade-série é a proporção de alunos com mais de 2 anos de atraso escolar. No Brasil, a criança
deve ingressar no 1º ano do ensino fundamental aos 6 anos de idade, permanecendo no Ensino Fundamental
até o 9º ano, com a expectativa de que conclua os estudos nesta modalidade até os 14 anos de idade. (INEP,
2019).
13
O termo Educação de Jovens e Adultos surge nos anos de 1980 em virtude da presença de jovens nessa
modalidade de ensino. Conforme a Lei 9.394/1996, em seu artigo 37, a EJA constitui uma modalidade de
ensino da educação básica para aqueles que, na faixa etária apropriada, não tiveram acesso ou não obtiveram
sucesso no Ensino Fundamental ou no Ensino Médio Regular. (BRASIL/CNE, 2000, p. 27).
71
– incluindo as tarefas escolares – recai sobre as mulheres, e a escola naturaliza esse fato.
Segundo Carvalho (2004, p. 55-56),
*As famílias autoidentificaram-se quanto a sua etnia e para fins de pesquisa optamos por manter a autodeclaração.
*Os alunos autoidentificaram-se quanto a sua etnia e para fins de pesquisa optamos por manter a autodeclaração.
74
A primeira pergunta foi em relação à idade das mães, cujas respostas foram: 54, 32, 23,
31, 35 e 26 anos. A média de idade foi de 33,5 anos.
O último tipo de família denominamos de composta, pois se trata de uma mãe que mora
com o companheiro, um sobrinho maior de idade, dois genros e mais três filhas. A filha mais
velha tem três crianças na escola, e a mais nova ainda é aluna da instituição. A avó/mãe se diz
responsável pela vida escolar desses quatro alunos. Essa entrevistada é a número 1 do grupo
focal.
Quatro mães identificaram-se como brancas e duas afirmaram ser negras. Não
apareceram outras designações, diferentemente dos alunos e professores, que utilizaram um
maior número de formas de autodeclaração. Há três mulheres que se identificaram como
participantes de religiões evangélicas pentecostais, e, destas, uma relatou também fazer parte
de religiões afrobrasileiras. Além dessa, mais duas disseram ser participantes de religiões
afrobrasileiras. Por fim, uma se diz sem religião.
Todas essas mulheres residem na Cohab do Rubem Berta, em diferentes núcleos, com
exceção de uma que declarou morar no bairro Mário Quintana, que é limítrofe com o bairro
75
Rubem Berta. Sobre condições de moradia, quatro participantes relataram possuir casa própria,
fato explicado por ser a Cohab um local que passou por processo de legalização de moradias,
conforme abordado no subcapítulo 3.3, e duas delas afirmaram pagar aluguel.
A próxima pergunta tratava da renda familiar. Todas responderam que recebem até três
salários mínimos, sendo que três afirmaram ganhar até um salário mínimo, somada toda a renda
da família.
A última questão era relativa à escolaridade. Duas mães relataram não ter terminado o
ensino fundamental, duas possuíam o ensino fundamental completo e duas o ensino médio
incompleto.
Concluímos que as participantes da pesquisa são de famílias de baixa renda, baixa
escolaridade, com moradia própria, com formas diversas de organização familiar, em sua
maioria considerando-se branca e tendo a média de 33,5 anos.
Com mais de 186 mil escolas espalhadas pelo país inteiro e mais de 2,5 milhões de
docentes na educação básica14, o magistério abarca um grande número dos profissionais
brasileiros. Esses educadores estão em contato com seus alunos todos os dias, não só ensinando
conteúdos, mas também interagindo com eles, apresentando novas formas de pensar e jeitos de
agir. Conforme Tardif e Lessard (2009, p. 23), “(...) a escolarização repousa basicamente sobre
as interações cotidianas entre os professores e alunos. Sem essas interações a escola não é nada
mais do que uma imensa concha vazia”. Na escola, nessa interação entre professores e alunos,
é quando “(...) os modos de socialização anteriores serão remodelados, abolidos, adaptados ou
transformados em função dos dispositivos próprios do trabalho dos professores na escola.”
(ibidem, p. 23).
Entender o perfil dos professores que ocupam a escola pública periférica, seus motivos
para estarem ali e suas formas de interagirem com os outros atores sociais revela como esses
14
Dados retirados do Censo Escolar 2018, direto da página do INEP: http://portal.inep.gov.br/artigo/-
/asset_publisher/B4AQV9zFY7Bv/content/censos-educacionais-do-inep-revelam-mais-de-2-5-milhoes-de-
professores-no-brasil/21206. Acessado em 18 mar. 2020.
76
Profe 4 ano
Fonte: própria pesquisadora.
78
As idades dos professores foram 41, 30, 43, 56, 40, 51, 53, 40, 41 e 35 anos, constituindo
uma média de 43 anos.
Refletindo sobre o que esse fato representa, utilizamos os conhecimentos trazidos por
Nilma Gomes (2003) ao explicar que todas as identidades são construídas (de gênero, de classe,
nacionalidade etc.) e relatar que a identidade negra também passa por esse processo de
construção histórica e social. A partir disso, ela indaga, em seu texto, sobre como se dá a
construção da identidade de um grupo étnico/racial sobre si mesmo e sobre os outros na relação
com outro grupo étnico racial, questiona se na escola há espaço para tais reflexões e interroga
se esses fatos são motivos para conflitos escolares. A autora chega à conclusão de que a
educação pública pode ser um espaço no qual
(...) o olhar lançado sobre o negro e sua cultura, na escola, tanto pode valorizar
identidades e diferenças quanto pode estigmatizá-las, discriminá- las, segregá-
las e até mesmo negá-las. É importante lembrar que a identidadeconstruída
pelo negro se dá não só por oposição ao branco, mas também pela negociação,
pelo conflito e pelo diálogo com este. (GOMES, 2003, p. 171- 172)
Mesmo com ações afirmativas, quando, nos últimos anos, houve uma entrada maior de
professores negros nos concursos públicos, ainda temos uma maioria branca que dialoga todos
os dias para uma população negra. É importante observar como esse aspecto se desenvolve na
trajetória escolar de professores e alunos, brancos e negros e como impacta na convivência
escolar e nos conflitos diários.
Os dados sobre religião vão ao encontro do que o IBGE mostrou no Censo Demográfico
de 2010, que apresentou um crescimento da diversidade dos grupos religiosos no Brasil, com a
redução de católicos e aumento de evangélicos neopentecostais entre os mais pobres. Além
disso, a religião espírita está ligada às pessoas com indicadores maiores de renda e educação,
consequentemente aparecendo apenas nas estatísticas dos educadores. (NERI, 2011).
número significativo de núcleos familiares compostos por mãe com filhos em ambas as
categorias, e o destaque para o arranjo de pessoas sozinhas e, muitas vezes, sem filhos em casas
com maior renda. (LEONE; BALTAR; MAIA, 2010).
Assim como as famílias, a maioria dos professores possui imóvel próprio. Contudo,
quando indagados sobre o local de moradia, percebemos que são lugares com valor imobiliário
mais elevado. Os bairros de moradia citados pelos professores foram: Passo D’Areia, Santana,
Floresta, Jardim Itu-Sabará, Rio Branco, Cristo Redentor, Cristal, Humaitá, São João e
Petrópolis. Esses bairros têm, em média, o valor de R$ 5.340 reais o metro quadrado para venda.
Já no bairro Rubem Berta, onde está localizada a escola e a maioria das moradias dos alunos, a
média do metro quadrado para compra custa R$ 2.75815.
Ainda sobre a Tabela 10, os professores da rede municipal têm uma boa remuneração,
o que se reflete nas suas condições de vida. Segundo Aguiar (2019), os bons salários estão
ligados ao processo de valorização salarial e de formação continuada do plano de carreira do
magistério, que coloca essa rede entre as mais bem pagas das capitais do Brasil, apesar dos
salários congelados há mais de três anos. Isso significa que o fator classe social também
apresenta divergências na relação entre famílias, alunos e professores, sendo os docentes
privilegiados por terem acesso a bens de consumo que não estão ao alcance dos estudantes e
seus familiares.
Somos conscientes das desigualdades que nosso país enfrenta, portanto, defendemos a
importância de a profissão do magistério ser valorizada, atrativa e bem paga. A dificuldade,
entretanto, refere-se à baixa expectativa de aprendizagem e capacidade de resolução de conflitos
que estudos apontam que professores têm em relação aos seus alunos provenientes de faixas de
renda menores, fator que marca a forma como os docentes percebem seus alunos. Segundo
Vidal e Vieira (2017), o questionário do Professor da Prova Brasil/Avaliação Nacional da
Educação Básica de 2013, que foi aplicado a uma amostra de docentes do 5º e do 9º anos de
todo o país, nas redes federais, estaduais e municipais, revela que os professores atribuem os
problemas de aprendizagem dos alunos a fatores externos à escola, principalmente ao meio
social em que o aluno vive (80,7% e 79,0%), ao nível cultural (80,4%
15
Dados retirados do site Secovi (Sindicato da Habitação do RS) para o mês de dezembro de 2019.
Disponível em: https://www.secovirsagademi.com.br/. Acesso em: 20 mar. 2020.
81
Dessa forma,
Tabela 8 – Pergunta aos professores: o que você faz para lidar com o estresse?
Respostas dos professores Quantidade de respostas
Encontrar amigos/conversar 5
Medicação 3
Viajar/descansar 3
Conforto espiritual/Orações 2
Atividade física 1
Terapia/psicólogo 1
Compras 1
Fonte: própria pesquisadora.
82
A atividade mais citada pelos professores para aliviar o estresse foi a de reunir-se com
os amigos e conversar. Logo depois, encontramos um número significativo de pessoas que
fazem o uso contínuo de medicações, seguido pelas categorias viajar/descansar, conforto
espiritual/orar, atividade física, terapia/psicólogo e comprar.
Como a pergunta era do tipo aberta, ou seja, cada um respondia o que achava mais
adequado e se quisesse, é surpreendente o número de pessoas que afirmaram fazer uso de
medicamentos para ‘dar conta’ das exigências do dia a dia, tópico que, inclusive, surge em uma
das entrevistas realizadas.
Acho a profissão desgastante, lida com nossos limites o tempo todo. Já tive
depressão e precisei me afastar. Faço terapia e tomo medicação. Sem Rivotril16
não consigo vir trabalhar. (Professora, 51 anos, grupo focal)
16
Nome comercial para o remédio clonazepam, tendo como principais propriedades inibição leve das funções
do sistema nervoso central, permitindo assim uma ação anticonvulsivante, alguma sedação, relaxamento
muscular e efeito tranquilizante. (Fonte: Wikipedia)
83
pode ser um dos motivos causadores de dificuldades em gerir conflitos, pois, para orientar
alunos, dar vazão às diferenças, evitar a exclusão, a ameça e a humilhação, é necessário um
professor com paciência para escutar, capaz de propor alternativas e que tenha uma postura
positiva para que os alunos sintam-se acolhidos, amados e à vontade para exporem suas
subjetividades, medos e sentimentos em geral.
A partir da análise dos participantes dos grupos focais e entrevistas, concluímos que
professores, alunos e famílias possuem suas próprias singularidades. Essas diferenças de
observação sobre o mundo fazem com que as percepções sobre um mesmo objeto sejam
divergentes, e as experiências sejam resultados das relações entre esses diferentes (pais, alunos
e professores).
17
Kergoat (2010) utiliza o termo raça no seu artigo, explicando que a trata como uma categoria socialmente
construída, fruto de movimentos de discriminação e de ideologias. Opta por colocá-la entre aspas, deixando
claro que aqui não se está abordando um conceito biológico.
85
Partimos da teoria de que a escola é uma instituição cultural com modelos e práticas
educacionais que busca uma visão de homogeneidade dos atores que dela fazem parte. O
discurso da igualdade e do acesso a todos esconde uma pluralidade que se faz silenciada e
neutralizada e se sobrepõe aos sujeitos, em uma espécie de macroestrutura, com discursos
ideológicos que se colocam sobre esses sujeitos.
Ao analisar uma categoria social, torna-se necessário abordar as outras categorias, pois
as percepções se dão nas relações, podendo ou não gerarem situações conflituosas. Portanto,
aqui, não queremos estabelecer um comparativo, mas sim observar como diferentes sujeitos
percebem as situações do cotidiano escolar e que tipos de soluções encontram para esses fatos.
A primeira dimensão pretende mapear, pela ótica dos atores sociais, quando há conflitos
no espaço escolar em relação aos comportamentos dos diversos atores. O indicador principal é
a existência ou inexistência de espaços democráticos de construção de diálogos. Para verificar
essa dimensão, realizou-se uma análise das respostas dos participantes dapesquisa, além de um
recorte das respostas dos alunos, pais e professores sobre a pergunta ‘quando a escola é boa?’
tanto nos grupos focais como nas entrevistas individuais. Tais respostas foram analisadas pelo
programa NVivo, por meio do recurso ‘contagem de palavras’. Para os alunos, as palavras que
mais apareceram foram ‘escola’ (seis vezes) e ‘comer’ (quatro vezes). Isso demonstra que, para
eles, a escola é considerada boa no momento em que oferta refeições de qualidade.
