CIÊNCIAS SOCIAIS E DESENVOLVIMENTO HUMANO EM MOÇAMBIQUE - Final

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CIÊNCIAS SOCIAIS

E DESENVOLVIMENTO HUMANO
EM MOÇAMBIQUE:
PRODUÇÃO, CIRCULAÇÃO
E LIMITAÇÕES
Editora Cravo

Comité Científico

Jorge Chinea
(Wayne State University - EUA)

Keila Grinberg
(Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro - Brasil)

Leonardo Rosa Ramos


(Università Pontificia Salesiana - Itália)

Marcia Calainho
(Instituto Jurídico Luso Brasileiro - Portugal)

Márcia Maria Menendes Motta


(Universidade Federal Fluminense - Brasil)

Monique Montenegro
(Instituto Ensinar Brasil - Brasil)

Thiago de Souza dos Reis


(Universidade Estácio de Sá/Universidade Veiga de Almeida - Brasil)

Yanina Benitez
(Instituto de Filosofía Ezequiel de Olaso/Centro de Investigaciones Filosoficas - Argentina)
Armindo Armando
Jane Alexandre Mutsuque
Pedrito Carlos Chiposse Cambrão
(Org.)

Ciências Sociais
e Desenvolvimento Humano
em Moçambique:
produção, circulação
e limitações
Copyright © 2024 Armindo Armando, Jane Alexandre Mutsuque & Pedrito
Carlos Chiposse Cambrão

Título: Ciências Sociais e Desenvolvimento Humano em Moçambique:


produção, circulação e limitações

Direção Editorial: Lou Calainho


Edição e Diagramação: Equipa Editora Cravo

Projeto gráfico e capa: Cida Santos


Grafismo: Sofia Ferreira

ISBN: 978-989-9037-68-7

Conselho Editorial

Lou Calainho
Magno F. Borges
Maria Auxiliadora B. dos Santos
Dados para Catalogação da Obra
A727 Armando, Armindo.
Ciências Sociais e Desenvolvimento Humano em Moçambique: produção,
circulação e limitações / Armindo Armando, Jane Alexandre Mutsuque,
Pedrito Carlos Chiposse Cambrão.
Porto, Portugal : Editora Cravo, 2024.
158 p.; 22,86 cm.
ISBN: 978-989-9037-68-7
1. Ciências Sociais. 2. Desenvolvimento Humano. 3. Moçambique. 4.
Título. I. Armando, Armindo. II. Mutsuque, Jane Alexandre. III. Cambrão,
Pedrito Carlos Chiposse.
CDD: 300
CDU: 304
Todos os direitos reservados.
Nenhuma parte desse livro pode ser utilizada ou reproduzida sob quaisquer meios existentes sem
autorização por escrito dos editores e autores.

www.editoracravo.pt
[email protected]
+351 960 221 473
A presente obra contou com recursos do Centro Português de Apoio à Pesquisa Científica e à Cultura (Conjugare) para
sua edição (1MZ45PT4/2023).

Colaboração:

Parceria:
Sumário

Prefácio.......................................................................................................09

Apresentação.............................................................................................13

O lugar dos estudos africanos nas sociedades contemporâneas.....17


Introdução........................................................................................17
1. Evolução histórica da epistemologia de África........................18
2. Lugar dos saberes qualificados produzidos em África............21
3. Que caminhos para instituir uma epistemologia puramente
africana?............................................................................................23
Considerações finais........................................................................26

Casamento e Heterossexualidade: uma Relação de Implicação,


ou o “tentar travar o vento com as mãos”? Uma breve análise
sobre as uniões homossexuais em Moçambique............................31
Introdução........................................................................................31
1. O conceito de casamento............................................................34
2. O regime legal do casamento......................................................40
3. Uma possível discussão do conceito jurídico de casamento.......42
4. O direito fundamental a contrair casamento............................50
Considerações finais........................................................................52

Epistemologia dos Ritos de Iniciação: reciprocidade entre as


Ciências Sociais e a tradição.................................................................61
Introdução........................................................................................61
1. Cultura e Rito de Iniciação..........................................................62
2. Da Prática dos Ritos a Ideia Epistémica....................................65
3. Estrutura Epistemológica dos Ritos de Iniciação....................68
4. Fonte do Conhecimento dos Ritos de Iniciação......................68
5. Possibilidade de conhecimento e o lugar dos ritos de iniciação..71
Considerações finais........................................................................73
(In)comunicação Social em Moçambique: desafios e
transformação social...............................................................................75
Introdução........................................................................................75
1. Comunicação e desenvolvimento social...................................77
2. Panorama mediático em Moçambique......................................79
3. Informação vs conhecimento como constituintes da
comunicação......................................................................................84
4. Comunicação de interesse público............................................88
Considerações finais........................................................................93

A Guerra Civil em Homoíne e a dinâmica social entre 1982 a


1992...............................................................................................................99
Introdução........................................................................................99
1. Processos metodológicos.........................................................100
2. Referencial teórico.....................................................................103
3. Apresentação de resultados......................................................107
4. Fluxograma da Trajectória dos Deslocados de Guerra.........113
Considerações finais......................................................................124

A Academia moçambicana e o ideário intelectual e político da


Dra. Joana Simião: o continuum entre o Ingroup e o
outgroup ...................................................................................................127
Introdução......................................................................................127
1. Ausência académica do debate sobre à Dra. Joana Simião...128
2. O lugar da psicologia social neste debate................................132
3. A Teoria das Representações Sociais.......................................139
4. O pensamento da Dra. Joana Simião......................................141
Considerações finais......................................................................150

Sobre as autoras e os autores...............................................................155


Prefácio

A analogia, explorada e aprofundada desde logo durante o século


XIX, entre o propósito de estudar a sociedade, a que se propõem as
ciências ditas sociais, e o propósito de estudar o corpo vivo, a que se
tinham proposto as ciências ditas físicas, naturais ou exatas, não é
apenas uma curiosidade ou um paralelismo historiográfico – essa
analogia está na origem, no cerne e na ulterior fundamentação e
implementação das Ciências Sociais enquanto tal.
Tal como a biologia isolou a célula como unidade mínima da
vida, a sociologia estuda o indivíduo como unidade mínima da
sociedade; a analogia orgânica ajudou a conceber a sociedade como um
sistema integrado, composto de órgãos e de atividades e de funções
orgânicas, permitiu estudar o complexo de inter-relações que se
estabelecem entre todas as partes que integram esse sistema e de que
modo essas inter-relações e cada uma das partes relacionadas
colaboram para o equilíbrio ou propiciam desequilíbrios; as Ciências
Sociais recorrem metodologicamente a taxonomias que resultam em
classificações, caracterizações, estratificações, hierarquias; a partir de
teorias e de conceitos como “evolução”, as Ciências Sociais
interpretam e decompõem o tempo de vida histórico de organismos
sociais – o seu nascimento, o seu desenvolvimento, a sua reprodução,
a sua entropia, a sua morte. Uma sociedade é complexa, espantosa e
fascinante – e é-o justamente porque é um corpo vivo, porque se lhe
aplicam todas as características com que identificamos a vida, porque
é também um agente que se organiza, que reage, que cresce, que se
alimenta, que se reproduz, que se desenvolve, que se adapta, etc.
Ciências Sociais e Desenvolvimento Humano em Moçambique:
produção, circulação e limitações

Neste quadro, as Ciências Sociais enfrentam ainda hoje, como


enfrentaram sempre, desde a sua origem, um dilema quanto ao modo
ou ao ângulo da abordagem ao organismo social, estão sempre já
perante uma bifurcação quanto à perspectiva a adotar. Também neste
aspeto acompanham as Ciências Sociais, que expõem dois polos
fundamentais e alternativos quanto à forma de considerar um
organismo vivo: a perspectiva da biologia e a perspectiva da medicina.
Os métodos e as práticas das Ciências Sociais ao estudar o
organismo social seguem, em geral, os métodos e as práticas das
ciências naturais ao estudar um corpo vivo. É possível estudar padrões
de comportamento, investigar comportamentos passados e o
desenvolvimento ou o processo evolutivo, através de uma observação
micro ou macroscópica; isolar caracteres, órgãos, sistemas,
organizações e processos específicos; medir ou sondar; aplicar
métodos de investigação empírica, de análise material, de compreensão
teórica ou de análise crítica; analisar quantitativa ou qualitativamente,
através dos documentos que produza ou de interpretações que sejam
produzidas; compreender como se administra e como se regula;
compreender como interage com o habitat; antecipar e projetar
desenvolvimentos futuros. Todas estas possibilidades, que se abrem à
biologia e à medicina ao estudar um corpo vivo, abrem-se às Ciências
Sociais ao estudar uma sociedade.
É curioso notar, porém, que biologia e medicina divergem entre
si quanto à finalidade da sua abordagem a um corpo vivo. Aceitamos
sem grande resistência a ideia de que há uma distinção crítica,
sustentada na ideia de que a biologia tende em geral para a obtenção
do máximo conhecimento sobre um corpo vivo e que a medicina tende
em geral para uma intervenção sobre ele de modo a repará-lo, subtrair-
lhe o que impede o seu funcionamento regular, visando o seu bem-
estar. Parece ser também esse o caso com as diferentes Ciências
Sociais, entre si, na sua especificidade, a respeito da sociedade: há
acentuadas e descomunais diferenças entre sociologia, antropologia,
história, política, economia ou ecologia quanto à finalidade. Estão de
tal modo enredadas na sua especificidade técnica que desenvolveram

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Armindo Armando, Jane Alexandre Mutsuque & Pedrito Carlos Chiposse Cambrão
(Org.)

ao longo do tempo e continuam a desenvolver linguagens, códigos,


léxicos e quadros de sentido técnicos frequentemente incompatíveis e
herméticos entre si, vedados a não-iniciados, que encerram essas áreas
em si mesmas. Embora falem do mesmo – uma mesma sociedade –, a
tentativa de pôr em diálogo sociologia, antropologia, história, política,
economia ou ecologia parece constrangida por dificuldades óbvias de
tradução; o debate torna-se penoso e, frequentemente, infrutífero.
No entanto, é necessário observar que, apesar das suas múltiplas
diferenças, medicina e biologia eram originariamente áreas
complementares. Considere-se a este respeito, e.g., o “Corpus
Hippocraticum”, um texto pioneiro e fundador.
O “Corpus Hippocraticum” corresponde a uma coleção extensa
e compreensiva de tratados, presumivelmente recolhidos ao longo de
muito tempo e, provavelmente, especulam os historiadores, com
autoria múltipla. Trata-se de uma enciclopédia humana sobre o
organismo, corrigida e aperfeiçoada e atualizada a cada nova
contribuição. Porém, o que se nota é que o conhecimento aí fixado
tem uma orientação fundamental que o guia – o conhecimento é
obtido e está compreendido na ótica do uso prático do saber. É um
conhecimento que é conquistado enfrentando questões singulares e
concretas, detectando campos de ignorância, de desconhecimento, de
opacidade, isso que acontece quando se está perante o esforço de ter
de procurar soluções para problemas e dificuldades que não se sabe
como ultrapassar. Conhecer a fisiologia e a anatomia dos órgãos,
compreender o seu funcionamento ou, pelo contrário, as formas do
seu mal funcionamento, estava então na dependência de aprender a e
de saber intervir sobre eles, de desenvolver medicação, de restituir a
saúde; desenvolver teorias e hipóteses e protocolos não era senão uma
forma de antecipação metodológica de tudo o que ainda estava por
saber e cuja ocorrência constituiria espanto e surpresa e perplexidade
e um novo campo de problemas. A biologia era um saber médico,
estava subsumida à medicina, virada para o cuidado e a terapia do
corpo – e era da sua posição de complementaridade em relação à
medicina que retirava o seu valor.

11
Ciências Sociais e Desenvolvimento Humano em Moçambique:
produção, circulação e limitações

É possível que esta tensão de cuidado e de terapia esteja na


origem do próprio fenómeno da ciência. É possível que à tensão de
cuidado e de terapia da medicina e da biologia em relação a um corpo
vivo e ao seu bem-estar seja análoga a tensão de cuidado e de terapia
das Ciências Sociais em relação a uma sociedade e ao seu bem-estar.
A ser assim, o livro que se segue e todos os contributos que
contém correspondem tanto a procurar compreender que tipo de
organismo ou de corpo vivo é Moçambique, quanto a procurar
relacionar-se com ele na forma de cuidado e de terapia, a caminho do
bem-estar social.

Bruno Venâncio
Lisboa, Março de 2023

12
Apresentação

O livro que lhe é apresentado com o título “Ciências Sociais e


Desenvolvimento Humano em Moçambique: produção, circulação e
limitações”, resulta de uma contribuição de investigadores bastante
familiarizados com as matérias nele contidos, que extravasam as
fronteiras geográficas de Moçambique, mas, naturalmente pensados a
partir do lugar da fala dos autores, isto é, de um contexto
moçambicano. A primeira transforteira epistemológica é presente no
precioso prefácio feito pelo Prof. Doutor Bruno Venâncio da
Universidade Aberta de Portugal, no qual se distancia ao lugar da fala
enquanto espaço geográfico, mas se aproxima enquanto Ciência, ao
propormos uma reflexão sobre a vida pensada como consequência das
diversas ciências que desaguam no pensamento sobre o social,
concebendo desta forma uma proximidade de várias áreas de saber
com base nas Ciências Sociais.
De Moçambique, os autores se propõem discutir neste livro de
forma atípica as questões de produção das Ciências Sociais, a sua
circulação e limitações, sem que, estes três parâmetros de análise sejam
abordadas como fábrica (produção); mercadoria (circulação) e
fronteiras (limitações), mas sim, que exigem uma actividade intelectual
de análise para as perceber.
Ao todo, são seis capítulos de reconhecida qualidade, não só
pelo cumprimento de padrões internacionais de publicações científicas,
mas, ao proporem abordar temáticas que são indispensáveis para
pensar Moçambique em diversas dimensões através das Ciências
Sociais na atualidade. O primeiro capítulo de autoria de Eva Quembo é
intitulado “O lugar dos estudos africanos nas sociedades
Ciências Sociais e Desenvolvimento Humano em Moçambique:
produção, circulação e limitações

contemporâneas”, examina de forma minuciosa como é que o saber


produzido em África tem sido qualificado e que lugar ocupam na
epistemologia global. Assim, se acreditarmos que são muitas
Universidades no mundo que se dedicam a estudos e formações em
Estudos Africanos, este capítulo além de chamar atenção sobre a
circulação, problematiza sobre a importância epistemológica de forma
global e da necessidade de expressão das epistemologias do sul através
do pensamento africano enquanto produto pensado com base na
sociedade Africana, quiçá moçambicanas.
O segundo capítulo é de autoria de Stela Santos intitulado
“Casamento e heterossexualidade: uma relação de implicação, ou o
“tentar travar o vento com as mãos”? Uma Breve Análise sobre as Uniões
Homossexuais em Moçambique”, um texto que não só discute a
dimensão social moçambicana, mas que problematiza as posições
antagónicas no mundo sobre como as relações interpessoais são
construídas com base no género Masculino e Feminino. Numa
perspectiva científica, a autora desenvolve um debate jurídico e
sociológico da questão da homossexualidade, analisando como as diversas
fações sociais encaram a circulação e reprodução desta realidade global.
O terceiro capítulo de autoria de Armindo Armando é intitulado
“Epistemologia dos ritos de iniciação: reciprocidade entre as Ciências
Sociais e a tradição” e aborda como as Ciências ditas detentoras de
métodos próprios para a produção de conhecimento científico se
relacionam com o conhecimento produzido, que circula e molda a
identidade do homem nos ritos de iniciação. Este texto, além de
discutir sobre a teoria dos ritos de iniciação, propõe-se a aproximação
entre as Ciências Sociais e práticas tradicionais como “sabres locais”
em Moçambique para a construção de uma identidade individual e
coletiva em Moçambique.
O quarto capítulo de autoria de Jane Alexandre Mutsuque e Joana
Beira intitulado “(in)comunicação social em Moçambique: desafios e
transformação social”, reflecte o papel de comunicação social em
Moçambique, partindo do pressuposto que a comunicação é um
fenómeno social e ocupa lugar de destaque para as ciências humanas. No

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Armindo Armando, Jane Alexandre Mutsuque & Pedrito Carlos Chiposse Cambrão
(Org.)

texto são abordadas as questões relativas ao direito a informação dito


numa análise sociológica do fenómeno onde vários grupos encontram
limitações, ao mesmo tempo exortando aos fazedores das políticas
públicas para a viabilização de acesso a informação através de liberalização
de mecanismos de comunicação social efectiva em Moçambique.
O quinto capítulo, de autoria de Raul Flávio Hilário, intitulado
“Guerra civil em Homoine e a dinâmica social entre 1982 a 1992”
analisa como o conhecimento produzido sobre a guerra civil naquela
parcela da Província de Inhambane (Moçambique) tem ocupado lugar
de destaque nas dinâmicas sociais e na produção de conhecimento
sobre a guerra civil em Moçambique e de que forma a construção de
memória social em Moçambique, apesar do reconhecimento
metodológico de recolha de informações para configurar o arcabouço
histórico, dada a tradição oral de Homoine.
O sexto capítulo de autoria de Dulce Passades intitulado “A
Academia moçambicana e o ideário intelectual e político da Dra. Joana
Simião: o continuum entre o Ingroup e o outgroup” que analisa a
necessidade de normalizar o debate sobre a moçambicanidade através do
pensamento de Joana Simião, e refletir sobre o paralelo e o binómio eu e
outro, nós e outros, we/us and them/other a partir da psicologia social,
para chegar à Dra Joana Simião. Este capítulo encera a estrutura
epistemológica deste livro ao consolidar o ideal em Ciências Sociais
que consiste em analisar a sociedade como espaço de interação entre
seres, seres e coisas, coisas e seres.
Em suma, esta obra pretende proporcionar ao leitor um espaço
de reflexão sobre dinâmicas e movimentos sociais a partir do espaço
Moçambique.

Armindo Armando
Jane Alexandre Mutsuque
Pedrito Carlos Chiposse Cambrão
Beira, Abril de 2023.

15
O LUGAR DOS ESTUDOS AFRICANOS NAS
SOCIEDADES CONTEMPORÂNEAS

Eva Quembo

Introdução

O presente capítulo reflecte sobre o lugar que os saberes


produzidos em África ocupam nas sociedades contemporâneas. Para
tal, faz uma revisão da visão ocidental sobre o conhecimento
produzido em África, desde o período colonial até os tempos actuais e
apresentam-se os caminhos que a pesquisa em África deve seguir para
conquista de melhores espaços no mundo académico.
O principal objectivo deste estudo é perceber como os saberes
produzidos em África tem sido qualificado e que lugar ocupam na
epistemologia global. Para concretização deste objectivo, foram
definidos como objectivos específicos: descrever o percurso histórico
da epistemologia africana; discutir a possibilidade de uma ruptura
epistemológica com o conhecimento produzido pelo ocidente sobre
África e analisar as possibilidades de produção de uma epistemologia
puramente africana.
Os “saberes” produzidos em África, fruto do conhecimento
tradicional, baseado nas crenças, mitos, hábitos e tradições foi por
muito tempo desvalorizado, qualificados como primitivos e
incompreensíveis pelo facto dos africanos serem vistos como
incapazes de produzir um conhecimento. Na verdade, toda forma de
conhecimento que não era enformada pelas matrizes ocidentais, não
Ciências Sociais e Desenvolvimento Humano em Moçambique:
produção, circulação e limitações

era considerado válido. Com o colonialismo, que vigorou em África


desde os anos 1881 até inícios da década de 1980, o conhecimento que
se produzia sobre África, de história e geografia, servia apenas aos
interesses da metrópole. Após as independências, até os dias atuais,
têm-se vivenciado um aumento da produção científica em
Universidades e Centros de Pesquisa africanos, conhecimento de
África produzido por africanos, daí que se levanta a seguinte questão:
Qual é o lugar dos saberes africanos nas sociedades contemporâneas?
A pesquisa parte do pressuposto de que há uma tentativa de
imposição de um pensamento único, o conhecimento científico dos
paradigmas das Ciências Sociais ocidentais, colocando as Ciências
Sociais produzidas em África num lugar subalterno (Cardoso, 2012). E
que apesar do aumento da produção científica em África, este seja visto
como um conhecimento periférico, sobre a periferia, que não serve aos
interesses do continente (Pimenta e Kajibanga, sd).
A metodologia usada para concretização deste estudo é
marcadamente qualitativa, baseada na revisão de textos e artigos de
autores que se debruçam sobre o tema em análise, e posterior
cruzamento e debate de ideias.
O capítulo encontra-se estruturado em quatro partes. A primeira
parte apresenta a introdução. Na segunda parte faz-se uma descrição
da evolução histórica do conhecimento sobre África, desde os tempos
coloniais até a actualidade. A terceira parte apresenta as concepções
sobre o lugar onde o conjunto de conhecimentos produzidos em
África tem sido colocado, e suas razões. Na quarta parte são
apresentadas reflexões sobre a possibilidade de produção um
conhecimento científico puramente africano. No final são
apresentadas as notas conclusivas e as referências bibliográficas.

1. Evolução histórica da epistemologia de África

Para se perceber sobre o lugar que a epistemologia africana


ocupa nas sociedades contemporâneas faz-se mister recuar aos
períodos colonial e pós-colonial.

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Armindo Armando, Jane Alexandre Mutsuque & Pedrito Carlos Chiposse Cambrão
(Org.)

No período colonial, que vigorou em África desde os anos 1881


até inícios da década de 1980, marcado pela dominação do ocidente
sobre os países africanos, houve uma repreensão de todas as formas de
conhecimento que não fossem informados pelas matrizes coloniais,
relegando-as ao universo das crenças e dos conhecimentos
incompreensíveis (Cardoso, 2012 & Barbosa de Oliveira, 2014).
África era vista como um continente incapaz de ter produção
científica porque seu povo não era civilizado e capaz de produzir um
pensamento autónomo. Toda história, educação, arte, música, religião
produzida que não correspondia a grelha ocidental era completamente
excluída, considerada bárbara, selvagem, primitiva e tradicional. A
Europa era vista como superior em termos de técnica e de ciência, em
relação aos demais continentes (Hountodji, 2008; Cardoso, 2012; &
Meneses, 2014).
Na visão de Barbosa de Oliveira (2014) essa desvalorização do
conhecimento produzido sobre África partia da premissa de sua
inferioridade baseada na noção de raça e da própria desumanização.
Mais tarde, entre finais da década de 1970 e início da década de
1980, com a conquista da independência, as elites políticas africanas
assumiram a agenda de tirar África do subdesenvolvimento que a
caracterizou durante os anos anteriores e edificar o projecto de
desenvolvimento. Nesta senda, as universidades passaram a ser vistas
numa perspectiva estritamente utilitarista, lugar para formar em massa
recursos humanos de alto nível de forma urgente para a tarefa de
desenvolvimento nacional, e não como um espaço de pensamento
crítico, exercício da liberdade académica e autonomia institucional
(Cardoso, 2012).
Nesta época, o conhecimento científico produzido pelos
intelectuais africanos era baseado na crítica do conhecimento colonial
produzido para legitimar a dominação, daí que o objectivo deles era
reconstituir a identidade africana sob ponto de vista positivo, para
recuperar a dignidade e autonomia. O papel da produção do
conhecimento era iminentemente político, baseado na necessidade de
romper com o saber colonial produzido (Barbosa de Oliveira, 2014).

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Ciências Sociais e Desenvolvimento Humano em Moçambique:
produção, circulação e limitações

Enquanto os recém criados Estados africanos lutavam para se


desenvolver e adoptaram discursos desenvolvimentistas, as Ciências
Sociais ocidentais perseguiam sua missão de civilizar África. As teorias
de modernização presumiam que o desenvolvimento era o que o
ocidente tinha e passou-se a conceber o desenvolvimento como o
processo de recuperação de África em relação ao ocidente, um
processo de transição de sociedades pré-históricas para sociedades
capitalistas modernas, daí que o desenvolvimento de África passava
por seguir o modelo de desenvolvimento da Europa, numa nova forma
de colonização. Por este motivo Cardoso (2012) considera que as
produções científicas evoluíram num quadro emprestado e de
dominação que colocou sérios constrangimentos ao avanço das
Ciências Sociais em África.
Na década de 1970, com os constrangimentos financeiros e
ambiente político a deteriorar em certos países africanos, houve uma
crise da pesquisa e investigação. 1
Embora o cenário actual seja encorajador, caracterizado por
existência de académicos com carreira sólida, existência de
universidades e centros de investigação de referência, ainda está longe
de atingir o ideal de conquista de um processo autónomo e
autoconfiante de produção de conhecimentos e de capitalização que
permita ao continente responder a questões próprias e ir ao encontro
das necessidades intelectuais da sociedade africana.
A título de exemplo, em Moçambique existem cerca de
cinquenta e seis (56) instituições de ensino superior entre
Universidades, Institutos Superiores, Escolas e Academias, das quais

1 As universidades tornam-se fechadas em si próprias, o que enfraqueceu o ambiente


de ensino e da pesquisa que ficou sem base financeira, decomposição da
infraestrutura física, colapso das bibliotecas, colapso do sistema de grupos de
discussão e seminários, fuga de cérebros, aumento de violência nos campus
universitários, declíneo do conceito de comunidade universitária, e mais
recentemente massificação das admissões e proliferação de programas segundo a
lógica comercial e dificuldade de implementar cursos e incorporar elementos de
investigação científica (Cardoso, 2012).

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Armindo Armando, Jane Alexandre Mutsuque & Pedrito Carlos Chiposse Cambrão
(Org.)

trinta e quatro (34) são privadas 2. Destas instituições, pelo menos três
delas tem uma faculdade de Ciências Sociais e humanas, que para além
de cursos de licenciatura, oferecem cursos de mestrado e até
doutoramentos 3. Embora cada uma destas Faculdades tenha um
centro de pesquisa, apenas dois destes estão em pleno funcionamento,
nomeadamente, o Centro de Análise de Políticas da Faculdade de
Letras e Ciências Sociais da Universidade Eduardo Mondlane, e o
Centro de Pesquisa da Faculdade de Ciências Sociais e Filosofia da
Universidade Pedagógica, contudo, a sua produção científica ainda é
incipiente.
Por estes e outros motivos Cruz e Silva (2011) defendem a
necessidade de ter uma academia forte, sem a qual as Ciências Sociais
no continente correm risco de reforçar a ideia da visão do outro,
transformando-se em periferia.

2. Lugar dos saberes qualificados produzidos em África

Na visão de Cardoso (2012), apesar dos grandes avanços da


epistemologia africana nos tempos actuais, ainda se vivencia uma
tentativa de imposição de um pensamento único, das Ciências Sociais
ocidentais. Por este motivo as Ciências Sociais em África continuam a
ocupar um lugar subalterno.
Para Pimenta e Kajibanga (sd) o lugar onde se situam os estudos
africanos é periférico - colocado à margem e considerado pouco
importante no conjunto de produção dos saberes; e sobre a periferia - é
um olhar tradicional a partir dos considerados países desenvolvidos. Para
estes autores, os conhecimentos endógenos de África são marginalizados,
desmantelados e extintos neste mundo globalizado. Essa marginalização

2 Fonte: http://www.mctes.gov.mz/wp-content/2021/03/lista-de-instituicoes-de-

ensino-superior. Actualizado em 2021.


3 Faculdade de Letras e Ciências Sociais da Universidade Eduardo Mondlane,

Faculdade de Ciências Sociais e Políticas da Universidade Católica e Faculdade de


Ciências Sociais e Filosóficas da Universidade Pedagógica.

21
Ciências Sociais e Desenvolvimento Humano em Moçambique:
produção, circulação e limitações

não é feita só pelas sociedades ocidentais, mas também pela


ocidentalização e uniformização das próprias sociedades africanas.
A ocidentalização a que os autores se referem, não se reflete
apenas no facto de que os estudos africanos se baseiam nos modelos
teóricos e conceptuais desenvolvidos no ocidente, mas também
porque a actividade científica em África é orientada para o exterior,
destinada a ir ao encontro das necessidades teóricas dos parceiros
ocidentais e em resposta aos questionamentos por eles colocadas. Isso
é reforçado pelo uso das línguas europeias, o que excluí maior parte
africanos de perceber e discutir os resultados da investigação, daí que
a discussão científica em África ser vertical, entre os académicos
africanos com os seus parceiros e não entre si (Hountodji, 2008).
A desvalorização do conhecimento produzido em África não é
exclusivamente feita por estrangeiros. Exemplo disso foi um estudo
desenvolvido por Zeleza (2000), historiador Malawiano que classificou
o conhecimento produzido em África como um conhecimento que se
fazia passar por científico, mas que na verdade não passava de um
artefato que resultava da combinação de interesses políticos e pessoais,
sem grande pertinência científica. Este autor atribui culpa ao
paternalismo, característico de maior parte das elites africanas, como
grande empecilho para uma melhor compreensão do continente, e ao
facto de se aplicar conceitos desenvolvidos em contextos diferentes no
estudo de realidades sociais diferentes sem prestar atenção ao grau de
dependência desses conceitos em relação ao contexto (Zeleza, 2000
citado por Macamo, 2014 p. 103).
Para fazer face a esta situação Meneses (2012) defende a
necessidade de si criar um pensamento verdadeiramente africano, pois
cada povo deve interpretar seus próprios problemas dentro de sua
própria configuração, identidade e contexto, daí que urge a necessidade
de reinterpretar África no quadro de uma epistemologia descolonizada
e reorganizar os instrumentos analíticos usados nas Ciências Sociais
praticadas no continente.

22
Armindo Armando, Jane Alexandre Mutsuque & Pedrito Carlos Chiposse Cambrão
(Org.)

3. Que caminhos para instituir uma epistemologia puramente


africana?

Acerca da possibilidade de construção de um conhecimento


sobre África 4, feita por africanos as opiniões se dividem: uns defendem
a necessidade de se fazer uma ruptura com todo e qualquer
conhecimento anteriormente produzido e se construir um novo
conhecimento autónomo, enquanto que outros não vêem a
necessidade de se romper com o conhecimento já produzido, mas sim
tomá-lo como ponto de partida.
Na defesa da necessidade de ruptura epistemológica estão
Pimenta e Kajibanga (sd) segundo os quais o conhecimento científico
é sempre uma construção de novos conhecimentos, uma ruptura
rigorosa e fundamentado com o passado. Na visão destes autores, o
conhecimento científico em África deve ser construído na base da
conjugação de uma universalidade com a relatividade, na medida em
deve haver relativismo em reconhecer que existem diferentes formas
de fazer a ciência, diferentes interpretações da mesma realidade por
diferenças na relação sujeito/objecto.
Outro autor que defende a necessidade de se romper com o
conhecimento anterior é Cardoso (2012), na visão do qual duas razões
justificam a necessidade de ruptura epistemológica: uma ligada a
história na vertente fenomenológica - relacionada a necessidade de se
distanciar das ex-metrópoles após a conquista da independência, e
outra de ordem epistemológica - ligada a necessidade de se instituir
uma outra prática cientifica em África, com novos pontos de partida,
e novos sujeitos.
Uma visão contrária em relação a necessidade de ruptura é-nos
apresentada por Macamo (2012), no seu estudo sobre a possibilidade

4 Também chamados de Estudos Africanos, entendidos como um “conjunto de

proposições teóricas sobre uma ideia mais ou menos comum e que consiste
essencialmente na elaboração da diferença entre a África e a Europa, mais tamnbém
no desiderato de através do conhecimento produzido formar uma África cada vez
mais diferente da Europa” (Macamo, 2014 p. 105).

23
Ciências Sociais e Desenvolvimento Humano em Moçambique:
produção, circulação e limitações

de uma sociologia puramente africana, onde considera que não se deve


fazer uma ruptura com o saber sociológico ocidental produzido, mas
sim perceber as condições que possibilitam a emergência de um saber
sociológico em África. Para Macamo, África deve ser concebida como
uma construção social que respeita a evolução dos saberes que passam
por três fases: saber tradicional, saber colonial e saber africano. 5
Na mesma lógica está Hountodji (2008), para quem é possível
uma filosofia africana, feita pelos africanos baseada em problemáticas
originais - estribadas numa sólida apropriação do legado intelectual e
profundamente enraizada na experiência africana. Desta forma o
conhecimento produzido serviria para transformação de África. Para
este autor, a prioridade da investigação científica deveria ser
desenvolver uma tradição de conhecimento em todas disciplinas e com
bases em África, uma tradição em que as perguntas em estudo sejam
desencadeadas pelas próprias sociedades africanas e a agenda de
investigação seja determinada por ela. Deste modo, todo o
conhecimento acumulado ao longo dos séculos sobre aspectos da vida
de África seria partilhado com os africanos e com isso haver uma
apropriação lúcida e responsável do conhecimento disponível e possa
capitalizar tal conhecimento.
Quanto ao método a ser usado na produção científica autonóma
e autoconfiante, Hountodji defende o uso da tradição alemã que se
baseia em três pontos fundamentais: (i) uso da língua própria, virado
ao consumo interno; (ii) promoção de debates internos onde os
académicos questionam-se mutuamente discutindo e respondendo-se
entre si pois assim há um debate horizontal com sustentação própria;
e (iii) criação da cultura de trabalho em redes entre universidades e
centros de pesquisa na realização de pesquisas, publicação e

5 O saber tradicional é o saber ritualizado que reproduz a ordem social como os


mitos. O saber colonial é responsáVel pela invenção de uma sociedade africana
passível de interveção colonial, deste tipo de conhecimento deve-se afastar. O saber
africano é aquele que projecta África do futuro através das condições objectivas
actuais (Macamo, 2012 p. 71).