Quando tem comida boa. Tipo, em dias especiais. Dia da criança ano passado
teve hambúrguer e suco. Foi muito bom. Se bem que eu sempre almoço pra
não comer besteira. Eu vi na TV que ajuda na dieta comer arroz
86
e feijão e como eu preciso emagrecer uns quilinhos... Aí tento comer aqui pra
não comer besteira. (Aluna, 13 anos, entrevista)
Além disso, foram citadas as atividades além de ‘quadro e giz’, como festividades
ofertadas pela escola.
Quando é dia especial, tipo dia das crianças, Halloween. (Aluno, 13 anos,
grupo focal)
Eu vou pra escola pra estudar, aqui é sempre bom. (Aluno, 14 anos,
entrevista)
Eu acho que a escola tem um grau de ensino bom. Eu quero ser biólogo e
acho que a escola tá me ajudando pra isso. (Aluno, 15 anos, grupo focal)
Com os pais, utilizou-se o mesmo método, com recorte das respostas dadas à pergunta
‘quando a escola é boa?’, posteriormente inseridas no programa NVivo, no recurso ‘contagem
de palavras’. Para eles, a escola boa é aquela que cuida. A palavra ‘cuidado’ foi citada três vezes
por meio da contagem de palavras criada pelo programa Nvivo, apresentando uma visão positiva
do trabalho executado pela instituição.
Eu acho a escola boa quando as crianças aprendem, são bem cuidadas. Eu vejo
que a escola tem muita coisa boa, muita atividade boa pra eles. (Mãe, 32
anos, entrevista)
Quando a gente pode sair em paz daqui e saber que vão tá bem cuidados, que
não vai ter confusão no recreio. (Mãe, 31 anos, grupo focal)
A respeito das falas dos professores, ocorreu o mesmo processo: um recorte das
percepções sobre quando a escola é boa e a posterior análise na opção ‘contagem de palavras’
no programa NVivo. Eles relataram que a escola pode ser considerada boa quando consegue
incluir e manter os mais diversos alunos, ou seja, ampliar sua ação democrática. As palavras
democracia/cidadania e derivados (cidadão, urbanidade) apareceram quatro vezes, tanto nas
entrevistas como nos grupos focais. Na primeira entrevista realizada, a professora explica que
a escola, por conta do modelo que vigora, ainda não consegue evitar a evasão daqueles que não
se enquadram aos parâmetros esperados.
87
A escola é boa quando consegue dar conta de todos os tipos de aluno, não só
os de educação especial, não só isso. (Professora, 30 anos, entrevista)
A escola é boa quando o aluno quer ir pra escola.(...) Não que eu ache que não
tem brigas, eu sei que tem, mas enquanto tem evasão escolar, enquanto o aluno
não quer estar na escola, e ele não vai querer se o professor estiver
desmotivado, pra mim a escola é o aluno, que precisa do professor, que precisa
estar bem para o que o aluno fique bem. Então tudo gira pro mesmo objetivo.
Não tem um bom professor insatisfeito. E não tem aluno feliz com professor
insatisfeito. A escola boa é aquela que consegue manter o aluno aprendendo.
(Professora, 43 anos, entrevista)
As abordagens das professoras entrevistadas vão ao encontro do que Neri (2009) aponta
em seus estudos sobre evasão escolar. O autor alega que o sistema educativo apresenta uma
tendência de expulsar certos estudantes que não se enquadram nas expectativas de funcionários
e professores; assim, não podemos pensar na evasão como um processo de fracasso individual,
mas sim como um processo coletivo, que envolve a ação e a percepção de muitas pessoas.
Também há um reforço por parte dos professores de que escola boa é aquela que socialmente
atinge seus objetivos, levando outras vivências aos alunos.
Quando os alunos foram perguntados sobre ‘quando a escola é ruim’, verificamos que
a maior parte das respostas foi em relação à questão física da escola e falta de infraestrutura.
88
Houve queixas em relação aos banheiros, citadas por quatro alunos entre entrevistas e
grupo focal. Inclusive, houve relatos de alunos que passavam muitas horas na escola sem
frequentá-los.
Eu não acho a escola ruim, é ruim os banheiros, não vou no banheiro aqui.
Mas daí não é culpa da escola né, é dos políticos que não mandam dinheiro.
(Aluno, 14 anos, entrevista)
O problema daqui são as coisas, tipo, falta material para o professor dar aula,
agora há uns dias não tinha bola pra gente jogar na hora do recreio. (Aluno,
15 anos, grupo focal)
Outra queixa foi a sala de informática sucateada, que, segundo uma aluna, ‘foi
arrumada’, mas eles não tinham acesso. Ou seja, talvez ela até estivesse disponível, mas não era
usada conforme esperado pelos alunos.
Não tem sala de informática. Disseram que arrumaram mas a gente ainda não
pode ir lá. E é tudo empoeirado, parece sujo. As pessoas também não cuidam
né. (Aluna, 12 anos, grupo focal)
Houve novamente comentários a respeito da comida, que, podemos deduzir, possui uma
centralidade importante na vida escolar. A reclamação era a de que, quando havia comida
considerada boa, esta era limitada, não podendo repetir-se o prato.
O problema é que as tias não dão comida a mais quando é coisa boa. (Aluna,
14 anos, entrevista)
Outra reclamação dos alunos diz respeito às brigas e violências em geral, que
incomodam. As agressões podem ser classificadas como violências quando são usadas para
intimidar, diminuir ou machucar o outro. As brigas muitas vezes podem parecer começar por
89
motivos estranhos a quem não está envolvido ou não domina os códigos e condutas próprios de
determinados grupos de adolescentes. (ABRAMOVAY; CUNHA; CALAF, 2009). Aqui a
queixa é o uso do palavrão e o quanto tais atitudes irritam os que não estão diretamente
envolvidos na situação.
Quando tem violência (...) de tudo que é tipo, aí é arreganho que vira briga.
(Aluna, 10 anos, grupo focal)
Outro fator trazido pelos alunos como ruim é a falta de professores. Muitas vezes, há
falta de um professor de determinado conteúdo e a necessidade não é suprida. Quando ele
retorna de seu afastamento, precisa ‘acelerar’ conteúdos para atender às demandas. Essa
situação faz com que os alunos se sintam pressionados a produzir e acompanhar aprendizagens
que necessitariam de mais tempo e condições.
Quando os professores não vêm, tem uns que acabam faltando muito, aí a
gente perde a matéria e depois fica difícil de acompanhar tudo. (Aluna, 12
anos, entrevista)
É ruim também quando falta professor. Aí a gente perde muita matéria. Tipo,
o professor fica doente muito tempo e não mandam ninguém no lugar. (Aluna,
13 anos, grupo focal)
90
Quando falta professores, quando as crianças são liberadas mais cedo porque
não tem aula. (Mãe, 32 anos, entrevista)
Quando falta professor. Vejo que isso melhorou bastante nos últimos tempos,
ano passado a ‘X’ tinha uma professora que faltava muito. (Mãe, 31 anos,
grupo focal)
Esse fato afeta diretamente o direito dos alunos de frequentarem a escola e torna-se um
problema para as famílias, principalmente para aquelas que trabalham em horário comercial ou
que têm mais filhos – e, consequentemente, a saída em horários diferentes –, precisando rever
sua logística e diminuindo a sensação de segurança entre seus membros.
Outra situação citada por uma das mães é quando a escola não consegue atingir seu
objetivo principal: proporcionar situações de ensino e aprendizagem. Há várias razões para esse
fato, desde falta de qualificação docente quanto dificuldades próprias dos alunos geradas por
acesso precário à alimentação e aos bens culturais. Nessa instância, o foco é evidenciar o quanto
tal fato pode ser desencadeador de conflitos, uma vez que o relato da mãe ocorre no sentido de
tentar ajudar a criança e não saber como fazê-lo, individualizando uma situação que é coletiva
e social.
Para os professores, a escola passa por uma fase ruim. Segundo eles, o grande problema
do momento são as relações interpessoais entre os próprios membros do corpo docente. As
queixas relacionam-se ao fato de não haver mais reuniões, conselhos de classe ou
confraternizações fora da escola para que se estabeleçam momentos de diálogo em que seja
possível trocar informações, qualificar o trabalho e resolver as questões de conflito.
A gente não tem tempo de convivência mais. A gente não conhece os colegas,
nem o nome dos colegas. Eu não sei quem é quem. Eu não sei quemé professor
e quem é monitor. Eu não sei quem é contrato e quem não é, enão é só isso, é
saber, não de fofoca, da vida do outro, mas de saber que a fulana é casada com
o ciclano, que tem filhos, que a gente conversa sobre isso. Se o filho tá isso, tá
aquilo. A gente não sabe mais nada. A gente não tem mais intimidade.
(Professor, 40 anos, grupo focal)
Acho que aquilo que a gente prega com os alunos a gente não consegue entre
nós. Porque o que eu noto assim... uma intolerância com o jeito de ser do outro,
todos nós temos os nossos defeitos, nós não somos perfeitos. E acho que tem
pessoas que têm mais dificuldade de entender o outro como ele é, aí é aquela
coisa, a cada cinco minutos que tem começa a criticar o colega. Eu acho que
isso mina o ambiente, isso é desgastante e desgosto. (Professora, 41 anos,
grupo focal)
Aguiar (2019) afirma, em sua dissertação, que as políticas públicas que estão em vigor
na rede municipal de educação promovem uma drástica diminuição dos espaços de diálogo
entre os professores, gerando o que ele chama de ‘institucionalização do individualismo’ (p.
155). Para o pesquisador, essa política estimula o empobrecimento da produção do
conhecimento ao reforçar o ideário de que a escola é apenas reprodutora de informações.
Voltando aos jovens, a pergunta sobre sua motivação para irem à escola obteve
respostas, em sua maioria, voltadas para o futuro.
Porque não dá pra ficar em casa dormindo se eu quero ser alguém. (Aluna,
12 anos, grupo focal)
Porque sou obrigada, senão o conselho tutelar vai na minha casa, e também
vou na escola para ser alguém na vida. (Aluna, 13 anos, grupo focal)
Por que eu acho que já rodei um ano, eu vi que tipo, não vale a pena perder
um ano, cada vez um ano a mais da minha vida, porque eu podia tá
trabalhando, fazendo várias coisas, mas não, tive que rodar, pra fazer tudo de
novo e por isso que eu venho. Ninguém me obriga. Eu venho porque eu tenho
vontade. (Aluno, 14 anos, entrevista)
As famílias também evidenciaram que a escola é uma aposta para um futuro melhor.
Muitas relataram histórias difíceis e garantiram que desejam outra vida para seus filhos, e a
educação formal seria a chave para tanto, o que posiciona a escola como um possível trampolim
para uma vida mais digna.
Eu trabalho duro para dar o melhor para os meus filhos, quero um futuro
melhor pra eles. (Mãe, 32 anos, entrevista)
Eu moro no Mário Quintana e mando minhas filhas pra cá pra elas terem um
futuro. Eu fui mãe com 14 anos, não quero isso pra elas. (Mãe, 54 anos, grupo
focal)
18
Desde 1997, a rede municipal de educação conta com um instrumento chamado ‘Ficha de controle de
infrequência’, que deve ser preenchido pela orientação educacional. Após, a escola faz tudo que estiver a seu
alcance para que o aluno retorne às aulas. Obtendo sucesso, a FICAI é encerrada, mas, em caso negativo,
encaminhada ao Conselho Tutelar.
93
Para Viana (2003), estudos têm apontado que as camadas populares criam com a escola
e os processos de escolarização uma relação tensa e marcada por idas e vindas, motivadas por
fortes expectativas de uma vida melhor. O acesso ao estudo da ‘cultura legítima’ representa,
para as camadas populares, a possibilidade de entrarem em contato com pessoas de outros meios
sociais e alcançarem outros status de pertencimento. Assim, mesmo que obrigados pela família
ou nem sempre gostando do que acontece na escola, os alunos acreditam nos discursos
provenientes dos seus responsáveis de que a instituição é um passaporte para um futuro melhor.
Quando os professores foram indagados sobre o motivo por que se tornaram docentes,
as respostas foram afetivas. Muitos emocionaram-se relatando a trajetória de estudos que
tiveram, o quanto desejaram estar na profissão e como gostam de exercê-la, expondo que ‘já
nasceram professores’. Um número elevado apontou a influência da família na sua escolha.
Eu gosto das crianças, elas merecem boas aulas. (Professora, 35 anos, grupo
focal)
Eu nasci professora, eu não sei nem em que idade eu comecei a dizer isso, eu
não tinha nem entrado na primeira série, no pré e foi um sonho que me
acompanhou a vida toda. (Professora, 43 anos, entrevista)
Aqui as percepções constituem certa unanimidade. Tanto alunos quanto pais depositam
na escola uma esperança de um futuro melhor. Já os professores relatam muito orgulho em
exercer a profissão.
As percepções sobre si e sobre os outros são a chave para interpretar como as identidades
escolares se constroem. (ABRAMOVAY; CUNHA; CALAF, 2009). Sobre as percepções de
um comportamento ideal, os estudantes afirmam que um bom aluno é aquele que ‘obedece ao
professor’, é bem esperto, um nerd19.
19
Matos (2011) explica que os nerds, há pouco tempo, eram considerados jovens muito estudiosos, mas
inadequados socialmente, e agora são vistos como descolados, ocupando cada vez mais espaço na cultura pop.
94
Um ótimo aluno é alguém que não fala nome, que copia tudo, que é bem
esperto. Tipo, uma pessoa nerd, que gosta de ler, de escrever, de fazer tudo.
(Aluno, 11 anos, grupo focal)
Um fato interessante é que os alunos associam ser bons estudantes com o ato de copiar
todas as atividades do quadro. Aquele que ‘copia tudo’ é considerado bom aluno, e esse aspecto
está presente em várias falas. Talvez a cópia das atividades nos cadernos seja algo concreto,
mensurável para eles, o que gera uma sensação de aprendizagem.
O Fulano. Ele fica bem quietinho na sala de aula e presta atenção e copia tudo.
(Aluno, 14 anos, entrevista)
Aquele que copia tudo e vem pra aula, não bagunça. (Aluna, 13 anos,
entrevista)
Aquele que os professores gostam, que copia tudo, vai bem nas notas. (Aluno,
13 anos, grupo focal)
A fala da aluna revela que, para ela, estudar em casa é algo muito importante e é prova
de que é boa aluna. Na sequência, uma professora também declara que um aluno que estuda em
casa é um aluno ideal.
Os pais são bem omissos. Tem gente que nunca aparece e a maioria não sabe
que turma seu filho estuda. Não sabe nada. Eles têm cinco, seis filhos e não
sabem nada. Aí tu tá lá falando sobre a criatura e daqui a pouco essa pessoa
avisa que é a tia da criança. E tu achando que tava falando com a mãe. Aí te
contam que a criança tá na tia porque a mãe tá presa e assim vai. Quando não
é uma vizinha que vem porque ficou cuidando da criança uns dias até a mãe
se ajeitar e coisas assim. A gente nem imagina a realidade deles. Não consegue
entender, mesmo que a gente se esforce. É muito longe do nosso mundo.
(Professora, 53 anos, grupo focal)
O relato da professora evidencia situações abordadas por Fonseca (2002), que dizem
respeito ao imaginário tradicional de família nuclear formada por pai, mãe e filhos. Em seu
texto, Fonseca apresenta argumentos que demonstram que há uma grande variedade nas formas
de as famílias se organizarem, havendo situações em que não só os pais são responsáveis pela
criação das crianças, mas também avós, tios e outros parentes. Esse fenômeno acontece tanto
nas classes médias como nas classes populares, porém, o estigma recai mais fortemente nas
periferias, pois há uma associação a situações conflituosas, de abandono ou violência, o que
muitas vezes não é fato. Fonseca (2002) explica que, em muitas situações, o casal ou a pessoa
responsável legalmente pela criança precisa de auxílio da família – tios, irmãos, avós – em vista
da falta de equipamentos públicos, como creches, escola em tempo integral para auxiliar nas
rotinas do dia a dia, ou porque simplesmente está passando por um momento difícil e precisa
contar com a ajuda dos parentes, mas isso não está ligado, necessariamente, a atitudes de
abandono.
Acho que o fato das pessoas trabalharem muito fora, também se chega em casa
mais cansados e aí realmente, ficam se isentando da sua função de orientar os
filhos. Há poucos dias atendi uma mãe que veio me dizer que não era pra
mandar mais tema pra filha dela porque a filha dela não quer fazer tema e o
que ela pode fazer se a filha não quer fazer? Aí tu fica pensando... pô, mas a
menina tem 11 anos. Tem querer? Acho que desde cedo eles têm que ter saber
o que é dever e o que é direito, e o que é obrigação. Me parece que isso não
tem mais... eles só têm direito. E aí eu acho que tá faltando dos pais também...
Eu fico pensando o que vai ser dessa geração... (Professora, 35 anos, grupo
focal)
Meus filhos eu obrigo a estudar. Em casa tem que sentar na mesa e fazer o
tema. Não tem papo. Pode ser meia-noite. Se eu chego do trabalho em casa e
não fizeram as coisas, sabem que vão levar um pau. (...) Às vezes é difícil de
96
acompanhar, porque o guri diz que não tem nada pra fazer e tu acredita. Por
isso eu gosto quando a professora manda bilhete, aí eu sei que ele tá
aprontando. (Mãe, 23 anos, grupo focal)
Nessa situação, a violência é usada como uma forma de linguagem. Assim, “(...) a
violência vai configurando-se como linguagem e como norma social (...), em contraponto
àquelas denominadas de normas civilizadas, marcadas pelo autocontrole e pelo controle social
institucionalizado.” (TAVARES DOS SANTOS, 2002, p. 23). Isto é, quando há um
esvaziamento de canais comunicacionais, a violência se impõe diante da dificuldade ou da
impossibilidade de falar, tornando-se uma forma de comunicação entre os sujeitos.
Então, às vezes não tem tema, eu até acho estranho. Já o outro, que tá de tarde,
tem um monte de tema. Por isso eu não sei direito quando tem. Mas também
já são grandes, né? Se a professora manda, tem que fazer. (Mãe, 35 anos, grupo
focal)
escola, acreditando nos posicionamentos dos professores/direção, fazendo o que a escola lhes
pede, ou tecendo críticas contundentes, aumentam as possiblidades de promoção do sucesso
educacional.
Assim, mesmo não entrando nessa seara – sobre se os alunos devem ou não receber
tarefas escolares para fazer em casa –, podemos afirmar que, quando há um diálogo saudável
entre família e escola, quem ganha é o aluno. No nosso estudo, percebemos que há, por parte
dos professores, uma dificuldade em entender como as famílias se organizam, o que faz com
que acreditem que elas não acompanham os estudos dos seus filhos.
Eles aprendem direitinho, o boletim deles têm notas boas. (Mãe, 43 anos,
entrevista)
Segundo indica Resende (2012), as condições culturais e materiais dos pais limitam sua
participação. A autora destaca que é importante frisar essas limitações das camadas populares,
porque ainda existe o argumento da “omissão parental” por parte dos educadores. A autora
descobre, assim como nos dados que encontramos, que as famílias afirmam ter estratégias para
acompanhar os filhos. O ponto divergente encontra-se na forma pela qual esseacompanhamento
ocorre. As percepções do que seja participar do desenvolvimento de um filho/estudante são
diferentes. Enquanto os professores gostariam que as famílias assessorassem mais o dia a dia
da rotina escolar – olhando suas mochilas, seus cadernos, perguntando como foi ir à escola e o
que aprenderam – as famílias baseiam-se no boletim e no que os professores escrevem como
retorno; quando estes não o fazem, acreditam que está tudo bem. Há, na verdade, um
desencontro de perspectivas.
Sim, minha mãe ou meu pai sempre vem buscar o boletim. (Aluno, 14 anos,
entrevista)
98
Percebemos que as famílias das camadas populares ‘aguardam’ uma sinalização sobre
como seus filhos estão na escola e sobre o que devem fazer para acompanhar e melhorar o
desempenho. Constatamos que a família tem um foco muito grande no resultado e pouco no
processo. O importante é a ‘nota final’, e não como as aprendizagens se constituíram durante
o ano. Então, um choque de visão é gerado, pois os professores parecem estar mais preocupados
em como e se as aprendizagens ocorrem.
A mesma pergunta foi feita ao núcleo de professores. Percebemos que há uma visão
negativa sobre o acompanhamento da família na vida escolar do aluno. Esses dados apontam
que, na perspectiva de professores x alunos x pais sobre a aprendizagem, os professores, pela
formação docente que receberam, acreditam e valorizam os processos que estão imbuídos na
aprendizagem e importam-se com a ausência de mecanismos para que ela ocorra, e não tanto
com o resultado final. Já as famílias, por não terem tanta clareza desses processos, valorizam
o produto final, ou seja, o boletim ou algum bilhete que o professor envie. Esse fato é ilustrado
pelo diálogo a seguir, coletado em uma das entrevistas realizadas com os docentes:
O que eu percebo é que os pais, até uma faixa etária acompanham, mas depois
meio que abandonam. Aí vai arranjar trabalho e manda se virar. E eu acho que,
por mais difícil que seja, tem que tá olhando, acho que a família tem que ter
esse olhar, porque na verdade todos nós estamos em formação,
99
O que explica bem e faz umas atividades boas, não só copiar coisas do quadro.
(Aluno, 14 anos, entrevista)
Pelo relato dos alunos, há professores que conseguem estabelecer boas relações até com
estudantes mais ‘difíceis’, e outros que entram em sala de aula com posturas autoritárias que
incomodam os jovens e os fazem entrar em atritos desnecessários.
100
Eu odeio algumas professoras. Elas são muito chatas, implicam com tudo.
“Senta direito”, “Não fala assim comigo”, “Sou mais velha”. Nem minha mãe
me trata assim. (Aluna, 13 anos, grupo focal)
Eu acho que tá difícil pintar uma imagem perfeita de professor, é aquele que
aguenta a situação que estamos vivendo e ainda consegue se posicionar
minimamente. (Professora, 51 anos, grupo focal)
Acho que tem tudo que é tipo de professor, gente interessada e gente que ‘leva
nas coxas’. Mas eu prefiro não falar dos meus colegas, não sei das dores deles.
Mas vejo uma falta grande de trabalho, bastante biometrias. Até porque é um
trabalho que exige muito emocionalmente. (Professora, 43 anos, entrevista)
Essa visão pode ser resultado de um discurso proferido pela própria secretaria de
educação. Segundo Ribeiro (2017), em uma reportagem dada ao Jornal do Comércio, o atual
secretário de educação relata que
Esse discurso de que os professores tiram muitas licenças faz com que seus colegas de
profissão, que, da mesma forma, estão com carga de trabalho exaustiva, considerem que as
faltas são elevadas. Quando um professor falta, outros precisam suprir essa ausência, ou a turma
em questão necessitará ser dispensada e essas aulas repostas, após o calendário escolar estar
concluído, provocando o adiamento da saída dos professores para o recesso.
Um dos problemas da nossa escola é que tem gente que quer tirar vantagem
e trabalha pouco. Tem gente em setor e outros professores que não exercem
suas funções adequadamente. (Professora, 35 anos, grupo focal)
10
Tal perspectiva também permeia o entendimento dos pais, que consideram que os
professores faltam muito por ‘doenças’. Por outro lado, as famílias teceram vários elogios à
paciência dos educadores para ensinar e ressaltaram sua importância para seus filhos.
Eu entendo que as professoras têm filhos e que eles ficam doentes, mas tem
gente que o filho fica doente sempre. (Mãe, 54 anos, grupo focal)
Observamos que há alguns espaços para diálogo entre os diferentes atores sociais, que
necessitam, entretanto, ser aprimorados para evitar que os momentos conflitivos tornem-se
violências. Os atores sociais concordam com a importância da escola, porém divergem no seu
modo de atuação no processo educativo. Pais e alunos esperam uma escola mais voltada às
questões assistenciais, como alimentação e cuidado, e aguardam retornos ‘concretos’ por parte
da escola, como bilhetes e boletins. Já os professores estão mais preocupados com os processos
de aprendizagens e com uma atuação mais ampla da escola, abarcando aqueles alunos que hoje
não se enquadram no processo.
Esta dimensão pretende entender como cada sujeito se sente em relação à convivência
escolar, como vê a atuação dos diferentes atores e se, na sua percepção, há espaços para que os
conflitos sejam colocados em diálogo. Nesta dimensão, a primeira pergunta era em relação às
pessoas e à convivência escolar, como cada sujeito via a questão da convivência no espaço
escolar. Para os alunos, a partir de seus relatos, a sociabilidade junto aos seus colegas e
professores é muito importante, ou seja, a escola não é um lugar somente para aprender
conteúdos formais, mas é percebida como um importante espaço de socialização.
Adoro quando tem funk no recreio. É muito divertido e é bom dançar com as
minhas amigas. (Aluna, 12 anos, grupo focal)
Com meus amigos sim (tem bom relacionamento), mas tem outros que eu
não gosto. Tem uns que só querem briga e eu nunca brigo. (Aluno, 14 anos,
entrevista, explicação em itálico adicionada pela pesquisadora)
Sim, a gente se dá bem, se ajuda. Tem um grupinho que não se mistura muito
e uns meninos que são mais velhos que não falam muito com a gente, mas a
maioria dos colegas são legais. (Aluna, 12 anos, entrevista)
Tem bons grupinhos de amizade. Pro bem e pro mal. Tipo, semana passada
tinha um grupinho de alunas bebendo corote20 na frente da escola, aí elas se
protegem né. Tem toda uma relação de cumplicidade. (Mãe, 32 anos,
entrevista)
As razões pelas quais os alunos gostam da escola podem, também, ter ligações com os
professores e com a direção, que aparecem como referência. Nesse sentido, a escola cumpre um
papel essencial na construção de capital social.