24
Armindo Armando, Jane Alexandre Mutsuque & Pedrito Carlos Chiposse Cambrão
(Org.)

disseminação dos resultados das pesquisas e com isso elevar as


universidades pequenas.
Outro pensador que defende a construção de conhecimento sem
necessidade de ruptura epistemológica é Appiah (1997, citado por
Barbosa e Oliveira, 2014) que partindo do princípio que maior parte
dos pensadores africanos foram formados na tradição da filosofia
ocidental defende que estes deveriam usar sua formação para
questionar as ideias ocidentais estabelecendo uma perspectiva
comparativa e crítica para não ter um conhecimento que seja apenas
ocidental ou apenas tradicional, mais que extrai parte boa um do outro.
Com essa apropriação crítica do conhecimento iria se formar um
campo filosófico feito por africanos, que não reproduz descritivamente
o saber tradicional, nem reproduz acriticamente o saber ocidental, mas
extrai elementos de ambos para criar um sistema original.
Para Pimenta e Kajibanga (sd) há uma necessidade de repensar
África como objecto de estudo e o africano como sujeito do
conhecimento e redefinir com isso discutir sobre a possibilidade de um
conhecimento genuinamente africano. Retomando a questão do
método, estes autores consideram que para se estudar a sociedade
africana como objecto, deve-se ter em conta a interdisciplinaridade dos
vários domínios do saber e haver um distanciamento que garanta
cientificidade do conhecimento, olhando a relação sujeito -
comunidade científica africana/objecto - sociedade africana, serem o
mesmo.
Perante as ideias avançadas, consideramos possível instituir um
conhecimento puramente africano tomando como ponto de partida os
conhecimentos já existentes, pois o conhecimento científico é
construção inacabada, passível de críticas, aberto a novos olhares.
Este posicionamento baseia-se na ideia da existência de uma
“ecologia de saberes” defendido por Boaventura Sousa Santos, que é
um processo que se dá a partir da universalidade do saber e inclusão
dos sentidos, pela hibridização do pensamento e pela relação respeitosa
entre as teorias científicas, a mitologia, a cultura e os saberes

25
Ciências Sociais e Desenvolvimento Humano em Moçambique:
produção, circulação e limitações

tradicionais reconhecidos como pertinentes, inseridos num contexto


(Morige, et al, 2017).
Deste modo, seria possível construir um conhecimento
científico em África, sobre África e por Africanos, partindo dos
paradigmas universais já existente nas ciências, incluindo a diversidade
de conhecimentos da cultura, mitologia e saberes tradicionais de
África, devidamente contextualizados.
No entanto, é legitimo afirmar que deve haver um reforço a
capacidade de fazer ciência ao nível de África, principalmente no que
diz respeito a escolha das problemáticas a serem estudadas, que devem
relevantes e ajudem a resolver os problemas actuais do continente.
Na verdade, o mais importante para que haja uma produção
científica relevante em África é a mudança de mentalidade dos próprios
africanos. A experiência mostra que a cultura patrimonialista das elites
políticas africanas constituem um empecilho ao avanço da investigação
na área social. Apesar da constituição e demais legislações garantirem
o direito a informação e liberdade de expressão, e ainda domina a
cultura de secretismo na disponibilização de informação das
instituições, principalmente públicas, a repreensão a tentativa de
abordagem de certos assuntos principalmente das investigações de
ciências políticas que visa refletir sobre a forma como os assuntos
públicos são geridos pelo Estado e suas instituições, são vistos como
ataque ao governo do dia.

Considerações finais

Para concluir, vale retomar a questão levantada sobre o lugar que


os saberes produzidos em África ocupam na sociedade
contemporânea, pelo que podemos afirmar que decorridos anos após
a independência de África, e apesar da existência de universidades e
centros de estudos que se dedicam a pesquisa social de referência, o
conhecimento produzido em África continua a ser relegado a um lugar
subalterno, sendo desvalorizado e desqualificado no mundo
globalizado de hoje.

26
Armindo Armando, Jane Alexandre Mutsuque & Pedrito Carlos Chiposse Cambrão
(Org.)

Esta desvalorização e desqualificação, em parte é devida ao facto


da investigação em África ainda estar muito dependente do ocidente.
Por outro lado, há falta de agenda própria em termos de identificação
das problemáticas das pesquisas realizadas em África, aliado ao uso
indiscriminado dos conceitos concebidos e aplicados no ocidente, sem
considerar a questão contextual na aplicação dos mesmos.
No entanto, é possível que África possa dar passos significativos
para construção de uma epistemologia puramente africana, autónoma
e autoconfiante, através do estudo de problemas africanos dentro de
sua própria configuração e identidade desde que se criem condições
políticas e materiais para a prática das Ciências Sociais.

27
Ciências Sociais e Desenvolvimento Humano em Moçambique:
produção, circulação e limitações

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30
CASAMENTO E HETEROSSEXUALIDADE:
UMA RELAÇÃO DE IMPLICAÇÃO, OU O
“TENTAR TRAVAR O VENTO COM AS
MÃOS”? UMA BREVE ANÁLISE SOBRE AS
UNIÕES HOMOSSEXUAIS EM
MOÇAMBIQUE

Stela Santos

Introdução

O problema jurídico-político do casamento entre pessoas do


mesmo sexo é um tema que está hoje na ordem do dia em diversos
países. No caso moçambicano, a questão coloca-se, desde logo, no
reconhecimento do direito à diferença, já que, a orientação sexual ou
identidade de género não consta, expressamente, do enunciado
normativo que consagra o princípio da igualdade na Constituição
moçambicana, exigindo um exercício de argumentação jurídica para
que tal se considere aí abrangido. Por isso, antes de um problema de
legitimação, coloca-se, desde logo, um problema de reconhecimento.
Existem questões que, pela sua importância e pela natureza dos
sentimentos que suscitam, constituem fonte de discussão e
incompreensão mútua ou, noutros termos, uma “sobreposição de
monólogos”. Esta clivagem ocorre, frequentemente, em áreas de tal
forma fundamentais para os indivíduos – nomeadamente, as que se
prendem com o início e com o fim da vida – que lhes é impossível uma
Ciências Sociais e Desenvolvimento Humano em Moçambique:
produção, circulação e limitações

resposta objectiva, desligada dos seus valores mais essenciais, desde


logo, da posição filosófica de base de que se parta, das crenças
religiosas, ou daquilo que é entendido como tradição. Neste contexto,
dir-se-á que qualquer exercício de objetividade é uma tarefa árdua,
senão impossível, em que razão, estado de espírito e sentimentos se
confundem não poucas vezes (o tal erro de Descartes!).
O tema que me proponho tratar, “casamento e
heterosexualidade”, enquadra-se neste tipo de questões fraturantes,
visto que o casamento é visto desde a Antiguidade como uma espécie
de “célula básica” da sociedade; ou como um “sacramento” - a
consagração por Deus, de uma união entre um homem e uma mulher.
De tal forma que, admitir a modificação daquilo que se consideram ser
as características essenciais do casamento é impensável para muitos. E
pur si muove!
E a primeira questão de que poderia partir seria esta: será
possível discutir a “normalidade” do casamento entre pessoas do
mesmo sexo, sem discutir as condicionantes morais e religiosas que lhe
estão subjacentes, desde logo, sobre a moralidade da
homossexualidade, sobre a natureza do casamento, e os seus
propósitos.
É neste plano que se podem colocar um conjunto de questões
que pretendo analisar, e dar resposta. Desde logo, uma prévia: (1) deve
o Estado continuar a imiscuir-se neste problema, ou não deverá
reconhecer qualquer tipo de casamento, “devolvendo” esta matéria aos
grupos sociais? Por economia de texto, só incidentalmente passarei por
esta questão, dando como “aceitável” essa apropriação.
Partindo do princípio de que se reconhece legitimidade ao
Estado para regular este tipo de relações, subsistem depois três outras
questões, que resultam de uma breve prospeção sobre esta matéria em
Direito Comparado: (2) deve o Estado reconhecer apenas os
casamentos entre um homem e uma mulher? (3) Deve o Estado, sem
reconhecer o casamento entre pessoas do mesmo sexo, alargar o
âmbito de aplicação da união de facto, ou instituto similar, por forma
a garantir, nomeadamente, direitos sociais, sucessórios, ou de custódia

32
Armindo Armando, Jane Alexandre Mutsuque & Pedrito Carlos Chiposse Cambrão
(Org.)

de menores àqueles que vivam numa situação tutelada por essa união
de facto? Ou (4) deve o Estado reconhecer o casamento entre pessoas
do mesmo sexo?
Se assim se entender, uma última questão se revelaria
incontornável, (5) o reconhecimento a favor do casamento entre
pessoas do mesmo sexo, implicaria a legitimação do direito à adoção
por parte deste tipo de casais?
Sendo certo que muitas pessoas têm sólidas convicções
religiosas, morais e éticas de que casamento é, por definição, a união
de um homem e de uma mulher, tendente à procriação – pela natureza
das coisas, não demonstrável; outros têm – igualmente sólidas, e
indemonstráveis –, convicções religiosas, morais e éticas de que
casamento entre homossexuais deveria ter o mesmo reconhecimento
e, por conseguinte, tutela do Estado, nos mesmos moldes que o
casamento heterossexual.
A questão transversal à toda esta matéria poderá perguntar: (6)
qual o papel do Estado, no contexto de um Estado de Direito
democrático, consequentemente, vinculado ao pluralismo na
sociedade, tal como nos é configurado a partir do artigo 3 da
Constituição moçambicana? Isso levar-nos-ia a (7) questão: se se trata
de garantir a liberdade, ou impor um determinado “código moral”?
As principais coordenadas – sempre numa lógica argumentativa,
típica da ciência jurídica – poderão ser estas: se nem a Declaração
Universal dos Direitos do Homem, nem a Carta Africana dos Direitos
do Homem e dos Povos – padrão interpretativo e integrador em
matéria de direitos fundamentais, à luz do art.º 43 da Constituição
moçambicana –, nem a própria Constituição moçambicana definem
uma “ordem moral”. Em que assenta então esta necessária implicação
entre casamento e heterossexualidade? Como pode o legislador
ordinário estabelecer restrições fundadas nessa “ordem moral” para
aferir os pressupostos do casamento?
A recente jurisprudência do Conselho Constitucional
moçambicano no Processo nº 02/CC/2017 (Acórdão n.º
07/CC/2017, de 31 de outubro) veio estimular este estudo, ao

33
Ciências Sociais e Desenvolvimento Humano em Moçambique:
produção, circulação e limitações

reconhecer que “a Constituição da República de 2004, não define


princípios constitucionais em que assenta a ordem moral”.
Situado o núcleo central da nossa investigação no âmbito do
Direito Constitucional, a circunstância de encerrar uma reflexão sobre
o Direito da Família, aparece-nos aqui como, essencialmente,
instrumental.
Começarei por me debruçar sobre o conceito de casamento,
passando por uma aproximação à abordagem religiosa do conceito, e
por uma primeira leitura da disciplina constitucional deste instituto
(Cap. I). Para depois analisar o seu regime legal, e a sua natureza
jurídica na lei civil, e as suas limitações (Cap. II). O terceiro capítulo
traduz um contributo para a discussão, rectius, reformulação do
conceito jurídico de casamento, constitucionalmente orientada, à luz
das principais coordenadas que a Constituição permite estabelecer,
para a fundamentação e delimitação do direito fundamental a contrair
casamento, no ordenamento jurídico moçambicano.

1. O conceito de casamento

1.1 Generalidades

O casamento é hoje (na maior parte do mundo), a principal fonte


de relações familiares, representando o núcleo da família, e sendo a
fonte largamente predominante da procriação 1.
O casamento era, tradicionalmente, uma relação entre pessoas
de sexo diferente. Era assim que o definia o artigo 1577º do Código
Civil (livro IV do Código Civil de 1966, em vigor em Moçambique até
2004) 2, formulação que se manteve, depois, na Lei n.º 10/2004, de 25
de agosto, entretanto revogada, na actual Lei n.º 22/2019, de 11 de
Dezembro (Lei da Família).

1 DIOGO LEITE DE CAMPOS/MÓNICA MARTINEZ DE CAMPOS, Lições de Direito de


Família, 5ª Edição, Almedina, Coimbra, 2020, p. 11.
2 Ibidem.

34
Armindo Armando, Jane Alexandre Mutsuque & Pedrito Carlos Chiposse Cambrão
(Org.)

Actualmente, o Direito (mais concretamente o Direito da


Família) tem sentido as maiores dificuldades para desempenhar o seu
papel. Em primeiro lugar, porque a velha noção da norma geral e
abstrata – para todas as pessoas e para todos os casos – deixou de
satisfazer as necessidades sentidas por uma sociedade cada vez mais
pluralista; em segundo lugar, porque entre todos os modelos possíveis
que se apresentam para regular um tema, as opções legislativas
tornaram-se muito mais debatidas e mais difíceis de legitimar perante
a sociedade como um todo 3.
A partir destas debilidades que o Direito passou a sentir, para
regular a vida individual e familiar, quando antigamente isto não
constituía um problema particularmente difícil, seria espectável que se
fizesse a pergunta: para quê tentar? Isto é: que sentido tem pretender
impor soluções para os temas da vida individual e familiar quando,
basicamente, as soluções têm de ser variadas e, sobretudo, se elas são
prévias e livremente escolhidas pelos interessados e se os indivíduos
podem modificar essas escolhas à medida que as suas aspirações
evoluem 4? Se cada vez mais é assim com a maioria dos direitos, porque
deveria ser diferente no que concerne ao casamento?

1.2 A abordagem religiosa do casamento

“Desde a antiguidade a religião é um fenómeno presente na vida


humana.” Afirma Jorge Bacelar Gouveia, que o surgimento do homo
sapiens coincidiu com o aparecimento do homo religiosus, afirmando o
mesmo autor que a religiosidade é parte integrante da humanidade e
que, simetricamente, sem humanidade não há religiosidade 5.
De acordo com Jorge Bacelar Gouveia, uma das maiores
singularidades que o casamento oferece é o facto de o mesmo

3 GUILHERME OLIVEIRA, Estudos de Direito de família, 4 Movimentos em Direito de Família,


Almedina, Coimbra, 2020, p. 59.
4 Ibidem.
5 Cfr. JORGE BACELAR GOUVEIA, Direito, Religião e Sociedade no Estado Constitucional,

Instituto de Direito de Língua Portuguesa, Lisboa, 2012, p. 19.

35
Ciências Sociais e Desenvolvimento Humano em Moçambique:
produção, circulação e limitações

interessar ao Estado e à Igreja Católica 6, portanto, é uma das fontes


das relações jurídicas familiares conforme consagra a Lei da Família
(Lei nº 22/2019 de 11 de Dezembro) no seu artigo 7, tornando-se
deste modo compreensível que o Estado chame a si a regulação, em
termos coactivos da vida em sociedade 7, começando logo pela própria
Constituição, numa tendente acentuação e incremento do Estado
Social de Direito, esta matéria deixou de pertencer unicamente aos
Códigos Civis para se alargar ao texto constitucional 8.
Do ponto de vista da religião, o casamento é considerado como
um dos sacramentos, assim elevado pelo Código de Direito Canónico
de 1983, que no seu cânone 1055 parágrafo 1 define o matrimónio
como “o pacto matrimonial pelo qual o homem e a mulher constituem
entre si a comunhão íntima de toda a vida, ordenada por sua índole
natural ao bem dos Cônjuges, a procriação e educação da prole, entre
baptizados foi elevado por Cristo, Nosso Senhor, a dignidade de
sacramento. 9
Embora a Constituição garantisse aos cidadãos a liberdade de
praticar ou não praticar uma religião 10, em Moçambique, após a
independência, a prática religiosa não era vista com bons olhos, basta
analisarmos o artigo 15 da Constituição de 1975, Constituição da
República Popular de Moçambique 11. O regime vigente na ordem do
dia entendia que a prática viciante na religião prejudicaria o surgimento
do “homem novo”, que o país ambicionava enquanto uma nação que
emergia.
Portanto, a partir de 1975, Moçambique era efectivamenete um
Estado Laico (com alguns laivos de anticlericalismo), tendo previsto na
sua Constituição que a “República Popular de Moçambique é um

6 Cfr. Idem, p. 210.


7 Cfr. Idem, p. 211.
8 Cfr. Idem, p. 232.
9 Cfr. Idem, p. 211.
10 Cfr. nº 1 do artigo 33 da Constituição moçambicana de 1975.
11 Referia o mesmo artigo que “A República Popular de Moçambique realiza um

combate enérgico contra o obscurantismo”.

36
Armindo Armando, Jane Alexandre Mutsuque & Pedrito Carlos Chiposse Cambrão
(Org.)

Estado Laico, nela existindo uma separação absoluta entre o Estado e


as instituições religiosas” 12.
Como refere Jorge Bacelar Gouveia, em 1975 Moçambique não
se tratava de um Estado Laico ou arreligioso, mas sim, de um Estado
laicista ou antirreligioso, em que o poder político tinha por objectivo
fazer desaparecer “todas as irrupções de manifestação religiosa dos
cidadãos 13.”
Actualmente, a Constituição moçambicana garante a instituição
do Matrimónio, ligando a mesma á família, definindo a Família como
elemento fundamental e a base de toda a Sociedade, protegendo e
reconhecendo o casamento como sendo uma instituição que garante a
prossecução dos objectivos da família 14.

1.3 A disciplina constitucional da família e do casamento

Na disciplina constitucional relativa à família e ao casamento


(artigos 119 e 120 da CRM), reconhecem-se entre outros aspectos, o
direito das pessoas a constituírem família e a casarem-se. São, embora
essa dicotomia não resulte expressamente do texto constitucional, dois
direitos distintos, pelo que não parece ser de admitir a redução do
conceito de família à relação conjugal baseada no casamento, a
chamada família “matrimonializada” 15.
Por isso entendo que cabe no âmbito da tutela constitucional,
tanto os casamentos sem descendência – a procriação é um direito, não
um efeito necessário –, como as famílias monoparentais. Para isso
apontam os deveres dos pais sobre a igualdade dos filhos, nascidos
“dentro” ou “fora do casamento” (art.º 120 n.º 4 da CRM).
O que permite estender o âmbito de protecção da disciplina
constitucional às uniões familiares de facto, embora, isso não

12 Cfr. nº 1 do artigo 19 da Constituição de 1975.


13 JORGE BACELAR GOUVEIA, op.cit., p. 231.
14 V. artigo 119 da CRM, cfr. Jorge Bacelar Gouveia, op.cit., p. 233.
15 Cfr. J. J. GOMES CANOTILHO / VITAL MOREIRA, Constituição da República Portuguesa

Anotada, Vol. I, Anotação II ao art.º 36.º da CRP, p. 561.

37
Ciências Sociais e Desenvolvimento Humano em Moçambique:
produção, circulação e limitações

signifique, necessariamente, um tratamento jurídico inteiramente igual


ao das famílias baseadas no casamento, “desde que as diferenciações
não sejam arbitrárias, irrazoáveis ou desproporcionadas e tenham em
conta todos os direitos e interesses em jogo” 16.
A questão que é imperativo colocar, quanto ao tema em análise,
é discutir se o texto constitucional permite acolher, sem modificação
constitucional prévia, o casamento entre pessoas do mesmo sexo ou
se, pelo contrário, da norma constitucional resulta, necessariamente, a
exclusividade do casamento heterossexual.
Pode ser defensável – e tem sido defendido entre nós – que, a
clara referência ao “casamento como instituição que garante a
prossecução dos objectivos da família” (artigo 119 n.º 2 da CRM),
parece acolher, pelo menos para alguns, a “noção tradicional” de
casamento, enquanto contrato entre duas pessoas de sexo diferente. O
que afastaria a noção das uniões entre pessoas do mesmo sexo, sem
prejuízo de que, no âmbito dos poderes de conformação do legislador, e
da conjugação de outros princípios ou valores constitucionalmente
estruturantes, possam ser atribuídos a este tipo de relações, os mesmos
efeitos jurídicos do casamento tradicional17, com plena igualdade jurídica.
Mas nós podemos entender de forma diferente, porque face ao teor
literal, não restritivo do mesmo artigo 119 n.º 2 da CRM, nada restringe,
na Constituição, o casamento entre pessoas do mesmo sexo, pelo que,
não estando constitucionalmente proibido, nada obsta a que possa ser
reconhecido pelo legislador ordinário, estendendo na lei civil o regime do
casamento a casais compostos por pessoas do mesmo sexo.
Até porque, um casamento, efectivamente fundado no “respeito
pela dignidade da pessoa humana”, e no “livre consentimento”,
pressupõe desde logo, e salvo melhor opinião, a liberdade de casar e
de escolher cônjuge, independentemente das suas características
pessoais (cfr. artigos 35 e 44 da CRM), não podendo ninguém ser
obrigado ou impedido de casar-se, a fazê-lo com quem não desejar, ou

16 Ibidem.
17 cfr. Idem, p. 562.

38
Armindo Armando, Jane Alexandre Mutsuque & Pedrito Carlos Chiposse Cambrão
(Org.)

impedido de o fazer com quem desejar, nem essa decisão estar


dependente de autorização de terceiro, por maioria de razão, do
próprio Estado, que se “apropria” assim dessa realidade.
Apropriação que é bem patente quando o constituinte se refere
aos requisitos e efeitos do casamento. Embora se admita a existência
de várias formas de celebração do casamento – o tradicional e o
religioso –, impõe-se depois, que seja a lei civil, ela mesma, a definir os
requisitos e os efeitos do casamento uniformemente, qualquer que seja
a sua forma de celebração (art.º 119 n.º 4 da CRM), apropriando-se o
Estado da realidade que está subjacente a estas diferentes realidades.
“Apropriação” que é só por si discutível, desde logo, à luz do
pluralismo jurídico, com consagração constitucional expressa no artigo
4 da CRM, enquanto princípio fundamental.
Por isso, na conformação do regime legal deste instituto, salvo
melhor opinião, a opção metodologicamente correcta por parte do
legislador ordinário, não poderia deixar de ponderar outros direitos
constitucionais assumidos, tais como: o direito à integridade moral
individual (artigo 40 n.º 1 da CRM); o direito à reserva da vida privada
(artigo 41 da CRM); e o direito a uma igualdade plena perante a lei (artigo
35 da CRM), que proscreve qualquer tipo de discriminação, sublinho, “de
qualquer espécie” (artigo 44 da CRM), por maioria de razão, em função
da orientação sexual18, lidos à luz da Carta Africana dos Direitos do
Homem e dos Povos (CADHP), com particular realce para o direito à
integridade moral individual (artigo 4º da CADHP), o direito à total
igualdade perante a lei (artigo 3º da CADHP) ou ainda o direito ao gozo
dos direitos e liberdades reconhecidos e garantidos (artigo 2º da CADHP),
todos da Carta Africana dos Direitos do Homem e dos Povos que a CRM
reconheceu expressamente como padrão de integração e interpretação em
matéria de direitos fundamentais (cfr. artigo 43 da CRM).

18 Em sentido próximo, embora num outro contexto, cfr. CARLOS PAMPLONA


CORTE‐REAL/ISABEL MOREIRA/LUÍS DUARTE D’ALMEIDA, O casamento entre pessoas
do mesmo sexo: Três pareceres sobre a inconstitucionalidade dos artigos 1577.º e 1628.º, alínea e),
do Código Civil, Almedina, Almedina, Coimbra, 2008, pp. 26, 50‐51 e 68‐71.

39
Ciências Sociais e Desenvolvimento Humano em Moçambique:
produção, circulação e limitações

2. O regime legal do casamento

2.1 A natureza jurídica do casamento na lei civil

A Lei da Família no seu artigo 8, define o casamento como “a


união voluntária e singular entre um homem e uma mulher, com o
propósito de constituir família, mediante comunhão plena de vida”,
adoptando assim uma posição restritiva face ao texto constitucional.
A partir deste enunciado, importa depois extrair alguns
elementos que permitam a sua qualificação jurídica.
No que concerne ao ordenamento jurídico moçambicano, o
casamento é um negócio jurídico, celebrado entre um homem e uma
mulher, com o compromisso recíproco de plena comunhão de vida,
formalizada nos termos da lei.
O casamento é, por outro lado, um negócio jurídico pessoal, em
dois sentidos: porque se destina, em primeiro lugar, à constituição de
uma relação familiar, influindo no estado dos nubentes, mas também
por ser apenas realizado ou concluído pessoalmente, não admitindo
representação propriamente dita 19.
Ao caracterizar o casamento como um contrato, convém ainda
acentuar que este é um negócio solene, não havendo liberdade de
forma. O que significa que o casamento deve obedecer a determinada
forma, que é prescrita por lei, ou seja, por palavras adequadas e um
documento escrito, contendo as declarações de vontade das partes 20.
A diferença entre o casamento e outros negócios solenes,
consiste aqui na forma de expressar a sua vontade: enquanto em outros
negócios um documento escrito constante das declarações de vontades
das partes é suficiente para que o negócio se realize, no casamento é
necessário a realização de uma cerimónia de celebração do acto (cfr.
artigo 43 da Lei da Família).

19Ainda que a lei admita o casamento por procuração, no artigo 50 da Lei da Família.
20JOSÉ JOÃO GONÇALVES PROENÇA, Direito da Família. 4.ª edição, Universidade
Lusíada, Lisboa, 2008, p. 175.

40
Armindo Armando, Jane Alexandre Mutsuque & Pedrito Carlos Chiposse Cambrão
(Org.)

No entanto, “o casamento é o negócio jurídico onde a autonomia


da vontade tem limitada relevância” 21, porque, e diferentemente de outros
negócios jurídicos onde impera o princípio da autonomia privada, a
autonomia deixada aos nubentes é muito reduzida, na medida em que os
efeitos pessoais e alguns patrimoniais são fixados, imperativamente, pela
lei, não podendo as partes inserir, no contrato, condições ou termos (cfr.
artigo 97 e seguintes da Lei da Família), ou seja, o consentimento
matrimonial deve ser “puro” e “simples”.

2.2 A liberdade contratual e o princípio da autonomia privada

Tenho para mim a convicção de que, de um ponto de vista


jurídico e social, o indivíduo só existe como pessoa, quando lhe é
reconhecido, pelos demais, a sua esfera de personalidade e propriedade
e, por conseguinte, o poder de regular por si próprio as suas questões
pessoais e as suas relações com outros sujeitos de direito juridicamente
vinculantes, mediante acordos livremente estabelecidos, por um lado;
mas por outro, a constatação de que o indivíduo vive em sociedade,
com todas as consequências que isso acarreta 22.
Contudo, a ideia de limitações à liberdade contratual e à
autonomia privada não é nova, nem é exclusiva do Direito da Família.
O que deixa claro que, a liberdade contratual nos oferece um conjunto
de limitações, que, esquematicamente, podemos distinguir, em regra,
em dois tipos básicos distintos de limitações: por um lado, em torno
da liberdade de celebração; por outro lado, em torno da liberdade de
fixação do conteúdo do contrato. Esta dicotomia é apenas tendencial
já que por vezes, o que se verifica na prática, é a conjugação destas duas

21Idem, p. 173.
22 Veja-se o que escrevi noutro local, embora com um objecto de estudo não
inteiramente coincidente, STELA SANTOS, Contratos de Adesão nos Serviços
Públicos Essenciais, Waty Editora, Maputo, 2017, pp. 30-31.

41
Ciências Sociais e Desenvolvimento Humano em Moçambique:
produção, circulação e limitações

realidades, em que o legislador impõe simultaneamente a obrigação de


contratar, e o «como» da estipulação 23.
Conforme já o referi acima, a liberdade contratual dos nubentes
quando se trate de casamento civil é deveras limitada, porque a Lei de
família é imperativa: (1) só é casamento a união entre um homem e
uma mulher; (2) só é casamento aquele que se enquadrar nos tipos
previstos na lei. Portanto, as características pessoais dos contratantes,
os tipos, as cláusulas e os deveres do casamento não estão na
disponibilidade dos nubentes como é o caso de qualquer outro
contrato civil.
Quando se diz que o casamento é um contrato, o princípio da
autonomia privada está, de certa forma, “esmagado”, pois existe o
direito de escolha de regimes durante o casamento, contudo, a sua
escolha fica vinculada à determinação do regime, uma vez que cada
regime tem um modelo imperativamente previsto por lei.

3. Uma possível discussão do conceito jurídico de casamento

3.1 A natureza dinâmica da instituição casamento

Para além da sua natureza contratual, que acabei de tratar no


capítulo anterior, interessa agora analisar as suas outras vertentes,
enquanto garantia institucional, e enquanto direito fundamental.
Ao referir-se ao casamento entre pessoas do mesmo sexo, no caso
Obergefell v. Hodges, decidido em junho de 2015, o Supremo Tribunal
Federal americano destaca um aspecto que me parece primordial
importância para início da discussão em qualquer Estado de Direito. O de
que, a instituição do casamento não cristalizou no tempo, mas que evoluiu
relativamente à sua concepção tradicional, e que, apesar da sua relevância
para a sociedade actual, deve ser reconhecida sua natureza dinâmica.

23 PIETRO BARCELLONA: Intervento statale e autonomia privata nella disciplina dei rapporti
economici, A. Giuffre, Milão, 1969, pp. 55-56 e 140-144, apud JOSÉ MANUEL SÉRVULO
CORREIA: Legalidade e Autonomia, p. 454, nota 230..

42
Armindo Armando, Jane Alexandre Mutsuque & Pedrito Carlos Chiposse Cambrão
(Org.)

Nesse sentido afirma-se no referido Acórdão: “As origens


antigas do casamento confirmam sua centralidade, mas não se manteve
isolado da evolução do direito e da sociedade. A história do casamento
é uma história de continuidade, mas também uma história de mudança.
A instituição – mesmo que confinada a casais de diferente sexo –
evoluiu ao longo do tempo” 24.
Para, de seguida, analisar, criticamente, algumas das
modificações que a instituição experimentou ao longo da sua
existência, sublinhando, que várias delas não são mudanças
superficiais, mas representam profundas transformações na sua
estrutura e nas dinâmicas que nela se geram 25.
Destacando depois, que as mudanças que o casamento viveu ao longo
do tempo antes de o enfraquecer, o fortificaram: “De facto, diferentes
entendimentos do casamento são característicos de uma nação onde novas
dimensões da liberdade se tornam aparentes para as novas gerações, muitas
vezes através de perspectivas que começam em apelos ou protestos e, depois,
são considerados na esfera política e no processo judicial26.
Basta pensar, entre nós, que a sodomia foi punida com a pena de
morte pelas Ordenações27, e que o Código Penal de 1886, que vigorou em
Moçambique até 2014, ainda previa como pressuposto de aplicação de
medidas de segurança “aos que se entreguem habitualmente à prática de
vícios contra a natureza”, i.e., relações sexuais com pessoas do mesmo sexo.
Hoje, seria insuportável que, se praticada entre pessoas com capacidade
para consentir, em privado, e de acordo com a vontade livre dos
intervenientes, tivesse alguma relevância para a sociedade, e menos ainda
para o Estado. Mais, as leis penais em vigor consideram um pressuposto de
agravação do homicídio, que para lá da sua “especial censura ou

24 Supreme Court of the United States, Obergefell et al. V. Hodges, Director, Ohio
Department of Health, et al, p. 6. Disponível em
https://www.supremecourt.gov/opinions/14pdf/14-556_3204.pdf , acesso em
26.01.2021.
25 Idem, pp. 6-7.
26 Idem, p. 7.
27 “Toda a pessoa que pecado de sodomia cometer seja queimada e feita por fogo em pó,

para que nunca de seu corpo e sepultura possa haver memória” (tit. XIII, Livro V).

43
Ciências Sociais e Desenvolvimento Humano em Moçambique:
produção, circulação e limitações

perversidade”, tenham como justificação a orientação sexual ou identidade


de género da vítima (artigo 160 alínea g) do Código Penal), e dão uma
particular atenção aos maus-tratos conjugais (Lei n.º 29/2009, de 29 de
setembro, Lei da Violência Doméstica), enquanto aquelas Ordenações
estabeleciam um limite para a violência legítima do marido sobre a mulher
(tit. XXXVI, Livro V), e, ainda em 1952, o Tribunal da Relação de Lisboa
aceitava como legítimo o “poder de moderada correcção doméstica”28.