Tenho uma professora maravilhosa que educa a gente, que não xinga, que não
grita. Humm... gritar toda professora grita, né. Não tem como mudar isso. Mas
ela é uma carinhosa, divertida, dá ensino pra gente. (Aluna, 12 anos,
entrevista)
Capital social é uma forma de designar algumas características dos agentes sociais que
advêm nos grupos dos quais o ator participa. No momento das interações sociais, o indivíduo
faz trocas materiais e simbólicas que se tornam uma rede de recursos. Essa rede pode ser de
recursos econômicos, culturais ou simbólicos, que estão intimamente ligados à pessoa que os
aciona. (BOURDIEU, 2002).
20
O corote é uma bebida com um teor alcoólico muito alto e um preço muito baixo, disponível em vários
sabores “atrativos”, que vão de morango e pêssego a baunilha com limão e canela. É composta de cachaça,
água e açúcar, em embalagens pequenas de 300 ou 500 ml. Ao visitar os três minimercados próximos da escola,
em todos encontramos a bebida para venda.
104
Existem, da mesma forma, relatos em torno de fofocas, que aparecem no cotidiano como
um controlador social. São situações relatadas como ‘me disseram’, ‘me contaram’, mas que,
quando se questiona o autor do relato, este não tem certeza. Segundo Elias e Scotson (2000, p.
121), a fofoca “(...) não é um fenômeno independente”. Ela precisa apoiar-se nas crenças do
outro e ter em comum o que seja considerado depreciativo ou elogioso sobre terceiros. As
fofocas acabam servindo como processos de regulação entre os grupos.
Eu tenho uma colega que fuma maconha. Ela já teve até filho, me disseram,
mas ela perdeu. Ela tirou porque o guri era bem mais velho do que ela e foi
considerado estupro. (Aluna, 12 anos, grupo focal)
Também tem uma guria na minha turma que me contaram que tentou se matar
e que também bebe. Ela tem depressão. A gente tenta ajudar, manda ela parar
de cortar, mas ela fica fazendo draminha. (Aluna, 10 anos, grupo focal)
Eu sei que algumas professoras me odeiam, eu não respeito elas porque não
merecem. Elas ficam lá achando que sabem das coisas, mas nem sabem de
nada. Neguinho tem que resolver mil tretas e elas acham que sabem da vida.
(Aluno, 15 anos, grupo focal)
Meus colegas são um porre. Vivem brigando, não se ajudam. O tempo todo é
palavrão, mandando todo mundo tomar no cu. Isso irrita sabe? Tu tá lá no teu
canto e tem que ficar ouvindo neguinho bater boca. (Aluno, 15 anos, grupo
focal)
10
Nas falas registradas dos alunos, vemos que o desafio maior da escola recai sobre as
relações interpessoais, tanto na esfera entre alunos como entre alunos e professores. Osdesafios
referentes à melhora da qualidade das convivências estão na necessidade de combater práticas
cotidianas de discriminação, preconceito entre alunos, crise de autoridade por parte dos
professores e sua falta de capacidade de gestão dos conflitos, ao criarem-se formas mais justas
e democráticas de resolução dos problemas. (SPOSITO, 2002). São esferas complementares,
uma vez que, quando os alunos conseguem ter espaço para resolução de seus conflitos
interpessoais, os professores estão fazendo a gestão desse momento e melhorando o clima
escolar como um todo.
No entanto, para que isso aconteça, é necessário que a convivência entre os professores
também seja ressignificada. Como já apresentado na dimensão 1 (as relações sociais e os
conflitos escolares), subseção 4.2, os professores demonstram estar muito preocupados com
seus problemas interpessoais, citando-os como parte importante a respeito do que está ruim na
escola.
Para a compreensão desse fenômeno, que perpassa por condições de trabalho que vêm
se precarizando nos últimos anos, como já brevemente relatado, é necessário entender que a
rede municipal passou por diversas alterações na sua forma de organização, o que fez diminuir
drasticamente os espaços de diálogo. Foram ações como a retirada dos conselhos de classe, que
hoje devem acontecer todos em um dia, e das horas de reunião e planejamento coletivo e a
obrigatoriedade dos professores de se manterem na escola, mas sem conseguir encontrar seus
pares ou a todos. Essa falta de espaço para diálogos aumenta a sensação de incapacidade de
gerenciar conflitos.
Então a pessoa vai lá dá seu período e não tem período de convivência, não
tem janelas. É o período do recreio, que as pessoas fazem suas necessidades,
comem uma coisinha e só. (Professor, 40 anos, grupo focal)
Conforme Aguiar (2019) retrata em sua pesquisa, uma de suas entrevistadas – professora
da rede municipal – menciona a ‘solidão pedagógica’, que representa essa falta de diálogo que
acarreta a diminuição das possibilidades de aperfeiçoamento do trabalho realizado pelos
professores para a melhoria da convivência. Essa impossibilidade faz com que a função do
docente se restrinja a transmitir conteúdos, o que aumenta a sensação de impotência perante os
problemas de convivência que ali se colocam.
106
Essas ações de retirada de espaços de diálogo vão contra documentos oficiais, como os
PCN, que afirmam que “[a] escola deve ser um lugar onde os valores morais são pensados,
refletidos, e não meramente impostos ou frutos do hábito” (BRASIL, 1997), ou a BNCC, que
coloca a capacidade de diálogo como uma habilidade a ser desenvolvida pelas mais variadas
disciplinas e em diferentes ambientes. Assim, a volta dos espaços de trocas entre os professores
seria uma forma de melhorar as condições de convivência no ambiente escolar.
Nos sentimentos dos professores em relação aos seus alunos, há uma sensação de
diminuição da capacidade de estabelecer diálogos com eles.
Esse ano nós estamos no décimo mês de trabalho e convivendo com os alunos
intensamente. E aí é que tá, às vezes os alunos não querem tá ali, aí tão ali por
obrigação, pra cumprir protocolo, pra não acionar conselhotutelar, não perder
bolsa família e não porque a família valoriza a escola. (Professora, 51 anos,
grupo focal)
Então os alunos estão cada vez com mais dificuldades financeiras e isso gera
mais transtornos, as famílias estão cada vez com menos emprego então isso
também gera mais problemas. Então já vem pais com problemas, alunos com
problemas e é difícil tu intermediar e estabelecer uma conversa. Alguém tem
essa capacidade? (Professora, 41 anos, entrevista)
O problema é o pai que não chega na escola e nós temos muitos pais que não
acreditam na educação, porque têm problemas que são maiores que isso, têm
que alimentar, têm que dar roupa, têm que ter emprego... têm outros problemas
mais urgentes. Assim como também tem pais que têm uma estrutura e não
acreditam na educação mesmo porque isso vem de uma cultura também.
Muitos não tiveram isso, muitos não são alfabetizados ou cursaram poucos
anos. A vida ensina de uma forma muito cruel que não adiantou, porque é
difícil. (Professora, 43 anos, entrevista)
A infraestrutura tem efeito na relação que os atores sociais estabelecem com a escola
ao influenciar no clima escolar. Pichações, lixo pelo chão, janelas sujas, banheiros descuidados,
esgoto a céu aberto e falta de iluminação criam sentimentos de não responsabilidade com o
espaço público, desgastando a sensação de que a escola pertence a todos e por todos deve ser
cuidada.
Um amigo falou hoje no refeitório que ia bater no outro. Mas ele não bateu. A
professora ficou conversando com ele. (Aluna, 13 anos, grupo focal)
Eu aprendi a comer muita coisa aqui na escola. A sora come com a gente, aí
tu te obriga a experimentar as coisas. Esses dias eu comi alface, aí a sora disse:
pica bem pequeno, esconde no meio da comida que nem vai sentir. E daí até
que eu gostei. (Aluno, 11 anos, grupo focal)
De modo geral, o espaço físico foi apontado como um problema tanto por professores
como por alunos. Encontramos críticas às pichações, que estão associadas ao malcuidado com
a escola; sua presença faz com que os alunos associem a escola aos presídios, bem como a
quantidade de grades que há nos prédios.
A escola tem tanta grade que parece um presídio. (Aluno, 14 anos, grupo focal)
Debarbieux (2001) explica que incivilidades como pichações, janelas quebradas e outras
pequenas depredações aumentam a sensação de insegurança e provocam nas pessoas menos
credibilidade no trabalho desenvolvido naquele ambiente. A exceção parece ser o refeitório, um
local que é visto como agradável por todos. A biblioteca também é considerada um lugar bom
de estar, no entanto, lamenta-se que passe tanto tempo fechada. Uma mãe menciona que era
frequentadora da biblioteca, mas que, nos últimos três anos, não teve mais acesso a ela.
Eu gostava de ir na biblioteca com meu filho mais velho, acho que ela tem
bastante livros. Agora ela tá sempre fechada. (Mãe, 54 anos, grupo focal)
Gosto da biblioteca, acho que ela tem um bom acervo. Uma pena que esteja
sem uso por falta de gente lá. Na época que tinha gente pra manter a biblioteca
aberta era bem melhor. Qualificava nosso trabalho. (Professora, 56 anos,
grupo focal)
A falta do atendimento da biblioteca para os alunos e o público em geral faz com que a
mesma perca sua finalidade educativa como local privilegiado para agregar toda a comunidade
a desenvolver o gosto pela leitura. Depois que um aluno domina a decodificação das sílabas –
aprende a ler –, é fundamental que ele desenvolva o que chamamos de letramento, ou seja, vá
além do simples ler, e sim compreender, amplie seus horizontes e crieo hábito da leitura.
famílias. Há também relatos de alunos que possuem bom relacionamento com professores e
direção. A dificuldade de resolução dos conflitos está na seara da falta de diálogos, quando
aparecem problemas de convivência entre os próprios professores devido à falta de reuniões
pedagógicas, queixas dos docentes sobre famílias que não comparecem à escola e fofocas que
acabam se tornando ‘lendas urbanas’ entre os alunos, gerando diferenciações entre os que são
bem vistos e mal vistos. Por fim, professores observam que o gerenciamento da sala de aula
está muito ligado ao seu preparo. Podem muitas vezes demonstrar bom manejo da sala de aula
e outras vezes terem uma postura na qual os problemas de relacionamento não são seus.
Por fim, a infraestrutura da escola em geral aparece como problema, à exceção do
refeitório, visto como um lugar afetivo onde há bons espaços de diálogo. Os alunos relatam que
a escola muitas vezes lembra um presídio, com suas pichações e excesso de grades. Os pais
sentem falta da biblioteca, que, em outras épocas, era aberta à comunidade. Os professores
sentem falta de mais acesso a recursos tecnológicos. Concluímos, por fim, que a questão de ter
ou não momentos para que os conflitos sejam colocados em diálogo depende muito dos sujeitos
envolvidos, pois não há uma unanimidade sobre tal perspectiva.
nada faz –, enquanto os professores dizem estar muito preocupados com a crescente violência
por parte dos alunos e pais e sentirem-se impotentes diante do fato.
Também, aqueles colegas dela só batem nela. Eu já dei uns cascudos neles
também. Contando que bateu nos colegas da irmã mais nova. (Aluna, 12 anos,
grupo focal, explicação nossa em itálico)
Eu cuido do meu sobrinho. A mãe dele que pede. Os guris da turma dele sabem
que se se meterem com ele, vão levar. (Aluno, 13 anos, grupo focal)
(...) a guria falou pra mãe dela que a outra queria bater nela e aí a mãe foi lá
e bateu na guria que queria bater aqui na escola. A mãe entrou aqui na escola,
bateu na menina e foi embora? Sim. E o que aconteceu com essa mãe? Não
sei. Mas as duas tão frequentando a escola (mãe e filha). Tão vindo na escola
normal. Mas a menina que a mãe bateu eu nunca mais vi. Vocês acham que
ela deixou de frequentar escola? Acho que sim. (Aluna, 12 anos, entrevista
– grifos representam as perguntas da entrevistadora)
Um dia a gente tava ouvindo música e um guri menor veio incomodar e depois
disse que a gente tava fazendo bullying com ele. Aí a mãe dele veio tirar
satisfação com a gente. A mãe veio falar com vocês ou com a escola? Com a
gente. (Aluna, 12 anos, grupo focal – grifos representam as perguntas da
entrevistadora)
Todas essas cenas de violência envolvem ações agressivas por parte de alunos e pais em
relação aos outros membros da comunidade escolar na tentativa de protegerem as pessoas das
suas famílias. Esse fenômeno parece-nos que está colocado sob a égide da defesa da honra, da
consanguinidade, em que os mais velhos (o que pode significar apenas dois ou três anos a mais)
precisam proteger os seus parentes mais jovens. A violência torna-se rotineira, uma forma de
comunicação nas relações estabelecidas entre as diferentes famílias dentro da escola, e há a
naturalização de agressões contra e entre menores de idade. Isso manifesta o quanto as crianças
e adolescentes estão física e emocionalmente expostas a situações de vulnerabilidade. As
famílias apostam nessa forma para resolver as questões entre seus filhosao negarem a escola
e seus profissionais como uma possível intermediadora dos conflitos. As agressões são
percebidas como uma forma eficaz de conseguir o controle sobre as crianças, e
11
os maus tratos não são reconhecidos como problemas. Considera-se a violência uma prática
aceitável e corriqueira.
Explica Fonseca (2004) que a noção de família nas comunidades mais carentes está
fundamentada em torno do eixo moral, abrangendo toda a extensão correspondente a traços
consanguíneos, incluindo tios, sobrinhos, primos de segundo ou terceiro grau, pois são aqueles
em quem se pode confiar e que, consequentemente, precisam ser protegidos. O conceito de
moralidade abrange garantir o bem-estar e a boa reputação daquelas pessoas. ‘Tirar satisfação’
do coleguinha do sobrinho, ficar de olho nos ‘seus’, são atribuições dessa tarefa do bem-educar,
pois garantem a moralidade daquela pessoa, já que ela não está só, tem uma família que a
protege e cuida. Nesse cuidar entra a necessidade do uso de atos violentos, pois não há outra
linguagem em vigor.
Assim, a escola se configura como ineficiente para a família na resolução dos conflitos,
fazendo-se necessário o uso de outros mecanismos para proteção de seus entes, afinal, as
crianças tão tudo soltas na pracinha (Mãe, 54 anos, grupo focal), conforme o seguinte relato
de uma mãe.
Eu tô sempre na escola, de olho nos meus. Venho pra cá meio-dia, saio daqui
só depois que entram na aula. Final da tarde é mesma coisa. Não deixo solto
ninguém. Já disse pro diretor que eu cuido o recreio se eles quiserem. Já vi
professora no celular e as crianças tudo soltas na pracinha. (Mãe, 54 anos,
grupo focal)
Além disso, prevalece nesse discurso a falta de vigilância direta e constante por parte da
escola, principalmente em relação ao controle dos comportamentos. Segundo Thin (2006), nas
classes populares, a autoridade dos pais organiza-se sob poucas regras que dirigem a vida
114
criança – na rua ou em casa –, mas a transgressão desses limites não pode ser permitida, o que
dá ‘direito’ aos pais de utilizarem diferentes formas de repreensão, inclusive de fazerem uso de
forças físicas ou verbais; esta ação, por parte de vizinhos e amigos, é até mesmo estimulada.
Já escondi bilhete da minha mãe. Ela ía me matar. Uma vez ela me bateu de
colher de pau. Nunca mais tirei nota baixa. (Aluna, 13 anos, grupo focal)
Eu acho que tem um recorte de gênero aí, eu acho que os meninos apanham
mais que as meninas. Eles teoricamente aprontam mais e aí as famílias são
mais duras. Tenho a impressão que com as meninas as famílias conversam
mais. São mais tolerantes, sabe. (Professora, 30 anos, entrevista)
Essa forma de socialização entra em choque com o que a escola propaga, um aumento
da autonomia, entendida como a capacidade de as crianças controlarem a si mesmas, de acordo
com as regras da vida escolar. A autonomia (que também é uma forma de controle) é esperada
pelos professores que gostariam que seus alunos fossem mais independentes (essa
independência entendida aqui a partir do seu ponto de vista). Assim, as atitudes de repreensão
dos atos, sem uma reflexão moral, fazem com que os professores acreditem que as famílias
possuam práticas não adequadas de controle sobre seus filhos. (THIN, 2006).
Eu acho que também tem a ver com o contexto, o tipo de relação que eles têm
com os outros, eles resolvem assim. Sabemos de muitos alunos que são
agredidos e aí agridem. A gente sabe de casos que apanha muito em casa, aí
às vezes a gente nem leva pra família porque sabe que o guri vai apanhar mais
ainda. (Professora, 41 anos, grupo focal)
As diferentes formas de perceber a socialização das crianças fazem com que os pais
sejam vistos como muito permissivos ou muito autoritários. Outra consequência é que os
11
professores temem que os pais tomem atitudes consideradas por eles como violentas. Thin
(2006) explica que isso desqualifica duplamente os pais: primeiro, porque causa nestes o
sentimento de não controle sobre seus filhos e, segundo, porque a forma como lidam com os
comportamentos ‘desviantes’ seria muito prejudicial à autonomia das crianças pelo ponto de
vista da escola. Além disso, esse fato torna-se um desafio para os professores, que possuem
outra forma de estabelecer autoridade sobre a criança e, então, nem sempre conseguem atingi-
la sem se utilizarem desses mecanismos considerados mais violentos.
O que vem me assustando é que eles estão resolvendo por si. Eles estão
entrando na escola e estão tirando satisfação da outra criança. Isso vem me
assustando muito, alguma coisa a gente tem que fazer, ou bloquear os pais até
um limite, que eles não possam entrar no portão. Pra mim o pai não podia mais
nem entrar no portão, larga aqui que depois é nosso. Então, 11h45, nessa
entrada e saída eles vão onde tem que ir, lá no refeitório, por exemplo, e botam
o dedo na cara do adolescente, da outra criança, agridem, ameaçam. Então eles
tão meio que se resolvendo. Querendo resolver desta forma. Alguns pais até
trazem pra gente, aqueles que são mais ponderados trazem pra gente pra gente
conversar, pra gente tentar resolver. Mas tem também os que atropelam o
processo ou eles vão direto aos pais da criança. Ao invés deles relatarem,
pedirem ajuda, eles vão direto. E hoje em dia eles fazem os grupos do
Whatsapp e já chegou aqui discussões por causa desses grupos de Whatsapp.
Inclusive um dia eu expliquei que eu não tinha o que fazer porqueera fora da
escola. Aí é como um tratou o filho da outra, ameaça que fez. (Professora, 41
anos, grupo focal)
Na era digital as brigas são marcadas por Facebook. Marcadas fora da escola
e mesmo assim aconteciam, vinham estourar aqui e a gente tem que separar.
Tudo acaba na escola né. Mesmo as coisas não acontecendo na escola.
(Professora, 41 anos, grupo focal)
Essas formas de sociabilidade existem a partir da relação que ali está posta. Os alunos
e pais não estão completamente livres da influência das lógicas escolares, e os professores, por
sua vez, também não estão imunes. Prova disso é a valorização da escola pelas famílias ao
acreditarem que, ao mandarem seus filhos para lá, esta pode lhe trazer ‘futuro’, reconhecendo-
a como “(...) uma instituição que se tornou central tanto no processo de socialização quanto
116
no de reprodução social.” (THIN, 2006, p. 222). Assim, pais expressam um sentimento difuso
relativamente à escola. Por um lado, afirmam crer na sua eficiência, por outro, manifestam
receios de que talvez a escola não seja feita para eles ou para seus filhos, por não se
‘encaixarem’.
Antes dava bastante briga na hora do recreio, mas agora não, agora tá mais
calmo. Antes tu diz quando? Mais pro início do ano. E porque tu acha que
acalmou? Porque ninguém mais brigou e teve uns que saíram do colégio. Os
que brigavam saíram do colégio. Então os que puxavam as brigas acabaram
saindo? (afirmativo com a cabeça) E vocês sabem por que eles saíram? Uma
foi por causa que ela brigava com todo mundo. E ela que saiu ou a escola
tirou? A escola tirou ela. E a outra? A mãe tirou. (Aluna, 14 anos, grupo focal,
perguntas da entrevistadora em itálico)
Thin (2006) relata que a ambivalência também aparece quando os pais solicitam aos
professores que sejam mais rígidos e, ao mesmo tempo, reclamam de atitudes que os docentes
tenham tomado: de um lado, esperam que a ordem escolar corresponda a um modo autoritário,
de outro, procuram proteger seus entes de ‘injustiças’ que a escola possa cometer. A
ambivalência também está na relação com os professores. Os pais confiam nos professores, pois
estes têm competências pedagógicas e saberes exclusivos, e desconfiam, porque acreditam que
por vezes os professores são muito permissivos – quando dão jogos, por exemplo, o que não é
considerado como aula efetiva.
Eu sei que tem dias que eles mal têm aula. Aí a professora deixa eles jogando.
(Mãe, 26 anos, entrevista)
Eu não gosto quando os guris começam com arreganhos. Sempre fico com
roxo nas pernas. (Aluna, 12 anos, entrevista)
Esses arreganhos causam estranhamento e desconforto nos professores, que vivem sob
outros códigos sociais.
Fachinetto (2018) elucida que uma forma de violência presente na escola são essas
sociabilidades marcadas pela violência que ocorrem entre os jovens. Suas características
principais encontram-se pautadas em uma socialização marcada por ‘códigos violentos’. (2018,
p. 73). A violência, nesses casos, não é vista como um problema, mas uma forma de
comunicação, ainda que gere prejuízos físicos e simbólicos para os envolvidos. Nesse contexto,
o autor ou quem sofreu o dano não veem aquele movimento como violência, mas sim como
uma forma de relação, de criar vínculos com o outro. (TAVARES DOS SANTOS, 1997).
construção de espaços onde se possa discutir cidadania. Tavares dos Santos (1997) defende que
se problematize como se constroem essas linguagens para que possamos entender quando a
violência se torna uma forma de relação social.
Além disso, houve relatos de professores sobre sua própria atuação em sala de aula,
admitindo que já viram ou exerceram situações coercitivas ou de violência.
Surtar, tenho muito, muito surto. Minhas caras de louca meus alunos
reconhecem de longe. Quando eu fico braba, eu fico mesmo. (Professora, 35
anos, grupo focal)
A instituição escolar não pode ser vista apenas como reprodutora das
experiências de opressão, de violência, de conflitos, advindas do plano
macroestrutural. É importante argumentar que, apesar dos mecanismos de
reprodução social e cultural, as escolas também produzem sua própria
violência e sua própria indisciplina.
tem ‘nada a perder’. A violência que o professor comete seria mais grave, pois este é adulto e
responsável pela situação.
Outro momento em que o uso da violência torna-se presente nos relatos é para justificar
o uso da força física ou verbal no sentido de garantir a ordem, o respeito pelas hierarquias.
Bati nos meu colega porque ele não parava de encher o saco da professora. A
professora me mandou pro SOE e eu não entendi nada. (Aluno, 14 anos,
entrevista)
Aqui os personagens aparecem invertidos: o aluno toma uma atitude violenta para
assegurar a ordem em sala de aula e se queixa de que não sabe por que a professora o
encaminhou para o Serviço de Orientação. Talvez, se a mesma situação tivesse acontecido com
outros sujeitos e de outra forma (professor no lugar do aluno/gritar ao invés de bater), as
percepções seriam diferentes.
Nunca ameacei professor, tenho noção né. (Aluno, 14 anos, grupo focal)
Agora eu já aprendi que quando eu vou perder a cabeça acabo saindo da sala
chamando alguém da coordenação. É muito ruim os alunos te verem surtado.
Não é bom. (Professor, 40 anos, grupo focal)
A hora de encaminhar adiante é quando tu percebe que tu vai sair do teu limite.
Eu acho que é ali. Isso tem a ver com autoconhecimento, cada um deve saber
seus limites. Não tem uma receita de bolo, tipo, ah, quando chegar aqui, passa.
Não, tem que se conhecer. É um autoconhecimento. Tô chegando no limite,
vou estourar, vou surtar. Aí acho que é ali um momento bom pra chamar um
auxílio. (Professora, 35 anos, grupo focal)
Para entender melhor o fenômeno do surto, é necessário que olhemos para a profissão
professor por meio de uma visão global. Tardif e Lessard (2009) relatam que o trabalho da
docência continua sendo negligenciado, sem ter pesquisas que se debrucem sobre os fenômenos
de tempo de trabalho, condições, número de alunos, recursos disponíveis, dificuldades
presentes, relações com os colegas de trabalho, controle administrativo, burocracias, ou seja, a
especialização e a divisão próprias desse trabalho. Ainda faltam estudos sobre os impactos da
vida profissional do professor na resolução de conflitos; contudo, sabemos que o gerenciamento
de pessoas exige ferramentas de conhecimento sobre mediação de conflitos, que passa pela
necessidade de formação profissional e investimentos públicos na carreira de uma forma geral.