3.2 As coordenadas para uma discussão constitucionalmente


orientada

3.2.1 O princípio da dignidade da pessoa humana

Resulta do artigo 119 n.º 3 da CRM que, “No quadro do


desenvolvimento de relações sociais assentes no respeito pela
dignidade da pessoa humana, o Estado consagra o princípio de que o
casamento se baseia no livre consentimento”.
De forma praticamente unanime, sustenta-se que o fundamento
dos direitos humanos radica na dignidade da pessoa humana, o que nos
remete para uma ideia de superioridade, a um valor intrínseco de todo
o ser humano, de como afirma Jorge Reis Novais “a dignidade é
invocada contra riscos de desumanização e instrumentalização 29“ (do
ser humano) que independentemente dos seus precedentes filosóficos
ou mesmo religiosos, aparece-nos com clareza, no Preâmbulo da
Declaração Universal dos Direitos do Homem de 1948:
“Considerando que o reconhecimento da dignidade inerente a todos
os membros da família humana e dos seus direitos iguais e inalienáveis
constitui o fundamento da liberdade, da justiça e da paz no mundo”,
e, mais recentemente, na primeira parte do Artigo 5.º da Carta Africana
dos Direitos do Homem e dos Povos: “Todo o indivíduo tem direito

28 Cfr. TERESA PIZARRO BELEZA: “Prisões”, Público, 1999, disponível em

http://www.fd.unl.pt.
29 Cfr. JORGE REIS NOVAIS, A Dignidade da Pessoa Humana – Vol. II: Dignidade e

Inconstitucionalidade, Almedina, Coimbra, 2018, pág. 26.

44
Armindo Armando, Jane Alexandre Mutsuque & Pedrito Carlos Chiposse Cambrão
(Org.)

ao respeito da dignidade inerente à pessoa humana”, padrão


interpretativo em matéria de direitos fundamentais, por força do artigo
43 da CRM.
Afirma ainda Jorge Reis Novais, que a dignidade da pessoa
humana deve ser vista como limite aos limites; ou seja, a dignidade da
pessoa humana enquanto garantia da autonomia e liberdades
individuais ameaçadas por restrições ou intervenções restritivas, facto
que equivale a dizer que as restrições aos direitos fundamentais
expressa ou não expressamente autorizadas (pela Constituição) só
serão constitucionalmente admissíveis se entre outros limites não
atentarem contra a dignidade da pessoa humana 30.
Deixei já defendido que o conceito de casamento não pode ser
entendido como uma instituição estática. Pelo contrário, deverá ser
discutido à luz da sociedade (e do mundo) actual, mas sobretudo,
contextualizado, tendo em conta o modelo de Estado de Direito,
pluralista, que a Constituição consagra no seu artigo 3.
Neste contexto, a Constituição não impõe que o conceito de
casamento deva ser um contrato celebrado “entre um homem e uma
mulher”, como impõe o actual artigo 8 da Lei da Família. Nada obsta,
no texto constitucional, a que seja, pura e simplesmente, um contrato
celebrado “entre duas pessoas”.
Se isto for assim, como estou convicta que é, não é, de todo,
contrário à Constituição, entender que também é aplicável a pessoas
do mesmo sexo. Pelo contrário, a celebração do contrato de casamento
civil entre casais do mesmo sexo poderá ser uma forma legítima e
válida de concretizar os princípios e valores constitucionais e uma
forma de assegurar o gozo efetivo do direito à dignidade humana e a
formar uma família, independentemente da orientação sexual ou da
identidade de género dos nubentes.

30 Cfr. JORGE REIS NOVAIS, A Dignidade da Pessoa Humana...pág 30-31.

45
Ciências Sociais e Desenvolvimento Humano em Moçambique:
produção, circulação e limitações

3.2.2 O direito à autonomia individual e ao livre desenvolvimento


da personalidade

A heterossexualidade pode ser um elemento essencial apenas do


casamento canónico, dada a sua natureza, enquanto sacramento; mas
não no civil, enquanto contrato. Por outro lado, a garantia institucional
de um direito não assegura, de uma vez por todas, um conteúdo
concreto e fixo, mas apenas a preservação de uma instituição em
termos reconhecíveis pela imagem que dela tem a consciência social
em cada tempo e lugar 31. Basta pensar no que foi em alguns países a
proibição dos casamentos inter-raciais, como nos Estados Unidos.
A este propósito pronunciou-se Hannah Arendt 32: “o direito de
casar com quem se deseja é um direito elementar do Homem”, facto
que me leva a reafirmar que para além do direito à diferença, ou
qualquer questão referente a igualdade, a possibilidade de casamentos
entre pessoas do mesmo sexo é uma questão que radica na autonomia
e no direito ao livre desenvolvimento da personalidade de cada um,
questão que dirá respeito apenas ao indivíduo, e a mais ninguém.
Da mesma forma, limitar-se a união entre um homem e uma
mulher, não é compatível com o princípio de igualdade real e efectiva,
nem com o direito ao livre desenvolvimento da personalidade, para
além de afrontar o pluralismo da sociedade, decorrente do princípio do
Estado de Direito (cfr, artigo 3 da CRM).
A Constituição moçambicana não limita o direito à opção sexual,
nem limita que se possam estabelecer casais homossexuais, menos
ainda, obriga a que as pessoas abjurem a sua condição ou orientação
sexual.

31 Cfr. JORGE MIRANDA, Manual de Direito Constitucional, Tomo IV, 2.ª Edição,
Coimbra Editora, Coimbra, 1993, pp. 68-69.
32 HANNAH ARENDT, Réflexions sur Little Rock, apud ROGER RAUPP RIOS, “As uniões

homossexuais e a “família homoafetiva”: o direito de família como instrumento de


adaptação e conservadorismo ou a possibilidade de sua transformação e
inovação. Civilistica.com, Rio de Janeiro, a 2, n. 2, abr.-jun./2013, p.7. Disponível
em: <http://civilistica.com/as-unioes-homossexuais-e-a-familia-homoafetiva/>.
Acesso em 26.02.2021.

46
Armindo Armando, Jane Alexandre Mutsuque & Pedrito Carlos Chiposse Cambrão
(Org.)

3.2.3 O princípio da igualdade

A igualdade dos homens foi, pela primeira vez, juridicamente


reconhecida pelo Virgínia Bill of Rights, de 12 de Junho de 1776 – “all
men are by nature equally free and independente and have certain inherent rights”,
sendo depois retomada na Constituição de Massachussets de 2 de
Março, de 1780 “all men are born free ande qual and have certain natural,
essential and unalienable rights”, numa fórmula mais clara e que ganhou
celebridade ao ser retomada e aperfeiçoada na Declaração dos Direitos
do Homem de 1789: “les hommes naissent et demeurent libres et égaux en
droits” 33 .
Estes princípios vêm preparar o hoje clássico enunciado do
princípio da igualdade perante a lei, consagrado na Declaration des Droits
de l´ Homme et du Citoyen de 1793 “Tous les hommes sont égaux par la nature
et devant la loi”, princípio que, como sublinha Castanheira Neves, “ficou
adquirido para sempre como um verdadeiro axioma político e jurídico
que todas as Constituições até aos nossos dias, e em todas as latitudes,
iriam consagrar com essa mesma formulação ou semelhante” 34.
Portanto, a igualdade é, em si mesma, entendida como uma
procura de equilíbrio, de harmonia, de eliminação de excessos e
defeitos, uma ideia que transcende o próprio homem.
O princípio da igualdade é, porventura, dos princípios
estruturantes do Estado de Direito, o de presença mais constante e
mais antiga nos textos constitucionais, mas é também, provavelmente
em consequência dessa longevidade constitucional, aquele que tem
experimentado uma evolução mais pronunciada e multifacetada.
Entre a igualdade perante a lei, dos primeiros tempos do
constitucionalismo, e a actual admissibilidade de políticas
intencionalmente discriminatórias (nem sempre pacíficas), visando a
produção de uma igualdade fáctica há, sob a égide do mesmo princípio

33 MARIA GLÓRIA GARCIA, Estudos sobre o Princípio da Igualdade, Almedina, Coimbra,


Setembro de 2005, p. 31.
34 Apud MARIA GLÓRIA GARCIA, op.cit, p. 33.

47
Ciências Sociais e Desenvolvimento Humano em Moçambique:
produção, circulação e limitações

constitucional da igualdade, dois séculos de evolução e controvérsias


doutrinárias que reflectem, acompanham e influenciam as
transformações sofridas pelo Estado de Direito enquanto tipo
histórico de Estado.
Olhando agora para a sua consagração entre nós, reconhece o
artigo 35 da CRM, que “Todos os cidadãos são iguais perante a lei”. A
igualdade aqui proclamada é uma igualdade perante a lei, dita, por
vezes, uma igualdade jurídico-formal. Abrange, naturalmente, o gozo
de quaisquer direitos e a sujeição a todos os deveres existentes na
ordem jurídica moçambicana.
Em nome deste princípio, prossegue ainda o mesmo enunciado
normativo, todos os cidadãos “gozam dos mesmos direitos e estão
sujeitos aos mesmos deveres, independentemente da cor, raça, sexo,
origem étnica, lugar de nascimento, religião, grau de instrução, posição
social, estado civil dos pais, profissão ou opção política”. Dir-se-á que,
não há referência à orientação sexual ou identidade de género. Penso
que a interpretação metodologicamente adequada será a de entender
não ser esta formulação taxativa.
Em reforço deste entendimento, deverá ser conjugado o
princípio da não discriminação, que proscreve toda a “discriminação
de qualquer espécie” (artigo 44 da CRM), e que, de acordo com o
regime dos direitos fundamentais na Constituição moçambicana,
vincula não apenas os cidadãos em geral, mas também o próprio
Estado (cfr. artigo 56 n.º 1 da CRM).
Em face disto, será legítima, a proibição de casamento entre
pessoas do mesmo sexo? Como compreender que, invocando razões
de igualdade, se admitam, ainda hoje, práticas discriminatórias entre
pessoas, precisamente em função das suas características pessoais, no
caso, da sua orientação sexual ou identidade de género?
Em princípio, e por princípio, o legislador, “não pode
conformar-se [e] aceitar sem mais as diferenças de facto existentes; se

48
Armindo Armando, Jane Alexandre Mutsuque & Pedrito Carlos Chiposse Cambrão
(Org.)

são incompatíveis com as exigências de justiça tem de eliminá-las” 35. O


que implica encarar o princípio da igualdade, na sua vertente de igual
protecção da lei e, consequentemente, da liberdade, que autonomizarei
no próximo ponto.

3.2.4 O princípio da igualdade, na sua vertente de igual protecção


da lei

A instituição matrimonial democratizou-se, integrando-se nela


os valores e princípios proclamados pela Constituição, especialmente
a liberdade e a igualdade dos contraentes. Antes o casamento era
indissolúvel, desigual e discriminatório. Actualmente o vínculo pode
ser rompido, e a igualdade entre as partes contratantes é indiscutível
(cfr. artigos 36, 119 n.º 3 e 120 n.º 3 da CRM).
Assim, as novas perspectivas sociais, e a compreensão da
sociedade podem revelar – e revelam frequentes vezes – desigualdades
injustificadas no seio das instituições fundamentais, que passam muitas
vezes despercebidas.
Voltando à argumentação jurídica expendida pelo Supremo
Tribunal Federal americano, no caso Obergefell v. Hodges, acima
referido, o Tribunal considerou que o direito ao casamento é um
direito fundamental, inerente à liberdade, ao devido processo legal e à
igualdade de proteção. Para ilustrar como estes princípios funcionam
juntos, reportou-se a decisões anteriores. Assim, “os casos judiciais
envolvendo o direito de casar refletem essa dinâmica”, com particular
realce à decisão que “invalidou a proibição de casamento inter-racial
sob a Cláusula de Igualdade de proteção e a cláusula do devido
processo […] devido ao tratamento desigual dos casais inter-raciais” 36.
Hoje, quando cada vez mais se afirma o direito a “ser diferente”,
à consciência social dita que o conceito de casamento deve ser

35 ROBERT ALEXY, Teoría de los Derechos Fundamentales, Centro de Estudios Políticos y


Constitucionales, Madrid, 2002, p. 407,
36 Supreme Court of the United States, Obergefell et al. V. Hodges, citado, p. 19.

49
Ciências Sociais e Desenvolvimento Humano em Moçambique:
produção, circulação e limitações

actualizado e aplicado a novas realidades sociais patentes na sociedade,


nomeadamente ao casamento entre casais do mesmo sexo, ou de sexo
diferente.

4. O direito fundamental a contrair casamento

Como procurei fundamentar ao longo do presente estudo, a


Constituição moçambicana adopta uma concepção personalista do
casamento, fundada na dignidade da pessoa humana (cf.r artigo 119
n.º3 da CRM), no respeito pelos direitos e liberdades fundamentais do
Homem (cf. artigo 3 da CRM), na integridade moral do indivíduo
(artigo 40 da CRM e artigo 4.º da CADHP ex vi artigo 43 da CRM),
donde resulta a sua autodeterminação, e na igualdade no acesso ao
casamento (cfr. artigos 35 e 44 da CRM).
Neste contexto, como se refere no citado Acórdão do Conselho
Constitucional de Moçambique, “é vedado ao legislador ordinário,
fazer prevalecer um valor colectivo sempre subjectivo e in casu não
definido na lei (…) sobre um direito individual expressamente previsto
e reconhecido na lei – o direito à integridade moral individual (que
exclui sempre a atribuição de qualquer valor acrescido a qualquer moral
colectiva não determinada) reconhecido pelo artigo 40 da Constituição,
(ex vi o artigo 4 º da Carta Africana dos Direitos do Homem e dos
Povos, aplicável por força do artigo 43 da Constituição)” 37.
E prossegue: “Daqui resulta claro que a Constituição da
República de 2004 não só afastou a possibilidade de iniciativa de lei
ordinária na matéria de direitos, liberdades e garantias, como também,
não a permite criar outras restrições, no caso, de princípios
constitucionais em que assenta a ordem moral” 38.
Por conseguinte, a Constituição moçambicana rejeita, a juízo do
Conselho Constitucional, que subscrevo, qualquer concepção de
natureza colectivista do casamento redutora da sua função à

37 Acórdão do Conselho Constitucional nº 7/CC/2017, de 31 de Outubro, p. 3.


38 Idem, p. 14.

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Armindo Armando, Jane Alexandre Mutsuque & Pedrito Carlos Chiposse Cambrão
(Org.)

concretização de interesses supra-individuais, o que não significa a


ausência desses interesses.
Independentemente da discussão da sua vertente de garantia
institucional, e do seu caracter evolutivo, o direito de contrair
casamento encontra‐se sujeito ao regime relativo aos direitos,
liberdades e garantias, gozando, nos termos do artigo 56 n.º 1 da CRM,
de aplicabilidade directa, que se vem a traduzir na desnecessidade, para
o efeito da sua concretização, de qualquer tipo de mediação,
vinculando todas as entidades públicas e privadas. Desta forma, o
direito de contrair casamento é um direito de concretização
constitucional, o que significa que o seu conteúdo principal seja
determinado, ou determinável, ao nível da Constituição.
Não quer isto significar uma auto‐suficiência do preceito – a
intervenção do legislador ordinário continua a ser necessária para
assegurar “procedimentalmente o seu exercício ou até para concretizar
o respectivo conteúdo. A determinação ou determinabilidade
significam apenas uma densidade essencial autónoma ao nível
constitucional, que exclui a liberdade de conformação política pelo
legislador do conteúdo principal dos direitos, liberdades e garantias” 39.
Assim, a possibilidade do seu exercício deverá ser sempre
garantida, intervindo o legislador nesta matéria para acomodar,
proteger e promover de forma mais eficaz o direito em causa 40, como
deixei defendido no ponto anterior, dedicado à igualdade através da lei.
Finalmente, a conjugação dos artigos 35 e 44 da CRM, permite
extrair um enunciado de que a todos se garante o direito a contrair
casamento sem quaisquer discriminações. Mas este direito, como todos
os outros, não é um objecto isolado. Sendo por isso admissíveis

39 JOSÉ CARLOS VIEIRA DE ANDRADE, Os Direitos Fundamentais na Constituição


Portuguesa de 1976, 5.ª ed., Almedina, 2012, p. 178.
40 Idem, pp. 191 e ss.

51
Ciências Sociais e Desenvolvimento Humano em Moçambique:
produção, circulação e limitações

limitações, ou restrições41, desde que adequadas à tutela de outros direitos


ou valores constitucionalmente protegidos, necessária, numa lógica de
intervenção mínima, e racional, ressalvando-se sempre, como limite, a
ilegitimidade da sua descaracterização (cfr. artigo 56 n.ºs 2 e 3 da CRM).
Há cinquenta anos, as enfermeiras, se casassem, deixavam de
poder exercer a profissão, e as professoras primárias, careciam de
autorização do Ministério da Educação para se poderem casar 42. No
contexto de um Estado de Direito, de que o Estado moçambicano se
reclama, já não será razoável estabelecer impedimentos fundados na
raça, religião, ideologia ou nacionalidade dos nubentes, assim como
seria inconstitucional a sujeição a autorização para casamento de
pessoas que desempenhem determinados cargos.

Considerações finais

Era questão de partida deste artigo, a de saber, se face ao modelo


de Estado instituído em 1990 em Moçambique, e à sua Constituição, e
partindo do princípio de que se reconhece legitimidade ao Estado para
regular as relações familiares e de casamento, se deveria o Estado
reconhecer apenas os casamentos entre um homem e uma mulher, ou se
a Constituição vigente entre nós dá abertura a que o Estado possa, ou
deva, reconhecer, a par de outras formas de regulação da
“contratualização de afectos”, o casamento entre pessoas do mesmo sexo.
Defendi que na disciplina constitucional relativa à família e ao
casamento, tratada nos artigos 119 e 120 da CRM, casamento e família,
embora a grande parte das vezes se impliquem, são dois conceitos distintos.

41 J. J. GOMES CANOTILHO, Direito Constitucional e Teoria da Constituição, 5.ª ed.,


Almedina, Coimbra, 2002, pp. 1258-1259; JORGE MIRANDA, Manual de Direito
Constitucional, T. IV, 2.ª ed., Coimbra Editora, Coimbra, 1993, pp. 296-297, 299-304;
JORGE REIS NOVAIS, As restrições aos direitos fundamentais não expressamente autorizadas
pela Constituição, Coimbra Editora, Coimbra, 2003, pp. 277-278, 285, 458; JOSÉ DE
MELO ALEXANDRINO, A Estruturação do Sistema de Direitos, Liberdades e Garantias na
Constituição Portuguesa, Vol. II, Almedina, Coimbra, 2006, pp. 469 ss, e doutrina aí
citada.
42 MARIA GLÓRIA GARCIA, op.cit, p. 79.

52
Armindo Armando, Jane Alexandre Mutsuque & Pedrito Carlos Chiposse Cambrão
(Org.)

Questão central na análise desse regime, quanto ao casamento,


tratado no artigo 119 da CRM, era a de discutir se o texto
constitucional permitiria acolher, sem modificação constitucional
prévia, o casamento entre pessoas do mesmo sexo ou se, pelo
contrário, da norma constitucional resulta, necessariamente, a
exclusividade do casamento heterossexual.
Defendi que, face ao teor literal, não restritivo do artigo 119 n.º
2 da CRM, nada restringe, na Constituição, o casamento entre pessoas
do mesmo sexo, pelo que, não estando constitucionalmente proibido,
nada obsta a que possa ser reconhecido pelo legislador ordinário,
estendendo na lei civil o regime do casamento a casais compostos por
pessoas do mesmo sexo.
Até porque, um casamento, efectivamente fundado no “respeito
pela dignidade da pessoa humana”, e no “livre consentimento”, a que
se refere o artigo 119 n.º 3 da CRM, pressupõe desde logo, e salvo
melhor opinião, a liberdade de casar e de escolher cônjuge,
independentemente das suas características pessoais (cfr. artigos 35 e
44 da CRM), não podendo ninguém ser obrigado ou impedido de
casar-se, a fazê-lo com quem não desejar, ou impedido de o fazer com
quem desejar, nem essa decisão estar dependente de autorização de
terceiro, por maioria de razão, do próprio Estado, que se “apropria”
assim dessa realidade.
Por isso, na conformação do regime legal deste instituto, defendi
que a opção metodologicamente correcta por parte do legislador
ordinário, não poderia deixar de ponderar outros direitos
constitucionais assumidos, tais como: o direito à integridade moral
individual (artigo 40 n.º 1 da CRM); o direito à reserva da vida privada
(artigo 41 da CRM); e o direito a uma igualdade plena perante a lei
(artigo 35 da CRM), que proscreve qualquer tipo de discriminação,
sublinho, “de qualquer espécie” (artigo 44 da CRM), por maioria de
razão, em função da orientação sexual, lidos à luz da Carta Africana
dos Direitos do Homem e dos Povos (CADHP), com particular realce
para o direito à integridade moral individual (artigo 4º da CADHP), o
direito à total igualdade perante a lei (artigo 3º da CADHP) ou ainda o

53
Ciências Sociais e Desenvolvimento Humano em Moçambique:
produção, circulação e limitações

direito ao gozo dos direitos e liberdades reconhecidos e garantidos


(artigo 2º da CADHP), todos da Carta Africana dos Direitos do
Homem e dos Povos que a CRM reconheceu expressamente como
padrão de integração e interpretação em matéria de direitos
fundamentais (cfr. artigo 43 da CRM.
Parti seguidamente para a análise e discussão do que me parecem
a principais coordenadas a ter em conta nesta discussão, destacando,
como questão prévia, o carácter mutável, dinâmico, das instituições,
assinalando algumas das mutações de que este instituto tem sido alvo.
Das principais coordenadas que a Constituição nos envia para esta
discussão, destaquei, em primeiro lugar, o princípio da dignidade da pessoa
humana, com acolhimento expresso no artigo 119 n.º 3 da CRM, a
propósito do regime do casamento, enquanto fundamento e limite dos
direitos humanos e fundamentais, à luz do qual é perfeitamente compatível
constitucionalmente a extensão do casamento a pessoas do mesmo sexo,
só assim se podendo, efectivamente, assegurar o gozo efetivo do direito à
dignidade humana, independentemente da orientação sexual ou da
identidade de género dos nubentes.
Destaquei, em seguida, o princípio da igualdade, previsto no artigo
35 da CRM, á luz do qual, “Todos os cidadãos são iguais perante a lei”, e a
sua necessária conjugação com o princípio da não discriminação, que
proscreve toda a “discriminação de qualquer espécie” (artigo 44 da CRM),
e que, de acordo com o regime dos direitos fundamentais na Constituição
moçambicana, vincula não apenas os cidadãos em geral, mas também o
próprio Estado (cfr. artigo 56 n.º 1 da CRM).
O que implica levar este princípio da igualdade a sério, sobretudo
na sua vertente de garantia de igual protecção perante a lei, abrindo,
necessariamente esta matéria, ás novas perspectivas sociais, e a
compreensão que a sociedade pode revelar. Assinalando nesta matéria
que há desigualdades do presente que importa corrigir, estendendo
essa tutela, de forma igual, ao casamento entre casais do mesmo sexo,
ou de sexo diferente.
Terminando com aquilo que posso chamar de um contributo
para a delimitação do direito fundamental a contrair casamento, à luz

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Armindo Armando, Jane Alexandre Mutsuque & Pedrito Carlos Chiposse Cambrão
(Org.)

do actual texto constitucional, e que assenta nos seguintes tópicos


essenciais:
a. A Constituição moçambicana adopta uma concepção
personalista do casamento, fundada na dignidade da pessoa
humana (cfr. artigo 119 n.º3 da CRM), no respeito pelos
direitos e liberdades fundamentais do Homem (cfr. artigo 3
da CRM), na integridade moral do indivíduo (artigo 40 da
CRM e artigo 4.º da CADHP ex vi artigo 43 da CRM), donde
resulta a sua autodeterminação, e na igualdade no acesso ao
casamento (cfr. artigos 35 e 44 da CRM).
b. Proscrevendo-se qualquer prevalência de uma concepção de
natureza colectivista do casamento, redutora da sua função à
concretização de interesses supra-individuais, sem que
signifique, necessariamente, a ausência de ponderação desses
interesses.
c. Independentemente da discussão da sua vertente de garantia
institucional, e do seu caracter evolutivo, o direito de contrair
casamento encontra‐se sujeito ao regime relativo aos
direitos, liberdades e garantias, gozando, nos termos do
artigo 56 n.º 1 da CRM, de aplicabilidade directa, que se vem
a traduzir na desnecessidade, para o efeito da sua
concretização, de qualquer tipo de mediação, vinculando
todas as entidades públicas e privadas. Desta forma, o direito
de contrair casamento é um direito de concretização
constitucional, o que significa que o seu conteúdo principal
seja determinado, ou determinável, ao nível da Constituição.
d. Assim, a possibilidade do seu exercício deverá ser sempre
garantida, intervindo o legislador nesta matéria para
acomodar, proteger e promover de forma mais eficaz o
direito em causa, como deixei defendido no ponto anterior,
dedicado à igualdade através da lei.
e. Finalmente, a conjugação dos artigos 35 e 44 da CRM,
permite extrair um enunciado de que a todos se garante o
direito a contrair casamento sem quaisquer discriminações.

55
Ciências Sociais e Desenvolvimento Humano em Moçambique:
produção, circulação e limitações

f. Não sendo este direito, como todos os outros, um objecto


isolado, apenas são admissíveis limitações, ou restrições,
quando adequadas à tutela de outros direitos ou valores
constitucionalmente protegidos, necessárias, numa lógica de
intervenção mínima, e racionais, (cfr. artigo 56 n.ºs 2 e 3 da
CRM). O que não é o caso presente.

56
Armindo Armando, Jane Alexandre Mutsuque & Pedrito Carlos Chiposse Cambrão
(Org.)

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Armindo Armando, Jane Alexandre Mutsuque & Pedrito Carlos Chiposse Cambrão
(Org.)

Acórdão do Conselho Constitucional de Moçambique nº 7/CC/2017,


de 31 de Outubro, Disponível em
http://www.cconstitucional.org.mz, acesso em 26.01.2021.

59
EPISTEMOLOGIA DOS RITOS DE
INICIAÇÃO: RECIPROCIDADE ENTRE AS
CIÊNCIAS SOCIAIS E A TRADIÇÃO

Armindo Armando

Introdução

Escrever sobre ritos de iniciação, implica desenvolver um


trabalho incompleto, pois as dimensões de análise vão mudando a cada
dia que passa e que não existe uma base teórica para esgotar o debate
acerca deste objecto de estudo. Neste âmbito, neste capítulo, não
pretendemos esgotar todo debate sobre o espaço de aplicação e
reflexão dos ritos de iniciação, mas, contribuir através de uma reflexão
sobre a legitimidade do conhecimento marginalizado pelas ciências,
apesar da antropologia cultural resgatar este saber.
Actualmente, existem muitas correntes que buscam legitimar o
conhecimento que ao longo de vários tempos não foi considerado
importante para o desenvolvimento da ciência, dentre as marcas, se
destaca a permanente valorização do currículo local na Escola,
importância dos anciãos nas pesquisas sociais e a participação da
antropologia cultural na produção académica.
No presente capítulo nos propusemos a analisar a epistemologia
dos ritos de iniciação, visão literária que busca encontrar parte de
reflexão sobre os impactos dos ritos de iniciação. Estando numa
sociedade em que vários instrumentos da cultura material e simbólica
são caracterizados como a base de continuidade e descontinuidade de
Ciências Sociais e Desenvolvimento Humano em Moçambique:
produção, circulação e limitações

alguns traços culturais, ao longo do tempo são questionados. Visamos


neste capítulo discutir em torno dos princípios de continuidade e
descontinuidade da prática dos ritos de iniciação, avaliar pontos
críticos da prática dos ritos de iniciação dentre eles aspectos
educacionais, saúde associada a doenças e prática de uniões prematuros
e a técnica pedagógica transmitida no âmbito da educação e finalmente
reflectir em torno da prática de ritos de iniciação hoje.
Para o suporte teórico deste estudo, recorremos a revisão
bibliográfica através do qual desenvolvemos um estudo meramente
teórico baseados na construção desconstrução para uma análise crítica
da realidade actual no contexto moçambicano.

1. Cultura e Rito de Iniciação

Para a compreensão dos ritos de iniciação, é necessário que


entendamos o conceito de Cultura, pois constitui uma base teórica que
permite enquadrar os ritos de iniciação como prática cultural. Todavia,
a palavra Cultura, teve o seu início no termo Germânico: “Kultur” que
servia para simbolizar todos os aspectos espirituais de uma
comunidade, por outro lado, a palavra Francesa “Civilization” refere-
se as realizações materiais de um Povo (Laraia, 2001, p. 19)
Laraia (2001), citando Tylor (1832 - 1917), compreende que o
conceito de cultura se torna num amplo sentido das atribuições sociais
dentre eles, se destacam a inclusão de conhecimentos, crenças, arte,
moral e leis, costumes ou qualquer outra capacidade ou hábitos
adquiridos pelo homem como membro de uma determinada
sociedade.
Habitualmente, a cultura é concebida como formas e estilos de
vida, entretanto, elas são baseadas nas abordagens mais tendenciais
para a sua formação como a base de construção de toda síntese sobre
a identidade social pela qual a sociedade poderá se orientar. Outrossim,
de negação de alguns elementos evolutivos.
Os ritos de iniciação, são um modo de vida das tradições
africanas, facto que determina elemento para identificação dos

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Armindo Armando, Jane Alexandre Mutsuque & Pedrito Carlos Chiposse Cambrão
(Org.)

principais valores sociais. Todavia, elas servem para grandear planos


da sociedade e perpetuar modos de vida mais adequados em sociedade.
Segundo o Dicionário de Língua Portuguesa (2000)
Etimologicamente, a palavra rito, provém do Latim (ritu) e que é
definido assim: “Conjunto de cerimónias que se praticam numa
religião; culto; qualquer cerimonial; praxe; etiqueta; cada um dos
sistemas de uma organização maçónica; seita”.
A sociedade exprime a sua relação com Deus, com outros seres
espirituais e com forças invisíveis. Para o homem, existe sempre um
Ser Supremo que é diferente dos outros seres espirituais. E para adorar
tanto a Deus como aos outros seres invisíveis, o homem pratica um
conjunto de cerimónias que variam de povo para o povo e de cultura
para a cultura.
Segundo Martinez (1997), os ritos classificam-se em três
diferentes grupos dentre eles os ritos de aflição; passagem e de
acontecimentos.

1.1 Ritos de aflição (restabelecer)

Os ritos de aflição são aqueles cerimónias tradicionais ou


costumeiras que o indivíduo ou a comunidade realiza com a finalidade
de se livrar do estado de perturbação social, ou melhor, restabelecer o
seu estado espiritual anterior. Parte-se de princípio de que o indivíduo
ou a comunidade está a enfrentar uma aflição ou desafio social e como
tal, há toda uma necessidade de voltar para o estado anterior, que era
obviamente melhor.
Quando um preguiçoso aspira ascender na sua carreira
profissional sem qualquer mérito a posições ou cargos superiores ao
que exerce, ele recorre a tratamentos mágicos que julga fazerem
“sonegar” a consciência os seus superiores e lograr desonestamente a
subida a cargos ou posições para as quais não tem algum requisito
profissional.

63
Ciências Sociais e Desenvolvimento Humano em Moçambique:
produção, circulação e limitações

1.2 Ritos de Passagem

Para Martinez (1997), os ritos de passagem são aqueles


cerimónias tradicionais a que os indivíduos são submetidos para
marcar a passagem de uma fase do ciclo de vida para a outra. Estes,
podem simbolizar diferentes ciclos de vida tais como, o nascimento, a
morte, a puberdade, o matrimónio a doença, etc.
Eles representam processos de profunda transformação da
personalidade do indivíduo. Martinez citando A. Van GENNER em
Religiões Africanas Hoje (p. 165), diz que “os ritos de passagem são os ritos que
acompanham qualquer mudança de lugar, de estado e de idade da pessoa” e são
marcados por três fases fundamentais: fase de separação 1, de
marginalização 2 e de incorporação 3.
Os rapazes são ensinados a portarem-se como adultos na
perspectiva da cultura local, tais como saber caçar, saber pescar, cortar
estacas, erguer uma habitação, enterrar os mortos, etc. É igualmente
nesta fase em que os rapazes são submetidos a circuncisão (retirada do
prepúcio do pénis).

1 A fase de separação - compreende aquela fase em que o indivíduo ou grupo se afasta

de um ponto fixado anteriormente pela estrutura social e de um conjunto de


condições culturais. As provas e disciplinas a que o iniciado é submetido representam
a destruição do status anterior e um exercício psíquico e físico que o prepara para
acolher a sua nova realidade.
2 A fase de marginalização é ambígua. O iniciado encontra-se num estado intermédio,

caracterizado por ausência parcial ou total de atributos do estado anterior bem como
do que está por vir. A ambiguidade aqui referida é expressão em uma grande riqueza
de símbolos: a morte, o deserto, a bissexualidade, estar na escuridão, etc. Nesta fase,
o iniciado concretiza a ambiguidade pois não possui nada, anda nu ou mal vestido,
usa máscaras e outras acções semelhantes.
3 A fase de integração ou agregação, o iniciado realiza a passagem propriamente dita.

Assim, o iniciado reincorpora-se na comunidade e volta a encontrar o estado, desta


feita, relativamente mais estável.
Em Moçambique, os ritos são realizados em locais delimitados e compreendem
provas de superação de desafios tendentes a abandonar os hábitos que iniciados
possuíam antes para assumirem novos e diferentes comportamentos dos anteriores.
Os jovens (rapazes e raparigas) acompanhados por especialistas da cerimónia
realizam os ritos em lugares separados, todos de cabeças rapadas.

64
Armindo Armando, Jane Alexandre Mutsuque & Pedrito Carlos Chiposse Cambrão
(Org.)

Por outro lado, as raparigas orientadas por especialistas do sexo


feminino, são ensinadas na perspectiva da cultura local, a agirem como
mulheres que inclui aceitar o papel de gerar filhos, saber cultivar e
preparar os alimentos para a família, manter a higiene individual
(cuidar-se durante o período menstrual) e colectiva da família.
É nesta fase em que as raparigas são ensinadas a fazer os
movimentos prazerosos durante a relação sexual com o esposo e é
também nesta fase que são esticados puxados os clítoris genitais das
raparigas para fora de forma a proporcionarem mais prazer sexual ao
esposo.

1.3 Ritos de Acontecimentos

Os ritos de acontecimentos são as cerimónias que acompanham


as mais variadas circunstâncias da vida como a caça, a pesca, as viagens,
a construção de uma unidade sanitária ou escola. Quando alguns
pescadores pretendem ir ao alto mar capturar o pescado, eles
submetem-se a um rito que acreditam proteger-lhes de um naufrágio
provocado por mau tempo (ventos fortes e ondas gigantes).

2. Da Prática dos Ritos a Ideia Epistémica

Deveras vezes o pensamento ou pronúncia sobre os ritos de


iniciação, flui uma dimensão estruturada em duas análises, dentre elas
o vazio epistemológico e por outro lado o anarquismo epistemológico,
pois quando pensamos em ritual, duas ideias nos fluem:
 A noção de que um ritual é algo formal e arcaico, quase que
desprovido de conteúdo, algo feito para celebrar momentos
especiais e nada mais;
 Os rituais estão ligados apenas à esfera religiosa, a um culto
ou a uma missa.
No contexto prático, constatamos que existem sensos comuns
que de certa forma perduram visando determinar visto que ao abordar
aspectos referentes aos estudos sobre os ritos de início, em termos

65
Ciências Sociais e Desenvolvimento Humano em Moçambique:
produção, circulação e limitações

valorativos, existem diversos tipos de conhecimentos que


contextualizam os valores que de certa forma o conhecimento pode
ser vinculado.
Para Peirano (2003, p. 10), o ritual um fenómeno especial da
sociedade, que nos aponta e revela ‘expressões e valores de uma
sociedade, mas o ritual expande, ilumina e ressalta o que já é comum a
um determinado grupo”, por outro lado concebe-se como:

O ritual é um sistema cultural de comunicação simbólica,


constituído de sequências ordenadas e padronizadas de
palavras e actos, em geral expressos por múltiplos meios. Estas
sequências têm conteúdo e arranjos caracterizados por graus
variados de formalidade (convencionalidade), estereotipia
(rigidez), condensação (fusão) e redundância (repetição). A
acção ritual nos seus traços constitutivos pode ser vista como
“performativa” em três sentidos; no sentido pelo qual dizer é
também fazer alguma coisa como um ato convencional como
quando se diz “sim” à pergunta do padre em um casamento;
no sentido pelo qual os participantes experimentam
intensamente uma performance que utiliza vários meios de
comunicação 3, finalmente, no sentido de valores sendo
inferidos e criados pelos atores durante a performance.

No contexto prático, constata-se que estes elementos concorrem


para uma produção de valores cientificamente hierarquizados que
buscam o bem-estar social. Se a epistemologia esta em busca de valores
baseados num paradigma, encontramos uma dimensão social pela qual
visa encontrar estes elementos que suavizam a sociedade e consegue
tirar a sociedade na condição de menoridade para a maioridade.
Todavia, estas práticas, são a base convencional para que a sociedade
encontre a produção de conhecimentos de forma hierarquizada.
No contexto epistemológico o processo de reinvenção do
conhecimento está associado a capacidade de produção de
conhecimento e adequação a realidade momentânea, todavia, o
importante dos ritos de iniciação é a auto-referencialidade, ou seja, a
“acção transitiva de sua transmissão ritual, em outras palavras, pela
reiteração da iniciação que ela engendra. É apenas quando nos

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Armindo Armando, Jane Alexandre Mutsuque & Pedrito Carlos Chiposse Cambrão
(Org.)

tornamos iniciadores que nos tornamos plenamente iniciados.”


(Zempléni, op. cit., p. 376-377).
Os saberes específicos da iniciação são válidos para aquele
círculo fechado dos iniciados ou noviços, “não são aplicáveis fora de
seu campo de aquisição”. É por isso que a iniciação pressupõe um
antagonismo entre os grupos “de fora” e os “de dentro”: a lógica da
iniciação, auto-referenciada, cria uma linguagem, um simbolismo e
saberes que lhe são próprios e que acabam por possuir um “sentido
iniciático”.
Márcio Goldman (2003) nos fornece uma interessante análise
das teorias antropológicas sobre o ritual. Sobre as abordagens possíveis
no estudo dos ritos, Goldman identifica “verdadeiras estruturas
elementares do pensamento antropológico”.
Baseando-se nas tradições sociológicas, faz-se uma análise que
sustenta a ligação entre os sociólogos. A prior encontramos enraizada
no esquema social cuja expressão ideal é de Durkheim, que busca a
origem estrutural funcionalista, onde através da qual é possível derivar
o rito de iniciação a estrutura social, encarada como sistema concreto
de inter-relações pessoais, terminando por atribuir a ele uma função
psicológica de reforço de sentimentos comuns. Já o segundo modelo,
de inspiração nitidamente malinowskiana e utilizado hoje em dia por
autores como Edmund Leach e, especialmente, Victor Turner, inverte
esta posição e, ao invés de fazer derivar os sentimentos do ritual,
pretende ver neste último uma expressão directa daqueles. Finalmente,
no terceiro caso, imagina-se que o comportamento ritual não passa de
transposição empírica de certas ideias místicas adoptadas pelo grupo.
Por tanto, o estudo dos rituais, além de ser clássico nas ciências
antropológicas, é objecto de variadas abordagens teoréticas que variam
de cultura por cultura e de contexto geográfico aplicável, evocando
principais valores e mitos das comunidades praticantes. Se para Lévi-
Strauss o ritual coloca em prática o mito, o pensar humano,
percebemos facilmente que os rituais não são apenas simples
formalidades. As análises rituais, pelo contrário, permitem descortinar
um panorama muito mais amplo. As diversas abordagens teóricas

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Ciências Sociais e Desenvolvimento Humano em Moçambique:
produção, circulação e limitações

demonstram a vitalidade do estudo sobre os rituais, tomados como


ferramenta conceitual privilegiada para nos ajudar a entender um
pouco mais determinada sociedade, seus valores pensados e vividos,
facto que valora a produção do conhecimento local e que em função
do tempo o mesmo é inovado.

3. Estrutura Epistemológica dos Ritos de Iniciação

Como é sabido que o conhecimento é o ato, o processo pelo


qual o sujeito se coloca no mundo e, com ele, estabelece uma ligação.
Todavia, se o conhecimento é possibilitado pela existência do que se
oferece a um sujeito apto a conhecê-lo. Só há saber para o sujeito
cognoscente se houver um mundo a conhecer, mundo este do qual ele
é parte, uma vez que o próprio sujeito pode ser objecto de
conhecimento nos equivale afirmar que os ritos de iniciação detêm um
enquadramento na teoria de conhecimento.
É a razão que nos leva a uma abordagem teórica, no sentido de
ilustrar o enquadramento lógico de ritos de iniciação no contexto de teoria
de conhecimento. Isso, não obstante, as questões epistemológicas e
metodológicas que se colocam à antropologia contemporânea estão
intimamente ligadas a aspectos como o acima mencionado: desde o papel
do antropólogo no terreno, na escrita, na responsabilidade pública do seu
trabalho e nas metodologias que permitam conhecer “por dentro”, sem
esquecer a política da relação de observação, até à reavaliação do que
significam conceitos como sociedade, indivíduo, pessoa, sujeito e, a
tradição, (Almeida, 1996, p.12).

4. Fonte do Conhecimento dos Ritos de Iniciação

A explicação científica de ritos de iniciação pode se observar hoje


em diversas posições de epistemológicos ou filósofos da ciência.
Abundam, ao longo da linha constituída nos seus extremos pelo
racionalismo e pelo empirismo radicais, as posições intermédias, as
tentativas de conciliação e de superação.

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Armindo Armando, Jane Alexandre Mutsuque & Pedrito Carlos Chiposse Cambrão
(Org.)

No âmbito da análise epistémica da origem do conhecimento, o


empirismo pode ser definido como a asserção de que todo
conhecimento sintético é baseado na experiência.” 4 Conceitua-se
empirismo, como a corrente de pensamento que sustenta que a
experiência sensorial é a origem única ou fundamental do
conhecimento. Assim sendo, o rito de iniciação parte de uma
experiência sensorial vivida pelos homens ao longo do seu processo
construtivo de história, isto é, o conhecimento a ser transmitido aos
seus iniciandos é uma construção histórica da vida em sociedade.
No âmbito da teoria racionalista, assevera-se o papel
preponderante da razão no processo cognoscitivo, pois, os fatos não
são fontes de todos os conhecimentos e não nos oferecem condições
de “certeza”. Um dos grandes representantes do racionalismo,
Gottfried Leibniz, afirma em sua obra Novos Ensaios sobre o Entendimento
Humano, que nem todas as verdades são verdades de fato; ao lado delas,
existem as verdades de razão, que são aquelas inerentes ao próprio
pensamento humano e dotadas de universalidade e certeza (como por
exemplo, os princípios de identidade e de razão suficiente), enquanto
as verdades de fato são contingentes e particulares, implicando sempre
a possibilidade de correcção, sendo válidas dentro de limites
destinados.
Ainda retratando o pensamento racionalista, encontramos René
Descartes, adepto do inatismo, que afirma que somos todos
possuidores, enquanto seres pensantes, de uma série de princípios
evidentes, ideias natas, que servem de fundamento lógico a todos os
elementos com que nos enriquecem a percepção e a representação, ou
seja, para ele, o racionalismo se preocupa com a ideia fundente que a
razão por si mesma logra atingir. A razão pelas quais os ritos são uma
construção, resultado de uma reflexão exige uma participação
epistemológica no uso do racional.

4 Disponível em: https://www.coladaweb.com/filosofia/teoria-do-conhecimento.

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Ciências Sociais e Desenvolvimento Humano em Moçambique:
produção, circulação e limitações

4.1 Natureza do conhecimento: uma explicação de ritos de


iniciação

Aceitando a razão de abordagem de que os ritos de iniciação,


trazem um conhecimento que se assemelha a qualquer um que é
validado pela comunidade em geral, torna-se imperativo determinar a
orientação ou atitude espiritual que implica uma preeminência do
objecto, dada a sua afirmação fundamental de que nós conhecemos
coisas. Em outras palavras, é a independência ontológica da realidade,
ou seja, o sujeito em função do objecto. O realismo é subdividido em
três espécies. O realismo ingénuo, o tradicional e o crítico 5.
Há, portanto, no realismo, uma tese ou doutrina fundamental de
que existe uma correlação ou uma adequação da inteligência a “algo”
como objecto do conhecimento, de maneira que nós conhecemos quando
a nossa sensibilidade e inteligência se conformam a algo de exterior a nós.
De acordo com o modo de compreender-se essa “referibilidade a algo”,
bifurca-se o realismo em tradicional e o crítico, que são as duas linhas
pertinentes à filosofia que nos nossos olhares localizamos as principais
abordagens que fundamentaram a nossa sociedade.

4.2 Idealismo e a questão dos ritos de iniciação

Platão no período classifico denominou de idealismo


transcendente, onde as ideias ou arquétipos ideais representam a
realidade verdadeira, da qual seriam as realidades sensíveis, meras
cópias imperfeitas, sem validade em si mesmas, mas sim enquanto
participam do ser essencial. O idealismo de Platão reduz o real ao ideal,
resolvendo o ser em ideia, pois como ele já dizia, as ideias são o sol que
ilumina e torna visíveis as coisas. Os ritos de iniciação têm uma
dimensão idealista, uma vez que incorpora a tradição humana no seu
sentido nosológico.

5 Disponível em: https://www.coladaweb.com/filosofia/teoria-do-conhecimento

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Armindo Armando, Jane Alexandre Mutsuque & Pedrito Carlos Chiposse Cambrão
(Org.)

O que interessa á ritos de iniciação, é o idealismo imanentista,


que afirma que as coisas não existem por si mesmas, mas na medida e
enquanto são representadas ou pensadas, de maneira que só se conhece
aquilo que se insere no domínio de nosso espírito e não as coisas como
tais, ou seja, há uma tendência a subordinar tudo á formas espirituais
ou esquemas. No idealismo, que é a compreensão do real como
idealidade (o que equivale dizer a realidade como espírito), o homem
cria um objecto com os elementos de sua subjectividade, sem que algo
preexista ao objecto (no sentindo gnosiológico).

5. Possibilidade de conhecimento e o lugar dos ritos de iniciação

5.1 Dogmatismo e ritos de iniciação

É a corrente que se julga em condições de afirmar a


possibilidade de conhecer verdades universais quanto ao ser, à
existência e à conduta, transcendendo o campo das puras relações
fenomenais e sem limites impostos a priori à razão. Com isso,
existem duas espécies de dogmatismo: o total e o parcial.
O primeiro é aquele em que a afirmação da possibilidade de
se alcançar a verdade última é feita tanto no plano da especulação,
quanto no da vida prática ou da Ética. Este tipo de dogmatismo,
se torna o elemento essencial nos rotos de iniciação numa relação
pedagógica, pois os educandos são considerados como meros
elementos para assimilar os conhecimentos a serem transferidos.

5.2 Cepticismo e ritos de iniciação

Consiste numa atitude dubitativa ou uma provisoriedade


constante, mesmo a respeito de opiniões emitidas no âmbito das
relações empíricas. Essa atitude nunca é abandonada pelo
cepticismo, mesmo quando são enunciados juízos sobre algo de

71
Ciências Sociais e Desenvolvimento Humano em Moçambique:
produção, circulação e limitações

maneira provisória, sujeitos a refutação à luz de sucessivos testes 6.


Ou seja, o cepticismo se distingue das outras correntes por causa
de sua posição de reserva e de desconfiança em relação às coisas.
No entanto, nos ritos de iniciação existe maior cepticismo
orientado na prática e por outro lado pelas características
antagónicas.

5.3 Ritos de iniciação: que impactos ontem e hoje?

Os ritos de iniciação sendo uma reserva moral que até hoje as


sociedades acreditam ter impactos positivos e negativos, são objecto
de crítica pois são afectados por vários elementos dentre eles a
globalização que de certa forma rejeita a sua prática. Todavia, com estas
realidades, constatamos que existe maior impulso de desenvolver
estratégias que permitem que estes elementos sejam sustentados como
valorativos.
Com a globalização, a emancipação da mulher constitui a base
de desenvolvimento social e que toda prática olhando para os
objectivos do desenvolvimento do Millenium, indicam que há
necessidade de libertar a mulher contra todos obstáculos que possam
lhe tornar elemento diferenciador para o seu bem-estar.
Entretanto, diante destas realidades, constata-se que com a ideia
da emancipação da mulher, os ritos de iniciação são problematizados
pois eles são apontados como responsáveis em parte para as uniões
prematuros, desintegração moral e de certa forma o aumento da taxa
do analfabetismo assim como a alteração da estrutura social da criança.
A pedagogia de que através de ritos de iniciação o indivíduo
atravessa da noção de criança para idade de crescimento, grandeia o
número de gente que de certa forma se sente preparada para encarar
todos desafios da sociedade inclusive o casamento. Todavia, com esta
prática, nota-se que a pedagogia dos ritos de iniciação não só prepara

6 Disponível em: https://www.coladaweb.com/filosofia/teoria-do-conhecimento

72
Armindo Armando, Jane Alexandre Mutsuque & Pedrito Carlos Chiposse Cambrão
(Org.)

os indivíduos para o bem-estar social, mas sim a realização de acções


que são objecto de crítica social face a noção da contemporaneidade.

Considerações finais

Os ritos de iniciação sempre foram a reserva moral das culturas


mais tradicionais, pois é nela onde se encontra expressa a sua
identidade social e os respectivos mitos das comunidades, todavia,
estas práticas rituais, constituem um elemento essencial para o
desenvolvimento individual dos integrantes. A relação pedagógica nos
ritos de iniciação é baseada numa relação de autoridade, facto que não
permite o desenvolvimento do conhecimento enquanto saber
questionável ao longo do tempo, apesar das profundas transformações
que esta prática tem vindo a conhecer.
Hoje os ritos de iniciação estão observando problemas de
essência dada a relação com o contexto da modernidade de que lhe
impõe mudanças significativas. Portanto, o principal desafio em torno
desta prática consiste na busca de valores sociais contemporâneos e
integrá-las aos valores pedagógicos dos ritos de iniciação e estabelecer
uma relação amistosa entre a tradição e a modernidade.

73
Ciências Sociais e Desenvolvimento Humano em Moçambique:
produção, circulação e limitações

Referências Bibliográficas

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2000.

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Antropológicas sobre o Corpo.

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Antropológicos. Lisboa, Edições 70, Droz S.A, 1978.

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Janeiro, Brasil: Bertrand

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LARAIA, R. B. (2001). Cultura, Um Conceito Antropológico. 14ª Ed.,


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Candomblé, in: C. E. M

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Matola,s/ed

REVIERE, C. (2000), Introduções a Antropologia, Lisboa, Edições


70.

74
(IN)COMUNICAÇÃO SOCIAL EM
MOÇAMBIQUE: DESAFIOS E
TRANSFORMAÇÃO SOCIAL

Jane Alexandre Mutsuque


Joana Carlos Beira

Introdução

A disseminação de informações através dos grandes meios de


comunicação abrange uma vasta área das Ciências Sociais
desempenhando um papel de extrema importância no
desenvolvimento de outras áreas de estudo, tal como, cultura, arte,
economia, política, etc. A comunicação tomou um lugar estratégico na
sociedade, o que lhe conferiu um posicionamento relevante na tomada
de decisões, tanto na administração pública ou privada, quanto no
campo social.
A nossa reflexão é de matriz qualitativa e sustentada por
fundamentos teóricos sobre comunicação social (em Moçambique).
A relevância dela assenta sobre a importância estratégica que a
comunicação de massas exerce na promoção da cidadania ativa, não
só, mas também, na sua capacidade de agir como influenciador da
transformação social, incluindo na aquisição de novos hábitos
culturais, práticas de grupo e de consumo. Esta perspectiva é
sustentada a partir da colocação feita por Amaral (2007, p.4), ao
referir que os meios de comunicação de massas actuam como
“veículo de informação e de valores que nos constituem como
Ciências Sociais e Desenvolvimento Humano em Moçambique:
produção, circulação e limitações

sujeitos em nossa sociedade. Assim, podemos dizer que a media


exerce um papel importante na construção da subjetividade das
pessoas”, o que significa que sempre que estes valores são
protelados, então estaremos a evidenciar os efeitos da
(in)comunicação.
O termo incomunicação (conceito proposto pelo sociólogo
francês, Dominique Wolton) resulta do processo derivacional,
acréscimo do prefixo in-, com valor ou ideia de ausência, privação,
negação, etc. (DHLP, 2009), e o termo comunicação, termo de origem
latina comunicare, que significa tornar comum; “compartilhamento de
significado por meio de troca de informação” (Castells, 2015,
p.101). Com esta expressão, Wolton (1999) procura preservar a
perspectiva humanista e mobilizadora da comunicação, ressaltando
a dimensão normativa, que compreende a comunicação um
instrumento como potencial para compartilhar, dialogar, informar e
compreender-se; e a dimensão funcional, que incorpora a
comunicação/informação como fundamento das relações humanas
e sociais.
A concepção de incomunicação social é aqui discutida a partir da
abordagem de Marques de Melo (1976, p.10) o qual defende que
incomunicação social expressa “a falta ou a dificuldade de
comunicação, seja pelas barreiras tecnológicas ou cognitivas,
políticas, psicológicas, económicas e sociais”.
A reflexão que propomos assenta em três principais aspectos
da comunicação de massas. O primeiro tem que ver com a
comunicação como instrumento social, tomando como enfoque o lugar da
comunicação na estrutura e funcionamento do Estado-nação. O
segundo aspecto refere-se às condições de eficácia das comunicações de
massas, apontando para os canais, a transmissão de significados
desejados e relações com a estrutura dos grupos em que projecta a
predisposição desses em relação a ela. Com o último aspecto
relevamos a natureza e evidência do impacto de comunicação, sobretudo o
efeito no(s) indivíduo(s), isto é, à medida que influi na mudança
social e ou em sua ausência.

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Armindo Armando, Jane Alexandre Mutsuque & Pedrito Carlos Chiposse Cambrão
(Org.)

Consideramos que os aspectos que trazemos nesta discussão


reflectem o actual panorama mediático em Moçambique e, como tal,
há necessidade de os escrutinar de forma minuciosa e
circunstanciada. Apresentamos, assim, um quadro geral da
comunicação social com relevo da actuação do sector público em
processos cujo impacto da comunicação têm repercussão no tecido
social moçambicano.

1. Comunicação e desenvolvimento social

Desde dos tempos remotos, o acto de comunicar tomou lugar


essencial para a sobrevivência dos seres vivos e, para os homens, é
imprescindível para a vida em sociedade. “É por meio da
comunicação que a mente humana interage com seu ambiente social
e natural. Esse processo de comunicação opera segundo a estrutura,
a cultura, a organização e a tecnologia de comunicação em uma
sociedade determinada.” (Castells, 2015, p.21). Para Steinberg
(1958), estudar os processos que influenciam a comunicação de
massas passa por focalizar os fenómenos semânticos e do conteúdo
da comunicação, a propaganda política, a publicidade comercial,
difusão de livro, o jornalismo, a radiodifusão, a opinião pública;
comunicação internacional, processos de massificação, a educação
e os fenómenos ligados à personalidade do indivíduo submetido aos
meios de comunicação de massas.
Os meios de comunicação de massas ou meios de massas (do
Inglês mass media), definidos como instrumentos que facilitam a
comunicação entre as pessoas mediante partilha ou transferência de
informações de forma individual ou em grupo, segundo (Caparele,
1986), desde os meados do século passado, têm ganhado um lugar
determinante no desenvolvimento das nações e da lógica
contemporânea de interação entre os povos espalhados pelo mundo
inteiro. Manuel Castells destaca a importância estratégica da
comunicação social no livro “O Poder da Comunicação” ao referir que
o poder está centrado no controle da informação e da comunicação,

77
Ciências Sociais e Desenvolvimento Humano em Moçambique:
produção, circulação e limitações

tanto por parte do Estado e da media, em um âmbito macro, quanto


das organizações e grupos sociais, de forma micro, (Castells, 2015).
A propósito, Amaral (2007, p.4) faz referência ao protagonismo dos
meios de comunicação de massas tomando como ponto de partida
a “sua grande influência na formação da opinião das pessoas, na
aquisição de atitudes e comportamentos”. Com o advento da Era da
Informação, ficou evidente a importância que os medias, em
particular, os meios digitais, assumem na sociedade. Segundo a
UNESCO (2016, p.9),

Embora a tecnologia tenha estimulado o desenvolvimento


global, ela também dificultou, para milhões de pessoas – não
apenas de economias emergentes, mas também de países
desenvolvidos –, o engajamento com a mídia e a participação
em sociedades do conhecimento globais. Isso promove a
desigualdade entre os países – e também dentro dos países – e
a desigualdade entre as comunidades e os indivíduos.

Sem dúvida, as transformações tecnológicas e os processos


comunicacionais trouxeram inovações nos paradigmas de interacção
interpessoal e intragrupal. Elas não só constituíram novas
oportunidades, mas também generalizaram as dificuldades, tanto de
direito à informação, de liberdade de expressão, como de acesso ao
conhecimento.
No âmbito social e no relacionamento interpessoal, comunicar
corresponde à informar, ao conhecimento, à partilha, inclusão,
mobilização e ao desenvolvimento. Num passado muito recente, o
sector económico reproduziu a máxima “o segredo é a alma do
negócio”. Hoje, a comunicação tomou esse lugar e cumpre esse papel,
tanto ao nível pessoal, como institucional.
As instituições públicas e privadas têm investido
significativamente na comunicação social, não somente como veículo
ou sistema de transmissão de mensagens para um público diverso, mas
também como agente de transformação social. Ainda assim, há zonas
de penumbra comunicativas que se multiplicam dando origem à

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Armindo Armando, Jane Alexandre Mutsuque & Pedrito Carlos Chiposse Cambrão
(Org.)

impossibilidade comunicativa, gerados por factores tecnológicos,


intelectuais, linguísticos, legislativos, entre outros.

2. Panorama mediático em Moçambique

Há uma ideia aparente, principalmente para os cidadãos da classe


média-alta, residentes em meios urbanos, que em Moçambique há
massificação do consumo das medias: “todas” as pessoas lêem jornais
e revistas, “todos” escutam rádio, visualizam os programas de televisão
e “todos” consultam sítios ou interagem pela internet. Mas isso não
passa doe senso comum.
Volvidas quatro décadas depois da Independência Nacional de
Moçambique, a conjugação de factores como: infraestrutura; recurso
financeiro (no caso, para adquirir aparelhos/dispositivos eletrônicos de
comunicação, tal como, televisão, rádio, celulares, computadores ou
pacotes de internet) e a expressa debilidade no âmbito da literacia,
portanto, a capacidade de ler, de escrever, de compreender e de
interpretar o que é lido, têm restringido o acesso aos principais meios
de comunicação e informação de massas.
Viabilizar serviços públicos dos media, em qualquer parte do mundo,
carece de uma infraestrutura tecnológica: dispositivos electrónicos,
plataformas de comunicação, tal como satélites, fibra óptica e material
para manutenção. Em Moçambique, esses recursos não estão
disponíveis integral ou equitativamente por todo o território
nacional. O mapa de distribuição da infraestrutura tecnológica de
comunicação aponta para uma acentuada assimetria entre as zonas
urbanas e as rurais.
O Censo Populacional realizado em 2017 aponta, segundo
Instituto Nacional de Estatística – INE (2019), a zona rural como área
de residência da maior parte da população moçambicana, com 66,6%,
e a restante em cidades e vilas. Entretanto, a distribuição de eletricidade
nas zonas rurais, por agregados familiares, capaz de alimentar os
dispositivos tecnológicos de comunicação, limita-se em torno dos

79
Ciências Sociais e Desenvolvimento Humano em Moçambique:
produção, circulação e limitações

3,7% (INE, 2019). Este diagnóstico inicial aponta para um dos


cenários que determinam a (in)comunicação social.
O déficit na infraestrutura física de distribuição da corrente
elétrica, tanto sob ponto de vista de expansão, quanto da qualidade, é
um entrave decisivo relativamente à instalação de equipamentos
tecnológicos que permitem estabelecer e compartilhar informações ou
conhecimentos. Em contrapartida, o governo moçambicano previu,
no Programa Quinquenal de Governação 2020-2024, acções
estratégicas com vista a aumentar o acesso e disponibilidade de energia
eléctrica nas zonas rurais através da Rede Eléctrica Nacional e de
sistemas solares, com prioridade para as sedes dos novos distritos,
postos administrativos e localidades (Moçambique, 2020). Enquanto
não se efectivar este desiderato, estimular o consumo de outras fontes
de energia, tal como pilha, bateria e gerador, através de introdução de
subsídios sobre as taxas de consumo destes recursos energéticos, seria
uma saída viável.
Relativamente ao consumo das principais plataformas de
comunicação social (rádio, televisão e jornal e mais recentemente, a
internet), de uma forma genérica, notam-se índices muito baixos.
Ainda que hoje, em comparação há duas ou três décadas, exista
numerosos meios de comunicação, é fácil notar que a comunicação
ainda não acontece para todos, isto é, no sentido de maior abrangência
da população no território, independente do substrato social ou
condição intelectual.
Ora, se o direito à comunicação é um marco legal reconhecido e
contemplado na Declaração Universal dos Direitos Humanos, ao
estabelecer que “todo ser humano tem direito à liberdade de opinião e
expressão; este direito inclui a liberdade de, sem interferência, ter
opiniões e de procurar, receber e transmitir informações e ideias por
quaisquer meios e independentemente de fronteiras” (Assembleia
Geral da ONU, 1948, p.9), então, há que mobilizar recursos e esforços
para aprofundar esta discussão em defesa da comunicação como um
direito de todos os seres humanos.

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Armindo Armando, Jane Alexandre Mutsuque & Pedrito Carlos Chiposse Cambrão
(Org.)

A rádio, por exemplo, o veículo de comunicação de massas mais


acessível (em Moçambique, em particular), devido às suas
características intrínsecas, nomeadamente, fácil mobilidade, baixo
custo, imediatismo e ou instantaneidade, sensorialidade, autonomia,
penetração e sobretudo, pelo uso da linguagem oral (Lopes, 1982),
ainda assim não consegue atingir parte significativa da população
moçambicana. A posse deste bem durável, por agregado familiar, situa-
se nos 35% (INE, 2019). Em termos comparativos, campo-cidade, o
consumo da rádio faz-se sentir significativamente nas zonas rurais pelo
facto de este dispositivo ser alimentado não apenas por corrente
elétrica, mas também pela pilha, apontada para um consumo de 41%,
acima da metade da energia consumida na zona rural.
Outro meio de comunicação social, a televisão, que suscita
interesse social, por poder combinar a ilustração de imagens e
conteúdos em áudio, tem uma abrangência de 21% da população
moçambicana, (INE, 2019). Pela complexidade do seu sistema de
transmissão por satélite, usando sinal analógico ou sinal digital, e mais
recentemente, por via cabo, grande parte dos consumidores deste
artefacto tecnológico restringe-se a uma camada da população
maioritariamente localizada no meio urbano. Outra limitação da
televisão moçambicana é a velha ausência das línguas nacionais na sua
grelha de programas. A propósito, Joanguete (2016) referiu, por
exemplo, que a televisão pública moçambicana (TVM), canal com
cobertura nacional, transmite a partir das delegações provinciais,
programas informativos (noticiários) com extensão de meia hora. Esta
tendência mantém-se em quase todos outros canais de televisão, com
exceção de alguns veículos privados.
A imprensa escrita encontra dois grandes empecilhos: logística
e a falta de instrução elementar de ler. Sobre a logística, constata-se que
a produção e distribuição do jornal em grande escala está condicionada,
segundo Chichava & Pohlmann (2009, p.134), ao “elevado custo das
telecomunicações, electricidade, papel e transporte”. Relativamente à
condição de instrução, a imprensa escrita não encontra extensas
possibilidades de consumo por conta do baixo índice de alfabetização

81
Ciências Sociais e Desenvolvimento Humano em Moçambique:
produção, circulação e limitações

da população moçambicana. Saber ler (e escrever) é o principal suporte


de acesso ao conteúdo jornalístico.
No global, o analfabetismo entre pessoas com idade igual ou
superior a 15 anos situa-se em 39%, segundo o Censo 2017. Outra
restrição ao consumo do jornal está na língua que permeia boa parte
da imprensa escrita: a língua portuguesa. Segundo Joanguete (2016, p.
129), “todos os jornais apenas usam a língua portuguesa, situação que
constitui um limite fundamental para o acesso à informação pela
esmagadora maioria da população, nomeadamente entre os
camponeses e as mulheres”. Este factor que gera, a priori, um ruído na
comunicação, pode ser entendido como mais um indício da
(in)comunicação no sector da comunicação social.
Em todos estes sectores de comunicação, convém realçar que a
língua portuguesa tem uma presença considerável. Ela foi constituída
língua oficial e de ensino, em 1975. Ainda que sem se fazer constar
expressamente na primeira Constituição da República, ela foi instituída
como principal instrumento linguístico de comunicação política.
Somente na Constituição da República de 1990, toma corpo textual no
artigo dez. Em contrapartida, as oito principais línguas nacionais,
nomeadamente, Emakhuwa, Xichangana, Elomwue, Cinyanja, Cisena,
Echuwabo, Cindau, Xitswa, representam 69,2% das línguas faladas em
Moçambique (INE, 2019). Estas línguas, juntas a outras línguas
moçambicanas de pequena expressão foram remetidas para um lugar
subalterno no ecossistema da comunicação social em Moçambique.
O Estado atribuiu às línguas nacionais o valor de “património
cultural e educacional [...] e veiculares da nossa identidade”.
Actualmente 16,5% da população com igual ou superior a cinco anos
tem a língua portuguesa como língua materna. No caso da Província
de Nampula, por exemplo, onde reside a maior parcela da população
moçambicana (20,6%), apenas 9,1% tem no português a sua língua
materna, contra 86,9% da língua emakhuwa (INE, 2019).
O consumo da internet não foge ao panorama geral da
comunicação social de Moçambique. Contando que a internet é uma
tecnologia de comunicação relativamente recente no cenário mundial,

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Armindo Armando, Jane Alexandre Mutsuque & Pedrito Carlos Chiposse Cambrão
(Org.)

tendo chegado a Moçambique em 1992, depois da África do Sul e do


Egípto 1. Segundo Castells (2015, p. 33),

A internet agora se tornou uma ferramenta de política


institucional tão central quanto a televisão. Em certa medida,
ela agora tem um papel ainda maior, pois a televisão se
concentra em campanhas eleitorais ou em momentos críticos
de atenção da media, tais como crises nacionais e
internacionais, enquanto a internet agora fornece contato
diário entre políticos e cidadãos.