12
A Rede Municipal de Porto Alegre passou por mudanças drásticas na sua forma de
organização desde 2017, com a entrada do PSDB no governo municipal. Foram alterações na
rotina escolar, com a diminuição das horas-aula ofertadas aos alunos, política de fechamento de
turmas integralizadas (que passavam 7 horas na escola), políticas de responsabilização
individual do professor e modificações no plano de carreira, congelamento de salários,
ampliação das parcerias público-privadas, retirada de guardas municipais da porta das escolas,
diminuição do número de contratos de serviços em geral e alterações na forma da secretaria
da educação se relacionar com as escolas por meio da burocratização dos processos. (AGUIAR,
2019). Todas essas transformações impactaram a qualidade do trabalho dos professores, que se
sentiram mais responsabilizados pelas situações conflitivas, já que os espaços de
compartilhamento de informações foram retirados, e estes, então, não possuem mais reuniões
pedagógicas semanais nem conselhos de classe em que possam dividir situações, angústias e
pensar em soluções coletivas.
Hoje a política educacional em vigor é gerencialista; isso significa que, entre diversos
aspectos, ela diminui as possibilidades de sociabilidade entre os pares e a realização de
planejamentos coletivos, aumentando a sensação de isolamento. Todo esse cenário faz crescer
a culpabilização, que provoca esgotamento emocional e limita o controle sobre os próprios
sentimentos. (AGUIAR, 2019).
Ainda sobre hierarquia, houve relatos de que professores têm pequenas vantagens em
relação aos alunos no dia a dia da escola, criando uma hierarquia invisível entre eles. Esses fatos
são contados pelos próprios professores; nas falas dos alunos, não há nada nesse sentido.
Ah, os professores podem tudo. E os alunos veem isso né. Aí fica uma situação
ruim. Tipo, já vi professor ganhando certas coisas no refeitório e pros alunos
não tinha. Bah, complicado. (Professora, 30 anos, entrevista)
O nosso banheiro é limpo, tem espelho, papel. Já o das alunas foi recém-
reformado e já tá horrível. Às vezes passa o dia e ninguém limpa. (Professora,
40 anos, grupo focal)
As sensações de violência abrem espaço para debates sobre as estratégias mais eficazes
para superar as dificuldades que as escolas vêm enfrentando. Uma das opções que surge nos
diálogos é a presença das Guardas Municipais – que inclusive foram retiradas pelo
122
governo municipal atual, que optou por deslocar os agentes para outros locais21. Para entender
a opinião dos atores sociais sobre o tópico, foi perguntado se já viram guardas municipais ou
outros tipos de policiamento e o que achavam desse fato. As respostas se dividiram entre os que
achavam muito bom, pois trazia sensação de segurança, e outros que faziam ponderações sobre
sua atuação no ambiente escolar. Abramovay e Rua (2002) encontraram dados semelhantes, em
que a ação dos agentes policiais é elogiada, mas também criticada no seu modo de agir, além
do reconhecimento de que a atuação policial tem limites no controle e prevenção da violência
na escola.
Ainda dentro dessa discussão, é necessário entender qual é a função da guarda municipal
e da polícia com base na legislação. Segundo a Constituição Federal (BRASIL, 1988), cabe à
Polícia Militar fazer o policiamento ostensivo, ou seja, inibir a ação de criminosos e preservar
a ordem pública nas ruas e nos locais públicos, atuando quando houver necessidade. Já a da
Guarda Municipal é atuar na esfera do patrimônio municipal, protegendo escolas, postos de
saúde, praças etc.
A maior parte dos alunos relata perceber a Guarda Municipal ou a Brigada Militar
eventualmente circulando pelo ambiente escolar e, então, sentir mais segurança quando os veem
pela escola. Eles defendem essa presença, o que configura, nesta investigação, que o policial é
visto como uma solução para os conflitos em geral da escola, pois impõe sensação de respeito.
Eles vieram conversar com o diretor. E também eles tavam parado, que nem
eles ficam. Eu acho legal, me sinto mais segura quando vejo eles. (Aluna, 12
anos, entrevista)
21
Desde o início de 2017, os guardas municipais foram reorganizados pela prefeitura, trabalhando em ‘postos
fixos’ e se deslocando caso a escola chame. Há muitas reportagens na mídia local sobre tal fato, como por
exemplo esta: https://gauchazh.clicrbs.com.br/porto-alegre/noticia/2018/06/escolas-municipais-da-capital-
ficam-sem-servico-fixo-da-guarda-municipal-cjiz73evg0hed01pazc6jn7a7.html.
12
Antes a guarda vinha sempre, agora só vem quando são acionadas porque
aconteceu alguma coisa. Foi tirada as guardas das escolas e sinto muita falta
da guarda dentro da escola. (Professora, 43 anos, entrevista)
A Brigada inclusive veio se apresentar semana passada dizendo que vai fazer
umas rondas periódicas, todas as sextas-feiras. E a Guarda Municipal quando
a gente chama, eles vêm. Quando a gente avisa... tal dia a gente precisa de
reforço, de vocês porque pode ser que aconteça tal coisa, eles vêm. Tipo, na
festa junina que é aberta, circula muita gente, aí tem sempre os guardas aqui,
até pra cuidar do patrimônio né. Eu acho muito importante eles estarem aqui,
quando eles vêm a gente tenta receber super bem, tipo, criar o vínculo. Esses
dias até comentamos de oferecer o almoço no refeitório, para eles virem
almoçar aqui, algo nesse sentido. Acho que são relações que tem que estreitar.
(Professora, 40 anos, grupo focal)
Eu já tive que ir na orientação porque duas mães se pegaram, por causa das
filhas que brigavam fora da escola e elas vieram resolver dentro da escola e se
pegaram fisicamente. Tivemos que no fim chamar a Brigada. (Professora, 51
anos, grupo focal)
Devine (1996 apud ABRAMOVAY, 2005) ilustra que discussões dessa esfera já foram
feitas sobre o ingresso da polícia nas escolas de Nova York. Nessa cidade, a polícia passou a
fazer parte da rotina escolar em um contexto de mudança do modelo de relacionamento entre
escola e comunidade, quando a cultura de rua entrou em conflito com a
124
cultura escolar, gerando novas situações com que os atores sociais não estavam acostumados
a lidar. Tais situações não se enquadravam nos mecanismos institucionais convencionais das
escolas ao extrapolarem os âmbitos das suas regras de convivência.
Uma das soluções encontradas foi a entrada do policiamento nas escolas. Isso fez com
que o modelo antigo, em que os professores eram responsáveis pela mente (aprendizagem
intelectual) e pelos corpos (disciplina), passasse a ser dividido com os profissionais da
segurança, ocasionando uma mudança de padrão – a disciplina, então, passou a ser
responsabilidade dos policiais. Os impactos dessa nova configuração fizeram com que alunos
perdessem as referências de quem é a figura de autoridade na escola e os professores
fracassassem nos seus papéis de educadores na totalidade.
São fatores como esse que levam a uma ambiguidade no que diz respeito à presença de
policiais dentro da escola. Constata-se que o policial e o guarda podem ter o objetivo de
intimidar, amedrontar, mais do que propriamente evitar ou solucionar problemas.
Eles têm o lado bom e o lado ruim. Se tu souber lidar com isso, tu tem um
apoio muito grande, porque a nossa comunidade é muito agressiva, então eles
acabam inibindo pessoas estranhas aqui, pessoas de outros lugares que querem
circular aqui, inibindo assaltos que acontecem aqui próximo, inibindo drogas
dentro da escola, porque o traficante pequeno já fica receoso e é difícil de tu
controlar. (Professora, 41 anos, grupo focal)
Esse borramento de fronteiras faz com que o papel que a polícia desempenha na escola
fique confuso, nem sempre harmonioso, pelo contrário, pode ser permeado de conflitos, pois
gera uma ambiguidade a respeito de quem possui o poder e o controle. Além disso, a
administração escolar fica mais complexa, já que as formas de resolução de conflitos são
diferentes. Enquanto policiais e guardas seguem um tipo de protocolo, professores seguem
outro.
Enquanto professores defendem que os alunos, no ambiente escolar, devem ser tratados
como aprendizes, independente do que tenham feito, os policiais cumprem o protocolo próprio
da polícia. Essa situação se complexifica ainda mais quando levamos em consideração que a
escola deixou de ser elitista e passou a ser uma escola aberta a todos os sujeitos, que traz a mais
diversificada forma de ser e estar no mundo.
Assim, essa relação entre os profissionais da segurança e o corpo escolar não é uma
simples intervenção, como faz crer o senso comum. Ela adiciona nuances e contornos na
percepção dos atores sobre o que significa sua presença, atuação ou omissão. A escola é um
espaço diferente dos demais espaços públicos, pois ali há ações intencionais de educação, de
formação integral do ser humano. No entanto, a escola não está imune às ações violentas, e os
profissionais que ali trabalham não têm preparo para lidar com certas situações, fazendo-se
necessária a presença da guarda municipal nesse ambiente para exercer algumas funções,
126
A presença ou não dos policiais na escola faz emergir uma nova equação: se a escola é
ou não um ambiente seguro. Abramovay (2005) indica que, no Brasil, não temos fonte oficial
de registro de violências e delitos cometidos dentro da escola. Isso pode ser visto como um fato
positivo, demonstrando que a escola consegue resolver a maior parte dos seus conflitos de
forma interna, sem precisar encaminhar para as autoridades.
E vocês sabem por que eles saíram? Uma foi por causa que elas brigavam com
todo mundo. (Aluna, 14 anos, entrevista – grifo representa pergunta da
entrevistadora)
Depois que a mãe da guria entrou aqui, ameaçou ela, eu nunca mais vi ela na
escola. (Aluna, 13 anos, entrevista)
Eu acho que pra comunidade a escola é um lugar seguro, que aqui ainda se
tem muito respeito pelos professores. E a escola é o que há de mais preservado
dentro da periferia. (Professora, 43 anos, entrevista)
Os pais veem a escola como lugar seguro, alguns sim. Eu sei que ele tá rodado,
mas eu quero que ele fique na escola, aí dentro, não quero que ele fique na rua.
(Professora, 41 anos, grupo focal)
12
Mas eu não me sinto muito segura. Já fui roubada o celular dentro de sala de
aula por uma mãe. (Professora, 30 anos, entrevista)
Não, a escola não é um lugar seguro, definitivamente. Pra vocês terem uma
ideia, há um tempo atrás estávamos na sala dos professores uns quatro ou cinco
professores, uma pessoa simplesmente passou pela portaria e entrou como se
fosse na secretaria e assaltou a gente na sala dos professores. E ainda podia
ter feito trocentas outras coisas então, de maneira nenhuma, a gente não tem o
mínimo de segurança. Se alguém quiser entrar e dizer que vai na secretaria
pode acessar qualquer espaço e fazer o que quiser. Pode ir até o banheiro,
encontrar uma criança... (Professora, 51 anos, grupo focal)
Lembro de uma vez que entrou um maluco e todo mundo saiu correndo. Então
eu acho que a gente se fecha, se fecha, mas não é tão seguro. (Professora, 30
anos, entrevista)
O portão e a entrada e saída da escola é o que se representa como mais vulnerável para
os professores. Foi recorrente em suas falas o problema do portão. A escola, enquanto
instituição, passa pelo processo da vulnerabilidade imaginária – uma sensação de insegurança
a que supostamente estaria sujeita –, mas também passa pelo processo da vulnerabilidade real,
que atinge as escolas que estão localizadas em certas áreas urbanas, que têm instalações
precárias, falta de pessoal especializado para trabalhar nos portões das escolas e falta de
mecanismos de vigilância da entrada e saída das pessoas.
Tem como tu entrar com facilidade, mesmo que o portão esteja trancado. O
acesso é para qualquer um, tu não tá livre. (Professora, 51 anos, grupo focal)
E a escola é um lugar que chama atenção, é um lugar que como não tem a
proteção devida ele acaba sendo muito vulnerável, de fácil acesso, qualquer
um entra pelo portão. (Professora, 41 anos, grupo focal)
Percebe-se, de uma forma geral, que, para a comunidade, a escola ainda é um lugar
seguro, e a sensação de insegurança prevalece quando há fatos que poderiam acontecer em
qualquer lugar – furtos, entrada de pessoas estranhas etc. Assim, o ponto vulnerável da escola
128
é o portão de entrada e saída, nos momentos em que há mais pessoas circulando pelo ambiente
escolar.
As famílias recorrem ao uso da violência, porém, entre elas, esta é uma forma de
comunicação. O ato é visto como um cuidado com aqueles que são integrantes da sua parentela.
A escola torna-se ineficiente, pois a comunidade deseja resoluções pontuais, imediatas. Assim,
a forma de socialização proposta pela escola (mais autonomia, uso da conversa, compreensão
do problema em uma esfera macroestrutural) não é bem compreendida pelas famílias, que tem
a sensação de que a escola nada faz. O uso da violência reverte-se em uma forma de colocar um
limite, sem passar pela direção ou pela orientação educacional, visto que os docentes, muitas
vezes, são vistos como permissivos demais. As famílias preferem resolver por si só. As redes
sociais complexificam ainda mais essa questão, já que muitas divergências acontecem no
Whatsapp ou Facebook e acabam sendo solucionadas na escola.