A internet que é um recurso tecnológico com forte impacto nas


relações sociais e sobretudo pela instantaneidade da circulação de
dados e ou informações, requer um investimento robusto na
infraestrutura e recursos humanos capazes de garantir a manutenção
dos sistemas. Segundo o Censo (2017), a média nacional de acesso ao
computador no país situa-se em 5,3% e a internet, 6,6%, em 2017,
contra 2,1%, em 2007, (INE, 2019). “Em Moçambique, o uso da
Internet e de serviços de telecomunicações ainda é limitado, devido à
precariedade das infraestruturas e à pobreza da maioria da população
rural. O grosso número da população não possui rede de energia
elétrica” (Joanguete, 2016, p. 146).
Os factores elencados por Joanguete ilustram as carências que
impõem um certo tipo de “apartheid tecnológico” (Santos, 2009) à
maioria da população moçambicana. Este cenário deixa claro que o
formato de disponibilização dos serviços cibernéticos está longe de
preencher as lacunas deixadas pelos outros meios acima citados. Desta
forma, incomunicação pode ser vista “como parte da lógica de um sistema
opressor e de uma sociedade dominante com relação à dominada.
Neste caso, sociedade na qual a comunicação não passa de um
instrumento de manutenção do status quo.” (Ferreira, 2010, p. 9).
Dispor de informação e de conhecimento em tempo real oferece
vantagens significativas ao cidadão, possibilita a participação activa da

1 Disponível em: https://bit.ly/2C7NKL8. Acessado em 03/03/2020.

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Ciências Sociais e Desenvolvimento Humano em Moçambique:
produção, circulação e limitações

sociedade e na tomada de decisões, seja de temas de interesse social


(do Estado), seja de interesse pessoal, no seu quotidiano.

3. Informação vs conhecimento como constituintes da


comunicação

A globalização e o avanço das tecnologias de informação e


comunicação (TIC) tornam o mundo cada vez mais complexo e
exigente, devido ao grande volume de informação disponibilizada ao
mesmo tempo. As informações propagam-se com a velocidade da luz
e o acesso as mesmas tornou-se algo relativamente fácil de conquistar.
Não obstante, as tecnologias de informação recebem um olhar especial
ao serem vistas como elemento transformador que mudam as formas
das pessoas acessarem e organizarem o seu universo de informação,
mas também por serem colocadas numa atmosfera com claras
restrições de acessibilidade e manejo.
Com a “aparente” liberalização da informação, é chamada a
razão a inclusão digital. Porém, a priori é importante diferenciar a
informação do conhecimento. Corroborando Choo (2003) que afirma
que sem um claro entendimento de seus processos quer
organizacionais ou humanos, pelo qual a informação se transforma em
percepção, conhecimento e acção, os usuários não serão capazes
de perceber a importância de suas fontes e tecnologias de informação.
Assim, através da internet e satélites são criados novos sistemas de
informação e comunicação, onde artefatos como rádios, e-mail, tv,
fóruns, blogs, chat, redes sociais entre outros dão vida ao
relacionamento entre os usuários.
Por outro lado, vários são os sinais que mostram que ter
informação e conhecimento tornou-se determinante para a
competitividade, não apenas entre as empresas e os países, como um
todo, mas também como elemento transformador do indivíduo.
Contudo, o simples facto de se ter informação não significa
necessariamente que os problemas serão resolvidos, pois em algum
momento pode virar a causa dos problemas. O excesso de informação

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Armindo Armando, Jane Alexandre Mutsuque & Pedrito Carlos Chiposse Cambrão
(Org.)

pode ser tão mau quanto o desconhecimento dela e de factos


relevantes, o que implica necessariamente dificuldade de entender
conteúdos e assim, de tomar decisões. Este facto pode conduzir,
muitas vezes, à imobilidade.
Toda a informação e todo o conhecimento têm uma forte
componente social, sendo que, a sua criação, acesso e partilha
contribuem significativamente para fortalecer o desenvolvimento
sustentável de um país (Tarapanoff, 2006). A priori, parece consensual
esta constatação. A questão que se levanta é: como enfatizar os
mecanismos comunicacionais de modo que a informação seja de valor
para o usuário e capaz de gerar conhecimento, num país como
Moçambique, que apresenta um quadro nitidamente desproporcional
entre a disponibilidade de informação e o acesso/consumo de
informação? Segundo Tarapanoff (2006) construir uma sociedade
onde todos possam criar, acessar, utilizar e compartilhar informação e
conhecimento é o desafio que se coloca a todas as nações e
corporações no mundo de hoje.
Informação e conhecimento são elementos essenciais para
passar autoconfiança na sociedade da informação ou sociedade em
rede (Raddatz, 2014), pois, baseiam-se no valor dos vínculos entre os
indivíduos de culturas diversas, no fluxo livre do conteúdo e na
liberdade do diálogo. Eles são, de igual modo, considerados criações
humanas, sendo que as pessoas devem ser vistas como essenciais por
elas desempenharem um papel fundamental nesse processo, e como
consequência, serem capazes de administrá-los (Davenport,
1998). Não obstante, informação e conhecimento são:

[...] causa e efeito um de si mesmo, numa interação dinâmica


em que a sucessão pode ser plenamente invertida, mas não gera
nenhuma contradição, pois se é causa e efeito com relação às
coisas diferentes em momentos distintos, quer dizer que se é
causa só quando o outro é efeito e se é efeito apenas quando
o outro for causa, gera assim expansão benéfica a ambos”
(Xaxier & Costa, 2010, p. 6).

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Ciências Sociais e Desenvolvimento Humano em Moçambique:
produção, circulação e limitações

Segundo Davenport (1998), a informação é compreendida como


um dado que possui relevância e propósito, requer uma unidade de
análise, exige um consenso em relação ao significado e exige a
mediação humana. A informação é uma abstração informal que está na
mente das pessoas, que representa algo significativo para essa pessoa
(Setzer, 1999), é também a parte explícita do conhecimento, que pode
ser trocada entre pessoas, escrita, gesticulada, falada, utilizada para
tomada de uma decisão. É o elo da interação e da transmissão do
conhecimento. Sendo que, o valor da informação centra-se na
interação que o usuário constrói entre si mesmo e determinada
informação (Choo, 2003).
Actores e agentes geram, transformam, buscam, usam e
disseminam informações de variados tipos (Duarte, 2007). Ainda que
exista uma linha tênue ao distinguir informação, dado e conhecimento,
é possível encontrarmos uma relação sequencial dos elementos. A
informação serve de conexão entre os dados brutos e o conhecimento
que eventualmente se pode obter (Davenport, 1998). Portanto, o
conjunto de dados ordenados e organizados que, num determinado
contexto, transmitem significados e compreensão pode entender-se
como informação. Ela tem a ver com a consolidação de dados de
forma a fundamentar o conhecimento.
Para Xavier & Costa (2010), dar informação possibilita a criação
de conhecimento, e consequentemente produzirá mais informação.
Porém, há que distinguir informação da comunicação. Segundo
Wolton (2010), informar não é comunicar. Para Wolton, a
comunicação é mais importante do que a informação para o vínculo e
a identidade. No contexto, faz-se necessário fazer dialogar com o
trinómio comunicação-informação-conhecimento na sua relação com a técnica
e a sociedade.
Num país como Moçambique em que o analfabetizmo apresenta
índices preocupantes, o consumo de informação que gera
conhecimento é alternativa para reduzir o impacto da falta de
conhecimento em determinados domínios sociais. Acessar
à informação útil abre espaço para a mudança do indivíduo e da

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Armindo Armando, Jane Alexandre Mutsuque & Pedrito Carlos Chiposse Cambrão
(Org.)

comunidade. A falta de informação ou a desinformação (fake nwes 2) traz


consigo decisões ou procedimentos incorretos, e pode levar um
governo (país) ou uma empresa à falência ou destruição. As pessoas
tomam decisões diariamente. Ao toma-las sem o devido conhecimento
dos efeitos dessas decisões, podem causar efeitos desastrosos para elas
próprias, para os próximos e também para as gerações vindouras. Para
que se possa prever uma ocorrência é necessário conhecê-la. É
extremamente dificil controlar coisas que não temos conhecimento
sobre ela: a covid-19 é um exemplo disso.
Conhecimento é também uma ferramenta cujo aporte é a
capacidade de agir com vista a uma ação que pode ser ou não
consciente (Sveiby, 1998 citado por Polanyi, 1967). Para Dixon (2000),
conhecimento são ligações e ou vínculos expressivos feitos nas cabeças
dos usuários entre informação e a sua respectiva utilização prática
numa determinada conjuntura e baseada em três dimensões: tácito,
explícito e cultural. Assim, pode-se afirmar que o conhecimento se
torna num recurso indispensável e uma fonte sustentável para a
geração de riqueza e melhoria das condições de vida de todos os
cidadãos. Nesta articulação, a informação e o conhecimento
desempenham funções essenciais na vida humana, contrariamente a
outros seres vivos irracionais. Assim, é preciso pensar as tecnologias
como um processo educacional que nos permitirá aproveitar os
conhecimentos e a organização social como essenciais para o
desenvolvimento das naçõs. O conhecimento não nasce
espontaneamente, pois, a sua criação deve ser fomentada de forma
consciente e intencional, como exemplo, realização de actividades e
iniciativas com o objectivo de aumentar o património de
conhecimento.
O quadro geral que Moçambique apresenta sobre o
conhecimento (científico), tomando em conta a conjugação de

2Allcott & Gentzkow (2017) citados por Alzamora, G. & Andrade, L (2018, p.2),
“definem notícia falsa como artigos noticiosos que são intencionalmente e
verificavelmente falsos, embora capazes de enganar os leitores”.

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Ciências Sociais e Desenvolvimento Humano em Moçambique:
produção, circulação e limitações

variados factores, nomeadamente: restrições de acesso à informação,


motivada tanto por condicionalismos tecnológicos, quanto pela
incapacidade de ler e interpretar textos; infraestruturas e equipamentos
tecnológicos dos media que restringem o diálogo e acesso à informação
geradora de conhecimento, entre outros factores, tudo isto nos leva a
crer que estamos numa situação elementar de letramento (científico).
É preciso sublinhar também que, ainda que esta época seja catalogada
como Era da Informação, pelo excessivo fluxo e importância da
informação à escala mundial, a desinformação e o desconhecimento
tomam partido de uma parcela considerável no circuito da
comunicação; em parte, são responsáveis pela crise de significado
existencial.
Em países subdesenvolvidos, como Moçambique, onde
coabitam restrições de acesso à informação, a desinformação e a
limitações no sector da educação, é mais perceptível na forma como a
população absorve e digere os assuntos de interesse social.

4. Comunicação de interesse público

Dissemos acima que informação e comunicação, ainda que cada um


dos termos tenha sua particularidade, se interpelam no nosso
cotidiano. Ambos têm valores estratégicos na administração e
interação social. A propósito, Fidalgo (1996), afirma que a informação
é um elemento fundamental para a formação cívica dos cidadãos. Na
mesma linha, Duarte (2007, p.4) acrescenta dizendo que a informação
“é a nascente do processo que vai desaguar na comunicação viabilizada
pelo acesso, participação e cidadania activa.
No âmbito da comunicação pública, Duarte (2007) agrupou a
informação em sete categorias, a saber:

a) institucionais, que se refere ao papel, responsabilidades e


funcionamento das organizações;
b) de gestão, que se refere aos processos decisórios e de ação dos
agentes que atuam em temas de interesse público;

88
Armindo Armando, Jane Alexandre Mutsuque & Pedrito Carlos Chiposse Cambrão
(Org.)

c) de utilidade pública, que se refere à temas relacionados ao dia-a-


dia das pessoas; d) de prestação de contas, que se refere à explicação e
esclarecimento sobre decisões políticas e uso de recursos públicos;
d) de interesse privado, se refere ao cidadão, empresa ou instituição;
e) mercadológicos, se refere a produtos e serviços que participam de
concorrência no mercado;
f) dados públicos, se refere a informações de controle do Estado.

Apesar da existência de uma sequência para que a informação


flua na comunicação pública, Duarte (2007) constata que pelo facto de
existir uma informação não significa necessariamente uma
comunicação eficiente. Ela pode ser inútil, manipulada, mal
compreendida ou não chegar no momento adequado. Na sua acção, a
comunicação pública deve ser capaz de emitir informações que
contribuam para a mudança de comportamento.
Ao nível de relacionamento entre os protagonistas da comunicação
pública, McNair (1999) refere que ela resulta do intercâmbio entre os
gestores públicos, comunicação social e outros actores políticos. Mário
Mesquita (2003:92) citado por Cunha (2011, p.11) afirma que, a
comunicação política envolve quatro grandes grupos de atores,
nomeadamente: “os políticos (candidatos e governantes); os jornalistas (que
intervêm no espaço público político); os actores sociais e profissionais (que
representam grupos de interesse) e os intelectuais (que actuam nas escolas,
universidades, instituições culturais).”
Tal como nos referimos anteriormente, em relação aos principais
aspectos a considerar na comunicação de massa, Mesquita (2003)
aposta num conjunto de elementos que estruturam o processo de
comunicação política, nomeadamente, os actores políticos, os mediadores
políticos (jornalistas ou profissionais ligados aos media), os locais onde se
dão as performances (palcos, comícios, estúdios) e os públicos e
audiências. Juntos, todos estes aspectos visam “fazer com que as
mensagens dos políticos e governos cheguem aos cidadãos. Os
políticos e os governos preparam, ou formatam, preferencialmente, as
mensagens para os meios de comunicação.” (Cunha, 2011, p.8).

89
Ciências Sociais e Desenvolvimento Humano em Moçambique:
produção, circulação e limitações

Um dos princípios de boa governança está centrado na


comunicação política, instrumento que viabiliza a aproximação do
interesse social e as políticas públicas concebidas pelo governo. Esta
ideia é fundamentada por Cambrão (2018, p.81), ao afirmar que “um
país com Boa Governação deve garantir ao povo: estabilidade política
e ausência de violência; liberdade de expressão e comunicação; capacidade
reguladora do Governo; cumprimento da lei e controlo da corrupção.”
Os governos têm necessidade de comunicar com a sociedade seus
planos, processos de gestão pública e resultados de suas actividades.
Neste caso, privilegiar a participação popular na vida pública é uma
forma democrática de gestão do Estado. Para Castells (2015, pp.21-
22), “o processo de comunicação definitivamente medeia a forma pela
qual as relações de poder são construídas e desafiadas em todas as áreas
de prática social, inclusive na prática política.”.
O fraco investimento do país na educação e na ciência, nas
últimas quatro décadas, está a comprometer a construção de uma
consciência social, sobre a importância da informação e da ciência, no
geral. Este factor faz com que, principalmente nas camadas sociais
menos instruídas, com baixo acesso aos meios de comunicação de
massa, e sobretudo as que não tem o domínio do idioma português
como sua língua de comunicação fluente, em época de crise tal como
é a pandemia do novo coronavírus, ou quando surgem boatos sobre
“chupa-sangues”, não se alcança sucesso por parte da sociedade. Há
uma fração considerável da população que não está preparada para
receber e descodificar informações complexas, por um lado, por outro,
o grosso da população não está pronta para compreender como a
ciência funciona.
Caminhando na mesma direção, Ali (2011) defende que, apenas
disponibilizar informação não é suficiente, pois carece também de criar
condições para que os sujeitos possam confrontar as diferentes
informações obtidas e divulgadas, com o propósito de produzir uma
síntese que os mergulhe na historicidade dos processos sociais.
Assim, difundir informação tendo em consideração as
competências comunicativas dos interlocutores num raio de

90
Armindo Armando, Jane Alexandre Mutsuque & Pedrito Carlos Chiposse Cambrão
(Org.)

abrangência significativa, sob ponto de vista de área territorial, faz toda


a diferença para uma resposta responsável e comprometida por parte
da sociedade. A qualidade da informação, possibilita à sociedade
utilizá-la e disponibilizá-la a sectores mais restritos, com maior
eficiência e eficácia. Em muitos casos, o senso comum toma partido e
orienta o pensamento social.
A media tradicional, principalmente a rádio e a televisão, tem a
responsabilidade de difundir conteúdos credíveis e isentos de viés
políticos-ideológicos. É imprescindível que os meios de comunicação de
massas tragam especialistas, cientistas para os espaços televisivos,
radiofônicos e na imprensa escrita para reflectirem em torno dos assuntos
de interesse social. “Na comunicação política, é ainda possível identificar
dois tipos de dispositivos: os organizados pelas instituições políticas, com
vista à difusão mediática das mensagens e os organizados pelos media, tais
como entrevistas, debates, fóruns, que promovem confrontos, diálogos
ou consensos.” (Cunha, 2011, pp.11-12).
No caso de Moçambique em que o acesso aos meios de
comunicação é privilégio de uma parcela minoritária, a esmagadora
maioria não tem acesso a informação em tempo útil e de qualidade, há
que se pensar em artifícios arrojados, por forma que a informação útil
chegue aos destinatários, mas sobretudo, que ela seja aceite por parte
das comunidades. Ainda que o país tenha um histórico de campanhas
de comunicação social ligadas à área da saúde, por exemplo, tal como
a de vacinação, mas também experiências de longos períodos de
promoção de acções de saúde, como a pandemias do SIDA e das crises
sazonais de cólera, prevalecem dificuldades na forma de transmissão
de mensagens e abordagens de comunicação para a mudança de
comportamento individual e ou colectiva. Em muitos casos, não se
pode garantir o alcance dos resultados almejados.
Tomando como amostra as estratégias de comunicação pública
em períodos de pressão ou adversidades sociais, ao longo de décadas
pelo país inteiro, há evidências que comprovam que as campanhas de
sensibilização para prevenção, baseadas na disseminação de
informação, não têm surtido os efeitos desejados, ainda que existam

91
Ciências Sociais e Desenvolvimento Humano em Moçambique:
produção, circulação e limitações

campanhas bem-sucedidas, relativamente à adopção de


comportamentos sociais saudáveis.
A crise epidemiológica resultante da propagação da Covid-19,
por exemplo, impôs aos promotores de saúde e demais organismos
estatais a disseminarem informação com teor técnico-científico
relacionado com às vias de transmissão, práticas de prevenção e
atitudes durante o período de tratamento. A (in)comunicação social
faz-se presente quando, parte da sociedade - os destinatários da
informação, a quem espera-se adoptar comportamentos responsáveis
- faz interpretações distintas e contraditória aos oficiais, divulgadas
pelas agências governamentais. Esta postura realça a tese: a informação
de qualidade é a vanguarda da consciência de prevenção.
Num contexto de carência de meios de comunicação, quer sob
ponto de vista de infraestrutura, quer de disponibilidade de recursos
financeiros pela maioria da população para aquisição de dispositivos
tecnológicos de comunicação, adicionado às restrições linguísticas de
descodificação de língua utilizada pela media tradicional, o modelo sócio-
ecológico de desenvolvimento humano, proposto pelo psicólogo
americano, Urie Bronfenbrenner, pode encontrar dinamismo e melhor
interatividade, tanto na circulação de informação, como na possibilidade
de construção de conhecimento novo a partir do meio.
A teoria ecológica de Bronfenbrenner (1996) defende que o
ambiente afeta todos os planos da nossa vida. Assim, nosso modo de
pensar, as emoções que sentimos ou nossos gostos e preferências são
determinados por fatores sociais a nosso redor. Bronfenbrenner
estruturou seu modelo bioecológico de desenvolvimento humano a
partir da interação entre o indivíduo e o meio, tendo em conta cinco
sistemas ecológicos, nomeadamente, microssistema, mesossistema,
exossistema, macrossistema e cronossistema.
No panorama da comunicação social como o de Moçambique, é
fundamental potenciar acções comunicativas de difusão de
informações de interesse público a partir do microssistema, o primeiro
segmento da teoria ecológica de Bronfenbrenner, cuja interação (troca
de informação) acontece mais próximo do indivíduo (grupo-alvo),

92
Armindo Armando, Jane Alexandre Mutsuque & Pedrito Carlos Chiposse Cambrão
(Org.)

gerando influência e confiança bidirecionais entre o indivíduo e a


sociedade. O indivíduo, “confinado” no seu meio comunitário com o
qual tem contacto directo, estabelece frequentemente relações e
interações com a família, escola, vizinhança, a igreja, o hospital, líderes
comunitários (régulos e secretários de bairros). Estabelecer um sistema
de comunicação de massas onde a informação é disponibilizada a este
segmento da população, oferece maior possibilidade de mudança social
e de comportamento.

Considerações finais

Ao longo de toda a história da humanidade, a comunicação


tomou um lugar protagonista no progresso das sociedades. A
comunicação social de massas, através dos seus estímulos audiovisuais,
principalmente a televisão, exerce influência na formação intelectual
do cidadão, o que é determinante no comportamento e sobretudo na
transformação social.
Olhando para o actual cenário social, designado sociedade do
conhecimento, os usuários da informação precisam desenvolver
habilidades para acessar as fontes do conhecimento e informação
(Terra, 2000), necessitam também, avaliar, validar, organizar, proteger
e processar as informações, gerar novos conhecimentos e estruturar
novos produtos de media e atuar em rede, ajudando assim, na
publicação e disseminação de informações e conhecimentos. Neste
contexto, a comunicação social deve encontrar estratégias que
promovam maior capacidade de divulgação de informação.
O facto de se observar cada vez mais omnipresente as
tecnologias de informação e comunicação, é preciso tomarmos atenção
especial aos usos. As tecnologias de informação e comunicação estão
a definir a forma e a abrangência da informação e o modo de interacção
social. Esta conjuntura impõe às autoridades políticas, econômicas e
sociais a desenvolverem leis, políticas, produtos, serviços e
infraestruturas capazes de massificar, no mais curto espaço de tempo,

93
Ciências Sociais e Desenvolvimento Humano em Moçambique:
produção, circulação e limitações

acesso aos meios de comunicação, principalmente em locais onde está


a maior parte da população.
Há toda uma necessidade de repensar o substrato ou paradigmas
comunicacionais nos quais se realizam as comunicações políticas ou de
interesse público, sobretudo nas zonas rurais, por forma a atingir as
camadas sociais desprovidas de recursos linguísticos capazes de
descodificar conteúdos de uma língua (portuguesa) que não é de seu
domínio.
O desenho de políticas linguísticas orientadas para inclusão
social contribui mais e melhor para a consciencialização social e
enfatiza a avaliação crítica das informações, no geral, e do conteúdo
mediático, em particular. Este pressuposto confere, igualmente, maior
criatividade dos provedores de serviços de media, no que diz respeito
à busca de recursos comunicacionais locais para mitigar problemas
locais ou, ao menos, ajustar os protocolos globais às disponibilidades
e ou possibilidades locais.

94
Armindo Armando, Jane Alexandre Mutsuque & Pedrito Carlos Chiposse Cambrão
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98
A GUERRA CIVIL EM HOMOÍNE E A
DINÂMICA SOCIAL ENTRE 1982 A 1992

Raul Flávio Hilário

Introdução

Analisar a dinâmica social da guerra civil em Homoíne demanda


encontrar dados resultantes de depoimentos das duas forças
beligerantes, da população que sofreu, discursos e documentos das
estruturas políticas da época incluindo os vestígios materiais e
imateriais deixados que são escassos e quase inexistentes. Esta situação
tornou desafiadora a missão de buscar evidências referentes ao período
1982-1992, já que a tradição de Homoíne é oral, na maioria das pessoas
que viveram a guerra não tinham o hábito de registar e arquivar por
escrito os momentos da sua vida. Neste período histórico, não havia
câmeras de celular para gravar e fotografar de forma rápida e fácil os
momentos do dia-a-dia, nem dados sistematizados sobre o tema.
O distrito de Homoíne foi assolado pela guerra civil que durou
10 anos, de 1982-1992 que envolveu as forças Governamentais e os
guerrilheiros da Resistência Nacional de Moçambique (RENAMO).
Trata-se de um movimento de guerrilha fundado em 1976, iniciou as
suas incursões armadas em 1977 na Província de Manica e Sofala, mais
tarde, já em 1982 expandiu-se até Província de Inhambane onde teve
como porta de entrada no distrito de Homoíne concretamente na
Localidade de Pembe. O estudo objectiva analisar a dinâmica social
frente a guerra civil em Homoíne. A revisão bibliográfica, as entrevistas
Ciências Sociais e Desenvolvimento Humano em Moçambique:
produção, circulação e limitações

e observação permitiu o entendimento de conceitos relacionados com


a temática, recolha de dados e discussão de resultados. Trata-se de
estudo de caso que exprime os sentimentos e emoções das populações
sobre a guerra que abalou o distrito.
Quanto a abordagem é de natureza qualitativa visto que descreve o
drama vivida pelas populações durante o conflito armado. A entrevistas
estruturadas e semi-estruturadas aos sujeitos, observação directa e
indirecta possibilitou a recolha de dados, manter contacto com antigos
militares e guerrilheiros, localizar as antigas bases e fotografar a vala
comum. A guerra civil afectou os modos de vida das pessoas,
desenraizando as suas práticas costumeiras e impossibilitando o acesso
aos recursos vitais como a água, a terra para o cultivo, o extractivismo
vegetal, colocando-as numa situação de vulnerabilidade e de riscos.
As consequências da guerra são evidentes, devido a várias
complicações de saúde, traumas e sequelas, aliada a estigma e
discriminação resultado das mutilações e amputações dos seus
membros durante a guerra. Homoíne ficou sobejamente conhecido
quando no dia 18 de Julho de 1987, pelas 5 horas da manhã os
guerrilheiros da RENAMO protagonização um assalto à vila,
massacrando pouca mais de 424 pessoas que se encontravam nas
varandas das lojas, nas cabanas que acolhiam os deslocados, instaladas
nos bairros mais próximos da vila incluindo as que acordavam de
manhã para as suas machambas nas antigas aldeias abandonada. O
capítulo está estruturado da seguinte forma: primeira, busca trazer ao
leitor um entendimento sobre aspectos da dinâmica social da guerra;
segunda, sobreviventes da guerra de Homoíne; terceira, principais
zonas de influência do conflito armado em Homoíne; quarta, manobra
militar e abertura de trincheiras e, apresenta a conclusão.

1. Processos metodológicos

No que respeita a natureza da pesquisa é básica visto que


objectiva gerar conhecimentos novos, úteis para o desenvolvimento da
ciência, sem nenhuma aplicação prática prevista. Associa-se também à

100
Armindo Armando, Jane Alexandre Mutsuque & Pedrito Carlos Chiposse Cambrão
(Org.)

pesquisa exploratória, para Garcia (2015), a pesquisa exploratória busca


se familiarizar com os fenómenos surgidos durante a pesquisa,
explorando os próximos passos mais profundamente e com maior
precisão. Neste caso, foi assente o levantamento bibliográfico que
sustenta a fundamentação teórica, análise de material bibliográfico já
publicado tais como: Geffray (1991) 1; Nilsson (2001) 2; Porcelli (2008) 3
e Cunha (2019) 4. Como técnicas e instrumentos de recolha de dados,
o estudo baseou-se na observação (directa/indirecta); Entrevista
(estruturada e semi-estruturada, reuniões com sujeitos sociais). Neste
caso, permitiu fotografar na vala comum, observar as ruínas de infra-
estruturas como casas, lojas, hospitais e escolas destruídas e o
respectivo levantamento, mapeamento das principais antigas bases da
RENAMO distribuídas nas localidades de Nhaulane e Pembe.
Zanella (2013) refere que, as técnicas de colecta de dados mais
utilizadas no método qualitativo de pesquisa são a entrevista e a
observação. No entanto, a análise documental, bem como a história de
vida, a história oral e o registo das informações no diário de campo são
também empregados nessa abordagem.
No universo de oito localidades (Manhica, Chinjinguir, Golo,
Inhamússua, Mubécua, Chizapela, Pembe e Nhaulane), extraiu-se
quatro localidades através da amostra por conveniência, em paralelo
com amostragem não probabilista. Quanto a abordagem é
fenomenológica, pois, descreve as narrativas dos sujeitos sociais que
vivenciaram a drama da guerra em Homoíne. A pesquisa analítica
envolve o estudo e avaliação aprofundados de informações disponíveis
na tentativa de explicar o contexto de Guerra Civil. Neste caso, elas
podem ser categorizadas em histórica, revisão, sentimentos e emoções
sobre a dinâmica social no contexto da guerra.

1 As causadas das armas; antropologia da guerra contemporânea em Moçambique.


2 Paz na nossa Época. Para uma compreensão holística de conflitos na sociedade
mundial.
3 Apontamentos históricos1911-2003 de Homoíne.
4Territórios em conflito estudo de caso: cabo delgado (Moçambique).

101
Ciências Sociais e Desenvolvimento Humano em Moçambique:
produção, circulação e limitações

1.1 Enquadramento geográfico

O Distrito de Homoíne localiza-se a Oeste da Cidade de


Inhambane, capital provincial e faz limite administrativo a Norte
encontramos o Distrito de Morrumbene, a Sul o Distrito de Jangamo,
a Este o Distrito de Maxixe e a Oeste o Distritos de Panda (Mapa 1).

Mapa 1: Localização do Distrito de Homoíne

Fonte: Hilário (2022)

102
Armindo Armando, Jane Alexandre Mutsuque & Pedrito Carlos Chiposse Cambrão
(Org.)

A população do Distrito de Homoíne no período de 1982-1992


era de aproximadamente 95000 habitantes. Em toda a região
encontram-se à mistura três grupos nativos predominantes: o mutswa,
o machope e o bitonga. O bitonga veio do litoral, o machope de Manjacaze
e Inharrime, e o mutswaveio com o Gungunhana e associou-se com ele
e suas tropas, estendendo-se até Mambone (Porcelli, 2008). A
População do Distrito é de origem bantu, maioritariamente falante de
xitswa, uma língua da etnia tsonga. Em Homoíne a agricultura familiar
é a actividade dominante (cultivos, criação de animais e extractivismo
vegetal) envolvendo quase todos os agregados familiares.
Assim, Xitswa representa a maioria da população (80%) pertence
às Localidades Manhica, Golo, Chizapela, Mubécua e Nhaulane. Os
Guitonga que correspondem a 10% encontram-se na Localidade de
Inhamússua e os Chope, com a mesma proporção populacional,
residem no Posto Administrativo de Pembe. A área de estudo, na sua
composição topográfica apresenta uma planície de origem de
acumulação feita pelo vento, com formas mais elevadas e formas
negativas (depressão), porém, sem grandes expressões de altitude.
Existem no distrito os seguintes rios: o Domo-Domo e o Inhanombe
correm para o distrito de Morrumbene e os rios Inhaliave e
Inhamiguitenge correm para o Distrito de Panda. Segundo MICOA
(2012), os rios que atravessam o distrito apresentam regime sazonal,
ou seja, têm água corrente durante a estação das chuvas. As duas
principais lagoas do distrito são as Lagoas de Pembe e Nhavarre.
O distrito de Homoíne é constituído por diferentes tipos de
formação vegetal, em resultado das grandes diferenças de geologia,
latitude, clima (temperatura e precipitação) que caracterizam o aspecto
físico geográfico.

2. Referencial teórico

Contextualizando a guerra Cunha (2019) considera que as guerras,


tanto a de libertação quanto a dos 16 anos, que se seguiu à
independência, e os anos de conflito político-militar foram responsáveis

103
Ciências Sociais e Desenvolvimento Humano em Moçambique:
produção, circulação e limitações

por enormes fluxos migratórios de pessoas em fuga ou obrigadas a


abandonar as suas machambas, os seus rios, os cemitérios, as casas, as
suas árvores, os seus ancestrais, com todos os traumas e perdas que isso
implica. Como consequência da guerra, Nilsson (2001) afirma que, nas
zonas rurais, a matança e a mutilação de civis contribuiu para o
surgimento de milhões de refugiados, tanto no país como além
fronteiras. Esta violência tinha um objectivo social e, nas suas mais
extremas formas traduzia-se em massacres de civis 5associado aos efeitos
da guerra, Bergh (2009) sublinha que a guerra agudizou a fome,
malnutrição e doenças, destruiu infra-estruturas importantes (pontes,
estradas, escolas e hospitais) tornando Moçambique num dos Estados
mais pobres do mundo, durante a década de 1980 e início de 1990.
Este avanço impetuoso da guerra, a destruição e paralisação
sistemática das fracas infra-estruturas socioeconómicas causaram na
população a maioria das apreensões e criaram um denso clima de
insegurança, sobretudo devido a fraca capacidade de resposta
manifestada inicialmente pelas forças de defesa e segurança da
FRELIMO (Porcelli, 2008).
Segundo Porcelli (2008), a fome foi um segundo flagelo que
atingiu gravemente toda a população. A fome veio de duas causas:

1. Veio da guerra pela paralisação ou mesmo destruição das


infra-estruturas. Lojas fechadas, estradas inoperacionais,
circulação só a pé em certos casos.
2. A fome veio também da seca. O ano de 1982 foi fraco em
colheita. Já se perderam as culturas de feijão e de milho, a
maior parte das de mandioca e muitas de arroz. Deste
modo, esta seca será catastrófica em 1983.

5 A ONU, estimou que, directa ou indirectamente perderam a vida cerca de um

milhão de pessoas devido à guerra em Moçambique. Esta estimativa foi confirmada


pelo primeiro censo pois guerra, o qual deu uma população total de 15 milhões. Mais
de dois milhões a menos das estimativas baseadas no censo de 1980.

104
Armindo Armando, Jane Alexandre Mutsuque & Pedrito Carlos Chiposse Cambrão
(Org.)

Durante a guerra as pessoas estavam confinadas num lugar só


com limitações para praticar a agricultura. Os lugares aráveis estavam
minados, ou eram bases da RENAMO. Os lagos e lagoas para pesca,
os lugares para caça eram todos perigosos uma vez que são apetecíveis
como fonte de sobrevivência tanto para a população assim como as
duas forças em conflito.
Com uma arbitrariedade espantosa prendiam, roubavam,
espancavam e em muitos casos matavam barbaramente essas pessoas
que mostravam resistência. Também do lado das forças populares o
comportamento não foi muito louvável (Porcelli, 2008). ‫״‬Temos
conhecimento pessoal de homens tidos como colaboradores dos
guerrilheiros que foram fuzilados sumariamente sem qualquer
julgamento‫( ״‬Porcelli, 2008, p.151). O autor considera que, com o
evoluir da situação e das consequências económico-sociais que a guerra
trouxe, veio ao de cima uma certa indisponibilização, de repulsa
mesmo por toda a actividade dos guerrilheiros, e esta repulsa não era
muito clara ao princípio. A miséria e a violação indiscriminada, a
sabotagem desenfreada, a captura sistemática de homens validos para
engrossar as fileiras dos guerrilheiros, reforçam progressivamente
contra eles uma manifesta hostilidade.
Esses actos incluem o assassinato de membros do grupo,
qualquer dano grave à sua integridade física ou mental, a submissão
desses membros a condições de existência que proporcionem sua
destruição física, total ou parcial, qualquer acto que impeça os
nascimentos dentro desse grupo e a transferência forçada de menores
desse grupo a outro (Lemkin, 1944, p.79). Em termos gerais Lemkin
(1944) refere que, o genocídio não significa necessariamente a imediata
destruição de uma nação, excepto quando realizada mediante o
assassinato em massa de todos os membros de uma nação. O
genocídio e o belicismo são dirigidos contra o grupo nacional como
entidade, e as acções envolvidas são dirigidas contra os indivíduos, não
em sua capacidade individual, mas como membros do grupo nacional.
Para Nilsson (2001) os belicistas usam as armas que são instrumentos

105
Ciências Sociais e Desenvolvimento Humano em Moçambique:
produção, circulação e limitações

de combate e que podem ter diversas categorias arma de choque,


mísseis, foguete, canhão, rifle, pistola.
Brito (2014) considera que, a tensão político-militar testemunha
a falta de adequação das instituições políticas existentes na garantia de
uma gestão pacífica das diferenças e dos conflitos inerentes a qualquer
sociedade e seus atores políticos, ou seja: a incapacidade dos
protagonistas construir consensualmente as regras de convivência
democrática. Descreve Eusébio (2018) que, no caso da província de
Inhambane, dados do Instituto Nacional de Gestão de Calamidades
(INGC) indicam que a movimentação dos guerrilheiros da Renamo
naquela província obrigou, também por medo e incerteza, ao
deslocamento compulsório de 1.228 famílias somente no Distrito de
Homoíne, província de Inhambane, região sul de Moçambique, que
foram acolhidas no centro de reassentamento de Chinjinguir, no
mesmo Distrito. Os deslocados internos surgem nos trilhos dos
conflitos internos ou regionais que têm grassado em quase todos os
continentes, desde o final da guerra-fria. O mesmo contexto
“provocou o abandono das zonas rurais pelas populações e a sua
deslocação em direcção aos centros urbanos e países vizinhos,
perdendo deste modo os seus bens, incluindo habitações” 6.
Afirma Hashimoto (2003) que, para o caso dos deslocados
internos existem quatro razões para eles se movimentarem causado
pelo conflito armado, situações de violência generalizada, violação dos
direitos humanos e desastres naturais ou causados pelo homem - para
alguém ser qualificado de refugiado tem de, para além de atravessar a
fronteira para outro país, provar um medo bem fundamentado de
perseguição. Esta perseguição tem de encaixar em pelo menos um dos
seguintes invólucros: perseguição por raça, religião, nacionalidade,
pertença a um determinado grupo social ou afiliação a determinada
opinião política. O Autor refere que, numa altura em que cada vez mais
pessoas são obrigadas a abandonar as suas casas devido aos factores

6 O recrutamento da mão-de-obra moçambicana para a mineração na RSA foi


formalizado em 1901 (Ferreira, 1963p. 67).

106
Armindo Armando, Jane Alexandre Mutsuque & Pedrito Carlos Chiposse Cambrão
(Org.)

económicos, instabilidade política, social ou climática, consideramos


que o seu regresso às regiões de origem constitui um passo
fundamental para recuperarem a sua história e dignidade e, por
consequência, começarem a construir o desenvolvimento local.

3. Apresentação de resultados

Durante a pesquisa dos factos, possibilitou o acesso a um


conjunto de narrativas que não só explicava o sucedido, como também,
contribuiu para a construção de uma narrativa formal sobre a guerra
civil e, em especialmente o massacre de 1987 na Vila. Dos resultados
foi constatado que, são motivações políticas e pessoais, aliado ao ódio
e estratégias de sobrevivência que abriram espaço para a eclosão da
guerra civil em Homoíne. Tratava-se de guerra de desestabilização
contra as políticas comunistas do governo da FRELIMO,
ostensivamente apoiada pelo estrangeiro, com a RENAMO a praticar,
como estratégia primária, uma campanha de terror contra as
populações rurais utilizando a táctica de guerrilha para sabotar infra-
estruturas públicas e privadas, um autêntico genocídio e belicismo.
As emboscadas feitas (nos troços Homoine Panda, Homoine
Maxixe, Lindela e Chinjinguir eram altamente mortíferos) tinham em
vista o assalto e saque de bens de uso e consumo transportados pelos
veículos em tráfego nos diversos sentidos. O assalto era acompanhado
pelo incêndio de viaturas, incluindo mortes de humanos. A emboscada
de assalto geralmente era feita pelos homens da RENAMO utilizando
fogo, pela acção física directa contra militares e civis ou por ambos
com intenção de inquietar, obter suprimentos, causar baixas etc. A
distribuição dos sectores de tiro era a forma mais utilizada agindo com
o máximo de violência e rapidez.

3.1 Aspectos da dinâmica social da guerra

Os guerrilheiros da RENAMO quando alcançaram o distrito,


concretamente na Localidade de Pembe em 1982, cinicamente não se

107
Ciências Sociais e Desenvolvimento Humano em Moçambique:
produção, circulação e limitações

interessavam em assassinar as populações. Porém, adoptaram como


estratégias identificar o grupo alvo, refiro as famílias mais notáveis
(grupo de dinamizadores, secretários do partido FRELIMO e
milicianos) ao nível da localidade e que foram alvos de morticínio,
despertando deste modo as intenções maléficas dos matsangas 7. Diziam
os entrevistados que com a perseguição às figuras de relevo, marca o
acentuar de um verdadeiro saque às populações do interior, roubo de
gado, pilhagem de celeiros e outros bens de uso imediato que julgassem
necessários. Daí, as populações do interior das localidades de Mubécua
(Inhaxoxo, Canhavano, Pinzula, Marange, Maiaice) Pembe (Vavati,
Quemanhane, Benhane, Sefane, Macohane, Zacanhe, Como, Catine,
Macauleze) e Nhaulene (Moculuane, Maxamale, Punguene, Zimane,
Nhavarre, Chirenguete, Fanha-fanha), deslocaram-se para zonas
consideradas seguras.
Os guerrilheiros da RENAMO tiveram o cuidado de destruir
apenas as habitações nas aldeias e encorajar as populações de volta as
suas origens, onde os seus bens e a sua integridade física seriam
preservados. Seguidamente, matavam de forma selectiva e sistemática
os novos notáveis aldeãos do regime, esforçando-se por ganhar para a
sua causa as autoridades linhageiras e das autoridades tradicionais
locais, para depois as investir de novas responsabilidades (Geffrey,
1991, p.24). Por um lado, devido ao nível de violência perpetuada pelos
matsangas, criava-se espaços despovoados nas regiões do interior
distrito, em que a tropa do governo montava postos avançados para
fazer face a situação. Por outro, nem todas populações conseguiam
fugir, existia as mais topofilícas 8 e agarradas aos bens associados ao
desconhecimento da acção maléfica da guerra, pensava-se que a guerra

7 Matsangas nome atribuído aos guerrilheiros da RENAMO. Vulgos matsangas em


homenagem a um dos fundadores e primeiro comandante do movimento, André
Matsangaísse. “[…] que foi morto por tropas moçambicanas num abortado ataque a
uma pequena vila rural, Vila Gorongosa, 17 de Outubro de 1979 (Nilsson, 2001, p.
58)”.
8 Afecto com o seu meio ambiente natural, paisagem, suas árvores, suas campas e sua

tradição.

108
Armindo Armando, Jane Alexandre Mutsuque & Pedrito Carlos Chiposse Cambrão
(Org.)

ia pela razão, não matavam os que não tinham culpa, iam tentando
resistir mas entre estes uns foram mortos e outros capturados para
engrossar as fileiras dos matsangas e outros acabaram fugindo.
Enquanto a guerra se alastrava, nem as zonas consideradas
seguras já não havia segurança, as pessoas foram-se deslocando para
outros destinos da vila ou atravessar o rio Inhanombe para outros
distritos. A desgraça provocada pela guerra, o êxodo rural e falta de
recursos financeiros, agudizou a vulnerabilidade das mulheres e
crianças do distrito desde a eclosão do conflito armado. Segundo
Bergh (2009), cada casa de caniço abrigava grandes famílias que tinham
fugido do campo para a cidade, muitas vezes 15 pessoas em dois
quartos, a maioria sustentadas por famílias chefiadas por mulheres
também atingidas pela pobreza. Grandes acampamentos eram o abrigo
de milhares de deslocados.
As primeiras aldeias para acomodar os refugiados foram criadas
na sede da localidade de Chinjinguir e povoado de Marrengo que passou
a receber milhares de pessoas vindo do interior do Distrito. Tempos
depois, foi criada a aldeia de Inhamússua. Quando os guerrilheiros
alcançaram o Distrito em 1982, na localidade de Pembe, encontraram
um ambiente favorável para se estabelecer, devido a fragilidade
justificada pela influência de conflitos internos dos líderes: tradicional
(herdeiro conforme a linhagem familiar), por um lado, ausência do
governo liderado pela FRELIMO após a independência, para fazer face
aos desafios que se impunham, já que as populações estavam sujeitas à
pior nudez, miséria e à fome por outro, facilitou o estabelecimento e
aceitação dos guerrilheiros da RENAMO neste Distrito.
Para Passador (2012), foi a implantação de políticas estatais que
acabaram por manter a marginalidade das populações rurais, através
principalmente da implantação do projecto de aldeias comunais, que
destituíram e/ou subordinaram as autoridades tradicionais à
administração de funcionários não definidos pelas formas de
institucionalização tradicionais do poder – no caso, o princípio
linhageiro. Para Nilsson (2001), em Pembe é evidente que mágoas

109
Ciências Sociais e Desenvolvimento Humano em Moçambique:
produção, circulação e limitações

locais com raízes históricas profundas jogaram um papel decisivo na


penetração e mobilização local inicial da RENAMO.
Foi no período em que a Vila de Homoíne começou a sentir a
presença dos guerrilheiros da RENAMO quando estes alcançaram no
mês de Maio de 1982 a parte comercial, saquearam lojas, bares, padaria,
queimaram viaturas e raptaram jovens para ajudar no carregamento
dos produtos do saque. Apoderaram-se também dos animais que
encontravam, bois, cabritos e burros, que serviam como meio de
transporte para o carregamento de bens roubados.
Em 1985, a Vila Sede começa a receber muitas populações vindo
das zonas do interior (Catine, Benhane, Sefane, Vavati e Macauleze)
onde os níveis de violência eram demasiados. Estima-se pouco mais de
8500 deslocados, vindos do interior das localidades de Nhaulane e
Pembe, situadas a cerca de 34 km da Vila Sede, localidades que foram
consideradas como bastião da RENAMO, visto que, as principais
bases foram instaladas nos povoados pertencentes as estas localidades.
As matanças associaram-se ao massacre ocorrido na manhã do
dia 18 de Julho de 1987, onde foram ceifadas 424 vidas humanas num
dia. “Destes, 186 homens, 156 mulheres e 44 crianças, junta-se aos não
identificados em número de 38 corpos” (Macedo, 2015). Os corpos
encontram se depositados na vala comum (Imagem 1).

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Armindo Armando, Jane Alexandre Mutsuque & Pedrito Carlos Chiposse Cambrão
(Org.)

Imagem 1: Representa (A) a placa que ilustra a vala comum e a figura (B)
representa túmulos que jazem mais de 424 corpos vítimas de massacre de
Homoíne

Fonte: Hilário (2022)

111
Ciências Sociais e Desenvolvimento Humano em Moçambique:
produção, circulação e limitações

O Distrito entrou na história sobre a violência e matanças do


país devido ao massacre de 1987, quando os seus habitantes foram
mortos durante a ocupação da mesma, por um dia, pelos guerrilheiros
da RENAMO. Foi na manhã do dia 18 de Julho pela 5h 45min de
madrugada quando os homens armados empunhados de armas de
guerra, invadiram o Vila Sede, disparando em três direcções (Sul, Norte
e Oeste) contra as populações que se encontravam refugiados na Vila
de Homoíne. Segundo Macedo (2015), por volta das 10 horas da
manhã, muitas pessoas que haviam fugido, resolveram voltar por
imaginarem que o ataque havia terminado. Estas pessoas foram
surpreendidas pela continuidade do conflito, que se estendeu até ao
hospital na vila, onde muitas mulheres grávidas, crianças e idosos
foram mortos.
A segunda metade de 1987 foi um período de repetidos
massacres de civis 9 em ataques a pequenas vilas e ao longo da estrada
nacional número um (Nilsson, 2001, p. 90). Depois da independência
nacional, a vila não tinha a protecção militar a alteza, compreendia
simplesmente uma secção de milicianos, afectos na vila, e antigos
combatentes na localidade de Chinjinguir, a uma distância de sete km
para o sudoeste da vila. Tempos depois, na tarde do mesmo dia, os
militares que se encontram na vila receberam o reforço com mais de
1000 Homens vindo da Província de Inhambane, numa altura em que
a força inimiga já havia se retirado da Vila Sede depois de ter logrado
os seus intentos.
As populações que madrugavam pelas manhas na busca de
sustento nas aldeias abandonadas, por vezes eram surpreendidas pelos
guerrilheiros e raptados para suas bases ou mesmo mortas a pauladas,
jogadas nas matas para não despertar atenção ao demais. No dia 19 de
Julho de 1987, a Vila Sede se encontrava repleto de corpos espalhados
em todas as ruas. O Governo do distrito mobilizou as populações para

9Homoíne, 424 mortos a 18 de Julho; Manjacaze, 92 mortos a 10 de Agosto, Inharrime,


9 mortos a 18 de Agosto; Taninga, 53 mortos a 16 de Outubro; Taninga, 278 mortos a
29 de Outubro; Maluane, 71 mortos a 18 de Novembro (Nilsson, 2001, p. 90).

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Armindo Armando, Jane Alexandre Mutsuque & Pedrito Carlos Chiposse Cambrão
(Org.)

remoção de corpos, uns para o hospital e outros reclamados pelas


famílias. Com ajuda de um agente económico sediado no Distrito
disponibilizou uma viatura e um tractor para levar os corpos à Vala
Comum localizada ao lado do cemitério Distrital.
Os familiares e Governo empunhados de pás, enxadas e catanas,
abriram a vala onde foram depositados os corpos vítimas de massacre.
Antes do enterro, os corpos foram enrolados dentro de cobertor e
sobrepunham um encima de outro na Vala Comum. Macedo (2015)
considera que, o ataque em Homoíne foi financiado com materiais
bélicos fornecidos pelas forças de defesa Sul-Africanas (SADF). Com
o apoio em material de guerra os guerrilheiros encetavam uma incursão
com objectivo de atingir vários povoados e instalar novas bases, como
descreviam os antigos combatentes.
Os sobreviventes afirmaram que encontram se com sequelas
psicológicas irreparáveis por terem perdido as suas famílias no maior
massacre da guerra civil. Para os sobreviventes os fenómenos como a
fome, a pobreza e o desemprego não podem justificar a forma sem
precedentes como os bens públicos foram vandalizados e furtados,
atendendo que, muitas vezes, acabam simplesmente destruídos,
deixando claramente a entender alguma agenda sustentada pela
estratégia de ódio e espírito de vingança.

4. Fluxograma da Trajectória dos Deslocados de Guerra

Das entrevistas e observações feitas durante o trabalho de


campo, foi possível elaborar um fluxograma de trajectória dos
deslocados de guerra no distrito (figura 1).

113
Ciências Sociais e Desenvolvimento Humano em Moçambique:
produção, circulação e limitações

Figura 1: Trajectórias dos deslocados de guerra

Fonte: Adaptado a partir do trabalho do campo (2022)

A mudança para as aldeias criadas para acomodar os deslocados,


significava que os camponeses estavam mais longe das suas
machambas do que antes. Por isso, algumas famílias abandonaram as
aldeias a procura de lugares para actividade agrícola. As populações que
abandonaram as suas zonas tradicionais, para outras de acolhimentos
agudizavam o problema de conflitos étnicos, criminalidade, fome,
tensões sociais, escassez de serviços sociais e de segurança, custo de
vida e desemprego. Esta mobilidade compulsiva provocou abandono
completo das áreas de cultivo, caça, pesca, residência, entre outras
formas de uso e aproveitamento da terra, tornando os lugares de saída
autênticos vazios demográficos.
Os entrevistados foram unânimes em afirmar que, abandonavam
as suas casas para esconder-se nas matas, por vezes carregados nas

114
Armindo Armando, Jane Alexandre Mutsuque & Pedrito Carlos Chiposse Cambrão
(Org.)

costas e braços os seus filhos em quanto outros fixavam as cabanas


nos lugares considerados seguro como são os casos da Vila Sede,
Chinjinguir, Pamuane, Bembe, Chitata, Golo, e Zualo, até mesmo para
os distritos circunvizinhos designadamente Maxixe, Morrumbene,
Panda, Jangamo e Cidade de Inhambane. Quando amanhecia voltavam
para suas aldeias onde tinham as suas machambas, gado, cemitérios e
árvores tradicionais, e só retornávamos à vila no fim do dia, onde
estavam instaladas as cabanas só para dormir.Foi neste período em que
as organizações de assistência humanitárias como são os casos do
PMA, FAO, UNESCO, passaram a ganhar relevância a partir da
década de 80, com apoio de milhares de refugiados distribuídos em
pequenas aldeias situadas nas localidades de Manhiça ”A“ Chinjinguir,
Inhamússua e Golo.
Durante a guerra civil em Homoíne, parte da sua população
residente nas regiões com veemente combate, abandonaram as suas
machambas, seu gado, seus pertences que serviam como fonte de
rendimentos das famílias, principalmente nas zonas do interior,
acelerando desta maneira, o drama de fome que a bastante tempo
sufocava as famílias. Ao nível das localidades e povoações existiam
‫״‬traidores/desertores‫ ״‬que facultavam informações ao inimigo
evidenciado pelas perseguições e mortes de figuras de reconhecido
mérito (liderança local, secretários do partido FRELIMO, grupo
dinamizadores e milicianos) ao nível das comunidades.
Nas aldeias, junto aos comandos da força governamental, não só
recebiam apoio de produtos da primeira necessidade como feijão,
milho, leite, óleo, mas também praticavam agricultura familiar centrada
nos seguintes produtos: mandioca, batata-doce, milho, amendoim,
feijão e castanha de cajú. Na actividade pecuária, a comunidade criava
gado ovino, bovino, caprino e algumas aves como galinhas, patos e
perus. Todavia, Geffray (1991) refere que, o êxodo das populações das
zonas de contacto entre os dois exércitos efectuou-se por todo o lado.
Assim, uma faixa do território, atingindo por vezes a largura de uma
dezena de quilómetros, encontrava-se completamente abandonada

115
Ciências Sociais e Desenvolvimento Humano em Moçambique:
produção, circulação e limitações

pelos seus antigos habitantes. Nas aldeias desabitadas, os guerrilheiros


da Renamo saqueavam celeiros de milho, feijão, mapira, tapioca por
outro lado, furtavam o gado caprino, ovino e bovino e, animais de
pequeno portem como galinhas, patos, perus.
O objectivo de desestabilização pela RENAMO incluía a
destruição de edifícios em algumas localidades e ou povoados, por
exemplo: a Maternidade de Pembe, Lojas de Pembe queimadas, Escola
Primaria de Zacanhe, Escola Primaria de Marrula, Escola Primaria de
Benhane, Escola Primaria de Pembe, Escola Primaria da Catine e
Escola Primaria de Macauleze. Na vila sede foi destruído o Centro de
Saude da Missão da Igreja Católica, Centro de Saúde Distrital, Escolas
Primarias e edifício da antiga Wenela. A guerra foi intensa e
devastadora a partir de 1987 até 1991. As famílias que permaneciam
nas zonas de conflitos em condições precárias, eram encaradas com
muita suspeita tanto pelas autoridades como pelos militares, por vezes
deparados com patrulhamento e levados à força para o campo de
deslocado na vila, colocadas em isolamento do resto da família e
submetido ao questionamento do SNASP 10 de modo a aferir o real
envolvimento.
O SNASP foi um serviço paramilitar e de inteligência do
governo que funcionava na vila desde a independência em 1975 até
1991, momento em que foi substituído pelo Serviço de Informações e
Segurança do Estado (SISE). A instituição funcionava como tribunal
para julgar todos os capturados durante o combate e que pertenciam à
RENAMO, bem como os regressados sob sua alçada. Igualmente
SNASP julgava os militares e milicianos que perdiam armamento e
considerados desertores e/ou traidores. Foram presos também os
acusados de espionagem ou por sua participação activa nos
movimentos dos bandidos armados.

10 Serviços Nacionais de Segurança Popular.

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Armindo Armando, Jane Alexandre Mutsuque & Pedrito Carlos Chiposse Cambrão
(Org.)

4.1 Principais zonas de influência do conflito armado em


Homoíne

Partindo de Agerback (1996), Nilsson (2001) e Vilanculos (2011)


é possível afirmar que a guerra civil que assolou Homoíne foi um
conflito armado entre grupos armados da mesma nação. Neste caso, a
guerra civil moçambicana dos dezasseis anos envolveu a RENAMO e
FRELIMO que assumiam diferenças irreconciliáveis desde suas
géneses. Essas diferenças foram motivadas pela insatisfação socialista
marxista por parte da RENAMO, que havia sido adoptado pelo
governo da FRELIMO após a independência nacional. Quer dizer,
uma das motivações alegadas pela RENAMO para início da guerra era
o processo de Aldeamentos comunais e machambas colectivas que
representavam áreas geográficas destinadas a aglutinar pessoas que
residiam nas áreas rurais.
Assim, a RENAMO encontrou na violência civil uma forma
contínua e integrada de coagir o governo no poder abandonar a sua
política de socialização do campo através das aldeias comunais
e machambas estatais. Dentre as formas de violência civil adoptadas
pela RENAMO destaca-se a guerrilha baseada nos ataques, assaltos,
incêndios, mortes, amputações de órgãos corporais das pessoas
inclusive genocídio11 e belicismo como actos cometidos com a
intenção de destruir a nação incluindo o assassinato de simpatizantes
da Frelimo. Antes de atacar a vila incendiaram um machimbombo de
passageiros, com destino a Lindela, seguidamente invadiram a zona
comercial, em especial o bar dum comerciante indiano, Sr. Harlal, que
actualmente faz parte da padaria Suleimane; destruíram as montras e
saquearam as lojas;

11A palavra genocídio vem da junção dos termos: gênios (grega) que significa raça,
povo, tribo, grupo, nação com a palavra caedere (latim) que quer dizer destruição,
aniquilamento, ruína, matança etc. (Lemkin, 1944).

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Ciências Sociais e Desenvolvimento Humano em Moçambique:
produção, circulação e limitações

Segundos os entrevistados 12 foram unânimes em afirmar que, no


dia 9 de setembro de 1982, em Fanha-fanha a 20 km da vila para oeste
travou-se um combate entre os guerrilheiros da RENAMO e da
FRELIMO, já no dia 9 de Novembro de 1982, registou-se novamente
uma outra batalha na vila sede liderada pelo comandante Gazankulo
pertencente as forças governamentais e na parte da RENAMO pelo
Malimpatudo, numa encruzilhada de armamento pesado de destruição
maciça.
Sublinharam os sujeitos sociais 13que, a artilharia pesada utilizada
destaca-se B10 e B11, bazuca e morteiro, um armamento que pode
atingir um raio de alcance estimado em quilómetros, dependendo das
condições de temperatura e da pessoa que as operam, variam de 10 a
12000 mil metros, com cadência de tiro de até 25 projécteis por minuto
com um alcance de 700/800 metros em ângulo de tiro de 45º a 75º.
Existe grande variedade de projécteis, desde os de auto explosivo aos
destinados à iluminação do campo de batalha, os quais contam com
um pára-quedas, accionado no início da parte descendente de sua
trajectória e contendo magnésio, o qual acende automaticamente o
provê iluminação. A dimensão de destruição dos tiros de
metralhadoras, obuses e estilhaços por onde passam e caiem é bastante
danosa para as populações.
Com a localização das bases da RENAMO no interior das
localidades de Pembe e Nhaulane, foi uma estratégia encontrada para
influenciar as populações que ainda se encontravam nas suas aldeias e
fazer se presente nos lugares estratégicos do distrito (Vide a Imagem 2).

12 Antigos Combatentes (José Manuel, Passado J. Gujamo, Francismo Rafael Vuma,


José Moséis) pertenciam a força governamental e estiveram no teatro operacional em
Homoine.
13 Actuais Líderes tradicionais dos povoados de Mocumba, Guilaze, Macassa e

Ussapa, foram antigos combatentes, estiverem no teatro operacional em Homoine.

118
Imagem 2: Localização das bases militares da RENAMO no distrito de Homoíne

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(Org.)
Armindo Armando, Jane Alexandre Mutsuque & Pedrito Carlos Chiposse Cambrão

Fonte: Hilário (2022)


Ciências Sociais e Desenvolvimento Humano em Moçambique:
produção, circulação e limitações

Esta imagem mostra o nível de coesão das bases da RENAMO


e o possível impacto ao nível social, económico e político. As
populações residentes nos povoados estavam sujeitas ao risco e
vulnerabilidade causados pelos confrontos, as ameaças e extorsão que
eram sujeitas. Para Bergh (2009), no decurso de uma década, a guerra
tinha reduzido Moçambique a destroços. Em 1992, mais de um milhão de
pessoas tinha morrido e mais de cinco milhões tinha procurado refúgio
em países vizinhos ou próximo das relativamente seguras cidades.
A estratégia dos guerrilheiros da RENAMO era de atacar
pessoas com o objectivo de retirar o apoio ao governo da FRELIMO.
O resultado foi que aldeias, escolas e hospitais eram considerados alvos
legítimos, destruindo as realizações da FRELIMO, criando medo e
trazendo o caos ao país. Segundo Bergh (2009) refere que, embora a
RENAMO ganhasse a reputação de uma extrema brutalidade, também
conseguiu aproveitar-se do descontentamento em relação ao regime da
FRELIMO, especialmente no Norte e no Centro de Moçambique,
onde autoritários governadores da FRELIMO tinham perdido apoio
popular. Sempre que havia necessidade de transportar material de
guerra e mantimento, percorriam dezenas de quilómetros de uma base
para outra, dias e noites, escolhia-se de entre os capturados e raptados
da população civil, quem o fizesse.
Mas nada os impedia de roubar as galinhas, patos, cabras que
consigam apanhar nas ruas desertas duma aldeia incendiada,
encarregando neste caso os prisioneiros, ou os carregadores
requisitados, de levarem esses animais domésticos, promessa de boas
refeições. Roubavam igualmente todos os tecidos, roupas, rádios e
outros produtos de origem urbana que lhes interessem, para si próprios
(Bergh, 2009, p.94). Também eram apreciadas as frutas frescas,
papaias, mangas, bananas e frutos de caju, bem como algumas
guloseimas, milho, castanhas de caju assadas, madokomela, mahumbo,

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Armindo Armando, Jane Alexandre Mutsuque & Pedrito Carlos Chiposse Cambrão
(Org.)

matsajaua, makuakua 14, jambalau (frutos nativa) e cacto para a produção


de bebidas alcoólicas.
Segundo Bergh (2009), as estradas tornaram alvo particular, com
ataques a autocarros, camiões e automóveis com objectivo de saquear
os bens alheios. “Mais ainda, a possibilidade de roubar comida fez com
que outros se juntassem aos ataques, por vezes incluindo soldados
famintos do Governo” (Bergh, 2009, p.24). Havia muita seca na época
de guerra, onde a população estava sujeita não só à guerra, mas também
ao massacre de fome o que levou ao deslocamento da população para
a vila sede onde estava instalado o quartel dos milicianos, mas também
para os distritos de Panda, Morrumbene, Maxixe, Jangamo e
Inhambane.

4.2 Manobra Militar e abertura de trincheiras

Nas proximidades das bases e postos avançados, foram abertas


trincheiras e nichos, onde os militares tomavam posições em caso de
ataque, quando a relação de forças lhes permite encarar serenamente a
hipótese de resistirem. O grupo de dinamizadores mobilizava as
populações para aberturas nas suas aldeias sobre orientação dos
milicianos. Como estratégia, os militares emboscavam o inimigo,
colocando minas nas principais vias que davam acesso as fontes de
água, zona de pasto (devido a roubo de gado) de preferência nas baixas
e nas aldeias comunais, onde agregava um número maior da população.
Os directores das escolas, alunos e população, eram obrigados a apoiar
os militares e milicianos na abertura de trincheiras nos locais
estratégicos de preferência perto das aldeias, escolas e instituições de
serviços sociais, como mecanismo de se defenderem das investidas do
inimigo durante o combate.

14Trata-se de frutos de plantas nativas, são azedas e saborosas quando maduras, é


muito gostado pelas crianças. Prepara-se uma papinha com os frutos frescos, ou
secam-se os frutos para fazer um outro tipo de papinha.