Os alunos também fazem uso dessa linguagem violenta, a que chamam de arreganho.
São pequenas agressões que até deixam marcas no corpo; contudo, ao mesmo tempo, são vistas
como parte integrante da sua linguagem corporal, uma forma de estabelecerem relações com o
outro. Os professores, da mesma forma, não estão imunes e acabam cometendo atos violentos
ou tendo algumas benesses, como banheiros limpos ou alguma alimentação especial. A agressão
cometida pelos docentes é observada, em sua maior parte, por seus pares, já que, para os alunos,
muitas das atitudes tomadas pelos professores são vistas como normais. Poderíamos concluir
que, dentro da escola, a depender de quem tem certo comportamento, se está mais ou menos
autorizado à utilização de mecanismos violentos para resolver seus conflitos.
12
Sobre policiamento, concluímos que, de uma forma geral, é entendido como positivo e
importante, principalmente para intimidar pessoas que não fazem parte da comunidade escolar.
Entretanto, há ressalvas em relação às posturas tomadas tanto por parte da escola sobre quando
chamar a Guarda Municipal/Brigada Militar, quanto por parte da Guarda Municipal/Brigada
Militar sobre como agir nessas situações. Não há um consenso de quais seriam as ações ideais
a serem tomadas pelas polícias, principalmente em relação aos alunos, ao infringirem a lei. Há
certo consenso de que os protocolos policiais podem ser seguidos sem restrição naquelas
violências denominadas ‘na escola’ (CHARLOT, 2002), ou seja, as que poderiam acontecer em
qualquer lugar, apenas o cenário é a instituição escolar, com a ressalva de que não sejam os
alunos os envolvidos. No momento em que os alunos são as vítimas ou os infratores, a situação
é mais delicada, uma vez que não há acordo sobre se os fatos devem ser tratados pela esfera
pedagógica, ou pela esfera dos protocolos policiais.
Este subcapítulo tem como foco entender como se dão as compreensões acerca das
regras da escola e das sanções aplicadas. Para tanto, foram realizadas as seguintes perguntas
aos sujeitos entrevistados: Você conhece as regras da escola? Como ficou sabendo delas? Você
concorda ou discorda delas? Há algo que deveria ser proibido ou permitido na escola? Se há
punições, você concorda ou discorda delas?
Certos alunos disseram desconhecer as regras da escola e ter a sensação de que ninguém
obedece nada.
130
Uma vez a diretora foi lá na nossa sala e disse que a escola tinha regras, que
tinha que seguir, mas não disse elas. (Aluna, 12 anos, grupo focal)
Não sei, ninguém obedece nada. Nenhuma regra da escola é obedecida, tipo
celular não era pra usar, tá todo mundo usando. As caixinhas de som eram
proibidas, tá todo mundo usando. Horário ninguém respeita. As pessoas
acordam atrasadas, então saem atrasadas e chegam atrasadas. (Aluna, 14 anos,
grupo focal)
Outros alunos relataram que o ambiente escolar tem regras, porém não estão claras:
Depende do professor. Tem uns que deixam comer na sala, outros proíbem.
(Aluna, 13 anos, grupo focal)
Para os professores, também há problemas com as regras escolares. Eles alegam que
falta clareza nos procedimentos e na construção das normas gerais da escola.
Uma exceção seriam as regras construídas na sala de aula com os alunos, para aquele
ambiente. Professores relatam que essa prática deixa de acontecer quando os alunos crescem,
dando a entender que, depois de ‘maiorzinhos’, já não precisam mais dessa intervenção, pois
‘já precisam saber’.
Na sala de aula a gente até constrói as regras e consegue de certa forma cobrar.
Eles respeitam muito mais quando participam da escrita. Eles construíram
junto, né. (Professora, 43 anos, entrevista)
Nós professoras dos pequenos construímos as regras com eles, depois eles
ficam maiorzinhos e não sei se os profes fazem essa prática. Mas aí também
eles já tem que saber, né. (Professora, 40 anos, grupo focal)
que ela faz, ela tá privando das coisas básicas necessárias o que é muito
diferente de limites. Aí acaba se tendo os alunos com muita dificuldade de
respeitar, de desenvolver as coisas básicas que tu precisa pra desenvolver o
aprendizado. Necessitam de civilidade, regras de convivência, porque senão
não tem aprendizagem. (Professora, 56 anos, grupo focal)
A defesa das regras da escola acontece quando se acredita que ela estrutura o espaço,
quando sua função é entendida por todos que fazem parte da rotina escolar. Portanto, algumas
regras podem ser consideradas boas para alguns segmentos e ruim para outros. Existem ali
conflitos que, se elucidados, discutidos e reconstruídos, gerariam convivências mais pacíficas.
A fala da professora aponta para algo importante, a relevância de se respeitar aquilo que é de
direito dos alunos. Pode-se até aprofundar a discussão e pensar no que é de direito do professor,
dos pais e dos outros membros da escola.
Para as regras serem consideradas boas, é necessário que elas permitam uma
convivência harmoniosa. (ABRAMOVAY, 2005). E os alunos defendem que as regras são
importantes, sendo a favor das normas, que influenciam na caracterização de uma escola boa.
Aqui a aluna retrata que, na escola pesquisada, onde ela estuda atualmente, sente ter
mais regras e isso torna a turma mais calma, o que geraria mais aprendizagens, já que mais
alunos prestam atenção e conseguem parar para ouvir os professores. A manutenção da ordem
gera a sensação do cumprimento dos objetivos escolares para os alunos.
Sim, quando matriculei a Fulana aqui já tinham me avisado que tinha regras,
aí recebi um bilhete na secretaria que eu assinei com as regras da escola. (Mãe,
32 anos, entrevista)
Sim, concordo com as regras. Todo lugar tem regras, é necessário. Vejo que
é um problema o portão e a entrada em sala de aula fora do horário. Já vi brigas
feias no portão porque tinha aluno atrasado e pais querendo entrar. (Mãe, 54
anos, grupo focal)
Quando indagados sobre as proibições e permissões da escola, uma das situações que
mais incomoda os estudantes é a questão do celular. Eles dizem se sentir muito injustiçados por
não poderem usar, pois alegam que os professores fazem uso irrestrito.
Tem sora que usa o celular pra ver as horas, mas tem sora que fica lá noFace,
no Whats e isso eu acho injusto. (Aluno, 11 anos, grupo focal)
Uma professora afirma que desconhece as regras do que seja permitido ou proibido.
Eu desconheço, pois não temos PPP. Quer dizer, se a escola tem regimento ou
algo assim, nunca soube. Então, proibido ou permitido para os alunos só o
que a legislação maior regulamenta como danos ao patrimônio, agressão
física. (Professora, 51 anos, grupo focal)
Alguns docentes abordaram a questão das regras sobre si próprios, explicando que há a
legislação municipal que rege sua carreira. Também há citação das regras em relação à função,
principalmente a respeito do ponto eletrônico, que preocupa a muitos.
geram nos sentimentos coletivos dos estudantes, docentes e famílias. Muitas dessas regras
surgiram em uma época em que a ideia de autoridade e suas formas de legitimação eram muito
diferentes.
De uma forma geral, podemos observar que os sujeitos sabem da existência das regras,
mas não sabem claramente quais são. Ortega e Rey (2002) defendem que é muito importante
a construção de senso de pertencimento junto à comunidade escolar, fomentando uma cultura
de paz; para isso existir, o primeiro passo é a escola construir regras claras, consultando os
segmentos, a fim de que todos se sintam representados. No entanto, vê-se que tal situação não
tem acontecido. A revisão do regimento da escola não se torna prioridade no dia a dia, e as
decisões acabam configurando-se na ordem do pessoal, individual, na seara do subjetivo.
Sobre as regras da escola, o papelzinho das regras vai pra família né. Mas isso
não é discutido né. Nem construído junto com as famílias. (Professora, 43
anos, entrevista)
Assim, as regras e normas, por serem pouco discutidas, podem virar situações mal
resolvidas, já que a pouca clareza sobre elas oportuniza a cada sujeito ter uma interpretação. As
críticas às normas escolares acontecem no sentido de como são elucidadas. Analisando-se as
falas, percebe-se que não há um padrão de encaminhamento, o que gera indignação por parte
dos alunos e ‘saias justas’ para os professores responsáveis em resolver as questões de
convivência, como o setor de orientação educacional e a coordenação de turno, que são
responsáveis pela organização da rotina escolar de uma forma geral.
A escola não está pronta para certos casos. Tipo, semana passada um aluno foi
suspenso porque não ficava em sala e ele me perguntou: – Ô professora,
porque não me dão mais uma ocorrência? Daí eu disse, olha, com a quantidade
de ocorrência que tu tem dá até pra fazer um cordel, então a escola chegou na
última possibilidade de medida disciplinar que existe. A escola é excludente,
não tem um olhar sobre os alunos que fogem do eixo, que é o teu caso. Tu não
consegue sentar, não consegue fazer as atividades. A escola é pra maioria que
consegue se encaixar num padrão só e ele é da minoria, não se encaixa. E
ele ficou bem triste de perder aula e tal. Eu
134
gostaria que a escola conseguisse ser diferente para atender esses alunos que
são de um ritmo diferente. (Professora, 30 anos, entrevista)
Nesse caso a punição foi a suspensão – ficar três dias sem ir à escola conforme
informado pela professora – porque o aluno não conseguia permanecer em sala de aula. Aqui
a professora relata que a solução encontrada pela escola foi suspender, já que a instituição não
consegue atender alunos que têm características especiais, como esse, que pelo relato “não para
sentado”. A professora inclusive diz que ele ficou bastante triste e que ela gostaria que a escola
mudasse para atender os alunos que têm um ritmo diferente. A suspensão seria uma forma de
punição mais severa, quando as outras punições já teriam sido feitas e não surtiram efeito, como
a ocorrência ou a chamada dos pais. Uma professora explica o processo:
Primeiro fizemos a ocorrência, aí, quando o aluno tem três ocorrências a gente
chama os pais e depois se não deu jeito, acaba dando a suspensão. (Professora,
41 anos, grupo focal)
Ah, mas eu sei de um monte de aluno que tem bem mais de três ocorrências
e nunca aconteceu nada com ele. (Professora, 56 anos, grupo focal)
E outra responde.
Sim, mas isso não tá bem claro. Tem gente que manda o aluno pro SOE e ele
leva ocorrência por nada. (Professora, 41 anos, grupo focal)
Percebemos nesse diálogo que as situações a serem resolvidas pela escola não são
discutidas e não são bem claras. Esse aspecto faz com que a escola não consiga desenvolver o
que Chrispino e Chrispino (2002) chama de territorialidade, que é a necessidade de a escola
marcar seu espaço de autoridade, suas regras claras e objetivas, em uma espécie de demarcação
de espaços de limite.
Os professores consideram a suspensão como o ato mais extremo, mas também o mais
eficaz, principalmente quando a indisciplina é recorrente. Os alunos, da mesma forma, afirmam
que a suspensão é uma forma eficiente de resolver conflitos, o que gera umadificuldade de
pensar em outra linha de ação.
Sei que a suspensão não é mais permitida por lei, mas às vezes não tem o
que fazer, tá tão insustentável a situação que tirar aquele aluno uns dias do
foco é bom. (Professora, 40 anos, grupo focal)
Porém, isso não é uma normativa em todas as ações, porque há relatos de outros danos
ao patrimônio resolvidos de forma diferente.
Meus colegas tavam brigando por um livro da escola e aí cada um ficou com
um pedaço e eles juntaram pra professora não ver. E o livro era da professora.
E ela encaminhou? Não, ela conversou com ele e ele pediu desculpas. (Aluno,
13 anos, grupo focal – grifo representa a fala da entrevistadora)
A questão de não haver uma padronização também pode ter seu lado positivo, pois
permite que o professor, que é a figura que representa a autoridade máxima na escola, possa
decidir o que fazer, o que gera uma política de maior gerenciamento e empoderamento, levando
em consideração todo o contexto da situação. Isso exige, por parte do educador, um tempo para
ouvir, refletir e decidir sobre a melhor solução, o que nem sempre considera como seu dever.
Não é meu dever educar, meu dever é ensinar. Eu tô aqui pra ensinar a matéria.
A parte do comportamento eu encaminho para o Soe. (Professora, 51 anos,
grupo focal)
Sayaão e Aquino (2006) defendem que atualmente tanto os adultos da família como os
adultos da escola demonstram estar, por vezes, bastante inseguros em relação às crianças e
adolescentes, que diferem de si e do seu tempo, pois estão inseridas em um mundo mais
dinâmico, mais globalizado, que traz novas perspectivas. Esse fato gera inseguranças sobre a
construção das autoridades. Em consequência, por vezes, a escola acaba encaminhando para
instâncias externas, principalmente os casos considerados mais graves.