121
Ciências Sociais e Desenvolvimento Humano em Moçambique:
produção, circulação e limitações

Partindo de MDEBCOT (2004), pode-se dizer que uma das


tácticas da guerra civil é a guerrilha operacionalizada por patrulhas de
emboscadas e de assaltos. Nesta perspectiva, os troços Homoíne
Panda, Homoine Maxixe, Lindela e Chinjinguir eram altamente
mortíferos. Os guerrilheiros atacavam por emboscadas á coluna de
carros com escolte militar ou transporte de passageiros e de bens
conduzidos por civis. Denomina-se emboscada ao ataque feito de
surpresa, contra um inimigo em movimento ou temporariamente
parado, desencadeado de posições cobertas, com a finalidade de
destruí-lo, capturá-lo, inquietá-lo ou causar-lhe danos materiais. O
espaço do terreno onde ela é montada denomina-se local de
emboscada. Denomina-se área de destruição, a porção do local de
emboscada onde são concentrados os fogos destinados ao alvo. A
emboscada é altamente eficaz em qualquer tipo de operação por não
exigir a conquista ou manutenção do terreno, permitindo que forças
de pequeno valor destruam forças de maior poder de combate.
Corroborando com o autor, as emboscadas feitas nos troços
tinham em vista o assalto e saque de bens de uso e consumo
transportados pelos veículos em tráfego nos diversos sentidos. O
assalto era acompanhado pelo incêndio de viaturas e da biodiversidade
em torno, incluindo mortes de humanos. A emboscada de assalto
geralmente era feita pelos homens da RENAMO utilizando fogo, pela
acção física directa contra militares e civis ou por ambos com intenção
de inquietar, obter suprimentos, causar baixas etc. A distribuição dos
sectores de tiro era a forma mais utilizada agindo com o máximo de
violência e rapidez.
Os militares cercavam as aldeias, montando em suas redondezas
minas anti-pessoais e anti-grupo que serviam de alerta quando o
inimigo decidisse atacar as aldeias de noite. Constituía também locais
de risco, as áreas com recursos de uso comum nomeadamente: nos
poços de água, no curso dos rios e lagoas, incluindo a mata ciliar 15 para

15 Capim e arbustos que crescem ao longo das margens do rio. Os criadores


aproveitam para pastar o gado no período de estiagem.

122
Armindo Armando, Jane Alexandre Mutsuque & Pedrito Carlos Chiposse Cambrão
(Org.)

o pasto do gado, de forma recorrente constituíam o palanque de


combate entre as duas forças. No contexto de defesa das populações,
a existência do quartel na sede da vila, foi uma das estratégias adoptadas
para salvaguardar as instituições quer públicas (hospitais, escolas, e
toda a máquina administrativa) assim como as privadas (bancas, lojas,
bombas de combustível, etc.
No entender de Geffray (1991) ‫״‬é neste local que os oficiais
distribuem as tarefas a um conjunto de tropas. A medida que
recuperavam determinados povoados, militares e milicianos criavam
postos avançados para o inimigo não voltar a reocupar e inculcar as
comunidades locais a denunciar qualquer movimento estranho na
zona‫״‬. De forma a conservar os mantimentos e proteger o material de
guerra nos postos avançados, os militares abriam covas e enterravam
os produtos alimentares não perecíveis e material bélico que recebiam
do reforço para as companhias.
Os matsangas não permaneciam muito tempo nas bases, durante
a sua excursão arrastavam todas pessoas encontradas no percurso e,
por vezes serviam de carregadores de produtos furtados nas casas e
lojas, percorrendo noites e dias até encontrar lugares consideradas
seguras longe do alcance dos militares. Alguns jovens- recrutas,
particularmente os tímidos ou esquivos são submetidos a este tipo de
baptismo de sangue, como forma de introdução e iniciação ao universo
de violência e morte em que se reconhecem e se fascinam mutuamente
os seus companheiros de armas mais antigos.
Geffray (1991) considera que as mulheres eram companheiras de
guerra submissas, que conservavam consigo e continuavam a cuidar
dos filhos pequenos raptados com elas, da mesma maneira que criavam
os filhos nascidos localmente em resultado das suas obrigações sexuais.
Em todas as sedes das localidades foram instalados postos avançados
da força governamental para defender as populações. Neste caso, os
milicianos eram a força de alerta, provido de capacidade de intervenção
armada perante o inimigo no povoado sob a sua gestão.

123
Ciências Sociais e Desenvolvimento Humano em Moçambique:
produção, circulação e limitações

Considerações finais

O efeito mortífero da guerra por meio de genocídios e belicismo


criou vazios demográficos, destruição, incêndios e saques das aldeias
comunais, das machambas colectivas, de bens de uso e consumo,
forçando a população a migrarem na categoria de deslocados de guerra
assentes na Vila, Cidade da Maxixe, Cidade de Inhambane e outros
lugares que julgavam seguros. Um dos eventos críticos que marcaram
a guerra civil em Moçambique foi o massacre de Homoíne, ocorrido
em 1987 na vila sede daquele distrito do Sul de Moçambique,
permanece até hoje como memória colectiva e exemplar da violência
contra civis no país, que oficialmente é atribuída à RENAMO
A RENAMO era originalmente um grupo mercenário ao serviço
dos interesses da Rodésia, mas transformou-se a partir do momento
em que pôde reproduzir-se apenas na base do seu projecto guerreiro.
Os guerrilheiros da RENAMO tiveram como porta de entrada no
Posto Administrativo de Pembe em 1982, mais tarde se expandiram
para os restos do distrito.
Os objectivos foram alcançados na medida em que a pesquisa faz
uma abordagem dos aspectos da dinâmica social frente à guerra civil e
localizadas as principais áreas de influência dos guerrilheiros da RENAMO.
De igual forma, associou-se também as estratégias ou manobras militares
adoptadas para fazer face as investidas do inimigo. A guerra sucedeu numa
altura em que as populações do distrito de Homoíne estavam divididas.
Nem todas tinham mesma apreciação em relação ao Estado, por razões
históricas muito anteriores à construção do Estado no campo.
Com base nas entrevistas aos sujeitos sociais e confrontos com a
literatura consultada, concluiu-se que o massacre de Homoíne, um dos
marcos da guerra dos 16 anos (1976-1992) entre o governo de
Moçambique e RENAMO, criaram consequências psicológicas e sequelas
irreparáveis. A RENAMO é tida como responsável de grande parte das
actividades violentas que levaram pessoas a procurar refúgio dos países
vizinhos ou em pequenas vilas em Moçambique. De todos os incidentes
de violência e diferentes tipos de abusos atribuíram à RENAMO.

124
Armindo Armando, Jane Alexandre Mutsuque & Pedrito Carlos Chiposse Cambrão
(Org.)

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126
A ACADEMIA MOÇAMBICANA E O IDEÁRIO
INTELECTUAL E POLÍTICO DA DRA. JOANA
SIMIÃO: O CONTINUUM ENTRE O
INGROUP E O OUTGROUP

Dulce Maria Passades Pereira

Introdução

As boas ideias não têm cor partidária. As boas


ideias têm uma única medida, que é o amor pela
nossa pátria e pelo nosso destino comum.
(Filipe Jacinto Nyusi, 2015)

O campo académico moçambicano é por excelência um


verdadeiro campo de ausências e silêncio sobre o ativismo cívico,
político e intelectual da Dra. Joana Simião 1, falamos aqui do campo
académico como espaço de construção do diálogo intelectual,
tolerante e cultural no espaço moçambicano. Se este campo fosse
impactante, poderíamos encontrar um censor da nossa
moçambicanidade a partir dos pontos cardeais indicados pelo debate
académico, e mais do que o debate, sobre a práxis académica em
temas cinzentos e fraturantes da construção da moçambicanidade.
O espelho de uma sociedade é/ou pode ser a partir da
consolidação académica e autonomia académica, o que esta recebe e

1Joana Francisca Fonseca Simião é o seu nome completo. Segundo fontes familiares
da Dra. Joana Simião, a forma correta de escrita é Simião e não Semião.
Ciências Sociais e Desenvolvimento Humano em Moçambique:
produção, circulação e limitações

entrega à sociedade. Os temas que preocupam o contexto social e


comportamental da sociedade moçambicana devem inquietar e
incomodar o espaço académico. Toda a estrutura e conjuntura
cultural, social, política (segurança, paz, eleições, marchas e
manifestações), cultural, económica, psicológica, tecnológica, digital,
feminismo, género, juventude, idosos, infantojuvenis, devem criar um
apetite e uma indagação insaciável no campo académico. Aqui
estamos a pensar em um modelo académico virado para a práxis, um
modelo de ação e não de reação. Uma academia com arquivo, que
procura e dialoga de forma rotineira com o passado, rompendo com
as zonas cinzentas e com os silêncios gritantes.

En ce qui concerne l’intérêt récent de la psychologie sociale


pour la mémoire sociale et/ou collective, il a été tributaire, à
côté des facteurs externes, historiques et scientifiques, d’une
évolution interne de la discipline. D’une part, suite à un
examen critique des travaux menés en psychologie, Neisser
(1978) constatait l’échec des recherches expérimentales
mainstream à rendre compte des phénomènes mnémoniques
dans la vie quotidienne et proposait en 1982 une approche
naturelle et écologique. Il insistait sur l’importance d’étudier
les conditions d’usage et les fonctionnalités de la mémoire
individuelle qui mettent en jeu le rôle de l’environnement
social et culturel. (Jodelet & Haas 2019, 3).

1. Ausência académica do debate sobre à Dra. Joana Simião

Ausência académica ou academia ausente na construção e


consolidação de um debate sobre o pensamento da Dra. Joana
Simião, deve irromper para reflexões sobre as ações seletivas e a
memória seletiva, por um lado, é a autoridade académica que perde
para a autoridade político partidário no espaço académico, por outro
lado. A autoridade político partidária passa a funcionar como uma
agência dentro do espaço académico, condicionando os curricula e
agenda académica. A suposta autoridade académica fica refém do
poder partidário. A liberdade académica passa a ser percebida como
sinónimo de subserviência política no espaço societal. Esta

128
Armindo Armando, Jane Alexandre Mutsuque & Pedrito Carlos Chiposse Cambrão
(Org.)

cumplicidade perturbadora, faz com que a academia seja reativa,


ausente e silenciosa, com receio do poder político, especialmente nas
instituições públicas do ensino superior. Por isso foi normalizado este
silêncio sobre o debate do pensamento político da Dra. Joana Simião.
No lugar de construção de uma agência em torno do seu pensamento,
com linhas de pesquisa, grupos de pesquisa, conferências anuais,
debates, e, claro, inclusão curricular desta pensadora, o que se verifica
é um silêncio seletivo em torno dela nas academias moçambicanas.
Não só dos curricula cúmplices, mas, sobretudo, o da
construção do silêncio sobre os assuntos que corroem e preocupam
a sociedade. Sendo a ausência académica um fenómeno segundo o
qual a sociedade sente-se órfã ou a margem das academias, enquanto,
academia ausente é uma práxis comum nas academias que abraçam
e exultam o silêncio, optando por fazer menor soído possível. Em
ambos os modelos o denominador comum é o silêncio e o numerador
é a epistemologia académica da injustiça. Transformando o espaço
académico num lugar de culto da injustiça epistemológica.
A ausência académica tem um custo e um preço, hoje falamos
muito sobre a necessidade de tolerar o outro, sobre a tolerância e
intolerância, sobre a paz, sobre a reconciliação, sobre o perdão, sobre
o sectarismo, sobre a violência, sobre as atitudes de estigma, os
estereótipos e a discriminação dos que pensam diferente. Estes temas
não são de hoje, mas porque não aceitamos falar sobre o passado
recente somos condenados a revivê-los.
Precisamos de pequenas mudanças académicas que nos irão
colocar cada vez mais no centro das questões nevrálgicas da
sociedade, por meio da passagem do nível de heteronomia para o
nível da autonomia, uma autonomia com práxis. Saindo da academia
ausente para uma academia presente e mais impactante.
Academia presente seria aquela que abraça a arte de debater, de
refletir e de curricular os temas do silêncio, por meio de conferências,
linhas de pesquisas, grupos de pesquisas, doutoramentos de pesquisas
sobre estas temáticas.

129
Ciências Sociais e Desenvolvimento Humano em Moçambique:
produção, circulação e limitações

Mais ce sont des circonstances plus précises qui nous ont


conduits à nous intéresser à un concept et à un domaine qui
étaient plus ou moins tombés en désuétude, et notamment
des changements culturels. Jusqu’à une date récente, le
vocabulaire et les notions qui servaient à comprendre et
décrire l’expérience ordinaire, les relations entre individus et
groupes, les échanges avec le monde matériel, provenaient
pour une large part du langage et de la sagesse, longuement
accumulés par les groupes sociaux. (Kalampalikis &
Moscovici 2020, 2) 2

Estas formas de ausências devem ser mudadas para formas de


presença nos debates sobre we and other. Portanto, para fazê-lo de
forma epistemológica e académica, precisamos olhar para a génese,
ou seja, para o passado recente. Pois, uma academia presente debate
sobre os temas que se sente confortável e, sobretudo sobre temas que
a desconfortam. Só assim alcançaremos a aprendizagem por meio dos
dois lados da mesma moeda, ou seja, o conforto do we e o
desconforto do other.
Moçambique como um grupo de diversidades, vive e age na
lógica de grupos e subgrupos, onde os sentimentos positivos de
orgulho, de cidadania, de patriotismo, de nacionalismo, sentimento de
pertença, são ululantemente reclamados pelos ingroup, ou seja, pelo
grupo we, e, por sua vez, os sentimentos negativos, a vergonha, os
sentimentos de culpa, o patriotismo, o nacionalismo, ou por outra, os
xiconhocas, são oferecidos aos outgroup, ou por outra, os outros (other).
Aqui entra o papel da academia presente, não com fórmulas mágicas,
mas com uma agenda académica que visa transformar o anormal em
normal. Criando pontes e bases para um diálogo intercultural, ideológico
e político entre os ingroup e os outgroup, fazendo com que a partir do
espaço académico seja normal dialogar, agir e conviver,
principalmente conviver, saber ser, estar e fazer com o outro.
A academia estaria a criar um ambiente para contribuir perante
o debate de intolerância no país. Cabe a academia refletir e pesquisar

2 Kalampalikis. Serge Moscovici: Psychologie des représentations sociales. 2019.


ffhal-02091985f

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Armindo Armando, Jane Alexandre Mutsuque & Pedrito Carlos Chiposse Cambrão
(Org.)

sobre o porquê de estarmos agrupados em cavernas mentais, em


grupos e subgrupos, e o porquê de termos credos e resistência no
convívio em we and other a partir do espaço académico! A academia
precisa resistir. A academia deve fazer parte da resistência societal,
dentro e fora do espaço académico. Em Moçambique, as academias
são convidadas a marcar e a manifestar, ou melhor, elas devem sair
da toca dos urges, elas devem libertar-se dos abraços dos ursos. Elas
precisam aprender a respirar societalmente. A melhor maneira de
fazê-lo é quebrando o silêncio, e quiçá começarem por assumir na
agenda política académica o processo de academização do other, dito de
outra maneira, tornar o espaço académico um local sagrado de
criação de práxis de ética, de justiça, de equidade, alteridade e de
tolerância perante o debate de ideias contrárias. Este movimento
precisa ser normalizado no espaço do saber e das liberdades, isto é, o
espaço académico. Pois, o espaço académico deve ser inquietante.
Transformando as academias num espaço de encontros, dentro da
diversidade e da pluralidade, onde o pensar não seja um credo, onde
o pensar diferente não seja um credo e um ultraje.
Em suma, as academias presentes são chamadas na agenda de
um Moçambique tolerante. No processo de reflexão e de investigação
sobre a moçambicanização da intolerância, as academias presentes são
chamadas para dar o seu contributo. Vamos aqui entrelaçar academia
e a Dra. Joana Simião no seu binómio we and other. Neste processo de
resgate académico, as academias são chamadas a academizar o
pensamento desta pensadora e política moçambicana.
Fá-lo-emos com base nos contributos da psicologia social,
neste campo da interação intergrupal. Pois, os paralelismos entre nós
e outros, são importantes categorias para que possamos analisar e
refletir sobre as atitudes positivas e negativas perante o outro, sobre
os sentimentos de monopólio perante o desejo, o pensamento, as
crenças do outro. Fá-lo-emos, para chegar ao processo de
naturalização não dogmática do pensamento da Dra. Joana Simião.

131
Ciências Sociais e Desenvolvimento Humano em Moçambique:
produção, circulação e limitações

2. O lugar da psicologia social neste debate

We must ask what is the aim of the scientific


community. Is it to support or to criticize the social
order? Is it to consolidate it or transform it?
(Serge Moscovici 1979) 3

Para Jovchelovitch (2012), as narrativas, as memórias e a


história, são importantes para analisar e perceber os indivíduos e os
grupos.

Putting emphasis on time underscores the historical


character of all psychological processes and the manner
through which the past holds its ground in our present and
future lives. For psychologists of a socio-cultural orientation
the problem of time is the problem of historical
development, of which the development of the human child
is only one instance. Vygotsky (1997) was adamant that the
development of higher mental functions is a historical
process and inability to see them as such explained ‘the one-
sidedness and erroneousness of [psychology’s] traditional
views”. Paying attention to genesis and transformation is
essential to avoid the fragmentation of psychological
structures and capture their contextual and time#dependent
nature (Duveen, 1990; Cole, 1995). History is a central
method to understand the individual and collective mind as
it is to appreciate why the discipline of psychology has been
itself reluctant to take the historical dimension into account
(Farr, 1996). (2021, 3).

Em psicologia social as memórias são representações sociais


(Jodelet & Haas 2019), assim, como existe um debate sobre o senso
comum no campo das representações sociais e da ideologia
(Moscovici, 2019).

La réflexion des psychologues sociaux s’est centrée sur


quelques grands thèmes parmi lesquels se détache celui des
rapports entre histoire et mémoire abordés sous une double

3Caroline (2006) A social representation is not a quiet thing: exploring the critical
potential of social representations theory. British journal of social psychology, 45 (1).
pp. 65-86. DOI: 10.1348/014466605X43777.

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Armindo Armando, Jane Alexandre Mutsuque & Pedrito Carlos Chiposse Cambrão
(Org.)

perspective faisant intervenir les processus liés d’une part à


l’affirmation ou la défense identitaires, et, d’autre part, au
fonctionnement de la pensée sociale. Dans les deux cas, les
approches ont fait référence, comme nous le verrons plus
loin, aux représentations sociales qui présentent des parentés
et des relations étroites avec les processus et phénomènes
mémoriels (Jodelet & Haas 2019, 1).

O campo da psicologia social não deve ser reduzido à teoria das


representações sociais de Serge Moscovici (1969), mas é nela e dela
que encontramos uma pluralidade elástica e inclusiva para pensar e
analisar o papel do senso comum, da história, da memória, da
comunicação e sobretudo das relações intergrupais no processo de
saber estar, ser, fazer e conviver em sociedade. Com ela, podemos
melhor perceber a maneira de pensar, de agir, de falar, de fazer de um
certo grupo de membros que partilham as mesmas crenças, mitos,
tabus, ética, moral e cultura enquanto membros de um grupo 4.

4 La recherche consacrée aux représentations sociales a débuté par une question


élémentaire: comment expliquer que tant de gens persistent encore à croire que la
connaissance scientifique n’est pas assimilable par tout le monde? Cette idée va à
l’encontre de l’évidence de sa diffusion massive dans la société contemporaine. Elle
est non seulement assimilée dans le langage quotidien, elle l’est aussi dans les
pratiques ordinaires et le sens commun. Le désir d’expliquer cette anomalie, à savoir
la persistance d’une croyance en une connaissance incommunicable à une époque de
communication illimitée m’a amené à concevoir la notion d’une psychologie sociale
de la connaissance touchant la genèse des savoirs populaires, ceux de tous les jours,
comme on dit. On a beau penser que la science, en se substituant à ces savoirs, doit
les faire disparaître, il est évident qu’au contraire elle les multiplie, en parallèle à elle-
même. Si bien que chaque discipline scientifique se voit doublée par une discipline
populaire ou une « ethno-science » : la psychologie par une psychologie populaire
(folk psychology), l’économie par une économie populaire, la physique nucléaire par
une physique nucléaire populaire, etc. D’autre part, si certains estiment, tels Chomsky
et Fodor, par exemple, que le sens commun est fixe, anhistorique, voire inné, on ne
peut cependant pas manquer d’observer qu’il se transforme sans cesse par l’apport
des sciences ou des arts, qu’il a donc un caractère historique. Sans doute est-ce là une
des singularités de notre culture que de chercher à bouleverser les fondements de la
pensée ordinaire et des contenus de pensée dans la vie courante des hommes, en
somme ceux de leurs traditions. D’où, ainsi que je l’ai soutenu il y a longtemps, la
transformation de la psychologie sociale en une anthropologie du monde
contemporain (Moscovici 2019, 17).

133
Ciências Sociais e Desenvolvimento Humano em Moçambique:
produção, circulação e limitações

Em psicologia social as memórias são representações sociais e


estas, por sua vez, são um conjunto de práticas, diálogos e
comunicações que circulam dentro de um grupo, ou seja, aquilo que
nós partilhamos, alimentamos e consumimos enquanto atores
intergrupais, ou seja, uma forma de pensamento partilhada e assumida
nos grupos (Moscovici 1993).

Rather than societal psychology being a subset of social


psychology or political psychology, we argue that societal
psychology should be seen as a trans-disciplinary field that
includes aspects of social, political, community and
organisational psychology, and other disciplines that explore
interconnections between psychological processes and social
contexts. Following the lead of the special issue editors, we
focus on societal change, rather than social change. Social
change is often operationalised on the interpersonal or inter-
group level - where the relations between sets of individuals
or groups are examined. To develop a more multi-perspectival
and dynamic account of human relations, societal psychology
examines change within a broader political context, and
incorporates change at the level of communities,
organisations, governments, and international networks. This
is so the social and environmental factors shaping how societal
change emerges can be understood and taken into accoun
(Howarth, Campbell, Cornish et al 2013, 335).

O paralelismo e o binómio we and other podem ser aqui


pensandos na lógica da teoria das representações sociais de Tajfe 5
(1979). A teoria da representação social pelo seu contributo científico
nas formas de pensamento e comunicação enquanto membros grupais,
e social identity theory 6 pelo seu contributo na percepção de que as
pessoas são o que elas são por pertencer a um grupo, o ser membro de
um grupo é uma fonte de autoestima e orgulho. É a ideia de ingroup e
outgroup que cria e reforça as atitudes preconceituosas, os estereótipos
e condutas negativas perante aqueles que não fazem parte do “meu”
grupo, pois na lógica we and them, o we funciona mais contra o other,

5 social identity theory.


6 Intergroup relations represent in their enoumus scope one of the most difficult
and complex knots of problens which we confront in our times (Tajfel 1982).

134
Armindo Armando, Jane Alexandre Mutsuque & Pedrito Carlos Chiposse Cambrão
(Org.)

porque o we chama para si todas as características positivas e atribui ao


other todas as características negativas.
Henri Tajfel’s greatest contribution to psychology was social
identity theory. Social identity is a person’s sense of who they are based
on their group membership(s). Tajfel (1979) proposed that the groups
(e.g. social class, family, football team etc.) which people belonged to
were an important source of pride and self-esteem. Groups give us a
sense of social identity: a sense of belonging to the social world. We
divided the world into “them” and “us” based through a process of
social categorization (i.e. we put people into social groups) 7.
Este sentimento de pertencer a um grupo específico funciona
como um campo natural para o surgimento do we and others. Nos
grupos aprendemos e partilhamos certas crenças históricas: normas,
cultura, guerras, partidos políticos, liberdade, senso comum, sistemas
de valores, princípios e valores.

The historical approach places time at the core of human


experience and seeks to render visible the social and cultural
processes that constitute our psychological makeup in past and
present public spheres. It teaches the psychologist to ‘feel with’
distant others, to imagine what was like to be a person living in
different times and lifeworlds and to turn the disjunctions
between the lives of predecessors and contemporaries into
sources of understanding. It calls into question the idea and
practice of essential psychological truths (Knights, this issue)
and brings context back into the explanatory framework of
psychology. It substantiates the now classic view of social
psychology as a form of history (Gergen, 1973), whose
findings can themselves be seen as a form of historical record
of how people think, feel and behave at particular times and
places (Jovchelovitch 2012, 3).

Nos grupos pululam as dinâmicas entre a natureza humana e a


cultura, e neles criamos atitudes grupais, despimo-nos da nossa
individualidade, nos sentimos predispostos para as ações conjuntas,
transformamos em conjunto as nossas atitudes em normais sociais,

7S. A. (2019, October 24). Social identity theory. Simply Psychology.


https://www.simplypsychology.org/social-identity-theory.html

135
Ciências Sociais e Desenvolvimento Humano em Moçambique:
produção, circulação e limitações

consequentemente criamos uma consciência política ou moral


cognitiva e a cognição política. Passamos do estado de animais sociais
para animais políticos. O desafio de ser um animal político é saber ser,
estar, fazer e conviver com todos, por um lado, e as pontes ténues entre
o racional e o irracional, a empatia e a apatia, e a alteridade e o razoável.
Quer o animal social, quer o animal cultural (transversal), quer o
animal político, têm um denominador comum, a saber: a mudança,
sendo ela, uma categoria de interesse da psicologia que estabelece
pontes com a sociedade (psicologia social e societal), cultura
(psicologia cultural) e política (psicologia política).

The ‘Societal Psychology’ approach, introduced by


Himmelweit and Gaskell (1990) at the London School of
Economics and Political Science, and developed by a number
of scholars (Bar-Tal, 2000; Farr & Moscovici, 1984; Misra,
2006; Staerklé, 2011; Valentim, 2011), is the focus of this paper
and the hallmark of our own research as a collective. All
disciplines of psychology consider change to some degree, but
we argue that Societal psychology makes a unique contribution
through its focus on the contextual politics of change. Societal
psychology examines social psychological phenomena in
context and shows that there are different interests at stake in
any context: some perspectives will be dominant, others are
marginalised, some will gain from processes of change, others
will not. Hence there is a politics at stake within any empirical
field. Societal psychology explores the contexts which
promote or inhibit social and societal change, and can be seen
as bridge between social and political psychology (Staerklé,
2011), with connections to other disciplines such as sociology,
geography and social policy. (Howarth, Campbell, Cornish et
al 2013, 335)

Os indivíduos interagem uns com outros na sociedade, nos


grupos, eles estão expostos a um ambiente e processo mútuo de
aprendizagem, a psicologia social tem níveis de análises (Doise 1982,
Doise & Valentim 2015).
Os níveis de análise são:

a) Intra-individual, o que se passa na mente do indivíduo, o


indivíduo em si:

136
Armindo Armando, Jane Alexandre Mutsuque & Pedrito Carlos Chiposse Cambrão
(Org.)

This level of analysis refers to research dealing with the way


individuals organize their perceptions of the social
environment and the way they behave toward this
environment. In these models, the interaction between
individuals and social environment is not the direct focus of
analysis. The object of analysis here is the mechanisms that, at
the individual level, allow people to organize their experiences.
In social psychology, classical research about perception of
complex stimuli are also typical cases of this level of analysis,
for example, research using the models of cognitive balance
(Heider, 1946; Cartwright and Harary, 1956) or cognitive
dissonance (Festinger, 1957). Also, the process of
categorization (Tajfel and Wilkes, 1963) is focused on the
modalities according to which an individual organizes his/her
experience about the social environment.

b) Inter-individual e situacional, a interação entre os


indivíduos e o contexto, com a cultura, com a sua realidade:

The second level of explanations involves the intervention of


interindividual and situational processes. Often at this level
individuals are considered as interchangeable and it is their
interaction systems that offer the explanations typical of this
level of analysis. At this level of explanation, cognitive
processes are, for instance, studied as embedded in, or even
generated by, different types of interindividual coordinations.
The research of communication structures (Bavelas, 1951) and
attribution theory (Kelley, 1967) are good examples of studies
situated at this level of analysis.

c) Posicional, está associada a posição social que o indivíduo


ocupa:

The third level of analysis concerns the different positions


occupied by individuals and social categories in a given societal
framework. For instance, concerning explanations of learning
and other modes of cognitive functioning at this level, there is
an intervention of different conceptions that social groups
have in relation to the role of the school system in a given
society. The study of the effects of different social positions
in interaction was already present in one of the first
experiments on social attribution (Thibaut and Riecken, 1955).

137
Ciências Sociais e Desenvolvimento Humano em Moçambique:
produção, circulação e limitações

c) Ideológico, fazem parte a cultura, a tradição, as normas, os


valores partilhados e colectivos:

The third level of analysis concerns the different positions


occupied by individuals and social categories in a given societal
framework. For instance, concerning explanations of learning
and other modes of cognitive functioning at this level, there is
an intervention of different conceptions that social groups
have in relation to the role of the school system in a given
society. The study of the effects of different social positions
in interaction was already present in one of the first
experiments on social attribution (Thibaut and Riecken, 1955).
In this study, an interindividual relation (one’s success to
persuade another) was articulated with differences in status
preexisting to the experimental situation. This level of
explanation is also important in the study of relationships
concerning intra- and intergroup differentiation. Actually the
articulation of intraindividual level (more or less
intracategorial variability in the individual cognitive
apprehension) and the positional level (group status or
prestige) allows researchers to integrate contradictory results
about the out-group homogeneity effect and to go a step
further in their conceptualizations of this domain (Devos et
al., 1996; Lorenzi-Cioldi and Doise, 1990; Valentim, 2008).

Estes níveis de análise ajudam a perceber e a observar o software


social dos indivíduos nas suas dimensões intra e inter, assim como o
papel que o status e a carga ideológica desempenham e funcionam nas
ações dos indivíduos na sua interação social e cultural.
Frisar que no artigo de Doise & Valentim (2015), são
apresentados mais dois níveis de análise propostos por Doise (2011), a
saber: nível intersocietal, associado às dinâmicas na era de
globalização, onde os individuados interagem de forma simbólica e
prática com vários contextos e realidade, e o nível neurológico o papel
da neurociência nas relações sociais ou cérebro social ou neurociência
social.

138
Armindo Armando, Jane Alexandre Mutsuque & Pedrito Carlos Chiposse Cambrão
(Org.)

3. A Teoria das Representações Sociais

Le sens commun ne se réduit qu’à lui-même


(Serge Moscovici 2019, p. 24)

O campo das representações sociais e os seus pressupostos


básicos são legados de Serge Moscovici na área da psicologia social, na
década de sessenta. Ele introduzira o conceito em paralelo com o seu
estudo psicanalítico do pensamento popular francês que viria a ser
retratado na sua obra, La Psicanalyse: son image et son public 8, em 1961.
Nesta obra, Moscovici considera a representação social como um
tesouro perdido (ele desempenha o papel de “garimpeiro” que
descobre o conceito) nos seguintes moldes:

As representações sociais são entidades quase tangíveis. Elas


circulam, se entrecruzam e se cristalizam continuadamente,
por meio duma palavra, dum gesto, ou duma reunião, em
nosso mundo quotidiano. Elas impregnam a maioria das
nossas relações estabelecidas, os objetos que nós produzimos
ou consumimos e as comunicações que estabelecemos. Nós
sabemos que elas correspondem, por um lado, à substância
simbólica que entra na sua elaboração e, por outro lado, à
prática específica que produz essa substância, do mesmo modo
como a ciência ou o mito correspondem a uma prática
científica ou mítica” (Moscovici 2003,10).

A questão central apresentada por Moscovici (1993) foi o facto de


considerar as representações sociais como uma forma de pensamento no
seio dos grupos nas suas trocas e contactos quotidianos.

Depuis quelques années, un champ de recherches s’est ouvert


autour du phénomène de représentation sociale. Certes, les
analyses de Durkheim ont servi de point de départ à ces
recherches, du moins sur le versant sociologique. Mais ce sont
des circonstances plus précises qui nous ont conduits à nous
intéresser à un concept et à un domaine qui étaient plus ou
moins tombés en désuétude, et notamment des changements
culturels. Jusqu’à une date récente, le vocabulaire et les notions
qui servaient à comprendre et décrire l’expérience ordinaire,

8 Psicanálise, sua imagem e seu público.

139
Ciências Sociais e Desenvolvimento Humano em Moçambique:
produção, circulação e limitações

les relations entre individus et groupes, les échanges avec le


monde matériel, provenaient pour une large part du langage et
de la sagesse, longuement accumulés par les groupes sociaux.
Les perceptions, les méthodes par lesquelles chacun raisonnait
et vérifiait ses propres actions avaient la même origine et ne
sortaient pas de ce cadre. Le sens commun donc, avec ses
traditions, ses naïvetés, ses pouvoirs, ses modèles et ses ruses,
était premier. La science et la philosophie y puisaient leur
inspiration ou leurs visions, à charge pour elles de les raffiner
dans les opérations intellectuelles destinées à mettre sur pied
les systèmes successifs. (Moscovici 2019, 1)

A partir da teoria das representações colectivas de Durkhein,


Moscovici deu vida as bases da teoria das representações sociais.
“Moscovici´s theory of social representation has attracted considerable
interest among social psychologist, as well as stimulating a growing
body of research” 9.
A questão central apresentada por Moscovici foi o facto de ele
apresentar as representações sociais como uma forma de pensamento
que irrompe no seio dos grupos nas suas trocas e contactos
quotidianos. Porém, importa frisar que esse tesouro achado não tem as
bases iniciais em Moscovici, mas sim em Durkheim, Levy-Bruhl,
Vygotsky e Piaget, ou seja, emergem desse pensamento
sociopsicológico. Tanto é, que Dukheim é considerado o ancestral do
conceito da representação social.
Dukheim na sua tarefa de separar a sociologia das demais
ciências, defende a separação das representações sociais: as
representações individuais - deveriam ser do campo da psicologia; e as
representações colectivas - deveriam ser do campo da sociologia.
Contudo, Moscovici sente dificuldades em manter tal distinção e
concebe o termo social como um factor que dá fluxo e dinâmicas às
representações sociais (Moscovici, 2003). Esta teoria é ancorada nos
constructos psicológicos, pois as representações numa escala genérica
são perpetuadas por Moscovici como sendo fenómeno ou processo

9 Mckinlay, A., & Potter, J. (1987). Social Representations: A conceptual critique.

140
Armindo Armando, Jane Alexandre Mutsuque & Pedrito Carlos Chiposse Cambrão
(Org.)

mental, com mesma estrutura, forma e a curiosidade de compreender


as concepções e percepções (Mckinlay & Potter, 1987).

According to Moscovici, social representations are concepts,


statements and explanations originating in daily life in the course of
inter-individual communications. They character, however, is
essentially collective. (Moscovici,1982; Potter & Titton, 1985).

As representações sociais são factos notórios nos contextos


históricos e culturais, onde as sociedades funcionam com base em
representações sociais partilhadas entre os membros. Elas podem ser
percebidas como uma máquina que partir das discussões 10 entre as
pessoas, funciona para dar sentido ao mundo social, transformado o
não comum em comum, o anormal em normal.
Em suma, as representações na visão do Moscovici são os
pensamentos, as convicções, as crenças, as práticas que resultam da
interacção de um grupo de indivíduos, onde o lado individual vai
desaparecendo e dá lugar ao lado colectivo (formas de pensamentos
em grupos de indivíduos).
No artigo: Social Representation and the social construction of everyday
knowledge: theoretical and methodological queries, apresentado no Symposium
sur les Representations Sociales, em 2004), Flick apresenta reflexões em
torno da construção do conhecimento na vida quotidiana, usando a
teoria da representação social, onde o conhecimento do quotidiano
desempenha um papel na construção social da realidade e faz parte
duma forma de conhecimentos, nesse caso a representação social.

4. O pensamento da Dra. Joana Simião

Pois, para terminarmos esta nossa boa conversa queria-lhe dar


uma boa notícia, tenho aqui na mão um telegrama de Dar es Salaam

10 A comunicação, a linguística e as discussões entre os membros duma sociedade,

são um indicador de profunda relevância para perceber esta teoria, pois, é por meio
da comunicação interindividual que se constroem estas representações, recorrendo a
técnicas como grupo focal ou grupo de discussão.

141
Ciências Sociais e Desenvolvimento Humano em Moçambique:
produção, circulação e limitações

que diz que a Frente de Libertação de Moçambique iniciará amanhã


negociações em Lusaka com representantes do governo português. Foi
hoje anunciado em Dar es Salaam por Samora Machel. A reação
espontânea de Joana Simião foi: “Bravo” (Joana Simião 1973) 11
Como país, funcionamos na lógica de ingroup and outgroup, como
academia, não gozamos de autoridade e liberdade académica, mas,
precisamos de nos apropriar dessa categoria grupal de pensar e agir no
seio da nossa sociedade, ou melhor, o nós contra os outros. Pensamos,
agimos, temos atitudes e práticas dentro das nossas relações grupais,
gostamos mais dos nossos grupos em detrimento dos outros, na
academia, gostamos mais das agendas que não criam choques com a
autoridade política em detrimento da academia da resistência. Essa
lógica maniqueísta, consciente ou não inconsciente direciona a
sociedade (académica). As academias precisam criar agendas
académicas de modo que possam contribuir com pesquisas neste
campo, ou seja, o porquê de gostarmos de estar no ingroup e o impacto
ou a consequência dessa práxis no espaço societal.
Vamos aqui propor saídas psicológicas que melhor podem
enquadrar o nosso interesse pelo pensamento da Dra. Joana Simião no
projecto político moçambicano, ou seja, o animal político nela, que não
deixa de estar associado ao seu animal social, já agora, ao seu animal
social moçambicano. É, na verdade este animal moçambicano, que
exultava a moçambicanização e o moçambicanismo, que melhor traça o seu perfil
societal plural e elástico. Frisar que o pensamento dela deve ser enquadrado
nas décadas sessenta e setenta, no contexto dos movimentos de
resistência e de libertação, das então colónias.
Vamos começar por dois conceitos abordados por ela, a saber, a
moçambicanização e o moçambicanismo.

O primeiro era o conceito de moçambicanização, segundo o qual


seria «a constituição de uma frente interna, formada por elementos

11Parte desta secção é construída com base nas entrevistas que a Dra. Joana Simião
deu ao canal RTP1 em 1974 (Simião 1974).

142
Armindo Armando, Jane Alexandre Mutsuque & Pedrito Carlos Chiposse Cambrão
(Org.)

lúcidos e calmos» (Simião 1974, s. p.)12, que iria estabelecer pontes


com as várias etnias existentes no país. … Outro conceito usado por
Semião era o moçambicanismo, o que se poderia chamar de
tolerância. Para ela, acima de tudo, sem divisionismo, existia um
espírito de fraternidade no seio dos moçambicanos,
independentemente da localização geográfica e ideológica, dos
“fantasmas” das divergências. Ela acreditava que era importante o
espírito do moçambicanismo, como uma característica democrática,
onde as moçambicanas e os moçambicanos tinham todo o direito
de saber e participar na agenda e no projeto da libertação e
independência do país (Pereira 2021,169-170).

Para esta pensadora, antes das divisões ideológicas e políticas,


antes do maniqueísmo, estava a fraternidade, isto é, o espírito de saber
ser, estar, fazer e a convivência, o intermoçambicanismo. Torna-se justo
dizer que para ela antes do nível intraindividual, estava, no espaço
público, o nível interindivual e o nível intersocietal. A partir da
localização epistemológica dela, o other era mais importante e
impactante em relação ao we. Ou melhor, no lugar do we, estava mesmo
presente um we-other, um nós que continha o outro, transformando o i
numa subcategoria do we-other.
Para Tajfel (1982), um dos nós de estrangulamentos dos tempos
atuais é o convívio e a interação intergrupais. Esta dificuldade é real,
mas quando se substitui o I pelo we, o nível de dificuldade diminui ou
flui para um nível de justiça social.
Nas décadas sessenta e setenta a filosofia ideológica era ou we ou
we, isso quer dizer que o I só tinha uma opção se agisse como we, com ou
sem consciência, o I era a ovelha negra, quer dizer, o traidor e
antipatriótico. Com a Dra. Joana Simião tínhamos um I diluído no we plural.
Nesta época, pelo calor do momento, existia toda uma ecologia
comportamental para que ela estivesse no nível ideológico e nível
posicional junto aos seus no ingroup, neste caso no Comité Revolucionário
de Moçambique (COREMO) e ao Grupo Unido de Moçambique
(GUMO), do qual foi vice-presidente (1974)13. Mas o seu pensamento era

12Idem.
13O GUMO era constituído por Máximo Dias (presidente), Joana Simião (Vice- -
presidente), Jorge Abreu, Lisete Simões, Cassamo Daúde e Isaías Marrão.

143
Ciências Sociais e Desenvolvimento Humano em Moçambique:
produção, circulação e limitações

por um diálogo entre o ingroup e o outgroup, sendo o outgroup o outro da


moeda do ingroup. Estávamos perante um ingroup pró-diálogo.
Nas interações intergrupais existe um comportamento, ou melhor,
o comportamento intergrupal (Tajfel 1982 & Sherif 1966), que surge da
interação individual ou coletiva com os membros do grupo, criando uma
identificação grupal. O comportamento grupal e a identidade grupal da
Dra. Joana Simião tinham na sua génese uma categoria social sólida, isto
é, Moçambique, com a sua moçambicanidade e moçambicanismo. O
pensamento político dela era por uma identidade e um comportamento
pró-grupo, sendo neste caso Moçambique o grupo diversificado, mas um
grupo. Mas um moçambique plural e colorido.

Para ela, o processo de libertação e independência tinha, acima


de tudo, de ser feito com base no diálogo, na democracia, onde
as partes deveriam ser ouvidas, sem donos do processo, pois
ela percebia a diversidade e complexidade “étnica” e cultural
do país. Pensar assim ainda representa um mito das cavernas,
imaginar a dimensão e o impacto deste pensamento, quer para
o governo colonial, quer para os movimentos de libertação
(Pereira 2021, 167).

É importante frisar que nesta época a narrativa e a memória


coletiva era por um credo, por uma ideia única e linear, ou seja, era uma
época que se pretendia unanimemente ingroup, com um pensamento
único. Não pensar na lógica do ingroup era uma traição a causa do
ingroup. Por outro lado, o pensamento da Dra. Joana Simião no seu
outgroup era por ideias progressistas em nome da igualdade e da
democracia, a saber:

‑ Comportamentos e atitudes de moçambicanismo;


‑ Definição da posição do GUMO;
‑ Apresentação de problemas concretos sobre a agenda comum
que “uma independência soleva, e que devem ser resolvidos
calmamente numa mesa redonda, quadrada ou retangular”;
‑ Queria saber qual era o pensamento da FRELIMO sobre os
problemas e os desafios;

144
Armindo Armando, Jane Alexandre Mutsuque & Pedrito Carlos Chiposse Cambrão
(Org.)

‑ Qual seria o sistema económico que iria vigorar em


Moçambique;
‑ Qual seria o sistema político que iria vigorar em Moçambique;
‑ Qual seria a posição dos grupos étnicos (não para fomentar o
debate tribal, mas para perceber e antecipar os passos num país
rico pela sua diversidade cultural);
‑ Qual seria a política estrangeira;
‑ Como se iriam resolver os problemas financeiros e económicos
perante uma balança de pagamento deficitária;
‑ A questão do equipamento industrial;
‑ Defesa das prováveis fronteiras políticas no país;
‑ A prevenção dos cenários políticos seria possível através do
diálogo;
‑ Armistício entre a Frelimo e as outras forças políticas;
‑ O GUMO era uma força cívica lúcida preocupada com o
processo de paz em Moçambique, numa fase inicial, e, numa fase
posterior, acreditava que as várias etnias existentes no país
tinham direito a ser consultadas sobre o projeto pensar
Moçambique;
‑ Sempre preocupada com a paz, pensava, em nome do GUMO,
na realização de um referendo. 14

Estas linhas, resumem o pensamento de uma mulher


moçambicana em 1974, resumem de igual modo o ideário de uma
pensadora à frente da sua época. Mas sobretudo, expõe de forma
ululante a dificuldade que o ingroup tinha de dialogar com ela, visto que
ela era dona de uma ideologia progressista que obrigava o ingroup a sair
da sua zona de conforto, isto é, do seu ingroup. Dito de outra forma, o
ingroup representava o conservadorismo e a tradição, e o outgroup,
representava a modernidade e liberalismo.
Nas entrelinhas destas quatro fases, estão sempre patentes
atitudes como pensar o outro, a relação do eu com o outro, a relação

14 Idem.

145
Ciências Sociais e Desenvolvimento Humano em Moçambique:
produção, circulação e limitações

social e económica para o país, empatia, alteridade, tolerância,


diversidade cultural e étnica, e a não negação do papel do colono e da
metrópole no processo de diálogo 15.
Dentro das representações sociais da tolerância em
Moçambique, das questões inerentes ao espírito de paz, reconciliação
nacional, da política do perdão, da desculpa, da democracia, das
eleições, da fraternidade e da justiça, importa ter em mente as reflexões
desta pensadora. Como fica evidente no seu diálogo com Uria
Simango, quando este regressara ao país, em 1974 16.

... É tempo para paz e dentro deste espírito de paz, e através


de um processo democrático, das eleições, a independência de
Moçambique (Nkomo, 2003:287) e apela ao regresso também
dos “irmãos da FRELIMO”, para construírem em conjunto
um país independente, justo e fraterno… a reconciliação entre
irmãos impõe-se… este apelo vai ser secundado por Uria
Simango e outros políticos que haviam estado em conflitos
anteriores com a FRELIMO… e Joana Simião acrescentou:
“ se o povo é soberano, então vamos perguntar ao povo que
governo quer…(Nkomo, 2003:290) 17

Entretanto, o inconcusso foi notório aqui porque estamos


perante uma mulher com e de voz, com retórica, com pensamento
estruturado, na década 70 em África, caso raro na época no contexto
internacional. Continua sendo um caso raro na atualidade, o que faz
dela atemporal, primeiro, no seio das mulheres, e segundo, no seio dos
homens.
O ser mulher e o ser homem é muito mais que o reducionismo
biológico (sexo), estes dois actores e sujeitos sociais são construídos
num conjunto de etnopráticas quotidianas tipicamente

15 Idem.
16 Mensagem de boas-vindas feita pela pensadora ao Pastor Uria Simango.
17 Meneses, Maria Paula. 2017. “Autodeterminação em Moçambique, Joana Simião,

entre a memória oficial e as histórias de luta”. : Discursos Memorialistas Africanos


e a Construção da História, coordenado por Inocência Mata, 49-78.

146
Armindo Armando, Jane Alexandre Mutsuque & Pedrito Carlos Chiposse Cambrão
(Org.)

contextualizadas nas normas culturais, nas tradições, nos rituais, na


esfera social, política, histórica e económica (Pereira 2013) 18.
Todavia, ser mulher no espaço público e privado é carregado de
símbolos e de representações sociais, pois, ser mulher não é só a
construção social das mulheres, mas sim, a construção bio-socio-
cultural-psicológico do ser mulher nos vários espaços societais.
Esta perspectiva do género é igualmente útil para a presente
discussão, na medida em que permite elucidar categorias de crenças,
discursos e sensos comuns reducionistas do género ao sexo masculino
e feminino, assim como permite uma análise profunda da construção
social da diferença do feminino e masculino na vida social (Amâncio,
1998; Nogueira, 1996).
Sendo ela, na época, uma voz audível, sentia ela no seu nível
intraindividual o dever patriótico de fazer parte do projeto e agenda
moçambicanos, nos movimentos de libertação. Estaríamos perante
uma feminista moçambicana das décadas sessenta e setenta e de uma
agente das questões de género.
Eu pensei, como uma das (mulheres) evoluídas que existe em
Moçambique, dado os meus contactos anteriores com mulheres da
Europa e de outros países do mundo, que eu tinha que tomar uma
posição ligada à minha posição de mulher e mãe … no sentido de
encontrar meios pacíficos para resolver o conflito… Eu pretendo ser
a voz dessas mulheres africanas silenciadas, cuja promoção é feita de
forma paternalista (Meneses 2017, 66).
O pensamento holístico da Dra. Joana Simião para Moçambique
tinha um denominador recorrente e comum, a paz, uma paz que
dialoga. Ela entendia, já nesta época, que a paz era o pilar para
harmonia e o desenvolvimento, o que torna o seu pensamento mais
atrativo para os estudiosos das ciências políticas, relações
internacionais, sociologia, psicologia, paz e da reconciliação em
Moçambique.

18 Género, Poder e Gestão do Ensino Superior: os gestores usam calças


(masculinidade) e as gestoras usam capulanas (feminidade), Pereira, 2013.

147
Ciências Sociais e Desenvolvimento Humano em Moçambique:
produção, circulação e limitações

Para Tajfel, os indivíduos têm uma tendência de estar em grupo,


ou seja, os ingroup, estando dentro do grupo partilham a mesma imagem,
tornando-se semelhantes e passam a olhar para o outro grupo, isto é,
outgroup como sendo diferentes. Nesta lógica do in and out surgem
sentimentos e percepções negativas perante os que não são do mesmo
grupo. Surgem atitudes preconceituosas e estereótipos perante aqueles
que se acredita terem um comportamento e uma identidade diferente.
Pois os processos cognitivos individuais são tornados coletivos em
nome do grupo.
O GUMO seria o ingroup, mas este ingroup funcionava em
paralelo com o outgroup, eram os dois lados da mesma moeda. Pois na
prática, para esta pensadora o ingroup na prática era Moçambique,
sendo outras categorias subgrupos do moçambicanismo.
A ideologia política da Dra. Joana Simão é dialogante, cívica,
tolerante e reconciliador. A memória, a narrativa, história e sobretudo
as representações sociais dela são de um we que tem o other como o
outro lado da moeda. A paz que ainda almejamos em 2023, a tolerância
política que ainda procuramos em 2023, a reconciliação em falta no
país e na região em 2023, o tão negado e dogmático referendo sobre
as questões fundamentais, como por exemplo, as mexidas na
constituição da república em 2023, a pluralidade que ainda almejamos,
o diálogo que evocamos, a diversidade cultural na agenda do
desenvolvimento, a industrialização do país, a porosidade das
fronteiras, uma agenda política baseada no diálogo, ou seja, como
edificar um Estado, são tópicos que foram previamente elencados pela
Dra. Joana Simião na década setenta. Até porque é perene que se
perceba que a tolerância (assim como a intolerância), a reconciliação, a
política do perdão são formas de interação intergrupais, nos níveis
interindividual e intersocietal, com a anuência do nível intraindividual.
Pois a tolerância e a reconciliação são predispostas psicologicamente.
O pensamento intelectual e político da Dra. Joana Simião, na
década setenta deve ser percebido como algo normal, ou seja, sendo
ela moçambicana, estava no seu direito de abraçar a causa do processo
de diálogo e negociação na agenda da independência (inter)nacional. A

148
Armindo Armando, Jane Alexandre Mutsuque & Pedrito Carlos Chiposse Cambrão
(Org.)

pátria é sentida e percebida de formas diferentes, uns optam por dar o


peito, foi o caso dela. Porquê?
É o sentimento de pertença, assumir com ou sem consequências
que o país pertence a todas e todos, “Simião tinha ideias muito claras
sobre os grupos sociais existentes em Moçambique, a quem ela
designava por “etnia”, onde ela pensava não só na “etnia” negra, como
também na “etnia” mestiça, na etnia “branca”, na “etnia” asiática, ou
seja, chinesa e indiana. Os grupos sociais ou comunidades existentes
em Moçambique faziam parte do pensamento dela” 19.

In the psychological literature on possession, the term


collective psychological ownership refers to people’s sense that
an object, place, or idea belongs to their ingroup and that their
ingroup has the exclusive right to decide what happens to it
(Verkuyten & Martinovic, 2017). First, to advance our
understanding of collective psychological ownership of a
territory, we examine whether it is different from place
attachment – another, mainly emotional, tie people can have
with a place (Hidalgo & Hernández, 2001) (Storz, Martinovic,
Verkuyten et al, 2020).

O processo de pensar Moçambique faz parte da nossa psicologia


humana, social, cultural e política. Existe uma forte e profunda relação
de identidade, cidadania e patriotismo entre os cidadãos e o país. É
necessário normalizar o pensamento da liberdade de pensar o país, até
porque é impossível não o pensar.
Importa frisar, de forma recorrente, que mesmo sendo uma
pensadora cosmopolita, na categoria we and other, para ela, esta categoria
representava os dois lados do mesmo cenário. E, de igual modo, os
níveis intraindividual, interindividual, ideológico, neurológico e
societal, estavam ao serviço do moçambicaníssimo.
Como colocou Meneses (2017):

Defensora da pequena burguesia, nacionalista negra, como


fator de promoção de Moçambique, e de um sistema político
plural, Joana Simião acabou por morrer fiel aos seus ideais
políticos. Paradoxalmente, é este o modelo de

19 Pereira, 2021.

149
Ciências Sociais e Desenvolvimento Humano em Moçambique:
produção, circulação e limitações

multipartidarismo e de economia de mercado que hoje


representa a essência do projeto político moçambicano
(Meneses, 2017, 74).

Considerações finais

Não se conclui o pensamento da Dra. Joana Simião na medida


em que se inicia uma reflexão sobre o mesmo. O caminho é a
normalização dos debates e das conferências sobre o seu pensamento,
sem a lógica maniqueísta. Este caminho deve ser feito no espaço
académico moçambicano, para tal, é necessário que as academias
deixem de ter cores, deixem de estar por cima dos muros a assobiar,
deixem de ser capturadas e de ser reféns do poder político, ou melhor,
da autoridade política. O espaço académico deve ser refém dos valores
que estas têm, como, liberdade, democracia, autonomia, liderança.
Estes valores têm ser uma práxis universitária e não só de forma
cosmética.
O pensamento da Dra. Joana Simião é paralelo ao movimento
de libertação do país. O pensamento da Dra. Joana Simião é transversal
à primeira, segunda e terceira república. O seu pensamento devia ser
paralelo às universidades moçambicanas, esta hipótese, teria ajudado as
universidades a criarem um espírito de resistência, de diálogo, e
principalmente, o comportamento reconciliador e tolerante.
Pensar Moçambique atual, 2023, a partir da lógica da Dra. Joana
Simião, não é um favor, é uma necessidade urgente para melhor pensar
e perceber o país. A sua epistemologia continua atual e necessária para
o Moçambique real.
O que se propõe fazer é olhar para os seus ideários na agenda do
desenvolvimento académico do país:

‑ Quando estivermos perante a agenda da tolerância, pensá-lo-emos


nela;
‑ Quando o assunto for paz e reconciliação, pensá-lo-emos nela;
‑ Quando o assunto for fraternidade, pensá-lo-emos nela;

150
Armindo Armando, Jane Alexandre Mutsuque & Pedrito Carlos Chiposse Cambrão
(Org.)

‑ Quando o assunto for diversidade e pluralidade, pensá-lo-emos


nela;
‑ Quando o assunto for diálogo, pensá-lo-emos nela;
‑ Quando assunto for mulher, feminismo, género e sobretudo, a
participação política das mulheres, pensá-lo-emos nela;
‑ Quando o assunto for direitos humanos e liberdades, pensá-lo-
emos nela;
‑ Quando o assunto for multipartidarismo, pensá-lo-emos nela;
‑ Quando o assunto for eleições, pensá-lo-emos nela;
‑ Quando o assunto for paz, pensá-lo-emos nela;
‑ Quando o assunto for desculpa e perdão, pensá-lo-emos nela;
‑ Quando o assunto for maniqueísmo e intolerância, pensá-lo-emos
nela como estratégia solucional,
‑ Quando o assunto for a soberania, pensá-lo-emos nela.

Para a Dra. Joana Simião, o ingroup e o outgroup eram as duas faces


da mesma moeda. Sendo ela uma crente da democracia, acreditava que
era possível a utopia de sentar numa mesa geométrica para debater e
dialogar sobre que Moçambique e edificar durante e no pós-
independência.
Há pano para que as academias tricotem à vontade sobre ela e
outros pensadores não conservadores moçambicanos.
Existe muito pano que as academias tricotem à vontade sobre
ela e os outros pensadores silenciados moçambicanos. Só assim, as
academias estarão a contribuir para que tenhamos uma sociedade
tolerante, livre do maniqueísmo perante o paralelismo e o binómio we
and other. Estarão de igual modo a contribuir para a normalização de
uma cultura de saber ser, estar, fazer e conviver com base no diálogo
sem atitudes extremosas entre o ingroup e o outgroup, transformando as
atitudes e os comportamentos preconceituosos em atitudes e
comportamentos de interdiálogo.
Academicamente, pensá-la-emos como uma política, ativista
cívica, com um pensamento sobre a política e a economia
moçambicana, transformá-la-íamos em uma feminista moçambicana e

151
Ciências Sociais e Desenvolvimento Humano em Moçambique:
produção, circulação e limitações

do mundo, assumi-la-emos como referência nas questões de paz,


reconciliação, política do perdão e da desculpa, fraternidade,
democracia, pluralismo, tolerância e eleições. Tudo isso, seria feito com
rigor e brio académico, isto seria, com autonomia, ética e princípios
académicos. No fundo, poderíamos fazê-lo com bases nos valores que
as instituições académicas ostentam nos seus banners.

152
Armindo Armando, Jane Alexandre Mutsuque & Pedrito Carlos Chiposse Cambrão
(Org.)

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154
SOBRE AS AUTORAS E OS AUTORES

Armindo Armando
Docente da Universidade Licungo, na Faculdade de Letras e
Humanidades, repartição de Ciência Política e Governação. É doutor
em língua, cultura e Sociedade pelas universidades Zambeze –
Moçambique e Minho – Portugal; Mestre em ciência política e relações
internacionais; licenciado em Ensino de Filosofia e História. É
investigador do centro de estudos globais na universidade Aberta –
Portugal e cetro de estudos de comunicação e Sociedade. Investiga
áreas de hermenêuticas culturais para a diversidade; relações
internacionais para cooperação e desenvolvimento e estudos políticos
contemporâneos. E-mail: [email protected].

Bruno Venâncio
(Lisboa, 1978) é doutorado em Filosofia pela Universidade Nova de
Lisboa (2016) e doutorando em Teoria da Literatura na Universidade de
Lisboa (desde 2020). É investigador do Instituto de Estudos Filosóficos
da Universidade de Coimbra (desde 2010). Coordena (desde 2022) a linha
de investigação em Literatura, Humanismo e Cosmopolitismo do Centro
de Estudos Globais da Universidade Aberta, função na qual organiza o
curso anual de verão, o curso anual de inverno, o ciclo permanente de
conferências em Literatura, Humanismo e Cosmopolitismo, o seminário
Patrimónios da humanidade e lidera o projeto Literatura global para
crianças globais. Coeditor da obra “A morte: Leituras da humana
condição” (Lisboa, 2019), organizador da obra “Os leitores perguntam, o
Pe. Manuel Antunes responde” (Porto, 2022) e autor de vários artigos e
comunicações dedicados às áreas da Filosofia, da Literatura e também à
relação entre elas. E-mail: [email protected].
Ciências Sociais e Desenvolvimento Humano em Moçambique:
produção, circulação e limitações

Dulce Maria Passades Pereira


Docente da Universidade Licungo. Doutoranda em Psicologia Social
(Faculdade de Psicologia e Ciências de Educação da Universidade de
Coimbra), Mestre em Dinâmica de Saúde e Bem-estar (Universidade
de Évora (Portugal), Universidade Autónoma de Barcelona (UAB) e
Mestre em Saúde e Sociedade Linkoping University (Suécia),
coordenado pela Ecole des Hautes Études en Sciences Sociales, Paris)
e Licenciada em Psicologia e Pedagogia (Universidade Pedagógica-
Delegação de Nampula). Academicamente, de forma glocal, cruza o
campo dos estudos de género com a psicologia social, particularmente
com a Teoria das Representações sociais, com interesse na
informalidade e no senso comum dos bastidores dos espaços políticos
(pesquisa em curso no âmbito da tese de Doutoramento). Mas,
societalmente, com base nos pressupostos epistemológicos da
psicologia social, tenta operacionalizar as pontes entre a psicologia eu
e dos outros, ou seja, como se constroem as nossas relações intra-
pessoais e interpessoais nas nossas trocas simbólicas do quotidiano,
fenómenos que denomino por ‘nossismo’, ou melhor, ‘nossismo’ seria uma
‘nova’ forma de instituição psicológica na maneira como nos
relacionamos entre nós e com os famosos outros. Uma forma de
socialização que infelizmente dá poder e corpo à intolerância. E-mail:
[email protected].

Eva Quembo
Doutoranda em Ciência Política e Relações Internacionais na
Universidade Católica de Moçambique. Mestre em Gestão de
Negócios. Licenciada em Administração Pública pela Universidade
Eduardo Mondlane. Docente e Pesquisadora da Universidade Católica
de Moçambique exercendo funções de Directora Adjunta-Pedagógica
da Faculdade de Gestão de Recursos Naturais e Mineralogia. É
membro do Conselho Editorial da Brazilian Journal of Science. Áreas
de concentração: Políticas Públicas; Defesa e Segurança; Governação
Local e Negócios Internacionais. E-mail: [email protected]

156
Armindo Armando, Jane Alexandre Mutsuque & Pedrito Carlos Chiposse Cambrão
(Org.)

Jane Alexandre Mutsuque


Doutor em Comunicação Social pela Universidade Federal de Minas
Gerais (Bolsista Capes/PEC PG). Mestre em Línguas, Literaturas e
Culturas pela Universidade Aveiro - Portugal. Docente do
Departamento de Ciências Sociais, Curso de Ciências da Comunicação
da Universidade Zambeze - Moçambique. Membro do grupo de
pesquisa MediAção, subgrupo do Núcleo de Pesquisa em Conexões
Intermédia (NucCon) - Brasil. Centro de Estudos Globais da
Universidade Aberta – Portugal. Tem atuação acadêmica na área de
ensino em língua portuguesa e comunicação social, temáticas educação
e transmídia. E-mail: [email protected]

Joana Carlos Beira .


Doutoranda em Gestão e Organização do Conhecimento na UFMG-
Brasil; Bolsista CAPES/PEC-PG; Mestre em Administração na área
de Organizações e Sociedades (UNIVALI - Brasil) 2014; Licenciatura
em Planificação, Administração e Gestão de Educação (Universidade
Pedagógica – Beira) 2011; [email protected].

Pedrito Carlos Chiposse Cambrão,


Doutorado em Sociologia, Licenciado em Filosofia e Teologia; Professor e
Director-Adjunto para área de Pesquisa, Extensão e Pós-Graduação na
Faculdade de Ciências Sociais e Humanidades da Universidade Zambeze
(UniZambeze); Professor convidado da Universidade Católica de
Moçambique (UCM), Universidade Jean-Piaget (UniPiaget) e UniSCED; Co-
editor da Revista Electrónica de Investigação e Desenvolvimento (REID) da
UCM; Membro da Rede de Estudos Sociais da África Lusófona (RESAL –
https://resal.website/) e do Centro de Estudos Globais da Universidade
Aberta (https://sites.uab.pt/ceg/); Investigador da Global Collateral
(https://linktr.ee/collateralglobal); Articulista do jornal RIGOR (Nampula):
Autor e co-autor de artigos científicos cujas áreas de pesquisa são: Políticas
Sociais, Mudanças Climáticas, Democracia, Cultura e Religião; comentador
televisivo e radiofónico sobre questões sócio-políticos e culturais. E-mail:
[email protected].

157
Ciências Sociais e Desenvolvimento Humano em Moçambique:
produção, circulação e limitações

Raul Flávio Hilário


Nascido no ano 1982 no Distrito de Homoíne. Aos 6 anos, isto é, em
1988, entrou pela primeira vez na Escola Primaria Completa de Maxixe
e mais tarde a Escola Primaria Completa de Golo Distrito de
Homoíne. Concluídos os estudos primários, desloca-se a Cidade de
Maxixe, onde frequentou o ensino básico e médio na Escola
Secundaria 29 de Setembro de Maxixe, tendo concluído 2006. No ano
2007, frequentou o ensino Superior onde concluir o grau de
Bacharelato e Licenciatura em Ensino de História e Geografia pela
Universidade Pedagógica Sagrada Família Maxixe (UniSaf) em 2011.
Em 2020 inicia os estudos de Mestrado na Universidade Save Extensão
de Massinga (UniSave) que os viria terminar em 2021. Docente de
Geografia e História na Escola Secundaria 20 de Junho Golo Distrito
de Homoíne. Tutor/Supervisor na Faculdade de Ciências Sociais e
Humanas, e Faculdade de Ciências de Educação da Universidade
Aberta (UnISCED) sediada na Beira. E-Mail:
[email protected].

Stela Santos
Nascida na Cidade da Beira, Licenciada em Direito pela Universidade
Eduardo Mondlane, Pós-graduação em Ciência Política, Relações
Internacionais e Boa Governação (Universidade Católica Portuguesa e
de Moçambique), Pós-graduação em Direito de Transportes pela
Universidade de Lisboa / Universidade Zambeze, Mestre em Direito
pela Universidade Católica de Moçambique, Doutoranda pela
Universidade de Lisboa/ Universidade Zambeze. Docente
universitária na Faculdade de Direito da Universidade Zambeze
(lecionando as disciplinas de Ciência Política e Direitos Fundamentais),
Advogada, Presidente do Conselho Provincial de Sofala da Ordem dos
Advogados de Moçambique. Autora de “Lições de Direitos
Fundamentais” pela Fundza Editora, dezembro de 2022 e de “Os
contratos de Adesão nos Serviços Públicos Essenciais” pela Waty
Editora, Novembro de 2017. E-Mail: [email protected].

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