136
Tem aluno que já chega aqui drogado, aí, dependendo de como a coisa anda,
se a gente não consegue entrar em contato com a família ele vai direto para o
DECA (Delegacia Especial da Criança e Adolescente) e faz ocorrência lá, aí
os pais são obrigados a buscar. Porque nestes casos o aluno tá com um
problema sério e a escola não tem como lidar. O que vai fazer com um aluno
que já chega alterado, agressivo? Essa é a solução encontrada. (Professora, 40
anos, grupo focal)
Já soube de aluno que foi levado pro Conselho Tutelar porque tava três dias
sem banho, sem comida e a família não aparecia na escola. (Professora, 35
anos, grupo focal)
Nem sempre a escola atende a todos os conflitos, pois inúmeras vezes nem fica sabendo
ou não chega a instâncias maiores. Na rotina do dia a dia, muitas situações acabam passando
sem uma devida reflexão.
Abramovay (2005) explica que a omissão pode ser justificada pela falta de preparo dos
professores para lidar com situações de violência na escola ou por acreditarem não ser sua
responsabilidade, optando por eximirem-se de buscar solução para o problema.
Além disso, várias vezes os alunos criam uma espécie de pacto social, como já relatado
na dimensão 3, no qual todos afirmam que ninguém viu nada, principalmente entre os grupos de
amizade. São táticas que os estudantes adotam para burlarem as normas de forma que não sejam
pegos e se protegerem das regras da escola, o que acaba fortalecendo os sentimentos de amizade
e cumplicidade entre os jovens.
que teu filho vai ter que sair do colégio. Eu achei justo, chegou num limite,
sabe. (Aluna, 13 anos, grupo focal)
Inclusive há o relato de uma aluna que sofreu a sanção de ser retirada da escola que
frequentava, no início do ano; ao analisar o processo, considerou que foi muito positivo para
ela.
E por que tu brigou? Como é brigar pra ti? Ah... como eu posso dizer... eu
perdi minha mãe muito cedo e aí eles sabiam da minha fraqueza, aí qualquer
coisa que falavam da minha mãe eu já queria bater neles e eu era muito brigona
por causa disso. Eles nunca falaram uma coisa minha assim, pessoal, mas tipo,
da minha mãe. Aí quando falavam da minha mãe me incomodava. E por que
tu acha que aqui no Grande Oriente tu não briga? Porque aqui ninguém sabe
da minha vida. Pra mim foi bom trocar de escola. Lá eles sabiam muito da
minha vida. (Aluna, 14 anos, grupo focal)
De uma forma geral, os estudantes dizem que o ato de punir em si não é injusto, e sim
o tipo da punição aplicada, ou quando esta não atinge os considerados culpados.
Teve uma vez que eu nem fiz nada, tava só de arreganho, aí a professora
deixou todo mundo sem recreio. E o que tu achou disso? Eu achei errado, não
era todo mundo, sabe. Aí a gente ficou lá na sala sentadinho. (Aluna, 12 anos,
entrevista)
Já os professores relatam que evitam as punições, tentando usar o diálogo para resolver
os conflitos. Contam que acreditam que as punições devem ser a última alternativa, para não se
perder a autoridade dentro de sala de aula.
A sala de aula é muita gente pra gente dar conta. Eu tento resolver as coisas
mais no diálogo do que com punições. (Professora, 53 anos, grupo focal)
Embora o objetivo fosse entender como as sanções são adotadas e percebidas pelos
sujeitos envolvidos, observamos que o que se sobressai são situações de omissão e falta de
padrão nas atitudes tomadas pela escola, o que causa uma sensação de injustiça entre os alunos
e professores. Para os pais, as regras estariam dentro do esperado, talvez porque sejam menos
impactados por elas. Descobrimos que não há uma clareza das regras da escola, tanto para
professores como para os alunos, o que gera arbitrariedade nas medidas tomadas. Além disso,
entre os adultos, há divergências nas escolhas de como proceder em cada caso, entrando em uma
seara subjetiva, em que muitas vezes a escola recorre aos pais dos alunos e a instâncias externas
– como o Conselho Tutelar ou a Guarda Municipal/Brigada Militar – para solucionar problemas
internos. Esses órgãos são vistos como punitivos, uma alçada superior aos encaminhamentos
dados pela escola.
138
5 CONSIDERAÇÕES FINAIS
A escola é hoje um local que, em princípio, deve ser para todos os indivíduos, não apenas
através do direito de acessá-la, mas também pela garantia da permanência e daparticipação nas
suas decisões, promovendo o pertencimento àquele lugar. No entanto, como registrado em
muitos momentos, ela nem sempre consegue ser democrática e igualitária. Deseja-se que a
escola seja um espaço de inclusão, de convivência das diversidades e que coloque em diálogo
os sujeitos para a resolução dos conflitos, mas inúmeras vezes ela apresenta mecanismos
próprios de exclusão, definindo quem fica e quem sai.
Essas contradições que fazem parte da dinâmica da escola hoje precisam ser reavaliadas
e corrigidas, e, para tanto, há a necessidade da defesa de uma educação democrática e
progressista. É necessário perceber que a escola está inserida em uma estrutura social maior que
impacta a todos – alunos, professores, funcionários e famílias –, e que os estimula a ir em certas
direções. Questionar o lugar da escola e o seu papel na sociedade é decidir que tipo de formação
humana se quer. Dar espaço para as conflitualidades e estimular as convivências em que o
diálogo seja a chave central são ferramentas necessárias para que os sujeitos consigam
compartilhar conhecimentos de maneira a não reforçarem as estruturas de dominação existentes,
como as hierarquias de raça, gênero, classe e tantas outras.
cotidiana, das práticas pedagógicas e das relações entre os atores.” As ações devem procurar
orientar os conflitos para “(...) aprofundamento de acordos, construção de acordos coletivos,
promoção da participação, exercício dos direitos e vínculo com a comunidade.”.
A resolução das conflitualidades passa por reconhecer os outros como pessoas com
direitos à diferença, aceitando que muitos vínculos são formados por meio dos conflitos e seus
desencontros. Conforme Viscardi e Alonso (2013, p. 39), “democracia, convivência e
conhecimento estão em íntima conexão. Tanto para meninos, meninas, adolescentes e jovens
como para os adultos, a possibilidade de participar da vida do centro educativo e criar laços de
pertencimento coletivo depende deste exercício democrático.”.
Dado o caráter desta pesquisa, que procurou analisar as representações sociais que um
determinado coletivo de pessoas faz a respeito das conflitualidades presentes nas convivências
escolares, a metodologia possibilitou imersão aprofundada no cotidiano analisado com a
possiblidade de se olhar a realidade a partir dos referenciais teóricos das representações sociais
e da sociologia das conflitualidades. Preservou-se a singularidade dos relatos, os quais, a cada
exposição, possuíram muitos sentidos dados pelos sujeitos. Esses sentimentos são os que
impactam o cotidiano das pessoas e sua qualidade de vida, interferindo nas convivências
escolares.
Nosso objetivo com este trabalho foi o de entender as representações sociais que
professores alunos e famílias têm sobre as conflitualidades que ocorrem no âmbito das
convivências escolares, compreender quais são os fatores e situações que desencadeiam essas
situações e analisar as soluções propostas por esses atores.
Verificamos que a escola vive a ambiguidade de ser central na vida dos atores sociais
e, ao mesmo tempo, constituir-se em um espaço de discriminações e mal-entendidos que nem
sempre conseguem ser resolvidos. Muitas das soluções propostas pelos entrevistados foram
punitivas, mostrando que nossas hipóteses estavam certas, como no caso de se propor que a
solução para alunos que não se enquadram seja a suspensão do direito de vir à escola, ou quando
familiares relatam bater nas crianças porque estas estão com dificuldades de aprendizagem, ou
ainda quando há relatos de professores que retiram alunos de sala de aula por problemas de
convivência. Os diálogos muitas vezes não ocorrem, e os silenciamentos geram situações que
eventualmente acabam em violências físicas ou verbais. A questão
141
punitiva apareceu como um aspecto positivo, sendo uma forma de resposta para todos os
segmentos pesquisados.
Os pais colocam mais foco no resultado do desempenho do seu filho (boletins ou bilhetes
enviados pelos professores) e menos nos processos de aprendizagens. Já os professores
consideram os processos de aprendizagem mais importantes que o resultado final. Essa
divergência de concepções faz com que o diálogo entre as famílias e professores se complique.
Professores queixam-se que os pais não acompanham as aprendizagens, principalmente quando
os alunos são maiores, provocando uma sensação de abandono da criança por parte da família.
Professores alegam possuir dificuldades de entender como a família se organiza. Já os pais
dizem que têm dificuldades em monitorar a vida escolar dos filhos, pois não sentem clareza,
por parte da escola, sobre o que se espera deles. Tais impasses ocasionam o uso da violência
física, por parte das famílias, para resolver os dilemas trazidos pela escola, como quando os
alunos não prestam atenção em aula, não fazem as atividades etc. Com frequência, as famílias
não conseguem entender os processos de aprendizagem pelos quais as crianças estão passando
e suas dificuldades, encontrando-se sozinhas, sem terem a quem recorrer – inclusive com postos
de saúde sucateados, falta de capacidade de comprar materiais escolares etc. Já a escola passa
as dificuldades dos alunos para a família sem conseguir ser clara ou capaz de propor soluções
para as situações. A família, por sua vez, não sabe o que fazer e, como solução da demanda,
encontra as violências como resposta (castigos, chineladas etc.).
Outra constatação foi o uso da linguagem violenta por parte dos alunos, que estes
denominam de arreganho. Essa linguagem, apesar de muitas vezes incomodar os que estão
envolvidos ou gerar consequências graves, como machucar algum colega, não é considerada
uma violência, e sim uma forma de relacionamento entre pares. Além disso, quem não está
envolvido diretamente na situação tem dificuldade em entender essa linguagem. Já a violência
144
cometida pelos professores é mais difícil de se medir, já que estes estão em uma posição em
que podem ter suas atitudes legitimadas como ‘normais’. As agressões em que docentes se
envolvem acabam sendo diagnosticadas mais facilmente pelos seus próprios pares. Assim,
podemos concluir que, dentro da instituição escolar, dependendo de quem tem determinados
comportamentos, este é mais ou menos legitimado a utilizar-se de mecanismos violentos para
resolver seus conflitos.
Em relação às regras e sanções, percebemos que tanto pais quanto alunos e professores
consideram importante que o espaço tenha regras claras e objetivas para que todos possam
compreendê-las. Porém, a sensação que se tem é a de que é o outro quem não sabe segui-las.
Os professores julgam que as famílias não respeitam os combinados, e os alunos consideram
que ninguém obedece a nada. Os responsáveis, por sua vez, são os que mais demonstram
concordar com as regras postas, sejam elas quais forem. Além disso, há uma certa aprovação
no uso de punições como suspensões, que a família pague caso o aluno deprede alguma coisa,
ou que o aluno seja retirado de sala de aula caso não se comporte conforme o esperado. Por
outro lado, há a queixa dos alunos de que, muitas vezes, essas punições são muito severas ou
mal-aplicadas.
Percebemos que as representações sociais que professores, alunos e pais têm sobre as
conflitualidades nas convivências escolares frequentemente divergem, já que cada segmento
parte de um ponto de vista e de vivências diferentes. A estimulação do diálogo e de espaços
para debater e encontrar pontos em comum torna-se essencial para superar esses pontos e
construir um espaço de respeito mútuo.
Assim, as situações que provocam conflitualidades são muito variadas, girando em torno
da falta de entendimento de como o outro pensa, em sua maioria, na esfera do preconceito e dos
desencontros de compreensão de mundo. São conflitos originados em torno de usos, costumes
e valores em vez de delitos ou crimes graves.
146
Em relação às soluções que os atores sociais encontram para seus conflitos, elas ficaram
na esfera disciplinar. São regramentos, condutas, sanções, bilhetes e ocorrências no caderno da
coordenação. Práticas que não geram solução dos conflitos, mas punições determinadas por
alguém colocado hierarquicamente acima. Não é uma aprendizagem para a cidadania, mas
apenas uma solução momentânea.
A contribuição central deste estudo foi constatar que o conflito faz parte da realidade
escolar e seu paradigma encontra-se em estabelecer espaços de diálogo para que ele não vire
violência. Além disso, evidenciamos, ainda, que as soluções se encontram muito na esfera
punitiva, com saídas rápidas que não promovem melhorias na qualidade das convivências
escolares. A escola, em última análise, ainda está permeada por resoluções violentas adotadas
por seus integrantes, deixando de ser um espaço democrático e de diálogo.
147
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percepções sobre sucesso dos alunos. Estudos em Avaliação Educacional, v. 28, n. 67, p. 64-
101, 2017.
APÊNDICE A
Eu, ,
autorizo o(a) aluno(a) a
participar da pesquisa acima citada.
Assinatura:
156
APÊNDICE B
Questionários aplicados para construção do perfil dos participantes
Caso sinta-se estressado, faz algo para enfrentar este problema? Em caso positivo,
158
relate o que: