TRANSCICLOPEDIA FINAL (12968) - Versão Final Gráfica

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TR ANSCICLOPÉDIA

EM DIFUSÃO DO CONHECIMENTO
DANTE AUGUSTO GALEFFI
MARIA INÊS CORRÊA MARQUES
MARCÍLIO ROCHA-R AMOS
(ORGANIZADORES)

TR ANSCICLOPÉDIA
EM DIFUSÃO DO CONHECIMENTO

Salvador – 2020
Copyright © Quarteto Editora, 2020
Nenhuma parte deste livro pode ser reproduzida, sejam quais forem os
meios empregados, a não ser com a permissão escrita do autor e da editora,
conforme a Lei no 9610, de 19 de fevereiro de 1998.
Projeto gráfico Capa Editor
Quarteto Editora Helga Sant Anna José Carlos Sant Anna

Conselho Editorial
Célia Marques Telles — Universidade Federal da Bahia
Dante Augusto Galeffi — Universidade Federal da Bahia
Edleise Mendes — Universidade Federal da Bahia
João Carlos Salles — Universidade Federal da Bahia
Sérgio Mattos — Universidade Federal do Recôncavo da Bahia
Rita Maria Bastos Vieira — Universidade do Estado da Bahia

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)

Transciclopédia em difusão do conhecimento / Dante Augusto Galeffi, Maria


Inês Corrêa Marques, Marcílio Rocha-Ramos (organizadores). - Salvador :
Quarteto, 2020.
866 p. : il.

Coletivo de autores vinculados ao Doutorado Multi-institucional e


Multidisciplinar em Difusão do Conhecimento (DMMDC) - Programa de Pós-
Graduação sediado na Faculdade de Educação da UFBA em parceria com
instituições de ensino superior.
ISBN: 978-65-87365-05-3
1. Difusão do conhecimento - Estudo e ensino (Pós-graduação). 2. Análise
cognitiva - Estudo e ensino (Pós-graduação). 3. Teoriação polilógica.
4. Multirreferencialidade. 5. Criatividade. I. Galeffi, Dante Augusto. II.
Marques, Maria Inês Corrêa. III. Rocha-Ramos, Marcílio. IV.
Universidade Federal da Bahia. Faculdade de Educação. Programa de
Doutorado Multi-institucional e Multidisciplinar em Difusão do
Conhecimento.
CDD 378.007 – 23. ed.
Ficha catalográfica elaborada por Maria Auxiliadora da Silva Lopes - CRB-5/1524

Todos os direitos desta edição reservados à:


Quarteto Editora
Av. Antonio Carlos Magalhães, 3213
Ed. Golden Plaza, s/ 702 — Iguatemi
40.280-000 — Salvador — Bahia
Telefax: (71) 3452-0210
Email: [email protected]
www.editoraquarteto.com.br
SUMÁRIO

A
1. Acesso à Informação................................................................................ 27
José Francisco Barretto Neto
Thiago Rodrigues
Ana Maria Ferreira Menezes

2. Africanidades.......................................................................................... 32
Eduardo Oliveira

3. Algoritmo ............................................................................................... 33
Alvaro Adriazola Uribe

4. Ambientes Multirreferenciais de Aprendizagem (AMA).......................... 41


Ana Maria Casnati Guberna

5. Análise Cognitiva (AnCo): Concepção e Método de Pesquisa................. 58


Leliana Santos de Sousa
Marise Oliveira Sanches
Claudia Pereira de Sousa
Teresinha Fróes Burnham

6. Análise Cognitiva (AnCo) e o seu Campo .............................................. 73


Ana Maria Casnati Guberna
Claudia Ribeiro Santos Lopes

7. Anarquismo Epistemológico.................................................................... 90
Jose María Barroso Tristán

8. Antropofagia .......................................................................................... 102


Ivan Maia de Mello

9. Apoderar ................................................................................................ 110


Maristela Miranda
Maria Inês Correia Marques

10. Aprendizagem ...................................................................................... 115


Alvaro Adriazola Uribe
11. Aprendizado de Máquinas..................................................................... 125
Soltan Galano Duverger

12.Aprendizagens Profundas ...................................................................... 128


Soltan Galano Duverger

13. Audiência Ativa..................................................................................... 132


Marcílio Rocha-Ramos

14.Autoconhecimento................................................................................. 134
Alexsandro da Silva Marques

15.Avaliação Polilógica ............................................................................... 137


Urânia Auxiliadora Santos
Maia de Oliveira Maria Inês Corrêa Marques
Dante Augusto Galeffi

B
16. Biomimética ......................................................................................... 175
Javier Collado-Ruano

17. Bitcoins.................................................................................................. 183


Iza Angélica Carvalho da Silva

C
18. Cidadania Multidimensional e Multirreferencial .................................. 189
Isabelle Pedreira Déjardin
Dante Augusto Galeffi

19. Cinemação............................................................................................ 197


Marcílio Rocha-Ramos

20. Comunicação Intercultural —Icc (Inter-Cultural Comunication)......... 207


María Luz García Lesmes

21. Conceito ............................................................................................... 211


Dante Augusto Galeffi
João Paulo Jonas Almeida
22. Conceito de Texto................................................................................. 225
Antonia da Silva Santos

23. Conectivismo........................................................................................ 227


Antonio Ribas Reis

24. Construção do Conhecimento.............................................................. 230


Joseni França Oliveira Lima

25. Corpo Cognitivo................................................................................... 237


Gedalva Neves da Paz

26. Corporalização...................................................................................... 239


Lela Queiroz

27. Cosmograma Bacongo (Bantu) ............................................................. 249


Leonor Franco de Araujo

D
28. Deriva................................................................................................... 261
Eduardo Oliveira

29. Desenvolvimento................................................................................... 269


Ana Cristina de Mendonça Santos
Maria de Fátima Hanaque Campos

30. Dialógica da Análise Cognitiva (DiAnCo)............................................ 271


Cláudia Pereira de Sousa
Dante Augusto Galeffi
Leliana Santos de Sousa
Teresinha Fróes Burnham

31. Difusão do Conhecimento 1................................................................. 281


José Francisco Barretto Neto
Ana Maria Ferreira Menezes

32. Difusão do Conhecimento 2................................................................. 284


Ana Cristina de Mendonça Santos
33. Difusão do Conhecimento 3................................................................. 288
Sônia Chagas Vieira
Maria Inês Corrêa Marques

34. Design Cognitivo.................................................................................. 304


Alfredo Matta
Francisca de Paula Santos da Silva
Luciana Martins

35. Direitos Humanos................................................................................. 322


Ana Maria Maciel Bittencourt Passos
Maria Inês Corrêa Marques

36. Duração ou Tempo Real....................................................................... 328


Ginaldo Gonçalves Farias

E
37. Educação em saúde................................................................................ 333
Margarete Moraes
Alexandre Ghelman

38. Educomunicação .................................................................................. 344


Amilton Alves de Souza

39. Educomunicação: Revolução molecular................................................. 347


Marcílio Rocha-Ramos

40. Enfoque Ontossemiótico dos Conhecimentos Matemáticos.................. 362


Érica Correia da Silva

41. Estado Avaliador................................................................................... 366


Célia Tanajura Machado
Marcos Vinícius Castro Souza

42. Extensão Universitária.......................................................................... 374


Maria Celeste Souza de Castro
F
43. Fake News ........................................................................................... 385
Antonia da Silva Santos

44. Fenomenologia ..................................................................................... 393


Dante Augusto Galeffi
Robenilson Nascimento dos Santos

45. Festival educom..................................................................................... 412


Marcílio Rocha-Ramos

46. Filosofia Própria e Apropriada .............................................................. 413


Urânia Auxiliadora Santos Maia de Oliveira
Maria Inês Corrêa Marques

47. Finanças Solidárias ............................................................................... 427


Juçara Freire dos Santos

48. Flipped Classroom ......................................................................................................................................... 441


Alvaro Adriazola Uribe

G
49. Gamificação ......................................................................................... 451
Thiago Novais Rodrigues

50. Grande História ................................................................................... 453


Javier Collado-Ruano

H
51. Hibridismo Educacional........................................................................ 461
Gilberto Pereira Fernandes

I
52. Incomensurabilidade ............................................................................ 479
Jose María Barroso Tristán

53. Informação ........................................................................................... 483


Eneida Santana
54. Intelecto ............................................................................................... 489
Ginaldo Gonçalves Farias

55. Inteligência Artificial (IA)..................................................................... 497


Soltan Galano Duverger

56. Inteligência Coletiva.............................................................................. 501


Jaildon Jorge Amorim Góes
Marcos Vinícius Castro Souza

57. Interface ............................................................................................... 504


Amilton Alves de Souza

58. Interfaces Tecnológicas de Difusão do Conhecimento em AVA............. 506


Ana Cristina de Mendonça Santos

59. Internacionalização do Ensino Superior: Itinerância


e Interculturalidade ........................................................................................ 513
Jardelina Bispo do Nascimento

60. Intuição ............................................................................................... 520


Ginaldo Gonçalves Farias

L
61. Leituras.com.......................................................................................... 533
Marcílio Rocha-Ramos

M
62. Mercado de Capitais e Redes................................................................. 545
José Garcia Vivas Miranda
Tatiana Gargur dos Santos

63. Mídia ninja........................................................................................... 557


Marcílio Rocha-Ramos

64. Mídias Sociais ...................................................................................... 559


Dante Augusto Galeffi
Júlia Carvalho Andrade
Maria Adelina Hayne N. Mendes
65. Multiletramento.................................................................................... 568
Patrícia Souza Leal Pinheiro
Maria Inês Corrêa Marques

66. Multirreferencialidade .......................................................................... 578


Homero Gomes de Andrade

N
67.Níveis de Realidade e as três Éticas (segundo Stéphane Lupasco) ........... 589
Dante Augusto Galeffi

O
68. Oráculo Iorubano................................................................................. 617
Leonor Franco de Araújo

P
69. Perdurância........................................................................................... 631
Ginaldo Gonçalves Farias

70. Polifonia ............................................................................................... 636


Osvanildo de Souza Ferreira
Maria Inês Corrêa Marques

R
71. Raciocínio Baseado em Casos................................................................ 649
Márcio Vieira Borges

72. Radiohormese....................................................................................... 654


Antonio Cardoso

73. Redes Complexas ................................................................................. 657


Simone Gonsalves Mendes de Araújo

74. Redes Neurais Artificiais ...................................................................... 665


Soltan Galano Duverger

75. Relação Mente-Cérebro ........................................................................ 667


Jéssica Plácido Silva
76. Repositórios Arquivísticos Digitais ....................................................... 671
Rodrigo França Meirelles
Francisco José Aragão Pedroza Cunha

77. Rizoma.................................................................................................. 674


Lívia Santos Simões
Júlia Carvalho Andrade

78. Role Playing Game Digital.................................................................... 679


Igor Bacelar da Cruz Urpia
Marcos Vinícius Castro Souza

S
79. Saberes ................................................................................................. 685
Amilton Alves de Souza

80. Self........................................................................................................ 688


Ivana Libertadoira Borges Carneiro

81. Superdotação ........................................................................................ 700


Daniela Fernanda da Hora Correia

T
82. Tecnologia Social ................................................................................. 707
Juçara Freire dos Santos

83. Tempo-Vida-Duração ........................................................................... 726


Luciana Accioly Lima

84. Teoriação Polilógica ............................................................................. 736


Dante Augusto Galeffi

85. Trabalho Colaborativo.......................................................................... 771


Anita dos Reis de Almeida
Hélio Souza de Cristo
Marcos Vinícius Castro Souza

86. Tradições de Conhecimento e Sistemas de Categorias .......................... 777


Jose María Barroso Tristán
87. Transciclopédia ..................................................................................... 789
Dante Augusto Galeffi

88. Turismo de Base Comunitária (TBC)................................................... 793


Eudes Mata Vidal
Francisca de Paula Santos da Silva
Alfredo Eurico Rodrigues Matta

V
89. Vigilância ............................................................................................. 807
Eledison Sampaio

90. Visão de Mundo.................................................................................... 813


Jaildon Jorge Amorim Góes
Dante Augusto Galeffi

91. Visão/Visualidade Poliperspectivada...................................................... 823


Jaildon Jorge Amorim Góes

92. Visibilidade Cultural ............................................................................ 829


Anselmo José da Gama Santos
Maria Inês Corrêa Marques

X
93. Xirê: Um Olhar Estético ...................................................................... 837
Alessandro Malpasso
Dante Augusto Galeffi

W
94. Website ................................................................................................. 861
Thiago Novais Rodrigues
APRESENTAÇÃO
Por que publicar uma Transciclopédia em Difusão do Conhecimento?

A apresentação de uma obra como a Transciclopédia em Difusão do Conheci-


mento requisita um esclarecimento de sua gênese, de seu desenho em ordem alfabética,
como em um dicionário ou em uma enciclopédia, e sua diferença em relação à uma
“enciclopédia”, e porque ela deve ser publicada como foi concebida e não abrir mão
de sua originalidade despojada de qualquer pretensão finalista ou de fechamento
cognitivo de algum campo do conhecimento. É justamente em sua abertura para
o inusitado e sua forma de expressão como livro inacabado que a Transciclopédia
pode ter algum valor no campo do conhecimento acadêmico autorizado.
E a Transciclopédia também nasce de um problema que requisita uma inves-
tigação aprofundada das possíveis metodologias de análise de processos cognitivos,
sem deixar nada e ninguém de fora. Se abre, assim, um espaço de escuta das vozes e
presenças que compõem um coletivo de autores e autoras vinculadas ao Doutorado
Multi-institucional e Multidisciplinar em Difusão do Conhecimento (DMMDC), seja
como estudante do doutorado ou como docente. É uma reunião de multiplicidades,
o que está de acordo com o sentido da Transciclopédia em sua proposição inusitada
e focada em um campo de presenças vivas e todas elas próprias e apropriadas.
Um breve relato da gênese que dá origem à Transciclopédia começa a partir do
componente curricular obrigatório para os doutorandos que cursavam o Doutorado
Multi-institucional e Multidisciplinar em Difusão do Conhecimento (DMMDC),
“Metodologia de Análise dos Processos Cognitivos”, na turma do semestre letivo
de 2017.2. O campo do componente curricular é o de investigação de processos
cognitivos e suas metodologias, com ênfase nas ciências cognitivas contemporâneas
e nas epistemologias não acadêmicas decorrentes da produção de conhecimento
em comunidades de prática e tradicionais. Um dos pontos de afirmação forte do
componente tem sido a abertura para as diferentes proposições de investigação dos
doutorandos e suas matrizes de referência epistemológica variada.
E o próprio objetivo do doutorado é a formação do Analista Cognitivo ou
Cognólogo nas diversas áreas do conhecimento multirreferencial e interdisciplinar, na
busca de efetuação de um diálogo vivo entre os autores ativos do processo formativo.
Os participantes da turma foram convidados a apresentar um conceito-chave de suas
metodologias de pesquisa e elaborá-lo de forma ensaística e que pudesse também
se aproximar de uma forma mais simples de definição de um conceito operador,
16 TRANSCICLOPÉDIA EM DIFUSÃO DO CONHECIMENTO

podendo alcançar um público não especializado. Esta proposição esteve afinada


com a variedade de perspectivas presentes na turma e da necessidade de se ter um
metaponto de vista e de compreensão para abraçar a variedade epistemológica que
é assim acolhida e valorizada em suas presenças e singularidades próprias. É, assim,
um exercício de despojamento de categorias epistemológicas hierarquizadas em que
prevalece um único padrão de referência. Aqui não, o que importa é a variedade e
a multiplicidade de perspectivas e de conceitos operadores.
Essa é também a diferença da Transciclopédia em relação a uma enciclopédia
comum. Entretanto, ainda se mantém a identidade do nome como fator de reconhe-
cimento de presenças vivas e não de palavras-conceitos mortos. A Transciclopédia,
assim, não é impessoal e genérica, ao valorizar a pessoalidade de quem elaborou
algum conceito-chave de sua caixa de ferramentas epistemológicas, seus operadores
conceituais e metodológicos.
Ora, a análise cognitiva tem que servir para alguma coisa importante no
campo do conhecimento humano, não se limitado ao já instituído, mas sem negar
os instrumentos legados pela tradição e disponíveis bibliograficamente e tecnica-
mente. A ideia inusitada desta Transciclopédia é a de que o conhecimento humano
tem que ser reconhecido lá onde ele está e em sua singularidade contextual e não
segundo um ideal de objetividade monológica que a tudo reduz a apenas um nível
de Realidade.
O desenho, portanto, deste livro é um experimento sem nenhuma pretensão de
acabamento e de seriedade repressora, pois o seu caminho é necessariamente, sendo
uma transciclopédia, brincante e ridente. Sim, porque o “trans” de transciclopédia
quer justamente abandonar o horizonte monológico da racionalidade epistemológica
moderna e contemporânea marcada pela disciplinaridade fragmentadora e especiali-
zante, porque acredita em ações concretas na feitura dos conhecimentos necessários
à vida humana universal e de seu serviço liberador e curador, não pela definição
de um modelo regulador único e abstrato, e sim pela presença da inteligência e da
sensibilidade possíveis à cognição humana atentiva e criadora, quando os seres hu-
manos compreendem que existem como indivíduos participantes de sociedades de
indivíduos em um mundo vivo, percebendo a importância de uma ciência da vida
que só subsiste como serviço comum e partilhado amorosamente.
De modo poético e alegórico, é o amor que a tudo congrega em sua ação radical
de cuidado e cura, e que faz tudo ser o que é: uma ressonância do poder inteligente
e compassivo que a tudo mantém e propaga, o que interessa revelar e louvar, e sendo
esta afirmação uma crença na necessidade de abrirmos o nosso coração e nossa mente
TRANSCICLOPÉDIA EM DIFUSÃO DO CONHECIMENTO 17

para a possibilidade e efetividade de um conhecimento que atua além do registro da


razão instrumental e calculativa, e que se pode ter acesso em outros registro além
do científico e epistemológico, como o registro propriamente artístico e o registro
místico, ou mesmo o registro filosófico-literário.
Uma dessas coisas que a razão científica não dá conta é o acesso à vivência direta
de um conhecimento intuitivo, porque isso pressupõe a ativação de zonas do cérebro
que propiciam o florescimento de uma mente desperta e atenta aos acontecimentos
em seu ambiente de existência. Essa forma de vivência é puramente subjetiva, no
sentido de que é vivida psicologicamente por seres humanos vivos e temporalmente
existentes. É o que também se pode chamar de “conhecimento tácito” em contra-
ponto ao “conhecimento explícito”. De qualquer modo, este é um conhecimento que
não se pode dominar pela razão calculadora, e que é imaterial em seu agir, mas se
conecta à toda a materialidade como percepção do que só faz sentido para os seres
inteligentes e sensíveis vivos.
Sim, há muita desproporção entre os textos-conceitos que compõem a
Transciclopédia e isso foi proposital e necessário, porque tratava-se de incluir todos,
de abrir o campo de reconhecimento das presenças vivas sem nenhuma pretensão de
ensinar-lhes o caminho correto. E isto porque o caminho correto é aquele de cada
um em sua autodeterminação conjuntural, dependente do seu ambiente vital e dos
outros semelhantes ou não.
Eis aí, também, a afirmação da diferença e da diversidade, da multiplicidade e
da polifonia, da heterogênese e da complexidade e sua cosmogênese: a abertura de
escuta sensível para o outro que não sou eu e nem o que imagino que ele é. Assim é
a atitude de acolhimento polilógico: uma teoriação atentiva, acolhedora, conectora
da parte e do todo, da parte no todo e do todo na parte, não pelo mero discurso, e
sim pela ação polieticamente ativa e cocriadora.
Assim, a perspectiva epistemológica da Transciclopédia é multirreferencial e poliló-
gica, transdisciplinar e complexa, não cabendo nenhuma redução de campo conceitual
único e “universal”. Universal propriamente é o comum da unidade múltipla, um
comum que é a totalidade das partes que compõem um todo, um todo que é sempre
maior do que a soma de partes, uma unidade que não é a oposição da variedade, mas
o elemento comum ativo: a inteligência criadora que nunca é individual, sendo sempre
comum a tudo o que é. É esta a ideia motriz da Transciclopédia, dar voz e reconhe-
cimento a todos os seus participantes que aderiram e acolheram o projeto deste livro
e compuseram um texto original destinado a formar o dossiê que aqui apresentamos
com o nome provocante de Transciclopédia em Difusão do Conhecimento.
18 TRANSCICLOPÉDIA EM DIFUSÃO DO CONHECIMENTO

É, sim, uma provocação, porque chegou a hora de caminharmos na direção de


uma ciência da complexidade que seja capaz de não deixar nada de fora, de incluir
tudo e todos sem exceção. É uma ciência que só se pode fazer por meio de uma
política propriamente humana e que cuide zelosamente das coisas humanas em
harmonia com as coisas vivas da natureza de Gaia, planeta-água.
Não é uma simples teoria ou uma ação comum, mas uma teoriação polilógica
que se faz a contrapelo de qualquer ideia de história oficial ou verdade única. A única
verdade que importa é a verdade de cada um em sua verdade própria e apropriada,
ou seja, em seu ser e contexto existencial concreto. Acreditamos, também, que o
aparente rigor para a qualificação da pesquisa acadêmica e científica fundamentada
tem sido muito mais um fator de repressão do que não se encontra listado do que
propriamente um aumento na qualidade de seus produtos.
Essa constatação nos permite reconhecer a importância de construirmos novos
instrumentos conceituais e operantes para a gestão inteligente e sensível da vida em
toda a sua variedade e riqueza na variedade. E o que ainda justificaria permanecer na
gramática monológica para a qual o mundo só tem um lado e é plano? Sinceramente,
nada justificaria estarmos agindo na repetição do passado, porque o passado já está
no presente e já é futuro no aqui de quem floresce em sua cognição incorporada,
própria e apropriada.
É do florescimento de ideias e conceitos de que estamos falando, e todo flores-
cimento é o florescimento de alguém em particular, um ser vivo e vivente em sua
autopercepção cognitiva atuante e contextualizada. É de atuação do que se trata. A
atuação dos artesãos de nomes, seus autores e autoras. E o livro foi organizado por
mim e pela Profa. Maria Inês Corrêa Marques, e no final contou com a presença
de Marcílio Rocha Ramos, que entra na organização como convidado para compor
um trio de sustentação na realização e difusão do livro, que não nasce para disputar
nada e nem para ser o mais importante em uma lista . Ele nasce simplesmente para
ser aquilo que ele acabou sendo na reunião dos textos. É também uma epistemologia
rizomática aquela que modela a obra, porque é também acêntrica a sua crença no
conhecimento público compartilhado horizontalmente e, assim, responsável pela sua
ética própria em consonância com a lei do amor incondicional e do cuidado atentivo
e disposto ao serviço ao Mundo da Vida em sua totalidade e inteireza incontornáveis
por uma razão redutora e preconceituosa com a pessoas que ela desconhece e com
as coisas que ela não pode ver por sua limitação estrutural.
A publicação agora da Transciclopédia é também um ato de resistência criativa
em tempos da pandemia do COVID 19, e um ato de correspondência à confiança de
TRANSCICLOPÉDIA EM DIFUSÃO DO CONHECIMENTO 19

todos os autores e autoras aqui presentes, um conjunto de 74 pessoas, todas autênticas


criadoras de suas próprias sagas epistemológicas e poéticas, místicas e filosóficas, éticas
e políticas. Um total de 94 conceitos, que também foram chamados de “verbetes”
compõem esta primeira versão de uma Transciclopédia, e possivelmente ela poderá
ter uma continuidade e de um simples experimento despretensioso que é hoje se
tornar algo mais robusto e potente.
Mas isso não está em nossas mãos apenas, e requer a continuidade necessária
para que uma ideia se torne um manancial vivo de novas criações e realizações de
uma ciência complexa e multirreferencial polilógica e transdisciplinar, mas, sobretudo,
aqueles e aquelas que possam assumir para si esta tarefa de continuidade e atualização
da Transciclopédia conforme a sua concepção circular e dialógica, reunindo todos
os autores em círculo em movimento espiral, o que possibilita uma navegação sem
uma sequência linear fechada entre um antes e um depois. No círculo cada ponto
é uma presença com sua palavra ou conceito próprio.
Essa flexibilidade de fluxo também evidencia a incompletude do conjunto da
obra que sedo uma Transciclopédia em Difusão do Conhecimento, colada à imagem
da enciclopédia teria que abarcar a totalidade dos termos utilizadas como ferramen-
tas conceituais em todos os campos do conhecimento científico-acadêmico, o que
está fora de propósito humanamente e só caberia mesmo à um supercomputador
agenciar e realizar.
Justamente pela incompletude evidenciada como reconhecimento epistemológico
fundamental é que não temos receio de formularmos uma transciclopédia como forma
de transcendermos os limites de uma razão da completude e da exaustão absolutas.
Queremos o humano e intencionamos reconhecer o local e o que está próximo de nós
como base para agirmos em relação a quem está distante de nós. E o que é a distância
em tempo de comunicação digital? De qualquer modo, a distância psicológica entre
as pessoas continua a existir mesmo diante do enxame digital dominante.
É importante também salientar a riqueza deste livro com seus inacabamentos
e incompletudes, porque ele igualmente colabora para a difusão do conhecimento
multirreferencial e polilógico que já se produz no âmbito do Doutorado em Difusão
do Conhecimento, mostrando como a sua complexidade requeira outras atitudes
epistemológicas e que sejam atitudes aprendentes radicais que nunca aceitam as
coisas como dadas e acabadas para deleite de alguns poucos que se autoproclamaram
eleitos e especiais.
Mas este livro é também a realização de uma festa, na medida em que o seu
acontecimento é motivo de alegria e é festejado pelos seus autores e autoras como algo
20 TRANSCICLOPÉDIA EM DIFUSÃO DO CONHECIMENTO

importante e valoroso porque justamente acolhe a todos os presentes como iguais na


partilha do que ao ser formado percebe que o seu fundamento é o sem fundo, o sem
forma, o sem sentido algum além daquilo que ele mesmo é florescendo e louvando os
Devas primordiais e finais de tudo o que é se e encontra jorrando indefinidamente.
Este é o tamanho desta celebração, o tamanho incomensurável da alegria de cada um
em presenciar o seu próprio e apropriado florescimento como ser humano espiritual,
isto é, participante em sua própria constituição ontológica da inteligência divina
em cada uma das camadas do seu corpo próprio, com seu cérebro trino e sua mente
nova ainda não condicionada pelas experiências do passado.
Claro, muito mais poderia ter sido agregado como conceito-chave e opera-
dor epistemológico ao corpo da transciclopédia, inclusive ao usarmos as letras do
alfabeto como sinalizadores não nos preocupamos em ocupar todas as letras com
conceitos, mas isso não aconteceu por vários motivos, mas todos eles só mostram a
precariedade de nossas vidas concretas e o quanto dá trabalho formar uma obra que
possa ser útil para os novos pesquisadores e pesquisadoras interessadas em realizar
o seu ingresso no doutorado em difusão do conhecimento, que em breve também
terá um mestrado, se tudo correr de acordo com o esperado.
Mas também serve de marco para pesquisadores e pesquisadoras interessadas
em investigar a variedade e complexidade de temas atinentes à Difusão do Conhe-
cimento que se vem desenvolvendo no DMMDC, e de como este doutorado está se
tornando uma referência no tratamento de abordagens complexas, multirreferenciais,
interdisciplinares, transdisciplinares e polilógicas do conhecimento público, que
agora aprendeu a reunir instâncias capitais da vida que antes estiveram separadas
pela modulação da racionalidade científica moderna, que se tornou racionalidade
tecno-científica contemporânea.
Caminhando com a leveza de quem chega para somar e não para desfazer e
tirar, sabemos como é difícil em um mundo como o nosso constituir frentes de tra-
balho formativo e transformativo com sua diferença própria, seu modo inusual de
abordar os fatos e os ditos, porque há uma imposição hierárquica que estabelece um
ranqueamento entre os centros de conhecimento e universidades de todo o mundo,
em base a critérios que precisariam ser analisados rigorosamente, porque instituem
a disputa e a concorrência, a luta pela posse do poder central e o aniquilamento do
todo aquele que não pensa nos moldes monológicos e servis de controle das massas
humanas carentes de formação e transformação libertadora e não opressora e su-
pressora da diversidade e da diferença que a tudo faz germinar em conformidade
com a variedade infinita de cada acontecimento singular em suas presenças únicas.
TRANSCICLOPÉDIA EM DIFUSÃO DO CONHECIMENTO 21

Afinal, ninguém pode viver a vida do outro como se fosse a sua, porque a vida
do outro nunca será a vida igual ao outro que era igualzinho ao outro que também
tinha outro que era igual ao outro sem fim. E por isso podemos seguir com altivez
e alegria e propalar nossa vitória parcial sobre o caos de nossas vidas entrelaçadas.
Sempre cantando uma nova canção!

Dante Augusto Galeffi


Salvador, julho de 2020
TRANSCICLOPÉDIA EM DIFUSÃO DO CONHECIMENTO 23

Espiral das letras do alfabeto e o número de palavras-conceitos


em cada letra
Índice das palavras-conceitos suas ocorrências em ordem alfabética

24
TRANSCICLOPÉDIA EM DIFUSÃO DO CONHECIMENTO
A
1. Acesso à Informação

José Francisco Barretto Neto


Thiago Rodrigues
Ana Maria Ferreira Menezes

O Acesso à Informação, em especial a informação pública, nas últimas décadas,


tem recebido destaque nas agendas dos países ao redor do mundo e, em particular, no
continente americano, ocupando os legisladores na elaboração de leis que garantam esse
direito, bem como nas agendas dos organismos internacionais que discutem os direitos
humanos da sociedade civil, dos acadêmicos e dos meios de comunicação social, que
vem debatendo e monitorando a implementação dessas leis, sendo um instituto que tem
crescido ao longo do tempo, tendo como ponto de partida a legislação sueca de 1766,
a primeira aprovada sobre Liberdade de Pensamento e Acesso à Informação Pública.
No entanto, segundo Villanueva (2006), muitos países, apesar de possuírem
uma norma sobre essa temática, não garantem o pleno acesso à informação e adotam
tal instituto em forma de decretos ou regulamentos com a finalidade de serem apenas
politicamente corretos e que, pela sua própria natureza hierárquica, não garantem
a efetividade da norma.
Segundo ele,
Con gran frecuencia es posible advertir decretos, reglamentos o productos
jurídicos de similar naturaleza que por su propia jerarquía normativa no
aseguran el derecho a saber […] hacen sólo para satisfacer las demandas de lo
políticamente correcto (VILLANUEVA, 2006, p. 5).

Sem dúvida, nos últimos 20 anos, tem-se ampliado o número de legislações


em todas as regiões do planeta sobre o direito ao acesso à informação pública; no
mundo já são 128 países e, no continente americano, cerca de 25, que já contam
com legislação específica aprovada.
Diversos tratados e declarações internacionais, como a Declaração Universal
dos Direitos Humanos, o Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos, a
Convenção Americana sobre Direitos Humanos, a Declaração de Princípios sobre
Liberdade de Expressão, a Corte Interamericana de Direitos Humanos, e outros, têm
sido unânimes em reconhecer o acesso à informação como um direito fundamental
humano garantidor de outros direitos.
28 TRANSCICLOPÉDIA EM DIFUSÃO DO CONHECIMENTO

No continente americano, destacam-se os EUA que aprovou sua lei de acesso


à informação em 1967, o Canadá em 1982, o México em 2002 e o Chile em 2009.
Vale considerar que, no Chile, essa discussão vem à tona depois do Caso Claude
Reyes versus Chile, no ano de 2006, quando a Corte Interamericana de Direitos
Humanos se converteu no primeiro tribunal internacional a reconhecer que o direito
de acesso à informação pública é um direito humano fundamental, resguardado por
tratados de direitos humanos que obrigam os países a respeitá‐lo. Este reconhecimento
só ocorreu, após várias tentativas de Claude Reyes buscar informações em diversos
tribunais locais sobre um projeto de desflorestamento que se realizaria no sul desse
país (OEA/CIDH, 2012, p. x-xi).
No Brasil, o acesso à informação foi regulamentado pela Lei nº 12.527/2011,
aprovada pelo Senado Federal, em 28 de outubro de 2011, sancionada pela Presidenta
Dilma Rousseff, em 18 de novembro, com vigência a partir de 16 de maio de 2012,
após três anos de debates no Congresso Nacional e regulamentada pelo Decreto
nº 7.724, de 16 de maio de 2012. Destaca-se que, desde a Constituição Federal de
1988, havia a previsão da garantia do acesso à informação, no inciso XXXIII, do
artigo 5: “[...] todos têm direito a receber dos órgãos públicos informações de seu
interesse particular, ou de interesse coletivo ou geral, que serão prestadas no prazo da
lei, sob pena de responsabilidade, ressalvadas aquelas cujo sigilo seja imprescindível
à segurança da sociedade e do Estado” (BRASIL, 2016, p. 10-11).
A garantia do acesso à informação se constitui uma ferramenta imprescindível
para a difusão do conhecimento e o empoderamento do cidadão, no sentido de fornecer
os elementos necessários para participação efetiva e um melhor acompanhamento
do processo que envolve as políticas públicas, bem como para a organização cidadã
em torno da garantia dos direitos fundamentais do ser humano.
A obrigatoriedade do agente público prestar as informações produzidas pela
gestão pública ou sob a custódia do Estado tem fortalecido a participação e o con-
trole social das políticas públicas, contribuindo para a democracia representativa e
a consolidação do exercício da cidadania.
Há um imenso uso do termo transparência ao se querer o livre acesso às infor-
mações públicas, visto que parte do intuito esperado esteja na perspectiva de uma
administração limpa, que não tenha o que esconder. No entanto, o verdadeiro poder
do acesso à informação vai além de permitir sanar curiosidades ou exercer fiscaliza-
ções. O acesso, no que tange a Lei de Acesso à Informação (LAI), vai ao propósito
de informações e dados abertos, de forma que o cidadão possa tê-las e utilizá-las, das
mais diversas formas, ampliando seu poder junto a administração pública.
TRANSCICLOPÉDIA EM DIFUSÃO DO CONHECIMENTO 29

Visando a esse objetivo, a LAI, no Art. 8, parágrafo 3°, direciona os requisitos das
informações para dados abertos, devendo possibilitar a gravação de relatórios em diversos
formatos eletrônicos, inclusive que sejam em formato aberto e não proprietários, como
planilhas e processadores de textos, bases de dados estruturados ou semiestruturados,
de modo a facilitar a análise das informações. Dessa forma, possibilita que não apenas
um segmento da população utilize os dados, e não somente para leitura, mas viabili-
zando a repórter, geógrafo, empresário, analista de sistema, economista, pesquisador,
estudante ou qualquer outro segmento minerar as informações, automatizar e aplicar
às mais ricas possibilidades. Dados abertos com qualidade para ter real significância
de utilidade e reuso, possibilitando melhores análises, divulgações de perspectivas,
decisões baseadas nas informações, levando a uma maior participação e cocriação da
sociedade conectada aos governos. O que torna o acesso a dados abertos algo muito
mais poderoso para o cidadão do que a transparência por si só.
Como diz a Instrução Normativa nº 4, de 12 de abril de 2012, que institui a
Infraestrutura Nacional de Dados Abertos — INDA,
[...] considerando que a adoção de meios eletrônicos para a disponibilização
de dados públicos necessita de que esses dados sejam publicados de forma
que facilite seu reuso e permitam o acesso simplificado para os seus usuários,
premissas presentes nos princípios de dados abertos (BRASIL, 2012, s/p).

Em outra perspectiva, esse movimento de acesso à informação tem como um de


seus principais adversários a cultura do segredo que, muitas vezes, prevalece na gestão
pública junto a um egocentrismo no controle estatal sobre a sociedade. Na cultura do
segredo, a gestão pública vive o princípio de que a circulação de informações representa
risco, bem como o retê-las significa poder. Entre muitas percepções que comungam
para imperar a cultura do segredo, destaca-se a de que o cidadão só pode solicitar o
que lhe diz respeito diretamente, pois os dados fornecidos indistintamente podem
ser utilizados de modo indevido por grupos de interesses opostos, significando que a
demanda de informações pelo cidadão é um problema que sobrecarrega os servidores,
comprometendo outras atividades e até mesmo à população que não está preparada para
exercer o direito de acesso à informação. Enquanto isso, a cultura de acesso aceita que o
fluxo de informações favorece a tomada de decisões, a boa gestão de políticas públicas
e a inclusão do cidadão, se formando um círculo virtuoso (BRASIL, 2011, p. 12-13).
O advento das inovações tecnológicas e da internet tem possibilitado a gestão
e difusão das informações e o seu compartilhamento em tempo real, garantindo o
seu acesso a um número cada vez maior de pessoas, favorecendo o empoderamento
dos cidadãos e a sua participação nos processos de decisão.
30 TRANSCICLOPÉDIA EM DIFUSÃO DO CONHECIMENTO

Para Mendel,
[...] la tecnología informática ha aumentado la capacidad general de la ciu-
dadanía común de controlar la corrupción, de exigir rendición de cuentas a
sus líderes, y de dar insumos a los procesos de decisión. Esto a su vez, o para
decirlo con más precisión, paralelamente ha llevado a mayores demandas de
que se respete el derecho a la información (MENDEL, 2009, p. 4).

A própria Lei de Acesso à Informação já determina a internet como o principal


(não único) meio de divulgação, quando preceitua no Art. 8 “[...] que toda instituição
deverá divulgar na internet as informações de interesse coletivo ou geral por eles
produzidas ou custodiadas” e ainda especifica o mínimo de informações e recursos
que devem ser disponibilizados em sites (BRASIL, 2011, p. 15).
O acesso à informação é um direito humano fundamental quando se estabelece
que qualquer pessoa pode acessar as informações significantes produzidas, controla-
das ou sob a guarda do Estado e de órgãos privados criados ou controlados por ele,
em qualquer meio ou formato, de interesse individual ou coletivo, sujeito apenas às
exceções, o sigilo das informações pessoais de caráter sensível ou de segurança do
Estado. O conceito de acesso à informação parte do princípio de que a sociedade é
proprietária das informações e o Estado apenas seu guardião.
Consideram-se informações todos e quaisquer dados, registros, processados
ou não, que podem ser utilizadas para produção, gestão, transmissão e difusão de
conhecimentos; e informações sigilosas são aquelas que, por meio de lei, estejam
temporariamente submetida à restrição do acesso público, por ser imprescindível à
segurança da sociedade e do Estado, ou seja, de natureza pessoal, sensível.
Em uma sociedade democrática é imperativo o conhecimento das informações
produzidas e/ou custodiadas pelo Estado para a realização efetiva da cidadania plena
e da participação dos cidadãos na gestão das políticas públicas.
Como afirma a Relatoria Especial para a Liberdade de Expressão — CIDH/OEA,
[…] el acceso a la información es una herramienta que se ajusta perfecta-
mente a lo que se espera de los miembros de una sociedad democrática. En
sus manos, la información pública sirve para proteger derechos y prevenir
abusos de parte del Estado. Es una herramienta que da poder a la sociedad
civil y es útil para luchar contra males como la corrupción y el secretismo,
que tanto daño hacen a la calidad de la democracia en nuestros países (OEA/
CIDH, 2012, p. x).

No mesmo sentido, Villaneuva (2006, p. 12) afirma que “[...] o acesso à in-
formação é um pressuposto para o exercício da democracia, se constituindo em um
TRANSCICLOPÉDIA EM DIFUSÃO DO CONHECIMENTO 31

direito instrumental para o exercício de outros direitos, sendo a sua garantia, a regra;
e a sua restrição, a exceção.
Cabe ao Estado proporcionar os meios que permitam a plena satisfação do direito
de acesso à informação, em um curto espaço de tempo ou por meio da transparência
ativa. O Estado também deve desenvolver políticas e práticas de conservação, gestão
e difusão das informações custodiadas ou produzidas por seus agentes públicos, de
modo que contribua com a ampliação dos mecanismos de participação social.
Desse modo, nota-se a relevância do direito de acesso às informações públicas
para o cidadão garantir outros direitos fundamentais, bem como proporcionar a
difusão do conhecimento para o acompanhamento das políticas públicas e a capa-
citação para a tomada de decisões.

REFERÊNCIAS
BRASIL. Instrução Normativa SLTI/MP. N. 4, de 12 de abril de 2012. Institui a
Infraestrutura Nacional de Dados Abertos — INDA. Portal Brasileiro de Dados
Abertos: 2012, Disponível em: <http://dados.gov.br/pagina/instrucao-normativa-
da-inda>. Acesso em: 24 fev. 2018.

BRASIL/ Controladoria-Geral da União — CGU. Aplicação da Lei de Acesso à


Informação na administração pública federal. 2. ed. Brasília, 2016.

BRASIL/ Controladoria-Geral da União — CGU. Acesso à Informação


Pública: uma introdução à Lei n. 12.527/2011. Brasília: Imprensa Nacional,
2011. Disponível em: <http://www.acessoainformacao.gov.br/central-de-
conteudo/publicacoes/arquivos/ cartilhaacessoainformacao-1.pdf>. Acesso em: 25
de fevereiro de 2018

OEA/CIDH. El derecho de acceso a La información en El marco jurídico


interamericano. Segunda edición. OEA, 2012

MENDEL, Toby. El Derecho a la Información en América Latina.


UNESCO: Equador, 2009. Disponível em: <http://unesdoc.unesco.org/
images/0018/001832/183273s.pdf>. Acesso em: 19 fev. 2018.

VILLANUEVA, Ernesto. Derecho de accesso a la informácion em el mundo.


México: Micuel Angel Porrúa, librero-editor, 2006. Disponível em: <http://
biblioteca.diputados.gob.mx/janium/bv/ce/scpd/LIX/der_acc_inf_mun.pdf>
Acesso em: 06 out. 2017.
2. Africanidades

Eduardo Oliveira

Africanidades é uma categoria de tempo e espaço conjugada. Reúne o que a


injustiça separou. Reivindica a unidade na diferença e a diferença na unidade. Pro-
move o face a face depois do esquecimento provocado pela travessia do Atlântico.
Na escala de tempo e espaço, as africanidades dizem respeito à cultura material e
simbólica da diáspora africana, recriada e ressemantizada em território africano e
não-africano. É política e estética, concomitantemente. Não reduz o cultural a ex-
pressões artísticas, nem o artístico a abstrações metafóricas. É uma língua comum
entre culturas diferentes. É mais metonímia e menos metáfora. É sentimento de
pertença. Compreende-se como forma cultural, isto é, as condições epistemológicas
onde as ações humanas (e não humanas) se dão e produzem sentido. Cultura como
produção de sentido é africanidade como discurso epistêmico. O tempo ampliado
(dos viventes e ancestrais) e o espaço difuso (de africanos e seus descendentes seme-
ados pelo mundo) perfazem a trama e a urdidura desse discurso. Discurso que, por
sua vez, tem o vetor do tempo voltado ao passado, à experiência. Experiência que
tem como eixo de validação a pragmática e o encantamento. Encantamento que tem
na ética de processos liberadores o seu ápice, e na ancestralidade, o seu corolário.
Ancestralidade é o princípio régio das africanidades. É lastro de tempo e espaço em
processos de subjetivação, síntese, crítica e criação. É lógica diferencial e transversal,
perpassando os vários extratos de enfrentamento e produção do mundo, a um só
tempo. Africanidades é uma categoria que compreende e se compreende a partir
do mundo cultural africano-diaspórico na superação do racismo e na produção de
uma nova regra de justiça social e felicidade subjetiva. É insurreição social e fluidez
literária e, assim, vale-se de seus dispositivos ancestrais (beleza, ritmo, gênero, reli-
giosidade, negociação, ginga, encantamento, organização, ironia, coalizão, criativi-
dade, combatividade, sagacidade, diversidade, inovação, tradição, mito, rito, corpo,
poética, contemporaneidade). Africanidades é um (re)encontro consigo mesmo, na
dimensão coletiva da vivência ancestral, que tanto nos atravessa quanto tecemos
nas micropolíticas do dia a dia e na macroestrutura do enredamento tempo-espaço.
3. Algoritmo

Alvaro Adriazola Uribe

1. ORIGEM DA PALAVRA ALGORITMO


Antes de começar a estudar e aprender um conceito pode ser proveitoso co-
nhecer a procedência da palavra que o nomeia. Donald Knuth (1997), no primeiro
capítulo do livro, The Art of Computer Programming, v. 1/ Fundamental Algorithms,
faz uma completa análise da sua origem, indicando que a palavra Algoritmo deriva
da tradução para o latim da palavra árabe Alkhôwarîzmi, nome de um matemático
e astrônomo árabe que escreveu um tratado sobre a manipulação de números e
equações, no século IX, intitulado Kitab Al-Jabr W’Algumalaba onde aparece a
palavra álgebra, que derivou pela sua semelhança sonora de Al-Jabr. Em 1950,
depois de várias mudanças, a palavra Algoritmo foi mais frequentemente associada
ao Algoritmo de Euclides, que é um processo para encontrar o maior divisor comum
de dois números.
No sentido informal, um algoritmo é uma coleção de instruções simples para
fazer alguma tarefa. Na cotidiano, os algoritmos, às vezes, são chamados de pro-
cedimentos ou receitas (SIPSER, 2006). Se procurarmos a definição no dicionário
Michaelis, encontramos que o conceito de algoritmo é a “[...] utilização de regras para
definir ou executar uma tarefa específica ou para resolver um problema específico”.
A partir desses conceitos de algoritmos, pode-se perceber que a palavra algoritmo
não é um termo computacional, ou seja, não se refere apenas à área da informática.
É uma definição ampla que, consciente ou inconscientemente, é utilizada no coti-
diano normalmente.
É assim que seu uso, além de amplio, é bastante vigente e versátil nas temáticas
em que é utilizado. O Congreso Futuro é um evento anual que acontece no Chile
e alberga os melhores cientistas do mundo para reuniões e palestras das distintas
ciências e onde o conceito Algoritmo esteve presente, por exemplo, no tema “O
impacto social e ético da inteligência artificial” do historiador israelita Yuval Noah
Harari (2016) quando resumiu a biologia em quatro palavras: “os organismos são
algoritmos”, e afirmou que os seres humanos são formados por algoritmos químicos
modelados por seleção natural, e que, algum dia, serão compreendidos, decifrados
e ultrapassados por outros: os eletrônicos.
34 TRANSCICLOPÉDIA EM DIFUSÃO DO CONHECIMENTO

Também Saskia Sassen, (2017), socióloga holandesa, em outra versão do mesmo


evento, defendeu que os algoritmos e a digitalização dominam o mercado especu-
lativo que ganhou terreno sobre a banca tradicional na década de 1980, marcando
o grande troca que trouxe à modernidade.
Em nível informático, um algoritmo são os passos ou procedimentos compu-
tacionis completamente definidos, que começam com valores de Entrada de dados
(problema) que levam a produzir um valor de saída de dados (solução) (CARVALHO;
CASTRO, 2002).

2. PARTES DE UM ALGORITMO
Embora anteriormente tenham sido nomeadas duas, Ferrari e Cechinel (2008)
indicaram que um algoritmo está conformado por três partes (Fig. 1):
• Entrada de dados: aqui entram as informações necessárias para que o
algoritmo seja executado. Os dados são fornecidos quando o programa é
executado ou podem estar inseridas nele.
• Processamento de dados: nesta etapa são avaliadas as expressões algébri-
cas, relacionais e lógicas, bem como as estruturas de controle existentes
no algoritmo (condição e/ou repetição).
• Saída de dados: aqui os resultados do processamento (ou parte deles) são
enviados para um ou mais dispositivos de saída, como: monitor, impressora,
ou mesmo a própria memória do computador.

Figura 1 – Partes básicas de um algoritmo

3. CARACTERÍSTICAS DOS ALGORITMOS


Oliveira (1997) se referiu ao algoritmo como um conjunto finito de regras que
fornece uma sequência de operações para se resolver um problema específico. Para
cumprir a função de encontrar solução a um problema, Donald Knuth (1997) diz
que um algoritmo tem cinco características importantes:
• Finitude: um algoritmo deve sempre terminar após um número finito
de passos.
TRANSCICLOPÉDIA EM DIFUSÃO DO CONHECIMENTO 35

• Definição: cada passo de um algoritmo deve ser precisamente definido.


As ações devem ser definidas rigorosamente e sem ambiguidades.
• Entradas: um algoritmo deve ter zero ou mais entradas, ou seja, quanti-
dades lhe são fornecidas antes do algoritmo iniciar ou dinamicamente à
medida que o algoritmo é executado.
• Saídas: um algoritmo deve ter uma ou mais saídas, ou seja, quantidades
que têm uma relação específica com as entradas.
• Efetividade: um algoritmo deve ser efetivo. Significa que todas as ope-
rações devem ser suficientemente básicas de modo que possam ser, em
princípio, executadas com precisão em um tempo finito por um humano
usando papel e lápis.

4. FORMAS DE REPRESENTAÇÃO DE ALGORITMOS


Há diversas formas de representação de algoritmos, porém não há um consenso
em relação à melhor delas. O critério usado para classificar hierarquicamente estas
formas está diretamente ligado ao nível de detalhe ou, inversamente, ao grau de
abstração oferecido.
Algumas formas de representação de algoritmos tratam os problemas apenas em
nível lógico, abstraindo-se os detalhes de implementação muitas vezes relacionados
com alguma linguagem de programação específica. Por outro lado, há formas de
representação de algoritmos que possuem uma maior riqueza de detalhes e, muitas
vezes, acabam por obscurecer as ideias principais do algoritmo, dificultando seu
entendimento.
Depois de procurar informação respeito das formas de se representar algorit-
mos e baseado nas indicações da Universidade Federal do Rio Grande do Norte
(2004), Universidade Federal de Viçosa (2002) e Universidade Federal do Rio de
Janeiro (1997) em seus cursos relacionados com programação, é possível perceber
que comumente são citadas três formas:
• Descrição narrativa: onde os algoritmos se expressam em linguagem na-
tural (português, inglês etc.). Forma utilizada nos manuais de instruções,
nas receitas culinárias (Fig. 2), bulas de medicamentos etc.
36 TRANSCICLOPÉDIA EM DIFUSÃO DO CONHECIMENTO

Figura 2 – Exemplo de Algoritmo em linguagem natural

Adaptado de http://liessin.com.br/receita-do-bolo-de-feijao-sucesso-entre-as-criancas/

• Fluxograma Convencional: o algoritmo é representado por gráficos com


figuras geométricas a indicar diferentes ações. São bastante recomendáveis,
já que um “desenho” (diagrama, fluxograma etc.) muitas vezes substitui,
com vantagem, várias palavras.
Um exemplo de fluxograma convencional como forma de representar um algo-
ritmo muito clarificador é o encontrado no livro The Art of Computer P
­ rogramming,
Volume 1/ Fundamental Algorithms. Nele, o autor Donald Knuth (1997) cria um
algoritmo bastante completo para solucionar o problema de ler o livro (Fig.3), em
que são incluídos passos desde como “Ler página X”, recomendações como “Relaxe”
ou perguntas como “Entediado”?, assim se vê desde um exemplo básico ao amplo
espectro de uso dos algoritmos.
TRANSCICLOPÉDIA EM DIFUSÃO DO CONHECIMENTO 37

Figura 3 – Algoritmo em linguagem de fluxograma convencional para ler


um livro determinado

Extraído de The Art of Computer Programming, Volume 1/ Fundamental Algorithms (1997).

• Linguagem estruturada, pseudocódigo ou portugol: rica em detalhes e


semelhante à forma em que os programas são escritos. Devem ser escritos de
maneira que todas as linhas contenham uma única instrução. Esta forma
é utilizada por alguns programadores experientes que “pulam” a etapa do
projeto do programa (algoritmo) e passam direto para a programação em
si. O Português Estruturado (o mesmo que pseudocódigo ou portugol)
na verdade, é uma simplificação extrema da língua portuguesa, limitada a
pouquíssimas palavras e estruturas que têm significado pré-definido, pois
se deve seguir um padrão. Emprega uma linguagem intermediária entre a
linguagem natural e uma de programação, para descrever os algoritmos.
Um exemplo de Pseudocódigo seria um algoritmo que permite comparar dois
números e determinar se um número é menor, maior ou igual ao outro. No exemplo
da Fig. 4, finalizar se o número for maior.
38 TRANSCICLOPÉDIA EM DIFUSÃO DO CONHECIMENTO

Figura 4 – Algoritmo para determinar o número


maior representado por Pseudocódigo
Algoritmo Maior
Início
Escrever (‘Digite o primeiro número’)
Ler (num 1)
Escrever (‘Digite o segundo número’)
Ler (num 2)
Se num 1>num 2 então
Escrever (‘O maior número é’ num 1)
Se num 2>num 1 então
Escrever (‘O maior número é’ num 2)
Se num1=num 2 então
Escrever (‘Os números são iguais’)
FimMaior

5. PROCESSO COMPLETO
Como está dito no capítulo sobre a definição de algoritmo, de forma resumi-
da se procura determinar os passos necessários para a solução de um problema. O
processo completo que resulta em um programa computacional capaz de solucionar
determinado tipo de problema pode ser dividido em cinco etapas, segundo as reco-
mendações realizadas por Carvalho e Castro (2002) a seguir:
• Estabelecimento do problema: estabelecer os objetivos do trabalho. O
problema deve ser bem definido para que o trabalho de elaboração do
algoritmo seja facilitado.
• Desenvolvimento de um modelo: influencia diretamente na solução do
problema. Nos modelos mais complicados se gasta mais tempo para serem
resolvidos e estão mais sujeitos a erros.
• Criação do algoritmo: elaborar o algoritmo propriamente dito.
• Avaliação do algoritmo: testar o algoritmo. Avaliar as possíveis entradas
e verificar se as soluções geradas são corretas. Avaliar também os casos de
exceção.
TRANSCICLOPÉDIA EM DIFUSÃO DO CONHECIMENTO 39

• Implementação: traduzir o algoritmo para uma linguagem de progra-


mação específica.
Finalmente, em relação ao tema de algoritmos, para resolver um problema é
necessário, primeiramente, encontrar a maneira de descrever o problema de forma
clara e precisa. É preciso encontrar uma sequência de passos que permita resolver
o problema de maneira automática e repetitiva. A sequência de passos é chamada
de algoritmo.
Como vimos, a noção de algoritmo é abrangente. Vai desde a vida cotidiana
à computação. Para aprender algoritmos, a professora de Lógica de Programação,
Flávia Pereira de Carvalho (2007), ensina que a forma mais eficaz é através de muitos
exercícios e dá algumas dicas de como se aprende e como não se aprende algoritmos
. Algumas dessas dicas estão enunciadas na tabela 1.

Tabela 1. Dicas de como aprender e como não aprender algoritmos

Algoritmos não se aprende Algoritmos se aprende


Copiando algoritmos Construindo algoritmos
Estudando algoritmos prontos Testando algoritmos

REFERÊNCIAS
CARVALHO, Daniela; CASTRO, Evandro. Desenvolvimento de Algoritmos.
Universidade Federal de Viçosa, 2002. ftp://ftp.ufv.br/dea/Disciplinas/Evandro/
Eng691/Material%20Didatico/ApostilaAlgorit mos.pdf

FERRARI, Fabricio; CECHINEL, Cristian. Introdução a algoritmos e


programação. Universidade Federal do Pampa, 2008. https://lief.if.ufrgs.br/pub/
linguagens/FFerrariCCechinel-Introducao-a-algoritmos.pdf

HARARI, Yuval. El impacto social y ético de la inteligencia artificial.


Congreso Futuro, 2016. Palestra disponível em: https://www.youtube.com/
watch?v=n6tWwwr6oV8

KNUTH, Donald. The Art of Computer Programming, Volume 1 /


Fundamental Algorithms. 3 ed. Addison Wesley Longman, Massachusetts, 1997.
40 TRANSCICLOPÉDIA EM DIFUSÃO DO CONHECIMENTO

OLIVEIRA, Adriano. Algoritmos. 1997. https://equipe.nce.ufrj.br/adriano/c/


apostilas/apostila_algoritmos_mar2007.pdf

PEREIRA, Flávia. Algoritmos. Faculdades de Taquara, 2007. https://fit.faccat.


br/~fpereira/apostilas/apostila_algoritmos_mar2007.pdf

SASSEN, Saskia. Los expulsados del sistema económico moderno.


Congreso Futuro, 2017. Palestra disponível em: https://www.youtube.com/
watch?v=c9H7SqLvDMg&feature=youtu.be

SIPSER, Michael. Introduction to the theory of computation. 2 ed. Thompson


Course Technology, Massachusetts, 2006.

CENTRO DE TECNOLOGIA DO DEPARTAMENTO DE


COMPUTAÇÃO E AUTOMAÇÃO. Algoritmo e Lógica de Programação.
https://www.dca.ufrn.br/~affonso/DCA800/pdf/algoritmos_parte1.pdf
Universidade Federal Rio Grande do Norte, 2004.
4. Ambientes Multirreferenciais
de Aprendizagem (AMA)

Ana Maria Casnati Guberna

INTRODUÇÃO
Os ambientes multirreferenciais de aprendizagem surgem na fronteira Norte
de Uruguai como resultado da implantação a partir de 2007 da implementação de
uma política de Tecnologia da Informação e Comunicação — TIC que apresenta três
particularidades importantes: i) a universalidade na educação pública; ii) a provisão
de computadores para todos os estudantes de ensino básico e médio; iii) o livre acesso
às TIC para todas as famílias do país. Desta forma, a aprendizagem mediada não se
restringe ao ambiente institucional educativo porque se possibilita o uso do recurso
no processo de aprendizagem e se promove a inserção da telemática na vida cotidiana.
Nesse cenário, a Universidade da República acompanha o processo político
com um projeto que tem dois objetivos fundamentais: i) contribuir para a formação
dos estudantes universitários comprometidos com a realidade do país e ii) colaborar
com o desenvolvimento dessa política, gerando espaços inter/transdisciplinares de
formação e intervenção.
Na fronteira do Uruguai com Brasil, este processo adquire características
especiais em relação direta com as particularidades culturais da região. A integra-
ção de docentes e estudantes pertencentes a diferentes áreas de conhecimento tem
possibilitado diversas formas de aproximação dos territórios; no entanto, em todos
os grupos, é possível identificar três fases de trabalho: a diagnóstica, a intervenção
e o encerramento/avaliação.
No Espaço Interdisciplinário (EI) da UdelaR, relatando a experiência docente
em FDC, Cisneros e Casnati (2010, p. 40-41) especificam a natureza das relações
com as comunidades sustentadas na participação, interação e diálogo de saberes.
As autoras consideram que estes são atributos fundamentais para compreender
e mobilizar as comunidades em relação à suas necessidades ou demandas.
Nos grupos, busca-se aprender, acompanhar e aproveitar a experiência para gerar
espaços de reflexão1 que facilitem a compreensão da complexa realidade; também

1
Considera-se que SE promove e se estimula a reflexão porque incentiva e impulsiona a formação
42 TRANSCICLOPÉDIA EM DIFUSÃO DO CONHECIMENTO

enfatiza o relacionamento com as comunidades sustentado na participação e, assim,


as atividades adquirem uma marcada ênfase interdisciplinar2 e multirreferencial3.
Como consequência, tais grupos, formados por estudantes universitários, docentes
e membros das comunidades, podem ser definidos como um sistema complexo, a
configurar um ambiente multirreferencial de aprendizagem4, que apresenta carac-
terísticas próprias desses sistemas: é uma combinação de conjuntos heterogêneos
constituídos por partes semelhantes que, por sua vez, também têm algumas dife-
renças; não obstante, essas partes permanecem interconectadas funcionalmente.
Para compreender esses processos são exigidos múltiplos olhares e saberes. O
trabalho instigante e dinâmico gera interesse e questionamentos diversos sobre as
Tecnologias da Informação e Comunicação (TIC) e sua relação com a educação.

CONCEITO DE AMBIENTE
O ambiente pode ser definido, de acordo com o Dicionário de la Real Academia
Espanhola, como um compêndio de valores sociais, naturais e culturais existentes
em um lugar e em um momento determinado que influem na vida material e psi-
cológica do ser humano. Atualmente, frente ao surgimento dos ambientes virtuais
de aprendizagem, de aprendizagem em rede e em comunidades de aprendizagem,
a educação aparece descentrada de seus cenários habituais: as aulas nas instituições
educativas e as modalidades estabelecidas por anos de exercício.
Quando se investiga o conceito de ambiente, observa-se que são várias as
disciplinas que confluem e analisam o significado, especialmente relacionadas ao

de um cidadão ativo, crítico, que reconhece a realidade, conhece suas prerrogativas, participa
na tomada de decisões; um cidadão ativo que vincula seu projeto individual ao projeto coletivo
expandindo o exercício da cidadania às esferas política, social e econômica.
2
A interdisciplinaridade, para Susana Mallo (2010, p. 18), é uma forma de conhecer, significa
desenvolver estratégias específicas para construir um processo cognitivo, o que supõe abordar o
objeto de estudo de forma integral, outorgando parcelas de saber que supera a somatória discipli-
nar exigida para investigar o objeto de estudo definido.
3
A multirreferencialidade (ARDOINO, J.,1998, p. 4) constitui uma resposta à complexidade das
situações sociais e educativas para explicar de forma intencionalmente rigorosa uma realidade
plural, esquiva, diversa e complexa como uma alternativa potencial de resistência à segregação
sociocognitiva (BURNHAM, T. F., 2012, p. 101).
4
No presente trabalho, considera-se que o ambiente aparece como resultado da interação dos
sujeitos no seu contexto natural e habilita uma concepção dinâmica das atividades pedagógicas.
Pensar os ambientes educativos desde perspectivas multirreferenciais enriquece as interpretações
epistemológicas, habilitando novas possibilidades de estudo, procurando acontecimentos emer-
gentes, articulando e gerando novas unidades de análise a partir de um marco conceitual que ajuda
a compreender melhor os fenômenos de construção de conhecimento e as relações com o saber.
TRANSCICLOPÉDIA EM DIFUSÃO DO CONHECIMENTO 43

significado de ambientes de aprendizagem e ambientes educativos, utilizados indis-


tintamente para aludir a um mesmo objeto de estudo. Desde a perspectiva ambiental
da educação às posturas ecológicas, psicológicas e sistêmicas da teoria do currículo,
incluindo certos enfoques da etologia e a proxêmica, existem contribuições que
ajudam a delimitar o conceito.
O ambiente aparece como resultado da interação do sujeito com seu meio e
pode ser catalogado como um conceito dinâmico a partir das relações com o saber:
os sujeitos que aprendem estão em condições de refletir sobre sua própria ação assim
como sobre a dos outros em relação ao ambiente que os circunscreve.
Segundo Raichvarg (1994), a palavra ambiente foi utilizada primeiramente
pelos geógrafos que consideravam a palavra “meio” insuficiente para incluir os seres
humanos no contexto. Para os geógrafos, o ambiente surge da interação dos sujeitos
com seu habitat natural e envolve uma concepção ativa em relação às ações peda-
gógicas nas quais os que aprendem estão em condições de pensar sobre seu acionar.
Para os biólogos, químicos, veterinários e agrônomos, o ambiente é considerado
um conjunto de fatores internos — biológicos e químicos — e externos — físicos e
psicossociais — que favorecem ou dificultam a interação social.
Dessa forma, o ambiente transcende a ideia de espaço físico e envolve diversas
relações, incluindo a temporal, que gera outros significados e, a partir dessa pers-
pectiva, o ambiente se configura como um espaço de construção significativa de
cultura. Isto significa, para Ospina (1999), que o ambiente pode ser considerado como
uma construção diária, reflexão cotidiana, singularidade permanente que assegura
a diversidade ea riqueza da vida. Esses conceitos coincidem com as descrições e
reflexões que surgem dos relatórios anuais de FDC.
Fróes Burnham (2012, p. 114) se refere a “[...] espaços multirreferenciais de
aprendizagem” como “[...] locus de resistência à segregação sociocognitiva”. A con-
cepção desses espaços surge como resultado de um projeto que buscava compreender
as relações entre educação e trabalho mediados na década dos anos 19905. Como
resultado das investigações, percebe-se uma articulação intencional entre processos
de aprendizagem no sentido amplo de produção imaterial de conhecimento, desen-
volvimento de competências pessoais e profissionais de criação de alternativas para
solucionar problemas cotidianos e o trabalho tanto na produção como na reprodução

5
Remete-se às linhas de investigação de Froes Burnham, T.. Cf. Sobre Currículo, trabalho e cons-
trução do conhecimento: relação vida no cotidiano na escola, ou utopia de discurso acadêmico? 1992,
1996; Demandas /Impactos da globalização e das Tecnologias da Informação e Comunicação na for-
mação do cidadão-trabalhador, 1997.
44 TRANSCICLOPÉDIA EM DIFUSÃO DO CONHECIMENTO

ou reaproveitamento de bens materiais e serviços. Reconhece-se também o valor


cada vez maior da informação/conhecimento para amplos setores da sociedade e suas
consequentes demandas no sentido do acesso à informação, assim como também
por produção de conhecimento significativo.
Guattari (1993) diferencia espaço de território reconhecendo no espaço deter-
minadas funções planificadas, projetadas, programadas. Território enquanto espa-
cialidade materializada, define-se a partir de relações subjetivas — ele os denomina
“[...] territórios de subjetivação ou territórios existenciais” (p. 114).
Burnham (2012) define os espaços multirreferenciais como:
Coletivos de comunidades que promovem oportunidades de empoderamento
de seus membros a partir/através da produção, organização e socialização da
informação/conhecimento significativo, situado, incorporado6, de carácter mul-
tirreferencial, em interações intra/inter/ transcomunitárias. Ampliam-se assim as
esferas e dimensões da vida social que são tomadas como base para essa interação
com o conhecimento e construção de aprendizagem nos diversos cenários de
vida dessas comunidades BURNHAM (2012, p. 116) (Trad. da autora).

A autora adverte que, nesses espaços, se realizam atividades intensivas de


conhecimento através de processos de produção/intercâmbio de saberes/práticas,
difusão de informação, desenvolvimento de técnicas e tecnologias, construção de
ethos, éticas e estéticas significativas para as comunidades implicadas. Assim, os
ambientes referidos se estruturam em espaços multirreferenciais de aprendizagem
(BURNHAM, F. T., 1999; 2000; BURNHAM, F. T., et al, 1997) concretos ou
virtuais onde os conhecimentos são decifrados, decodificados, traduzidos, comparti-
lhados, compreendidos, internalizados para a construção de subjetividades e culturas.
Esta descrição de Burnham ajusta-se à realidade de FDC, no entanto, no
presente trabalho prefere-se utilizar a palavra “ambiente” no lugar de “espaço” para
indicar a relevância da mediação tecnológica como facilitadora de todos os aspectos
assinalados pela autora no ambiente específico de FDC onde a ideia de território de
Guattari adquire especial relevância.
Desta forma, para que um AMA se consolide precisa:
I – Um território que inclui o geográfico, tangível, real e um espaço vir-
tual, mediado e ubíquo onde se realiza o processo multirreferencial de
aprendizagem;

6
Para a autora, esses termos estão inspirados nos referenciais de aprendizagem significativa
(­AUSUBEL; 1968; NOVAK, 1977; cognição situada (LAVE, 1988); e mente incorporada
(VARELA; THOMPSON; ROSCH, 2003)
TRANSCICLOPÉDIA EM DIFUSÃO DO CONHECIMENTO 45

II – Um tempo referido a certos intervalos que contemplam conteúdos, planos


e programas.
III – Mediação telemática condicionada ao rol docente, às condições dos
objetos técnicos usados na mediação, e a real interação entre docentes,
estudantes e comunidades. O exercício do rol docente obriga a conhecer
e adaptar-se aos lugares, saber mediar com os conteúdos curriculares e os
recursos, planejar adequadamente em função das capacidades, habilidades
e possibilidades dos estudantes e as comunidades em território.
Para Duarte (2003), os ambientes enfatizam os conteúdos, a gestão da infor-
mação, verificação de dados e conceitos, as experiências, atitudes e percepções. Ela
considera a aprendizagem como uma mudança conceitual que se produz nos processos
de subjetivação do sujeito mediante construção de conhecimento, abarcando esses
processos vividos no ambiente, o que contribui para seu desenvolvimento. Neste
sentido, para estudar os ambientes multirreferenciais de aprendizagem consideram-se
os seguintes aspectos:

a) Relação vivencial com o saber: forma como se confrontam, se relacionam,


comparam, entendem, aprendem os estudantes, considerando a experiência,
compreensão e processos de subjetivação;
b) Relação cognitiva: relativa às possibilidades de memorizar, organizar,
resolver, decidir, expressar as informações, os modos de perceber, pensar e
resolver problemas e a forma que o conhecimento se incorpora à estrutura
cognitiva dos atores no ambiente;
c) Relação corporal (afetiva e criativa): relaciona-se com os fatores emocio-
nais, estilos afetivos, criativos, base na qual descansam as formas de ser.
d) Socialidade: considera-se a forma de conviver, socializar, trabalhar coo-
perativamente, a capacidade de comunicar-se e de contribuir, de escutar
os outros e ser escutado.
e) Cenário (político, econômico, cultural, tecnológico): lugar no qual se
realiza o processo multirreferencial de aprendizagem desde a perspectiva
de um sujeito intercultural que resiste e cria.

Segundo Oliveira (2003), a produção de sentidos pode surgir desde inspirações


oriundas da ancestralidade e encantamento, telas constitutivas que capturam, e
não amarram, pelo contrário, liberam porque contribuem a criar outros mundos, a
criar magia. Constroem-se sentidos e significados a partir de concepções africanas,
46 TRANSCICLOPÉDIA EM DIFUSÃO DO CONHECIMENTO

indígenas e latino-americanas, o que conduz necessariamente a uma prática da li-


berdade e a uma possibilidade de emancipação. Esses sentidos se mantêm e cultivam
expressamente nos AMA.
Referindo-se à ancestralidade e ao encantamento das culturas africanas, Oli-
veira (2007) afirma que
A maioria das culturas africanas encerra sua sabedoria em forma narrativa dos
mitos. Talvez porque os mitos não diferenciem as diferentes esferas do viver.
Não se separa religião de política, ética de trabalho, conhecimento de ação.
Talvez, também, porque o mito mantém seu poder de segredo e encantamento,
porque ao mesmo tempo que revela, esconde e, ao mesmo tempo, que oculta,
manifesta. Em um caso ou em outro, encanta, seja pela beleza explícita ou
pela beleza escondida. Em todo caso, a ética se encontra travestida de estética,
na palavra, vestimenta, música, dança, na arte em geral. A vida é uma obra
de arte e seus segredos se transmitem através de mitos que têm uma função
pedagógica de transmissão de conhecimento ao mesmo tempo em que sua
forma narrativa cria a própria realidade que se busca conhecer (OLIVEIRA,
2997, p. 237).

Nos AMA, tem-se podido observar reiteradamente as reminiscências ancestrais


na aprendizagem dos sujeitos na medida em que o professor se encontre sensibilizado
à manifestações dessa natureza.

VALORES DOS AMA


Por sua vez se reconhecem certos valores que colaboram para sustentar o AMA:
a) Liberdade: As relações que se estabelecem se caracterizam pela flexibili-
dade dos vínculos e pela liberdade dos laços que facilitam as relações com
o saber. Um ambiente de autonomia saudável, de respeito aos saberes e
experiências de cada ator, favorece o desenvolvimento do pensar, a imagi-
nação e a criatividade; os sujeitos se comprometem com responsabilidade
e solidariedade em vínculos frouxos.
b) Solidariedade: Nestes ambientes e especialmente em atividades em terri-
tório, é de vital importância o sentimento de comunidade; saber e sentir
que os sujeitos são parte de uma comunidade de visões, interesses e projetos
de vida, como — perspectiva epistemológica aberta aos diferentes modos
de organização do conhecimento e as diferentes lógicas de apreensão e
interpretação do mundo — (BURNHAM; SANCHES, 2010, p. 213).
Concorda-se com Vieira Pinto (1960) que a comunidade constitui a nação
em sua pretensão de ser porque ela se constrói desde sua atividade criadora:
TRANSCICLOPÉDIA EM DIFUSÃO DO CONHECIMENTO 47

o trabalho e a verdadeira finalidade da produção humana consistem na


produção de relações sociais, de formas de convivência.
c) Confiança: Em campos disciplinares como a sociologia e a psicologia social,
a confiança é a certeza de que uma pessoa ou grupo é capaz e atuará de
forma adequada em uma determinada situação pelo que a confiança se vê
robustecida em função das ações. Este atributo é o que, em parte, assegura
o êxito das ações acordadas entre os membros dos AMA para trabalhar no
território. Sustenta-se em uma hipótese sobre a conduta do outro e concer-
ne ao futuro. Os atores apostam em as ações de outros e, em geral, não se
inquietam pelo não controle do outro e do tempo. Supõe a suspensão, ao
menos temporal, da incerteza sobre o futuro das regras de jogo acordadas
e das ações dos demais. Esta confiança, imprescindível em projetos com
componentes culturais próprios e relações horizontais, simplifica as relações
entre os atores. Graças a ela é possível supor certo grau de regularidade e
previsibilidade, o que simplifica em grande parte a gestão organizativa.
d) Conhecimento: Por constituir a razão de ser uma vez que é a essência
mesma da aprendizagem, o conhecimento, a gestão, difusão e tradução são
exigências que promovem aprendizagens multirreferenciais para a produção
de alternativas onde o conhecimento pode chegar a ser um bem público.
Neste sentido, Paulo Freire, em Pedagogia do Oprimido, realiza significativas
contribuições para a compreensão dos processos cognitivos, a partir de uma
visão antropológica e política onde teoria e prática resultam absolutamente
inseparáveis; Freire pensa a realidade e a ação sobre ela, trabalhando teori-
camente a partir dela. Portanto, a produção de conhecimento é um processo
que responde a um ambiente, é complexo, e o sujeito se vê desafiado ante a
necessidade de responder às demandas, carências e interesses, em uma relação
contínua consigo mesmo e com outros humanos, ou não.
Nesse processo, ao perceber as múltiplas relações, o sujeito comunica suas
percepções em linguagens instituindo desta forma saberes diversos e específicos a
partir de fontes subjetivas e objetivas, articuladas com o ambiente de forma sempre
aberta e dinâmica. Reconhece-se aqui a importância dos conhecimentos ausentes
ou conhecimentos alternativos onde a práxis de FDC se refere às práticas sociais que
são definitivamente práticas de conhecimento.
Portanto, os AMA apresentam os componentes previamente desenvolvidos em
forma breve na produção do agenciamento que considera a construção, a difusão de
48 TRANSCICLOPÉDIA EM DIFUSÃO DO CONHECIMENTO

conhecimento e as relações com o saber como ações cognitivas construtivas guiadas


e autorreguladas pela interação social mediada pela telemática onde estes compo-
nentes se desenvolvem e promovem. Assim, as interações ocorrem quando as ações
e os objetos técnicos se influem mutuamente e, como consequência, o ambiente se
estende ou se amplia. Esta situação pode ser bem compreendida a partir da metáfora
do rizoma de Deleuze e Guattari (1999).

O AMBIENTE DE APRENDIZAGEM COMO RIZOMA (OS FLUXOS)


O rizoma é uma metáfora que colabora para se compreender o mundo atual.
Os rizomas são um tipo de raízes subterrâneas que se diferenciam das raízes verda-
deiras porque assumem formas muito diversas de plantas invasoras ou gramíneas.
Todas possuem raízes extensas, superficiais, que se ramificam em todos os sentidos.
Kenski (2010, p. 41) expressa que o conhecimento rizomático tem como ca-
racterística os princípios de conexão e heterogeneidade.
[...] qualquer ponto do rizoma pode ser conectado a qualquer outro e deve
sê-lo, [...] cada traço não remete necessariamente a um conceito linguístico:
cadeias semióticas de todos os tipos estão ali conectados a formas de codificação
diversos, cadeias biológicas, políticas, econômicas, colocando em jogo não
somente regimes de signos diferentes, também estatutos de coisas (DELEUZE,
G.; GUATTARI, F., 1999, p. 15).

Como se pode inferir do texto precedente, no rizoma conectam-se cadeias


semióticas, organizacionais, manifestações artísticas, difusão científica, conflitos
sociais, e não existe um ponto central, escalas de importância ou uma tipologia
típica. A multiplicidade ou relação direta e causal de uns com outros se manifesta
como uma totalidade extensiva entre relações de conhecimento que se entrelaçam
em imagens e realidades, mundo, cotidianidade e mito.
Uma multiplicidade não tem objeto sem sujeito, somente determinações,
grandezas, dimensões, que não podem crescer sem que se modifique a natureza
(DELEUZE, G; GUATTARI, F.,1999, p. 18).

Outra característica que Deleuze e Guattari mencionam se relaciona com a


ideia de ruptura. O rizoma compreende linhas de segmentação por onde se organi-
za, territorializa e significa e, também, compreende linhas de desterritorialização,
linhas de fuga, que podem se relacionar com outras completamente diferentes, e as
conexões podem produzir-se em múltiplas direções. No conhecimento rizomático,
não existem posições ou lugares definidos, somente conceitos interconectados que
se inter-relacionam de acordo com as mais variadas possibilidades:
TRANSCICLOPÉDIA EM DIFUSÃO DO CONHECIMENTO 49

Todo rizoma compreende linhas de segmentação, pelas quais é estratificado,


territorialidade, organizado, significado atribuído; e compreende também linhas
de desterritorialização pelas quais ele escapa sem parar... essas linhas não deixam
de remeter a outras linhas (DELEUZE, G.; GUATTARI, F., 1999, p. 18).

O importante é a existência de um código por meio do qual aspectos hetero-


gêneos compõem um novo conhecimento rizomático comum que, por sua vez, não
pode ser atribuído a um tipo preestabelecido e preconcebido.
Finalmente, a metáfora do rizoma também aporta a ideia de cartografia ou
mapa como uma reprodução da realidade onde se registram os atos, as relações e
interconexões de diversos campos de conhecimento, criação de capacidades cog-
nitivas, afetivas, motoras e intuitivas dos sujeitos. O que resulta na construção de
uma nova realidade.
O conhecimento forma uma rede, um tecido onde o conhecimento está
permanentemente reconstruído a partir das inter-relações que os sujeitos elaboram
cotidianamente. Estas infinitas possibilidades de trajetórias e inclusões dependem
dos intercâmbios e ações dos sujeitos no ambiente.
Ao concluir esta síntese descritiva do AMA, destaca-se o envolvimento dos
atores, a prática, a mistura: se misturam as redes dos objetos técnicos, as situações
de produção/aquisição de conhecimentos e a velocidade das interações nas relações
vivenciais com o saber7, o conhecimento e informação, obrigando os sujeitos reali-
zarem um exercício permanente de manutenção temporária de regras de jogo que
no processo da práxis, muitas vezes, é necessário mudar ou reconsiderar. Por tanto,
é possível observar, como explica Rivoir (2009), que se registra um forte impulso na
política de inclusão digital e nas ações que não se reduzem a uma questão tecnológica,
mas incluem outras iniciativas especialmente sociais. Ela afirma que efetivamente o
Uruguai consegue uma mudança substancial referente ao acesso às TIC. As descrições
sobre os AMA podem ser tomadas como meras questões organizacionais, mas, na
realidade, constituem espaços de fluxo estruturadores. Reconhece-se, assim, a figura
de um sujeito que aprende transversal, diferente e móvel, resultado do irreprimível
caráter aleatório da existência.
O meio técnico começa a substituir cada vez mais a natureza, o que obriga a
considerar o meio tecnocientífico-informacional que se impõe em todos os lugares,
gerando alternativas culturais sobrepostas às já existentes. A telemática integra o

7
Esta categoria se construiu coletivamente em uma das reuniões da Mesa Territorial Oeste onde se
apresentaram os avanços da presente investigação. Esta situação corrobora, entre outras, a justifi-
cativa de investigação-ação-participativa.
50 TRANSCICLOPÉDIA EM DIFUSÃO DO CONHECIMENTO

entorno artificial e o ambiente natural, constituindo uma rede operativa de forma


que cada ser humano pode comunicar-se através de um objeto técnico buscando
sinergias e produzindo interconexões como uma “rede neural mundial”.
A cibercultura se estabelece tanto no meio rural como no urbano, orientando
o conhecimento da ciência, da tecnologia e da informação. As consequências dessas
alterações provocam mudanças substantivas na composição do território, do cien-
tificismo do trabalho e da geração de informação diferenciada. Há atualmente no
mundo novas estruturas e lógicas de poder que o reordenam a partir do que Appadurai
(1996) captura como uma nova qualidade dessas estruturas altamente diferenciadas
e móveis: “finansagens”, “tecnosagens”, “etnosagens”. O sufixo sagem relativo a men
/sagem tem uma relação potente com uma linguagem “universal” e aponta a fluidez
e irregularidade em diversos campos e, também, assinala a constituição de comuni-
dades (epistêmicas, cognitivas, criativas) em campos tão diversos como o financeiro,
o cultural, a bolsa de mercadorias, a demografia. Toda a vida (vida em sentido amplo,
vida que inclui toda a população do planeta) se encerra dentro do capital, e a produção
então se trans/veste em biopolítica, ­bioprodução e reprodução dessa mesma situação.
Assim, o que resulta mobilizado é o tempo da vida dessa população planetária e o
espaço dessas mobilidades são as diversas configurações locais e mundiais das redes.
Neste âmbito, o conhecimento pode significar informação, poder, relação e violência.
Na realidade, cada sujeito responde a uma organização espaço-temporal que o
vincula a uma socialidade entendida a partir dos significados herdados das culturas
ancestrais e das representações e significados compartilhados. Isto pode constituir
o substrato para a construção de alternativas reais enriquecidas pela inteligência co-
letiva e pelo amor à comunidade. Para isto, se reconhecem os espaços gerados como
ambientes multirreferenciais de aprendizagem (AMA) que podem contribuir como
projetos possíveis e viáveis para a formação de um cidadão que contribua à trans-
formação de um sistema econômico onde se manifeste o bem comum colaborativo
(RIFKIN, J., 2014). O bem comum colaborativo pode oferecer uma forma diferente
de organizar a vida econômica, brindando com a possibilidade de democratizar a
economia mundial e contribuir para uma socialidade sustentável e equitativa.
Para dar continuidade a esse processo, estudam-se os AMA como espaços de
aprendizagem para articular funções de ensino, pesquisa e extensão desde a interdis-
ciplina, reconhecendo diferentes dimensões que precisam ser compreendidas. Na con-
tinuação, diversas opções metodológicas são descritas assim como a interdisciplina e a
dimensão do território na Região Nordeste do Uruguai que tem características próprias
por formar parte de uma área de fronteira seca com a República Federativa de Brasil.
TRANSCICLOPÉDIA EM DIFUSÃO DO CONHECIMENTO 51

FUNDAMENTOS DAS OPÇÕES METODOLÓGICAS NOS AMA


As práticas integrais representam uma das maneiras que a Universidade propõe
para compreender a realidade, referindo-se à complexidade da abordagem no território.
Portanto, os diversos conhecimentos disciplinares necessitam não somente dialogar
mas submeter-se à interpelação e questionamento perante as comunidades. Essa opção
pela articulação de funções supõe um caminho metodológico e uma concepção ética
dos atores nos AMA. Trata-se de uma ética que instaura o relacionamento com a
comunidade como orientador dos processos de formação universitária.
Os AMA na Região Nordeste, potencialmente, supõem um aporte relevante nos
processos de transformação da Universidade, pois a vincula com temáticas de relevância
social em um território de fronteira. Ante essa situação, o docente se vê interpelado
fundamentalmente em três questões que se deseja considerar a continuação:

1. Articulação de saberes
A multirreferencialidade questiona o conhecimento disciplinar a instâncias das
atividades desenvolvidas com outros a partir de um problema próprio e apropriado
(GALEFFI, 2010). Os aportes disciplinares específicos exigem que o principal desafio
seja a construção de uma linguagem que questione os conceitos e pontos de partida
para a compreensão de um problema. Por fim, exige uma abordagem crítica, capaci-
dade reflexiva para articular diferentes níveis organizativos e de gestão , levando em
conta que os espaços de encontro para a construção de acordos têm um rol importante.

2. Participação e cooperação dos atores


Esta opção metodológica exige docentes e estudantes, atores partícipes do
processo de trabalho construído no território. A inclusão dos atores sociais locais nos
processos de gestão e planificação, considerando suas experiências e saberes frente
a um problema, é fundamental e passa a ser comum a todos.

3. A praxe formativa dos estudantes


Pensar a experiência formativa dos estudantes no marco das AMA implica
assumir, em relação à multirreferencialidade, o duplo desafio docente de convocar e
refletir sobre a aprendizagem desde a articulação de funções para depois desenvolver
as atividades no território. Neste sentido, o professor acompanha e coordena projetos
que funcionam como aula aberta. Assim, o ambiente produz aprendizagem a partir
da prática e da reflexão sobre essa prática. Desse ponto de vista, as atividades em
52 TRANSCICLOPÉDIA EM DIFUSÃO DO CONHECIMENTO

relação aos saberes se sustentam em emergentes situações que resultam de acordos e


marcos conceptuais. As características dessa modalidade exigem por tanto flexibilidade
para trabalhar na incerteza e na complexidade. Também é preciso esforço contínuo
para sustentar o marco conceptual e os objetivos acordados. A capacidade reflexiva a
partir da experiência é ensaiada permanentemente em instâncias formativas onde se
legitima o lugar do vivido. As instâncias de reflexão e trabalho em coletivo ajudam
ter uma necessária distância e a reconhecer o lugar e papel de cada ator.

A DIMENSÃO DO TERRITÓRIO (ESPAÇO / TEMPO) NOS AMA


Para analisar a dimensão do território nos AMA são tomados os conceitos de
Santos (1984). Ele diferencia os tempos das sucessões e das coexistências. Na coexis-
tência, diversas circunstâncias ocorrem simultaneamente e constituem momentos da
vida dos sujeitos. Mas, na vida cotidiana, surgem também aconteceres que caracterizam
tempos distintos. Estes podem ser identificados como tempos de sucessões.
Por outro lado, um espaço pode reunir tempos diferentes em um mesmo lugar
gerando diferenças dentro de um território, o que, por sua vez, depende das possi-
bilidades dos sujeitos nas suas ações cotidianas. Cada lugar pode ser um ponto de
encontro de lógicas e nexos que atuam em diferentes escalas ou níveis, reveladores
de questões diversas e muitas vezes contraditórias. Em geral, a eficácia, eficiência e o
lucro no uso das TICs são muito importantes para o atual capitalismo informacional.
Dessa forma, os lugares se redefinem à medida que constituem encontros ou desen-
contros de interesses, tanto globais como locais e, como tal, se ampliam e modificam
constantemente. Esses conceitos de Milton Santos podem ser aplicados na práxis dos
AMA. Nos AMA, a resultante da relação espaço-tempo pode-se reconhecer como um
lugar de confluência de um Tempo-Mundo como Espaço Globalizado e um micro-
mundo da práxis. A medida do Tempo-Mundo é consequência do progresso técnico;
é um tempo despótico, instrumento de medida hegemônica que comanda, organiza e
dirige o tempo cotidiano dos sujeitos nos seus territórios. A ideia de Tempo- Mundo
existe somente como relação; esse tempo é arbitrário e contribui para a construção de
temporalidades hierarquizadas, contraditórias, que confluem na categoria de tempo
hegemônico regido pelo Mercado. O Tempo-Mundo acelerado aumenta a diferenciação
de eventos, aumenta a diferença entre os lugares e o espaço local se redefine. Na tran-
sição entre o local e o global, os AMA colaboram na compreensão da realidade e das
mudanças produzidas quando se introduz a ferramenta telemática nos espaços locais.
Como en la pantalla, abrimos portales…y nos encontramos con la vida, en ese
devenir de virtualidad y realidad (Docente).
TRANSCICLOPÉDIA EM DIFUSÃO DO CONHECIMENTO 53

Desde el 3 de setiembre que estamos en esta aventura humana, desenredando esta


madeja de vida cotidiana y tecnología, tejiendo historias de vida sin darnos cuenta.
(Estudante de Trabalho Social, 2008)
Es una manera diferente de mirarnos y observar la vida alrededor, ni mejor, ni
peor, sólo diferente. (Estudante de Recursos Naturales, 2012)

O espaço pode subdividir-se em subespaço: um espaço onde os nexos científicos,


tecnológicos, informacionais são importantes porque geram um ambiente telemático.
Nele os objetos técnicos estão a serviço de uma racionalidade técnica. Este meio
tecnocientífico inclui um saber e constitui a base da produção de um novo saber;
os outros espaços que ficam de fora são o conhecimento comum.
Na sua cotidianidade, os AMA servem de nexo para os dois espaços. A partir
do conhecimento do objeto técnico e dos processos cotidianos no território, os AMA
desenvolvem uma ação renovadora que se amplifica com o conhecimento do lugar
e da possibilidade de atuação.
Las reuniones son siempre así, como un caldero hirviendo, difícil moderar, se mezclan
discusiones y reflexiones sobre la experiencia, vemos las fotos, los CDs, cargamos
pendrive; las tareas en el grupo se van diferenciando. — Docente.
Se reconoce la dificultad del lenguaje, las ideas preconcebidas a partir del saber
académico y los errores de formación” — Estudante.
Quiero ser parte de esto, pero me cuesta mirarlo desde adentro, así que me alejo
y observo para poder entender... vuelvo, pero con una postura definida por el
compromiso — Estudante.

Verifica-se que a formação integral tenta superar a visão dicotômica, fragmentadora


e unidirecional do conhecimento disciplinar porque é construída a partir de problemas.
Creemos que la laptop va a ser una herramienta de interfase para la percepción
y queremos identificar las multi-funciones que pueda tener, así como sus ventajas
y desventajas en el proceso de percepción para aportar. Creemos que es posible de-
mostrar cómo nuestro proceso de percepción afecta la comprensión “de lo mismo”
y desmitificar la idea de que aquello que percibimos es “único” y objetivo, identi-
ficando así procesos subliminares que ocurren a la hora de significar lo que vemos
y que nos permite, finalmente, hacernos una “imagen mental” de una realidad.
El rol de la herramienta es crucial. (Extraído de Informe Final de Estudante).

Nesse processo educativo transformador, todos aprendem e ensinam, e o pro-


cesso contribui para a produção de conhecimento novo, vinculando criticamente o
saber acadêmico ao saber das comunidades.
Pero también me interesa el presente, como la telemática está cambiando la
realidad, me pienso yo con siete años, sin computadora o con diez años y sin
54 TRANSCICLOPÉDIA EM DIFUSÃO DO CONHECIMENTO

computadora; me interesa estar pendiente de cómo va evolucionando el proceso,


sus dificultades y apostar a que todos colaboremos en el proyecto, que como ya
dijimos es de todos los uruguayos, para todos los uruguayos — (Proposta de
trabalho do Estudante).

CONSIDERAÇÕES FINAIS
Os AMA na Região Nordeste de Uruguai contribuem na construção univer-
sitária a partir dos atributos descritos a continuação:
1. O conhecimento é construído e transmitido indiretamente como se trans-
fere uma informação.
La idea es que los propios actores nos muestren a nosotros cómo es el territorio, qué
es lo que más les gusta, qué cosas son las que menos les gusta y qué cosas cambiarían
de su barrio o localidad para desde ahí extraer en un diálogo las necesidades y
potencialidades del mismo”. Proposta do Estudante.

2. A construção de conhecimento resulta fundamentalmente em ação sim-


bólica e, portanto, em aprendizagem; cada sujeito é um agente proativo.
A mesma estudante prossegue:
Esta modalidad intenta superar el obstáculo de imponer una demanda y habilita
a ésta sea construida en un diálogo con la comunidad para así lograr un sentir
“parte de “, lo que se espera contribuya a un trabajo en conjunto y genere una
participación activa por parte de las personas. A esto se suma una reflexión sobre
el propio trabajo en equipo desde un “nosotros” desde la intervención para así ir
generando una real praxis […] una relación de reciprocidad, mutualidad que
presupone una actitud diferentes a ser asumida frente al problema del conocimien-
to, esto es, sustituir la concepción fragmentaria por la unitaria del ser humano.

3. O conhecimento vincula-se necessariamente ao contexto onde se desenvolve


a práxis educativa.
El presente proyecto pretende rescatar el valor de la soberanía alimentaria y la
producción de alimentos en tiempos en donde predominan pautas y hábitos de
consumo que siguen una orientación contraria. Estudante de Tacuarembó, 2013.
Se pretende realizar un análisis del entorno geográfico de la escuela, utilizando
la herramienta informática en pro del conocimiento conjunto y de una discusión
que lleve a proponer mejoras en la organización del entorno natural y los recursos
existentes. (Estudante).

4. A aprendizagem é impulsionada por situações-problema de grande signi-


ficado e interesse para os participantes da ação educativa.
TRANSCICLOPÉDIA EM DIFUSÃO DO CONHECIMENTO 55

Las dificultades que afrontamos con mi grupo consistieron en problemas con el


aprendizaje de conceptos. Son niños muy dispersos, algunos tímidos y no se integran
a las dinámicas que proponemos. La profesora de informática nos advirtió que es un
grupo especial, lo cual nos predispone a nuevos planteamientos en la planificación
de actividades. Estudante.
5. Os significados construídos a partir dos processos intra/inter subjetivos podem
e devem ser compartilhados, mas são socialmente negociados.
Como grupo desde un comienzo apuntamos a generar las condiciones necesarias de
fortalecimiento del equipo de trabajo, para así partir de una base sólida, habilitando
al trabajo en equipo y al trabajo interdisciplinario. Esto nos permitió consolidar con la
comunidad en donde se intervino, un espacio, en donde se generaría la apropiación,
la integración, la motivación y el intercambio fluido. Informe do Grupo.

6. As ferramentas telemáticas aumentam o potencial dos processos quando se


introduz a análise e reflexão sobre a práxis.
||Nuestra metodología de trabajo requiere de una constante reflexión crítica, a fin
de realizar los ajustes necesarios sobre la marcha. La forma de trabajo en el equipo
permite la construcción colectiva de conocimientos, poniendo en juego las necesidades
e intereses de todos los que participamos, de modo que es un proceso compartido y
bidireccional. Entendemos a la XO como instrumento de la educación en un proceso
transformador del aprendizaje y las maestras dinamizadoras de Ceibal, son un pilar
importante para concretar nuestro plan de acción. Trabajar directamente con ellas
facilita el ingreso a territorio y asegura el compromiso con el proyecto”. Reflexões
do Grupo.
As relações de colaboração e aprendizagem nos AMA apresentam essas caracte-
rísticas vinculadas aos processos cognitivos e no intercâmbio de saberes entre os pares.
Uma sincronia se produz nas interações de momentos significativos de diálogo vital
e presencial. Logo surgem momentos assíncronos no ambiente virtual, nas tentativas
de resolver problemas. Dessa forma, o conhecimento novo se produz em forma com-
partilhada. A construção de conhecimento e as relações de saber são processos sociais
coletivos que têm um caráter individual de reflexão e subjetivação validados, muitas vezes,
nos espaços assincrônicos de comunicação. Os AMA inauguram novas possibilidades
de fazer docência, possibilitam uma maior proximidade às comunidades e questiona
os conhecimentos cientificamente validados em relação aos problemas e dificuldades
cotidianas dos habitantes da Região Nordeste do Uruguai. Também as instituições
precisam se adaptar às limitações, possibilidades, desafios e necessidades construindo
juntos uns caminhos de inovação. Isto fica evidente nos Centros Universitários que
se encontram próximos a fronteira aberta com Brasil, onde se manifestam diferentes
linguagens e culturas.
56 TRANSCICLOPÉDIA EM DIFUSÃO DO CONHECIMENTO

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TRANSCICLOPÉDIA EM DIFUSÃO DO CONHECIMENTO 57

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5. Análise Cognitiva (AnCo): Concepção e
Método de Pesquisa

Leliana Santos de Sousa


Marise Oliveira Sanches
Claudia Pereira de Sousa
Teresinha Fróes Burnham

Abordar-se-á a Análise Cognitiva (AnCo) na concepção de Teresinha Fróes


Burnham enquanto campo de conhecimento científico que contribui para a recons-
trução e reorganização da sociedade, priorizando o aprender fazendo e combinando
prática, experiência de vida, aprendizagem em processo permanente da existência
no processo de individuação humana e da diversidade de grupos humanos.
Trata-se de explicitar a concepção de AnCo como processo de formação na
pesquisa com base na reconstrução e reorganização da experiência em um mundo
em transformações planetárias no sentido de compreensão desse campo de conhe-
cimento pela comunidade científica. Esse processo ocorre como uma necessidade
de vida, evidência da (co)existência e co(n)vivência como “acumulação” possível de
transmissão de cognitivos de grupos sociais e descendentes nas linhas filosóficas da
multirreferencialidade, transdisciplinaridade, complexidade e polilógica, significativas
no mundo e no Brasil, rumo à civilização planetária.
A Análise Cognitiva é um campo de conhecimento que se insere na grande área
das ciências cognitivas. Caracteriza-se como múltipla, facetária e processualística
prática de pesquisa, em sendo e se tornando rede colaborativa de construção do
conhecimento, compreendendo fronteiras, limiares e vizinhanças da diversidade de
conhecimentos, saberes e práticas criativas contemporâneas, históricas, milenares,
ancestrais e tradicionais, oriundas de grupos étnico-culturais denominados em AnCo
de espaços multirreferenciais de aprendizagem (EMA) e produção de conhecimento.
Verificamos em BURNHAM, (2012, p. 130) que
A concepção, portanto, de que se aprende em diversos espaços sociais, onde
diversos sujeitos interagem, tendo como lastro múltiplos sistemas de referên-
cia, foi sendo gestada ao longo desses anos. Em 1995, quando se preparava
o projeto de pós-doutorado (primeira versão do projeto Impactus...) que se
iniciou em 1996 foi formulada timidamente uma primeira versão do conceito
de “espaços multirreferenciais de aprendizagem”.
TRANSCICLOPÉDIA EM DIFUSÃO DO CONHECIMENTO 59

Enquanto Campo de Conhecimento, se constrói sob bases científicas e do senso


do terreno onde se planta a partir de observações e experiências dos que se debruçam na
pesquisa em busca do “Estado da Arte da Análise Cognitiva”. Agindo de forma coletiva
e colaborativamente, afirmamos na experiência o ser que somos em um mar de energia.
A pesquisa vem se desenvolvendo desde a implantação do Doutorado
­Multi-Institucional e Multirreferencial em Difusão do Conhecimento com a mediação
de Teresinha Fróes Burnham que, pela primeira vez, traz a ideia da criação deste Campo
de Conhecimento caracterizado como sistema aberto de produção do conhecimento,
chegando mesmo a afirmar que AnCo é uma profissão do futuro!
Análise cognitiva nasce da hipótese de não existência de área de conhecimento
disciplinar e/ou interdisciplinar que absorva ou dê conta de tratar da diversidade de
problemas individuais e coletivos referentes aos sistemas dos cognitivos humanos
e culturais, sociais históricos, de forma que sua lógica científica está vinculada ao
modo do pensamento filosófico de quinta revolução planetária.
AnCo coincide com a prática em terreno que evolui de forma milenar na
perspectiva do coletivo, do individual, concomitantemente. Análise Cognitiva se
planta como processo educativo social e de desenvolvimento, tornando a própria
vida círculos espiralados, simbólicos, renovador das significações da experiência.
A experiência, em AnCo, se dá pela transmissão, no contato ordinário, diário,
entre pessoas e conexões intencionais, “acidentais” e/ou “inesperadas”, tocando o
itself como se fosse um portal onde o consciente e o inconsciente se encontram e
se equilibram no processo prático de cada pesquisador. A ciência evidencia com as
pesquisas e eventos no mundo as transformações científicas e planetárias, a exigência
de transformações dos modos de pensar e agir no social, ao demonstrar que estamos
no processo de nova revolução dos campos de conhecimentos.
Não obstante, John Dewey, no século XX, já considerava a educação indisso-
ciável do processo democrático:
A educação é o processo da renovação das significações da experiência, por
meio da transmissão, acidental em parte, no contato ou no trato ordinário
entre os adultos e os mais jovens, e em parte intencionalmente instituída para
operar a continuidade social (DEWEY, 1959, p. 354).

E explicita que
[...] uma sociedade é democrática na proporção em que prepara todos os
seus membros para com igualdade aquinhoarem de seus benefícios e em que
assegura o maleável reajustamento de suas instituições por meio da interação
das diversas formas da vida associada” (1959, p. 106).
60 TRANSCICLOPÉDIA EM DIFUSÃO DO CONHECIMENTO

Nessa perspectiva da sociedade, (BURNHAM, http://www.comunidadesvir-


tuais.pro.br/hipertexto/biblioteca/Teresinha%20Froes.pdf), acessado em 22/2/2019,
assinala que
Grandes transformações vêm ocorrendo neste final de século, colocando sig-
nificativos desafios para a humanidade. Tempo e espaço vêm, cada vez mais
claramente, deixando de ser apenas realidades reais, a priori, para se constituírem
em realidades virtuais que, por sua vez, podem se concretizar transforman-
do-se em real-(iz)-ações. A física quântica, a informática, a m
­ icroeletrônica, a
biotecnologia, a micromecânica e os chamados novos materiais são articulados
para constituir sistemas telemáticos e digitais que fazem a aldeia global de
McLuhan deixar de ser um sonho.

O conceito de sociedade de riscos, construído por Beck, põe em xeque o uso


da energia nuclear, as formas poluentes de produzir e a devastação dos recursos
naturais do planeta. A bioengenharia, a profilaxia e a terapêutica genética trazem
à luz possibilidades de controle e interferência em processos naturais, impondo um
profundo olhar crítico sobre o desenvolvimento e as aplicações de ciência, instituin-
do a bioética. A transnacionalização da economia, a (re)articulação dos mercados,
as formas de distribuição (divisão?) internacional da produção e do trabalho, a­(re)
organização dos processos produtivos provocam o questionamento de valores mo-
rais e conceitos políticos ainda (quase) indiscutíveis: soberania nacional, cidadania,
representatividade, educação.
A produção do conhecimento se estende para além das universidades e dos
centros de pesquisa e ganha diferentes loci sócio-culturais e econômicos ­

Lugares tradicionais de disseminação da informação e do conhecimento tais


como bibliotecas e centros de referência ampliam suas funções e sem respeitar
limites físico-geográficos se expandem, articulando-se em redes, virtualizando-se
interfaciando âmbitos públicos e privados, individuais e coletivos.
A escola — espaço socialmente instituído para promover a educação formal
— torna-se alvo de críticas de diversos grupos sociais que alegam não estar
a mesma cumprindo o complexo papel que lhe foi consignado, incluindo
a socialização do saber historicamente produzido, a construção pessoal do
conhecimento, a formação para o trabalho e a produção de identidade cole-
tivas, em especial a de indivíduos que, vivendo em sociedade, (con)formam
a cidadania (GIBBONS, 1994).

A Análise Cognitiva especula o como será o processo de aprendizado do pes-


quisador sobre sua incursão/imersão no campo de produção científica, na operacio-
nalização do conteúdo, na busca do estado da arte para a formalização/afirmação
TRANSCICLOPÉDIA EM DIFUSÃO DO CONHECIMENTO 61

do Conceito de Análise Cognitiva. Nela, encontramos o sentido da espiritualidade


humana na atitude ética pesquisadora como prática reveladora do cuidado, do apren-
der e ensinar mutuamente. Sentido que remete ao desafio de construir estruturas
a partir dos dados obtidos mediante instrumentos elaborados e das experiências
individuais apropriados a produzir conhecimentos, caracterizando o estado da arte
e considerando o sentir e o modo de agir e de curadoria dos envolvidos no raiar
desse novo campo de conhecimento.
A Análise Cognitiva configura-se, então, como processo de pesquisa que se
desenvolve metodicamente na especulação de como será a operação de aprendizado
do pesquisador sobre sua incursão/imersão no campo de produção científica, na
operacionalização do conteúdo na busca conceitual da AnCo para enunciação do
Estado da Arte da Análise Cognitiva no Campo ampliado das Ciências Cognitivas.
Conforme a autora, em AnCo, se enfatiza:

• As diferenças entre a experiência do pesquisador, suas expectativas e seu


aprendizado.
• O conhecimento multidisciplinar, multirreferencial busca compreender
possibilidades e limites da cognição humana nos sistemas complexos.
• As estratégias mentais/cognitivas na solução de problemas: a existên-
cia do termo análise cognitiva nas bases de conhecimentos produzidos
cientificamente.
• A abordagem de um dos “componentes” do processo de tradução
• A dupla dimensão de (des)construção e (re)construção de estruturas con-
ceituais, formais, de um ou mais corpos teóricos.
• As possibilidades e limites do saber prático nos dispositivos e seus aspectos
sociais.
• Os fatores que geram complexidade e interferem na solução de problemas.
• Mecanismos humanos de processamento: cognitivo/cognição
No trabalho de pesquisa das múltiplas produções científicas de base episteme-te-
órico-metodológica, verifica-se, além da diversidade das áreas de conhecimento e da
situação geográfica, enorme dispersão semântica, tornando mais desafiadora a busca da
(re)significação e da expressão “análise cognitiva”, elucidando o sentido da complexidade
do termo na direção da ampliação do conhecimento científico e, ao mesmo tempo, o
reconhecer do surgimento de novo campo de conhecimento em Ciências Cognitivas.
Nesse viés, toma corpo a concepção de Análise Cognitiva na palavra de sua
propositora:
62 TRANSCICLOPÉDIA EM DIFUSÃO DO CONHECIMENTO

Campo complexo de trabalho com/sobre o conhecimento e seus imbricados


processos de construção, organização, acervo, socialização, que incluem
dimensões entretecidas de caráter teórico, epistemológico, metodológico,
ontológico, axiológico, ético, estético, afetivo e autopoiético e que visa o
entendimento de diferentes sistemas de estruturação do conhecimento e
suas respectivas linguagens, arquiteturas conceituais, tecnologias e atividades
específicas, com o propósito de tornar essas especificidades em lastros de
compreensão mais ampla deste mesmo conhecimento, com o compromis-
so de traduzi-lo, (re)construí-lo e difundi-lo segundo perspectivas abertas
ao diálogo e à interação entre comunidades vinculadas a esses diferentes
sistemas, de modo a tornar conhecimento público todo aquele de caráter
privado que é produzido por uma dessas comunidades, mas que é também
de interesse comum a outros grupos/comunidades/formações sociais amplas.
(BURNHAM, 2012, p. 53).

Destaca-se nesse conceito o elementar complexo do campo de Análise Cognitiva


no sentido de trabalho com/sobre o conhecimento e seus imbricados processos de:

• Construção/ Produção/ Geração/ Criação;


• Organização/ Sistematização/ Classificação;
• Acervo/ Armazenamento/ Estoque;
• Recuperação/ Reaquisição/ Reuso;
• Socialização/ Difusão/ Intercâmbio.

Nesses processos, a ação do sujeito é reconhecida como espelho na experiên-


cia da pesquisa, deslocando a suposta solidez da estrutura da ciência moderna em
busca de certezas, passando por meio da pós-moderna que se liquidifica, conforme
­Bauman (2003), deixando a sensação flutuante de ser navegante, alcançando a leveza
do ar, se aerificando, assumindo formas de ser inusitadas, mas sem banalização das
experiências que envolve as dimensionalidades do ser humano em sua evolução.
Assim, inclui, na própria experiência, as dimensões que caracterizam a concepção
filosófico-científica da Análise Cognitiva:

• Teórico — Epistemológico — Ontológico


• Metodológico — Axiológico
• Ético — Estético
• Afetivo
• Autopoiético
E suas características intuição; criatividade; coletividade; colaborativo; acolhi-
mento do ser complexo e transcendência, que emanam na perspectiva do perfil do
TRANSCICLOPÉDIA EM DIFUSÃO DO CONHECIMENTO 63

ser pesquisador(a). O que proporciona a compreensão de que a Análise Cognitiva


se dispõe ao entendimento de diferentes sistemas abertos de estruturação do conhe-
cimento e suas respectivas especificidades como:
• Linguagens
• Arquiteturas conceituais
• Tecnologias
• Atividades específicas
O propósito é de que essas especificidades se tornem lastros de compreensão
mais ampla com o compromisso de tra(ns)duzir, (re)construir e difundir esse mesmo
conhecimento, reconhecendo linhas em perspectivas e dialógicas em processos de
interação que explicitem diferentes sistemas abertos
[...]de modo a tornar conhecimento público todo aquele de caráter privado
que é produzido por uma dessas comunidades, mas que é também de inte-
resse comum a outros grupos/ comunidades/ formações sociais amplas (re)
construindo com a análise cognitiva.

Desse modo, a Análise Cognitiva se caracteriza como:


Um triplo campo teórico-epistemológico-metodológico que estuda o
conhecimento a partir dos seus processos [imbricados] de construção,
tradução e difusão, visando o entendimento de linguagens, estruturas e
processos específicos [também imbricados] de diferentes disciplinas, com
o objetivo de tornar essas especificidades em bases para a construção de
lastros de compreensão inter/transdisciplinar e multirreferencial, com o
compromisso da produção e socialização de conhecimentos numa perspectiva
aberta ao diálogo e interação entre essas diferentes disciplinas/ ciências [e
outros modos de organização do conhecimento], de modo a tornar co-
nhecimento privado de comunidades [...diferenciadas] em conhecimento
público. (BURNHAM, 2011, p. 5)

São múltiplos fatores como criatividade, iniciativa, ação empreendedora, em-


prego de tempo, intervindo na descoberta científica que se generaliza socialmente em
diversas aplicações, contribuindo para uma convergência resultante de um padrão
interativo complexo. O enfoque do estudo da análise cognitiva ganha relevância
à medida que se verifica a amplitude e, ao mesmo tempo, evidencia perspectivas
de processos e instrumentos da ciência da cognição e de difusão do conhecimento
mediante os sentidos das abordagens de cognição encontradas nas bases de conhe-
cimento cientifico reconhecidas e no fluxo do não reconhecido, e sim na energia
que anima o movimento de busca do conhecimento e do que está potencialmente
presente, pois tudo no universo é criado e criador.
64 TRANSCICLOPÉDIA EM DIFUSÃO DO CONHECIMENTO

ANÁLISE CONTRASTIVA : O MÉTODO DA ANÁLISE COGNITIVA


(ANCO)
O método da AnCo se planta a partir de uma memória teórica e experiencial-
mente referenciada de uma investigação, por meio da qual foi produzida a primeira
formulação dessa metodologia, denominada de Análise Contrastiva. A base se inicia
com os trabalhos da Rede Cooperativa de Pesquisa em (In)formação, Currículo e
Trabalho — REDPECT / UFBA, cujos participantes se tornam pesquisadores, dedi-
cando-se na prática à construção do novo campo interdisciplinar e multirreferencial
da Info-Educação. Se, antes, no mundo a utopia era a liberdade, aqui, a finalidade
maior de construção de uma metodologia para investigar a tradução de conhecimento
científico em conhecimento público é a utopia da pós-modernidade. Esse Campo
de conhecimento surge na pesquisa de doutorado de Teresinha Fróes Burnham8,
quando ela cria a metodologia da Análise Contrastiva (2002) na investigação da
tradução de conhecimento científico em conhecimento público.
Este artigo é uma reconstrução sumária e parcial da dinâmica de construção
de uma metodologia de análise de processos de tradução do conhecimento
científico — conhecimento privado a uma comunidade específica — já sub-
metido a uma primeira tradução como conhecimento escolar, para acesso a
um público de não-cientistas: estudantes de nível médio. Toma-se a escola
como lócus de investigação, levando em conta que esta é a instituição so-
cialmente responsabilizada pela democratização da informação científica, na
perspectiva de que esta se transforme em conhecimento pessoal de indivíduos
sociais, compreendidos como sujeitos do conhecimento, pela agregação de
significados relevantes à formação da cidadania. O texto caracteriza-se como
uma memória teórica e experiencialmente referenciada, de uma investigação
realizada há mais de duas décadas, através da qual foi produzida a primeira
formulação desta metodologia que, depois de várias reconstruções (que con-
tinuam a se processar contemporaneamente), vem sendo a base dos trabalhos
realizados pela Rede Cooperativa de Pesquisa em (In)formação, Currículo e
Trabalho - REDPECT/UFBA, dedicada a participar na construção do novo
campo interdisciplinar e multirreferencial da Info-Educação. (BURNHAM,
2011, DataGramaZero, Revista de Ciência da Informação, v. 3, n. 3, jun/2)

No método, destaca-se a dupla dimensão de (des)construção e (re)construção de


estruturas conceituais formais de um ou mais corpos teóricos da área estudada como

8
Doutorado em Filosofia, University of Southampton, Inglaterra. Análise Contrastiva: memória
da construção de uma metodologia para investigar a tradução de conhecimento científico em
conhecimento público. Datagramazero, Revista de Ciência da Informação, www.dgz.org.br, Rev.
eletrônic, v. 3, n. 3, 2002.
TRANSCICLOPÉDIA EM DIFUSÃO DO CONHECIMENTO 65

um dos “componentes” do processo de tradução, seguida da reconstrução sumária,


parcial e dinâmica, de construção de uma metodologia de análise de processos de
tradução do conhecimento científico. Prática cujo pesquisador se identifica como
indivíduo social diante do conhecimento disponibilizado: constituindo-se como
sujeito do conhecimento (SC); reconhecendo necessariamente o enfoque no espaço
social, o conhecimento científico de domínio público e a implicação: escrutinar
alguns dos seus papéis e selecionar — definindo o objeto de pesquisa, considerando
sobretudo que o sujeito social ao agir, social e cientificamente, constrói o objeto e
o método ao mesmo tempo.
Nessa experiência da criação do método da própria pesquisa em uma escola,
Froés Burnham procura entender a implicação dos papéis do locus de pesquisa
enquanto espaço social de disseminação do conhecimento científico para domínio
público:
Enfocar a escola a partir da perspectiva de um espaço social onde o conhe-
cimento científico é trazido para o domínio público implicou em escrutinar
alguns dos seus papéis e em selecionar alguns deles para a definição do objeto
de pesquisa propriamente dito. Dessa forma, depois de algumas análises
preliminares, foram escolhidos três desses papéis [5]. (BURNHAM, 2011,
v. 3, n.3, jun/02).

O Método da Análise Contrastiva se inicia ao verificar-se os papéis do locus da


pesquisa no seu aspecto social democrático, fenomenológico, ontológico do ser, o
que se generaliza visto que, em toda estrutura organizacional, pode-se identificar a
característica da sua implicação social, por meio dos três pontos principais destacados
por (BURNHAM, 2011, v.3 n.3 jun/02):
• 1. Mediação
• 2. Tradução
• 3. Organização

1. Mediação
• Entre um corpo de conhecimento formalmente estruturado, legitimado
e autorizado por uma comunidade científica e um grupo de SAs para o
qual aquele corpo de conhecimento está sendo disponibilizado por meio de
interações que objetivam a apropriação desse conhecimento, via assimilação
na estrutura cognitiva, por esses sujeitos.
66 TRANSCICLOPÉDIA EM DIFUSÃO DO CONHECIMENTO

2. Tradução
• De uma estrutura simbólica (conhecimento)
• Termos, conceitos, sistemas de proposições, signos e símbolos não-verbais etc.
• Complexa e específica da comunidade de conhecimento, em outro tipo
de estrutura (conhecimento acadêmico), mais ainda aproximada do
“conhecimento comum”, através de termos, conceitos, signos e símbolos
não-verbais, significativos para o grupo de estudo.
• Estabelecimento de relações com conhecimentos anteriormente assimilados,
de modo a construir novos ou ampliar/aprofundar aqueles já existentes na
sua estrutura cognitiva.

3. Organização
• Da estrutura simbólica, por meio da articulação de processos e recursos
pertinentes.
• Objetiva a construção de lastros para a compreensão e apropriação daquele
conhecimento pelo grupo.

No que se refere aos procedimentos se compõe principalmente nas seguintes


fases: Fase Exploratória; Fase do trabalho de Investigação e Perspectiva epistemo-
lógica e metodologia.
• Fase Exploratória consiste em:
• Planejamento do trabalho de campo
• Análise da investigação principal
• Fase do trabalho de Investigação inclui:
• Agregação de várias fontes de informação: registros de falas em fita de áudio
e de falas e ações em fitas de vídeo; observações colaborativas questionantes,
participantes e implicadas.
• Documentos originais, produzidos pelos sujeitos envolvidos no processo
(planos, projetos, roteiros, instrumentos de avaliação, redes, filmes, vídeos);
e documentos de acesso público, relatórios, prospectos, programas etc. No
caso de ensino e educação (relatórios de estudos e pesquisas, prospectos
de cursos, programas da disciplina), conforme pesquisa de doutorado por
BURNHAM (2012).
TRANSCICLOPÉDIA EM DIFUSÃO DO CONHECIMENTO 67

E resulta em:

• Grande volume de informações e amplitude do acervo


• Variedade de elementos/artefatos gradualmente descobertos como consti-
tuintes do objeto de estudo
• Gradual análise preliminar de cada elemento

Nesta fase, obtém-se uma diversidade de formas de registro que se estruturam


durante o trabalho de investigação, resultando na composição de um “rico acervo“
identificado, ficando patente
[...] que não havia possibilidade de se trabalhar com esquemas pré-definidos,
uma vez que a aplicação de teorias já construídas, embora permitissem levantar
suposições sobre as informações a partir de construções lógicas ali encontradas,
não eram suficientes para expressar a riqueza e a complexidade do objeto.
(BURNHAM, 2011, v.3, n.3, jun/2).

A perspectiva epistemológica e metodologia se instaura na dimensão da Com-


plexidade onde se tem fluxos de processos de busca e compreensão de conhecimen-
to sob o olhar de vários autores como, por exemplo, Douglas, Glazer & Strauss,
Mannheim, Polanyi, Toulmin e Ziman etc., surgindo então o processo possível de
análise mais abrangente e menos mutilante.
Análise Cognitiva inaugura um modo de pensar a pesquisa científica conside-
rando a impermanência, pois exige refletir a capacidade de fruição no conhecimento
já existente tradicionalmente e nos percursos da transitoriedade do pensamento,
do sentir, do agir, do viver, conviver e coexistir, colaborando com a evolução do
pensamento, da consciência e do espírito da diversidade de seres da natureza, não
somente a dos seres humanos, de maneira a alcançar uma consciência como seres
complexos e singulares, ao mesmo tempo, colaborativamente, para a justiça social,
humana e sustentável na evolução da construção planetária.
A pratica metodológica proposta torna visível o esforço inicial de deixar emergir
o já sabido, deixar sair a partir da zona de conforto para concepções e experiências
singulares, no movimento corpóreo de entrada na passagem emergente da dimensão
paradigmática transdisciplinar, ecossistêmica estimulante da energia criativa e da
possibilidade de desenvolvimento da consciência dos processos científicos, amorosos,
éticos, artísticos e espirituais, que se expressam mais sensíveis em nova estética mais
coerente com a necessidade humana, cósmica e poiética. Os saberes e as práticas
externas ao sensível humano fazem parte do complexo e, na prática da pesquisa em
68 TRANSCICLOPÉDIA EM DIFUSÃO DO CONHECIMENTO

análise cognitiva, não raro, surge de maneira processual nova consciência integradora
possibilitadora da atitude, do cuidado e da plena expressão coincidente com o que
a autora descreve como bases para a construção da Metodologia

• Compreender o fluxo:
• Informação --> tradução --> conhecimento
• Método de análise comparativa constante
• Análise das informações registradas em campo
Compreendendo a ação humana pesquisadora e a desmistificação da existência
de seres e de energias que conduzem e mentalizam os processos de conhecimento
independentemente da racionalidade exacerbada, que se revela constante durante todo
o processo da pesquisa da atividade da análise comparativa constante, convergindo
o olhar para os aspectos seguintes:

• Principal objetivo
• Intenção da Pesquisa
• Compreensão do processo de tradução do conhecimento científico
• Diferentes fontes de informação
• Diversas formas de organização do conhecimento
• Referenciais científicos
• Textos escolares
• Conhecimento comum, dos quais o SM lançava mão
• Circunstâncias da situação em foco
Nesse viés, o Estado da arte do Campo da Análise Cognitiva se dá pela Análise
Contrastiva. Esta coincide com o método científico de modelagem e testagem, como
ciência que investiga a estrutura, evolução e composição desse campo; como forma e
organização dos dados desse universo e no desenvolvimento das diferentes fases é que
se chega à composição pela (re)organização dos dados resultantes. Como o mapa da
cosmologia é âncora das ciências cognitivas, ligando as linhas de mediação epistemoló-
gica, conexionismo, enacionismo, saindo do disciplinarismo e da dualidade disciplinar,
o que possibilita afirmar a análise cognitiva como um novo campo de conhecimento
estelar, ao mesmo tempo, inter/trans disciplinar, multirreferencial complexo que elege
a energia como ferramenta tecnológica do pensamento e da imaginação e canaliza a
tecnologia da emoção e oração alinhando o cérebro/coração e o cosmos.
Análise Cognitiva mediante a Análise Contrastiva interroga a própria di-
mensão do campo de conhecimento, suas condições e o status do sujeito/indivíduo
TRANSCICLOPÉDIA EM DIFUSÃO DO CONHECIMENTO 69

que conhece. Análise Cognitiva não se confunde com uma tradição reflexiva da
consciência e do empirismo, a busca não é de encontrar a gênese, nem o laço, nem a
superfície de contato. A tarefa que se pressupõe em AnCo é ir além de uma terceira
e quarta dimensões, a que reconhece o que envolve a percepção e o corpo inteiro
no seu sentir, na sua função transcendente prospectiva, de maneira que as ciências
envolvidas, os fenômenos e as diversas formas de pensar e de fazer a história sejam
substratos empreendedores do sistema cognitivo do pensamento complexo.
Fróes Burnham, autora do projeto e coordenadora da pesquisa em AnCo, cria
o objeto de pesquisa que é o estado da arte do campo da análise cognitiva que se
desenvolve no componente AnCo I, no Doutorado Multi-institucional e Multirre-
ferencial em Difusão do Conhecimento (DMMDC).
Neste caso, a autora segue inicialmente fluxos necessários para se lançar no
trabalho da investigação que caracteriza o Estado da Arte da Análise Cognitiva
concebido. A referência do exemplo prático, enquanto terreno de experiência para
pesquisa/análise, levanta os problemas epistemológicos e teóricos encontrados.
1. A existência do campo da AnCo. Quais conhecimentos dão conta deste
campo? AnCo se desenvolveu ou se desenvolve em que época? Desde
quando? Em que se basearam e quais foram as tentativas? Esses conheci-
mentos respondiam a quais exigências e condições ? Econômicas? Histó-
ricas? Às mudanças nas dimensões, nas formas, nas normas? No sistema
de conhecimento? Os processos das análises cognitivas eram receptivos a
que conhecimentos?
2. AnCo nos discursos científicos: é preciso ver as passagens, as transfor-
mações, os limites. O ponto chave, diríamos, é evidenciar qual transfor-
mação foi realizada antes, dentro e em torno para que AnCo pudesse ter
status e função de conhecimento cientifico. O intuito para isto é buscar
na determinação a origem desse conhecimento, é de pesquisar seu projeto
fundamental e suas condições radicais de possibilidades.
3. AnCo: por quais canais e códigos se registram os processos de Análise
Cognitiva. Como a Análise cognitiva tem se tornado receptiva a processos
cognitivos estranhos, como, por exemplo, uma expressão de um conhe-
cimento produzido em um espaço de aprendizagem, ou em um dos seus
níveis de aprendizagem pode ser transmitida e produzir efeitos.
Assim a busca é pelo status desse conhecimento. A tentativa é de descrevê-lo ao
mesmo tempo que se questiona, se perquire na sua amplitude, limites, instrumentos e
70 TRANSCICLOPÉDIA EM DIFUSÃO DO CONHECIMENTO

ferramentas. Se depara com um enorme material sobre os conhecimentos transmitidos


tradicional, cientificamente, e explicitados por experimentações em diversas práticas.
Neles, evidenciam-se tecnologias, instrumentos, canais e formas de difusão e repercussão
social de tal maneira que se faz necessário precisar quais seriam as possibilidades de
diferentes processos e níveis desse conhecimento, suas circunstâncias de consciência,
suas possibilidades de ajustamento e de retificação. Nessa contextura, aparece o enigma
epistemológico dos processos de análise cognitiva na tessitura de um conhecimento
social publicizado que tem como fundamento o conhecimento advindo de diferentes
espaços multirreferenciais e de aprendizagens que compõem também o espaço cósmico.
Se pretende, assim, assinalar a investigação em AnCo em seu triplo/múltiplo
aspecto complexo, colaborativo e multirreferencial: caracterização, reagrupamento,
coordenação do conjunto de práticas e instituições enquanto lugar incessantemente
de busca de construção de conhecimento em movimento na compreensão para a
constituição do campo de AnCo enquanto processo da ciência.

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6. Análise Cognitiva (AnCo) e o seu Campo

Ana Maria Casnati Guberna


Claudia Ribeiro Santos Lopes

I. INTRODUÇÃO
Nas suas múltiplas atividades, qualquer profissional precisa decidir, interatu-
ar, dialogar com as percepções dos usuários/clientes e, também, decidir e resolver
diversos problemas que se apresentam cotidianamente.
Para Neisser (1976), a forma que o sujeito se aproxima da realidade é mediada
por um complexo de sistemas que interpretam e reinterpretam a informação sen-
sorial. A partir desta proposta, a cognição pode ser definida como um conjunto de
processos pelos quais a informação sensorial é transformada, elaborada, armazenada
ou utilizada. A sensação, percepção, imaginação, lembrança e solução de problemas
são etapas ou ações da cognição.
Gallegos e Goroztegui1 entendem a cognição como um conjunto de processos
mentais produzidos a partir da recepção de estímulos e sua posterior resposta,
configurando funções complexas que operam sobre as representações perceptivas
ou significações recobradas da memória de longo prazo. As estruturas mentais
organizadoras influem na interpretação da informação, mediando na configuração
fixada e evocada na memória de longo prazo, determinando em parte a resposta da
conduta. Portanto, os processos cognitivos são processos estruturais inconscientes
que derivam de experiências do passado, facilitam a interpretação dos estímulos e
afetam a orientação de condutas futuras, existindo múltiplas representações para
distintas situações. Os principais processos cognitivos inerentes à natureza humana
maturam, em consonância com certa ordem no decorrer do crescimento do sujeito.
As experiências podem acelerar ou retardar os processos cognitivos, configurando
desse modo uma situação de aprendizagem.
O âmbito de análise cognitiva (AnCo) se constitui, inicialmente, em um campo
cognitivo/epistemológico, que enfoca o estudo do conhecimento a partir dos seus
processos de construção, transdução e difusão, considerando a compreensão da lin-

1
-/ebookbrowse.com/p/procesos-cognitivos-soledad-gallegos-maria-elena-gorostegui,as-
ses.6/5/2011.
74 TRANSCICLOPÉDIA EM DIFUSÃO DO CONHECIMENTO

guagem, estruturas e processos específicos de diferentes disciplinas, com o objetivo


de transformar tais especificidades em fundamentações para a compreensão inter/
trans disciplinar e multirreferencial.
Dessa forma, este campo exige um compromisso de produção e socialização
de conhecimentos em uma perspectiva aberta ao diálogo e interação entre diferentes
disciplinas e sua tradução em conhecimento público (BURNHAM, 20102).
Varela, desde 1988, reconhece que é necessária uma confluência fecunda de
investigadores, tecnólogos e usuários como possibilidade de despertar a consciência
humana, aproximando visões e saberes diferenciados como a engenharia em com-
putação e o pensamento filosófico. Pela primeira vez, a ciência logra reconhecer
e legitimar as pesquisas sobre as formas de construção do conhecimento que se
relacionam intimamente e de forma intangível a tecnologia. Também a tecnologia
modifica e transforma as práticas sociais sobre as quais se sustenta, gerando severos
questionamentos e novas posturas epistemológicas.
Mediada pela tecnologia, a investigação científica da mente estende-se à
sociedade como um reflexo ignorado da mesma ultrapassando o círculo de
filósofos, psicólogos e pensadores (VARELA, 1988).

Depois desta breve justificativa e introdução sobre AnCo, é preciso responder


a algumas questões que se apresentam, tais como: O que é a AnCo do ponto de
vista epistemológico?; que tipo de conhecimento se alcança quando procuramos
uma “realidade” cognitiva através da AnCo?; o que pode ser evidenciado a partir
da AnCo?; quais são os pressupostos que se assumem na AnCo? qual é a estrutura
ideológica que se configura na AnCo? (até onde a ideologia mascara ou mostra evi-
dências da “realidade” que a AnCo procura?); que estratégias podem ser utilizadas
para a realização de pesquisas a partir da AnCo?
Pistas para responder à essas questões serão apresentadas ao longo do capítulo
a seguir.

II. DEFINIÇÕES, FUNDAMENTAÇÃO E PESQUISAS EM ANÁLISE


COGNITIVA
Análise Cognitiva (AnCo) é um campo inovador surgido na Universidade Fe-
deral da Bahia que busca ampliar as possibilidades e a visão da pesquisa em diversos
territórios do conhecimento.

2
Tradução da autora
TRANSCICLOPÉDIA EM DIFUSÃO DO CONHECIMENTO 75

Segundo Burnham (2012, p. 53), a concepção de AnCo refere-se a um


[...] campo complexo (multirreferencial, polissêmico, polilógico, pluridimen-
sional) de trabalho com/sobre o conhecimento e seus imbricados processos
de construção, organização, acervo, socialização que incluem dimensões
entrelaçadas de caráter teórico, epistemológico, metodológico, ontológico,
axiológico, ético, estético, afetivo e autopoiético que busca o entendimento
de diferentes sistemas de estruturação do conhecimento e suas respectivas
linguagens, arquiteturas conceituais, tecnologias e atividades específicas,
com o propósito de tomar estas especificidades em bases para a compreensão
mais ampla do mesmo conhecimento, com o compromisso de traduzi-lo,
reconstruí-lo e difundi-lo com perspectivas abertas ao diálogo e a interação
entre comunidades vinculadas a esses diferentes sistemas, de forma a tornar
em conhecimento público aquele de carácter privado que é produzido por
essas comunidades, mas é também de interesse comum a outros grupos/
comunidades/formações sociais amplas.

Burnham (2012) considera que isto exige um compromisso ético-político que


se assume ao tentar interagir em um território como espaço coletivo onde necessa-
riamente é preciso desenvolver estratégias colaborativas para superar a segregação
sociocognitiva. Nesse sentido, a importância de fazer do conhecimento privado um
bem público contribui para fortalecer o bem comum colaborativo onde milhares
de milhões de pessoas participam nos aspectos mais sociais da vida. Burnham
(2012) esclarece ainda que a AnCo instala-se na procura de encontrar e desenvolver
meios que ultrapassem as dificuldades epistemológicas ainda não superadas através
da tradução, transdução e diálogo entre grupos/comunidades que se estruturam
em torno de sistemas com outros (grupos/comunidades) organizados segundo
sistema(s) distinto(s). Como Burnham explicita, a AnCo inaugura a esperança de
que o conhecimento possa transformar-se em um bem público, mediante formas
de entendimento coletivamente elaboradas visando ao exercício compreensivo, real
e efetivo de cidadanias.
Neste cenário, destaca-se a linguagem, a qual, segundo Maturana (2009, p. 20;
24), não se apresenta apenas com um sistema simbólico de comunicação, mas como
“[...] um operar em coordenações consensuais de coordenações consensuais de ações”.
Logo, ela só surge, se houver uma “[...] história de interações suficientemente
recorrentes, envolventes e amplas, onde haja aceitação mútua num espaço aberto
às coordenações de ações”. E, caso não haja uma aceitação do outro, não ocorrerá à
linguagem, pois ela não surge na competição.
76 TRANSCICLOPÉDIA EM DIFUSÃO DO CONHECIMENTO

a) Fundamentação
Em sua obra, Morin (1999) explica que as estratégias cognitivas por intermé-
dio das quais o sujeito adquire o conhecimento, emergem unicamente quando ele
escolhe, confronta, arrisca e tenta um diálogo com algo novo. Isto coincide com
as asseverações de Varela (1996, p. 13), o qual afirma que “[...] a chave da cognição
radica precisamente na capacidade de expressar o significado e as regularidades; a
informação deve aparecer não por sua ordem intrínseca, mas como ordem emergente
de suas próprias atividades cognitivas” (VARELA, F., 1996, p. 13).
Reitera-se então a ideia de conhecimento como emergência; como relação entre
ação e saber, entre quem conhece e o que é conhecido. O conhecimento como atividade
da mente não pode existir separado do sujeito e está ligado ao comportamento, que,
por sua vez, o corpo executa a ação de conhecer por intermédio de uma atividade
do sistema nervoso integrado a outros sistemas do organismo humano.
A AnCo, enquanto campo complexo, está fundamentada na ideia de comple-
xidade e de sistemas complexos reivindicada por investigadores como Morin (1977),
Le Moigne (1977), Prigogine y Stengers (1984) em resposta a uma abordagem
cartesiana, que exige simplicidade, estabilidade e objetividade como forma de faci-
litar a compreensão. Nesse sentido, Vasconcelos (2002) também apresenta críticas
à tendência quanto a especialização da ciência e, para superá-las, propõe práticas
interdisciplinares e transdisciplinares capazes de dialogar e criar pontes entre diversos
campos do conhecimento.
Os ambientes humanos são complexos porque seus componentes e interações
sofrem modificações constantemente, o que impede estabelecer descrições ou re-
presentações que possam ser consideradas definitivas. Logo, é fundamental fazer
uso de uma variabilidade de métodos e de ferramentas teórico-metodológicas que
possibilitem pensar e interagir com outros desde a perspectiva dos pensadores con-
temporâneos, que se apoiam na reflexão e na ação.
Como campo complexo, pode-se afirmar ainda que a AnCo busca conhecer
e traduzir as significações dos sujeitos a partir do princípio de que, segundo Roger
(2010), para se conhecer as partes, é preciso conhecer o todo em que se situam, e
vice-versa, uma vez que o todo é muito mais do que a soma das partes.
Assim, Roger (2010, p. 89), ao fazer referência ao pensamento de Edgar Morin,
destaca a complexidade como espaço metodológico no qual “[...] separar e distinguir
nunca é cortar; e unir e conjugar nunca é totalizar, mas sim pensar a globalidade
junto com a retroatividade e a recursividade entre o global e o parcial. [...] Trata-se
TRANSCICLOPÉDIA EM DIFUSÃO DO CONHECIMENTO 77

de pensar junto. [...] Foge tanto do reducionismo a uma parte como do reducionis-
mo ao todo”. Martins (2004, p. 89), ao citar Morin e Ardoino, destaca que “[...] a
complexidade não está no objeto, mas no olhar que o pesquisador se utiliza para
estudar seu objeto, na maneira como ele aborda os fenômenos”.
Para Souza (2011, p. 82), quanto ao propósito do pensamento complexo, afir-
ma que se trata de “[...] contextualizar, globalizar e ressaltar o desafio da incerteza,
baseado em princípios que guiam seus procedimentos cognitivos”; nessa comple-
xidade do olhar sobre os fenômenos se encontra uma das bases epistemológicas da
análise cognitiva. A outra base epistemológica fundamentado no campo de AnCo
é a multirreferencialidade.
Segundo Burnham (2012), a AnCo também emerge como campo multirrefe-
rencial, estando fundamentada na multirreferencialidade e interculturalidade que
contribuem para uma análise que considera diferentes perspectivas e saiba buscar
sinergias entre fenômenos, conceitos e campos disciplinares diferentes.
A partir do campo da AnCo, uma análise desde a multirreferencialidade,
conforme Lage, Burnham e Michinel (2012, p. 80), se dá
[...] a partir de múltiplos sistemas de referências — poesia, arte, política, ética,
religião, ciência — igualmente significativos, todos irredutíveis uns aos outros
e sem pretensão de síntese, de conhecimento acabado — antes uma bricolagem
de visões que leva a uma compreensão.

Com isso, é possível afirmar que a multirreferencialidade está sob a perspectiva


de olhar/perceber para/sobre o humano de forma mais plural, onde várias correntes
teóricas dialogam em busca da construção do conhecimento sobre fenômenos sociais,
estando diretamente relacionada à complexidade e heterogeneidade que caracterizam
as práticas sociais (BURNHAM, 2012), assim como sobre os sentidos atribuídos
por sujeitos sobre um determinado objeto em análise, resultando em uma rede de
significados que emergem de um grupo social.
Na busca desses significados, a análise cognitiva procura ir além do que dizem
as expressões verbais, imagéticas, corporais: busca interpretar ou inferir a significância
de algo. Para tanto, conforme Burnham (2012, p. 51)
[...] toma como fundamento a multirreferencialidade e a complexidade, a partir
da pluralidade de lógicas (polilogicidade) de dimensões (pluridimensionalidade)
bem como de significados (polissemia) atribuídos ao termo.

Com isso, o analista cognitivo deve ter uma postura amparada na compreen-
são da linguagem como um espaço de relações; de expressão de um pensar e agir a
78 TRANSCICLOPÉDIA EM DIFUSÃO DO CONHECIMENTO

partir de saberes e práticas individuais, construídas a partir de uma vivência coletiva.


Assim, realizar sua análise com o olhar do outro, na perspectiva do outro, a partir
de uma postura reflexiva, implicada, sobre o que/quem se observa, da perspectiva
daquele que se observa.
Em AnCo, a atitude transdisciplinar e/ou multirreferencial requer o co-
nhecimento disciplinar; cada disciplina permanece como tal, mas a metodologia
multirreferencial adiciona novas e indispensáveis composições que não podem ser
proporcionadas exclusivamente por conhecimentos disciplinares. A demanda que
surge da práxis se soluciona apelando a diferentes referenciais teóricos que são con-
vocados e discutidos para conseguir uma bricolagem de saberes (CASNATI, 2015).
A multirreferencialidade, como proposto por Ardoino (1998, p. 42-49), considera
a pluralidade da realidade no seu caráter heterogêneo que se configura na observação
da evolução da sociedade na contemporaneidade como eixo para as contribuições na
construção do conhecimento. Ao falar de heterogeneidade, considera-se a conjugação
de diversos olhares e contribuições de diferentes disciplinas para a elucidação dos
fenômenos, evitando a homogeneização e a redução na compreensão dos fenômenos.
A abordagem multirreferencial não tem a pretensão de esgotar o objeto reconhecendo
as opacidades, o que, por fim, o que faz é reconhecer a complexidade. Reconhece-se
que, no processo, cruzam-se perspectivas simbólicas, culturais, éticas, políticas e prag-
máticas, entre outras, que não estão sujeitas aos fundamentos lógicos e metodológicos
dos esquemas disciplinares. Essas perspectivas, na concepção de Ardoino (1998), são
diferentes referências que não poderiam ser sintetizadas sem graves riscos de mutila-
ção da realidade, a partir apenas da abordagem disciplinar, mesmo que ela contenha
elementos de diversas disciplinas (inter/transdisciplinar). Todo objeto é sempre dotado
de uma “irremediável opacidade”, pois não contém em si mesmo todas as condições
de sua inteligibilidade (BURNHAM, 1998, p. 41-42). A multirreferencialidade não
pretende ser uma integração (soma) de conhecimentos; ao contrário, postula o luto
do saber total, posto que, quanto mais se conheça, mais se criam áreas de não-saber.
Quanto maior é a área iluminada, maior será a área de sombra.
O rigor da abordagem multirreferencial radica na capacidade de construir
significações que levem em conta uma pluralidade de referências identificadas pelo
pesquisador, revelando múltiplas leituras, óticas diferentes, até mesmo contraditórias
entre si (ARDOINO, 1990). O posicionamento ético dos pesquisadores é uma con-
dição necessária para superar os obstáculos epistemológicos da multirreferencialidade
ligados à complexidade dos fenômenos e a sua difícil apreensão na confrontação
com o objeto de pesquisa.
TRANSCICLOPÉDIA EM DIFUSÃO DO CONHECIMENTO 79

Logo, ser multirreferencial é buscar, numa composição com instrumentos teóricos


de outros — e diversos — campos de saber que não são os próprios da disciplina,
uma compreensão mais abrangente (quebra da monorracionalidade) da pesquisa.

b) Algumas pesquisas em Análise Cognitiva


Lopes (2014), ao propor o modelo para análise cognitiva a partir de redes,
intitulado AnCo-REDES, destaca que se faz necessário o desenvolvimento de ini-
ciativas que possam contribuir para a instituição do campo de AnCo e a construção
do estatuto epistemológico que caracterizam a “[...] emergência de um campo do
conhecimento”. A autora explicita que, para Galeffi (2011, p. 9), a AnCo “[...] não se
trata, pois, de uma teoria da cognição e sim de uma abordagem também teórica do
acontecimento cognitivo das organizações humanas a partir de seus agenciamentos”.
Destaca ainda Galeffi (2011, p. 10) que “[...] o analista cognitivo como transdutor de
dinâmicas criadoras próprias do viver comum tem necessariamente que implicar-se
em sua transdução que é também um ato criador”. Lopes (2014) descreve ainda a
trajetória percorrida para a construção do modelo AnCo-REDES cujo resultado
contribui para a consolidação do campo da AnCo.
A autora relata que o primeiro ensaio que deu início à trajetória para a cons-
trução do modelo foi gerado na disciplina Análise Cognitiva, onde contou com a
colaboração de Jurema Lindote Botelho, intitulado “A difusão do conhecimento
em análise cognitiva: contribuições da análise de redes semânticas” (LOPES;
­BOTELHO, 2012). Outras experiências surgiram depois desta e, dentre elas,
destacam-se os artigos publicados — Análise cognitiva da difusão de conheci-
mento em humanização na saúde: uma estratégia a partir das redes semânticas
(LOPES et al., 2013a); e “Significado de corresidência a partir da análise de
uma rede social de idosos” (LOPES et al., 2013b). A partir dessas experiências
e, observando os pressupostos da AnCo, tendo a tradução como processo-chave
na análise cognitiva (BURNHAM, 2012, p. 43), em busca de se estabelecer um
diálogo com as teorias assumidas como base (Teoria de Redes) e aplicação do
modelo proposto (Teoria das Representações Sociais), outras produções foram
geradas. Dentre elas, destacam-se os trabalhos intitulados: i) “Significado de
corresidência na visão de idosos: uma estratégia de análise cognitiva com uso de
redes semânticas” (2013); ii) “Análise Cognitiva da Difusão de Conhecimento
em Humanização na Saúde: uma estratégia a partir das Redes Semânticas” (LO-
PES et al., 2013); iii) “Identificando as representações sociais sobre a promoção
da saúde em uma rede social de trabalhadores de saúde” (LOPES et al., 2014);
80 TRANSCICLOPÉDIA EM DIFUSÃO DO CONHECIMENTO

iv) “Interatividade e relações com o saber: um olhar à luz da análise de Redes


Sociais.” (CASNATI et al.,, 2015); v) “Representações Sociais do programa rede
cegonha: uma análise cognitiva a partir de redes semânticas” (SANTANA et al.,
2016); vi) A representação do professor de matemática a partir de um plano de
formação: PARFOR (SENA et al., 2016); vii) “Representational comparisons
of health education for alcoholics: a study of AnCo-networks” (RIBEIRO, et
al., 2017); viii) “Representações sociais de equipes de saúde acerca do Programa
Rede Cegonha: Uma análise a partir do AnCo-REDES” (SANTANA; VILELA;
LOPES, 2017); ix) “O modelo AnCo-REDES e a Análise de evocações livres
de palavras.” (RIBEIRO et al., 2017); x) “Representações Sociais de mães e
pais de crianças com Paralisia Cerebral na perspectiva da Análise Cognitiva de
REDES.” (ALVES et al., 2017).
Com essas experiências foi possível vivenciar o quanto desenvolver uma pesquisa
multidisciplinar, além de desafiador, é uma tarefa complexa, que implica em uma
constante (re)significação, (des)construção, implica um olhar mais amplo e escuta
sensível. Destaca-se ainda que esta é uma tarefa difícil de ser conduzida, porém a
multidisciplinaridade se apresenta como oportunidade para a descoberta de novos
caminhos.
Outra pesquisa que merece destaque foi realizada por Casnati (2014), que
desenvolve um agenciamento de análise cognitiva (integração de conhecimentos,
saberes, práticas, percepções, funções, experiências) dos sujeitos em interatividade
através de ambientes multirreferenciais de aprendizagens, com ênfase na criatividade
e afetividade. Como estratégia metodológica, esta pesquisa fez uso da análise de
redes e da etnopesquisa multirreferencial e multilocal.
Também se destaca a pesquisa sobre a interatividade em ambientes multir-
referenciais de aprendizagem publicada na Revista Intecambios da Comisao de
Ensino da Universidade de la República, Uruguai, em colaboracao com Galeffi
(2014). Em 2012, a pesquisadora apresenta “A Análise Cognitiva em Odontología”
no Encontro Anual da Sociedad Uruguaia de Odontología em colaboração com
a Profa. Teresinha Froes Burnham. Em 2011, Casnati desenvolve o artigo “Em
busca da Análise Cognitiva”. Nela se considera que a construção do conhecimento
e o discurso são próprios das áreas estudadas. Portanto, o analista cognitivo que
estuda a forma como se constrói o conhecimento nessa área deve necessariamente
realizar uma aproximação ao discurso da disciplina em relação ao artigo analisa-
do. O discurso é mais difuso|, menos concreto, quanto mais recente é a área de
conhecimento estudada.
TRANSCICLOPÉDIA EM DIFUSÃO DO CONHECIMENTO 81

III. A justificação do campo da AnCo

Estamos [...] ante um processo histórico objetivo mais construído sobre uma
objetividade profundamente viciada. Nesse sentido a Globalização é uma
ideologia com nome próprio, do Neoliberalismo com teóricos conhecidos.
(REBELLATO, 2000, p. 44)

A filosofia neoliberal vigente tem conduzido a sociedade definitivamente a um


mundo onde a competência e o mercado são produtores de significados e construtores
de novas formas de subjetividade. As sociedades se comportam distantes uma das
outras, desenvolvendo processos de polarização e divisão crescentes. O sistema se
insere no mundo da vida para poder integrar-se e neutralizar as possíveis linhas de
fuga que ocasionalmente podem emergir.
Diante deste cenário, no contexto latino-americano surge uma questão a ser
investigada: “Quais são os modos de objetivação que os habitantes têm organizado na
sua vida social, cultura material e simbólica que, no contexto globalizado, responda
aos espíritos dos seus territórios no sentido de produzir um projeto social alternativo?”
Quanto a esta questão, corrobora-se com Guatari (1993, p.24) ao chamar de
“escolha ética crucial”. Existe um saber crítico que vem se desenvolvendo desde o
século XVII onde o princípio motivador é a emergência dos setores marginais de
índios, grupos étnicos, mulheres e se encontram formas decodificadoras do discurso
vigente (REBELLATO, 2000, p.45).
Em consonância com a escolha ética social de Guattari, o saber crítico deve ser
considerado em uma perspectiva etnometodológica, onde os sujeitos são apreciados
em sua dimensão de criatividade processual. Neste momento histórico, resulta-se
interessante escutar o questionamento de Villasante: “Trata-se de fazer cidades para
formar cidadãos o formar cidadãos para que façam cidades?” Desta pergunta emergem
outros questionamentos: Se os territórios são redes, quais são as relações éticas e como
se devem construir essas redes nas vinculações com a educação, o trabalho, a saúde, o
conhecimento como mercancia e as relações do poder global? Pode o aspecto processual
da construção do conhecimento, a práxis, promover uma tensão entre a teoria e a prática
suficientemente significativa para induzir uma coerência outra de comportamento na
cotidianidade a ser construída desde a complexidade das sociedades em rede? Pensando
em um hábitat, como um habitar das pessoas no mundo globalizado em rede, onde
as pessoas devem conviver com as perdas de controle dos empregos, das economias e
os (des)conhecimentos, a ética pode contribuir a raciocinar sobre a forma de sustentar
no sentido de amparar-se e apoiar-se nos espaços concretos da vida quotidiana.
82 TRANSCICLOPÉDIA EM DIFUSÃO DO CONHECIMENTO

Para tentar superar as desigualdades e a crescente e incessante marginalização, a


proposta é conhecer, mas profundamente e de forma colaborativa as relações internas
e externas de cada ecossistema que cada pessoa habita considerando as complexida-
des, os recursos, as informações nas redes de acessos múltiplos, articulando-se na
diversidade como possibilidade de resistência radical e construção outra para além
do processo gerado pelo atual modelo sociotécnico. Para Yamandú Acosta (2003, p.
237) a exclusão, especialmente nos circuitos da vida real, em termos da possibilidade
de viver uma vida humana digna, é difícil diante de uma realidade cada vez mais
ameaçador para muitas pessoas no planeta.
A tensão ética exclusão-inclusão que afeta o sistema globalizado se apresenta
na vida cotidiana como o lugar indicado tanto para arbitrar procedimentos legiti-
madores e reverter os processos discriminatórios, mas também essa mesma tensão
pode contribuir a assegurar e reproduzir ainda em forma mais perversa do sistema.
A exclusão está sustentada pela “moral da convicção” própria do poder auto-
ritário que legitima por meio da comunicação essa exclusão derivada da força da
razão no princípio subversivo da ordem. Ou seja, para que “todos” possam viver
no ordenamento é necessário que aqueles que podem subverter a ordem fiquem
excluídos do espaço de ação política. A socialização do cotidiano na interação com
a socialização do mercado gera um “consumo diferencial|| que implica uma “inte-
gração segmentada” (BRUNNER,1981, p.17).
A segmentação impõe uma forma de hierarquia que produz uma exclusão
crescente da população. A razão do Mercado como império dominante mostra um
aprofundamento da iniquidade que as políticas assistenciais e focalizadas até agora
não podem solucionar.
Para contribuir desde AnCo assumindo a tarefa como proposta de trabalho na
sua possibilidade de transformação e mudança, a oportunidade está dada desde a
práxis na vida cotidiana. AnCo explicita uma posição ética definida pela oportuni-
dade de contribuir a configurar e dimensionar as redes de constelações cotidianas.
Estas redes podem se identificar por vias de referenciais múltiplos, de concordâncias
sucessivas e encontros comuns para a construção de uma socialidade no ser-sendo
(GALEFFI, 2001, p. 503) onde a ética supõe escutar e agir desde e com as pers-
pectivas dos grupos ou comunidades. Faz-se necessário configurar e viabilizar a
esperança, alimentada pela responsabilidade em/com os outros, no reconhecimento
da diversidade tentando achar confluências teórico-epistemológicas para consolidar
a emancipação do sujeito em um mundo complexo.
TRANSCICLOPÉDIA EM DIFUSÃO DO CONHECIMENTO 83

IV. AnCo e Representações Sociais


AnCo constitui uma forma própria e apropriada para responder às exigências
propostas por Giroux (2003), quando afirma que os investigadores precisam resol-
ver a relação entre rigor teórico e relevância social, crítica social e política prática,
erudição individual e pedagogia pública como parte de um compromisso mais
amplo em defesa das sociedades democráticas. Para isto, a teoria pode conectar-se
com equidade social, análise textual, política, prática e investigação acadêmica,
contemplando o bem comum. Sem dúvida, AnCo gera possibilidades concretas
para a integração entre o campo das Representações Sociais e da Análise de Redes, o
que constitui um ambiente cognitivo e meio físico para criar pontes entre os saberes
com um claro objetivo de fazer com que o conhecimento seja acessível a todos e
estimule o espírito crítico.
Como campo epistemológico-metodológico, a AnCo contribui para facilitar
a criação de conhecimento e, ao preocupar-se com sua finalidade, difusão e acessi-
bilidade, AnCo manifesta sua resistência à privatização do conhecimento humano
e adere à conservação dos recursos da terra. Ou seja, enquanto campo teórico-epis-
temológico-metodológico de visada multirreferencial, habilita a possibilidade de
diálogo entre áreas que, no paradigma da ciência moderna, permanecem isoladas.
Na contemporaneidade, surge a necessidade de construir relações que brin-
dem a possibilidade de apreender os fenômenos a partir de processos que ajudem a
associar e a distinguir reconhecendo os vários níveis de realidade, evitando redu-
ções limitantes e habilitando a possibilidade de diálogo entre disciplinas ou áreas
de conhecimento. AnCo trabalha com conceitos, contextos e relações conceituais,
e isto exige: implicação do pesquisador; reconhecimento do conhecimento como
construto cultural; negociação de sentidos; relação com as representações simbólicas
distintas e particulares dos contextos de referência dos sujeitos; processos intrínsecos
de socialização do conhecimento.
O analista cognitivo tem intencionalidade, mantém um compromisso de
desenvolver sistematizações, porém ele deve estar atento às nuances (linguagens,
expressões, formas de organizações) dos fatos analisados. Portanto, ele deve ter
uma escuta sensível (Barbier, 1997) e consciência atenta, focada. Para Barbier “[...]
a escuta sensível se apoia na empatia”. Ele afirma que os pesquisadores precisam “[...]
saber sentir o universo afetivo, imaginário e cognitivo do outro para poder compre-
ender de dentro suas atitudes, comportamentos e sistema de ideias, de valores de
símbolos e de mitos”. Logo, uma escuta sensível inclui uma aceitação incondicional
84 TRANSCICLOPÉDIA EM DIFUSÃO DO CONHECIMENTO

dos sujeitos involucrados nas pesquisas. Como ouvintes sensíveis, eles não julgam,
não comparam, porém eles compreendem sem identificar às opiniões dos outros. A
escuta sensível afiança a congruência do pesquisador.
Entretanto, o profissional analista cognitivo precisa ter um corpo teórico epis-
temológico que dará base para sua análise. Os conhecimentos da ciência cognitiva
dão sustentação teórica, mais também um olhar atento aos conhecimentos sobre os
fatos ou objetos de análise (outras disciplinas envolvidas, contexto, temporalidade
etc.) são necessários para a realização de estudos no campo da análise cognitiva.
Ao realizar pesquisas no campo da AnCo, o analista assume uma posição
frente ao que está analisando (expõe conceitos, lógicas, linguagens que vê que estão
presentes no panorama analisado). Portanto, é preciso sistematizar e explicitar as
ações do processo que é analisado.
A análise cognitiva é feita dentro de um corpo ideológico e político e se presta
para três finalidades principais: 1) Tornar o conhecimento que é produzido em
comunidades fechadas de acesso ao domínio público; 2) Tornar os léxicos dessas
comunidades compreensíveis; 3) Permitir a interação e fluidez entre os discursos
produzidos nas várias comunidades epistêmicas.
Também a estrutura cognitiva do analista, obviamente, é importante para a
análise realizada. Não existe impessoalidade em uma análise cognitiva, apesar do
analista tentar descobrir que sentido(s) o autor dá à obra que está sendo analisada.
O analista cognitivo precisa fazer um diagnóstico do panorama analisado,
talvez com o propósito de intervir no cenário, e logo poder promover a interação
entre sujeitos na medida em que promove a difusão dos conhecimentos produzidos
por comunidades epistêmicas, de forma que todos possam compreender diferentes
linguagens e sentidos. As reflexões resultantes constituem a práxis da interação.
Do exposto, e tentando apreender a análise cognitiva através da comparação,
se é que isso é possível, pode-se refletir sobre as semelhanças e as diferenças entre a
análise cognitiva e a análise feminista perspectivista, que é apresentada por Sandra
Harding (1996). A autora identifica uma abordagem que investiga a vida cotidiana
das pessoas pertencentes a grupos oprimidos com o objetivo de coligar as fontes
de sua opressão nas práticas conceituais das normas epistêmicas que a sustentam e
estruturam (HARDING, 1996).
A análise feminista perspectivista, assim como a análise cognitiva, exige a
“intencionalidade”. Tanto na análise feminista perspectivista, como na análise cog-
nitiva, a intenção é colocada/situada, ou seja, é “explicita e ambas têm uma postura
ética justificada no parágrafo anterior. Norteada pelo princípio da desconstrução,
TRANSCICLOPÉDIA EM DIFUSÃO DO CONHECIMENTO 85

ao mesmo tempo em que caminha questionando/desmoronando, a lógica binária


concebida a partir de pares opostos como razão/emoção, sujeito/objeto; mente/corpo;
objetividade/subjetividade, dentre outros. A análise feminista perspectivista constrói
o projeto feminista nas ciências e na universidade, um projeto que tem como objetivo
maior a construção e a disseminação de saberes resultantes de práticas científicas
ancoradas no pensamento feminista e, assumidamente, fundamentadas em uma
práxis política e em um projeto de transformação das relações de gênero.
Logo, se a comunidade epistêmica analisada for, por exemplo, um grupo/
movimento cujo saber/fazer não é reconhecido/validado pelas formas hegemônicas
de organização do conhecimento, a intenção de promover a interação e a fluidez
entre os discursos, tornando o saber/fazer desse grupo um bem público (intenção
da análise cognitiva, fato que exige estudo do léxico, e/ou dos sentidos produzidos
e apreendidos pelo grupo, sem perder de vista que o sujeito do discurso é político),
também promove a construção/difusão de saberes relevantes para o grupo analisado.
O olhar aqui é um olhar totalizante da imersão, é o olhar com todos os sen-
tidos. Esse olhar que não estratifica os sentidos, mas o percebe, sente, categoriza,
conceitua, formaliza, torna explícito o evento do lugar de onde se olha. Dessa forma,
a análise cognitiva pode contribuir para a construção de conhecimentos com todos
os sujeitos implicados no evento/fenômeno. O analista cognitivo socializa o que
olha, explicita o evento de forma coletiva, social, para os seus pares implicados com
o evento ou não implicados.
Por outro lado, uma coisa é reconhecer que a análise cognitiva é feita dentro
de um corpo ideológico e político, identificando qual é a ideologia e a política
presente; outra coisa diferente é o analista cognitivo acrescentar opções político
ideológicas à sua análise. A partir daí buscar o lugar do Analista Cognitivo e seu
lugar de atuação poder ser a legitimação de um novo território constituído a partir
de uma m ­ ultirreferencialidade onde ele socializa o que olha, explicita o evento de
forma coletiva, social, para os seus pares implicados com o evento ou não implicados.
O AnCo explicita o evento com base em determinados pressupostos teóricos,
e o produto da análise cognitiva, isto é, o conhecimento produzido, é relevante
para transformar a realidade social. O olhar do(a) analista que olha com todos
os sentidos é sempre situado, dependente dos diferentes marcadores sociais e das
experiências que o constrói o sujeito político, mesmo que não se tenha consciência
disso. Assim, questiona-se o potencial da análise cognitiva no descentramento do
sujeito do discurso, aquele que (re)produz e transforma realidades. Sem deslocar-se,
ou seja, sem descentrar-se do eixo de saber hegemônico que deforma o pensamento
86 TRANSCICLOPÉDIA EM DIFUSÃO DO CONHECIMENTO

e promove iniquidades, a relevância do saber resultante da análise cognitiva fica


comprometida.
Corroborando com Aleksandrowicz (2002), entende-se aqui que um dos desafios
mais instigantes atualmente, no âmbito metodológico, talvez seja o espaço e o tempo
que requerem os diálogos interdisciplinares em torno da ideia de complexidade como
instrumento de trabalho. Neste cenário, insere-se a necessidade de compreender as
representações sociais acerca de determinado objeto por sujeitos, as quais são cons-
truídas a partir das relações sociais que estabelece. Para tanto, utilizar-se da análise
de redes semânticas conforme proposto no modelo AnCo-REDES, como estratégia
para buscar tal compreensão, apresenta-se como um exercício de análise cognitiva,
no qual se busca apreender os sentidos atribuídos por esses sujeitos quanto ao objeto
em análise. Análise que visa traduzir os sentidos individualmente projetados pelos
sujeitos, em meio a uma fornalha de acontecimentos implicados, resultantes de sua
história de vida, crenças, valores e relações sociais estabelecidas.
Dessa forma, fundamentado nesse olhar complexo e multirreferencial que
sustenta o campo da análise cognitiva é que surge o modelo AnCo-REDES, pro-
posto por Lopes (2014), o qual buscar criar pontes e diálogos entre o campo teórico/
metodológico das Representações Sociais e a Teoria de Redes, de forma a apreender
os sentidos atribuídos por sujeitos acerca de determinado objeto de investigação,
resultando em uma rede de significados. Ou seja, em uma rede semântica de repre-
sentações sociais.
Por fim, do ponto de vista epistemológico AnCo assume a complexidade e a
multirreferencialidade como duas fontes de abordagem que sustentam a construção do
conhecimento. No entanto, o conhecimento que se alcança quando procuramos uma
realidade cognitiva através da AnCo tem certa opacidade que deriva da incapacidade
de abranger essa “realidade” sempre difusa. AnCo evidencia uma possibilidade para
tornar-se um conhecimento privado em um bem público e o explicita francamente.
Assim, os pressupostos que se assumem na AnCo são fundamentalmente de natureza
ética, o que de alguma forma modela a estrutura ideológica que se configura, porém
a escuta sensível (Barbier, 1997) como uma metodologia da pesquisa ação contribui
para que essa ideologia não mascare a realidade.
As estratégias que podem ser utilizadas para a realização de pesquisas a partir da
AnCo são diversas e ainda há muito chão a percorrer. Portanto, está feito o convite
para se continuar construindo o campo de AnCo.
TRANSCICLOPÉDIA EM DIFUSÃO DO CONHECIMENTO 87

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7. Anarquismo Epistemológico

Jose María Barroso Tristán

O anarquismo epistemológico, que tem Paul Karl Feyerabend como criador


e máximo teórico, foca seu desenvolvimento no absurdo que supõe para o avanço
da Ciência estabelecer regras fixas e inquestionáveis. Feyerabend, através de uma
profunda e rigorosa análise sobre a evolução histórica da Ciência e do conhecimento,
demonstra como muitos dos avanços ocorridos têm sido possíveis graças ao fato de
terem sido desobedecidas regras estabelecidas pelos métodos que exerciam a hege-
monia no terreno epistemológico até aquele momento.
A ideia de um método que contenha princípios científicos, inalteráveis e absolu-
tamente obrigatórios, que rejam os assuntos científicos entra em dificuldade quando
confrontada com os resultados da pesquisa histórica. Estamos em um momento que
não há regra, por mais plausível que seja, ainda que firmemente baseada na epistemo-
logia, que não seja infringida em uma ou outra ocasião. Evidente, tais infrações não
ocorrem acidentalmente, como não são o resultado de um conhecimento insuficiente
ou da uma falta de atenção que poderia ter sido evitada.
Pelo contrário, são necessárias para o progresso.
[...] a revolução copernicana ou o surgimento do atomismo na antiguidade
e no passado recente, ou a emergência gradual da teoria ondulatória da luz
ocorreram ou, porque alguns pensadores decidiram não se ligar a determina-
das regras metodológicas “óbvias” ou, porque as violaram involuntariamente
(FEYERABEND, 1987, p. 15)1.

Esta afirmação de Feyerabend rendeu muitas críticas ao seu trabalho teórico, pois
atacava o intocável centro da comunidade científica, o método. Isto lhe deu o apelido
de “o mais perigoso inimigo da Ciência” (THEOCHARIAS; ­PSIMOPOULOS,
1987, p. 596). Aliás, a crítica de Feyerabend ao método não é tão simples como
alguns críticos têm pretendido mostrar2, ao ser mal interpretado, devido a uma
leitura parcial da sua obra, o conceito do “tudo vale”3 que a teoria feyerabendiana
1
As citações utilizadas de livros escritos em espanhol ou em inglês estão traduzidas para o portu-
guês.
2
Para se aprofundar nas críticas recebidas por Feyerabend desde interpretações equivocadas reco-
mendamos a leitura de DAMASIO; PEDUZZI (2015).
3
Utilizaremos o termo “tudo vale”, que se encontra em nossa edição de Contra el método (1987).
Fazemos o esclarecimento, pois temos encontrado o termo em diferentes formas como “tudo
TRANSCICLOPÉDIA EM DIFUSÃO DO CONHECIMENTO 91

utiliza. É interessante conferir como os críticos têm fragmentado e separado este


conceito do seu contexto, dando interpretações erradas ao princípio que, em muitas
ocasiões, ao ser colocado em um lugar central desvirtua a teoria completamente.
Os críticos (BUNGE4, 2003; HARADA5, 2006; SOKAL e BRICMONT6, 1999)
que têm desenvolvido seus exames sobre o anarquismo epistemológico coincidem ao
situar o princípio “tudo vale” como fundamento da teoria feyerabendiana, ficando
o resto da teoria influenciada por ele. Isso nos chama especialmente a atenção, pois
Feyerabend mostrou, em repetidas ocasiões, o significado que lhe confere o “tudo
vale”, sendo modificado seu uso a depender a quem lhe é dirigido. Quando é para
pessoas que procuram um princípio universal, diz:
Aqueles que consideram o rico material que fornece a história e não tentam
empobrecê-lo para dar satisfação aos seus mais baixos instintos e ao seu desejo
de segurança intelectual com o pretexto de clareza, precisão, ‘objetividade’,
‘verdade’, a essas pessoas lhes parecerá que só tem um princípio que pode de-
fender-se sob qualquer circunstância e em todas as etapas do desenvolvimento
humano. Me refiro ao princípio tudo vale. (FEYERABEND, 1984, p. 27).

Aqui ele confere um significado histórico, uma vez que, após mostrar que em
determinados episódios do conhecimento, este evoluiu por não obedecer às regras
metodológicas existentes, considerando que o único princípio universal, para alguém

serve” ou “qualquer coisa vale”. Por isso, usaremos o “tudo vale”, para dar uniformidade ao texto.
4
Especialmente, salientam as observações feitas pelo professor Bunge, que qualifica Feyerabend
como “a criança terrível da filosofia do século XX” (p. 25), “[...] foi um aficionado em tudo o que
ele fez. Em toda sua vida, ele foi inquieto, um rebelde sem causa, exagerado” (p. 26), misturando-
-as com críticas autoritárias, ao carecer de um diálogo com Feyerabend, pois não cita suas referên-
cias. Ele diz, “[...] cada qual pode afirmar tranquilamente o que ele quiser; que as provas empíricas
não têm valor e, sobretudo, que tampouco tem valor a lógica, de modo que teria que ser tolerada a
contraindução e o non sequitur. Ou seja, que o ser humano não se diferenciaria pela racionalidade”
(p. 26), “[...] que não vale a pena estudar nada a sério e com rigor, já que “tudo vale” (p. 30) ou,
“[...] Não tudo vale por igual. Portanto, não tem motivos para permanecer indiferente ante o erro
e a injustiça. Pelo contrário, tem motivos para trabalhar pela verdade e pela justiça” (p. 30). Esta
última é particularmente interessante já que, além de fazer uma crítica sobre uma definição errada
do “tudo vale”, dá a entender que ele possui a descrição objetiva de termos tão subjetivos quanto
a injustiça, justiça e verdade.
5
“[...] Se é verdade que ‘tudo vale’ (anything goes) — como nos diz a primeira regra de seu anar-
quismo epistemológico” (p. 39) ou “[...] em certo sentido é verdade que ‘tudo vale’ para algo, mas
também é certo que nada serve para tudo e que tem coisas que valem quase para nada” (p. 42).
6
“[...] de uma observação correta, todas as metodologias têm seus limites”, Feyerabend pula para
uma conclusão totalmente falsa: ‘tudo vale’ (p. 90) e, “[...] que critério aceitável para F
­ eyerabend
estaria sendo infringido? Não nos diz ele que ‘tudo vale’? Seu relativismo metodológico é tão
radical que, tomado literalmente, se autorefuta. Sem um mínimo de método — racional —, é
impossível inserir sequer, uma apresentação meramente histórica dos fatos” (p. 93).
92 TRANSCICLOPÉDIA EM DIFUSÃO DO CONHECIMENTO

que quer se ater a algum deles, e que quer ser coerente com a História da Ciência,
seria, por tanto, o princípio do “tudo vale”.
Por outro lado, o usa como uma crítica irônica contra os racionalistas ao dizer:
Tudo vale não expressa nenhuma convicção minha, senão que é um compêndio
cômico dos apuros de um racionalista: se você quer critérios universais, se não
pode viver sem princípios cuja validez esteja acima da situação, a forma do
mundo, as exigências da pesquisa e as peculiaridades temperamentais, então
eu te forneço um desses princípios. Será inútil, vazio e bastante ridículo, mas
será um princípio. Será o princípio tudo vale (FEYERABEND, 1998, p. 223).

Como podemos comprovar com o “tudo vale”, ele ironiza a pretensão dos
racionalistas de encontrar critérios universais, oferecendo-lhes um princípio uni-
versal, o “tudo vale”. Vemos como o qualifica de “inútil, vazio e bastante ridículo”,
lançando por terra com estas palavras as críticas de todos aqueles que se basearam no
“tudo vale” para realizar uma crítica totalmente descontextualizada do anarquismo
epistemológico que ele propõe.
Devido à ingente quantidade de críticas que recebeu (e segue recebendo por
pesquisadores que não se dignaram a lê-lo, mas sim criticá-lo) por um princípio
que ele mesmo não assume, o próprio Feyerabend teve que explicitar sua rejeição
ao princípio do “tudo vale”:
Isto é uma explicação em si já clara, mas ainda se pode ler de duas formas: eu
adoto esse lema e sugiro que se use como base do pensamento; eu não adoto
ele, mas descrevo simplesmente o destino de um amante dos princípios que
toma em consideração a história: o único princípio que ficará será o tudo vale.
[...] Tenho recusado explicitamente a primeira interpretação (FEYERABEND,
1984, p. 28).
Agora, veremos qual o princípio fundamental do anarquismo epistemológico,
o núcleo que lhe dá coerência ao resto da teoria através do qual se articulam os
diferentes elementos que proporcionam para fazer avançar o conhecimento:
“Minha intenção não é substituir um conjunto de regras gerais por outro
conjunto: pelo contrário, minha intenção é convencer o leitor de que todas
as metodologias, incluídas as mais óbvias, têm seus limites”. (FEYERABEND,
1986, p. 17).

Quer dizer, o elementar é considerar que qualquer metodologia, por mais


enraizada e bem estabelecida que se encontre no interior da Ciência (ou qualquer
outra tradição de conhecimento), é imperfeita e, portanto, pode ser modificada, in-
fringida em alguma de suas fases e, inclusive, usada em conjunto com outras, ainda
que isto pareça irracional, em prol da proliferação do conhecimento. Significa isto
TRANSCICLOPÉDIA EM DIFUSÃO DO CONHECIMENTO 93

que o anarquismo epistemológico rejeita todo tipo de metodologia? Ou que propõe


uma libertinagem epistemológica no “tudo vale”? De modo nenhum. Tão somente
quer dizer que todas as metodologias se encontram limitadas, por um lado, ao ter
componentes intersubjetivos da tradição de conhecimento da qual provém e, por
outro, porque não existe metodologia que seja capaz de atender a complexidade tão
rica e diversa que compõe nossa existência.
No entanto, isto não quer dizer que o anarquismo epistemológico caia na ino-
cência de considerar qualquer tipo de regra ou critério como inválido, pois o próprio
Feyerabend destaca que “[...] a intenção não é abolir as regras nem demonstrar que não
têm valor nenhum. Minha intenção é mais ampliar o inventário de regras e propor
um uso diferente delas” (1985, p. 101) já que “[...] há todo tipo de regras empíricas
que nos ajudam na tentativa de avançar, mas têm que ser sempre examinadas para
se ter certeza de que continuam sendo úteis” (1984, p. 25). As regras são necessárias
para a construção de qualquer processo lógico, uma vez que estas dão uma coerência
interna a eles e são as que nos permitem avançar na produção de conhecimento. Po-
rém, isto não implica que as regras tenham que ser sagradas ou intocáveis, pois isto
limitaria a evolução dos processos que empreendemos. Seguir como dogmas uma série
de regras ou critérios nos obrigaria à perpetuação do estado que se encontra imersa a
Ciência. Contudo, reconhecer que possuem certas limitações — às vezes, conhecidas;
outras ainda não — nos fornece uma liberdade que nos permite ampliar os campos
de ação, modificando essas regras e estimulando a criatividade, inclusive colocá-las
em causa e caminhar para posições que poderiam ser percebidas como irracionais ao
se encontrar nas margens do considerado racional pela Ciência atual, mas, em um
futuro poderia estabelecer-se como uma nova racionalidade. Feyerabend fez especial
incidência nisso, pois recebeu críticas que supunham o anarquismo epistemológico
como uma forma de realizar Ciência sem nenhum tipo de critério.
O anarquismo ingênuo reconhece as limitações de todas as regras e critérios.
Um anarquista ingênuo diz (a) que tanto as regras absolutas quanto as que
dependem do contexto têm suas limitações, e infere (b) que todas as regras e
critérios carecem de valor e deveriam ser abandonados [...]. Concordo com
(a), mas não com (b). Sustento que toda regra tem suas limitações e que não
há nenhuma ‘racionalidade’ global, mas não que devemos proceder sem regras
nem critérios. Defendo também um enfoque contextual, mas não para que
as regras absolutas sejam substituídas — senão complementadas — pelas regras
contextuais. Além disso, sugiro uma nova relação entre as regras e as práticas.
É esta relação, e não o conteúdo de uma determinada regra, o que caracteriza
a postura que defendo (FEYERABEND, 1998, p. 32).
94 TRANSCICLOPÉDIA EM DIFUSÃO DO CONHECIMENTO

A crítica ao método científico provém da percepção de que o anarquismo epis-


temológico considera que a Ciência é uma tradição de conhecimento a mais, nem a
única, nem a melhor (ao menos até que seja submetida a uma concorrência leal com
outras tradições). É considerada uma tradição de conhecimento, pois, como toda
tradição de conhecimento, se mantém sobre um sistema de categorias (composto
por sua vez por subsistemas de categorias), mais ou menos estável, que fornece uma
coerência interna à comunidade que se encontra sob sua tutela. Dentro do sistema
de categorias se encontram elementos subjetivos que influem na formação do resto
das categorias e na interpretação delas.
Usando como fundamento as tradições de conhecimento e seus sistemas de
categorias (Cf. capítulo de tradições de conhecimento e sistemas de categorias),
Feyerabend nos mostra, através de uma análise histórica, como cada etapa na qual
se enquistou a produção de conhecimento (teocentrismo, geocentrismo, positivis-
mo etc.) ocorreu devido as circunstâncias de que, em cada fase, se impôs de forma
hegemônica um sistema de categorias que foi o considerado como “racional” e que
estruturou uma série de regras metodológicas óbvias. Este sistema de categorias agia
(e continua agindo) como dogma dentro de cada um dos métodos, pois tudo o que
ficasse fora dele era, e é, qualificado como irracional e, portanto, considerado alheio
ao âmbito do científico. Em outras palavras, o dogmatismo, religioso ou científico,
lastrou, mas não conseguiu evitar, o avanço do conhecimento. Portanto, evitar a
hegemonia de qualquer tradição de conhecimento é um elemento fundamental no
anarquismo epistemológico, ao se considerar que hoje a Ciência exerce essa hege-
monia de diferentes formas.
Relacionado ao anterior, outro elemento importante para se compreender
o anarquismo epistemológico é o conceito de incomensurabilidade (Cf. capítulo
de incomensurabilidade). Esta se encontra em íntima relação com os sistemas de
categorias, pois o conhecimento poderá conter diferentes significados ao provir de
distintos mundos intersubjetivos e, portanto, contêm estruturas de conexões lógicas
e perceptuais diferentes. Essa caraterística faz com que não possamos considerar
determinados conhecimentos como universais, mas sim como incomensuráveis, pois
chegar a diferentes significados, desde distintas cosmologias subjetivas, supõe que
nelas estão incluídas as formas de perceber o mundo (filosófica, social, politicamente
etc.) da comunidade que os gera. A incomensurabilidade implica que os significa-
dos de uma tradição impediriam a formação dos significados da outra tradição em
razão de não compartilhar sua estrutura lógica-perceptual. No entanto, desde o
anarquismo epistemológico se promove a proliferação e o diálogo entre elementos
TRANSCICLOPÉDIA EM DIFUSÃO DO CONHECIMENTO 95

incomensuráveis, colocando-se em contraposição ao estabelecimento de um sistema


hegemônico de categorias com a capacidade de decidir o que é e o que não é válido.
A permissão de diferentes tradições de conhecimento em uma concorrência
leal com a Ciência e a introdução da incomensurabilidade nos processos de criação
de conhecimento são consideradas irracionais devido à hegemonia que exerce a
Ciência através de seu monopólio da “racionalidade”. No entanto, desde um olhar
epistemológico anarquista, a razão é uma construção com um forte caráter subjetivo
que está em íntima relação com uma determinada forma de conhecer, compreender
e explicar o mundo. Esta subjaz da organização epistemológica, social, econômica
e política que dá forma ao sistema de categorias que rege cada tradição de conhe-
cimento e estabelece os limites entre o que é considerado racional ou irracional
em uma sociedade. É dizer: algo será razoável ou não, dependendo da tradição de
conhecimento a partir da qual está sendo observada a propriedade analisada.
Por conseguinte, a razão é uma construção social, visto que não existe uma
razão única, senão que são muitas as razões que convivem em constante inter-relação
no mundo. A racionalidade científica seria, portanto, um conjunto de razões que
não esgotam o campo da razão (entendida como o conjunto universal das diferentes
razões). Cada razão é única e singular devido às características intersubjetivas que
se incluem nelas.
Retornemos, então, à relação interativa entre razão e prática, levando em con-
sideração que a razão seria razões, pois entendemos que não existe uma razão única
e universal. Razão e prática, conceito e fato, são elementos comuns da complexidade
existente na vida e, por conseguinte, na Ciência. Ambos se retroalimentam, fazendo
parte de um mesmo todo. Por isso, para o anarquismo epistemológico, não há lógica
em estabelecer uma divisão entre razão e prática já que ambas fazem parte de uma
mesma realidade na qual se influem mutuamente. Consequentemente, não pode
existir uma relação hierárquica entre elas, senão dialética.
O mundo das ideias (razão) e o mundo natural (prática) têm insuficiências
em diferentes aspectos. Em contrapartida, se tomamos as duas como elementos de
igual valor, se complementam, ajudando-se mutuamente a suprir essas carências.
Atomizá-las para trabalhar com elas por separado, ou de uma forma hierárquica,
significaria ignorar e, por consequência, desaproveitar as singularidades que emergem
da relação razão/prática. Pelo contrário, o proceder de forma dialética nos permite
atingir um conhecimento mais próximo à realidade complexa do sujeito de conhe-
cimento com o qual trabalhamos. A razão contribui com estruturas à prática, e esta
nutre de naturalidade às ideias:
96 TRANSCICLOPÉDIA EM DIFUSÃO DO CONHECIMENTO

Melhor será proceder dialeticamente, isto é, por uma interação de conceito


e fato (observação, experimento, enunciado básico etc.) que afete a ambos
elementos. A lição para a epistemologia é esta: Não trabalhar com conceitos
estáveis (FEYERABEND, 1987, p. 40).

Dessa forma, a pesquisa estabelece-se como “[...] um guia que é parte da ativida-
de que faz parte da atividade dirigida e que é modificada por ela” (­ FEYERABEND,
1998, p. 33). É dizer que o pesquisador começa como um orientador do processo
que vai ser realizado, porém aberto por completo a modificá-lo para adaptá-lo ao
que a prática lhe mostra. A teoria se encontra viva, em constante transformação,
oferecendo um resultado imprevisível por conta desta interação. Isto entraria em
conflito com a ideia de conhecimento científico, pois, como diz José (2006), “[...]
sendo o conhecimento científico sistemático, sua estrutura deve ser lógica, é dizer,
coerente; e coerente é aquilo que não admite contradição”.
No entanto, rejeitamos a ideia de que o conhecimento não admita contra-
dição, pois
a ideia de que as coisas estão bem definidas e de que não vivemos em um
mundo paradoxal conduz ao critério de que nosso conhecimento deve ser
coerente. As teorias que contenham contradições não podem fazer parte da
Ciência (FEYERABEND, 1998, p. 36).

Dessa forma, retornaríamos ao ponto de como os sistemas de categorias im-


perantes podem constranger o avanço do conhecimento. A pretensão de que todo
conhecimento seja coerente nos obrigaria ficar nos supostos que já são aceitos, impe-
dindo, dessa maneira, avançar para posições que hoje são consideradas irracionais, mas
poderão ser estabelecidas como racionais no futuro. O anarquismo epistemológico
tem presente que muitos dos futuros avanços contrariarão o que hoje são verdades
dentro do atual sistema de categorias da Ciência.
Outra característica do anarquismo epistemológico é a ruptura da dicotomia
sujeito/objeto na pesquisa.
O objeto torna-se sujeito, pois se converte em coprotagonista do processo de
construção do conhecimento junto com o pesquisador. Deixa de ser obsoleta a antiga
concepção de objeto de estudo, na qual este é tratado como um elemento passivo a
ser observado e analisado para extrair conclusões, nas quais, no melhor dos casos,
se lhe pede participação subjetiva para ser incluída no produto, mas nunca no pro-
cesso. Desde uma perspectiva anarquista, o objeto é tão sujeito quanto o próprio
pesquisador, a subjetividade dos participantes torna-se uma peça fundamental na
relação dialética entre razão e prática que cria o processo da pesquisa.
TRANSCICLOPÉDIA EM DIFUSÃO DO CONHECIMENTO 97

A pesquisa se faz sensível às experiências, vivências e características dos sujeitos


convertendo-se em um processo multidirecional e interativo. Assim, os sujeitos da
pesquisa vão influindo no devir desse processo, fazendo modificar o método utilizado
para que este se adapte à singularidade da intersubjetividade que está sendo estuda-
da. Por isso, não significa que “[...] a pesquisa seja arbitrária e careça de toda guia.
Existem critérios, mas derivam do próprio processo de pesquisa e não de concepções
abstratas da racionalidade” (FEYERABEND, 1998, p. 115).
Em síntese, a imposição dos sistemas de categorias racionalistas através da
hegemonia da Ciência que, por um lado, impede a incomensurabilidade e, por
outro, estabelece a dicotomia racional/irracional ao analisar os conhecimentos
desde sua própria tradição de conhecimento nos leva a pensar que a Ciência deve
ser considerada como uma ideologia a mais e, portanto, separada do Estado. Ao
menos, até que a Ciência seja analisada, discutida e escolhida democraticamente pelos
habitantes de cada comunidade como a entidade legítima para produzir e difundir
o conhecimento. Isto dará a possibilidade de fazer uma discussão profunda sobre
as formas de acessar o conhecimento, possibilitando a entrada de outras tradições
de conhecimento que não têm tido as vantagens de encontrar-se sob os benefícios
do financiamento estatal em grande escala, assim como o monopólio de estruturas
básicas da sociedade (ALTHUSSER, 1980). Desse modo, concordamos com Liz-
cano quando nos mostra a Ciência como um instrumento da ideologia dominante
que esconde suas particularidades subjetivas por meio de um discurso que pretende
colocá-lo em uma posição objetiva:
É precisamente essa pretensão da Ciência de constitui-se em metadiscurso
verdadeiro por acima das ideologias, saberes e opiniões particulares a que a
constitui como ideologia dominante. É precisamente sua eficácia em apre-
sentar o particular e construído como universal e necessário (leis científicas,
fórmulas matemáticas, deduções lógicas) a que oculta sua função ideológica. E
é precisamente o sucesso atingido pelas estratégias do discurso científico para
mascarar seu caráter de discurso sua virtude para fazer esquecer os dispositivos
linguísticos que coloca em jogo para construir essa realidade que assim se
apresenta como mero descobrimento, é sua capacidade de persuadir-nos de
que não estamos sendo persuadidos, é precisamente essa mentira verdadeira
da Ciência a que faz dela a forma mais poderosa de ideologia em nossos dias:
a ideologia científica (LIZCANO, 2006, p. 250).

Para evitar esta hegemonia ideológica, seria necessária uma discussão profunda
sobre a Ciência que mostre sua história, tanto os logros como os erros, que habitual-
mente se escondem, que aconteceram sob a razão científica, expondo as debilidades
98 TRANSCICLOPÉDIA EM DIFUSÃO DO CONHECIMENTO

e fortalezas das tradições de conhecimento rivais; procurando espaços de diálogo


entre ambas que possam trazer benefícios à epistemologia; estabelecendo uma relação
horizontal entre elas que possibilite a proliferação de tradições de conhecimento; e,
em definitivo, que seja baseada nos princípios democráticos de informação, discussão,
decisão e representatividade. Dessa forma, o anarquismo epistemológico ­apresenta-se
como “[...] uma maneira distinta de representarmos a sociedade, as relacões entre
saber/poder e a possibilidade de um diálogo entre saberes e subjetividades alternas”
(FACUSE, 2003, p. 156). É dizer que não é apenas uma questão epistemológica,
mas uma questão de justiça social que procura o respeito das diferentes formas de
interpretação de ser-estar na vida.
No entanto, até hoje, a rigidez nos preceitos estabelecidos através dos sistemas
de categorias racionalistas tem aumentado devido à estreita relação entre Ciência
e o Estado. Feyerabend nos relata como a Ciência se instaurou como um elemento
básico da sociedade através do Estado, substituindo a Igreja como portadora dos
conhecimentos válidos.
[A] Ciência não é já uma instituição especial; faz parte agora da estrutura básica
da democracia do mesmo jeito que a Igreja constituíra na sua época a estrutura
básica da sociedade. Naturalmente a Igreja e o Estado estão cuidadosamente
separados na atualidade. O Estado e a Ciência, porém, funcionam em estreita
associação (FEYERABEND, 1998, p. 84).

Durante o domínio das ideias eclesiásticas pela institucionalização delas através


do Estado, a Ciência foi um elemento-chave para combater o dogmatismo religioso,
pois fornecia elementos diferenciais que procuravam explicações racionais às impo-
sições metafísicas feitas desde a religião. Isto permitiu abrir espaços de liberdade,
criando brechas no edifício do pensamento religioso e conseguindo quebrá-lo através
das pesquisas realizadas que derrubaram as teorias impostas desde a Igreja.
Nos séculos XVII, XVIII e inclusive XIX, quando a Ciência era mais uma
entre as muitas ideologias em concorrência, quando o Estado ainda não tinha
se declarado em seu favor e quando sua decidida carreira estava mais que equi-
librada por olhares e instituições diferentes. Naqueles tempos, a Ciência era
uma força liberadora, não porque tivesse encontrado a verdade ou o método
correto (ainda que os defensores da Ciência supunham que esta era a razão),
senão porque restringia a influência de outras ideologias e deixava assim o
espaço individual para o pensamento (FEYERABEND, 1998, p. 86).

Contudo, a Ciência passou de ideologia liberadora à dogmática quando des-


bancou a Igreja como instituição de confiança do Estado nos labores de construção
do conhecimento oferecido aos cidadãos. Ao abandonar sua posição de “organização
TRANSCICLOPÉDIA EM DIFUSÃO DO CONHECIMENTO 99

combativa” contra a imposição do credo religioso e tomar o lugar de instituição


responsável da produção de conhecimento estatal, a Ciência converteu-se em dog-
mática ao se sentir possuidora do conhecimento e pela capacidade que o Estado lhe
concede de decidir o que é e o que não é válido. Isto foi, e é, facilitado através da
grande máquina do Estado, assim a Ciência se introduziu em praticamente todas
as áreas de atuação sobre as que o Estado tem poder na população. A Ciência é o
Estado, e o Estado é a Ciência.
Nada há na Ciência, nem em qualquer outra ideologia, que as faça intrin-
secamente liberadoras. As ideologias podem deteriorar-se e converter-se em
religiões dogmáticas (exemplo, o marxismo). Começam a se deteriorar quando
atingem o sucesso, se convertem em dogmas quando a oposição é aniquilada:
seu triunfo é sua ruína (FEYERABEND, 1998, p. 86).

Uma vez expostos os elementos básicos do anarquismo epistemológico, que-


remos incidir em alguns aspectos.

• A proposta não é eliminar a Ciência como produtora de conhecimento. A


proposta é eliminar sua hegemonia sobre outras tradições de conhecimento.
O anarquismo epistemológico, evidentemente, reconhece os extraordinários
logros que a Ciência tem conseguido como tradição de conhecimento e, ao
mesmo tempo, mostra que esta não é perfeita e que tem cometido muitos
erros que, ao objetivar valores subjetivos como Verdade, Racionalidade e
Realidade, tem desembocado em práticas terríveis para a sociedade.
• O anarquismo epistemológico se fundamentou na demonstração através
da História da Ciência de que os sistemas de categorias racionalistas he-
gemônicos têm posto um freio ao avanço no campo epistêmico.
• A História da Ciência nos mostra como ela se tem estabelecido como
hegemônica, não por uma comparação com as demais tradições de conhe-
cimento que a tenha evidenciado como mais valiosa, senão ao se estabe-
lecer como uma estrutura fundamental nos Estados e ser beneficiada por
eles de diferentes maneiras, entre elas, através da colonialidade mediante
ingentes quantidades de dinheiro público para seu financiamento ou ao
ter sido colocada como a tradição de conhecimentos válidos para campos
estratégicos para uma nação, como a educação ou a saúde.
• Ao entender que os diversos métodos que procedem da Ciência fazem
parte fundamental nessa hegemonia, Feyerabend oferece uma abordagem
metodológica na qual as regras e as práticas se tornam parte de um mes-
100 TRANSCICLOPÉDIA EM DIFUSÃO DO CONHECIMENTO

mo processo, a dicotomia sujeito/objeto desaparece, a contradição com


o estabelecido não é mais um fato válido para refutar uma pesquisa e é,
enfim, permitida a proliferação de métodos dentro de um mesmo processo
de pesquisa. Dessa maneira, resumidamente, o que oferece é um método
imprevisível baseado na liberdade metodológica guiado pela razão e, ao
mesmo tempo, influenciado pelo caos auto-organizado da prática.

REFERÊNCIAS
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Presença, 1980.

BUNGE, Mario. Capsulas. Barcelona: Gedisa, 2003.

DAMASIO, Felipe; PEDUZZI, Luis. O pior inimigo da ciência: procurando


esclarecer questões polêmicas da epistemologia de Paul Feyerabend na formação
de professores. Investigações em Ensino de Ciências, Vol. 20, Núm. 1, p. 97-
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FACUSE, Marisol. Una epistemología pluralista. El anarquismo de la ciencia de


Paul Feyerabend. Cinta moebio. N. 17, p. 148-161, 2003.

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FEYERABEND, Paul Karl. ¿Por qué no Platón? Madrid: Tecnos, 1985.

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HARADA, Eduardo. No todo sirve ni vale: una crítica al anarquismo


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JOSÉ, Elena Teresa. Conocimiento, pensamiento y lenguaje: una introducción


a la lógica y al pensamiento científico. Buenos Aires: Biblos, 2006.
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LIZCANO, Emmánuel. Metáforas que nos piensan. Sobre ciencia, democracia


y otras poderosas ficciones. Madrid: Ediciones Bajo Cero / Traficantes de sueños,
2006.

SOKAL, Alan; BRICMONT, Jean. Imposturas intelectuales. Barcelona:


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THEOCHARIS, Theo; PSIMOPOULOS, Michalis. Where science has gone


wrong. Nature, N. 329, p. 595-598, 1987.
8. Antropofagia

Ivan Maia de Mello

Devir apropriativo da existência humana como processo de subjetivação próprio


e apropriado por meio do qual são incorporadas as componentes da subjetividade
selecionadas, visando compor uma obra cuja potência de vida se deseja intensificar,
particularmente ao elaborar a própria vida como obra.
Em sua versão epistemológica, consideramos como processo de apropriação
seletiva de saberes e práticas, transversal à organização disciplinar do conhecimen-
to, assim como a organização cultural das linguagens artísticas, assimilando o que
aumenta a potência de vida dos envolvidos no processo. Foi por trilha comum que
Oswald de Andrade concebeu a Antropofagia como uma visão de mundo na qual
a vida é compreendida como “devoração”:
A vida na terra produzida pela desagregação do sistema solar, só teria um
sentido — a devoração. Mas se bem que eu dê à Antropofagia os foros de
uma autêntica Weltanschauung, creio que só um espírito reacionário e ob-
tuso poderia tirar partido disso para justificar a devoração pela devoração.
(ANDRADE, 1972, p. 28)

Concebendo a “devoração” como sentido da vida terrestre, ele elabora filo-


soficamente sua visão de mundo (weltanschauung) antropofágica diferenciando sua
concepção das perspectivas niilistas que afirmam toda e qualquer devoração, sem
avaliar o que se devora quanto à sua potência de vida.
Ao considerar a ideia de “homem cordial” proposta por Sérgio Buarque de
Holanda para interpretação do brasileiro, Oswald dá-lhe um sentido primitivista,
segundo o qual a cordialidade primitiva dos indígenas e africanos que viviam numa
cultura matriarcal se conjuga com uma agressividade própria da vida selvagem.
O “Homem cordial” tem, no entanto, dentro de si a sua própria oposição.
“Ele sabe ser cordial como sabe ser feroz” (...) No contraponto, agressividade
— cordialidade, se define o primitivo em Weltanschauung (...) Compreende
a vida como devoração e a simboliza no rito antropofágico, que é comunhão.
(IDEM, p. 143).

Oswald propõe uma transvaloração de valores que pode ser compreendida pela
valorização dos aspectos inconscientes da realidade vivida, negados como tabu e, por
isso, desconhecidos ou ocultados, que são reavaliados como aspectos importantes
TRANSCICLOPÉDIA EM DIFUSÃO DO CONHECIMENTO 103

(totemizados), a serem descobertos, visibilizados, evidenciados e incorporados na


visão de mundo, a partir do conhecimento complexo obtido pela apropriação de
saberes enquanto devoração:
A operação metafísica que se liga ao mito antropofágico é a da transformação
do tabu em totem. Do valor oposto ao valor favorável. A vida é devoração
pura. Nesse devorar que ameaça a cada minuto a existência humana, cabe ao
homem totemizar o tabu (IDEM, p. 77-78).

A perspectiva epistemológica antropofágica recusa a consciência formada por


meio de processos de assujeitamento a saberes que não passaram por um processo
de apropriação crítica seletiva ao incorporar as perspectivas válidas para produção
de um conhecimento próprio e apropriado. Por isso, protesta Oswald no Manifesto
Antropófago: “[...] Contra todos os importadores de consciência enlatada. A existência
palpável da vida” (IDEM, p. 14).
Do mesmo modo, ele recusa também a dissociação entre o espírito e o corpo,
tal como estabelecida pela tradição metafísica. A concepção de um conhecimento
produzido a partir de uma condição existencial que inclui o corpo e todos os im-
pulsos presentes nele (e assim participam da produção de conhecimento) é essen-
cial à compreensão do processo de apropriação de saberes e práticas necessários à
potencialização da vida, tal como experimentada pelos corpos. A antropofagia se
apresenta então como um perspectivismo pelo qual, a partir da condição corporal
imanente, se interpreta a experiência vivida.
Assim, Oswald afirma: “[...] O espírito recusa-se a conceber o espírito sem o
corpo” (IDEM, p. 15). O perspectivismo antropofágico, assim como o perspectivismo
pensado por Nietzsche, concebe o instinto antropofágico, que ele chama de “Instinto
Caraíba”, como impulso de apropriação seletiva, voltado para o conhecimento da
realidade como condição para apropriar-se do que nela se mostra favorável à criação
de possibilidades de vida.
Gilles Deleuze traduz nos seguintes termos a perspectiva nietzscheana de apro-
priação interpretativa de um texto:
[...] Nietzsche o diz muito claramente: se você quiser saber o que eu quero dizer,
encontre a força que dá um sentido, se for preciso um novo sentido ao que eu
digo. (DELEUZE, 2006, p. 325).

A antropofagia pode então ser pensada como uma apropriação seletiva que
interpreta a realidade a partir do instinto antropofágico de devoração e incorpora-
ção dos saberes e práticas que potencializam as forças vitais. E são essas forças que
104 TRANSCICLOPÉDIA EM DIFUSÃO DO CONHECIMENTO

devem ser encontradas para dar sentido na interpretação e avaliação constitutivas do


processo antropofágico de apropriação seletiva. O processo de produção e difusão
do conhecimento na perspectiva antropofágica tem sua dinâmica de apropriação
de saberes e práticas, na qual ocorre a formulação de hipóteses, cujas suposições se
ligam à interpretação da efetividade da vida em sua imanência, à subsistência, ao
aumento da potência de vida dos envolvidos nesse processo.
Diz Oswald, em seu “estilo telegráfico”: “Morte e vida das hipóteses. (...) Sub-
sistência. Conhecimento. Antropofagia” (IDEM, p. 15). Partindo de uma perspectiva
primitivista de valorização das matrizes culturais indígenas e africanas, mais próxi-
mas da vida selvagem, da natureza e da própria animalidade humana, portanto, da
sensibilidade (a percepção sensível dos sentidos) e da imaginação, a epistemologia
antropofágica compreende a “devoração” dos saberes que aumentam a potência de
vida, contrapondo-se criticamente às perspectivas metafísicas universalistas ocidentais,
visando à incorporação descolonizadora do pensamento crítico nas suas vertentes
desconstrutivas e criativas mais singularizantes, diz o Manifesto Antropófago: “Contra
as sublimações antagônicas. Trazidas nas caravelas” (IDEM, p. 17).
O perspectivismo antropofágico segue a interpretação de Nietzsche apresen-
tada na obra que inaugura a genealogia como perspectiva hermenêutica, nela a “[...]
assimilação psíquica” tem o seguinte sentido, diz o filósofo:
Esquecer não é uma simples vis inertiae [força inercial], como creem os
superficiais, mas uma força inibidora ativa, positiva no mais rigoroso
sentido, graças à qual o que é por nós experimentado, vivenciado, em nós
acolhido, não penetra mais em nossa consciência, no estado de digestão (ao
qual poderíamos chamar “assimilação psíquica”), do que todo o multiforme
processo da nossa nutrição corporal ou ‘assimilação física’ (NIETZSCHE,
1987, p. 57-58).

O esquecimento experimentado como força ativa associada à “digestão” da


experiência corresponde a uma incorporação subjetiva, ou “assimilação psíquica”,
na qual, analogamente à assimilação física, ocorre um aumento da potência de vida.
Considerado em seu âmbito propriamente cultural, como acontecimento a­ propriativo
que ocorre subjetivamente, pela produção de subjetividade, acontecimento no
qual os aspectos de uma alteridade subjetiva são apropriados antropofagicamente
e incorporados ao ser próprio, podemos considerá-lo em termos do que Deleuze
e Guattari chamaram de agenciamento coletivo, em função da multiplicidade de
componentes do processo de subjetivação que são apropriadas, ainda que seja uma
experiência individual.
TRANSCICLOPÉDIA EM DIFUSÃO DO CONHECIMENTO 105

A psicóloga Suely Rolnik apresenta a “operação antropofágica” como produção


de subjetividade desse modo:
Ora, isso não evoca diretamente a operação antropofágica? Se a interpretamos
a partir dessa perspectiva, o ‘antropo’ deglutido e transmutado nessa operação
não corresponderia ao homem concreto, mas ao humano propriamente dito
— as figuras vigentes da subjetividade, com seus contornos, suas estruturas,
sua psicologia (ROLNIK, 2000, p. 455).

Este agenciamento coletivo é compreendido metaforicamente a partir da


forma dos rituais indígenas tupinambás, descrita como processo coletivo no qual os
indígenas de uma etnia capturavam o guerreiro mais virtuoso de outra e, após algum
tempo de convivência, matavam-no e realizavam a ingestão de partes do corpo do
guerreiro capturado, acreditando, numa perspectiva mágica e, com isso, poderem
assimilar suas virtudes admiradas como potência de vida.
Rolnik resume assim o processo subjetivo antropofágico:
Estendido para o domínio da subjetividade, o princípio antropofágico poderia
ser assim descrito: engolir o outro, sobretudo o outro admirado, de forma que
partículas do universo desse outro se misturem às que já povoam a subjetivi-
dade do antropófago e, na invisível química dessa mistura, se produza uma
verdadeira transmutação (ROLNIK, 2000, p. 452).

A perspectiva epistemológica antropofágica pode então ser compreendida como


uma perspectiva hermenêutica na qual a interpretação ocorre como apropriação do
que a alteridade tem de mais potente. Nesse sentido, interpretar a alteridade é apro-
priar-se de suas intensidades vitais para integrá-las à multiplicidade constituinte do
próprio. Nisto, ela se diferencia do conhecimento compreendido como experiência
de um sujeito em relação a um objeto fenomênico, marcado pela passividade do
sujeito diante do objeto. Na perspectiva epistemológica antropofágica, a interpre-
tação avalia o valor dos diferentes aspectos da alteridade genealogicamente, isto é,
compreendendo historicamente a emergência de cada aspecto da alteridade avaliado,
sua proveniência, como surge e manifesta sua potência de vida.
Nesse sentido, essa perspectiva antropofágica se aproxima da interpretação que
Michel Foucault oferece da genealogia proposta por Nietzsche, quando diz:
Enquanto a proveniência designa a qualidade de um instinto, seu grau ou seu
desfalecimento, e a marca que ele deixa em um corpo, a emergência designa
um lugar de afrontamento [...]. (FOUCAULT, 1979, p. 24).

A qualidade do instinto de apropriação voltado para devoração de saberes e


práticas outras, constituintes de uma alteridade, indica a proveniência da perspectiva
106 TRANSCICLOPÉDIA EM DIFUSÃO DO CONHECIMENTO

epistemológica antropofágica que é concebida a partir do pensamento de Oswald


de Andrade, que emerge como discurso de crítica descolonizador da relação entre
o saber científico ocidental e outros saberes subalternizados ao longo da história da
colonização europeia. Essa descolonização passa pelo processo descrito por Foucault
ao explicar a genealogia de Nietzsche:
O grande jogo da história será de quem se apoderar das regras, de quem tomar
o lugar daqueles que as utilizam, de quem se disfarçar para pervertê-las, utili-
zá-las ao inverso e voltá-las contra aqueles que as tinham imposto; de quem,
se introduzindo no aparelho complexo, o fizer funcionar de tal modo que os
dominadores encontrar-se-ão dominados pelas próprias regras (IDEM, p. 25).

A antropofagia torna-se assim uma interpretação seletiva que busca extrair


forças vitais daquilo que na alteridade vem a ser conhecido e apropriado.
Eis como Rolnik descreve a antropofagia:
O banquete antropofágico é feito de universos variados incorporados na
íntegra ou em seus mais saborosos pedaços, misturados à vontade em um
mesmo caldeirão, sem qualquer pudor de respeito por hierarquias a priori,
sem qualquer adesão mistificadora. Mas não é qualquer coisa que entra no
cardápio dessa ceia extravagante: é a fórmula ética da antropofagia que se
usa para selecionar seus ingredientes, deixando passar só as ideias alienígenas
que, absorvidas pela química da alma, possam revigorá-la, trazendo-lhe lin-
guagem para compor a cartografia singular de suas inquietações (ROLNIK,
2005, p. 95).

A cartografia genealógica antropofágica elabora mapas de sentido a partir de


uma perspectiva avaliativa que seleciona o que merece ser apropriado e difundido
para aumentar a potência de vida. Isso também foi compreendido pelo filósofo Be-
nedito Nunes, ao apresentar a filosofia antropofágica de Oswald de Andrade como
uma perspectiva crítica, poética e teórica, sobre os problemas humanos que revela
surpreendente atualidade:
A filosofia antropofágica não é, contudo, em que pesem as evidências ante-
riormente coligidas, apenas uma elaboração residual, feita com os destroços
da Antropofagia de 1928. Há, principalmente em A crise da filosofia mes-
siânica, a par de um trabalho de síntese e de crítica, que entrelaça o poético
ao teórico, intuições fulgurantes que nos descerram, através do esboço quase
profético de novos conceitos, uma perspectiva atual sobre os problemas de
hoje. (NUNES, 1972, p. 51)

A filosofia antropofágica foi repensada por outro filósofo, Sílvio Gallo, que
retoma a perspectiva antropofágica para considerar a experiência multicultural bra-
TRANSCICLOPÉDIA EM DIFUSÃO DO CONHECIMENTO 107

sileira em termos da mestiçagem que reconhece, incorpora e assim afirma o outro


devorado. Diz Gallo, referindo-se ao Manifesto Antropófago:
A tese central desse manifesto poético é simples: a cultura brasileira é a cultura
da mistura, da mestiçagem; mas a verdadeira mistura é mistura de corpos: o
reconhecimento do outro se faz ao devorá-lo, incorporando-o. Hospitalidade
radical, ao receber o estrangeiro em seu próprio corpo. Recusa de aceitação
acrítica de tudo o que vem do exterior, mas afirmação do outro por sua in-
corporação, que possibilita a transformação do mesmo, a criação do novo.
Devorar o outro implica, pois, em devir-outro. (GALLO, 2015, p.317)

A afirmação da diferença que se dá por meio do devir-outro como incorporação


da alteridade favorece a experiência multicultural como valorização da diversidade e
potencializa a criatividade. O conhecimento do outro, do diferente, da diversidade,
é levado adiante pela perspectiva epistemológica antropofágica como condição para
o exercício da criação em contexto multicultural. Além de interpretações filosóficas
e psicológicas, a perspectiva epistemológica antropofágica também tem sido elabo-
rada no campo dos estudos de Teoria da Literatura e Crítica Literária, nos quais os
textos originários de Oswald de Andrade foram inicialmente recebidos e discutidos,
assim como nas Artes Cênicas. Nesse contexto, a perspectiva antropofágica foi
interpretada em diferentes aspectos por Maria Eugenia Boaventura (que discute o
caráter vanguardista da Antropofagia), David George (que discute a poética cênica
antropofágica), Carlos Gardin (que discute o caráter antropofágico da dramaturgia
de Oswald), Maria Cândida Ferreira de Almeida (que discute amplamente o ca-
nibalismo como tema literário, sobretudo na Antropofagia oswaldiana) e Viviana
Gelado (que discute a Antropofagia no contexto das poéticas latino-americanas).
A Antropofagia surge no contexto do modernismo literário buscando atuar para
além desse âmbito numa transformação cultural da sociedade brasileira, como diz
Maria Eugênia Boaventura:
[…] com respeito ao quadro da literatura do Modernismo, a Antropofagia atuou
revolucionariamente. Isto é, tentou levar o homem brasileiro a um aperfeiço-
amento do seu modo, a uma realização antecipada, para superar os conceitos
e preconceitos de sua situação histórica, (BOAVENTURA, 1985, p. 133)

Entre as preocupações da poética antropofágica de Oswald, David George


considera:
[…] superar a dependência cultural em todas as suas manifestações, através da
renovação dos paradigmas primitivos da ontologia e da linguagem; conquis-
tar a independência política, libertando a nação do legado do colonialismo.
(GEORGE, 1985, p. 17)
108 TRANSCICLOPÉDIA EM DIFUSÃO DO CONHECIMENTO

Na literatura antropofágica de Oswald de Andrade encontramos a paródia


sendo a principal arma de luta pela descolonização da cultura, particularmente na
dramaturgia, onde, segundo Carlos Gardin:
A paródia, entendida enquanto canto paralelo, texto que se afirma enquanto
diferença, discurso que não esconde a voz do outro e nem a oprime, é em
Oswald e seu teatro o procedimento básico para seu gesto teatral. (GARDIN,
1995, p. 51)

Em um estudo mais amplo da presença do canibalismo como tema recorrente


na literatura brasileira, Maria Cândida Ferreira de Almeida distingue tipos de ca-
nibalismo tal como já diferenciado antes por Oswald de Andrade, com as noções
de alta e baixa antropofagia. Diz ela:
Não é o objeto da devoração que será classificado, mas a própria devoração
que se define como ‘alta’ ou ‘baixa’, ou seja, o gesto acabado em si mesmo,
de pura violência e destruição do baixo canibalismo; ou o gesto produtor do
devir, da diferença, da multiplicidade, da incorporação do alto canibalismo.
(ALMEIDA, 2002, p.81)

A alta antropofagia produtora de devires, de saberes, de subjetividade, por


meio da apropriação seletiva primitivista que tende à conquista do próprio, tem um
caráter heterogeneizante, que se volta para a alteridade (“o importado”) no sentido
do devir-outro, sobretudo por meio da linguagem, como considerou Viviana Gelado:
“A Antropofagia propõe, simbólica e miticamente, a substituição desse código de
leitura importado pelo código de leitura heterogêneo […].” (GELADO, 2006, p.175)
Isto aponta para uma perspectiva epistemológica antropofágica heterogeneizante na
produção e difusão de conhecimento.

REFERÊNCIAS
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literatura brasileira. São Paulo: Annablume, 2002.

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educação: em torno das multiplicidades culturais. Itinerários de Filosofia da
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Universidade do Porto. Nº 13, p. 314 a 325, 2015.

GARDIN, Carlos. O teatro antropofágico de Oswald de Andrade: da ação


teatral ao teatro de ação. 2 ed. São Paulo: Annablume, 1995.

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Deleuze: uma vida filosófica. São Paulo: Ed. 34, 2000.

VELOSO, Caetano. Antropofagia. São Paulo: Companhia das Letras, 2012.


9. Apoder ar

Maristela Miranda
Maria Inês Correia Marques

PODER, palavra proveniente do latim potere que significa ser capaz de. Possui
diversas derivações, entre elas, apoderar e empoderar, palavras estas que guardam
relação de sentido entre si. Derivadas do mesmo radical, apoderar significa “dar
posse a; tomar posse; conquistar” (AURÉLIO, 2020), enquanto empoderar signifi-
ca “investir-se de poder, a fim de promover ações que possam provocar mudanças
positivas no grupo social” (MICHAELIS, 2020).
Ainda que os dicionários apresentem diversas significações para a expressão
apoderar, é muito comum o uso desse termo com o significado restrito a tomar para
si algo que não lhe pertence. Por outro lado, a expressão empoderar ou empodera-
mento, ganhou um sentido positivo ao ser utilizada para sugerir um processo de
emancipação de um grupo ou coletividade.
Conquanto a utilização de um termo possa se tornar trivial em um dialeto, é
fato que o costume gera ausência de reflexão sobre os porquês e significações do que
se repete, podendo ter um forte vínculo com o desenvolvimento de paradigmas que
agem como princípios organizadores supremos capaz de gerar mitos, que, por sua vez,
geram crenças e todo um sistema de valores fortemente ligados a fatores culturais e/
ou ambientais. Como lembra Morin (2015), ao afirmar que as palavras estão dire-
tamente ligadas à memória coletiva, reproduzindo-se e perpetuando-se na memória
individual, sendo expressas através de saberes, experiências, normas e informações.
Dito isto, busca-se nesse ensaio o convite a uma reflexão sobre a expressão
apoderar, acreditando na existência de uma significativa importância no contexto
das ações de empoderamento dos grupos produtivos da Economia Solidária.
O termo apoderar remete ao desenvolvimento de uma autoridade própria, a
fim de possuir o domínio de algo e, nesse sentido, um poder de. A palavra poder
guarda em si inúmeros significados, indo desde as intenções mais puras, às mais
nocivas, principalmente sob a perspectiva das relações de poder. Neste viés, serviu
(e ainda serve) de pano de fundo para grandes discussões, elaboradas por diversos
pensadores ao longo da história.
Proclama-se que o poder deve ser perseguido e conquistado (MAQUIAVEL,
2010); que por ele o homem se torna o lobo do homem (HOBBES, 2003). O poder
TRANSCICLOPÉDIA EM DIFUSÃO DO CONHECIMENTO 111

se manifesta através das macroestruturas sociais (MARX, 1996), ou através das rela-
ções sociais (WEBER, 2007). A democracia e a liberdade são discutidas sob a ótica
do poder (TOCQUEVILLE, 2005), assim como o individualismo ­(NIETZSCHE,
2012). Gramsci (2002) revela uma fenomenologia do poder, para além do aspecto
puramente economicista, enquanto Hannah Arendt (2000) estuda o poder sob a
égide do totalitarismo. Foucault (1979, 1987) expõe o poder exercido em rede e
Bourdieu (2015) traz o poder simbólico, o poder ignorado que movimenta uma
série de outros poderes.
São muitas as elaborações para explicar o poder ou as relações de poder. De
acordo com a vasta literatura sobre o tema, e consoante o olhar por vezes diver-
gente de cada autor, o poder pode ser exercido, transferido, defendido, sentido e,
não obstante, adquirido. Todavia, os discursos convergem para um lugar comum e
bastante visível, nas mãos de quem se encontra o poder e todas as possibilidades de
utilizá-lo, contra ou a favor de outrem.
A forma como a sociedade vem fazendo uso do poder, ao longo da história,
torna-se uma discussão profunda e, na maioria das vezes, aponta para dominação.
Deixar-se dominar é condição provável para quem não detém o poder. De outra forma,
o caminho possível seria o de apoderar-se, tomar para si, conquistar, tomar posse.
Posse, etimologicamente, provêm do latim e significa possum – ser capaz de – poder.
Apoderar-se tem o sentido de tomar para si. Tomar para si remete a deter o
poder, conquistar, dominar algo ou alguém, uma história, memórias, contextos.
Enfim, tomar posse de algo, visando autoridade sobre o mesmo.
No contexto da Economia Solidária, movimento introduzido no Brasil na dé-
cada de 1980, a partir da concepção de um novo modo de produção que possibilita
oportunidade a todos (SINGER, 2002), cabe assinalar o uso do termo apoderar
como caminho possível para que o indivíduo, suas comunidades e grupos produtivos
desenvolvam a autoridade necessária, a fim de atuar enquanto sujeito de um processo.
Sujeito ativo e não passivo, capaz de se submeter, acatar e aceitar o poder que vem
de fora. Esse poder pode estar impresso a partir de diversas formas, nas palavras,
instruções, estratégias, textos, ferramentas, metodologias, ideias, subsídios, editais,
programas, sugestões, orações e intenções. Em suma, todas as possíveis formas de
influenciar para algum fim específico.
Apoderar, neste sentido, destoa da ideia de apossar-se de algo que não lhe
pertence, mas sim alcançar o domínio de sua condição, de sua história e contexto,
desenvolvendo consciência de si. Uma autocrítica necessária para delimitar o seu
espaço, a partir do reconhecimento dos aspectos que alicerçam o seu estar no mundo,
112 TRANSCICLOPÉDIA EM DIFUSÃO DO CONHECIMENTO

e que traduzem os anseios mais particulares, numa intersecção com os anseios de


outros sujeitos, partícipes da mesma realidade.
Em se tratando da relação Estado x sociedade civil x mercado, pilares da Econo-
mia Solidária, o ato de apoderar-se cria uma via de mão dupla, capaz de ressignificar
o diálogo junto às inúmeras instituições que apoiam e agenciam o Movimento, tais
como instituições governamentais, instituições financeiras, organizações sociais,
agentes de filantropia, universidades, incubadoras, fundações, igrejas, partidos
políticos, sindicatos e tantos outros, tornando possível dialogar com o que lhe é
oferecido sem, contudo, invisibilizar as necessidades mais intrínsecas e inerentes ao
contexto histórico e de vida das comunidades.

APODERAR VERSUS EMPODERAR


A palavra empoderamento tornou-se muito utilizada no Brasil a partir da vasta
obra de Paulo Freire (1979), em que defende uma metodologia educativa dialógica,
baseada no fortalecimento de aspectos culturais e na liberdade. Um sistema de
enfrentamento da cultura do silêncio, na direção da emancipação social e coletiva
de comunidades.
A partir do discurso paulofreiriano, a expressão foi acolhida e utilizada por vários
movimentos sociais a exemplo do Movimento Feminista, MST, LGBT, Movimento
da Consciência Negra, Movimento da Economia Solidária, dentre tantos outros, que
passaram a fazer uso do termo, no sentido de conscientização e emancipação social.
No Dicionário Michaelis (2020), o termo empoderamento aponta para a cons-
trução de um processo e uma ação em grupo para, investindo-se de poder, construir
algo coletivo, capaz de representar os anseios de uma comunidade ou movimento.
Contudo, a forma como se dá esse processo de empoderamento pode tornar-se
superficial, fadado ao insucesso, na medida em que não haja um despertar inicial
dos sujeitos, criando um alicerce frágil incapaz de responder ao verdadeiro sentido
de autonomia e emancipação.
Consoante a visão paulofreiriana do termo empoderamento e traduzindo-o
à luz da Economia Solidária, um processo dessa natureza, que se pretenda sólido,
deve caminhar de mãos dadas com um processo de apoderamento dos indivíduos
que formam os grupos produtivos em relação à sua condição e contexto histórico.
O empoderamento presume que os atores sociais estejam conscientes e seguros sobre
as possibilidades de utilização desse poder e, para tanto, precisam ter se apoderado
inicialmente de aspectos que demarcam a sua personalidade enquanto comunidade,
desenvolvendo o sentido de pertencimento, fazendo-se ouvir a partir de sua perspectiva
TRANSCICLOPÉDIA EM DIFUSÃO DO CONHECIMENTO 113

e realidade, sem precisar utilizar a voz e as intenções de outros para a definição de


seus interesses. Por outro lado, espera-se dos agentes de desenvolvimento a parceria
assertiva através da troca de saberes, respeitando e reverenciando o lugar de fala desses
atores, com desenvolvimento participativo de ferramentas, instrumentos, estratégias,
alinhados com o querer e os porquês da comunidade que os recebe.

REFERÊNCIAS
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2012. Coleção a obra prima de cada autor.

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WEBER, M. A ética protestante e o espírito do capitalismo. São Paulo:


Companhia das Letras, 2007.
10. Aprendizagem

Alvaro Adriazola Uribe

A aprendizagem é o ato de aprender. Embora esta curta frase seja redundante e


não explique rigorosamente o conceito de aprendizagem, nela se apreende literalmente
o verbo ou a ação do ato de aprender. Este pode ser um passo inicial na compreensão
do conceito aprendizagem, apreender o conceito imerso na palavra/verbo aprender.
No livro Didática Filosófica Mínima, o professor Dante Galeffi (2017) faz uma
dissecção da palavra aprender, reforçando a ideia de que o todo pode ser compreendido
quando se conhecem as suas partes. A primeira e mínima parte ou morfema da palavra
aprender é “a” que vem do latim “ad” que significa em direção a ou aproximação. Na
segunda parte, a palavra tem o elemento da composição da palavra chamada raiz
“prend-” que significa agarrar, tomar, prender, apoderar-se, chegar a. Ao se juntar as
partes, o todo, a palavra aprender nos indica que é em direção a, para prender algo
ou uma aproximação que chega a prender algo, como acentua Galeffi (2017) “[...]
o aprender é uma apreensão dinâmica de processos cognitivos e afetivos/sensíveis,
mentais e corporais simultaneamente”.
Voltando ao conceito aprendizagem e para minha surpresa, na Real Acade-
mia da Língua Espanhola, CONTÍNUO, (2017), que é a principal referência para
definições de palavras em espanhol (aqui utilizado por ser o autor nativo na língua
espanhola), ao buscar a palavra aprendizaje, que seria a tradução de aprendizagem,
foram encontradas três acepções:

1. Ação e efeito de aprender alguma arte, ofício ou outra coisa.


2. Tempo que se emprega na aprendizagem.
3. Aquisição pela prática de uma conduta duradoura.

Embora ajude, é exígua a informação que define um ato tão valorizado. Ao fazer
o mesmo exercício da procura da definição de aprendizagem, agora nas muitas vezes
preconceituosamente pouco valorizada, e comumente utilizada, que é a enciclopédia
colaborativa, universal e multilíngue, conhecida na internet sob o nome Wikipédia
(2017). Lá encontramos a seguinte definição:
Aprendizagem é o processo pelo qual as competências, habilidades, conhecimentos,
comportamentos ou valores são adquiridos ou modificados, como resultado de
estudo, experiência, formação, raciocínio e observação. Este processo pode ser
116 TRANSCICLOPÉDIA EM DIFUSÃO DO CONHECIMENTO

analisado a partir de diferentes perspectivas, de forma que há diferentes teorias


de aprendizagem. Aprendizagem é uma das funções mentais mais importantes
em humanos e animais pode ser aplicada a sistemas artificiais.

Evidente, no caso da Wikipédia, o trabalho colaborativo deu um resultado mais


esclarecedor e enriquecedor comparado com a CONTÍNUO, para a compreensão,
neste caso, do conceito aprendizagem. Conceito que coincide com o de Félix Diaz
(2011) ao afirmar que
[...] definir algo é uma tarefa difícil, ainda mais no caso de aprendizagem que
é um dos fenômenos mais complexos da psique humana, pelo que afirmo ser
quase impossível uma definição precisa deste termo.

Logo se descobre quanto é difícil descrever e caracterizar o fenômeno para


apontar os esclarecimentos necessários.

Bases neurofisiológicas da aprendizagem


Embora não se conheça em demasia sobre as bases neurológicas da aprendizagem,
se tem alguns indícios importantes de que elas estão relacionadas às modificações
das conexões sinápticas, aceitando-se como hipóteses que
• A aprendizagem é resultado do fortalecimento ou abandono das conexões
sinápticas neuronais;
• A aprendizagem é local, ou seja, a modificação de uma conexão ­sináptica de-
pende só da atividade do neurônio pré-sináptico e do neurônio pós-sináptico.
• A modificação das sinapses é um processo relativamente lento comparado
com os tempos típicos das trocas nos potenciais elétricos que servem de
sinal entre os neurônios.
• Se o neurônio pré-sináptico ou o neurônio pós-sináptico (ou ambos) estão
ativos, então a única modificação sináptica existente consiste na danificação
ou decaimento potencial da sinapse, que é responsável pelo esquecimento.

Ao falar das bases neurológicas da aprendizagem é difícil não citar uma das
figuras mais importantes na neurologia, Santiago Ramón y Cajal, cientista que
há mais de cem anos defendeu uma das teorias mais aceitas sobre o mecanismo
de funcionamento do cérebro para a aprendizagem (PORTERA; YUSTE; 2004).
Santiago Ramón y Cajal (2007) diz que nos neurônios individuais ou nos
circuitos que os integram, se produzem sem cessar mudanças anatômicas ou fisio-
lógicas, que traduzem em lembranças mais ou menos permanentes as experiências
TRANSCICLOPÉDIA EM DIFUSÃO DO CONHECIMENTO 117

vivenciadas. Os neurocientistas falam de plasticidade neuronal para designar essa


flexibilidade dos neurônios e dos bilhões de conexões que formam entre elas. O que
permite presumir que, pela plasticidade, os neurônios possam adaptar-se a condições
diferentes para realizar as funções, tão complexas, das que é capaz o cérebro.
A capacidade plástica do cérebro tende a ser máxima durante o desenvolvimento
e diminui progressivamente na medida que amadurecem os neurônios e suas cone-
xões. Por isso, as crianças têm mais facilidade que os adultos em aprender idiomas
ou de se recuperar antes e melhor após uma injúria cerebral.
Embora se acredite que a plasticidade neuronal se devia só a mudanças ele-
trofisiológicos, há alguns anos as pesquisas demonstram, com provas crescentes,
que a plasticidade neuronal se explica, em boa parte, pelas mudanças morfológicas
operadas nas sinapses, que comportam alterações subsequentes no circuito neuronal,
assim como postulava Santiago Ramón y Cajal (2007).
O córtex é a camada mais superficial do cérebro (fig. 1a-b), nela se assentam
a imaginação, a criatividade artística, o conceito do futuro ou a personalidade. As
mudanças estruturais corticais associadas à aprendizagem ocorrem em especializa-
ções sinápticas denominadas espinhas dendríticas (fig. 1e), que são apêndices que se
sobressaem dos processos dendríticos (fig. 1c-d) dos neurônios principais do córtex.
Antecessores das espinhas durante o desenvolvimento do cérebro são os filopódios
dendríticos (fig. 1e). Espinhas e filopódios se movimentam continuamente, sendo
decisivo para o funcionamento normal do cérebro (PORTERA; YUSTE, 2004).
Embora Santiago Ramón y Cajal, durante a sua vida acadêmica, postulasse a
importância dessas estruturas e o labor fundamental da sua motilidade na produção
da aprendizagem, só na década dos anos 1990 é que foi possível, pelos avanços
tecnológicos, comprovar a sua hipótese, ao visualizar seus movimentos e variações
de presença de acordo com a etapa da vida (fig. 2).
Esses filopódios dendríticos na etapa juvenil e espinhas dendríticas quando
adulto (fig. 3), tem três funções principais no cérebro para conseguir a aprendi-
zagem: aumentar o número de sinapses possíveis, ao facilitar a sua estrutura para
conectar as dendrites com os axônios; mediar a plasticidade sináptica, ao trocar
as alterações na atividade sináptica; e facilitar a compartimentalização do cálcio
(PORTERA; YUSTE; 2004).
Finalmente, os estudos recentes permitiram determinar que espinhas peque-
nas podem converter-se em espinhas grandes, e que elas atuam como unidades da
memória, sendo as grandes estáveis e representam os traços físicos da memória
de longo prazo, contribuindo para as conexões sinápticas estáveis (memory spines,
118 TRANSCICLOPÉDIA EM DIFUSÃO DO CONHECIMENTO

espinhas de memória), tanto que as espinhas pequenas são móveis e instáveis e


contribuem para as conexões fracas (learning spines, espinhas de aprendizagem).

Figura 1
a) Anatomia do sistema ner-
voso central. b) Seção coronal
do cérebro, onde é possível
olhar o córtex. c) Imagem
por microscopia com tinção
violeta de cresilo do córtex,
enfoque central em neurônio
que ressalta a grande ramifi-
cação dendrítica. d) Imagem
com a microscopia a laser com
dois fótons do neurônio. e)
Imagem aumentada da seção
assinalada em imagem d, é
possível olhar espinha e filopó-
dio dendrítico. In: Espinas y
filopodias en el cérebro
(PORTERA; YUSTE,
2004).
TRANSCICLOPÉDIA EM DIFUSÃO DO CONHECIMENTO 119

Figura 2
Motilidade de espinhas e filopódios. Na série
da esquerda (P3), se registra o caso de um
rato de três dias de idade: muitos filopódios
(magros, compridos e sem cabeça na ponta)
sobressaem e desaparecem em escassos minu-
tos do talo dessa dendrite. Na série do centro,
se trata de um rato de 11 dias de idade
(P11); nessa dendrite se observam mudanças
na forma das espinhas, com espículas que
sobressaem de suas cabeças, e esses apêndices
são mais estáveis que os filopódios. Final-
mente, na direita, outro rato de 18 dias de
idade (P18), quase adulto: nessa dendrite
madura, a densidade de apêndice é maior,
embora não se observem movimentos na ca-
beça, nem mudanças na longitude do “pes-
coço” dessas espinhas. Os números em branco
indicam o tempo transcorrido (em minutos)
no filme. Paisajes Neuronales. Homenaje
a Santiago Ramón y Cajal (DeFelipe,
Markam e Wagensberg, 2007).
120 TRANSCICLOPÉDIA EM DIFUSÃO DO CONHECIMENTO

Figura 3 – Variação na motilidade de filopódios e espinhas dendríticas de


acordo com a etapa de vida.

In: Espinas y filopodias en el cerebro (PORTERA; YUSTE, 2004).

Conhecendo as estruturas neuroanatômicas que participam na aprendizagem


e a fundamental neurofisiologia que permite o conceito em desenvolvimento, é
possível estabelecer que a aprendizagem é uma modificação do comportamento
influenciado pelas experiências que precisas de uma mudança na estrutura física do
cérebro, resultado da interação complexa e contínua entre três sistemas: o sistema
afetivo, que corresponde à área pré-frontal do cérebro; o cognitivo, conformado
principalmente pelo denominado circuito PTO (parieto-têmporo-occipital), e o
expressivo, relacionado às áreas de função executiva, articulação da linguagem e
homúnculo motor (DE ZUBIRÍA, 1989). Assim, percebemos que a aprendizagem
ocorre quando observamos que há uma verdadeira mudança de conduta.

Processo da aprendizagem
O processo de aprendizagem é uma atividade individual que se desenvolve num
contexto social e cultural. É o resultado de processos cognitivos individuais pelos
quais se assimilam e interiorizam novas informações (fatos, conceitos, procedimen-
tos, valores), se constroem novas representações mentais significativas e funcionais
(conhecimentos), que logo podem ser aplicadas em situações diferentes aos contextos
onde foram aprendidas. Aprender não consiste só em memorizar informação, é
também a assimilação de outras operações cognitivas que implicam em conhecer,
TRANSCICLOPÉDIA EM DIFUSÃO DO CONHECIMENTO 121

compreender, aplicar, analisar, sintetizar e valorar.


No processo da aprendizagem há quatro fatores fundamentais (DE ZUBIRÍA,
1989):

1. Inteligência, para aprender o indivíduo deve estar em condições de fazê-lo


e dispor das capacidades cognitivas para construir novos conhecimentos.
2. Conhecimentos prévios, em relação com inteligência.
3. Experiência, é o saber aprender levando-se em conta que a aprendizagem
requer determinadas técnicas básicas como: técnicas de compreensão
(vocabulário), conceituais (organizar, selecionar etc.), repetitivas (recitar,
copiar etc.) e exploratórias (experimentação).
4. Motivação, é o querer aprender; é fundamental que o sujeito tenha a vontade
de aprender, embora a motivação se encontre limitada pela personalidade
e força de vontade de cada um.

Os seres humanos percebem e aprendem as coisas de forma distinta e por


canais diferentes; para conseguir o processo de aprendizagem há diferentes tipos de
aprendizagem a depender da individualidade de cada sujeito, sendo os principais:

• Aprendizagem receptiva, é o tipo de aprendizagem onde o sujeito só


precisa compreender o conteúdo e reproduzi-lo, mas não descobre nada.
• Aprendizagem por descobrimento, o sujeito recebe os conteúdos de forma
passiva, descobre os conceitos e suas relações e os ordena para adaptá-los
a seu esquema cognitivo.
• Aprendizagem repetitiva se produz quando o sujeito memoriza conteúdos
sem compreendê-los ou relacioná-los com seus conhecimentos prévios, sem
encontrar significado para os conteúdos estudados.
• Aprendizagem significativa, é a aprendizagem em que o sujeito relaciona
conhecimentos prévios com os novos, neles encontrando coerência e respeito
às suas estruturas cognitivas.
• Aprendizagem observacional, tipo de aprendizagem que se dá ao observar
o comportamento de outra pessoa, denominada modelo.
• Aprendizagem latente, nesta aprendizagem é adquirido um novo co-
nhecimento, mas não se demonstra até que se oferece um incentivo para
manifestá-lo.
• Aprendizagem por ensaio/erro, aprendizagem por meio de modelos
condutas pelo que se procura a resposta ao problema.
122 TRANSCICLOPÉDIA EM DIFUSÃO DO CONHECIMENTO

• Aprendizagem dialógica, é o resultado do diálogo igualitário, ou seja, é


consequência de um diálogo em que diferentes pessoas dão argumentos
baseados em pretensões de validade e não de poder.

Teorias da aprendizagem
Por fim, como parte integrante do conceito de aprendizagem, estão as descri-
tas na literatura atual como teorias da aprendizagem. O que, sendo um benefício,
às vezes, dificulta unificar critérios para conseguir entender as diferentes vertentes
desenvolvidas. Félix Díaz (2011) traz uma ajuda simplificadora ao indicar que as
diferentes correntes que pretendem explicar o homem e seu processo de aprendi-
zagem podem ser agrupadas em três teorias históricas do conhecimento humano:

• Inatista (naturista ou biologista), onde de forma simplista se considera que,


ao nascer, a pessoa traga com ela o andaime para aprender, subvalorizando
a influência social.
• Ambientalista, basicamente representada pelo comportamentalismo que
reduz a aprendizagem à determinação absoluta do meio.
• Interacionista, fortemente ligada ao construtivismo de corte piagetiano
e/ou corte vygotskyano, onde se integra dialeticamente o que efetivamente
é inato na aprendizagem e o substancial aporte do social no processo de
aprender, concepção que constitui, hoje, o paradigma psicológico-peda-
gógico mais consequente do ponto de vista científico-humanista. (DÍAZ,
2011, p. 19).

A aprendizagem e as teorias que tratam dos processos de aquisição do conhe-


cimento têm tido durante o último século um enorme desenvolvimento, fundamen-
talmente, pelos avanços da psicologia e das teorias instrucionais, que têm tratado
de sistematizar os mecanismos associados aos processos mentais que ajudam na
aprendizagem. Há diversas teorias da aprendizagem, cada uma analisa uma pers-
pectiva particular do processo. Nos seus estudos, o professor Díaz (2011) indicou
cinco teorias que podem ser reconhecidas neste perurso:

1. A teoria da aprendizagem por associação tipo comportamentalista se


baseia na associação entre estímulo e resposta. Nela o estímulo proveniente
do meio provoca uma resposta do organismo que, com sua repetição, leva
a pessoa a uma associação mental, nascendo a aprendizagem. Essa teoria
TRANSCICLOPÉDIA EM DIFUSÃO DO CONHECIMENTO 123

acrescenta a influência ambiental (educativa) que é definida pelo menos em


sua forma clássica (Watson), operante (Skinner) ou imitativa de modelos
(Bandura), o que provoca uma resposta e não outra.
2. A teoria verbal significativa da aprendizagem, proposta por Ausubel,
postula que a aprendizagem deve ser significativa, não memorizada, e para
que tal ocorra os novos conhecimentos devem relacionar-se com os saberes
prévios trazidos pelo aprendiz.
3. A teoria cognitiva baseada no processamento da informação, também
conhecida como cognitivismo, estuda como as pessoas entendem o mun-
do em que vivem e aborda questões de como os seres humanos tomam
a informação sensorial entrante e a transformam, sintetizam, elaboram,
armazenam, recuperam e, por fim, fazem uso dela. O resultado desse pro-
cessamento ativo da informação é o conhecimento funcional no sentido
de que a segunda vez que a pessoa se encontra com um acontecimento
igual ou similar estará mais segura do que pode ocorrer, comparado com
a primeira vez.
4. A teoria psicogenética da aprendizagem, quando se fala de “genético”
neste enfoque, faz-se alusão ao conceito de “gênese”, quer dizer, da origem
do conhecimento humano, desde que o momento que indivíduo nasce até
a morte (desenvolvimento ontogenético), ao momento como as pessoas
geram seu conhecimento. O que mais se evidencia nessa concepção da
aprendizagem é a certeza de que o aprendizado não se dá externamente
como um produto acabado, e sim “negociado” pelo próprio aprendiz a
partir da dinâmica evolutiva de sua mente. Segundo Piaget, o meio oferece
situações de conflito (de conhecimentos) que exige da criança determinado
nível de conhecimentos que, naquele momento, ela não dispõe de forma
a resolver determinada situação, obrigando-a, assim, a aprender um dado
conhecimento para adaptar-se a tal situação: dar a resposta adequada ou,
no caso inverso, a não dar a resposta certa e, portanto, manter o conflito
(querer responder e não poder) e ainda não adaptar-se a essa situação até
alcançar o nível de resposta adequado.
5. A teoria sociohistórica e cultural da aprendizagem e do ensino, li-
derada por Vygotsky, considera a aprendizagem um processo pessoal de
construção de novos conhecimentos a partir dos saberes prévios (atividade
instrumental), e inseparável da situação em que se produz. A aprendizagem
é um processo que está intimamente relacionada a viver em sociedade.
124 TRANSCICLOPÉDIA EM DIFUSÃO DO CONHECIMENTO

REFERÊNCIAS
DE ZUBIRÍA, M. Fundamentos de pedagogía conceptual. Bogotá: Plaza &
Janes, 1989.

DEFELIPE, Javier; MARKRAM, Henry; WAGENSBERG, Jorge. Paisajes


neuronales: homenaje a Santiago Ramón y Cajal. Madrid: Consejo Superior de
Investigaciones Científicas, 2007.

DÍAZ, Félix. O processo de aprendizagem. Salvador: Edufba, 2011.

GALEFFI, Dante Augusto. Didática Filosófica Mínima. Salvador: Quarteto,


2017.

PORTERA, Carlos; YUSTE, Rafael. Espinas y filopodias en el cerebro. In:


Mente y Cerebro, n. 9, dez. 2004.

RAMÓN Y CAJAL, Santiago. Cajal y La Neurociencia del Siglo XXI. In:


Paisajes neuronales: homenaje a Santiago Ramón y Cajal. Madrid: Consejo
Superior de Investigaciones Científicas, 2007.

REAL ACADEMIA ESPAÑOLA. Aprendizaje. Disponível em: <http://


dle.rae.es/?id=3IacRHm>. Acesso em: dez. 2017. WIKIPÉDIA. Aprendizagem.
Disponível em: <https://pt.wikipedia.org/wiki/Aprendizagem>. Acesso em: dez.
2017.
11. Aprendizado De Máquinas
(Machine Learning, ML)

Soltan Galano Duverger

O conceito de Aprendizado de Máquinas surgiu de um conjunto de pesquisas


sobre Inteligência Artificial. Este conjunto de algoritmos dentro da Inteligência
Artificial é capaz de aprender os padrões intrínsecos nos dados, porém são menos
exigentes em termos cognitivos do que os processos de Inteligência Artificial.
Um algoritmo e Aprendizado de Máquinas pode se dividir em três grandes
grupos pela forma como aprendem; estes grupos se dividem em aprendizagem su-
pervisionada, aprendizagem não supervisionada e aprendizagem por reforço,
QUINLAN (1990).
Aprendizagem supervisionado: São algoritmos que precisam de dados de
entradas rotulados ou referenciados (conjunto de treinamento), por um especialista
para o processo de aprendizagem. Nesta etapa de aprendizagem estes algoritmos
encontram padrões nos dados de entrada que permitem identificar, classificar ou
predizer um novo conjunto de dados com as mesmas características daquele inicial.
O processo de aprendizagem se repete até o especialista identificar que o algoritmo
aprendeu o suficiente quando classifica, identifica ou prediz bem novos dados. Os
especialistas que usam estes algoritmos conhecem bem o problema que deve ser
resolvido e os dados específicos.
Esses algoritmos são reconhecidos em todas as áreas em que a Inteligência
Artificial tem se destacado. Um bom exemplo disto pode-se ver em múltiplas ta-
refas envolvendo a computação, como reconhecimento de rostos, reconhecimento
de digitais, carros autônomos, identificação de tumores, fraudes em assinaturas,
em tarefas de identificação de objetos como na indústria 4.0, reconhecimento de
voz, em criminalísticas, em detecção de desastres naturais como derrame de óleo,
também em tarefas de monitoramento como sistemas de alertas de desmatamento,
de inundações, de incêndios florestais, câmaras de segurança pública, controles de
velocidade, etc., BLUM and PAT (1997), MÜLLER and SARAH (2016), BALDI
et al. (2001)
Aprendizagem não supervisionada: São os algoritmos que a partir dos dados
de entrada sem rótulos identificam e aprendem padrões de similaridades, anomalias
126 TRANSCICLOPÉDIA EM DIFUSÃO DO CONHECIMENTO

ou dissimilaridades entre objetos que permitem agrupar ou predizer novos conjun-


tos de dados. Estes métodos são bons para problemas em que o conhecimento do
especialista sobre os dados é pouco ou o grau de incerteza nos dados é alto, mesmo
assim deve-se ter uma noção do problema a ser resolvido.  
Estes algoritmos têm sido utilizados muito para análises de redes sociais, agru-
par perfis de clientes na área de e-commerce, recomendações de conteúdo (Netflix,
Youtube), tipos de clientes para créditos em bancos, bolsa de valores, na indústria,
na área de segurança pública, detecção de fraudes, identificação de spam, assim
como um sem número de problemas que precisam agrupar ou detectar anomalias
nos dados, FREITAG (1996).
Aprendizagem por reforço: São algoritmos gerados através de processos de
ensaio e erro. Com um conjunto grande de dados são simulados vários processos
e com base em regras aqueles que apresentam melhores resultados passam para
uma outra fase ou não. Os processos com êxito são considerados como aqueles que
aprenderam e servem de base para novas simulações mais complexas. Neste tipo de
aprendizagem as simulações são monitoradas e avaliadas para selecionar o modelo
ótimo.  
Estes tipos de algoritmos são muito utilizados em jogos e na indústria em
geral, em que existem várias possibilidades em cada etapa do processo em seu todo.
Nesta instância estão os algoritmos que foram testados para jogos como Xadrez,
Go, Starcraft, LI (2017), THURAU et al. (2004).
A área de Aprendizado de Máquinas abrange todos os algoritmos que precisam
de um treinamento para realizar uma tarefa específica de forma automática. Alguns
dos algoritmos mais utilizados são listados abaixo:
Algoritmos de regressão (Linear ou Logística)
Algoritmos de agrupamentos
Algoritmos de redução de dimensionalidade
Análise de componentes independentes
Análise de Componentes Principais
Árvores Aleatórias (Random Forest)
Árvores de decisão (CAR)
Classificadores de Naive Bayes
K-vizinhos mais próximos (KNN)
Máquinas de vector de Suporte (Support Vector Machine)
Máxima verossimilhança
Métodos de ensemble
TRANSCICLOPÉDIA EM DIFUSÃO DO CONHECIMENTO 127

Mínima distância
Processamento de Linguagem Natural (Natural Language Processing)
Redes Neurais Artificiais (Artificial Neural Networks),

REFERÊNCIAS

BALDI, Pierre, SØREN Brunak, and FRANCIS Bach. Bioinformatics: the


machine learning approach. MIT press, 2001.

BLUM, Avrim L., and PAT Langley. Selection of relevant features and
examples in machine learning. Artificial intelligence 97.1-2 (1997): 245-271.

FREITAG, Dayne. Machine learning for information extraction in informal


domains. Machine learning 39.2-3 (2000): 169-202.

LANGLEY, Pat. Elements of machine learning. Morgan Kaufmann, 1996.

LI, Y. Deep reinforcement learning: An overview. arXiv preprint


arXiv:1701.07274.(2017).

MÜLLER C. Andreas; SARAH, Guido. Introduction to Machine Learning


with Python. A guide for Data Scientists. Publisher(s): O’Reilly Media, Inc.
2016.

QUINLAN, J. Ross. Learning logical definitions from relations. Machine


learning 5.3 (1990): 239-266.

THURAU, Christian; BAUCKHAGE, Christian; SAGERER, Gerhard.


Learning human-like movement behavior for computer games. En Proc. Int.
Conf. on the Simulation of Adaptive Behavior. 2004. p. 315-323.
12. Aprendizagens Profundas
(Deep Learning)

Soltan Galano Duverger

As Redes Neurais Artificiais tiveram um papel fundamental dentro dos proble-


mas solucionados com Aprendizagens de Máquinas, mas com a crescente evolução
da área de informática o volume de dados aumentou e os problemas se tornaram
mais complexos.
Aprendizagem profunda vem do termo inglês “Deep”, e se refere a uma Rede
Neural Artificial com mais de duas camadas ocultas na arquitetura da rede. Com
isto é criada uma RNA mais robusta e capaz de resolver quase qualquer problema
dentro da área de Inteligência Artificial.   
Os algoritmos de Aprendizagens Profundas (Deep Learning, DL) foram expan-
didos rapidamente nas pesquisas de IA, a partir dos trabalhos de HINTON et al,
2006; BENGIO et al, 2007; RANZATO et al, 2007, que apresentaram resultados
impressionantes com arquiteturas de RNA mais complexas e treinadas com grandes
volumes de dados. Isto foi possível graças ao aparecimento em 1999 das unidades de
processamento gráfico (GPU), que permitiram aumentar o volume de processamento,
e reduzir o tempo de treinamento.
No livro Deep Learning, de Ian Goodfellow, Yoshua Bengio e Aaron Courville,
os autores justificam os dois fatores que levaram ao sucesso desses modelos; o primeiro,
a possibilidade de contar com grandes volumes de dados, graças à popularização da
web e às redes sócias com os dispositivos móveis; o segundo, foi a possibilidade de
construir arquiteturas mais complexas de redes neurais (possíveis devido ao poder
computacional atual) e alguns avanços algorítmicos. Dentro dos algoritmos mais
utilizados na atualidade estão:

• Boltzman Machine
• Deep feedforward Networks  
• Recurrent Neural Networks (RNNs)[Long Short Term Memory]
• Deep Belief Network (DBN)
• Convolutional Neural Networks (CNNs)
• Auto Encoder (AE)
TRANSCICLOPÉDIA EM DIFUSÃO DO CONHECIMENTO 129

• Generative Adversarial Networks (GANs)

Um outro ponto que marcou a história da Aprendizagem Profunda foi a cria-


ção, por grupos de pesquisas no tema, de bibliotecas para o desenvolvimentos de
algoritmos de DL como TensorFlow, Pythorch, Keras, Theano que permitem reduzir
o tempo de implementação destes algoritmos e concentrar as pesquisas nos modelos.
Muitas são as aplicações destes algoritmos, como por exemplo:
• Reconhecimento de rostos
• Interpretação semântica
• Reconhecimento de fala
• Tradutores automáticos
• Geração de poemas
• Processamento de Linguagem natural
• Séries temporais (crescimento populacional, preço de ações na bolsa)
• Reconstrução de pinturas
• Criação de imagens artificiais (pinturas, rostos de pessoas que não existem)
• Geração de imagens a partir de textos
• Busca dentro de imagens (buscar carros dentro de uma imagem)
• Visão computacional (ramo de computação especializada em tratar imagens)
• Fjodor Van Veen do instituto Asimov, compilou várias topologias de RNA
que permitem um ponto de partida para os estudos de alguma arquitetura
em específica:
130 TRANSCICLOPÉDIA EM DIFUSÃO DO CONHECIMENTO

Figura 1 – Arquiteturas de Redes Neurais Artificiais classificadas por tipo

Fonte https://www.asimovinstitute.org/author/fjodorvanveen/
TRANSCICLOPÉDIA EM DIFUSÃO DO CONHECIMENTO 131

REFERÊNCIAS
ABADI, Martín et al. Tensorflow: Large-scale machine learning on
heterogeneous distributed systems. arXiv preprint arXiv: 1603.04467, 2016.

BENGIO, Yoshua, PASCAL Lamblin, DAN Popovici, AND HUGO Larochelle.


Greedy layer-wise training of deep networks. In Advances in neural information
processing systems, pp. 153-160. 2007.

CHOLLET, François et al. Keras: Deep learning library for theano and
tensorflow. URL: https://keras. io/k, vol. 7, p. 8, 2015.

FERNEDA, Edberto. Redes neurais e sua aplicação em sistemas de


recuperação de informação. Ciências da Informação, vol. 35, n. 1, 2006.

GOODFELLOW, IAN, YOSHUA BENGIO, AARON COURVILLE, AND


YOSHUA BENGIO. Deep learning. Vol. 1. Cambridge: MIT press, 2016.

HINTON, Geoffrey E., SIMON Osindero, AND YEE-WHYE Teh. A fast


learning algorithm for deep belief nets. Neural computation 18.7 (2006):
1527-1554.

RANZATO, MARC’AURELIO, Y-LAN BOUREAU, AND YANN L.


CUN. Sparse feature learning for deep belief networks. Advances in neural
information processing systems. 2008.

SCHMIDHUBER, JÜRGEN. Deep learning in neural networks: An


overview. Neural networks, vol. 61, p. 85-117, 2016.

SJARDIN BASTIAAN; MASSARON LUCAS; BOSCHETTI ALBETO.


Large Scale Machine Learning with Python. Packt Publishing, 2016.
13. Audiência ativa

Marcílio Rocha-Ramos

A referência aqui a audiência ativa diz respeito ao fenômeno da sociedade-rede,


da socialização das técnicas de comunicação e do poder que os objetos de comu-
nicação têm de receber, emitir e se conectar — e das possibilidades corrosivas que
podemos fazer com este poder em relação ao que oprime, deseduca, inculca. No
âmbito do ato educomunicativo, a audiência ativa é o ser dos tecimentos online, da
participação, das bricolagens, das guerrilhas em rede, das lutas contra os ciclos de
repetições alienantes. As audiências ativas escorrem pelos blogues, faces, fanpages,
msn, instas... a torpedear, trollar, mover, incendiar. Não se trata do tão propagan-
deado poderio tecnológico extensivo à “coprodução” com as mídias mainstream que
podemos conceitualizar como encenação de participação e colaboração. Não se trata
de uma relação subserviente de uma participação no quadro de um telejornal, por
exemplo, como “coprodutor”. Audiência ativa não significa “envio”, “partilha” e/ou
“necessidade inerente ao ser humano de comunicar”. O que define a audiência ativa
é a construção, a desconstrução, as montagens e edições em contracorrente com as
linguagens e deontologias da mídia mainstream.
A rigor nenhuma audiência é passiva — até mesmo a “da poltrona” — uma vez
que esta tem o poder de operar botões, controles, decodificar. Nos discursos com-
portados dos filósofos moles significa apenas colaboração. Naturalmente, colaborar,
enviar, comunicar são formas de audiência ativa. Porém, estas quando presas à mídia
mainstream é uma colaboração para reprodução dos engenhos de subjetividades
realizadas pela sociedade-capital. A audiência “ativa” restrita somente à colaboração
pode se tornar uma atividade subalterna, reprodutora das identidades com verniz
brilhante. De fato, é uma ativação das lógicas da comunicação para passividade,
consumo, referendum das representações do mundo editado. As audiências que ativam
a mídia mainstream são como “assessoras” das vedetes dessas mídias.
Conceitualizamos as vedetes como o grande elenco de atores nas mídias mains-
tream — apresentadores, comentaristas, âncoras. As vedetes sabem e opinam sobre
tudo com grande poder de autoridade que os meios lhes concedem. A ‘sensualidade’
das vedetes está na aparência do seu suposto saber. Os corpos — a maioria envelhe-
cidos — são mumificados pelas luzes e adornos para exibições linguísticas. As vedetes
necessitam de audiência “ativa” para impulsionar suas redes e simular participação. A
TRANSCICLOPÉDIA EM DIFUSÃO DO CONHECIMENTO 133

audiência “ativa” produzida pelas vedetes estão em contracorrente com as audiências


ativas educomunicativos.
A audiência ativa educom é o ser da diferença, das produções de correntes no-
vas entre as velhas, no intermezzo. As audiências estão ativas nos blogues, nos sites
de conversação, nos grupos interpessoais, nas mídias radicais, nas mais corrosivas
formas de linguagens, retroação, montagens quando descortinam as zonas cinzentas
dos saberes que aprisionam, dos poderes da democracia-marketing, do profeta que
se apropria das divindades para vender-se, vendendo-as. A audiência ativa a que nos
referimos é a audiência educomunicativa. Ou seja, aquela que produz intervenção
social sobre os acontecimentos, a vida, as coisas, demarcando o poder de grupos,
pessoas, instituições, abrindo francos em molduras rígidas. Sua repercussão não se
trata apenas de uma reescrita, mas de anexações de reputação à criação de cada ser
da audiência que intervém sobre o texto-potência que a motivou.
Com efeito, a audiência ativa não ocorre somente sobre o mundo editado —
sobre o texto-potência alheio por mais bem intencionado que seja — mas, sobretudo,
como uma desconstrução, uma leitura crítica, uma intervenção crítica-criativa-des-
construtiva. Esta audiência diz respeito à própria edição no mundo por diversas for-
mas de ação: desconstrução, mixagem, compartilhamento por misturas, contágios,
revolução molecular nos diversos espaços da nossa existência e ocorre a partir de
ecossistemas para territórios fluidos, não-lugares, uma vez que estão em movimento
de agregação, encontros, acoplamentos. A audiência ativa produz um fazer-se autor
de autorias em multiplicidade. É ativa porque ativa coletivos. É ativa porque produz
novas subjetividades sobre os ciclos de repetições alienantes.
14.Autoconhecimento

Alexsandro da Silva Marques

O autoconhecimento é uma abertura radical de investigação implicada no


aprendizado de si. É comum encontrarmos em sua definição algo similar ao conhe-
cimento de si, busca de sentido para o viver ou até mesmo relacionado ao termo
autoajuda em uma visada egocentrada. O autoconhecimento como abertura radical
de investigação implicada envolve o processo de autoproduzir-se ciente do que se é,
está sendo e do que virá a ser, sempre possibilidade brotante e aprendente de perspec-
tivar e forjar modos, sentidos e formas próprias e apropriadas em derivas constantes.
Diferentemente de um saber técnico que se aprende a partir de regras e nor-
mas padronizadas, o autoconhecimento rompe com os solipsismos do pensamento
especulativo fundante do saber ocidental. Há um presentificar-se incessantemente
que mobiliza estados de consciência (conscientes ou não) pela capacidade de escuta.
Entende-se a escuta em uma perspectiva amplificada para além da própria audição,
mas de todo o corpo, pele, olhos, vísceras, coração, pernas, pensamentos, desejos,
impulsos etc. Todo o mundo interior, psicológico, do ser vivente em dialogia com o
mundo da convivência, na experiência de si com o luminoso e o espiritual.
Há, desse modo, a necessidade de rompimento da perspectiva da unidimen-
sionalidade de sentir e perceber a realidade em uma mente binária. Esse processo
permeia o fazer científico ocidental que opera uma axiomática de três princípios: o
axioma da identidade (A é igual a A); o da não-contradição (A não é não A) e o do
terceiro, o do excluído (entre A e não-A, não há um terceiro termo) (RANDOM,
2002). Opera-se, desse modo, uma exclusão que privilegia um nível de realidade
aceito por um grupo de “especialistas experts” no assunto em questão. Por isso, no
paradigma transdisciplinar, podemos perceber a própria ciência abrindo-se para o
reconhecimento de diferentes níveis de realidade (a física quântica é um exemplo)
— a lógica do Terceiro Incluído.
É preciso desenvolvermos processos epistemológicos, educativos e pedagógicos,
que possibilitem ao ser vivente estabelecer uma relação de conhecimento com sua
corporeidade, seus afetos, perceptos e sua vida interior psicológica. Portanto, as in-
consciências, inconsistências e erraticidade de um conhecimento sempre abundante
e indeterminado. Não se trata de uma única técnica de aplicação para o processo
educacional, por exemplo. A viagem cósmica no mergulho do autoconhecimento
TRANSCICLOPÉDIA EM DIFUSÃO DO CONHECIMENTO 135

mobiliza, em sua ousadia singular e coletiva, o conhecer/desconhecer, o conhecimento


do desconhecimento — movimento ininterrupto do acontecimento figurativo das
coisas (MORIN, 2012; GALEFFI, 2011).
Sendo o mundo movimento em estado de imagens que nossas retinas buscam
captar, haverá sempre aquilo que não é capturado, codificado e sim desfigurado,
opaco e incoerente, para as lógicas habituais. Talvez a esse instante nos falte uma
linguagem própria e apropriada transduzente. Nesse sentido, uma transdução que
leve em consideração o caminho próprio da individuação humana, que é intrans-
ferível, única em seu acontecer, também coletiva, inspiradora, atualizadora das
potencialidades da vida vivente.
O autoconhecimento mobiliza uma polifonia de sentidos e significados situados
e referenciados em uma panaceia “multicultural e multirreferencial, pluricultural
e plurirreferencial, intercultural e interreferencial, transcultural e transferencial”
(GALEFFI, 2011, p. 22). As clareiras abertas pelo movimento transdisciplinar nos
abrem portais que nos aproximam de figuras como Buda, Lao Tsé, Cristo, Sócrates,
Mahatma Gandhi, Krishnamurti e tantos outros. São diversos níveis de realidades,
perspectivas em suas lógicas próprias e intrínsecas em um cosmo de complexidade
que nos conectam com uma autoconsciência cosmológica, de comunhão, de cone-
xão, de cuidado.
O autoconhecimento articulado aos processos formativos parte da perspectiva
de uma revolução conceitual, atitudinal e valorativa. Conceitual porque sendo o au-
toconhecimento sempre uma abertura radical de implicação (individual e coletiva),
esse processo produz conceitualizações e uma assinatura particular das infinitas
possibilidades viventes, bem como de sua inteligência analítica e sintética. Atitudinal
porque frente a uma perspectiva autoconhecente, somos levados a uma metanoia1,
não apenas ao nível mental e intelectual, mas de possível (e desejável) transformação
de toda a ação deliberada, por isso, uma auto e heteroavalição na ampliação e trans-
mutação da percepção de si. Valorativa porque somos seres cósmicos em processos
dialógicos e dialéticos em busca do desabrochar de suas potencialidades criadoras,
de escolhas e preferências que exigem amorosidade, dialogia, criatividade, respeito
e cuidado nos diferentes níveis de experiências.

1
Do verbo grego antigo μετανοεῖν, metanoein: μετά, metá, ‘além’, ‘depois’; νοῦς, nous, ‘pensa-
mento’, ‘intelecto’.
136 TRANSCICLOPÉDIA EM DIFUSÃO DO CONHECIMENTO

REFERÊNCIAS
GALEFFI, Dante. Recriação do educar epistemologia do educar
transdisciplinar. Salvador: Inédito, 2011.

KRISHNAMURTI, Jiddu. Nossa luz interior: o verdadeiro significado da


meditação. Tradução de Ruth Retman. São Paulo: Ágora, 2000.

LELOUP, Jean-Yves. O corpo e seus símbolos: uma antropologia essencial.


Organização de Lise Mary Alves de Lima. 23.ed. Petrópolis: Vozes, 2015.

LELOUP, Jean-Yves. Terapeutas do deserto: de Fílon de Alexandria e Francisco


de Assis a Graf Durkheim. Organização de Lise M. A. Lima. Tradução de Pierre
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15.Avaliação Polilógica

Urânia Auxiliadora Santos Maia de Oliveira


Maria Inês Corrêa Marques
Dante Augusto Galeffi

Figura 1 — Antevisão da Avaliação Polilógica

O termo apareceu atrelado à Educação Transdisciplinar e foi cunhado por


Dante Galeffi (2004) para chamar em causa uma forma de avaliar condizente com
a proposição de uma Educação Transdisciplinar. Em primeiro lugar, uma Avaliação
Polilógica não visa punir ou medir a retenção de conteúdos por parte dos estudantes,
e sim realizar o princípio basilar da educação humana comum, responsável: deixar
ser o outro o caminho de sua vida. A Avaliação Polilógica se constitui como um ins-
trumento da ação transdisciplinar aprendente, sendo o meio de acompanhamento
do desenvolvimento ontológico de cada aprendiz em sua singularidade situada no
mundo da vida, importando “valorar”, reconhecer, afirmar o valor do aprendiz em
seu florescimento único.
A Avaliação Polilógica compõe-se das dimensões atinentes ao desenvolvimento
humano em suas diversas aptidões para a posse de competências e habilidades. A
questão ultrapassa o enquadramento ideológico neoliberal que domina a econo-
mia global. Não se trata de definir “competências” e “habilidades” ao modo do
138 TRANSCICLOPÉDIA EM DIFUSÃO DO CONHECIMENTO

produtivismo competitivo, seletivo, bancário, dominante, e sim focar a atenção no


desenvolvimento humano pela aprendizagem de suas dimensões vitais. Na Avaliação
Polilógica avalia-se o sentir e perceber, o pensar e conhecer, o viver-junto, o fazer e o ser.
Avalia-se o florescimento dos discentes segundo o que realizam como aprendizagem.
A Avaliação Polilógica (AP) é o meio de valorização do aprendiz em sua construção
cognitiva e em seu florescimento afetivo. Nesse sentido, a AP não se ocupa de provas
e notas, classificações e comparações. Pelo contrário, se ocupa com as diversidades
aprendentes e suas florações espirituais. A AP não encontra meio de realização no âmbito
da educação disciplinar reinante. Ela é concebida para ultrapassar a forma disciplinar
de avaliar e cultivar o desenvolvimento de potências humanas únicas e consteladas.
Galeffi (2017) no livro Recriação do educar: epistemologia do educar transdisciplinar
esboçou o campo sígnico da Avaliação Polilógica no âmbito metodológico, visando à
sua operatividade nos processos formativos como linhas de fuga do pleno desenvolvi-
mento humano, pela afirmação da singularidade e seu corpo próprio no conjunto, que
é o mundo e sua multiplicidade ontológica compartilhada. Para Galeffi, a Avaliação
Polilógica é transdisciplinar. Chamou de Avaliação Polilógica Transdisciplinar “[...]
o avaliar articulado por lógicas plurais e compreendido além das disciplinas”. (2017,
p. 214) Para o autor, a efetuação da AP requer a criação de novas formas de cons-
tituição dos processos avaliativos escolares, no sentido de superar o atual horizonte
da educação básica regular, demasiadamente marcado por processos disciplinares
que fragmentam o movimento de formação e comprometem o desenvolvimento de
projetos humanos sustentáveis, portanto, inteligentes e sensíveis simultaneamente.
A proposta de uma Avaliação polilógica transdisciplinar atende o chamado de
uma educação que dê conta do desenvolvimento humano pleno, o que contraria o
modo dominante de produção e consumo do mundo globalizado. O seu campo é o
ser humano em seu desenvolvimento socio-histórico, corporal-mental, afetivo-sim-
bólico e ambiental, tendo em vista o cuidado necessário para a criação de condições
favoráveis ao seu florescimento saudável, feliz e implicado com a dinâmica da vida
em seu contínuo transformar-se e recriar-se.
Para Galeffi,
[...] A questão basilar toca o cerne da condição humana global e investiga as
possibilidades de desenvolvimento de processos formadores que estimulem
o aprendizado do pensar próprio, apropriado e apropriador. (2017, p. 214)

Ora, isto implica em uma problematização da educação instituída e seus mé-


todos avaliativos, tendo em vista o alcance de uma atitude avaliativa i­ndissociável
TRANSCICLOPÉDIA EM DIFUSÃO DO CONHECIMENTO 139

do ato de aprender e de ensinar, com foco no concreto movimento polilógico do


aprender: a ser, a conhecer, a pensar, a perceber, a viver junto, a fazer, pela concepção,
elaboração e resolução de problemas emergentes. Desse modo, o avaliar é o verbo
que permite um salto de natureza na concepção de educação e em seu campo opera-
tivo. Nessa perspectiva, para que se efetive a mudança de uma educação disciplinar
para um educar transdisciplinar, o processo avaliativo tem que ser necessariamente
transvalorado. Assim, desenvolver dinâmicas de aprendizagem com foco em habi-
lidades e competências complexas e polilógicas implica em novas formas de avaliar
que atendam o processo de cuidado com o florescimento humano em todas as suas
dimensões e possibilidades.
Toda aprendizagem efetiva é sempre uma experiência própria e apropriada. A
questão da avaliação diz respeito ao movimento de produção de valor pela experi-
ência própria e apropriada de cada aprendente. A Avaliação Polilógica se propõe a
construir uma dinâmica avaliativa do processo educacional como autorreferente e
alterreferente em um contínuo diálogo entre o ser e o parecer, entre o simbólico e o
vital, o cheio e o vazio, o alto e o baixo, o dentro e o fora. Avaliar é, antes de tudo,
suspender os juízos e julgamentos e, simplesmente, valorar o que se tem diante. E
o que se tem diante é um processo material que tem o seu próprio campo correlato
simbólico e semiótico: os pensamentos e afetos, os humores e as paixões, as atitudes e
ações, as palavras e os gestos. Suspender juízos e julgamentos significa experimentar
a coisa mesma que se oferece para julgamento: avaliar o aprendiz! Reconhecê-lo em
sua singularidade radical.
Toda avaliação nasce de uma suspensão de juízo, de um distanciamento prévio
de todo pré-julgamento, de todo preconceito, porque a-valiar significa estimar o
valor, ponderar, pesar o valor. E a medida do valor que se vai avaliar pode ou não
permitir que se valorize corretamente o avaliado. Isto torna a Avaliação Polilógica
um campo fecundo para a transposição da avaliação instituída porque o seu foco é
a totalidade conjuntural, consciente e inconsciente, de cada ser em formação. Isso
permite um avaliar continuamente dialógico e questionador, permanentemente
atento ao conjunto constelado de cada caso, de cada um em seu particular universal.
Como diz Galeffi (2017, p. 215):
Por isso mesmo a Avaliação Polilógica tem que começar do começo, tem que
iniciar na fonte e expandir junto com sua jorrância. Neste ponto, a radicali-
dade é a palavra-chave. A Avaliação Polilógica Transdisciplinar aqui ensaiada
encontra-se radicada na criação de novos valores para a vida presente-futura
da humanidade. Pretensão bastante consciente de que há sempre o que criar
140 TRANSCICLOPÉDIA EM DIFUSÃO DO CONHECIMENTO

quando se está vivo e se pode oferendar o movimento de sua existência ao


eterno refluir de tudo, e se pode acolher o mistério sem se perder de vista seu
sentido-sendo, sempre plural, sempre diverso, sempre outro-mesmo.

A Avaliação Polilógica Transdisciplinar é uma proposta-ação para a realização


de uma prática pedagógica orientada para o florescimento de seres humanos autô-
nomos e criativos, responsáveis e participativos, questionadores e críticos de suas
próprias condições de existência. O seu ponto de partida é a constatação do complexo
acervo de conhecimentos e informações disponível ao ser humano contemporâneo.
São muitas as referências para se compor razoavelmente o humano e suas relações
com a totalidade que o abarca. São muitas as formas de desenvolvimento humano.
São muitos os contextos específicos. São muitas as variações de caráter e persona-
lidade. São muitas as possibilidades. Entretanto, se tem insistido em um modelo
monológico que procede por generalizações e idealizações prefixadas. Somos, então,
levados pela enxurrada de possibilidades e interdições e atendemos a estrutura do
medo psicológico e nos apegamos em relação ao que parece a única possibilidade,
mas é apenas um velho hábito que não se pode imaginar perder sem a ideia de morte.
Mas, o que é, entretanto, a morte de um velho hábito quando se tem pela frente
infinitas possibilidades de florescimento? Como seria, então, reconhecer a morte
de um teatro humano e o florescimento de outra encenação humana? Reconhecer a
morte do sistema educacional fundado em uma competência cognitiva exclusiva é
o mesmo que reconhecer o florescimento de outra educação humana que dê conta
da emergência de formar seres humanos para lidar com os problemas complexos de
sua existência e convivência, em uma compreensão ética que tem como ponto de
radicalidade o comum-pertencimento de ser humano e natureza, mente e corpo.
Para Galeffi, essa perspectiva desenha o horizonte a ser aprendido como desa-
fio da educação humana daqui para frente. Sem ressentimentos! Esse é o primeiro
passo. Não se trata, portanto, de se fazer a crítica ao sistema educacional disciplinar
vigente, e sim oferecer alternativas de ação, em um projeto abrangente e aberto de
educação humana que reúna no mesmo âmbito o tradicional e o inovador, os an-
cestrais e os descendentes, os antepassados e os antefuturos. A Avaliação Polilógica
Transdisciplinar reúne a potência e o ato na construção humana conjugada com
a vida em sua totalidade em diferentes situações e intensidades. Apreende o ser
humano a partir da totalidade conjuntural em seus diferentes níveis de Realidade e
em suas estruturas basilares de composição. Sem perder de vista que toda — base
é um centro de força a partir do qual se edifica uma forma de ser no mundo, e que
não há nenhum modelo ideal para ser imitado, e sim o alcance efetivo de uma vida
TRANSCICLOPÉDIA EM DIFUSÃO DO CONHECIMENTO 141

consciente da consciência e consciente da inconsciência, no aberto de seu acontecimento


instante atentivo e cuidadoso.
Três verbos presentificam a obviedade da Avaliação Polilógica: ensinar, aprender,
avaliar. Essa tríade, óbvia, é o ponto de apoio que move a proposta para sua ação,
como um contínuo dialógico em que o aprender é ensinar e é avaliar simultanea-
mente, sem e com solução de continuidade, tudo dependendo do conjunto de um
acontecimento singular/coletivo.

Figura 2 — Conceitos, imagens e verbos nucleares da Avaliação Polilógica

Para Galeffi, na AP o importante é o verbo. É ele que unifica a dialogia de


ensinar, aprender, avaliar. São todas ações que necessitam de uma correspondência
imediata, no plano da compreensão articuladora. O verbo é a ação. A ação é o ver-
bo. Quem ensina o que ensina? Quem aprende o que aprende? Quem avalia o que
avalia? Em uma perspectiva linear, quem ensina, ensina, quem aprende, aprende,
quem avalia, avalia. Cada coisa em seu lugar. Mas como? Quem ensina não aprende?
Quem avalia não é avaliado? Quem aprende não ensina? Quando pensamos a partir
do verbo e não do substantivo, temos diante um novo campo de possibilidades para
a compreensão/ação do educar e do avaliar.
O verbo nos ensina que é possível aprender pelo movimento de reconhecimento
do aprender e que isto é possível pelo avaliar contínuo e não fragmentário. O verbo
nos ensina a agir como verbo: aprender, ensinar, avaliar. O substantivo é o resultado
do verbo em uma fixação extensiva e em uma figuração nominal ou icônica. Há algo
142 TRANSCICLOPÉDIA EM DIFUSÃO DO CONHECIMENTO

como memória em todo substantivo. Memória é o substantivo do verbo memorar


(recordar) porque o memorar é voltar a agir na experiência vivida. O que é retido e
o que é descartado compõem o ciclo do recordar/memorar.
Quando é que alguém se dá conta de si? Como se dá o dar-se conta de si? Assim,
a memória é o meio de recordação do vivido. O vivido, porém, só é recordado no
vivente. O vivente tem também, por antecipação, a memória do futuro. A experiência
vivida encontra-se presente na vida vivente como um contínuo sem partições, porém
amplamente identificável em partes e em setores, inclusive em grandes arquiteturas
do sentido unificado, seja na ciência, seja na arte, seja na mística, seja na filosofia.
Cada um de nós é hoje o que já foi e será o que é agora em sua abertura vivente ou
em seu fechamento maquínico.
A dinâmica dos processos vitais é algo comum a todo ser vivente. Como poderia
ser diferente com o ser humano? Por ventura, ele não é um ser vivo e vivente? O
organismo humano não é só mental, e a inteligência não é apenas cognitiva, pois a
cognição é, em primeira instância, um acontecimento da sensibilidade: um perceber
articulado compreensivamente — um intuir.
Memória do vivido e do vivente é o verbo. E todo verbo precisa de um substan-
tivo para fazer-se aparência, superfície, consciência. Verbo é consciência do instante:
superfície. Superfície, porém, que a tudo move como dinâmica efervescente em fuga.
A imagem da luz em seu caminho infinito ao redor de si mesma: o nascimento de
todo espaço e de todo tempo-espaço.
A natureza do simples. A complexidade do simples. A conjuntura simples/
complexo. O simples que se desdobra e se dobra e redobra. O complexo como dobra
da dobra do simples. O simples complexo: natureza em espírito, espírito-natureza
— também uma grande e única dança!
A diferença como diferença é o fundante ontológico para uma ação crítica e
radical da avaliação educacional e para a construção de uma avaliação trans-formativa
polilógica: projeto transdisciplinar.
Tratando da função aprendente da avaliação, Galeffi (2017) afirma que o seu prin-
cipal traço é a prática dialógica. As modalidades polilógicas da avaliação transdisciplinar
se configuram como Arte de Aprender: aprender a ver-ser, aprender a pensar, aprender a
viver junto, aprender a fazer. De imediato, mostra-se o caráter aberto e imprevisível da
avaliação transdisciplinar: aprender a aprender a sersendo. Aparecem os horizontes da
avaliação polilógica: avaliar o ver-ser, avaliar o pensar/conhecer, avaliar o viver junto,
avaliar o fazer. Tendo-se essa imagem polilógica do avaliar, sua simplicidade favorece a
delimitação de seus critérios como uma apurada fenomenologia: uma prática dialógica
benquerente — potência de poder-ser-sendo, ato criador no fluxar de tudo.
TRANSCICLOPÉDIA EM DIFUSÃO DO CONHECIMENTO 143

Visa-se inicialmente configurar uma rede de sentidos e significados/significantes


para a fundação e prática de uma avaliação transdisciplinar, como ponte episte-
mológica para a vivência avaliativa da arte de aprender. Assim, a AP é também um
convite à instauração do exercício de reconhecimento e identificação das dimensões
aprendentes do ser humano que requisitam avaliações diferenciadas.
Visa-se também apresentar um exercício de reconhecimento das várias dimensões
aprendentes, tendo em vista a compreensão dos fundamentos epistemológicos e onto-
lógicos da Arte de Aprender. As perguntas: O que é a avaliação Polilógica? Para que se
avalia? Como se deve avaliar? Essas questões convidam o­f­ ormador-investigador a olhar
o mundo dado a partir de outras possibilidades: não está em causa a explicação do como
aprendemos a aprender e sim a compreensão articuladora do aprender a aprender como
de-cisão própria e apropriada — autoconhecimento, meditação: conascimento quântico
fundamental — ontologia do que é-sendo. O fato é que toda de-cisão é desconcertante:
arranca-nos da estabilidade constituída, joga-nos no turbilhão do acontecimento instante,
projeta-nos diante de possibilidades corresponsavelmente constituídas.
Mas, afinal, o que significa aprender a aprender? Como é que se aprende a
aprender? Qual é o método eficaz para tanto? Qual é a ciência desse fazer? Por qual
motivo devemos aprender a aprender?
Para Galeffi (2017), devemos aprender a aprender porque devemos continuar
vivendo. Não há método eficaz nem ciência para esse fazer. Há, porém, métodos e
ciências para esse fazer. Contudo, é preciso saber-fazer com arte. Necessitamos, com
a máxima urgência, aprender a aprender aprendendo. De onde brota, porém, essa
necessidade?
Para Galeffi (2017), se cada um de nós não mudar o ponto de vista compreensivo
acerca da Realidade, como poderá partilhar da comum-responsabilidade como uma
ciência do ser ingente e indigente simultaneamente? Ciência aberta como aprender a ser-
-sendo compartilhado. Ciência, além da ciência regular. Assim, aprender a aprender é
o mesmo que aprender a ver e não-ver, aprender a conhecer e não-conhecer, aprender
a pensar e não-pensar, aprender a viver-junto e a não-viver-junto, aprender a fazer e a
não-fazer, aprender a ser e a não-ser. Aprender a aprender é investigar o serente em sua
totalidade conjuntural: investigar si mesmo, investigar outro mesmo, investigar mundo
mesmo. Aprender a aprender é o mesmo que investigar si mesmo, o outro, o mundo.
Aprender a aprender abarca a totalidade conjuntural do ser-enteespécie. Chamo este
aprender de “atitude filosófica”, usando de uma maneira própria o conceito filosófico.
O campo da atitude aprendente é polilógico, organizando-se como na mistura
das cores a partir das tonalidades primárias. O quaternário abaixo figurado apresenta
144 TRANSCICLOPÉDIA EM DIFUSÃO DO CONHECIMENTO

uma captura dos elementos estruturadores da aprendizagem humana e apresenta um


conjunto de verbos que indicam as operações da aprendizagem. A combinação dos
elementos primários de configuração da totalidade MVM (Matéria, Vida e Mente)
humana será sempre um caso específico, o que não nega sua unidade de princípio,
meio e fim.

Figura 3 — Diagrama das dimensões polilógicas aprendentes

Segundo Galeffi (2017), em primeiro lugar, compreende-se por Avaliação


Polilógica uma relação-vivência dialógica correspondente, ressonante. Avaliar é
correlacionar-se com o advento dialógico. Advencial, a avaliação é um encontro
com o sentido, mostrando-se no outro em seu projetar-se presente. O outro receberá
sempre do outro a emanação/imagem de sua florescência. É nesse ser projetivo e
efêmero (em fluxo) em que consiste a avaliação. A avaliação é um distanciamento
do fluxar visando rememorar e revisitar a experiência vivida: avalia-se o fluxar no
acontecimento dialógico. Articula-se o antes e o depois em uma consciência de
si-outro-mundo. A avaliação é o advento da dialogicidade comum. Avalia-se o
acontecimento do outro no caminho de sua vida. Avaliação polilógica é deixar ser
o outro o caminho de sua vida.
Trata-se de superar o paradigma do exame e da certificação meramente formal
e burocratizada, cuja regulação consiste no controle excludente dos ineptos através
do exame e da prova. Assim, a avaliação é pensada como reconhecimento do apren-
dizado realizado na instância da totalidade MVM-SupraMVM, e não mais como
modo de aferição do conhecimento adquirido pela repetição-assimilação de um
TRANSCICLOPÉDIA EM DIFUSÃO DO CONHECIMENTO 145

dado modelo regulador. Avaliação como desenvolvimento humano singular, plural e


comum — diferença comum-pertencente. Uma avaliação configurada como atitude
investigativa fenomenológico-hermenêutica — atitude filosófica.
O esquema abaixo apresenta percursos que relacionam o conhecimento avaliador
ao ato de constituir trilhas semióticas que funcionam como elementos de configuração
de tramas de produção de sentido dialógico, portanto, de sentido aberto à conjuntura
do instante. As palavras e campos permitem configurar uma linha analítica que não
se desconecta da Totalidade divisada, imaginada, pensada e ideada. A analítica feno-
menológico-hermenêutica indica um caminho para a delimitação epistemológica da
modelagem polilógica do avaliar: como ação construtora de sentidos implicados.

Figura 4 — Diagrama da atitude fenomenológico-hermenêutica: a atitude


filosófica

Segundo Galeffi (2017), isso requer uma compreensão articuladora que dê


conta de algo como atitude filosófica. Diz ele: “Compreendo como atitude filosófica
o mesmo que atitude aprendente”. Ele concebe o avaliar como filosofar, pois acolhe
a filosofia como filosofar. O esquema abaixo congrega planos configuradores da
atitude filosófica ou atitude aprendente. Uma maneira de apontar para o que não se
146 TRANSCICLOPÉDIA EM DIFUSÃO DO CONHECIMENTO

pode reduzir ao plano simplesmente intelectual ou mental. A atitude aprendente


aparece em todos os seus níveis divisados de constituição, o que permite pensar
a atitude filosófica como atitude investigativa radical. Uma configuração além da
filosofia escolar: incluir tudo em Tudo, sem perder nada, o baixo e o alto, o salto e a
corda, o sentir e o conceituar. Afinal, o que é o filosofar senão filosofar? Mas o que
é o filosofar? Estaria ele circunscrito ao ciclo historial Ocidente? Ou já se pode vir
a pensar (imaginar, sentir, conceituar) o filosofar como algo que é próprio do ser-aí
em seus desempenhos, sem que seja preciso negar ou contradizer os luminares da
tradição filosófica propriamente dita?

Figura 5 — Diagrama da Atitude Aprendente e suas disposições — Atitude


Filosófica

Esse esquematismo da atitude filosófica ou aprendente se correlaciona ao senti-


do focal do avaliar, pois importa pôr-em-obra a trans-formação dos indivíduos da
espécie. Na verdade, esse esquematismo é vazio sem a prática efetiva do filosofar
ou do aprender. A partir da prática, o esquematismo serve de meio articulador do
movimento de plasmação dos processos aprendentes. É como a pedra, o cimento, a
areia, o tijolo em uma construção. Ter chegado ao grau de compreender os elemen-
tos básicos para edificar uma casa é, sem dúvida, o sinal de uma grande revolução
tecnológica. Sem aquilo que torna a construção de uma casa — o seu morador — os
TRANSCICLOPÉDIA EM DIFUSÃO DO CONHECIMENTO 147

elementos de construção não fazem nenhum sentido. Assim, para aqueles que podem
perceber com quantos elementos se faz uma casa o esquematismo pode justamente
possibilitar uma construção para ser habitada e para servir aos viventes.
A figura abaixo apresenta um campo articulador da avaliação polilógica,
tendo o que se pode chamar de Filosofia da Diferença como âmbito teórico e o que
se projeta como Educar Transdisciplinar como âmbito acional do avaliar. Formar,
ou transformar na Diferença como Diferença é o horizonte ontológico do avaliar
polilógico: correlação de comum-pertencimento total.

Figura 6 — Diagrama da Avaliação Polilógica em sua radicalidade


transdisciplinar

Para Galeffi (2017), fica patente a pressuposição do ato de avaliar: o mundo


cultural em sua historicidade própria — os regimes inerentes ao modo de vida de
sociedades históricas. Qual é, portanto, nosso regime de vida específico? Como pro-
duzimos cultura e de que modo reproduzimos o produzido? Vivemos na Diferença
ou abominamos a Diferença? Como viver na Diferença como Diferença?
Os modos de avaliar são dependentes dos modos culturais instituídos tradicio-
nalmente. Entretanto, é possível propor um modo de avaliar que procure realizar a
educação humana voltada para a pluralidade e multiplicidade de potências vivas, o que
significa uma nova forma de cuidar e cultivar o ser humano em sua liberdade de ser.
148 TRANSCICLOPÉDIA EM DIFUSÃO DO CONHECIMENTO

Segundo Galeffi (2017), em nossa cultura atual predomina ainda a hegemonia


da ciência experimental com seus critérios formais padronizados e regulados. Infeliz-
mente, a maioria dos discursos sobre avaliação educacional é fundado em uma ideia
de cientificidade que só atesta a trama da manipulação ideológica planetária. É preciso
aprender a pensar para além dos limites instituídos. Afinal, o ser humano encontra-se
aberto diante de sua própria possibilidade de ser sempre ultrapassagem. Será essa
tendência um acontecimento exclusivo do ser humano?
Como diz Galeffi (2017), de modo geral, as ciências da natureza e as ciências do
espírito encontram-se na ótica da racionalidade instrumental, com exceção de casos de
crítica radical do conhecimento humano. Isso significa o predomínio de um modelo
determinado na modelagem da formação humana. Como, então, ultrapassar essa
tendência dominante de formalização que determina o avaliar como mensuração de
desempenhos programados? Por que o critério de avaliação tem que ser o do exame e da
prova? É uma hegemonia do modelo de Realidade das ciências positivas, que determi-
na o princípio de realidade pela mensuração e pela regularidade do comportamento
humano? O que é inadequado aí? Por qual motivo o princípio de Realidade assumido
pela ciência normativa tem que definir o que é verdadeiro como critério de avaliação?
Para Galeffi (2017), temos um problema de critério para ser investigado demo-
radamente porque o critério da ciência positiva não pode ser o principal vetor do pro-
cesso de avaliação na formação humana transdisciplinar. Mas é também indubitável
que não mais se trata de negar o primado da ciência positiva na condução do destino
tecnocientífico aí vigente. Pelo contrário, trata-se de também aprender o que é próprio
da investigação científica e da modelagem técnica e artística. Portanto, não se trata de
criticar negativamente a ciência positiva, e sim de realizar alternativas dialógicas que
conjuguem a instrumentalidade da tecnociência com a emergência humana de geração
de indivíduos realizadores das potências reunidas e coesas. Indivíduos não são ilhas
no oceano cósmico. Indivíduos são individuações de uma dada espécie. Entretanto,
é preciso alertar para o fato de o indivíduo nunca poder ser algo isolado de um todo
que o germina e o mantém. O âmbito da experiência humana em seu acontecimento
singular e plural não segue senão a lei do que é vivo e quer viver.
A vida quer viver. E não há vida sem morte. A morte quer morrer. Não há morte
sem vida. Assim, avaliar aparece agora como avivar, valorizar através do destaque,
da relevância. Avaliar é sempre julgar. Julgar, porém, o que é? Ora, julgar o valor, o
que vale. Entretanto, o que é o que vale? O que vale é o que afeta e repercute, ressoa.
Entretanto, o que é hoje o que vale? Parece valer o que se pode provar documental-
mente. Mas, no âmbito da complexidade vertical da espécie humana, o avaliar é algo
TRANSCICLOPÉDIA EM DIFUSÃO DO CONHECIMENTO 149

pertencente ao modo de fazer e julgar do ser humano.


Avalia-se o que? O que é objeto de avaliação? Avalia-se o desempenho em pro-
gramas específicos, a capacidade de investigar, o modo de operar de quem aprende o
que se está avaliando? Galeffi diz que seu intuito é o de ressignificar o verbo avaliar
porque se tornou importante saber o que se vai aprender a avaliar. Há de qualquer
modo um aprender. Não se avalia o que não está em obra. Avalia-se a obra em anda-
mento? Qual obra, aquela de cada um em sua singularidade e unicidade absoluta ou
aquela determinada por uma modelagem coletiva ideologizada? Ora, o avaliar aqui
ressignificado e reformado não tem em vista esquemas formais reguladores e sim o
processo gerativo daquele que é avaliado.
O campo da avaliação polilógica é cada indivíduo em sua individuação com-
partilhada. Por isso, se pode pensar o avaliar como uma suspensão do juízo afetado,
o que significa que o julgamento se transforma em apreciação atentiva — apreciação
presente. O avaliar nessa perspectiva é uma abertura dialógica interrogante e afetiva,
na medida do acolhimento do outro em sua alteridade insondável. Sem uma disposi-
ção para apreciar o outro em sua construção própria, o avaliar polilógico não serviria
para nada. Assim, Galeffi considera o avaliar polilógico como algo no serviço de algo
muito elevado e radical. Projeta-se um outro ambiente para o educar transdisciplinar.
Indo direto ao ponto: avaliação polilógica não significa mais averiguação ou exame
do processo de adaptação do aprendiz ao programa a ele oferecido de aprendizagem.
Para ampliar o campo da polêmica inevitável diante da proposta apresentada,
Galeffi apresenta um jogo epistemológico sucinto para mostrar uma gramática mí-
nima do avaliar polilógico. Partindo de o uso corrente do verbo avaliar, segundo sua
dicionarização, chega-se ao conceito preliminar de avaliação — o preconceito usual:
etimologia e significados prévios do verbo Avaliar:
Avaliar — do latim, valeo, valere, valor, ter valor, valer:
1ª — ser forte, vigoroso, valente;
2ª — estar com saúde, passar bem, estar em bom estado;
3ª — ter força, ter crédito, exceder (em alguma coisa), levar vantagem, estar em
voga; prevalecer; ter bom resultado, surtir efeito; ser eficaz; cumprir-se; ter influência,
contribuir para; ser capaz de poder;
4ª — Ser bom, eficaz (ter medida), ter esta ou aquela virtude, ser medicinal;
5ª — Valer (em relação ao dinheiro); valer um preço;
6ª — Ter esta ou aquela significação, significar.
Em uma síntese esquemática e gramatical, o avaliar aparece em sua compo-
sição afônica. O —a‖ suspende a ação de valorar para dar valor, reconhecer o valor,
150 TRANSCICLOPÉDIA EM DIFUSÃO DO CONHECIMENTO

fazer valer. O —a‖ ao suspender não altera o sentido da palavra —valorar‖: avalorar,
avaliar. Mas o —a‖ provoca uma desaceleração do valorar. Avaliar aparece, assim,
como ato retroativo e reflexivo do valorar? Avaliar é, portanto, investigar o valor de
alguém em seu acontecimento onto-sócio-genético-ambiental? Mas, para que isso
— em qual regime produtivo? Qual é, portanto, o projeto humano para o qual faz
sentido avaliar no sentido criador?

Figura 7 — Diagrama do sentido comum do verbo avaliar

Para Galeffi, em um jogo de linguagem provocante, o que significa ressigni-


ficar o conceito de avaliação? Basta reinventar sentidos para que os sentidos deem
sentido ao avaliar? Claro que não. Entretanto, por que não ressignificar o que parece
já descontado e inútil? Nada impede de jogar o jogo ressignificado a partir de um
florescimento próprio.
Figura 8 — Ressignificação dos conceitos de Avaliar em suas derivações
etimológicas
TRANSCICLOPÉDIA EM DIFUSÃO DO CONHECIMENTO 151

Galeffi questiona: Ora, quando já se viu algo como ter amor no processo avalia-
tivo instituído? O que significa, por exemplo, “valorar o que vale”? E o que quer dizer
“corresponder ao outro”? E “potencializar” o que? “Partilhar” com quem? Ter estima
de que? Valorizar o outro por que, para que? Acolher a diferença em nome de quem?
Avaliar agora mudou de figuração, por mais que se procure reagir a isso:
“Apesar de tudo, se move!” Avaliar lida com o nome e a nomeação em uma
atribuição de valor, no ato de a-valorar, estimar o que vale. Avaliar pressupõe uma
tríade: Avaliador, Avaliado, Avaliação. De modo dialógico, há uma relação de agentes,
em que não há o que ensinou e aquele que aprendeu, e sim o que se aprendeu em
um processo dialógico construtivo.
Nessa perspectiva de avaliação, ninguém é excluído do processo. O que se
avalia não é a adequação a um modelo predefinido e formalizado, mas a efetivida-
de do florescimento singular. De maneira ampla, cada um aprende na medida de
sua expansão e de sua conexão com suas circunstâncias existenciárias. Cada um é
holograma da totalidade vivente em seu próprio e único lugar.

Figura 9 — Esquema geral do processo avaliativo polilógico transdisciplinar

Também os conceitos de Avaliação, Avaliador e Avaliado sofrem uma torção


salutar: um campo dialógico de agentes em diferentes níveis de experiência. Todo
152 TRANSCICLOPÉDIA EM DIFUSÃO DO CONHECIMENTO

cuidado é pouco no trato com a Diferença de cada um. Uma Diferença, entretanto,
que é uma igualdade originante. O Avaliador aparece desse modo como um esperto,
um artesão em sua arte de educar. O Avaliado se presentifica como agente avaliado.
Trata-se de um reconhecimento de valor. Entretanto, o que é o valor que se deve
reconhecer no agente avaliado?
Seguramente, trata-se de um valor pertencente a uma determinada tradição
histórica. Há história em toda valoração. O Avaliador é mediador da espécie segundo
determinado modo cultural. O Avaliado é o indivíduo que se reconhece implicado
na espécie a partir do seu lugar único — próprio e apropriado. O aprender em que
está implicada a avaliação polilógica diz respeito ao processo de individuação que
sempre ocorre em relação com o outro e com a totalidade Mundo.
Com essa ressignificação do conceito de avaliação, é necessário reconhecer que
o que se faz regularmente com o que se chama avaliação, não avalia nas dimensões
propostas, mas examina e classifica segundo as normas de uma regulação monológica
e rígida, excludente e classificatória.
O que Galeffi chama de Avaliação Polilógica, pressupõe outra ação de racionalidade:
a compreensão plural dos sentidos implicados. Pressupõe um educar completamente
outro, um educar no vivervivente.
E por onde começar? Da descrição do que não se encontra dado nem objetivamente
nem subjetivamente, mas se encontra velado em seu próprio evento necessitando de
uma elucidação apropriadora. Por isso, é sempre necessário interpretar e traduzir para
a língua própria os ditos e feitos históricos. E todo dito será sempre passagem, será
sempre outro na mesmidade do que é. Quando nasce a escola formal nasce também o
modo de avaliar coercitivo, autoritário, subordinador. E quando nasce a escola formal?
Galeffi diz que nos moldes conhecidos, a escola formal é um acontecimento da
modernidade europeia e dos estados totalitários aí constituídos. Entretanto, suas raízes
são medievais e antigas. Medievalmente, ela toma para si o modelo escolástico. Da
Antiguidade, ela extrai a moralidade exemplar das fábulas pedagógicas e seu influxo
determinista na psique humana (o medo, o temor, o pavor, a submissão simbólica a
falsa transcendência). Da Escolástica, a escola moderna tira para si o princípio de auto-
ridade externa e a relação de subordinação mestre-discípulo. Nesse âmbito, a avaliação
é uma prova e uma provação, um exame do aprendizado, um julgamento moral severo,
e se baseia no aprendizado da submissão à repetição do dito autorizado. A prova é um
instrumento moral de coerção e disciplinamento conveniente. A avaliação da potência
do outro e da singularidade é impensável, pois o educar consiste em transmitir um
cabedal de conhecimentos autorizados e dogmáticos.
TRANSCICLOPÉDIA EM DIFUSÃO DO CONHECIMENTO 153

Em nenhum momento a autoridade pode ser contestada pelo aluno — aquele


que como “criança de peito” (este é o significado do verbo álere latino, de onde deriva
a palavra aluno) ainda não tem luz própria, mas irá recebê-la do mestre ou autoridade
instituída. As inteligências rebeldes são aí condenadas e punidas. A punição é o ins-
trumento coercitivo por excelência: a punição moral (uma moral de escravos). A prova,
aliás, é um correlato da punição, associando-se teologicamente, ao pecado original.
Da Modernidade, a escola extrai a inspiração de uma autojustificação racional que
reifica o modelo autoritário paternalista como a lei da vida social universal. A Razão
é a senhora dos destinos humanos. A razão se torna a rainha do mundo, sua legítima
senhora. Nesse sentido, a objetividade científica se faz fundamento para uma educação
racionalmente ordenada. É urgente agora sair do círculo vicioso da autojustificação
racional moderna que considera eficaz o regime de punição, classificando e excluin-
do, e não vê motivos para mudar isso, como se tudo permanecesse igual ao que foi
sendo como foi a melhor maneira para tomar como exemplo e como modelo a seguir.
Por incrível que possa parecer, para certas pessoas ilustres, não há nada de incomum
acontecendo no mundo. Desse modo, já estaria tudo dado. Mais nada a fazer. É só
acomodar-se ao já funcional e comprovado. Desconfiar disso é uma maneira livre de
libertar-se dos entraves semióticos e interdições simbólicas porque urge esclarecer e
cuidar, colaborar e reunir, conjugar e distribuir. Avaliação Polilógica, portanto, para
uma ciência do educar transdisciplinar. Uma ciência-arte, melhor dizendo, por que,
sem elegância e corte, o que se pode esperar do fazer humano? Deixar o outro ser uma
comum-responsabilidade a partir do comum pertencimento inviolável.
Para Galeffi, a avaliação polilógica, ao embasar-se em uma ciência polilógica trans-
disciplinar, não valoriza a comparação e sim o reconhecimento da diferença de cada
um. A comparação se justifica em dadas situações profissionais condicionadas. Mas não
se justifica negar a potencialidade do valor de quem quer que seja, ou obrigar alguém
a ser aquilo que não quer ser. O princípio da soberania do outro em formação é um
indicativo do cuidado com a potência do que está em formação. Fala-se da formação
básica, daquela sem a qual não se pode conceber a realização do comum-pertencimento
de todos com tudo. O avaliar projetado tem, assim, uma ciência polilógica transdisci-
plinar como terreno epistemológico a partir do qual pode operar como ação criadora.
Autoconhecimento, teorias da simplicidade e da complexidade, diferença ontológica
de ser e ente, comum-pertencimento de ser-ente, coexistência de diferentes níveis de
Realidade e de percepção, lógica do terceiro incluído são as palavras-chave que arti-
culam a consistenciação verbal do Avaliar Transdisciplinar — Polilógico.
154 TRANSCICLOPÉDIA EM DIFUSÃO DO CONHECIMENTO

Figura 10 — Diagrama dos horizontes da Ciência Polilógica Transdiscilinar

Para Galeffi, isso projeta também a triunidade do aprender que se vai avaliar:
a reunião dos termos capacidades, competências e habilidades em uma articulação
polilógica. Pode-se, assim, tirar partido dos termos capacidade, competência, habili-
dade. Na síntese dos elementos operada pela intuição MVM-SupraMVM, capaci-
dade é poder-ser, competência é saber-ser, habilidade é aprender-fazer-ser. Reunindo a
triunidade do aprender, sem potência não pode haver ser, sem saber não pode haver
competência, sem aprender e fazer não pode haver habilidade. Assim, a triunidade
do aprender se abre para uma polilógica acional. Trata-se de uma ação de poder, de
saber e de aprender a fazer. Poder é capacidade, saber é competência, aprender-fazer
é habilidade. Reunindo capacidade, competência e habilidade se projetar um único
feixe de sentido: aprender que é um poder e um saber.
TRANSCICLOPÉDIA EM DIFUSÃO DO CONHECIMENTO 155

Figura 11 — Diagrama da triunidade do aprender na redução às capacida-


des, habilidades e competências laborais

Há aqui uma intenção de usar a gramática educacional em formação no século


XXI. Uma intenção de reunir os esforços na direção de um projeto humano funda-
do no afeto e na aprendizagem compartilhada. Um projeto sustentável para a vida
humana e suas relações de comum-pertencimento à Totalidade Vivente.

Figura 12 — Diagrama dos âmbitos comuns e específico do Educar


Transdisciplinar
156 TRANSCICLOPÉDIA EM DIFUSÃO DO CONHECIMENTO

Trata-se de se apresentar também o plano técnico do avaliar polilógico. Com-


preende-se por técnicas de avaliação todo e qualquer procedimento regulador de
aprendizagem, no sentido do movimento de construção/elaboração de ações formativas,
tendo em vista o alcance e domínio dos meios de desenvolvimento humano autônomo
e criador — arte de avaliar. Nessa medida, as técnicas são processos instruídos por
aprendizagens continuadas, pois dependem da prática. A prática configura a técnica.
Daí ser possível projetar instrumentos técnicos de ação e modelagem educacional,
formatividade aprendente. Isso é inevitável. Sem instrumentos não há produção cul-
tural. A instrumentalidade, portanto, também compõe a Avaliação Polilógica. Como
meio de destacar o caráter diverso da Avaliação Polilógica, a imagem abaixo apresenta
a relação dos regimes de avaliação dominantes e a proposta da Avaliação Polilógica.
De qualquer modo, a proposição da Avaliação Polilógica não nega e nem
combate a existência da Avaliação Monológica instituída e reguladora. Trata-se de
mudar a forma de regulação, que será sempre inevitável para qualquer organismo
articulado. A questão, portanto, não é negar a regulação e sim afirmar uma regulação
polilógica, plurifocal por princípio.

Figura 13 — Diagrama comparativo entre o regime disciplinar e o


transdisciplnar

Assim, aparece a diferença de foco entre a Avaliação Monológica dominante


e o foco da Avaliação Polilógica, como se pode apreciar nas representações abaixo.
TRANSCICLOPÉDIA EM DIFUSÃO DO CONHECIMENTO 157

Figura 14 — Diagrama dos campos focais da avaliação monológica

Figura 15 — Diagrama dos Sentidos da Avaliação Polilógica

Agora interessa saber como fazer-aprender a ser-sendo? Como aprender a ava-


liar polilogicamente? O que é certo e o que é errado fazer na Avaliação Polilógica?
158 TRANSCICLOPÉDIA EM DIFUSÃO DO CONHECIMENTO

Figura 16 — Perguntas fundamentais da Avaliação Polilógica

Que dispositivos e que instrumentos são necessários para avaliar polilogica-


mente? Segundo Galeffi (2017), há a disposição sensível e a disposição artística, o
pensamento e a ação como dispositivos. Fazer falar, fazer escrever, fazer ouvir, fazer
sentir, dialogar, acolher o singular como plural, reconhecer a diferença, saber-sentir,
saber-pensar, saber ser-com saber fazer são instrumentos do avaliar polilógico. Todo
instrumento tem o sentido do operar e modelar a forma formante. O instrumento é
o meio da expressão. Por isso, é preciso sempre aprimorar e refazer os instrumentos
porque só se aprende através de instrumentos ou meios de expressão. Para construir
uma casa, é preciso ter os meios materiais, energéticos e mentais para pôr-em-obra
a casa. Para realizar uma avaliação polilógica, os instrumentos são as palavras e as
coisas, o pensamento e a ação: disposição sensível como disposição artística.
TRANSCICLOPÉDIA EM DIFUSÃO DO CONHECIMENTO 159

Figura 17 — Dispositivos e instrumentos da Avaliação Polilógica

Galeffi projeta, em um ato brincante, as “competências” da Avaliação Polilógica


do Educar Transdisciplinar.

Figura 18 — Competências do Educar Transdisciplinar


160 TRANSCICLOPÉDIA EM DIFUSÃO DO CONHECIMENTO

Galeffi concebe os limites da Avaliação Polilógica em uma aproximação inicial


porque se está lidando com a condição humana em sua vasta complexidade e não se
pode pretender abarcar a totalidade por uma modulação teórica qualquer. Portanto,
mais uma vez, tudo aqui é pretexto para a costura do pensamento articulador da
totalidade sem totalizar pela redução a esquemas conceituais, abstrações mortas.

Figura 19 — Limites da Avaliação Polilógica

Têm-se, assim, algumas consequências da Avaliação Polilógica:


• A avaliação polilógica não é partitiva e sim cooperativa. Sua função não é
a de valorar os padrões prefixados do conhecimento já normatizado, mas
fazeracontecer o florescimento potente de quem é avaliado, em sua valência
singular e solidária.
• A avaliação polilógica é um processo de conhecimento em que não se
transmite apenas o já dado pela tradição, mas se potencializa o fazer do
outro em seu agir próprio e apropriado: ato aberto de criação do ser-com.
• A avaliação polilógica não admite polarizações do tipo subordinante, e o
que se avalia não é apenas um dado sujeito/objeto ou uma dada habilidade
ou capacidade cognitiva do mesmo, mas o conjunto de suas condições de
existência em suas relações gerativas potenciais e atuais.
• A avaliação polilógica não possui modelo ideal a partir do qual
­quantificadores (medidores) de valor são estabelecidos porque ela parte
da condição do ser-nomundo-com em suas infindáveis possibilidades de
realização múltipla. Ela não teme a multiplicidade e a diversidade porque
TRANSCICLOPÉDIA EM DIFUSÃO DO CONHECIMENTO 161

o que importa em sua gênese é o alcance de um modo de ser altivo, digno,


feliz, sem perder de vista a concreta e árdua condição humana.

Trata-se de realizar a avaliação polilógica, tendo-se presente que não se irá com
isso aquilatar o chamado rendimento relativo à aquisição de um dado conhecimento
técnico ou conteudístico. Nesse sentido, o exercício tem por fim a concretização
vivencial de uma possibilidade em construção: a realização do avaliar como ato de
aprendizado amoroso do ser-no-mundo-com, estruturando-se em quatro campos
complementares: o ontológico, o epistêmico, o ético e o estético.

Figura 20 — Diagrama dos campos acionais do Educar Transdisciplinar e


sua Avaliação Polilógica

Tais campos ou planos de imanência, de referência, de composição e de con-


sistenciação são impensáveis separadamente. Eles formam uma unidade indivisível
no âmbito do ser-sendo — em cada caso singular. Nesse sentido, eles possibilitam
todo e qualquer fenômeno humano em sua constituição e circunstâncias próprias.
Assim, o que importa é a totalidade do nosso ser-no-mundo-com, em cada caso,
em cada circunstância específica e singular. Em outras palavras, importa sempre
aprender-a-sersendo.
162 TRANSCICLOPÉDIA EM DIFUSÃO DO CONHECIMENTO

Tudo isso implica em outros horizontes para o educar daqui por diante, pois não
se trata de remendo e arranjo sem-arte, e sim de coragem e altivez de espírito, de força e
de maleabilidade, de vigor e compaixão, criatividade e justeza, integridade e esperteza,
concretude e paixão pelo viver-com-arte — na conjuntura do Simples. O Complexo!
A proposta de Galeffi não se harmoniza, apesar de poder parecer, com a teoria
das inteligências múltiplas porque crê na diferença como diferença, isto é, a ideia de
inteligências múltiplas é uma representação imprecisa da complexidade gerativa da
natureza humana. Nesse sentido, antes de inteligências múltiplas, estamos falando
de condição de origem múltipla — condição ontológica: a diferença como fundante
da igualdade partilhada — o ser-no-mundo-com: passagem, fluxo, acontecimento,
ser-sendo na partilha incondicional. Desse modo, a ação avaliativa polilógica implica
em disposição aprendente radical: seu foco é a aprendizagem com-sentido: aprendizagem
própria e apropriada. Ela pode ser realizada em qualquer campo de conhecimento,
inclusive de treinamento para situações de risco permanente, desde que conte com
educadores realizadores de vida criadora. Essa é a única condição desta proposta: a
existência dos que são capazes de cuidar criativamente, amorosamente do educar
vivervivente: Educar com arte na bondade além de bem e de mal: doação do livre.
Uma bondade que sabe cortar e que em seu vigor possui a violência dos gestos livres.
Galeffi fala de quatro critérios projetados no âmbito polilógico do ser-no-mundo-com:
o afetivo, o conceitual, o ético e o poético: Homo sapiens-demens — Homo polilogicus.

Figura 21 — Critérios para investigar o desenvolvimento humano


transdisciplinar
TRANSCICLOPÉDIA EM DIFUSÃO DO CONHECIMENTO 163

Galeffi também joga com tensões e interrogações, como modo de provocar


processos polilógicos de construção na modelação do avaliar transdisciplinar.

Figura 22 — Tensões interrogativas na Avaliação Polilógica

Para Galeffi, na Avaliação Polilógica, aprende-se a avaliar avaliando-se o ver, o


pensar, o viver junto, o fazer. Uma obviedade irritante, pelo menos, desconcertante.
164 TRANSCICLOPÉDIA EM DIFUSÃO DO CONHECIMENTO

Figura 23 — Diagrama do ato avaliativo polilógico

Galeffi projeta alguns parâmetros da Avaliação Polilógica, levando-se em conta


a liberdade, a solidariedade, a comunidade e a autonomia.

Figura 24 — Parâmetros da Avaliação Polilógica


TRANSCICLOPÉDIA EM DIFUSÃO DO CONHECIMENTO 165

Galeffi diz que os parâmetros apontados são para-metros — estão além da


metrificação ocupando o lugar de qualificadores. São parâmetros na medida em
que o campo da Avaliação Polilógica tem como horizontes liberdade, solidariedade,
comunidade, autonomia. O que isso significa no plano da ação?

Figura 25 — Diagrama de indicadores qualitativos para a realização


da Avaliação Polilógica
166 TRANSCICLOPÉDIA EM DIFUSÃO DO CONHECIMENTO

Figura 26 — Diagrama das Intensidades Vivenciais como operadores da


Avaliação Polilógica

Figura 27 — Diagrama das Intensidades Vivenciais nas diversas dimensões


aprendentes
TRANSCICLOPÉDIA EM DIFUSÃO DO CONHECIMENTO 167

Figura 28 — Sentido focais da Avaliação Polilógica

Figura 29 — Diagrama de orientação temporal e espacial da Avaliação


Polilógica: horizontes de projeto e processos ontológicos
168 TRANSCICLOPÉDIA EM DIFUSÃO DO CONHECIMENTO

Figura 30 — Tensores acionais da Avaliação polilógica

Figura 31 — Dinâmica acional da Avaliação Polilógica

Falando da prática da Avaliação Polilógica Transdisciplinar, Galeffi considera


que ela é concebida e realizada como vivência transdisciplinar da arte de aprender.
Como uma transdisciplina, tem como tarefa investigar a função aprendente da
avaliação, compreendida como prática dialógica. Para tanto, procura diferenciar
e reconhecer as modalidades polilógicas da avaliação como arte de aprender, pela
reunião das dimensões que constituem o ser humano em sua correlação com a
totalidade que a tudo reúne no mesmo Um-Todo.
TRANSCICLOPÉDIA EM DIFUSÃO DO CONHECIMENTO 169

A arte de aprender é compreendida em seu sentido próprio: aprender é o modo de


ser do humano no mundo; é o tornar-se incessante do ser que quer sempre ser. O apren-
der é uma arte. A arte de aprender é o exercício da vida em seu devir. A vida humana
em sua dinâmica de comum-pertencimento com a totalidade do que é, vê, percebe,
sente, concebe, conhece, pensa, formula, convive, ama, odeia, compartilha, mora,
habita, coage, faz, constrói, realiza, concretiza, planeja, espera, potencializa, projeta.
Para Galeffi, a vida humana é um acontecimento devindo. Como movimento
em ser, a vida não se encontra realizada no passado e nem no futuro, apesar de
manter com esses tempos uma estreita relação memorial. O eixo da avaliação po-
lilógica é o em-sendo de cada educando em suas dimensões constitutivas. Dele se
avalia o ver, o sentir, o perceber, o conhecer, o pensar, o conviver, o crer, o habitar,
o morar, o dialogar, o ouvir, o falar, o escrever, o construir, o realizar, o fazer-com.
A avaliação polilógica não é um meio de certificação da aquisição de conteúdos de
conhecimentos linearmente concebidos, mas o meio de reunião em que se exercita
o diálogo aprendente em si mesmo.
Assim, o importante nessa avaliação não é medir a aquisição de conhecimentos
específicos, e sim cuidar para que o outro em formação possa florescer em seu auto-
desenvolvimento compartilhado. As dimensões aprendentes indicadas constituem os
planos de imanência de uma compreensão articuladora do desenvolvimento humano em
sua univocidade múltipla, em sua diferença radical. Nessa medida, é preciso sempre
aprender o caráter aberto e imprevisível da avaliação transdisciplinar: aprender a
aprender a ser. Desse modo, os horizontes da avaliação polilógica ou transdisciplinar
são o ver, o conhecer, o pensar, o viver juntos, o fazer, o ouvir, o falar, o escrever, o ser.
Configurados desses modos, tais horizontes indicam os campos de atividades
das práticas aprendentes, isto é, apontam para a arte de aprender em suas múltiplas
valências e dimensões. O aprendizado de si mesmo, a arte de aprender a ser, comporta
os múltiplos níveis/planos/dimensões do real e da realidade. Isto muda os rumos
da educação humana daqui para frente, que deve aprender a cuidar da totalidade
conjuntural do ser humano em sua abertura para o ser-no-mundo-com.
Para Galeffi, o ser humano deve aprender a ser-sendo: deve aprender a ver, a
perceber, a sentir, a conhecer, a pensar, a conviver, a fazer. Este dever indica para a
possibilidade do ser humano realizar a sua reunião com a totalidade conjuntural,
agindo a partir de uma atitude aberta ao comum-pertencimento de tudo. O ser hu-
mano não é o ente mais importante do universo. Ele é um ente entre tantos outros
entes. A visão de mundo antropocentralizada dá lugar a uma visão cosmodifusa. Essa
visão põe para o ser humano sua corresponsabilidade com o todo da vida-vivente.
170 TRANSCICLOPÉDIA EM DIFUSÃO DO CONHECIMENTO

Partindo-se do pressuposto de um ser que sempre é-sendo, para Galeffi, o ob-


jetivo geral da avaliação polilógica é configurar uma rede de sentidos e significados
para a fundamentação e prática de uma educação transdisciplinar, como ponte epis-
temológica para a vivência avaliativa da arte de aprender. Como se pode, entretanto,
avaliar o ser em seu desenvolvimento nessa perspectiva transdisciplinar? A resposta é
simples: se pode avaliar dialogando. O diálogo é o caminho da avaliação polilógica.
O importante não é o acúmulo de informações, mas o reconhecimento do alcance
compreensivo de cada região do nosso ser-com. Na dialogia entre quem avalia e quem
é avaliado, o importante não é o julgamento e sim a relação amorosa de um ouvir e
de um falar conjuntamente. Na dinâmica da avaliação polilógica, o ver, o experien-
ciar, o habitar e o propagar se dão conjuntamente. Entretanto, isto não se baseia em
esquemas formais que devem guiar o ato aprendente de um suposto “fora” para um
suposto “dentro”. Não se trata de constatar o “erro” ou o “acerto” fundamentado em
um sistema fechado, autossuficiente e ideal, e sim de vivenciar propriamente o alcance
de uma compreensão articuladora como individuação do próprio ser.
Para Galeffi, isso se pode propriamente chamar de autoconhecimento. A ava-
liação não se presta para medir ou julgar de acordo com uma escala de referência
objetivamente dita, mas para fazer-acontecer o próprio de cada ser humano em sua saga
poemático-pedagógica. A avaliação, desse modo, é um campo que perpassa todos os
momentos de um processo educacional transdisciplinar porque o foco pedagógico
não se concentra mais na aquisição de conteúdos determinados, mas no modo de
aprender próprio de cada um, em sua singularidade irrepetível. Nessa medida,
educador e educando são pares dialógicos implicados. O educador é educando e
o educando é educador. A educação transdisciplinar lida com o acontecimento do
ser-sendo e não com a regulação de um modelo de formação monológica baseado
na repetição mecânica e maquínica de modelos determinados.
Para Galeffi, não pode haver modelos ideais a seguir na educação transdisci-
plinar porque ela não é uma educação monológica e sim polilógica. A equalização
dos níveis de Realidade que permanecem em cada ser-sendo não pode limitar-se
a programações generalistas porque o que está sendo equalizado é um sersendo,
um ser-corpo-existente. A dialogia da avaliação polilógica é esse encontro com a
diferença que se lança na saga poemática do ser. Ela recolhe na relação de comum
aprendizado de educador-educando a abertura do tornar-se conjugado: verbo ser
sempre outro, sempre o mesmo.
Assim, a avaliação polilógica propõe uma ressignificação do verbo avaliar.
Avaliar é primacialmente dar valor, fazer valer, reconhecer o valor. Do latim
TRANSCICLOPÉDIA EM DIFUSÃO DO CONHECIMENTO 171

valeo, valere, valor, ter valor, valer, avaliar tem pelo menos seis acepções recorrentes:
1ª — ser forte, vigoroso, valente; 2ª — estar com saúde, passar bem, estar em bom estado;
3ª — ter força, ter crédito, exceder (em alguma coisa), levar vantagem, estar em voga;
prevalecer; ter bom resultado, surtir efeito; ser eficaz; cumprir-se; ter influência, contri-
buir para; ser capaz de, poder; 4ª — Ser bom, eficaz (ter medida), ter esta ou aquela
virtude, ser medicinal; 5ª — Valer (em relação ao dinheiro); valer um preço; 6ª — Ter
esta ou aquela significação, significar. Avaliar, portanto, aponta para o ter afeto, ter
estima. valorizar o outro, acolher a diferença, corresponder ao outro, valorar o
que vale, reconhecer, potencializar, atualizar, dialogar, partilhar, ter amor etc.
O horizonte delineado por Galeffi, a pré-compreensão considerada, aponta
para o éthos da avaliação polilógica: abertura para o aberto na proveniência do ser
como fluxo e passagem, nem início e nem fim.
Com essa ressignificação do conceito de avaliação, é necessário reconhecer que
o que se faz regularmente com o que se chama de avaliação educacional, não avalia
nas dimensões propostas, mas examina e classifica segundo as normas de um deter-
minado regime de signos, de uma determinada regulação burocrática instituída e
hegemônica — monologicamente autocêntrica e excludente. O que Galeffi chama de
A avaliação pressupõe uma outra forma de racionalidade: a compreensão polilógica
dos sentidos implicados. Pressupõe um educar completamente outro, um educar
com-avida, um educar fluxante.
Reunindo o sentido, o autor compreende por avaliação polilógica uma rela-
ção-vivência dialógica própria e apropriada, um correlacionar-se com o advento
dialógico. Advencial, a avaliação é um encontro com o sentido mostrando-se no
outro. O outro receberá sempre do outro a emanação de sua florescência. Neste ser
passagem consiste na avaliação. Avalia-se o fluxar no acontecimento dialógico. A
avaliação é o advento da dialogicidade comum. Avalia-se o acontecimento do outro
no caminho de sua vida, conjuntamente. Avaliação polilógica é deixar ser o outro
o caminho de sua vida.
Para Galeffi, isso pressupõe uma revolução humana necessária. Revolução
no nosso modo de ser. Essa revolução não pode ser pensada senão a partir das cir-
cunstâncias de cada realização. Uma utopia, sem dúvida. Portanto, algo que só se
realiza no instante eternal do tempo presente, o desconhecido enquanto aconteci-
mento: abertura para o aberto. O diálogo é o lugar da avaliação polilógica, diálogo
da mente velha condicionada com a mente nova criadora: reconhecimento do modo
de ser-nomundo e efetuação da vida abundante; compreensão do instituído e do
instituinte, do ente e do ser, do tempo e do instante, do lugar e da morada. Diálogo
172 TRANSCICLOPÉDIA EM DIFUSÃO DO CONHECIMENTO

como confluência do ser e do ente unidos no mesmo sem-fundo, pois o ser dispõe
para o ente sua abertura originária. O diálogo acontece na apropriação do ser e do
pensar: comum-pertencimento de tudo. Assim, a diferença ontológica rasga o véu
do ser em sua constituição própria: sua abertura germinal.
Galeffi afirma que ser-no-mundo é a condição para o acontecimento apropria-
dor do diálogo: avaliação do acontecimento em seu fluxar. O diálogo dialoga. O
­diálogo é uma realização do encontro do ente com sua abertura para o ser. O diálogo
é uma escuta primordial. O diálogo é atentivo e amoroso em sua disposição para o
acontecimento na confluência do simples encontrar-se ouvinte do que diz o lógos,
em sua intensividade própria. Dialogar é escutar o lógos em seu alternar-se e ater-se
ao simples fluxar de tudo. Dialogar é ser-com intensidade abertura para o aberto.
Avaliar é o mesmo que dialogar no mais implicado sentido do termo.
A Avaliação Polilógica se mostra como um meio adequado para a ação transfor-
mativa transdisciplinar e se encontra aqui delineada em suas conexões e possibilidades
de ação criadora. O seu desenvolvimento se dará a partir de sua prática efetiva, o
que pede a presença dos que ousam experimentar o inusitado em sua simplicidade
incorrigível de Acontecimento.

REFERÊNCIAS
GALEFFI, Dante Augusto. Recriação do Educar. Epistemologia do Educar
Transdisciplinar. Berlin: Novas Edições Acadêmicas, 2017, 270p.

HOUAISS. Dicionário Eletrônico Houaiss da Língua Portuguesa 1.0 Rio de


Janeiro: Objetiva, 2005.
B
16. Biomimética

Javier Collado-Ruano

A revolução biomimética é uma das respostas mais inovadoras dos últimos


anos para proteger o meio ambiente e melhorar a qualidade de vida através de novos
hábitos de consumo e produção sustentáveis. O termo biomímesis provém do grego
antigo βίος (bios), vida, e μίμησις (mīmēsis), imitação.
Nos anos 1990, o termo biomímesis foi usado nos âmbitos disciplinares das
ciências materiais, da investigação cosmética e da robótica até que a escritora de
ciências naturais Janine Benyus o popularizou com o livro Biomimicry: Innovation
Inspired by Nature. Desde então a biomimética é entendida como uma nova ciência
que contempla e valoriza a natureza como modelo, medida e mentor, buscando a
inspiração e a imitação dos processos naturais para aplicá-los a sistemas sociais e,
deste modo, encontrar soluções inovadoras a problemas complexos.
“[...] A biomímesis se vale de um standard ecológico para julgar a correção das
nossas inovações. Após 3,8 bilhões de anos de evolução, a natureza tem descoberto
o que funciona, o que é apropriado e o que perdura”, explica Benyus (2012, p. 13),
afirmando que a biomimética “[...] inicia uma era baseada não no que podemos
extrair do mundo natural, senão no que este pode nos ensinar”.
Essa linha científica está em harmonia com a antiga cosmovisão dos povos
indígenas e aborígenes, que compreendem o carácter sagrado da natureza como uma
conexão espiritual. Por esse motivo, a ciência e a espiritualidade estão integradas
de forma transdisciplinar na visão biomimética, com o fim de aplicar a sabedoria
da natureza a diversos campos do conhecimento: economia, engenharia, desenho,
arquitetura, urbanismo, indústria, tecnologia, arte, política, educação, energia etc.
(COLLADO, 2015).
Como é possível apreciar na figura 1, Benyus (2012) identifica nove prin-
cípios operacionais básicos da Vida na Natureza, que devem ser promovidos para
alcançar um desenvolvimento sustentável, resiliente e regenerativo ­(COLLADO,
2016, 2017).
176 TRANSCICLOPÉDIA EM DIFUSÃO DO CONHECIMENTO

Figura 1 — Princípios da Vida na Natureza. Fonte: Benyus (2012).

Não podemos continuar explorando os recursos naturais da Terra. Precisamos


nos inspirar neles, de forma biomimética, para solucionar os desafios ambientais,
econômicos, políticos, sociais e espirituais do planeta. A biomimética é inspirada pe-
las lições de sobrevivência, resiliência e coevolução que a natureza nos brinda, assim
como sofisticadas estratégias de diversificação, que têm sido testadas num constante
processo de ensaio e erro, desenvolvido durante milhões de anos. A humanidade tem
pela frente a maior responsabilidade histórica de todos os tempos: alcançar mecanismos
de produção e consumo sustentáveis, que permitam a regeneração dos ecossistemas
naturais, sem colocar em perigo as gerações vindouras. A biomimética representa a
união teórico-prática entre o Norte e o Sul, além de uma ferramenta epistêmica cria-
tiva para combater os desafios da mudança climática, que é o perigo mais urgente na
atualidade. É nessa linha que Benyus reconhece nove princípios operacionais básicos
que a vida desenvolve na natureza, os quais devem ser usados nos processos de uma
formação humana genuinamente transdisciplinar (Nicolescu, 2008):
1. A natureza cavalga sobre a luz solar: a energia que absorvemos, quase todas
comunidades naturais, provém da fusão nuclear que o sol realiza há 150
milhões de quilômetros. “As energias solar, eólica e marinha, assim como
o biodiesel, derivam todas da luz solar atual” (BENYUS, 2012, p. 321).
Quando queimamos restos fósseis como o petróleo, gás natural ou carvão
estamos usando a luz solar antiga que ficou aprisionada (comprimida no
meio sem oxigênio) nos corpos de animais e plantas do período Carbo-
TRANSCICLOPÉDIA EM DIFUSÃO DO CONHECIMENTO 177

nífero. Ao realizar a combustão, estamos completando “[...] o processo


de decomposição de golpe, vertendo o carbono armazenado à atmosfera
em grandes quantidades e destruindo assim o preceito ecossistêmico de
nada de fluxos grandes” (BENYUS, 2012, p. 321). Tendo em conta que a
biosfera Gaia é um sistema fechado e autopoiético (LOVELOCK, 1992),
essa atitude seria o equivalente a queimar os moveis dentro da nossa casa
com as janelas fechadas. Infelizmente, os combustíveis fósseis são muito
baratos, e a sociedade atual de consumo, adicta à energia, dirige-se à ex-
ploração total desses recursos naturais. Um bom exemplo seriam as folhas,
que realizam a fotossíntese (decomposição bioquímica da energia solar em
nutrientes) “[...] com uma eficiência quântica de um assombroso 95%”
(BENYUS, 2012, p. 319), mais de quatro vezes a dos melhores painéis
solares de construção humana.
2. A natureza só gasta a energia que necessita: sendo certo que a segunda lei
da termodinâmica converte a energia em calor e uma parte da energia
deixa de ser aproveitável, a natureza sabe como obter energia de forma
eficiente através de diversas conexões ecossistêmicas. Com o fim de fazer
um uso ótimo do habitat limitado, cada organismo encontra um nicho
e só usa o que necessita para sobreviver e evoluir. Desse modo, as lições
dos sistemas naturais podem nos orientar a estabelecer novos usos para a
energia. Devemos reconsiderar o que estamos maximizando (a produção)
e nos concentrar mais na otimização, segundo o modo como fazem os
sistemas naturais, que invertem a sua energia ao maximizar a diversidade
para se fazerem mais eficientes como reciclagem de nutrientes orgânicos
e minerais (BENYUS, 2012, p. 322).
3. A natureza ajusta a forma à função: a natureza constitui um sistema alta-
mente cooperativo feito por densas interações entres os seus componentes.
Toda a rede ecossistêmica tem sido construída nos limites dos recursos
disponíveis e, como resultado, o sistema inteiro tem alcançado uma coe-
rência interna de intrincados padrões orgânicos cujo tamanho adapta-se
à função. A natureza otimiza em lugar de maximizar. Pelo contrário, os
nossos sistemas industriais “[...] seguem apostando em taxas elevadas de
produtividade e crescimento, por um caudal máximo de materiais ­extraídos
da terra e convertidos em flamantes artigos novos. Cerca de 85% dos artigos
manufaturados se convertem rapidamente em lixo” (BENYUS, 2012, p.
323). Com efeito, a economia globalizadora atual define o seu êxito pelo
178 TRANSCICLOPÉDIA EM DIFUSÃO DO CONHECIMENTO

rápido crescimento e cria a ilusão de medir o progresso e o desenvolvimento


humano pelos índices como o PIB e o PIN. Pelo contrário, os organismos
coevoluem na natureza se adaptando às mudanças dos outros, ou seja, fa-
zendo com que uma estrutura desempenhe não uma, senão várias funções
no seu entorno. “[...] A lição é que temos que retardar a transformação
de materiais e acrescentar a ênfase na qualidade e não na quantidade de
artigos novos” (BENYUS, 2012, p. 323).
4. A natureza recicla tudo: “[...] Uma das lições chave da ecologia de sistemas
é que à medida que um sistema acumula biomassa (peso total da matéria
viva), necessita mais reciclagem para evitar o colapso” (BENYUS, 2012,
p. 312). A existência de cadeias tróficas nos ecossistemas tem um esquema
organizativo circular em que os produtores, consumidores e decompositores
têm evoluído conjuntamente em um ciclo fechado para impedir a perda
de recursos: “[...] todo resíduo é alimento, e todo o mundo reencarna-se
no corpo do outro” (BENYUS, 2012, p. 313). O problema da cultura
humana de produção e consumo é que continua acumulando biomassa
sem uma rede de ciclos fechados. Nesse sentido, Benyus (2012) explica
vários exemplos de “economia sem resíduos” nos países nórdicos europeus.
Neles existem pequenas redes tróficas de ecologia industrial com ciclos fe-
chados, onde o intercâmbio de informação e o desejo mútuo de aproveitar
os resíduos possibilitam que todos os produtos que saem manufaturados
destinados ao mercado voltem a entrar no sistema de produção através de
leis de recuperação e sistemas de reembolso.
5. A natureza premia a cooperação: nos ecossistemas maduros as estratégias
cooperativas entre os organismos são tão importantes como a competência.
De acordo com a hipótese da endosimbiose, de Lynn Margulis (2002),
a simbiose entre duas espécies é um elemento fundamental do progresso
evolutivo natural há bilhões de anos. Os ecossistemas naturais operam
em uma complexa rede simbiótica de relações mutuamente benéficas e
quando se agrupam em grande número, constituem órgãos e organismos.
De fato, a teoria endosimbiótica postula que o nosso corpo é, em realidade,
uma combinação de organismos unicelulares que conformam um enorme
organismo pluricelular. Traduzido para o sistema de produção humana, o
ecólogo industrial do Japão, Michiyki Uenohara, assinala que “[...] temos
artérias (vias pelas quais fluem os produtos desde o coração industrial até
o corpo da economia) de sobra, mais também necessitamos de veias, vias
TRANSCICLOPÉDIA EM DIFUSÃO DO CONHECIMENTO 179

de retorno dos produtos usados para que seus materiais possam se purificar
e se reutilizar” (BENYUS, 2012, p. 318). A lição aprendida, portanto, é
construir uma economia na qual as artérias e as veias tenham a mesma
importância, o que acarretaria a imitação de uma ecologia de sistemas de
ciclo fechado que reutiliza os recursos. Segundo Benyus (2012, p. 319),
um exemplo de cooperação pré-competitiva é constituído pelas marcas
estadunidenses Chrysler, Ford e General Motors ao desenvolverem alianças
para a fabricação de materiais padronizados que lhes permitam utilizar as
peças mutuamente.
6. A natureza conta com a diversidade: o enorme desenvolvimento da diversi-
dade da natureza deve-se a sua experiência de bilhões de anos em “ensaio
e erro”. A natureza caracteriza-se pelo enfoque multirreferencial que a
aleatoriedade produzida pela entropia (ruptura da ordem) tem permitido
com sua grande abertura flexível a novas anomalias. Essa flexibilidade
ecobiológica tem permitido uma grande variedade de animais e plantas
ao longo de bilhões de anos em todo o habitat do planeta Terra. Portanto,
a lição que aprendemos da natureza é a de que nosso sistema industrial
deve ser flexível para se adaptar às necessidades emergentes da cidadania
planetária, e ser tão diverso como o seu próprio meio e contexto para res-
peitar a singularidade regional, cultural e material do lugar.
7. A natureza demanda tecnologia local: geralmente, os ecossistemas naturais
estão conectados de maneira relativamente próximos no espaço-tempo.
Existe uma rica biodiversidade nos ecossistemas locais em que muitas
espécies locais coevoluem conjuntamente para se adaptarem às mudanças.
A tendência capitalista atual é uma economia global sem fronteiras na
qual os produtos manufaturados elaboram-se em países muito separados
geograficamente. Nesse sentido, devemos aprender da experiência e conhe-
cimento local que os povos indígenas possuem, já que “[...] a ideia de una
economia que se adéqua à terra e tira partido dos seus atributos locais nos
aproximaria mais dos organismos que têm evoluído para se converterem
em experts locais” (BENYUS, 2012, p. 339).
8. A natureza freia os excessos desde dentro: “[...] A biosfera (a capa de ar, terra
e água que sustenta a vida) é um sistema fechado, o que significa que não
importa e nem exporta materiais (com exceção dos travessos meteoritos)”
(BENYUS, 2012, p. 332). O caráter autopoiético da biosfera consegue que
a vida mantenha as condições que lhe são necessárias para se autorregular
180 TRANSCICLOPÉDIA EM DIFUSÃO DO CONHECIMENTO

através de um incessante intercâmbio entre organismos (fotossíntese, res-


piração, crescimento, mineralização, decomposição etc.). Mas o sistema
industrial global é um sistema aberto em que os “nutrientes” se transformam
em “resíduos” sem que haja uma reciclagem significativa. Essa dinâmica de
exploração dos recursos naturais e contaminação está mudando drasticamente
os processos naturais porque não podem reciclar as enormes quantidades
de CO2 jogadas na atmosfera. A resposta é um ecossistema industrial que
possa se integrar na biosfera sem danificá-la.
9. A natureza tira partido das limitações: a natureza tem aprendido que viver
com os recursos finitos é uma poderosa fonte de criatividade. Na natureza há
mecanismos de retroalimentação interna que otimizam o uso dos recursos
do entorno em constante equilíbrio, com moderação e sem devastá-lo. Isso
significa não hipotecar o futuro já que, do contrário, morrerá. A lição é que
o nosso sistema produtivo atual não pode continuar empurrando os limites
do planeta. A natureza nos ensina a florescer dentro dos limites biológicos,
sem estar em contínua expansão predadora. Pelo contrário, devemos “[...]
adaptar os sistemas humanos aos ecossistemas (biomímesis), lograr maiores
eficiências (ecoeficiência) e atuar sobre a demanda com medidas de autocon-
tenção (gestão generalizada da demanda)” (RIECHMANN, 2014, p. 28).

Sem dúvida, a identificação que Benyus (2012) faz dos nove princípios opera-
cionais básicos que a vida desenvolve na natureza, são totalmente incompatíveis com
a ordem socioeconômica capitalista atual. “[...] Se poderia dizer que o capitalismo
é a antítese metafórica dos processos naturais da vida: nele primam a exclusão, o
esbanjamento, a desregulação e as hoje chamadas deslocalizações, assim como os
fluxos especulativos alheios à produção real de bens e serviços”, escreve o filósofo
da natureza Luciano Espinosa (2007, p. 66), em comparação aos sistemas naturais
da biosfera nos quais “[...] operam circuitos que incluem todos os membros da rede,
os quais estão apegados ao terreno, ligados à satisfação das necessidades básicas e à
reciclagem constante de matéria e energia”. Essa comparação supõe, efetivamente,
a compreensão biocêntrica da vida na sua complexidade multidimensional. Uma
compreensão biocêntrica que deve ser promovida em todos os níveis educativos
para fazer frente às dinâmicas tecnoeconômicas globalizadoras que estão acabando
com a vida no planeta. A visão biomimética é uma ferramenta política, educativa e
epistemológica capaz de modificar o metabolismo socioecológico através de novas
simbioses entre os ecossistemas naturais e os sistemas culturais humanos de produção.
TRANSCICLOPÉDIA EM DIFUSÃO DO CONHECIMENTO 181

Em resumo, todos os processos de formação humana devem suscitar um diálogo


biomimético e transdisciplinar que fomente uma consciência crítica planetária por
meio de reflexões e atitudes solidárias globais que, em última instância, favoreçam
a aparição de novas propostas de organização social para construir outros mundos
possíveis.
Na filosofia da educação cosmoderna (COLLADO, 2018), a natureza representa
um metaponto de encontro civilizatório transhistórico entre todas as sociedades
do mundo, desde as consideradas mais arcaicas até as mais tecnológicas, porque
é a fonte energética e material que alimenta a todas elas para a sua sobrevivência
passada, presente e futura. A natureza também atua como uma fonte de inspiração
para todas aquelas pessoas criativas que procuram respostas na sabedoria intrínseca
de espécies que têm evoluído durante muito mais tempo que a humana. Daí porque
a biomimética é uma iniciativa inter-epistemológica que vem inspirando múltiplas
pessoas que trabalham com arte, arquitetura, música, engenharia, economia, medi-
cina, biologia, ecologia, educação e ciência de todo o mundo na história humana. A
dimensão criativa do ser humano é fundamental para se conseguir atingir os desafios
socioecológicos da nossa contemporaneidade antes que seja demasiado tarde.

REFERÊNCIAS
BENYUS, Janine. Biomímesis. Cómo la ciencia innova inspirándose en la natu-
raleza. Barcelona: Tusquets editores, 2012.

COLLADO RUANO, Javier. Biomimicry: A Necessary Eco-Ethical Dimension


for a Future Human Sustainability. Future Human Image, vol. 2, 23-57, 2015.

COLLADO RUANO, Javier. Educação nos objetivos de desenvolvimento


sustentável: um olhar transdisciplinar e biomimético a partir da grande história.
In: Perspectivas sobre ancestralidade afro-brasileira, educação, formação
de professores, tecnologias da informação e comunicação, teatro, ações
afirmativas, literature e patrimônio histórico e arquitetônico. Salvador: Kawo
Editora Bahia, 2006. p. 262-282.

COLLADO RUANO, Javier. O desenvolvimento sustentável na educação


superior. Propostas biomiméticas e transdisciplinares. Revista Iberoamericana
de Educación. (73), 203-224, 2017.
182 TRANSCICLOPÉDIA EM DIFUSÃO DO CONHECIMENTO

COLLADO RUANO, Javier. El paradigma de la cosmodernidad: reflexiones


filosóficas sobre ciencia y religión. Sophia: Colección de Filosofía de la
Educación, 24(1), p. 53-85, 2018.

ESPINOSA, Luciano. La vida global (en la eco-bio-tecno-noos-fera). LOGOS:


Anales del Seminario de Metafísica, vol. 40, 55-75, 2007.

LOVELOCK, James. Gaia: una ciencia para curar el planeta. Barcelona:


Integral, 1992.

MARGULIS, Lynn. Planeta simbiótico. Un nuevo punto de vista sobre la


evolución. Madrid: Debate, 2002.

NICOLESCU, Basarab. O Manifesto da Transdisciplinaridade. São Paulo:


TRIOM, 2008.

RIECHMANN, Jorge. Un buen encaje en los ecossistemas. 2.ed. de


Biomímesis. Madrid: Catarata, 2014.

.
17. Bitcoins

Iza Angélica Carvalho da Silva

São moedas digitais criptografadas baseadas no sistema peer-to-peer, ou seja,


ponto a ponto, de código aberto e que, no Brasil, ainda não possui o devido con-
trole da autoridade governamental, pois o governo brasileiro ainda não a reconhece
como uma moeda oficial e que ofereça lastro e garantias para a sua livre circulação.
Criada em 2008, pelo programador desconhecido Satoshi Nakamoto, dez anos
depois, ainda não se sabe se é pessoa física ou jurídica, a bitcoin foi desenvolvida
para ser uma moeda intermediária, sem permitir o controle do Estado. Ele utiliza a
plataforma blockchain para fazer a mineração de dados, como forma de negociação
e de multiplicação da moeda. (ULRICH, 2014).
A plataforma blockchain é considerada um dos principais pilares sob os quais se
sustenta a negociação com bitcoins. A blockchain é uma base de dados que viabiliza
a remessa e a propagação de valores ativos através da internet.
De acordo com Greve (2018), a blockchain surge com um intensa potência
disruptiva à medida que descentraliza serviços:

• eliminando a terceira parte da confiança, em detrimento de uma confiança


compartilhada;
• proporcionando disponibilidade e integridade de informações;
• revelando transparência e auditabilidade por ser uma plataforma de código
aberto;
• apresentando LRI de imutabilidade e de irrefutabilidade
• garantindo privacidade e anonimidade
• dispensando a intermediação
• possibilitando cooperação e inventivos

O blockchain veio permitir, segundo Greve (2018), mais segurança ao Siste-


ma Financeiro Global, uma vez que serve de plataforma para a negociação com
Criptomoedas, em especial o Bitcoin. O blockchain permite ao Sistema Financeiro
Nacional Regulatório estabelecer menores taxas com maior rapidez; proporciona
uma economia inclusiva, posto que 1/5 da população não tem acesso a bancos; e
favorece também uma explosão de ativos digitais.
184 TRANSCICLOPÉDIA EM DIFUSÃO DO CONHECIMENTO

Para Tapscott & Tapscott (2017), a inovação disruptiva do blockchain promove


a criação de um protocolo de confiança na internet, reinventa serviços financeiros,
põe a empresa no centro dos negócios e, ao mesmo tempo, abre espaço para outros
modelos, resolvendo o paradoxo da prosperidade ao possibilitar a cultura de novas
formas de negócios, a exemplo do mercado de Criptomoedas.
A criptomoeda Bitcoin é considerada uma inovação financeira que influencia
a especulação no mercado. Por estar suscetível a oscilações bruscas de preços de
outros ativos financeiros, tem como uma de suas características a alta volatilidade,
decorrente de variáveis objetivas e subjetivas, inerentes ao próprio mercado finan-
ceiro e de capitais.
Entendam-se aspectos objetivos aqueles que são fundamentados por indicadores
econômicos, como inflação, taxa de juros, câmbio, PIB, reservas internacionais etc.
Subjetivos são desenhados a partir de especulações do mercado, de interpretações
fundamentadas ou não em dados e/ou conjuntura econômica, política e social do
país e do mundo.
A ausência de controle governamental também pode ser considerada como
um dos fatores influenciadores para alta oscilação de preços no mercado, pois ela
congrega uma série de informações disponíveis no mercado, que nem sempre pode
ser denominado de eficiente.
As criptomoedas podem ser definidas como sendo moedas digitais, mineradas
(operadas) por computadores, porém sem lastro fornecido pelo Estado como ocorre
com as moedas virtuais, chamadas fiduciárias. Por isso, não oferecem garantia aos
seus investidores, tornando-as, consequentemente, um ativo financeiro de alto risco
e sem respaldo legal, na maioria dos países.
Todavia, o fato de apresentarem alta volatilidade no mercado financeiro não
as faz menos atrativas que outros ativos de maior ou menor risco, ao olhar dos es-
peculadores mais astutos.
Segundo Mori (2017), “[...] além do Bitcoin, ainda existem inúmeras outras
criptomoedas, a exemplo do: Ethereum, Ripple, Dash, Nxt, Synereo, Siacoin,
­Auroracoin, Litecoin etc.” Segundo o autor, em 2017, havia aproximadamente
1.370 criptomoedas ativas, apresentando tendência de crescimento exponencial
para os próximos anos.
A bitcoin é, portanto, uma das principais criptomoedas da atualidade. Desde
a sua criação, em 2008, tem sido exposta às diversas intempéries do mercado global,
sofrendo constantes e sucessivas oscilações de valor, principalmente no início e ao
final desta década.
TRANSCICLOPÉDIA EM DIFUSÃO DO CONHECIMENTO 185

As motivações para as oscilações dispersivas estão pautadas nas crises econômi-


cas, políticas e sociais que acometem as transações financeiras da maioria dos países
nos últimos anos, decorrentes, por sua vez, de políticas econômicas pouco efetivas
e, consequentemente, pouco acertadas para os mercados financeiros e de capitais.

REFERÊNCIAS
GREVE, Fabíola. Blockchain e seu impacto para a sociedade. In: Seminário Salvador
Cidade Inovadora, 2018. Workshop. Salvador: Bahia, 2018.

MORI, Rogério. Moedas digitais: aspectos básicos e efeitos econômicos. Escola


de Economia de São Paulo. São Paulo: Fundação Getúlio Vargas (FGV EESP),
2017.

ULRICH, Fernando. Bitcoin: a moeda na Era Digital. São Paulo: Mises Brasil,
2014.

TAPSCOTT, Don; TAPSCOTT, Alex. Blockchain revolution. São Paulo:


Senai-SP, 2016.
C
18. Cidadania Multidimensional
e Multirreferencial

Isabelle Pedreira Déjardin


Dante Augusto Galeffi

Tratar-se-á da cidadania multidimensional e multirreferencial em alguns de


seus aspectos teóricos, epistemológicos e metodológicos. Intenciona-se expandir a
dimensão dos direitos e deveres de cidadania, de modo a garantir a conexão com
a multiplicidade de conhecimentos socioambientais produzidos por indivíduos e
grupos de indivíduos das sociedades atuais.
Nessa perspectiva dialógica, plural, complexa, transdisciplinar e cognitiva, a
responsabilidade com a natureza e a sustentabilidade da vida no planeta se faz pre-
mente, considerando que a própria problemática de uma cidadania dita ampliada
permite agregar a heterogeneidade de múltiplas dimensões e referenciais, constituindo
um desafio imenso para a cidadania contemporânea.
Alguns autores vêm discutindo a necessidade de uma compreensão dessa
problemática a partir de perspectivas que incluam, concomitantemente, os desafios
socioambientais contemporâneos (locais, globais, transnacionais e planetários) e as
possibilidades de uma cidadania ampliada em suas diferentes frentes de representação.
Levando em conta uma crítica à visão dualista de mundo herdada da ciência
moderna, é possível afirmar que se a dimensão socioambiental permanece dissociada
e fragmentada da cidadania, porque existe uma lógica vigente que fragmenta e reduz
o conhecimento, tornando-o, em alguns casos, insuficiente.
Há inadequação cada vez mais ampla, profunda e grave entre saberes separados,
fragmentados, compartilhados entre disciplinas e, por outro lado, realidades
ou problemas cada vez mais polidisciplinares, transversais, multidimensionais,
transnacionais, globais e planetários (MORIN, 2003, p. 13).

A partir de um distanciamento de posturas meramente reducionistas e/ou to-


talizantes que resultam em um engessamento das relações humanas na compreensão
dos fenômenos sociais, são produzidos diálogos que buscam possibilitar conexões
e interfaces entre campos distintos do conhecimento. O esforço reside em poder
alcançar seu caráter complexo. Ou seja, o complexo da própria essência que carac-
teriza o conhecimento de modo não acabado, fechado ou pronto, e em permanente
processo de mutação, abertura e movimento, diante de evidentes amálgamas com
190 TRANSCICLOPÉDIA EM DIFUSÃO DO CONHECIMENTO

fontes e saberes outros. Mesmo com os desafios da humanidade que não cessam de
aumentar, como a busca por uma melhor qualidade de vida para as populações e
a efetiva responsabilidade com o meio ambiente, não se devem desconsiderar, em
pleno século XXI, os significativos avanços que a ciência produziu para a humani-
dade ao longo dos últimos cem anos, impactando a qualidade de vida das pessoas
e o acesso às novas tecnologias.
Se, por um lado, aumentaram as chances de se ter uma vida mais longeva e
livre de enfermidades, por outro, aumentaram os índices de violência, desordem e
sofrimento humano, em virtude da fome e da miséria entre os povos, que disputam
cotidianamente espaço por serviços mínimos e recursos da natureza que lhes deem
a devida dignidade para a sobrevivência, acarretando mais desigualdades sociais,
ambientais, culturais e territoriais.
Para Galeffi (2011, p. 28), esses significados representam um traço fundamental
da expansão atual do conhecimento, do conhecimento do desconhecimento e do
desconhecimento do desconhecimento:
Sabe-se como há muito a ser feito para a sustentabilidade da vida compreen-
dendo a presença humana em seu processo aberto e impactante, pois, para que
ocorra o desenvolvimento humano, condições complexas são imprescindíveis.
É preciso garantir os meios sustentáveis do desenvolvimento humano global,
sabendo-se ser este um projeto de longa duração (GALEFFI, 2011, p. 44).

Conforme Gudynas (2009), este é também motivo de debate no século XXI


ao propor incorporar (ou não) os aspectos ambientais no exercício da cidadania, na
tentativa de superar a visão tradicional que a delimita. Ao rejeitar a visão reducio-
nista da cidadania restrita aos direitos, Gudynas (2009) elabora uma proposição
ética, política, conceitual, ontológica e paradigmática em torno da expressão
“metacidadanias ecológicas”, abordando criticamente a concepção de cidadania
surgida a partir dos postulados de Marshall. Com isso, recorre aos pressupostos
sociais e históricos que culminaram nos direitos do cidadão, correspondendo à
organização política e eleitoral e à associação dos indivíduos.
Para Marshall, com base no Welfare State inglês, ou estado de bem-estar,
os direitos civis surgiriam no século XVIII; no século XIX, os direitos políticos.
E, no século XX, seriam conquistados os direitos sociais. Nesse sentido, Kalil e
Ferreira (2017, p. 342) afirmam:
A complexidade dos problemas ambientais enfrentados na modernidade e as
novas reivindicações das sociedades na conjugação dos direitos de primeira,
segunda e terceira dimensões, particularmente pela ênfase conferida à proteção
TRANSCICLOPÉDIA EM DIFUSÃO DO CONHECIMENTO 191

do macrobem ambiental, tem sido um dos importantes vetores de mudanças


comportamentais que fizeram florescer uma preocupação ética e socioambien-
talmente responsável, o que tem ensejado a configuração de um novo modelo
de Estado condizente com essa preocupação.

Santos (2005), ao refletir a cidadania no contexto das ciências e do conhe-


cimento, afirma que a epistemologia dessa nova cidadania — formada desde os
tempos da antiguidade clássica (greco-romana) ao surgimento dos Estados-Nação,
agora associada a uma cidadania liberal que supera a visão de uma cidadania mo-
derna — propõe ampliar o conteúdo das liberdades fundamentais para responder
às necessidades presentes e futuras, relacionadas com algumas das reivindicações
planetárias urgentes. Sobre os conflitos de interesse, há que se recorrer à perspectiva
ambiental, a qual será incorporada como um novo direito às sociedades a partir do
processo de expansão da cidadania na tradicional visão advinda de Marshall.
As reformas constitucionais, normativas e institucionais ocorridas desde a década
de 1980, aceleraram bastante esse processo, emergindo novas questões subjacentes
aos direitos à qualidade de vida e a um ambiente sadio, citando, em especial, alguns
países da América Latina, como Brasil, Argentina, Peru, Colômbia e Venezuela,
destacando-se que a postura mais difundida sobre cidadania na América Latina e
que ainda persiste é aquela que enfatiza o reconhecimento dos direitos do cidadão
(GUDYNAS, 2009). Isso acaba impedindo o avanço da construção de uma cida-
dania relacionada com noções de território, ecologia, pertencimento e identidade
dos sujeitos.
Para Soffiati (2011, p. 14), a questão se inscreve nas desigualdades da apropriação
dos recursos naturais e na ausência de direitos por parte do ambiente:
[...] a humanidade atingiu um ponto crítico. Por um lado, a Declaração Uni-
versal dos Direitos do Homem e do Cidadão, de 1948, não está assegurando
plena cidadania para cerca de 2/3 da humanidade, que vive uma infracidada-
nia, enquanto uma minoria usufrui de uma supracidadania. O humanismo
excessivo, além de beneficiar uma minoria, lançando na periferia a maior
parte da humanidade, ainda fere profundamente a natureza. As constituições
nacionais mais modernas incluíram o equilíbrio ambiental como um novo
direito, mas apenas para o ser humano. Assim, o cidadão passou a ter direito
a um ambiente equilibrado e sadio, que deve ser assegurado para as gerações
vindouras. O ambiente, em si, continua a não ter direitos intrínsecos.

Desse modo, em um cenário de antagonismos e convergências, coexistem, na


atualidade, modos heterogêneos e plurais de relacionamento com os problemas sociais
e ambientais. Para esclarecer esse argumento, Gudynas (2009) afirma que a cidadania
ambiental na América Latina se manteve restrita a uma perspectiva de cidadania
clássica, atendo-se, sobretudo, aos direitos de terceira geração, bem mais genéricos
que específicos. Outras propostas de cidadania puderam ir além, redesenhando os
desafios ecológicos da atualidade, como as questões éticas, políticas e culturais. Por
isso, ao aceitar a ideia da complexidade dos fenômenos, dos tempos de incerteza e
da diversidade intelectual entre autores, é possível adentrar nas raízes que funda-
mentam essa tessitura, evocando o termo latino complexus: aquilo que é tecido em
conjunto. Necessita-se, em especial, de um paradigma de complexidade que separe
e associe os elementos, ao mesmo tempo, concebendo os níveis de emergência da
realidade, sem reduzi-los, obrigatoriamente, às unidades elementares ou às leis gerais
do conhecimento. Um dos objetivos consiste em distinguir as forças constitutivas
dos fenômenos, reunindo-as, ao mesmo tempo em que se busca contextualizar e
globalizar o desafio da incerteza.
A complexidade não é uma complicação teórica, metodológica ou ontológica
sobre essa dinâmica, mas exemplo da tessitura comum e não linear que interliga os
fenômenos na ideia ao desvelar a complexidade do real. Suas forças constitutivas
podem ser reunidas e distinguidas a partir das inter-retroações entre os elementos,
como o que ocorre entre o indivíduo e o meio, o sujeito observante e o objeto pen-
sado, esforçando-se “[...] para obter a visão poliocular ou poliscópica, em que, por
exemplo, as dimensões físicas, biológicas, espirituais, culturais, sociológicas, históricas
daquilo o que é humano deixem de ser incomunicáveis” (MORIN, 1996, p. 30).
Assim, e principalmente nas esferas da educação, meio ambiente, ecologia,
filosofia, ciências, sustentabilidade, tecnologias, multirreferencialidade e comple-
xidade, dentre outras frentes de investigação, surgem novas contribuições teóricas,
metodológicas e epistemológicas sobre os conceitos clássicos de cidadania em uma
tentativa clara de ampliá-la. Dos diálogos empreendidos, emerge um mosaico de
cidadanias notavelmente ligadas umas às outras, apresentando uma caracterização
própria, apropriada e interdependente. Com base nesse prisma, tem-se a cidadania
ambiental, a cidadania socioambiental, a ecocidadania, a cidadania planetária, a
cidadania ecológica, a educação ambiental para a cidadania, as metacidadanias
ecológicas, a cidadania na educação CTS/CTSA (Ciência, Tecnologia e Socie-
dade; Ciência, Tecnologia, Sociedade e Ambiente), a cidadania em uma visada
­multirreferencial, o civismo verde, a cidadania sustentável, a cidadania ambiental
global, dentre muitas outras.
De fato, a aspiração à complexidade tende para o conhecimento multidimen-
sional. Ele não quer dar conta de todas as informações sobre um fenômeno
TRANSCICLOPÉDIA EM DIFUSÃO DO CONHECIMENTO 193

estudado, mas respeitar suas diversas dimensões [...] não devemos esquecer
que o homem é um ser biológico-sociocultural e que os fenômenos sociais
são, ao mesmo tempo, econômicos, culturais, psicológicos etc. Dito isto, ao
aspirar a multidimensionalidade, o pensamento complexo comporta em seu
interior um princípio de incompletude e de incerteza (MORIN, 1996, p. 177).

É notória a existência de um cabedal de significativas e novas cidadanias no


âmbito socioambiental, podendo se criar uma polissemia em torno dessas expressões,
o que lhe acaba conferindo também uma caracterização polilógica ­(GALEFFI, 2011)
do conceito apropriado em seu devir, com abertura às diferentes vozes, espaços-tempo
e temporalidades. Aliás, segundo Galeffi (2014), mais do que ver ou compreender
os fenômenos, é preciso dar um “salto de natureza” em relação à totalidade da vida
vivente, permitindo uma orientação ética que crie condições para o pleno desenvol-
vimento humano sustentável.
Concordando com Morin (2003, p. 104), para desenvolver uma democracia cog-
nitiva com uma reorganização do saber, é imprescindível que se reforme inicialmente
o pensamento, não apenas isolando para que se possa conhecer, mas, antes, ligando
o que se encontra isolado, fazendo com que ressurjam “[...] as noções pulverizadas
pelo esmagamento disciplinar, o ser humano, a natureza, o cosmo, a realidade”.
A reforma de pensamento é, portanto, uma necessidade democrática fundamental,
visto que formar cidadãos capazes de enfrentar os problemas de sua época equivale a
restringir o enfraquecimento democrático que suscita, em todas as esferas da vida polí-
tica, a expansão da autoridade dos especialistas que se dizem sabedores de toda ordem,
mas que anulam, pouco a pouco, a competência dos cidadãos ­(MORIN, 2003). Fróes
Burnham (2006), ao elaborar uma discussão multirreferencial sobre as bases teóricas,
éticas, políticas e culturais com foco na cidadania, afirma que, no cenário mundial dos
anos 1960, outras propostas para discussão e contextualização dos saberes surgiriam
como movimento de resposta à fragmentação do conhecimento entre disciplinas.
Assim, é possível citar a multidisciplinaridade, a pluridisciplinaridade, a inter-
disciplinaridade e, a partir dos anos 1970, a transdisciplinaridade. No âmbito de uma
cidadania contemporânea implicada com as questões socioambientais locais e globais,
é relevante a argumentação de Fróes Burnham (2006, p. 9), ao pretender que esse
referencial coloque os conceitos e as práticas de cidadania e de democracia “[...] não
como construtos passivamente elaborados”, ou como ações realizadas no cotidiano
das pessoas, mas, sobretudo, “[...] como um processo permanente de instituição que
se realiza a cada dia, como uma construção reflexiva e, portanto, transformadora,
de concepções e modos de viver a cidadania e a democracia”.
194 TRANSCICLOPÉDIA EM DIFUSÃO DO CONHECIMENTO

A multirreferencialidade não tem a intenção de integrar conhecimentos, de


propor complementaridade ou aditividade, entre campos diversos. Ao invés,
procura afirmar a impossibilidade de um único ponto de vista que abarque
todos os demais — assumindo que quanto mais se conhece, mais se cria áreas
de não-saber [...]. (BURNHAM, 2006, p. 15).

Em relação às vozes (no sentido de múltiplas, unas, singulares, plurais e distintas)


que clamam por uma (ou outras) cidadania implicada com questões ontológicas da
contemporaneidade, é cabível ressaltar que o que se pretende é ampliar a dimensão
e os direitos de cidadania, de modo a garantir a conexão da natureza com o conhe-
cimento, inserindo a responsabilidade e a sustentabilidade da vida humana e plena.
Nessa perspectiva, surgem outras possibilidades além daquelas convencionadas na
categoria dos direitos e dos deveres do(a) cidadão(ã), articulando desafios que se
colocam em um patamar complexo.
Interessante observar que, como afirma Jacobi (2005, p. 242), no paradigma da
complexidade, a dimensão ambiental pode representar “[...] a possibilidade de lidar
com conexões entre diferentes dimensões humanas, possibilitando entrelaçamentos
e trânsitos entre múltiplos saberes”. Para Jacobi (2005), essa abertura ao ambiental
não deveria significar uma camisa de força conceitual ou metodológica, mas uma
articulação entre os métodos objetivos e subjetivos implicados na produção de co-
nhecimentos e de sentidos.
Constatar que certos valores não correspondem aos princípios éticos construídos
e estabelecidos em um dado contexto histórico e social favorece o debate, a discussão
e a análise crítica na confrontação dos problemas locais, globais e planetários. É
preciso sensibilizar, inclusive, os sujeitos para os valores da ética ecológica planetária.
No dizer de Galeffi (2014), o caminhar sustentável da humanidade não desconsidera
a emergência de uma triética, ao configurar a totalidade da vida humana em seu
sentido “eco-socio-antropológico”, integrando e distinguindo, ao mesmo tempo, os
níveis social, ecológico e mental.
Para Boff (2012, p. 73), o que se projeta é um “paradigma do cuidado” e da
responsabilidade coletiva em nível global, tanto para o bem da humanidade quanto
do planeta terra. Implica que se supere a dualidade que caracteriza o nível das esco-
lhas humanas entre o que deve ou não ser preservado, visto que ambos têm especial
relevância e interdependência para a vida vivente.
A epistemologia do pensamento complexo tem suas bases no tetragrama mo-
riniano: ordem, interação, desordem e organização (MORIN, 1996, p. 204). Por
isso, uma cidadania multidimensional e multirreferencial não deve se restringir (ou
TRANSCICLOPÉDIA EM DIFUSÃO DO CONHECIMENTO 195

se resumir) aos campos das análises disciplinares, técnico-científicas, políticas ou


partidárias. Em tal dinâmica, é preciso retomar as singularidades e complexidades
que permeiam seu campo constitutivo, transcendendo os territórios estratificados
do saber, tendo em vista o caráter dinâmico e plural da vida humana na terra. Vida
esta que acolhe as interações constantes entre os seres-humanos, os ecossistemas,
as culturas distintas, os saberes acumulados e aqueles produzidos na história dos
povos, inclusive a própria coexistência com outras espécies viventes e com as quais
são compartilhados também os modos de ser, de viver e de aprender neste mundo.
Finalizando as considerações aqui apresentadas, porém não concluindo, é preciso
atentar para a ideia de que, ao se tratar de cidadania e suas múltiplas possibilidades,
os indivíduos implicados com o conhecimento não devem negligenciar as questões
socioambientais das sociedades contemporâneas das quais fazem parte cidadãos e
cidadãs das diferentes nações do mundo. Em uma perspectiva polilógica e complexa,
é suscitada a necessidade de rompimento com os paradigmas estabelecidos do co-
nhecimento em que prevalece a lógica da certeza e da fragmentação dos fenômenos.
É nesse sentido que se estabelecem conexões atualizadas não apenas com a
cidadania dos direitos e dos deveres do(a) cidadão(ã), em que, não raras vezes, a
dimensão socioambiental anula-se diante da lógica de funcionamento desse sistema
de normas e regras, ampliando, propositadamente, a discussão para outros campos
do conhecimento e dos saberes. Diante de novas nuances epistemológicas que vão se
desvelando, a cidadania é redimensionada, de modo a incluir outros referenciais que
se processam no âmbito da construção e difusão do conhecimento, oferecendo-lhe,
por seu turno, suporte teórico e metodológico de investigação.

REFERÊNCIAS
BOFF, Leonardo. Sustentabilidade: o que é, o que não é. Petrópolis: Vozes,
2012.

BURNHAM, Fróes Teresinha. Pesquisa multirreferencial em educação


ambiental: bases sócio-culturais-político-epistemológicas. Pesq. Educ. Ambient.,
v. 1, n. 1, p. 7392, jul./dez. 2006.

GALEFFI, Dante Augusto. Saberes plurais e difusão do conhecimento em


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Holanda; SANTOS, Wilson Nascimento (Org.). Saberes plurais, difusão do
conhecimento e práxis pedagógicos. Salvador: EDUFBA, 2011. p. 15-47.
196 TRANSCICLOPÉDIA EM DIFUSÃO DO CONHECIMENTO

GALEFFI, Dante Augusto. A emergência triética planetária. Global Education


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GUDYNAS, Eduardo. Ciudadanía ambiental y meta-ciudadanías ecológicas:


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n. 19, p. 53-72, jan./jun. 2009.

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KALIL, Ana Paula Maciel Costa; FERREIRA, Helini Sivini. A dimensão


socioambiental do estado de direito. Veredas do Direito, Belo Horizonte, v. 14,
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MORIN, Edgar. Ciência com consciência. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil,


1996.

MORIN, Edgar. A cabeça bem feita: repensar a reforma, reformar o


pensamento. 8.ed., Tradução de Eloá Jacobina. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil,
2003.

SANTOS, Maria Eduarda Vaz Moniz dos. Cidadania, conhecimento, ciência e


educação CTS. Rumo a “novas” dimensões epistemológicas. Revista CTS, v. 2,
n. 6, p.137-157, dez. 2005.

SOFFIATI, Arthur. Fundamentos filosóficos e históricos para o exercício da


ecocidadania e da ecoeducação. In: LOUREIRO, Carlos Frederico Bernardo;
LAYRARGUES, Philipe Pomier; CASTRO, Ronaldo Souza de (Orgs.).
Repensando o espaço da cidadania. 5.ed. São Paulo: Cortez, 2011. p. 27-72.
19. Cinemação

Marcílio Rocha-Ramos

1. CONCEITO
O termo Cinemação naturalmente vem do cinema. Sua significação e formas
de fazer estão relacionadas às proposições educomunicativas de autoria coletiva. Ao
utilizarmos o conceito ação conjugada à cinema, queremos dizer que o Cinemação
é linguagem para tomada de atitude, intervenção, movimento. A ação é a produção
de produtos audiovisuais em filmes e reportagens em rodas dialógicas, cujas práticas
estão alicerçadas numa bricolagem de desejos por intervenção social, comunicação,
participação, educação, guerrilhas. As dialogias em grupo é que deflagram os proces-
sos criativos do Cinemação. No segundo momento — após a captação das palavras
geradoras, temas geradores, situações críticas-reflexivas — ocorre a pesquisa focada,
aprofundamento das temáticas, roteiragem e organização da produção. O terceiro
momento do Cinemação é justo a autoria coletiva, quando de fato emerge em curtas
metragens o processo produtivo de tematização, pesquisa e filmagem.
Com efeito, ao unir cinema com ação — Cinemação — visei ao ativismo com
produção de mídias digitais, tirando partido do potencial de conexão das máquinas
filmadoras para desenvolver uma contracorrente — ou seja, novas linguagens, no-
vos protagonismos com os jovens. De forma especial, trata-se também de produzir
novas relações com as linguagens audiovisuais que, na escola, são utilizadas quase
tão somente em exposição, download como “imersão” no cinema.
O Cinemação é ação autoral com as linguagens cinematográficas, tendo o
protagonismo de jovens vivenciando suas realidades como seu motor produtivo.
Não é somente assistir, somente comentar — é sobretudo, fazer. E fazer por meio
de processos de subjetivação em grupos com pequenas máquinas filmadoras ou de
celular, tematizando o que sangram, animam e fazem redes de participação. Den-
tro das escolas, o Cinemação é prática de currículos em ação, em multimídias, em
multimeios, em novos espaços de aprendizagem. O Cinemação também pode ser
praticado em movimentos sociais em defesa do meio ambiente, qualidade de vida ou
mesmo como uma forma de “mídia ninja” — a mídia rizomática dos jovens ativistas.
O Cinemação foi inicialmente rascunhado dentro da Redepect — uma rede de
pesquisa vinculada à Pós-graduação em Educação na Universidade Federal da Bahia,
198 TRANSCICLOPÉDIA EM DIFUSÃO DO CONHECIMENTO

quando realizava o mestrado (2003-2005) com foco na educomunicação como uma


metodologia para articulação das novas mídias em currículos educacionais1. Em
pesquisas nas escolas públicas do Estado observava que a utilização das tecnologias
da informação e da comunicação no currículo eram (e ainda são) concebidas como
um delírio em torno das “potencialidades” — mas que, no dia a dia resultavam (e
ainda resultam) em envernização das práticas-púlpitos com produção de downloads.
Nessa perspectiva de produção de subjetivação em grupos, desenvolvi o neolo-
gismo Cinemação para dizer um protagonismo radical, criativo com as tecnologias.
O Cinemação está na confluência de experimentações avançadas com técnicas de
filmagem, captação de som e imagem e edição, e visa à construção de redes de pro-
tagonização social pela autoria, inovação, comunicação, trabalhando com a noção de
que a construção da participação é alcançada — e construída — por meio da intera-
ção na qual a autoria é sua expressão para consolidação de redes educomunicativas.
O Cinemação tem como objetivo “filmar a existência” a partir de análises
autorreflexivas, críticas, corrosivas. Como o Cinemação é também pulsação em
grupo dos desejos, suas temáticas têm um adversário crítico — o ser reprodutor das
subjetividades do capital, do consumo, da atomização dos sujeitos. Diferente das
exibições cinematográficas que, por vezes, ocorrem na escola como ilustração de um
determinado conteúdo, o Cinemação é produto dos próprios jovens representando
por si mesmos suas percepções críticas. As artes de ser diretores(as), roteiristas,
atores(atrizes), iluminadores(as), produtores(as) é uma emergência, circunstanciada
pelos temas, temáticas, problemas, falas que ocorrem em cada produção. Não tem
relação com uma determinada competência e/ou habilidade.
Seu desenho cognitivo tem como fonte de produção o ativismo multimidiático,
processos de subjetivação em grupo, significação das coisas por meio da palavra-
-filmada. Nessa perspectiva, o Cinemação tem os seguintes objetivos específicos:

• Trabalhar com as problemáticas sociais realizando produtos audiovisuais


para reflexão, ação, formação;
• Estimular a formação de uma rede de educomunicadores para disseminação
de conhecimentos sobre produção e difusão com as novas mídias;
• Construir espaços multimidiáticos para inclusão nos movimentos de
transformação social e autodeterminação.

1
Ver Ramos, Marcílio Rocha. Educomunicação & Mídia Radical: uma pedagogia revolucionária
com as tecnologias da Informação e da Comunicação. 2005. 169f. Dissertação (Mestrado em
Educação). Faculdade de Educação, Universidade Federal da Bahia.
TRANSCICLOPÉDIA EM DIFUSÃO DO CONHECIMENTO 199

1.1 Contexto
Podemos dizer que o Cinemação é uma corrente da sociedade-rede ­­(criação-up
load) e uma contracorrente do download (Cinema-representação). No cinema, há
uma radical divisão do trabalho. No cenário de impérios da imagem sobre a fluidez
de conteúdos, multiplicidades e conexões — que produzem linhas de fugas dos rei-
nados das palavras e dos textos —, a “escrita” com vídeos é induzida pela oferta de
máquinas que, ao mesmo tempo, são emissoras e receptoras de mensagens cada vez
mais acessíveis a todos os públicos. Tais equipamentos liberaram forças criadoras,
manipulando máquinas antes restritas aos especialistas.
O poder fotografar, filmar, criar redes vem no mesmo fascínio do se expor,
intervir, enunciar a opinião — condição apresentada também como caracteres do
que se chama de “pós-moderno”. Gianni Vattimo (1992) em à Sociedade Transparente
sinaliza como marca das pós-modernidade o tomar a palavra pelos grupos os mais
diversos. Não por acaso, o selfie e os videoselfies são hoje as mídias principais dos
jovens ativistas das redes. E não só dos jovens ativistas, também de movimentos que
percebem as potências do agir em rede2.

1.2 Cinema e cinemação


A produção do cinema reflete a sociedade dividida em especializações, lugares,
hierarquias. As diferenças técnicas demarcam também a relação entre produtores
e consumidores. No Cinemação, a produção ocorre numa totalidade em forma de
autoria coletiva. Não há especialistas no comando das ações. O conhecimento do
grupo é a força produtiva e diretiva de todas as ações. O quadro a seguir específica
melhor a diferença entre Cinema e Cinemação.

Quadro 1: Comparativo entre as equipes do cinema e do Cinemação

Equipe No cinema3 No cinemação


Roteirista / Profissionais acadêmicos ou consultores de A equipe pode se envolver na pes-
pesquisadores áreas específicas. Os assistentes de produção quisa para ajudar o(s) roteirista(s)
ou outros membros da equipe administrativa a transformar(em) argumentos em
podem trabalhar como pesquisadores. roteiros.

2
Ver verbete Educomunicação: revolução molecular.
3
As referências dessa coluna estão no livro de Marques (2007): Ideias em movimento: produzindo e
realizando filmes no Brasil e Kellison (2007): Produção e direção para TV e vídeo: uma abordagem
prática.
200 TRANSCICLOPÉDIA EM DIFUSÃO DO CONHECIMENTO

Equipe No cinema3 No cinemação


Produtor Profissional do cinema responsável pela Um integrante determinado, sempre
executivo captação de recursos, porém com grande que possível, tenha realizado outros
sensibilidade artística4. projetos.
Diretor de O produtor deve ser um protago-
A partir de um roteiro ele planeja e gerencia as
produção etapas do processo produtivo. Ele tem poder nista indicado pela equipe. Deve
de decisão, sempre em comum acordo com o ter capacidade de negociação e de
produtor executivo, o seu chefe direto. realização de parcerias.
Diretor Faz o roteiro acontecer. Dirige atores. A direção é compartilhada.
Diretor de Responsável por gerar o visual do filme, as No Cinemação, o cenógrafo pode ser
Arte locações, figurinos e maquiagem. Um profis- uma pessoa com alguma experiência
sional de grandes qualidades artísticas. em artes (teatro, música, foto, vídeo).
Equipe de Responsável pela captação de som durante as A equipe de som deve ter alguém
Som filmagens, gravação do áudio durante as fases com conhecimento em gravação:
de produção e pós-produção. banda de música, festival, coral,
rádio comunitária, som na igreja.
Atores Os atores do cinema são profissionais contra- Os atores do Cinemação são nor-
tados com papel claramente definidos. malmente os produtores e diretores
do filme.
Fonte: Produção do autor

1.3 Saberes práticos


Como arte educomunicativa, o Cinemação tem seu processo produtivo a
partir da roda dialógica ao colocar em ação os seres concretos e virtuais, dentro
da qual os modelos entram em erupção, confronto, paradoxo. Nos processos
produtivos são bem vindas as concepções do sócio-interacionismo, construtivismo
e o construcionismo5. Os ativistas e educomunicadores do Cinemação organizam
uma estrutura para abordar a realidade e problematizá-la. O processo é produzi-
do a partir de fragmentos. Em suas proposições o indivíduo é ser-de-bricolagens,
construtor de percursos. Assim,
a) Se empodera com o social. O Cinemação realiza seus roteiros com base
nas concepções do ser como sujeito social e interativo que aprende pelas
vivências com outros e ressignifica o individual internalizado nas suas
relações sociais.

4
No geral, o produtor executivo é o dono da empresa produtora, do dinheiro, do filme; ele é o topo
da pirâmide, é quem contrata todo mundo.
5
Autores mais referenciados nestas linhas de pensamentos são: Vygotsky (1993), Piaget (1971,
1974, 1976), Seymour Papert (1994).
TRANSCICLOPÉDIA EM DIFUSÃO DO CONHECIMENTO 201

b) Interpreta a experiência. O Cinemação se apropria da ideia de apren-


dizagem como uma constante procura do significado das coisas e das
contribuições individuais agregada às vivências dos outros, produzindo
roteiros-conceitos a partir da experiência.
c) Aprende em construções contextualizada. A tese de criação contextualizada
como elemento significativo para construção do conhecimento também
contribui com o Cinemação na relação entre educação, ativismo e autoria.

2. PROCESSOS PRODUTIVOS
O Cinemação não é uma ação do tipo do-it-yourself, slogan do ativismo do
YouTube. Optamos por façamos nós juntos — porque a razão da sua modelagem é a
dialogia como revolução molecular, ebulição nas quais as roteirizações das histórias
emergem das falas dos seres ali presentes — sujeitos e atores das suas próprias nar-
rativas — por meio do compartilhamento de experiências, vivências e avaliações. O
Cinemação parte da utilização de tecnologias ao alcance dos agentes envolvidos nos
processos de produção — celulares, filmadoras, gravador, softwares de edição da
plataforma Windows ou de softwares livres — tendo a roda dialógica como espaço-
-momento de pré-produção. Os conceitos, códigos e palavras-mídias que ocorrem
nas falas vão deflagrar outro processo — a pesquisa focada e a autoria coletiva.

a) Roda dialógica. Como proposição metodológica, o Cinemação utiliza as


concepções dialógicas de Paulo Freire6 para construção dos argumentos e
roteiros, partindo das palavras geradoras (universo vocabular dos sujeitos
sociais), em torno de eixos temáticos. O objetivo das rodas de criação
no Cinemação é identificar idealizações de como uma realidade social
existe na vida, no pensamento, no imaginário dos seus participantes.
Como no método freiriano — no qual palavras, frases, ditos, provérbios,
modos peculiares de dizer, versejar ou cantar o mundo e traduzir a vida
se constituem pensamentos-linguagens para desvelar o mundo —, no
Cinemação esses valores se tornam as argumentações para constituição

6
O método foi um instrumento utilizado para o desenvolvimento de uma educação dialógica, par-
ticipativa, tendo o universo social como campo da abordagem complexa da realidade para cons-
trução dos percursos educativos. O método pode ser pesquisado em diversas das suas publicações,
tais como: Educação como Prática da Liberdade (1980), Alfabetização e Conscientização (1963) e
Pedagogia do Oprimido (1974). No entanto, o método está bem sistematizado no livro de Brandão
(2004): O que é o método Paulo Freire, coleção Primeiros Passos, do qual extraímos suas descrições.
202 TRANSCICLOPÉDIA EM DIFUSÃO DO CONHECIMENTO

dos roteiros7. Através desses símbolos os participantes passam para as


etapas seguintes do aprendizado coletivo e solidário de uma dupla leitura:
a da realidade social em que se vive e a da palavra escrita que a retraduz
b) Pesquisa focada. Das rodas de criação emergem palavras-mídias, cenas,
situações para produção de redes de conhecimento. Esses códigos em (pre)
conceitos vão ser reelaborados por meio da pesquisa focada, realizada em
grupo. Trata-se de aprofundar as temáticas que ocorreram na fase anterior
agora com foco no tema selecionado para produção. Chama-se pesquisa
focada justo por ter um foco, um propósito já previamente definido na roda
dialógica. A pesquisa focada significa o desenvolvimento das propriedades
e dimensões do conceito. Essa fase ocorre concomitante à produção do
roteiro, definição dos protagonistas e papéis. Trata-se de construir as teias
para realização dos conceitos que vão ser vividos em meio audiovisual.
c) Autoria coletiva. Nas práticas educomunicativas com produção de fil-
mes, observa-se que a realidade oferece as sequências, os atos das ações, as
falas, sua densidade reflexiva — ou seja, sua história e seus personagens,
favorecendo a visualização da produção. Trata-se de encontrar o recorte, a
estética para expressão das subjetivações. Da realidade nasce o argumento
e a partir daí o roteiro. Os protagonistas formam equipes de produção. As
equipes, por sua vez, se constituem das dialogias em torno das discussões
temáticas relacionadas aos problemas da comunidade. Seus componentes
estarão juntos, desde a fase da pré-produção, construção dos argumentos e
roteiros até a fase final de edição e exibição. Essas equipes envolvem desde
os escritores dos roteiros e pesquisadores até os finalizadores da produção.
Os grupos não são organizados na mesma divisão do trabalho que ocorre
no cinema profissional.

A roda dialógica, a pesquisa focada e a autoria coletiva são também elemen-


tos do que em cinema chamamos de pré-produção, produção e pós-produção. No
Cinemação, estas fases têm suas especificidades, como se vê a seguir.

7
Exemplo: a palavra geradora “cabelo” pode gerar o tema “cabelo ruim, cabelo bom”. Desse tema,
podem ser desenvolvidas argumentações como: “cabelo bom é o cabelo liso”; “‘nego’ tem o cabelo
ruim na visão do branco” etc. De uma série de argumentações sobre a realidade dos participantes,
nasce o argumento do filme e seu roteiro, como, por exemplo, sobre uma história de uma garota
afrodescendente que quer ter um “cabelo bom”. Os filmes ocorrem preferencialmente em torno
dos problemas reais que acontecem nas rotinas produtivas. O humor, a crítica, a paráfrase, a cari-
caturização das coisas fazem parte do olhar profundo das estéticas das criações.
TRANSCICLOPÉDIA EM DIFUSÃO DO CONHECIMENTO 203

2.1 Pré-produção
No cinema, a pré-produção é a preparação para a realização da produção: o
plano de ação, roteiro, elenco, equipe técnica e o cronograma de filmagens, como
definem Kellison (2007) e Marques (2007). No Cinemação é quando ocorre os en-
contros dos grupos para conceitualização, nas rodas dialógicas. É também o momento
da formação educomunicativa — implicação entre teoria e prática. A formação
ocorre em oficinas de criação presenciais e, também, com ações on-line — troca
de experiências, exposição, fóruns de debates e pesquisa. Para a concretização da
formação, faz-se necessário a definição de algumas estratégias que possibilitem, em
um primeiro momento, a sensibilização.
• Oficinas de pré-produção: esta etapa ocorre com o lançamento do Projeto
e tem como objetivo a sensibilização para práticas educomunicativas e
produção de roteiros.
• Oficina de produção: Nesta etapa ocorrem oficinas de “como filmar”. Estas
oficinas — realizadas por profissionais em audiovisual — estão voltadas
para a utilização de equipamentos.
• Oficina de pós-produção: as oficinas de pós-produção ocorrem com base
nas próprias filmagens realizadas pelos protagonistas do Projeto. Nesta
etapa, faz-se uma pré-edição dos filmes.

2.2 Produção: gravação


A produção do Cinemação nessa fase envolve ainda um aspecto teórico — a
pesquisa focada e um aspecto prático, a filmagem. É quando os grupos, objetivamen-
te, vão aplicar os conhecimentos que receberam nas oficinas de roteiro e filmagem.
Segundo Marques (2007, p. 60), a produção tem uma diversidade de significação
que se complementa: “[...] produzir é: dar nascimento ou origem / pôr em prática /
fabricar / criar / causar / motivar”. Isto significa que os protagonistas vão realizar,
com imagens, o que planejaram e escreveram em seus roteiros, como afirma Kellison:
Não importa qual seja o projeto, cada tomada e cada cena é gravada com a
pós-produção em mente. Não importa o quão brilhante seja a cena em si, ela
será editada com a tomada que a precede e a que segue. As tomadas devem
combinar visualmente, e o áudio deve ter continuidade. Juntas, elas se com-
binam para criar um fluxo narrativo (KELLISON, 2007, p. 214).

No Cinemação, a gravação é o momento em que os grupos se autoexperimentam


em seus papéis socialmente definidos. Nas experiências, as equipes precisam tomar
204 TRANSCICLOPÉDIA EM DIFUSÃO DO CONHECIMENTO

decisões que normalmente não ocorrem na produção profissional — principalmente


quanto à iluminação, ao som e às sequências:
a) Iluminação: as dificuldades em produzir com iluminação artificial fazem
as equipes a buscar condições naturais de filmagem, usando a luminosidade
como aliada. Então, é necessário tirar partido da iluminação natural, saber
diferenciar e usar efeitos de luz e contraluz.
b) Som: como os microfones dos aparelhos de celulares são de baixa impedân-
cia, as gravações devem ocorrer sempre muito próximas dos personagens, a
não ser que algum integrante da equipe possa dar outra solução, gravando
os diálogos em uma trilha especial ou usando um microfone externo.
c) Sequência: as filmagens devem ocorrer na sequência do roteiro com a
finalidade de facilitar o processo de pós-produção. Após a realização da
sequência 1, a equipe deve filmar, na mesma trilha, a sequência dois, e
assim, sucessivamente, numa relação marcadamente diferente do cinema
tradicional.
Para as gravações do Cinemação, os protagonistas poderão utilizar máquinas
filmadoras de celular, fotográficas digitais e de filmar amadoras. Os orientadores e
os líderes das equipes devem, antes de partir para a captura das imagens, discutir
enquadramento e composição dos personagens, lista das tomadas onde ocorrerão as
filmagens. A fase de produção, portanto, deve estar relacionada com ações concretas
em torno da realização do roteiro. Embora as filmagens possam ser realizadas somente
com as equipes de produção, se observa que, quando há o acompanhamento de um
profissional mais experiente, as atividades fluem com mais rapidez e objetividade.

2.3 Pós-produção: edição e exibição


No cinema, a pós-produção consiste em montar o filme, compactar o mate-
rial de som e imagem segundo a sequência do roteiro. No Cinemação, é quando se
expressa a autoria coletiva com a edição, exibição e ação em rede. A pós-produção
é um procedimento estético e organizacional. É uma etapa minuciosa. Durante a
edição, as imagens captadas passam a ter um sentido com o áudio, a trilha sonora e
os efeitos especiais. Segundo Kellison (2007, p. 213), “[...] é nesta fase que as cenas
e o áudio são editados para criar uma obra coerente e com fluidez”.
No cinema, os setores que se ocupam dessa função são os distribuidores e
exibidores, organizando estratégia de vendas, definindo o lançamento, as salas de
exibição, número de cópias e locais de venda. No Cinemação, a exibição ocorre
TRANSCICLOPÉDIA EM DIFUSÃO DO CONHECIMENTO 205

através de festivais, redes on line como o Youtube e da impressão de DVDs e formas


presenciais. A exibição do Cinemação é um dos principais momentos de reconheci-
mento do trabalho da equipe, da valorização da autoria.
Feitas tais considerações de ordem instrumental, naturalmente se indaga sobre que
tipologia ocorre nas produções. Como uma modelagem educomunicativa, o Cinemação
pode ser desenvolvido em qualquer área do conhecimento. Nos ambientes educacionais,
de saúde, de gestão, de produção de ativismo. A força dos seus raios criativos não está
nas potências das tecnologias, mas na potência dos grupos em mover as estáticas dos
modelos, das determinações, da ordem. Uma busca por sair das dimensões, das con-
dições impostas, das situações de repetição dos ciclos de opressão e uma provocação de
criação de caos de subjetividades, de descaminhos, de refazimento, de novos olhares.

3. PERCURSO: CINEMAÇÃO DA ACADEMIA PARA REDES DE


EDUCAÇÃO
Como assinalamos na introdução deste verbete, o Cinemação nasceu como
projeto no Mestrado da Universidade Federal da Bahia do qual resultou a disser-
tação “Educomunicação e mídia radical”. Após a defesa, o Cinemação passou a
ser realizado em palestras e oficinas de criação com jovens e adolescentes ativistas
multimidiáticos. Como ato educomunicativo, o Cinemação foi pela primeira vez
experimentado com jovens da biblioteca comunitária do Calabar. A convite de duas
educadoras de uma ONG, apresentamos o Cinemação como práticas sensibilizadoras
para incentivo à leitura e atuação sobre suas realidades, tematizando leitura como
processo de produção multimídia, participação e o próprio fazer-cinema.
Mas sua modelagem ganhou “asas” e repercussão quando foi aplicado na rede
de educação do Estado da Bahia. Ao receber o convite para assumir a coordenação
de Educomunicação (2007-2009), na Secretaria da Educação do governo do Estado,
o Projeto Cinemação se integrou às políticas educacionais na área mídia-educação.
Em novembro de 2009, o projeto Cinemação acabou ganhando reconhecimento
nacional e internacional ao ser selecionado como o melhor projeto de mídia-educação
na Convocatória Nacional de Arte Educação, Cultura e Cidadania no Congresso
Latino-americano e Caribenho de Arte, realizado na Universidade Federal de Minas
Gerais — como projeto inédito e inovador na área de mídia-educação e acabou tendo
repercussão internacional, quando a Secretaria da Educação do Estado da Bahia foi
convidada pelo Conselho Latino Americano de Educação para apresentá-lo no México8.
8
Ver matéria do jornal Tribuna da Bahia <http://www.tribunadabahia.com.br/2010/03/15/cine-
ma-no-celular-projeto-baiano-tem-repercussao-internacional>.
206 TRANSCICLOPÉDIA EM DIFUSÃO DO CONHECIMENTO

REFERÊNCIAS
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brasileiras mais distraem do que ensinam. Veja, São Paulo, ano 40, edição 2020,
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Brasiliense, 2004.

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Dissertação (Mestrado em Educação). Faculdade de Educação, Universidade
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blogueiros sujos. 2014. 248 f. Tese (Doutorado em Difusão do Conhecimento).
Faculdade de Educação da UFBA, Universidade Federal da Bahia, Bahia.
Disponível em: <https://repositorio.ufba.br/ri/handle/ri/17750>. Acesso em: 11 dez.
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THIOLLENT, Michel. Metodologia da pesquisa-ação. 13.ed. São Paulo: Cortez,


2004.
20. Comunicação Intercultur al —
Icc (Inter-Cultur al Comunication)

María Luz García Lesmes

Desde o início dos tempos, o homem teve que enfrentar a dificuldade de poder
se comunicar com “o diferente”. A quantidade de línguas e culturas, que existem
e tem existido no mundo, obstaculizaram em muitas ocasiões a estabilidade das
relações entre os grupos humanos. De qualquer forma, o homem sempre conseguiu
solucionar esses problemas comunicativos por meio da criação de novas línguas ou
pelas negociações de significados entre os falantes.
Nos últimos anos, vivemos uma “revolução” da informação iniciada e propulsada
pelo uso das novas tecnologias. A globalização e os movimentos migratórios são dois
fatores importantes para compreender a nova realidade que nos envolve. O fluxo de
pessoas e de comunicações é muito maior que em épocas anteriores. Os espaços, a
quantidade e velocidade de interação comunicativa têm mudado consideravelmente
nos últimos anos e diante desse novo panorama, os estudos sobre comunicação
intercultural têm a cada vez uma relevância maior.
As equipes de trabalho são mais qualificadas e competitivas como também mais
heterogêneas e diversas, compostas por pessoas procedentes de lugares diferentes o
que leva prever e solucionar possíveis mal-entendidos culturais.
A paz global e a interpessoal, a satisfação de poder estabelecer uma relação
intercultural de forma equilibrada e o autoconhecimento, que gera ter um contato
mais profundo com o outro, são alguns dos motivos para nos interessar pela Co-
municação Intercultural.
A tradição terminológica europeia do conceito de interculturalidade perpassa
por outros conceitos como multiculturalidade e pluriculturalidade. O documento
normativo sobre o ensino e aprendizagem de línguas Quadro Europeu Comum de
referência para as línguas (2001) sugere que os usuários de uma Segunda Língua (L2)
desenvolvam habilidades comunicativas a partir de suas experiências e dos contatos com
outras línguas. É assim que o documento busca incentivar usuários se aproximarem
de outras comunidades ou regiões e, desse modo, movimentem processos econômicos,
educativos ou cotidianos que ajudem a reforçar à pluriculturalidade e o plurilinguismo.
Cabe destacar que o Quadro Europeu Comum de Referência para as Línguas
(2001) é quase um documento excepcional em matéria educativa, pois é o único que
208 TRANSCICLOPÉDIA EM DIFUSÃO DO CONHECIMENTO

possui um consenso sobre os níveis e os conteúdos a serem atingidos no processo de


aquisição de segundas línguas na Europa. O documento também é usado a nível
internacional por diversas instituições.
O antagonista do plurilinguismo é o multilinguismo. O plurilinguismo é de-
finido como o conhecimento de várias línguas ou a coexistência de distintas línguas
em uma sociedade determinada. O multilinguismo não interatua com outra língua,
de forma direta e intencional, o multilinguismo delimita ferreamente o espaço de
convívio das duas ou três línguas em “convivência”. O plurilinguismo enfatiza o fato
de que conforme a experiência comunicativa de um indivíduo vai ficando maior e
se expandindo, o usuário não guarda estas línguas e culturas em compartimentos
mentais estritamente separados senão que desenvolve uma Competência Comuni-
cativa na qual conflui a totalidade dos conhecimentos e experiências linguísticas;
é assim que as línguas se relacionam e interatuam facilitando e acrescentando a
competência comunicativa do usuário.
Entende-se então a multiculturalidade como uma justaposição de várias cultu-
ras numa mesma sociedade (Bartolomé, Coord. 2002, p. 41), e a interculturalidade
como uma relação de reciprocidade e de reconhecimento das diferenças culturais. A
Comunicação Intercultural pode-se definir como: “[...] a comunicação interpessoal
na qual intervêm pessoas com referentes culturais suficientemente diferentes como
para se autoperceber, superando barreiras pessoais e contextuais para se comunicar
de forma efetiva.” (BARTOLOMÉ Coord. 2002, p. 47).
A partir dessa definição de Interculturalidade se entende a introdução do conceito
de Competência Comunicativa Intercultural nos currículos de ensino e aprendizagem
de línguas estrangeiras, entendendo por Competência a habilidade de realizar um
objetivo específico de forma adquirida e potencializada por meio da aprendizagem.
Bryan (1997) apresenta a Competência Comunicativa Intercultural dividida
em quatro subcompetências: a intercultural, a linguística, a sociolinguística e a
discursiva. Para Bryan (1997) a Competência Comunicativa Intercultural implica
que o falante intercultural possui as seguintes habilidades:
a) Interatuar com outros, negociando modos de comunicação e interação
satisfatórios.
b) Aceitar e mediar perspectivas e percepções de pessoas de origem cultural
diferente.
c) Avaliar criticamente a diferença.
d) Unir os conhecimentos da outra cultura com a sua competência linguística
de forma consciente.
TRANSCICLOPÉDIA EM DIFUSÃO DO CONHECIMENTO 209

Bennett (1998) apresenta um modelo cognitivo e não atitudinal para definir o


conceito de Competência Comunicativa Intercultural onde é destacada a necessidade
de mudar a estrutura de pensamento e a visão do mundo para o desenvolvimento
da Sensibilidade Cultural.
Chen & Starosta (2000) assumiram o conceito de Bennett (1986) elaborando
três dimensões relacionadas com a Interculturalidade:
1. Dimensão Cognitiva ou Consciência Intercultural (Intercultural Awareness).
2. Dimensão Afetiva ou Sensibilidade Intercultural (Intercultural Sensitivity).
3. Dimensão Comportamental ou Habilidade Intercultural (Intercultural
Adroitness).
Para Chen & Starosta (2000) uma pessoa competente interculturalmente tem a
capacidade de projetar e receber respostas emocionais positivas antes, durante e depois
das inter-relações interculturais. Os autores propõem diagnosticar a Sensibilidade
Intercultural por meio de uma Escala de Sensibilidade Intercultural (Intercultural
Sensitivity Scale). Nessa escala, encontramos o autoconceito (self-concept) ou a au-
toestima como elementos principais para desenvolver a Sensibilidade Intercultural.
Gudyskunst (1991) entendeu em seu estudo sobre Competência Comunicativa
Intercultural que a empatia, como a capacidade para participar nas experiências de
outras pessoas implicando-se intelectual e emocionalmente, é fundamental. Chen
& Starosta (2000) ampliam essa visão no seu estudo, entendendo a empatia na
Competência Comunicativa Intercultural desde o cognitivo, o afetivo e o compor-
tamental. Para eles, a empatia é a capacidade de se situar na mente de uma pessoa
culturalmente diferente e de desenvolver pensamentos e emoções na interação (Chen
& Starosta, 2000, em Vilá Baños, p. 266).

REFERÊNCIAS
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210 TRANSCICLOPÉDIA EM DIFUSÃO DO CONHECIMENTO

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VILÀ BAÑOS, R. La competencia comunicativa intercultural: Un estudio en


el Primer Ciclo de la ESO, 2005. Universitat de Barcelona, Barcelona.
21. Conceito

Dante Augusto Galeffi


João Paulo Jonas Almeida

Conceito é uma palavra derivada do latim conceptus e significa ação de conter, ato
de receber, germinação, fruto, feto, pensamento, indicando em geral o ato de conceber.
Como toda palavra, conceito tem múltiplos sentidos e usos na linguagem ordinária,
sendo para a filosofia talvez a palavra conceito mais abrangente e nuclear, a partir
da qual se pode interpretar toda a história do pensamento especulativo nascido na
Grécia e desenvolvido até a contemporaneidade. É precisamente o problema central
da filosofia: O que é um Conceito? É também uma palavra que exprime um pro-
cesso histórico limitado ao mundo dominante que se tornou a cultura europeia e
sua diáspora ocidentalocênntrica em seu meme replicante, ignorando os modos como
outras culturas humanas tratam algo que para elas poderia se dizer “conceito” como
palavra nuclear.
É preciso atentar para o fato de que os sentidos atribuídos à palavra “conceitos”
são sempre sentidos situado em ambientes vitais dos falantes. O que caracteriza o ser
humano como pertencente ao mundo da vida com sua propriedade de pensamento
distinto dos modos de pensamento das outras espécies vivas em sua multiplicida-
de operante, ativa. E como a palavra conceito é um signo linguístico humano que
tem datação histórica na cultura grega e usos nas línguas modernas neolatinas ou
anglo-germânicas, contempla o sentido de uma questão fundamental em todas
as ciências praticadas por cientistas e investigadores do mundo da vida e suas leis,
limites e possibilidades. A pergunta por aquilo que um conceito é a procura pelo
sentido atual de um Conceito de Conceito.
É preciso ter presente se tratar do “conceito de um conceito”, podendo constituir
um poderoso meio de ação de compreensão de sentidos vitais reunidos em conceitos
de uso corrente nas práticas epistemológicas de produtores de conhecimento e seus
contextos vitais, sua ecologia própria (ambiental-social-mental).
Antes de apresentar sentidos do “conceito de um conceito”, é útil a indicação
dos diversos usos da palavra em nossa língua portuguesa ordinária. Sendo o pro-
duto da faculdade de conceber, conceito quer dizer também a “faculdade intelectiva
e cognoscitiva do ser humano” e, por extensão, mente, espírito, pensamento. Indica
igualmente a compreensão do que alguém tem de uma palavra, indicando a noção, con-
212 TRANSCICLOPÉDIA EM DIFUSÃO DO CONHECIMENTO

cepção, ideal. Indica também opinião, ponto de vista, convicção, podendo ser também
um dito original e engenhoso, ditado, máxima, sentença. É amplamente usado como
conclusão moral de um conto ou narrativa, moral da história. Apresenta uma ideia ou
dito conciso, resumo, conceituação de algo. Nas relações interpessoais quer significa a
reputação que goza uma pessoa por parte do grupo no qual trabalha ou convive, ou do
público, da sociedade etc., a fama de alguém.
A palavra é também vastamente usada no sistema de avaliação simplificada,
cujo foco avaliativo recai no aproveitamento e na conduta dos alunos, expressa pelas
cinco primeiras letras do alfabeto: A, B, C, D, E, em escala decrescente, o que cor-
responde a uma nota classificatória e comparativa. No campo específico da filosofia,
o uso genérico indica “a representação mental de um objeto abstrato ou concreto,
que se mostra como instrumento fundamental do pensamento em sua tarefa de
identificar, descrever e classificar os diferentes elementos e aspectos da realidade”.
Na tradição racionalista, desde Platão (427-348 a. C. até Hegel (1770-1831),
“conceito” é a “manifestação da essência ou substância do mundo real”. Em outra
linha, mais tradicional que compreende o estoicismo grego, o nominalismo medieval
e o empirismo moderno, a palavra indica “um signo ou representação linguística
que mantém uma relação significacional, não ontológica, com os objetos do conhe-
cimento. Neste sentido, indica a noção abstrata contida nas palavras de uma língua
para designar, de modo generalizado e estável, as propriedades e características de
uma classe de seres, objetos ou entidades abstratas”. Desse modo, um conceito possui
a ideia de extensão e compreensão, sendo a extensão o número de elementos da classe
definida (animal é mais extenso do que vertebrado), e a compreensão, o conjunto dos
caracteres que constituem determinada definição (vertebrado, não incluindo todos
os animais, detalha melhor). Em alguns jogos, como nas charadas, nos logogrifos e
outros semelhantes, é a palavra, expressão ou frase que indica a sua solução.
A palavra latina conceptos possui o elemento de composição cap-, antepositivo
do verbo capio,is,cepi,captum, capere, significando tomar, agarrar, pegar, apanhar,
apossar-se, como também sofrer, padecer, ser impedido, ganhar, cativar, chamar a si,
seduzir, enganar, iludir, bem como escolher, eleger, conter, encerrar, levar, admitir,
comportar, conceber, entender, ganhar, alcançar, chegar a, obter e outros. Essas
possibilidades do antepositivo cap- pode apresentar os seguintes radicais: a) radical
vulgar cab- (em uso a partir do século XI d. C.) gerando palavras como cabaz,
cabazada, cabazeiro, cabear, cabeio, caber, cabida, cabimento, cabível, cabo, corda,
amarra e outros; b) radical culto cap- (em uso desde o século XV d. C.) compondo
as palavras capacidade, capacimetria, capacímetro, capacimétrico, capacíssimo,
TRANSCICLOPÉDIA EM DIFUSÃO DO CONHECIMENTO 213

capacitado, capacitância, capacitar, capacitário, capacitativo, capacitável, capaciti-


vidade, capacitivo, capacitometria, capacitométrico, capacitômetro, capacitor, capaz
ou no sentido negativo incapacidade, incapacíssimo, incapacitado, incapacitante,
incapacitar, incapacitável, incapaz; c) radical culto capc- dando origem a palavras
como capcioso, capciosidade; d) radical culto capt- (em uso desde o século XVII)
bem como o radical vulgar cat (em uso desde o século XIII d.C.), ambos derivados
de capto, as, avi, atum, are frequentativo do verbo capio, designando captabilidade,
captação, captáculo, captado, captador, captagem, captamento, captante, captar,
captatividade, captativo, captatório, captável, captor, captura, capturado, capturador,
capturante, capturável, incapturável, como também as palavras catado, catador,
catar; e) radical culto cat- (em uso desde o século XIII, derivado de captivus, i, sig-
nificando o prisioneiro de guerra, que, por sua vez, deriva de captus, a, um, que é o
particípio passado de capere, como também as palavras cativa, cativação, cativado,
cativador, cativamento, cativante, cativar, cativaria, cativeiro, cativeza, catividade,
cativo, cativo-de-chumbos, cativo-de-cobre, cativo-deferro, cativos; a base verbal do
antepositivo cap- aparece em latim sob influxo da apofania nas seguintes formas:
1) accipio, is que significa tomar, receber, perceber, ouvir, escutar, saber, conceber,
compreender e outros, e o seu frequentativo accepto, as, significando aceitar, receber
muitas vezes, receber em voto, com os seguintes derivados (a partir do séulo XVI
d. C.) acepção, acepcional aceptáculo, aceptação, aceptado, aceptador, aceptante,
aceptar, aceptativo, aceptável, e a partir do século XIV d. C. as formas aceitabili-
dade, aceitação, aceitado, aceitativo, aceitável, aceite, aceito, aceitoso; 2) concipio, is
significando tomar juntamente, juntar, reunir, como também incendiar-se, receber,
contrair, conceber, compreender, entender, imaginar, exprimir por uma fórmula,
compor e outros, bem como os derivados anticoncepção, anticoncepcional.
Essa digressão em torno das raízes da palavra conceito tem a finalidade de
mostrar como todo conceito tem a sua constelação linguística própria e como todo
conceito se expande e se contrai como um rizoma: em todas as direções e sentidos
dentro de determinado segmento de potência vital. A infinitude rizomática de um
conceito mostra como ele é forjado em seus usos linguísticos, e suas derivações for-
mam também sistemas de sistemas abertos ao devir de um ser-sendo-no-mundo-com.
Nesse sentido, para possibilitar uma investigação do conceito como a palavra-chave
da filosofia da diferença contemporânea, transcrever-se-á o modo como Deleuze
& Guattari (1992, em O que é Filosofia?), inscreveram o conceito em uma forma
criadora e atinente ao que se define como filosofia na abertura para a diferença on-
tológica pós-antropocêntrica. Seguir-se-á o texto em seu fluxo discursivo, de modo
214 TRANSCICLOPÉDIA EM DIFUSÃO DO CONHECIMENTO

a capturar seu sentido polissêmico e polilógico inevitável, pois o conceito uma vez
dito e expresso é meio de possíveis desenvolvimentos rizomáticos na apreensão de
um devir-conceito. É quando os conceitos se tornam “próprios e apropriados” (veja-se
Filosofia própria e apropriada). Escolhemos Deleuze & Guattari como pretexto para
se conceber um conceito a partir de uma apropriação de sentido em sua dinâmica de
relação e de acontecimentos irredutível e incomparável. Seguir-se-á o texto apresen-
tando-o sempre em itálico para proporcionar maior grau de sedução em sua possível
compreensão apropriadora.
Não há conceito simples. Eis uma primeira afirmação abrindo o campo de pos-
sibilidades do que se segue como composição do sentido ou sentidos de um conceito.
Assim, todo conceito tem componentes e se define por eles. Tem, portanto, uma cifra. É
uma multiplicidade, mas nem toda multiplicidade é conceitual. Não há conceito de
um só componente, não há um primeiro conceito simples porque mesmo aquele que
dá início ao surgimento da filosofia grega é um conceito com antecedentes e partes
distintas em sua composição, apresentando-se sempre em perspectiva, um ponto de
vista ou determinada razão.
Cada filósofo começa sua atividade pensante de um conceito próprio, portan-
to, sempre diferente do conceito inicial de outros filósofos, e nenhum deles tem o
mesmo conceito de começo. Todo conceito é ao menos duplo ou triplo, ou quádruplo,
ou décuplo ou duodécuplo, ou qualquer outra variação numérica. Não há conceito
completo, pois assim ele seria um puro e simples caos, mesmo os pretensos universais,
como conceitos últimos, devem sair do caos circunscrevendo um universo que os explica
(contemplação, reflexão, comunicação...).
O contorno de todo conceito é irregular, definido pela cifra de seus componentes.
Por isso, entre os filósofos, de Platão a Bergson, se encontra a ideia do conceito como
articulação, corte e superposição. É um todo porque totaliza seus componentes, mas um
todo fragmentário, infinitesimal. E sendo fragmentário pode sair do caos mental, que
não cessa de espreitá-lo, de aderir a ele, para reabsorvê-lo. Mas, sob quais condições um
conceito é primeiro, não absolutamente, mas com relação a um outro? Os exemplos
dados esclarecem a direção do questionamento. Quem vem primeiro o outro (outrem)
ou o eu? A resposta depende da posição dos componentes. O outro (outrem) é para
um eu, um eu é também outro. Desse modo, todo conceito remete a um problema, a
problemas sem os quais não teria sentido, e que só podem ser isolados ou compreendidos
na medida de sua solução.
Diante do problema do outro se evidencia um problema atinente à pluralidade
dos sujeitos em suas relações e apresentações recíprocas. E para os autores, tudo muda
TRANSCICLOPÉDIA EM DIFUSÃO DO CONHECIMENTO 215

se acreditamos descobrir um outro problema: em que consiste a posição de outrem, que


o outro sujeito vem somente “ocupar” quando ele me aparece como objeto especial e que
quando eu lhe apareço, e que eu venho, por minha vez, ocupar como objeto especial
quando eu lhe apareço? A partir deste deslocamento de compreensão problemática,
outrem não é ninguém, nem sujeito e nem objeto. Assim, há vários sujeitos porque há
outrem, não o inverso. Outrem aqui requer um conceito a priori a partir do qual
devem derivar o objeto especial, o outro sujeito e o eu, não o contrário.
Quando se muda a ordem de um conceito, se muda sua natureza, se muda o
corte de sua questão fundamental. E os problemas mudam segundo o campo factual
de sua operosidade, são diferentes nos múltiplos campos do conhecimento e da criação
humana, seja como ciência (problemas da ciência), seja como filosofia (problemas da
filosofia), ou como arte (problemas da arte), ou como mística (problemas da mística).
Por exemplo, o conceito de arte, de ciência, de filosofia e de mística têm seus próprios
problemas que variam de autor a autor e suas circunstâncias. E o curioso é que o
conceito é o que define a própria filosofia em sua especificidade, sendo os conceitos
de arte, de ciência, de filosofia e de mística, necessariamente filosóficos. Mas mesmo
na filosofia não se cria conceitos, a não ser em função dos problemas que se consideram
malvistos ou mal colocados (pedagogia do conceito).
Os autores tratados procedem sumariamente e consideram um campo de ex-
periência tomado como mundo real em que a relação não é mais com um eu e sim
com um simples “há...”. Qualquer caso poderia servir como exemplo, e os autores
escolheram o que descrevem:
Há, nesse momento, um mundo calmo e repousante. Surge, de repente, um
rosto assustado que olha alguma coisa fora do campo. Outrem não aparece aqui
como sujeito, nem como um objeto, mas, o que é muito diferente, como um
mundo possível, como a possibilidade de um mundo assustador. Esse mundo
possível não é real, ou não o é ainda, e, todavia, não deixa de existir: é um
expressado que só existe em sua expressão, o rosto ou o equivalente do rosto.
Outrem é, antes de mais nada, esta existência de um mundo possível. E este
mundo possível tem também uma realidade própria em si mesmo, enquanto
possível: basta que aquele que exprime fale e diga “tenho medo”, para dar uma
realidade ao possível enquanto tal (mesmo se suas palavras são mentirosas).
O “eu” como índice linguístico não tem outro sentido. E, mais ainda, não é
indispensável: a China é um mundo possível, mas assume realidade logo que se
fale chinês ou que se fale da China num campo de experiência dado. É muito
diferente do caso em que a China se realiza, tornando-se o próprio campo de
experiência. Eis, pois, um conceito de outrem que não pressupõe nada além
da determinação de um mundo sensível como condição. Outrem surge neste
216 TRANSCICLOPÉDIA EM DIFUSÃO DO CONHECIMENTO

caso como a expressão de um possível. Outrem é um mundo possível, tal


como existe num rosto que o exprime, e se efetua numa linguagem que lhe dá
uma realidade. Neste sentido, é um conceito com três componentes insepa-
ráveis: mundo possível, rosto existente, linguagem real ou fala. (DELEUZE;
­GUATTARI, 2000, p. 28-29).

É importante dizer que todo conceito tem uma história. Por exemplo, o conceito
de outrem delimitado na citação acima remete a Leibniz, aos seus mundos possíveis
e à mônada como expressão de mundo. Mas não se trata do mesmo problema porque
os possíveis de Leibniz não existem no mundo real. Outrem também remete à lógica
modal das proposições, mas, diferentemente do modo como Deleuze e Guattari
compreendem por outrem, a lógica modal das proposições não confere aos mun-
dos possíveis a realidade correspondente a suas condições de verdade (mesmo quando
­Wittgenstein encara as proposições de medo ou de dor, não vê nelas modalidades expri-
míveis numa posição de outrem porque deixa outrem oscilar entre um outro sujeito e um
objeto especial). Os mundos possíveis têm uma longa história. Assim, todo e qualquer
conceito tem uma história, mesmo sendo uma história recortada e acidentada em
seus desdobramentos, cruzando outros problemas ou outros planos diferentes. Num
conceito há, no mais das vezes, pedaços ou componentes vindos de outros conceitos, que
respondiam a outros problemas e supunham outros planos. De qualquer modo, cada
conceito opera um novo corte, assume novos contornos, deve ser reativado ou recortado.
Por outro lado, um conceito possui um devir concernente a sua relação com
conceitos situados no mesmo plano. Neste caso, os conceitos se acomodam
uns aos outros [...], compõem seus respectivos problemas, pertencem à mesma
filosofia, mesmo se têm histórias diferentes. Todo conceito tem um número
finito de componentes, e por isso bifurcará sobre outros conceitos, compostos
de outras maneiras, constituindo diferentes regiões do mesmo plano e respon-
dem a problemas conectáveis, participando de uma cocriação. Um conceito
exige, além de um problema sobre o qual remaneja ou substitui conceitos
precedentes, uma encruzilhada de problemas em que se alia a outros conceitos
coexistentes. O exemplo dado esclarece a posição inventada:
No caso do conceito de Outrem, como expressão de um mundo possível
num campo perceptivo, somos levados a considerar de uma nova maneira os
componentes deste campo: outrem, não mais sendo nem um sujeito de campo,
nem um objeto no campo, vai ser a condição sobre a qual se redistribuem, não
somente o objeto e o sujeito, mas a figura e o fundo, as margens e o centro,
o móvel e o ponto de referência, o transitivo e o substancial, o comprimento
e a profundidade. Outrem é sempre percebido como um outro, mas, em
seu conceito, ele é a condição de toda percepção, para os outros como para
nós. É a condição sob a qual passamos de um mundo a outro. Outrem faz o
TRANSCICLOPÉDIA EM DIFUSÃO DO CONHECIMENTO 217

mundo passar, e o “eu” nada designa senão um mundo passado (“eu estava
tranquilo...”). Por exemplo, Outrem basta para fazer, de todo comprimento,
uma profundidade possível no espaço, e inversamente, a tal ponto que, se
este conceito não funcionasse no campo perceptivo, as transições e invenções
se tornariam incompreensíveis, e não necessariamente de nos chocar contra
as coisas, o possível tendo desaparecido. Ou ao menos, filosoficamente, seria
necessário encontrar uma outra razão pela qual nós não nos chocamos... É
assim que, a partir de um plano determinável, se passa de um conceito a um
outro, por uma espécie de ponte: a criação de um conceito de Outrem, com
tais componentes vai levar à criação de um novo conceito de espaço perceptivo,
com outros componentes, a determinar (não se chocar, ou não se chocar demais,
fará parte de seus componentes). (DELEUZE; GUATTARI, 2000, p. 30-31)

Importante seguir o argumento dos autores na virada para o mundo dos


acontecimentos como mundo-com-outros e não o mundo das representações. O
plano de consistência do conceito novo de “Outrem” é o seu acontecimento sen-
sível, perceptivo. É preciso enfatizar que não há conceitos simples, e cada um por
sua conta pode encontrar em suas circunstâncias motivos para tomar os conceitos
como operadores cognitivos em contextos específicos. As consequências devem ser
as mesmas, acreditam Deleuze e Guattari, quer dizer, qualquer um pode alcançar as
consequências concernentes à natureza do conceito ou ao conceito de conceito. Partindo
de um exemplo bastante complexo, os autores apresentam três consequências que
ajudariam qualquer um a encontrar algo comum entre os muitos casos de conceitos
em seus acontecimentos conceituais próprios.
Em primeiro lugar, cada conceito remete a outros conceitos, não somente em
sua história, mas em seu devir ou suas conexões presentes [...] os conceitos
vão, pois, ao infinito e, sendo criados, não são jamais criados do nada. Em
segundo lugar, é próprio do conceito tornar os componentes, ou o que define
a consistência do conceito, sua endo-consistência. É que cada componente
distinto apresenta um recobrimento parcial, uma zona de vizinhança ou um
limite de indiscernibilidade com um outro: por exemplo, no conceito de
outrem, o mundo possível não existe fora do rosto que o exprime, embora se
distinga dele como o expressado e a expressão; e o rosto, por sua vez, é a pro-
ximidade das palavras de que já é o porta-voz. Os componentes permanecem
distintos, mas algo passa de um a outro, algo de indecidível entre os dois: há
um domínio ab que pertence tanto a a quanto a b, em que a e b “se tornam”
indiscerníveis. São estas zonas, limites ou devires, esta inseparabilidade, que
definem a consistência interior do conceito. Mas este tem igualmente uma
exoconsistência, com outros conceitos, quando sua criação implica a construção
de uma ponte sobre o mesmo plano. As zonas e as pontes são a juntura dos
conceitos. Em terceiro lugar, cada conceito será, pois, considerado como o
218 TRANSCICLOPÉDIA EM DIFUSÃO DO CONHECIMENTO

ponto de coincidência, de condensação ou de acumulação de seus próprios


componentes. O ponto conceitual não deixa de percorrer seus componentes, de
subir e de descer neles. Cada componente, neste sentido, é um traço intensivo,
uma ordenada intensiva que não deve ser apreendida nem como geral nem
como particular, mas como uma pura e simples singularidade — “um” mundo
possível, “um” rosto, “certas” palavras — que se particulariza ou generaliza,
segundo se lhe atribui valores variáveis ou se lhe designa uma função constante
(DELEUZE; GUATTARI, 2000, p. 31-32).

Assim, contrariamente ao que ocorre no mundo da ciência, não há nem cons-


tante e nem variável no conceito, e não se distinguirão nem espécies variáveis para um
gênero constante, nem espécie constante para indivíduos variáveis. Importante salientar
que as relações no conceito não são nem de compreensão nem de extensão, mas
somente de ordenação, e os componentes do conceito não são nem constantes nem
variáveis, mas puras e simples variações ordenadas segundo sua vizinhança. As
relações são processuais, modulares. O conceito de qualquer coisa não está em seu
gênero ou sua espécie, mas na composição de suas posturas, de seus modos, cores,
vozes: algo de indiscernível, que é menos uma sinestesia que uma sineidesia (que se
dá conjuntamente com outro).
Desse modo, um conceito é uma heterogênese — ordenação de seus com-
ponentes por zonas de vizinhança. É ordinal, é um intensão presente em todos os
traços que o compõem. Não deixando de percorrê-los segundo uma ordem sem
distância, o conceito está em estado de sobrevoo com relação a seus componentes.
O conceito é imediatamente copresente sem nenhuma distância de todos os seus
componentes ou variações, o tempo todo passa e repassa por eles: é um ritornelo,
um opus com sua cifra.
O conceito é um incorporal, embora se encarne ou se efetue nos corpos. Mas,
justamente, não se confunde com o estado de coisas no qual se efetua. Não tem
coordenadas espaço-temporais, mas apenas ordenadas intensivas.
Um conceito não tem energia, é anergético (a energia não é a intensidade, mas
a maneira como esta se desenrola e se anula num estado de coisas extensivo). O
conceito diz o acontecimento, não essência ou a coisa. É um Acontecimento puro,
uma hecceidade9, uma entidade: o acontecimento de outrem, ou o acontecimento
do rosto — rosto tomado como conceito.

9
No pensamento de Duns Scotus (1265-1308), há o caráter particular, individual, único de um
ente, que o distingue de todos os outros; ecceidade, ipseidade. O termo foi recuperado no século
XX pelo heideggerianismo. (HOUAISS, 2005).
TRANSCICLOPÉDIA EM DIFUSÃO DO CONHECIMENTO 219

O conceito define-se pela inseparabilidade de um número finito de componentes


heterogêneos percorridos por um ponto em sobrevoo absoluto, à velocidade infinita.
Conceitos são “superfícies ou volumes absolutos”. Suas formas têm como objeto a
inseparabilidade de distintas variações.
O “sobrevoo” é o estado do conceito, seu modo de pôr-se acima das variações,
pegando o todo que antes escapava quando partes apenas eram visadas e focadas,
como se fossem expressões de coisas distintas e incomunicáveis. O “sobrevoo” é o
estado do conceito em sua infinitude própria, embora sejam os infinitos maiores ou
menores segundo a cifra dos componentes, dos limites e das pontes.
O conceito é ato de pensamento operando em velocidade infinita, velocidade
maior ou menor, mas sempre infinita. Neste sentido, o conceito é ao mesmo tempo
absoluto e relativo:

O conceito é infinito por seu sobrevoo ou sua velocidade, e finito pelo movi-
mento que traça o contorno dos seus componentes. A maneira pela qual um conceito
permanece absoluto é a maneira pela qual o conceito criado se põe nele mesmo e
com outros.
A relatividade e a absolutidade do conceito são como sua pedagogia e sua on-
tologia, sua criação e sua autoposição, sua idealidade e sua realidade. Real sem
ser atual, ideal sem ser abstrato... O conceito define-se por sua consistência,
endoconsistência e exo-consistência, mas não tem referência: ele é autorrefe-
rencial, põe-se a si mesmo e põe seu objeto, ao mesmo tempo que é criado.
O construtivismo une o relativo e o absoluto.
Enfim, o conceito não é discursivo, e a filosofia não é uma formação discursiva
porque não encadeia proposições. É a confusão do conceito com a proposi-
ção que faz acreditar na existência de conceitos científicos e que considera a
proposição como um verdadeiro “intensão” (o que a frase exprime): então, o
conceito filosófico só aparece, quase sempre, como uma proposição despida
de sentido. Esta confusão reina na lógica e explica a ideia infantil que ela
220 TRANSCICLOPÉDIA EM DIFUSÃO DO CONHECIMENTO

tem da filosofia. Medem-se os conceitos por uma gramática “filosófica” que


os substitui por proposições extraídas das frases onde elas aparecem: somos
restringidos sempre a alternativas entre proposições, sem ver que o conceito já
foi projetado no terceiro excluído. (DELEUZE; GUATTARI, 2000, p. 34-35)

Para os autores, o conceito nunca é uma proposição, não é proposicional, pois


nenhuma proposição é um intensão, e conceitos são intensivos. Proposições são
definidas por suas referências, e a referência nada tem a ver com Acontecimento, e
sim a uma relação com o estado de coisas ou de corpos, assim como às condições
dessa relação. As condições dadas por referências são todas extensionistas: implicam
sucessivas operações de enquadramento em abcissas ou de linearização que fazem os
dados intensivos entrar em coordenadas espaço-temporais e energéticas, em operações de
correspondência entre conjuntos assim delimitados.
São as sucessões e as correspondências que definem a discursividade nos sistemas
extensivos. A independência das variáveis nas proposições é oposta à inseparabilidade
das variações no conceito. Os conceitos entram livremente em relações de ressonância
não discursiva, isto porque os componentes de um se tornam conceitos com outros
componentes sempre heterogêneos, bem como não apresentam entre si nenhuma
diferença de escala em nenhum nível.
Por isso, os conceitos podem ser tomados como centros de vibrações, cada um
em si mesmo e uns em relação aos outros. E como centros de vibrações, nos conceitos
tudo ressoa, sem segmentos e correspondências. Conceitos não podem ser seguidos.
Os conceitos, como totalidades fragmentárias, não são sequer os pedaços de um
quebra-cabeça, pois seus contornos irregulares não se correspondem. Eles formam
um muro, mas é um muro de pedras secas e, se tudo é tomado conjuntamente,
é por caminhos divergentes. Mesmo as pontes, de um conceito a um outro,
são ainda encruzilhadas, ou desvios que não circunscrevem nenhum conjunto
discursivo. São pontes moventes (DELEUZE; GUATTARI, 2000, p. 35-36).

Desse ponto de vista, os autores consideram que a filosofia está em estado de


perpétua digressão ou digressividade. É daí que as grandes diferenças aparecem entre
a enunciação filosófica dos conceitos fragmentários e aquela científica das proposi-
ções parciais. Diferente das enunciações científicas, aquelas filosóficas permanecem
estritamente imanentes ao conceito, sendo sua consistência constituída na insepara-
bilidade dos seus componentes. Outro aspecto a considerar é o tipo de enunciação
de criação ou de assinatura, o que demarca as várias possibilidades criadoras do fazer
humano. Também a ciência cria, como a arte e a mística também são criadoras. A
criação, portanto, não é nenhum privilégio da filosofia pelo fato de se poder defini-la
TRANSCICLOPÉDIA EM DIFUSÃO DO CONHECIMENTO 221

como “criação de conceitos”. A ciência cria funções, a filosofia cria conceitos, a arte
cria perceptos e afetos, a mística cria fusões e intuitos (este último modo de criação
foi acrescentado por Galeffi em sua teoriação polilógica. (Cf. o verbete Teoriação
Polilógica neste compêndio).
O fato é que falamos sempre de nomes próprios quando falamos de uma dada
criação: o Teorema de Pitágoras, a Geometria de Euclides, as Coordenadas de Car-
tesio, o Número de Hamilton, a Função de Lagrange, a Ideia de Platão, o Cogito
de Descartes, a Relatividade de Einstein etc. Entretanto, há uma diferença entre os
nomes próprios da ciência e da filosofia. Os nomes próprios das ciências são másca-
ras para outros devires, servem apenas como pseudônimos de entidades singulares
mais secretas, mais misteriosas. E se as proposições tratam de observadores parciais
extrínsecos e que são cientificamente definíveis em relação a eixos de referência, os
conceitos são personagens conceituais intrínsecos que impregnam os seus planos de
consistência. E mesmo exprimindo-se por frases, a filosofia não extrai das frases em
geral apenas proposições, como afirmam Deleuze e Guattari:
Por enquanto dispomos apenas de uma hipótese muito ampla: das frases ou
de um equivalente, a filosofia tira conceitos (que não se confundem com ideias
gerais ou abstratas), enquanto a ciência tira prospectos (proposições que não
se confundem com juízos), e a arte tira perceptos e afetos (que também não se
confundem com percepções ou sentimentos). Em cada caso, a linguagem é
submetida a provas e usos incomparáveis, mas que não definem a diferença
entre as disciplinas sem constituir também seus cruzamentos (DELEUZE;
GUATTARI, 2000, p. 37).

Afinal, haveria um melhor plano para os conceitos, eles poderiam ser compa-
rados e hierarquizados? Seu plano é melhor do que o de outrem? Em que medida
existiria os melhores planos? É inútil dizer algo sobre a comparação classificatória de
conceitos, só revelaria um jogo de privilégios, jogo pelo poder “para si”: afirmação
do diferente da diferença, como dizem os autores:
Os planos, é necessário fazê-los, e os problemas, colocá-los, como é necessário
criar os conceitos. O filósofo faz o que pode, mas tem muito a fazer para saber
se é o melhor, ou mesmo se interessar por esta questão. Certamente, os novos
conceitos devem estar em relação com problemas que são os nossos, com nossa
história e sobretudo com nossos devires. Mas que significam os conceitos de
nosso tempo ou de um tempo qualquer? Os conceitos não são eternos, mas
são por isso temporais? Qual é a forma filosófica dos problemas deste tempo?
Se um conceito é “melhor” que o precedente, é porque ele faz ouvir novas
variações e ressonâncias desconhecidas, opera recortes insólitos, suscita um
Acontecimento que nos sobrevoa. Mas não é já o que fazia o precedente? E se
222 TRANSCICLOPÉDIA EM DIFUSÃO DO CONHECIMENTO

podemos continuar sendo platônicos, cartesianos ou kantianos hoje, é porque


temos direito de pensar que seus conceitos podem ser reavivados em nossos
problemas e inspirar os conceitos que é necessário criar. E qual é a melhor
maneira de seguir os grandes filósofos, repetir o que eles disseram, ou então
fazer o que eles fizeram, isto é, criar conceitos para problemas que mudam
necessariamente? (DELEUZE; GUATTARI, 2000, p. 40-41).

Para os autores, é por isso que os filósofos não encontram prazer em discutir.
Todo filósofo foge quando ouve a frase: vamos discutir um pouco. As discussões são
boas para as mesas-redondas, mas é sobre uma outra mesa que a filosofia joga seus
dados cifrados (p. 41). O problema é que os interlocutores nas discussões nunca fazem
avançar a criação de um novo conceito porque cada um fala de coisas diferentes e, na
maioria das vezes, ninguém se ouve. É diferente do diálogo em que o que importa é
fazer avançar a criação de novos conceitos compartilhados pelos dialogantes. Para os
autores, a comunicação vem sempre cedo demais ou tarde demais, e a conversação
está sempre em excesso com relação a criar.
Fez-se da filosofia também uma imagem de comunicação, como quando
se propala uma “racionalidade comunicativa” ou uma “conversação democrática
universal”. A inexatidão aqui é total porque quando um filósofo critica um outro é
sempre a partir de problemas e de um plano que não são do outro e nem os convo-
ca a investigá-los. Na crítica, antigos conceitos são fundidos, como se pode fundir
um canhão para fabricar novas armas. Ninguém se encontra no mesmo plano que
outro. Por isso, criticar é somente constatar que um conceito se esvanece, perde seus
componentes ou adquire outros novos que o transformam, quando mergulhado
em novo meio. Os que criticam sem criar são a chaga da filosofia. Animados pelo
ressentimento, os discutidores/comunicadores só falam de si mesmos confrontando
generalidades vazias. A figura de Sócrates é paradigmática em relação ao conceito. Ele
fez do amigo o amigo exclusivo do conceito, e do conceito o impiedoso monólogo
que elimina um após o outro, todos os rivais. Para os autores,
Em toda parte, reencontramos o mesmo estatuto pedagógico do conceito:
uma multiplicidade, uma superfície ou um volume absoluto, autorreferentes,
compostos de um certo número de variações intensivas inseparáveis, segundo
uma ordem de vizinhança, e percorridos por um ponto em estado de sobrevoo.
O conceito é o contorno, a configuração, a constelação de um acontecimento
por vir. Os conceitos, neste sentido, pertencem de pleno direito à filosofia
porque é ela que os cria, e não cessa de criá-los. O conceito é evidentemente
conhecimento, mas conhecimento de si, e o que ele conhece é o puro acon-
tecimento, o que não se confunde com o estado de coisas no qual se encarna
(DELEUZE; GUATTARI, 2000, p. 46).
TRANSCICLOPÉDIA EM DIFUSÃO DO CONHECIMENTO 223

A tarefa da filosofia quando cria conceitos (entidades) é, então, destacar sempre


um acontecimento das coisas e dos seres. Seu impulso é erigir sempre um novo evento das
coisas e dos seres, fazer com que se tornem um novo acontecimento. Para os autores:
É inútil atribuir conceitos à ciência, mesmo quando ela se ocupa dos mesmos
“objetos”, não é sob o aspecto do conceito, não é criando conceitos. Dir-se-á
que é uma questão de palavras, mas é raro que as palavras não impliquem
intenções e armadilhas. Seria uma pura questão de palavras se decidíssemos
reservar o conceito à ciência, sob condição de se encontrar outra palavra para
designar o negócio da filosofia. Mas o mais das vezes procedemos de outra
maneira. Começamos por atribuir o poder dos conceitos à ciência, definimos
o conceito pelos procedimentos criativos da ciência, medimo-lo pela ciência,
depois perguntamos se não resta uma possibilidade para que a filosofia fornece
por sua vez conceitos de segunda zona, que suprem sua própria insuficiência
por um vago apelo ao vivido (DELEUZE; GUATTARI, 2000, p. 46-47).

Para os autores, o “conceito de conceito” é criado no âmbito da filosofia e


não deriva e nem se resolve no âmbito da ciência. Eles defendem o conceito como
pertencente à filosofia e só a ela. Por isto, a grandeza de uma filosofia pode ser ava-
liada pela natureza dos acontecimentos convocados por seus conceitos. E porque
o conceito filosófico não se refere ao vivido, por compensação, mas consiste, como
ato criador, em construir um acontecimento que sobrevoe todo o vivido, bem como
qualquer estado de coisas.
Após toda essa exposição do que dizem Deleuze e Guattari sobre o que é um
conceito, é preciso provocar o distanciamento em relação ao que se desenhou como
sendo próprio ao conceito. Fica evidente como o conceito, a criação de conceitos,
se diz acontecimento da filosofia. Resta saber se esta afirmação satisfaz ou se resta
ainda ampliar o “conceito de conceito” para além da filosofia e enfocar também o
seu antagonismo como seu antielemento, um não-conceito. Isto remete ao “plano
de imanência” dos conceitos, sua instância existencial encarnada.
Para os autores, sendo totalidades fragmentárias, os conceitos filosóficos nascem
de lances de dados e não compõem um quebra-cabeça. Há sempre uma correlação entre o
plano e o conceito. Todo conceito tem seu plano de imanência próprio. O plano quer
dizer algo como “mundo”. Todo conceito tem o seu próprio “mundo”, que é seu plano
de imanência, sua condição de efetivação e consistenciação. Os conceitos são velocidades
infinitas de movimentos finitos, nada seriam sem um plano que os torna conceitos em
velocidade infinita. O plano é o único suporte dos conceitos. E o plano de imanência
não é um conceito pensado nem pensável, mas a imagem do pensamento, a imagem que ele
se dá do que significa pensar, fazer uso do pensamento, se orientar no pensamento.
224 TRANSCICLOPÉDIA EM DIFUSÃO DO CONHECIMENTO

Com toda essa quantidade de características do conceito de conceito, haveria


alternativas para se pensar o conceito filosoficamente além do já inventado? Resta
saber quem se dispõe a criar conceitos filosóficos com a disposição do amigo dos
conceitos, sem deixar que outros se apossem de sua propriedade de conceito filosófico.
Portanto, conceito de conceito é coisa de filósofo, o criador de conceitos, artesão
inventor dos nomes próprios e impróprios, “verdadeiros” ou “falsos” dos conceitos.
O filósofo neste sentido, quem é? Daí a importância dos “personagens conceituais”
na criação de conceitos filosóficos, o que não existe no âmbito dos enunciados cien-
tíficos. Significa a carnalidade dos conceitos: sua relação com a pessoa que os criou:
Platão, Aristóteles, Sócrates, Parmênides, Epicuro, Heráclito, Descartes, Hume,
Kant, Hegel, Marx, Nietzsche, Bergson, Husserl, Heidegger, Foucault, Deleuze,
Guattari etc. Não há aquilo que se chama de filosofia sem os seus “personagens
conceituais”, e os “personagens conceituais” da ciência são “personagens funcionais”
porque suas criações se atêm às funções relativas aos estados de coisas que podem
ser extensivamente medidas. Na ciência, as intensidades de um Acontecimento se
expressam em fórmulas e cálculos, não sendo absolutamente necessário criar conceitos
porque estão criando fuctivos, projetos funcionais de estados de coisas. O conceito de
um conceito é uma criação filosófica, o que caberia investigar em que consiste uma
criação filosófica e como reconhecê-la em sua distinção e singularidade irredutível
a outras formas de generalização mental de natureza sintética e apresentativa.

REFERÊNCIAS
DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Félix. O que é a filosofia? 2.ed. Rio de Janeiro:
Editora 34, 2000.

HOUAISS. Dicionário Eletrônico Houaiss da Língua Portuguesa 1.0. Rio de


Janeiro: Objetiva, 2005.
22. Conceito de Texto

Antonia da Silva Santos

Para se disseminar o conhecimento é necessário falar sobre dados, códigos


e informação. Incluem-se as descrições, hipóteses, conceitos, teorias, princípios e
procedimentos. Conceito consiste numa representação mental e linguística de um
objeto concreto ou abstrato. Trata-se de um contributo para a formação de diversas
teorias, sendo-as representativas para o mundo, seja no âmbito individual, coletivo
ou histórico.
Conceito está diretamente relacionado às categorias, às noções e às particula-
ridades da perspectiva dialógica no sentido de linguagem em uso e do movimento
de tensão entre identidade e alteridade, entre um eu e um outro, entre o dado e o
criado, isto é, elementos que são envolvidos na comunicação, na produção de co-
nhecimentos, na produção de sentidos (BRAIT, 2016, p. 18-20).
Ocasionalmente, a definição de texto é utilizada para nomear o corpo de uma
obra, seja impressa ou manuscrita, fazendo oposição a tudo aquilo que vai separado
do mesmo. O texto é somente o corpo principal de um livro. Estabelece diálogos
com disciplinas diferentes, em sua própria complexidade, com propostas teóricas
complementares e permite alcançar novas perspectivas na conformação de uma
unidade de descrição e análise linguística.
Todo o texto é tudo o que é dito ou escrito e realizado em algum contexto de
uso. O contexto é experiência única e condiciona maneiras de usar a linguagem,
isto é, passa a ser discurso único. No caso do discurso, o contexto é definido como
modelo mental. A função primordial do contexto é garantir que os participantes
possam produzir textos ou falas adequadas à situação comunicativa.
Texto é o resultado de toda e qualquer situação de interação, isto é, ele é pró-
prio e é a forma linguística de interação social, é uma unidade de uso linguístico.
Trata-se, portanto, do resultado daquilo que foi produzido quando foi comunicado,
ou seja, é uma coleção de significados apropriados ao seu contexto como um objetivo
comunicativo (SANTOS, 2017).
Texto pode ser visto como objeto de análise, ora como elemento central, ora
como elemento relevante para o tratamento de outras categorias mais centrais em
determinada perspectiva.
226 TRANSCICLOPÉDIA EM DIFUSÃO DO CONHECIMENTO

REFERÊNCIAS
BRAIT, Beth. O texto nas reflexões de Bakhtin e do Círculo. In: BATISTA,
Ronaldo de Oliveira (Org.). Texto e seus conceitos. São Paulo: Parábola, 2016,
p. 13-30.

SANTOS, Antonia da Silva. Brasil e África entre escritas e imagens: modificações e


linguagens no facebook. Revista Africanias, 8, Salvador, UNEB, 2017, online.
23. Conectivismo

Antonio Ribas Reis

Face à incapacidade das teorias de aprendizagem mais usadas no desenho de


ambientes instrucionais (behaviorismo, cognitivismo e construtivismo) dar resposta
à nova realidade imposta pelo avanço da tecnologia e que se traduz nas mais variadas
formas de comunicação e aprendizagem formal, informal e não formal, Siemens
(2004) propõe uma alternativa para a era digital, o Conectivismo, como nova teoria
da aprendizagem, no artigo Connectivism: A Learning Theory for the Digital Age.
Todas as existentes teorias da aprendizagem partem da noção de que o conhe-
cimento é um objetivo (ou um estado) de que é possível apropriar-se quer através
de raciocínio ou experiências.
Essas teorias estão focadas no próprio processo de aprendizagem, e não no valor do
que está a ser aprendido. Num mundo em rede, vale a pena explorar a própria forma de
adquirir informações. A necessidade de avaliar o valor de aprender alguma coisa é uma
metacompetência, que é aplicada antes mesmo da aprendizagem propriamente dita ter
início. Quando o conhecimento é escasso, o processo de avaliação do valor presume-se
intrínseco à aprendizagem. Quando o conhecimento é abundante e há um constante
aumento da informação, a rápida avaliação do conhecimento revela-se importante. A
capacidade de sintetizar e reconhecer conexões e padrões é uma competência valiosa.
O Conectivismo surge com os pressupostos de que a aprendizagem, vinculada à
tecnologia, parte do caos, da rede e de teorias de complexidade e de auto-organização.
A aprendizagem pode residir fora de nós mesmos (dentro de uma organização ou
de um banco de dados), centra-se sobre a ligação fixa de informação especializada e
as conexões que nos permitem aprender mais são mais importantes do que o nosso
estado atual de conhecimento.
Estes são os princípios do Conectivismo que Siemens postula:
1. Aprendizagem e conhecimento assentam na diversidade de pareceres.
2. A aprendizagem é um processo de conectar elos especializados ou fontes
de informação.
3. A aprendizagem pode residir em mecanismos não humanos.
4. A capacidade para conhecer é mais importante do que aquilo que é atu-
almente conhecido.
228 TRANSCICLOPÉDIA EM DIFUSÃO DO CONHECIMENTO

5. Fomentar e manter conexões é necessário para facilitar a aprendizagem


contínua.
6. A capacidade de ver conexões entre áreas, ideias e conceitos é uma com-
petência nuclear.
7. A conservação de um conhecimento exato e atual é a intenção de todas as
atividades de aprendizagem conectivas.

A tomada de decisão é em si um processo de aprendizagem. Escolher o que


aprender e o significado da informação recebida deve ser visto à luz de uma nova
realidade, embora haja uma resposta certa agora, ela pode ser errada amanhã devido
a alterações nas informações que afetam a decisão.

CONCLUSÃO
No seu artigo Connectivism: A Learning Theory for the Digital Age, George
­Siemens apresenta uma teoria alternativa de aprendizagem, adaptada à nova realidade
tecnológica e à sociedade em rede. O Conectivismo postula que o conhecimento se
constrói através de uma rede de conexões, sendo a aprendizagem a capacidade de
construir conhecimento em conexão. Nesse sentido, o conhecimento está disponível
por meio de redes, e o ato de aprender não é mais do que a capacidade de construir
uma ampla rede de conexões.
Para o conectivismo, ensinar, além de ser a capacidade de fazer com que o
sujeito seja capaz de ativar o conhecimento conhecido até o ponto da aplicação,
é também mediar situações para que o sujeito encontre o que necessita. Aprender
significa que o conhecimento é distribuído por meio de uma rede de conexões e,
portanto, a aprendizagem consiste na capacidade de construir e percorrer essas redes.
Para Siemens (2004), aprendizagem e conhecimento apoiam-se na diversidade
de opiniões e posições, que seriam possíveis por meio das conexões realizadas em rede.
No contexto atual, o ensino e a aprendizagem estão sendo desafiados como
nunca, com informações, conhecimentos múltiplos e diferentes visões de mundo.
Dessa forma, educar se tornou atividade desafiadora, acompanhando a complexidade
da sociedade. É necessário repensar a educação, reaprender a ensinar, a participar
com os alunos da construção de novos conhecimentos. Precisa-se de uma escola que
possa aceitar o desafio das mudanças e possa atender as necessidades de formação
de uma geração que já se encontra vivenciando o mundo midiático.
TRANSCICLOPÉDIA EM DIFUSÃO DO CONHECIMENTO 229

REFERÊNCIAS
SIEMENS, George. Connectivism: A Learning Theory for the Digital Age.
Disponível em http://www.elearnspace.org/Articles/connectivism.htm. Acesso em
1.nov. 2017.

SIEMENS, George. Knowing Knowledge. Disponível em http://www.


elearnspace.org/KnowingKnowledge_LowRes.pdf. Acesso em 1.nov. 2017.
24. Construção do Conhecimento

Joseni França Oliveira Lima

Vive-se um momento histórico. As pessoas não tomam tempo para refletir.


Desejam tudo pronto, vivem em função de imagens; não buscam ler nem mesmo as
legendas que as acompanham. Por falta de combustível literário prévio muitos são
incapazes de formular um argumento resultante de seus próprios pensamentos. Será
que em algum momento foram motivados a observar, a refletir sobre o conhecimento?
Homens no passado se questionaram suas origens e objetivos de existência,
elaboraram teses, leis, saíram de suas caixas, arriscaram expor suas ideias e assim
nasceram correntes filosóficas, teorias científicas, leis que traduziam a observação de
eventos da natureza. A busca no aperfeiçoamento de métodos levou os pensadores
e cientistas a extremos, em cujo final não encontravam a resposta para os próprios
questionamentos. Daí em diante paradigmas eram rompidos e novos exemplos
tomavam o lugar das formulações existentes.
Homens como Platão e Aristóteles se revezaram em sua forma de pensar, fizeram
escolas. Muitos os seguiam perguntando e levando a novas elaborações. Em tempos
mais recentes, correntes filosóficas, como o positivismo, o marxismo, o funcionalismo,
buscaram respostas e soluções para as inquietações daqueles momentos. Atualmente,
essas correntes não devem ser desprezadas, pois não se excluem, se complementam.
Um exemplo clássico dessa observação encontra-se na Psicologia. Não haveria
Jung se antes não houvesse Freud, que, por sua vez, trouxe muitas respostas olhan-
do para a mente humana sob outra perspectiva. Na busca necessária de tornar a
psicologia uma ciência, ou melhor, para que as demais ciências e seus seguidores a
vissem como tal, Freud a encaixou em conceitos e definições, como se fossem leis e
assim fosse respeitada como ciência. Teve seu mérito.
Quando Jung começou a questionar, a olhar sob outra perspectiva e perceber
que havia mais a ser dito, que havia algo mais a ser explorado, ele foi excluído. E,
corajosamente, ele manteve seu pensamento. O mais incrível é que Freud o baniu,
o excluiu do círculo de discussões e nem mesmo citava seu nome, como se, por
pensar diferente do mestre, não merecesse consideração, como se a forma diferente
de alguém pensar ferisse as leis da psicologia por ele estabelecidas. De forma bem
diferente, Jung sempre o citou, pois não haveria um novo pensamento, se não hou-
vesse o primeiro, ou seja, as reflexões de Freud. O surgimento da psicologia cognitiva
TRANSCICLOPÉDIA EM DIFUSÃO DO CONHECIMENTO 231

só foi possível porque Freud pensou primeiro. Crescimento e evolução somente são
possíveis, se houver uma gênese.
Freud tentava proteger-se, pois mudanças de paradigma de forma geral despres-
tigiam não o pensamento, nem a ciência, mas o cientista que a defende e a sustenta,
por isto há resistência às mudanças.
Recentemente, li o livro A estrutura das revoluções científica, de Thomas Khun
(2013) e me identifiquei com seus postulados em vários aspectos. Sua trajetória
incomum, de físico para historiador, e depois filósofo, fez com que eu me sentisse
a vontade, pois também tenho uma trajetória múltipla, tendo migrado de Arquite-
tura para Nutrição, áreas distintas e agora estou na docência em Educação. Khun
graduou-se físico e logo depois passou a integrar uma congregação de estudos em
Harvard, período que ele próprio designa como oportunidade para estudar sobre
vários temas. Assim está acontecendo comigo no doutorado que estou cursando, o
melhor que poderia fazer, em área diferente da nutrição com possibilidade de fazer
contato com áreas do conhecimento que a nutrição não me proporcionaria. Agradeço
aos meus discentes pela oportunidade de buscar múltiplos saberes.
Khun testou sua concepção de ciência que ainda estava em desenvolvimento.
Em 1952, ele foi convidado para lecionar História da Ciência e agradeceu aos es-
tudantes pela oportunidade que teve para estudar. Em 1959, recebeu um convite
para escrever um ensaio para a Behavioral Sciences. Para tanto, ele teve contato com
cientistas sociais. A partir do ensaio, nasceu o livro: A estrutura das revoluções cientí-
ficas, no qual ele afirma que uma nova teoria não substitui uma antiga por ser mais
verdadeira, e sim por causa de uma mudança de concepção de mundo.
Ao longo do livro, o autor faz uma análise do papel dos fatores exteriores à
ciência, que proporcionaram, em momentos de crise, o surgimento de novos para-
digmas e a transformação do pensamento científico e da prática correspondente.
Vive-se um momento de intensas e rápidas mudanças. Alguns profissionais das áreas
sociais, humanas e de saúde estão preocupados com a repercussão dessas mudanças
nas estruturas sociais. O número crescente de distúrbios psicológicos e doenças de
ordem emocional, principalmente na população mais jovem, exige uma reflexão:
seria este um momento de mudança de paradigma?
Khun cita Kant como tendo sido, antes de si mesmo, o introdutor da ideia de
revolução científica, conceito que ele vai usar muitas vezes em seu livro, só não o
fazendo mais do que a palavra paradigma. Ele destaca que novas teorias, como a teoria
quântica e a teoria da relatividade, que hoje parecem naturais, na ocasião causaram
reações turbulentas e perturbadoras. Seu ensaio apresenta uma crítica ao trabalho da
232 TRANSCICLOPÉDIA EM DIFUSÃO DO CONHECIMENTO

Ciência Normal, como sendo teorético, que, em sua base, essa Ciência não objetiva
inovar-se, que os problemas de pesquisa não visam produzir efetivas novidades.
O autor provoca os cientistas ao declarar que as descobertas precisam de pessoas
que se aventurem fora dos limites normais de sua especialidade (interdisciplinaridade),
que aceitem colocar em risco sua carreira, trabalhar sozinhos. Comenta como resultado
de suas observações que, em alguns casos, os cientistas inovadores têm medo de dizer
aos colegas o que estão estudando, pelo receio de serem excluídos. Alguns cientistas
se acomodam, outros continuam observando e fazendo novos questionamentos que,
por sua vez, vão violar expectativas arraigadas e levar à evidência de que o projeto
da Ciência Normal tem que ser refeito! Neste momento, observações provocam
o surgimento de outro fator que consiste na emergência gradual e simultânea do
reconhecimento de novos planos conceituais. Movimentos científicos acontecem
simultaneamente em vários laboratórios que acabam preparando o caminho para as
mudanças. Finalmente, acontecem as mudanças de categoria e procedimentos. As
novas descobertas ampliam domínios, modificam campos existentes. Um estranho
mundo novo se configura. Tudo que é novo produz, de forma geral, certo temor nas
pessoas. De forma diferente, Jung preferiu correr riscos e não teve medo de expressar
suas ideias, trazendo a luz para a ciência da Psicologia.
Khun identificou que, durante o processo de mudança, existe um período
pré-paradigmático, marcado por debates. Existe a percepção do que ele denomina
como anomalia: “[...] acontece algo quando não deveria acontecer”, para o qual não
se encontram explicações. As especulações indicam a consciência da anomalia e
a percepção de algo errado é o prelúdio da descoberta. Depois vem um período de
transição que produz novas escolas e não acordos, pois os debates continuam durante
novo paradigma. Existem revoluções grandes e pequenas, algumas mudanças de
paradigma acontecem em subgrupos de uma ciência (como aconteceu na psicologia).
Esse momento de percepção gera resistência, a Ciência Normal vai aumentando a
precisão do método na busca de responder aos questionamentos que vão surgindo,
fazendo ajustes. Esse processo de ampliação é importante na consciência da anomalia
e consequente processo da descoberta.
Segundo o autor, percebe-se que a anomalia precisa ser muito grande para
desencadear uma crise. Em geral, os pesquisadores mais jovens e novatos são pouco
comprometidos com as regras tradicionais da Ciência Normal e tendem a questionar.
Considerando que os jovens e adolescentes de hoje estão sendo pouco motivados a
refletir, pergunto: Qual será o ‘tipo’ de ciência ou de atitude científica que teremos
daqui a alguns anos?
TRANSCICLOPÉDIA EM DIFUSÃO DO CONHECIMENTO 233

As ideias de Kuhn provocaram hostilidade e admiração em 1962 quando


foram publicadas, e ainda hoje ele é citado nos meios acadêmicos. Ele esvaziou o
conceito da ciência como processo ordenado de fazer perguntas e encontrar respos-
tas. Enfatizou o contraste entre o que faz a maior parte dos cientistas num trabalho
legítimo bem compreendido, e o trabalho excepcional, não ortodoxo, este sim que
cria revoluções (GLEICK, 1989).
Edgar Morin (2007) cita Thomas Khun:
[...] como bem sabemos desde ‘A estrutura da revolução cientifica’, o desen-
volvimento da ciência não se efetua por acumulação de conhecimento, mas
por transformação dos princípios que os organizam (MORIN, 2007).

No livro Educação e Complexidade: os sete saberes e outros ensaios, o s­ ociólogo


Edgar Morin fala sobre o processo de especialização e simplificação do ensino,
da fragmentação do conhecimento, na qual não se observa a articulação entre os
componentes curriculares da matriz educacional. A complexidade da riqueza do
ensino e as articulações entre os diversos saberes são menosprezados e essa atitude
é justificada por uma falsa racionalidade.
Segundo Morin (2007), Complexus significa o “[...] que é tecido em conjunto”. A
complexidade está presente quando há diálogo permanente e múltiplos olhares, quando
há polilógica (GALEFFI, 2017), quando os componentes curriculares formam um tecido
interdependente, interativo entre as diversas partes que o compõem, entre o objeto e
seu contexto, entre a unidade e multiplicidade, as partes e o todo e as partes entre si.
O meio ambiente constitui-se num organismo complexo, com interações que
vão além de interpretações monológicas, unindo aspectos biológicos, geográficos,
matemáticos e históricos. Nesse conjunto de complexidade, estão os humanos, seres
complexos que podem ser entendidos através de seus aspectos físicos, biológicos,
sociais, culturais, psíquicos.
Além de indivíduos, esses sujeitos são membros de diferentes agrupamentos e
coletividades: família, escola, trabalho, comunidade, planeta. Em cada um desses
agrupamentos existem características que determinam uma coesão ou um consenso
de pensamento entre os constituintes do grupo. Compartilham história, cultura,
hábitos, aspectos que os identificam e produzem conhecimento. Morin (2007) de-
clara que a vida em comunidade necessita de que a solidariedade e a ética caminhem
juntas para (re)ligação dos seres e saberes.
Vive-se um momento de imprevisibilidade. O ambiente atual da educação
perdeu as noções de multiplicidade e diversidade cultural, social, ambiental e in-
234 TRANSCICLOPÉDIA EM DIFUSÃO DO CONHECIMENTO

dividual, cumprindo apenas um currículo reducionista. Morin (2007) propõe um


pensamento crítico para recuperar a complexidade na educação, aponta que se faz
necessária uma educação voltada para reforma de pensamento no sentido de formar
pessoas com consciência de si e do mundo.
Segundo Morin (2007), os conceitos de ordem, desordem e organização
convivem. O que diferencia o todo das partes é a complexidade emergente. Faz-se
urgente aprender a aprender, formar um professor generalista mais preparado para
visão ampla do processo ensino-aprendizagem.
Um sistema complexo auto-organizado reconhece as inúmeras possibilidades da
relação sujeito/objeto. Na complexidade, a ordem existe, mas não é entendida como
rigidez, e sim como regularidade nas interações. Para Morin (2007), na desordem
(co)existem o objetivo, polo das agitações, dispersões, colisões, irregularidades,
ruídos e erros; e o subjetivo, polo da impredictibilidade e da indeterminabilidade.
Em suas falas, Morin cita leis da Termodinâmica, estabelecidas pela Física do
século XIX para ordenar o que se observava na natureza. Segundo as observações
da Física, a natureza vive em constante ordem e desordem. Desse modo, entra em
jogo a entropia, ao ser uma grandeza física que mede o grau de desordem de um
sistema. O autor usa essa analogia de ordem e desordem e da multiplicidade de pos-
sibilidades para área de educação para introduzir o conceito de complexidade. Ele
declara que a agitação, as dispersões, colisões e irregularidades são necessárias, pois
tendem a organização. Afirma que é desintegrando-se que o mundo se organiza, e a
necessidade de reorganização é permanente. “Na educação ensinam-se certezas, contudo
aprender é enfrentar a incerteza”, é arriscar a desobedecer a métodos e processos de
aprendizagem instituídos, conservando princípios.
Cada processo metodológico de pesquisa, de ensino ou de aprendizagem está
normatizado de acordo com um ambiente, uma perspectiva, uma cultura, uma
época histórica. Precisa ser contextualizado à realidade em que vai ser aplicado.
Contextualizar significa conhecer as teorias dos pensadores, filósofos, cientistas e o
contexto em que serão aplicados ou considerados para análise de um problema. Os
defensores de algumas correntes epistemológicas tecem críticas isoladas a este ou
àquele pensador que se contrapõe, quando na verdade todas se somam em algum
aspecto e se excluem em outros.
O conhecimento para ser conhecimento precisa ser vivenciado e construído.
Para ser construído, necessita se considerar a existência, a experiência e a vivência
do outro, incluindo o ser humano ou qualquer outra espécie que viva neste plane-
ta. Conhecimento envolve riscos de erros e ilusões, a não confirmação de teorias
TRANSCICLOPÉDIA EM DIFUSÃO DO CONHECIMENTO 235

e, segundo Khun (2013), “[...] a verdade surge mais facilmente do erro do que da
confusão”. Aparentemente, parecia ser um erro Jung argumentar com Freud, mas
foi esse posicionamento que permitiu o surgimento da psicologia cognitiva.
Na contemporaneidade, a chamada Ciência Normal se encontra fechada em suas
categorias e teorias, enquanto as Humanidades (Filosofia e demais ciências humanas)
estão analisando os seres humanos, suas individualidades, emoções e articulações
sociais, muitas vezes desconsiderando aspectos biológicos e físicos.
Morin (2007) propõe uma abertura e uma articulação entre essas áreas do
conhecimento, com objetivo de compreender a complexidade da vida humana, do
planeta e das interações que são produzidas entre as pessoas e delas com o meio am-
biente. Os problemas em nosso planeta, em todos os seus aspectos, são transversais.
A desconsideração da multiplicidade de relações que existe entre os seres humanos,
seus equipamentos construídos e o meio ambiente, da existência de um planeta e
das interações produzidas pelo ser humano sobre este lugar de morada, provocou
desastres ecológicos e ambientais devastadores, para não falar de problemas emo-
cionais decorrentes desse estranho e admirável mundo novo.
Faz-se necessário o pensamento do contexto e do complexo, que capte as relações,
inter-relações, fenômenos multidimensionais, realidades solidárias e conflitivas e o
respeito à diversidade. Khun já falava da racionalidade e do cientificismo complexi-
ficado (KHUN, 2013). Compreender que a nossa lucidez depende da complexidade
do mundo e da organização de nossas ideias. Assim como Khun, Morin inclui e faz
conexões com Kant, ao citar sua frase: “[...] educação depende de luzes, no mesmo
tempo que as luzes dependem da educação”. Cabe ao educador lançar luzes sobre os
caminhos que levarão o estudante ao processo de conhecimento. O conhecimento que
precisa ser vivenciado e construído é complexo. Em seu significado mais profundo, a
palavra complexidade significa abraçar. O educador precisa abraçar, demonstrar amor
por seus estudantes e para com a matéria e o conteúdo que ensina; precisa estimular
o aprender. Ligando esses talentosos pensadores, Morin (2007) cita o contemporâneo
Mandelbrot que afirma que “[...] uma das ferramentas mais poderosas da ciência, a
única verdadeiramente universal, é o contrassenso manejado por um investigador
de talento”, a exemplo de Thomas Khun e Edgar Morin.
Esses autores produziram conhecimento a partir de suas vivências e reflexões
ao mesmo tempo em que buscaram se aproximar de áreas diferentes. Apropria-
ram-se do conhecimento produzido pela observação de outros estudiosos na busca
de solucionar questões e problemas com os quais se confrontavam. Expressaram
inquietações, pensamentos e, dessa forma, puderam contribuir e produzir mais
236 TRANSCICLOPÉDIA EM DIFUSÃO DO CONHECIMENTO

conhecimento. Cada pessoa possui múltiplas habilidades. Todo sujeito precisa ser
motivado a refletir, ser confrontado com problemas que o façam buscar soluções.
Convém que essa experiência seja em grupo, de forma interativa, compartilhada por
meio da vivência, troca de ideias, da colaboração e da cooperação para que possam
produzir conhecimento e encontrar soluções práticas para os problemas com os quais
os indivíduos, a comunidade e o planeta têm se confrontado.

REFERÊNCIAS
GALEFFI, Dante Augusto. Recriação do educar. Epistemologia do educar
rransdisciplinar. Berlin: Novas Edições Acadêmicas, 2017.

GLEICK, James. Caos: a criação de nova ciência. Rio de Janeiro: Campus, 1989.

KHUN, Thomas S. A estrutura das revoluções científicas. 12.ed., São Paulo:


Perspectiva, 2013.

MORIN, Edgar. Educação e complexidade: os sete saberes e outros ensaios.


4.ed., São Paulo: Cortez, 2007.
25. Corpo Cognitivo

Gedalva Neves da Paz

Corpo que se conhece, sente e sabe de suas capacidades. Reconhece-se no


mundo vivo e vivido, potencializa o que emerge da consciência prática experiencia-
da. Traz consigo os saberes e sabores da ancestralidade. Explora o máximo das suas
possibilidades. É corpo entrópico, desordenado na ordem, sem previsibilidade. É
flexível e movimenta-se em direção a novas aprendizagens, tem disposição ao novo,
aprende e desaprende velhos conceitos. Adequa-se ou sai do lugar que não quer ficar.
Muda! Refaz-se e reconstrói-se.
É um corpo próprio, polilógico, polifacetado, polidimensional. Faceta de si
e do outro, consciente do espaço que ocupa no mundo. Consciente de quem é. De
onde está e para aonde vai. Afetado no afeto, ou na falta dele. Implicado nas ques-
tões identitárias, étnicas e éticas. Corpo que busca o estar e o bem-estar. Que se
reconhece homem, mulher e/ou híbrido. Consciente do que pode ou do que ainda
não pode. Corpo em construção de identidades; política, geográfica, histórica, ge-
racional, gênero, sexual. Posiciona-se no mundo. Tem reconhecimento de si mesmo,
em qualquer tipo de processo, subalterno, colonizado, ou de adestramento. Não é
refém do projeto de alguém.
O corpo cognitivo toma como fundamento a multirreferencialidade e a
complexidade, a partir dos fenômenos que ocorrem nos movimentos, nas práticas
artísticas e nas memórias corporais praticadas conscientes e inconscientes, herme-
nêutica constante.
O autoconhecimento para o corpo cognitivo é prerrogativa sine qua non dos
cabelos aos pés. Para reconhecer a vida no pretérito, no momento vivido e para o
planejamento de um possível futuro. Refazer e avaliar conceitos e hábitos de lugares
cheios e vazios de certezas. Corpo cognitivo é epistemológico desde a escolha da
religião, dos hábitos de alimentação, do que liga, religa ou o afasta do outro por
repulsa ou predileção. Este corpo tem conhecimento de quem lhe fez e de como
continua a fazer-se na sua existência terrena.
Corpo cognitivo se apresenta, se olha de frente, de frente com o seu próprio
olhar e do olhar outro, seu espelho. Olha seus erros e acertos, medos, frustrações e
seu não saber. Erra, pede desculpas e recomeça.
238 TRANSCICLOPÉDIA EM DIFUSÃO DO CONHECIMENTO

É si mesmo, mas não é ensimesmado, reconhece-se no outro e se torna parte


integrante do mundo, da sua natureza e do ambiente. É responsável pelo movimento
em seu entorno. Sente-se capaz e outorga essa capacidade também ao outro. Corpo
inclusivo.
Corpo Deus, corpo outro, mendigo, corpo chão e céu, corpo rico e pobre.
Corpo nós nos outros. Não é maior e nem menor que o outro. Busca seu lugar em
sua existência. Reconhece os saberes e limites impostos. Corpo principalmente
EU, ser humano que pensa indivíduo em sua totalidade. Corpo com religião e sem
religião, corpo capaz de difundir o que sabe e de aprender o que não sabe. Corpo
cognitivo e espiritualizado carrega memorial cumulativo.
Corpo biomorfo, disforme, tridimensional, apropriado, descolonizado, inserido
na interculturalidade. Corpos que se relacionam a partir da epistemologia da arte,
performance, movimento e do processo criativo nos diversos aspectos: temporal, terri-
torial, histórico, social e cultural para manter viva a memória na contemporaneidade
e fortalecer a identidade pessoal, a autoestima, a autoimagem e a intersubjetividade.

REFERÊNCIAS
ARDOINO, J. Abordagem Multirreferencial (plural) das situações educativas
e formativas. In: BARBOSA, Joaquim (Coord.). Multirreferencialidade nas
ciências e na educação. Tradução de Rosângela B. de Camargo. São Carlos:
EdUFSCar, 1998. p. 24-41.

BURNHAM, Teresinha Fróes e coletivo de autores. Análise cognitiva e espaços


multirreferenciais de aprendizagem: currículo, educação a distância e gestão/
difusão do conhecimento. Salvador: EDUFBA, 2012.

CELANO, Sandra. Corpo mente na educação: uma saída de emergência.


Petrópolis: Vozes, 1999.

GALEFFI, Dante Augusto. Epistemologia do Educar Transdisciplinar.


Salvador: Edufba, 2009

MERLEAU-PONTY, M. (1994). Fenomenologia da percepção. Tradução de


Carlos Alberto Ribeiro de Moura. São Paulo: Martins Fontes. (Texto original
publicado em 1945)
26. Corpor alização

Lela Queiroz

A Corporalização se apresenta como um fenômeno dos sistemas vivos-ambien-


te-mundo. A Corporalização é evolutiva, o continuum de construção de conheci-
mento produzida pelo organismo. Propomos uma descrição sistêmica, dinamicista,
biossemiótica da ordem do complexo.

1. DESENREDANDO CORPO DOS SEUS TABUS DE COISA, MATÉ-


RIA, PERTENÇA, OBJETO E FETICHE. CORPO MENTE AMBIENTE.
Organismos vivos são dotados de automovimento (THELEN, 1995) e capa-
cidade de se autoproduzir; sua singularidade é autopoiésis (VARELA, 2002). “[...]
Distinguir movimento de imobilidade, mover-se de repouso é, sem dúvida, uma
discriminação natural fundamental das criaturas vivas, vital para a sua sobrevivência”
(JOHNSTONE, 1998: 17). Na estrutura da arquitetura do conhecimento proposta
por Dante Galeffi, em sua teorização polilógica e multirreferenciada, referenciamos
a abordagem BMC — Body Mind Centering — como uma cosmovisão dinamicista
sistêmica em que corpo surge como uma constelação de sistemas corporais dinâmicos.
Propomos a compreensão de corpo vivo que passa a ser entendido como ambiente
interno que produz conhecimento como eixo relacional entre ambientes. Enredado
por tabus, corpo significou coisa, matéria, pertença e objeto, dentro de estruturas
de pensamento positivistas, deterministas e mecanicistas. Soma, do grego, corpo
vivo, é vital para a compreensão:
Os organismos vivos são SoMAS: eles são parte ordenadas integrais de processos
de elementos corporalizados1 que não podem ser separados nem de seu passado
evolutivo nem de seu futuro adaptativo. A soma é qualquer corporalização
individual de um processo, que resiste e se adapta ao longo do tempo, e con-
tinua a ser uma soma, enquanto viver. No momento em que morre deixa de
ser um Soma e se torna corpo... Como central no campo da somática está a
soma — um processo integral e individual que rege a sua própria existência,
enquanto houver existência”. (HANNA, 1976, p. 31)

Corporalização é fenômeno em continuum de combinatórias corpo-ambiente


no fluxo em tempo real, que se tornam estáveis no ser, resultante dos processos

1
Embodied
240 TRANSCICLOPÉDIA EM DIFUSÃO DO CONHECIMENTO

dinâmicos auto-organizativos (KELSO, 1997), a partir de genes, memes, fuctivos,


perceptos, afetos e intuitos, graças à teia magistral de complexificação evolutiva do
sistema nervoso. Num entendimento de cérebro como órgão especializado distri-
buído, e de mente, como câmara de ecos reverberadora (EDELMAN, 2000), do
entremeamento ‘dentro-fora’ do organismo, com história, corpo e mente é entendido
entre biologia e ecologia, entre natureza e cultura.
Três aspectos da concepção evolucionista do cérebro2 importam para o ­fenômeno
de Corporalização: a seletividade, a memória e o papel crítico de reentrada. Há também
conjuntos de repertórios sistemáticos de memória distribuídos pelo cérebro em ação
conjunta por todos os sistemas perceptuo-motores como o tato, cheiro, visão, movi-
mento, sons e linguagem em contato com o ambiente (EDELMAN, 2000). Integrando
circuitação sensível irrigada pela periferia, compondo mapas cinestésicos e propriocep-
tivos, em um fluxo inestancável de informações dentro-fora-dentro, dá ao corpo sua
dimensão ambiente. É o corpo-a-corpo do corpo-ambiente. “[...] O desenvolvimento
não é simplesmente a realização de um programa interno, não é um desdobramento.
O que está fora importa”3 (LEWONTIN, 1995): “[...] a p ­ ercepção é um passo em uma
trajetória pela qual os cérebros crescem, se reorganizam e alcançam o ambiente para
mudá-lo em vantagem própria” (FREEMAN, 1991: 85 apud THELEN, 1995: 134).
Graças a complexificação evolutiva do sistema nervoso, nossa cognição se dá
por Corporalização.
É o salto transcendental de sistemas nervosos simples, em que sinais são trocados
de um modo praticamente insulado em subsistemas relativamente separados,
para sistemas nervosos complexos baseados na dinâmica de sinais reentrantes, em
que um enorme número de sinais são rapidamente integrados em um processo
neural único constituindo o âmago dinâmico. Tal integração leva a construção
de uma cena relacionando sinais de muitas modalidades diferentes com memória
baseada na história evolucionária e na experiência individual — seu presente
rememorado. Essa cena integra e gera uma quantidade extraordinária de infor-
mação em menos de um segundo. Pela primeira vez em evolução, a informação
adquire um novo potencial — a possibilidade de subjetividade. É informação
para alguém, isto é, se torna consciente de si. (EDELMAN, 2000, p. 212).

O fenômeno da Corporalização é fruto de mediação dentro-fora-dentro na corrente


do fluxo infocomunicacional do corpo — ambiente de sinais reentrantes — que, por
auto-organização, gera novo padrão que se torna estável para o organismo. A subje-

2
Gerald Edelman neuro Darwinism.
3
“Development is not simply the realization of an internal program: it is not an unfolding. The outside
matters.” Tradução da autora,.
TRANSCICLOPÉDIA EM DIFUSÃO DO CONHECIMENTO 241

tividade é uma resultante e um operador importante da Corporalização, porém não


o único. “[...] Em teoria de sistemas, atrator é um componente que se torna principal
em torno do qual o sistema se arranja e ganha estabilidade”. (THELEN, 1995: 56). O
acoplamento estrutural dos organismos no meio, somados a eventos deste, mas qualquer
outra ordem de caos em andamento pode desestabilizar todo o arranjo combinatório e
perturbar o sistema inteiro; abalos e um sem número de fases e desacomodações fazem
com que o sistema se rearranje em torno de um novo atrator. Percepção, cognição,
emoção, corpo, mente, ambiente sinalizam o que somos, num contínuo rearranjo
contexto sensitivo de atratores dentro-fora-dentro entre natureza e cultura.

2. EMBODIMENT É CORPORALIZAÇÃO. TO EMBODY SIGNIFICA


CORPORALIZAR.

Estudos culturais e antropológicos sobre o fenômeno de embodiment costumam


abordar o fenômeno de forma redutora e direcionada em uma única lógica de fora
para dentro, por descrições reféns de tábula rasa e sistemas de crenças reducionistas
sobre corpo em que não se vê implicada a dimensão do corpo vivo, ou ainda, da
mente corporalizada (embodied mind). (THOMPSON, 1991).
Encarnação é corporificação, e esta é manifestação temporária de uma divindade
ou espírito em alguma forma de existência terrena, e seu sinônimo, incorporação, é
transe mediúnico. Ao traduzir embodiment por corporificação ou incorporação, o apelo
direcional de fora para dentro e, ainda, o de implicação religiosa, são muito fortes.
Personificação diz respeito à capacidade psicológica por meio de analogia, da
ação do abstrato configurando-se como persona.
Corporeidade, na filosofia, e corporalidade, na educação física, se reduzem à
propriedade ou qualidade do que é corpóreo, ou corporal.
Corporalidade e corporeidade são conceitos que dizem respeito àquilo que é
característico, estruturante, existente, pertencente a corpo, sem levar em conta mente,
ou ambiente, enquanto incorporação, corporificação, encarnação ou personificação
são conceitos que, no senso comum, oferecem a falsa noção de embodiment acontecer
de fora para dentro.
Corporalização nos convida à tradução de embodiment, por um modo não
reducionista que suplanta a lógica da ‘suposta direcionalidade’, que se afirmaria de
fora para dentro, provando-a equivocada.
A arte da inferência do conceito desloca o olhar de uma concepção finalista
‘do que’ ocorre, para um olhar sobre ‘como’ se dá a ocorrência do fenômeno, supe-
242 TRANSCICLOPÉDIA EM DIFUSÃO DO CONHECIMENTO

rando a visão externalista do fenômeno — de fora para dentro — bem como a visão
internalista do fenômeno — de dentro para fora, refutando uma concepção dualista,
redutora para corpo e mente, presa à estrutura diádica sujeito e objeto.
Corporalizar implica mudança expressiva sobre a compreensão fenomênica,
por significar uma transformação macro em que o corpo vivo se configura um sis-
tema em que uma constelação de combinatórias vem necessária e estruturalmente
acopladas ao ambiente. Macrossistema corpo vivo abarca o genótipo e fenótipo de
sistemas corporais, multidimensionados, em fluxo inestancável, em trânsito dentro-
-fora-dentro,4 na circuitação entre meios. Nessa perspectiva, sistemas vivos são da
ordem do complexo, movimento é percepção e informação dos sistemas corporais,
sinalizantes no ambiente (QUEIROZ, 2009). Processos Soma no organismo implica
que se deem de forma não linear, pelo parâmetro de mudança, em auto-organização.
Sem progressão linear, o caos faz parte do processo, em ondas que se sobrepõem
em cada padrão e se integram e são modificados pela emergência de novos
padrões. Possivelmente todos os padrões podem estar contidos em cada um
dos outros (COHEN, 1993: 1).
Apontados o caos e a não progressão linear por ondas sobrepostas, afirma-se
o dinamicismo. Tal forma de compreender a emergência de padrão, podendo se
tornar altamente estável no organismo ou permanecer instável, afirma o princípio
de estabilidade-mobilidade. “[...] Essa auto-organização, nós sustentamos, é um
traço essencial do comportamento dos sistemas biológicos em todos os níveis de
organização”.5 (THELEN, 1995:83).
A emergência de um novo padrão se dá como uma mudança de categorização
interna, que assume regime atrator próprio, e fortalece-se em ocorrência, por um
tempo, ou desmantela-se sem atrator, sem o que o sustente. Quando é sustentado
pelo organismo, assume regularidade como padrão, se torna parte da rotina cognitiva,
consciente ou não, no organismo.
Nesse sentido, corporalizar difere radicalmente de incorporar, corporificar, en-
carnar, personificar, ficando mais próximo do domínio dos processos de transdução,
transmutação e transformação do que dos imperativos do domínio de crença, transmissão
e recepção. Para a definição do conceito, está implicada a poética da transformação dos
sistemas corporais de BMC®, vertente experiencial, não linear, indeterminista, múltipla
e plural de conhecimento, sendo, a Corporalização em movimento, a sua práxis.
4
fora para dentro, dentro para fora, de fora para dentro para fora, de dentro para fora para dentro,
variáveis em circuitações.
5
“This self-organization, we maintain, is an essential feature of behavior of biological systems at any level
of organization”. Tradução da autora.
TRANSCICLOPÉDIA EM DIFUSÃO DO CONHECIMENTO 243

3. ‘CORPORALIZAÇÃO NÃO É O QUE VOCÊ PENSA QUE É…’


Essa máxima: ‘Corporalização não é o que você pensa que é…’6 apresenta a
medida da visão enativista, como dinâmica inestancável dos processos de confabulação
e ‘corpulação’ do organismo7 junto ao meio, para além da lógica do racionalismo
e do funcionalismo.
Existem várias formas de Corporalização (mental, neural, sensorial, psicofísica,
somática, fisiológica, energética etc). Parte-se do princípio de que nossa noção de rea-
lidade muda sempre, e cada interação no mundo é reajustada sucessivamente. Estamos
em sucessivos campos ou estados de Corporalização construídos dinamicamente pela
experiência do corpo em movimento, incluída a sua mente corporalizada, no ambiente.
A partir do entendimento de movimento&contato como parâmetro central para
corpo e mente, como informação no sistema8, juntos indiciam a auto-organização
de padrões neuronais, criando redes comunicacionais corpo-ambiente, ‘dentro-fora’,
‘fora-dentro’.
Nosso sistema de conceitos primários evoluiu para se ajustar ao jeito como nossos
corpos, ao longo da evolução, se acoplou ao meio ambiente, parcialmente pelo
bem da sobrevivência, parcialmente pelo bem do florescimento humano para
além da mera sobrevivência e parcialmente por acaso. (LAKOFF, 1999, p. 91).

A arquitetura de conhecimento de Charles Sanders Peirce, fonte de onde a


biossemiótica, de Jesper Hoffmeyer (1998), corre, a questão da emergência dentro-
-fora na evolução, pelo advento das membranas, é discutida.
J. Hoffmeyer demonstra que historicamente os organismos vivos levaram bilhões
de anos para que as fronteiras abertas dos organismos indeterminados dessem lugar
à ação reguladora das membranas. Na sua origem, dois indicadores: a assimetria
dentro/fora e a formação da membrana, listados como dois dos passos fundamentais
para a origem da vida.
Evolutivamente, um organismo em tessitura gera a sua própria forma partindo
de um formato simples inicial com sequências paralelas bifurcacionais: essa formação
é que dá origem à membrana, mantendo o que está dentro junto. Face ao que está
fora, surge a assimetria espacial e temporal — entre dentro e fora. Hoffmeyer aponta

6
‘Embodiment is not what you think it is’.
7
Título do projeto de pesquisa do GPDC-3 entre 2011 e 2013, relativo à operação entre confabu-
lar e copular, um termo inventado para falar do processo de auto-organização em curso no corpo.
Corpulação, da autora.
8
Defendida como hipótese da autora em “Corpo, Mente, Percepção: Movimento em BMC® e
Dança”, tese de doutorado da autora publicada com apoio da FAPESP pela Annablume, 2009.
244 TRANSCICLOPÉDIA EM DIFUSÃO DO CONHECIMENTO

a formação da membrana como predisposição indicial para a interdependência do


fenômeno. A assimetria dentro/fora se dá pela condição de formação da membrana
em torno de um conjunto complexo de operações moleculares fabricada por duas
camadas imbricadas.
Na operação autorreferencial de redescrição de DNA, seguindo-se a divisão
celular, surgem os padrões correspondentes que passam de geração a geração celular,
pelo jeito que o citoplasma contém amostras de diferentes tipos de citomembranas
encontradas no organismo. As membranas crescem homomorficamente por acrés-
cimo e inserção de tecido em membranas preexistentes. Passam pela superfície da
membrana, as condições de encapsulação do que se dá do lado de fora, para o lado
de dentro. Nesse fluxo, a triagem do que passa é permanente, pois há de se manter
o equilíbrio regulado pela homeóstase na célula.
O organismo em toda a sua ação configura ‘um dentro’ permanentemente em
contato pela membrana circundada por um ‘fora’.
Na descrição celular, a membrana é perpassada por duas camadas proteicas
que filtram inversamente, adentrar pode se dar pelos dois lados da membrana, pois
esta é uma via dupla, por onde substâncias e nutrientes entram e saem, ou seja, o
adentramento se dá pelos dois lados da membrana e, considerando a disposição
permeável, a membrana constitui — relativamente — uma zona de contato entre
‘dentros/foras’ entre os diversos sistemas, corpo adentro afora. Por sua predisposi-
ção autorreferencial, a membrana revela um dentro/fora relativo ao interior da área
limítrofe, e esta, inserida em outras áreas limítrofes, se caracteriza como um novo
dentro-fora. Pelos dois lados da membrana, pela qual se torna possível compreender,
como se dá a façanha que movimento&contato desempenham: como água, em que,
preservadas as condições de temperatura, de onde ela está para a sua volta, se espalha,
adentra, expande, em fluxo inestancável. A biossemiótica, de Jesper Hoffmeyer, sobre
o papel da membrana na emergência das fronteiras tange o complexo entendimento
produtor de transdução, entre dentros-foras-dentros do corpo vivo, e desmonta a
visão dogmática externalista ou internalista do fenômeno (QUEIROZ, 2004).

4. A CORPORALIZAÇÃO, COGNIÇÃO E AMBIENTE


A Corporalização, em seu acoplamento estrutural assimétrico e em conflito,
no ambiente, se dá por padrão. O entendimento é de que ocorre um campo crítico
que caracteriza mudança de estado de ocorrência do sistema mundo, e passa a fazer
parte do sistema corpo-ambiente, configurando-se como combinatórias estáveis
TRANSCICLOPÉDIA EM DIFUSÃO DO CONHECIMENTO 245

auto-organizadas entre mente e corpo, seus operadores dinâmicos. Com o conceito


de mente corporalizada (embodied mind), George Lakoff e Mark Johnson9 afirmam
que as raízes do processo de geração da mente se dá com a participação do corpo,
com base na teoria evolutiva.
A ciência cognitiva permite encarar de uma maneira nova e importante um
problema filosófico milenar, o problema do que é real e como podemos co-
nhecer o que é real, se podemos. O sentido do que é real começa e depende
crucialmente dos nossos corpos, especialmente no nosso sistema sensório-
-motor, que nos possibilita perceber, movimentar, manipular; e as estruturas
detalhadas dos nossos cérebros, que foram sendo feitas evolutivamente e pela
experiência.” (LAKOFF; JOHNSON, 1999, p. 17)

Os filósofos apontam que o sistema sensório-motor inicia o processo de mode-


lagem neural de categorias perceptivas orientado pelas direções dos fluxos do corpo
no espaço-tempo, refutando a concepção de clausura neural. Está aí implicada a
experiência perceptuo-motora vivida pelo corpo a partir de sua natureza direcional
no tempo-espaço, em fluxo, ou seja, incluído quando anda para frente ou avança,
recua, cai ou levanta, anda para trás, se afasta, se aproxima, encosta e escorrega, se
apoia ou é abalroado por um objeto, entra ou sai, se retrai ou expressa etc. Mais do
que isso, essas relações se encontram imbricadas, internalizadas no corpo e exter-
nalizadas pelo corpo. Desse modo, a cognição corporalizada (embodied cognition)
abarca o sem fim de operações multimodais.
Vamos usar o termo cognitivo, do modo mais rico possível, para descrever
qualquer operação e estrutura mental envolvidas na linguagem, significado,
percepção, sistemas conceituais e razão. Porque nossos sistemas conceituais
emergem e nosso raciocínio brotam dos nossos corpos, vamos aplicar o termo
cognitivo aos aspectos do sistema sensório-motor que contribuem com nossas
habilidades para conceitualizar e raciocinar. Já que boa parte dessas operações
são inconscientes, o termo inconsciente cognitivo descreve precisamente todas
as operações inconscientes mentais, ligadas aos nossos sistemas conceituais,
significado, inferências e linguagem. (LAKOFF; JOHNSON, 1999, p. 12).

George Lakoff afirma que o inconsciente cognitivo abrange 95% dos processos
que ocorrem conosco. São processos que ocorrem abaixo do nível cognitivo cons-
ciente, em estado de vigília, rápidos demais para prestarmos atenção. Estes 95% são
responsáveis por boa parte dos preparos, conexões e disparos, mapeamentos e cate-
gorizações, antecedendo a margem do que se torna consciente em nós. São operações
vitais e indispensáveis, que se dão em profusão espalhadas pelo corpo. A hipótese
9
Filósofos de Berkeley, formuladores da filosofia da carne.
246 TRANSCICLOPÉDIA EM DIFUSÃO DO CONHECIMENTO

evolutiva de movimentos aqui considerada, implica mudança de estado e mudança


de padrão e reconceitualiza o que se compreende por movimento, fenomenicamente,
em escalas micro e macro, transcendente ao entendimento que prevalecia no me-
canicismo newtoniano e no determinismo cartesiano. Principiado, em conflação,
por zonas atratoras, como limiar de auto-organização de um novo padrão. Isso se
dá dinamicamente por novas especificidades. A mudança dos padrões acontece por
complexificação gradual em escalas multimodais transicionais. “[...] O movimento
não é incidente para a aprendizagem, mas parte do conjunto perceptivo que é a base
da categorização e recategorização”. (THELEN, 1999: 211).
Quando o processo de auto-organização de um novo padrão está em confabu-
lação e em andamento, todos os seus passos ficam em evidência, em aberto. Então,
quando é levado a cabo esse processo, a transformação que se dá dentro, se expressa
fora, em um novo padrão de organização. Desaparece o encadeamento de elos antes
evidentes, surge novo padrão que expressa nova categorização (THELEN, 1995).
Cada um desses padrões opera numa zona limítrofe para a emergência de um novo
padrão. Num entendimento sistêmico, um padrão poderá permanecer estável por
mais tempo; mais adiante, uma grande perturbação ou flutuação incontrolável, no
leito de inter-relações não causais intermitentes, coemergentes, interdependentes,
abalos, rupturas, descontinuidades e desconstruções, pode dar-se no vir a ser, ou
não. Nada perdura para além do seu tempo; nada se encontra antes, fora, para além,
senão em tempo real de duração de sua auto-organização. Como identificar a chave
de mudança de padrões, indicialmente vivida pelo organismo de modo dinâmico,
em continuum? Por sinais de alteração de valores e conceitos (EDELMAN), de
mudanças de estado, de ocorrência de atrator, flutuação, fase, perturbação, arranjo,
habituação, construção de sentido, conhecimento e saber, na ordem do complexo.
A cosmovisão de Body Mind Centering, BMC® apresenta uma fundamentação
que leva em conta embriogênese, ontogênese, filogênese, neurogênese e biogênese
dos organismos vivos para compreender o corpo humano, como organismo vivo,
por princípios neurocelulares basais de movimentos evolutivos. Apoiada nas leis da
natureza e da física quântica, com a noção de luz e sombra, a noção de espaço, ad-
mite a confluência entre espiritual e físico, de uma consciência sentida-agida, como
central para a compreensão do que somos.
A Corporalização (embodiment) surge em acoplamento estrutural com o modo
como se criam e se tecem as suas redes de informação e comunicação no ambiente. O
fenômeno em fluxo infocomunicacional em rede, que não estanca, é sua autopoiesis.
“[...] Literalmente — produzirem de modo contínuo a si próprios... /autoprodutores
TRANSCICLOPÉDIA EM DIFUSÃO DO CONHECIMENTO 247

— capazes de produzir seus próprios componentes ao interagir com o meio: vivem


no conhecimento e conhecem no viver” (VARELA, 2002).
Esse processo em sua dimensão processual desponta ora como um novo ar-
ranjo possível, ora como uma solução adaptativa; como acordos provisórios com
variáveis de duração e estabilidade, contexto sensitivo (SEBEOK, 1995) e situado
(VARELA, 1991), envolvendo domínios cruzados entre domínios fonte e domínios
alvo (LAKOFF, G.; JOHNSON, M., 1999).
A Corporalização sugere que as combinatórias reúnam-se em rotinas de incons-
ciente cognitivo e rotinas cognitivas associadas, que ativam forças no organismo,
operando como ondas sobrepostas em ciclos geradores de novas mudanças de cate-
gorização interna, disponíveis no sistema para complexificação que resulta em uma
nova grandeza, como conhecimento disponível para o sistema (QUEIROZ, 2004).

REFERÊNCIAS
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Patrícia Lima Caetano. In: GIPE-CIT, n.18, p. 36, Salvador, 2008.

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1991.
27. Cosmogr ama Bacongo (Bantu)

Leonor Franco de Araujo

COSMOGRAMA BACONGO: Mandala que acompanha o movimento do


sol, onde se representa a cosmovisão de mundo do povo Bacongo e é regida pelos
ciclos do tempo da filosofia bantu.
[...]a travessia da kalunga é a travessia da própria linha da vida. Renascer,
crescer e mergulhar no desconhecido mundo das forças invisíveis com cons-
ciência é permitir-se retomar a própria história, reconectar-se com as raízes da
ancestralidade, reconectar-se com elos perdidos pelos movimentos do tempo
e dos fluxos de dominação a que os antepassados foram submetidos e que nós
mesmos estamos sendo submetidos, novos processos com roupagem nova, mas
com a mesma essência de escravidão e miséria humana. Somos chamados a
nos libertar! Mestre Cobra Mansa.

Os bacongos são povos do antigo Reino do Congo, destruído pelos portugueses


e seus aliados em 1482, hoje localizados nas regiões onde estão países como Angola,
Congo, Brazaville e Gabão.
Segundo Fu KiAu (2016), “Kongo” se refere a um grupo cultural, linguístico
e histórico de pessoas que
[...] descendem do grande grupo Bantu que migrou do sul da região do Rio
Benue (atualmente Nigéria) para a floresta equatorial do centro-oeste africano
e proximidades.

A partir do segundo milênio a. C. ondas migratórias sucessivas de comunidades


Bantu foram em direção ao sul do continente africano, exercendo forte influência
nessa região abaixo da linha do equador,
[...] processo que fez com que a maioria dos africanos que vive na região ao
sul do equador viesse a falar uma ou mais das 400 línguas relacionadas ao
Bantu. (FU KIAU, 2016),

além de incorporar suas tradições culturais, sistemas de crenças e conceitos acerca


do tempo no Kongo e entre outros grupos Bantu.
250 TRANSCICLOPÉDIA EM DIFUSÃO DO CONHECIMENTO

Figura 1 — África Bantu.

No início do século XX, a invasão colonial belga, chefiada por Leopold II, na
bacia do Congo, teve como objetivo exterminar fisicamente e estruturalmente as
comunidades bantu ali estabelecidas, resultando num dos maiores genocídios pra-
ticado por europeus na história da humanidade; as atuais pesquisas apontam para
o assassinato de aproximadamente 10 milhões de congoleses (50% da população na
época). Esse é o período onde as instituições tradicionais congolesas mais impor-
tantes foram sistematicamente destruídas. Boko1, a mais popular e mais importante
1
Segundo FU KIAU (2015), As escolas Bântu­Kôngo ensinaram que o conhecimento não está em
nós. Está fora de nós. E, como tal, as crianças Bântu em geral e o povo Kôngo, em particular, eram
ensinados, desde a mais tenra idade, a andar no mato/floresta, a mais documentada biblioteca
natural, onde eles podiam encontrar informação para sua sobrevivência. Esse processo de aprendi-
zagem era realizado igualmente através de escolas especializadas ou através de grandes iniciações.
TRANSCICLOPÉDIA EM DIFUSÃO DO CONHECIMENTO 251

escola foi destruída; foram proibidas instituições sociais e políticas; e Kânda, a base
estrutural da gestão da vida comunitária africana congolesa, com um alto padrão
organizacional, foi destruído.
A partir de 1960, com a independência do Congo, atual Zaire, o principal
objetivo das pessoas foi construir um país com valores culturais e tradicionais que
considerassem as particularidades regionais. Valores profundamente enraizados
nas organizações sociais e nas legislaturas não escritas tradicionais, o fu-kia — nai,
retomaram os sistemas socioestruturais racionais. A sobrevivência dessas tradições
orais mostra que a palavra dita tem mais força e perenidade que a palavra escrita
considerando as formas da pedagogia iniciática negro africana que, apesar de es-
tabelecida em formas diferenciadas no continente africano, preservaram sistemas
filosóficos de mundo, inclusive trazendo-os para as regiões da diáspora negra africana.
O povo Bantu era altamente tecnológico com uma concepção do mundo es-
truturada filosoficamente na ancestralidade e nas tradições bantu, onde a narrativa
de mundo e a consciência cósmica valiosa gerou um instrumento metodológico2
(Cosmograma) para interpretação da realidade dos africanos e seus descendentes
em todo o mundo.
O próprio entendimento bakongo do que é o homem na sua integralidade já
nos mostra a compreensão diferenciada desse povo com relação ao desenrolar da
vida. Para eles, o homem é composto de corpo (nitu), o sangue (menga), que é a sede
da alma espiritual (moyo), e o nome.
O moyo é sentido como o princípio específico do homem e, sobrevivendo à morte
física, passa a viver com os antepassados. A alma dupla (nfumu nkutu), semelhante
à alma sensitiva, é o princípio da percepção sensível e completa a personalidade

Para o Kôngo, a não ser pelas grandes iniciações, todo conhecimento era comunicado por meio de
numerosas escolas que cada mestre, ngânga, ou artesão emérito, organizava em volta dele próprio.
Grandes iniciações ou alta aprendizagem eram dadas por três razões principais:
1. era, biologicamente, um processo social requerido por meio do qual se alcançava a posição
social de mulher/homem adulta (o) Kimbuta;
2. era, intelectualmente, um processo por meio do qual se devesse ter os olhos abertos bulwa mèso
aos princípios fundamentais de vida e viver nkîngu miangudi mia lutufu lwa môyo ye zingu, espe-
cialmente aqueles relacionados às leis naturais n’siku miamena.
3. por fim, era, espiritualmente, um processo por meio do qual se tinha que descobrir o círculo de
vida dikenga dia môyo e seu centro didi interiormente e exteriormente, a descoberta de sua própria
visão de mundo e o poder de levantar­-se verticalmente­telama lwîmba­ngânga nos seus pés antes de
andar horizontalmente para encontrar os desafios do mundo ntembe za nza.
2
Para usarmos uma representação mais palatável aos leitores que estão acostumados com o referen-
cial conceitual filosófico europeu ocidental branco e cristão, deixando grifado que muitos desses
conceitos não conseguem contextualizar o sentido dos eventos citados.
252 TRANSCICLOPÉDIA EM DIFUSÃO DO CONHECIMENTO

humana. Reside no ouvido e é a energia que alegra nossos sons e percepções visuais,
os sentidos primeiros que nos remetem ao (re)conhecimento, ao estranhamento, à
alegria. Pode andar errante durante as síncopes e o sono. Origina a sombra que se-
gue o homem. Desaparece à hora da morte. O nome, quarto elemento, deve mudar
sempre que se dá uma mudança substancial na pessoa.
Segundo Fu Kiau (2016, p. 134),
O tempo para o povo Kongo é uma “coisa” cíclica. Não tem um começo nem
um fim. Graças aos “Dunga” (acontecimentos), o conceito de tempo é entendido
e pode ser compreendido. Esses “dungas”, sejam naturais ou artificiais, bioló-
gicos ou ideológicos, materiais ou imateriais, constituem o que é conhecido
como “n`ka-ma mia ntangu” em Kikongo, que significa “represas do tempo”.
São essas represas do tempo que tornam possíveis tanto o conceito quanto a
divisão do tempo entre os Bantu-Kongo. Assim, o tempo é, ao mesmo tempo,
concreto e abstrato. No nível abstrato, o tempo não tem começo nem fim.
Ele existe por si só e flui através dele mesmo, com seus próprios acordos. No
entanto, em nível concreto, são os “dungas” (acontecimentos) que fazem com
que o tempo seja perceptível, provendo o fluir interminável do tempo, com
específicas “represas”, acontecimentos ou períodos de tempo.

Essas considerações do tempo como um devir constante caracterizam o ciclo


do Cosmograma Bakongo.
Segundo São Bernardo (2017), a mandala cosmológica bantu ou o c­ osmograma
Bakongo tem como referência a travessia do Kalunga3, uma linha que atravessa
oceanos e continentes, além das montanhas do Oeste, permitindo o encontro entre
os mundos dos vivos e mortos, além de outras possibilidades simbólicas a partir dos
pressupostos filosóficos que encerra.
Clyde W. Ford4 nos apresenta seis dimensões interpretativas da cosmologia
Congo constituídas na imagem do Kalunga, imagem essa composta por círculos
concêntricos, com setas indicativas de seu movimento, e retas que formam uma
cruz e marcam as fases de Kalunga, como também os pontos cardinais (SÃO BER-
NARDO, 2017).

3
Alguns autores utilizam a designação de Calunga Grande para a travessia oceânica dos africanos
escravizados, ou o próprio oceano Atlântico, caminho utilizado para a consecução da diáspora
negra. Há de se considerar que essa travessia traz no seu bojo concepções filosóficas de mundo que
são disseminadas nas regiões africanizadas.
4
FORD, Clyde. O Herói com Rosto africano, 1999, p.268-275 apud SÃO BERNARDO (2017).
TRANSCICLOPÉDIA EM DIFUSÃO DO CONHECIMENTO 253

Figura 2 — Cosmograma Bakongo segundo Clyde Ford

Primeiramente, temos a representação de um diagrama com uma elipse que


se inicia a leste representando o nascimento; depois ascendência (juventude,
transição), e maturidade, ao norte; no oeste, o ocaso, a morte, por fim; ao sul,
a existência no outro mundo, o renascimento, a renovação, a ancestralidade.
Ao centro da Elipse estão as águas míticas do Kalunga, que divide as águas
do mundo comum (Ntoto) e a terra dos mortos (Mputu). Estas águas tanto
simbolizam uma travessia(ligação) quanto uma barreira. A segunda dimensão
lembra o transporte dos negros escravizados através do Atlântico (o exílio)
e corresponde à viagem mítica através da montanha do oeste e do herói que
retorna ao seu lar. Na terceira dimensão, o kalunga seria o eixo do mundo, o
desenho do mundo no chão, uma mandala onde se encontra o ponto absoluto
da eternidade, também pode remeter à cruz cristã, à porta do sol por onde
desce a divindade renascida do céu. A quarta é a dimensão feminina, a matriz
da criação, o útero cósmico, a compreensão da importância da geração de
vidas e energias, localizada na parte inferior do desenho e que está associada à
morte consagrando a desintegração do círculo sagrado e do Útero Cósmico.
A quinta onde o Kalunga é apresentado por pares de opostos, esta é mais co-
nhecida das leituras dicotômicas do mundo. A sexta, o cosmograma representa
linhas de movimento e renascimento de vida e progressão de consciência, aqui
entendidas como sinal auspicioso para a busca do divino dentro de si. Ford
relata ainda a forte presença desses desenhos míticos no Caribe, Cuba, Nova
York e na América do Sul, inscritos em vasos rituais (prendas) e em amuletos
sagrados (SÃO BERNARDO, 2017).
254 TRANSCICLOPÉDIA EM DIFUSÃO DO CONHECIMENTO

As diversas dimensões estabelecidas no cosmograma “conversam” todo o tem-


po, transcendendo a linearidade temporal eurocêntrica e colocando vida e morte,
feminino e masculino, ascendente e descendente, nascer e morrer como dimensões
entrosadas no objetivo da busca do divino no seu interior e no equilíbrio da comu-
nidade que lhe permite ser único.
Kimbwandende Kia Bunseki Fu Kiau e Os quatro ciclos do cosmograma Bakongo,5
Bunseki Fu Kiau, como é mais conhecido este pensador congolês, foi um dos principais
intelectuais africano vindo ao Brasil, na década de 1990, onde iniciou a explicitação
da base do conhecimento do povo Banto, com um artigo “A visão Bantu Côngo da
Sacralidade do Mundo Natural”, traduzido por Makota Valdina O. Pinto (2015).
Fu Kiau contribuiu para o conhecimento das bases filosóficas do seu povo,
com a criação de uma área de estudo do povo Bantu no Brasil, academicamente
relegado em estudos pela preponderância de pesquisas relacionadas à Nação Ketu,
apesar de historicamente terem chegado primeiro ao país.
Seu sistema filosófico de mundo considera que
O mundo natural para o povo Bântu é a totalidade de totalidades amarra-
das acima como um pacote (futu) por Kalunga, a energia superior e mais
completa, dentro e em volta de cada coisa no interior do universo (luyalun-
gunu). Nossa Terra, o pacote de essências/medicamentos (futu dia n’kisi)
para a vida na Terra, é parte dessa totalidade de totalidades. É vida. É o que é,
visível e invisível. É a ligação do todo em um através do processo de vida e vi-
ver (dino­dingo dia môyo ye zinga). É o que nós somos porque nós somos uma
parte disso. É o que mantém cada coisa na Terra e o Universo em seu lugar.

Os quatro ciclos cósmicos do Cosmograma Bakongo pensado/trazido por ele


considera que cada dimensão (corpo, mundo, comunidade) no universo possui seu
próprio tempo cósmico, seu próprio processo de formação.
Entretanto, as antigas escolas de iniciação Bantu-Kongo pensavam que todos
os processos cósmicos do tempo englobam quatro grandes passos para os quais
tudo na vida é subjetivo, inclusive os sistemas. A Cosmologia Bantu ensina
que para completar seus processos de formação ou dingo-dingo, um planeta
precisa atravessar esses quatro estágios ou “represas do tempo” (n´kama mia
ntangu) chamados de Tempo Musoni, Tempo Kala, Tempo Tukula e Tempo
Luvemba. (FU KIAU, 2016, p.)

5
O texto sobre os ciclos do Cosmograma Bakongo, que nasce da visão de mundo do povo bantú,
bakongo, foi baseado nos estudos compartilhados pela Rede Africanidades, pertencente a Linha 3
do DMMDC, coordenada pelo Professor Doutor Eduardo David de Oliveira (UFBA). A rede é
composta por estudantes de graduação e pós-graduação, artistas, mestres da capoeira, da cultura
popular e pensadores da filosofia africana e da filosofia da libertação.
TRANSCICLOPÉDIA EM DIFUSÃO DO CONHECIMENTO 255

MÛSONI
O primeiro ciclo chamado Mûsoni, é o começo de todos os tempos e, ao
mesmo tempo, o auge do poder espiritual. Começo aqui não significa início e sim
origem. A mitologia tradicional Kongo entende esse período como Tandu Kia Kuku
Lwalamba Kalunga (“o período do cozimento da Kalunga”), a era fervente da ma-
téria magmática, a origem do universo e da terra. Esse é o período durante o qual
o vazio (luyalungunu) encheu-se de matéria em fusão. Esse foi o início do kele-kele
dia dingo-dingo dia ntangu ye moyo, “a faísca dos contínuos processos do tempo e da
vida” em todo o universo; é a colisão das colisões (o Big Bang) (FU KIAU, 2016).

KALA
Kala é o segundo estágio da formação dos planetas e de suas transformações,
é o nascimento, é o tempo Kala (Tandu Kia Kala). É a configuração da terra depois
do resfriamento do magma, com infinitas e enormes transformações. A vida em sua
forma mais primitiva — seres microscópicos (zie), algas — começou a existir nesse
período. O solo era úmido e a água podia ser encontrada em todas as partes. O
negro é a cor simbólica dessa era, a segunda grande “represa” do Tempo (n´ kama
wanzole wangudi wa ntangu).
256 TRANSCICLOPÉDIA EM DIFUSÃO DO CONHECIMENTO

TUKULA
O ciclo Tukula é o terceiro estágio da formação dos processos dos planetas
(mundos) e de suas transformações, quando inicia uma sofisticação na elaboração
de seres e pensamentos. Forças complementares se estabelecem como o feminino e
o masculino, o mais velho e o mais novo. Esse é o tempo Cósmico do amadureci-
mento do nosso planeta. De repente amadureceu. Os animais também surgem em
um ponto da era Tukula.

LUVEMBA
O quarto estágio é o período essencial pela qual um planeta deve passar para
completar seu processo de formação e transformação.
De acordo com a escola de ensino superior Bantu-Kongo, durante essa
era, ­Maghûngu existiu no planeta. A existência de Maghûngu contextualiza a evo-
lução das dimensões em busca do objetivo maior que é o equilíbrio cósmico, dado
no devir constante e na construção e reconstrução permanente do ser.
Maghûngu era um ser andrógeno, completo por si só. Esse ser mitológico era “dois
em um”, macho e fêmea. Através de contínuas buscas por ­rituais, ­Maghûngu foi
cortado em dois seres separados: Lumbu e Muzita (fêmea e macho). Nes-
se momento, o planeta Terra tornou-se vivo por inteiro, completo por si
só. Lumbu e Muzita, para manter a unidade de quando eram Maghûngu, de-
cidiram permanecer juntos durante a vida (casados). Tornaram-se mulher e
marido (n´kento ye bakala). Com esse novo começo de vida, o ciclo cósmico
do Tempo completou-se e um novo estágio de tempo se iniciou — o tempo
vital (FU-KIAU, 2016).

Para Fu Kiau (2015),


[...] o mundo natural é sagrado porque ele carrega ambos, vida e morte, em
perfeito equilíbrio para manter toda existência nele em movimento. Destruir
esse equilíbrio, sua sacralidade, é causar um fim para ele e para todos nós.

O Cosmograma Bacongo é uma das maneiras Bantu de se pensar o universo


de maneira diferenciada e cosmológica, a partir de construções milenares que traba-
lham com as ideias de unidade, equilíbrio, tempo, corpo e comunidade de maneira
afrocentrada considerando conhecimentos tecnológicos, filosóficos, matemáticos,
ambientais e espirituais.
TRANSCICLOPÉDIA EM DIFUSÃO DO CONHECIMENTO 257

REFERÊNCIAS
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D
28. Deriva

Eduardo Oliveira

Vem da diáspora africana a experiência de estar à deriva e, a partir desse des-


locamento, assumir o imprevisível como condição, e a desconstrução como origem.
Daqui deambulo à crítica ao colonialismo, ao racismo, ao sexismo, em suma, à
­ideologia da universalização. Como Glissant, preferimos a opacidade à transparência,
pois, enquanto a transparência afirma o igual, a opacidade afirma a diferença. Ela
atua na filosofia da relação como aquela que garante a possibilidade da permanência
das fronteiras abertas, para a multiplicidade de sentidos. A opacidade tem como
característica o não encerramento de si-mesmo, mas estabeleceria relações.
A Poética da Relação faz o pensamento tremer, pois se institui a partir do tremor
do mundo. “[...] Pensar o pensamento equivale quase sempre a retirarmo-nos para
um lugar sem dimensão, onde só a ideia do pensamento se obstina”. (GLISSANT,
2011, p. 13). O pensamento alarga-se no mundo, o que se verifica pelo imaginário
dos povos que representam poéticas diversificadas. A disputa pela realidade dá-se
na disputa pela cultura, na reinvenção da cultura. O poder se mantém, ou se trans-
forma, não apenas nas relações sociais e institucionais, mas também na construção
do imaginário.
De acordo com Glissant, “[...] Gritamos o grito da poesia. As nossas barcas
estão abertas, nelas navegamos para todos” (GLISSANT, 2011, p. 20). A experi-
ência dos africanos escravizados passa pela retirada forçada da sua terra, depois é
colocada no abismo do “ventre da barca”. O segundo abismo é o mar, o terceiro é a
tentativa de esquecimento e apagamento da memória e do imaginário. Os povos que
experimentaram a violência do abismo vivem a Relação. O abismo é a projeção do
desconhecido. E a aposta no desconhecido pode ser compreendido como a errância,
e esta é o modo pelo qual os africanos que sofreram a violência do abismo recusam
a ideia de raiz totalitária.
A filosofia africana como deriva parte dessa experiência errante. A deriva tem
como característica sentir o tremor do outro lugar, assim como o poeta. O que
constitui o poeta, segundo Glissant (2011), é a possibilidade de sentir o choque de
outro lugar, e essa imagem é que mobiliza a filosofia como deriva.
Outra característica da poética da Relação é ser conjetural e não pressupor
qualquer fixidez ideológica, é uma poética aberta de desejo multilíngue, ligada ao
262 TRANSCICLOPÉDIA EM DIFUSÃO DO CONHECIMENTO

todo o possível. O poeta da relação tem como paisagem da tua palavra a paisagem
do mundo, mas a sua fronteira estará sempre aberta.
A poética da Relação preserva o particular, tendo em vista que a totalidade dos
particulares garante o diverso. Entretanto, é um particular que se coloca sempre em
Relação. Ela tem como característica a “crioulização”, pois permite “[...] a cada um
estar ali e noutro lugar, enraizado e aberto, perdido na montanha e livre no mar, em
acordo e em errância” (GLISSANT, 2011, p. 41). A crioulização, segundo Glissant,
difere da mestiçagem no aspecto em que a segunda é um encontro e uma síntese
entre dois diferentes, já a primeira é a mestiçagem sem limites, e seus resultados são
imprevisíveis.
A crioulização não é uma simples mecânica de mestiçagem. Glissant defende
a ideia de que a mestiçagem é a que produz o inesperado, aqui explicada a partir de
dois fenômenos. A primeira, pelo fato de os Ameríndios ter mantido secretamente
uma presença que se exercerá no nível do inconsciente coletivo. A segunda, pela
experiência dos africanos, pois eles mantiveram uma presença do antigo país, mesmo
deportados sem nenhum recurso, sem linguagens, nem deuses, nem ferramentas.
Os dois processos são chamados por Glissant (2014), de Rastro-Vestígio. Este é um
componente que é preciso reencontrar em si e harmonizar a novos usos. O rastro-
-vestígio é vivido como Relação.
As deportações dos povos africanos para as Américas contribuíram para radica-
lizar as oposições: vida e morte, ignorância e saber, música e silêncio, sofrimentos e
alegrias. Os povos deportados encontram na dor os vestígios/rastros de suas culturas
abandonadas, ao mesmo tempo em que se dispõem mais facilmente aos outros. Os
povos deportados criam o inesperado. O inesperado e o tremor apresentam-se como
leitmotiv da filosofia como deriva, é um modo de filosofar para sobrevivência.
O mundo treme, criouliza-se, quer dizer, multiplica-se, mistura suas florestas
e seus mares e seus desertos, todos ameaçados, mudando e permutando seus costu-
mes e suas culturas. O tremor é a própria qualidade daquilo que se opõe ao brutal
unívoco, rígido pensamento do eu menos o outro. A filosofia como deriva treme
com a lógica do lugar próprio, pois, ao territorializar-se, se permite explodir em
diversos horizontes.

DERIVA
Oxaguiã é uma divindade primordial do panteão iorubano. Há versões que
falam dele como a manifestação jovem de Oxalá, que teria, outra face, em Oxalufã
TRANSCICLOPÉDIA EM DIFUSÃO DO CONHECIMENTO 263

a manifestação do Oxalá velho. Preferimos, no entanto, remontar a um itã mais


antigo, onde Oxaguiã é filho de Oxalá, e, por isso mesmo, uma divindade funfun,
criadora, primordial, vindo da linhagem de Oduduwa.
Oxaguiã nasce sem cabeça — com pai, mas sem mãe. Sai da cavidade de um
caramujo (ibin). É princípio criador, primordial, inconstante, impermanente, em
construção. Ele mesmo, divindade criadora, permanentemente criada.
Sai vagando pelo mundo, posto que sem mãe nem cabeça. Vaga pelo mundo
que é dele — seu território. Deseja uma cabeça. Quer filiação. Vínculo. Origem.
Identidade. Pertencimento.
Há um isolamento nos deuses primordiais; vivem na solidão e desejam inter-
locução. Busca uma cabeça em vários espaços e tempos. Vagando pelos caminhos,
depara-se com Ori, que lhe fornece uma cabeça feita de inhame pilado — sua
comida favorita e que, aliás, lhe dá o nome. É uma cabeça branca e que esquenta
com facilidade. O Guiã adora ter uma cabeça, mas esta cabeça branca e quente lhe
gera muito conflito e confusão. A guerra passa a controlá-lo. Segue pelos caminhos,
feliz por ter uma cabeça, porém insatisfeito pelos efeitos belicosos da cabeça alva.
Nas derivas do caminho encontra Iku, divindade primordial igual a ele, e dela re-
cebe uma cabeça de lama, na verdade de ossum, fria, pesada e preta. Oxaguiã gosta
de ter outra cabeça, mas não gosta de ter uma cabeça fria e pesada. É incômoda,
carrancuda, está sempre de mau humor. Isso não combina com seu ethos, que é um
deus viajante, vigoroso, nômade, aventureiro. Oxaguiã é o irunmale do dia. Do
sol! Da alegria! Nada está bem se com ele mora a tristeza e a depressão de Iku. Ele
segue sua saga e encontra Ogun com sua Agadá. Ogum percebe o desconforto do
amigo outrora sem cabeça e agora com duas! Para um orixá prático e civilizador,
patrono da cultura e do progresso como o Guiã é incômodo e nada funcional viajar
pelo mundo com duas cabeças opostas: preta e branca. Essa dicotomia instaura um
conflito sem benefício. São verdades opostas com o terceiro excluído. Ele sofre de
uma bipolaridade que não lhe traduz o odu. Ou quente, ou frio, extremamente alegre
e extremamente depressivo, são pares irreconciliáveis. Um conflito que paralisa, e
não a batalha que exige superação.
Ogun, eborá da guerra, compadece-se do amigo Guiã, que lhe suplica usar
sua espada (agadá) para cortar dele as qualidades da morte. Ogum tenta e não con-
segue. Mas Ogun não é de desistir facilmente. Empreende uma força incrível na
tentativa de solucionar o problema do amigo. Ele é vigoroso e tenaz! Tanto aperta,
tanto corta, tanto luta que o resultado é inusitado: a cabeça de lama não é arranca-
da, mas fundida com a cabeça de inhame. Amalgamadas, resultam numa cabeça
264 TRANSCICLOPÉDIA EM DIFUSÃO DO CONHECIMENTO

azul, equilibrada, onde habitam tanto a alegria como a tristeza, o frio e o quente, a
sabedoria e a ignorância, o gosto pelo conflito civilizacional que resulta em cultura.
Oxaguiã segue derivando pelo mundo. Torna-se o prestigioso Rei de Ejigbo
(Elejigbo). Mas seu espírito inquieto o faz abandonar seu reino e lutar em outras
terras, tecer outros reinos, ganhar outras guerras e seguir indefinidamente sua tra-
jetória. Recebe, entretanto, a missão que o caracterizaria como divindade criadora:
na tarefa de criar o mundo, conferida a Oxalá, e, na distribuição de tarefas, coube a
Ajalá moldar a cabeça dos seres humanos. Acontece, no entanto, que muitas cabeças
não ficaram boas. Defeituosas, produziam demasiado desequilíbrio. Então, Oxaguiã
aceita retificar o trabalho de Ajalá. E fica com a missão de recriar, retificar, restaurar
as cabeças que não ficaram boas.
Abordamos a Deriva a partir do itã de Oxaguiã que acabamos de narrar. O
conteúdo semântico de deriva normalmente está associado à negatividade. De acordo
com o dicionário online de português, deriva significa: “[...] Desvio do caminho
certo de uma embarcação ou avião, causada por ventos ou correntes. À deriva. Sem
rumo certo, ao sabor dos acontecimentos”. Há o uso corriqueiro de deriva como estar
perdido, sem direção ou controle. Como algo que precisa ser evitado, prevenido,
concertado, porque um erro, perigoso, desconfortável. A deriva se opõe, em seu uso
mais corrente, ao controle, ao seguro, ao previsível. Aliás, a história da filosofia no
Ocidente privilegiou as categorias racionais de controle e medida, de cálculo e pre-
visão, de planejamento, estratégia, tática etc. Nesse balaio semântico, derivar é não
saber o que fazer, signo de insegurança e imperfeição. Estar à deriva é o contrário
da racionalidade, é o contrário dos mapas, o contrário da organização, o contrário
do conhecimento, inclusive. Estar à deriva, é estar em perigo! Derivar infinitamente,
inclusive, pode ser interpretado como signo de condenação, de penalidade eterna! A
deriva é um não-lugar. A negação de qualquer endereço, destino ou sentido.
A diáspora negra deixou à deriva o contingente populacional negro-africano e
seus descendentes. Deriva geográfica, social, cultural, linguística... Africanos e seus
descendentes espalhados por todo o planeta estão na condição de falar da experi-
ência da deriva de maneira própria e apropriada. Apesar da violência sistemática
que recebemos, alhures e contemporaneamente, respondemos tal violência com
uma generosidade criativa sem par na história da humanidade. É justamente dessa
experiência histórica da diáspora (deriva populacional) que derivamos uma reflexão
filosófica sobre a deriva, tratando de produzir o conceito a partir da experiência.
Para tal empreitada, convocamos o itã de Oxaguiã e o ethos cultural yorubano onde
se localiza.
TRANSCICLOPÉDIA EM DIFUSÃO DO CONHECIMENTO 265

O tema da deriva é um tema correlato ao da liberdade. Quem viveu a experiência


da escravidão necessita priorizar a experiência da liberdade. Ela nunca é absoluta,
ninguém está livre totalmente; e ninguém está escravizado totalmente. Não existe a
esfera da absoluta escravidão, e não existe a esfera da absoluta libertação. É sempre um
estado relativo à contingência. É o que acontece — à deriva, pois tudo está sempre
acontecendo. Nada está concluso. O planeta deriva no espaço. Nós derivamos no
tempo. Derivar é condição do existir. Viver é perigoso! Dizia Riobaldo1. O mundo
é imperfeito, disse Greimas2. Estamos de acordo, mas isso não se constitui como
negatividade absoluta. Vejamos.
Oxaguiã nasce sem mãe nem cabeça. Um deus à deriva. Ele, um criador, ao
vagar, vai produzindo sua cabeça a partir dos encontros com a alteridade. Alteridade
que passa a lhe compor por laços de solidariedade. Primeiro, Ori lhe dá a cabeça
branca. Depois Iku a cabeça escura. Ele segue deambulando pelo território. O cria-
dor não está completo. Há falta. Impermanência. Insatisfação. O itã reconhece o
caráter incompleto da criação. O mundo não é perfeito. Deus não é perfeito. Ajalá
molda a cabeça do ser humano. O ser humano é imperfeito. Ajalá não é perfeito e
se equivoca quanto a algumas cabeças. Oxaguiã então vai restaurar as cabeças de-
feituosas. Ele sabe fazê-lo não porque seja perfeito, mas exatamente porque conhece
a experiência absurda de não ter cabeça e/ou de ter uma cabeça ou muito fria, ou
muito quente. São suas experiências de imperfeição que o qualifica para o trabalho
de restauração dos oris dos seres humanos. Ele conhece o non-sense (sem cabeça) e o
perigo dos extremos (muito frio, muito quente); (dogmatismo absoluto, relativismo
exacerbante). Tudo está incompleto. E, se é assim, viver é uma obra de arte, ou seja,
uma permanente criação.
Deriva, portanto, é criação. Deriva é liberdade. Não é ausência ou o contrário
da racionalização. Deriva é o reconhecimento do mundo tal como se apresenta
à experiência. O pensamento contemporâneo, mesmo no Ocidente, reconhece o
caráter incompleto do mundo. Quem hoje em dia arrisca-se a apresentar sistemas
completos e fechados sobre o mundo? Quem, em sã consciência, advoga pelas leis
universais, tanto da biologia quanto da cultura? Ocorre que os itãs mais antigos da
tradição yorubana, em particular, e arrisco dizer, das tradições africanas e amerín-
dias, em geral, reconhecem o caráter impermanente e imperfeito do mundo desde
suas narrativas mitológicas a milhares de anos! (sic!)

1
Personagem de Guimarães Rosa em Grande Sertão: Veredas.
2
GREIMAS, A.J. Da Imperfeição. Lisboa: Estação das Letras e Cores, 2017.
266 TRANSCICLOPÉDIA EM DIFUSÃO DO CONHECIMENTO

A deriva é uma experiência estética. Explicamo-nos: ao dizer estética, aqui,


estamos dizendo da forma que acolhe o conteúdo, isto é, do que lhe dá contornos e
sentidos. Estética precisamente como a sensibilidade da sensibilidade; sua condição
enquanto ação, não como possibilidade (que já seria assunto para a epistemologia).
A deriva é a forma como os seres animados (em nossa tradição negro-africano não
existe seres inanimados) fluem. Deriva é fruição, para muito além de Heráclito, pois
não é um devir comandado pela unidade da razão, que nela vê o sentido absoluto.
Derivar é o sentido! Não há forma única e nem universalização de sentidos. Deri-
var é navegar no oceano da multiplicidade e da singularidade. Derivar é fundir-se,
­evadir-se, eclipsar-se, misturar-se... Não há pureza na derivação. Não há unidade.
Derivar é o movimento mister da ancestralidade. Ancestralidade é substantivo
derivado. É sabedoria de linhagens, cruzamentos, encruzilhadas. É movimento con-
tínuo, ­elíptico, sem fim ou começo. Meio em todas as partes. Trajetória sem rastros
definidos; só vestígio. Ruídos no tempo. Marcas no espaço. Não como pegadas que
levam o caçador à presa. Apenas sinais da presença por todos os lados, em todas as
faces, no fogo aceso em cada ori. Deriva é a experiência estética da liberdade! Ver-
tigem anunciada. Navio sem bússola. Navegação sem mapa. Viagem sem destino.
O processo mais importante que o resultado. Não tem resultado. Ninguém resulta
pronto, posto que deriva constante. O sentido de derivar é derivar e não chegar a um
porto. Chega-se sempre a um ponto. E desse a outro, indefinitivamente. Derivar é
risco. É traço na folha dilatada do tempo — e do espaço. É desenho em movimento.
É o capoeira desmanchando um movimento noutro. A sambista deslocando o corpo
ao sabor do ritmo, e não do objetivo. É o corpo fluindo obedecendo aos comandos
do movimento que obedece aos comandos do ritmo e do contexto. Deriva, afinal, é
experiência estética que não congela, mas dança com o movimento.
A Deriva como experiência estética conduz à deriva como princípio ético.
A ética é um modo de educar o corpo para vivenciar conhecimentos e práticas
semelhantes aos nossos ancestrais. À ideia de pensar a ética como um código de
controle das ações humanas, contrapomos a ética como um modo de ampliar
as liberdades privadas e públicas como experiência de criação. A ética delimita
princípios para uma criação ilimitada. Nem toda criação é ética, mas toda ética é
criativa. Criar uma bomba atômica com a finalidade de matar milhões de viven-
tes não é uma experiência ética porque não observa o princípio da manutenção e
ampliação da liberdade de outrem. A deriva interpõe ao controle, a criatividade.
Não é a repetição do código, mas o lançar-se a soluções inusitadas. Derivar leva
à autonomia e não ao autômato. A deriva implica em fazer escolhas (ética) num
TRANSCICLOPÉDIA EM DIFUSÃO DO CONHECIMENTO 267

cenário constantemente movente. Ética de deriva é a arte de interpretar contextos


e produzir realidade. Construir mundos! — o imperativo de uma filosofia da an-
cestralidade. Deriva é experiência de liberdade, razão de ser da ética, morada da
felicidade. A felicidade não como princípio moral ou idealista. A felicidade como
justiça. A felicidade como experiência estética, referenciada em contextos culturais,
sociais, subjetivos, que ainda que alcance o gozo, não alcança a completude. Para
nós não se separa, como em Levinás3, Desejo com D maiúsculo, e desejo com d
minúsculo, sendo o primeiro a glória absoluta, infinita, e o segundo o gozo que
logo alcançado reclama novo gozo. O desejo deriva. Nem absoluto, nem relativo.
Sempre flui, não como falta ou finalidade. O desejo é abertura. Tal como no itã de
Oxaguiã, ele é inacabado, criativo, processual, incontrolável, inesgotável. É experi-
ência que não cessa porque é fruição incessante. É o próprio curso do rio que só é
rio porque deriva, porque se fosse água parada seria lago ou piscina. Desejo é esse
rio que, enquanto corre, canta, en-canta quem nele deriva. A liberdade é a canção
desse rio — princípio-mor para todos(as) aqueles(as) que vivenciam/vivenciaram
a privação da liberdade. E liberdade não se define por um conceito ou se garante
por um código. Ela só é, se puder ser diferença!
Deriva como ontologia é o reconhecimento que a diferença é o fio e a ma-
lha dessa rede. Sem princípios generalizantes ou dogmas redutores. O mundo dos
seres (todos os entes são seres na tradição negro-africana) é composto de seres que
se compõem como diferença e em relação. Uma poética da relação, diria Eduard
Glissant4. Se já temos configurado um paradigma ético-estético a partir da expe-
riência da deriva, considerando a experiência histórica dos negro-africanos e seus
descendentes, temos agora uma ontologia da diferença que não conhece outra coisa
senão a deriva que resulta em movimentos de multiplicidade e singularidade, com
ritmos e velocidades diferenciadas, exigindo do/a filósofo/a negro-africano/a um
exercício permanente de construção de mundos através de uma atividade incessante
de crítica, de síntese e, sobretudo, de criação. Sempre contextual e contingencial, ao
sabor do regime jamais capturado por conceitos ou leis universalizantes porque flui
no mar da cultura, na linha da kalunga, nas ondas do oceano.
Há vários conceitos que flertam com o sentido semântico de deriva na
filosofia africana e mesmo latino-americana. A ideia de travessia em Ramose5,

3
LEVINÁS, E. Totalidade e Infinito. Lisboa: Ed. 70, 1980.
4
GLISSANT, Eduard. Poética da Relação. Lisboa: Sextante, 2011.
5
RAMOSE, M. B. Sobre a Legitimidade e o Estudo da Filosofia Africana. In: Ensaios
Filosóficos, Volume IV, outubro/2011.
268 TRANSCICLOPÉDIA EM DIFUSÃO DO CONHECIMENTO

ou de ponte em Raul Fornet-Betancourt6, e mesmo a de crioulização de Glissant


são algumas delas. No entanto, no caso das duas primeiras, são ainda ideias que
levam de um ponto a outro, definidamente. Sai-se de um ponto a outro, saltando
algum obstáculo, como o da ponte. Vai de um destino a outro, como o de travessia.
Advogamos aqui uma radicalidade ao nos apropriar do conceito de deriva: o que a
ponte vê como obstáculo, nós vemos como caminho: o fluir do rio é nosso destino
e o mar não é nosso destino, a não ser se pensar o mar como metáfora da multipli-
cidade — a diferença de vários rios conectada. Mas não queremos metáforas. Para
nós, é mais icônico que metafórico; o mar é a diversidade de rios transmutada e,
como tal, o oceano nunca é o mesmo e sempre se ultrapassa. Travessia é experiência
de gente nômade que nos agrada, mas ainda implica a possibilidade das paradas.
O sedentarismo ainda é possível na travessia. Um roteiro, com mapa, pode servir
de guia. Na deriva não há mapas, destinos ou bussolas; nem teleologia; não há
finalidade, verdade ou origem. Não há trajetória pré-definida. É liberdade absur-
da, irrestrita, não-relativa, mas relacional. Isso como ontologia! Essa a experiência
tradicional/contemporânea da cultura africana no continente ou na diáspora. Essa
nossa cosmo-concepção de mundo. A ética, como exercício de liberdade, como
arte do discernimento baseada na criatividade e expansão das liberdades públicas
e privadas, não advoga que tudo pode, mas sim que tudo é possível. A estética de
nossa cultura, confere um sentido ético para nossa experiência histórica, mas não
nos salva do engano. Por isso, na capoeira angola, por exemplo, desenvolvemos
uma ética do engano. O mundo é simulacro; sua regra é ilusão. Assim, a dicotomia
lógica do verdadeiro-falso, a dicotomia estética do feio-bonito, a dicotomia moral
do bom ou ruim, não nos contempla. Nossa ontologia reclama também outra jus-
tiça. Reclama outra história. Chegou o tempo de re-contar a história do mundo
através de nossa ótica. Nossa ontologia alimenta nossa semiótica. Nós dançamos.
Fluímos. Derivamos. Nossa dança é dança de paz em tempo de guerra. Trocamos
os pés pelas mãos e andamos de cabeça pra baixo!

6
Fo r n et- Beta n c o u r t , R a u l. Transformación Intercultural de la Filosofía. México: Fondo
de cultura económico, 2004.
29. Desenvolvimento

Ana Cristina de Mendonça Santos


Maria de Fátima Hanaque Campos

Defendemos o desenvolvimento tomando como referência os estudos de Paulo


Freire como práxis transformativa da liberdade, e que considera “[...] o desenvolvimento
econômico como suporte da democracia, de que [resulte] a supressão do poder desu-
mano de opressão das classes muito ricas sobre as muito pobres” (FREIRE, 1967, p.
86-87). Desta forma, encontra-se no centro de suas preocupações, questões de ordem
moral ou ética, tais como democracia, liberdade e justiça social. Nesta concepção, o
desenvolvimento envolve “[...] não apenas questões técnicas ou de política puramente
econômica ou de reformas de estruturas, mas guarda em si, também, a passagem de
uma para outra mentalidade” (FREIRE, 1967, p. 87). Ou seja, o desenvolvimento
assim considerado se atrela a um processo transformativo de conscientização, que
conduz os indivíduos ao reconhecimento tanto de sua historicidade quanto de sua
inevitável reciprocidade como criaturas humanas.
Em suma, desenvolvimento para Paulo Freire não se refere meramente ao
papel dos indivíduos como agentes econômicos numa sociedade concebida
como um mercado, mas focaliza, holisticamente, na sua formação como
cidadãos conscientes de sua situação no mundo e solidariamente integrados
na comunidade nacional (VALENTE, 2009, p. 190).

Para Feire (1980), somente por meio de um processo de conscientização e diálogo,


denominado de educação problematizadora ou libertária, os seres humanos poderão
deixar de ser tratados como coisas, para se transformarem plenamente em pessoas
conscientes de si e de seu papel histórico no mundo. Entende-se que esse projeto
não seja algo dado, e sim fruto de luta e participação, construída de forma conjunta
entre os sujeitos, através do processo educativo. Desenvolvimento, outrossim, estaria
implicado à inserção consciente e crítica dos sujeitos nas diversas possibilidades de
interação com o contexto social, cabendo à educação mediar o processo de leitura
crítica do mundo que nos rodeia, ressaltando que “[...] é um mundo inacabado e
isso implica a denúncia da realidade opressiva, da realidade injusta, inacabada, e,
consequentemente, a crítica transformadora, portanto, o anúncio de outra reali-
dade”(GADDOTI, 1996, p. 81).Tanto a denúncia quanto o anúncio expressam a
necessidade de criação de uma nova realidade.
270 TRANSCICLOPÉDIA EM DIFUSÃO DO CONHECIMENTO

Sen (2000) contribui no aspecto libertador do conceito de desenvolvimento na


medida em que, para além das necessidades básicas como saúde educação, direitos
civis, providas, é importante dispor de condições para satisfazer as necessidades
humanas.
Menezes e Campos (2013) consideram que para o alcance desse objetivo é ne-
cessário que a produção de riqueza caminhe junto com a produção do conhecimento,
com base no princípio de harmonização das políticas e dos investimentos permitindo
a interiorização do desenvolvimento aliado à convivência das diversidades regionais.
Assim, o conceito de desenvolvimento desloca-se do aspecto meramente econô-
mico, ou seja, do aumento de produção de bens e serviços de determinado setor ou
de toda a riqueza produzida no país para a ênfase na valorização das potencialidades
humanas emancipadoras e inclusivas.

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30. Dialógica da Análise Cognitiva (DiAnCo)

Cláudia Pereira de Sousa


Dante Augusto Galeffi
Leliana Santos de Sousa
Teresinha Fróes Burnham

A Análise Cognitiva (AnCo), conforme explicitado em recentes produções


acadêmico-científicas, a exemplo de Fróes Burnham (2012), Lage, Michinel, Fróes
Burnham (2012), Sanches (2017) constitui-se em um novo campo complexo,
­multirreferencial, inter/transdisciplinar do conhecimento, que se propõe a contri-
buir para a esfera do trabalho e da formação do profissional do conhecimento, na
perspectiva de tornar o conhecimento um bem público. Com este compromisso,
foi sendo criada, ao longo dos primeiros anos da década de 2000, a proposta de um
programa de pós-graduação e, finalmente, implantado em 2007, o Doutorado em
Difusão do Conhecimento, estruturado em rede, por sete instituições brasileiras,
aonde se vem produzindo conhecimento para sustentar, legitimar e autorizar a
construção do estatuto epistemológico da AnCo.
Este texto é mais uma contribuição para tal produção, objetivando trazer à
discussão uma das bases epistemológicas da AnCo: a dialógica. Propõe-se, assim,
apresentar uma concepção de Dialógica da Análise Cognitiva (DiAnCo), como uma
das possibilidades de construir conhecimento do/sobre conhecimento, a partir de
uma reflexão sobre a Ciência como um dos modos de produção do conhecimento
e de alguns de seus limites diante de perspectivas mais contemporâneas de lastros
epistemológicos para a própria Ciência.
Para tanto, busca-se explicitar alguns pontos desta reflexão que direcionam
para uma mostra da necessidade de se trabalhar com o conhecimento a partir da
dialógica, tomando por base o conceito de dialogia/diálogo como fundante para se
compreender a construção e a difusão do conhecimento como processos linguagei-
ros que envolvem múltiplas vozes, múltiplos referenciais e múltiplos modos desta
construção e difusão.
O desenvolvimento da técnica, da tecnologia e de outras esferas de atividade
humana permitiram à Ciência fazer incursões no conhecimento e na forma de
conhecer o conhecimento, produzindo transformações profundas nas maneiras de
fazer e de compreender a própria Ciência.
272 TRANSCICLOPÉDIA EM DIFUSÃO DO CONHECIMENTO

A Ciência, assim, passa a ter suas verdades questionadas pela instantaneidade


dos fatos e pelas demandas das sociedades. Dessa forma, as explicações dos fatos,
dos objetos e dos fenômenos científicos, em cada área do conhecimento — a partir
de sua lógica disciplinar, embasadas em lógicas reducionistas de análise das partes,
como tem ocorrido ao longo dos anos nas Ciências, são desconstruídas quando não
respondem satisfatoriamente às demandas de grupos determinantes socialmente.
No âmbito da Ciência, hoje, vive-se da certeza de que não há certezas deter-
minísticas e, sim, probabilidade de realidades que se desenvolvem a partir das emer-
gências das relações constituídas na dinâmica relacional das partes e do todo e que
se materializam em possibilidades na flecha do tempo. Isto permite à Ciência uma
série de processos multidimensionais marcados pela configuração de micro, “midi”1
e macroestruturas complexas correlacionadas à forma de ver e de se fazer Ciência.
Nesse contexto, a Ciência é o berço do desenvolvimento da multiplicidade
de realizações, que se materializam nas sociedades e na própria Ciência. Sai do
paradigma determinista onde havia uma, subliminar, hierarquia das Ciências Na-
turais sobre as Ciências Humanas para o Fim das Certezas (Prigogine, 2003) para
o esforço da compreensão da complexidade dos sujeitos e dos fenômenos em uma
Ciência em transição.
A humanidade está em transição, não há dúvida, e também não há dúvida
de que a ciência está em transição. Mais uma vez enxergamos certa unidade
entre cultura e ciência, e talvez seja desse mundo e dessa ciência em transição
que eu gostaria de lhes falar. Nessa ciência em transição, a noção de comple-
xidade desempenha um papel importantíssimo. [...] Todo mundo percebe que
a complexidade está ligada a multiplicidades de comportamento, a sistemas
cujo futuro não se pode prever, como se pode prever o futuro de uma pedra
que cai. Porém, o que eu gostaria de lhes mostrar são duas coisas. A primeira
é que a complexidade nos conduz a uma nova forma de racionalidade que
ultrapassa a racionalidade clássica do determinismo e de um futuro já defini-
do. O segundo aspecto que gostaria de sublinhar é que esse desenvolvimento
fornece uma mensagem mais universal para a ciência, menos vinculada ao
século XVII, menos vinculada à tradição europeia e mais conectada com
outras tradições culturais, tais como as da Índia e da China... No fundo, são
esses dois elementos que gostaria de colocar em evidência. Para tanto, gostaria
de começar dizendo que a ciência clássica insistia sobre o repetitivo, sobre o
estável, sobre o equilíbrio, enquanto hoje em dia, por toda parte, vemos ins-
tabilidade, evolução, flutuação. E isso não somente no âmbito do social, mas
no âmbito do fundamental. (PRIGOGINE, 2003 p. 49-50)

1
Termo inspirado na expressão “relações midi” de Henriques (2018). HENRIQUES, Cláudio Ce-
zar. Sintaxe: estudos descritivos da frase para o texto. 3.ed. Rio de Janeiro: Alta Books, 2018.
TRANSCICLOPÉDIA EM DIFUSÃO DO CONHECIMENTO 273

Não obstante as tradições da racionalidade clássica e determinista, é das flu-


tuações e incertezas nas ciências que se origina a base para o entendimento sobre a
necessidade de desenvolver investigações circulares, espiraladas estreladas, enredadas
constelares, portanto, não lineares e determinísticas nas Ciências. Esses fatos marcam,
contínua e progressivamente, o início da transição das abordagens determinísticas e
das análises por decomposição para as abordagens complexas, assim também entre
elas, nos estudos científicos, remontando à própria geometria e configurações de
processos de teares na costura do tecido científico social. A previsibilidade científica,
hoje, dá lugar ao desenvolvimento da percepção científica de que as realidades torna-
ram-se complexas e essa complexidade está diretamente associada à multiplicidade
de relações, de comportamento e de sistemas reais ou de suas representações.
A multiplicidade descrita por Prigogine representa a própria transição e tran-
sitoriedade pela qual passa a sociedade: a transitoriedade entre o local e o global no
processo de globalização dos mercados, as flutuações temporais e espaciais de relações
de Poder, e a dinâmica das sociedades em rede, entre outros processos.
Nessa perspectiva, Boaventura (2010) descreve a emergência de um novo pa-
radigma nas Ciências como resultante de aspectos sociais e teóricos do processo em
curso. Paradigma este que produzirá transformações em escalas temporo-espaciais
que se constituirão ao mesmo tempo em díspares e convergentes na sociedade e
na própria ciência, pois, conforme o autor, “[...] todo conhecimento científico visa
constituir-se senso comum [...]” (BOAVENTURA, 2010 p. 88).
A partir do que diz Santos 2010, pode-se pensar que a transformação do co-
nhecimento científico em senso comum resultaria num conhecimento socialmente
equitativo. Tal atitude poderia ser concebida como uma ação de responsabilidade
social da ciência, apesar de se concordar com o entendimento de Santos sobre a
transformação do conhecimento científico. A transformação em senso comum pode
caracterizar-se apenas como ação de difusão do conhecimento científico.
É da relação socialmente desigual de acesso ao conhecimento científico que se
originam as relações de poder nas ciências. Relações estas que conduzem a ciência,
o conhecimento e a realidade a outro nível de compreensão de seus respectivos de-
senvolvimentos: o da complexidade. É na dinâmica da complexidade que surgem
a emergência e as subjetividades nas relações para a compreensão da essência e da
totalidade do conhecimento no entendimento da realidade e do próprio conhecimento.
Dessa conjuntura científica e social, é que se processa e se percebe quão com-
plexa a relação que se desenvolve entre os sujeitos, as sociedades, a natureza e entre
eles. Disso resulta o entendimento de que a Ciência não consegue mais explicar a
274 TRANSCICLOPÉDIA EM DIFUSÃO DO CONHECIMENTO

realidade a partir da fragmentação das áreas de conhecimento e de suas análises


por decomposição, com abordagens especializadas disciplinarmente e extraindo
o fenômeno do seu contexto. Muito menos, desenvolver percepções e explicações
lineares da realidade.
Nesse sentido, tem havido movimentos no próprio âmbito da Ciência na di-
reção de acolher o paradigma da complexidade, buscando compreender os objetos
na sua singularidade, na sua totalidade e nas suas conexões com outros objetos, pois
a observação é um ato singular dos sujeitos. Assim, teremos o entendimento das
realidades como ente complexus, pois, como descreve Prigogine (2010 p. 56), “[...] a
realidade é somente uma das realizações do possível. O futuro se inclui aí. O futuro
é um dos possíveis futuros [...]”.
Considerando-se que a realidade são realizações do possível, a investigação
cognitiva pelo viés da compreensão da complexidade dos fenômenos possibilita o
desenvolvimento de abordagens multidisciplinar, multirreferencial e multidimensional
nas pesquisas, com isso as ciências conseguem superar a dimensão fragmentada das
abordagens científicas mais racionalistas, possibilitando ir além da relação linear do
todo com as partes e das análises desconstrutivistas, permitindo perceber as emer-
gências e as subjetividades nos processos que, por muitos anos, foi desprezada por
essas últimas abordagens [mais racionalistas]. Nesse sentido, o subjetivo
[...] emerge do todo, ao mesmo tempo fazendo parte do todo. Então, eviden-
temente, essas estruturas fora de equilíbrio são muito numerosas. Toda a nossa
biosfera é uma estrutura desse tipo. E todas essas estruturas possuem aspectos
de instabilidade. Existem pontos de ruptura, existem pontos de bifurcação onde
uma solução dá origem a várias soluções possíveis. Nesse momento, a escolha
é determinada por leis de probabilidade e não por leis deterministas. Se vocês
repetirem a experiência, terão alguma das soluções possíveis (­ PRIGOGINE,
2003 p. 54-55).

De forma muito semelhante ao subjetivo, a emergência surge na relação entre


a essência e a totalidade na relação do entendimento da complexidade na ciência,
no conhecimento e na realidade.
O surgimento das emergências, na observação da realidade, demonstra a exis-
tência da complexidade dos fenômenos, os quais correspondem a diferentes níveis
de realidade em um mesmo fenômeno que conserva em si o uno e o múltiplo; o uno
e o multidimensional. Nesse contexto, os níveis de realidades contribuem também
para o entendimento da transitoriedade do tempo e do espaço nas observações dos
fenômenos, originando a paralaxe na observação dos processos, das formas e das
TRANSCICLOPÉDIA EM DIFUSÃO DO CONHECIMENTO 275

dinâmicas que ocorrem nos modos de se observar. Disso resulta a necessidade do


desenvolvimento do pensamento complexo e do entendimento dos níveis de realidades.
O pensamento complexo é, portanto, essencialmente, o pensamento que
lida com a incerteza e que é capaz de conceber a organização. Trata-se de um
pensamento capaz de reunir, contextualizar, globalizar, mas ao mesmo tempo
de reconhecer o singular, o individual, o concreto. O pensamento complexo
não se reduz nem à ciência, nem à filosofia, mas permite a comunicação mú-
tua, fazendo o intercâmbio entre uma e outra. O modo complexo de pensar
não é útil apenas para os problemas organizacionais, sociais e políticos. O
pensamento que enfrenta a incerteza pode ensinar as estratégias para o nosso
mundo incerto. O pensamento que reúne, ensina uma ética da aliança ou da
solidariedade (MORIN, 2003 p. 77).

Associada ao pensamento complexo está a percepção conjuntural dos níveis de


realidades, as quais permitem inferir que a realidade guarda em si a multidimensio-
nalidade das situações, dos fenômenos e das relações entre eles, coexistindo em si
diferentes níveis de realidade.
Os níveis de realidade coexistem simultaneamente sem que nenhum deles
se confunda com o outro, sendo impossível a cada um deles existir sem os
outros. Os níveis de realidade não são coisas em si, mas campos coexistentes
diferentemente individuados, cuja percepção depende das conexões e relações
contextuais de quem os percebe — o observador. O âmbito histórico dessa
compreensão dos diferentes níveis de realidade provém dos campos da física
quântica e das epistemologias das ciências humanas demolidoras da metafísica
moderna: fenomenologia, hermenêutica, ontologia fundamental (GALEFFI,
2017 p. 117-118)

A discussão sobre o conhecimento na filosofia passou por correntes filosóficas


que resultam da relação entre sujeito-objeto-fenômeno, assim como da conjuntura
perceptiva entre realidade e percepção da realidade. Adota-se neste trabalho o enten-
dimento de que o conhecimento guarda em si o singular e o coletivo em seus modos
de construção e de manifestação das realidades em seus processos de construção e
de difusão, integrando de maneira autônoma e correlacionada o unidimensional, o
multidimensional e o multirreferencial nas suas formas paralaxe de ser.
Entende-se que o conhecimento decorre da relação indissociável — não
disjuntiva, portanto, entre sujeito e objeto que varia de acordo com diferentes polos
de centralidades discursivas e também segundo diferentes perspectivas filosóficas
relacionadas ao sujeito, ao objeto e seus vínculos de conter e estar contido ao longo
da sua história. Em síntese, entende-se que o conhecimento pode ser compreendido
a partir de diferentes modos de sua construção — tanto epistemológicos quanto
276 TRANSCICLOPÉDIA EM DIFUSÃO DO CONHECIMENTO

científicos, tanto artísticos quanto míticos, dentre outros. Ainda que as estrutu-
ras conceituais produzidas nessas esferas não sejam sempre originadas a partir
de consensos ou em consenso, ao longo dessa história, porém, frequentemente,
a partir de discursos, perspectivas filosóficas, científicas, artísticas... diferentes,
por vezes contraditórios, opositivos, concorrentes; compreensões de objetos que
exigem noções, princípios, visadas que, na lógica racionalista, se excluem mutu-
amente, mas que são indissociáveis em uma mesma situação (realidade). É desse
contexto que se assume a necessidade de lidar com os processos de trabalho com o
conhecimento — construção e difusão, principalmente — segundo possibilidades
que vão além da análise disjuntiva e se propõe a Dialógica da Análise Cognitiva.
A proposta da concepção de dialógica é embasada nas discussões de Morin
sobre os sete princípios da complexidade que sustentam, na perspectiva do autor,
os setes saberes para educação do futuro.
O princípio dialógico [...] [é] ilustrado pela fórmula heraclitiana. Ela une dois
princípios ou noções em face de se excluírem um ao outro, mas que são indissoci-
áveis em uma mesma realidade. A dialógica permite-nos aceitar racionalmente a
associação de noções contraditórias para conceber um mesmo fenômeno complexo
(MORIN, 2003 p. 74).
Este princípio é evidenciado, segundo o autor, em todas as esferas do Planeta:
física, biológica e humana, sob diversas formas de inter/retroações, mostrando
a interconexão entre ordem, desordem e organização e dá sustentação para se
compreender o complexo mediante a indissociabilidade e a complementariedade
entre contraditórios, entre termos que, na lógica do racionalismo, como apontado
acima, tendem a ser mutualmente excludentes. Como exemplos, cita a concepção
de partículas como corpúsculos e como ondas e as possibilidades inclusivas e, ao
mesmo tempo, excludente, das noções de indivíduo, espécie e sociedade.
Abordando questões como a pertinência do conhecimento, o contexto, as
dimensões e a complexidade ao longo da história da Ciência, destacando que a
especialização levou à disjunção e à redução da visada sobre o objeto, respectiva-
mente em termos de seus vínculos com o contexto e de sua integralidade (como
totalidade) pela sua divisão em partes. Esse contexto origina o que o autor chama
de falsa racionalidade “racionalização abstrata e unidimensional”, (MORIN, 2003,
p. 71), que caracteriza
A inteligência parcelada, compartimentalizada, mecanicista, disjuntiva,
reducionista, destrói a complexidade do mundo em fragmentos distintos,
fraciona os problemas, separa o que está unido [...] Incapaz de visualizar o
TRANSCICLOPÉDIA EM DIFUSÃO DO CONHECIMENTO 277

contexto e a complexidade planetária, a inteligência cega se torna inconsciente


e irresponsável (MORIN, 2003, p. 72).
Com base nessa crítica, Morin chama atenção para a necessidade de desen-
volver o pensamento complexo para superar a redução e as disjunções das ciências,
propondo “[...] completar o pensamento que separa com um pensamento que une
[...] um pensamento que busca distinguir (mas não separar), ao mesmo tempo que
busca reunir”. (2003, p. 72).
A Dialógica da Análise Cognitiva é, nessas bases, compreendida como uma
possibilidade de entendimento dos modos de produção e difusão do conhecimento
como processos comprometidos com a sua essência e a sua totalidade apreendida
no ato do conhecer o conhecimento. Nessa conjunção, ela engloba, simultane-
amente, singularidade, complexidade, incerteza, incompletude, emergência e
transitoriedade na construção da concepção do conhecer em um determinado
instante no tempo.
A percepção e concepção dialógica norteiam o ato de observação pelos sujeitos
que observam, permitindo em essência notar as múltiplas dimensões, a multirre-
ferencialidade (ARDOINO, 1; BURNHAM, 1993; BORBA, 1998; e os níveis de
realidade (NICOLESCU, 2018) na complementariedade azimutal do olhar, em
escalas horizontais e verticais que transitam entre a essência e a totalidade numa
instantaneidade hermenêutica do intuir, do perceber e do construir conhecimento.
Para Borba (1998, p. 13), a partir de Ardoino,
[...] a multirreferencialidade na análise dos fatos, das práticas, das situações,
dos fenômenos [...] propõe explicitamente a:

• uma leitura plural (de seus objetos);


• a partir de diferentes ângulos;
• examinar em função de sistemas de referências distintos (o transborda-
mento-magma do objeto);
• não atitudes redutíveis de uns aos outros (supostos, reconhecidos), ou
seja, o não reducionismo dos heterogêneos (p. 13).

Sendo assim, a dialógica assumida, aqui, como uma possibilidade epistemo-


-metodológica para o trabalho com o conhecimento, pela via da Análise Cognitiva,
permite integrar análise e síntese na investigação, sustentada filosoficamente pela
hermenêutica como uma abordagem que engloba processos de correlação, interposição
e disjunção entre as partes e o todo de forma a imergir e emergir conhecimentos. Em
um processo simultâneo e dialógico de observar a essência ao imergir no conheci-
mento e ter a compreensão do todo ao emergir do conhecimento.
278 TRANSCICLOPÉDIA EM DIFUSÃO DO CONHECIMENTO

Análise nessa esfera significa, como propõe Ardoino, considerar “[...] o complexo
como processo e não como um objeto estático e individual” BURNHAM, Fróes,
1998, p. 41).
Analisar passa a ser acompanhar o processo, compreendê-lo, apreendê-lo mais
globalmente através da familiarização, nele reconhecendo a relativamente
irremediável opacidade que o caracteriza. Passa a ser também (ao contrário da
explicação racional [...]), produzir a explicitação, a elucidação desse processo,
sem procurar interromper seu movimento [...]. É uma análise que pretende ser
hermenêutica, que pressupõe a interpretação, a produção de conhecimento, já
que se supõe que o processo-objeto não contém em si mesmo todas as condições
de sua inteligibilidade.
Esse entendimento permite assumir a dialógica cognitiva como chave para
o trabalho com o conhecimento, na perspectiva da AnCo, mormente na esfera da
investigação cognitiva. Nessa perspectiva, a concepção Dialógica da Análise Cog-
nitiva (DiAnCo) tem sua marca configurada na expressão do Estado da Arte de um
Campo de Conhecimento de caráter multirreferencial, complexo, que se constrói
a partir de diferentes sistemas de estruturação do conhecimento. (BURNHAM,
2012), tendo como inspiração central
A compreensão de como comunidades cognitivas especificas constroem, or-
ganizam e difundem conhecimento [...][,] uma das esferas da pesquisa mais
significativas no Campo da AnCo [,] gerando um referencial básico que oferece
um lastro para entender melhor o que vem se caracterizando como campo da
Análise Cognitiva, compreendido na perspectiva com que se trabalha com um
triplo campo teórico-epistemológico-metodológico que estuda o conhecimento
a partir dos seus processos de construção, tra(ns)dução e difusão, visando o
entendimento de linguagens, estruturas e processos específicos de diferentes
sistemas de produção, organização, acervo e difusão, com objetivo de tornar
essas especificidades em bases para a construção de lastros de compreensão
inter/transdisciplinar e multirreferencial, com o compromisso da produção e
socialização de conhecimentos numa perspectiva aberta ao diálogo e interação
entre essas diferentes disciplinas /ciências, de modo a tornar o conhecimento
privado de comunidades cientificas, epistêmicas ou outros tipos de comuni-
dades cognitivas em conhecimento público. (BURNHAM, Fróes, 2010 apud
BURNHAM, Fróes, 2012, p. 66).
Nesse sentido, o conhecimento pode ser assumido como objeto-processo/
processo-objeto, indissociável do sujeito, com centralidade variante entre: objeto/
sujeito/processo; com entendimento da realidade entre individual/coletiva, entre
realidade concreta/representada, entendido como conhecimento decorrente da ra-
zão ou decorrente do sentido, sem falar na possibilidade de intermediação entre os
extremos supracitados dos/entre os espectros respectivos.
TRANSCICLOPÉDIA EM DIFUSÃO DO CONHECIMENTO 279

Assim, compreende-se ser necessário o destaque à Dialógica da Análise Cog-


nitiva como uma alternativa, não só para entender os processos de construção e
difusão do conhecimento, mas também para todo o trabalho com o conhecimento
nas esferas epistemológica, metodológica, ética e estética da AnCo, considerando
que esta é um
Campo complexo de trabalho com/sobre o conhecimento e seus imbricados
processos de construção, organização, acervo, socialização, que incluem dimen-
sões entretecidas de caráter teórico, epistemológico, metodológico, ontológico,
axiológico, ético, estético, afetivo e autopoiético e que visa ao entendimento
de diferentes sistemas de estruturação do conhecimento e suas respectivas
linguagens, arquiteturas conceituais, tecnologias e atividades específicas, com
o propósito de tornar essas especificidades em lastros de compreensão mais
ampla deste mesmo conhecimento, com o compromisso de traduzi-lo, (re)
construí-lo e difundi-lo segundo perspectivas abertas ao diálogo e à interação
entre comunidades vinculadas a esses diferentes sistemas, de modo a tornar
conhecimento público todo aquele de caráter privado que é produzido por uma
dessas comunidades, mas que é também de interesse comum a outros grupos/
comunidades/formações sociais mais amplas. (BURNHAM, 2012, p. 53)

Nessa concepção, fica explícito o compromisso com “[...] perspectivas abertas


ao diálogo e à interação”, bem como com a tradução do conhecimento — processo
de mediação para o seu compartilhamento, o que exige também tipos diferenciados
de diálogo para a “passagem” de uma língua/linguagem para outra(s). Dessa forma,
assume-se aqui o reconhecimento da proposta da Dialógica da Análise Cognitiva
na produção e difusão de conhecimento e se estende tal proposta em termos de
construção de conhecimento científico a partir do Estado da Arte desse Campo de
Conhecimento.
Conclui-se afirmando que a DiAnCo é concebida como uma dinâmica processual
que objetiva criar lastro epistêmico-metodológicos para construir, (re)criar, desen-
volver, recursos teórico-metodológicos que permitam compreender e explicitar em/
com profundidade, bem como proporcionar diálogos entre diferentes comunidades
cognitivas e seus diferentes modos de construção e difusão do conhecimento, fun-
dada nos referenciais e concepções de Complexidade e Multirreferencialidade de
representações das realidades complexas.
A DiAnCo constitui-se como uma das ferramentas significativas para o tra-
balho do analista cognitivo /cognólogo /cognologista (LIMA, 2015, p. 18 e 147),
desde seu ato singular de observação dos objetos, dos fenômenos e dos sujeitos até
a sua atuação como tradutor de diferentes linguagens, arquiteturas de modos de
280 TRANSCICLOPÉDIA EM DIFUSÃO DO CONHECIMENTO

construção e difusão do conhecimento e como mediador de diálogos/interações entre


distintas comunidades cognitivas. Assim, tem-se a expectativa de que estes profis-
sionais venham a atuar na esfera do agir e pensar complexo e ­multirreferencial com
a liberdade e habilidade de um hermeneuta em prospecções de realidades que se
apresentam em constante transitoriedade de ser.

REFERÊNCIAS
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Carlos: EdUFSCar, 1998.

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transdisciplinar. Berlin: Printed by Schaltunsdienst lange, 2017.

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3.ed. Rio de Janeiro: Alta Books, 2018.

MORIN, E. A necessidade de um pensamento complexo. In: MENDES, C.


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NICOLESCU, B., O manifesto da transdisciplinaridade. São Paulo: TRIOM,


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PRIGOGINE, I. O fim da Certeza. In: MENDES, C. Representação e


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BOAVENTURA, de S. S. Um discurso sobre as ciências. 7.ed. São Paulo:


Cortez, 2010.
31. Difusão do Conhecimento 1

José Francisco Barretto Neto


Ana Maria Ferreira Menezes

No Brasil, os estudos no campo da difusão do conhecimento ainda são muito


recentes e poucos são os grupos de pesquisa cadastrados no Conselho Nacional do
Desenvolvimento Científico e Tecnológico – CNPq que atuam nessa área, demons-
trando a carência de pesquisadores dedicados às investigações sobre o processo de
difusão do conhecimento.
Para Fróes Burnham (2016, p. 28), se é imprescindível a ampliação dos estudos
e das condições necessárias para a difusão do conhecimento no espaço acadêmico,
ainda mais imperativo é a distribuição do conhecimento na sociedade de forma
igualitária e sua apropriação pelos diversos grupos sociais.
Difusão do conhecimento é o compartilhamento de conhecimentos “próprios
e apropriados” de uma comunidade de conhecimento específica para outra comu-
nidade que os emprega na sua vida. É a distribuição ampla de conhecimentos entre
comunidades científicas e não científicas transpondo barreiras, repassando pessoa
a pessoa, grupo a grupo, sociedade a sociedade.
O termo difundir, que tem sua origem etimológica do latim di, “embora, para
longe, afastado” e fundere, “derramar, verter”, significa publicar, expandir, propalar,
divulgar, revelar, disseminar, irradiar, espalhar e o termo conhecimento, do latim
cognoscere, “ato de conhecer”, significa o domínio, teórico ou prático, de uma arte,
uma ciência, uma técnica, ou seja, é a capacidade de atribuir uma finalidade, um
propósito às informações, gerando um potencial de ação humana.
Assim, entende-se por Difusão do Conhecimento os processos de disseminação,
espalhamento e divulgação das informações produzidas e sistematizadas a partir
de um determinado propósito, finalidade, direcionamento gerador de uma ação,
envolto a transmissão e a assimilação de conceitos, dados ou informações sobre o
mundo existencial ou a respeito das ações humanas.
Para Ribeiro, Menezes e Campos (2016, p. 160), a difusão do conhecimento
envolve os processos de disseminação quando se trata do compartilhamento de
informações científicas entre especialistas, cientistas e pesquisadores, a partir de
uma linguagem especializada e de divulgação quando se refere à popularização da
ciência, por meio de uma linguagem acessível ao público em geral. A divulgação
282 TRANSCICLOPÉDIA EM DIFUSÃO DO CONHECIMENTO

científica é essencial para o desenvolvimento da ciência, uma vez que ela é responsável
pela circulação de ideias e publicação de resultados de pesquisas para a população
em geral, dinamizada pela relação entre a produção de saber e a sua socialização,
fomentando novas pesquisas e contribuindo para a geração de novos saberes.
Atualmente, com o avanço da tecnologia e o advento da internet, a difusão do
conhecimento ocorre em praticamente todos os formatos e meios de comunicação
como documentários, livros, revistas de divulgação científica, periódicos, congressos,
seminários, rodas de diálogos, museus, websites, blogs etc., tornando o processo de
interação e comunicação entre os próprios pesquisadores e entre estes e a população
em geral mais ágil e colaborativo.
No entanto, segundo Andrade, Ribeiro e Pereira (2009, p.295-296), não obs-
tante a chamada era da “sociedade do conhecimento e da informação”, ainda existe
diversos obstáculos para a difusão do conhecimento para a comunidade não científica,
decorrentes da luta pelo poder acadêmico e da cultura acadêmica tradicional, que
resistem ao próprio fundamento da ciência moderna, que é o seu compartilhamento.
Difusão do conhecimento não é a mera transmissão de informações, mas o
processo capaz de tornar o conhecimento em ferramenta útil para o “saber ser”, “saber
fazer”, “saber conviver” e para as transformações na sociedade. O compartilhamento
do conhecimento tem sido a base da inovação e da produção de novos conhecimentos
necessários ao desenvolvimento sustentável do ser humano, corroborando com o
que afirma Galeffi:
A difusão do conhecimento pode ser descrita como a disponibilização prag-
mática de um processo produtivo sistematizado tendo em vista a operação
de apropriação da parte de todos os que possam acessar o que está sendo
difundido como conhecimento do fazer e do saber fazer, ou do conhecer e do
saber conhecer próprios de um determinado setor das atividades humanas. A
difusão, assim, responde ao imperativo do conhecimento implicado com o
desenvolvimento humano sustentável [...]. (GALEFFI, 2011, p. 30).

Assim, a difusão do conhecimento, utilizando-se da tecnologia da informação e


da comunicação como ferramentas facilitadoras, deve ser socialmente contextualizada
numa perspectiva inclusiva e plural, capaz de promover a emancipação humana e
a valorização da vida. A difusão do conhecimento deve ser compreendida na pers-
pectiva de tornar o conhecimento em ferramenta de empoderamento do cidadão,
que proporcione a sua participação ativa e dialógica com vistas à transformação e
redução das desigualdades sociais.
TRANSCICLOPÉDIA EM DIFUSÃO DO CONHECIMENTO 283

REFERÊNCIAS
ANDRADE, Maria Terezinha Tamanini; RIBEIRO, Núbia Moura;
PERREIRA, Hernane Borges de Barros. Um estudo sobre a difusão e o
compartilhamento do conhecimento na cultura acadêmica. In: IX Congrssso
Isko-España. Valencia, 2009. Disponível em: <http://www.iskoiberico.org/wp-
content/uploads/2014/09/973985_Tamanini-Andrade.pdf>. Acesso em: 26 mar.
2018.

BURNHAM, Terezinha Fróes. DMMDC: uma proposta plural de difusão do


conhecimento. In: MATTA, Alfredo E. R.; ROCHA, José Cláudio (Orgs.).
Cognição: aspectos contemporâneos e difusão do conhecimento. Salvador:
EDUNEB, 2016.

GALEFFI, Dante Augusto, Saberes plurais e difusão do conhecimento em


educação: uma perspectiva transdisciplinar. In: GURGEL, P. R. H.; SANTOS,
Wilson Nascimento. Saberes plurais, difusão do conhecimento e práxis
pedagógica. Salvador: EDUFBA, 2011.

RIBEIRO, Núbia Moura; MENEZES, Ana Maria Ferreira; CAMPOS, Maria


de Fatima Hanaque. Difusão e gestão do conhecimento: conceitos, analogias,
convergências e divergências. In: MATTA, Alfredo E. R.; ROCHA, José Cláudio
(Orgs.). Cognição: aspectos contemporâneos e difusão do conhecimento.
Salvador: EDUNEB, 2016.
32. Difusão do Conhecimento 2

Ana Cristina de Mendonça Santos

Para Perry (2001), PhD. em Sociologia na Universidade de Washington, es-


pecialista em gestão de emergências e pesquisa de desastre e professor de Assuntos
Públicos da Universidade Estadual do Arizona, o conceito de difusão se concentra
em processos e refere-se à disseminação de qualquer elemento físico, ideia, valor,
prática social, ou atitude, através e entre as populações.
Segundo os estudos do referido autor, difusão é um dos raros conceitos utiliza-
dos nas ciências físicas, naturais e sociais, bem como nas artes, estando associado às
ciências sociais, particularmente à sociologia rural, à antropologia e à comunicação.
Neste sentido, podemos dizer que o conceito de difusão tem sua origem dentro
de um arcabouço teórico vinculado a várias áreas, portanto, pode ser considerado
um conceito de base multidisciplinar. Perry (2001) defende que o problema de
formalização das teorias de difusão é que o conceito não especifica inerentemente
o conteúdo e sim uma estrutura ou processo para estruturar o pensamento; dessa
forma, o conceito de difusão não pode ser investigado sem estabelecer uma relação
com o objeto de estudo em questão, ou seja, as pesquisas que envolvem o conceito
de difusão se referem sempre a algo que está sendo difundido por pessoas, grupos
ou instituições, quer seja uma experiência, uma nova tecnologia, ideia, prática, ati-
tude, vivência, metodologia etc. Outrossim, a difusão está atrelada a processos que
envolvem interações sociais.
Em decorrência disso, a pesquisa sobre difusão e sua constituição teórica esteve
dispersa nas diferentes literaturas de ciências e, como tal, não facilmente reunida,
dificultando a criação de uma teoria geral de difusão. Perry (2001) elencou três tra-
dições ou famílias teóricas que podem ser historicamente destacadas no estudo da
difusão: (1) difusão cultural; (2) difusão de inovações; e (3) comportamento coletivo.
Perry (2001) afirma, em seus estudos, que a primeira família teórica sobre
difusão, a difusão cultural, é o uso científico mais antigo do termo difusão, sendo
encontrado no estudo de Edward Tylor (1865) sobre mudança de cultura, no qual
antropólogos tentam explicar semelhanças e diferenças entre culturas, especialmente
aquelas geograficamente adjacentes, como meio de explicar os aspectos semelhantes
das culturas semelhantes em diferentes grupos, e de compreender a alteração pro-
gressiva de elementos dentro de um mesmo grupo. Considerando a difusão como
uma alternativa para a compreensão das diferenças e mudanças culturais.
TRANSCICLOPÉDIA EM DIFUSÃO DO CONHECIMENTO 285

O autor pontua ainda que, a partir do trabalho dos antropólogos do início do


século XX, foi possível identificar pelo menos cinco afirmações amplamente aceitas
e empiricamente sustentadas que formam o núcleo da chamada teoria da difusão
cultural. A primeira diz respeito à alteração ou adaptação da nova cultura hospedeira,
em relação à cultura difundida. A segunda afirma que o ato de absorção da cultura
depende da medida em que o elemento pode ser integrado ao sistema de crenças da
nova cultura. A terceira assegura a rejeição sofrida por elementos que são incompa-
tíveis com a estrutura normativa prevalecente da nova cultura ou sistema de crença
religiosa. A quarta aborda a condição de aceitação de um elemento novo ocorre pela
sua utilidade para o grupo hospedeiro. Por fim, culturas mais flexíveis a absorver
novas culturas são mais propensas a colher novas possibilidades culturais.
Atualmente, a difusão é vista como um mecanismo para a mudança de cultura.
Nessa perspectiva, reflete que a difusão cultural ocorre através do processo de inte-
ração entre grupos e depende do acolhimento da cultura hospedeira aos elementos
acolhidos pela nova cultura. Com isso, afirma-se que a difusão cultural está atrelada
ao grau de adaptação, aceitação e flexibilidade de absorção pelas culturas anteriores,
assim como da compatibilidade e utilidade da nova cultura para a cultura anterior.
Para Perry (2001), a segunda tradição, a difusão de inovações, tem se con-
centrado na disseminação de uma ideia, procedimento ou implementação dentro
de um único grupo social ou entre múltiplos grupos, comunicada dentro de um
sistema social e que o estudo da difusão da inovação começou de forma bastante
restrita, no campo da sociologia rural e, na atualidade, contempla vários grupos
e se concentra no conteúdo ou na inovação específica que está sendo difundida:
aqueles que abordam elaborações teóricas de princípios genéricos sobre difusão
da inovação e aqueles que se ocupam com a criação de modelos estruturais para
acompanhamento do processo de difusão. Defende que a maioria dos estudos tende
a ser teórico, apresenta os mesmos procedimentos e visa, principalmente, utilizar a
difusão do conhecimento para melhorar a comercialização e as vendas do produto
e, em segundo plano, descrever a disseminação do produto.
Por fim, Perry (2001) aponta a última tradição teórica sobre comportamento
coletivo. O autor afirma que, embora a difusão não seja um termo comumente usa-
do no comportamento coletivo, processos de difusão são importantes em conexão
com a compreensão de multidões, moda e alguns aspectos do comportamento de
desastre. Em todos os casos, a preocupação analítica centra-se na disseminação de
emoções, práticas sociais ou elementos físicos através de uma coletividade. O estudo
do comportamento humano em desastres é recente e multidisciplinar e se apresenta
286 TRANSCICLOPÉDIA EM DIFUSÃO DO CONHECIMENTO

como um campo novo de preocupação com a difusão no sentido de rastrear ideias e


práticas por meio de de redes. O principal foco de pesquisa foi à adoção de medidas de
proteção e a disseminação de mensagens de alerta com o objetivo de desenvolvimento
de teorias gerais de comportamentos protetores para populações ameaçadas. Essa
tradição preocupa-se em investigar a difusão como propulsora de comportamentos
coletivos positivos ou não. Aborda o comportamento da multidão em termos de
contágio social: rápida disseminação de emoções entre pessoas interagindo, como
mudanças no vestuário, ciclos de moda, linguagem e outros comportamentos que
ele acreditava difundidos sistematicamente por civilizações e imitação em compor-
tamentos em multidões em termos de contágio social.
Os estudos realizados por Perry (2001) sinalizam que as três famílias teóricas
possuem contribuições significativas para os estudos sobre a difusão, relacionando o
conceito a processos que visem disseminar conhecimentos, procedimentos, experiên-
cias, vivências etc entre pessoas ou grupos de pessoas, via processos de comunicação
e interação social. Essas famílias teóricas apontam cada uma elementos importantes
para esse entendimento. A difusão cultural, acolhimento, adaptação, flexibilidade
de comunidades que absorve outra cultura aponta o caráter interativo do processo.
Não basta difundir, é necessário ser acolhido, incorporado, ou seja, é um conceito
de duas vias, de reciprocidade, de ação e interação; a difusão de inovação chama a
atenção para o papel dos procedimentos de disseminação através da comunicação.
Nesse sentido, a atuação das tecnologias da informação e comunicação merece um
destaque, e a família de comportamento coletivo chama a atenção para o impacto
que a disseminação de emoções, práticas sociais ou elementos físicos provocam em
uma coletividade, sobre a responsabilidade e o cuidado que a difusão representa
em multidões.
Esse cenário expõe a complexidade que envolve o conceito de difusão e seu atre-
lamento à disseminação de conhecimentos e experiências, vinculando-se estreitamente
às vias de comunicação e espalhamento entre pessoas ou grupos de pessoas. Nessa
linha de argumentação, a difusão do conhecimento não é um ato neutro. Está condi-
cionada a quem controla os meios de construção e difusão do conhecimento e, dessa
forma, ocorre dentro de processos de luta por interesses entre os grupos diferenciados.
A difusão do conhecimento em educação está relacionada aos meios proemi-
nentes dominantes de construção do conhecimento. A difusão pura e simples
não existe, ela está marcada por processos complexos e por interesses políticos
já instituídos e atuantes no controle dos meios produtivos e reprodutivos de
conhecimento (GALEFFI, 2011, p. 33).
TRANSCICLOPÉDIA EM DIFUSÃO DO CONHECIMENTO 287

Esse debate se insere na necessidade de implicar a todos os sujeitos nos pro-


cessos de construção e difusão do conhecimento. Ratificar a autoria e deixar de ser
apenas consumidores para produtores e agentes de difusão dos conhecimentos de
uma comunidade para outra. Essa perspectiva amplia as possibilidades de desen-
volvimento de um coletivo cada vez mais ampliado que respeita as contribuições
particulares e necessidades de desenvolvimento de cada grupo. Essa premissa se
compromete fundamentalmente com o conhecimento atrelado ao desenvolvimento
humano e planetário, ao respeito à vida no presente e no futuro, pensando tanto
nas gerações de hoje quanto nas que estão por vir e, para que, de fato, as práticas
educativas favoreçam esse tipo de desenvolvimento, precisam implicar a todos os
sujeitos em processos formativos que respeitem às subjetividades inerentes a cada
um e às necessidades coletivas de cada contexto. A difusão, assim, responde ao im-
perativo do conhecimento implicado com o desenvolvimento humano sustentável,
e não simplesmente a tudo o que se difunde pelos cantos do mundo em toda parte
(GALEFFI, 2011, p. 33).

REFERÊNCIAS
GALEFFI, Dante. Saberes plurais e difusão do conhecimento em educação; uma
perspectiva transdisciplinar. In: GURGEL, Paulo Roberto. SANTOS, Wilson
Nascimento. (Orgs.). Saberes plurais, difusão do conhecimento e práxis
pedagógica. Salvador: Edufba, 2011.

GALEFFI, Dante et al. Epistemologia, construção e difusão do


conhecimento: perspectivas em ação. Salvador: EDUNEB, 2011.

PERRY, Ronald W. Diffusion Theories. Encyclopedia of Sociology


Copyright The Gale Group Inc, 2001. (tradução própria).
33. Difusão do Conhecimento 3

Sônia Chagas Vieira


Maria Inês Corrêa Marques

[...] o significado das palavras não é eterno, a semântica de uma palavra não
é imutável, muda como nós mudamos, como mudam os usos e costumes,
como mudam as estações (SARAMAGO, 2005, p. 14).

1 INTRODUÇÃO
Todo campo científico demanda uma linguagem própria que se expresse por
conceitos e teorias e permita o estudo e a comunicação entre cientistas e pesqui-
sadores. Os conceitos são fundamentais para a ciência. Por meio deles, é possível
interpretar e sistematizar um corpus de conhecimento de uma área específica do
saber. Propomos, neste texto, estudar o conceito de Difusão do Conhecimento e
seus termos associados, quais sejam: Difusão Cultural, Difusão de Inovações e
Teoria do Comportamento Coletivo.
Para tanto, registramos o significado dos vocábulos Difusão e Conhecimento.
No Cambridge dictionaries online (2018), Difusão significa “espalhar em muitas dire-
ções”. No Tesauro de la UNESCO1 (UNESCO, 20182), o termo é concebido como
genérico e definido como Processo físico. No dicionário Aurélio, aparecem distintas
acepções. Dentre elas, destacamos a antropológica:
Processo pelo qual elementos ou características culturais são transmitidos a
outras sociedades ou outras regiões por meio de contato ou migrações, produ-
zindo semelhanças que não decorrem de invenção independente (FERREIRA;
2004, p. 677).

O Dicionário de biblioteconomia e arquivologia, de autoria de Murilo Cunha e


Cordélia Robalinho (2008, p. 125), define o verbete Difusão como “Comunicação que
pode ser recebida por todos os nós de uma rede”. No campo da Sociologia, Difusão
1
O Tesauro de la UNESCO é uma lista controlada e estruturada de termos para a análise temática e
a busca de documentos e publicações em campos da educação, cultura, ciências naturais, ciências
sociais e humanas, comunicação e informação. Criado em 1º. de janeiro de 1977, o Tesauro é
continuamente ampliado e atualizado; sua terminologia multidisciplinar reflete a evolução dos
programas e atividades da Unesco.
2
Data da última atualização.
TRANSCICLOPÉDIA EM DIFUSÃO DO CONHECIMENTO 289

é um [...] processo pelo qual uma informação, uma opinião, um comportamento,


uma prática, uma inovação, um novo produto, uma moda etc. se propagam numa
dada população (DICIONÁRIO..., 200-, p. 134-135)
Etimologicamente, o termo difusão, do francês diffusion, espanhol difusión,
do inglês diffusion, originário do latim diffusio, diffusionem apareceu no século XIX
em um estudo de Edward Burnett Tylor (1832-1917), antropólogo britânico; foi ele
quem primeiro fez uso científico do termo difusão em sua pesquisa sobre mudança
de cultura, em 1865.
Nesse estudo, Tylor
[...] propôs pela primeira vez a noção de difusão como meio de explicar os elemen-
tos de cultura semelhantes, em diferentes grupos, e de compreender a alteração
progressiva de elementos dentro de um mesmo grupo.3 (PERRY, 2000, p. 675).

Isto posto, passamos a tecer algumas considerações sobre o vocábulo Difusão,


bem como a citar vocábulos que a eles se associam em razão dos sentidos que conotam.
Difusão é um processo social através do qual elementos da cultura se espalham
de uma sociedade ou grupo social para outro (difusão cultural), o que significa dizer
que é, em essência, um processo de mudança social. É também o processo através do
qual as inovações são introduzidas em uma organização ou grupo social (difusão
de inovações). Ideias, valores, conceitos, conhecimentos, práticas, comportamentos,
materiais e símbolos também são objetos da difusão.
No excerto extraído de texto escrito por Ronald W. Perry (2000, p. 680),
Ph.D. em Sociologia pela University of Washington, em 1975, ele afirma que “[...]
Mudanças no vestuário foram conceituadas como processos de difusão.”4 O que
significa uma prova inconteste da amplitude do conceito. No dizer de Keller (2007,
p. 6), “[...] A teoria sociológica da difusão da moda surge com o discurso sociológico
clássico.”Nesse contexto, o estudo da moda, enquanto um fenômeno social se dá
como processo de difusão comportamental, outra possibilidade de uso do concei-
to. Para ilustrar essa teoria sociológica da difusão da moda, por meio do conceito
de imitação, de Gabriel Tarde, Keller (2007, p. 11), considerando este cenário, na
perspectiva do modelo francês, assevera que
[...] a difusão começa quando um estilo é adotado por membros da classe
social superior, se tornando moda, logo esta moda é imitada e difundida por

3
Tradução livre das autoras. “Tylor’s work on culture change first proposed the notion of diffusion
as a means of explaining the appearance of similar culture elements in different groups and of
understanding the progressive alteration of elements within the same group.”
4
Tradução livre das autoras. “Changes in dress have been conceptualized as diffusion processes.”
290 TRANSCICLOPÉDIA EM DIFUSÃO DO CONHECIMENTO

membros dos estratos sociais inferiores. Quando a moda atinge estes estratos
ocorre a saturação e a perda de seu valor. Então surge outra moda no estrato
superior enquanto uma nova forma de distinção.

Jean-Gabriel Tarde (1843-1904) foi um dos sociólogos mais famosos da França


do século XIX. Deu contribuições significativas à pesquisa de difusão. Para ele,
difusão refere-se à disseminação de práticas sociais ou culturais de uma sociedade
ou de um ambiente para outro. Tarde é considerado um dos pais fundadores da
pesquisa sobre difusão. No seu entendimento, a difusão de invenções — ou ino-
vações — era uma das explicações básicas da mudança social. Em sua obra Les lois
de l’ imitation, publicada em 1890, ele analisa o processo de formação de opinião,
a partir das relações entre os indivíduos, para deslindar todo o comportamento
social no desenvolvimento das culturas (KINNUNEN, 2006). Na compreensão
de Kinnunen (2006), a mudança social requer a adoção de invenções que se difun-
dem através do processo de imitação. As pessoas imitam crenças e desejos ou ideias
transmitidas de um indivíduo para outro. “Se um grupo social afirma ideias, outros
podem repassá-las por ‘imitação’.” (MAIA, 2010)
Walter Warnick (2009), Ph.D. em Lógica da Ciência, pela University of Pitts-
burgh, Pensilvânia, EUA, em 1974, declarou em seu texto, intitulado Science depends
on the diffusion of knowledge, que a “[...] A ciência é todo um fluxo de conhecimento:
novos métodos, instrumentos, técnicas, conceitos, resultados, perguntas, dados etc.
Os fluxos são infinitos, complexos e em todas as direções [...]”5. Para este pesquisador
isto é chamado de processo de difusão.
Sequenciando as considerações iniciais aqui propostas, apresentaremos, de
forma sintetizada, o que pensamos sobre o vocábulo Conhecimento, já bastante
tratado na literatura e que será retomado mais adiante, quando forem abordados
os vários enfoques sobre Difusão do Conhecimento. Então, quanto ao vocábulo
Conhecimento, o relatório do Banco Mundial, de 1999, intitulado Knowledge for
development, afirma que “[...] O conhecimento é como a luz. Leve e intangível, pode
facilmente viajar pelo mundo, iluminando as vidas das pessoas em todos os lugares.”6
(WORLD BANK, 1999, p. 3).
Com base nesse fragmento, é possível entender que sempre houve a possibi-
lidade de deslocamento do conhecimento, do espaço de sua geração para o espaço

5
Tradução livre das autoras. [...] Science is all about the flow of knowledge: new methods,
­instruments, techniques, concepts, results, questions, data etc. [...].
6
Tradução livre das autoras. ‘‘Knowledge is like light. Weightless and intangible, it can easily travel
the world, enlightening the lives of people everywhere.”
TRANSCICLOPÉDIA EM DIFUSÃO DO CONHECIMENTO 291

em que estão os que dele demandam. No momento atual, porém, a discussão pode
ser feita em outra dimensão, já que a globalização transformou o mundo inteiro
em uma aldeia, em um ciberespaço e novos meios de comunicação permitem que
as informações sejam transmitidas e circulem mais facilmente entre as pessoas. O
conhecimento não pode mais ser retido dentro dos limites locais.

2 TEORIAS DA DIFUSÃO
A teoria da difusão se desenvolveu nos séculos XVIII e XIX, em oposição à
teoria evolucionista7, ambas preocupadas com as origens da cultura humana. Por
mais de um século, a teoria da difusão forneceu uma boa fonte de ideias, conceitos,
medidas e exemplos de aplicações na disseminação e implementação de inovações.
Tem servido a uma variedade de campos da ciência na busca de resolver problemas
humanos na aplicação de tecnologias e práticas da ciência. A teoria da difusão também
se tornou um repositório para a coleção de conceitos de várias ciências sociais com a
transferência de conhecimento e experiências da aplicação da tecnologia e dissemi-
nação de teses em populações. A evolução da teoria da difusão marca o surgimento
de várias explicações teóricas para o comportamento social e várias subdisciplinas
da prática em comunicações, marketing e educação (DEARING, 2008).
De acordo com Perry (2000), existem três correntes teóricas que, a partir de
agora, vamos passar a defini-las brevemente. São elas: Difusão Cultural, Difusão
de Inovações e a Teoria do Comportamento Coletivo.

2.1 Difusão cultural


As três principais correntes do pensamento relativas à pesquisa em difusão cultural
foram: a British School of Diffusion, fundada por Grafton Elliot Smith (1871-1937) e
seu discípulo William J. Perry (1887-1949). A abordagem de Smith e Perry foi rotulada
como um difusionismo extremo por sua insistência de que o Egito era o único centro
de origem da cultura a partir do qual se espalhava para outras partes do mundo; a
German-Austrian School of Diffusion, cujas ideias foram sistematizadas por Friedrich
Graebner (1877-1934), Leo Frobenius (1873-1938) e Wilhelm Schmidt (1868-1954),
7
São três a teorias do Evolucionismo: Darwinismo, Lamarckismo e Neodarwinismo, que tentam
explicar qual seria a origem da vida, a partir de certas perspectivas, que podem ser científicas, reli-
giosas, filosóficas. Charles Darwin é o maior expoente do evolucionismo, tendo estudado durante
o século XIX, baseando-se em comparações entre espécies aparentadas que viviam em diferentes
regiões. (EVOLUCIONISMO, 2007, p. 395-396). Para Winge, Alvarenga e Pimentel (EVOLU-
CIONISMO, 2014), o evolucionismo está relacionado à evolução do conhecimento humano a
partir de estudos científicos.
292 TRANSCICLOPÉDIA EM DIFUSÃO DO CONHECIMENTO

com concepções semelhantes à escola britânica; e, finalmente, a American School of


Diffusion, corrente composta pelos antropólogos norte-americanos, associado a Franz
Boas (1858-1942), Alfred Kroeber (1876-1960), Edward Sapir (1884-1939), Leslie Spier
(1893-1961), Robert Lowie (1883-1957) e outros, que procuraram elaborar conceitos
precisos para a interpretação da difusão cultural. (DIFUSÃO, 1986, p. 349; DIFU-
SIONISMO, 1976, p. 3326-3329; ­M ATHUR, 200-; PERRY, 2000).
Na visão da antropologia, o difusionismo explicava a mudança em d
­ eterminada
sociedade como resultado da introdução de inovações em outra sociedade. Eles
alegavam que todas as inovações se espalhavam a partir de uma fonte original, que,
naturalmente, argumentava contra a existência de invenção paralela. Eles também
propuseram que toda mudança social poderia ser explicada apenas pela difusão.
Para Rogers (1995), o ponto de vista dominante é que a mudança social é causada
tanto pela invenção quanto pela difusão e que, no geral, ocorre sequencialmente.

2.2 Difusão da inovação


A teoria da difusão da inovação refere-se ao processo que ocorre à medida que
as pessoas adotam uma nova ideia, produto, prática, filosofia etc. Como observa
James W. Dearing (2008), em seu artigo Evolution of diffusion and dissemination
theory, a história da teoria da difusão tem mais de um século. Para ele, essa teoria
foi, primeiro, historicamente tratada pelo sociólogo francês Gabriel Tarde (1843-
1904), quando ele publicou seu livro Les lois de l’ imitation.8 Porém, segundo Jussi
Kinnunen (2006, p. 432), antes mesmo dos estudos de Gabriel Tarde, o historiador
grego Heródoto9 (484-425 a.C.), 500 anos antes a.C., já mencionava o fenômeno
da difusão (HEINE-GELDERN, 2008).
A pesquisa de difusão original foi realizada, em 1903, por Tarde, que criou a
curva original de difusão em forma de S, e por antropólogos alemães e austríacos,
como Friedrich Ratzel (1844-1904) e Leo Frobenius (1873-1938). (KUMAR; KAUR,
2014, p. 178). Everett M. Rogers é considerado o mentor do campo de “Difusão e
Adoção”, o qual contribuiu com quatro teorias de difusão/adoção. São elas: Teoria
da Inovação no Processo de Decisão; Teoria da Inovação Individual; Teoria da
Taxa de Adoção; Teoria dos Atributos Percebidos (KUMAR; SINGH, 2012 apud
KUMAR; KAUR, 2014, p. 179).

8
A segunda edição do seu livro, de 1895, foi traduzida para o inglês em 1903.
9
Autor do livro Histórias, foi aclamado na Antiguidade como um grandioso historiador, sendo con-
siderado o “pai da História”. Heródoto foi o primeiro a usar a palavra história (do grego, historie:
inquirição) no sentido de pesquisa e investigação.
TRANSCICLOPÉDIA EM DIFUSÃO DO CONHECIMENTO 293

Rogers é um dos autores mais comumente citado da literatura teórica e em-


pírica sobre difusão para os campos aplicados da agricultura, saúde, educação e
outros serviços sociais, e para sua própria disciplina original de sociologia rural e
sua posterior especialização em ciência da comunicação. Uma definição clássica de
difusão é a seguinte:
[...] processo pelo qual uma inovação é comunicada através de certos canais ao
longo do tempo entre os membros de um sistema social. É um tipo especial
de comunicação em que as mensagens se referem a novas ideias. (ROGERS,
1995, p. 5).

Everett Rogers (1931-2004) nasceu em Carroll, Iowa, USA, na fazenda de sua


família. Ele era um conhecido professor, pesquisador, conselheiro e ex-editor de um
jornal, Ph.D, em 1957, pela State University of Science and Technology, em Iowa,
no campo de Sociologia e Estatística. Era bastante conhecido pelo livro intitulado
Diffusion of innovations10, cuja primeira edição foi publicada em 1962. Neste livro,
ele explica a teoria de como as inovações e as ideias se espalham pelas populações, e
diz que, em um sistema social, a inovação é comunicada pelo processo de difusão.
Rogers (1995) propôs cinco estágios no processo de difusão inovação/adoção: 1)
conhecimento; 2) persuasão; 3) decisão; 4) implementação; e 5) confirmação. Esses
estágios geralmente seguem um ao lado do outro de uma maneira ordenada pelo tempo.
1. Estágio de Conhecimento: O processo de decisão da inovação começa
com o estágio do conhecimento. Nessa fase, o indivíduo aprende sobre a
existência de inovação e busca informações sobre ela. “O quê?”, “Como?”
“Por quê?” São as questões críticas no estágio de conhecimento. Durante
essa fase, o indivíduo tenta determinar o que é a inovação e como e por
que ela funciona.
2. Estágio de Persuasão: Nesse estágio, o indivíduo tem uma atitude ne-
gativa ou positiva em relação à inovação, mas a formação de uma atitude
favorável ou desfavorável em relação a uma inovação nem sempre conduz
direta ou indiretamente a uma adoção ou rejeição.
3. Estágio de Decisão: Nessa etapa de decisão, o indivíduo escolhe adotar
ou rejeitar a inovação. Embora a adoção se refira ao uso pleno de uma
inovação como o melhor curso de ação disponível, a rejeição significa não
adotar uma inovação. No entanto, a rejeição é possível em todas as etapas
da decisão de inovação
10
Ainda não traduzido para o português.
294 TRANSCICLOPÉDIA EM DIFUSÃO DO CONHECIMENTO

4. Estágio de Implementação: Nessa fase, uma inovação é colocada em


prática. No entanto, uma inovação traz a novidade de que algum grau de
incerteza está envolvido na difusão. A incerteza sobre os resultados da ino-
vação ainda pode ser um problema nesse estágio. Assim, o implementador
pode precisar de assistência de agentes de mudança e outros para reduzir
o grau de incerteza sobre as consequências.
5. Estágio de Confirmação: A decisão de inovação já foi tomada, mas, no
estágio de confirmação, o indivíduo procura apoio para decisão. Essa deci-
são pode ser revertida se o indivíduo for exposto a mensagens conflitantes
sobre a inovação. No entanto, ele tende a ficar longe dessas mensagens e
procura mensagens de apoio que confirmem a decisão. Assim, as atitudes
­tornam-se mais cruciais na confirmação. Dependendo do apoio para adoção
da inovação e da atitude do indivíduo, adoção posterior ou a descontinui-
dade acontece durante essa fase

2.3 Teoria do comportamento coletivo


Há várias décadas, tem havido uma grande quantidade de pesquisas nessa área e
em áreas correlatas. Eventos nacionais e internacionais aumentaram a conscientização
sobre movimentos sociais, tumultos e protestos e ofereceram dados valiosos a serem
investigados. Financiamento para pesquisa e um número maior de pesquisadores
trabalhando no campo ajudaram a tornar o comportamento coletivo em uma das
áreas mais vigorosas da sociologia, nos últimos anos. (MILLER, 2014).
Para Ronald W. Perry (2000, p. 679), Ph.D. em Sociologia pela University of
Washington, em 1975, o termo difusão é pouco usado no comportamento coletivo,
porém os
[...] processos de difusão são importantes em conexão com a compreensão
de multidões, moda e alguns aspectos do comportamento de desastre. Em
todos os casos, a preocupação centra-se na disseminação de emoções, práticas
sociais ou elementos físicos através de uma coletividade. O estudo do com-
portamento humano em desastres é [...] multidisciplinar. Neste campo, tem
havido uma preocupação com a difusão no sentido clássico de rastrear ideias
e práticas através de redes. 11

11
Tradução livre das autoras. [...] processes of diffusion are important in connection with under-
standing crowds, fashion, and some aspects of disaster behavior. In all cases, analytic concern cen-
ters on the dissemination of emotions, social practices, or physical elements through a collectivity.
The study of human behavior in disasters is [...] multidisciplinary. In this field there has been a
concern with diffusion in the classic sense of tracking ideas and practices through networks.
TRANSCICLOPÉDIA EM DIFUSÃO DO CONHECIMENTO 295

Gustave Le Bon (1841-1931) (2001), em seu livro The crowd: a study of the
popular, cuja primeira edição foi publicada em 1895, formulou uma teoria clássica,
inicial, do comportamento coletivo, no sentido de “contágio social” ou seja “[...]
rápida disseminação de emoções entre pessoas interagindo.” (PERRY, 2000, p.
680). Para ele, as multidões exercem uma influência hipnótica sobre seus mem-
bros. A teoria de Le Bon é muito contestada pelos pesquisadores da área, porém,
ainda é aceita por pessoas fora da área de sociologia. Em suma, Perry (2000, p.
679) assegura que “[...] todas as três tradições da teoria da difusão convergem no
estudo do comportamento da multidão”.12

3 DIFUSÃO DO CONHECIMENTO
“Se vi mais longe, foi por estar de pé sobre ombros do gigante.” Este pensa-
mento de Isaac Newton (1643-1726), datado de 1676, declara seu reconhecimento
a outros cientistas que vieram antes dele, como, por exemplo, Galileu Galilei,
Nicolau Copérnico, Giordano Bruno e Johannes Kepler, dentre outros. (WO-
JICK et al., 2006). Eles permitiram, por meio de seus métodos e instrumentos,
que Isaac Newton, inspirado nas ideias que partilharam, alcançasse seu apogeu e
fosse mais longe do que eles mesmos, sendo considerado um dos cientistas mais
célebres de todos os tempos.
Isaac Newton, mais conhecido como físico e matemático, nasceu no dia 4 de
janeiro de 1643, em Lincolnshire, um condado situado na região leste da Ingla-
terra, no Reino Unido. Graduou-se em 1665, no Trinity College, em Cambridge.
Foi presidente da Royal Society, no período de 1703 a 1707, e recebeu o título
de Cavaleiro, passando a ser chamado de Sir Isaac Newton. Considerado o cien-
tista mais influente de todos os tempos, por suas leis de movimento e gravitação
universal, foi uma das figuras-chave da Revolução Científica. Uma maçã caindo
de uma árvore o levou a refletir que “[...] uma força puxando a fruta para o chão
[...] poderia também estar puxando a Lua, impedindo-a de escapar da órbita da
Terra”. A partir dessa reflexão, estudando as obras de Galileu e Kepler, além de
suas próprias experiências e cálculos, Sir Isaac Newton formulou a Lei da Gravi-
dade Universal, na qual demonstra que a velocidade com que um objeto cai, seja a
maçã ou a Lua, quando é atraído pela Terra, é proporcional à força gravitacional.
(ISAAC, 2011). Seu livro The mathematical principles of natural philosophy, datado

12
Tradução livre das autoras. “All three diffusion theory traditions converge in the study of crowd
behavior.”
296 TRANSCICLOPÉDIA EM DIFUSÃO DO CONHECIMENTO

de 1687 e escrito em três volumes, é considerado uma das mais influentes obras
na história da ciência. Nele, descreve a lei da gravitação universal e as três leis
designadas de Newton, que fundamentaram a mecânica clássica.
Das considerações sobre os cientistas, retomemos o excerto, quando Newton
diz que viu mais longe que outros por estar em ombros de gigantes, é bastante
metafórico, aludindo ao processo de difusão do conhecimento científico. Acresça-
-se, no entanto, conforme argumenta Warnick (2009), não só pelos “ombros dos
gigantes” ascende o cientista, mas pela produção de colegas e pesquisadores em
geral, representados por milhares de artigos, relatórios, comunicações, entre outros
tipos de trabalhos. O mesmo autor atribui à difusão do conhecimento o próprio
avanço da ciência, onde se pode considerá-la uma questão crucial, bem como sua
aceleração — via difusão — um compromisso tácito do cientista.
Sobre a difusão do conhecimento, Thomas Jefferson (apud DARDOT; LA-
VAL, 2017) foi considerado uma das vozes mais influentes. Para ele,
[...] Um indivíduo pode conservar a propriedade exclusiva da ideia enquanto
a guardar para si mesmo; mas a partir do momento em que ela é divulgada,
torna-se irresistivelmente propriedade de todos, e aquele que recebe não pode
desfazer-se dela. Seu caráter particular é que a propriedade de ninguém sobre
uma ideia é diminuída pelo fato de outros a possuírem em sua totalidade.
Aquele que recebe uma ideia de mim recebe um saber que não diminui o
meu, do mesmo modo que aquele que acende sua vela na minha recebe luz
sem me deixar na escuridão.

Nesse sentido, quanto mais o conhecimento for compartilhado mais valor


ele terá. O conhecimento registrado é coletivo porque “[...] seu consumo por uma
pessoa não só não diminui o saber das outras, como, ao contrário, possibilita que
ele aumente, pois favorece a produção de novos conhecimentos.” (DARDOT;
LAVAL, 2017).
Com a invenção da imprensa — uma das principais causas da Revolução
Científica, ocorrida no século XV —, grupos científicos começaram a trabalhar
fora do âmbito acadêmico, formando as primeiras sociedades científicas. Dentre
as primeiras a serem reconhecidas, estão a Royal Society de Londres (1622), a
Academia dei Lincei (1600-1630) em Roma, a Academia del Cimento (1651-
1657) em Florença. Aí foi onde nasceu a necessidade de se comunicar e difundir
as contribuições da nova ciência. Começaram, então, a aparecer as cartas, tendo
se consolidado como sistema de comunicação chamada de “República das Letras”
(VIEIRA, 2006).
TRANSCICLOPÉDIA EM DIFUSÃO DO CONHECIMENTO 297

No começo do século XX, alguns eventos contribuíram de forma expressiva


para a difusão do conhecimento. Entre eles, a realização de congressos internacionais
e alianças estabelecidas entre academias científicas e grandes editoras, que abriu
caminho para a especialização de suas publicações e ampla difusão, como é o caso
das editoras Elsevier, Springer e Verlag, dentre outras. Além disso, vale registrar o
aumento de intercâmbios no mundo acadêmico, o apoio de grandes instituições,
a exemplo da Fundação Rockfeller, que patrocinava projetos no campo da saúde
pública e da Instituição Smithsonian, cujo objetivo era difundir o conhecimento
científico, com destaque para o intercâmbio de publicações científicas. Outro fato
decorrente da era do pós-guerra, durante a primeira metade do século XX, foi o
uso do idioma inglês que se tornou a língua universal do cientista. Esta é a razão
pela qual as publicações científicas devem apresentar um resumo em inglês; no
passado, o grego e depois o latim eram, por excelência, as línguas utilizadas para
a difusão do conhecimento (CELIS, 2012).
No campo científico, a publicação de artigos em revistas científicas ainda tem
sido o meio tradicional utilizado para difundir conhecimento. Em geral, aceita-
-se o Le Journal des Sçavans (Figura 1), editado em 5 de janeiro de 1665, como a
primeira revista publicada. No começo do século XIX, teve sua grafia atualizada
para Journal des Savants13 (MEADOWS, 1999, p. 6). Editada semanalmente,
essa revista é o resultado da necessidade de alguns cientistas em formalizar suas
pesquisas em um suporte diferente do livro — devido ao custo da produção e
também da demora na sua publicação — ou das cartas (VIEIRA, 2006).

13
Apesar das várias interrupções ocorridas ao longo do tempo sua publicação continua até os dias de
hoje.
298 TRANSCICLOPÉDIA EM DIFUSÃO DO CONHECIMENTO

Figura 1 — Capa do Journal des Savants

Fonte: Spinak e Packer (2015)

Dois meses depois do aparecimento de Le Journal des Sçavans, foi editado


pelo alemão Henry Odenburg, primeiro editor de periódico científico e primeiro
Secretário da Royal Society de Londres, o Philosophical Transactions of Royal Society
of London (Figura 2) que, segundo Russo, Santos e Santos (2001),
[...] consistiam nas cartas trocadas entre membros da comunidade e corres-
pondentes, tanto do país quanto do exterior, que traziam informações sobre
novas idéias e pesquisas.

Considerado o modelo das revistas científicas atuais, publicado mensalmente,


continha uma média de 16 páginas e era dedicado a estudos experimentais. Sua
tiragem atingiu rapidamente 1200 exemplares, revelando assim, uma receptividade
positiva por parte dos leitores (VIEIRA, 2006).
A literatura científica tem considerado tal revista como sendo a primeira que
apresentava caráter mais científico, uma vez que ela foi pioneira em estabelecer as
principais características das revistas científicas: periodicidade, papel do editor e do
conselho editorial, processo de seleção de textos e processo de avaliação por pares
— conhecido como sistema de arbitragem ou avaliação de originais, que, em inglês,
adota o nome de referee system ou peer review (VIEIRA, 2006).
TRANSCICLOPÉDIA EM DIFUSÃO DO CONHECIMENTO 299

Figura 2 — Capa do Philosophical Transactions

Fonte: University of Wisconsin — Madison. Department of Special Collections

A produção do conhecimento é apenas uma parte do processo de pesquisa. Para


que o conhecimento seja utilizável, ele deve ser compartilhado com outros pesquisado-
res e comunicado em um padrão adequado, a diferentes usuários/partes interessadas.
Desde Gutenberg, o texto impresso tornou-se o principal meio para compar-
tilhar alguns tipos de conhecimento. Tecnologias mais antigas nas comunicações,
a exemplo do telégrafo, do telefone, do rádio, da televisão, do aparelho de fax etc.,
também criaram profundas mudanças sociais e econômicas (BURKE, 2003).
Hoje, uma nova revolução em plena ascensão, possibilitada por tecnologias que
podem transportar grandes quantidades de informação em praticamente qualquer
lugar do mundo em poucos segundos, vem também transformando a economia e
a sociedade (VIEIRA, 2006).
A importância da difusão do conhecimento no campo da pesquisa tem sido
cada vez mais reconhecida, porém, conforme Wojick (2006) e Ozel (2012), os
pesquisadores a estão estudando em diversas ciências, como física, administração,
economia, sociologia, ciência da informação, matemática, dentre outras, utilizando
diferentes conceitos. Para Warnick (2009), é importante entender os benefícios dessa
difusão do conhecimento e “[...] na medida em que novos métodos e conceitos se
espalham mais rapidamente, a própria ciência será acelerada.14”
14
Tradução livre das autoras. [...] to the extent that knowledge about new methods and concepts is
spread more quickly, science itself will be accelerated.
300 TRANSCICLOPÉDIA EM DIFUSÃO DO CONHECIMENTO

O conhecimento não pode ser estático, nem pode se mover em uma única direção.
Em vez disso, ele deve fluir constantemente como uma rede de compartilhamento,
em constante mutação, envolvendo a todos. A aceleração do acesso ao conhecimento
trazido pela Revolução do Conhecimento e da Informação está transformando as
relações entre especialista e amador, governo e cidadão e demais comunidades. O
termo difusão do conhecimento é largo, polissêmico repleto de possibilidades.

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34. Design Cognitivo

Alfredo Matta
Francisca de Paula Santos da Silva
Luciana Martins

INTRODUÇÃO
Desde a origem do Doutorado em Difusão do Conhecimento (UFBA, 2018),
em 2007, ficou claro o conceito de Análise Cognitiva, como sendo uma capacidade
de perceber o desenho ou organização cognitiva de uma dada solução, ou o enca-
minhamento de conhecimento humano levava a compreender um outro conceito
correlato, eu diria complementar, que é o de Design Cognitivo.
Realizando pesquisa para o desenvolvimento de aplicações foi possível perceber
conhecimento e experiências na produção de páginas WEB, sistemas de informação
educacional, bem como informações no formato conteúdos digitais educacionais,
em quantidade realizados com abordagem socioconstrutivista.
Apresenta-se aqui o desenvolvimento do design cognitivo, inicialmente criado
ido para conteúdos digitais e sistemas informacionais educacionais de caráter so-
cioconstrutivista, atualmente aplicável à concepção de qualquer proposta de desen-
volvimento cognitivo, digital ou não.
Para isso, proponho três discussões. Em primeiro lugar, definir o que sejam
conteúdos digitais, bem como sistemas informacionais voltados para a aprendizagem
para os quais a metodologia se dirigiu inicialmente. Segue uma discussão sobre o
design cognitivo socioconstrutivo propriamente dito, em diálogo que procura esta-
belecer os princípios a serem seguidos por um projetista e, portanto, devem estar
contidos e bem observados em uma metodologia que se proponha a sistematizar a
produção de conteúdos digitais e sistemas que tenha esse viés epistemológico. A parte
final faz diálogo e analisa a construção dos sistemas e das coleções de conteúdos
que fizemos nos projetos citados, de maneira a exemplificarmos e apresentarmos
casos de projeção, construção e uso desses conteúdos construídos a partir do uso da
metodologia desenvolvida.
TRANSCICLOPÉDIA EM DIFUSÃO DO CONHECIMENTO 305

OS SISTEMAS INFORMACIONAIS DIGITAIS PARA CONSTRUÇÃO


DO CONHECIMENTO
Desde a década de 1980, com o advento da microinformática tornou-se cada
vez mais comum a produção e utilização de sistemas de informação digital e softwares
voltados para utilização em procedimentos de construção cognitiva. A discussão é
ampla, pois todos os sistemas computacionais interativos são, de alguma forma,
sistemas focados na produção cognitiva. Em nosso estudo, chamaremos de sistemas
de construção cognitiva, aqueles que, desde seu projeto e objetivos iniciais, foram
conscientemente construídos com essa finalidade explícita (MATTA, 2008).
Essa característica é por si uma novidade provocada pela interatividade própria
das tecnologias da informação. É conhecido que a engenharia de sistemas é cons-
truída a partir de arquiteturas e projetos de funcionalidades que exigem previsões e
projetos de relacionamentos entre informações, usuários e equipamentos, necessários
para a melhor interatividade e seus benefícios à educação (WAZLAWICK, 2010).
Graças a essa característica, podemos entender hoje que as práticas pedagó-
gicas necessitam ser desenvolvidas a partir de detalhadas elaborações e projetos de
gestão informacional, e de construções de design cognitivo apropriado ao exercício
das aplicações focadas na construção do conhecimento, que se aproximam cada vez
mais de serem reconhecidas como “arquiteturas cognitivas”. Cada processo, cada
registro, cada interação necessita ser cuidadosamente projetados para que se obtenha
um sistema informacional que possa ser aproveitado pedagogicamente pelo professor.
Atualmente, defendemos, em razão da nossa experiência com conteúdos digitais
e educação a distância, que não somente a mediação digital, mas também os pro-
cessos presenciais, os procedimentos formais ou informais, as ações dos professores,
educadores, ou seja, toda a prática voltada para a formação cognitiva pode, e de fato
deve, ser resultado de designs cognitivos detalhados e cuidadosos. Significa dizer que
o design cognitivo se tornou uma nova e, talvez, a mais promissora especialidade
para os profissionais do conhecimento, incluindo educadores, professores, gestores e
outros, fazendo-os também gestores da informação e os fazendo compreender muitas
aplicações da Ciência da Informação para que possam obter sucesso profissional.
Neste verbete, concentrar-nos-emos na construção de artefatos digitais.
Segundo nossa prática de projetos, o design cognitivo pode ser aplicado a qua-
tro tipos de sistemas informacionais educacionais, conforme descrevemos a seguir:
a) Ambientes Virtuais de Aprendizagem: São sistemas de informação
completos, no que se refere à ambientes educacionais, para elaboração
306 TRANSCICLOPÉDIA EM DIFUSÃO DO CONHECIMENTO

e construção de procedimentos de ensino-aprendizagem de Educação a


Distância — EAD, ou de mediação digital para aprendizagem presencial.
São sistemas projetados para acolher um sujeito que desenvolve totalmente
o procedimento de ensino-aprendizagem digital, nesse sistema. O ambiente
gestor de EAD Moodle (MOODLE, 2018), por exemplo, ou o Ambiente
Educacional WEB da Secretaria da Educação do Estado da Bahia (SE-
CRETARIA DA EDUCAÇÃO DO ESTADO DA BAHIA, 2018), são
exemplos desse tipo de software educacional. São sistemas que acolhem
o processo de ensino-aprendizagem planejado, e a demanda por produção
de conhecimento dos sujeitos engajados, sem que haja necessidade de se
recorrer a outro ambiente ou procedimento externo.
b) Sistemas Informacionais Educacionais de Apoio: São procedimentos peda-
gógicos digitais acionados a partir de um processo de aprendizagem mais
amplo. Um gestor de edição de Blog como o Blogspot (GOOGLE, 1999),
ou um editor de imagem como o Windows Moove Maker (WINDOWS,
2011), ou ainda um sistema que realize tradução de uma língua para outra.
São sistemas que poderão ser acionados pelos professores e alunos em meio
ao seu processo de aprendizagem. Realizam processos específicos e mais
definidos de ensino-aprendizagem.
c) Redes sociais e de interação: As redes sociais são sistemas de convivência
e interação virtual. Como elas são projetadas para a interatividade nas
diversas possibilidades potencializadas pela rede, e como aprendizagem é
construída a partir da interação humana, em conformidade com os prin-
cípios socioconstrutivista que adotamos, avaliamos que toda rede social
é adequada ao planejamento e design cognitivo, na medida em que tem
características necessárias para tanto (MATTA, 2008).
d) Conteúdos digitais: São softwares para aprendizagem temática voltada
para o foco de um só tema de trabalho. São aplicações digitais que rea-
lizam interatividade para o ensino-aprendizagem de algum conteúdo de
disciplina escolar, do ensino superior, de habilidade técnica, da educação
informal ou outra. São, portanto, produções centradas nos conteúdos. Os
conteúdos digitais são também conhecidos como unidades de aprendizagem
(FILATRO, 2008). Pensamos que seja um bom termo para apresentar esse
tipo de sistema informacional: unidade de aprendizagem.
Uma vez descritos, resta-nos realizar o propósito de orientar sobre como projetar
a produção de sistemas informacionais educacionais de caráter socioconstrutivo. Os
TRANSCICLOPÉDIA EM DIFUSÃO DO CONHECIMENTO 307

ambientes digitais educacionais necessitam ser cuidadosamente projetados para que


possam realizar seu trabalho de mediação. Isso exige do projetista um conhecimento
sobre interatividade e sobre os princípios que norteiam as abordagens e metodologias
para a organização da aprendizagem, pois o software educacional é também portador
de abordagem e perspectiva epistemológica.
Assim, é necessário conhecer o que chamamos Design Cognitivo, habilidade
cada vez mais exigida a todos os que trabalham com construção de procedimentos
de ensino-aprendizagem presenciais ou EAD, digitais ou analógicos.

REALIZANDO DESIGN COGNITIVO SOCIOCONSTRUTIVISTA


O design cognitivo deve conferir proposta epistemológica, didática e de intera-
tividade ao software dedicado ao processo de ensino-aprendizagem. Como atividade,
foi surgindo durante o século XX e teve desenvolvimento mais rápido a partir dos
anos 1980, quando do desenvolvimento das tecnologias digitais da informação.
Grosso modo, podemos dizer, concordando com Filatro (2008), que o design
cognitivo é o resultado de uma ação interdisciplinar advinda da necessidade de: 1)
projetar comunicações, audiovisuais, gestão da informação e ciência da computação,
que são o aporte da informática e das ciências da informação; 2) projetar organização,
gestão de processo e engenharia da produção, que são o aporte da administração; e
3) projetar aspectos psicológicos, de desenvolvimento humano, de psicologia social
e cognitiva, que são o aporte das ciências humanas, em especial da educação, da
psicologia, das ciências da cognição. Design cognitivo é o resultado do planejamento
e ação conjunta e interdisciplinar entre Educação, Informática, Ciências da cognição
e Ciências da Informação, em especial da Gestão da Informação e de Gestão de
Processos.
A origem está na necessidade de difusão em massa da informação, do co-
nhecimento, do treinamento, da necessidade de instruir grandes contingentes de
população, em primeiro lugar, durante a 2ª Guerra Mundial, e a seguir nos anos
1950 a partir das propostas de Skinner e Bloom, que desenvolveram abordagens
massificantes de treinamento e de formação, segundo a lógica do estímulo/respos-
ta, controle de resultados e instruções programadas. Desde então se desenvolveu a
noção do trabalho de design cognitivo que hoje é reconhecido como o trabalho de:
1. Ser capaz de desenvolver comunicação visual, oral ou escrita;
2. Aplicar teorias e abordagens pedagógicas e epistemológicas à prática do
design;
308 TRANSCICLOPÉDIA EM DIFUSÃO DO CONHECIMENTO

3. Identificar e resolver problemas éticos e legais que surjam no trabalho de


design;
4. Conduzir levantamento de contexto e necessidades do design;
5. Projetar currículos, programas, processos e procedimentos pedagógicos;
6. Selecionar e usar variedade de técnicas e abordagens em função do design;
7. Identificar e descrever necessidades dos sujeitos usuários;
8. Analisar características do ambiente cognitivo;
9. Analisar e projetar o uso das soluções de interatividade e tecnologia edu-
cacional para o desenvolvimento do design cognitivo;
10. Refletir e decidir sobre as estratégias cognitivas do design;
11. Selecionar, modificar e criar a modelagem de design e desenvolvimento
do projeto;
12. Selecionar soluções para relacionamento entre conteúdos e estratégias
cognitivas;
13. Desenvolver conteúdos digitais, soluções educacionais e materiais peda-
gógicos em geral;
14. Avaliar material pedagógico e seus processos e resultados;
15. Promover colaboração, parcerias e relacionamentos entre participantes do
projeto de design;
16. Homologar e implantar produtos e sistema informacionais.

Desde meados do século passado algumas abordagens foram desenvolvidas para


o design do processo cognitivo. Utilizando ainda o estudo de Filatro, apresentamos
duas dessas abordagens:
A primeira é conhecida como Comportamentalista. Supõe que as pessoas
aprendem por associação, por condicionamento estímulo/resposta, o que acaba por
propor soluções de causa e efeito mecanicistas em relação à aprendizagem. Trabalha
com associação de cadeias de conceitos e associações. Essa abordagem se preocupa
sobre como os comportamentos vão manifestar o que se aprende. O designer trabalha
com rotinas de atividades em repetição, punição e premiação com estímulo externo e
com objetivos e retornos claros. Constrói percursos individualizados de treinamento
e instrução. A abordagem instrucional é clara e tem a ideia de sequência progressiva
de componentes que caminham do menos para os mais complexos. A abordagem
comportamentalista, embora seja a mais antiga, jamais deixou de ser aplicada.
Ainda hoje é muito utilizada, por exemplo, para aprendizagem técnica, como no
design cognitivo para aprendizagem de rotinas de trocas de peças de automóveis. É
TRANSCICLOPÉDIA EM DIFUSÃO DO CONHECIMENTO 309

identificada pela sigla em inglês CAI, de computer aided instruction (HANNAFIN;


PECK, 1988).
A abordagem Construtivista propõe que as pessoas construam conhecimento
ao interagir e explorar o mundo que a rodeia. Ao receber as respostas desse mundo
às ações e pensamentos, desenvolve práticas e atitudes de construção de novas
relações com o mundo de forma a ir aprendendo novas possibilidades e competên-
cias. Baseada nos estudos de Piaget, de Ausubel e outros, essa abordagem trabalha
principalmente com a ideia de imersão. O designer deve produzir um ambiente tal
que consiga fazer o sujeito-aprendiz estar imerso na aprendizagem, interagindo e
integrando-se, de maneira que deve ser construído um ambiente preparado para o
processo de aprendizagem no aprendiz que experimente e aprenda em uma situação
concebida para a construção de seu conhecimento.
Quanto ao design cognitivo socioconstrutivista, pertinente à nossa experiência
prática e sobre a qual desenvolvemos a metodologia inovadora de design, apresen-
tamos a seguinte base:
Andréa Filatro propõe mais duas abordagens de design cognitivo, além das aqui
apresentadas: Socioconstrutivista e Situada. Em nosso entendimento e prática
de modelagem, discordamos da autora, pois interpretamos que as características
que apresenta como pertencente à abordagem Situada não contradizem e nem se
diferenciam das elaborações de Vigotsky (2009) e Bakhtin (2003), bases teóricas do
Socioconstrutivismo, o que, para nós, indica que se trata ainda dessa abordagem.
Assim, apresentamos as características gerais da abordagem Socioconstrutivista
do design cognitivo como sendo a que pressupõe que a construção do conhecimento
se dá através das interações entre o sujeito singular e seu ambiente ou contexto social,
em diálogo e prática permanente voltado para a solução de problemas práticos. As
atividades colaborativas, a percepção de que o ser humano aprende em colaboração,
e em prática social, é fundamental. A aprendizagem então se dá a partir de comu-
nidades de prática.
A partir dessa definição, interessa-nos preparar o leitor para que ele próprio
possa experimentar realizar ser um designer socioconstrutivista, utilizando a abor-
dagem para projetar conteúdos digitais e outros sistemas e processos voltados para
a construção do conhecimento, segundo essa filosofia. Daí a necessidade e busca de
desenvolver uma metodologia para guiar esse tipo de construção.
Entender bem o socioconstrutivismo é pré-requisito. Uma compreensão da
proposta socioconstrutivista pode ser apreendida ao se compará-la com a constru-
tivista. O socioconstrutivismo, diferentemente do construtivismo, não se propõe a
310 TRANSCICLOPÉDIA EM DIFUSÃO DO CONHECIMENTO

construir um ambiente capaz de deixar o sujeito imerso em interações desejáveis


e elaboradas para tal, mas sim preparar o sujeito e o que se vai aprender para que
participe do ambiente e mundo no qual o sujeito vive — em seu mundo concreto. É
uma diferença elementar e nos ajuda a entender as duas. O construtivismo pretende
imergir o sujeito no ambiente criado para a construção do conhecimento, enquanto
o socioconstrutivismo pretende engajar essa construção e a aprendizagem proposta
no mundo e no ambiente concreto e cotidiano do sujeito.
Visto isso, apresentamos cada aspecto que pensamos deva ser a preocupação
do projetista socioconstrutivista, procurando orientar o leitor para suas próprias
práticas de projetos. Devemos lembrar que a proposta socioconstrutivo parte do
princípio da construção e reconstrução contínua das propostas e modelos, já que
tudo depende dos sujeitos envolvidos e do contexto. Logo o que apresentamos aqui
não pretende esgotar as possibilidades, e sim servir de base para que cada projetista
a utilize assim, ou modifique, na medida de suas reflexões sobre seu caso específico.
Apresentam-se a seguir estes aspectos:
Interação: Fischer e Mandl (1990) trabalharam o conceito de interação
socialmente e identificam que o designer deve construir conscientemente em suas
produções as interações entre o sujeito/usuário, seus objetivos/tarefas/intenções,
ou seja, sua relação concreta com o contexto e ambiente, e os conteúdos a serem
ensinados. Isso leva David Jonassen (1990) a interpretar que o maior desafio do
designer é planejar o modelo de relacionamento e de interação entre esses elemen-
tos — o usuário, relações concretas e necessidades do contexto, e as informações
a serem trabalhadas. Jonassen, discutindo esse desafio, sugere alguns elementos
fundamentais para o projeto:
1. Como estruturar a informação na mídia?
2. Qual a hierarquia das informações e apresentações?
3. Como buscar o conhecimento?
4. Como construir o conhecimento?
5. Onde é o início do processo? E o final?
6. Como navegar?

São questões que vão exatamente encontrar as relações entre sujeito, contexto
e as informações, em várias vertentes. Cada questão vai encontrar uma nova rela-
ção de interação entre esses elementos. O designer socioconstrutivo, interessado em
interações sociais, vai precisar fazer essas questões frequentemente para projetar os
procedimentos pedagógicos.
TRANSCICLOPÉDIA EM DIFUSÃO DO CONHECIMENTO 311

Interatividade: O designer socioconstrutivista precisa também projetar a


interatividade. Para tanto, é necessário compreender a interatividade segundo uma
abordagem dialética. A interatividade aqui é compreendida. vigotskianamente, em
diálogo com a teoria de zona de desenvolvimento imediato ZDI (Vigotsky, 2009).
Abandona, então, a noção de interatividade que deriva da comunicação, e que a
nosso ver é reducionista, não expressando bem toda a riqueza desse elemento. A
interatividade é definida como a intersecção entre as práticas sociais de sujeitos
engajados na resolução e compartilhamento de construção de conhecimento e de
prática de vida comum.
Essas perspectivas sociais do conceito de interatividade é a chave para a cons-
trução de comunidades de compartilhamento de experiências e aprendizagem de
dimensão e complexidade crescente, como aquelas que necessariamente derivariam
da construção de comunidades de aprendizagem internacionais que buscassem reunir
interesses e soluções necessárias a um conjunto de nações e regiões distantes, com
população diversificada, embora com história e formação em parte comum, mas
também possuidores de uma diversidade de manifestações e soluções locais, como
é tão demandado atualmente. O projetista necessita ter em mente esses “instantes”
de encontro, quando o sujeito coletivo se realiza das práxis singulares daqueles que
compartilham um processo ou construção cognitiva. Devem ser criados momentos
e situações de compartilhamento (MATTA, 2009).

Figura 1

Contextualidade: a base dialética da abordagem vigotskiana torna essencial ao


socioconstrutivismo localizar a base concreta da cognição, analisando e desenvolvendo
projetos que respondam ao contexto social e histórico, às bases de prática social das
comunidades ou ambientes aos quais os sujeitos participantes do processo pedagógico
pertencem (FRAWLEY, 2000). É necessário, portanto, que o projetista seja capaz
312 TRANSCICLOPÉDIA EM DIFUSÃO DO CONHECIMENTO

de reconhecer os relacionamentos mais fortes existentes no meio social e histórico


dos futuros usuários. Isso pode ser conseguido ao se construir projetos relacionados
ao cotidiano, às questões culturais e necessidades da comunidade foco do design.
Vemos aqui a necessidade de definir o que seja contexto. Contexto para a prática
socioconstrutiva proposta é a adjacência informacional da cognição do sujeito e de
seus processos mentais, um complexo de relações entre a cognição do sujeito e suas
condições de existência complexas exteriores, que se desenvolveram historicamente
e, necessariamente, precisam ser entendidas historicamente. O designer tem que ter
essa consciência como pano de fundo de seus projetos.
Como proposta facilitadora, achamos importante seguir a ideia de Duchastel
e Molz que dividiram o contexto em individual e coletivo, interno e externo, para
que se possa ter maior consciência do que se está falando quando se diz “projetar o
procedimento pedagógico considerando o contexto” (FIGUEIREDO; AFONSO,
2006). Essas quatro dimensões podem ser consideradas assim:
1) Contexto interno e individual é o contexto experiencial:
Considera-se aqui o conjunto histórico de construções cognitivas do sujeito, ou
seja, seu mapa cognitivo, as diversas e variadas concepções, posturas, sentimentos
e a relação estabelecida entre eles, no interior da subjetividade de cada sujeito. Não
podemos considerar esse conceito objetivamente, visto que vai variar de acordo com
a subjetividade de cada sujeito, podemos, sim, considerar o processo subjetivo de
cada um como inerente, existente, e assim considerar sua prática cognitiva de ma-
peamento e ré-mapeamento durante a prática do processo que estamos projetando.
2) Contexto interno e coletivo é o contexto comunitário:
Tem sido o aspecto mais discutido pelos estudiosos desse campo de conhecimento.
Trata-se de considerar o sujeito coletivo. A coletividade se interage engajada de acordo
com interesses e práticas comuns, e assim compartilha afetividades, objetivos, valores,
sentimentos, necessidades. O sujeito individual está engajado e de fato faz parte do
coletivo, permeando condições e práticas e realizando a interatividade no sentido de
construir sujeitos coletivos concretos. É importante procurar entender as formas de
relacionamento das comunidades: se se expressam oralmente ou por escrita, se preferem
o processo “face a face” ao virtual, se habituados a relações síncronas ou assíncronas,
sobre como interpretam e processam inovações. O designer deve entender bem do
contexto comunitário no sentido de construir processos que possam atendê-los.
3) Contexto externo e individual é o contexto informacional:
As informações sempre devem estar contextualizadas e validadas pelo ambiente
e relações sociais, de maneira que sirva como matéria prima e elementos de base para
TRANSCICLOPÉDIA EM DIFUSÃO DO CONHECIMENTO 313

as construções do processo cognitivo do sujeito-aprendiz. O projetista sabe disso e


vai buscar criar esta relação nos projetos.
4) Contexto externo e coletivo é o contexto institucional:
Aqui há uma referência às relações institucionais e históricas, incluindo as
relações de poder, hegemonias, dominações, relações concretas de construção da
existência na sociedade, na qual os sujeitos e comunidades estão inseridos.
Mediação: outro aspecto importante é projetar a mediação entre a cognição
do sujeito com as suas literalmente infinitas, complexas e dinâmicas construções de
enunciados do conhecimento na mente do sujeito mesmo, com o infinito e complexo
dinamismo do processo social e história do contexto que está no universo exterior
que situa e condiciona o sujeito e sua existência. Para lidar com essa contradição e
fonte de interação permanente entre os sujeitos e suas condições, é necessário projetar
bem os ambientes e estratégias das instâncias nas quais dar-se-á o encontro entre
o interno e o externo, entre a singularidade de um sujeito e a colaboratividade do
contexto social.
Esses momentos de contato são precisamente as estratégias de mediação que
devem ser bem e conscientemente desenvolvidas. Leve-se em conta que o tempo que
se projeta o processo e as instâncias de mediação, também se está projetando, cons-
cientemente, os engajamentos das Zonas de Desenvolvimento Imediato — ZDI dos
sujeitos, exatamente caracterizadas pelo instante, ou instantes, em que o complexo
cognitivo interno do sujeito interage com o complexo de condicionamentos, interações
sociais e práticas coletivas advindas do contexto social externo. Projetar os momentos
e situações de mediação é para o designer, o momento em que conscientemente vai
construir a arquitetura do encontro entre as ZDI dos sujeitos engajados naquela
prática, atividade, ou reflexão, projetada (FRAWLEY, 2000; VIGOTSKY, 2009).
Metacognição e controle: Vigotsky desenvolveu a ideia da gestão do processo
cognitivo, como uma prática inerente a todo ser humano. A metacognição é
definida como este processo de gestão da cognição realizada por pelo menos
três atos do pensamento que são: o planejamento, a inibição e a referência de
informação. O ser humano organiza e planeja seu processo de aprendizado e
desenvolvimento, na medida em que percebe a necessidade de desenvolver-se,
por outro lado, ele decide o tempo todo pela validação de certas alternativas de
prática, aceitação, concordância ou não, de maneira que constrói um mapa de
alternativas viáveis e inviáveis, e vai seguindo seu caminho de aprendizagem de
acordo com estas construções cognitivas. Por fim, a referência que o processo
cognitivo faz em relação à origem das respostas e fontes de interação que
escolhem para focar a atenção e interagir, no momento mesmo da aprendiza-
gem, compartilhando dinamicamente, o instante da mediação que constrói
314 TRANSCICLOPÉDIA EM DIFUSÃO DO CONHECIMENTO

por fim a nova aprendizagem, ampliando, modificando, ou reelaborando o


mapa cognitivo interno. O designer socioconstrutivista deve estar atento ao
projeto de maneira à sempre possibilitar, e até mesmo procurar conduzir, a
metacognição, e estas três operações cognitivas de todo ser humano, para
que possa ser bem sucedido na proposta de ensino-aprendizagem que elabora
(FRAWLEY, 2000; MATTA, 2006).

Inserção do conteúdo ou do tema do ensino-aprendizagem: A questão do


conteúdo e/ou tema a ser considerado para a aprendizagem acaba condicionada pelos
aspectos de metodologia cognitiva das interações, interatividade, contextualidade,
mediação, metacognição e controle já apresentados. A análise do que já escrevemos
nos leva a perceber que a base do projeto socioconstrutivista é a consideração do
sujeito-aprendiz e de seu processo de construção interna do conhecimento. Consi-
dera-se o aprendiz como referência do projeto, daí a expressão pedagogia baseada no
aprendiz ou no aluno, e em seguida o mais importante é situar seu processo cognitivo
e relacionamentos com o contexto social no qual tanto o aprendiz como o conteúdo
estarão inseridos.
É no contexto que a concretude do compartilhamento de práticas sociais com
aqueles que se convive em processos de colaboração estará acontecendo. As informações
devem então ser condicionadas a essas duas análises basilares e só devem ser inseridos
e ter seus conceitos e práticas consideradas, na medida do atendimento às necessidades
do processo cognitivo dos aprendizes e das considerações sobre sua dinâmica social e
contexto. Isso não significa deixar de apresentar ou de focalizar algum interesse que
se deseje ver aprendido pelos sujeitos, mas sim considerar sempre as determinações
sociais do contexto e as necessidades metacognitivas dos aprendizes, na forma e nas
estratégias que se vão construir para encaminhar as interações entre os sujeitos e os
conteúdos, com fins de aprendizagem. Esta é também uma recomendação prática
fundamental aos projetistas (FIGUEIREDO; AFONSO, 2006).
TRANSCICLOPÉDIA EM DIFUSÃO DO CONHECIMENTO 315

Figura 2

Embora auxilie na percepção da importância do contexto e da consideração


sobre a metacognição do aprendiz, a figura 1 pode dar a falsa impressão de duali-
dade. A informação inerente ao conteúdo de fato precisa ser integrada ao contexto
e a partir dessa integração estar disponível para a arquitetura do designer que vai
projetar a interação de dupla via contexto/conteúdo ou contexto/informação, com
o processo cognitivo do aprendiz. Outra figura encontrada também no trabalho
de Figueiredo e Afonso pode melhor traduzir a relação entre conteúdo e contexto.

Figura 3

Colaboração: As observações anteriores nos levam a privilegiar o projeto sobre a


colaboração. É na projeção da tarefa colaborativa, no projeto voltado para a resolução
de problemas, que todos os princípios de design socioconstrutivista se encontram.
316 TRANSCICLOPÉDIA EM DIFUSÃO DO CONHECIMENTO

Ao projetar o desafio coletivo o designer provoca a realização do trabalho de desen-


volvimento de grupo, articulação de tempo e objetivos, gestão da complexidade da
dinâmica coletiva, presença social, construção social, processos de comunicação,
gestão de conflitos cognitivos, conflitos afetivos e emocionais, e mediado por tudo
isso, a aprendizagem colaborativa. (FIGUEIREDO; AFONSO: 2006). Barab, Kling
e Gray mostram que podemos compreender o projeto de colaboração a partir de
três tipos de projeto colaborativo, e uma quarta síntese entre eles. São eles (BARAB,
Sasha; KLING, Rob; GRAY, James, 2004):
1. Comunidades de aprendizagem baseadas em Tarefas. São comunidades
integradas à execução de uma tarefa ou superação de um desafio, por
algum tempo. Há um forte senso de participação e engajamento, pois o
desafio coletivo esclarece a condição de sujeito coletivo. A aprendizagem
está direcionada ao desafio a ser vencido. Essa comunidade se realiza na
medida em que realiza a tarefa ou desafio.
2. Comunidades de aprendizagem baseadas em Práticas. São comunidades
maiores e estão integradas por uma prática mais prolongada, um projeto
de longo prazo, uma instituição, algum movimento social mais amplo. São
comunidades ricas em contexto e oferecem uma variedade de possibilidades
de aprendizagem. Elas se realizam na medida em que a comunidade se
desenvolve em suas características internas.
3. Comunidades de aprendizagem baseadas em Conhecimento. São comu-
nidades voltadas para produção de conhecimento e de fato se realizam
na medida em que o conhecimento produzido pode ser direcionado ao
contexto mais amplo, fora da comunidade. Essa comunidade se realiza na
medida em que consegue gerar conhecimento reconhecido além de seus
limites internos.
4. Uma Organização de Aprendizagem. Seria uma organização formada pelas
três comunidades descritas, que, na intersecção entre as tarefas, as neces-
sidades internas de existência e a necessidade de relacionamento externo,
constrói sua dinâmica de organização aprendente.

O designer socioconstrutivista deve ter como ideal de desenvolvimento a cons-


trução de organizações aprendentes que envolvam e engajem os sujeitos e o contexto
de aprendizagem, fazendo-os procedimentos de ensino-aprendizagem pertencentes
à vida dos que se engajam em seus processos pedagógicos.
TRANSCICLOPÉDIA EM DIFUSÃO DO CONHECIMENTO 317

Uma vez constituída a comunidade de prática dos autores recomendamos a


seguir o quadro abaixo como guia para a elaboração do design cognitivo do processo
que se deseja elaborar. É claro que o quadro é uma recomendação e deve ser alterado
de acordo com a conveniência dos autores. Ter um quadro torna mais clara e eficaz
a tarefa do designer.

Quadro 1. Design Cognitivo/técnico para produção de Conteúdos Digitais


em perspectiva socioconstrutivista

SOLUÇÕES COGNITIVAS SOLUÇÕES TÉCNICAS


Tema: Mídia (vídeo, animação,
Escreva aqui o resumo do tema, conteúdo ou procedimento cognitivo infografia, áudio etc.):
a ser projetado Descrever aqui o tipo de
mídia e/ou solução prática
Objetivação:
tecnológica de produção
Descrever um ou mais propósitos de objetivação deste proce-
deste processo.
dimento para construção do conhecimento. Lembre-se de que
o foco da produção é o aprendiz. Isso significa que o verbo a
ser utilizado para a objetivação vai descrever um propósito do
aprendiz ao realizar o processo agora em construção. Deve ser
descrito o que ELE, o aprendiz, tem como objetivação.
Como será abordada a informação? Formato (documentário,
Devem ser projetados os detalhes sobre o conteúdo e o tema a ser simulação, jogo, ficção
abordado, dando uma primeira ideia de argumentos e elementos etc.):
preliminares para a roteirização Descreve-se a estratégia de
dramatização ou de formato
Qual estratégia garantirá a contextualização (universo sociohis- de produção que a proposta
tórico/ conscientização/ Tema Gerador/ Zona de desenvolvimento vai desenvolver.
Imediato)?
Este é o espaço para a projeção da contextualidade em vários níveis e
possibilidades de inserção do contexto social e histórico no projeto.
Qual estratégia garantirá a interdisciplinaridade? Requisitos técnicos (exten-
Área de projeto interdisciplinar são do arquivo, tamanho
Quais são as estratégias de mediação (colaboração/ interatividade do arquivo etc.):
e abordagem metacognitiva) a serem utilizadas? Área onde os requisitos de
É o espaço para a análise dos momentos e estratégias de mediação e equipamentos e aplicativos
de interatividade. envolvidos são descritos.
Proposta de Avaliação:
Qual a proposta de avaliação inerente no projeto
Informações úteis para construção do Guia Pedagógico:
Todo projeto cognitivo deve ser acompanhado de um documento guia para uso e aplicações. Este
é o espaço para projetar o guia e seus elementos
318 TRANSCICLOPÉDIA EM DIFUSÃO DO CONHECIMENTO

O quadro foi construído em decorrência do diálogo da equipe de autores


de um projeto que realizamos sobre os aspectos a serem cuidados pelo designer
­socioconstrutivista já apresentado. Da necessidade de projetar interação, interati-
vidade, contextualidade, metacognição e controle, inserção do conteúdo ou tema
e colaboração, de forma sistemática e produtiva, surgiu a sistemática metodológica
que foi utilizada para registrar as soluções de design socioconstrutivas encontradas
para cada mídia que estiver sendo construída. O quadro apresentado representa
uma rotina de aspectos a observar e registrar cada vez que se deseja construir um
design socioconstrutivo.
A aplicação desse quadro deve ser acompanhada por níveis de validação e apro-
vação das soluções que vão sendo registradas pelo grupo de designers. A primeira foi
a exigência de consenso de toda a equipe sobre o formato e composição do quadro.
Depois foi a vez de testar o projeto a partir de seus resultados de projeção, pois era
possível verificar se o quadro preenchido representava bem as sugestões de design
informacional que iam sendo elaborados, bem como a verificação sobre se a equipe
de construção entendia o que passávamos. Verificamos também se o resultado da
produção mostrava que os codificadores e programadores entenderam bem o que
foi postulado pelos designers, no que comparavam resultados ao que fora projetado
nos quadros de projeto e resultado das construções digitais resultantes. O quadro
foi criado para documentar e sistematizar a projeção de cada conteúdo digital ou
sistema educacional projetado, o que significava que deveria servir de vínculo entre
designer e codificadores. Para os fins desse estudo, é importante apenas apresentar
o quadro como resultado de nosso estudo metodológico e apresentá-lo como ferra-
menta de projeção, afirmando que a equipe de design deve preencher o quadro para
cada projeto elaborando nele representações da solução socioconstrutiva necessária
às unidades de aprendizagem e outros sistemas informacionais educacionais.
No final do preenchimento de cada quadro, a equipe de autores tem em mãos
o documento de referência, documentação e acompanhamento para a produção da
modelagem de sistema educacional proposta.
O passo seguinte é a elaboração detalhada do roteiro do processo cognitivo
proposto, em seguida a elaboração de um storyboard no que se vai desenhando cada
elemento proposto no quadro de design.
Após o término do desenho do storyboard, a proposta estará pronta para a
modelagem em linguagem de computação. Em nosso procedimento prático, após
certo período acertado, a equipe de design cognitivo se reunia com a de produção
para criticar o que estava sendo construído e acertar a produção.
TRANSCICLOPÉDIA EM DIFUSÃO DO CONHECIMENTO 319

O quadro de design servia então como documento norteador capaz de auxiliar


na revisão, validação e homologação, mantendo assim a proposta socioconstrutivista
como meta e garantindo sua realização.
Resumindo a metodologia elaborada consiste nos seguintes passos:
1. Constituir equipe interdisciplinar de autores comunitários e colaboradores
que vão participar do processo;
2. Aplicar com a equipe de autores colaborativos o Quadro 1 como instru-
mento de apoio ao planejamento de Design cognitivo para as propostas
de ambientes digitais em questão;
3. Seguir as instruções que estão em cada elemento do Quadro 1, para que
no final do preenchimento tenha-se uma descrição de requisitos cognitivos
e técnicos para a produção do ambiente digital que se deseja;
4. Proceder níveis de validação do projeto de design;
5. Acompanhamento da codificação e construção do ambiente digital
projetado.

Foi o atendimento desse procedimento e do controle de padrão e sistematização


do processo de design cognitivo oferecido pelo Quadro 1 que possibilitou a elaboração
de coleções de conteúdos digitais publicadas e bem utilizadas em repositórios que
podem ser observadas nas seguintes páginas WEB (MATTA et al, 2010; MATTA
et al, 2011): http://pat.educacao.ba.gov.br/ e http://portaldoprofessor.mec.gov.br/.

REFERÊNCIAS
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FIGUEIREDO, António; AFONSO, Ana. Hershey: IFOSCI, 2006. p. 7-105.
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2006, p. 7-105.

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Springer-Verlag, 1990. p. 9-397.

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instructional software. Ney York: Macmillan, 1988. Disponível em: < http://
www.blogger.com/home>, acesso em 24/07/2011, p. 3-26

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FORMIGA, Marcos. (Org.). Educação a distância, o estado da arte. São Paulo:
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35. Direitos Humanos

Ana Maria Maciel Bittencourt Passos


Maria Inês Corrêa Marques

Direitos Humanos foi aqui tomado enquanto conceito e princípio. Na teoria de


direito, é um princípio que visa à garantia da dignidade da pessoa e da vida huma-
na. Em termos conceituais e jurídicos, trata-se de um conjunto de direitos básicos,
fundamentais, e das liberdades essenciais na vida em sociedade, válidos em qualquer
lugar do planeta. Pretende resguardar os valores da pessoa humana: a solidariedade, a
igualdade, a fraternidade, a liberdade, a dignidade da pessoa humana, sem qualquer
tipo de discriminação, de cor, religião, nacionalidade, gênero, trabalho, geração,
orientação sexual e/ou política. A Organização das Nações Unidas (ONU), pós-se-
gunda guerra, produziu a Declaração Universal dos Direitos Humanos, aprovada
em 1948, passou a ser amplamente divulgada e balizou inúmeras legislações, no
entanto, não é observada na sua integralidade, mundialmente falando. A Declaração
inicia-se afirmando que todos os seres humanos nascem iguais e livres, devendo ter
a mesma dignidade e os mesmos direitos, já que todos são dotados de consciência e
de razão, devendo agir uns com os outros em espírito de fraternidade.
O objetivo da Declaração Universal dos Direitos Humanos é evitar guerras,
pela promoção da paz, respeito à democracia e fortalecimento dos direitos de todas
as pessoas. Direitos humanos se compreende também como aqueles inerentes à
pessoa humana, que visam resguardar a sua integridade física e psicológica perante
seus semelhantes e perante o Estado, de forma a limitar os poderes das autoridades,
garantindo, assim, o bem-estar social através da igualdade, fraternidade e da proibição
de qualquer espécie de discriminação. São direitos e liberdades básicas de todos os
seres humanos, está ligado à liberdade de expressão, de pensamento e de igualdade
de todas as pessoas diante da lei.
Os direitos humanos têm sua origem no conceito filosófico de direitos naturais
do ser humano, atribuídos por Deus, sendo que, muitos estudiosos e filósofos con-
sideram que não há qualquer diferença entre os considerados direitos humanos e os
direitos naturais do homem, convergindo ambos para um mesmo ideal. Cidadania
é o exercício pleno de todos os direitos e deveres civis, políticos e sociais previstos
na legislação. Devem ser reconhecidos em qualquer Estado, grande ou pequeno,
pobre ou rico, independentemente do sistema social e econômico que essa nação
TRANSCICLOPÉDIA EM DIFUSÃO DO CONHECIMENTO 323

adota. No Brasil, os direitos e deveres estão estabelecidos como cláusulas pétreas na


Constituição Federal, ao afirmar que exercer a cidadania é manter a consciência dos
direitos e obrigações e lutar para que sejam respeitados por todos. O exercício da
cidadania estabelece que os membros de uma sociedade devem usufruir dos direitos
humanos, seja em nível individual, coletivo ou institucional, cumprindo com todas
as exigências para obter os benefícios da sociedade. Previsões necessárias a todas as
Constituições consagram o respeito à dignidade humana, garantem a limitação de
poder e visam ao pleno desenvolvimento da personalidade humana.
Os Direitos Humanos são um conjunto de leis e vantagens que devem ser re-
conhecidas como “natureza” pelo indivíduo para que este possa ter uma vida digna,
ou seja, que não seja inferior aos outros só porque é de um sexo diferente, pertence a
uma etnia diferente, religião ou até mesmo por pertencer a um determinado grupo
social. São também um conjunto de regras pelas quais não só o Estado se deve
guiar e respeitar, como também todos os cidadãos a devem respeitar. São direitos
fundamentais, a base de toda e qualquer sociedade que se pretenda justa e igualitária:
Direitos civis — são o direito a igualdade perante a lei; o direito a um julgamento
justo; o direito de ir e vir; o direito à liberdade de opinião, entre outros;
Direitos políticos — são o direito à liberdade de reunião; o direito de associa-
ção; o direito de votar e de ser votado; o direito de pertencer a um partido político:
o direi¬to de participar de um movimento social, entre outros;
Direitos sociais — são o direito à previdência social; o direito ao atendimento
de saúde e tantos outros direitos neste sentido;
Direitos culturais — são o direito à educação; o direito de participar da vida
cultural; o direito ao progresso científico e tecnológico; entre outros;
Direitos econômicos — são o direito à moradia; o direito ao trabalho; o direito
à terra: o direito às leis trabalhistas e outros;
Direitos ambientais — são os direitos de proteção, preservação e recuperação
do meio ambiente, utilizando recursos naturais sustentáveis;
Direitos Humanos reconhecem e asseguram que todos os seres humanos nas-
cem livres e iguais em dignidade e em direitos. Dotados de razão e de consciência
devem agir uns para com os outros em espírito de fraternidade.
A história nos mostra a construção paulatina dos direitos à vida e à liberdade
de opinião e de expressão. Como se modificaram as leis que regeram o trabalho, a
educação, entre outros direitos fundamentais para a garantia da dignidade do ser
humano. Os Direitos Humanos contemplam a qualquer um independente de raça,
sexo, nacionalidade, etnia, idioma, religião ou qualquer outra condição.
324 TRANSCICLOPÉDIA EM DIFUSÃO DO CONHECIMENTO

Desde o Cilindro de Ciro exposto no Museu Britânico, considerado a primeira


declaração dos direitos humanos, é um dos documentos mais antigos que registra
uma versão mesopotâmica de justiça. , o Código declarava a liberdade de religião
e a abolição da escravatura. Tem sido valorizado positivamente por seu sentido hu-
manista e inclusive foi descrito como a primeira declaração de direitos humanos. A
regulação social por meio das leis atravessou tempos e sociedades, sua consolidação
no Ocidente deu-se por intermédio dos romanos que, na Roma antiga, conceberam
o conceito jurídico da concessão da cidadania romana a todos os romanos.
Em tempos mais próximos, durante a chamada Idade Média europeia, foi o
cristianismo que ajudou a consolidar a defesa da igualdade entre os seres humanos,
o direito à vida, que é uma concessão divina que não poderia ser violada. Só o
papa, o rei, o imperador, enquanto descendentes diretos ou em comunicação com
o Deus criador de todas as coisas, seriam seus representantes e poderiam alterar essa
ordem. Assim, teorias surgem para justificar esta lógica. Ainda assim documentos
comprovam que a noção de direitos humanos prevalece, como por exemplo, na Carta
Magna da Inglaterra, de 1215. Ela teria influenciado a construção do conceito de
habeas corpus que é de 1679, para impedir prisões arbitrárias ou ilegais.
A Modernidade, as viagens transoceânicas, a descoberta de novos povos, por
parte dos que se julgavam no centro do mundo, os europeus, colocaram o tema em
debate na Europa. A forma como estavam se relacionando com os povos e conduzindo,
o que foi denominado processo de colonização e cristianização foi questionado. Em
nome das diferenças e supremacia tecnológica, as invasões pilhagens e os genocídios
aconteceram. Apesar de alguns movimentos em prol da dignidade humana, o es-
cravismo foi ressuscitado, as doenças inoculadas propositalmente para acabar com
resistências e os impérios implacáveis se formaram.
Para historiadores e juristas, os direitos subjetivos só emergiram a partir do
século XVI, tornando-se efetivamente relevante no século XVIII após a Revolução
Francesa, fruto da luta do terceiro Estado contra o Antigo Regime. No referido
século, os racionalistas e pensadores/filósofos no campo de Direito, concluiu-se que
TRANSCICLOPÉDIA EM DIFUSÃO DO CONHECIMENTO 325

todos os homens nascem livres, tem direitos naturais que deveriam ser protegidos. O
Iluminismo e seus filósofos, pensadores indignados, vivendo em uma sociedade de
privilégios e privilegiados, se insurgiram e desenvolveram conceitos que marcaram
a concepção jurídica de Direitos Humanos. Para John Locke, que desenvolveu o
conceito do direito natural, teria sentido e abrangência universais. O Contrato social
para pensadores ingleses e franceses garantiam direitos aos indivíduos.
A Declaração de Virgínia de 12 e junho de 1776 influenciou Thomas Jefferson
na Declaração dos Direitos Humanos incluída na Declaração da Independência dos
Estados Unidos da América de 4 de julho de 1776, bem como influenciou a Assem-
bleia Nacional francesa. Foi a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão,
proclamada na França em 1789, que considerou as reivindicações sociais ao longo
dos séculos anteriores.

Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, França, 1789.

As Revoluções Industriais, as manifestações por direitos dos trabalhadores


fizeram surgir novos temas envolvendo os direitos humanos. Foram construídos
grande documentos garantindo direitos de povos que foram vilipendiados no
processo de colonização, foram formalizados direitos de trabalhadores, frutos de
suas lutas específicas. Direitos das mulheres, crianças, idosos se fazem necessários
e respondem aos horrores sofridos por esses membros das sociedades. As grandes
326 TRANSCICLOPÉDIA EM DIFUSÃO DO CONHECIMENTO

guerras e as violações e violências ocorrida reforçaram a necessidade de conduzir a


humanidade a um outro patamar de convivência, prometendo principalmente acabar
com as guerras e matanças e a fome delas decorrentes.
Permanece como parâmetro legal, de 1948 aos nossos dias, a Declaração Uni-
versal dos Direitos Humanos. Embora a Declaração não tenha força jurídica sobre os
Estados Membros da ONU, é um marco legal impossível de ser negado. Os esforços
de comprometer os Estados permanecem, a exemplo dos dois pactos efetuados em
1966: o Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos e o Pacto Internacional dos
Direitos Econômicos, sociais e Culturais. Os problemas do século XXI são muito
graves e continuam a ferir os direitos humanos, tais como as migrações, as guerras
étnicas, as violências sexuais, policiais, as organizações criminosas e as impunidades
quanto ao racismo e torturas.
Diante do exposto, fica claro a impossibilidade de tratar os direitos humanos
como uma permanência histórica ou passível de generalização. Alguns países os
atendem na totalidade, outros nem tanto, e outros de forma diminuta. Em termos
de tempos históricos, fala-se de direitos humanos de primeira geração envolvendo
os direitos à liberdade, direitos civis, políticos. Os direitos humanos de segunda
geração são aqueles afeitos à igualdade, passando pelos direitos econômicos, sociais
e culturais. Os de terceira geração, direitos de fraternidade, reconhecem o direito
ao meio ambiente equilibrado, qualidade de vida, saudável, progresso, paz, autode-
terminação dos povos, dentre outros daí decorrentes. São considerados direitos de
quarta geração, fruto das tecnologias da informação e da comunicação, os direitos
tecnológicos e o biodireito. O direito à paz, que foi o motor para a construção da
Declaração Universal em 1948, vigora até hoje, classificados como direitos humanos
de quinta geração.
Os Estados garantem os direitos humanos universais por meio de leis, cujos
conteúdos podem derivar de convenções internacionais ou pela luta específica de
cada povo. Os tratados internacionais visam aumentar o leque de países que devem
legitimar medidas de ampla validade e repercussão. São acordos que comprometem
os Estados a praticarem as mesmas regras e a respeitarem os direitos internacional-
mente. Este foi efetivamente um novo patamar nas relações internacionais. O Brasil
está entre os países que assi-naram os documentos visando ao respeito, garantia e
proteção desses direi¬tos.
Os direitos humanos são indivisíveis, eles devem ser observados na sua integra-
lidade. Sim, todos os seres humanos nascem livres e iguais em dignidade e direitos;
têm direito à vida, à liberdade e à segurança pessoal. Ninguém será mantido em
escravidão, nem submetido à tortura e/ou arbitrariamente preso, detido ou exilado.
TRANSCICLOPÉDIA EM DIFUSÃO DO CONHECIMENTO 327

Todos são iguais perante a lei e têm direito a igual proteção; têm direito à liberdade
de reunião e associação pacífica. Todo ser humano tem direito à liberdade de pen-
samento, consciência e religião, tem direito a igual remuneração por igual trabalho.
Para todo ser humano, a família é o núcleo natural da sociedade e tem direito à
proteção da sociedade e do Estado. Quais são as garantias de que estes direitos fun-
damentais serão respeitados? Cumpre ao Estado oferecer tal garantia por meio de
suas instituições, que devem respeitar acordos internacionais firmados, e os governos
devem agir de forma vigilante, autônoma e democrática, acompanhado denúncias
de violações e coibindo transgressões.
A Organização das Nações Unidas, com seus organismos internacionais, atua
no sentido de garantir os Direitos Básicos, que envolvem a dignidade e o respeito
à vida humana, sem distinção de qualquer espécie, seja de raça, cor, sexo, idioma,
religião, opinião política ou de outra natureza. No Brasil, os direitos ganharam maior
expressão e garantias a partir da Constituição de 1988, que consagrou em seu artigo
primeiro o princípio da cidadania, dignidade da pessoa humana e os valores sociais
do trabalho. No dia 10 de dezembro de 1948, a Assembleia Geral da ONU adotou
e proclamou a Declaração Universal dos Direitos Humanos. A partir de 1950 este
dia entrou no calendário mundial como: Dia Internacional dos Direitos Humanos.

REFERÊNCIAS
COMPARATO, Fabio Konder. A afirmação histórica dos direitos humanos.
4.ed. rev. e atual. São Paulo: Saraiva, 2005.

PIOVESAN, Flávia. Direitos Humanos e o Direito Constitucional e


Internacional. 12.ed. rev. e atual. São Paulo: Saraiva, 2011.

PIOVESAN, Flávia. Temas de Direitos Humanos. São Paulo: Max Limonad.


2003.

SANTOS, Boaventura. Direitos humanos: o desafio da interculturalidade.


Revista de Direitos Humanos, Brasília, SEDH, jun, 2009.

WOLKMER, Antonio Carlos. Direitos humanos e a filosofia jurídica na


América Latina. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2004.
36. Dur ação ou Tempo Real

Ginaldo Gonçalves Farias

Duração é definida por Aristóteles como o limite de uma existência no tempo,


e tal conceito sempre foi associado à ideia de tempo. Henri Bergson, filosofo francês
século XX, separou a ideia de duração de tempo comum, mensurável, e introduziu
uma nova conceituação de tempo, contínuo e heterogêneo, que denomina tempo
real ou duração.
A noção de tempo da ciência é a mesma que a do senso comum, uma sucessão
de instantes iguais, homogêneos. Todo segundo é igual, toda hora também. Assim,
passa o tempo, homogêneo e descontínuo, pois é uma sucessão e, por isso, pode ser
quantificado. Todo minuto é igual; o ponteiro percorre com a mesma velocidade
a mesma circunferência do relógio. Para Bergson, esse tempo é vazio, resultado da
espacialização que a inteligência opera para sua ação no mundo material. Tempo, na
verdade, não são as horas que vivemos, e sim o que vivemos nas horas. Essa virada no
sentido do tempo nos mostra um tempo real ou duração. Ele não é mais homogêneo.
Ele, o tempo vivido, é heterogêneo, pois nem um minuto é igual a outro. Quando
estamos em uma fila no banco, cinco minutos são longos, quase intermináveis. Por
sua vez, quando ouvimos aquela música que gostamos e estamos alegres e em boa
companhia, cinco minutos são nada, efêmeros, imperceptíveis. Outra característica
fundamental da duração é que ela é contínua, o passado perdura, invade o presente
e podemos experimentar essa característica na sensação de remorso. Como explica
Bergson:
Nossa duração não é um instante que substitui outro instante: nesse caso,
haveria sempre apenas presente, não haveria evolução, não haveria duração
concreta. A duração é o progresso contínuo do passado que rói o porvir e
incha à medida que avança (2006 p. 47).

Duração é o correr do tempo uno e interpenetrado. Os momentos temporais


somados uns aos outros formam um todo indivisível. Opõe-se ao tempo físico ou
sucessão, que é passível de ser calculado e analisado. O tempo vivido é incompreensível
para a inteligência lógica por ser qualitativo, enquanto o tempo físico é quantitativo.
A duração, não sendo compreendida através da inteligência lógica, também não
pode, por consequência, ser entendida linearmente como sucessão, visto que não há
como calcular ou analisar o tempo vivido, qualitativo. Se não há como esmiuçar a
TRANSCICLOPÉDIA EM DIFUSÃO DO CONHECIMENTO 329

duração percebida pelo espírito, também não há como prever os momentos temporais
da experiência vivida, apenas da experiência física que se repete facilmente, logo a
duração do tempo vivido e experimentado pelo espírito é imprevisível, novidade
incessante. A duração pode ser entendida como uma experiência metafísica.
Toda a metafísica — ou toda a epistemologia bergsoniana — se apoia na ideia
de duração. Se houver uma realidade, para Bergson, essa realidade é duração. Corres-
ponde a um tempo real que flui, passado que se acumula incessantemente e forma a
substância da existência. Assim, o que é, é duração. O conhecimento íntimo de um
objeto é o conhecimento de sua duração. É a coincidência com sua duração, aquilo
que Bergson chama de intuição. Mas duração não é um acúmulo de instantes, é um
contínuo heterogêneo, um contínuo que muda, um jorro incessante de novidades,
uma evolução criadora.
Não há, aliás, tecido mais resistente nem mais substancial. Pois nossa duração
não é um instante que substitui um instante: haveria sempre, então, apenas
presente, nada de duração concreta. A duração é o progresso contínuo do
passado que rói o porvir e que incha ao avançar. Uma vez que o passado au-
menta incessantemente, também se conserva indefinidamente. A memória,
como procuramos prová-lo1, não é uma faculdade de classificar recordações
em uma gaveta ou de inscrevê-las em um registro. Não há registro, não há
gaveta, não há aqui, propriamente falando, sequer uma faculdade, pois uma
faculdade se exerce intermitentemente, quando quer ou quando pode, ao
passo que o amontoado do passado sobre o passado prossegue sem trégua. Na
verdade, o passado conserva-se por si mesmo, automaticamente. Inteiro, sem
dúvida, ele nos segue a todo instante: o que sentimos, pensamos, quisemos
desde nossa primeira infância está aí, debruçado sobre o presente que a ele irá
juntar-se, forçando a porta da consciência que gostaria de deixá-lo para fora
(BERGSON, 2005, p. 4-5).

A duração é um passado que continua e vai inchando em seu prosseguir, ele vai
se acumulando de presentes em direção ao devir. Um contínuo heterogêneo, sempre
novo sem deixar de ser o mesmo. É como se o presente fosse sempre enriquecido
de passado. O presente é criação, novidade, invenção, mas não existe criação sem
memória, sem passado.
Para melhor esclarecer a duração em Bergson precisamos enfrentar o problema
da diferença de natureza entre matéria e espírito, entre cérebro e memoria, entre
espaço e duração. A Representação é decomposta em duas direções divergentes: ma-
téria e memória, percepção e lembrança, objetivo e subjetivo. O cérebro encontra-se

1
Neste trecho Bergson se refere ao seu livro Matéria e Memória.
330 TRANSCICLOPÉDIA EM DIFUSÃO DO CONHECIMENTO

por inteiro na linha da objetividade; a lembrança, por sua vez, faz parte da linha da
subjetividade. Não poderia haver aqui, portanto, uma diferença de natureza entre
o cérebro e os demais estados da matéria, o que inviabiliza a hipótese de conserva-
ção das lembranças em alguma parte do cérebro, já que as duas linhas não podem
ser misturadas. As lembranças, portanto, conservam-se por si mesmas, ou seja, na
duração — o passado não se conserva em outro lugar, que não em si mesmo. Assim
como entre as linhas da objetividade e da subjetividade, deve haver uma diferença
de natureza entre a matéria e a memória, entre a percepção pura e a lembrança pura,
entre o presente e o passado. Essa diferença, no caso do passado e do presente, pode
ser de difícil apreensão, mas consiste em compreender o passado não como algo que
já não é mais ou que deixou de ser, mas que simplesmente deixou de agir.
O presente, portanto, não é, mas age — seu elemento próprio é o ativo ou o
útil, e ele é, sobretudo, puro devir, sempre fora de si. As determinações aqui se in-
vertem: o presente, a cada instante, já era, e o passado é o tempo todo, eternamente.

REFERÊNCIAS
BERGSON, Henri. Evolução Criadora. Tradução de Bento Prado Neto. São
Paulo: Martins Fontes, 2005.

BERGSON, Henri. Memória e vida. Tradução de Cláudia Derliner. São Paulo:


Martins Fontes, 2006.
E
37. Educação em saúde

Margarete Moraes
Alexandre Ghelman

CONCEITO E INTERCESSÕES NA ATUALIDADE


Em uma perspectiva ampliada, educação em saúde seria um conjunto de inter-
venções, estruturadas ou não, de cunho pedagógico, com objetivo de mudar o estilo
de vida e de risco, de prevenir doenças e promover a plena saúde de populações e
indivíduos. Essas intervenções são oferecidas por qualquer profissional qualificado
ou instância de saúde independente do espaço físico, da abordagem, do formato,
do veículo, da linguagem e dos recursos tecnológicos. Nesse processo, podem ser
transferidos/oferecidos, informações e conhecimentos em temas relacionados à
manutenção da saúde, prevenção e tratamento de doenças, autocuidado, funciona-
mento do corpo e da mente etc. Pertence ao raio de atuação da educação em saúde
a possibilidade de avaliação dos resultados atingidos com as intervenções.
Entretanto, a educação em saúde também pretende desenvolver nas pessoas
uma consciência crítica sobre seus problemas, condição de saúde, fatores de risco e
tratamento, além de potencializá-las para uma atitude responsável e de prontidão
para mudanças, de forma a manter a saúde, prevenir doenças e garantir bem-estar
físico e mental de forma continuada.
A educação em saúde está, atualmente, no contexto da promoção em saúde,
que visa melhorar as condições de saúde da população e indivíduos para que se
mantenham saudáveis, produtivos e felizes, evitando o uso desnecessário de recursos
e serviços de saúde. A promoção em saúde é o caminho para a garantia de qualida-
de, equidade e democratização dos recursos e serviços de saúde, uma vez que, com
populações e indivíduos mais saudáveis, desonera-se o orçamento e as estruturas de
saúde, liberando-os para os casos inevitáveis e críticos.
Os termos “educação para saúde” e “educação da saúde” podem ser utilizados
como sinônimos, sem maiores prejuízos epistemológicos e nem operativos, entre-
tanto, na atualidade é temerário comparar o termo “educação em saúde” com o de
“informação em saúde”, visto a inscrição profunda que este último termo apresenta
no contexto dos sistemas de saúde. O termo “informação em saúde” pode ser enten-
dida como toda e qualquer informação ou dados, produzidos e consumidos, direta
334 TRANSCICLOPÉDIA EM DIFUSÃO DO CONHECIMENTO

e indiretamente, nos processos administrativos e assistenciais por unidades de saúde


e suas instâncias mantenedoras e gerenciadoras.
A “informação em saúde” é o registro de operação e gerenciamento da gestão
clínica e administrativa de unidades de serviços de saúde, instâncias governamentais
da saúde, operadoras de planos e seguros de saúde e das suas interações. Entretanto,
há dimensões de intercessão, teóricas e operativas, entre a “educação em saúde” e
a “informação em saúde”. Essas dimensões podem ser territoriais, conceituais e de
políticas públicas.
A intercessão territorial seria o palco fundamental das duas, em uma boa parte
do tempo, nas unidades de serviço de saúde. O “chão de fábrica” da assistência e
cuidados à saúde. As unidades de saúde podem ser estratificadas em três níveis:
primária, secundária e terciária. A primária refere-se às consultas e exames básicos;
a secundária, aos atendimentos de pronto atendimento, emergências e hospitais de
baixa e média complexidade; e a terciária refere-se aos hospitais de alta complexi-
dade. Independentemente do nível da unidade de saúde, as informações e dados e
a educação em saúde sempre estarão em intensa interação.
É nesse palco que se produz informações e dados em saúde em profusão e se educa
pacientes e seus familiares, para o autogerenciamento do tratamento, procedimentos
de segurança, cuidados para casa, aceitação da doença ou condição específica de
saúde, entre outros. Educa-se com base também nas informações e dados produzidos
naquele contexto. Educa-se utilizando-se das informações e dados da assistência ao
paciente, pois, sem esta, a primeira seria enormemente prejudicada. A educação no
contexto do território da atenção secundária e terciária (ambulatórios, emergências,
hospitais e serviços de diagnóstico) está orientada para retirada do paciente de seu
estado de doença e sofrimento.
A intercessão conceitual seria o uso dos conceitos de informação e dados pela
educação. A educação é uma intervenção humana cognitiva, que tem nos dados,
informações e conhecimentos seus insumos fundamentais. Conteúdos, temáticas
e questões, problemas-alvo das intervenções educativas em saúde, são provenientes
de dados e informações, ou produzidos na própria unidade, ou em instâncias do
próprio sistema de saúde. Além disso, o conteúdo utilizado precisa ter legitimidade
cientificamente que, por sua vez, também tem, nos dados e informações confiáveis,
seu lastro fundamental.
A terceira intercessão seria no campo das políticas públicas. Tanto a educação
em saúde como as informações e dados são alvo de importantes e estratégicas po-
líticas públicas na área de saúde. Nesse sentido, em 2004, o Ministério da Saúde
TRANSCICLOPÉDIA EM DIFUSÃO DO CONHECIMENTO 335

divulgou a primeira Política Nacional de Informação e Informática em Saúde —


PNIIS (BRASIL, 2004), que, além de caminhar na obrigatoriedade legal, prescrita
pela Lei n. 8080/1990 (Lei Orgânica da Saúde), no sentido de organizar um Sistema
Nacional de Informação em Saúde (SNIS), objetivou:
[...] promover o uso inovador, criativo e transformador da tecnologia da
informação para melhorar os processos de trabalho em saúde, resultando
em um Sistema Nacional de Informação em Saúde articulado, que produza
informações para os cidadãos, a gestão, a prática profissional, a geração de
conhecimento e o controle social, garantindo ganhos de eficiência e quali-
dade mensuráveis através da ampliação de acesso, equidade, integralidade e
humanização dos serviços e, assim, contribuindo para a melhoria da situação
de saúde da população (BRASIL, 2004).

Na segunda edição, de 2016, o propósito ainda se manteve. Interessante observar


que há uma intenção, em última instância, de que com as estratégias informacio-
nais e tecnológicas, seja possível contribuir para a melhoria da situação de saúde da
população, propósito compartilhado com a educação em saúde.
A educação em saúde está presente também em duas políticas importantes.
A primeira é a Política Nacional de Promoção da Saúde (última versão de 2015),
as ações educativas em saúde estão presentes em todos os enfrentamentos de saúde
alvo do plano, como alimentação saudável, atividade física e uso abusivo de álcool,
tabaco e outras drogas.
E a segunda é a Política Nacional de Educação Permanente em Saúde (última
versão de 2004), onde a educação em saúde está presente como um dos resultados
da educação dos profissionais, ou seja, o foco são os agentes de saúde, em todos
os níveis e profissão. Os profissionais de saúde devem ser capacitados para serem
mais resolutivos clinicamente e fazerem promoção em saúde em seus serviços, e
isso inclui também serem capazes de desenvolver ações educativas para as pessoas
que os utilizam.
Entretanto, a educação em saúde, com foco nos indivíduos e populações
assistidas pelo sistema de saúde, apresenta uma política própria no âmbito do Sis-
tema Único de Saúde — SUS, a Política Nacional de Educação Popular em Saúde
(PNEPS-SUS), que propõe:
[...] uma prática político-pedagógica que perpassa as ações voltadas para
a promoção, proteção e recuperação da saúde, a partir do diálogo entre a
diversidade de saberes, valorizando os saberes populares, a ancestralidade,
o incentivo à produção individual e coletiva de conhecimentos e a inserção
destes no SUS (BRASIL, 2013).
336 TRANSCICLOPÉDIA EM DIFUSÃO DO CONHECIMENTO

O PNEPS-SUS objetiva implementar uma educação em saúde popular que, a


princípio, deve promover um diálogo entre práticas e saberes populares e o conhe-
cimento técnico científico no SUS, além de permitir participação popular em uma
gestão participativa nas práticas educativas em saúde.
O PNEPS-SUS também pretende auxiliar na identificação de estratégias de
comunicação e informação em saúde que sejam mais adequados com a linguagem,
a vida, as crenças e valores populares. A política apoia o protagonismo popular no
embate dos determinantes sociais da doença e saúde, com fins de ampliar o direito
à uma saúde universal.

HISTÓRICO NO BRASIL
As primeiras ideias de educação em saúde chegaram ao Brasil através dos contratos
de cooperação com a Fundação Rockefeller1. À época, sanitaristas ­norte-americanos
como Thomas Wood2 e Jessie Willians, propalavam as primeiras ideias sobre educação
em saúde, no contexto do movimento sanitarista nas Américas.
No Brasil, o médico cearense Carlos Accioly Sá3, facilitador da tradução dos
livros de Wood para o português, foi um dos maiores divulgadores dessa área a partir
da década de 1920, entretanto, com foco na educação em saúde para escolares. À
época, as ações do Estado, no sentido da prevenção de doenças da população em
geral, estavam focadas nas célebres campanhas sanitárias.

1
Criada por John D. Rockefeller, em 1913, teve como objetivo inicial implantar em vários países
medidas sanitárias baseadas no modelo americano para controlar a febre amarela e a malária, que
grassavam na América Latina e atrapalhavam os negócios. No Brasil, começa a atuar em 1916,
com a divulgação de um relatório com os resultados de expedições à América Latina. O relatório
mostrava uma carência de base científica para suporte de políticas públicas consistentes; ausência
de treinamento médico quanto a questões de saúde pública e de carreiras especializadas e de orga-
nizações sanitárias. Sua atuação no Brasil influenciou os médicos brasileiros e as políticas públicas
de saúde. Instaurou um escritório no Brasil e suas atividades se encerram em 1942, quando foram
absorvidas pelo SESP — Serviço Especial de Saúde pública (CAMPOS, 2006).
2
Thomas Wood foi considerado pela National Professional Health Education Honorary um dos
mais importantes intelectuais sobre a Educação em Saúde no passado americano, conjuntamente
com Clair Turner e Jesse Willians.
3
Sá nasceu no Ceará, em 1886, e morreu em 1969, no Rio de Janeiro. Formou-se em Medicina
no Rio de Janeiro, em 1907, e complementou seus estudos na França e na Alemanha; mais velho,
nos Estados Unidos, aprimorou seus conhecimentos em saúde pública. Aprovado em concurso
de provas e título, adentrou a pasta da saúde em 1921 como inspetor médico, mas antes já havia
atuado como médico na Hospedaria dos Imigrantes da Ilha das Flores e médico veterinário do
serviço de indústria pastoril. Em 1923, passa a compor o quadro de professores de Higiene da
Escola Normal do Distrito Federal, atuando assim a partir de então como médico, sanitarista e
professor.
TRANSCICLOPÉDIA EM DIFUSÃO DO CONHECIMENTO 337

Sá esteve no governo como chefe da Comissão de Alimentação4 do Departa-


mento Nacional de Educação, onde empreendeu junto a essa comissão, nos anos
de 1938 e 1939, muitas ações e programas de educação alimentar em escolas por
todo o país. Sá também foi idealizador dos “pelotões da saúde”. Neles, os próprios
alunos, no início das atividades diárias, faziam as revistas nas turmas para identificar
algum colega que havia chegado à escola, sem o cumprimento de alguma regra de
higiene (SÁ, 1943).
Escreveu um livro chamado Higiene e educação da saúde (1943), que até o ano
de 1963 foi reeditado sete vezes. Com exceção da primeira edição, as outras foram
financiadas pelos órgãos responsáveis pela educação em saúde na época.
Segundo Sá (1943),
Se a educação é um preparo para a vida, é um comportamento em que se afirmam
as atividades individuais tendentes para convivência social, é, portanto, uma
forma de adaptação entre o indivíduo e a sociedade. Nesses mesmos termos
poderia definir-se a educação da saúde. Com efeito, o preparo para a vida, o
comportamento afirmativo de atividades que tendem para convivência entre
homens, a adaptação entre indivíduos e a sociedade, tudo isto só se realiza
havendo saúde, isto é, bem-estar consciente de quem reage satisfatoriamente
às exigências do meio, condição de viver mais para melhor servir.

Nas teorias sobre saúde e educação em saúde, Sá decretou a saúde quase


como um bem social, na medida em que entendia a saúde para servir a uma me-
lhor convivência entre os homens. Nesse raciocínio, a educação é o caminho para
a transformação daquele que liga o indivíduo à sociedade, o seu comportamento.
E para comportamentos não saudáveis, a solução seria a educação específica nessa
área. Interessante notar a atualidade dos objetivos da educação em saúde para Sá, a
mudança de comportamento para uma vida saudável.
Sá (1943) dividiu a educação em saúde em três dimensões: A primeira seria
a formação dos profissionais que se dedicam à saúde pública, ou seja, a educação
técnica dos profissionais. A segunda dimensão seria o conjunto de ações do governo,
que procura disseminar os conhecimentos necessários para difusão do “comporta-
mento sadio” para o público em geral. Nessa dimensão, estariam todas as ações de
propaganda sanitária que, segundo ele à época, era de campo dilatado, e de precários
resultados (SÁ, 1943). A terceira seria a educação em saúde nas escolas, dos jardins
de infância até os ambientes universitários5.
4
Essa Comissão foi criada por exigência da X Conferência Sanitária Pan-americana (1937), por
entender que a desnutrição é a grande causadora de doenças (CPDOC/FGV — GC 1937.10.21).
5
Algumas inserções nesse setor acabaram por resultar na introdução de disciplinas de higiene nos
338 TRANSCICLOPÉDIA EM DIFUSÃO DO CONHECIMENTO

Institucionalmente, a educação em saúde teve uma trajetória longa; inicia-se


com o antigo Instituto de Propaganda e Educação Sanitária, criado ainda no pe-
ríodo da República Velha, que dava suporte às célebres campanhas sanitárias que
caracterizaram as políticas de saúde desse período.
Segundo Melo (1976),
Na década de 1920, a educação sanitária foi excessivamente enfatizada. Era o
apanágio da saúde pública e instrumento que iria resolver todos os problemas
de saúde, à medida que fosse formada ‘a consciência sanitária nacional’.

O Instituto adentra o governo provisório e somente amplia suas atuações em


1937. A partir daí, assume a responsabilidade de “[...] vulgarizar preceitos de higiene e
saúde pública e promover a educação sanitária da população: a ele compete, no que se
refere à higiene, fazer propaganda e educar” (MELO, 1976). As ações de propaganda
têm o objetivo claro de vulgarizar os preceitos de higiene, bombardeando a popula-
ção com informações sobre regras de higiene e de combate e prevenção às doenças.
Outras ações de educação em saúde são observadas em outros departamentos,
como no Departamento Nacional de Educação, nas campanhas de alimentação nas
escolas e a inclusão nos currículos escolares das disciplinas de higiene e saúde. A
educação em saúde também se apresentava nas diversas campanhas sanitárias e de
combate às doenças, como febre amarela, malária, lepra, entre outras.
Em 1941, com a segunda reforma de Gustavo de Capanema, e com a intenção
de verticalizar e intensificar a presença dos órgãos federais de saúde nos municípios
e nos estados foram criados os serviços nacionais de saúde, entre eles o Serviço
Nacional de Educação Sanitária. As ações se intensificaram em todo o Brasil e au-
mentou o aporte de materiais mais voltados para informações de doenças (Sarampo,
Poliomielite, Meningite, Varíola, Febre Tifoide etc.).
A divisão de Educação Sanitária do Serviço Especial de Saúde Pública — SESP6
apresentou forte atuação em áreas que o Serviço Nacional de Educação Sanitária não
explorou muito, como orientações sobre cuidados com bebês e tratamento de água e
esgoto. Foi no interior dessa divisão que ocorreram as primeiras reflexões institucio-
nais mais profundas sobre educação em saúde no Brasil. Entretanto, essas mudanças
currículos dos cursos secundários em 1931 e primários e do normal de 1946 (VEIGA, 2007).
6
O Serviço Especial de Saúde Pública foi criado em 1942, fruto de um convênio entre o governo
brasileiro e o norte-americano, no contexto da intensificação da presença norte-americana na
América Latina e da Segunda Guerra. Primeiramente, o SESP atenderia a região da Amazônia e
do Vale do Rio Doce, a saber, regiões de extração de matérias-primas estratégicas para os EUA.
O SESP foi constituído como órgão autônomo do Ministério de Educação e Saúde Pública e era
financiado pelos dois países. Atuou até 1990 como Fundação SESP (HOCHMAN, 2001).
TRANSCICLOPÉDIA EM DIFUSÃO DO CONHECIMENTO 339

ocorreram já na década de 1950 e contribuíram para cristalizar uma teoria e métodos


de educação em saúde que se focaram na população, deixando de lado a educação em
saúde na escola e relativizando a eficácia da propaganda (FONSECA, 1989).
Outro ator importante na história da educação em saúde no Brasil foi Hortência
de Hollanda, educadora e nutricionista que iniciou seu trabalho como educadora
sanitária no SESP em 1949. Sua importância se dá pelas reflexões sobre educação
em saúde. Hortência critica os materiais, as estratégias e reclama uma pedagogia
apropriada ao ambiente real e às condições sociais dos indivíduos. A própria Hor-
tência em entrevista revela sua estratégia:
Eu busco o conhecimento da situação, vou para o campo para conhecer o que
está acontecendo, tanto do ponto de vista das pessoas que estão sendo atacadas
pela doença, quanto por toda a condição ambiental que está favorecendo a
transmissão. Começo sempre por aí (DINIZ, 2007, p. 180).

Diniz (2007) atribui a Hortência o início de uma mudança no pensamento


da educação em saúde, rumo a uma teoria com métodos mais apropriados, calcado
na necessidade do indivíduo e nas suas particularidades, para com isso viabilizar
sua participação que seria de extrema importância para o processo de transforma-
ção. Diniz atribui à Hortência uma importância no âmbito da educação em saúde,
comparada à de Paulo Freire.
No auge do período militar, especialmente a partir de 1967, as práticas de edu-
cação voltadas para a saúde assumiram, de forma mais consensual, a denominação
educação em saúde. As equipes de educação em saúde passaram a ser constituídas
pelos diversos profissionais de saúde e não só por educadores específicos.
Nas décadas seguintes, as ações de educação em saúde passaram a ser estrutu-
radas nas diversas Secretarias Estaduais de Saúde e mantinham forte influência das
ações desenvolvidas pelo SESP (Melo, 1984).
Em quase 50 anos de ação direta do Estado nas políticas de saúde, as doenças
infecciosas, caracterizadas como de áreas subdesenvolvidas, foram diminuindo acen-
tuadamente, aumentando significativamente as ditas doenças crônico-degenerativas.
Acreditava-se que, com o desenvolvimento econômico, os óbitos provocados por
doenças cardiovasculares, neoplasias e por causas externas passariam a ser motivos
de preocupação dos serviços (transição epidemiológica), uma vez que as doenças
básicas pareciam estar sob controle, muito também pelo aumento da rede de serviços
oferecidos à população entre as décadas de 1960 a 1980.
Desse ponto em diante, a educação em saúde passa estar no contexto da pro-
moção em saúde, onde na qual é parte fundamental para desenvolver nas pessoas
340 TRANSCICLOPÉDIA EM DIFUSÃO DO CONHECIMENTO

habilidades de autocuidado, prevenção de doenças e mudança de estilo de vida,


principalmente no contexto do atual perfil epidemiológico da população, onde as
doenças que mais matam hoje são que se relacionam com estilo de vida.

ESCOPO, CAMPO CIENTÍFICO E METODOLOGIAS


A educação em saúde ainda hoje é vista como um campo multifacetado, onde
convergem em sua direção ideias da educação e da saúde, entretanto, é notório que
ambas concebem visões de mundo diferenciadas e suas posições político-filosóficas
sobre a sociedade e o homem nem sempre se coadunam (SHALL, 1999).
São extremamente atuais as discussões sobre seu escopo, objetivo e estratégias.
Apresenta-se ainda como área específica, em processo de construção. Ainda é pleito
dos especialistas sua ampliação e incorporação nos planejamentos de promoção de
saúde da população, onde suas ações possam, lado a lado com outras ações, promover
melhoria na qualidade de vida para população brasileira (SHALL, 1999).
Hoje talvez haja uma distinção mais clara entre ações de informação, comunica-
ção e educação em saúde. Apesar de quase sempre serem instrumentos utilizados em
conjunto com os programas de educação em saúde, a informação e comunicação em
saúde não constitui em si um processo educativo (ROCHA, 2003). Como durante
muito tempo essas ações ficaram no âmbito da propaganda, ainda hoje há o debate
sobre o impacto da transmissão da informação na mudança de comportamento dos
indivíduos (GAZZINELI; REIS; PENNA, 2005).
Discute-se, a partir de avanços nos estudos de antropologia da saúde e repre-
sentação da doença, o caráter particular dos indivíduos na vivência de uma doença
ou agravo à saúde, onde se começa a pensar nos fatores internos aos indivíduos, sua
forma de ver o mundo, suas experiências de vida, sua personalidade, sua experiência
afetiva e psicológica como determinantes fatores externos causadores de doenças.
Tais aspectos relativizam as causas externas, os inimigos da saúde: o cigarro, o
álcool, higiene etc.
Assim, se pensa hoje em uma educação em saúde que não pode basear-se somente
em transmissão de conhecimentos e combate ao “inimigo”, e sim uma educação em
saúde integradora, que possibilite agir bilateralmente e com a participação funda-
mental dos indivíduos, sem modelos normativos; e sim um processo de construção
conjunto com a população rumo à promoção integral da saúde.
As ações de saúde hoje devem enfatizar a responsabilidade individual para uma
vida saudável. Os indivíduos, conscientes de sua responsabilidade de cidadão sau-
TRANSCICLOPÉDIA EM DIFUSÃO DO CONHECIMENTO 341

dável, devem ser capazes de adotar estratégias de prevenção de doenças priorizando


a mudança de comportamento. Esse estágio desejado, no contexto da promoção
em saúde, só será alcançado com estratégias adequadas de educação em saúde, que
deve levar em consideração, a experiência, recursos, nível de consciência, valores e
crenças das populações-alvo.

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38. Educomunicação

Amilton Alves de Souza

Para Soares (2002), a Educomunicação é compreendida como — nova ciência.


Na verdade, Educomunicação resulta do entrelaçamento de elementos tanto do campo
da educação quanto da comunicação, a partir do fazer experienciado de forma signi-
ficativa no âmbito prático. O autor nos permite entender esse primado ao definir a
Educomunicação como um conjunto de ações que possibilitam o fortalecimento dos
ecossistemas comunicativos (Soares, 2002). Não há como não entender esse processo
como uma contribuição dos meios tecnológicos, na difusão do conhecimento, por
meio de espaços de produção de saberes educativos inovadores, levando-se em conta
não só as contribuições, mas as convergências dos saberes.
Corroboram-se aqui as afirmações de Barbero (1999) ao afirmar que as TIC e
suas convergências estão pautadas no âmbito da aquisição dos saberes e produções
tecnológicas acessíveis aos sujeitos contemporâneos, ajudando-nos Barbero a com-
preende que os ecossistemas comunicativos são fundantes como pilar na relação
dialógica e difusora da Educação/Comunicação.
A Educomunicação, nesse viés, possibilita o acesso ao exercício de práticas
que promovem a cidadania e, por consequência, à comunicação. Para Freire (1993),
a concepção de educação precisa ser experienciada com práticas que promovam a
liberdade e a emancipação dos sujeitos. Nesse sentido, rompe com a lógica da trans-
ferência de conhecimento e fomenta as possibilidades de produção do conhecimento.
Essa experiência de educação e comunicação rompe com os modelos de educação
que promovem o pensamento lógico e a transmissão de conteúdo, na comunicação da
mesma forma, pois há estímulo ao pensamento fragmentado e da cultura aleatória,
não se podendo abrir mão de uma epistemologia educomunicativa que possibilite ser
experienciada em suas dimensões da natureza, cultura e da política ao possibilitar
outras experiências dos mais diversos contextos sociais e construir uma nova forma
de pensar e ressignificar a educação e a comunicação.
Nessa perspectiva, ressaltamos a necessidade uma experimentação mais dinâ-
mica e aprofundada da cultura para que o fazer educativo atenda as demandas da
sociedade atual, pois, segundo Canclini (2005), é fundamental que o fazer educativo
e as suas instituições possam criar espaços de confrontos com a produção cultural,
o mercado de consumo e as instituições de comunicação para encontrarmos outras
TRANSCICLOPÉDIA EM DIFUSÃO DO CONHECIMENTO 345

possibilidades de relação e interação com a sociedade numa construção de experi-


ências de educação e a comunicação mais significativas, dialógicas e construtoras
de novas experiências.
Será necessário que, em um estudo mais aprofundado,se reflita sobre os postula-
dos de Canclini (2005) sobre a produção cultural e o consumo como produtores dos
conflitos nos modelos de educação e comunicação da perspectiva sociointeracionista.
Retomando a compreensão de sentidos e significados sobre a educação e co-
municação, é salutar entender que “[...] a comunicação não é eficaz se não inclui
também interações de colaboração e transação entre uns e outros” (CANCLINI,
2005, p. 60). É importante reafirmar que não há ingenuidade, mas, colaborando
com o autor, se a comunicação se dá pelos menos em dois princípios-base: interação e
colaboração, o seu fazer só se constitui por meio de processos libertadores, dialógicos
e experienciados consigo mesmo e com o outro.
Não há uma sequência determinista de que o emissor manda a mensagem e o
receptor só a recebe nos princípios-base que defendemos aqui, pois essa fase da comu-
nicação não tem espaço para existir. Defendemos a não hierarquização, verticalidade,
sequência determinista etc. do fazer comunicativo, onde emissor e receptor assumam
na comunicação o contexto um do outro, tanto no acesso e construção quanto na
disseminação da mensagem, pois o diálogo assume experiências desse tipo onde
Ser dialógico, para o humanismo verdadeiro, não é dizer-se descomprometi-
damente dialógico; é vivenciar o diálogo. Ser dialógico é não invadir, é não
manipular, é não sloganizar. Ser dialógico é empenhar-se na transformação
constante da realidade. Esta é a razão pela qual, sendo o diálogo o conteúdo
da forma de ser própria à existência humana, está excluído de toda relação na
qual alguns homens sejam transformados em ‘seres para outro’ por homens
que são falsos ‘seres para si’. É que o diálogo não pode travar-se numa relação
antagônica. O diálogo é o encontro amoroso dos homens que, mediatizados
pelo mundo, o ‘pronunciam’, isto é, o transformam, e, transformando-o, o
humanizam para a humanização de todos (FREIRE, 1975, p. 43).

Fazer-se no ato comunicativo com princípios educativos requer dos sujeitos


papéis que expressem o diálogo como um dos princípios norteadores, a fim de
experimentar um outro saber que reúne dois eixos: educação e comunicação, nesse
caso, a Educomunicação. Essa é a junção instituída dos dois eixos. Vale salientar
que essa junção é um “[...] fenômeno cultural emergente. É, na verdade, a reflexão
acadêmica, metodologicamente conduzida [...]”, como ressalta Soares (2000, p. 27).
A educomunicação é uma epistemologia reconhecida e legitimada não só
pela a academia, mas por uma boa parte dos educadores e dos comunicadores que
346 TRANSCICLOPÉDIA EM DIFUSÃO DO CONHECIMENTO

contribuem nessa nova epistemologia com os seus saberes e interfaces. É importante


apresentar qual é a nossa compreensão sobre saberes e interfaces, é o que faremos
a seguir.

REFERÊNCIAS
CANCLINI, Nestor Garcia. Consumidores e cidadãos. 5.ed., Rio de Janeiro:
Editora UFRJ, 2005.

FREIRE, Paulo. Extensão ou Comunicação? Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1975.

FREIRE, Paulo. Educação e mudança. 12.ed., São Paulo: Paz e Terra. 1993.

MARTIN-BARBERO, Jesus. Dos meios às mediações: comunicação, cultura


e hegemonia. 2.ed., Rio de Janeiro: Editora da UFRJ, 2003.

SOARES, I. O. Educomunicação, um campo de mediações. Revista


Comunicação & Educação. São Paulo, v. VII, n. 19, p. 12-24, 2000.

SOARES, I. O. Gestão comunicativa e educação: caminhos da educomunicação.


In: Revista Comunicação & Educação, n° 21, p. 16-25, março/2002.
39. Educomunicação: Revolução molecular

Marcílio Rocha-Ramos

A Educomunicação está na emergência de uma nova poética (chamemos assim)


da produção de conhecimento, de ativismos e de afetações com a radicalidade das
potências tecnológicas da sociedade-rede, fora dos padrões modulares. Não é apenas
uma interface, uma junção de educação+comunicação como se projeta no senso
comum. De fato, sua ação é ato em contracorrente em relação à cultura púlpito, à
representação, aos ciclos de repetição alienantes, consolidados em identidades-gesso.
E por é uma descontinuidade também em relação aos métodos e instrumentos trans-
missivos da educação e da comunicação ao descentrar a ação e promover processos
de subjetivação em grupos como sua lógica produtiva cujo motor é a autoria coletiva.
A educomunicação — se abrevia Educom — se propaga diante de um con-
texto novo de hegemonia da imaterialidade do trabalho (general intellect) no qual a
produção não mais atomizada ocorre pela a cooperação social — traduzida na vida
em rede, no conhecimento como uma força produtiva, no comando de máquinas1.
Como assinalam Albagli e Maciel (2012, p. 41),
[...] as redes sociotécnicas, potencializadas pelas plataformas digitais, constituem,
nesse cenário, novos espaços e tecnologias de poder, tanto da perspectiva do
controle quanto da liberdade.

É na potência-liberdade que a educomunicação se localiza para superação dos


modelos e modelagens que aprisionam e/ou delimitam a criação como uma “senhora”
dos tecimentos da complexidade, do fazer na pele das coisas, e do projetar pelo seu fa-
zimento um antipoder.
Os seres-educom produzem uma tecelagem agenciando as intelectualidade de
massa, saberes e práticas de um corpo sem órgãos, um general intellect, um saber
como força produtiva que se incorpora ao corpo do que Negri chama de multidão
protagonizando ações-rede, revolução-rede, formação-rede, produzindo em suas
intensidades subjetivações permanentes:
1
Essa nova composição o antropólogo Claude Lévi-Strauss a bem delineou ao definir uma mudan-
ça paradigmática como sendo o fato que passamos de uma situação na qual se transformavam os
homens em máquina para uma em que são as máquinas que são transformadas em homens (Cf.
COCO, 2012, p. 22).
348 TRANSCICLOPÉDIA EM DIFUSÃO DO CONHECIMENTO

[...] a cooperação dos trabalhos cognitivos, o estender-se do saber e a im-


portância da ciência nos processos produtivos, tudo isso determina novas
condições materiais que devem ser consideradas positivamente na perspectiva
da transformação (Negri, 2003, p. 45).

Esta tecelagem pode ocorrer num primeiro momento do ato educom em


ecossistemas, mas sua projeção ultrapassa espaços e lugares, redes dos desejos que se
denomina revolução molecular — como veremos.
Seria a Educomunicação um novo paradigma? É cativante situá-la na dimensão
de um vir a ser paradigmático para enunciar que não se trata de um método, uma
teoria da educação ou da comunicação, um fazer-verniz com rádio-jornal-vídeo-arte
em territórios formativos, desconectado da superação dos sistemas centralizadores,
autorreprodutivos, opressivos. A educom ainda não tem um modelo, um sistema
de representação e interpretação que forneça problemas e soluções modelares como
preconiza Thomaz Khun (2011) ao conceitualizar um paradigma.
Na teoria de Khun, um paradigma é o que os membros de uma comunidade
partilham e, inversamente, em uma comunidade científica consiste em seres que
partilham um paradigma. Um paradigma se estabelece quando os defensores do
paradigma antigo perdem a confiança e surge a necessidade de alternativas. Para que
se chegue a esse grau de radicalidade, é necessário: a) alto grau de insatisfação com o
paradigma vigente (como ocorre nas escolas com o paradigma instrucional); b) uma
visão clara do novo paradigma (ou seja, que ofereça teorias e métodos e instrumentos
de ação); c) que faça questões e ofereça respostas claras (formação, conhecimento,
redes de afetação); e d) se apresente fértil para definir um campo de investigação.
O novo paradigma no qual situamos a educomunicação é o da hegemonia do
trabalho imaterial em cujo corpo se propaga a potência de um agir-educom. De fato,
a educomunicação poderá ficar sempre nessa fase “pré-paradigmática” como uma
modelagem sem modelos — redes de singularidades — nas quais teorias, métodos,
instrumentos estão em experimentação e convencimento num contexto sempre
renovado de amplas divergências sobre o como, o quê, os princípios, as regras, os
valores. Nesse tecido de significações, a Educom emerge como uma contracorrente,
nas “asas” de um saber-rede, potencializada pela sociedade-rede, nas quais os seres
educom exercem coletivamente seu poder da vida, contornando e/ou confrontando
o ser Narciso do espelho, da moldura, dos gessos.
A educom, como uma dimensão-nova-emergente das desgastadas modelagens-
-púlpitos, dos guardiões da cultura, dos senhores dos anéis, tem na linguagem um
paradigma. Mas situá-la como um “paradigma” ou “em fase pré-paradigmática” não
TRANSCICLOPÉDIA EM DIFUSÃO DO CONHECIMENTO 349

deixa de ser contraditório com a poética-educom porque os horizontes do conheci-


mento que se configuram nas arquiteturas-redes dos quais provêm as condições de
uma radicalidade educomunicativa se enunciam como um fazer não-paradigmáticos,
pós-sistêmicos — e como um ser da diferença. Para rascunhagem da sua definição,
vamos considerar três dimensões educomunicativas: i) como interface; ii) como
revolução molecular; e iii) como ação para a liberdade.
Essas dimensões estão conectadas com o conceito de inovação — mas não
se trata de um hightec; justo o seu contrário: inovação como um movimento da
complexidade social, de superação de ciclos de repetições alienantes. Em todos os
momentos do ato-educom, o que os definem são ações em autorias coletivas como
contracorrente, corrosão, rompimentos com as formas de dominação que são reali-
zadas por meio da atomização dos indivíduos — nessas esferas a educom está mais
detalhadamente conceitualizada na tese A blogosfera radical: ação educomunicativa
dos blogueiros sujos2 sobre o protagonismo em rede, o combate à mídia mainstream,
devir-guerrilhas.

1. INTERFACE
Nesta fase, a Educom é percebida circunscrita a uma implicada relação inter-
disciplinar entre educação e comunicação. As pesquisas nessa perspectiva costumam
atribuir a Mario Kaplún, educador argentino, uma suposta “paternidade” do conceito
educomunicação por tê-lo usado em suas obras sobre educação para a comunicação3.
Kaplún começou a perceber novas oportunidades formativas e transformadoras com
a interface com rádio. No seu livro El Comunicador Popular (1985), ele chamou de
educomunicador o radialista no ativismo não apenas informativo, mas no ativismo
formativo, agregador, produzindo uma educação não bancária — quando também
revela as referências em Paulo Freire. Nessa mesma interface entre educação e comu-
nicação, bem antes de Kaplún, o conceito já pulsava nas práticas de Celestin Freinet
e Janusz Korczak — eles articulavam a produção da educação com comunicação,
jornal, aula-passeio, produção de informação em diários escolares.
No início do século XX, a comunicação enunciava um poder educativo que só
se radicalizou e se tornou hegemônico a partir dos meados daquele século, quando
a comunicação passa a assumir um poder de comando na produção da vida social.

2
Ver Rocha-ramos, Marcílio. A tese está disponível no repositório da Universidade Federal da
Bahia, neste endereço. <https://repositorio.ufba.br/ri/handle/ri/17750>. Acesso em: 11 dez. 2018.
3
Em uma de suas publicações — Una Pedagogia de la Comunicación (1998) — o autor utiliza este
neologismo conceitualizando a educomunicação em torno da comunicação.
350 TRANSCICLOPÉDIA EM DIFUSÃO DO CONHECIMENTO

Ressalte-se também as proposições apresentadas no início dos anos 1970 por Hans
Magnus Enzensberger projetando as novas tecnologias de informações como má-
quinas de guerras para mobilizar, conscientizar e um agir social amplo.
Com efeito, ele ressalta que
[...] pela primeira vez na história, as mídias tornam possível a participação
em massa de um processo produtivo social e socializado, cujos meios práticos
encontram-se nas mãos das próprias massas. (Enzensberger, 2003, p. 16).

Enzensberger já visualizava a potência dos meios ao perceber que cada aparelho,


além de receptor, é também um emissor potencial — muitos anos antes do celular.
O ato educom seria botar água na fervura...
Logo que este poder tenha produzido “redes” para se conectar com a educação
parece ser uma consequência da socialização das tecnologias que viria a ocorrer
fortemente a partir dos anos 1980. Daí porque é sempre questionável apontar pai,
mãe ou o que possa parecer sobre a emergência dos fenômenos socais — a ideia de
aquecer o oxigênio e hidrogênio com o fogo remonta a, digamos, muitas experi-
mentações e condições de difícil descrição... Numa busca por uma caracterização
do fazer educomunicativo, Soares (2011a, 2011b) localiza a educomunicação como
uma nova área de conhecimento e campo de estudo a partir da relação educação/
comunicação por meio do uso e recursos de processos tecnológicos. Assim, a educo-
municação produz processos horizontais e ações transversais em “conjuntos” como
elementos para participação, interação e criação. O conceito educom, para Soares,
está junto de outro conceito que passa a ser a máquina produtiva dos processos
educomunicativos na fase interface — o ecossistema. Como interface, a educomu-
nicação se projeta a partir de:

1.1 Conjunto de processos horizontais


O ato educom estabelece a quebra das relações de emissão-recepção. Soares
a define como conjunto de processos que promovem a formação de cidadãos par-
ticipativos política e socialmente, que interagem na sociedade da informação na
condição de emissores e não apenas consumidores de mensagens, garantindo assim
seu direito à comunicação.
• Nessa conceitualização, os processos educomunicativos são promotores de
espaços dialógicos horizontais e “desconstrutores das relações de poder”,
proporcionando acesso à produção de comunicação, ultrapassando os gue-
tos das existências excluídas com amplitudes “nos âmbitos local e global”.
TRANSCICLOPÉDIA EM DIFUSÃO DO CONHECIMENTO 351

1.2 Conjunto de ações transversais em ecossistemas abertos


Naturalmente, o ato educom trabalha também com o conhecimento organizado
e, portanto, a transversalidade está na sua ação
[...] como um conjunto de ações voltadas ao planejamento e implementa-
ção de práticas destinadas a criar e desenvolver ecossistemas comunicativos
abertos e criativos em espaços educativos, garantindo, desta forma, crescentes
possibilidades de expressão a todos os membros das comunidades educativas.
(Soares, 2011a).

• A arte educom é de buscar conectar-se com a totalidade do vivido e do


vivente. Gallefi (2009, p. 14) aborda o conceito de totalidade vivente
como uma cor-relacão com o corpo e a mente, o interior e o exterior, o
subjetivo e o objetivo. Nos processos educomunicativos, consideramos
que tudo que é ocorre como uma produção social e vai para um depois,
num fazer-mundo.

1.3 Criação em ecossistema


No conceito de Soares, a gestão é o “motor” da produção educomunicativa e os
ecossistemas, seu território. O ecossistema é ambiente das horizontalidades, espaço
aberto para comunidade interagir, participar e acessar recursos tecnológicos para
criação e difusão do conhecimento. Nos ecossistemas, o processo educomunicativo
visa melhorar o coeficiente expressivo e comunicativo das ações educativas e a co-
municação é realizada para socializar e produzir consensos.
• Podemos afirmar que existe o ecossistema comunicativo, na relação emissão-
-recepção e o ecossistema educomunicativo, território de saberes e práticas
nos quais a autoria coletiva pulsa como dispositivo do fazer. O ecossistema
educomunicativo quebra as relações hierarquizadas, conservadoras, uma
vez que, na sua efervescência, conhecimento e vivência, expressão e pen-
samento, ocorrem sem as amarras de conceitos preestabelecidos.
O agenciamento do conceito “ecossistema” nos processos educomunicativos vai
proporcionar uma previsão para a organização do fazer-educom, substantivando esse
novo campo de ação e pesquisa com métodos e teorias construtivistas — as pessoas
envolvidas participam ativamente das construções para aprendizagem, interagindo
diretamente com o meio em que está inserida. São nas efervescências dos ecossistemas
que se produzem roteiragens para realizações multimidiáticas com as “coletivas-e-
352 TRANSCICLOPÉDIA EM DIFUSÃO DO CONHECIMENTO

ducom” por meio da i) roda dialógica (ecossistemas de subjetivações, produção de


palavras-mídias, conceitos); da ii) pesquisa focada (processo de conceitualização) e
da autoria coletiva (realizações multimidiáticas)4.
Portanto, a Educom em fase de interface tem por objetivo ampliar o coeficiente
comunicativo das atividades formativas, produzir encontros autorais e enunciações
para agenciamentos em redes. É quando ocorre mais especificamente o desenvol-
vimento de habilidades de expressão e de manejo das tecnologias informacionais
— como “ensaio” para ações mais amplas. A educom como interface “planta” um
campo para uma outra possibilidade que, de fato, já ocorre, a revolução molecular
nas artérias do sistema, movimento de agenciamento em grupo, contracorrente, que
podemos exemplificar nas ações da Mídia Ninja.

2. REVOLUÇÃO MOLECULAR
Revolução molecular é um conceito articulado por Guattari (1985) como uma
rede de desejos em ação, em contracorrentes às grandes produções de subjetividades
realizadas para justificar o sistema do capital e reproduzi-lo ao infinito em promessas
capciosas de desejo de consumo, desejo de crescimento pessoal, desejo de autossatisfa-
ção. A revolução molecular se depara principalmente com a produção em larga escala
desses desejos articulados pelos meios de comunicação — e por outras instâncias de
ideologias como a igreja, escola, família —, produzindo novos conceitos, meios e
visões de mundo para não nos deixarmos capturar. Na ação educom é a construção
de redes de resistência, invenção e formas de agir — portanto, laços de afetações,
correntes e meios multimidiáticos — lugares de emergência de construção de um
antipoder5 que o percebemos na fase em que os processos educom se tornam uma
multiplicidade insurrecta para a liberdade.
O motor do conceito nessa fase é, portanto, a criação, o rompimento dos
ciclos de repetições alienantes, numa radicalidade em ebulição... As ações com a
chamada Mídia Ninja — redes não homogêneas de singularização da cidadania sobre
as sangrias desatadas dos espaços e não-lugares que sufocam e oprimem — podem
exemplificar concretamente o que já está em emergência. O mesmo podemos dizer
das redes da blogosfera radical. Não é mais um projeto, uma interface, é um projétil,

4
Ver o verbete “Coletivas Educom”. Nele tratamos de meios de ação educomunicativos com a roda
dialógica, pesquisa focada e autoria coletiva.
5
As teorias de Negri (2003) sobre a construção do antipoder como momento de sujeição podem
contribuir para projeção da formação educomunicativa, agenciando o conceito de cooperação
social e general intellect como dispositivo da produção educom como revolução molecular.
TRANSCICLOPÉDIA EM DIFUSÃO DO CONHECIMENTO 353

um movimento, uma tecelagem a partir dos desejos que se comunizam em redes de


práticas e saberes em confronto com os grandes processos de subjetivação. Diante
do grande império da reprodução, as revoluções moleculares produzem resistência,
releituras críticas, enunciações numa produção permanente de redes de singulari-
zação, desconstrução e empoderamento.

2.1 Produção de redes de singularização


Produzir redes de singularização é também desmistificar as representações. Como
ato fora dos padrões modulares, a ação educom produz a liberação de fluxos de
desejos em contracorrente ao marketing-selfie do capital e da tradição conservadora.
Os processos de singularização ocorrem justamente porque as pessoas dão vazão
ao desejo e constroem identidades coletivas que depois vão avançar para processos
de transformação mais amplos por meio de agenciamento coletivo, como assinala
Guattari (2005) em relação às redes de revoluções moleculares. As redes de produ-
ção, as mídias, os conteúdos virulentos, os desfazimentos dos mantras, verdades,
coisas que vão de encontro as redes mainstream, são formas novas de singulariza-
ção-educom, como se assinala na ação educomunicativa dos blogueiros sujos (cf.
Rocha-ramos, 2014).
A blogosfera radical formula utopias e as socializa nas suas pautas cotidianas
por meio de uma nova relação do Estado com o cidadão e suas instâncias, a liber-
dade e referências como artífice da produção da diferença sobre identidades-gesso, a
partir de posts aparentemente particulares, e que, de fato, repercute o social e dele se
alimenta e se reproduz diante do injusto, do farsante, do reprodutor das modelagens.
Os processos de singularização apontam para transformação das relações sociais na
“pele” das coisas, no dia adia, no fato concreto, produzindo linhas de novos encon-
tros contra as modelizações alienadoras. A ação educom cumpre justamente esta
tessitura. É espaço que produz subjetividade e a compartilha para as subjetivações
das audiências ativas6 que transitam para outras redes online e presenciais — produz
rompimentos, afetações nas quais o post (ou seja, o conteúdo em rede) é o “vírus”
dos afetos.
• Rompimentos
O “programa” da ação educom não é juntar indivíduos isolados, mas construir
um discurso das singularidades, como uma potência do rompimento do discurso
mainstream com a ativação de coletivos. A blogosfera radical como ato educom de

6
Ver verbete Audiência ativa nesta edição.
354 TRANSCICLOPÉDIA EM DIFUSÃO DO CONHECIMENTO

revolução molecular está em amplo processo de criação de códigos, simbologias,


linguagens. Como assinalamos, o que é educomunicativo nesses processos é sempre
um fazer múltiplo, um tecimento coletivo, uma junção de forças humanas que nos
remetem às técnicas, à produção de pequenos mundos.
• Afetos
No ato educom como revolução molecular há uma tendência a extremos coleti-
vos: a linguagem deixa de ser representativa para tender para os extremos ou limites,
tanto a partir mesmo da sua própria gramática — uma antigramática — como para
o que busca seduzir: as corrosões com as audiências ativas, sedentas de participação.
Na blogosfera radical, o extremo como ser das audiências ativas invade os espaços,
desdiz o discurso mainstream, produz corpos de bandos em ação, seres e máquinas
‘trollando’ o poder mainstream.
• Posts
Os posts educom são os “fios” das redes de singularidades. Criam e deixam
pegadas para novos encontros. Um texto que remete para outro texto é um texto
líquido que não se amarra mais nas velhas estruturas emissão/recepção. O revolu-
cionário não é o “fogo” em si da sua enunciação, a viagem para a terra prometida,
mas a construção, o adubar as passagens para territórios sem terra. Os posts correm
nas redes impulsionados por máquinas das redes e das suas audiências ativas — in-
definida, evanescente, acontecimental, invasiva. Nas guerrilhas educom cada ser é
uma máquina que compartilha, atina, projeta e intervém.

2.2 Leitura crítica


O ato educomunicativo iguala a leitura crítica à própria produção de mídia crítica,
transformadora. Leitura e produção como ação rizomática. Isso, efetivamente, é o que
se pode chamar de condição pós-moderna: autorias coletivas, bandos em ação como
seres da crítica e da construção desconstrução. A leitura crítica — que nas revoluções
moleculares é também uma coletiva — é arte de produção de subjetividade, corrosão
dos mantras “sagrados” referenciados em suas fontes, meios e cálculos. Nela, não há
um mestre do discurso, mas da ação, da artistagem, das roteiragens para discursos
multimaquínico — ligações que levam à desmontagem. Suas tocas são territórios
de uma arte, uma artimanha e, como assinalam Deleuze e Guattari (2003, p. 138),
fazem-se “[...] uma nova engrenagem ao lado da engrenagem precedente”.
Na arte educomunicativa, a leitura crítica desvenda as funções das linguagens
como dispositivo da função-poder: a manchete que destaca e omite, a foto que
TRANSCICLOPÉDIA EM DIFUSÃO DO CONHECIMENTO 355

“representa” o objeto, a fala que “confirma” a veracidade, os números que mate-


matizam os “fatos” produzidos. Como arte do positivismo no jornalismo, vende-se
subliminarmente o ideal de subordinação da imaginação à observação em nome da
“realidade”, “certeza”, “precisão”. A arte da leitura crítica é pensar mídia ao realizar
mídia, pensar o novo ao realizar o novo, fazer o projeto já como um projétil em mo-
vimento. Com efeito, ler é desconstruir textos, espaços em brancos com dentes bem
primitivos, é destroçar vísceras, mensagens e objetivos pelos meios e pelos flancos.
Baccega (2011) oferece um conceito por demais significativo para análise
crítica das mídias — o de mundo editado. A partir do mundo das mídias se re-
constrói os sentidos do mundo. Um discurso de desconstrução e esclarecimento,
no qual destaca ressemantização dos sentidos, interpretação e definição do lugar
das tecnologias como uma impregnação da trama cultural para entender as relações
com os meios como o lugar onde os sentidos se formam e se desviam, emergem
e submergem. Com uma diversidade de linguagens, os processos de discussão da
leitura da mídia são encenados aos mais diferentes públicos como arte e artista-
gem das disputas da opinião. O ato educom avança pelas brechas igual à própria
guerrilha. Em suma, a leitura crítica ocorre como agenciamento, tecelagem, edição
sobre atos do cotidiano.
• Agenciamentos first mover
Todo ser educom é first mover, ou seja, aciona-se por si mesmo. A pauta é
produzida em cima dos acontecimentos. O fato de ter que fazê-lo assim exige uma
sintonia política com o contexto para revelar manobra política, articulações “sub-
terrâneas”. O agenciamento ocorre na construção de uma região, de conjunções,
coisas e seres que produzem desejos. A ação educom em revolução molecular agencia
construindo desejos como um construtivismo, uma prática realizadora de construção
de “conjuntos”, conjunções.
• Reedição
Os meios de comunicação tratam de esconder ou dissimular suas ações, apre-
sentando-se como esfera da pureza de defesa do cidadão e produção de cidadania
— haja vista as recorrências ao discurso de ‘liberdade de imprensa’ como slogan
dissimulador de liberdade de empresa e capital.
[...] É necessário ir do mundo editado à construção do mundo […], o mundo
é editado, e assim ele chega a todos nós; sua edição obedece a interesses de
diferentes tipos, sobretudo econômicos. Editar é construir uma realidade outra
(Baccega 2011, p. 32).
356 TRANSCICLOPÉDIA EM DIFUSÃO DO CONHECIMENTO

• Tecimentos
A ação educom se empenha em produzir sobre uma arte bricolor de montagem. A
tarefa é atacar a complexidade dela tirando seus fluxos, revelando os artefatos invisíveis
de poder e cultura e perceber sua fluência na prática. A arte educomunicativa é princi-
palmente atos de bricolagens corrosivos ao status quo. Fazer, tecer, produzir e corroer
o pronto/acabado para colocar o que se move lento em movimento. Na produção de
agenciamentos, as experimentações avançam para ações coletivas e subliminares com
tematizações a partir dos contextos, das conotações, dos implícitos (Guattari, 1987).

2.3 Empoderamentos
O empoderamento é a construção de “asas” entre grupos. É a potência do voo.
Do deslocamento, de um refazer-se para existir e resistir. A revolução molecular produz
empoderamento abrindo territórios novos sobre corpos sociais contaminado pelo
discurso mainstream. Como uma máquina social, o fazer educomunicativo agencia
as relações entre corpos — máquinas técnicas, máquinas humanas, ­máquinas-robô,
produzindo um estado de misturas. Essas misturas ocorrem ao mesmo tempo com
seus enunciados, suas expressões coletivas desenvolvendo tecnologias novas de
guerrilhas. A participação ativa, as formas inovadoras educomunicativas, a rascu-
nhagem de soluções, os desfazimentos, as exposições e um praticismo mesmo entre
máquinas, tudo incorre em novas formas de empoderamento em forma de retroa-
ção/afirmação/solidarização/esclarecimento e cultivo dos valores. Nessas guerras de
guerrilhas afluem, então, outros valores, tais como a alteridade, a conscientização
política, desejos insurrectos.
Com efeito, o ativismo educomunicativo ganha propulsão além das relações
de interface quando produz ações concretas de intervenção, questionamento e cor-
rosão dos ciclos de repetição das semióticas dominantes. Como assinalam Guattari
e Rolnik (2011, p. 55), essa criação “[...] consiste em produzir as condições não só
de uma vida coletiva, mas também da encarnação da vida para si próprio, tanto no
campo material quanto no campo subjetivo”. O ‘vírus’ se infesta com a contestação
do sistema de representação política, o questionamento da vida cotidiana, as reações
de recusa ao trabalho em sua forma atual. Em suma, o ato educomunicativo produz
o empoderamento dos grupos e grupelhos em jogo “camaleão”, criando mutações na
subjetividade consciente e inconsciente dos indivíduos e dos grupos sociais.
Uma prática política que persiga a subversão da subjetividade de modo a permitir
um agenciamento de singularidades desejantes deve investir o próprio coração da
TRANSCICLOPÉDIA EM DIFUSÃO DO CONHECIMENTO 357

subjetividade dominante, produzindo um jogo que a revela, ao invés de denunciá-la.


Isso quer dizer que, ao invés de pretendermos a liberdade (noção indissoluvelmente
ligada à de consciência), temos de retomar o espaço da farsa, produzindo, inventando
subjetividades delirantes que, num embate com a subjetividade capitalística, a façam
desmoronar (Guattari e Rolnik, 2011, p. 39).
O tecimento educom ultrapassando a fase de interface ocorre sobre o presen-
te, as ‘externalidades’ de um mundo em que todos estão dentro em agenciamentos
de acoplamentos heterogêneos. A ação educom tira partido nas brechas do que
Guattari e Rolnik chamam de “semióticas dominantes” em relação à produção de
subjetividades/singularidades perante o reino da reprodução e opressão. O empo-
deramento ocorre por redes desejantes em ações de alteridade com as micropolíticas
em processos de diferenciação agenciados por audiências ativas — agora, também,
potenciais manipuladoras de forças propulsoras, numa perspectiva socialista, socia-
lizante, multiplicadora.
• Alteridade
Os processos de empoderamento singulariza a ação e a relaciona com a interação
em grupo e a interdependência com cada um dos seus componentes. O ato educom
produz encorajamentos coletivos, “recupera” autores, cantores, poetas. Produz nar-
rativas pertencentes à vida. Produz e reproduz contraditórios, mapas comparativos,
simulações e mobiliza também para produção de novas mídias — cordel, repentes,
hinos e vídeos de declarações, de reconhecimento, de solidariedade e vínculos.
• Ação na micropolítica
A micropolítica não se situa no nível da representação, e sim no nível da produ-
ção de subjetividade. A ação micropolítica não diz respeito a um olhar microscópico
sobre determinados termos do social — mas a uma percepção do poder com seus
enraizamentos rizomáticos no cotidiano. A micropolítica está nos interstícios dos
choques que se observam entre as tentativas de controle social por meio da produção
de subjetividade em escala planetária e dos processos de diferenciação como fatores
de resistência.
• Audiências ativas
As audiências ativas são corpos de seres educomunicativos em rede. É um cor-
po de ação, multiplicação, vivência transitando em unidades móveis. Seus ativistas
utilizam máquinas portáteis na produção de mídias temáticas que pautam questões
sociais, política, ambiental, fazendo abordagem permanente entre o individual e o
358 TRANSCICLOPÉDIA EM DIFUSÃO DO CONHECIMENTO

coletivo, ativando coletivos. Essas audiências “pintam” novas cores sobre as cores
do camaleão (mídia mainstream). Não seria apropriado dizer que lá ocorre uma
“depuração”, mas, sim, um embate da multiplicidade, da diferença.

3. AÇÃO PARA A LIBERDADE


A educom como interface e revolução molecular são atos das redes de ação
formativa, afirmativa, enunciativas para a produção latente de um antipoder. En-
quanto as duas primeiras fases educom estão implicadas com a resistência (interface),
uma gestação coletiva de mudança (revolução molecular), no ato educom para a
liberdade, significa a produção da democracia absoluta, superação da representação
com protagonismo direto da multidão, desfazendo pelas radicalidades das multidões
as relações que aprisionam, oprimem e impõem. De onde vem essa potência? Da
condição mesma em que nos encontramos — de uma sociedade-rede, da produção
marcadamente cognitiva, do saber como algo cooperativo, que, por sua vez, tem
um corpo formado por indivíduos social-coletivo. É nessa “malha” que a educom
produz seu tecido e tecimento agora não mais circunscrito a ecossistemas.
Como assinala Negri (2003, p. 134), a substância do antipoder são as po-
tencialidades da vida (poder de invenção), pois, sendo o trabalho organizado em
formas comunicativas e linguísticas, e o saber e o fazer como produto da cooperação,
essa mesma produção depende sempre mais da unidade de conexões e de relações
que constituem o trabalho. Para Negri, não se trata de algo prefigurado, “[...] mas
é algo que vem formando-se de modo intempestivo e aleatório, mas nem por isso
menos efetivo”. Esse poder de invenção é o lugar da matéria-prima da educomu-
nicação na ação para a liberdade. Essa fase, portanto, podemos considerá-la como
um devir-educom, por expressar o movimento, a insurreição contra os mantras
capitais. Dessas condições só podemos rascunhá-lo como uma poética desejante,
uma contracorrente que encontrou seu rio e faz o movimento de superação das
margens que o sufocam.
• Devir Leminski
Recorremos ao poeta Leminski para enunciar o desmanche de mantras sacrali-
zados: o assalto por completo à objetividade, à imparcialidade, à neutralidade. Ino-
vação na própria criação. A ebulição que evoluiu por completo para um novo estado,
após a agitação das moléculas. Os sujeitos do enunciado e da enunciação “falam” e
se confundem numa polifonia de vozes. O devir Leminski como um campo social
para um movimento de autorias coletivas, uma contracorrente educomunicativa sem
TRANSCICLOPÉDIA EM DIFUSÃO DO CONHECIMENTO 359

uma pauta premeditamente dita, quebrando o convívio com todas as redundâncias


e os ciclos que alienam e se autorreproduzem.
• Devir autoria
O antipoder emerge nas autorias coletivas, tangentes periféricas como invenção da
multidão. O devir autorias coletivas expressa o poder da vida, no trabalho, na lingua-
gem, nos corpos. Retículas educomunicativas corrosivas: do aquecimento, à ebulição
e ao vapor. Em operação, uma batalha metalinguística autopoiética em link com as
infinitas linhas de frentes das máquinas revolucionárias. Um trânsito entre todas as
esferas — quebrando os guardiões tradicionais da cultura, do saber, da Casa-Grande.
Como assinalamos na arte dos blogueiros sujos, todo o exercício de superação requer
a arte de Penélope e Ariadne; a ciência de Ulisses, a coragem de Perseu.
• Devir comunização
A arte educom na ação para a liberdade é tecimento de intenso processo de
comunização. Negri (2002) assinala suas pegadas: fazer crescer o desejo subversivo
do comum, as multiplicidades das singularidades. Assim, a fertilidade está nas ações
dos desenlaces: nos processos ‘cupim’, nas ferrugens, nos movimentos que afrouxam,
corrompem e desfazem em comum. Como um ferro que se desfaz, a tradição solta seus
elétrons e abrem espaços para o oxigênio das guerrilhas. Enquanto o mainstream maquia
sua reprodução, produzindo golpes nas escalas do molar, as contracorrentes produzem
fluxos moleculares. Enxames do comum. Na vida mora o lugar do tecimento de um
antipoder. As ações da multidão nos enuncia que esse é um tecido educomunicativo.

REFERÊNCIAS (PARTICIPAÇÕES)
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democracia. In: Cocco, Giuseppe; ALBAGLI, Sarita (Org.). Revolução 2.0: e a
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BACCEGA, Maria Aparecida. Comunicação/educação e a construção de nova


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GALEFFI, Dante. O rigor nas pesquisas qualitativas: uma abordagem


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GUATTARI, Félix. Revolução Molecular: pulsações políticas do desejo. São


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2005. 169f. Dissertação (Mestrado em Educação). Faculdade de Educação da
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SOARES, Ismar de Oliveira. Educomunicação: o conceito, o profissional, a


aplicação: contribuições para a reforma do Ensino Médio. São Paulo: Paulinas, 2011a.

SOARES, Ismar de Oliveira. Educomunicação: um campo de mediações. In:


CITELLI, Adílson Odair; Costa, Maria Cristina Castilho. Educomunicação:
construindo uma nova área de conhecimento. São Paulo: Paulinas, 2011b.
40. Enfoque Ontossemiótico dos
Conhecimentos Matemáticos

Érica Correia da Silva

Entender a complexidade da natureza é um grande desafio. Buscar evidências


para nossa origem é árduo, mas
[...] à medida que novas descobertas das ciências surgem fica mais claro que
nossas verdadeiras origens não são apenas humanas ou meramente terrestres.
Elas estão necessariamente conectadas a causas ou teias mais amplas, de na-
tureza cósmica. (GOLDSMITH; TYSON, 2015)

Observando essas noções entra em cena uma grande área que se atualiza cons-
tantemente em prol da melhor interpretação da natureza, a Física. Unida a ela, temos
a Matemática, como bem cita Pietrocola (2002), é estruturadora do pensamento físico.
Sabendo que essas duas grandes áreas se relacionam de forma intensa desde as origens
do conhecimento científico, é necessária a socialização dos conhecimentos produzidos
e a construção de novos, em especial no contexto escolar, objetivando construir uma
sociedade que entenda seu papel na/com a natureza. Assim, o desenvolvimento do
pensamento físico estruturado matematicamente enfrenta muitas barreiras tanto
pelo formalismo representacional quanto pelo caráter abstrato. Objetivando con-
duzir alunos a superarem essa premissa, no presente texto se discutirá um modelo
teórico sobre o conhecimento e a instrução matemática, podendo tornar-se subsídio
para professores das áreas envolvidas no que tange à análise da construção do citado
pensamento físico estruturado matematicamente pelos seus alunos pleiteando criar
novas metodologias de ensino e avaliação.
O modelo teórico chamado Enfoque Ontológico Semiótico (EOS) tem como
elaboradores Juan D. Godino, Carmen Batanero e Vicenç Font que, visando suprir
a lacuna de um paradigma de investigação consolidado e dominante no campo da
Educação Matemática, utilizam diversos questionamentos para isso, dentre os quais as
noções usadas para analisar fenômenos cognitivos. Para tanto, os autores apontam “[...]
a necessidade de articular de maneira coerente as diversas facetas implicadas, sendo
elas: ontológica, epistemológica, sociocultural e instrucional.” (GODINO, 2008).
De forma sintética, o EOS consiste em um conjunto de noções teóricas vol-
tadas à investigação de símbolos, conceitos e linguagem, em relação às noções de
significado. As suas noções teóricas incluem três modelos: um epistemológico da
TRANSCICLOPÉDIA EM DIFUSÃO DO CONHECIMENTO 363

Matemática (com pressupostos antropológicos e socioculturais), um cognitivo (ba-


seado na semiótica) e um instrucional (socioconstrutivista).
Em síntese, em relação à caracterização do EOS, Godino afirma que “[...] o
EOS é constituído de ferramentas teóricas para analisar conjuntamente, o pensa-
mento matemático, as situações e os fatores que determinam seu desenvolvimento”.
Segundo seus elaboradores, é necessário e possível construir um enfoque unifi-
cado da cognição e instrução matemática, desde que utilize ferramentas conceituais
e metodológicas de áreas holísticas (Semiótica, Antropologia, Ecologia) articuladas
com a Psicologia e a Pedagogia. Na lógica da unificação é perceptível mais uma
caracterização desse modelo como instrumento de ação transdisciplinar.
Segundo D’amore, Font e Godino (2007), o enfoque ontológico-semiótico ao
possibilitar “[...] a discussão da noção de configuração de objetos e significados como
recursos para produzir os conhecimentos matemáticos” amplia a noção de objeto
matemático, afirmando que não são apenas conceitos, mas qualquer entidade ou coisa
sobre a qual nos referimos ou falamos, seja real, imaginária ou de qualquer outro tipo
que intervém de algum modo na atividade matemática. (GODINO E FONT, 2007).
Na descrição da atividade matemática nos referimos a diversos objetos com
os quais se podem agrupar, segundo distintos critérios, formando categorias ou
tipos. Para eles, os objetos matemáticos têm diferentes classificações a depender do
propósito. Em se tratando do EOS, Godino e colaboradores propõem seis catego-
rias, ou tipos de entidades matemáticas, baseadas nos diversos papéis ou funções
desempenhadas por essas entidades no trabalho matemático, sendo elas: situações,
ações, linguagem, conceitos-regras, propriedades e argumentações, classificadas
como entidades primárias (GODINO, 2002).
As entidades primárias, juntamente com suas caracterizações são apresentadas
abaixo:
Quadro 1: Categorias ou entidades matemáticas e sua caracterização

Categoria Caracterização
Lenguaje Términos, expresiones, notaciones, gráficos. En uno texto vienen dados en forma
escrita o gráfica pero en lo trabajo matemático pueden usarse otros registros (oral,
gestual). Mediante El lenguaje (ordinário y específico matemático) se describen otros
objetos no lingüísticos.
Situaciones Problemas más o menos abiertos, aplicaciones extramatemáticas o intramatemáticas,
ejercicios...); son las tareas que inducen La actividad matemática.
Acciones Acciones del sujeto ante las tareas matemáticas (operaciones, algoritmo, técnicas de
cálculo, procedimientos).
364 TRANSCICLOPÉDIA EM DIFUSÃO DO CONHECIMENTO

Conceptos Dados mediante definiciones o descripciones (número, punto, recta, media, función...).
Propiedades Atributos de los objetos mencionados, que suelen darse como enunciados o
proposiciones.
Argumenta- Argumentaciones que se usan para validar y explicar las proposiciones (sean deduc-
ciones tivas o de outro tipo).
Fonte: Godino, Juan D. Um enfoque ontológico y semiótico de la cognición matemática.

Conforme os autores, categorizar esses objetos torna-se útil para uma análise
mais fina da atividade matemática, onde eles formam redes que intervêm e emergem
dos sistemas de práticas e suas relações categorizando processos. Esses objetos e seus
emergentes podem ser considerados desde as seguintes dimensões duais: pessoal/
institucional; ostensivo/não ostensivo; expressão/conteúdo, extensivo/intensivo e
unitário/sistêmico1, que se complementam de maneira dialética.
Por fim, temos uma representação (Figura 1) da grandeza desse modelo teórico
que, em linhas gerais, atua como uma resposta operativa ao problema ontológico da
representação e significação do conhecimento matemático:

Figura 1 — Modelo onto-semiótico dos conhecimentos matemáticos


proposto por Godino e Colaboradores

1
Ver definições em: https://www.researchgate.net/publication/242554799_Um_enfoque_onto-se-
miotico_do_conhecimento_e_a_instrucao_matematica_1
TRANSCICLOPÉDIA EM DIFUSÃO DO CONHECIMENTO 365

REFERÊNCIAS
GODINO, J. D. Un enfoque ontológico y semiótico de la cognición matemática.
Recherches en Didactiques des Mathematiques, 22(2–3), 237–284, 2002.

GODINO, J. D.; BATANERO, C.; FONT, V. The onto-semiotic approach


to researchin mathematics education. ZDM. The International Journal on
Mathematics Education, Vol. 39 (1-2): p. 127-135, 2007.

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Eichenberg. Origens: catorze bilhões de anos de evolução cósmica. São Paulo:
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41. Estado Avaliador

Célia Tanajura Machado


Marcos Vinícius Castro Souza

O conceito de Estado Avaliador emergiu no contexto da implementação de


políticas de controle e regulação do ensino superior e vem sendo aplicado na pers-
pectiva da educação básica. Assim, de acordo com Afonso (2013), a primeira fase
do Estado avaliador ocorreu entre os anos 1980 a 1990, sendo caracterizada pelas
primeiras aproximações do governo brasileiro com políticas públicas de cunho
neoliberal, alicerçadas em políticas avaliativas e de responsabilização.
A partir de então, passa a haver uma maior influência das avaliações externas
em larga escala na educação básica no Brasil. Assim, o país inicia sua participação,
ainda que de modo incipiente em avaliações internacionais, cujo foco é o estabe-
lecimento de comparação internacional da qualidade educacional. Esse período
também foi marcado pelo empréstimo e aprendizagem de políticas públicas de
cunho neoliberal para países periféricos, como era o caso do Brasil, por parte dos
organismos internacionais, tais como o Fundo Monetário Internacional - FMI e o
Banco Mundial - BM.
A segunda fase do Estado Avaliador pode ser compreendida entre os anos fi-
nais da década de 1990 aos atuais anos 2000 e é caracterizada pelo crescente papel
que os organismos internacionais e transnacionais passaram a desempenhar, tais
como, a União Europeia, a Organização para a Cooperação e Desenvolvimento
Econômico - OCDE e o BM. Nesta perspectiva, há predomínio dessas agências
no estímulo da utilização da avaliação como instrumento de controle e regulação
da educação. Contudo, a utilização da avaliação como instrumento de comparação
internacional e criação de rankings entre escolas e países fica mais evidente nos de-
senhos metodológicos e demais influências do Programa Internacional de Avaliação
de Estudantes - PISA da OCDE (AFONSO, 2013).
Enquanto campo repleto de complexidade, a avaliação educacional abarca di-
versas especificidades, tais como: a avaliação da aprendizagem de alunos, a avaliação
da atuação de professores, escolas e universidades, além da avaliação de projetos,
programas, políticas públicas, sistemas e subsistemas educativos. Por conseguin-
te, é neste contexto que Afonso (2009; 2014) evidencia a existência de políticas
avaliativas neoconservadoras no sistema educacional brasileiro, pois considera que
TRANSCICLOPÉDIA EM DIFUSÃO DO CONHECIMENTO 367

foram implementadas atualizações e ressignificações teórico-metodológicas nos


antigos exames nacionais, que se configuraram em novos instrumentos avaliativos,
atualmente, denominados como avaliações externas de cunho padronizado, cuja
justificativa para sua aplicação centra-se no fato de que refletem adequadamente a
realidade educacional.
Tais aspectos permitem compreender as avaliações numa perspectiva essencial-
mente instrumental e alicerçada em concepções ideológicas, que tendem a influenciar,
mesmo que de maneira sutil, o currículo escolar e a prática pedagógica desenvolvida
pelos professores (AFONSO, 2014).
O retomar desses exames, no atual contexto de globalização do capitalismo,
faz com que a avaliação ocupe lugar de destaque na agenda educacional mundial,
influenciando a tomada de decisão de países, Estados e Municípios, como tem ocor-
rido no Brasil. Afonso (2007; 2014) caracteriza tal fator como “obsessão avaliativa” e
ainda enfatiza que essa obsessão dialoga e é responsável pela disseminação de valores
e concepções da avaliação associada à ideologia dominante.
As avaliações externas, neste sentido, cumprem duas funções básicas interre-
lacionadas: a) controle sobre os conteúdos escolares, ou seja, interferência direta na
dinâmica curricular da instituição, pois contribui enquanto dispositivo de controle e
regulação da educação por meio do Estado, no que tange aos conteúdos selecionados
pela escola e no modo como esses conteúdos são trabalhados no cotidiano institu-
cional pelos professores; b) criação de rankings, uma vez que essa função relaciona-se
ao fato de que as avaliações induzem à comparação entre escolas e à consequente
responsabilização dos professores pelos desempenhos acadêmicos dos alunos, via
publicação dos resultados na grande mídia (AFONSO, 2007).
Desse modo, percebe-se a existência de mecanismos de liberalização da educação
nacional com a introdução de mecanismos de mercado, cuja justificativa ancora-se
na necessidade de permitir que a sociedade possa conhecer a realidade educacional
de cada instituição e que os pais ou responsáveis pelos estudantes, de posse dos re-
sultados das escolas, possam escolher em qual matricular seus filhos. Sendo assim,
os pais ou responsáveis pelos alunos transformam-se, conforme salienta Afonso
(2007), em clientes ou consumidores da educação.
Aliás, de acordo com a opção neoliberal mais ortodoxa, os bens educativos
públicos deveriam passar a integrar o conjunto dos bens mercadorizáveis, ou
seja, os bens sujeitos à liberdade da oferta e da procura – pretendendo, assim,
quebrar a vinculação histórica e democraticamente estabelecida entre a educa-
ção como direito e bem coletivo e a obrigação do Estado democrático prover
368 TRANSCICLOPÉDIA EM DIFUSÃO DO CONHECIMENTO

e assegurar a universalidade dessa mesma educação (pelo menos a educação


básica) (AFONSO, 2007, p. 15).

Mesmo inspirando-se no modelo neoliberal de educação, o Estado não dei-


xou de exercer seu poder de controle e regulação do sistema educacional, visto que
implementou novos mecanismos para assegurar sua hegemonia e poder sobre as
instituições, tais como as avaliações externas, a criação de habilidades e competên-
cias básicas para cada etapa da educação e a criação de indicadores da qualidade
educacional oferecida pelas escolas.
Vale ressaltar que, conforme descrito por Afonso (2007), o Estado assumiu
uma postura híbrida, caracterizada pelo aumento de seu poder controlador e, ao
mesmo tempo, pela responsabilização dos estabelecimentos de ensino sobre o trabalho
pedagógico desenvolvido cotidianamente e, consequentemente, pela qualidade da
educação. Tal fator permitiu, também, estimular uma maior autonomia processual
e eficiência no trabalho pedagógico desenvolvido pelos estabelecimentos de ensino
público.
A adoção dessa postura dual, por parte do Estado, fundamentou o uso de
avaliações com o objetivo de responsabilizar a gestão escolar, professores, alunos
e comunidade pelos resultados obtidos. Da mesma forma, foi fator preponderante
para a promoção de uma reconfiguração no papel do Estado que se desvinculou,
consideravelmente, de suas obrigações como fornecedor da educação.
As avaliações externas padronizadas não consideram a realidade e subjetividade
das instituições, baseiam-se, exclusivamente, em dados medíveis e estão alicerçadas
numa necessária melhoria da qualidade educacional com base em padrões estabelecidos
pelo mercado. Portanto, rompem com a autonomia da escola e, especificamente, dos
professores, por meio de um currículo paralelo que estimula um trabalho pedagógico
voltado para essas avaliações.
A avaliação não pode estar associada unicamente a dados quantitativos, pas-
síveis de serem utilizados estatisticamente, nem como mecanismo de controle e
mensuração das ações implementadas. É importante compreendê-la como processo
multifacetado, dinâmico e capaz de possibilitar diálogo entre seus interlocutores.
Desse modo, Dias Sobrinho (2008) considera a educação como prática humana
e, por consequência, esclarece que a avaliação da educação é ação repleta de valores
e significados. Assim, avaliar vai além de tratar indicadores quantificáveis: é preciso
analisar e compreender o contexto e as relações estabelecidas institucionalmente,
além de assegurar que os dados obtidos por meio desse processo não sejam usados
como mecanismos de punição e exclusão social ou institucional.
TRANSCICLOPÉDIA EM DIFUSÃO DO CONHECIMENTO 369

A avaliação educativa não é um processo neutro e desvinculado de questões


sociais, culturais e políticas, nem se deve restringir, exclusivamente, a analisar dados
estáticos, constituídos, principalmente, por meio de indicadores estandardizados,
desvinculados da realidade socio-histórico-cultural e das influências geradas pelos
atores institucionais. É preciso compreender a avaliação como ação a realizar-se “[...]
numa comunidade de sujeitos que se relacionam, se comunicam com linguagens e
objetivos compreensíveis e mais ou menos comuns, ainda que sempre necessitando
de acordos, nem sempre plenos, nem sempre duráveis” (DIAS SOBRINHO, 2008,
p. 200).
Assim como Dias Sobrinho (2008), Gatti (2014) aponta que as avaliações não
podem ser consideradas despretensiosas, ou seja, neutras. E que quando associadas à
formulação de políticas públicas, importa desvelar a ideologia que as caracterizam,
bem como o que se pode esperar delas. Em virtude disso, atrela-se a avaliação a um
viés democratizador, à medida que ela se torna ponto de partida para (re)pensar
ações e o modo como a tomada de decisão ocorre, pois, nessa perspectiva, ela propõe
debates e discussões críticas, além de decisões colegiadas.
Em outras palavras, os processos avaliativos devem construir os campos sociais
de discussão e valoração a respeito dos processos, contextos, produtos, objetivos,
procedimentos, estruturas, causalidades, metas de superação dos problemas,
enfim, sobre o que importa conhecer e o que precisa ser feito para melhorar
o cumprimento das finalidades essenciais da educação. Fundamentalmente,
são os sentidos da formação dos cidadãos e os impactos na construção da
sociedade democrática que sobretudo devem estar em questão (DIAS SO-
BRINHO, 2008, p. 200).

O que está implícito na abordagem de Dias Sobrinho (2008) é a necessidade


de uma avaliação capaz de possibilitar melhoria na qualidade da educação oferecida
pela escola, não só em temos estruturais, mas também, no que se refere a todos os
processos institucionais. Nesse sentido, a escola precisa apropriar-se de seu currículo
e das orientações que o mesmo fornece a respeito da seleção e modo como os conteú-
dos devem ser trabalhados em sala de aula, considerando que as avaliações externas
têm impulsionado um “currículo invisível” (DIAS SOBRINHO, 2008) na prática
pedagógica das escolas, além de exercerem forte pressão na gestão escolar, quanto à
necessidade de melhoria das notas obtidas por meio dessas avaliações.
As avaliações estandardizadas desconsideram a subjetividade institucional e
contribuem com a perpetuação do status quo, consequentemente, com a manutenção
e permanência de uma educação excessivamente controlada pelo Estado e pelos ins-
trumentos por ele legitimados, visto que o uso que se tem feito dos resultados dessas
370 TRANSCICLOPÉDIA EM DIFUSÃO DO CONHECIMENTO

avaliações, no Brasil, tem propiciado a criação de rankings entre escolas e mesmo


entre estudantes, bem como fundamentado a criação dos chamados “currículos
invisíveis”, conforme apontado por Dias Sobrinho (2008).
A avaliação tem sido cada vez mais atrelada a uma orientação tecnicista, con-
siderando, exclusivamente, dados e demais informações quantificáveis, excluindo,
assim, importantes aspectos subjetivos de cada instituição, apenas passíveis de serem
compreendidos por intermédio de um modelo avaliativo baseado em métodos que
considerem os dados qualitativos. Contudo, torna-se imperioso ressaltar, que essa
concepção tecnicista é fruto de políticas defendidas pelo Banco Mundial, “fortíssimo
representante de um grupo de organismos internacionais” (DIAS SOBRINHO,
1996, p. 16).
A avaliação que se restringe a medir quantidades e volumes e comparar insti-
tuições não levando em conta sua diversidade, a identidade que torna única a
cada uma delas, as condições específicas e a história que constroem distintas
relações de produção e compromissos sociais, essa avaliação pode ser útil para
os administradores para os responsáveis pelas políticas educacionais, embora
claramente insuficientes. Apresenta-se como técnica e despolitizada, mas na
realidade desempenha um importante papel político de organizador social,
de organizador da estrutura institucional, de hieraquizador de prestígios, de
orientador técnico, pretensamente neutro e justo [...] (DIAS SOBRINHO,
1996, p. 17).

Esse modelo de avaliação produtivista e classificatória associa cada vez mais a


escola aos objetivos mercadológicos, fator que tem estimulado a criação de rankings
entre as instituições educativas. Com isso, instituições acabam sendo privilegiadas
socialmente e politicamente, em detrimento de outras que são rotuladas por não
obterem boa pontuação nesse tipo de avaliação. Todavia, “sua função pedagógica
é praticamente nula” (DIAS SOBRINHO, 1996, p. 17) já que não proporciona
um (re)pensar sobre o trabalho desenvolvido, muito menos é geradora de qualidade
educacional dissociada dos interesses do mercado.
Uma avaliação que promove mudanças qualitativas no cotidiano institucional
não pode fundamentar-se na classificação, rotulação, controle, regulação e punição
das instituições educativas que não conseguem alcançar o índice estabelecido pelo
mercado. Sendo assim, compreende-se que a avaliação deva ser promotora de coo-
peração e solidariedade no ambiente escolar, na medida em que seus resultados são
utilizados para promover mudanças qualitativas no ensino e no trabalho pedagógico
desenvolvido, cotidianamente, bem como fundamente a tomada de decisão mais
coletiva e democrática.
TRANSCICLOPÉDIA EM DIFUSÃO DO CONHECIMENTO 371

Testes e demais avaliações externas, atualmente em uso pelo sistema educacional


brasileiro, não dialogam com a realidade regional de cada estabelecimento de ensino.
E, conforme esclarece Dias Sobrinho (1996), a normalização que esses exames exigem
acaba por provocar uma análise limitada e/ou deformada da realidade avaliada. Para
Dias Sobrinho (1996), a forma com os exames gerais vem sendo gerenciados e desen-
volvidos tem fomentado uma progressiva usurpação do currículo, pois, estimuladas
a apresentarem resultados cada vez melhores e um trabalho pedagógico centrado
nos itens exigidos em tais exames, as instituições educativas tendem a trabalhar com
os conteúdos cobrados nessas avaliações. Assim, a ação docente e dos demais atores
institucionais acabam sendo reguladas e controladas por parte do Estado.
Diante disso, nota-se que esses exames também estimulam a gestão por crité-
rios meritocráticos, a criação de rankings entre as escolas públicas e entre essas e as
escolas da iniciativa privada geram também prestígio social para as instituições que
alcançam suas metas ou mesmo conseguem superá-las.
Os exames gerais produzem, então, um curriculum invisível que marca
profundamente as relações dos estudantes com a aprendizagem. A partir do
momento em que compreendem o estilo das provas, assumem um comporta-
mento compatível com ele, sem muita reflexão pois o importante é responder
o máximo de itens, não necessariamente aprender mas sim obter boas notas, e
assim um bom lugar na hierarquia social (DIAS SOBRINHO, 1996, p. 20).

É notório que essas avaliações padronizadas acabam determinando como o


trabalho pedagógico dos professores deve acontecer, desconsiderando os objetivos
educacionais da escola e o regionalismo. Isso tem associado, cada vez mais, a edu-
cação a mecanismos de mercado educacional.
Arroyo (2003), ao evidenciar um conceito de educação e escola, atrelado aos
movimentos sociais de luta pelos interesses da classe explorada pelos detentores
do capital, aponta que tanto a educação como a escola não podem ser vistas pelas
camadas populares da sociedade como um presente ou dádiva, mas sim, precisa ser
exigida como um direito fundamental dos cidadãos. Para isso, o conceito de edu-
cação, vinculado aos interesses mercadológicos precisa ser combatido e contraposto
com base na “reeducação da cultura política” (ARROYO, 2003, p. 30), que prevê
a educação como direito subjetivo e propõe o combate da vinculação desta aos
interesses educacionais da sociedade capitalista.
Portanto, é preciso compreender o que está subjacente à excessiva utilização
da avaliação externa de cunho padronizado, visto que muitos Estados aplicam essas
avaliações por influências históricas que os organismos internacionais impuseram ao
372 TRANSCICLOPÉDIA EM DIFUSÃO DO CONHECIMENTO

Brasil, tais como o FMI e a OCDE, caracterizados como principais “think tanks1 das
políticas educativas a nível mundial, mesmo não sendo uma organização educativa”
(AFONSO, 2014, p. 490).

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GATTI, Bernadete Angelina. Avaliação institucional: processo descritivo,


analítico ou reflexivo? Revista Estudos em Avaliação Educacional, São Paulo, v.
17, n. 34, p. 7-14, maio/ago. 2006.

HAUCK, Cristina Rosa; ÁVILA, Rafael Oliveira de. Os think tanks brasileiros
e suas contribuições para o pensamento social e político: um resgate histórico-

1
Hauck e Ávila (2014) afirmam que o termo think tanks originou-se nos países de língua inglesa e
representa uma forma de caracterizar as organizações que realizam pesquisas, visando influenciar,
por meio de seus resultados, a definição de prioridades e a consequente implementação de políti-
cas públicas.
TRANSCICLOPÉDIA EM DIFUSÃO DO CONHECIMENTO 373

exploratório sobre o Centro Brasileiro de Análise e Planejamento (Cebrap).


Cadernos de história, Belo Horizonte, v. 15, n. 23, p. 180-2072. sem. 2014.
42. Extensão Universitária

Maria Celeste Souza de Castro

ESPIRAL DO ENCONTRO COM A PESQUISA E COM O ENSINO


Este verbete discute e utiliza a metáfora da pirâmide para ilustrar os fins da
universidade: a produção do conhecimento, o ensino e a responsabilidade social que
são concebidos nas camadas mais profundas da pirâmide, sendo pensadas a partir de
um ciclo vibratório denominado na teoria da complexidade de sistema dinâmico em
evolução constante. Recorre à imagem pictórica do efeito borboleta para retratar a
revolução paradigmática que a nova ciência gerou nos espaços acadêmicos, revelan-
do crises, novos espaços e novas formas de produção do conhecimento que tentam
distanciar-se da torre de marfim e das visões encapsuladas das câmeras úmidas de
laboratórios. Em um movimento de ir e vir e do devir, aparentemente simples, que
traz em si um processo criativo, o efeito borboleta vai alterando formas e sentidos
das funções da universidade que passa a ser vista como uma parte do todo e um
todo das partes.

PARA COMEÇAR: O DINÂMICO, O IMPREVISÍVEL


A percepção de que o determinismo da ciência clássica não dava conta de pro-
blemas profundos,1 impulsionou a ciência a desvendar o lado irregular da natureza,
a compreender a realidade que nos cerca do ponto de vista biológico. A ordem no
caos, que desafiou físicos, matemáticos, químicos e biólogos, constitui a premissa
fundamental para compreender a grande revolução cientifica do século XX, o Caos
e suas contribuições à ciência do século XXI, que, segundo Harari (2016), promete
a “[...] unificação das disciplinas cientificas, além de tecnologias inovadoras e po-
deres inéditos”. Um novo paradigma que afetou a perspectiva histórica, filosófica e
funcional da humanidade.
Da ideia determinista que prevalece até meados do século XIX, à incerteza,
dualidade e probabilidade, muitos pensamentos e ideias provocaram avanços, arra-
nhaduras e incertezas. E, enquanto a espiral do tempo evolui, a humanidade caminha

1
A compreensão que os físicos têm de um problema profundo diz respeito aos problemas mais
difíceis e de aparente impossível solução.
TRANSCICLOPÉDIA EM DIFUSÃO DO CONHECIMENTO 375

ao lado do reconhecimento da contribuição dos gigantes da ciência e das incertezas


em um estado de “deriva cósmica”, como denomina Galeffi (2017).
Certamente, o que impulsiona o pensamento da humanidade é o inacabamento,
a inconclusão diante do que está por vir, o amanhã. E, neste caso, qual será o devir? A
questão é: o que temos de novo? O que a ciência da computação, engenharia genética
e ambiental tem a nos oferecer? Questões que, diante das nossas crenças humanas
e cristãs, podem ter respostas chocantes e provocativas. Podemos não concordar
com esta forma de pensar e agir sobre o amanhã, mas, certamente, já convivemos
com ela no nosso dia a dia2; os algoritmos já se constituem como protagonistas do
cenário da humanidade.
O fato é que as revoluções dos últimos séculos modificaram as características
do mundo atual. A compreensão de que a realidade que nos cerca pode ser modifi-
cada a partir de uma lógica matemática trouxe à cena discussões sobre livre arbítrio
e sobre evolução, dando aporte conceitual sobre uma nova ciência e sobre a forma
de lidarmos com as questões humanas.
O modelo abstrato de computador idealizado por Alan Turing em 1950 abriu
as portas para uma sociedade entremeada de descritores. Se, ao final do século XX,
constamos que as grandes catedrais eram os bancos, agora, em meados do século XXI,
as catedrais são os dispositivos digitais. Desde a concepção inicial de um conceito
abstrato que utilizava princípios da lógica matemática até a construção do primeiro
computador, por Von Neumann, muitas questões foram debatidas e ampliadas. A
intenção precisa era o controle do tempo, a previsibilidade determinística. Isto foi
só o pensamento inicial. Foi só o começo!
Para nossa sorte ou não, da ideia de previsibilidade do tempo, Eduard Lorenz
em 1962, viu, além de linhas onduladas no seu computador, viu a parte pequena, a
estrutura que estava por trás das formas, a confusão que havia em previsões, a ordem
mascarada de aleatoriedade. Com este princípio, ampliava não só o repertorio de
conhecimentos sobre o tempo, mas, sobretudo, derrubava o edifício monológico
da ordem e da previsibilidade. Uma verdadeira mudança no modo de pensar que
impactou, profundamente, todo o repertório da produção cientifica da atualidade.
Pode-se afirmar que a dependência sensível das condições iniciais, na previsão
do tempo, denominada em um tom jocoso sério, de “Efeito borboleta3 — a noção

2
Esta opinião está baseada na leitura de Harari (2015), de pesquisas que fazem referência a interface
cérebro computador (Pinheiro, 2016), de pesquisas que fazem referência ao uso de tecnologias
como dispositivos de vigilância, a exemplo do objetivo inicial dos Drones. (Reis, 2014)
3
James Gleik em notas informa que Lorenz usou originalmente a imagem de uma gaivota. Mas o
nome mais duradouro aparece no trabalho “Predictabilyti: Does the Flap of a Butterfly’s Wings in
376 TRANSCICLOPÉDIA EM DIFUSÃO DO CONHECIMENTO

de que uma borboleta, agitando o ar em Pequim, pode modificar no mês seguinte


sistemas de tempestades em Nova York”(Gleik, 1989), foi propagado em todas as
esferas da atualidade. Contribuiu para um novo olhar sobre todas as disciplinas cien-
tificas gerando um movimento de impulsionamento do fazer ciência que corrobora
com a ideia de Thissen (2008), da fertilização heurística entre elas.
A comunidade cientifica precisou repensar posturas acadêmicas. A ideia de
caixas de isolamento entre disciplinas e, entre pesquisadores, deveria ser substituída
pela visão interdisciplinar, transdisciplinar e colaborativa de produzir conhecimen-
to. A extensão foi convidada a sair do não-lugar, do lugar da comunicação para o
lugar do dialógico, de coexistência e coevolução dinâmica de saberes. A pesquisa
foi convidada a sair do espaço úmido dos laboratórios e a olhar para os pêndulos
não com o olhar da regularidade determinística, e sim como um chamariz de olhar
coisas vivas e simples em que o estável, o instável, o finito e o infinito não são exclu-
dentes, não existe a objetividade absoluta. Novos locus foram constituídos, limites
físico-geográficos foram expandidos.
Na linguagem da nova ciência, o efeito gerado na comunidade cientifica pode
ser compreendido como um sistema dinâmico que na definição matemática de
Pallis (2008),
É simplesmente uma transformação f em um espaço de eventos E: se x é um
ponto de E, isto é, um evento, o sistema dinâmico leva a outro evento, que
indicamos por f(x). Repetindo o processo, o evento f(x)é levado a outro, que
denotamos por f(f(x)) ou f²(x)).

Aplicando este modelo matemático, podemos afirmar que as transformações


que temos hoje foram criadas pelos movimentos visivelmente acelerados da tecno-
ciência e do tecno-humanismo4 . Há um movimento dinâmico de acontecimentos
que são geradores de novos eventos e que não segue uma regra linear, ao contrário,
crescem em efeitos exponenciais.
Para todas as finalidades é impossível prever o destino. Quando iríamos
imaginar que o processo criativo de Lorenz, associado à invenção da primeira
máquina por John Von Neumann, na década de 1950, teria impactos profundos
sobre o mundo do século XXI e sobre as temáticas discursivas dos Fóruns mun-

Brasil Set off a Tornado Texas?”, apresentado na conferência anual da Sociedade Americana para
o Progresso da Ciência, em Washington, em 29 de dezembro de 1979.
4
Entendido por Harari (2016) como aprimoramento da mente humana. Algo extremamente peri-
goso uma vez que ainda não sabemos sequer o que nos espera adiante. Ou melhor. o que queremos
para o amanhã?
TRANSCICLOPÉDIA EM DIFUSÃO DO CONHECIMENTO 377

diais que discutem questões do meio ambiente, questões de trabalho e questões


do mundo mesofísico?
No Fórum Mundial de Davos, acontecido em 2018, o impacto das novas tecno-
logias foi um dos temas abordados sobre o futuro do emprego. Dados apresentados
pelos pesquisadores Frey e Osborne (2013), apontam que é provável que 47% dos
empregos, nos Estados Unidos, estão suscetíveis à informatização. Carlos Rydiewski,
em “O destino do trabalho,” apresenta dados alarmantes de que com a tecnologia
disponível é possível eliminar metade dos empregos no mundo, o que equivale a 1,2
bilhões de pessoas. No Brasil, a questão é muito pior, considerando que já vivenciamos
um cenário ampliado de desemprego e desalento. Os efeitos desse cenário terão fortes
influências nas relações sociais, políticas e ambientais. Para políticos e empresários
serão geradores de novos movimentos, normalmente, políticos e monetários. Para a
ciência, será um novo caminho gerador de novos questionamentos de uma eferves-
cência de pensamentos e, para a humanidade em geral, pode ser uma nova forma de
ser e conviver que vai impactar sobremaneira nas relações existenciais de cada um e
onde serão revelados movimentos de força que impulsionam para alguma direção.
Enfim, um sistema dinâmico em evolução constante.
Não há previsão. Não há precisão. O que há de concreto até agora é o grande
poder do pensamento humano.

EXTENSÃO: ESPIRAL DO ENCONTRO COM A PESQUISA E COM O


ENSINO
A ideia de caracterizar a extensão a partir da compreensão dela com um sistema
complexo enseja caminhos. E a escolha está relacionada à possibilidade criadora que
ocorre no movimento dialógico de interação com o ambiente circundante. O ir e vir
de fluxos de saberes, informações e conhecimentos, geram aprendizados fazendo com
que o pensamento caminhe em uma espiral de produção do conhecimento. Por esse
motivo o interesse em retratar as funções da universidade a partir de terminologias
utilizadas para definir sistemas complexos adaptativos.
De início, podemos pensar na alfinetada de Thomas Kuhn (1998) sobre a ideia
tradicional de uma ciência produzida linearmente, pautada no modelo de perguntas
e repostas, encapsulados em disciplinas e encerradas em portões lacrados de labo-
ratórios. Ele trouxe o contraste, a exceção e a não-linearidade. Enfim, o olhar das
revoluções que tirou a comunidade cientifica de uma zona que, senão de conforto,
e sim de lógicas em que inexiste a contradição e a inclusão, para uma zona em que
essas lógicas são fundamentais.
378 TRANSCICLOPÉDIA EM DIFUSÃO DO CONHECIMENTO

A teoria dos sistemas complexos, por sua vez, abriu espaços para a tão sonhada
conquista do Santo Graal da Ciência, a fertilização heurística das disciplinas (Thissen,
2008), como também possibilitou que o in silico seja um padrão generalizado para
arquivo e análise de um número cada vez maior de dados. Decerto, isto não ocorreu
e não ocorre sem equívocos conceituais e sem arranhaduras no processo. Talvez
tenha sido esse o propósito de Kuhn e o que nos mostra a teoria da complexidade.
Abandonar ou substituir um padrão reducionista disciplinar continua sendo
o desafio da universidade.
Desde o seu sentido de corporação, na idade Média, até nossos dias, a ideia
é que esse espaço uno seja o da busca da verdade e da produção do conhecimento,
o que faz com que, dessa expectativa, a universidade tenha, ao longo do tempo,
assegurado para si a patente na qualidade dos seus processos e de seus produtos.
De imediato, podemos perceber que há uma mudança de comportamento e de
sentido. Do conhecimento dos mestres de ofício e do anteparo do poder da igreja
até nossos dias muitos séculos nos contemplam! E muitas foram às transformações
pela qual essa instituição passou. Utilizando a analogia da água que passa debaixo da
ponte, podemos pensar que há um padrão nessa passagem. Mas como bem observou
Heráclito, a água que escoa é sempre diferente.
Por exemplo, “[...] da ideia de universidade universidades à universidade de
ideias” proposta por Boaventura em 1995, mais de três décadas se passaram. E o
que temos de sólido corresponde ao enfrentamento de duas forças opostas. De um
lado, o esforço contínuo da comunidade acadêmica pela busca da qualidade em
suas ações e funções e, do outro lado, a força do mercado. Da primeira, a ideia da
unicidade, da responsabilidade social da produção e da difusão do conhecimento; e
da segunda, a ideia do capital que transforma o conhecimento em um bem comer-
cializável. Desse lugar, ou não-lugar, são desencadeadas situações que desafiam os
modos de trabalho na academia.
A universidade está diferente, os mecanismos institucionais assumidos são
outros que, por mais que haja discordâncias, ainda assim eles se institucionalizaram
e passam a servir como leis que direcionam as ações do arcabouço institucional.
Marcos regulatórios, indicadores de avaliação e ranking das instituições fazem
parte da superfície discursiva da comunidade acadêmica e da comunidade externa.
Aos poucos, os padrões empresariais e ditos modernizadores vão sendo instalados
na dinâmica da gestão organizacional da universidade, para atender a uma agenda
de controle de organismos multilaterais com vistas a uma dita modernização e pri-
vatização, como alerta Dias Sobrinho (2003, p. 35). Prova disso são as avaliações
TRANSCICLOPÉDIA EM DIFUSÃO DO CONHECIMENTO 379

que classificam as universidades a partir de padrões como a qualidade do ensino,


volume de publicações cientificas, citações em artigos científicos e quantitativo de
professores com doutorado. Padrões que não medem a importância das universidades
públicas para o País e para a humanidade.
Há um sistema dinâmico de ação e reação que pode ser percebido na sobre-
posição de ações onde uma ação leva a outra, gerando um padrão exponencial de
ações e decisões, tendo como base o modelo matemático definido por Palis. Para
definir um sistema dinâmico, temos que “transformação f em um espaço de eventos
E: se x é um ponto de E, isto é, um evento, o sistema dinâmico leva a outro evento,
que indicamos por f(x). Repetindo o processo, o evento f(x)é levado a outro, que
denotamos por f(f(x)) ou f²(x))”.
Normalmente, ao nos depararmos com a noção excêntrica de que organismos
são algoritmos e que, para compreendê-los, basta processar esses dados em um com-
putador muito mais potente do que o Royal Mcbee, de Lorenz, não pensamos em
como esse modo de pensar o mundo está entranhado na universidade, na dinâmica
da gestão que institucionaliza normas e padrões e na dinâmica de suas funções. E
não é necessariamente é uma visão linear e pragmática. Ao contrário, é um exercício
adaptativo próprio do pensamento humano, pois este é um sistema aberto e fonte
de inspiração e interação.
Perceber a excentricidade na compreensão do mundo através de um descritor
matemático não é negar dimensões da cognição humana. Ao contrário, é provocar
um transcender para um paradigma polilógico transmoderno, concebido como
atitude aprendente que coloca a natureza humana em negociação com várias lógicas.
É neste sentido que penso as funções da universidade, o ensino, a pesquisa e a
extensão em uma espiral que pictoricamente pode ser associado ao efeito borboleta.
O que é feito na extensão é sentido no ensino e na pesquisa. Um movimento de
interação revelado numa pirâmide em que a produção do conhecimento, o ensino e
a responsabilidade social são concebidos nas camadas mais profundas da pirâmide,
sendo pensadas a partir de um ciclo vibratório denominado na teoria da comple-
xidade de sistema dinâmico. Com o entendimento proposto por Galeffi (2016) de
que “[...] a unidade que a tudo reúne no Um é a unidade do diverso, do disperso, da
multiplicidade, da variedade, da distinção, da singularidade, da diferenciação” (p.
12) em que o todo dá consistência ao uno. Uma dimensão de espiral de encontro.
A extensão com a pesquisa e a extensão com o ensino. Sendo ponto de partida e
de chegada em um movimento que é retroalimentado na dinâmica da experiência
criadora do pensamento humano.
380 TRANSCICLOPÉDIA EM DIFUSÃO DO CONHECIMENTO

REFERÊNCIAS
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How susceptible are jobs to computerasition, acesso em 26 de novembro de
2018., disponível em https://www.oxfordmartin.ox.ac.uk/downloads/academic/
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transdisciplinar. Berlin: Printed by Schaltunsdienst lange, 2017.

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Companhia das Letras, 2016.

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Perspectiva, 1998.

NUSSENZVEIG, H. Moisés. (Org.) Complexidade e Caos. Rio de Janeiro:


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Moisés. (Org.). Rio de Janeiro: Editora UFRJ/COPEA,2003.

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dos conflitos contemporâneos e o uso de drones. In: Jornal da UNICAMP
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TRANSCICLOPÉDIA EM DIFUSÃO DO CONHECIMENTO 381

SANTOS. Boaventura de Souza. A Universidade no século XXI: para uma


reforma democrática e emancipatória da Universidade. 3.ed. São Paulo: Cortez
(2011)

SANTOS. Boaventura de Souza. Pela Mão de Alice: o social e o político na Pós-


modernidade. 14.ed., São Paulo: Cortez 2013.
F
43. Fake News

Antonia da Silva Santos

INTRODUÇÃO

Fake News na vida: novas emoções ou pathos e repetição mascarada?


Numa época em que se propagam os diversos sentimentos ramificados pela ale-
gria, pela paz e pelo amor, a grande questão que se propõe a reflexionar é a o alimento
ao ódio e às revoltas em que as discussões são pautadas pela polêmica criada pelo ser
humano ao retornar às questões originais referentes às diferentes manifestações de
tristeza, ira, pavor, dor e violência. A aparente irracionalidade na ideologia em que o
homem reproduz, por um lado, o uso do patriarcado com base na sociedade fascista,
por percorrer caminhos que desfazem ou maltratam e mesmo desconhece o outro,
são sugeridas as manifestações de apelo a um mundo melhor, a um mundo em que
as propostas sejam bem-vindas, sejam de conteúdos diferentes da sátira ou paródia,
ou sejam simples versos puros de afeição, de paz, em que se contemplem momentos
duradouros de verdade reflexionada, refletida, sentida, conscientizada. Parece para-
doxal, mas a nossa intenção é percorrer um caminho que possa levar às pessoas os
conceitos de verdade versus mentira, um percurso que não seja o da raiva ao ódio.
Ao se demonstrar paixões reguladoras das relações sociais, são examinados textos
postados no facebook, num período em que o Brasil atravessou e atravessa uma fase
econômica considerada difícil, grave, além de ter precedido as eleições presidenciais,
bem como a repercussão posterior. Circulam textos e imagens que promovem a pro-
pagação da representação de si e do outro, da sociedade. Notícias de desencantamento,
aumento da violência, fomento ao ódio pelo outro, preconceito em suas diversas facetas,
estereótipos culturais e das relações intersubjetivas que são reportadas, do aumento da
polarização política, enfim, uma gama de sentimentos desvairados percorreram um
ciclo tenso e transposto pela população brasileira. Foram vividos momentos de grande
pavor, de alucinações e mesmo de barbárie anunciada e propagada pela internet por
meio das redes sociais e tantos outros veículos de comunicação.
Se foram encaminhados textos de descaso ou outros sentimentos semelhantes,
a imagem que se revela é a de homens e mulheres “falsas” ou sucumbidos a um novo
386 TRANSCICLOPÉDIA EM DIFUSÃO DO CONHECIMENTO

discurso desconcertante, desconstruído, desprezado ou negado. Foi dessa forma que


se apresentaram com as fake news, implicando na desqualificação com o que choca,
influencia ou faz modificar suas convicções ou pontos de vista e fazendo com que
haja novas escolhas sem afetos ou afetividades, sem verdade ou sem paixão. E, no-
vamente, se pergunta se haveria medidas ou soluções para que haja uma diminuição
ou uma finalização dessa prática de disseminação de sentimentos tão negativos, seja
no que se refere à discriminação pela cor da pele, pelo gênero, pela orientação sexual,
pela idade, pela classe social ou qualquer outra forma de distanciamento entre as
pessoas, seja pela falta de representatividade do ser. Neste sentido, são apresentadas
reflexões teóricas numa metodologia semiótica no que tange aos novos (?) ou discu-
tidos conceitos de verdade, de mentira e de falsidade.

Fake News — o que mudou?


Estudiosos das emoções1 vêm enfatizando as questões de experimentos e in-
terpretações subjetivas por parte dos seres humanos, pois a avaliação cognitiva das
situações contribui para a reação emocional do mundo e de si mesmo. No ciberespaço,
ressaltam-se as manifestações de ódio e suas nuances caracterizadas como paixões,
sua propagação por meio de conteúdos depreciativos, reforçando os insultos e as
diversas expressões de cunho preconceituoso.
Greimas (1993, p. 50) afirma que as paixões revelam um encadeamento que
inclui sedução, tortura, investigação, enunciação, manipulação, o que nos permite
afirmar que, ao longo dos anos, com o sentimento de ira, que vem sendo contido,
o ser humano a molda, a transfigura diante de suas reações fólicas e/ou depressivas
e, ao mesmo tempo, busca constantemente seu refreamento para sua sobrevivência,
seu bem-estar psíquico, sua saúde física e mental.
Antigamente, segundo Fiorin (2007, p. 3), as paixões eram vistas como uma
morbus animis, o pathos, opostas à lógica e daí vistas como uma patologia, ou seja,
tinha um caráter depressivo, nelas inclusas a loucura, a obscuridade, o caos, a de-
sarmonia e a morte. A lógica, entretanto, era ligada à razão, à harmonia, à carida-
de, ao cosmos, à vida. As paixões manifestam-se por meio do comportamento ou
fisiologicamente. Pelo comportamento, pode-se agir pela adulação, agressão, gritos
ou palavras afáveis ou gentis. Fisiologicamente, as paixões são manifestadas pelo
choro, aceleração dos batimentos cardíacos, riso, sudorese, ampliação da adrenalina
ou serotonina (FIORIN, 2007, p. 3-5).
1
Evite a bioquímica das emoções e evite doenças psicossomáticas. Disponível em www.sbje.com.br
Acesso em 18/1/2019.
TRANSCICLOPÉDIA EM DIFUSÃO DO CONHECIMENTO 387

A semiótica não estuda os caracteres e os temperamentos, contudo, examina


os efeitos passionais e afetivos do discurso resultantes da modalização do sujeito de
estado (FIORIN, 2007, p. 3). A semiótica das paixões, eixo norteador deste trabalho,
se dedica ao modo do sentir. É pela sua ótica que pretendemos mostrar o envolvi-
mento das pessoas nas diferentes formas de manifestação de seus sentimentos, suas
emoções ou seus modos de reagir.
As ofensas proferidas no período antecedente às eleições para presidente do
Brasil, em 2018, ganharam grande repercussão nas postagens dos usuários das redes
sociais, em destaque, no facebook, dentre outros motivos, pela ilusão de que não seriam
ou serão descobertos. Trindade (2018) apresenta argumentos de usuários conscientes
de suas atitudes preconceituosas, o que desfaz a crença do anonimato com a tomada
de providências nos casos que ventilam reações de revolta ou sentimentos outros:
I. a modificação do seu status de público para privado;
II. o apagamento da postagem;
III. o desligamento de sua conta nas redes sociais;
IV. a desculpa de que não era bem aquilo que queria dizer ou que se tratava
de uma brincadeira.
Isso fortalece o aumento da divulgação das notícias falsas, termo utilizado
em português para a expressão fake news, expressão usada desde o século XIX aos
tempos atuais. Fake news significa informações falsas, sobretudo, nas redes sociais,
motivo pelo qual se tornou uma expressão popular e utilizada para criação de bo-
atos e reforço de pensamentos, bem como na disseminação de ódio e de mentiras,
prejudicando as pessoas em geral. Pessoas reais são induzidas ao erro ou à prática
de compartilhamento e alastramento de conteúdos irreais e criando uma rede de
informações mentirosas no ambiente virtual, segundo Zanatta (2018).
A proliferação das notícias falsas compromete o conceito de verdade, con-
forme Benevenuto (2018), a partir do amoldamento da opinião pública aos apelos
emotivos individuais e coletivos, o que permite que qualquer fato possa se tornar
verdade, de acordo com as conveniências dos grupos controladores das informações.
Ao lado disso, as chamadas fact-checking, empresas que inspecionam, averiguam e
confirmam ou não a veracidade das notícias, para combaterem as clickbail, man-
chetes que atraem pessoas através dos compartilhamentos ou cliques, sem que haja
preocupação com a verdade ou não dos fatos, tendo como objetivo a ampliação do
número de leitores.
388 TRANSCICLOPÉDIA EM DIFUSÃO DO CONHECIMENTO

O facebook oferece condições para que o usuário possa reclamar ou denunciar


notícias falsas através de um tutorial utilizado pela versão desktop da rede, embora
a denúncia possa ser feita pelo smartphone (cf. fig. 01).

Figura 1

(Fonte: Facebook)

Para denunciar uma postagem como fake news, o usuário tem no canto direito,
a opção e deve clicar. Após esse procedimento, deve escolher “Dar Feedback sobre
essa publicação” (cf. fig. 2)
Figura 2

(Fonte: Facebook)

Ao escolher a opção “Notícias Falsas”, o usuário poderá utilizar a mesma fer-


ramenta para denunciar outras situações que sejam de cunho duvidoso.
TRANSCICLOPÉDIA EM DIFUSÃO DO CONHECIMENTO 389

Figura 3

(Fonte: Facebook)

Após receber a denúncia, o facebook removerá a notícia caso seja considerada


falsa, embora haja a ressalva de que isso não é garantido, ou não esteja enquadrada
com as exigências da rede. Os dados referentes à pessoa que denuncia – nome, en-
dereço etc. não serão divulgados. Em caso de necessidade de contato, os dados serão
mantidos em sigilo. É aconselhável considerar os pontos de dúvida, isto é, buscar a
confiabilidade de quem escreveu, seja no sentido de sua confiabilidade, como se se
trata de uma notícia verdadeira ou falsa.

O BRASIL NO MUNDO – REPETIÇÃO DOS TEMPOS?


O historiador Robert Paxton (2007, p. 43-44) relata que o movimento fascista
surgiu na Itália, em Milão, em 1919, a partir de um encontro entre sindicalistas
durante a primeira guerra mundial, cujo grupo propunha sufrágio feminino, dentre
outros pontos esquerdistas internacionais, com práticas violentas comuns, inclusive,
tomada de poder através de golpes. Características fascistas ligadas ao exercício do
poder são apontadas por Konder (1977, p. 3-4), sobretudo no que se refere ao disci-
plinamento das classes e de um capitalismo monopolista de Estado.
O fascismo foi colocado em todas as manchetes no Brasil, no ano de 2018, a
partir de manifestações ideológicas autoritárias e contrárias aos princípios da liber-
dade, da dignidade humana, da verdade e da justiça social (Constituição, 1988),
em realce, valores outros como tortura, misoginia, xenofobia, racismo e homofobia.
Esses temas de manifestações preconceituosas foram enfatizados nas manche-
tes impactantes dos principais meios de comunicação, sobretudo nas redes sociais,
pois o atual presidente do Brasil, Jair Bolsonaro, promoveu o discurso retórico e
390 TRANSCICLOPÉDIA EM DIFUSÃO DO CONHECIMENTO

belicoso, ao falar em “fuzilar a petralhada” como resposta ao atentado que sofreu ao


ser esfaqueado. Suas expressões assemelhavam a um clima de propagadores de ódio,
a partir de declarações do seu vice-presidente, o general Mourão: “[...] se querem
usar a violência, os profissionais da violência somos nós”. As palavras mensageiras
de sentimentos de raiva e ódio foram retrucadas pelo então candidato à presidência
da República, Ciro Gomes: “[...] vem general, seu jumento de carga”. Ressalta-se,
aqui, a raiva, uma emoção densa, explosiva, uma irritação desenfreada, imediata que
envolveu o cenário nacional em vários aspectos. Considerada como emoção intensa,
a raiva se manifesta em meio a fortes reações do corpo, ou seja, são as alterações
somáticas, aumento da pressão arterial e tensionamento dos músculos.
Em relação às mulheres do século XIX, a ideologia sustentava a necessidade
de ser mãe, alinhando as propostas de reprodução, vislumbrando a continuidade da
família; de ser esposa e como responsável principal no suporte familiar. Em pleno
século XXI, é exemplificado o caso em que Jair Bolsonaro dissera que não ¨estupraria”
a deputada Maria do Rosário, pois ela “não merece”. Em sua fala, ao comentar sobre
sua filha única, ter sido resultado de uma “fraquejada”, bem como a sua opinião em
não serem criadas novas políticas públicas referentes à desigualdade de salário entre
homens e mulheres. Ao que parece, o tempo passou, mas o sentido das palavras é
o mesmo, pois o presidente, ao ser indagado quanto à existência do preconceito e
do racismo no país e que deveriam ser combatidos, argumentou que não deveria ser
comentado, e sim, silenciado. Na entrevista, não foi diretamente especificada a cor
da pele das mulheres2, entretanto, conforme Trindade (2018), vítimas de racismo e
discursos de ódio manifestados no facebook, bem como de diferentes maneiras de
intolerância estão ligadas às mulheres negras.
Em entrevista, o atual presidente, Jair Bolsonaro externou um dos seus pon-
tos de vista: “[...] o afrodescendente mais leve lá pesava sete arrobas. Não fazem
nada! Eu acho que nem para procriador eles servem mais”, ao visitar um quilombo.
Depreciar pela cor da pele ou por características particulares, nesse caso, parece
o verbo da ordem do dia, pois o racismo não só provoca emoções, também a dor.
E choca. Tudo isto reflete na mudança de comportamento das pessoas, as quais,
muitas vezes, são influenciadas em suas ações, sem passarem pelo crivo da crítica e/
2
Não foi separada a expressão por diferença entre homens e mulheres: “... tudo é coitadismo. Coi-
tado do negro...”. Coitadismo foi o termo utilizado pelo deputado Jair Bolsonaro em entrevista
concedia à Revista Exame, hoje, presidente do Brasil. Além da reportagem, é apresentada uma
gravação da entrevista de 23/10/2018, dada pelo então deputado federal Jair Bolsonaro. (Bolso-
naro promete fim do “coitadismo” de negro, gay, mulher e ...” Disponível em https://exame.
abril.com.br/.../bolsonaro-promete-fim-do-coitadismo. Acesso em 19/1/2019).
TRANSCICLOPÉDIA EM DIFUSÃO DO CONHECIMENTO 391

ou da lógica. Apesar das diferenças existentes, ainda se coloca como sinônimos as


expressões raça e etnia, argumentos para separar, distinguir, segregar. Raça se refere
às características individuais humanas, ou seja, à cor da pele, ao formato do rosto,
do crânio, ao tipo de cabelo etc. Etnia (trans)passa as características físicas e inclui
cultura, nacionalidade, agrupamento tribal, religião, língua, costumes e tradições.
Na Constituição Federal Brasileira, está estatuído um dos seus preceitos “[...]
promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer
outras formas de discriminação”. A homofobia, em falas do Jair Bolsonaro, em 2011,
lembrada e publicada em 2018, é contemplada como forma de discriminação: “[...]
tenho imunidade para dizer que sou homofóbico, sim, com muito orgulho”, embora
haja a ressalva: “[...] se é pra defender as crianças...” O fato gerou uma indenização
de R$150.000,00 e, mesmo assim, foi reafirmado por Bolsonaro, o “coitadismo”.

CONSIDERAÇÕES PARCIAIS
A relevância da situação dos conteúdos falsos cujo sentido é a intenção de en-
ganar, portanto, geradora de conflitos e manifestações diversas de insatisfação, ira,
mágoa, dor ou ódio, vêm permitindo uma alteração na realidade política chamada
pós-verdade, bem como o incentivo ao aprofundamento da pesquisa, cuja finalidade
é da obtenção de certeza e credibilidade.
As redes sociais promovem maior aproximação entre as pessoas, maiores
possibilidades de encontros e reencontros consigo e com o outro, principalmente,
no facebook, já que se tornou a rede mais popular do mundo, Se, por um lado, isso
acontece, apesar de incontáveis fatos de violência e horror na internet, o índice
ainda é menor do que no passado sanguinário ou de escravismo. A luta pelo poder
permanece, mas sem que haja a idolatria aos líderes, nem a hostilidade à paz.
Além do grande movimento de discussões sobre os piores sentimentos que
são disseminados pelos usuários, sobretudo pelos fake news, o aspecto positivo de
toda essa comparação de tempos é a esperança de alteração no comportamento das
pessoas e a qualidade ética da classe política, ainda a passos lentos. A academia e
grandes empresas vêm investindo na busca e na criação de soluções para um mundo
real ou virtual, mais livre e considerado de melhor qualidade.

REFERÊNCIAS
BENEVENUTO, Fabricio. Soluções tecnológicas para o problema das
notícias falsas. Notícias – Universidade Federal de Minas Gerais, Acesso em
7/6/.2018.
392 TRANSCICLOPÉDIA EM DIFUSÃO DO CONHECIMENTO

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Sou homofóbico, sim, com muito orgulho, diz Bolsonaro em vídeo. Disponível
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TRINDADE, Luiz Valério. Discurso de ódio na internet tem mulheres negras


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ZANATTA, Rafael A. F. Eleições e Fake News: o tortuoso caminho do Brasil.


Revista do Instituto Humanitas, Unisinos. Acesso em 20/1/.2019.
44. Fenomenologia

Dante Augusto Galeffi


Robenilson Nascimento dos Santos

Antes de se tratar da Fenomenologia como referencial teórico para as pesquisas


cognitivas em geral, é preciso fazer a inevitável pergunta: o que é fenomenologia?
Essa é a pergunta que não pode ser nunca respondida em definitivo porque a
fenomenologia não é um sistema dogmático de pensamento, mas o esforço do pen-
samento na elucidação infinita de seu acontecimento perceptivo/sensível/cognitivo
encarnado. Portanto, antes de responder à pergunta, procurar-se-á corresponder ao
apelo interrogante de toda questão que nos motive a seguir o caminho investigativo
acerca do sentido intencionado que nos implica como humanos no mundo com
outros semelhantes de tantos outros semelhantes e dessemelhantes.
Portanto, cabe elucidar o termo em uma correspondência com o pensamento
fenomenológico do seu principal autor, Edmund Husserl (1859-1938), dialogando
também com alguns de seus interlocutores e que se fizeram herdeiros de seu legado
e percorreram outros caminhos. A fenomenologia procura pelas coisas mesmas, é
um retorno às coisas mesmas, com isso indicando um movimento crítico que toma
distância das construções teóricas indemonstráveis, um traço marcante da filosofia
de sua época.
Segundo Gadamer (2012, p. 144), a fenomenologia queria dar voz aos fenômenos,
ou seja, buscou evitar toda e qualquer construção indemonstrável e colocar à prova
criticamente o domínio autoevidente de teorias filosóficas, sobretudo no campo da
teoria do conhecimento. A diferença apresentada pela fenomenologia de Husserl é
a seguinte: ela critica a maneira de seus contemporâneos tratarem o conhecimento
filosófico buscando uma resposta para a forma como o sujeito ­preenchido por suas
próprias representações podia conhecer o mundo exterior e estar certo da realidade
do mundo exterior; a crítica fenomenológica mostrava o quanto tal modo de ques-
tionamento se encontrava distante da coisa mesma.
Para a fenomenologia, a consciência não é de nenhum modo uma esfera fecha-
da em si na qual suas representações estariam cerradas como que em um mundo
interior próprio, mas ela se encontra sempre junto às coisas, segundo a sua própria
estrutura essencial. A fenomenologia de Husserl aponta para o falso primado da
autoconsciência propagado pela teoria do conhecimento dominante em seu tempo.
394 TRANSCICLOPÉDIA EM DIFUSÃO DO CONHECIMENTO

Na perspectiva da fenomenologia, não há imagens na consciência representativas


dos objetos e, portanto, a teoria da adequação entre imagens e coisas é equivocada.
Para a fenomenologia, a imagem que temos das coisas é muito mais a maneira
como somos conscientes das coisas. Uma fenomenologia do conhecimento leva em
conta o fato de que só a imagem precisa ser diferenciada da coisa mesma. Seu caso
modelo é a percepção. Na fenomenologia, o que importa é o fato de nossas p­ ercepções
apreenderem as coisas em uma dação (doação) corporal.
A fenomenologia não tira nenhuma conclusão derivada dos estímulos sensíveis
com a pretensão de chegar às causas que se acham à base, pois não há síntese alguma
ulterior de efeitos de estímulos diversos na unidade de uma causa originária que
denominamos coisa. Essa forma de procedimento analítico não passa de construções
que não encontram nenhuma comprovação nos fenômenos.
Assim, conhecimento é intuição, o que significa no caso da percepção imediata,
dação corporal do conhecido na percepção. A intuição tem a sua própria evidência em
si e onde quer que alcancemos uma real intelecção fora da esfera do perceptível, isto
significa que o visado se mostra também em uma doação intuitiva — uma experiência
corporal. Há uma intuição categorial que marca a fenomenologia de Husserl: o visa-
do vem ao encontro como preenchimento da intenção do visar. Esse é o sentido puro e
simples, descritivo, da célebre visão da essência que marcou a fenomenologia contra a
qual se argumentou sem nenhuma propriedade condizente, de forma perspicaz e cega.
Como diz Gadamer (2012), ela não é procedimento algum de patente, ne-
nhum segredo metodológico de uma corrente, mas restabelece ante todas as teorias
construtivas o fato puro e simples de que conhecer é intuir.
Husserl surge em 1913 com suas Ideias e exprime em um editorial o seu projeto
fenomenológico ao afirmar
[...] a convicção comum de que somente por meio de um retorno às fontes
originárias da intuição e às intelecções essenciais que podem ser hauridas delas
é possível avaliar a grande tradição da filosofia segundo conceitos e problemas,
de que só por esse caminho os conceitos podem ser clarificados intuitivamente,
recolocados sobre uma base intuitiva e, então, ao mesmo tempo resolvidos
de maneira principal.

Husserl considerava um horror todas as combinações precipitadas e todas as


construções perspicazes dos iniciantes. Um dos temas prediletos de Husserl era a
fenomenologia da coisa percebida. Nesse ponto, ele desenvolveu, de maneira exem-
plar, a compreensão do fato de sempre vermos de uma coisa apenas o lado que está
voltado para nós e de que a mudança de perspectiva, que acontece no momento em
TRANSCICLOPÉDIA EM DIFUSÃO DO CONHECIMENTO 395

que contornamos a coisa, não poder alterar nada nessa relação essencial: no fato de
nunca vermos senão o lado frontal, jamais o lado de trás da coisa visada. Isso revela um
traço do minucioso trabalho descritivo da fenomenologia desvelando trivialidades.
A questão diretriz de Husserl era: como é que posso me tornar um filósofo sincero?
tendo em vista, Como é que posso conduzir cada passo de meu pensamento de tal modo
que todo passo ulterior possa acontecer em um solo seguro? Como é que posso evitar toda
e qualquer suposição prévia injustificada e, com isso, também realizar finalmente o ideal
da ciência rigorosa?
Com toda a sua força concentrante no retorno às coisas mesmas e com toda a
minúcia de sua analítica fenomenológica, Husserl publicou muito pouco em relação
aos seus experimentos. O que torna o método fenomenológico algo sempre a ser
vivenciado por cada um que se proponha a realizar esse caminho da busca de si
mesmo no mundo com outros semelhantes e dessemelhantes.
A fenomenologia se apresenta como Filosofia Primeira, fundamento sólido para
a edificação em bases seguras de toda ciência de rigor. Talvez nesse aspecto consista
o seu principal contributo metodológico: o retorno às coisas mesmas abre-se como
aprendizagem do vivido no vivente — uma aprendizagem descritiva de desvelamento
do sentido das intencionalidades humanas em suas diversas situações.
A elucidação das essências é o empoderamento humano do sentido em sua di-
nâmica intencional noético-noemática. A partir desse fundamento seguro se poderia
sempre partir de si mesmo, em um retorno radical a si mesmo, na compreensão do
próprio sentido que leva adiante o projeto humano na busca de um conhecimento
afeito às próprias coisas, como atos intencionais de nossas vidas com sentido. Saber
das essências é investigar o sentido das coisas no fluxo contínuo da vida espiritual
humana. O conhecimento como caminho infinito, no qual não cabem formas e
moldes definitivos. O conhecimento como relação dialógica entre o visado e o vi-
dente, o afigurado e o ponto de vista de quem vê.
A intencionalidade como dispositivo estrutural a priori desvela a consciência
como um para fora, pois é sempre a consciência de algo, está sempre, como consci-
ência, visando coisas reais ou imaginárias, está sempre imersa como corpo em um
mundo habitado e compartilhado. A estrutura da intencionalidade revela o modo de
ser humano em sua universalidade. A consciência humana está sempre transcenden-
do seus objetos visados, não sendo uma substância subjacente, mas uma expressão
do vivido no vivente. E por que o projeto fenomenológico de Husserl de restituir o
fundamento apodítico de toda ciência rigorosa não foi capaz de resolver a crise do
fundamento que abalou a Europa entre as duas guerras?
396 TRANSCICLOPÉDIA EM DIFUSÃO DO CONHECIMENTO

O caminho fenomenológico de Husserl foi visto como mais uma tentativa ma-
lograda de buscar o fundamento absoluto para todo conhecimento possível a priori,
emergindo, então, o tema existencial como continuidade do método fenomenológico
que agora coloca o foco da investigação na condição existencial humana.
Antes de tratarmos da abordagem existencial que a fenomenologia acabou por
subsidiar, é preciso delimitar o essencial do propalado método fenomenológico.
Como ele pode ser operado nas ciências humanas em geral?
Na Primeira das Meditações Cartesianas, Husserl considera o caminho para o
Ego transcendental a partir da revolução cartesiana, portanto, pelo retorno radical
a si mesmo. Como diz:
Como filósofos que adotam por princípio aquilo que podemos chamar o
radicalismo do ponto de partida, vamos começar, cada um por si e em si,
por deixar de lado as nossas convicções até aqui admitidas e, em particular,
por não aceitar como dadas as verdades da ciência (HUSSERL, s/d, p. 17).

É hoje possível levar a termo o ponto de partida radical de retorno a si mesmo


como primeiro passo do método fenomenológico?
A intenção do Husserl é a de fornecer à ciência um fundamento absoluto. E
quais são as verdades primeiras em si que deverão e poderão suster todo o edifício
da ciência universal?
O ego cogito como subjetividade transcendental é o ponto de partida metódico
da fenomenologia de Husserl. É ele, afinal, o fundamento apodítico universal como
foi para Descartes?
Ora, o cogito é sempre “meu”, e a epoché se torna o “método universal e radical
pelo qual me capto como eu puro, com a vida de consciência pura que me é própria,
vida na e pela qual o mundo objetivo na sua totalidade existe para mim, exatamente
tal como existe para mim.” (HUSSERL, s/d, p. 33). Como diz Husserl (p. 33):
Tudo o que é “mundo”, todo o ser espacial e temporal existe para mim, quer
dizer, vale para mim pelo simples fato de que dele tenho experiência, percebo-o,
rememoro-o, penso-o de qualquer maneira, faço sobre eles juízos de existência
ou de valor, desejo-o, e por aí adiante. Tudo isso é designado por Descartes
pelo termo cogito. Para falar a verdade, o mundo é para mim apenas aquilo
que existe e vale para a minha consciência num tal cogito. Todo o seu sentido
universal e particular, toda a sua validade existencial, retira-as exclusivamente
de tais cogitationes. Nelas se esgota a minha vida intramundana, portanto,
também as investigações e as diligências que se relacionam com a minha vida
científica (p. 33-34).
TRANSCICLOPÉDIA EM DIFUSÃO DO CONHECIMENTO 397

Não posso viver, experimentar, pensar; não posso agir e emitir juízos de valor
num mundo diferente daquele que encontra em mim e extrai de mim mesmo o seu
sentido e a sua validade. Se me colocar acima dessa vida na sua totalidade e me abstiver
de efetuar a menor crença existencial que põe — o mundo como existente, se visar
exclusivamente essa própria vida na medida em que está consciente de — este mun-
do, então, encontro-me, enquanto ego puro, com a corrente das minhas cogitationes.
Por consequência, de fato, a existência natural do mundo — do mundo acerca
do qual eu posso falar — pressupõe, como uma existência em si anterior, a do ego
puro e das suas cogitationes. O domínio da existência natural tem apenas uma auto-
ridade de segunda ordem e pressupõe sempre o domínio transcendental. É por isso
que a diligência fenomenológica fundamental, quer dizer a epoché transcendental,
na medida em que nos conduz a esse domínio original, se chama redução fenome-
nológica transcendental (HUSSERL, s/d, p. 34).

O “eu sou” é o fundamento apodítico do cogito? Há cogito porque há o sujeito


transcendental, agente das cogitationes?
Sim, o “eu sou” enquanto ego transcendental, quer dizer, o ego puro em suas
cogitationes encarnadas.
398 TRANSCICLOPÉDIA EM DIFUSÃO DO CONHECIMENTO

Husserl atribui a Descartes a criação do realismo transcendental porque em


seu movimento de retorno ao cogito como fundamento apodítico da existência do
ego existente, ele faz do ego uma substantia cogitans (substância pensante) separada,
uma mente ou alma humana (mens sive animus), ponto de partida de raciocínios de
causalidade. Para Husserl, o realismo transcendental‖ é um verdadeiro contrassenso
filosófico.
Para Husserl (s/d), nada de semelhante nos acontecerá, se permanecermos fiéis
ao radicalismo do ponto de partida, do retorno sobre nós próprios e através disso
ao princípio da intuição ou evidência pura, e se, por consequência, fizermos valer
aquilo que nos é dado realmente — e imediatamente — no campo do ego cogito
que a epoché nos abriu, se evitarmos, portanto, anunciar aquilo que nós próprios
não vemos. Descartes não se conformou inteiramente a esse princípio. É por isso
que, num certo sentido, tendo já feito a maior das descobertas, ele não alcançou o
sentido próprio, o da subjetividade transcendental. Não atravessou o pórtico que
conduz à filosofia transcendental verdadeira.
Husserl faz uma fundamental distinção entre o eu psicológico e o eu transcen-
dental. Vejamos:
Se conservo na sua pureza aquilo que, pela livre epoché, no que se refere à exis-
tência do mundo empírico, se oferece ao meu olhar, a mim, sujeito meditante,
capto um fato significativo: eu próprio e a minha vida própria permanecem
intactos (quanto à posição do seu ser que permanece válido) seja qual for a
conclusão que se chegue acerca da existência ou não do mundo, e seja qual
for o juízo que eu possa fazer acerca disso. Este eu e a sua vida psíquica que
conservo necessariamente, apesar da epoché, não constituem uma parte do
mundo; e se esse eu diz: Eu sou, Ego cogito, isso não quer dizer: eu, enquanto
este homem, sou.
“EU” já não é o homem que se capta na intuição natural de si enquanto
homem natural, nem ainda o homem que, limitado por abstração aos dados
puros da experiência interna e puramente psicológica, alcança a sua própria
mens sive animus sive intelectus (mente ou alma ou intelecto), nem mesmo a
própria alma tomada separadamente. Neste modo de apercepção “natural”, eu
e todos os outros homens servimos de objeto às ciências positivas ou objetivas
no sentido vulgar do termo, tais como a biologia, a antropologia e a psicologia
empírica. A vida psíquica, de que fala a psicologia, tem sempre sido concebida
como vida psíquica no mundo. Isso é válido manifestamente também para
a minha vida própria, tal como a podemos captar e analisar na experiência
puramente interna. Mas a epoché fenomenológica, tal como o exige de nós o
seguimento das Meditações cartesianas purificadas, inibe o valor existencial
do mundo objetivo e por isso o exclui totalmente do campo dos nossos juízos.
TRANSCICLOPÉDIA EM DIFUSÃO DO CONHECIMENTO 399

O mesmo se pode dizer do valor existencial de todos os fatos objetivamente


constatados pela experiência externa assim como daqueles da experiência interna.
Para mim, sujeito meditante instalado e persistindo na epoché, e pondo-me assim
como fonte exclusiva de todas as justificações objetivas, não se trata nem de eu
psicológico nem de fenômenos psíquicos no sentido da psicologia, quer dizer,
compreendidos como elementos reais de seres humanos (psicofísicos). Pela epoché
fenomenológica, reduzo o meu eu humano natural à minha vida psíquica —
domínio de minha experiência psicológica interna — ao meu eu transcendental e
fenomenológico, domínio da experiência interna transcendental fenomenológica. O
mundo objetivo que existe para mim, que existiu ou que existirá para mim, este
mundo objetivo com todos os seus objetos extrai de mim mesmo, todo o sentido
e todo o valor existencial que tem para mim; extrai-los do meu eu transcendental
que é o único que revela a epoché fenomenológica transcendental.
Este conceito de transcendental e seu correlativo, o conceito de ­transcendente,
devemos retirá-los exclusivamente da nossa própria meditação filosófica. Su-
blinhemos a este propósito que se o eu reduzido não constitui uma parte do
mundo, do mesmo modo, inversamente, o mundo e os objetos do mundo
não são partes do meu eu (p. 38-40).

A descrição husserliana do método fenomenológico leva ao campo da expe-


riência transcendental e suas estruturas gerais, o que permite vislumbrar o infinito
trabalho fenomenológico. Como diz Husserl (s/d, p. 43):
As cogitationes dadas na atitude da redução transcendental como objetos de
percepção, de recordação etc. não poderiam ser tomadas como absolutamente
certas quanto ao seu ser presente ou passado. É, todavia, possível mostrar
que a evidência absoluta do eu sou também se estende, necessariamente, às
multiplicidades da experiência interna que temos da vida transcendental e
das particularidades habituais do eu. O conteúdo absolutamente certo que
nos é dado na experiência interna transcendental não se reduz unicamente à
identidade do “eu sou”. Através de todos os dados singulares da experiência
interna real e possível — ainda que não sejam absolutamente certos no seu
pormenor — estende-se uma estrutura universal e apodítica da experiência
do eu (no sentido de experiência transcendental e não sensível), como, por
exemplo, a forma temporal imanente da corrente da consciência (p. 42-43).

Segundo Husserl, em virtude dessa estrutura — e se trata de uma das suas


características próprias — o eu possui de si mesmo um esquema apodítico, esquema
indeterminado que o faz aparecer a si próprio como eu concreto, existindo com um
conteúdo individual de estados vividos, de faculdades e de tendências, portanto,
como um objeto de experiência, acessível a uma experiência interna possível, que
pode ser alargada e enriquecida até ao infinito.
400 TRANSCICLOPÉDIA EM DIFUSÃO DO CONHECIMENTO

Concebendo a tarefa da fenomenologia transcendental como uma tarefa infi-


nita, Husserl adverte para o longo caminho que há pela frente para a demarcação
dos seus contornos, horizontes e perfis.
Assim se nos oferece uma ciência de uma singularidade inaudita. Tem por ob-
jeto a subjetividade transcendental concreta enquanto dada numa experiência
transcendental efetiva ou possível. Opõe-se radicalmente às ciências tal como
eram concebidas até ao momento, quer dizer, às ciências objetivas.
Estas (as ciências objetivas) compreendem igualmente uma ciência da subjeti-
vidade, mas da subjetividade objetiva, animal, fazendo parte do mundo. Mas
aqui trata-se de uma ciência de qualquer modo absolutamente subjetiva, cujo
objeto é independente daquilo que podemos decidir quanto à existência ou não
existência do mundo. A dita ciência começará como, portanto, fundamental-
mente como egologia pura e, por isso, parece condenar-nos ao solipsismo, pelo
menos transcendental. Não vemos ainda de modo algum como na atitude da
redução, outros “eu” poderiam ser postos — não como simples fenômenos
do “mundo”, mas como outros “eus” transcendentais, – portanto, como tais
“eus” poderiam tornar-se por sua vez sujeitos qualificados de uma egologia
fenomenológica (p. 44-45).
Se a redução ao eu transcendental tem uma aparência de solipsismo, e por
isso muitos críticos apressados consideraram a fenomenologia como um solipsismo
absoluto, para Husserl claramente o desenvolvimento sistemático e consequente da
análise egológica leva inevitavelmente à uma fenomenologia da intersubjetividade
transcendental, portanto, leva a uma filosofia transcendental em geral.
Para Husserl, o “solipsismo transcendental” seria apenas um escalão inferior
da filosofia. Desse modo, faz-se necessário desenvolvê-lo enquanto tal por razões
metódicas, sobretudo para se poder colocar de modo conveniente a investigação e
os problemas da intersubjetividade transcendental. Há, assim, uma superioridade da
intersubjetividade em relação à subjetividade em sua solidão, mas é preciso sempre
começar dos primeiros degraus para se alcançar os degraus superiores. Então, muitas
vezes os pesquisadores críticos da fenomenologia não mostram a paciência necessária
para o desenvolvimento do ciclo completo da epoché fenomenológica, que deságua
no ego transcendental puro que é em si intermonádico, intersubjetivo.
Outro ponto importante da epoché fenomenológica na visada husserliana é a
análise da “corrente das cogitationes”. E talvez esta seja a parte do método fenomeno-
lógico que mais desenvolvimentos provocaram entre os fenomenólogos e cientistas
sociais. É no campo das cogitationes que cada um de nós se reconhece existente,
encontrando-se na corrente da consciência que forma a vida do eu, deste eu próprio
(o “meu” e o de todos os cogitantes).
TRANSCICLOPÉDIA EM DIFUSÃO DO CONHECIMENTO 401

O salto transcendental de Husserl para “as coisas mesmas”:


O eu idêntico pode a qualquer momento dirigir o seu olhar reflexivo sobre
esta vida, quer ela seja percepção ou representação, juízo de existência, de
valor de volição. Pode a qualquer momento observar, explicitar e descrever o
seu conteúdo (p. 45).

Há nesse ponto uma abertura radical para o “mundo da vida” (Lebenswelt)


e para a superação de uma primazia do conhecimento científico e positivo sobre o
mundo, porque o conhecimento humano se alargou ao infinito com a epoché feno-
menológica de Husserl, não cabendo mais relações limítrofes em zonas desconhe-
cidas ou não ainda experimentadas eideticamente. Há uma abertura, por exemplo,
para a antropologia e a história das culturas, porque agora se trata de investigar as
formas de vida encarnadas no mundo, de investigar a ontologia do ser que somos
em uma abertura nunca vista pela filosofia positiva, defensora do critério de ciência
objetiva e absoluta.
O que podemos ver com Husserl é a pegada fenomenológica de uma eidética
pura (transcendental) que é em seu próprio exercício o seu método de elucidação das
essências inteligíveis intuitivamente: realmente uma abertura infinita para a tarefa
infinita do pensamento filosófico encarnado nas coisas mesmas. Então, tomando o
método fenomenológico em seu horizonte egológico visamos agora a uma fenome-
nologia geral da intersubjetividade. Visamos investigar atos e correlatos de sujeitos
em suas cogitationes, quer dizer, no modo como exprimem em gestos e palavras
situações e acontecimentos.
Gostaria de enfatizar um traço muito importante do método fenomenológico
proposto por Husserl: só para um sujeito que se coloca reflexivamente investigando
a si mesmo, faz sentido o método fenomenológico. E este será sempre o caminho
de quem caminhou a análise das vivências de que as viveu, mas também a intuição
de algo como ego transcendental puro. Basta ver a força do método fenomenológico
nos principais fenomenólogos que passaram por Husserl, a começar do próprio
402 TRANSCICLOPÉDIA EM DIFUSÃO DO CONHECIMENTO

Heidegger, que chegou a ser considerado por Husserl seu principal herdeiro, e que
depois o traiu de modo covarde.
É preciso, então, colocar a questão: qual é a diferença entre a fenomenologia
de Husserl com seu método eidético radical e seus seguidores e discípulos, como
Heidegger, Sartre, Merleau-Ponty, Gadamer, Jaspers e tantos outros?
Gadamer (2012) afirma que não houve escola fenomenológica alguma, mas
apenas grupos diversos de pesquisadores que se encontravam em uma conexão bastante
frouxa entre si. Entretanto, essa conexão podia ser sentida como realidade intensa
quando todos se reuniram em torno da palavra de ordem “rumo às coisas mesmas”.
Foi o método propugnado por Husserl que atraiu a todos os fenomenólogos
em torno de um lento exercício de investigação “rumo às coisas mesmas”. Somente
uma coisa é certa, o modo de trabalho da fenomenologia não pode ser aprendido
por meio de livros e de manuais e cada fenomenólogo tem a sua própria opinião
sobre o que da fenomenologia.
Resta-nos fazer tesouro epistemológico e metodológico das lições vividas com
a investigação fenomenológica radical, aprendendo também a liberdade criadora
diante das incontáveis possibilidades oferecidas para a análise fenomenológica. E
como realizar uma fenomenologia própria e apropriada?
Ora, sempre começando do ponto de partida radical de retorno a si mesmo.
Realizar esse retorno assegurando-se de sua validade para todos os casos da série
eidética humana não é algo que se conquista mediante uma titulação ou certificação
formal, mas se compreende como infinita propriedade de desvelar fenomenologica-
mente o sentido do ser humano no mundo com sua comunidade de outros humanos
e outros entes além e aquém do humano.
Ao se usar o método fenomenológico como recurso operatório de pesquisas
sociais, é preciso ter presente que cada investigador é o fenomenólogo que assume
plenamente a responsabilidade de validar sua construção metodológica a partir de
sua própria e apropriada subjetividade transcendental. E isto usando a gramática de
Husserl, o que não significa que esta seja uma verdade indiscutível, e sim que esta é
a própria criação de uma verdade a partir dos planos de imanência de seus conceitos
e descritores dos fluxos intencionais.
Estamos diante do mais surpreendente e extraordinário: a epoché fenomeno-
lógica pode ser realizada por qualquer um que se assegure da sua concretude e a
partir daí possa também construir suas alternativas de relação com o mundo da vida,
um mundo que já é habitado vivamente pelos que existem nele e que projeta o ser
humano para formas existenciais sempre mais imprevisíveis e radicalmente novas,
TRANSCICLOPÉDIA EM DIFUSÃO DO CONHECIMENTO 403

requisitando dos seres humanos uma educação cada vez mais intensamente afetiva
e cuidadosa com o mundo da vida em sua totalidade segmentária.

Caracterização do Método Fenomenológico: como operar o método


fenomenológico nas metodologias de análise dos processos cognitivos?

Fenomenologia: phainesthai + logos


404 TRANSCICLOPÉDIA EM DIFUSÃO DO CONHECIMENTO

Investigação da consciência, a partir da analítica dos atos e correlatos intencio-


nais, na consciência e pela consciência, na linguagem e pela linguagem – no logos
pelo logos – relação constitutiva de nóesis e nóema, intuição e configuração, sujeito e
objeto, ser e aparecer-no-mundo, eu e outrem em imagem FILOSOFIA PRIMEIRA.
Quem será capaz de prová-la?
A Fenomenologia investiga os dados absolutos apreendidos em intuições eidé-
ticas puras. Visa com isto descobrir as estruturas essenciais dos atos e seus correlatos,
as relações entre noeses e noemas, entre o aparecer e a aparência, o ego e o objeto, o
conhecer e o conhecido, o intuído e o figurado.

Para a fenomenologia, os fenômenos da consciência devem ser estudados em


si mesmos — tudo que podemos saber do mundo resume-se a esses fenômenos, a
esses objetos ideais que existem na mente, cada um designado por uma palavra que
representa a sua essência, significação, delimitação, descrição, sua dinâmica relacional.
TRANSCICLOPÉDIA EM DIFUSÃO DO CONHECIMENTO 405

A perplexidade fenomenológica: retornar às coisas mesmas, à consciência da


consciência e à consciência da inconsciência?
Retornar a si-mesmo é tornar-se autista?

Qual é, entretanto, o sentido radical da investigação fenomenológica? Qual é


o seu propósito? Como é o seu operar?
406 TRANSCICLOPÉDIA EM DIFUSÃO DO CONHECIMENTO

CONHECIMENTO DE SI MESMO? AUTOCONHECIMENTO?


O principal foco da fenomenologia de Husserl é o conhecimento de si mesmo.
Daí ser o método fenomenológico o mesmo que método filosófico. A fenomenolo-
gia é filosofia no sentido próprio do termo. O método fenomenológico é filosófico
no sentido da — busca da verdade‖ apodítica, universal, na imanência absoluta, a
partir de si mesmo consciente do outro em si mesmo: conhecimento intermonádico,
intersubjetivo.
TRANSCICLOPÉDIA EM DIFUSÃO DO CONHECIMENTO 407
408 TRANSCICLOPÉDIA EM DIFUSÃO DO CONHECIMENTO

O método fenomenológico só faz sentido para quem realiza o movimento de


retorno a si mesmo, encontrando aí o impulso para uma vida-com-sentido. Esta
afirmação indica uma disposição deliberada de liberdade absoluta: a busca do ser
humano pela sua verdade — quer dizer, sua aventura infinita — obra de arte em
eterno retorno do diferente — unidade da multiplicidade: cuidado, cuidar, cuidan-
do de si como cuidado do outro na alteridade constitutiva da consciência, além da
consciência reflexiva.
A atitude fenomenológica visa constituir a abertura de possibilidades respon-
savelmente inclinada ao ser plenamente inteligente e radicalmente transformador
de sua própria morada de origem — a origem permanece originando — em nós
mesmos se encontra totalmente todas as possibilidades – por isto mesmo urge uma
ciência filosófica do fenômeno: um caminhar infinito e inconcluso, sempre com o
mesmo vigor da origem: eterno retorno do diferente mesmo-outro.
Em primeiro lugar, o que cada um está buscando quando intenciona adotar o
método fenomenológico? Qual é a objetividade das demandas nossas demandas de
pesquisa dos pesquisadores fenomenólogos? Comece-se por reconhecer o próprio
estado atual de cada um: como cada um sente, percebe... o que cada um espera,
projeta, deseja... o que cada um questiona, vê? Qual é o objeto da pesquisa inten-
cionada? Qual é o intento, a intenção movente?
Onde encontrar a garantia de que “minha” epoché não é uma inutilidade
metafísica? Este é o ponto crucial para todos os que investigam: a diferenciação
entre falar sobre fenomenologia e fazer fenomenologia. Este é o ponto frágil da epoché
TRANSCICLOPÉDIA EM DIFUSÃO DO CONHECIMENTO 409

fenomenológica: o que se pode vislumbrar, desvelar, compreender, intuir não cor-


responde em nada ao mundo dos objetos apreendidos sensorialmente, e só através
da ressonância pode encontrar acolhida e compreensão do outro.
Sendo um ato presenciado apenas por cada um em sua individualidade própria,
é preciso compreender aí mesmo o fundamento noético-noemático que nos coliga
ao mundo da vida. Este é o foco radical da abordagem fenomenológica: a verdade
humana não se encontra fora do mundo da vida humana em seu acontecimento
universal encarnado, histórico, cósmico. É justamente em nós mesmos que devemos
procurar a justificativa última de nossa existência. Isto, entretanto, não nós é dado
imediatamente e só pode ser amplamente alcançado com muita disposição e intensa
atividade noético-noemática criadora.
A partir daí, desta evidência absoluta — pois independente de dados abstratos
e empíricos —, podemos nos devotar a qualquer aspecto da experiência humana que
se mostre relevante e reclame uma evidenciação fenomenológica específica, fazendo
sentido estabelecer planos de configuração de captura do fenômeno intencionado.
Aqui aparece o segundo passo do método fenomenológico; a descrição noético-no-
emática: descrição do intencionado. Isto é feito pela análise dos termos designativos
das essências eidéticas — as palavras e conceitos: seus contornos, suas variantes,
sua funcionalidade, suas diferenças e repetições, suas distinções semióticas, sua
classificação e articulação indicativa, sua significação coletiva, suas singularidades.
A questão agora diz respeito ao ego transcendental que cada um de nós é sem
o saber demonstrativamente. O ego transcendental é a figura conceitual construída
por Husserl para apresentar a ideia do fundamento universal e absoluto do método
fenomenológico. O ego transcendental, entretanto, não é uma ideia abstrata de
ser humano, mas o próprio ato de reconhecimento da consciência-mundo, e que
por isto mesmo pode ser apreendido em sua configuração noético-noemática: um
retorno radical às coisas mesmas. Usando o próprio Husserl, elucidemos este ponto,
partindo do exemplo de uma mesa:
Modifiquemos o objeto da percepção, — a mesa, de uma maneira inteira-
mente livre, ao sabor da nossa fantasia, salvaguardando, todavia o caráter de
percepção de qualquer coisa: seja o que for, mas... qualquer coisa. Começamos
por modificar arbitrariamente – na imaginação — a sua forma, a sua cor etc.
mantendo apenas o caráter de “apresentação perceptiva”.

Dito de outra maneira, transformamos o fato desta percepção, ao a­ bstermo-nos


de afirmar o seu valor existencial, numa pura possibilidade entre outras pos-
sibilidades, perfeitamente arbitrárias, mas, contudo, puras possibilidades de
410 TRANSCICLOPÉDIA EM DIFUSÃO DO CONHECIMENTO

percepções. Transferimos de alguma maneira a percepção real para o reino das


irrealidades, para o reino do “como se”, que nos fornece possibilidades “puras”,
puras de tudo aquilo que as ligaria a qualquer fato.
Neste último sentido não conservamos as ligações dessas possibilidades ao
ego empírico, posto como existente; entendemos essas possibilidades como
puramente e livremente imagináveis de maneira que teríamos podido muito
bem, desde o início, servirmo-nos, como de um exemplo, de uma percepção
imaginária sem relação com o resto da vida empírica.
O tipo ideal da percepção é da espécie elucidada na pureza ideal.
Privado assim de qualquer relação com o fato, torna-se o “eidos” da percepção,
cuja extensão “ideal” abarca todas as percepções idealmente possíveis, enquanto
puros imaginários. As análises da percepção são então análises essenciais; tudo
o que dissemos acerca de “sínteses”, de ”horizontes”, de “potencialidade”,
etc., próprias do tipo de percepção vale – como é fácil de perceber – “essen-
cialmente” para tudo o que teria podido ser formado com a ajuda de uma
tal modificação livre, por consequência, para todas as percepções imagináveis
em geral (p. 93-94).

Terceiro Passo

Dito de outra maneira, trata-se de uma verdade de uma “generalidade essencial”


e absoluta, essencialmente necessária para qualquer caso particular, portanto,
para qualque7r percepção dada de fato, na medida em que qualquer fato pode
ser concebido como não sendo mais do que um exemplo de uma possibilidade pura.
Na medida em que supomos a modificação evidente, quer dizer, apresentando
as possibilidades como tais numa intuição pura, o seu correlativo é uma
consciência intuitiva e apodictica do universal. O próprio eidos constitui o
universal visto ou visível; é o “incondicionado”, e, mais precisamente, o não
condicionado por qualquer fato e isso conformemente ao seu próprio sentido
intuitivo. Está “antes” de todos os conceitos, entendidos como significações
verbais; estes últimos devem antes de mais, enquanto conceitos puros, ser
conformes ao eidos.
Se nos apresentamos, portanto, a fenomenologia sob a forma de ciência intuitiva
apriorística, puramente eidética, as suas análises apenas desvendam a estrutura
do eidos universal do ego, transcendental, que abarca todas as variantes possíveis
do meu ego empírico e, portanto, esse próprio ego, enquanto possibilidade pura.
A fenomenologia eidética estuda, portanto, o a priori universal, sem o qual
nem eu, nem nenhum outro eu transcendental, em geral, seria “imaginável”;
e na medida em que toda a universalidade essencial tem o valor de uma lei
inviolável, a fenomenologia estuda as leis essenciais e universais que determi-
nam previamente o sentido possível (com o seu oposto: o contrassenso), de
qualquer asserção empírica referente ao transcendental.
TRANSCICLOPÉDIA EM DIFUSÃO DO CONHECIMENTO 411

Eu sou um ego meditando à maneira cartesiana; sou guiado pela ideia de uma
filosofia, compreendida como ciência universal, fundada de uma maneira
absolutamente rigorosa, da qual admiti — a título de experiência — a possi-
bilidade. Depois de ter feito as reflexões que precedem, tenho a evidência de
ter, antes de mais, que elaborar uma fenomenologia eidética, única forma sob
a qual se realiza — ou pode realizar-se — uma ciência filosófica, a “filosofia
primeira”. Ainda que o meu interesse se dirija aqui, particularmente para a
redução transcendental, para o meu ego puro e a explicitação desse ego puro
e a explicitação desse ego empírico, só posso analisá-la de uma maneira ver-
dadeiramente científica através de um recurso aos princípios apodícticos que
pertencem ao ego enquanto ego em geral.
É preciso que eu recorra às universalidades e às necessidades essenciais graças
às quais o facto pode ser referido aos fundamentos racionais da sua pura
possibilidade, o que lhe confere a inteligibilidade (1).
(1). É necessário não esquecer o seguinte fato: na passagem do meu ego para
o ego em geral, não se pressupõe nem a realidade nem a possibilidade de um
mundo dos outros. A extensão do eidos ego é determinada pela variação do meu
ego. Modifico-me na imaginação, eu próprio me represento como diferente,
não me imagino “um outro” (p. 94-96).

REFERÊNCIAS
HUSSERL, Edmund. Meditações cartesianas. Lisboa: Rés, s/d.
45. Festival educom

Marcílio Rocha-Ramos

O festival educom — um grande encontro de criação multimidiática — ocorre


como um movimento de autoria coletiva, desconstrução, enunciação das subjetividades
em meios formativos e de ativismo social. É um evento sem as tradicionais hierarqui-
zações, seleção e exclusão porque visa à participação, à produção de redes e afetações
com a radicalidade das potências tecnológicas da sociedade-rede. O festival não visa
destacar aquele-aquela que apresenta uma produção diferenciada, mas destacar o mo-
vimento de criação coletiva, a diferença. Portanto, seu “personagem” não tem uma face
de gênero, mas um corpo múltiplo, criativo, corrosivo. Como um evento de eventos,
o festival educom é uma culminância de criações, movimentos e produção de mídias
ao longo de um período letivo. Para realizá-lo, destacamos aqui os seguintes processos:
• Sensibilização: realização de uma proposição aberta, líquida, envolvente
problematizando as realidades imediatas de um determinado ou indeter-
minado contexto (projeto educom). Sensibilização de lideranças em todos
os níveis de conhecimento (ativação de coletivos). Criação de ecossistemas
educomunicativos (comunicação interpessoal, veiculação em multimídia).
• Leituras.com: Dentro do projeto “festival” se articula a leitura crítica,
autoral, multimidiática. O projeto Leituras.com está associado à produção
em múltiplas linguagens, em diferentes motivações para realização de
roteiros autorais em desconstrução com as produções individualizadas.
Como podemos ver no seu verbete nesta edição é meio de agenciamento
de conhecimentos, desconstruindo o mundo editado, os discursos prontos,
as representações impostas.
• Evento multimídia: o festival é o encontro das diferenças. Lugar das
multiplicidades. Momento em que a protagonização se funde com os
protagonistas. O outro vê a si mesmo transmutado em mídias, conceitos,
produtos. E os grupos de autorias coletivas se percebem com poder para
interferir por meio das suas próprias produções. O festival educom é ex-
posição, é arte, é produção — mas é, sobretudo, reconhecimento1.

1
Para uma visão mais aprofundada da realização do Festival Educom, consultar os verbetes i) Edu-
comunicação: revolução molecular; ii) Cinemação e iii) Leituras.com. Os três verbetes enunciam os
processos de produção educomunicativos nas fases de pré-produção, produção e pós-produção. A
última fase é quando, justamente, se realiza o Festival.
46. Filosofia Própria e Apropriada

Urânia Auxiliadora Santos Maia de Oliveira


Maria Inês Corrêa Marques

Trata-se de um conceito criado por Dante Galeffi configurado em uma compre-


ensão filosófica marcada pela singularidade de um personagem conceitual (ao modo de
Deleuze e Guattari) que pode estar perfeitamente no anonimato, mas que realiza um
filosofar próprio e apropriado. O conceito de próprio e apropriado é polilógico em sua
nascente e plano de imanência do florescimento da filosofia dita própria e apropriada,
exprimindo uma filosofia do Acontecimento. Para Galeffi (texto inédito), no campo
do saber filosófico tudo parece já ter sido dito. A rigor, não haveria mais nada a se
dizer em relação ao ser-no-mundo-com, isto é, ao ser humano em sua condição de
ente-espécie. A filosofia já teria interpretado o mundo e o ser de múltiplas formas,
restando, a partir de agora, apenas reinventá-los, redizê-los, ressignificá-los. Esta
frase segue o fluxo de uma máxima de Marx, com a diferença de uso e contexto. A
reinvenção do sentido-sendo que agora caberia à filosofia não se limitaria apenas à
idealização e teorização, mas se concretizaria na ação individuante e integradora,
no sentido próprio de uma revolução espiritual justa e radical — revolução do in-
divíduo no seio da espécie; revolução marcada pelo signo da diferença ontológica e
antropológica; revolução desconstrutora da atitude humana subjugada e subjugante;
revolução cultural de longo alcance.
Para Galeffi, o ato filosófico é sempre questionador e aprendente; ele nunca
é ato sabedor de uma determinada verdade, mas apenas ato saboreador, experien-
ciador, ato aberto ao seu próprio acontecimento significante. O filosofar é um ato
vivo e instante, daí a sua relação com o acontecimento do sentido-sendo. Entretanto,
essa compreensão do ato filosófico não se encontra dada em manuais de filosofia.
Pelo contrário, ela nasce de um encontro radical com a questão do sentido do ser.
Em primeiro lugar, trata-se de um pensamento próprio e apropriado, um ­diálogo
pensante com vozes ecoantes do pensamento do ser no seu acontecimento. Em
segundo, não haveria sentido algum em se falar de filosofia como de uma atividade
especializada ao modo de uma determinada técnica de saber-fazer, isto é, Galeffi
não está interessado em demonstrar para ninguém uma determinada competência
no campo do saber filosófico erudito. Em terceiro, o seu principal intuito é o de
apresentar uma compreensão de filosofia como atividade aprendente essencial para
414 TRANSCICLOPÉDIA EM DIFUSÃO DO CONHECIMENTO

a localização e realização existencial do nosso próprio ser-no-mundo-com. É neste


ponto que a fala de Galeffi adere à filosofia do acontecimento, isto é, à filosofia viva
do livre pensar aprendente, interessado no sentido do ser e do mundo, filosofia poe-
mático-pedagógica. E porque a sua é uma fala filosófica que acolhe o acontecimento
do sentido-sendo, ele faz um elogio à Filosofia, quase um Poema Sinfônico — isto é,
celebra a vida pela via do pensamento radicalmente implicado no acontecimento do
ser-sendo: permanecer atento ao advento da compreensão conectiva que a tudo une
no mesmo um-nada, e por isto mesmo protege o advento celebrativo no velamento
do sentido — mantendo-se questionador do próprio sentido-sendo.
Para Galeffi, uma filosofia própria e apropriada é filosofia no acontecimento, e
falar em filosofia do acontecimento é mesmo uma provocação de pensamento questio-
nador. Diz ele que, em geral, a nossa individuação como seres pensantes e questiona-
dores é muito vaga e imprecisa. A imagem que se tem da filosofia e do filósofo é, na
maioria das vezes, convencional. A convenção apresenta a filosofia como um sistema
de articulações teóricas consolidadas formalmente, e o filósofo aparece como aquele
que possui a competência de lidar com tais articulações. Ora, isto limita a filosofia
ao campo de uma competência profissional, o que requer uma formação específica,
justamente aquela filosófica. Então, só os que estudaram filosofia na academia são
possuidores da competência devida, não cabendo ao leigo opinar sobre a verdade
filosófica. O filósofo, assim, aparece como aquele portador de diploma de filosofia,
que mostra uma determinada competência especializadíssima: a competência no
conhecimento da obra de um determinado filósofo do passado, ou de um conjunto
deles — uma competência comprovadamente enciclopédica e erudita.
Diante da força inercial dessas imagens (da filosofia e do filósofo), é claro que a
palavra filosofia é logo associada ao conhecimento intelectual complexo, de compe-
tência cognitiva abstrata, e a palavra filósofo logo se confunde com figuras do mundo
acadêmico produtoras e intérpretes do sentido-significado publicamente estabelecido.
Dificilmente, então, um João ninguém poderá ser considerado filósofo no mais radical
sentido do termo. Isto é, um João ninguém como aquele ou aquela que se encontre
fora do regime de controle da qualidade do que é propriamente filosófico. Ora, o que
é mesmo propriamente filosófico? Quem decide isto? É possível encarregar um deter-
minado grupo de intelectuais qualificados formalmente para que decidam o que é que
deve ser filosófico e o que não deve? Não seria isto um atentado ao caráter originante
do pensar filosófico — caráter radicalmente aberto ao acontecimento do sentido-sendo?
Há na formulação de Galeffi a provocação para uma atitude pensante radical.
Com isto acaba se colocando entre os proscritos da filosofia autorizada. O problema
TRANSCICLOPÉDIA EM DIFUSÃO DO CONHECIMENTO 415

é que ele fala em nome próprio e ousa filosofar em língua mater. As questões que o
movem são de uma ordem fora do controle da razão tecnocientífica. Não está, assim,
interessado em demonstrar conhecimentos eruditos de filosofia, pois o que convoca
alcança o espanto originante e nele permanece atentamente. Fala, então, de uma
atitude aprendente originária, de uma disposição ao diálogo interrogante implicado,
onde está sempre em jogo a atenção ao instante em sua valência existencial.
Pensando assim, para Galeffi, a filosofia do (no) acontecimento pode ser dita
publicamente através de uma estranheza radical, onde o encontro com a diferença
ontológica evite representações e reduções apressadas. Assim, ele pode falar sem a
necessidade de apoio nas vozes tradicionais autorizadas. Isto é, a apresentação do que
Galeffi chama de filosofia do acontecimento ou própria e apropriada tem como devir
um encontro efetivo de pensamento instante, sem as pretensões de acabamentos
e conclusões autorizadas. Logo ele fala de uma determinada forma de compreen-
der a filosofia como atividade de pensamento radical que implica no processo de
autoconhecimento aprendente. Ou seja, não acredita na filosofia como sistema de
verdades e crenças absolutas, e isto porque acolhe a filosofia como acontecimento
do ser-implicado, isto é, como vivência própria e apropriada do pensar-pensante.
Sem dúvida, coloca-se em posição de risco, em confronto com as vozes autorizadas
da filosofia, na medida em que afirma hoje uma filosofia cujo plano de imanência é
o autoconhecimento aprendente, interrogante, ignorante. Com isto Galeffi desau-
toriza os feudatários dos territórios filosóficos consagrados a falarem pelos outros.
Ou melhor, quem usa a filosofia como instrumento de autopromoção certamente
desconhece o sentido mais radical e vívido do filosofar aprendente.
Diante da abertura abissal do perceber filosófico, nenhuma interpretação do
ser-no-mundo pode permanecer a mesma por muito tempo. Nela, o estado de apro-
ximação sapiencial é sempre uma dilatação de o próprio ser, o que permite silenciar
as múltiplas e mirabolantes representações do sentido e valenciar a instância do
próprio e apropriado acontecimento do sentido. A filosofia não é aqui concebida como
sistema acabado da verdade universal, mas como abertura disposta e aprendente do
próprio ser-sendo em suas múltiplas e inesperadas temporalidades. Isto apaga do
horizonte a figura do filósofo de profissão como sendo a do portador de um saber
privilegiado. Nesta perspectiva filosófica, o único privilégio é o de sermos pensantes no
acontecimento implicado do nosso ser-no-mundo-com. Qualquer privilégio singular
não passa de ilusão de quem quer dominar os outros com o seu saber competente e
eficaz. Entretanto, é preciso ter plena consciência da dificuldade de se romper com
esse horizonte tradicional da filosofia e do filósofo no Ocidente. O fato é que com
416 TRANSCICLOPÉDIA EM DIFUSÃO DO CONHECIMENTO

essa filosofia do acontecimento Galeffi propõe uma re-invenção da filosofia que possa
alimentar nossa sede e fome de sabedoria abundante.
Não é fácil transpor o limiar do conhecimento para se alcançar a ambiência
da sabedoria. A filosofia aqui acontecendo não pretende ser o acesso técnico para
as várias capacidades operativas do humano, mas um encontro amoroso e decidido
com a celebração da vida-instante, no instante de nossa própria vida. Esse modo de
dizer potencializa o acontecimento de uma nova possibilidade aprendente que pode
fazer florescer uma compreensão conectora do sentido-sendo, inauguradora de uma
potência criadora ainda desconhecida. Por isto, a filosofia do acontecimento elogiada
por Galeffi é a possibilidade de realização de um salto revolutivo no espaço implicado
do sentido-sendo: o descortinamento da amorosidade celebrativa da inteligência
aprendente do saber-ser. Ora, isto não é posse de nenhuma razão já determinada,
mas o advento sempre novo do que nunca tem ocaso: o absolutamente desconhecido
e inesperado des-velante acontecimento do sentido sendo.
Aprofundando ainda mais o sentido de uma filosofia própria e apropriada,
Galeffi fala (texto ainda inédito) da filosofia do acontecimento e da língua de si
na filosofia. Partindo do seguinte questionamento: o que vem a ser Filosofia do
Acontecimento? Trata-se de uma original maneira de pensar? Ou é apenas uma
expressão nova para algo tão antigo quanto o ser humano em sua saga na busca
de si? O autor toma como ponto de origem três fragmentos de Heráclito, ipara
tratar trataremos do que denomina de Filosofia do Acontecimento buscando
compreender o acontecimento da língua de si na filosofia. E como a visada não
é historiográfica, mas filosofante, seguir-se-á um fluxo condizente com o aconte-
cimento presente: sempre do começo!
Os três fragmentos escolhidos como plano de projeção da Filosofia do
Acontecimento:
I. O pensar é comum a todos.
II. Em todos os homens está o conhecer a si mesmo e pensar.
III. Eu busco a mim mesmo. (COSTA, 2002, p. 210-214)

Os fragmentos escolhidos dizem o mesmo: apontam para o sentido aconteci-


mento do pensar apropriador comum — abertura do sentido em sua dinâmica de
oposições e contrastes, antagonismos múltiplos e resoluções triádicas diferenciais e
gerativas. Daí a pergunta fundante: Como é o ser humano em seu existir gerativo,
involuntário e voluntário, inconsciente e consciente, aferrolhado e liberto?
TRANSCICLOPÉDIA EM DIFUSÃO DO CONHECIMENTO 417

Para Galeffi, os fragmentos assinalam traços de um questionamento que se


inicia pelo reconhecimento da comunidade do pensar, pois o pensar é comum a
todos e em todos os homens (seres humanos) está o conhecer a si mesmo e pensar.
Por isso, ressoa com Heráclito: eu busco a mim mesmo (diz Galeffi); “[...] buscar
a si mesmo: o sentido da filosofia do acontecimento”. Entretanto, qual filosofia
não é acontecimento? Trata-se de uma filosofia pessoal e encerrada no atomismo
absoluto de um suposto “eu sou”?
Para Galeffi, filosofia do acontecimento é sempre filosofia de alguém: subjeti-
vação do sentido do ser como pensar apropriador — polilógica do sentido devindo
— acontecimento apropriador, próprio e apropriado.
Nesse sentido, a palavra filosofia está carregada de marcas históricas. É preciso
sempre esclarecer o seu sentido a partir do enunciador que a compreende dessa ou
daquela forma, pois para se poder dizer o sentido de filosofia do acontecimento é
preciso esclarecer de que filosofia se trata.
O modo de corresponder à questão do sentido se mostra em sua historicidade,
como o desenho das constelações: é preciso reconhecer primeiro o território cons-
truído da filosofia na história. Pois, se é razoável dizer que, quando olhamos para o
céu e mapeamos suas posições a partir dos astros, estamos olhando para o passado,
pode-se dizer que, quando olhamos para o que foi produzido pelos seres humanos
desde sua origem, estamos visualizando o passado através de seus rastros, o mesmo
acontece com a Filosofia em sua condição histórica: o que vemos é sempre o seu
passado. E o seu presente, o que acontece com ele?
De imediato surge uma questão importante na elucidação do conceito de fi-
losofia. Pode-se dizer com propriedade que uma coisa é a filosofia como instituição
histórica e escolástica — compreendendo o conjunto da produção filosófica escrita
e consagrada. Outra coisa bem diferente é a filosofia como filosofar, isto é, como
atitude investigativa radical acerca da totalidade conjuntural e interativa na dinâmica
da vida social de subjetivações singulares e conjunturais.
Para Galeffi, a distinção feita é imprescindível para se expressar a filosofia do
acontecimento ou própria e apropriada sem que seja preciso abdicar do sentido
filosófico como acontecimento do sentido que acontece no si impermanente de
cada eu subsistente, insistente na duração encarnada e condicionada pelas ações
anteriores realizadas por encarnações humanas ativas, coletivamente processadas
e agenciadas.
E a Terra continua seguindo o seu curso: quantos indivíduos humanos já
viveram no mesmo planeta sempre outro?
418 TRANSCICLOPÉDIA EM DIFUSÃO DO CONHECIMENTO

Segundo Galeffi, a filosofia é uma construção humana na busca do sentido. E


para corresponder à questão posta do sentido-sendo duas grandes tradições filosóficas
se apresentam cada uma delas pretendendo ser a escolhida na condução da “verdade”:
a sofística e a analítica. Galeffi faz uma escolha nem por uma coisa, nem por outra. A
escolha é de uma coisa e de outra simultaneamente. A escolha é intensiva: não aceita
como dada a “verdade” polarizada e estabelecida como princípio diretivo de tudo, mas
labora na criação e construção da verdade conjugada, reunida, articulada, biunívoca e
triunívoca: a razoabilidade aprendente originante comum a todos. Afinal, diz o autor,
“[...] somos aquilo que podemos ser-sendo no mundo com mundos outros e outros
mundos tal e qual o eu projeta no sentido sendo em seu contexto vital.
A escolha escolhe a complexidade e a abertura filosofante como caminho no
sendo do ser humano em seu conjunto no estado de subjetivação que acontece: a
distinção entre a subjetivação instituída e instituinte e o estado suposto de natu-
reza do sujeito pensante. A escolha é polilógica, polissêmica, polifônica, poliglota.
A escolha foi escolhida no acontecimento inesperado do sendo como acontecer do
pensar comum em desenvolvimento contínuo-descontínuo.
Trata-se de um salto direto às coisas mesmas pelo filosofar: as regras concretas
e as máquinas abstratas da criação humana (DELEUZE; GUATTARI, 1997) são
garantias de que o filosofar apropriador segue o sentido na inclusão da não-verdade
na verdade do ente humano sobredeterminado em suas descontinuidades maquí-
nicas complexas.
Assim, os conceitos de regras concretas e máquinas abstratas são aqui tomados
como estratos do conceito construído de filosofia do acontecimento em uma chave
condizente com o acontecimento do filosofar apropriador: próprio e apropriado. As
regras concretas condizem com as ações vitais contextualizadas. As máquinas abstratas
são tentáculos de captura do acontecimento: o campo ideogramático do sentido, pois
o sentido é um todo indivisível e multiversal — é sempre capturado na imediatidade
intuitiva dos sentidos como sentido.
O sentido em si mesmo é ao mesmo tempo um corpo sem órgãos ideado e uma
imagética de superfície a partir da qual se afigura o sentido (ícone, signo, símbolo).
O sentido e sua ambiguidade reinante: subir e descer, quente e frio, alto e baixo,
sim e não, palavra e silêncio, cheio e vazio, verdade e não-verdade. O sentido-sendo
na deriva universal dos multiversos: o acontecimento na subjetivação instante —
todos no um que está nos múltiplos e nos versos, mas sempre um outro, sendo o mesmo
sempre outro um.
Nessa visada, a unidade não constitui mais um problema e sim uma solução
abrangente: um metaponto de vista articulador de uma homogeneidade de relação.
TRANSCICLOPÉDIA EM DIFUSÃO DO CONHECIMENTO 419

A unidade é sempre vazia e múltipla. Ela não tem forma, podendo sobredeterminar
toda forma e todo estado de coisas possíveis. Portanto, a unidade é também um traço
do acontecimento: cada vez um! Um por vez: eis o acontecimento! A unidade garante
ao acontecimento sua potenciação criadora. O criador na medida da aprendizagem
comum: o caminho humano. Aprender para ser sempre outro de si!
Um saber ser: saber cuidar, deixar ser, ultrapassar ser, tornar-se não-ser na
abertura do ser outro: a dobra do sentido, o sentido da dobra. Um jogo de palavras
que aponta para o sentido do acontecimento do pensar comum associado ao âmbito
do filosofar. Isto requer uma tomada de decisão: uma ruptura, uma transgressão,
uma transversalidade, um atravessamento dos olhares particulares e das objetivi-
dades constituídas.
Para Galeffi, filosofar é tomar ciência de si mesmo no pensar que é comum a
todos. Não é um ato pessoal dotado da singularidade das personalidades afetadas,
mas um ato que se impõe na escalada humana no acontecimento da deriva cósmica.
É preciso dilatar o campo de visada do sentido filosófico do acontecimento para
re-situar o ser humano na história do planeta. A Terra é um pequeno planeta de um
sistema solar pequeno em uma galáxia que é uma entre incontáveis aglomerados
galáticos diversos.
Desse modo, o questionamento filosófico se impõe pela condição ontológica
da espécie humana em sua multiplicidade. E isto requer condições políticas favore-
cedoras de uma ética da comunidade partilhada por reconhecimento investigativo
e não baseada em uma crença qualquer. O sentido do pensar comum é algo que se
encontra disponível a todos os entes pensantes, que de algum modo são todos os
entes sem exceção.
Por isso, inevitavelmente o questionamento filosófico do acontecimento é an-
tropológico porque diz respeito ao ser humano na busca de si. Mas ele não pode ser
concebido como antropocêntrico. Agora a centralidade humana dá lugar à tríplice
centralidade conjugada em unidade maior. A unidade aqui aparece em sua policentria
porque reúne ângulos e configurações em um mesmo plano de imanência: o início
do diálogo inter e transdisciplinar.
Para Galeffi, o caráter antropológico do filosofar é, pois, um traço do ente
antropoide que somos: o filosofar se ajusta à medida humana, é uma atividade
aprendente. É também o meio de acesso ao caminhar do sentido no acontecimento
da consciência da consciência e da consciência da inconsciência (LUPASCO, 1994): o
acontecimento da construção humana em sua dinâmica gerativa; o desassujeitamento,
a desalienação, a tomada vital de si mesmo na dinâmica do viver e do morrer. Cami-
420 TRANSCICLOPÉDIA EM DIFUSÃO DO CONHECIMENTO

nhos da infinitude na finitude: abertura da autonomia sustentada pela comunidade


implicada. Acordo afetivo como o fundante ético do comum-pertencimento.
Trata-se de um acontecimento comum a todos os homens. Quer dizer, o aconte-
cimento comum é inerente ao projeto humano em seus desenvolvimentos históricos.
O ser humano é de modo único um complexo desejante holográfico da totalidade
material, vital e mental simultaneamente. É um ser projetado em suas possibilidades
de poder ser plenamente. Mas é um ser que tem que aprender a ser para ser propria-
mente. E ser propriamente é uma clivagem na deriva do poder-ser: multiplicação
e diferença, diferenciação e divergência, oposições e convergências, caos e ordem,
loucura e razão, desmedida e medida; quente, frio e morno. Gradações de intensidade
e de afetos. Uma política dos afetos.
Uma filosofia própria e apropriada necessariamente fala a língua de si.
Segundo Galeffi, a linguagem do pensamento ressoa sempre na língua de si do
pensador. A língua de si do pensador é sua forma de apropriação pensante por meio
da forjadura dos conceitos e distinções eidéticas puras e implicadas.
A língua de si é o acervo expressivo do pensador através do qual ele filosofa. É
o instrumental linguístico do pensador adquirido ao longo de sua existência fática.
A língua de si do pensador é uma estratificação histórica advinda de processos so-
cietários que conjugam os indivíduos no legado dos artífices dos nomes das coisas
(poetas, legisladores, escritores, gramáticos). Assim, a língua de si é a maneira usual
do pensador investigar o sentido comum de si mesmo, na perspectiva do seu flores-
cimento ontológico próprio. A língua de si na filosofia é a maneira como vem à luz
o pensar apropriador do pensador que se põe no caminho da investigação que é um
processo criador contínuo.
Segundo Galeffi, a palavra “transformação” é apropriada para exprimir a língua
de si na filosofia. Quando alguém, por exemplo, aprende filosofia escolástica aprende
também grego e latim obrigatoriamente. Assim, a língua de si de Spinoza ou de qual-
quer outro pensador que se formou nos moldes escolásticos será aquela por meio da
qual ele exprime suas sentenças e proposições, deduções e considerações.
É evidente como a língua de si não seja algo improvisado de índole pessoal
atomizada. A língua de si de cada pensador é sua paleta como se fosse um pintor de
paisagens e eventos, descritor de fluxos e passagens, crivos e clivagens. Portanto, a
língua de si não é uma invenção deliberada de alguém, mas o modo mesmo como
cada pensador/pensadora se torna filósofo/filósofa por meio da interlocução com as
obras da tradição por meio de sua investigação própria. De nada adianta seguir o
caminho já demarcado pela tradição, a língua de si será sempre uma surpresa no
TRANSCICLOPÉDIA EM DIFUSÃO DO CONHECIMENTO 421

caminho do pensar comum. Cada pensador, cada filósofo tem seu modo próprio
de construir a expressão do sentido?
Galeffi considera este aspecto muito elevado. É muito elevado encontrar seres
humanos que produzem obras de pensamento pelo desejo de conhecer tudo. Um
desejo estranho, e que requer por primeiro o esvaziamento de toda pretensão de
acabamento e imobilidade do saber-ser. A aventura humana permanece no aberto
da própria deriva cósmica. Não seria razoável conceber um filosofar apaziguador
dos embates fundamentais do sentido-sendo. Seria como negar o princípio da im-
permanência pela fixação de um ideário qualquer: a construção de uma consolação
metafísica apaziguadora da contraditoriedade e antagonismo originário.
A expressão língua de si na filosofia soa como uma impropriedade e uma con-
tradição, o que pressupõe um grande preconceito relativo à língua do pensamento,
como se ela fosse desencarnada e sempre a mesma, sempre homogênea e idêntica a
si mesma. Como se a filosofia fosse uma coisa definitiva em suas verdades pronun-
ciadas e construídas. Como se a língua do pensamento pudesse existir sem a língua
de si do pensador.
Diz Galeffi, “[...] a língua de si do pensador não é uma língua pessoal, mas é
composta a partir de estratificações maquínicas de toda espécie, séries de séries de
agenciamentos coletivos”. É uma língua de si como uma nascente e um agencia-
mento de habitação e proteção. Pela língua de si tudo se conecta ao sentido em seu
esclarecimento próprio e apropriado.
Tomando a língua de si de Heráclito como exemplo, Galeffi aponta que ele,
como grego, expressa “o pensar comum a todos” em língua grega. Será, então, que
a língua do pensamento é necessariamente grega, sendo assim a filosofia uma coisa
única dos gregos e de seus ascendentes?
Quando se diz que a filosofia é uma invenção grega quer dizer que o logos de
Heráclito é algo intraduzível para outra língua qualquer, ou o próprio Heráclito
já nomeia o pensar como algo comum a todos os homens? Será que Heráclito está
dizendo que o pensar é comum apenas para quem é grego? Pensar assim seria como
definir o ánthropos como uma exclusividade grega. Mas o ánthropos já é por Heráclito
nomeado em sua generalidade e não apenas em sua localidade. E, apesar disso, lógos é
um signo da língua de si de Heráclito: quantos anônimos estão presentes nos extratos
do conceito de logos cunhado por Heráclito? Quantos séculos foram necessários para
o aparecimento da língua de si de Heráclito?
Seguindo interrogando, Galeffi faz uma série de questionamentos: E a língua
de si do pensamento atual, como se faz presente? É possível filosofar em língua
422 TRANSCICLOPÉDIA EM DIFUSÃO DO CONHECIMENTO

própria, ou só se pode filosofar a partir do léxico grego e seus desenvolvimentos


ocidentais escolásticos? Por acaso, para se poder filosofar é preciso estar filiado
a alguma escola de pensamento e daí por diante seguir determinado mestre ou
mestres? Ou o filosofar pode ser acessado diretamente por cada um quando to-
cado pelo sentido implicado? Seria consistente pôr em relevo a natureza comum
do pensar de todos os seres humanos? Seria, portanto, legítimo afirmar uma
Filosofia do Acontecimento como criação coletiva precipitada em determinados
agenciamentos históricos, pela presença anônima de pensadores radicais? Seria
este o momento de deixar de lado o pessoalismo filosófico sem perder de vista
seus grandes personagens conceituais?
Sem dúvida, diz Galeffi, “[...] o filósofo de raiz é um acontecimento raro e não
há nenhuma garantia de que seja possível reproduzir os meios de seu aparecimento
na maquinaria da linguagem acadêmica”. E nem muito menos pretender determinar
quando alguém é capaz de plasmar um novo conceito e uma linha de fuga diferente das
anteriores a partir do mesmo solo e das mesmas condições de origem de tantos outros.
O espectro é bastante amplo, não cabendo paralisar o fluxo do pensar em territórios
consagrados, que sem dúvida são parte da geofilosofia consolidada culturalmente.
Galeffi considera que as escolas são importantes, os mestres formadores são
fundamentais na formação social do pensar filosófico apropriador. Aqui está o salto
e o desconhecido: é preciso pensar como Deleuze (2001), que acolhe o empirismo
de Hume como abertura para se investigar a construção humana em oposição ao
instinto, sendo instituição, pois o homem não nasce sujeito, se torna sujeito. O salto,
então, está na subversão da subjetividade como fundamento metafísico do sentido,
pois, pelo contrário, toda subjetividade é um arranjo complexo que só se esclarece em
seu modo de ser afetivo. Assim, pois, sendo a atividade filosófica uma coisa humana
só se pode compreendê-la em seu acontecimento incorporado, pois se o pensar é
comum a todos, como seria possível eleger um único ponto geográfico como lugar
privilegiado para a produção da verdade como sentido incorporado?
Portanto, a radicalidade filosófica da língua de si na perspectiva do aconteci-
mento está fora das territorializações instituídas. O que não significa que não possa
se institucionalizar como acontecimento, podendo, inclusive, se tornar o “seleiro”
do tempo instante e plano de imanência do projeto humano sustentável em seu
agir aberto ao acontecimento sempre devindo, não realizado, mas já anunciado
na imagética do sentido, desde os primórdios, pois o sentido de uma filosofia do
acontecimento é a desalienação do processo do pensar comum a todos, o que abre
o campo para a diversidade e a diferença do filosofar.
TRANSCICLOPÉDIA EM DIFUSÃO DO CONHECIMENTO 423

Se o filosofar é, desde sua nascente grega, um diálogo investigativo que mira


a Sophia como horizonte final, isso quer dizer que o trabalho filosófico deve ocorrer
como acontecimento de subjetivações que tomam as rédeas do pensar e saber pensar
como sentido ontológico vital, cabendo realizar a consumação em sua própria paleta
percussiva da criação pensante.
Porque o pensar é comum a todos é que todos são potenciais multiversos exis-
tenciais completos e inacabados simultaneamente. No fundo, pois, do acontecimento
encontra-se a transitoriedade e a transformação contínua do viver, e só faz sentido
filosofar em língua e linguagem própria, pois o saber ser é a maior aspiração que se
pode reconhecer na espécie humana desde a sua nascente até agora.
Como, então, distinguir a filosofia das demais atividades humanas? Como
estabelecer o reconhecimento do pensar comum como base política para se pensar
uma filosofia do acontecimento, uma filosofia polilógica, uma filosofia da diferença
sem negar a repetição?
O que tem a ver, pois, o pensar comum com a filosofia e o filosofar instituído?
Filosofia do acontecimento ou própria e apropriada se coloca, pois, na abertura da
busca humana pelo si mesmo em sua composição complexa. Heráclito já o indicava,
e ele que nem filósofo se considera, e sim sábio. O sábio diz que busca a si mesmo.
Por que o filosofar deveria ser diferente do buscar a si mesmo?
Galeffi diz que se encontra diante de um promontório histórico em que todas
as cenas já figuradas pelos grandes personagens conceituais da história desfilam no
compasso de espera dando a impressão de que podem a qualquer momento entrar
em cena e apresentar o seu discorrer e encenar próprio. Tudo se reúne no “seleiro”
do tempo instante e o acontecimento convoca à experiência da subjetivação na
perspectiva filosófica desterritorializada.
Para Galeffi, a filosofia do acontecimento mostra suas faces e perfis a partir de
seus multifocos e sua lógica inclusiva de tantos outros e intensiva. Trata-se de uma
filosofia como acontecimento potencial, atual e terceiro. Ela pode ser acessada em
qualquer ponto do planeta, já que é o planeta Terra que se afigura como ambiente
limite do seu possível acontecimento. Um acontecimento que tem a descontinui-
dade como ponto de corte, como fissura no tecido do ser dado na linguagem-lei
estabelecida. Uma aventura da subjetivação humana. Algo em relação ao qual não
se pode imaginar medida e plano de modelagem homogêneo e etnocêntrico e antro-
pocêntrico. Algo aberto em sua deriva aberta no tempo irreversível: o acontecimento
filogenético e molecular de todo acontecimento comum — potência, ato e inclusão
do Terceiro como o sujeito mesmo do Acontecimento.
424 TRANSCICLOPÉDIA EM DIFUSÃO DO CONHECIMENTO

Para Galeffi, a perplexidade continua porque não é possível ouvir o logos


de Heráclito sem levar em conta a sua aflição e solidão diante de seus contem-
porâneos. Como se o filosofar comportasse sempre a gravidade do saber ser e a
solidão do poder ser. Uma gravidade e uma solidão que não se pode imaginar
superar na radicalidade implicada do buscar a si mesmo. Mas ela também pode
compreender a leveza e a comunidade de sentido, sem que seja preciso negar a
solitude e a aflição própria do pensar comum. O riso e a ironia também são traços
do pensar comum. Juntando o que se encontra separado, temos o pensar como
maquinaria abstrata para a encarnação do sentido e como maquinaria de guerra
para a transformação criadora. Mas tudo depende também do afeto e da crença
de que o pensar comum nos torna semelhante ao poder-ser e nos transforma em
curadores de si na alteridade originante aberta na deriva cósmica que nos origina
como projeto inacabado: ser pôr fazer-se.
Segundo Galeffi, tomando Heráclito como horizonte de expectativa, a filosofia do
acontecimento é comum a todos os “homens” (pensando o termo como qualificativo
do ser humano independente de seu gênero). Isso quer dizer que há no humano a
possibilidade de um processo de subjetivação no qual se pode experienciar a passa-
gem da passividade ontológica para a atividade de construção comum-pertencente.
E quando o projeto humano pode ser pensado em sua sustentabilidade triecológica:
ambiental, social e mental (GUATTARI, 2009), delineia-se uma política dos afetos
como caminho da sustentabilidade incorporada.
Para Galeffi, isto ainda pertence ao acontecimento do sentido e não há motivos
para conceber o acontecimento fora da deriva cósmica da saga humana. O tempo
longo que ainda se projeta em possibilidades para a experiência humana permite
figurar a filosofia do acontecimento para além e aquém do esperado e do já prefigu-
rado nas estratificações da atividade filosófica.
Assim, tomando os indicativos de Heráclito como fios condutores, o aconteci-
mento do sentido na possibilidade humana prefigura-se como abertura à atividade
filosofante em sua dinâmica criadora própria e apropriada. Para isto, é preciso tomar
para si a tarefa de reinventar, redizer e recriar o sentido que implica em uma maneira
radical de destinar-se ao inesperado do sentido-sendo: eu busco a mim mesmo!
Para Galeffi, isto continua sendo a possibilidade de o inesperado rasgar o véu
do sentido. Para isto, é preciso saber esperar o inesperado, para que seja concreto
realizá-lo na abertura do tempo instante que não guarda marcas do que foi, mas é a
presença viva do que ama arder na maquinaria antropológica prolongada na deriva
cósmica incontornável.
TRANSCICLOPÉDIA EM DIFUSÃO DO CONHECIMENTO 425

Sendo o pensar uma marca do poder-ser, aprender a pensar é decidir pelo que se
institui como fazer antropológico em relação ao qual o ser humano não é o centro e
nem muito menos o único a possuir o poder ser como sua propriedade ontológica. A
filosofia do acontecimento não pode ser uma repetição do que já se encontra instituído,
o que não significa que o instituído desapareça do corpo sem órgãos da filosofia do
acontecimento, mas sim que o instituído se torna a imagem passada do que já foi criado
pelos artífices conceituais que construíram filosofemas para responder exaustivamente
à alguma pergunta capital, pois concordando com Deleuze:
[...] uma teoria filosófica é uma questão desenvolvida, e nada mais: por si
mesma, em si mesma, ela consiste não em resolver um problema, mas em
desenvolver ao extremo as implicações necessárias de uma questão formulada.
(DELEUZE, 2001, p. 119-120).

Assim, para Galeffi, se é aceitável que o pensar é comum a todos, é também acei-
tável que o seu acesso pode ser realizado por cada ser humano, o que não quer dizer
que se possa imaginar como algo dado, posto ser a abertura para a atividade humana
criadora de sentido por meio de seu fazer vital. Há, pois, uma vitalidade na filosofia
do acontecimento que não se pode perder de vista e de mira. Trata-se da vitalidade da
experiência do pensar apropriador. Isto pressupõe a crença em uma filosofia vitalista
porque justamente o filosofar é uma experiência vital e não uma representação objeti-
vada da forma ideal do que se mostra real. Daí a filosofia do acontecimento ou própria e
apropriada se encontrar ao alcance da compreensão humana, mesmo se o seu eidos se
nutra do extraordinário, que é sua própria aparição conjuntiva. Conexão de tudo com
tudo! Eis o filosofar aberto ao acontecimento! Nenhum programa prévio, nenhuma
estabilidade última. Apenas a convicção de que o pensar é comum a todos, e por isso
ele está disponível à experiência dos afetos humanos e pode projetar o humano além
de sua autoimagem fixa. Um ser de passagem, o humano como mediador privilegiado
de tudo. Um holograma da totalidade dinâmica. Um espanto encarnado!
No acontecimento, múltiplas e diversas possibilidades. Na filosofia do aconte-
cimento, a língua de si se torna a presença de um personagem conceitual inesperado.
Nas múltiplas e diversas possibilidades se configura como pensar que não resolve
problemas, mas examina maquinações e projetos ontológicos: visualiza o invisível
em agenciamentos maquínicos e de enunciação. Sempre uma via de mão tripla: um
ir e vir e um retroagir constante. Uma dialógica tensiva cuja resolução não é uma
fixação e sim um novo recomeço.
Assim é a filosofia do acontecimento: algo que só faz sentido para quem se dá
como personagem conceitual do acontecimento. Algo impossível de ser comunicado
426 TRANSCICLOPÉDIA EM DIFUSÃO DO CONHECIMENTO

ou refletido. Algo além da métrica racional da acomodação e do fechamento. Algo


aberto à experiência própria e apropriada do pensar: será isto filosofia?
Galeffi diz que cada um sabe a qual verdade corresponde e sabe também se age
como se possuísse pensamentos particulares, portanto como quem está adormecido
e alienado, ou se já se acha desperto na dialógica do acontecimento como sentido
encarnado. Mas para isso é preciso também deixar de lado o instituído e buscar a si
mesmo diretamente. Quem, entretanto, pode lançar-se nesta aventura permanecendo
no anonimato do acontecimento? Bem-aventurado o pensar apropriador porque ele não
é pessoal! Quem haverá de se tornar filósofo no acontecimento próprio e apropriado?
Por onde, então, começar? Começar buscando a si mesmo: tem início a filosofia
do acontecimento. Tem início, mas não tem fim e sim reinício, pois no filosofar tudo
se faz dança e festa quando o pensar nos atravessa: a subjetivação criadora!
Em linhas gerais, esta é a concepção de filosofia própria e apropriada de Dante
Galeffi, que é uma porta aberta à criação de si como abertura para o aberto: impre-
visibilidade incorrigível.

REFERÊNCIAS
COSTA, Alexandre. Heráclito: fragmentos contextualizados. Rio de Janeiro:
Difel, 2002.

DELEUZE, Gilles. Empirismo e subjetividade. Ensaio sobre a natureza


humana segundo Hume. Tradução de Luiz B. L. Orlandi. São Paulo: Editora 34,
2001. (Coleção TRANS).

DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Félix. Mil platôs – Capitalismo e


Esquizofrenia. Vol. 5. Tradução de Ana Lúcia de Oliveira. São Paulo: Editora 34,
1997. (Coleção TRANS).

GUATTARI, Félix. As três ecologias. Tradução de Maria Cristina F.


Bittencourt. 20.ed. Campinas: Papirus, 2009.

LUPASCO, Stéphane. O homem e suas três éticas. Tradução de Armando


Pereira da Silva. Lisboa: Instituto Piaget, 1994.
47. Finanças Solidárias

Juçara Freire dos Santos

Figura 1 – Moeda social – Banco Comunitário Abrantes Solidário

As finanças solidárias são expressões da sociedade de auto-organização coletiva,


utilizadas por pessoas e grupos organizados de um determinado território ou comu-
nidade. Conforme França Filho (2010a apud FRANÇA FILHO, 2013), procedem
de forma própria com o objetivo de fazer a gestão dos seus recursos econômicos,
tendo por base os princípios de solidariedade e confiança mútua.
O contexto contemporâneo retrata as evidências das condições de desigualdade
e exclusão econômica, social e política a que estão submetidas grandes parcelas das
camadas populares. Analisado por Iamamoto (2008) ao referir-se à globalização
mundial, à hegemonia do grande capital financeiro, da aliança estabelecida entre
o capital bancário e o capital industrial, determina novos padrões de produção e
de trabalho. Como decorrência, a demanda de trabalho é reduzida, aumentando a
população sobrante para as necessidades médias do capital, o que amplia a exclusão
social, econômica, política e cultural de homens, mulheres, jovens e crianças das
classes subalternas, que passam a viver sob o domínio de uma violência institucio-
nalizada. O novo tempo é marcado pela ausência de equidade, agravamento das
questões sociais, exaltação do mercado e do consumo e crescente concentração de
renda, capital e poder.
Reforçam esse argumento os autores Antunes e Pochmann (2008), trazendo
informações sobre o desemprego com base numa análise da evolução da pobreza
428 TRANSCICLOPÉDIA EM DIFUSÃO DO CONHECIMENTO

no Brasil1, observando que, em um mercado de trabalho que demonstra restrição e


comportamento pouco dinâmico, os empregos de destaque são reservados para os
segmentos de mais alta renda, mesmo numa dimensão insuficiente que permita uma
sequente mobilidade socioprofissional — o que resulta em aprofundamento da crise
de reprodução social no interior do mercado de trabalho, com maior peso para os
trabalhadores ativos no interior da pobreza brasileira. Constatam, nas duas últimas
décadas, o aparecimento de uma nova forma de reprodução da pobreza, cada vez
mais concentrada no segmento da população que se encontra ativa no interior do
mercado de trabalho (desempregados e ocupação precária).
A questão era observada por Furtado (1992) ao alertar para os traços caracte-
rísticos do desenvolvimento, referindo-se à morosa absorção de mão de obra ao gerar
consequências de desemprego crônico e pressão para a baixa de salários da mão de
obra não especializada — particularidade da chamada sociedade de serviços — que
apresenta elevada taxa de desemprego somada à parte expressiva da população que
exercia atividades laborais em tempo parcial e de forma precária. Para o autor, no sistema
econômico nacional, a prevalência de critérios políticos deveria superar a rigidez da
lógica econômica pelo bem-estar coletivo. Ao desprezar a referência do sistema econô-
mico nacional e a produtividade social, a ideia de política econômica perde sentido e
retorna à economia de mercado em estado puro, como foi concebida por Adam Smith.
Para Furtado (1992), a ausência de um confiável sistema de regulação ­plurinacional
consequentemente iria resultar em desemprego crônico de recursos produtivos. Admite
que o “freio” a esse processo poderia vir de grupos da população, reivindicando a
preservação de suas raízes culturais e valores ameaçados — fruto da homogeneização
de padrões comportamentais imposta pela racionalidade econômica.
Na mesma linha, Kraychette (2000) reporta-se à confluência de constatações
de como as mudanças na estrutura do mercado de trabalho, nas décadas de 1980
e 1990, resultaram em aumento do desemprego, na redução do número de tra-
balhadores assalariados e no crescimento do número de trabalhadores por conta
própria. Como decorrência, observa-se uma dependência de significativa parcela
da população relacionada às atividades localizadas no trabalho realizado de forma
individual, familiar ou associativa. Segundo o autor, com base em dados do IBGE
nos anos 1990, todas as regiões brasileiras apresentaram taxas de desemprego que
são, no mínimo, o dobro das verificadas no final da década de 19802.
1
In: ANTUNES, Ricardo; POCHMANN, Márcio. Dimensões do Desemprego e da Pobreza no
Brasil. ­Interface. Revista de Gestão Integrada em Saúde do Trabalho e Meio Ambiente.
2
Conforme a metodologia adotada na pesquisa, observam-se variações dos números de desem-
TRANSCICLOPÉDIA EM DIFUSÃO DO CONHECIMENTO 429

As injustas consequências geradas pelo capitalismo impõem a necessidade da


busca de respostas, alternativas, ou mesmo de se rever concepções. Conforme enfatiza
Santos (2001 apud CORTIZO; OLIVEIRA, 2004), os desafios da pós-moderni-
dade configuram-se em uma teoria que contrapõe aos universalismos e totalidades.
Nessa teoria, as alternativas são potencializadas e valoriza-se o multicultural, o
transdisciplinar, a subjetividade, a inquietação, a indignação, as diferenças. Baseia-se
na diversidade, no embate às questões relacionadas à resignação e ao conformismo.
Revive-se o compromisso com a utopia, a esperança e a emancipação. Para o autor,
torna-se inviável a existência de uma única alternativa ou modelo de generalização,
pois as experiências precisam ser conhecidas e compartilhadas entre diferenciadas
alternativas e localidades, como suporte e referencial epistemológico, uma vez que
é no ato da troca, da socialização e articulação em rede que se constituirá a força e
a sustentabilidade.
Com base nas autoras Cortizo e Oliveira (2004), os argumentos a respeito da
pós-modernidade direcionam para a transformação social num processo de com-
plexificação da realidade cuja relevância é a da coletividade, ao invés de um único
sujeito, como também dos locais, dos grupos com potencial para gestar e construir
relações democráticas, participativas, equânimes e autônomas. Essas reflexões con-
tribuem para um entendimento das iniciativas de economia solidária como expe-
riências que se destacam pelo potencial emancipatório e por representarem formas
de organização econômica não capitalista, baseadas na igualdade, na cooperação,
na prudência ecológica, na solidariedade (SINGER, 1997, 2000, 2002; MANCE,
1999; LISBOA, 2001; CATTANI, 2003 apud CORTIZO; OLIVEIRA, 2004).
A economia solidária constrói um movimento social amplo e organizado com
visibilidade econômica, social e política. Como explica Schiochet (2006), no Brasil,
o conceito tem sido apropriado na luta por identidades sociais e, na esfera pública,
crescente número de atores, como trabalhadores, trabalhadoras, comunidades pobres,
comunidades de populações tradicionais e grupos de classe média, pautam práticas
coletivas numa linha de economia solidária. Esboça-se a existência de um sujeito
coletivo cuja identidade, interesses e projeto associam-se aos princípios, práticas e
propostas da economia solidária.

pregados no Brasil. O IBGE considera como empregado qualquer pessoa que fez algum tipo de
trabalho na semana anterior à pesquisa. O índice de desemprego apurado pelo Dieese/Seade con-
sidera o desemprego oculto pelo trabalho precário (aqueles que procuram trabalho, mas exercem
precariamente alguma atividade) e o desemprego oculto pelo desalento (aqueles que gostariam de
estar trabalhando, procuraram trabalho no último ano, mas não o fizeram nos últimos 30 dias).
430 TRANSCICLOPÉDIA EM DIFUSÃO DO CONHECIMENTO

Na complexa relação entre o Estado e a sociedade civil, a economia solidária,


segundo Schiochet (2006), representa uma questão pública, de direito e de dever
público, a ser encarada em âmbito do espaço público. Daí porque, conforme o autor,
estabelece-se uma contradição entre as bases que constituem a economia solidária
(autogestão, solidariedade, autonomia econômica) e a atuação (ou intervenção) do
fortalecimento pelo Estado. Sujeitos, organizações e entidades concentram suas
reivindicações em ações públicas e reconhecimento na relação do Estado e da socie-
dade civil. Assim, a economia solidária, como questão pública, de direito e de dever
público, localizada no âmbito do espaço público, tem o desafio de enfrentamento
pela intermediação, no campo das lutas sociais, entre cidadania e democracia. “A
economia solidária politiza a questão econômica por via da radicalização da demo-
cracia (com a consequente democratização da economia e do Estado)” (p. 7).
Conhecidas como finanças de proximidade, a existência das finanças solidárias
pressupõe relações sociocomunitárias com a finalidade de democratizar o sistema
financeiro por meio da gestão comunitária e da solidariedade, uma forma de pro-
porcionar alternativas aos excluídos do sistema de crédito tradicional (MATTOS,
2010a apud FRANÇA FILHO, 2013). Essa iniciativa é bastante diferenciada das
práticas convencionais de microcrédito. Porém, como explica França Filho (2013),
a distinção das características, supostamente comuns às duas práticas, é de difícil
percepção, se analisado pelo paradigma econômico convencional, em razão de
corresponder a operações financeiras de baixo teor econômico e direcionar-se a
público identificado como de baixa renda com o objetivo de democratizar o crédito
à população excluída do sistema financeiro formal.
A interpretação desses fatos, conforme França Filho (2013), necessita de fun-
damentação mais ampliada e deve ocorrer com base no funcionamento da economia
real, limitado à lógica mercantil e à posição que ocupa cada uma dessas práticas na
dinâmica contextual da sociedade. Enquanto o microcrédito convencional situa-se
como nicho mercadológico no sistema financeiro formal, as finanças solidárias
transitam em espaço que não é de economia de mercado, e sim de manifestação da
sociedade. Elas possuem formas próprias de auto-organização coletiva, originadas
de territórios ou comunidades que fazem a gestão de seus recursos econômicos com
base em princípios de solidariedade, confiança e ajuda mútua.
Há particularidades que fazem com que as práticas se distingam fundamen-
talmente. No caso do microcrédito convencional, ressalta França Filho (2013), se-
guem-se critérios de concessão do crédito que terminam por restringir o público-alvo:
aquele formado por população de baixíssima renda termina sendo excluído por não
TRANSCICLOPÉDIA EM DIFUSÃO DO CONHECIMENTO 431

conseguir ajustar-se aos critérios do mercado, razão pela qual ocorre a expressiva
inadimplência em experiências dessa natureza. Tal fato denuncia o modelo calcado
em critérios de rentabilização do capital investido — opção que muito se diferencia
da proposta de finanças solidárias.
Nas relações de proximidade, defendidas pelas finanças solidárias, é valorizada
a confiança e a solidariedade numa escala de prioridade que se coloca relevante à
concessão de crédito. Como explica França Filho (2013), nesse sistema as relações
sociais superam as relações econômicas, logo, são contrárias à lógica clássica do
mercado, numa lógica de funcionamento econômico-social oposta à ideia de cresci-
mento como propósito do sistema, mas com a finalidade de dar conta das demandas
e necessidades comunitárias de um determinado território. Essa condição faz com
que as práticas de finanças solidárias sejam enraizadas territorialmente e/ou comu-
nitariamente, daí a razão da denominação de finanças de proximidade.
Neste sistema, a condição de crescimento, numa visão de ampliação de atendi-
mentos, inviabilizaria a iniciativa devido à condição desfavorável de manutenção dos
padrões de relacionamento socioaproximadores. Conforme abordado por França Filho
(2013), os critérios de confiança e solidariedade, naturais nos processos de finanças
de proximidade, diferentemente da condição de crescimento, que exige mecanismos
de impessoalidade das relações entre as pessoas com o objetivo da funcionalidade do
sistema, correspondem às relações socioafastadoras no plano espacial, cuja iniciativa
não delega ao homem a condição de sujeito com prioridade, mas conforme a lógica
das instituições de economia convencional.
Numa comparação analítica dessas lógicas deve-se ter o cuidado para não se
julgar a superioridade de uma sobre a outra, recomenda França Filho (2013). A pre-
cedência deve dar-se conforme características naturais da realidade. O autor chama
atenção para o equívoco de que os sistemas devam necessariamente caminhar na
direção do mercado, uma forma de se acreditar na superioridade deste em relação a
outras economias. A predominância dessa crença inviabiliza a busca de solução para
o desenvolvimento local numa opção que favoreça as finanças solidárias.
Por conseguinte, as finanças solidárias e/ou de proximidade, como explica
França Filho (2013), inscrevem-se na lógica da economia solidária, numa intenção
de produção, reprodução e preservação da vida em contexto territorial. Nesta cir-
cunstância, as atividades de reprodução das condições materiais de existência devem
constituir-se como meio para a realização de outros propósitos humanos. Nas abor-
dagens já feitas, identificam-se as diversas formas do lidar com o econômico, que
são manifestações do Estado, do mercado ou da própria sociedade. As iniciativas
432 TRANSCICLOPÉDIA EM DIFUSÃO DO CONHECIMENTO

podem ter origem nas formas de solidariedade dos meios populares ou, ainda, nos
mecanismos de auto-organização da sociedade civil.
Os anos 1980 representam um momento de crise na dinâmica do capitalismo
contemporâneo, marcado pelo desemprego em muitos países, configurando-se
numa “crise do trabalho”. Nesse momento vive-se a ausência de emprego formal e
oportunidade de acesso à renda pela população de diferentes países. Diante da crise,
é questionado o modo de organização e regulação da sociedade na modernidade
que, segundo França Filho (2013 p. 43),
[...] tem sido baseado em dois pilares — em interação dinâmica ou sinérgica: a
economia de mercado (supridora de empregos), de um lado, e o estado social
(responsável pela proteção social), do outro.
O contexto sinaliza para a necessidade de mudanças na sociedade, embora
essa perspectiva ainda não se mostre nítida para todos, há quem acredite em solução
relacionada aos limites do paradigma de mercado ou ainda quem opte pelo rompi-
mento do mesmo paradigma (FRANÇA FILHO, 2013).
No contexto de incertezas que marcam o futuro das sociedades modernas,
França Filho (2013) adverte quanto aos dilemas e contradições que integram a
agenda do debate público, como a perda gradual do emprego formal que, junto
à crise do trabalho, constitui uma problemática de cujas consequências decorre a
“exclusão social”. Paralelo a essa conjuntura numa “sociedade do trabalho”, com base
no pensamento de França Filho (2013), vive-se outra realidade, onde o acesso ao
trabalho não apenas garante renda, mas é facilitador da construção das identidades
individuais e coletivas, valorizando-se o reconhecimento das pessoas, atribuindo
sentido à sua própria existência. Na ausência do trabalho, as suas consequências se
refletem no cidadão tanto do ponto de vista social quanto nos aspectos relacionados
à saúde mental.
A solução para a circunstância da crise de trabalho associada à exclusão social
é recomendada por França Filho (2013): algumas iniciativas de combate à pobreza
e promoção do desenvolvimento. Essas podem vir de mudanças paradigmáticas
onde sejam valorizadas formas de trabalho com experiências de reorganização de
economias locais, como é o caso de rede de economia solidária. Nesta alternativa,
questiona-se a centralidade e a lógica da economia de mercado, propondo novos
arranjos institucionais, onde podem conviver distintas formas de economia como
modelos de regulação da vida em sociedade. No entanto, predominam as estruturas
da inserção pelo econômico, apostando na economia de mercado como solução
para a demanda de trabalho ou, ainda, por meio do empreendedorismo privado,
TRANSCICLOPÉDIA EM DIFUSÃO DO CONHECIMENTO 433

buscando transformar assalariados em novos detentores de micro e pequenos


negócios.
A crença no mercado, como paradigma de solução para a falta de trabalho,
contribuiu pela opção de qualificação da força de trabalho como resposta ao diag-
nóstico do desemprego no capitalismo em função do baixo grau de qualificação da
mão de obra. A iniciativa não teve sucesso pela incapacidade do mercado de absorver
a demanda por trabalho. Na opção pelo empreendedorismo privado, em um regime
que, diante da competição de mercado, não há espaço para todos, apenas alguns
casos deram certo, enquanto outros não deslancharam. Outra alternativa apontada
como solução é o microcrédito que se dá de forma individual, valorizado pela pos-
sibilidade de democratização do crédito para excluídos do sistema financeiro, com
acompanhamento de assistência técnica. Essa alternativa tem influência no modelo
adotado por instituições financeiras internacionais, como é o caso do Grameen Bank,
em Bangladesch, estimulador do setor financeiro privado que passa a adotar uma
nova dinâmica do capitalismo contemporâneo — “a indústria da microfinança”
(FRANÇA FILHO, 2013).
O fenômeno da bancarização dos mais pobres, a partir do fomento do micro-
crédito, não se restringe apenas a essas práticas. Conforme França Filho (2013), há
outras experiências de finanças de proximidade ou finanças solidárias que integram
o universo das microfinanças, a exemplo dos fundos rotativos e fundos solidários
que se reportam a iniciativas antigas e tradicionais, anteriores ao microcrédito. Ou-
tras iniciativas, como os bancos comunitários de desenvolvimento, se combinam
com uma base de organização comunitária. As finanças de proximidade, como o
microcrédito, formam uma manifestação de economia solidária no Brasil. Com-
põem o campo das finanças solidárias as experiências de fundos rotativos solidários
e bancos comunitários de desenvolvimento, sendo que essas práticas algumas vezes
são empreendidas por cooperativas de crédito e Oscip‘s3 de microcrédito.
O cooperativismo de crédito solidário origina-se do segmento do cooperativis-
mo de crédito. Explica França Filho (2013) que esse entendimento se dá por uma
abordagem geral desse sistema. O autor se utiliza da definição de Parente (2002
apud FRANÇA FILHO, 2013, p. 46):
Trata-se de sociedades de pessoas com forma e natureza jurídica próprias, de
natureza civil, sem fins lucrativos e não sujeitas à falência, constituídas com o
objetivo de conceder empréstimo e prestar serviços aos seus associados e com
funcionamento determinado pelo respectivo estatuto social.
3
Oscip — Organização da sociedade civil de interesse público.
434 TRANSCICLOPÉDIA EM DIFUSÃO DO CONHECIMENTO

No Brasil, práticas relacionadas a laços de reciprocidade vieram à tona a partir de


1990. Conforme Gonçalves (2010), essas práticas caracterizaram-se por (re)significação
e institucionalização, como as políticas públicas de desenvolvimento local na esfera
do governo federal. A partir dessas experiências, vêm sendo atualizadas iniciativas
identificadas com a economia da dádiva, que tem o potencial de fortalecer a condição
organizativa social e produtiva de pequenos agricultores, porém, contraditoriamente,
são inseridas à economia de mercado. Para Woortmann (1990 apud GONÇALVES,
2010, p. 228), “[...] o espírito da reciprocidade, enquanto princípio moral presente
nas sociedades camponesas, nega-se e se contrapõe ao espírito do lucro”.
As práticas de fundos em comunidades reportam a um tempo longínquo. Explica
Gonçalves (2010) que, no Estado da Paraíba, referem-se a 30 anos em experiência
iniciada pelas Comunidades Eclesiais de Base (CEB‘s) com pequenos agricultores
associados. A experiência consistia em disponibilizar e gerir recursos financeiros
para o atendimento urgente de necessidades das comunidades que tinham uma
forma própria de ressarcimento, como trocando produtos entre si (porcos, cabras,
galinhas e sementes). Na iniciativa estava explícita a circulação da dádiva. A autora,
para compreensão dessa iniciativa, apoia-se em Duque; Oliveira (2007 apud GON-
ÇALVES, 2010, p. 228), afirmando que esta “[...] baseia-se na cooperação dos atores
envolvidos a partir dos laços sociais de solidariedade, confiança e reciprocidade entre
eles estabelecidos”. Nesta circunstância, os recursos circulam na mesma comunidade
e a reposição obedece a uma lógica da solidariedade herdada de regras tradicionais
de reciprocidade.
A Paraíba traz um histórico sobre os Fundos Rotativos Solidários, que se ini-
ciaram com o objetivo de atender os programas de construção de cisternas — uma
forma de minimizar a falta de água na região. Conforme Gonçalves (2010), foi a
partir de 1993 que práticas como essas passaram a ser ressignificadas como políticas
públicas de desenvolvimento local, sendo chamadas de Fundos Rotativos S­ olidários.
Um conjunto de entidades contribuiu para a mobilização das comunidades rurais,
colocando em evidência a problemática da água e a inserção de uma nova visão sobre
as relações homem-natureza: a Articulação do Semiárido (ASA/PB), as Comunida-
des Eclesiais de Base (CEB‘S), a Cáritas e o Programa de Aplicação de Tecnologias
Apropriadas às Comunidades (PATAC), também a participação dos movimentos
sociais e lideranças camponesas.
No Nordeste, a significação para as ações de Fundo Rotativo Solidário estava
relacionada ao combate à seca. Ao final dos anos 1980, definiu-se pela convivência
com o semiárido, tendo três eixos de atuação: o fortalecimento da organização
TRANSCICLOPÉDIA EM DIFUSÃO DO CONHECIMENTO 435

produtiva do pequeno agricultor, a valorização de suas tecnologias e demais saberes


tradicionais e uma nova relação homem-natureza via política dos fundos rotativos
solidários, como informa Silva (2006 apud GONÇALVES, 2010).
As experiências, resultantes da mobilização e da participação dos movimentos
sociais, decidiram-se pelas construções de cisternas, que favoreceram as comunidades
rurais a conviverem com o semiárido com o auxílio dos fundos, conforme ressalta
Duque (2008, apud GONÇALVES, 2010, p. 229).
Os fundos rotativos solidários têm um objetivo imediato: permitir aos produtores
organizados em grupos ou associações obter um crédito modesto para construir uma
cisterna, uma barragem subterrânea, ou qualquer outro bem necessário para sua convi-
vência com o semiárido, sem ter que passar pela burocracia e pelas exigências próprias
dos bancos, assegurando que os recursos devolvidos sejam utilizados por outras famílias
ou para outras necessidades do grupo ou da comunidade. A dívida é paga segundo
modalidades definidas localmente, de acordo com as possibilidades dos envolvidos.
Do ponto de vista histórico, é importante citar a experiência do Banco do
Nordeste do Brasil (BNB) que, desde 2003, iniciou processo de abertura, interação
e articulação com os movimentos sociais, passando a adotar, institucionalmente, o
apoio à Política Nacional de Economia Solidária, com a implantação de políticas
públicas de crédito para fomentar o desenvolvimento regional. Gerido pelo BNB,
surge a linha “Crediamigo Comunidade”, dentro do Programa de Microcrédito
Crediamigo. Com a iniciativa, valorizou-se a organização de redes de cooperação
social ligadas aos movimentos populares, agregando valor ao desenvolvimento das
comunidades por meio da geração de ocupação e renda e de poupanças coletivas
(SILVA FILHO, 2010).
De acordo com Silva Filho (2010), o Programa de Apoio aos Projetos Produtivos
Solidários (PAPPS) foi implantado pelo BNB em 2005. O Programa demonstrava
inovações no crédito e baseava-se nas experiências de tecnologias sociais desenvolvidas
nas redes tecidas no meio popular. Foi utilizada a metodologia dos fundos rotativos
solidários — uma forma de disponibilizar, democraticamente, recursos financeiros
para organizações da sociedade civil, visando estimular a criação e o fortalecimento
de territórios a partir de formas de convivência solidária e de autogestão. Foram apli-
cados, até 2008, R$ 4,8 milhões no Programa, sendo R$ 2,5 milhões da ­SENAES e
R$ 2,3 alocados pelo BNB/FDR. Com este montante, já foram apoiados 50 projetos,
distribuídos por toda área de atuação do BNB.
Os fundos rotativos solidários funcionam como poupança comunitária, são
recursos poupados resultantes de aplicações feitas pela própria comunidade. Tor-
436 TRANSCICLOPÉDIA EM DIFUSÃO DO CONHECIMENTO

nam-se financiadores de projetos de trabalho e renda. Como explica França Filho


(2013), os fundos têm distintas práticas solidárias, como a devolução de recursos,
que podem ser integral ou parcial, monetária, em produtos ou serviços; práticas de
troca; uso da moeda social etc. Os recursos dos fundos resultam de várias fontes,
desde organismos internacionais a governos federal, estaduais e municipais, iniciativa
privada, ou mesmo originários da própria comunidade.
Conforme França Filho (2013), algumas características singularizam o fundo
rotativo solidário, a exemplo dos recursos aplicados não serem reembolsáveis, ou
seja, a devolução não é obrigatória. As pessoas atendidas são de baixa renda, grupos
socialmente excluídos e grupos produtivos solidários. Normalmente, o fundo é gestado
por ONGs, fundações, OSCIPs, associações e cooperativas de crédito. A denomi-
nação “solidário” relaciona-se aos critérios para a concessão do crédito, adotando
relações de proximidade e confiança. Denomina-se “rotativo” pela condição de ser
utilizado e, após a devolução, disponibilizado para outros grupos da comunidade.
O Fórum Brasileiro de Economia Solidária (FBES) integra centenas de grupos
de economia solidária, instituições e organizações sociais. A entidade se posiciona
por uma proposta de construção da política nacional de apoio a fundos rotativos
solidários. Informa Heck (2007) sobre a existência de 180 organizações que se utilizam
de fundos de crédito solidário. Para ele, um número grande de empreendimentos e
grupos de geração de trabalho e renda podem participar e receber esse apoio.
Um programa ou política nacional de apoio a fundos solidários concebe-se
como política pública de fomento à Economia Solidária — uma proposição da I
Conferência Nacional de Economia Solidária que sugere:
[...] a democratização do financiamento que valoriza iniciativas de finanças
solidárias, os fundos rotativos e solidários, §78; a criação de linhas subsidiadas
e não-reembolsáveis de financiamento, § 74; e a necessidade de articulação
com políticas de educação, qualificação e acompanhamento técnico e gerencial
aos trabalhadores/as dos empreendimentos solidários, § 73 (FUNDOS SO-
LIDÁRIOS: POR UMA POLÍTICA DE EMANCIPAÇÃO PRODUTIVA
DOS MOVIMENTOS SOCIAIS, CADERNO 1, 2007 p. 23).

Portanto, um Programa Nacional de Apoio a Fundos Solidários não ficará res-


trito à condição de suprir as carências da população elegível às ações redistributivas
do governo, mas terá a função de promover o processo de desenvolvimento local,
sustentável (econômico, ambiental e social) e solidário, de forma a enraizar-se nas
práticas comunitárias de organização. O objetivo deste Programa não somente deve
fomentar as atividades produtivas comunitárias como favorecer outros mecanismos,
TRANSCICLOPÉDIA EM DIFUSÃO DO CONHECIMENTO 437

como acesso à formação, comercialização, capacitação, cooperação, sensibilização


para a cidadania e autoestima, também trabalho direcionado às questões de gênero,
como possibilidade de superar a ampliação da pobreza, numa tentativa de reverter a
atual lógica do mercado, com a reorganização do tecido ­socioprodutivo, baseando-se
nos empreendimentos solidários e na formação de uma rede de organizações sociais,
com a participação das comunidades e movimentos populares na gestão direta dos
fundos solidários (FUNDOS SOLIDÁRIOS: POR UMA POLÍTICA DE EMAN-
CIPAÇÃO PRODUTIVA DOS MOVIMENTOS SOCIAIS, CADERNO 1, 2007).
Como respaldo às finanças solidárias, incluímos, em entrevista à Júlia Rabahie,
da RBA4, os depoimentos de Singer (2013), que se encontrava à frente da Secretaria
Nacional de Economia Solidária — ligada ao Ministério do Trabalho e Emprego
(MTE), existente desde 2003, tendo o objetivo de fomentar atividades de apoio à
economia solidária:
Estamos desenvolvendo um sistema de finanças solidárias sob a forma de coo-
perativas de crédito e fundos rotativos, que são grupos de famílias que juntam
sua poupança para investir em economia solidária e em bancos comunitários‖.
SINGER (2013, p. 1).

Os bancos comunitários são associativos e de propriedade das comunidades


de determinados municípios, e também são responsáveis por sua gestão, vol-
tados para a geração de renda que promova a economia solidária(SINGER,
2013, p. 1).

Conforme Singer (2013), há 103 bancos comunitários no país que — irão se


multiplicar — o sistema de produção agrícola dos assentamentos do Movimento
dos Trabalhadores Rurais sem Terra (MST), por meio da agricultura camponesa
familiar — que produz alimentos livres de agrotóxicos —, e a experiência de 67
empresas do país, recuperadas da falência e assumidas por trabalhadores de forma
autogestionária, apontadas como experiências concretas de funcionamento exitoso
da economia solidária (SINGER, 2013).
Singer (2013) explica que se enquadram no ramo da economia solidária ativi-
dades organizadas sob a forma de autogestão — forma que procura a valorização da
ação humana conjunta. A economia solidária nasceu como resposta ao capitalismo
industrial, que se firmou como modo de produção hegemônico depois da Revolução
Industrial do século 18, e implica a reversão da lógica capitalista de exploração da
mão de obra e dos recursos naturais.
4
RBA (Rede Brasil Atual) por Júlia Rabahie, da RBA, publicado, última modificação 29/4/2013
10:48.
438 TRANSCICLOPÉDIA EM DIFUSÃO DO CONHECIMENTO

Os bancos comunitários de desenvolvimento têm em suas ações o fomento de


outra lógica de desenvolvimento, numa posição, além do estabelecido da oferta do
microcrédito, com compromisso local ou comunitário. Para uma melhor explicação,
França Filho (2013) utiliza o pensamento de Melo Neto e Magalhães (2007 apud
FRANÇA FILHO, 2013, p. 51), trata-se de
[...] promover o desenvolvimento de territórios de baixa renda, através do
fomento à criação de redes locais de produção e consumo, baseado no apoio
às iniciativas de economia solidária em seus diversos âmbitos, como: empreen-
dimentos socioprodutivos, de prestação de serviços, de apoio à comercialização
(bodegas, mercadinhos, lojas e feiras solidárias), organizações de consumidores.

Para uma definição de Bancos Comunitários de Desenvolvimento, utilizamos


a definição de França Filho (2013, p. 50):
[...] podem ser definidos como uma prática de finanças solidárias de apoio
às economias populares de territórios com baixo índice de desenvolvimento
humano. Estruturados a partir de dinâmicas associativas locais, os BCDs se
apoiam em uma série de ferramentas para gerar e ampliar a renda no território.
Para tanto, são articulados quatro eixos centrais de ação em seu processo de
intervenção: fundo de crédito solidário, moeda social circulante local, feiras
de produtores locais e capacitação em economia solidária. Diferentemente das
práticas de microcrédito convencionais, que estão orientadas para a pessoa
ou organização individual, os BCDs preocupam-se com o território ao qual
pertencem, seja ele uma comunidade, um bairro ou um pequeno município.
Neste sentido, os BCDs procuram investir simultaneamente na capacidade
de produção, de geração de serviços e de consumo territorial. Para tanto, eles
financiam e orientam a construção de empreendimentos socioprodutivos e de
prestação de serviços locais, bem como o próprio consumo local. Isto porque,
para além da disseminação de microcréditos com múltiplas finalidades, con-
forme as linhas de crédito definidas por cada banco, o seu maior objetivo e
compromisso é com a construção de redes locais de economia solidária através
da articulação de produtores, prestadores de serviços e consumidores locais.
A constituição de um Banco de Desenvolvimento Comunitário requer muito
mais que o aporte de recursos. Torna-se indispensável à sua criação a mobilização
endógena do território. Como explica França Filho (2013), deve existir o querer da
comunidade e, a partir desse desejo, inicia-se a implantação do banco. Para isso,
alguns procedimentos devem estar em andamento, tais como: capital financeiro para
o fundo de crédito; recurso financeiro para pagamento das despesas operacionais do
banco; organização comunitária (associação, fórum, conselho, etc.) para assumir a
gestão do banco; pessoas capacitadas para as funções de agente de crédito; assesso-
ramento para assimilação da tecnologia pela comunidade.
TRANSCICLOPÉDIA EM DIFUSÃO DO CONHECIMENTO 439

Como traços que conferem especificidade aos Bancos Comunitários de De-


senvolvimento, a rede brasileira de Bancos Comunitários de Desenvolvimento traz
em sua visão: a) a coordenação do banco e gestão dos recursos efetuadas por uma
organização comunitária; b) a utilização de linhas de microcrédito para produção e
o consumo local com juros justos, que possibilitem a geração de renda e oportunida-
des de trabalho em toda a comunidade; c) a concessão e cobrança dos empréstimos
baseadas nas relações de vizinhança ou de proximidade, impondo um controle que
é muito mais social do que econômico; d) a criação de instrumentos alternativos
de incentivo ao consumo local — cartão de crédito e moeda social circulante local-
reconhecidos por produtores, comerciantes e consumidores como eficazes para a
dinamização da economia local França Filho (2010 apud FRANÇA FILHO, 2010).
Como vemos, numa lógica de economia solidária, as finanças de proximidade
validam a concepção de uma outra economia com a tendência de seguir numa ordem
de produção, reprodução e preservação da vida de um dado contexto territorial, des-
dobrando-se em reprodução das condições materiais de existência e desenvolvendo
meios para a realização de propósitos humanos, socioculturais, políticos, ambien-
tais, sem tornar-se um fim em si mesmo, como procede numa lógica de mercado,
compreendendo as formas de lidar com o econômico, mesmo que seja relacionado
ao Estado, ao mercado ou à própria sociedade

REFERÊNCIAS
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Pobreza no Brasil. ©INTERFACEHS. Revista de Gestão Integrada em Saúde
do Trabalho e Meio Ambiente, v.3, n.2, Traduções, abr./ agosto.2008 www.
interfacehs.sp.senac.br. Disponível em: http://www.interfacehs.sp.senac.br/br/
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solidária como espaço de politização. Serviço Social e Sociedade. São Paulo, v.
80, p. 82- 93. nov. 2004.
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trabalho e formação profissional. 14. ed. São Paulo: Cortez, 2008.

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9. 2. ed. São Paulo: Hucitec, 1997a.

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SINGER, Paul. Falta de crédito desafia a economia solidária. São Paulo,


RBA publicado, 29 abr. 2013. Entrevista a Júlia Rabahie. Disponível em:
http://www.redebrasilatual.com.br/trabalho/2013/04/paul-singer-desafios-da-
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SILVA, Clarício Filho. Fundos Rotativos Solidários: dilemas, avanços e


esperanças de uma política pública inclusiva no marco da economia solidária no
Nordeste do Brasil, Jan.2010.
48. Flipped Classroom

Alvaro Adriazola Uribe

A palavra composta flipped classroom está em língua inglesa por respeito ao fato
de sua origem e criação ter sido nos Estados Unidos, por esse motivo se acredita ser
correto respeitar a nominação original, embora para desenvolver o conceito se faça
alusão à versão em português que é sala de aula invertida.
Na sala de aula invertida, há algo que se inverte, e não é literalmente a sala de
aula, o espaço físico onde se vai para receber informação ou conhecimentos, é outro
o conceito de inversão: é o modelo de aula tradicional com seus elementos, os que
se invertem, giram e trocam de posição no tempo. Assim, um começo efetivo para
descrever o conceito flipped classroom é descrever o modelo de sala de aula tradicional.
Na sala de aula tradicional, os sujeitos que participam são: os docentes e os
discentes, cada um com sua função estritamente definida. O docente é quem sabe
e deve entregar seu saber; o discente não sabe e deve receber os saberes do docente.
Assim, a direção da informação (o que recebe os discentes) ou conhecimento (o que
entrega o docente) é unidirecional, desde os docentes para os discentes. Finalmente,
para completar o processo de ensino, na sala de aula tradicional, se faz a avaliação
estrita do conhecimento que o docente tem e que o discente deveria haver simples-
mente memorizado.
A aplicação do conceito de sala de aula invertida é vista como uma possibilidade
de otimização do tempo de aulas. O termo original, em inglês, flipped classroom, é
definido pelo Texas Learning Sciences (2015) como uma das inversões do ciclo típico
de aquisição de conteúdo e da aplicação dos conceitos explorados. Nesse modelo,
os estudantes tomam contato com o conhecimento (compartilhado pelo discente)
antes da aula, para que, durante a permanência em aula, esclareçam e apliquem, de
maneira ativa, os conceitos com os quais tiveram contato. Dessa forma, os docentes
podem auxiliar os discentes no aprofundamento dos conteúdos, guiando a classe
para atingir níveis mais refinados de aplicação dos conceitos (fig. 1).
Segundo Horn e Staker (2015), dentro do contexto de ensino híbrido, a “sala
de aula invertida” é um tipo de modelo de rotação que inverte completamente a
função normal da sala de aula. Em consonância com o conceito sumariamente
exposto acima, os autores afirmam que, nesse modo de organização,
442 TRANSCICLOPÉDIA EM DIFUSÃO DO CONHECIMENTO

[...] os estudantes têm lições ou palestras on-line de forma independente,


seja em casa, seja durante um período de realização de tarefas. O tempo na
sala de aula, anteriormente reservado para instruções do professor, é, em vez
disso, gasto no que costumamos chamar de “lição de casa”, com os professores
fornecendo assistência quando necessário (HORN; STAKER, 2015).

É possível afirmar que a inversão da sala de aula consiste em transferir o contato


dos discentes com um determinado conteúdo para fora da sala de aula, usualmente
por meio de vídeos e videoaulas, leitura e análise de textos, dentre outros. Dessa
forma, para o momento de encontro presencial entre discentes e docentes, fica a
tarefa de assimilação do conhecimento, que pode ser realizada, por exemplo, por
meio do desenvolvimento de projetos, e com discussões, debates, experimentos,
dinâmicas de grupo, entre outros. A intenção dessa proposta didática é auxiliar na
mudança do papel do docente, fazendo com que o profissional atue mais como um
incentivador do desenvolvimento dos discentes e não apenas um transmissor de
conteúdos consolidados.
Figura 1. Imagem que demonstra o Modelo Tradicional e o modelo Flipped
Classroom e como se faz a inversão da sala de aula a propósito de aquisição e
construção do conhecimento pelos docentes e discentes

BASES EPISTEMOLÓGICAS DO FLIPPED CLASSROOM


O flipped classroom está inserto nas metodologias ativas de aprendizagem, pau-
tada pela autonomia e pela inovação (FREIRE, 1996), em que o estudante não se
restringe a ser um mero recebedor de informações, mas se engaja de maneira ativa
no próprio processo de aprendizagem.
De acordo com o modelo do ciclo de aprendizagem construtivista baseado na
investigação de Lawson et al. (2000), o ensino consta de duas fases: uma, quando os
TRANSCICLOPÉDIA EM DIFUSÃO DO CONHECIMENTO 443

estudantes estão adquirindo entendimento conceitual (fase de obtenção de conteúdos)


e outra, quando aprendem a aplicar e/ou avaliar esses conceitos em situações novas
para ampliar sua compreensão conceitual, indo além do contexto em que aprenderam
(fase de aplicação do conceito). No modelo de sala de aula tradicional, o professor
facilita a obtenção de conteúdos mediante diversos meios num entorno de aula. Os
estudantes têm a responsabilidade de aplicar os conceitos, geralmente em forma de
tarefas. Na sala de aula invertida, os papéis se invertem, com os estudantes sendo
responsáveis por alcançar o conteúdo antes de assistir a classes; é nesse momento
que o professor facilita o processo de aplicação.
Os professores Jonathan Bergmann e Aaron Sams (2017), criadores do mo-
delo flipped classroom, no livro Sala de Aula Invertida: uma metodologia ativa de
aprendizagem, enunciaram os fundamentos que sustentam o conceito de sala de aula
invertida: enfoque construtivista, mudança do papel do professor e do estudante e
ensino centrado no discente. Baseado no enunciado pelos criadores e para finalizar
no desenvolvimento do conceito de flipped classroom ou sala de aula invertida, seria
produtivo descrever as teorias do conhecimento inseridas para se compreender o
conceito.
1. Enfoque Construtivista encontra melhor fundamento na teoria socioin-
teracionista de Vygotsky. Essa teoria defende a tese de que não há apren-
dizagem sem o outro, uma vez que estamos cercados por pessoas com as
quais interagimos e nos fornecem informações novas a cada interação. Para
Vygotsky (1988), a aprendizagem resulta de um processo interativo. Ele
considerava ainda a existência de uma Zona de Desenvolvimento Proximal
(ZDP), que é a diferença entre o que o aluno pode fazer individualmente
e o que ele é capaz de fazer com a colaboração de outras pessoas, podendo
estas serem outros colegas ou o próprio professor. Dessa forma, a interação
entre os alunos na realização das tarefas em sala, após assistirem ao vídeo
do professor em casa, propicia a utilização dos fundamentos do sociointe-
racionismo, principalmente no que se refere à ZDP.
Além disso, não basta que os estudantes aprendam os conteúdos e a resolver
problemas, é essencial na sociedade contemporânea que as pessoas adquiram ha-
bilidades relacionadas ao trabalho colaborativo, como, por exemplo: saber ouvir e
comunicar ideias, contribuir em discussões, respeitar e ser flexível diante de conflitos.
Segundo Vygotsky (1978), o processo de ensino e aprendizagem se constrói por meio
de interações sociais, as quais podem acontecer entre o professor e os estudantes, e
444 TRANSCICLOPÉDIA EM DIFUSÃO DO CONHECIMENTO

por interações entre os próprios estudantes. No Flipped Classroom, o tempo em classe


pode ser destinado à resolução de problemas de conteúdo, em pequenos grupos,
mediados pelo professor. Com isso, os discentes podem resolver tarefas colaborati-
vamente que talvez não fossem capazes de resolvê-las sozinhos. Além disso, ajuda a
aprender a explicar de maneira que outras pessoas possam entender.

2. Mudança do papel do professor e do estudante, no modelo tradicio-


nal centrado no professor, segundo King (1993), o docente é a principal
fonte de informação, ele é o “sábio no palco”, ou seja, o único especialista
em conteúdo que fornece informações aos alunos, geralmente, por meio
de uma aula de instrução direta. Uma pedagogia centrada no professor
tende a valorizar relações hierárquicas que, em nome da transmissão do
conhecimento, acabam por produzir ditadores, por um lado, e indivíduos
subservientes, anulados em sua capacidade criativa, por outro. Consideram
o sujeito da aprendizagem, em cada novo nível, como tábula rasa. Pedagogia
do Oprimido (2017), de Paulo Freire, constitui um libelo contundente de
denúncia das produções possíveis desse modelo pedagógico; é a denúncia
da “educação domesticadora”. Esse modelo encontra apoio, na psicologia,
no associacionismo, em geral, no behaviorismo e no neobehaviorismo, de
Watson e Skinner, em particular. Sua fundamentação epistemológica é
fornecida pelo empirismo.
Em se tratando de educação geral, Paulo Freire (2017) entende que o professor
fala da realidade como se esta fosse estagnada, sem movimento, separada em com-
partimentos e previsível; ou fala de um tema alheio à experiência existencial dos
discentes. Em tal situação, verifica-se que o docente, no processo de ensino-apren-
dizagem, desempenha uma tarefa de “encher” os discentes de conteúdos alheios à
realidade, destacado da totalidade que os gerou e poderia conferir sentido. Na visão
de Paulo Freire, alguns saberes necessários à prática docente estabelecem relação
natural, não naturalizada, com o processo de construção do conhecimento. Logo,
faz-se necessário entender que
(...) ensinar não é transferir conhecimento, mas criar as possibilidades para a
sua própria produção ou a sua construção. Quando entro em uma sala de aula
devo estar sendo um ser aberto a indagações, à curiosidade, às perguntas dos
alunos, a suas inibições, um ser crítico e inquiridor, inquieto em face da tarefa
que tenho a ele ensinar e não a de transferir conhecimento (FREIRE, 1996).
TRANSCICLOPÉDIA EM DIFUSÃO DO CONHECIMENTO 445

Há que se reconhecer que o diálogo ganha importância, porquanto permite a


liberdade de expressão, ao conceder aos participantes, docente e discentes, no pro-
cesso de ensino-aprendizagem o controle da ação. É o que se aproxima da “sala de
aula invertida”. Segundo Paulo Freire (2017), não há como questionar sem diálogo,
porquanto monólogo significa imposição do conhecimento. Mais que isso, dialogar
significa expor-se em público, combater a imposição de conteúdo e ajustar, a partir
de um viés coletivo, a compreensão dialética do conhecimento problematizado, por
novas trilhas de esclarecimento. Assim, a interação (cooperação) entre professor e
estudantes é fundamental para o desenvolvimento das atividades de ensino dialó-
gicas. Se, na abordagem tradicional ou “educação bancária”, o professor se coloca
em um pedestal de autoridade, afastando-se do contato direto com os discentes, na
pedagogia crítica esse contato não pode mais ser evitado (FREIRE, 2017).
O professor que estabelece e exerce sua carreira com rigor de superioridade em
detrimento da humildade estará, portanto, fatalmente predisposto a discriminar,
classificar por preferência os alunos com base no princípio da exclusão, portanto.
Sobre essa possibilidade perigosa da prática docente, que também é meio e reflexo
da opressão vivida pelo professor, Freire (1996) explicita que
Por mais que me desagrade uma pessoa não posso menosprezá-la com um
discurso em que, cheio de mim mesmo, decreto sua incompetência absoluta.
Discurso em que, cheio de mim mesmo, trato-a com desdém, do alto de
minha falsa superioridade.

É fundamental para conseguir o desenvolvimento efetivo do modelo de sala


de aula invertida, recuperar ou ter no atuar a humildade de reconhecer-se como
ser inacabado. Ao compreender e aceitar sua inconclusão, o professor se despe da
arrogância e do autoritarismo vivido, cultivado. Sabendo que nem tudo sabe, o
professor passa a ser ativo de si mesmo. Buscar e admitir novas possibilidades de
ler o mundo, principalmente ao escutar os educandos, o professor, que é gente no
mundo, percebe-se inacabado e digno, e também humilde e sábio. Percebe ainda que
a heterogeneidade vai exigir que esses aspectos (dignidade, humildade e sabedoria),
estejam em elevada conquista porque ser professor é, antes de tudo, ser gente.
Ser inacabado é reconhecer o valor desse perfil. É ir além. É buscar novamente.
É investigar a si mesmo a partir das novas propostas que podem, inclusive, sugerir
refazimento e reconstrução com base na autocrítica e visão crítica. Paulo Freire
(1996) sobre este assunto assegura:
Como professor crítico, sou um “aventureiro” responsável, predisposto à mu-
dança, à aceitação diferente. Nada do que experimentei em minha atividade
446 TRANSCICLOPÉDIA EM DIFUSÃO DO CONHECIMENTO

docente deve necessariamente repetir-se. Repito, porém, como inevitável, a


franquia de mim mesmo, radical, diante dos outros e do mundo. Minha franquia
ante os outros e o mundo mesmo é a maneira radical como me experimento
enquanto ser cultural, histórico, inacabado e consciente do inacabamento.
(FREIRE, 1996).

A acertabilidade da prática docente deve se basear na capacidade de doação,


na realização de sonhos comuns, diferentes neste ou naquele aspecto em função da
individualidade do ser, mas também da realização coletiva quanto ao aspecto da
acessibilidade de momentos educativos construtivos e transformadores. Proporcionar
o meio e a maneira mais democrática de como se dará a interatividade, a comunica-
ção entre quem ensina e quem aprende, e entre os que aprendem, podendo estes, se
ensinarem reciprocamente. Assim, temos o ensinamento de Freire (1996):
Uma das tarefas mais importantes da prática educativo-crítica é propiciar as
condições em que os educandos em relação uns com os outros e todos com
o professor ou a professora ensaiam a experiência profunda de assumir-se.
Assumir-se como ser social e histórico, como ser pensante, comunicante,
transformador, criador, realizador de sonhos, capaz de ter raiva porque capaz
de amar (FREIRE, 1996).

A esse respeito refere Freire (1983), “[...] não há seres educados e não educados.
Estamos todos nos educando”.

3. Ensino Centrado no Discente, para finalizar, no modelo de Flipped


Classroom, há uma mudança deliberada de uma sala de aula centrada
no professor para uma abordagem centrada no estudante, onde o tempo
na classe é destinado a explorar temas com maior profundidade e criar
oportunidades de aprendizagem mais ricas. Os discentes deixam de ser
o produto do ensino para ser o centro de aprendizagem, onde eles estão
ativamente envolvidos na formação do conhecimento por meio de oportu-
nidades para participar e avaliar sua aprendizagem de forma significativa.
Os estudantes podem, teoricamente, avaliar sua aprendizagem, revisando
conteúdo fora do espaço de aprendizado grupal, e os professores podem
maximizar o uso de interações de sala de aula presenciais para verificar
e garantir a compreensão e síntese do material. Os educadores reunidos
ajudam os estudantes a explorar temas de maior profundidade usando
pedagogias centradas nos discentes, visando ao seu nível de prontidão ou
zona de desenvolvimento proximal, onde são desafiados, mas não tanto,
de modo que não estão desmoralizados (Vygotsky, 1978). Segundo Mitre
TRANSCICLOPÉDIA EM DIFUSÃO DO CONHECIMENTO 447

et al. (2008), as metodologias ativas estão alicerçadas em um princípio


teórico significativo: a autonomia, algo muito explicitado nas proposições
de Paulo Freire, quando o discente é sujeito ativo de seus processos de
aprendizagem em contraposição ao modelo tradicional do discente passivo
nos ambientes de aula. Neste sentido, o modelo Flipped Classroom coloca o
processo passivo com vídeo assistido em casa, como espaço de parceria ao
ensino desenvolvido nas aulas; e as demonstrações desenvolvidas no processo
ativo na aula como catalisadoras do potencial do aluno de autogestionar
mecanismos e conexões que o levam a compreensão dos conteúdos. “{...]
Ninguém é sujeito da autonomia de ninguém”. A frase de Paulo Freire
(2006) nos possibilita compreender que dificilmente os estudantes terão
autonomia em seus processos de ensino-aprendizagem, se a aula expositiva
centrada na figura do professor continuar a ser o principal local de desen-
volvimento e compreensão dos conteúdos dos cursos. Freire (1996) ressalta
que “o estudante é alguém que é essencial para nossa constituição como
pessoa e como profissional e que nos mostra os nossos limites e nos faz ir
além”. Segundo Freire (1983), conhecer é tarefa de sujeitos, não de objetos.
Nesse sentido, a troca e interação simultânea de conhecimento, aprendizado
e humanização contribui na construção da relação ­professor-estudante,
estudante-professor que, por meio do diálogo, possibilita ações concretas
além de novos conhecimentos, resultando na apropriação de novas me-
todologias, desde que não somente dentro da universidade, e fora dela.
Um processo educativo que atenda o paradigma da complexidade precisa
desenvolver processos metodológicos, nos quais, segundo Freire (1992), o
estudante seja percebido como um sujeito construtor de sua própria história,
consciente de si mesmo, capaz de se perceber e de se compreender como
cidadão na sociedade, o que requer inserir nos programas de disciplina a
interdisciplinaridade de lógica subjetiva, a qual busca a dimensão humana
e afetiva e valoriza como ele pensa, sente, reage, vive e convive. O que
está incluído no conceito desenvolvido na sala de aula invertida ou como
originalmente denominada Flipped Classroom.

REFERÊNCIAS
BERGMANN, J.; SAMS, A. Sala de aula invertida: uma metodologia ativa de
aprendizagem. Rio de Janeiro: LTC, 2017.
448 TRANSCICLOPÉDIA EM DIFUSÃO DO CONHECIMENTO

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FREIRE, P. Pedagogia da autonomia: saberes necessários à prática educativa.


33.ed. São Paulo: Paz e Terra, 2006.

FREIRE, P. Pedagogia da autonomia: saberes necessários à prática docente. São


Paulo: Paz e Terra, 1996.

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aprimorar a educação. Porto Alegre: Penso, 2015.

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G
49. Gamificação

Thiago Novais Rodrigues

A Gamification (Gamificação), segundo Sebastian (2011, p. 9, tradução nossa),


foi um termo introduzido em 2008 e popularmente conhecido em meados de 2010,
tem como objetivo principal ser uma abordagem diferente nas empresas que dela se
utilizam. O termo, como se nota, tem uma forte conotação de Entertainment Game
(Jogo de Entretenimento). Quando são verificados os trabalhos atuais, em artigos
e livros, a Gamification é esclarecida como algo que pende conceitualmente para o
lado da jogatina dos videogames, ou seja, os conceitos e sua base são retirados desse
meio, desse modo, segundo muitos artigos, o que ela faz é tomar os elementos dos
jogos e utilizar esses elementos para desenvolvimento de softwares que aumentam
a produtividade da empresa, segundo as pesquisas.
Gamificação e jogos são tendências crescentes no mundo atual, cada vez mais
defendido seu uso numa série de campos de aplicação (educação, saúde, segurança
pública, ecologia, publicidade etc.); portanto, como enorme potencial para difusão
de conhecimentos, conforme Prensky (2001), os jogos nos engajam, nos atraem,
geralmente sem que nos darmos conta. Essa força poderosa se originaria primeiro
do fato de que eles são formados por diversão e brincadeiras e, segundo, pelo que
ele chama de seis elementos-chave estruturais dos jogos: regras, objetivos e metas,
resultados e feedback, conflito/competição/desafio/oposição, interação, representação
ou história.
CABALERO (2008); CABALERO; MATTA (2008); SCHMIT (2008);
MENEZES (2003), por meio de suas pesquisas, buscam associar o potencial de
games e sua variedade de recursos de entretenimento às questões ligadas à educação.
Ou seja, utilizam-se, segundo AFONSO e CARVALHO (2005), do Edutainment
(education+entertainment), que, por tradução livre para o português significa Edute-
nimento, cuja base se compõe da combinação de elementos de educação e entreteni-
mento; essa ideia é usada nas escolas (educação formal) e em ambientes não formais
de aprendizagem (museus, zoológicos etc.) onde se apresentam situações lúdicas e
prazerosas sem banalizar o processo de aprendizagem, podendo ser realizadas em
ambientes presenciais ou virtuais.
452 TRANSCICLOPÉDIA EM DIFUSÃO DO CONHECIMENTO

REFERÊNCIAS
AFONSO, Rui Walter M. P.; CARVALHO, Ana Amélia A. Melhorar a
qualidade do Software Educativo Multimédia: Contributos de um estudo.
Universidade do Minho, Minho: 2005.

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2011.

PRENSKY, Marc. Digital Game-Based Learning. McGraw-Hill, 2001

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CABALERO, Sueli da Silva Xavier; MATTA, Alfredo Eurico Rodrigues. O jogo


RPG digital na mediação da aprendizagem da escrita nas séries iniciais.
UNEB: SENAI CIMATEC, Salvador, Maio, 2008.

MENEZES, C. S. (Org.). Desenvolvimento de Jogos Digitais como Estratégia de


Aprendizagem. In: Informática Educativa II — Linguagens para Representação
do Conhecimento. Vitória: UFES, 2003

SCHMIT, Wagner Luiz. RPG e Educação: alguns apontamentos teóricos. 2008.


267f. Dissertação (Mestrado em Educação). Universidade Estadual de Londrina,
Londrina, 2008.
50. Gr ande História
(Big History)

Javier Collado-Ruano

Como surgiu o universo? Que lugar ocupa a Terra no sistema solar e no uni-
verso? O que é a vida e como evoluiu? Qual é o futuro da vida na Terra? Como
aprender a coevoluir de forma harmônica com a natureza? A ideia de interconexão
entre os seres humanos e as demais formas de vida nos leva a revisar o conceito de
desenvolvimento por meio de um estudo transdisciplinar dos processos coevolutivos
que a vida vem desenvolvendo desde a sua aparição na Terra há 3.8 bilhões de anos.
O “milagre cósmico da vida” é um desafio epistemológico que devemos integrar no
consciente das pessoas para salvaguardar a grande biodiversidade que coevolui na
Pachamama, a nossa Mãe-Terra.
A Grande História foi cunhada e fundamentada teoricamente pelos histo-
riadores David Christian (2010) e Fred Spier (2011). Na atualidade, a Grande
História é constituída por uma ampla comunidade científica que integra e unifica
o conhecimento de forma transdisciplinar, tendo por base as pesquisas mais aceitas
em astrofísica, cosmologia, física quântica, geofísica, química orgânica, biologia
molecular, microbiologia, geologia, climatologia, ecologia, geografia, paleontologia,
antropologia, demografia, arqueologia, história, epistemologia, filosofia, sociologia,
ciência política, economia, pedagogia, psicologia, cibernética, arquitetura, neurociên-
cia e muitas outras, com o fim de criar uma estrutura transversal e multirreferencial
da condição humana na Terra.
Pelo consenso científico atual da Grande História, o universo humanamente
conhecido surgiu há aproximadamente 13,7 bilhões de anos antes do presente (AP),
com a explosão do Big Bang. A formação da Terra se produziu em torno de 3,8 e 3,5
bilhões de anos AP. Na primeira metade desse período, as formas de vida ancestrais da
Terra se mantiveram em níveis de complexidade muito simples (como as arqueobactérias
ou as eubactérias), mas a aparição do oxigênio livre na atmosfera originou as primeiras
células complexas (as eucariotas), faz 2 bilhões de anos AP. A explosão cambriana do
metazoário teve lugar 1,5 bilhões de anos depois, faz 542 milhões de anos AP. Desde
então, a variedade biológica se incrementou em grande velocidade, formando uma
ampla gama de organismos multicelulares que desenvolveram e desenvolvem estratégias
454 TRANSCICLOPÉDIA EM DIFUSÃO DO CONHECIMENTO

de sobrevivência com fluxos de energia muito singulares, como, por exemplo a cadeia
trófica. Apesar de tudo, parece indicar que a vida surgiu nas profundezas dos oceanos,
e não conseguiu alcançar terra firme até 450 milhões de anos AP.
Apenas 250 milhões de anos depois de alcançar a superfície terrestre surgiram
os primeiros animais de sangue quente, com destaque para os famosos dinossauros
do período Cretáceo que desapareceram há 66 milhões de anos AP pelo impacto
de um suposto asteroide na Terra. Segundo aponta Christian (2010, p. 162), essa
circunstância deu lugar ao período hegemônico dos mamíferos, a partir do qual
emergiram mais tarde os primeiros hominídeos bípedes, em torno de sete milhões
de anos AP. Graças ao teste de carbono-14 realizado nos fósseis encontrados até
essa data, se pode conhecer de maneira aproximada a datação dos primeiros austra-
lopitecos, que parecem ter uns quatro milhões de anos AP. Os homo habilis datam
de 2,5 milhões de anos AP, os homo erectus em torno de dois milhões de anos AP,
e os hmo neardenthalis e hmo sapiens apontam para uns 200.000 anos AP. Com
a extinção do hmo floresiensis faz uns 13.000 anos atrás, o homo sapiens é o único
sobrevivente da espécie humana que coabita e coevolui no planeta Terra junto ao
resto da biodiversidade animal, vegetal, insetos, bactérias etc.
A coevolução é um conceito cunhado pelo biólogo Paul Ehrlich e pelo botânico
e ambientalista Peter Raven no ano de 1964. No trabalho conjunto, Butterflies and
Plants: A study in coevolution, abordaram as influências recíprocas que têm as plantas
e os insetos que se alimentam delas:
[...] uma abordagem que gostaríamos de chamar de coevolução é o exame dos
padrões de interação entre dois grupos de organismos com uma relação ecoló-
gica que se fechava evidente, tal como as plantas e os herbívoros ­(EHRLICH;
RAVEN, 1964, p. 586).

Mesmo não sendo uma novidade absoluta, pois a ideia de coevolução havia sido
expressa em teorias anteriores, o uso que Ehrlich e Raven fizeram do termo permitiu
que pensadores de outros campos de aplicação fizessem novas interpretações.
Em 1980, o ecólogo evolucionista Daniel Janzen foi o primeiro a definir o
conceito de coevolução no seu artigo When is it Coevolution? explica Janzen:
A “coevolução” pode ser utilmente definida como uma mudança evolutiva em
um traço dos indivíduos de uma segunda população, seguido de uma resposta
evolutiva da segunda população pela mudança na primeira, (1980, p. 611),

acrescentando que “‘[...] a coevolução difusa’ ocorre quando uma ou ambas as po-
pulações, na definição anterior, estão representadas por uma série de populações
TRANSCICLOPÉDIA EM DIFUSÃO DO CONHECIMENTO 455

que geram uma pressão seletiva como um grupo”. Deste modo, a interdependência
ecológica requer três princípios básicos: 1) especificidade, quando a evolução de cada
espécie se deve às pressões seletivas da outra; 2) reciprocidade, ao evoluir conjunta-
mente ambas as espécies; 3) simultaneidade, quando ambas as espécies evoluam ao
mesmo tempo. Assim, o processo coevolutivo foi usado em um sentido relativamente
restrito no marco da evolução biológica.
O sentido de coevolução, que é utilizado aqui para discuti-lo na filosofia da
educação e na filosofia da natureza, vai mais além: abarcando e integrando tanto o
grau de associação filogenética mútua com o grau de modificação com a coadapta-
ção e, também, os processos globais da macroevolução e os processos específicos da
microevolução. A coevolução pode ser definida, então, como uma mudança evolutiva
recíproca entre espécies e o seu entorno natural que, durante o desenvolvimento
complexo de inter/retro/ações entre si, modificam-se mutuamente de forma cons-
tante. Essa perspectiva coevolucionista é usada pelo pesquisador Rolf Zinkernagel
(2007) — Prêmio Nobel de Medicina de 1996 — para explicar como o sistema
imunológico tem coevoluído com micróbios que causam enfermidades infecciosas.
Em termos gerais, a coevolução é um processo de retroalimentação que está muito
presente na natureza e serviu de base para a exploração agrícola e industrial do ser
humano durante sua evolução histórica na Terra.
Como explica o economista ecológico Richard Norgaard (1994, p. 39),
[...] com a industrialização, os sistemas sociais coevoluíram para facilitar o
desenvolvimento através da exploração do carvão e do petróleo. Os sistemas
sociais já não coevoluíram para interagir mais eficazmente com os sistemas
ambientais.

Com a Revolução Industrial se iniciou uma era de hidrocarbonetos que mo-


dificaram drasticamente os processos coevolutivos da etapa agrícola anterior do ser
humano. Quando os sistemas sociais começaram a exercer fortes pressões nos sistemas
ambientais, o stock de recursos naturais diminuiu muito rapidamente: iniciando-se
um período evolutivo de insustentabilidade planetária.
A sociedade globalizada do século XXI tem que tomar consciência, de forma
urgente, da insustentabilidade socioeconômica do “quadrimotor globalizador” da
ciência, a indústria, o capitalismo e a tecnologia, pois estão colocando em grave risco
tanto as gerações humanas futuras como ao resto dos ecossistemas naturais (MORIN,
1999). Neste sentido, é necessário organizar o conhecimento de forma transdisciplinar
para compreender que nossa evolução como espécie está intrinsecamente interligada
nos processos de coevolução constante que as distintas formas de vida vêm desenvol-
456 TRANSCICLOPÉDIA EM DIFUSÃO DO CONHECIMENTO

vendo no nosso planeta Terra desde bilhões de anos (COLLADO, 2016a). Trata-se
de uma coevolução multidimensional que se desenvolve através de inter/retro/ações
entre os diferentes níveis de realidade cósmica, planetária, regional, nacional e local,
em que se estabelece uma extensa rede de interdependência universal de fenômenos
ecológicos, biofísicos, sociais, políticos, culturais, econômicos e tecnológicos.
Daí que a exploração descontrolada dos recursos naturais para a fabricação de
produtos industriais tenha-se convertido numa problemática de grande preocupação
na agenda internacional, em que diferentes atores geopolíticos estudam e analisam,
há décadas, os fenômenos transfronteiriços que afetam todas as formas de vida. É
urgente educar de forma transdisciplinar e biomimética para preservar os milhões
de espécies que conformam a criativa biodiversidade dos ecossistemas naturais, pois
estes são um verdadeiro milagre cósmico (COLLADO, 2016b). Neste sentido, a
Grande História é um marco teórico que está em harmonia com a visão da obra “Os
sete saberes necessários para a educação do futuro”, escrita pelo sociólogo Edgar Morin
em 1999 (p. 21-23), quando afirma que “[...] ensinar a condição humana significa
ensinar a condição cósmica, física e terrestre do indivíduo/sociedade/espécie”.
Além de contextualizar a nossa condição humana nos processos coevolutivos
da natureza e do cosmos, a Grande História também nos ajuda a identificar e
reconhecer as estratégias de sustentabilidade que funcionam na natureza para nos
inspirar biomimeticamente na resolução de distintos problemas humanos. A contínua
exploração dos recursos materiais e energéticos da Terra pelos modelos de produção
e consumo tem originado uma grande pegada ecológica e social que foi revelada
como insustentável (WACKERNAGEL; REES, 1996). Desde a Revolução agrícola
de cerca de 10.000 anos atrás, e especialmente desde a Revolução Industrial de cerca
de 250 anos atrás, as ações do ser humano no meio ambiente vêm ocasionando um
“ecocídio” que está levando à extinção de diferentes espécies naturais que são únicas
na sua criatividade evolutiva.
Segundo Steffen, Crutzen e McNeill (2007), a humanidade está na chamada
sexta extinção massiva e num novo período geológico: o antropoceno. Trata-se de
um período caracterizado pela grande devastação do ser humano nos ecossistemas
da natureza originado pelo grande consumo de combustíveis fósseis. Pelo contrário,
uma sociedade que caminha em direção a um desenvolvimento sustentável e rege-
nerativo deve aprender a reduzir sua destruição ecológica, reutilizando e reciclando
os materiais já construídos.
De forma similar à Grande História, a Educação Cósmica proposta por Maria
Montessori (2004) está embasada em dar liberdade às crianças para explorarem,
TRANSCICLOPÉDIA EM DIFUSÃO DO CONHECIMENTO 457

estudarem e adquirirem conhecimentos sobre o início do universo, a origem da


vida, a evolução do ser humano, o desenvolvimento da linguagem e a história das
matemáticas. Por tudo isso, a filosofia da educação deve promover uma transfor-
mação epistemológica estrutural que facilite o desenvolvimento de um pensamento
complexo capaz de construir um novo tipo de identidade para a emergente cidadania
planetária. Uma identidade planetária apoiada na ideia de que os seres humanos
são parte da natureza (governados por leis naturais), cujo planejamento histórico
aborde o passado dos povos, da vida, da Terra e do universo. Ou seja, uma perspec-
tiva transdisciplinar cujo enfoque dinâmico e criativo compreenda a complexidade
das relações sociais do nosso tempo com a natureza e o cosmos, em harmonia com
o marco teórico da Grande História, onde o ser humano é considerado uma parte
importante dos processos coevolutivos (COLLADO, 2016a).

REFERÊNCIAS
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Ed. Crítica, 2010.

COLLADO-RUANO, J. La bioética como ciencia transdisciplinar de la


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458 TRANSCICLOPÉDIA EM DIFUSÃO DO CONHECIMENTO

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ZINKERNAGEL, R. On observing and analyzing disease versus signals. Nature


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H
51. Hibridismo Educacional

Gilberto Pereira Fernandes

A PANACEIA DAS TECNOLOGIAS DIGITAIS

INTROITO
O homem é por natureza um ser híbrido, sua ascendência e transcendência estão
para além do próprio ser, da própria humanidade, emana da relação entre o natural
e o sobrenatural, o que o torna um sujeito híbrido, pela mescla e manutenção de
informações genéticas essenciais que carregam o todo na parte. O termo “híbrido”
vem do grego hybris, pelo latim hybrida ou hibrida. Hybris significava para os gregos
algo que ultrapassou as barreiras, os limites.
Do ponto de vista evolutivo, a perenidade humana ocorre em processo de
hibridação, permitindo que patrimônios genéticos diferentes sejam combinados,
confluindo em populações diferentes, contudo, não muito distantes em seu código
genético, o que provocaria infertilidade. Com isso queremos dizer que as diferenças
humanas são necessárias para a perpetuação da espécie, uma vez que estabelecem
um elo de ligação entre os sujeitos humanos.
Extrapolando a questão genética, a cultura e a educação podem ser consideradas
elos de ligação da humanidade. A cultura por legitimar a pertinência das diferenças, e
a educação por mediar o processo cognitivo humano. A cultura, enquanto mecanismo
de manifestação do “ser sujeito no mundo”, une e afasta os povos, consubstancia a
essência do homem ao manifestar-se enquanto ser vivente em sua relação imbricada
com o humano e o não humano, pervasiva à natureza no cosmo.
Ao falarmos em sujeito humano híbrido, referimo-nos referindo tanto a dimensão
genética quanto a dimensão educacional e espiritual do humano. Estamos conside-
rando a tríade — corpo, mente e espírito — estabelecendo um elo enigmático em
constante desvelamento por meio das manifestações da linguagem e do pensamento
ao disseminar informações e conhecimentos. O conhecimento na contemporaneidade
está sob o olhar atento das ciências cognitivas e para Mey (1992) define o que ele é,
como pode ser representado.
462 TRANSCICLOPÉDIA EM DIFUSÃO DO CONHECIMENTO

1. A COGNIÇÃO E AS CIÊNCIAS COGNITIVAS


No geral, vemos a cognição como a capacidade humana de utilizar um con-
junto de habilidades mentais necessárias para a construção de conhecimento sobre
o mundo. No entanto, cognição
[...] não é a representação de um mundo preconcebido por uma mente pre-
concebida, mas, ao contrário, é a atuação de um mundo e de uma mente com
base em uma história da diversidade de ações desempenhadas por um ser no
mundo (VARELA; THOMPSON; ROSCH, 2003, p. 26).

Corroborando com os autores supracitados, tencionamos dizer que a explicação


do comportamento cognitivo presume o caráter hibrido de todo agente humano
que reage ao universo, representando elementos pertinentes a cada nova informa-
ção obtida e forma de conhecimento gerada, é congruente à ação humana sobre o
universo de curso consistente, independentemente dessa ação.
Para Gardner (2003), cognição é a representação mental do conhecimento.
Em sua abordagem epistemológica cognitiva, a mente humana e o computador
(representação artificial dos processos mentais) deveriam ser concebidos como sis-
temas simbólicos — entidades físicas que processam, transformam, elaboram e, de
diferentes formas, manipulam símbolos de vários tipos.
Na contemporaneidade, diversas perplexidades se anunciam na transmutação do
humano para a condição do pós-humano pelas ligações entre o homem e as revoluções
tecnológicas. Para Dupuy (1995, p. 15), essa revolução toma fôlego quando os mem-
bros do “grupo cibernéticos” compostos por matemáticos, engenheiros e fisiologistas
conjecturaram edificar uma ciência da mente, na qual ela pudesse funcionar como um
computador, servindo este como modelo ou metáfora para conceber a mente humana.
Quando a cibernética propõe “[...] uma teoria unificada da máquina e do
ser vivente”, essa teleologia, constrói-se uma ciência das analogias entre máquinas
e organismos (DUPUY, 1995, p. 49). O computador passa a ser visto como um
modelo do cérebro, brotando daí a noção de inteligência artificial, cuja expansão
interdisciplinar dá origem ao que chamamos de ciências cognitivas. As inteligências
artificiais figuram-se em condições de atividade cognitiva capaz de simular processos
cognitivos do que decorre a possibilidade de modelar a mente.
Para Paul Thagard (1998), a ciência cognitiva é o estudo interdisciplinar da
mente e da inteligência, englobando a filosofia, a psicologia, a inteligência artificial,
a linguística, a neurociência e a antropologia. Essa ciência objetiva explicar como
os humanos chegam a diferentes tipos de pensamento, modos de resolução e apren-
TRANSCICLOPÉDIA EM DIFUSÃO DO CONHECIMENTO 463

dizado de problemas e como a mente realiza essas operações. “[...] O pensamento


pode melhor ser entendido em termos de estruturas representacionais na mente e
procedimentos computacionais que operam naquelas estruturas” (ibid., p. 21) e seria
por intermédio das diversas áreas que compõem as ciências cognitivas.
Em Johnson-Laird (1988), as ciências cognitivas têm por objetivo explicar
como funciona a mente pela compreensão dos processos cognitivos que, em análise,
tendem a revelar o que é o conhecimento e a diferenciá-lo de informação. Dessa
forma, as ciências cognitivas colaboram também à medida que validam ou não
modelos resultantes dos estudos interdisciplinares voltados para as questões da
mente, do cérebro, da consciência e seus sucedâneos, cujas raízes filosóficas estão
em Descartes e Hobbes.
Para Teixeira (1998), as ciências cognitivas estudam o homem em sua complexi-
dade, delineando percepções da natureza e da interação dela com o ambiente natural,
artificial e, porque não dizer, espiritual. Elas estudam uma parte como elemento da
totalidade e por isso não desconsideram a relevância dos fatores culturais, estéticos,
emocionais e o potencial criativo do ser humano em processos globais.
O reconhecimento da implicação humana nos processos globais sob o leque
das ciências cognitivas apresenta uma visão multifacetada da mente humana em
um panorama multirreferencial. Assim, a psicologia estuda as atividades mentais: a
percepção seletiva e os caminhos por onde circulam as informações, como a elabora-
ção, a transformação e aprimoramento da ideia, o armazenamento (aprendizagem),
a recuperação (memória) e a utilização das informações.
As ciências cognitivas como um campo interdisciplinar de análise e sistematização
do conhecimento produzido pelo homem conectado à natureza, seus componentes,
origens, processos, funcionamento, manipulação e representação são para Gardner
(2003, p. 19) a nova ciência da mente; elas representam
[...] um esforço contemporâneo de fundamentação empírica para responder
questões epistemológicas de longa data — principalmente aquelas relativas
a natureza do conhecimento, seus componentes, seu desenvolvimento, seu
emprego.

Varela, Thompson e Rosch (2003), caracterizando o atual estado das ciências


cognitivas, apontam transformações nos últimos 30 anos por meio do programa
cognitivista; reconhecem a legitimidade da investigação do conhecimento, conce-
bendo-o em uma perspectiva ampla, interdisciplinar, ultrapassando qualquer visão
epistemológica monológica, embora reconheçam o processamento de símbolos para
representações como ponto de apoio das ciências cognitivas.
464 TRANSCICLOPÉDIA EM DIFUSÃO DO CONHECIMENTO

As concepções apresentadas se alinham ao modelo teórico de cognição decorrente


da Teoria Cognitiva surgida nos Estados Unidos 1950 e 1960 como uma forma de
crítica ao comportamentalismo, que postulava, em linhas gerais, a aprendizagem
como resultado do condicionamento dos sujeitos quando expostos a uma situação
de estímulo e resposta. Tais concepções foram amplamente adotadas na educação,
tendo como baluartes: Jean Piaget, (1896-1980), Wallon (1879-1962) e Vygotsky
(1896-1934).
Piaget centraliza o desenvolvimento cognitivo nas fases de desenvolvimento da
criança; define uma série de estágios sequenciais e qualitativamente diferentes onde
vai sendo construída a estrutura cognitiva seguinte, mais complexa e abrangente
que a anterior. Henry Wallon compreende o desenvolvimento cognitivo como um
processo social e interacionista, no qual a linguagem e o entorno social assumem
um papel fundamental. Lev Vygotsky postula que o desenvolvimento do indivíduo
e a aquisição de conhecimentos é resultado da interação deste com o meio por meio
de um processo socio-histórico mediado pela cultura. (LAKOMY, 2008).
Em suma, essas três teorias consideram que o desenvolvimento da inteligência
como resultado da interação cultural e adaptação biológica dos organismos humanos
em busca de equilíbrio entre assimilação/acomodação de informações e produção
de conhecimentos ao organizar o pensamento e/ou sua representação.
Depreende-se que a dinâmica não é particular, ela acontece na interação social
dos organismos humanos com o meio (natural, artificial, espiritual). Quando o su-
jeito alcança uma nova fase do seu desenvolvimento, espera-se que seu nível mental
atinja em igual proporção o equilíbrio. Suas visões contribuíram imensamente para
a definição de um novo panorama da natureza humana e dos perfis cognitivos.

2. SUBJETIVIDADE, HIBRIDISMO EDUCACIONAL E O EDUCAR


TRANSDISCIPLINAR
O reconhecimento da multiplicidade humana advém certamente do estudo
da subjetividade. Tal pensamento é icônico. Na visão circundante nas sociedades
tradicionais modernas e mesmo contemporânea, o ideário subjetivo restringe-se ao
imaginário das identidades solitárias, imbricadas em si mesmo e na sua autonomia.
Contudo, para reconhecer quem somos, devemos olhar para fora de nós mesmos,
na construção social, pois a construção imaginária do eu nos ilude.
O “penso, logo existo” é reconfortante, questioná-lo causa desconforto. Essa
máxima está profundamente enraizada na ontologia do ser fragmentado em seu
TRANSCICLOPÉDIA EM DIFUSÃO DO CONHECIMENTO 465

próprio núcleo. Ver-nos fora de nós mesmos é construir uma identidade em um jogo
paradoxal, idílico e mortífero já que há uma oscilação entre o eu e o outro, pois o eu,
no processo de reflexão, já é outro para si mesmo, uma vez que toda subjetividade
é alimentada pelo coletivo (FOUCAULT, 1982).
Seguindo essa noção de Foucault, Guattari desconstrói o imaginário da
formação humana em torno do uníssono do eu afirmando que a subjetividade é
produzida pelas redes e campos de forças sociais, pois o eu, no processo de reflexão,
já é o outro para si mesmo:
A única finalidade aceitável das atividades humanas é a produção de uma
subjetividade que enriqueça de modo contínuo sua relação com o mun-
do. (GUATTARI, 1992, p. 33)

Em Guattari (1992), máquinas podem ser corpos sociais, formações psico-


lógicas, culturais ou complexos de desejos dos sujeitos. Elas são junções de partes
heterogêneas, em estado de transformação; a subjetividade e multiplicidade surgem
na representação mecânica. O esforço em desenvolver as inteligências artificiais para
replicar as operações mentais nas representações do conhecimento são visíveis nos
estudos da lógica, das redes semânticas, das representações procedurais, nos frames
e nos sistemas de regras de produção tecnológica digital.
Para caracterizar os estágios sucessivos de constituição das Ciências da Cog-
nição, Varela, Thompson e Rosch (2003, p. 25) a dividem em três perspectivas:
cognitivismo, conexionismo e abordagem atuacionista. O cognitivismo é associado
à metáfora do computador digital como representação mental, acreditando que esta
“[...] opera manipulando símbolos que representam características do mundo, ou
representam o mundo como tendo uma determinada forma”.
Sob essa égide, Lage, Fróes Burnham e Michinel (2012, p. 85) afirmam que,
Ao longo da sua instituição, as Ciências Cognitivas foram sendo desenvol-
vidas segundo perspectivas epistemológicas diferenciadas: – o cognitivismo,
o conexionismo e o enaccionismo. O desenvolvimento destas diferentes
visões sobre a cognição ocorreu como uma evolução no tempo, sem que o
surgimento de cada uma delas implicasse o desaparecimento das outras. De
fato, é possível uma abordagem híbrida entre cognitivismo e conexionismo,
enquanto o ­enaccionismo desafia a visão prevalente de cognição como repre-
sentação de mundo.

A ideia de representar o mundo por meio da tecnologia computacional agradou


os cientistas que, desde os 1950, começaram a acreditar que o cérebro funcionava
como um grande número de interconexões num esquema distribuído, podendo
466 TRANSCICLOPÉDIA EM DIFUSÃO DO CONHECIMENTO

ser pela experimentação, auto-organizadas e representadas computacionalmente,


contudo, surgiram incongruências.
Varela (2006) reavalia a adequação da computação simbólica como suporte
apropriado às representações, haja vista a plástica cerebral de adaptar-se a novos
ambientes, de modo que os programas de computador que não conseguiam acom-
panhar essa dinâmica fossem adequados a fazê-lo. Isso ocorre porque a cognição nas
inteligências artificiais depende da adequação das conexões em rede, que terminam
propiciando profundas transformações nos dispositivos de produção das subjetividades.
Para descolar a subjetividade do sujeito se faz necessário criar uma cartografia
para além dos limites do indivíduo ou do detalhamento da vida em laboratório ou
do uso de tecnologias simplesmente. Latour (1994) empreendeu por meio de sua
teoria ator-rede uma proclamação dos híbridos, quase-sujeitos, quase-objetos, sus-
citando uma ciência em ação pelo rastreamento das conexões em intrincadas redes
sociotécnicas, híbridos de atores humanos e não humanos, pelas quais o social circula
como uma entidade vívida, dinâmica, que se manifesta na cultura.
A hibridização não é algo que apenas existe por aí, não é algo a ser encontrado
num objeto ou em alguma identidade mítica ‘híbrida’ – trata-se de um modo
de conhecimento, um processo para entender ou perceber o movimento de
trânsito ou de transição ambíguo e tenso que necessariamente acompanha
qualquer tipo de transformação social sem a promessa de clausura celebratória,
sem a transcendência das condições complexas, conflitantes, que acompanham
o ato de tradução cultural. (SOUZA, 2004, p. 123)

A transformação na sociedade contemporânea acompanha a noção de sociedade


em rede, multimodal, ubíqua, móvel e hiperconectiva, tornando mais perceptível a
noção de que vivemos em um ecossistema aberto, interligado e criativo. Espera-se
que a criatividade seja uma marca forte desse tempo, o qual deve abrir-se para que
o processo de ensino e a aprendizagem aconteça por distintos métodos e formas em
momentos de interação atemporais e em múltiplos espaços.
Desvela-se uma sociedade multirreferencial e multifacetada e, porque não
dizer, uma sociedade híbrida, marcada pela mescla entre o físico, corporal e o vir-
tual. Partindo da noção de mesclagem, o termo híbrido aparece como um conceito
apropriado, embora complexo. A mistura se configura como elemento essencial para
investigar as complexidades de uma sociedade em rede.
Redes constituem a morfologia social de nossas sociedades e a difusão da lógica
de redes modifica de forma substancial a operação e os resultados dos processos
produtivos e de experiência, poder e cultura. (CASTELLS, 1999, p. 565)
TRANSCICLOPÉDIA EM DIFUSÃO DO CONHECIMENTO 467

Vemos surgir nas culturas sociais emergentes um compartilhamento massivo


da informação, que termina alargando cada vez mais o processo de interseção da
atividade humana. O acesso à informação e o excesso dela, nem sempre gera conhe-
cimentos, aprendizagens. Há uma lacuna estabelecida na própria complexidade do
que é singular e plural para integrar o que vale a pena aprender, para quê e como
fazê-lo, uma relação polilógica, para além da sistematização de conteúdo, normativas
e métodos educacionais, um hibridismo educacional.
Pensar em hibridismo educacional é repensar a organização da sala de aula,
o planejamento e o design didático pedagógico, a gestão do tempo de interação,
colaboração, envolvimento do sujeito com o tema e o uso das tecnologias digitais
para desenvolver metodologias ativas de ensino que favoreçam o protagonismo nas
aprendizagens.
O ensino é híbrido, também, porque não se reduz ao que planejamos institu-
cional e intencionalmente. Aprendemos por meio de processos organizados,
junto com processos abertos, informais (MORIN, 2015, p. 28).

Assim, há necessidade de que os sujeitos estabeleçam sentido para o que


aprendem por meio dos conteúdos, competências e valores sociais próprios de uma
sociedade heterogênea e mutante. Vivemos em uma sociedade imperfeita, que rejeita
as imperfeiçoes, as relações conflitantes, verticalizadas, desalinhadas da interação
humana estética, ética e educacional, quando, considerar as imperfeições significaria
trabalhar na lógica não de grupos, mas de sujeitos sociais distintos, interagindo para
construção de subjetividades e identidades ambientes: físico ou virtual, pois híbridos
não resultam de misturas entre entidades puras, humanos e tecnologias, mas das
ligações dos coletivos sociotécnicos.
A lógica de funcionamento dos ambientes na contemporaneidade torna emer-
gente a necessidade de uma educação mista, não apenas no sentido de mistura,
mas numa ótica polilógica com uso de método flexível, autônomo, perpassando
pela personalização de planejamentos, de modo a reorganizar o conhecimento pela
via transdisciplinar, que foca na aprendizagem e não no processo de ensino como
atividade fulcral.
Enfatiza a necessidade de entender a aprendizagem a partir da ideia de múltiplas
lógicas na produção de sentidos. Essa produção de sentidos se dá na relação que o
ser humano estabelece com o mundo e consigo mesmo e sua própria complexidade.
Desse modo, entende que a aprendizagem deixa de acontecer quando se estabelecem
limites duais e disciplinares, tratando o conhecimento como informação.
468 TRANSCICLOPÉDIA EM DIFUSÃO DO CONHECIMENTO

Galeffi (2009) na Epistemologia do Educar Transdisciplinar afirma que


[...] a educação transdisciplinar é um projeto em construção, a partir da intuição
ontológica e da fundamentação epistemológica que parte da compreensão da
implicação ser humano e totalidade vivente manifesta e imanifesta (ibid., p. 5),

e para não gerar maus entendimentos, ele explica:


A epistemologia do educar transdisciplinar aqui expressa é primacialmente
um movimento de autoconhecimento intensivo e que tem por meta o próprio
acontecimento humano em sua saga aberta e inelutável. Uma retomada do
que constitui a potência de ser transformante. A via invisível e valorosa do
que tem coração. Por isso tem inteligência e sensibilidade transdisciplinar.
Sua disciplina é a arte de aprender, que é por princípio uma não-disciplina,
pois é a forma correta de manter-se livre da memória e do medo psicológico
(GALEFFI, 2009, p. 6).

Se aprendemos por meio de processos formais e informais, é necessário pensar a


educação e o método educativo para além da organização disciplinar. Galeffi (2009)
apresenta a concepção de uma Epistemologia do Educar Transdisciplinar intuindo
investigar o sentido apropriado do autoconhecimento e desenvolvimento de uma
prática pedagógica transformativa construída como campo investigativo articulado
por uma teoria ou epistemologia da complexidade e uma ética do cuidado.

3. O PARADIGMA EDUCACIONAL TRANSFIGURADO NA PANA-


CEIA DAS TECNOLOGIAS DIGITAIS
Entre os séculos XV e XVII, a humanidade assistiu a uma Revolução Científica
marcando a passagem da Idade Média para a Idade Moderna. Lentamente, a supre-
macia teocêntrica é substituída por uma visão racional e científica de acontecimentos
cotidianos. Destacaram-se Galileu com sua visão heliocêntrica, empirista; Descartes,
com seu método analítico; e Newton, com sua visão mecanicista. Nesse contexto,
surge o paradigma tradicional que dava ao conhecimento não apenas um caráter
racional, mas também fragmentado. Cada área tinha seu campo de estudos, e tudo
era comprovado por meio das leis da física e da matemática.
Ao analisarmos as abordagens recorrentes na educação por meio do estudo
dos paradigmas científicos disseminados, entendemos o seu caráter empirista e
mecanicista. O primeiro paradigma é o tradicional, que surgiu entre os séculos XV
e XVII onde o conhecimento é racional e fragmentado; o segundo é o paradigma
moderno, que surgiu no começo do século XX, tendo o conhecimento como algo
formado como uma teia de relações e não limitado às áreas disciplinares.
TRANSCICLOPÉDIA EM DIFUSÃO DO CONHECIMENTO 469

Almejamos uma Educação que viabilize o processo humano de conhecer e


dar-se a conhecer em relação dialógica, espiritual e sociocognitiva. À medida que
intervém na natureza, o homem produz conhecimentos e elucida saberes. Por ser um
processo humano, o ato de educar e educar-se está diretamente ligado as relações
espaço-temporal, ao humano (espírito, mente e corpo); ao cosmo (metafísico) e à
natureza (fenômenos físicos), da qual o homem é apenas mais um elemento.
Educação em curso é o humano eclodindo. O processo de humanização re-
verbera em ação e ato de educar educando-se. O homem, enquanto ser no mundo
e do mundo, não pode esquivar-se, “[...] ninguém escapa da educação. [...] Para
saber, para fazer, para ser ou para conviver, todos os dias misturamos a vida com a
educação”. (BRANDÃO, 1985, p. 7).
A experiência educativa comprova que o homem não pode não ser nada. Está
no universo e participar do processo de evolução das ciências e do senso comum,
seja como ator ou espectador, remete à atividade educacional humana e impacta a
natureza. A insurgência das tecnologias digitais pode servir como um bom exemplo
de como a presença do homem no mundo pode ser transmutativa, contudo, a edu-
cação não reconhece o elemento híbrido na formação humana, ainda que atividade
tecnológica ela o tenha sido. Para Morin (2015, p. 27) “[...] híbrido significa, mistu-
rado, mesclado, blended”. Ele considera que “[...] a educação sempre foi misturada,
híbrida, sempre combinou vários espaços, tempos, atividades, metodologias”.
A educação como uma atividade social possui a necessidade dinâmica de trans-
mutação no processo de ensino e nas condições de aprendizagem para acompanhar
o que acontece na sociedade. Essa é uma visão largamente difundida na atualidade,
especialmente com o avanço das tecnologias digitais, as quais figuram na sociedade
como remédio para os problemas de ordem pedagógica. Elas apontam para o Educar,
quando deveriam mediar e suscitar o Educar-se.
A panaceia educacional (do grego panákeia, pan significa “todo” e ákos significa
“remédio”) entorno do ensino pelas tecnologias digitais com receitas prontas para
o uso de suas ferramentas, interfaces, softwares, portais, repositórios, plataformas,
websites são próprias do saber fazer, e não necessariamente do saber ser. Etimolo-
gicamente Educere significa extrair, fazer nascer, tirar de, provocar a atualização de
algo latente, promover o surgimento, de dentro para fora, das potencialidades que
o indivíduo possui. Por conseguinte,
[...] não é possível fazer uma reflexão sobre o que é educação sem refletir sobre
o próprio homem. Comecemos por pensar sobre nós mesmos e tratemos de
encontrar, na natureza do homem, algo que possa constituir o núcleo fun-
470 TRANSCICLOPÉDIA EM DIFUSÃO DO CONHECIMENTO

damental onde se submete o processo de educação. Qual seria este núcleo


palpável a partir de nossa própria experiência existencial? Este núcleo seria o
inacabamento ou a inconclusão do homem (FREIRE, 1979, p. 27).

Encontrar a natureza do homem, o núcleo palpável da experiência/existên-


cia está no ato educativo, na humanização do ser humano. Há um movimento
­contemporâneo que defende o avanço das tecnologias digitais e da modelagem
computacional cognitiva como elemento para o novo educar. Esse movimento
acredita que a ação educacional é própria do processo evolutivo humano e por isso
se questiona: A educação acompanha o processo de revolução tecnológica produzida
pela humanidade? Prontamente respondemos em coro. Pedagogicamente, não.
A abordagem supracitada evidencia certa racionalidade instrumental inerente
ao discurso pedagógico hegemônico que busca justificar o papel das novas tecno-
logias como a panaceia saneadora dos males que acometem a educação formal e
mesmo informal. Há uma perspectivação otimista, tendo as tecnologias digitais
como panaceias, idealizadoras de um projeto de uma “nova educação”. Essa é uma
trajetória conhecida, uma tendência educacional permanente.
Seguindo seu curso natural, as diversas tendências pedagógicas surgidas na
Educação ao longo da formação humana buscaram apresentar, a seu tempo, soluções
para acompanhar as sociedades humanas e seu avanço tecnológico. Os diversos mo-
delos educacionais insurgentes vêm criando uma verdadeira panaceia educacional de
modelagem computacional e experimentação cognitiva, com intenção de responder
a exigências desse tempo.
A panaceia educacional se configura nos modismos do fazer pedagógico ino-
vador como justificava para transformar a prática escolar constantemente atacada
por ser sempre o centro da atividade educativa. O argumento que sustenta essa tese
é o de que a atividade pedagógica está impregnada de uma postura conservadora e
de transmissão de conteúdos e informações que estão aquém do que é possível ser
feito diante de arsenal tecnológico digital disponível.
Encontramo-nos mais uma vez diante de um impasse. Estamos pensando a
educação ou estamos pensando o método? Que tradições filosóficas estamos seguindo,
o empirismo ou o racionalismo? A primeira defende a independência ontológica da
realidade em relação a esquemas conceptuais e mentais; a fonte do conhecimento é a
realidade conhecida através das nossas sensações e experiências. A segunda corrente
defende a primazia do sujeito na construção do conhecimento em relação ao objeto,
a fonte do conhecimento são as ideais claras e distintas que são alcançadas por meio
do do próprio exercício racional e dedutivo.
TRANSCICLOPÉDIA EM DIFUSÃO DO CONHECIMENTO 471

Uma breve análise dos “novos modelos educacionais” revela que há ainda
uma predominância de aspectos empiristas, uma preocupação com os métodos
educacionais, com as práticas. Comprovando essa tese, ponderamos utilizando o
argumento de Morin:
As instituições educacionais atentas às mudanças escolhem fundamentalmente
dois caminhos, um mais suave – alterações progressivas – e outro mais amplo,
com mudanças profundas. No caminho mais suave, elas mantêm o modelo
curricular predominante – disciplinar –, mas priorizam o envolvimento maior
do aluno, com metodologias ativas, como o ensino por projetos de forma
mais interdisciplinar, o ensino híbrido ou blended e a sala de aula invertida
(MORIN, 2015, p. 29).

Nessa visão, há uma preocupação em apresentar métodos, contudo, a educação


precisa de uma epistemologia de transformação pedagógica para que ela que consiga
acompanhar o desenvolvimento das tecnologias digitais. Um passo é abandonar o
seu caráter monológico e abraçar novas pedagogias e epistemologias que levem em
consideração as descobertas das ciências cognitivas que, a princípio, se ocupam do
estudo dos processos de conhecimento; as informações obtidas (pela percepção,
transformação, armazenamento, recuperação e utilização); e do estudo das formas
como se sistematizam as representações dessas atividades e do autoconhecimento.
Dante Galeffi (2009) nos apresenta a Epistemologia do Educar Transdisciplinar
que o intui investigar o sentido apropriado do autoconhecimento, um movimento
que, para ele, permitirá
[...] o alcance de uma práxis pedagógica construída como campo investigativo
articulado em uma teoria ou epistemologia da complexidade e em uma ética
do cuidado habitada poeticamente.

Destarte, buscamos,
Uma epistemologia que também não desconhece a potência da ciência exitosa
e nem a toma como pivô de todas as mazelas humanas. Além da tecnociência
dominante, há uma ciência que precisa também ser pensada como ampliação
do horizonte compreensivo dos seres humanos viventes, uma ciência do educar
transdisciplinar (GALEFFI, 2009, p. 6).

Diante do exposto, vemos que a educação deve ser pensada sob a experiência
vivente do ser humano, fugindo da lógica de mercantilização, mas que adote os
modelos científicos a serviço da humanidade, não se limitando ao progresso dos
meios, e sim, pensada primacialmente no desenvolvimento humano sustentável, e
apontamos aqui uma evocação a uma educação transdisciplinar.
472 TRANSCICLOPÉDIA EM DIFUSÃO DO CONHECIMENTO

A ausência de práticas pedagógicas que viabilizem a educação transdisciplinar é


algo notório, já que o processo educacional continua a ser desenvolvido como prática
disciplinar. A separação dos componentes curriculares em disciplinas isoladas revela,
que as metodologias de ensino e a aprendizagem disciplinar continuam hegemônicas,
restringindo as possibilidades de um educar imersivo. O educar imersivo só pode
acontecer se a educação propicia o conhecer autônomo e inventivo, profícuo e cria-
tivo, reconhecendo as metafísicas do ser que em vida, pode alcançar a compreensão
articuladora do que não conhece.

À GUISA DA CONCLUSÃO
Arduamente, buscamos a superação do paradigma da materialidade da ci-
ência in locus terrestre, suplantada por uma cosmovisão. As incursões humanas,
para além da atmosfera terrestre, revelam o desejo de produzir conhecimentos a
partir do que se observa ao se reconhecer em cientificidade para além da esfera da
terra, mesmo sem ter esgotado as possibilidades de conhecimento em seu próprio
planeta. O homem vem promovendo a união das ciências e das tecnologias para
romper barreiras.
As tentativas de transformar a educação é uma tendência das sociedades huma-
nas diante das adversidades de seu tempo. Em nosso tempo, as ciências cognitivas
apresentam discussões elucidativas relacionadas à filosofia da mente, à aprendizagem
cognitiva, à natureza da representação do conhecimento, à sua difusão e modelagem
computacional, como substrato para novas pedagogias.
A epistemologia do educar transdisciplinar que tem o autoconhecimento como
fio condutor, como transformadora na educação, não está presa a métodos e técnicas,
[...] não se trata de uma ciência da intervenção e do controle operativo sobre
meios determinados, e sim do desenvolvimento da consciência da consciência
de si-mesmo, que nunca é algo atomizado na fragmentação estabelecida pela
razão intelectual dominante (GALEFFI, 2009, p. 27)

configurando-se como uma proposta fulcral à autonomia e ao diálogo como poten-


cias basilares na educação.
Entre o Educar transdisciplinar e o hibridismo educacional, encontramos
uma estreita relação, primeiramente, porque ambas consideram a importância de
reconhecer os princípios da filosofia da mente e das ciências cognitivas, permitindo
transitar de forma transdisciplinar nas diferentes áreas do conhecimento e porque
reconhecem o potencial cognitivo na construção de metodologias ativas de apren-
dizagem, configurando-se como uma abordagem apropriada à complexidade da
TRANSCICLOPÉDIA EM DIFUSÃO DO CONHECIMENTO 473

educação, partindo do princípio de que a cognição, desde a percepção, envolve


processos criativos analíticos e sintetizadores, capaz de modelar aprendizagens.
Do ponto de vista metodológico, o diálogo é o meio universal para a prática de
um autoconhecimento. No diálogo, o pensamento está sempre em foco, e o conhe-
cimento do pensamento em suas formas de ser igualmente. Por esse viés, apontamos
a necessidade de uma metodologia educacional que considere o potencial híbrido
da educação em constante análise do processo de aprendizagem e da propulsão cog-
nitiva por uma ótica polilógica para perfilhar o problema do conhecimento. Nesse
curso, aparecem as concepções e as crenças circundantes da habilidade de conhecer.
No processo de autoconhecimento e de aprendizagem, resgata-se as reminis-
cências do conhecimento inerente ao Ser humano numa correlação entre sujeito e
objeto, tal qual eles são “em si mesmos”, ou pela representação mental imagética do
que eles são. A criação da Inteligência Artificial (IA) em máquinas que simulam o
modo de pensar, e o comportamento humano representam uma tentativa de recriar
um paralelo, um intercâmbio interdisciplinar das informações e conhecimentos para
desenvolver uma educação hibrida.
Sob o ponto de vista cognitivo, embora o autoconhecimento seja o primordial
na prática educacional, as novas tecnologias digitais interferem na maneira contem-
porânea de conceber o mundo e o ser humano. Nessa visão, o cientista cognitivo
tentar solucionar os problemas epistemológicos humanos esboçando representações
mentais sob a perspectiva das ciências cognitivas
O computador, como modelo do funcionamento mental, pode ser usado de
modo positivo ou controverso, uma vez que nem sempre estão previstos fatores afeti-
vos, históricos, culturais, e o contexto do comportamento e pensamento singulares,
esquecendo-se da questão social, e muito menos a preocupação com a transformação
social, especialmente se há centralidade no ensino de conteúdos disciplinares.
O educador contemporâneo, em qualquer nível de ensino, vem constantemente,
sendo convidado a inovar, tornando onipresente o uso das novas tecnologias digitais
em sua prática pedagógica. Tal aspecto é fortalecido pela emergência de adequação
às novas pervasividades e ubiquidades massivas, emergentes na educação multimi-
diática, que se apregoa.
Deixando de lado as utopias, os educadores, ainda que queiram, não podem
mais ignorar o uso das novas tecnologias digitais como instrumento de preparação,
ferramenta e interface didática pedagógica em uma educação híbrida que contem-
ple o virtual e o presencial, interconectados, mas com o grande desafio de vencer o
reducionismo envolvido na compreensão do cérebro como uma máquina.
474 TRANSCICLOPÉDIA EM DIFUSÃO DO CONHECIMENTO

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Seuil, 1996.
I
52. Incomensur abilidade
(Segundo Feyerabend)

Jose María Barroso Tristán

Feyerabend situa o epicentro da incomensurabilidade nos processos linguísticos


intimamente ligados aos processos históricos/contextuais das pessoas. Por outras
palavras, considera a incomensurabilidade, em determinados casos, como uma
característica própria das pessoas e não tão só no interior dos grupos científicos.
A incomensurabilidade se encontra na inseparável relação com os sistemas de
categorias e das tradições de conhecimento das quais provêm. Isto é, dependendo
da tradição do conhecimento da qual provenha o sujeito, seu sistema de categorias
influirá na sua forma de entender o mundo, como vimos, intervindo na percepção
das sensações. Portanto, a raiz da questão provém das percepções uma vez que estas
são representações mentais das sensações que são descritas através da linguagem,
entrando no campo da semântica. É aqui onde se encontra o núcleo do conceito
de incomensurabilidade para Feyerabend ao sustentar que as diferenças semânticas
dos indivíduos, sempre que não exista uma linguagem de observação independente,
produz a impossibilidade de diálogo entre diferentes teorias para considerar qual é
a melhor. Isto se produz devido às diferenças geradas pelo percorrido histórico que
cada sujeito contém. Feyerabend o sustenta sob três teses.
A primeira tese é que existem sistemas de pensamento (ação, percepção) que
são incomensuráveis. [...]
Em segundo lugar, temos visto que a incomensurabilidade tem seu análogo no
campo da percepção e que faz parte da história da percepção. Tal é o conteúdo da
minha segunda tese sobre a incomensurabilidade: o desenvolvimento da percepção
e do pensamento no indivíduo passa por etapas que são incomensuráveis entre si.
Minha terceira tese afirma que os pontos de vista dos científicos, e em par-
ticular seus pontos de vista sobre matérias básicas, são frequentemente tão
diferentes uns dos outros como o são as ideologias subjacentes às distintas
culturas. Ainda mais: existem teorias científicas que são mutuamente inco-
mensuráveis ainda que em aparência se ocupem do ‘mesmo objeto’. Não
todas as teorias rivais têm esta propriedade e aquelas que têm a propriedade,
só a têm enquanto sejam interpretadas de uma forma especial, por exemplo,
sem fazer referência a uma ‘linguagem de observação independente’ (FEYE-
RABEND, 1986, p. 267-270).
480 TRANSCICLOPÉDIA EM DIFUSÃO DO CONHECIMENTO

O que supõem essas três teses de Feyerabend? Pois bem, a primeira a temos
desenvolvido anteriormente como a dificuldade de comparar sistemas de pensamento
devido à singularidade dos indivíduos enquanto sujeitos históricos sempre e quan-
do não existam “linguagens de observação independentes”. Podemos inferir que a
incomensurabilidade não é um fenômeno que suceda tão só ao interior da ciência,
mas também ao exterior dela entre tradições de conhecimento científico e não-cien-
tífico. A segunda das suas teses, apoiada em uma pesquisa de Jean Piaget (PIAGET,
1954), supõe a incomensurabilidade ao interior de cada indivíduo ao passar, durante
sua infância, por diferentes etapas até “[...] atingir sua relativamente estável forma
adulta” (FEYERABEND, 1986, p. 219) onde seu aparelho conceptual e perceptual
foi se modificando, o que não possibilita “[...] estabelecer entre elas nem conexões
lógicas nem perceptuais” (FEYERABEND, 1986, p. 220). Isto significa que, em
cada indivíduo, se produzem mudanças que modificam a estrutura cognitiva, pro-
duzindo incomensurabilidade entre as diferentes etapas de desenvolvimento durante
a infância, é dizer, o tecido de relações conceptuais e perceptuais que formou nossa
cosmovisão sofreu modificações substanciais em determinadas etapas que dificultam
a comparação entre ambas.
A terceira tese, intimamente relacionada à primeira e à segunda, supõe a in-
comensurabilidade entre teorias científicas, fundamentada no princípio de que as
teorias estão fortemente enraizadas às contextualidades particulares do autor que
dão forma a sua cosmovisão da vida e da ciência. Essa contextualidade particular de
cada autor, também chamada de conhecimento tácito1 por Michael Polanyi (1983),
permeia as pesquisas que desenvolve, impregnando com sua subjetividade as teorias
que desenvolve. A subjetividade própria de cada pesquisador permite que cada um
lhe outorgue um caráter único aos conceitos, relações entre eles e, finalmente, à
teoria que produz, fazendo incomensuráveis duas teorias rivais sempre que não se
atenham a uma “linguagem de observação independente”.
1
Michael Polanyi define o conhecimento tácito como um conhecimento que está enraizado no pes-
quisador. Faz parte inconsciente dele ao ter sido adquirido durante seu processo histórico de desen-
volvimento e não se encontra dentro das teorias ou regras criadas ou explicitadas dentro da ciência.
Sustenta que este conhecimento tácito é fundamental para os científicos na criação de novo conhe-
cimento concreto, pois é o que contribui com elementos inovadores ao entrar em conexão com os
saberes já formalizados. Esse conhecimento é totalmente pessoal e, portanto, se nutre de todas as
dimensões humanas, não só das científicas, senão também das crenças, mitos, ideologias etc. Por isso,
Polanyi (apud ESPEJO, 2005, p. 45) declara que a intenção da Ciência de eliminar os elementos
pessoais de toda pesquisa seria autodestrutivo já que — “suponhamos que o pensamento tácito
forma uma parte indispensável de todo o conhecimento, então o ideal de eliminar todo elemento
pessoal do conhecimento seria, em efeito, apontar à destruição de todo o conhecimento”.
TRANSCICLOPÉDIA EM DIFUSÃO DO CONHECIMENTO 481

Poder-se-ia pensar que estabelecendo linguagens de observação independen-


tes se eliminaria a incomensurabilidade, sendo esse o delírio positivista da ciência
com sua pretensiosa ideia de limitar o ilimitável. É precisamente aqui onde mais
força toma o conceito da filosofia feyerabendiana. Ele nunca tomou o conceito de
incomensurabilidade como sinônimo de incompatibilidade2 de tradições de conhe-
cimento, nem como impossibilidade de trânsito entre elas3, nem sequer como “[...]
a mera diferença de conceitos” já que “[...] é preciso dispor a situação de tal maneira
que as condições para a formação de conceitos em uma teoria impeçam a formação
dos conceitos fundamentais da outra” (FEYERABEND, 1998, nota 118, p. 75). Seu
conceito de incomensurabilidade vá mais além, uma vez que é uma característica
inerente ao conhecimento, tanto ao interior dos indivíduos como entre eles, deri-
vando daí quatro propriedades:
1. O conhecimento não pode ser considerado como universal, pois este não é
uma entidade isolada nem tampouco única, mas formada por uma dinâ-
mica e complexa rede de percepções e conceitos que podem ter mudanças
tão substanciais, no interior de um mesmo indivíduo em diferentes eta-
pas, entre um indivíduo e outro, ou entre uma comunidade e outra, que
provocam conhecimentos sobre o mundo totalmente diferentes, no que
ambos podem se considerar como válidos.
2. O conhecimento possui uma forte influência da subjetividade e esta, por
sua vez, está composta por crenças, mitos e tradições existentes em cada
comunidade. Confrontar essa subjetividade epistêmica pode produzir
alterações fundamentais que modifiquem o edifício completo do conhe-
cimento, modificando princípios universalmente aceitos.
3. Que não somos conscientes dos limites do conhecimento, ainda que tivésse-
mos chegado a ele, não poderíamos sabê-lo com exatidão. O incompleto ou
a possibilidade de contenção de erros do conhecimento é uma característica
inerente a ele e, ao considerá-lo assim, é fundamental procurar elementos que
contenham incomensurabilidade para atingir novas fases do conhecimento.
4. O conhecimento não pode ser adstrito a uma determinada perspectiva
“racional”, pois isso provoca que as outras formas de conhecimento “irracio-
nais” que podem trazer elementos novos para estimular o avanço do saber
2
“Aponta unicamente a uma inconexão dedutiva, não tendo nunca inferido dela a incompatibili-
dade” (FEYERABEND, 1998, p. 76).
3
“A incomensurabilidade não dificulta o trânsito entre as tradições como tem dito Duerr, Franz e
outros antes deles” (FEYERABEND, 1984, p. 54).
482 TRANSCICLOPÉDIA EM DIFUSÃO DO CONHECIMENTO

sejam subjugadas ao ter que se submeter aos standards impostos por essa
racionalidade. O que chega antes não tem por que ser o correto. A raciona-
lidade nega a incomensurabilidade e com isso se situa como o suprassumo
do saber, negando a possibilidade de outros saberes diferentes à sua “razão”
que, contudo, em determinadas ocasiões têm demonstrado sua maior validez.
Por essas quatro propriedades que a incomensurabilidade fornece ao
conhecimento é que a consideramos fundamental como conceito a ser
integrado e trabalhado para poder aspirar a uma sociedade mais humana
e preparada para identificar problemas no desenvolvimento no terreno da
epistemologia. Como disse Feyerabend:
Aceitaríamos o fato, se é que é um fato, de que um adulto esteja grudado a um
mundo perceptual estável e um sistema conceitual estável que o acompanhe,
que o adulto pode modificar de muitas maneiras, mas cujas linhas gerais se
têm feito inamovíveis para sempre? Ou é mais realista supor que são ainda
possíveis e devem estimular-se mudanças fundamentais, que entranhem inco-
mensurabilidade, a menos que fiquemos excluídos para sempre do que poderia
ser uma etapa superior do conhecimento e da consciência? (­ FEYERABEND,
1987, p. 127).

REFERÊNCIAS
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C. S. Peirce e M. Polanyi. Tese (Magister en Filosofía Mención Epistemología).
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POLANYI, Michael. The Tacit Dimension. Gloucester: Peter Smith, 1983.


53. Informação

Eneida Santana

O termo tem origem no latim informare. Significa dar forma, modelar. Ao


longo dos tempos o termo foi atribuído ao modo pertinente de representar de
forma organizada uma ideia, conjunto de símbolos ou comunicação de orientação.
Difundido em registros científicos e sociais, em especial a partir do século XVIII
através dos seus registros documentais, o fenômeno “Informação” segue ganhando
destaque no campo da evolução humana, desencadeando no que foi denominada
Era da Informação no final do século XX, emergindo desse espaço temporal a So-
ciedade do Conhecimento.
Na emergência de estudos acerca da temática e sua organização, disseminação,
preservação e atribuições foi possível identificar a sua caracterização enquanto ci-
ência, originando o campo científico da Ciência da Informação. Enquanto matéria
prima da Ciência da Informação, desde a reflexão visionária de Paul Otlet em sua
fundação, compete à área do conhecimento os estudos das definições de informação
relacionadas a aspectos educacionais, científicos, tecnológicos e políticos.
A informação produzida e difundida em uma Sociedade do Conhecimento
ultrapassa as métricas de tempo, condições geográficas e suportes de acesso, assu-
mindo um importante papel na história da humanidade. Atentos a essa premissa, foi
criado no Brasil no início da década de 1950, o Instituto Brasileiro de Informação
em Ciência e Tecnologia (IBICT1). O órgão tem a missão de promover a compe-
tência, o desenvolvimento de recursos e a infraestrutura de informação em ciência
e tecnologia para a produção, socialização e integração do conhecimento científico
e tecnológico do país.
No que tange ao conceito próprio e apropriado da Informação, um leque de
referências dá arcabouço teórico para a discussão. Iniciamos a reflexão com o perti-
nente questionamento levantado por Thomas H. Davenport em seu livro Ecologia
da Informação (1998, p. 18), “O que é informação, afinal de contas?”. O autor trata
de imediato da necessidade de contextualizar as diferenças entre dados, informação
e conhecimento, apresentando a seguinte tabela:

1
www.ibict.br
484 TRANSCICLOPÉDIA EM DIFUSÃO DO CONHECIMENTO

Dados Informação Conhecimento

Simples observação sobre o Dados dotados de relevância e propósito Informação valiosa da


estado do mundo mente humana
Inclui reflexão, síntese e
contexto

Facilmente estruturado Requer unidade de análise De difícil estruturação


Facilmente obtido por Exige consenso em relação ao De difícil captura em
máquinas significado máquinas
Frequentemente Exige necessariamente a Frequentemente
quantificado mediação humana tácito
Facilmente De difícil transferência
transferível
Fonte: Ecologia da Informação, (1998, p. 18)

Facilmente confundidos entre si, os termos são utilizados ao longo das atividades
humanas com o propósito de expressar a condição representativa do fenômeno externo
ou dos resultados das conexões sinápticas realizadas pelo sujeito. Para apaziguar as
condições separatistas dos termos, recorremos à afirmativa de Peter Drucker no artigo
The coming of the new organization, publicado pela Hardard Business Review (1988)
no qual define informação como “[...] dados dotados de relevância e propósito”, sendo
a sociedade responsável por essa atribuição, corroborando com Lancaster no ensaio O
currículo da Ciência da Informação, publicado em 1989, quando explica: “[...] o fato
é, naturalmente, que informação significa coisas diferentes para pessoas diferentes”.
A complexidade terminológica é apresentada ainda por Lancaster (1989, p. 1)
ao dizer-nos que
[...] informação é uma palavra usada com frequência no linguajar quotidiano
e a maior parte das pessoas que a usam pensam que sabem o que ela significa.
No entanto, é extremamente difícil definir informação e até mesmo obter
consenso sobre como deveria ser definida.

Portanto, a problemática da definição reforça a premissa levantada por James


March (1989, p. 20), que diz “[...] a informação não é inocente”, pois reflete as atri-
buições humanas, e até (por que não?) o valor dado ao termo informação; a ciência
destaca a influência de poder dado ao conceito e à sua capacidade de transformação
cultural, socioeconômica, política e científica.
A Ciência da informação procura fomentar investigações que destacam a
relação interdisciplinar da informação com as demais áreas do conhecimento, não
TRANSCICLOPÉDIA EM DIFUSÃO DO CONHECIMENTO 485

desconsiderando seu limite com a problemática conceitual, por isso suas grandes
áreas investigativas, a biblioteconomia, a museologia e a arquivologia propõem-se
a identificação do fenômeno em três grupos, como destaca Machado (2001, p. 10),
sendo a Informação entidade de relacionamento: a) objetiva: compreende o c­ onteúdo
do documento; b) subjetiva: representada pela imagem estruturada do receptor e
as permutas da mesma; c) processo: faz referência ao processo pelo qual o sujeito
se informa.
A informação objetiva pode ser representada pela compreensão da sintaxe textual,
da imagem, do áudio, presente no documento, físico ou virtual. O que fundamenta
a objetividade pode ser os elementos da construção desses formatos informacionais.
A informação subjetiva apresenta destaque em sua recuperação, a originalidade da
fonte e o intercâmbio do aporte informacional; por fim, a informação enquanto
processo é o modo de acesso ao fenômeno, em especial as possibilidades cognitivas
do sujeito frente ao excerto difundido.
Estudos mais recentes no campo da Ciência da informação, datados de 2006 a
2017, apresentam uma discussão de estrutura do conceito de informação enquanto
organismo vivo e funcional, como os apresentados pelos autores portugueses Amando
Malheiro e Fernanda Ribeiro2. O estudo orgânico-funcional pretende identificar as
entidades produtoras e o contexto onde os dados são produzidos, e a informação esta-
belecida entre ele e o conhecimento. Nos estudos dos autores citados (Silva; Ribeiro,
1999, p. 132) localizamos a descrição de informação composta por dois elementos:
a) Elemento orgânico: entidade produtora dos dados/informação/conhecimento.
b) Elemento funcional: representado pelas funções e atividades desenvolvi-
das e identificadas nos suportes informacionais, que compõem a série de
acesso à informação.
Ainda Silva (2004, p. 58) explica que
A primeira é que a ação humana e social gera e contextualiza a informação
(os documentos), impondo-se, por isso, através da noção operatória de or-
ganicidade (muito usada pelos arquivistas, que não ousam, porém, defini-la
o imperativo de reconstituição ou de devolução o mais rigorosa possível ao
contexto orgânico-funcional originário. Desta ideia decorre outra também
fundamental: a informação tende a ser transversal a muitos ou a vários planos
da atividade humana e social, verificando-se, consequentemente, uma intera-
ção e uma integração exigidas pela ação humana e organizacional com os seus
vínculos e traços próprios. A questão do sentido está intimamente ligada à

2
Pesquisadores Sênior da Universidade do Porto, Portugal
486 TRANSCICLOPÉDIA EM DIFUSÃO DO CONHECIMENTO

preponderância do contexto e dos objetivos da ação no fluxo informacional,


assim como emerge dos mecanismos e das atitudes de busca, de recuperação
e de uso por parte dos utilizadores, cada um dos quais desenhando sempre o
seu comportamento informacional específico.

Os elementos orgânicos e funcionais da informação apenas são identificados


quando estruturados de forma inteligível, dado que caracteriza o fenômeno informa-
cional como elemento pulsante no campo das Ciências Cognitivas. Segundo Santana
(2011, p. 128), para atender os rigores da cientificidade, deve-se levar em conta o
paradigma pós-custodial, que emerge da Sociedade da Informação, tecnológica
por natureza, exigido no trato das questões da informação; é preciso refletir quanto
ao aplicado da teoria sistêmica no campo do conhecimento. Consideramos que o
conjunto informacional produzido pela humanidade é um sistema de informação
ativo e permanente que remete sempre para uma estrutura unicelular e crescente.
Através dessa visão do conceito de informação, a colocação física e descritiva do
fenômeno faz-se conforme a sua origem e a sua função no mundo, mas respeitando
a hierarquia de compreensão e atribuição dada pela sociedade.
Tendo a compreensão da complexidade pela qual o termo Informação está
sujeito, destacamos, neste breve tópico, estudos que se dedicam a entender e explicar
tal fenômeno a partir de três relações: informação e cultura; informação e tecnologia;
informação e conhecimento.
Recorrendo a Edgar Morin (2003, p. 159) para refletir sobre a relação da In-
formação e da cultura, ele traz a definição de cultura como
[...] a emergência fundamental própria da sociedade humana. Cada cultura
concentra em si um duplo capital: de um lado, um capital cognitivo e técnico
(práticas, saberes, saber-fazer, regras) e do outro, um capital mitológico e de
rituais (crenças, proibições e valores).

Atentando para a visão de Morin, é importante refletir a informação enquan-


to condição genética das manifestações de cultura e sua sociedade, a memória e a
organização desses capitais produzidos pelo humano são o cerne das relações infor-
macionais no campo da cultura.
No campo da tecnologia, o uso do termo Informação se tornou índice de me-
diação com a ciência, tendo que a abreviatura TICs – Tecnologias de Informação e
Comunicação, é utilizado para definir tanto espaços de atuação do profissional das
Ciências Computacionais como para os recursos produzidos por tais profissionais,
bem como para métodos produzidos pela área. A informação é tomada como própria
em um ciclo de uso e reuso para alimentação de diversos sistemas computacionais,
TRANSCICLOPÉDIA EM DIFUSÃO DO CONHECIMENTO 487

sendo o conjunto desses ciclos os denominados sistemas informacionais. Todavia,


a relação dos subsistemas que adquirem a estrutura dos sistemas informacionais
possui o objetivo da tomada de decisão pelo sujeito/usuário, caracterizando como
objetivo principal a produção conhecimento pelo indivíduo. É importante destacar
que a tecnologia impulsiona os ciclos da informação e a difusão do conhecimento
gerado a partir desse processamento.
No que diz respeito à Informação e Conhecimento, é preciso visualizar a
informação enquanto possibilidade multirreferencial de múltiplos laços que estabe-
lecem a conexão entre o bruto e a semântica. Para evidenciar, um exemplo simples
apresentado por Silva (2006, p. 78) destaca bem a questão. Imaginemos que um
artigo científico é lido por alguém que desconheça o seu conteúdo, abrindo assim
a possibilidade de acessar um novo saber/informação, mas apenas esse contato não
basta para interferir diretamente na dimensão cognitiva do sujeito sobre o assunto.
É necessário que haja interação com outros suportes que percorram do mesmo
conteúdo para que o sujeito seja capaz de reunir várias condições endógenas e exó-
genas facilitadoras dessa dinâmica. Silva (2006 p. 79) descreve esse processo como a
diferenciação entre orgânica-funcional e os produtos gerados pela cognição humana
e processos cognitivos diretamente ditos.
Por fim, desenha-se uma proposta da relação da informação com diversos
campos do interesse humano, apresentando os limites da definição pragmática do
termo Informação.

REFERÊNCIAS
BAUMANN, Eneida Santana. O arquivo da família Calmon à luz da
arquivologia contemporânea. Salvador, 2011. Dissertação (Mestrado).
Universidade Federal da Bahia. Programa de Pós-Graduação em Ciência da
Informação. 161f.
DAVENPORT, Thomas H. Ecologia da informação: por que só a tecnologia
não basta para o sucesso na era da informação. São Paulo: Futura, 1998.
DRUCKER, Peter. The Coming of the New Organization. In: Harvard
Business Review, January-February, p. 45-53, 1988.
LANCASTER, F. W. O currículo da Ciência da Informação. Revista de
Biblioteconomia de Brasília, Brasília, v. 17, n.1, p. 1-5, jan./jun. 1989.
488 TRANSCICLOPÉDIA EM DIFUSÃO DO CONHECIMENTO

MACHADO, A. M. N. Informação e controle bibliográfico: um olhar sobre a


cibernética. 2001. 154 f. Tese (Doutorado em Educação). Faculdade de Filosofia e
Ciências, Universidade Estadual Paulista, Marília.

MARCH, James G. Decisions and Organizations. Amazon. Disponível


em https://www.amazon.com/Decisions-Organizations-James-G-March/
dp/0631168567 . Acesso em: 15 de fev. de 2018.

MORIN, Edgar. O método 5: a humanidade da humanidade. 2.ed. Porto


Alegre: Sulina, 2003.

SILVA, Armando Malheiro da. A informação: da compreensão do fenômeno e


construção do objecto científico. Porto: Afrontamento, 2006.

SILVA, Armando Malheiro da; RIBEIRO, Fernanda. Das ciências documentais


à ciência da informação. Apontamentos, 1999.

SILVA, Armando Malheiro da. Arquivos familiares e pessoais: bases científicas


para aplicação do modelo sistêmico e interactivo. Revista da Faculdade de
Letras, Ciências e Técnicas do Património. Porto, 2004, Série I, vol. III, pp.
55-84 Termo: Informação. Disponível em <www.origemdapalavra.com.br/site/
palavras/informacao/> Acesso em: 15 de fev. de 2018.
54. Intelecto

Ginaldo Gonçalves Farias

Este termo foi constantemente usado pelos filósofos com dois sentidos: sen-
tido genérico, como faculdade de pensar em geral; e sentido específico, como uma
atividade ou técnica particular de pensar. Com este segundo significado, esse termo
é entendido de três maneiras diferentes: como Intelecto intuitivo; como Intelecto
operante; como entendimento, inteligência ou intelecção. (Dicionário de Filosofia
Nícola Abbagnano).

INTELECTO COMO INTELIGÊNCIA


A inteligência opera com a imobilidade, espacializando geometricamente
tudo em conceitos. Consiste, assim, em um instrumento de construção, enquanto
a intuição, que se caracteriza por ser um instinto desinteressado, coloca-se dentro
do objeto, dura com ele, realizando um movimento oposto ao da inteligência. A
inteligência parte da periferia para o centro. Desse modo, tudo que é construído,
como uma casa com porta, telhado, paredes, vem de fora. O que é vivo, por sua vez,
explode do centro para a periferia, como uma semente explode em árvore ou um ovo
em canto de pássaro. Da mesma forma, como a dedução apenas afirma o que já se
encontra nas premissas, o construído trabalha em uma reciclagem. A inteligência
não entende o movente, não entende o criado. Ela encaixa mecanicamente partes
encaixáveis umas nas outras; seu trabalho é previsível, por isso a ciência prevê. E o
que não é previsível não existe.
Uma coisa, no entanto, é fabricar, outra é organizar. A primeira operação é
própria do homem. Consiste em montar partes de matéria que se modelou
de tal modo que se as possa inserir umas nas outras e obter delas uma ação
comum. Dispomo-las, por assim dizer, em volta da ação que já é seu centro
ideal. A fabricação vai, pois, da periferia ao centro ou, como diriam os filósofos,
do múltiplo ao uno. Pelo contrário, o trabalho de organização vai do centro
para a periferia. Começa em um ponto que é quase um ponto matemático e
se prolonga em volta desse ponto em ondas concêntricas que vão sempre se
alargando. O trabalho de fabricação será tanto mais eficaz quanto maior for a
quantidade de matéria de que dispõe. Procede por concentração e compressão.
Pelo contrário, o ato de organização tem algo de explosivo: é-lhe preciso, no
ponto de partida, a menor quantidade de espaço possível, um mínimo de
matéria, como se as forças organizadoras só entrassem no espaço a contra-
490 TRANSCICLOPÉDIA EM DIFUSÃO DO CONHECIMENTO

gosto. O espermatozoide, que põe em movimento o processo evolutivo da


vida embrionária, é uma das menores células do organismo, e mesmo assim
é apenas uma pequena porção do espermatozoide que toma realmente parte
da operação (BERGSON, 2005a, p. 100).

Organização, aqui, deve ser entendida como o ato de criar organismos, ou seja,
matéria viva; para Bergson, essa força criadora que enche a matéria de indeterminação
é qualitativa, caracteriza-se por temporalidade ou, na linguagem bergsoniana, por
duração. A inteligência e o conhecimento científico não possuem instrumentalidade
para lidar com algo dessa natureza. A ciência transporta para o terreno da espaciali-
dade aquilo que dura, transforma em coisa construída, em mecanismo, aquilo que
é criado, que é organismo. Tenta prever aquilo que, por natureza, é surpreendente.
Por esse motivo, a Metafísica — ou a Filosofia — está mais bem aparelhada para
esse tipo de conhecimento; não por ser superior ou inferior, e sim por possuir um
método diferente. O método da Filosofia é a intuição e esse tipo de objeto só pode
ser intuído. Para que os resultados sejam precisos, um objeto inexato exige um
método inexato, visto que, se utilizamos um método exato para um objeto inexato,
perdemos a precisão.
A obra fabricada desenha a forma do trabalho de fabricação. Quero dizer com
isso que o fabricante reencontra em seu produto exatamente aquilo que nele
pôs. Caso queira fazer uma máquina, recortará suas peças uma por uma, e
depois irá juntá-las: na máquina pronta transparecerão tanto as peças como
sua junção. O conjunto do resultado representa aqui o conjunto do trabalho,
e a cada parte do trabalho corresponde uma parte do resultado (BERGSON,
2005a, p. 100-101).

Todo conhecimento produzido pela inteligência se assemelha à construção de


uma máquina.
Ao abstrair a multiplicidade do mundo e reuni-la em conceitos ou ideias, a
representação das coisas, a inteligência, diante de uma realidade móvel, imobiliza-a.
Logo, os conceitos funcionam como fixadores dessa realidade móvel, como uma
fotografia. Isso cria pontos. Conforme a Física estuda o movimento, cria uma série
de sucessivos pontos, supondo a totalidade do movimento. Porém, o movimento
percebido pela inteligência é ilusório. É o mesmo movimento que percebemos nos
filmes, que são apenas uma série de fotos imóveis deslizando, e só assim a inteligência
pode supor algo que flui.
O papel da inteligência, com efeito, é presidir ações. Ora, na ação, é o resultado
que nos interessa; os meios importam pouco, desde que o alvo seja alcançado.
Daí vem que nos estiremos por inteiro em direção ao fim a ser realizado,
TRANSCICLOPÉDIA EM DIFUSÃO DO CONHECIMENTO 491

fiando-nos o mais das vezes a ele para que, de ideia, se torne ato. E daí vem
também que o termo no qual nossa atividade irá repousar seja o único expli-
citamente representado para nosso espírito: os movimentos constitutivos da
ação mesma ou escapam à nossa consciência ou só lhe chegam confusamente.
[...] O espírito transporta-se imediatamente para o objetivo, isto é, para a
visão esquemática e simplificada do ato considerado como realizado. [...] A
inteligência, portanto, só representa à atividade objetivos a serem alcançados,
isto é, pontos de repouso. E, de um objetivo atingido para outro objetivo
atingido, de um repouso para outro repouso, nossa atividade transporta-se por
uma série de pulos, durante os quais nossa consciência desvia os olhos o mais
possível do movimento que se realiza para fitar apenas a imagem antecipada
do movimento realizado (BERGSON, 2005a, p. 323-324).

Por conseguinte, saltando de ponto fixo em ponto fixo, ou de fotografia em


fotografia, quanto mais a ciência produz conhecimento sobre algo mais lacunas
deixa. Quando o objeto investigado é matéria viva, a insuficiência da ciência, que
apenas usa a inteligência, é tremenda. Primeiro, a ciência transforma o objeto vivo
em mecanismo, depois, imobiliza-o para dividi-lo em partes, para conhecê-lo.
Uma das ferramentas utilizadas pela inteligência para a construção e fabricação
do conhecimento é a lógica inclusive para a organização da linguagem na difusão
do conhecimento.

LÓGICA FORMAL
A Lógica Formal ou Lógica Menor estabelece as condições de coerência do
pensamento consigo mesmo, trata das leis gerais do pensamento no que elas tenham
de igual e de comum, o que as tornam universais e aplicáveis em todas as operações
do intelecto. Não considera, portanto, as operações intelectuais do ponto de vista
de sua natureza — o que compete à Psicologia — mas do ponto de vista de sua vali-
dade intrínseca, isto é, da sua forma (ou da ordem dos conceitos, enquanto sujeitos,
predicados e termos médios, que é o objetivo formal da Lógica).
Podemos identificar na Lógica Formal três partes distintas, constituído, po-
rém, um todo indissolúvel, que é pensar humano. Essa divisão somente tem valor
didático, tendo em vista, na realidade, que são três maneiras de analisar um fato
que é, por sua natureza, indecomponível. As três partes são: ideia, juízo e raciocínio,
enquanto pensamento.
Todo raciocínio se compõe de juízos, e todo juízo se compõe de ideias, daí as
três operações intelectuais, especificamente diferentes:
1ª) a simples apreensão, que consiste em conceber uma ideia.
492 TRANSCICLOPÉDIA EM DIFUSÃO DO CONHECIMENTO

2ª) o juízo, que consiste em afirmar ou negar uma relação entre duas ideias.
3ª) o raciocínio, operação pela qual, de dois ou mais juízos dados, tira-se outro
juízo que deles decorre necessariamente.
A Lógica estuda essas três operações em si mesmas, enquanto atos da inteli-
gência, e nas suas expressões verbais, sensíveis, concretas, a saber:
1) Para ideia, representação verbal: o termo;
2) Para o juízo, representação verbal: a proposição;
3) Para o raciocínio, representação verbal: o argumento.
Todos os princípios e regras válidos das operações da inteligência são também
regras e princípios e regras válidos das respectivas expressões verbais.
Exemplos Iniciais
1. Ideias (termos): homem, racional, animal, Pedro.
2. Juízo (proposição): O homem é animal racional; Pedro é homem.
3. Raciocínio (argumentação): Todo homem é animal racional.

Pedro é homem.
Logo, Pedro é animal racional.

PRINCÍPIOS FUNDAMENTAIS DA LÓGICA FORMAL


A Lógica Formal fundamenta-se em quatro princípios fundamentais, que
permitem todo desenvolvimento da Lógica, como elementos que dão validade a
todos os atos do pensamento, com conveniência ou não entre si, de certas ideias ou
proposições.

1º) Princípio da Identidade


O que é, é; ou tudo o que é idêntico ao que já se pensou é necessariamente
verdadeiro, se o que se pensou é verdadeiro, ou ainda, todo objeto é idêntico a si
mesmo. Esse princípio pode expressar-se também pela fórmula A é A, o que quer
dizer que uma ideia ou conceito é igual a ele mesmo, pelo menos no momento em
que se está realizando o pensamento. O sentido é que o predicado expressa alguma
qualidade do sujeito; caso contrário, teríamos uma tautologia, como se disséssemos
que o Rio de Janeiro. Ao dizermos, pelo contrário, que “Tiradentes é o Mártir da
Independência”, expressamos que o atributo a Tiradentes lhe cabe totalmente, ha-
vendo, então, uma identidade.
TRANSCICLOPÉDIA EM DIFUSÃO DO CONHECIMENTO 493

2º) Princípio da Contradição


Esse princípio pode ser assim enunciado: uma coisa não pode ser e não será ao
mesmo tempo; ou, de duas contraditórias, uma é necessariamente falsa. Se afirmamos
que A é A e que A não é A, uma das duas afirmações será falsa. Aristóteles viu neste
o mais importante princípio, uma vez que os outros a ele se reduzem.

3º) Princípio do Terceiro Excluído


Esse princípio assim se expressa: toda coisa deve ser ou não ser. Em outras pa-
lavras, com dois juízos contraditórios, tais como A é B e A não é B, não se dá uma
terceira possibilidade, não existem um terceiro modo de ser porque um dos dois,
necessariamente, deve ser verdadeiro, mas, tão só, que dois juízos contraditórios não
podem ser simultaneamente falsos.

4º) Princípio de Razão Suficiente


Este princípio foi formulado por Leibniz e diz “[...] todas as coisas devem ter
uma razão suficiente pela qual são o que são e não são outra coisa”. Há conhecimentos
aos quais damos crédito devido às razões de que são acompanhados e que são tidos
como suficientes para garantirem autenticidade.
Muitos autores consideram somente os três primeiros princípios, não dando ao
quarto princípio a necessária formalidade, mas tão somente características empíricas.

IDEIA – SIMPLES APREENSÃO


Ideia é o ato pelo qual a inteligência atinge ou percebe alguma coisa, sem dela
fazer qualquer afirmação ou negação. Pode-se dizer que ideia é sinônimo de conceito
e de noção. Não é mais do que a forma sob a qual um objeto é percebido pela nossa
inteligência. Apreensão no sentido lógico é o ato pelo qual a inteligência concebe
uma ideia, sem nada afirmar ou negar.
Ideia em grego quer dizer forma, imagem. Mas nem todas as ideias são
imagens. Muitas são puramente intelectuais, fruto de abstração, para as quais
não há imagem interior alguma. Para melhor entendimento, poderíamos dizer
que “ideia ou conceito é a simples representação determinada de um objeto sen-
sível. ‘Homem’, ‘triângulo’, ‘bondade’ são ideias enquanto feita abstração de toda
realidade singular. Ao contrário, ‘este homem’ (Pedro), ‘este triângulo isósceles’
(desenhado no quadro), ‘este ato de bondade’ (ato de Pedro dando uma esmola a
um pobre), são imagens”.
494 TRANSCICLOPÉDIA EM DIFUSÃO DO CONHECIMENTO

TERMO
Termo é a expressão verbal (ou sinal) da ideia que permite a transmissão de uma
ideia de um homem para outro homem. O termo segue as mesmas linhas mestras
de ideia, sendo sua representação concreta. Trataremos, pois, simultaneamente de
ideia e termo neste curso.
Do ponto de vista lógico é necessário distinguir o termo da palavra. O termo
pode ter uma só palavra ou pode ter várias palavras, como, por exemplo: o bom
Deus, alguns homens, uma ação brilhante, formam uma só ideia lógica.

COMPREENSÃO E EXTENSÃO
Uma ideia (e, por consequência, um termo) pode ser considerada do ponto
de vista da compreensão e do ponto de vista da extensão, sendo esta distinção de
fundamental importância no estudo da lógica formal.
Compreensão — é o conteúdo de uma ideia, é a sua significação, sendo, por-
tanto, o conjunto de elementos componentes de uma ideia. As qualidades que uma
ideia reúne formam a sua compreensão. Assim, a compreensão da ideia de homem
implica os seguintes elementos: ser, vivo, sensível, racional etc., que são suas notas
compreensivas ou qualitativas.
Extensão — é o conjunto de sujeitos aos quais a ideia convém e aos quais po-
demos aplicá-la, podendo ser identificada com a quantidade. Assim, por exemplo,
o conceito “animal” contém em sua extensão os conceitos de “homem” e “animal
irracional”. A ideia “homem” convém aos ingleses, aos franceses, aos brancos, aos
pretos, a Pedro, a José etc. O conceito de extensão maior chama-se conceito supe-
rior; os conceitos que entram na extensão do conceito superior são seus inferiores,
ou partes subjetivas.
Relação da Compreensão e da Extensão — toda ideia tem compreensão e
extensão determinadas, sendo válida a lei:
A compreensão de uma ideia está na ordem inversa da sua extensão: sig-
nificando que, à medida que a compreensão de uma ideia aumenta, a sua extensão
diminui, e vice-versa. A ideia de ser, menos rica de todas, é também a mais universal;
a ideia de homem, que implica elementos mais números, aplica-se apenas a uma parte
dos seres, e a ideia de francês, que acrescente à ideia de homem novos elementos, é
mais restrita ainda. Finalmente, a ideia de indivíduo, Pedro, Paulo, cuja compreensão
é a mais rica, é também a mais limitada quanto à extensão. Uma ideia será mais
geral, mais extensa, quanto menos elementos significativos tiver, ao passo que será
TRANSCICLOPÉDIA EM DIFUSÃO DO CONHECIMENTO 495

menos geral à medida que possuir mais notas significativas, isolando-a, aos poucos,
de seu grupo, chegando até a individualizá-la.

SER — máximo de extensão, mínimo de compreensão PEDRO — mínimo de


extensão, máximo de compreensão ANIMAL — mais extenso do que compre-
ensível HOMEM — mais compreensível do que extenso

AS IDEIAS QUANTO À COMPREENSÃO PODEM SER

1. Ideia simples, quando consta de um só elemento significativo: ser, ente


2. Ideia composta, quando consta de mais de um elemento significativo: homem

AS IDEIAS QUANTO À EXTENSÃO PODEM SER


3. Ideia singular, quando designa, especificamente, um determinado ser:
lápis, esta casa
4. Ideia Particular, quando designa parte de uma classe ou gênero de seres:
muitos soldados, alguns aviões, várias televisões
5. Ideia Universal, quando designa todos os seres de uma mesma espécie ou
gênero, por conter sua compreensão um elemento ou essência comum,
ou ainda, quando exprime uma noção despojada de qualquer elemento
sensível, obtida pela abstração.

Na classificação das ideias, as universais merecem atenção especial, podendo


ser distribuídas pelo gênero, espécie, diferença específica, próprio e acidente: animal
(gênero), homem (espécie), racional (diferença específica), palavra (próprio), pobre
(acidente).
GÊNERO: é a ideia universal que representa o elemento comum possuído
por várias espécies;
Animal (gênero), compreende várias espécies: homem, leão, cavalo etc.

Pode-se dizer que o gênero é parte da essência

ESPÉCIE: enquanto o gênero representa parte da essência, a espécie é ideia


universal que representa toda a essência de um grupo. A espécie é a essência com-
pleta. Toda espécie é compreendida na extensão de um gênero, como leão, homem
etc. para animal; mamífero, ave, réptil, batráquio e peixe para vertebrado.
496 TRANSCICLOPÉDIA EM DIFUSÃO DO CONHECIMENTO

DIFERENÇA ESPECÍFICA: é a ideia universal que representa o elemento


distintivo de cada espécie, e que, unido ao gênero, forma a espécie.
Animal (gênero) + racional (diferença específica) = homem (espécie)
O gênero, espécie e a diferença específica fornecem os elementos para a defi-
nição perfeita.
PRÓPRIO: é a ideia universal que exprime — um derivado necessário da
essência‖
Assim, por exemplo, palavra homem
ACIDENTE: é a ideia universal que pode existir ou não junto a qualquer
coisa, sem afetar-lhe a essência, como por exemplo, as ideias de pobre, inteligente
ou alto relação a homem.

REFERÊNCIAS
BERGSON, Henry. A energia espiritual. Tradução de Rosimeiry Costhek
Abílio. São Paulo: Martins Fontes, 2009.

BERGSON, Henry. A evolução criadora. Tradução de Bento Prado Júnior. São


Paulo: Martins Fontes, 2005a.

BERGSON, Henry. Matéria e memória: ensaio sobre a relação do corpo com o


espírito. São Paulo: Martins Fontes, 2006b. 3.ed. (col. Tópicos)

BERGSON, Henry. Memória e vida. Tradução de Cláudia Derliner. São Paulo:


Martins Fontes, 2006c.

BERGSON, Henry. O pensamento e o movente. Tradução de Bento Prado


Neto. São Paulo: Martins Fontes, 2006d.

COPI, Irving M. Introdução à Lógica. São Paulo: Mestre JOU, 1980.


55. Inteligência Artificial (IA)

Soltan Galano Duverger

A área da Inteligência Artificial (Artificial Intelligence, IA) é um campo que


ultrapassou as fronteiras da comunidade científica e da tecnologia. O uso do termo
IA nas últimas duas décadas aumentou significativamente nos meios de comunica-
ção, se referindo aos serviços ou processos que seriam substituídos por máquinas.
Na atualidade, serviços inteligentes são cada vez mais frequentes no dia a dia do ser
humano com o intuito de economizar tempo ou esforço, um exemplo disto são as
consultas ou operações telefônicas que são atendidas por um computador. Quase
80% das operações dos clientes de Bancos, por exemplo, podem ser realizadas de
forma virtual através de um aplicativo.
No relatório do Fórum Econômico Mundial de 2018, ficou evidente a preo-
cupação dos especialistas em economia sobre o seu emprego na quarta Revolução
Industrial, pois a Inteligência Artificial passou a ser um dos quatros fatores de
mudanças no mundo do trabalho. Empregos como operadores de máquinas foram
reduzidos em até 40%, pessoal de serviços até 30%, assim como outras profissões
foram obrigadas a reduzir a demanda de pessoal físico por questões econômicas.
Até a indústria cinematográfica tem explorado o tema da IA, e tem transmitido o
medo de como o mundo poderia ser destruído se as máquinas com um grau maior
de inteligência resolvessem dominar o homem. Mas, para tranquilidade da huma-
nidade, especialistas na área discutem sobre regras e normas do que pode e não
pode ser experimentado com IA. Veja-se os primeiros passos dados na Europa no
documento que pode ser acessado em [https://www.anj.org.br/site/component/k2/73-jornal-
-anj-online/26092-uniao-europeia-apresenta-plano-para-regular-inteligencia-artificial.html]
Por tudo o que foi mencionado, definimos que um programa, robô ou disposi-
tivo está dotado de Inteligência Artificial quando é capaz de reproduzir habilidades
cognitivas ou ações racionais semelhantes ao de um ser humano. Existe um cem
número de definições e conceitos sobre o tema da Inteligência Artificial, a tabela a
seguir expõe algumas definições em quatro áreas neste campo.
498 TRANSCICLOPÉDIA EM DIFUSÃO DO CONHECIMENTO

Tabela 1: Definições de Inteligência Artificial, organizadas


em quatro categorias.

Sistemas que pensam como humanos Sistemas que pensam racionalmente


BELLMAN, (1978) “A automa- WINSTON, (1992) “O estudo dos cálculos que permitem
ção de atividades que associamos perceber, argumentar e agir.”
ao pensamento humano, atividades SCHALKOFF, (1990). “Um campo de estudo que busca
como tomada de decisão, resolução explicar e imitar comportamentos inteligentes em termos
de problemas, aprendizado ...” de processos computacionais.”

Sistemas que agem como humanos Sistemas que agem racionalmente


KURZWEIL, (1990) “A arte de RUSSELL, (1995) “É o estudo de agentes que existem em
criar máquinas que executam fun- um ambiente e percebem e atuam.”
ções que exigem inteligência quando LUGER; STUBBLEFIELD, (1993) “O ramo da infor-
realizadas por pessoas.” mática que se preocupa com a automação de inteligência
RICH AND KNIGHT, (1991) “O comportamental.”
estudo de como fazer os computado-
res fazerem coisas em que, no mo-
mento, as pessoas são melhores.”

Fonte: CAMPOS DA SILVA FILHO

Como se percebe na tabela anterior, definições e formas apresentadas sobre o


tema remontam ao início da era da informática, mas os primeiros estudos começa-
ram na década de 1940. O matemático inglês Alan Turing foi o primeiro a definir
quando um computador ou dispositivo é inteligente. O teste para isto foi chamado
de Teste de Turing e ainda é aplicado em nossos dias, COPELAND (2004). O
termo Inteligência Artificial foi formalmente definido em 1956 em um congresso,
pelo professor John McCarthy, da Universidade Stanford. Desde essa época, os
pesquisadores focaram seus estudos em dois ramos: um em torno de modelos que
simulem o funcionamento do cérebro e das conexões dos neurônios; e outro, enca-
minhado aos estudos cognitivos, ao raciocínio MÜLLER and BOSTROM (2016).
Entre as áreas que compõem os estudos em inteligência artificial se encontram:
TRANSCICLOPÉDIA EM DIFUSÃO DO CONHECIMENTO 499

Tabela 2: Enfoques de pesquisas dentro de Inteligência Artificial mais


conhecidos.

Algoritmos de Teoria da complexidade Redes Neurais Artificiais


Algoritmos para neurociência computacional Redes Bayesianas
Algoritmos ou sistemas evolutivos Ciências cognitivas
Hardware para supercomputadores Big Data
Arquiteturas cognitivas integradas Sistemas baseados em Lógica
Outro método atualmente conhecido por pelo menos um Robótica
pesquisador
Outros métodos atualmente desconhecidos por completo
Emulação de cérebro inteiro: Nenhum método jamais contribui- inteligência de enxame
rá para este objetivo

Fonte: traduzido de MÜLLER and BOSTROM (2016).

Cientistas de outros campos têm utilizado gradualmente da área de Inteligência


Artificial, onde encontram ferramentas e vocabulários para sistematizar e automa-
tizar tarefas intelectuais, como atividade de classificação de objetos, detecção de
fenômenos irregulares, agrupamentos de objetos por características semelhantes,
e aprendizagem por reforço. Processamentos de imagens, por exemplo, utilizam
algoritmos de redes neurais artificiais, Máquinas de Vetores de suporte, Árvores
Aleatórias, Máxima verossimilhança para automatizar uma série de processos
de classificação WIDROW and MICHAEL (1990), BENEDIKTSSON (1990),
ATKINSON and TATNALL (1997), ARASARATNAM and HAYKIN (2008).
O fato é que a IA tem trazido muitas inovações na tecnologia que áreas como
Automação, Robótica, Big Data, Internet das Coisas, Internet veem se tornando
cada vez mais autônomas, customizáveis e eficientes. Então, concordamos que a
Inteligência Artificial veio para melhorar a qualidade de vida como muitos especia-
listas desejam ou será a destruição do mundo como alegam alguns filmes de ficção
científica? Isto é só um convite para que se possa pesquisar e ler mais sobre o assunto.

REFERÊNCIAS
ARASARATNAM, Lenkaran, and HAYKIN Simon. Nonlinear Bayesian
filters for training recurrent neural networks. Mexican International
Conference on Artificial Intelligence. Springer, Berlin, Heidelberg, 2008.
500 TRANSCICLOPÉDIA EM DIFUSÃO DO CONHECIMENTO

ATKINSON, Peter M., and TATNALL Adrian RL. Introduction neural


networks in remote sensing. International Journal of remote sensing 18.4 (1997):
699-709.

BENEDIKTSSON, Jon A., PHILIP H. Swain, and OKAN K. Ersoy.


Neural network approaches versus statistical methods in classification of
multisource remote sensing data. (1990).

COPELAND, B. Jack, and DIANE Proudfoot. The computer, artificial


intelligence, and the Turing test. Alan Turing: Life and Legacy of a Great
Thinker. Springer, Berlin, Heidelberg, 2004. 317-351.

MÜLLER, Vincent C., and BOSTROM Nick, 2016. Future progress in


artificial intelligence: A survey of expert opinion. Fundamental issues of
artificial intelligence. Springer, Cham, 2016. 555-572

WIDROW, Bernard, and MICHAEL A. Lehr. 30 years of adaptive neural


networks: perceptron, madaline, and backpropagation. Proceedings of the
IEEE 78.9 (1990): 1415-1442.
56. Inteligência Coletiva

Jaildon Jorge Amorim Góes


Marcos Vinícius Castro Souza

Pelo avanço das tecnologias informacionais, um novo horizonte de conheci-


mento se descortinou para as atividades cognitivas e criativas dos seres humanos. Pela
inteligência artificial, revolução digital, internet e redes virtuais/sociais, o “Homo
Informaticus” (Lévy, 1998) começou a desenhar uma nova história para si.
As diversas possibilidades de interação, compartilhamento, cooperação, cola-
boração, inter-relação e conectividade, propiciadas pela informática/informatização
(inteligência artificial) obrigou as ciências cognitivas a repensar novas formas de
aprendizado, tanto na perspectiva individual quanto coletiva.
Etimologicamente, a palavra “inteligência” vem do latim “intelligentia”, que
significa o conjunto de todas as faculdades intelectuais (memória, imaginação, juízo,
raciocínio, abstração e concepção); qualidade de inteligente. Já a palavra “Coletiva” é
uma derivação de “coletivo”, vem do latim “collectivus”, significa conjunto ou forma
de coletividade que provém dela; o que abrange muitas coisas ou pessoas; relativo
ou pertencente a muitas coisas ou pessoas; que é intrínseco à natureza de um grupo;
que é inerente ou pertence a um povo, uma classe etc.
O conceito de “inteligência coletiva” é uma dessas estratégias de atualização
da aprendizagem, na contemporaneidade. Esse conceito foi pensado, inicialmente,
pelo filósofo Pierre Lévy (2011), especialista em novas tecnologias da comunicação
e informação que defende a ideia de construção e difusão do conhecimento na
perspectiva do coletivo ou dos coletivos inteligentes.
Para Lévy (2011), pensar coletivamente é conhecer e valorizar o outro em
sua inteligência e na diversidade dos saberes; é uma forma de aprendermos a nos
conhecer para pensar juntos.
As novas mídias interativas, como a Internet, promovem a distribuição dos
conhecimentos entre os usuários e são frequentemente associados à promoção e
valorização da inteligência coletiva. Para Lévy (2011), essa inteligência precisa ser
incessantemente valorizada, pois é uma inteligência distribuída por toda parte,
coordenada em tempo real, que resulta uma mobilização efetiva das competências.
Um dos principais objetivos da inteligência coletiva visa ao reconhecimento
das competências e habilidades distribuídas entre os indivíduos, para coordená-las
502 TRANSCICLOPÉDIA EM DIFUSÃO DO CONHECIMENTO

e serem usadas em prol da coletividade. Além disso, a utilização das tecnologias da


informação e comunicação, a partir do trabalho coletivo, permite o desenvolvimen-
to de redes de intercâmbio de informações e novas formas de acesso, construção,
compartilhamento e difusão de conhecimentos com o auxílio do computador e da
Internet.
Segundo Lévy (2014), há inúmeras ferramentas de distribuição de informação,
principalmente via redes sociais, onde as novas ferramentas digitais possibilitam que
o indivíduo seja o responsável por seu próprio aprendizado. Quando o sujeito faz
isso em um ambiente compartilhado como a internet, acaba contribuindo para a
construção do conhecimento coletivo.
O desenvolvimento dos pensamentos coletivos é consequência de uma rede de
conexões complexas, a partir das inter-relações dos agentes envolvidos, despertando o
interesse para campos diversos nas áreas de ciências, tecnologia, arte, comunicação etc.
A força dos coletivos, com o intuito de possibilitar os aprendizados, acolhe a
diversidade de pontos de vista, sem ignorar ou negar a subjetividade de cada sujeito
contrários aos processos de aprendizagem individualizada que muitas vezes fomenta
a competição e os conflitos.
Inteligência coletiva é um termo que pode ser considerado transversal, pois
perpassa pelas mais variadas áreas do conhecimento. Associa-se a uma nova forma de
compreender o pensamento, relacionando-se a elementos ligados à sustentabilidade,
por intermédio das várias possibilidades de conexões entre os sujeitos, mediados pela
utilização das novas tecnologias da informação e difusão social do conhecimento,
via Web 2.0 e suas ferramentas.
A inteligência coletiva envolve a necessidade da construção do conhecimento de
modo colaborativo, compartilhado, dialogado, entre os interlocutores, mediatizados
pelas ferramentas disponíveis na internet, como é o caso das redes sociais. Assim,
importa salientar que esse tipo de inteligência requer que os sujeitos desenvolvam
a autonomia no gerenciamento da aprendizagem ante o acesso às informações e
ferramentas disponibilizadas na rede, tais como os disponibilizados por meio dos
softwares livres.
Lévy (2014) destaca a necessidade do desenvolvimento de uma capacidade
crítica para analisar essas informações, em razão da facilidade existente no que tange
ao compartilhamento de informações na rede por qualquer usuário.
A inteligência coletiva propõe ao educador utilizar as novas tecnologias como
suporte para o processo de mediação em espaços coletivos e colaborativos de cons-
trução do conhecimento por parte dos sujeitos em interatividade. Há, desse modo,
TRANSCICLOPÉDIA EM DIFUSÃO DO CONHECIMENTO 503

uma descentralização da figura do educador no processo de ensino e aprendizagem,


passando o sujeito interativo (educando) a ocupar esse espaço em coautoria com
outros sujeitos.

REFERÊNCIAS
LÉVY, Pierre. A inteligência coletiva: por uma antropologia do ciberespaço.
Tradução de Luiz Paulo Roaunet. 8.ed., São Paulo: Loyola, 2011.

LÉVY, Pierre. Inteligência coletiva: Aula Magna no Encontro Internacional


Educação 360. Rio de Janeiro: SESC, 2014. Disponível em: https://oglobo.globo.
com/sociedade/educacao/educacao-360/precisamos-programar-cabecas-para-
construir-conhecimento-coletivo-diz-pierre-levy-13849349 . Acesso em 30 de
novembro de 2018.

LÉVY, Pierre. A máquina universo: criação, cognição e cultura informática.


Tradução de Bruno Charles Magne. Porto Alegre: Artmed, 1998.
57. Interface

Amilton Alves de Souza

De acordo com a Infopédia (2018) in.ter.fa.ce ou it̃ ərˈcontínuo(ə) é um nome


feminino. Compreendido a partir de dois sentidos, o primeiro seria um dispositivo
de ligação entre sistemas, e o outro, um elemento que liga dois ou mais componentes
de um sistema.
A Interface, então, é percebida como resultado da experimentação do sujeito
com ele mesmo, com o outro e com o meio. É construção, experiência, sentido etc.
Para Lévy (1993), a interface pode ser compreendida a partir da lógica, ação ou ato
de traduzir relações, conexões entre os diferentes e as diferenças, sejam na informática
ou na relação humana.
Na perspectiva da informática, a interface foi experienciada como o instru-
mento que teve como função produzir e difundir a comunicação entre os aparatos
tecnológicos da informática por meio de conexões. Lévy (1993, p. 178) nos ajuda a
entender a relação da interface na lógica “homem/máquina” que
[...] designa o conjunto de programas e aparelhos materiais que permitem a
comunicação entre um sistema informático e seus usuários humanos.

Portanto, é possível compreender que, na perspectiva da informática, a interface


precisa ser ampliada para uma rede de interfaces, de modo que a lógica “homem/
máquina” seja percebida na sua magnitude comunicativa e nas demandas necessárias
para que essas interfaces possam acontecer nessa lógica.
No fazer humano e das tecnologias da informação e comunicação, a interface
será experienciada sempre a partir das conexões de consenso ou não entre as TIC
e os sujeitos, tendo como elementos as experiências sociais, históricas e culturais.
Assim, teremos uma rede de interfaces entrelaçadas, conectadas e que se confun-
dem e convergem. As interfaces são entendidas por meio das relações, significados,
conexões, disputa, negociação entre sujeito com ele mesmo, com o outro e com o
meio e também na “lógica homem/máquina”.
Lévy interpela:
O que passa através da interface? Outras interfaces. As interfaces são embuti-
das, dobradas, amarrotadas, deformadas umas nas outras, umas pelas outras,
desviadas de suas finalidades iniciais. E isto até o último invólucro, até a última
pequena dobra. Mais uma vez, se há conteúdo, devemos imaginá-lo como
TRANSCICLOPÉDIA EM DIFUSÃO DO CONHECIMENTO 505

sendo feito de recipientes encaixados, aglomerados, prensados, torcidos... O


interior é composto por antigas superfícies, prestes a ressurgir, mais ou menos
visíveis por transparência, contribuindo para definir um meto continuamente
deformável. Tanto é assim que um ator qualquer não tem nada de substancial
para comunicar, mas sempre outros atores e outras interfaces a captar, deslocar,
envolver, desviar, deformar, conectar, metabolizar (1993, p. 184).

A interface é a própria experiência com e no outro por meio das suas mais
diversas conexões. Sem esse sentido de experiência conectada não há interface.

REFERÊNCIAS
LÉVY, Pierre. As tecnologias da inteligência: o futuro do pensamento na era da
informática. Rio de Janeiro: Editora 34, 1993.

LÉVY, Pierre. O que é Virtual? Tradução de Paulo Neves. São Paulo: Editora 34,
1996.

LÉVY, Pierre. Cibercultura. Tradução de Carlos Irineu da Costa. 3.ed. São


Paulo: Editora 34, 2004.
58. Interfaces Tecnológicas de Difusão
do Conhecimento em AVA

Ana Cristina de Mendonça Santos

Segundo pesquisadores como Fróes Burnham (2012), Pretto (2008), Santos


(2016), dentre outros, a prática vivenciada em ambientes virtuais de aprendizagem
— AVA pode propiciar um novo olhar científico, curioso, indagador e criativo, sendo
desenvolvido a partir de recursos e interfaces comunicacionais que são oferecidas pelo
ambiente no qual todos os envolvidos criam possibilidades de interação e ­ressignificação
pedagógica, contemplando o conhecimento produzido por todos e, dessa forma,
respeita a pluralidade de ideias, subjetividades dos sujeitos e complementariedades
dos saberes, um espaço, portanto concebido como espaço multirreferencial.
Nesses espaços, os diferentes sujeitos do processo educativo podem interagir
como emissores e receptores do conhecimento, numa ação dialogada e negociada
entre os pares, a partir de uma relação denominada de todos-todos, com presença
marcante de interatividade via mediação tecnológica. Defendemos, então, que o
AVA possui todas as potencialidades para favorecer a difusão de conhecimentos.
Nossa defesa se apoia nos argumentos de Fróes Burnham (2012), pois a autora
afirma que tais ambientes são caracterizados por uma lógica de organização hori-
zontal, na qual estão presentes a multivocalidade, a não linearidade, a afetividade e
a negociação entre os sujeitos, considerando que cada um atua de acordo com suas
especificidades. Na relação, assim configurada, não se cristalizam hierarquias nem
ações centralizadas, mas em diálogos colaborativos e consensos plurais, característicos
de gestão e atuação partilhada. Essa gestão partilhada não se restringe ao processo de
ensino e aprendizagem, concretizado na relação professor e estudantes, mas abarca a
toda estrutura educacional, envolvendo uma gestão colegiada dos diversos setores que
atuam nas instituições educacionais e que são responsáveis direta ou indiretamente
para a implementação de processos educativos.
Apresentamos abaixo algumas conceituações sobre as principais interfaces tec-
nológicas utilizadas no AVA, uma síntese dos estudos de diversos autores, a exemplo,
de Santos (2006; 2016); Silva (2011); Sales, Valente e Aragão (2010); Santos e Araújo
(2009) e Lemos (2004):
Fóruns de discussão: São interfaces de comunicação assíncrona que permite o
diálogo partilhado das narrativas e sentidos construídos entre os sujeitos envolvidos,
TRANSCICLOPÉDIA EM DIFUSÃO DO CONHECIMENTO 507

em tempos distintos, no qual cada sujeito na sua singularidade e diferença pode


expressar e difundir saberes contribuindo para a construção coletiva do grupo, pois,
segundo SANTOS, é necessário:
Fazer emergir ambiências de comunicação e aprendizagem onde cada pesqui-
sador possa se sentir membro do grupo e atuar como pesquisador-coletivo.
(2016, p. 133).

O Fórum de discussão ou de debate é uma das atividades mais utilizadas nos


ambientes virtuais e favorece discussões importantes com diversos tipos de estruturas.
Suas mensagens podem apresentar diversos formatos e permitem anexar documentos
e vídeos. Se os participantes do fórum realizarem assinatura no mesmo, receberão
notificações de suas participações em seu e-mail, e os professores podem encaminhar
mensagens ao fórum, solicitando o envio de cópia para o e-mail de cada estudante.
Os fóruns se configuram de diversas formas, podendo servir como espaço de debate
do conteúdo; como interface de comunicação do curso com os estudantes, onde
temos o fórum de notícias, o quadro de avisos, o mural virtual e outros; ou espaços
de interação informal com conversas paralelas ao curso, consideradas um espaço de
socialização utilizado para os participantes se conhecerem melhor, trocar informações
informalmente e desenvolver a afetividade, elemento importante para a construção
e difusão do conhecimento na concepção multirreferencial, defendida neste estudo.
O desafio proposto aos fóruns de discussão de conteúdo onde os diálogos
conceituais e a difusão dos conhecimentos ocorrem é a necessidade de mediação
do processo, que deve respeitar as diferenças de opiniões, valorização das contri-
buições, mobilização da participação e continuidade dos diálogos e reflexões. Sem
essa mediação, os fóruns podem se transformar em espaços de diálogos mecânicos
e incipientes, sem sentido e instrumentais, onde cada estudante posta comentários
soltos e isolados sem uma sequência de compreensão e significação. Devidamente
organizado e mediado, representa um espaço rico para produção, tradução, ampliação
dos conhecimentos necessários e difusão dos conhecimentos produzidos.
Glossário é uma interface que permite aos participantes a construção e manu-
tenção de uma lista com os conceitos, termos ou definições que estão sendo debatidos
no AVA como em um dicionário. O uso desta ferramenta permite a pesquisa dos
registros por ordem alfabética, categoria, data ou autor. As entradas dos registros
no glossário podem ser aprovadas automaticamente ou exigir aprovação de um
moderador, que geralmente é o professor, mas também podem ser avaliadas com
a participação dos estudantes. As autoras Santos e Araújo (2009, p. 252) reforçam
508 TRANSCICLOPÉDIA EM DIFUSÃO DO CONHECIMENTO

essa ideia dizendo que “[...] quanto maior a facilidade de publicação e flexibilização
de autorias coletivas, melhores ficam os processos de ensino e de aprendizagem na
educação online”.
Neste sentido, entendemos que o glossário é uma interface com grande
potencial para a construção coletiva que (re)significa a aprendizagem colaborativa
estimulando a autonomia e a autoria de todos, potencializando a difusão do conhe-
cimento entre todos.
Questionário: Para Sales; Valente e Aragão (2010), a ferramenta questionário
é definida como um ambiente em que o professor pode criar e postar atividades de
múltipla escolha, verdadeiro ou falso, correspondência ou perguntas abertas. Nos
casos de questão fechada, a tentativa pode ser corrigida automaticamente pelo am-
biente, podendo fornecer feedback e/ou mostrar as respostas corretas; nos casos de
questões abertas, é necessário o retorno e validação pelo docente. O questionário
pode ser utilizado como instrumento de acompanhamento do processo de produção
e difusão do conhecimento dos estudantes, do professor e da prática educativa.
Envio de Tarefas: esta interface favorece o envio das produções e atividades
pelos estudantes e permite aos professores comunicar tarefas, receber trabalhos
e fornecer notas e comentários aos estudantes. A entrega dos trabalhos pode ser
realizada por meio de arquivos digitais, em diversos formatos ou mesmo redigir a
resposta diretamente no editor de texto próprio de cada ambiente. Para os traba-
lhos realizados offline, esta ferramenta pode ser utilizada para registrar o resultado
e notificar os estudantes sobre a realização do mesmo, subsidiando o processo de
acompanhamento e difusão dos conhecimentos produzidos. Os trabalhos podem
ser submetidos e avaliados individualmente ou em grupo. Ao oferecer feedback às
atividades, o professor poderá fazer upload de arquivos e deixar comentários para
os estudantes como marcações no trabalho entregue, documentos comentados ou
de áudio falado, o que permite um registro sistemático do acompanhamento do
processo de produção e difusão por professores e estudantes.
WIKI: O Wiki é considerado como um módulo de atividade de produção
de texto colaborativo que permite a adição e edição de uma coleção de páginas da
web, podendo ser desenvolvido de forma colaborativa, onde todos podem editá-lo;
ou de forma individual, onde cada pessoa terá o seu próprio texto para edição. O
modo mais utilizado pelos professores é a produção coletiva, na qual as ações reali-
zadas no Wiki ficam registradas, permitindo um histórico de versões anteriores da
página editada. Muitos pesquisadores defendem esta ferramenta como importante
para a construção de ideias e escrita colaborativa, pois a utilização desta ferramenta
TRANSCICLOPÉDIA EM DIFUSÃO DO CONHECIMENTO 509

permite a operacionalização de ação partilhada, favorecendo que o produto final


seja fruto das negociações de ideias e concepções do coletivo. Possibilita também
ao professor o acompanhamento do histórico de participações de todo grupo na
produção do texto, o que favorece uma mediação mais efetiva aos estudantes com
pouca participação. Os textos produzidos ficam disponíveis para o acesso de todos
apenas ao final quando os estudantes disponibilizam.
Chats é uma interface síncrona de comunicação no ciberespaço, também muito
utilizada no AVA pelos professores e que permite que os sujeitos geograficamente
dispersos possam se encontrar e comunicar-se ao mesmo tempo. Segundo Santos
(2006), por ser um canal de comunicação entre os sujeitos e suas narrativas, o chat
tem favorecido um novo tipo de narrativa. Encontramos dois tipos de salas de chat,
um que fica disponível o tempo todo para os usuários, sem precisar ter nenhum
tipo de monitoria, já que os assuntos tratados nela não serão relacionados ao tema
do curso, são chamados de chats informais (ou bate papo de corredor); e outro tipo
de chat, planejado pelo tutor ou professor, com antecedência para tratar de um tema
específico do curso; essa sala precisa ter uma monitoria do que está sendo postado
por cada usuário, uma vez que esse material pode servir como critério de avaliação
do aprendizado do aluno, como avaliação do próprio tutor ou do curso em si. Os
registros dos chats ficam disponibilizados para todos, o que possibilita a difusão dos
diálogos e conhecimentos produzidos permanentemente.
Videoaulas: são vídeos previamente gravados e armazenados no AVA. O
usuário dispõe de controles semelhantes aos encontrados em um videocassete, po-
dendo avançar, pausar ou retroceder. Em decorrência do sistema streaming (fluxo
contínuo), o usuário não precisa carregar todo o arquivo de vídeo antes de começar
a assistir, otimizando o tempo de espera, principalmente considerando as conexões
lentas. Esta interface permite ao professor, além do uso de videoaulas disponíveis,
em diversas Plataformas na Web, gravar aulas e disponibilizar para seus estudan-
tes. Esta ferramenta, além de favorecer a gravação de diálogos temáticos, também
pode ser utilizada para gravar orientações e diálogos com retornos e otimização de
dúvidas coletivas.
Diários on-line são interfaces que possibilitam registros autorreflexivos sobre
o processo de produção de cada participante no AVA, sua trajetória, dúvidas e
inquietações. É um dispositivo de caráter pessoal onde o estudante registra seus
sentimentos, impressões, dificuldades e entendimentos. Permite também o registro
da trajetória de aprendizagem, reflexão ou síntese do conteúdo estudado, guiada
pelo professor ou por livre intenção. O acesso às informações, registradas neste
510 TRANSCICLOPÉDIA EM DIFUSÃO DO CONHECIMENTO

diário, ficam restritas apenas ao participante e a seu professor/tutor, permitindo


maior privacidade ao estudante e abrindo um canal para a mediação do seu pro-
fessor/tutor. Esta ferramenta pode ser utilizada para construção de portfólio ou
projetos de pesquisa.
Portfólios/webfólio: dispositivo que permite a visibilidade da produção de
cada sujeito, o que contribui para o processo de acompanhamento através de co;
auto; e hetero-avaliação das produções. Neste espaço os estudantes podem deixar
registrado todas as suas produções, permitindo um acompanhamento e visualiza-
ção dos mesmos durante todo o processo. Tanto o Diário quanto o Webfólio são
ferramentas que favorecem o registro e o acompanhamento das produções dos
estudantes, favorecendo reflexões sistemáticas dos estudantes e contextualizando
as mediações dos professores.
Mural: é uma ferramenta de comunicação que faz uma analogia com os murais
de avisos presentes nas instituições. Por essa razão, não se tem a troca de mensagens,
servindo apenas para a transmissão direta de uma informação, que pode ser ou não
relacionada ao tema do curso, para todo o grupo de participantes. A intenção é a
socialização de informações importantes e precisa conter mensagens claras e objetivas.
Midiateca: Espaço de organização dos textos e matérias utilizados no Ava.
Pode receber postagens tantos dos professores quanto dos estudantes.
Webquest: O ponto central do Webquest é o fato de ser uma tarefa a ser de-
sempenhada pelos estudantes através da definição de um problema que precisa ser
resolvido, contendo uma introdução onde se contextualiza o tema, o processo de
desenvolvimento da tarefa, os recursos disponíveis, e os links com informações sobre
a temática pesquisada. É uma atividade orientada para a pesquisa com a copartici-
pação dos estudantes em todo o processo. Requer também os critérios de avaliação
e uma conclusão com o objetivo central do tema estudado. O princípio pedagógico
que norteia a construção de uma Webquest é a aprendizagem ativa e cooperativa
mediada, exigindo do professor, um planejamento adequado e acompanhamento
constante; e do estudante um compromisso e autonomia com o processo de coautoria.
Podcast: Para Lemos (2004), é uma das mais recentes configurações entre os
formatos sonoros disponíveis na web, se constituindo pela junção da palavra Ipod
(MP3 player da Apple) e broadcasting (transmissão em rede) e consiste em um
arquivo sonoro disponibilizado em um site. É muito utilizado para orientar tarefas
ou gravar explicações teóricas.
Todas essas interfaces tecnológicas favorecem interações entre os sujeitos e o
ambiente, viabilizando processos de difusão do conhecimento produzido no AVA,
TRANSCICLOPÉDIA EM DIFUSÃO DO CONHECIMENTO 511

visto que agem como mecanismos que potencializam a construção do conhecimento e


facilitam a propagação, multiplicação e socialização do que foi produzido para todos.
Elaboramos um quadro com o potencial de difundir conhecimento em algumas
interfaces do AVA:
Quadro 01: Possibilidades das interfaces do AVA de difundir conhecimento

Ferramenta Possibilidades como difusores de conhecimento


Fórum O Fórum contém discussões e reflexões sobre temáticas em estudo que possibi-
litam aos usuários disseminarem seus conhecimentos e acessar o que foi produ-
zido pelo coletivo a qualquer momento.
Diário Permite o acesso aos registros do andamento do processo de construção do
conhecimento de cada estudante e representa um material rico para avalia-
ção como também para os próprios estudantes refletirem o processo de cada
indivíduo.
Chat Favorece diálogos reflexivos e, ao possibilitar o armazenamento das discussões,
o chat permite posterior leitura dos alunos que não participaram da sessão,
difundindo o que foi debatido.
WIKI O Wiki difunde o conhecimento de cada estudante em tempo real, por ser
interativo, promove a produção e difusão simultaneamente.
Webquest Por se constituir em uma aprendizagem ativa e cooperativa mediada por com-
putador, o webquest facilita a busca de informações relevantes sobre os conte-
údos pesquisados por parte dos estudantes e propicia o compartilhamento de
conhecimentos que ficam acessíveis para todos.
Podcast São arquivos de áudio disponibilizados na web para audição ou download auto-
matizado, contendo informações que podem ser acessadas por todos.
Glossário Disponibilização de conceitos e fontes de informações variadas com participa-
ção dos estudantes.
Envio de tarefa Esta ferramenta permite a difusão do conhecimento produzido pelos estudan-
tes, e também comentários e orientações avaliativas pelos professores.
Relatórios Os registros dos acessos, das atividades e participação de cada AVA organizados
a cada período, podem se constituir em grandes aliados para reflexão do conhe-
cimento produzido e difundido por cada grupo.
Questionário Dissemina o conhecimento sistematizado pelos estudantes para ser avaliado
pelo professor. Pode ser objeto de estudo e reflexão de aprendizagens no AVA.
Fonte: A autora, 2017.

Percebemos, nesta breve sistematização, uma quantidade considerável de


interfaces interativas de comunicação a serem utilizadas no ambiente virtual de
aprendizagem, podendo ser utilizadas de diversas formas, potencializando processos
de ensino e aprendizagem contextualizados, colaborativos e reflexivos, que favoreçam
a difusão do conhecimento produzido pelos professores e estudantes.
512 TRANSCICLOPÉDIA EM DIFUSÃO DO CONHECIMENTO

REFERÊNCIAS
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cenário, formação e questões didático-metodológicas. Rio de Janeiro: Wak, 2010.
59. Internacionalização do Ensino Superior:
Itiner ância e
Intercultur alidade

Jardelina Bispo do Nascimento

Colocar em evidência o significado e os conceitos das palavras ou termos constitui


uma das formas de abordagens importantes para o processo de construção e difusão
do conhecimento, pois o ato de conhecer implica conotações e conexões várias.
De forma generalizada pode-se afirmar que o ato do conhecimento dá sentido
à vida humana e que é a capacidade humana de atribuir significações. O esforço
humano para compreender é o mesmo para encontrar símbolos que representem e
signifiquem o objeto conhecido. (MORIN, 2008).
Ao fazer a abordagem conceitual termos (i)internacionalização, ii)interiorização,
(iii) itinerância; (iv) Interculturalidade, (v)territorialidade e (vi ) transculturalidade,
é importante, destacar o prefixo inter do latim entre, elemento de formação de pa-
lavras que exprimem a ideia de estar entre, dentro de, no meio, tendo em vista que o
significado inter, aponta para uma situação e/ou posição intermediária, que envolve
uma interação, uma ação recíproca entre mais de um fenômeno, objeto, elemento,
corpo, ou espaço.
Além dos significados e conceitos aqui apresentados, há implícita e explicitamente
um sentido de interligare, de interação entre os termos e a abordagem, justificados
pela própria ação e natureza humana de interagir com os outros em diferentes espa-
ços e tempos, em interagir com e nos espaços físico-geográficos e virtuais, com e nas
diferentes culturas.
No âmbito da palavra internacionalização, abordaremos o significado de
internacionalização da educação ou do ensino superior; internacionalização do co-
nhecimento, por dois motivos: primeiro, porque se trata do foco central do trabalho
— educação; e o segundo, porque, embora muito antiga, a internacionalização do
conhecimento, tem ocupado espaço significativo nos debates nos últimos.

INTERNACIONALIZAÇÃO
Inter – nacionaliza – ção: interação entre duas ou mais nações, entre duas ou
mais instituições de países diferentes. Internacionalização significa a atuação em di-
ferentes nações, conduzindo movimentos de fatores de produção como transferência
514 TRANSCICLOPÉDIA EM DIFUSÃO DO CONHECIMENTO

de capital, desenvolvimento de projetos em cooperação com parceiros estrangeiros


ou comercialização de produtos, prestação de serviços ou tecnologias.
A internacionalização no sentido macroeconômico tem a ver com um conjunto
dos fluxos de trocas de matérias primas, produtos acabados e semiacabados, serviços,
ideias, pessoas entre dois ou mais Estado-Nação.
O significado de internacionalização apresenta vários conceitos e sentidos,
o que ficou mais evidente a partir dos anos 1990 devido às diferentes concepções
políticas, sociais e econômicas. Em 1998, a UNESCO chamava a atenção para a
expansão da dimensão internacional da educação superior, considerando-a mais do
que uma opção, uma responsabilidade de todas as instituições; conceber a coopera-
ção internacional como parte integrante das suas missões institucionais e, portanto,
devem criar mecanismos e estruturas apropriadas para promovê-la e organizá-la; os
líderes das instituições de ensino superior, com o apoio de todos os membros da
comunidade acadêmica, devem desenvolver políticas e programas institucionais de
internacionalização claros, os quais deverão estar integrados à vida da instituição
e gozar de financiamentos adequados provenientes de fontes internas e externas.
(Declaração da Unesco, 1998).

INTERNACIONALIZAÇÃO DO ENSINO SUPERIOR


A internacionalização da educação superior se refere a um processo de
mudanças organizacionais, de inovação curricular, de desenvolvimento profissional
do corpo acadêmico e da equipe administrativa, de desenvolvimento da mobilidade
acadêmica com a finalidade de buscar a excelência na docência, na pesquisa e em
outras atividades que são parte da função das universidades (Hudzik, 1998). Ainda
conforme o autor, consiste em
[...] um compromisso através da ação, para infundir perspectivas interna-
cionais e comparativas em toda a missão de ensino, pesquisa e serviço do
ensino superior [...] Molda o ethos e os valores institucionais e afeta toda a
instituição de ensino superior. É essencial que seja abraçada pelas lideranças
institucionais, gestores, professores, estudantes, e todas as unidades de serviço
e suporte acadêmico. [...] É um imperativo institucional, e não apenas uma
possibilidade desejável. (HUDZIK, 2011).

Ainda no que se refere ao ensino superior, verificamos que a internacionalização


[...] é o processo de introdução da dimensão internacional na cultura e na
estratégia institucional, nas funções de formação, investigação e extensão e no
processo da oferta e da capacidade da universidade. Envolve um conjunto de
TRANSCICLOPÉDIA EM DIFUSÃO DO CONHECIMENTO 515

atividades realizadas entre ou por instituições de educação superior que, através


de múltiplas modalidades, colaboram no âmbito da gestão institucional, do
ensino, da pesquisa e da extensão. (SEBASTIÁN, 2004).

Acrescendo-se a esses conceitos, apresentamos uma concepção mais abrangente,


envolvendo diferentes países, culturas e sistemas educacionais, em que a
[...] internacionalização é entendida como um processo de integração das
dimensões internacional, intercultural e global, aos propósitos, às funções
primárias (ensino, pesquisa, extensão e à entrega da Educação Superior nos
níveis institucional e nacional (KNIGHT, 2004), in LUNA (2016, p. 84).

Segundo a autora, a internacionalização precisa ser compreendida nesses dois


níveis — nacional e internacional, porque, enquanto setor nacional da Educação
Superior influencia a dimensão internacional das universidades por meio de finan-
ciamentos, políticas, programas e marcos regulatórios. E é no nível institucional que
esse processo ocorre. Para ela, (KNIGHT, 2004), o conceito de internacionalização
está diretamente relacionado ao aprimoramento da educação superior.
Verificamos que, tanto em (KNIGHT, 2004), quanto em (SEBASTIÁN,
2014), do ponto de vista acadêmico, o objetivo da internacionalização no âmbito
institucional consiste em melhorar a qualidade, a pertinência e a relevância do
ensino, da pesquisa, da extensão e da inovação, articular a instituição no contexto
mundial, abrir novos espaços para a projeção internacional e a vinculação com redes
acadêmicas internacionais, consolidação de valores com a cooperação e a solidarie-
dade na cultura institucional e ampliar as oportunidades de emprego aos egressos
(SEBASTIÁN, 2014).

ITINERÂNCIA
Considerando que a universidade desde seu aparecimento alterou a geografia
e os espaços a partir dos movimentos dos homens em sua direção, com o fenômeno
conhecido como peregrinação acadêmica, de acordo com Rossanto e Verger (1998,
1999), nos dias de hoje, ela ainda provoca essas andanças que aqui, nesse estudo,
será denominado como itinerância.
A itinerância — seu significado, como ação de transitar, de se deslocar, reporta
a uma definição de itinerante como aquele que transita, que se desloca, que viaja.
Que se desloca de lugar em lugar no exercício de sua função. Aplica-se à pessoa, à
instituição pública ou privada, a uma atividade de grupo. Diz-se de atividade que
se exerce com deslocamentos sucessivos de lugar em lugar.
516 TRANSCICLOPÉDIA EM DIFUSÃO DO CONHECIMENTO

Do ponto de vista da etimologia — ciência que investiga as origens próximas


e remotas das palavras e a sua evolução histórica — itinerância advém de itinerário,
s.m, que designa roteiro de viagem. Se origina do latim itinerariumo-ii de iter itineris,
“caminho”. Itinerante, do latim itinerans-antes, de itinerai, in itineris, ato de viajar.
Na busca de confirmar um sentido para o sinônimo de itinerância, viajar, o
mesmo dicionário designa que viajar, sf.v., se refere ao ato de ir de um a outro lugar
relativamente afastados. Lugar aqui tem uma conotação de espaço físico, de território,
o que encaminham nossas buscas para a área da demografia.
A legislação também se refere à in itineris, como trajeto, viagem, percurso a um
determinado espaço físico, de trânsito que o trabalhador percorre da sua residência
ao local de trabalho e vice-versa.
Diante da diversidade de termos que se referem aos movimentos feitos pelo
homem — para ir trabalhar, ou ir a sua residência, ou ao local de diversão, ou mesmo
a mudança de um local a outro, como migração pendular, mobilidade pendular,
deslocamento pendular1, a opção pela variável itinerância se constitui por ela definir
melhor a ação dos sujeitos envolvidos nesse estudo: aquele que pode mover-se da
sua residência ao seu local de trabalho, com reflexos de tempo, espaço, distância,
inclusive políticos econômicos.
Ainda pelo termo designar viagem, mais especificamente, viagem a serviço; neste
sentido, englobaria o trajeto, visto que se trata dos percursos feitos na itinerância. O
trajeto pode ser percorrido a pé, pode se referir a pequenas ou longas distâncias. A
itinerância, envolve a ida ao desconhecido, ao percurso mais longo, a caminhos, lugares,
cidades, regiões e estabelece uma relação com os meios de transporte, com as culturas,
climas, desenvolvimento e o próprio espaço. Neste sentido, as contribuições de Bourdieu
vão sinalizar para o sentido da instituição da universidade em determinados espaços.
O espaço social reificado (isto é, fisicamente realizado ou objetivado) se
apresenta assim como a distribuição no espaço físico de diferentes espécies de
bens ou de serviços e também de agentes individuais e de grupos fisicamente
localizados (enquanto grupos ligados a um lugar permanente) e dotados de
oportunidades de apropriação desses bens e desses serviços mais ou menos
importantes ( em função de seu capital e também da distância física desses
bens, que dependem, também de seu capital. É na relação entre a distribui-
ção dos agentes e a distribuição dos bens no espaço que se define o valor das
diferentes regiões do espaço social reificado (BOURDIEU, 1998, p. 161).

1
Migração pendular, mobilidade pendular e deslocamento pendular, expressões da demografia para
dizer dos deslocamentos das pessoas entre lugares, nas metrópoles. São termos utilizados por
Cunha (1993), ao
TRANSCICLOPÉDIA EM DIFUSÃO DO CONHECIMENTO 517

A ideia de que o espaço é o resultado da ação humana sobre a superfície


terrestre, que expressa a cada momento as relações sociais que lhes deram origem.
Nesse sentido, trânsito é consequência da ação histórica do ser humano, ao se fazer
presente em vários locais, a partir da sua capacidade de transitar, de se locomover.

INTERCULTUALIDADE
Interculturalidade assume grande relevância, pois representa uma forma de
conceber a diversidade cultural que não apenas reconhece a coexistência de grupos
étnicos e culturalmente distintos, como também traz à tona as diferentes formas de
interações históricas, de conflitos e de diálogos entre esses grupos.
A interculturalidade busca se constituir como uma forma de relação e ar-
ticulação social entre pessoas e grupos culturais diferentes, articulação essa
que não deve supervalorizar ou erradicar as diferenças culturais, propiciar
uma interação dialógica entre pertencimento e diferença, passado e presente,
inclusão e exclusão e controle e resistência, pois nestes encontros entre pesso-
as e culturas, as assimetrias sociais, econômicas e políticas não desaparecem
(WALSH, 2001: 8-9).

Vallescar Palanca (2001: 116) destaca o contexto internacional de emergência


da noção de interculturalidade. Segundo a autora, entre os aspectos confluentes
que impõem a compreensão da interculturalidade como um imperativo e signo da
contemporaneidade destacam-se a constatação crescente da integração dos países
a partir da diversidade dos grupos culturais, linguísticos, étnicos e religiosos; uma
maior consciência e sensibilização quanto à pluralidade cultural; os movimentos de
descolonização; a globalização neoliberal; o repúdio social e jurídico do racismo e
da xenofobia; o reconhecimento internacional dos direitos humanos, que incluem
os direitos sociais e culturais de todos os povos; as grandes migrações e as mudanças
por elas produzidas; a reativação dos nacionalismos; a organização dos Estados em
unidades supranacionais e os efeitos culturais produzidos pelo fluxo constante de
informação, dos meios de comunicação e do transporte.
Dentre os descritores apresentados por Vallescar Palanca (2001: 124-125) para
a definição de interculturalidade, três destacam-se como particularmente relevantes:
se apresenta como um avanço na forma de conceber a diversidade cultural e de nela
atuar devido às dimensões dialógica, conflitiva e libertadora a que se propõe.
Assim, a interculturalidade se funda em dois princípios, o da coexistência dialó-
gica, relacional, do ser humano, que se irradia para outros aspectos, a partir da qual
todo ato de perceber, pensar, sentir e atuar se realizam em relação a algo ou alguém,
518 TRANSCICLOPÉDIA EM DIFUSÃO DO CONHECIMENTO

o que significa assumir a centralidade do diálogo para ascender a uma determinada


relação, inter ou intracultural e o da originalidade de cada cultura, o que implica a
negação de atitudes de dominação, conversão e imposição de modos de ser e pensar.
Dessa forma, a interculturalidade deve ser compreendida como “[...] o nome
de uma atitude ou enfoque — filosófico — que apesar de reconhecer seus centros,
busca ir além de todo centrismo” (VALLESCAR PALANCA, 2001: 22).

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TRANSCICLOPÉDIA EM DIFUSÃO DO CONHECIMENTO 519

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60. Intuição

Ginaldo Gonçalves Farias

Na tradição filosófica é entendido intuição como a relação direta com um


objeto; nessa relação, não há intermediários, por isso exige a presença do objeto.
Para melhor compreender a intuição é necessário descrever a maneira de
conhecer discursivamente, que é a mais comum. Tendo uma representação do
objeto, seja conceitual ou matemática o intelecto opera com essas representações
para estruturar um conhecimento indireto, ou seja, por meio de representação de
um objeto qualquer. A representação de objeto se dá através da abstração, ou livre
apreensão; em lógica essa operação distancia o conceito do objeto, pois, construindo
categorias por semelhança, a abstração retira matéria dos objetos, retirando-lhes
as diferenças para reuni-los em uma esfera conceitual. Por exemplo, há diferentes
tipos de portas: as de vidro, de madeira, de igrejas, de bar; o processo da abstração
retira as diferenças entre elas e encaixa todas na espécie porta. Esse processo vai
sendo progressivo e podemos abstrair abstrações, pulando de espécies para gêneros,
e o conceito vai ficando cada vez mais abstrato. Exemplo: diante de cavalos, que já
abstraímos, as características individuais dos animais individuais, podemos abstrair
para mamífero, uma característica dos cavalos que os incluem em um gênero maior
que sua espécie, em processo crescente, podemos abstrair mamíferos para animais, e
assim os conceitos vão ficando cada vez mais distantes do cavalo real, descarnados,
abstratos, até a abstração maior que é ser ou substância.
A intuição não é discursiva, ela dispensa as representações e acessa o objeto
diretamente.
Para Emmanuel Kant em Crítica da Razão Pura, o intelecto não intui, sendo
apenas discursivo e toda intuição é sensível, apresentando o tempo e o espaço como
as intuições a priori do conhecimento.
Henri Bergson aprofundou o conceito de intuição. Nos livros de História da
Filosofia, Henri Bergson figura como representante do Espiritualismo, um movi-
mento de reação ao Positivismo ocorrido na Europa entre os séculos XIX e XX.
Em detrimento dessas classificações, voltamos nossa atenção para a singularidade
desse filósofo.
Bergson viveu na França (1859-1941) e se dedicou ao estudo do Conhecimento.
Em sua Teoria do Conhecimento, ou sua Metafísica, procurou manter um diálogo
TRANSCICLOPÉDIA EM DIFUSÃO DO CONHECIMENTO 521

estreito com as Ciências e travou debates com cientistas famosos, como Albert
­Einstein, especialmente sobre a questão do tempo. Sua abordagem teórico-meto-
dológica consolida-se naquilo que se convencionou designar como sua Metafísica,
tomando o processo da evolução da vida como referência e sustentando que não
podemos estabelecer regras gerais sobre o conhecimento, antes de uma real investi-
gação científica. Nesse sentido, a epistemologia em Bergson representa um voltar-se à
coisa mesma do conhecimento. E é com base na relação entre inteligência e intuição,
entre ciência e metafísica, que podemos atingir um conhecimento mais completo.
Bergson critica uma ideia de Filosofia distante da ciência. Sua epistemologia
não parte de uma Teoria do Conhecimento, mas dos problemas científicos. Em
outras palavras, a Filosofia ganha legitimidade na produção do conhecimento, não
mais como um conhecimento geral, ou um — tribunal‖ das ciências, mas unindo
forças e promovendo contribuições específicas para a produção e a evolução do co-
nhecimento. Em uma conferência1 de homenagem ao naturalista britânico Thomas
Henry Huxley, Bergson apontou os caminhos de sua teoria do conhecimento ou
de sua metafísica.
Mas, para atacar o problema, não me atrevo a contar com o apoio dos sistemas
filosóficos. O que é perturbador, angustiante, apaixonante para a maioria dos
homens nem sempre é o que ocupa o primeiro lugar nas especulações dos
metafísicos. De onde viemos? O que somos? Para onde vamos? São questões
vitais, ante as quais nos colocaríamos de imediato, se filosofássemos sem passar
pelos sistemas. Mas entre essas questões e nós uma filosofia excessivamente
sistemática interpõe outros problemas. “Antes de procurar a solução, diz ela,
não será preciso saber como procurá-la? Estudai o mecanismo de vosso pensa-
mento, discuti vosso conhecimento e criticai vossa crítica: quando estiverdes
seguro do valor do instrumento, pensareis em utilizá-lo”. Infelizmente esse
momento nunca chegará. Só vejo um meio de saber até onde se pode ir: é
pôr-se a caminho e andar (BERGSON, 2009, p. 2).

Subjaz a esse pensamento bergsoniano uma crítica às Epistemologias e Teorias


do Conhecimento, que funcionam como tribunal para as ciências, que existem
como conhecimento maior, que estão aí para validá-las, enquanto Epistemologias
“a priori”, como a Teoria do Conhecimento de Immanuel Kant. Bergson também
estabelece uma diferença entre uma Teoria do Conhecimento — uma “Metafísica”
intelectualista — e a busca de resolver um problema científico concreto, porque
à primeira compete perguntar o que é o conhecimento, sem se inserir em uma

1
Essa conferência foi realizada por Bergson na Universidade de Birmingham em 29 de maio de
1911.
522 TRANSCICLOPÉDIA EM DIFUSÃO DO CONHECIMENTO

investigação, sem empreender o esforço da pesquisa. Essa Teoria do Conhecimen-


to, mesmo que se inicie como Crítica, vai lentamente tornando-se doutrina. Pela
inserção em um esforço para conhecer que surge a epistemologia bergsoniana. As
intuições metafísicas surgem no ato de investigação que a inteligência realiza, como
se procurasse agulha em palheiro. Nesse sentido, pode-se dizer que a inteligência
varre, e a intuição que a encontra.
A intuição é a chave para uma abordagem bergsoniana do conhecimento,
porém a intuição apresenta uma imensa dificuldade de acesso, pois, sendo um co-
nhecimento imediato, uma coincidência com o objeto, ela não se apresenta como
representação, mas como experiência, assim o esforço para convertê-la em discurso
é tremendo. Para Bergson, a linguagem nunca alcança o que sentimos e pensamos,
ela sempre apresenta uma cópia borrada, uma imagem desbotada de nossos pensa-
mentos e sentimentos; a linguagem reduz, distorce, encolhe. Ela é sempre imprecisa.
Isso leva a um problema fundamental para a difusão do conhecimento. Afinal, o
conhecimento precisa de linguagem para difundir-se. Porém, antes mesmo da ne-
cessidade de expressão, a forma geométrica em que a inteligência forma os conceitos
dificulta a compreensão de certos fenômenos, principalmente aqueles que implicam
movimento, pois conceituar é dar forma e, por conseguinte, imobilizar.
Talvez por isso a ideia de mudança se nos mostra muito obscura. A inteligência
não compreende claramente o que muda, pois o que está em mudança não é mais
o que era e ainda não é o que virá a ser. Como os conceitos são imóveis, são ideias,
ou seja, formas definidas, é impossível que algo em movimento demonstre clareza
de representação. Alcançar a mobilidade com a imobilidade é muito difícil, motivo
pelo qual tudo que é vivo, logo movente, se mostra também fragilizado pela repre-
sentação conceitual.
Intuição significa para Henri Bergson, a apreensão imediata da realidade por
coincidência com o objeto. Em outras palavras, é a realidade sentida e compreendida
absolutamente de modo direto, sem utilizar as ferramentas lógicas do entendimento:
a análise e a tradução. Isto é, a intuição é uma forma de conhecimento que penetra
no interior do objeto de modo imediato sem o ato de analisar e traduzir. A análise
é o recorte da realidade, mediação entre sujeito e objeto. A tradução é a composi-
ção de símbolos linguísticos ou numéricos que, analogamente à primeira, também
servem de mediadores. Ambas são meios falhos e artificiais de acesso à realidade.
Segundo Bergson, somente a intuição pode garantir uma coincidência imediata com
a realidade sem símbolos nem repartições. Em filosofia, intuição é o processo de
apreensão racional não-discursiva de um fenômeno ou de uma relação. Se a razão
TRANSCICLOPÉDIA EM DIFUSÃO DO CONHECIMENTO 523

discursiva se caracteriza por um processo paulatino que culmina numa conclusão,


a intuição é compreensão direta, imediata de algo.
A intuição é a simpatia pela qual nos transportamos para o interior de um objeto
para coincidir com o que ele tem de único. Ao contrário da análise que é a operação
que reduz o objeto a elementos já conhecidos. Analisar consiste em exprimir uma
coisa em função do que não é ela, ou seja, através de representações.
Podemos afirmar que a intuição é facilmente vista como modo, maneira, ou
método de conhecimento, a gama conceitual. Bergson argumentará que a inteligência
produz tudo como se produz uma máquina e encontra na produção aquilo que nela
pôs. Podemos escapar um pouco desse fazer fabril e encontrar uma criatividade,
algo vivo que possa gerar o inesperado, apresentando a flexibilidade dos conceitos
como indica Bergson:
Que não nos peçam, então, uma definição simples e geométrica da intuição.
Será por demais fácil mostrar que tomamos a palavra em acepções que não se
deduzem matematicamente uma das outras... Acerca daquilo que não é abstrato
e convencional, mas real e concreto, com mais forte razão acerca daquilo que
não é reconstituível com componentes conhecidos, acerca da coisa que não
foi recortada no todo da realidade pelo entendimento nem pelo senso comum
nem pela linguagem, não se pode dar uma ideia a não ser tomada dela vistas
múltiplas, complementares e não equivalentes. (2006d, p. 31, grifo nosso)
Essa ideia de vistas múltiplas inspirou este trabalho. Como a intuição já foi
estudada como método e apresentada em detalhes por Deleuze em seu bergsonismo.
Nas primeiras páginas de seu bergsonismo, Deleuze nos explica que o grande
objetivo de seu livro é determinar a relação entre as noções iniciais do pensamento
de Bergson — como duração e memória. Essa determinação só seria possível através
do método. Para tanto, segundo Deleuze, Bergson distingue três espécies de atos, os
quais determinam as regras do método: o primeiro, concerne à posição e à criação
de problemas; o segundo, à descoberta de verdadeiras diferenças de natureza; e o
terceiro, à apreensão do tempo real. Com isso, é possível entendermos que a intuição
como método apresenta-se, inicialmente, como um movimento racional que nos
permite reencontrar a simplicidade da intuição como ato vivido. Deleuze retira da
metafísica de Bergson as seguintes regras para a intuição como método:
Primeira: aplicar a prova do verdadeiro e do falso aos próprios problemas,
denunciar os falsos problemas, reconciliar verdade e criação no nível dos problemas.
Segunda: lutar contra a ilusão, reencontrar as verdadeiras diferenças de natureza
ou as articulações do real e,
524 TRANSCICLOPÉDIA EM DIFUSÃO DO CONHECIMENTO

Terceira: colocar os problemas e resolvê-los mais em função do tempo do que


do espaço.
Com a primeira, temos uma acentuação do papel da Filosofia no que concerne
à criação e colocação de problemas. Ao pensarmos os problemas pela dimensão do
falso e do verdadeiro, notamos que a primeira dificuldade a ser superada consiste
em nos desvencilharmos daqueles problemas que, à luz de uma leitura atenta, mos-
tram-se equivocados por derivarem de premissas igualmente equívocas. Ou seja,
enquanto pela análise criamos falsos problemas, pela filosofia devemos desfazê-los
para reencontrarmos a verdade e o real que eles mascaram.
Com a segunda, lutar contra a ilusão, reencontrar as verdadeiras diferenças
de natureza ou as articulações do real. Desmascarando as ilusões engendradas pelos
falsos problemas, temos a segunda regra. Com ela, é possível identificarmos as rea-
lidades qualitativas, nas quais também residem as diferenças de natureza. Trata-se
da crítica às ilusões decorrentes do erro de reconhecer como diferença de grau o que
se apresenta como diferença de natureza. Nessa ilusão, podemos identificar a base
daquelas premissas das quais decorrem a maior parte dos falsos problemas. Como
exemplo, podemos citar a diferença entre o tempo-vivido e o tempo-espaço ou entre
o conhecimento relativo e o conhecimento absoluto — uma diferença de natureza
que, no geral, é entendida como mera diferença de grau.
Com a terceiram colocar os problemas e resolvê-los mais em função do
tempo do que do espaço. Uma vez que nos voltamos para as verdadeiras diferenças
é possível percebermos o sentido fundamental da intuição que consiste em pensar a
duração. Só é possível compreendermos um objeto em sua dimensão qualitativa —
justamente aquela na qual se dar a coincidência entre aquele que conhece e o que é
conhecido — quando o pensamos em sua duração. Nisto consiste a terceira regra.
Ou seja, trata-se do movimento pelo qual nos servimos de nossa duração para afirmar
e reconhecer a existência de outras durações. Trata-se de resolver os problemas no
pensamento do tempo vivido.

INTUIÇÃO COMO FACULDADE OU CONSCIÊNCIA


Muitos são os sentidos atribuídos por Henri Bergson ao termo intuição, des-
de uma consciência originária da vida, anterior à inteligência, passando por uma
simpatia com um objeto, a um esforço heroico realizado por filósofos, cientistas,
artistas e místicos, impulsionando os avanços na humanidade. Como afirma Ber-
gson em O Pensamento e o Movente, nenhuma imagem substituirá a intuição da
duração, mas muitas imagens diversificadas, emprestadas à ordem de coisas muito
TRANSCICLOPÉDIA EM DIFUSÃO DO CONHECIMENTO 525

diferentes, poderão, pela convergência de sua ação, dirigir a consciência para o ponto
preciso em que há certa intuição a ser apreendida. Por isso, ousamos apresentar a
intuição como um esforço e, por vezes, como faculdade inversa à inteligência, ou
simplesmente como simpatia com um objeto. Assim, ao destacar uma Epistemologia
bergsoniana, ressaltam-se as diferenças lógicas e epistemológicas da tradição em suas
diversas posições epistemológicas, porém todas intelectualistas, representacionais e
matematizantes.
A Filosofia, portanto, deve estabelecer uma relação estreita com a ciência na
busca pelo conhecimento, motivo pelo qual o estudo de seres vivos é uma oportuni-
dade para a Filosofia especular nessas imensas lacunas deixadas pela ciência. Como
a intuição e o tempo interior, o uso da inteligência arrasta a sua impossibilidade de
perceber o movimento em sua duração. Naquilo que é vivo, isso se exacerba, visto
que a vida é movimento em si mesmo. O ser vivo evolui, ou seja, seu instante futuro
é o inesperado. Desde os antigos gregos que a Filosofia expôs essa insuficiência da
inteligência em perceber o movimento. Zenão, da escola de Eleia, demonstrou isso
na sua aporia de Aquiles correndo atrás da tartaruga sem jamais poder alcançá-la,
pois a matemática divide os intervalos em pontos e qualquer que seja um intervalo
ele terá infinitos pontos. Um movimento é inteiro, ele não é cortado em pontos,
porque os pontos referenciais são criados pela inteligência para suprir sua deficiência
em lidar com o que flui.
Para pensar o movimento, é preciso um esforço incessantemente renovado do
espírito. Os signos são feitos para nos dispensar desse esforço, substituindo a
continuidade movente das coisas por uma composição artificial que lhe equi-
valha na prática e que tenha a vantagem de ser facilmente manipulável. Mas
deixemos de lado os procedimentos e consideremos o resultado. Qual o alvo
essencial da ciência? É aumentar nossa influência sobre as coisas. A ciência
pode ser especulativa em sua forma, desinteressada em seus fins imediatos: em
outros termos, podemos fiar-lhe por tanto tempo quanto ela quiser. Mas por
mais que o vencimento seja recuado, é preciso que finalmente sejamos recom-
pensados. Em suma, é, portanto, sempre a utilidade prática que a ciência irá
visar. Mesmo quando se lança à teoria, a ciência tem por obrigação adaptar seu
modo de proceder à configuração geral da prática. Por mais alto que se eleve,
deve estar pronta para cair no campo da ação e nele repor-se imediatamente
de pé. Isto não lhe seria possível caso seu ritmo diferisse absolutamente do da
própria ação. Ora, a ação, dissemos, procede aos pulos. Agir é readaptar-se.
Saber, isto é, prever para agir, será, portanto, ir de uma situação para uma
situação, de um arranjo para um rearranjo. A ciência poderá considerar rear-
ranjos cada vez mais próximos uns dos outros; aumentará, assim, o número
dos momentos que irá isolar, mas irá sempre isolar momentos. Quanto ao
526 TRANSCICLOPÉDIA EM DIFUSÃO DO CONHECIMENTO

que ocorre no intervalo, a ciência preocupa-se tão pouco com isso quanto a
inteligência comum, os sentidos e a linguagem: ela não versa sobre o intervalo,
mas sobre as extremidades. (BERGSON, 2005a, p. 356).

Nessa perspectiva, a intuição é uma faculdade da consciência que segue em


direção oposta à inteligência. Sendo um instinto desinteressado, ela é precisa e per-
cebe o movimento por inteiro, pois se inteira com ele. Ele, por sua vez, não analisa,
não divide em partes. Ele se confunde com o objeto que conhece, ele não fica ao
redor do objeto, penetra-o. Bergson entende, então, que a consciência é o motor da
criação da vida. Sendo assim, a intuição é anterior ao instinto, ou melhor, o instinto
é uma intuição reduzida. A vida é matéria atravessada pela consciência, que, segundo
Bergson, preenche-a de indeterminação.
A vida, isto é, a consciência lançada através da matéria, fixava sua atenção
quer sobre seu próprio movimento, quer sobre a matéria que atravessava.
Orientava-se assim quer no sentido da intuição, quer no da inteligência. A
intuição, à primeira vista, realmente parece preferível à inteligência, uma vez
que nela a vida e a consciência permanecem interiores a si mesmas. Mas o
espetáculo da evolução dos seres vivos nos mostra que ela não podia ir muito
longe. Do lado da intuição, a consciência viu-se a tal ponto comprimida por seu
invólucro que teve de encolher a intuição em instinto, isto é, abarcar apenas a
pequeníssima porção de vida que a interessava e, como se não bastasse, abarca
a sombra, tocando-a quase sem ver. Desse lado, o horizonte imediatamente se
fechou. Pelo contrário, determinando-se a consciência em inteligência, isto é,
concentrando-se principalmente sobre a matéria, parece assim se exteriorizar
com relação a si mesma; mas, justamente porque se adapta aos objetos pelo
lado de fora, consegue circular em meio a eles, contornar as barreiras que lhe
opõem, ampliar indefinidamente seu território. Uma vez libertada, aliás, pode
recolher-se para dentro e despertar as virtualidades de intuição que nela ainda
dormitam. (BERGSON, 2005a, p. 197) .
A intuição é híbrida, tem duplo aspecto, um instinto e também uma faculda-
de, podendo ser entendida como um método. Gilles Deleuze (1999), em seu livro
bergsonismo, expõe as etapas da intuição na condição de método racional, porém,
deixa uma lacuna em seu aspecto de faculdade e da sua instintualidade. Já vimos que
a inteligência não dá conta do movimento, pois a racionalidade age por conceitos
e, por conseguinte, pela imobilidade. O movimento que a inteligência percebe é,
sempre, saltando de instante em instante, de um ponto fixo a outro. Ela é avessa ao
que escorrega; a inteligência prende, a intuição mergulha junto, nada mais móvel
que a consciência.
A lógica que norteia a inteligência e, consequentemente, toda a Epistemologia
anterior a Bergson, é uma lógica de retrospecção. Trata-se de uma perspectiva que
TRANSCICLOPÉDIA EM DIFUSÃO DO CONHECIMENTO 527

não admite a criação, a existência de algo novo, sempre entendendo que o novo
é um arranjo do passado, uma vez que aquilo tudo que surge já existia, de certa
maneira. Em O Pensamento e o Movente, Bergson (2006d) dá o exemplo da cor
laranja. A inteligência, com sua lógica diante dessa cor, pensa que o vermelho e
o amarelo existiriam previamente, para formar o laranja. Não se admite, neste
caso, a sensação do laranja não prescindindo do vermelho e do amarelo. É pre-
ferível pensar que, pelo menos virtualmente, o amarelo e o vermelho já estariam
presentes no laranja inicial.
[...], Mas é que nossa lógica habitual é uma lógica de retrospecção. Ela não
pode se impedir de repelir para o passado, no estado de possibilidades ou de
virtualidades, as realidades atuais, de modo que aquilo que agora é composto
deve, a seus olhos, tê-lo sido sempre. Não admite que um estado simples possa
permanecer aquilo que ele é, se tornar um estado composto apenas porque a
evolução criou pontos de vista novos, a partir dos quais considerá-lo e, por isso
mesmo, elementos múltiplos nos quais analisá-lo idealmente. Não quer acreditar
que esses elementos, caso não tivessem surgido como realidades, também não
teriam existido anteriormente como possibilidades, a possibilidade de uma
coisa sendo sempre (salvo no caso em que essa coisa é um arranjo inteiramente
mecânico de elementos preexistentes) apenas a miragem da realidade, uma
vez surgida, no passado do indefinido. Se essa lógica repele para o passado, na
forma de possível, aquilo que surge como realidade no presente, é justamente
porque não quer admitir que algo surja, que algo se crie, que o tempo seja
eficaz. (BERGSON, 2006d, p. 21-22)

Ao realizar uma simpatia consigo mesmo, ao coincidir com a sua própria cons-
ciência, é possível romper, através da intuição, com os limites espacializantes do eu
superficial, encontrar nas camadas mais profundas da consciência uma Consciência
que é fluxo heterogêneo e criador, a vida como um jorro de novidades se organiza
em criação, ela não é construída, mas criada. No entanto, ao modo da inteligência,
não existe criação; nunca nada de novo pode acontecer, pois ela é a consciência do
já feito, na qual podemos transformar e construir/reconstruir, jamais acrescentar o
novo nunca antes existente. Somente a intuição percebe a espontaneidade do existir
da vida, afinal, nada mais vivo que a consciência. Assim, arriscamos estabelecer um
paralelo entre vida e criação. Essa percepção de uma Consciência criadora, diferente
sempre de si mesma, pois está se fazendo, criando-se, aproxima os eus e afasta a
igualdade, a identidade, porque ela é sempre desigual, sempre diferente, um fluxo
contínuo e heterogêneo, e, mesmo quando se repete o verde das plantas em cada
manhã, é um verde novo de matizes variadas — não há um verde, mas um esverdear.
Um estado de Consciência profundo não é um possuir um eu, uma rés pensante, mas
528 TRANSCICLOPÉDIA EM DIFUSÃO DO CONHECIMENTO

fazer parte de um fluxo maior, de um acontecer criador incessante; é ser possuído


por uma Consciência ou, à maneira dos místicos, por um Deus.

CRÍTICA À INTUIÇÃO COMO POSSIBILIDADE DE


CONHECIMENTO
Existe uma tendência filosófica que identifica pensamento e linguagem, essa
inclinação espiritual nega a intuição, principalmente por afirmar a impossibilidade
de pensar sem signos. No entanto, a intuição ressurge nos estudos da criatividade
e inventividade, no qual o novo surge na imaginação ainda sem a impressão da
linguagem.

REFERÊNCIAS
BERGSON, Henry. A energia espiritual. Tradução de Rosimeiry Costhek
Abílio. São Paulo: Martins Fontes, 2009.

BERGSON, Henry. A evolução criadora. Tradução de Bento Prado Júnior. São


Paulo: Martins Fontes, 2005a.

BERGSON, Henry. As duas fontes da moral e da religião. Tradução de


Nathanael C. Caixeiro. Rio de Janeiro: Zahar, 1978.

BERGSON, Henry. Curso sobre a filosofia grega. Tradução de Bento Prado


Neto. São Paulo: Martins Fontes, 2005b.

BERGSON, Henry. Duração e simultaneidade: a propósito da teoria de


Einstein. Tradução de Bento Prado Júnior. São Paulo: Martins Fontes, 2006a.

BERGSON, Henry. Ensaio sobre os dados imediatos da consciência. Tradução


de João da Silva Gama. Lisboa: Edições 70, 1927.

BERGSON, Henry. Matéria e memória: ensaio sobre a relação do corpo com o


espírito. 3.ed., São Paulo: Martins Fontes, 2006b. (Col. Tópicos)

BERGSON, Henry. Memória e vida. Tradução de Cláudia Derliner. São Paulo:


Martins Fontes, 2006c.

BERGSON, Henry. O pensamento e o movente. Tradução de Bento Prado


Neto. São Paulo: Martins Fontes, 2006d.
TRANSCICLOPÉDIA EM DIFUSÃO DO CONHECIMENTO 529

BERGSON, Henry. O riso: ensaio sobre a significação da comicidade. Tradução


de Ivone Castilho Benedetti. São Paulo: Martins Fontes, 2007.

DELEUZE, Gilles. A concepção da diferença em Bergson. In: DELEUZE,


Gilles. A ilha deserta e outros textos. Tradução de Lia Guarino; Fernando
Fagundes Ribeiro São Paulo: Iluminuras, 2006. p. 47-71.

DELEUZE, Gilles. O bergsonismo. Tradução de Luiz B. L. Orlandi. São Paulo:


Editora, 34, 1999.
L
61. Leitur as.com

Marcílio Rocha-Ramos

Leitura.com é projeto da ação educomunicativa com jovens e adolescentes


visando à produção de autoria coletiva multimidiática como contracorrente às
culturas individualistas, radicalizando as potencialidades das mídias em rede. O
ponto.com significa dizer que não é uma tradicional leitura de um. Mas de uns.
Contudo, não é uma leitura de uns amontoados — indivíduos, traduzindo códigos
em meio impresso ou eletrônico ou em redes sociais. Nos diz também que a leitura
está relacionada com outras coisas — além de livros, artigos, notícias, reportagens.
E dentre as outras coisas estão as tecnologias, as redes, os fóruns online e também
fórum presenciais, como nossos encontros entre nós mesmos em nossos ativismos.
Quando articulamos o ponto.com estamos também ampliando a visão, os espaços,
os suportes de produção de leituras. O ponto.com significa mesmo que vamos rea-
lizar leituras fazendo redes, juntando o diferente, produzindo uma multiplicidade
de leituras, percepções, desejos.
Leitura.com tem uma intencionalidade: a composição, a produção de roteiros
autorais, ato de criação pela desconstrução. Suas ações, portanto, ocorrem nos hori-
zontes da criticidade e afetações muito além da contemplação, da reflexão. Trata-se
de leitura como meio de agenciamento de conhecimentos, práticas, experiências.
Por conseguinte, sua prática está associada à produção em múltiplas linguagens,
diferentes motivações, produções sem um centro definidor.
O conceito de leituras.com ganhou significado empírico — de produção autoral,
edição e montagem — em consultorias e realização de oficinas com cinema, poesia,
redação, jornalismo em escolas públicas — onde os espaços de “leituras” são inge-
nuamente determinados em lugares como biblioteca ou outros lugares “especiais”
onde normalmente se exige silêncio, individuação, reclusão.1 Mas pode ocorrer em
qualquer lugar, com qualquer público nas objetivações freireanas de ação para a
liberdade, vivência e leitura do mundo a partir das realidades imediatas. Nos pro-

1
O projeto Leituras.com saiu das dimensões teóricas para práticas em aplicação em escolas públicas
no estado do Ceará e na Bahia. A primeira experimentação foi realizada em parceria com a coor-
denadora pedagógica, Angelina Oliveira, numa pequena escola municipal em Itapipoca (2016-
2017) quando os processos produtivos da leitura foram experimentados como ação educativa
educomunicativa.
534 TRANSCICLOPÉDIA EM DIFUSÃO DO CONHECIMENTO

cessos de leituras.com ocorrem um caos criativo, dissonante, multifocal, nos quais


o ser que orienta também é orientado pelas experiências, e os seres que produzem as
leituras também produzem conhecimento nos atos mesmos da criação.

1. LEITURA COM AUTORIA


Compreendendo a escola como espaço social multirreferencial — espaço não
apenas de reflexão e apreensão de conhecimento, mas sobretudo de produção de co-
nhecimento, ativação de coletivos e do fazer, a ideia do conceito/projeto Leituras.com
visa construir uma cultura de participação, leituras críticas e autoria nos processos de
leitura. O principal conceito do Leituras.com é a Autoria. Melhor dizendo: autoriaS,
no plural. Autorias de fotos, poemas, notícias, reportagens, vídeos, tiradas, charges,
ilustração. Essas autorias estarão dentro de um processo de leituras múltiplas, diver-
sas, participativas. Isto significa que o conceito/projeto Leituras.com ocorre por meio
de autorias coletivas — envolvendo todos em procedimentos criativos, formativos,
discursivos. Por sua multiplicidade, o projeto se estende a todas as disciplinas e ações
inter e transdisciplinares. E se configura como o próprio plano de ação educativa.
O desafio é fazer de cada criatura, criador. E de cada criação um processo
criativo. Como de fato isto pode ocorrer? Nos tornamos autor ultrapassando a con-
templação, a reflexão, a relação ensino-aprendizagem. Ser autor é revelar. E r­ evelar-se.
É produzir conhecimento. É também produzir-se. A produção autoral significa
mesmo o próprio significado de educação, formação. O foco é produzir autoria no
contexto social das nossas vidas. Assim, passamos a ler nosso contexto com uma
visão implicada com seu próprio movimento e mudança. Nestes procedimentos, o
principal elemento de conexão é o próprio contexto. Ou seja: a própria realidade
concreta da nossa comunidade.

i) Contexto vivido
Que elementos do contexto podem ser utilizados para produção autoral do
projeto Leituras.com? Podemos problematizar a escola, os espaços, as etnias, os jo-
vens, os desejos, suas famílias, seus nomes. As questões podem ser problematizadas a
partir de uma pauta ou de ações abertas, dentro das quais a problematização ocorre
a partir das emergências, dos acontecimentos. Com efeito, não se trata apenas de
ler-para-responder. Mas de ler para produzir. Ler para desconstruir. Ler para perce-
ber e perceber-se no mundo vivido. Portanto, não é uma leitura-reflexo, mas uma
leitura-Ação.
TRANSCICLOPÉDIA EM DIFUSÃO DO CONHECIMENTO 535

ii) Foco criativo


As leituras.com ocorrem como uma convergência de sentimentos, ações, atos,
criação e recriação, humor, crítica — muito além de muros, da sala de aula, dos
“conteúdos” das disciplinas, das restrições à leitura apenas como oralidade em torno
de um texto. Como assinalamos, a leitura está implicada com o fazer, produzir,
gerenciar processos e meios, considerando as próprias culturas juvenis: meio de
comunicação, hábitos, desejos. Dentro da sua máquina produtiva, é necessário, no
entanto, a produção de estruturas leves, abertas, voláteis, tais como:
• Ecossistemas. Produzir ecossistemas comunicativos por meio do qual
articulamos a comunicação, a interação, a participação e a divulgação
das leituras em suas múltiplas linguagens. O ecossistema pode ser uma
Fanpage, um grupo do whatsapp ou uma permanente roda dialógica para
criação, sensibilização, conceitualização;
• Ação multimídia. Proporcionar aos estudantes um processo produtivo
de leituras com base numa diversidade de linguagens (foto, vídeo, arte,
literatura, texto, ilustrações, charges, tiradas, poesias);
• Autorias coletivas. Desenvolver práticas de leituras educomunicativas
relacionando os processos de “ler” o mundo com ações autorais, críticas,
reflexivas e implicadas com mudanças sociais. Estas práticas incorrem
sempre em produções, tematizações para realização de conteúdos autorais
em grupos livremente associados.

iii) Múltiplas linguagens


Ao pautarmos a Leitura como um processo autoral e ao associarmos este processo
com múltiplas lógicas, múltiplas linguagens, múltiplos meios, estamos querendo
dialogar com a realidade que os jovens vivenciam em seu dia a dia demarcada por
múltiplas linguagens, redes, tecnologias. Objetivamente, estamos nos dizendo que
não podemos limar as subjetividades impondo apenas uma linguagem por meio do
livro-texto, como frequentemente ocorre.
Multilógica significa muitas lógicas. Significa que não vamos produzir leitura
apenas na lógica do texto impresso. Apenas na lógica de ensino-aprendizagem. Na
lógica, ler em volta alta, ler em voz baixa. Estas lógicas — próprias do método ins-
trucionista, repetitivo, decorador — deve ser ampliada para lógicas de leituras com
tiradas, humor, ironia, quadrinhos, produção de poemas, produção de reportagens,
produção de vídeos, produção de teatro, produção de apresentações para os familiares
536 TRANSCICLOPÉDIA EM DIFUSÃO DO CONHECIMENTO

dos estudantes da comunidade. Assim, saímos da lógica ensino-instrução, para as


polilógicas educativas.

2. MOMENTOS
Com base nas proposições de Gallo (2012) para produção de conceitos,
apresentamos aqui a partir da sua estruturação os momentos de construção das
leituras.com, uma vez que esta envolve também as práticas com a) sensibilização,
b) a problematização, c) a investigação e d) a conceitualização. Esses momentos vão
‘roteirizando’ por assim dizer as ações de construção das leituras por meio de relações
empíricas, sensibilizadoras, racionais e emotivas.6 O quadro abaixo especifica estas
etapas caracterizando nossa ação docente e os métodos e instrumentos para ação de
produção de leituras críticas autorais.

Quadro 1 – Docência e métodos de produção de leitura

Ações Docência Métodos, recursos


– Peças artísticas, reportagem,
Chamar atenção para temas, subtemas.
Sensibilização notícia, textos impressos,
Fazer com que as temáticas afetem
Afetar, chamar aten- vídeos
os estudantes e seja vivido como um
ção, motivar – Alargamento de experiên-
problema.
cias estéticas.
Trata-se de transformar o tema em – Propor discussões entre os
Problematização
problema. Suscitar o desejo de buscar (as) alunos (as);
Problematizar vários
solução, promovendo discussões em – Exercitar a educação da
aspectos em diferentes
torno do tema. pergunta e da dúvida.
perspectivas

Investigação – Apresenta referências do


Orientar a buscar que permitam a abor-
Ir a campo, aula- livro didático e de outras refe-
dagem do problema por meio de produ-
-passeio entrevistar, rências relacionadas ao tema.
ção midiática.
filmar, fotografar – Ação em campo.
– Apresentação no ecossiste-
Conceitualizar Recriar as realidades, equacionar os
ma comunicativo.
Criar, posicionar-se, problemas. Produzir mídias e conteúdos
– Produção de redes.
tornar-se autor midiáticos
Agenciamentos.

3. AUTORIA
As propriedades e dimensões do conceito Leituras.com são articuladas aqui
a partir das experiências com o público jovem das escolas, em contracorrentes aos
espaços individualizados. Para rompê-los, desterritorializamos o conceito de “leitura”
TRANSCICLOPÉDIA EM DIFUSÃO DO CONHECIMENTO 537

— as salas, as bibliotecas, os livros, o lugar especial. E produzimos outros espaços


com o livro multimídia (portfolio), aula passeio semiestruturadas e as publicações
mesmas em rede como produto de autorias coletivas, expressão da produção, das
vivências. Estas produções ocorrem por dispositivos da roda dialógica (produção de
palavras-mídias), da pesquisa focada (roteiragem com as palavras mídias) e da autoria
coletiva (produtos multimídia)2, tendo como culminância um festival educom no
final do seu processo.
Com efeito, o festival está implicado com os processos de leitura, pesquisa,
produção porque é quando ocorre toda a visualização das criações e a relação entre
os seus protagonistas com os protagonizados. O festival é a expressão imagética de
processos, procedimentos, criações realizadas ao longo de um tempo no qual ocorreu
um envolvimento, uma idealização aberta, um sentido de autoria em grupos. Para
uma melhor conceitualização do verbete-projeto Leituras.com, vamos apresentar
a seguir seu processo produtivo, envolvendo espaços fixos, voláteis e redes online.

iv) Dialógicas
Nos espaços da escola, a roda dialógica como processo de leitura tem o portfo-
lio como um dos seus produto. Este “livro” aberto, multimidiático, produzido nas
emergências é uma forma de dar voz aos estudantes e fazê-los pesquisar em ações
permanentes transformando suas vivências em experimento para composição de
mídias, produção do pensamento e performance em espaço idealizados. Esta mídia
é um documento de muitas mãos, muitos olhares e práticas durante o ano letivo.
Mas este não apenas como um caderno de anotações ou de colagem individualizada,
mas uma produção de muitas referências, múltiplas linguagens, práticas e saberes.
O portfólio é espaço do acontecimento, das coleções, das emergências, dos fluxos
permanentes que ocorrem no dia a dia. Tradicionalmente, o portfólio tem no recorte
sua “mídia” mais tradicional, no entanto, no ato educomunicativo é espaço do vivido,
do recorte para criação, da experiencia para reflexão, do reflexo para produção de
autorias coletivas — portanto, envolvendo os acontecimentos das previsões forma-
tivas e do que surpreende no dia a dia, dai porque suas páginas em aberto comporta
a arte (atos sociais), a composição (criação) e o desempenho linguístico (oratória).
• Artes e recortes: com a produção de recortes em notícia, reportagem, fotos
e ilustrações, o projeto de leituras avança sobre as linguagens do jornalismo,
com base nos fatos e acontecimentos sociais transmitidos pelas grandes mí-
2
Ver verbete Métodos Educom.
538 TRANSCICLOPÉDIA EM DIFUSÃO DO CONHECIMENTO

dias e redes. As artes com os recortes também comportam a desconstrução


dos personagens das mídias mainstream que diariamente editam o mundo
para consumo. Esta “desedição” é também objeto de uma nova leitura das
realidades representadas sob os mantras da objetividade, neutralidade,
imparcialidade. Com efeito, o próprio recorte é objeto de pensamento para
sinalizar que a realidade não pode ser representada como se diz.
• Letras e composição: A música, composição, poemas entram nos proce-
dimentos do projeto Leituras.com como uma garimpagem do sentimento
em relação ao mundo por meio especialmente de haikai, hip hop, repentes,
paródias. Nestes fazeres, ler um poema vem acompanhado com fazer um
poema. Cantar uma música com fazer uma música. Analisar uma letra,
com refazê-la. Articula-se a música também utilizando a internet como
fonte com seus arranjos prontos, efeitos, toques sobre os quais os jovens
fazem um jogo camaleão de construção, desconstrução. Este mesmo jogo
camaleão é feito sobre as letras terríveis, preconceituosas — delas descons-
truindo seus horizontes cinzas.
• Leitura e oratória: Toda as produções acima são apresentadas por meio
de leituras, debates, discussões. O “apresentador” que desconstrói, o ator
que se autorrevela em farsa, o poeta que expõe, o compositor que des-
monta, o humorista que desfaz. A leitura multimídia revela o orador, o
tímido, o calado. Nestas revelações, todos se percebem no fazer-se ouvir,
fazer-se encantar ou desencantar ao falar em público. A arte com o corpo,
a voz, a construção linguística. Leitura e oratória é o acontecimento mais
permanente, mais em voga, em toda a produção do portfólio como ato
educomunicativo. Dessas práticas territorializadas é que se ganha afetações
para um outro momento das Leituras.com: a pesquisa-focada, um voo além
dos espaços diariamente vividos a partir de palavras-mídias das oratórias.

v) Pesquisa-focada
A fase das leituras.com na pesquisa focada ocorre após a mineração de pala-
vras-mídias, performances pessoais e produtos. A pesquisa focada ocorre como um
“corte” entre o caos produtivo para tomada de uma direção, uma ação de criação
mais refinada agora numa nova fase de grupos mais bem definidos. Aprumar o foco
é objetivo dessa fase considerando que a anterior ocorre como momento de todas as
criações, todas as ideais e performances pessoais. A leitura nesta fase ganha um novo
refinamento, uma vez que se trata de produzir os tecidos das redes enunciadas na
TRANSCICLOPÉDIA EM DIFUSÃO DO CONHECIMENTO 539

fase anterior. Unir pontos, fazer conexões encontrar o roteiro — eis os desafios. Estes
nascem das relações multirreferenciais, multilógicas, multimidiáticas realizadas na
fase da produção dos portfolios — uma fase em que a leitura é uma pré-produção,
ou seja, uma experimentação aberta para sensibilização e contextualização.
• Aula passeio: Como instrumento de leitura social, a aula passeio é meio
de expressão livre, encontro, cooperação e elo de ligação entre pessoas e
objeto de conhecimento (contexto), como assinala Freinet, (2004). Estes
passeios, no entanto, são roteirizados na fase das rodas dialógicas como
previsões, pré-roteiros dos produtos multimídias. Assim, a produção de
entrevistas, fotografias, filmagens tem um pré-roteiro que faz das aulas
passeios um encontro empírico cíitico. Com efeito, nesses encontros podem
ocorrer diversos projetos, como de fotografia, vídeo, entrevistas, memória.
O objetivo é realizar pesquisa empírica com fontes primárias.
• Ação em rede: A pesquisa focada ocorre também nas redes de conteúdos
digitais como fonte secundária de pesquisa. Trata-se de coletar, referen-
ciar e confrontar informações em sítios digitais. Como assinalamos em
Educomunicação e mídia radical (Rocha-ramos, 2005, p. 51), os grupos
visam a um objetivo, se acionam para produção de sentidos e utilizam o
conhecimento disponível online para seu engenho de criação. “Isso significa
trabalhar com a hierarquização das fontes e observar sua consistência, a
partir de um foco coletivamente estabelecido”. A ação em rede também
tem um pré-roteiro com as palavras-mídias, os conceitos em aberto, as per-
formances que ocorreram na primeira fase das produções das leituras.com.
• Conceitualização: Nos processos de leituras.com a conceitualização é a
produção de roteiros para realização de produtos multimidiáticos — expo-
sições fotográficas, produção textual, vídeos, redes interativas, gravações,
composições. Conceitualizar é desenvolver as propriedades de dimensões
dos produtos a serem realizados. Trata-se de construir a “teia” das redes das
palavras-geradoras já definindo um objetivo concreto. A conceitualização
é de fato quando a autoria começa a se estruturar na prática.

vi) Autoria coletiva


Nesta fase é quando todos os processos do projeto leitura.com dá um salto
qualitativo e se expressa por meio de produtos. Os grupos se tornam autores. O pro-
cesso autoral se realiza em redes colaborativas interpessoais, ultrapassando modelos
540 TRANSCICLOPÉDIA EM DIFUSÃO DO CONHECIMENTO

narcísicos, um jogo de misturas. Não ficar preso, não repetir aos extremos, não ter
a referência como gesso. Essas leituras revelam uma obra a ser criada no processo
mesmo do seu ativismo como uma esfera de desconstrução dos controles com suas
desordens criadoras, quebrando o ser Vaticão: os guardiões da cultura, do saber, da
reprodução. Nestes contextos, a fertilidade está nas ações dos desenlaces: O que
sangra e cria, o que diferencia e provoca, o que altera as rotinas e sai das tocas é
o que indexa e desindexa, os títulos, as referências, e efetivamente conecta-se com
inserções além da aldeia.
Ser autor é:
• Desenvolver uma habilidade: ter uma leitura crítica, isto implica em
uma capacidade de desconstruir;
• Ser autocrítico: o grupo precisa ver e se ver dentro da produção. Como
afirma Santos (2004, p. 92), “todo conhecimento é autoconhecimento,
também todo o desconhecimento é autodesconhecimento”;
• Publicar: a Ação Educom trabalha tanto com o processo (educação) como
com o produto (comunicação), agenciando a educação com a comunicação
por meio de redes.

As sínteses das multiplicidades — se é que podemos chamar assim — do Leiuras.


com se encontram no festival educom. O festival é o acontecimento, o encontro das
criações. Como já assinalamos neste verbete, é um evento sem as tradicionais hierar-
quizações, seleção e exclusão dos festivais porque visa à participação, à produção de
redes e afetações com a radicalidade das potências tecnológicas da sociedade-rede. O
festival educom não destaca aquele/aquela que apresenta uma produção diferenciada,
mas a criação coletiva, a produção da diferença com seus processos multilógicos,
multirreferenciais, multimidiáticos.

PARTICIPAÇÕES
FREINET, Célestin. Pedagogia do bom senso. São Paulo: Martins Fontes,
2004.

FREIRE, Paulo. Ação cultural para a liberdade. 2.ed. Rio de Janeiro: Paz e
Terra, 1977.

GALLO, Sílvio. A. Metodologia do ensino de filosofia: uma didática para o


ensino médio. Campinas: Papirus, 2012.
TRANSCICLOPÉDIA EM DIFUSÃO DO CONHECIMENTO 541

ROCHA-RAMOS, Marcílio. A blogosfera radical: ação educomunicativa dos


blogueiros sujos. 2014. 248 f. Tese (Doutorado em Difusão do Conhecimento).
Faculdade de Educação da UFBA, Universidade Federal da Bahia, Salvador-
Bahia. Disponível em: <https://repositorio.ufba.br/ri/handle/ri/17750>. Acesso
em: 11 dez. 2018.

ROCHA-RAMOS, Marcílio. Educomunicação e mídia radical. 2005. 221 f.


Tese (Mestrado em Educação). Faculdade de Educação da UFBA, Universidade
Federal da Bahia, Salvador-Bahia. Disponível em: < http://www.repositorio.ufba.
br:8080/ri/handle/ri/11902>. Acesso em: 23 dez. 2018.
M
62. Mercado de Capitais e Redes1

José Garcia Vivas Miranda


Tatiana Gargur dos Santos

ABERTURA
Não há consenso sobre como os investidores tomam suas decisões, embora a
teoria de finanças declare que o investidor racional busca a diversificação com objetivos
de minimizar o risco para determinado nível de retorno esperado. De acordo com
a moderna teoria de portfolios, melhores resultados poderiam ser obtidos através da
diversificação internacional de ativos. Dessa forma, ao se desenvolver novos métodos
com novas variáveis aos conhecimentos previamente concebidos, pode-se promover
mudanças no processo de construção em busca de um novo conhecimento. Objeti-
vando contribuir com novos modelos de análise em administração de carteiras de
investimentos, este trabalho procurou compreender a dinâmica dos índices de ações
ao longo do tempo através da mensuração dos índices de rede, ao mesmo tempo
em que buscou identificar um padrão pelo meio da avaliação dos retornos e riscos
oriundos da criação de um método combinado para se atingir otimização em cartei-
ras de investimentos. Após análise de duas bases de dados de retornos de índices de
ações que compreendem janelas temporais distintas no período dos últimos 17 anos,
verificou-se que a seleção de índices de ações que possuem menores índices de redes
mostra-se como a decisão mais conservadora, com retornos mais constantes, logo,
menores riscos. Os estudos apontaram para a constância dos resultados auferidos no
índice Grau de Entrada que, sob a ótica do presente trabalho, pode ser interpretado
como sendo o número total de conexões que chegam ao índice de bolsa, considerando
o grafo como dirigido. Dessa forma, os índices de bolsas que têm baixas conexões de
entrada com outros índices de bolsas podem ser menos influenciáveis às oscilações do
mercado financeiro, apresentando-se, assim, como possíveis ativos de risco reduzido,
ao mesmo tempo em que poderão sofrer menos impactos em cenários de crises finan-
ceiras, apesar de permanecerem em um mercado altamente volátil, atendendo, dessa
forma, as exigências de investidores menos propensos a assumir riscos.
1
Ensaio da Tese de Doutorado apresentada ao Programa de Pós-graduação em Difusão do Conhe-
cimento como requisito parcial para a obtenção do título de Doutor em Difusão do Conhecimen-
to pela UFBA (2019).
546 TRANSCICLOPÉDIA EM DIFUSÃO DO CONHECIMENTO

1. INTRODUÇÃO
Diversificar investimentos implica na identificação do nível de globalização
em que se encontram os países, pois, quanto mais integradas forem as economias,
menores serão os benefícios decorrentes da diversificação.
Securato (1997) utilizou metodologia de cálculo para verificar o nível de
integração internacional dos mercados através da fórmula que mensura o grau de
globalização denominada de Nível de Globalização Restrita, mas o financista não
realizou associações dos resultados encontrados com a performance do Mercado de
Capitais, tampouco como os mercados estavam organizados em redes.
Conforme constatado em Hochberg et al. (2010), estudos de redes em Mercado
de Capitais concentram-se nas redes estáticas e baseiam-se em um momento ins-
tantâneo do mercado, em um ponto de tempo específico ou em uma visão agregada
que assume todas as relações de investimento, e os investidores do mercado estão
continuamente ativos. Esta simplificação negligencia as características evolutivas
dinâmicas do Mercado de Capitais em situações de risco.
Dessa forma, considerando a globalização financeira como um processo com-
plexo em sistemas econômicos, o método da evolução dinâmica em estruturas de
rede torna-se uma abordagem crucial nos estudos dos fenômenos que interferem
nos fluxos financeiros de capitais.
De acordo com a Moderna Teoria de Portfólios (MTP), a integração dos
mercados pode aumentar a correlação entre os ativos e reduzir a possibilidade de
ganhos no mercado de capitais. Dessa forma, os estudos das redes de forma dinâ-
mica mostram-se como um dos métodos apropriados para otimizar os resultados de
investimentos em mercado de capitais uma vez que o fluxo financeiro entre regiões
pode ser detectado através de relações direcionais.
Assim, este estudo procurou responder à seguinte questão de pesquisa: Como
o modelo baseado em índices de redes pode mensurar o fluxo financeiro e formar
uma estratégia eficiente de investimento de menor risco e maior rentabilidade?
Para cobrir esse questionamento objetivou-se compreender a dinâmica dos
índices de ações ao longo do tempo e as possibilidades de ganhos financeiros através
da Análise de Redes.
TRANSCICLOPÉDIA EM DIFUSÃO DO CONHECIMENTO 547

2. A GLOBALIZAÇÃO FINANCEIRA E A DIVERSIFICAÇÃO DE


INVESTIMENTOS
Nunca se explanou tanto em globalização como nos últimos tempos e pode-se
relacionar a evolução desse processo global às mudanças tecnológicas, que têm dado
dinamismo e rapidez ao mercado financeiro.
Os grandes negociadores do mercado financeiro estão atentos às notícias mun-
diais através dos meios de comunicação, que se tornaram quase que instantâneos,
de forma que uma decisão de investimento em uma região pode afetar o valor de
mercado dos títulos negociáveis no outro lado do planeta.
Essa preocupação se tornou objeto de estudo e tema do recente artigo de
­García-Medina et al. (2017) Correlations and Flow of Information between The New
York Times and Stock Markets, que corresponde a “Correlações e Fluxo de Informações
entre o The New York Times e os Mercados de Ações”. Os pesquisadores utilizaram
a Random Matrix Theory (RMT) e a Teoria da Informação, Entropia, para analisar
as correlações e o fluxo de informações entre 64.939 notícias do jornal The New
York Times e 40 índices financeiros mundiais durante 10 meses no período 2015-
2016. O conjunto de notícias foi quantificado e transformado em séries temporais.
Os resultados sugerem uma relação profunda entre notícias e índices de bolsas e
mostram uma situação em que as notícias impulsionam os movimentos do mercado
mundial, dando uma nova evidência para apoiar as finanças comportamentais como
um paradigma econômico.
Levy e Sarnat (1970) evidenciaram que existe uma forte tendência para que os
retornos dos títulos individuais se movam conjuntamente dentro de um mesmo cenário
econômico. De acordo com essa visão, Ibbotson et al. (1982) referenciaram que a diver-
sificação internacional se justificaria graças às vantagens decorrentes da segmentação
do mercado global. Dessa forma, sugere-se a possibilidade de se reduzir ainda mais
o risco de um portfólio diversificado domesticamente em mercados desenvolvidos,
investindo-se em títulos de países em desenvolvimento, pois os retornos desses ativos
terão um comportamento diferente daqueles inseridos em mercados desenvolvidos.
Segundo Brigham, Gapenski e Ehrhardt (2001, p. 185), a razão pela a qual as
ações mantidas em carteira podem ser combinadas para formar uma carteira sem
risco é que seus retornos movam-se contra ciclicamente, um em relação ao outro, e
a tendência de duas variáveis se moverem conjuntamente é chamada de correlação,
e o coeficiente de correlação mede essa tendência.
A quantificação sobre como a globalização financeira influencia cada região
deve adicionalmente ser considerada nos estudos de forma a otimizar os resultados
548 TRANSCICLOPÉDIA EM DIFUSÃO DO CONHECIMENTO

dos investimentos, minimizando riscos e maximizando retornos, motivo pelo qual


um método envolvendo Redes pode vir a mensurar o fluxo financeiro colaborando
com a evolução dos estudos nesse segmento acadêmico, tendo em vista a tendência
crescente de se obter retornos decrescentes com a expansão do movimento de recursos
financeiros ao redor do planeta.

3. ECONOFÍSICA E REDES
No final do século XX, registra-se aumento do interesse por parte dos físicos
pelo estudo da dinâmica dos sistemas complexos, que reúne conhecimentos interdis-
ciplinares que alcançam diversas áreas que vão da física à antropologia, da biologia
até as cotações das bolsas de valores.
Conforme o próprio nome sugere, a Econofísica é uma disciplina híbrida que
pode ser definida como uma ciência que se utiliza de uma abordagem quantitativa
usando ideias, modelos, métodos conceituais e computacionais de física estatística
aplicada aos fenômenos econômicos e financeiros.
Louis Bachelier (1900), em sua tese de doutorado intitulada “Teoria da Especula-
ção”, usou ideias físicas de difusão e passos aleatórios “random walk” para, cinco anos
antes de Einstein, aplicar métodos equivalentes à descrição do movimento browniano
para explicar a formação de preços em mercado de ações. Historicamente, foi o primeiro
autor a usar matemática e física para estudar finanças por meio de processos aleatórios.
Benoît Mandelbrot (1963) foi o pioneiro no uso de distribuições de cauda longa
(não gaussianas) em finanças e mostrou que fractalidade e autossimilaridade são comuns
em finanças e variações de mercados tanto de commodities como mercado de câmbio.
A natureza híbrida da Econofísica abre espaço para o debate. Enquanto alguns
autores como McCauley (2006), Schinckus (2010) e Stanley, Gabaix e Vasiliki (2008)
enfatizam as diferenças metodológicas entre os dois campos, outros como Jovanovic
e Schinckus (2013, 2016) e Walstad (2010) explicam que existe uma infinidade de
características conceituais comuns entre essas duas áreas de conhecimento.
Essa dialética conceitual entre as duas comunidades torna difícil a coexistên-
cia com uma interação real, mesmo havendo semelhanças conceituais históricas e
algumas pontes de ligação entre a Econofísica e as Finanças Econômicas, conforme
McCauley et al. (2016).
A última crise econômica iniciada em 2008 gerou forte debate e muitas questões
sobre a capacidade dos economistas financeiros para lidar com a realidade financeira
que, de certa forma, caracterizou-se também como uma crise da Teoria Financeira,
mostrando claramente que o funcionamento dos sistemas e mercados financeiros
TRANSCICLOPÉDIA EM DIFUSÃO DO CONHECIMENTO 549

estava bem longe do previsto pelos modelos considerados padrões, conforme men-
cionaram McCauley et al. (2016).
Os sistemas financeiros e econômicos são organizações complexas de agentes
adaptativos interativos cujas interligações com instituições podem gerar padrões
inesperados, fluxos que se retroalimentam e processos de difusão de informações.
Como o sistema econômico pode ser representado por partes individuais que
se conectam, modelá-lo como uma rede pode fazer com que certas características
relacionais surjam com o objetivo de explicar seu funcionamento.
O estudo das Redes iniciou-se com a Teoria dos Grafos (TG), que, por sua
vez, tem como origem o enigma das sete pontes de Königsberg, cidade da Prússia
do século 18, atual Kaliningrado (Rússia). O rio Pregel divide a cidade em quatro
áreas de terra unidas por sete pontes. Os habitantes de Königsberg queriam saber
se alguém poderia visitar as quatro áreas cruzando cada ponte exatamente uma
vez. Esse problema foi solucionado por Leonhard Euler (1736), que representou as
áreas de terra separadas por pontes como os nós (pontos) e as pontes como arestas
(segmentos de linha), ligando os nós. A estrutura formada pelo conjunto de nós e
arestas, chamada de grafo, é uma representação do problema. Euler demonstrou
por meio dos grafos que tal solução não é possível.
De acordo com Gross e Yellen (1999), um grafo G = (V, E) é uma estrutura
matemática que consiste em dois conjuntos V (finito e não vazio) e E (relação binária
sobre V). Os elementos de V são chamados vértices (ou nós) e os elementos de E são
chamadas arestas. Cada aresta tem um conjunto de um ou dois vértices associados a ela.
O uso de redes nos mercados financeiros tem sido um dos principais temas
de pesquisa da atualidade em finanças. De acordo com Schweitzer et al. (2009), as
redes permitem a análise de dois ou mais ativos interligados num sistema.
Um dos primeiros estudos registrados, envolvendo redes e mercados financeiros,
foi realizado por Mantegna (1999), que aplicou o método Minimum Spanning Tree
(MST), no período de julho de 1989 a outubro de 1995, utilizando empresas listadas
no New York Stock Exchange (NYSE), Índice da Bolsa de Nova York. ­Mantegna
(1999) pôde constatar que as séries temporais poderiam passar informações valiosas
para os mercados financeiros. Esse estudo revolucionou a forma como é percebida as
relações entre os ativos financeiros, que podem ser desde uma rede de ações em uma
determinada bolsa de valores até a relação financeira entre bolsas de diversos países.
Dessa forma, tendo em vista que questionamentos atuais na área de Finanças
e Mercado de Capitais podem vir a ser mais profundamente respondidos por meio
de um processo interdisciplinar, o presente trabalho se utilizou da Teoria das Redes,
550 TRANSCICLOPÉDIA EM DIFUSÃO DO CONHECIMENTO

especificamente dos índices oriundos das redes formadas pela interação dos índices
de ações, para identificar otimizações em carteiras de investimentos, ou seja, maiores
retornos financeiros e menores riscos inerentes à globalização dos mercados, conforme
metodologia descrita a seguir.

4.METODOLOGIA E RESULTADOS OBTIDOS


O presente trabalho se utilizou da pesquisa positivista de natureza descritiva
cujo delineamento foi realizado por meio de fontes bibliográficas, visando, com
isso, compreender a mensuração da redução do risco e do aumento do retorno em
carteiras de índices de ações através de indicadores de redes.
Para o presente trabalho, os Nós da rede são compostos por 29 índices de bolsas
das seguintes macrorregiões: América Latina, Ásia/Pacífico, África/Oriente Médio
e Estados Unidos. As Arestas representam as sincronizações obtidas por meio do
método Motifs desenvolvido por Rosário et al (2015).
O método Motifs identifica o grau e a direção de sincronização entre os retor-
nos dos índices de bolsas a partir da contagem do número de ocorrência de micro
padrões (aclives, declives, picos e valas) entre séries temporais criando as redes.
Duas bases de dados foram utilizadas para análise do presente trabalho, ou
seja, duas redes foram formadas. A primeira base, que contém 2118 retornos de
dias úteis em que houve movimento em todas as bolsas de valores, corresponde ao
período de 8/3/2001 a 30/12/2015.
A segunda base, que contém 893 cotações do período de 8/3/2001 a 31/7/2007,
foi escolhida por ser uma faixa temporal que representa a fase anterior à crise
econômica que se tornou mais globalizada após agosto de 2007. O objetivo dessa
escolha amostral intencional era conjeturar possibilidades de perda financeira de
um investidor durante a crise e seus resultados futuros, caso o mesmo permanecesse
com os investimentos até junho de 2018.
Uma vez as redes criadas, os índices de redes: Hub de Entrada, Hub de saída,
Grau de Entrada, Grau de Saída, Authority e Clustering, oriundos das duas bases de
dados históricas foram calculados, tanto para 95% quanto para 99,4% de sincroni-
zação entre índices de bolsas de valores.
A sincronização indica o percentual de tempo da série temporal em que os
índices de bolsas estiveram conectados através de sincronia de movimento dos re-
tornos, logo 99,4% de sincronização exprime maior certeza de que as conexões são
sólidas e frequentes no período do estudo.
A Figura 1 exibe o Grafo do índice Grau de Entrada com 99,4% de sincronização.
Os menores graus de entrada estão em vermelho e os maiores graus de entrada estão
TRANSCICLOPÉDIA EM DIFUSÃO DO CONHECIMENTO 551

sendo apontados na cor azul. Os níveis intermediários de graus de entrada encontram-se


em amarelo ou verde. As cores das arestas acompanham o nó direcionado pelo grau de
entrada. A predominância da cor azul atesta que há mais arestas sendo direcionadas
para os índices de ações que possuem maiores graus de entrada.

Figura 1 – Grafo de índices de ações por Grau de Entrada (99,4%


sincronização) – Base 1

Fonte: elaboração própria

Em seguida, as estatísticas 1º e 4º quartis foram elaboradas com o objetivo


de identificar os índices de bolsas extremos, ou seja, os que possuem maiores signi-
ficâncias em termos de resultados de índices de redes por estarem nos extremos da
tabela de resultados. Os índices de bolsas extremos, também chamado nesse estudo
como “maiores” ou “menores”, são os que fizeram parte do método de otimização
de carteiras de índices de Elton-Gruber, que foi executado logo a seguir.
O modelo de Elton-Gruber (1995) é utilizado com o objetivo de criar carteiras
de investimento otimizadas, que possui como característica principal expor, de forma
matematicamente simples, o motivo pelo qual um determinado ativo deve ou não
552 TRANSCICLOPÉDIA EM DIFUSÃO DO CONHECIMENTO

pertencer a uma carteira otimizada. Ao todo 48 carteiras de investimento foram


calculadas; 24 carteiras para a primeira base, e outras 24 para a segunda.
As rentabilidades das carteiras otimizadas, para a primeira base, foram auferidas
a partir de janeiro de 2016, se estendendo até a data de corte do presente estudo que
é junho de 2018, conforme resultado apresentado na Tabela 1.

Tabela 1 – Rentabilidade acumulada das carteiras – Base 1 – Jan/2016 a


Jun./2018

BAIXO (1o Quartil) ALTO (4o Quartil)


% Sincronização Motifs 95% 99,4% 95% 99,4%
Hub Entrada 33,1% 0,9% - -
Hub Saída 88,9% -17,4% - -
Grau de Entrada 32,4% 32,2% 32,4% 88,9%
Grau de Saída 32,4% 24,5% 32,4% -
Authority 32,6% 33,5% 0,9% -
Clustering 10,5% 88,9% - 24,5%
Carteira
Ibovespa Selic
Homogênea
58,3% 24,4% 26,5%
Fonte: elaboração própria

Os resultados dessas carteiras de investimento elaboradas com os índices


de redes mencionados foram comparados à Carteira Homogênea equivalente ao
­Ibovespa e à Taxa Selic, considerando como premissa um investidor radicado no
Brasil em busca de ganho monetário no mercado financeiro, que é volátil, mas com
riscos minimizados.
A Carteira Homogênea é composta pelos 29 índices que compõem esse estu-
do, sendo que cada índice participa igualmente com 3,4483% na carteira. A Taxa
Selic serve de referência para todas as outras taxas de juros do país e o Ibovespa é
o mais importante indicador do desempenho médio das cotações do mercado de
ações brasileiro porque retrata o comportamento dos principais papéis negociados
na BOVESPA, Bolsa de Valores de São Paulo.
Conforme resultados apontados na Tabela 1, durante o período de janeiro
de 2016 a julho de 2018 as carteiras que auferiram retornos predominantemente
superiores à Carteira Homogênea e à Taxa Selic foram as que tiveram índices de
ações selecionados com Baixo quartil de índices de redes a 95% de sincronização.
TRANSCICLOPÉDIA EM DIFUSÃO DO CONHECIMENTO 553

Presume-se que, com base na formulação do Grau de Entrada, os índices de


ações que os possuem em menor grau tendem a ser menos susceptíveis a influências
de outros índices e, de forma contrária, os índices de ações que possuem alto Grau
de Saída tendem a influenciar mais os outros índices de ações.
Considerando que o método de Elton-Gruber leva em conta tanto o risco
sistemático quanto o não sistemático em sua base de cálculo, pôde-se observar que
alguns índices de ações selecionados com base no 4º quartil dos índices de redes não
foram eleitos para qualquer tipo de investimento, são eles: Hub de entrada-95%, Hub
de saída-95%, Hub de entrada-99,4%, Hub de saída-99,4%, Grau de Saida-99,4%
Authority-99,4% e Clustering-95%. Esse grupo seleto apresentou-se mais arriscado,
motivo pelo qual o modelo são sugeriu investimentos com base no período anterior
analisado.
Com relação à segunda base, as estruturas das carteiras mantiveram-se cons-
tantes após a sua criação através do método de Elton-Gruber, no mês de corte de
julho de 2017, e suas rentabilidades foram auferidas durante o período de agosto de
2007 a junho de 2018, conforme Tabela 2.

Tabela 2 – Rentabilidade das carteiras iniciadas no período pré-crise de


2008 – Base 2 – Ago./2007 a Jun/2018

BAIXO (1o Quartil) ALTO (4o Quartil)


% Sincronização Motifs 95% 99,4% 95% 99,4%
Hub Entrada 47,4% 50,0% - -
Hub Saída 40,2% 38,4% - -6,3%
Grau de Entrada 67,1% 69,8% 43,9% 68,0%
Grau de Saída 51,5% 65,5% 77,8% 34,3%
Authority 73,9% 69,8% 43,9% 68,0%
Clustering 57,6% 39,1% 83,5% 109,9%

Ibovespa Carteira Homogênea Selic


57,7% 63,3% 111,5%
Fonte: elaboração própria

Conforme resultados apontados na Tabela 2, durante o período de agosto de


2007 a julho de 2018, 10 carteiras auferiram retornos superiores à Carteira Homo-
gênea. Dessas, cinco carteiras têm como base ativos com baixos índices de redes
(1º quartil) e cinco carteiras possuem ativos com altos índices de rede (4º quartil).
554 TRANSCICLOPÉDIA EM DIFUSÃO DO CONHECIMENTO

A diferença predominante entre esses dois grupos está no risco. Conforme padrão
identificado na Base 1, os resultados das carteiras de investimentos dos índices de
ações que tinham maiores índices de redes, tendem a ter maiores riscos, motivo
pelo qual a variação entre o menor e o maior retorno da tabela são maiores. Maiores
variações em retornos implicam em maiores riscos em mercado de capitais.

5. CONSIDERAÇÕES FINAIS
O Mercado de Capitais, que opera através das Bolsas de Valores, é um dos
canais fundamentais para captação de recursos que permitem o desenvolvimento
das empresas gerando novos empregos e contribuindo para o progresso econômico
de uma região ou país.
Contribuindo para esse sucesso, a administração de carteiras de investimentos,
que é o meio que o investidor se utiliza para injetar recursos nas bolsas de valores,
depende, em grande parte, da construção do conhecimento em mercado de capitais.
Colaborando para esse fim, este trabalho procurou compreender a dinâmica
dos índices de ações ao longo do tempo através da mensuração dos índices de rede,
ao mesmo tempo em que buscou identificar um padrão pelo meio da avaliação dos
retornos e riscos oriundos da criação de método combinado para se atingir otimização
em carteiras de investimentos.
Dessa forma, foi possível verificar se há possibilidades de ganhos financeiros
através da análise de Índices de Redes em um mundo cada vez mais globalizado em
termos de fluxos financeiros.
A escolha de índices de ações que possuem menores índices de redes mostra-se
como a decisão mais conservadora, com retornos mais constantes, logo, menores riscos.
Os estudos apontaram para a constância dos resultados auferidos no índice
Grau de entrada, tanto para a primeira quanto para a segunda base de dados, assim
como para o 1º e 4º quartis.
Sob a ótica do presente trabalho, pode-se interpretar os resultados do índice
Grau de Entrada como sendo o número total de conexões que chegam ao índice de
bolsa, considerando o grafo como dirigido. Os índices de bolsas que fazem parte
do 1º quartil, ou seja, os que têm baixas conexões de entrada com outros índices de
bolsas, podem ser menos influenciáveis às oscilações do mercado financeiro. Então,
os índices de bolsas assim classificados podem apresentar-se como possíveis ativos
de risco reduzido, poderão também sofrer menos impactos em cenários de crises
financeiras, apesar de permanecerem em um mercado altamente volátil, atendendo,
dessa forma, às exigências de investidores menos propensos a assumir riscos.
TRANSCICLOPÉDIA EM DIFUSÃO DO CONHECIMENTO 555

Sugere-se, dessa forma, que investidores conservadores, ou seja, menos propensos


a riscos, sigam sugestões de investimentos com base em baixos Graus de Entrada
em períodos de longo prazo, de forma a minimizar possíveis perdas no mercado de
capitais oriundas de suas próprias oscilações e riscos de crises financeiras globalizadas.

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63. Mídia ninja

Marcílio Rocha-Ramos

A mídia “ninja” é uma produção do ativismo em vídeo-rede sem pré e pós produção
como ocorre nas tradicionais formas de reportagem das mídias mainstream. Trata-se
de redes descentralizadas identificadas com posições de “esquerda” — leia-se, aqueles
que defendem justiça social, meio ambiente, democracia real no conceito revolução-
-molecular. Seus ativistas se declaram como “alternativa” à imprensa tradicional, mas
objetivamente são correntes de disputas de opinião, intervenção e acionamentos de
grupos para lutas antifas (contra as micro formas de fascismo). A mídia “ninja” nasce
no Brasil como um grupo, mas o concebemos como uma modalidade-de, ou seja, um
movimento de ação com múltiplas entradas, múltiplas saídas, sem um centro produtor.
Como fenômeno das redes, mídia ninja acontece no ato do próprio aconte-
cimento que realiza, em ligação direta com o evento e a transmissão. O ativismo
dos “ninjas” reflete o potencial das máquinas em conexão — mesmo que pequenas
máquinas — para transmissão, link e produção de redes interativas, desbloqueando
os canais de produção de informação. Essa revolução é muito recente e reflete e expõe
e põe à prova o potencial dos seres digitais demarcando uma nova condição social,
a de todos poderem intervir, especialmente quando agem em grupos. Com efeito,
nos anos 1970, Enzensberger (1979) assinalava que a força mobilizadora é o segredo
evidente das mídias eletrônicas — o momento político decisivo, que até hoje guarda
reprimido ou amputado, a sua hora1. Para Enzensberger, as mídias assumiram uma
importância estratégica na produção de uma nova subjetividade diante da socieda-
de-capital. Hoje, reprimido, sim; amputado, não.
Até final dos anos 1980, sempre que se pensava em produções era preciso seguir
os padrões de qualidade do formato betacam — um meio analógico utilizado no
segmento profissional da televisão. Hoje, com a digitalização das mídias, o processo
da edição de fitas ficou no passado, dispensando as antigas VHS, que tinham pouca
vida útil e reduziam-se ao uso único e necessitavam de aparelhos leitores (dvcam´s)
que forçavam os editores a assistirem todo o conteúdo das fitas durante o processo
de captura para o computador ou mesa de edição. A profusão de vídeos produzidos
por amadores enuncia a todo instante que as práticas estão socializadas. Como pa-
1
Cf. ENZENSBERGER, Hans Magnus. Elementos para teoria dos meios de comunicação. Rio de
Janeiro: Tempo Brasileiro, 1979.
558 TRANSCICLOPÉDIA EM DIFUSÃO DO CONHECIMENTO

radigma dessas novas práticas se observa que duas fases do jornalismo estão sendo
suprimidas dos processos da mídia ninja:
• Pré-produção: preparação para a realização da produção: o plano de ação,
a pauta, a definição das fontes, um pré-roteiro — esses momentos senão
suprimidos, ocorrem na profusão mesmo do acontecimento.
• Pós-produção: aquele momento estético e organizacional, que caracteriza
a pós-produção se dissipa no ar... A mídia ninja não tem revisão, corte,
edição, montagem. Da rua para as redes, das redes para a rua.

O exuberante mesmo na mídia ninja é sua produção. Na mídia ninja, o ato


de gravar já elabora o próprio produto, uma vez que este está conectado com o ato
de transmitir. De fato, gravar é transmitir. O ativismo ninja atua como um ser
inter-meio — entre o social e a rede. Para exemplificar o conceito, recorremos a
uma das prisões de um ativista-ninja. Em meio aos protestos de rua que ocorreram
entre junho e julho de 2013 em todo o país, um repórter do Mídia Ninja é preso
arbitrariamente2. Tanto sua prisão quanto os protestos por sua soltura ocorrem em
transmissão no ato, ao vivo, pressionando o aparato policial do Estado com imagens
que demonstram o descontrole da Polícia diante de uma massa que ao mesmo tem-
po é mídia. Com efeito, a declaração do repórter-ninja Felipe Peçanha ao blogue o
Pragmatismo político3 após sair da prisão bem delimita esta relação:
Ao sair senti milhares de pessoas vibrarem. Ali diante da 9ª DP – e diante
de seus computadores, onde quer que estivessem. A fusão entre a rede a rua
se mostrou mais clara. Eles tentaram derrubar nossa transmissão ao deter
um, dois, três ninjas. Mas eles não entenderam que não é uma câmera, um
repórter… é uma rede. Podem até derrubar um. E assim surgem outros 1000.

A rigor a mídia ninja no âmbito deste conceito (acentrada, rizomática, aconte-


cimental) tem seu território em não-lugares, nas redes, nos movimentos, na ideia de
participação, de corrosão do stablishement. Seu tempo é o agora. Sua produção é sobre
as sangrias desatadas. Seu público é captado nas audiências ativas das contracorrentes
do mundo-capital que vibram em conexões rizomáticas. Seu adversário crítico é o
mesmo ser que impõe as modelagens e suas estruturas opressivas. Sua força está nas
misturas, nas fusões, no híbrido. Seus profissionais não são segmentados, hierarquizados,
identificados — vem da multidão e só tem alguma face na transição do acontecimento.

2
Link: < http://www.youtube.com/watch?v=SlINOilQ68o>. Acesso em 18 ago 2013.
3
Veja entrevista neste link: <http://www.pragmatismopolitico.com.br/2013/07/reporter-
-ninja-relata-detalhes-e-covardia-de-sua-prisao.html> Acesso em 11 ago 2013.
64. Mídias Sociais

Dante Augusto Galeffi


Júlia Carvalho Andrade
Maria Adelina Hayne N. Mendes

A expressão mídias sociais foi usada por Andreas Kaplan1 e Michael Haenlein2
desde 2010 para definir
[...] um grupo de aplicações para Internet construídas com base nos fundamentos
ideológicos e tecnológicos da Web 2.0, e que permitem a criação e troca de
Conteúdo Gerado pelo Utilizador (UCG). (KAPLAN; HAENLEIN, 2010).

O termo mídia social é definido como ferramenta, caracterizando sistemas


projetados como plataformas de interação social por meio do compartilhamento e
da criação colaborativa, nos mais diversos formatos, modelados por programação
computacional. Trata-se do fenômeno da web 2.0 com sua propriedade difusora
de redes virtuais/atuais de conexão ponto a ponto “sem distância”, que se espalhou
por todo o planeta em redes infinitamente derivativas, cujo limite é o próprio ser
humano com sua racionalidade de superfície e sua pulsão profunda e incontornável.
As mídias sociais são todas as redes de compartilhamento e interação mediadas
pela tecnologia computacional, a partir de programações e programas que podem
ser operados facilmente por qualquer usuário ou webnauta, para estabelecer conexão
com outros que acessam a mesma rede, o mesmo canal, o mesmo espaço virtual/
atual, interagindo e trocando fluxos de informações. Na Internet, os termos “sites
de redes sociais”, “redes sociais na internet”, “redes sociais virtuais”, “redes sociais
digitais” e “mídias digitais” são usados como sinônimos de mídias sociais.
As mídias sociais são especificamente aquelas mediadas telematicamente e que
usam desses meios para a realização de processos sociais que podem ser definidos
como redes de relações interpessoais, como também redes de relações impessoais. Para

1
Kaplan nasceu em 5 de outubro de 1977 e cresceu em Munique, na Alemanha. Antes de se juntar
ao ESCP Europe, Kaplan iniciou a sua carreira como professor de marketing na ESSEC Business
School e no Instituto de Estudos Políticos de Paris.
Consulta feita em 23/1/2018, https://pt.wikipedia.org/wiki/Andreas_Kaplan
2
Michael Haenlein é professor de marketing na escola de negócios ESCP Europe e o codiretor
científico do ESCP Europe Research Center on Big Data.
Consulta feita em 23/1/2018 http://www.escpeurope.eu/nc/faculty-research/the-escp-europefa-
culty/professor/-/biography/?tx_bookdb_pi1[ens_uid]=483
560 TRANSCICLOPÉDIA EM DIFUSÃO DO CONHECIMENTO

Oliveira (2011), as mídias sociais são estruturas sociais compostas por pessoas ou
organizações que partilham valores ou objetivos comuns, conectadas por um ou
vários tipos de relação.
Portanto, as mídias sociais podem ser definidas como amorais porque não
dependem de uma moral unitária para que existam, e sim apenas do interesse de
grupos humanos em torno de assuntos e focos específicos e que são criados quase
na velocidade da luz, fora de todo controle ou pretenso controle de um inexistente
sistema global das redes telemáticas. Sobre globalidade, globalização ou ainda poder
global e relações de poder, Bauman (2007) diz que é no espaço extraterritorial que o
poder se consolida e de maneira descontrolada, sob a égide de sociedade aberta tem
produzido efeitos não-planejados e imprevistos de uma globalização de tipologia
negativa, ou ainda globalização negativa:
[...] uma globalização seletiva do comércio e do capital, da vigilância e da in-
formação, da violência e das armas, do crime e do terrorismo; todos unânimes
em seu desdém pelo princípio da soberania territorial e em sua falta de respeito
a qualquer fronteira entre Estados. Uma sociedade “aberta” é uma sociedade
exposta aos golpes do “destino”.
Se a ideia de “sociedade aberta” era originalmente compatível com a auto-
determinação de uma sociedade livre que cultivava essa abertura, ela agora
traz à mente da maioria de nós a experiência aterrorizante de uma população
heterônoma, infeliz e vulnerável [...]. (BAUMAN, 2007, p. 13).

Na contemporaneidade, é no ciberespaço, sobretudo a partir de direcionamentos


e concretudes virtuais das mídias sociais que o poder do capital e seus efeitos, seja
pessoal ou coletivo, vem sendo articulado e potencializado.
Do ponto de vista prático, as mídias sociais são sustentadas por investimentos
econômicos interessados no desenvolvimento de novas plataformas e novos aprimo-
ramentos tecnológicos, e por isso chega ao usuário aparentemente de graça e não
requisitando credenciais específicas, exceto quando da formação de grupos fechados
que utilizam plataformas de interação social para suas práticas afetivas. Tais pla-
taformas são ditas apenas virtuais impropriamente porque também comportam a
efetivação de experiências “atuais”, quando são acessadas por qualquer usuário, de
modo semelhante a como é virtual o conteúdo de uma carta escrita que, ao ser lida,
é atualizada como experiência vivida por quem a lê. Ou, quando um livro de uma
biblioteca é atualizado em seu discurso quando alguém o lê, e volta a ser virtual
quando se deixa de lê-lo. Então, a questão das mídias sociais é extremamente simples
como dispositivo telemático em constante processo de modificação tecnológica, e ao
TRANSCICLOPÉDIA EM DIFUSÃO DO CONHECIMENTO 561

mesmo tempo extremamente complexa relativamente aos seus usos humanos e suas
consequências diretas na modulação de novas formas de comportamento societário
e de disseminação e difusão do conhecimento e da informação produzidos pelos
seres humanos.
As mídias sociais oportunizam a publicação de informações e conteúdos por
qualquer pessoa que tenha acesso à rede através da internet. Assim, possibilitaram
que os usuários não só consumissem, mas também passassem a produzir, distribuir
e compartilhar informações em escala global como nunca antes tinha acontecido.
Com o advento dos sites de redes sociais, tipo de mídia social, houve uma mudança
de paradigma – os veículos tradicionais de comunicação, com funções massivas e
centralizadoras, perderam espaço para veículos e ambientes com funções pós-massivas,
coletivas e distribuídas (AYRES, 2014), ou seja, com a produção e a distribuição
de conteúdo livres.
Aparece aí associada à chamada “cauda longa” (long tail)3 como modelo de
ordenamento e meio atrator de usuários a partir da identificação de seus nichos de
interesse e consumo, o que amplia exponencialmente a própria sustentabilidade de
baixo custo da internet, uma modalidade que antes da web se restringia a grandes
organizações econômicas. Isto para circunstanciar a complexidade do funcionamento
das mídias sociais, que também possui uma zona de invisibilidade “profunda” só
acessível aos experts programadores e hackers. Na superfície dos fluxos interativos
mediados pela tecnologia telemática, as mídias sociais se tornaram um meio pode-
roso da construção social contemporânea. Isto envolve a disseminação e difusão
de ideologias, informações e processos tecnológicos de interesse do Capitalismo
Mundial Integrado (CMI), ou/e dos grupos de poder que propagam outras formas
politicamente sustentáveis de uso dos meios telemáticos disponíveis. Tendo em vista
3
Cauda longa (do inglês long tail) é um termo utilizado na Estatística para identificar distribuições
de dados como a curva de Pareto, onde o volume de dados é classificado de forma d ­ ecrescente.
Quando comparada a uma distribuição normal, ou gaussiana, a cauda longa apresenta uma quan-
tidade muito maior de dados ao longo da cauda. O termo cauda longa ganhou popularidade
recentemente como uma maneira de descrever a estratégia de varejo de se vender também uma
grande variedade de itens onde cada um vende pequenas quantidades, ao invés de apenas os pou-
cos itens populares que vendem muito. A Cauda Longa foi popularizada por Chris Anderson em
um artigo na revista Wired em outubro de 2004, no qual ele mencionou a Amazon.com, a Apple e
o Netflix como exemplos de empresas que aplicam essa estratégia. Chris então elaborou o conceito
no seu livro A Cauda Longa – Do mercado de massa para o mercado de nicho. O conceito da Cau-
da Longa é usado em negócios online, comunicação de massa, microfinanças (Grameen Bank),
inovação orientada pelo usuário (Eric von Hippel), mecanismos de redes sociais (crowdsourcing,
peer-to-peer), modelos econômicos, e marketing viral.
562 TRANSCICLOPÉDIA EM DIFUSÃO DO CONHECIMENTO

processos de manipulação e captura de consumidores em geral, ou o pleno desen-


volvimento dos indivíduos e das sociedades humanas, as mídias sociais produzem
múltiplas atividades, integrando seu design tecnológico com a interação social. Isto
se dá por meio da construção de “discursos” que podem ser expressos hipertextual-
mente, envolvendo os meios de expressão disponíveis: palavras, textos, fotos, vídeos,
áudios e outros ainda não inventados, mas virtualmente já existentes.
As mídias sociais se constituíram em diferentes formatos: blogs, compartilhamento
de fotos, videologs, scrapbooks, e-mail, mensagens instantâneas, VoIP, crowdsourcing,
compartilhamento de músicas, redes sociais (Facebook, WhatsApp) etc. As mídias
sociais encontraram aplicações múltiplas no estabelecimento de sítios virtuais/atuais
que atendem diferentes finalidades, mas todos os seus usos implicam na interface
entre o ser humano e a máquina, o cérebro humano e o cérebro eletrônico, uma
mediação complexa e irredutível a esquemas generalistas e abstratos.
Assim, as mídias sociais se configuram ao modo da “cauda longa”, e atualmente
se encontram setorizadas por finalidades e nichos de interesses interpessoais, como são
os casos dos Blogs (definidos para publicações editoriais independentes), do ­Google
Groups (uma mídia social que fornece referências de qualquer palavra, pessoa, conceito,
objeto, redes sociais etc.), da Wikipedia (como mídia social enciclopédica geral e em
construção/atualização permanente, de modo coletivo e anônimo), as redes sociais
MySpace, Facebook, YouTube (compartilhamento de vídeos), Last.fm (comparti-
lhamento de músicas), Second Life (compartilhamento de realidade virtual), Flickr
(compartilhamento de fotos), Twitter (Microblogging), Wikis (compartilhamento
de conhecimento literário, escrito) e tantas outras modalidades.
As fontes de poder no mudo que variam de persuasão à dominação política e
operam em articulação do global com o local são organizadas em torno das redes,
sendo uma forma fundamental de exercer o poder, a exclusão dessas redes ­(CASTELLS,
2005). De acordo com a Pesquisa Brasileira de Mídia (BRASIL, 2015), que investiga
os hábitos de consumo de mídia pela população brasileira, 92% dos internautas está
conectado por meio de sites de redes sociais, sendo o mais utilizado o Facebook (83%)
e, em seguida, o Whatsapp (58%), o Youtube (17%), o Instagram (12%) e o Google+
(8%). O Twitter foi mencionado por apenas 5% dos entrevistados, apesar de ser po-
pular entre as elites políticas e formadores de opinião. O Facebook foi lançado em 4
de fevereiro de 2004 e, em 4 de outubro de 2012, atingiu a marca de um bilhão de
usuários ativos. Em média, 316.455 pessoas se cadastram por dia desde a sua criação.
Hoje se reconhece que as mídias sociais tiveram início com os fóruns de dis-
cussão e conversação e os grupos de e-mails que alcançaram o seu momento áureo e
TRANSCICLOPÉDIA EM DIFUSÃO DO CONHECIMENTO 563

que hoje são substituídos por meios mais rápidos e radiados. É também importante
destacar como muitos dos serviços oferecidos por redes sociais se encontram inte-
grados por meio de agregadores de redes sociais como Mybloglog e Plaxo, que são
os maiores agregadores de redes atualmente. Estes agregadores acabam exercendo
um papel fundamental na disseminação da informação que interessa a grupos de
“pescadores de usuários e consumidores”, que usam da informação fornecida pelas
grandes redes agregadoras para fins de promoção de seus negócios e interesses. Bor-
ges e Jambeiro (2016) destacam que os caminhos abertos pela internet não estão
isolados porque os grandes detentores comerciais da mídia convencional também
dominam a infraestrutura da internet.
Há hoje o entendimento de que as mídias sociais se diferenciam das mídias tra-
dicionais (jornais, televisão, livros impressos, rádio etc.) pelo fato de serem interativas
no sentido de serem dependentes da relação intersubjetiva entre pessoas diferentes.
Afinal, ninguém pode interagir online com nenhuma mídia “fria” justamente pela
ausência de interatividade entre pessoas distintas e distantes fisicamente. Fica evidente,
então, como não há limites de uso e expansão para as mídias sociais. Cria-se aí uma
imagem rizomática para a definição de mídia social. Os diversos instrumentos hoje
disponíveis pelas mídias sociais possibilitam uma complexificação nas interações
entre pessoas pela via de mão dupla que se estabelece nas relações online ou/e ofline,
permitindo, por exemplo, que usuários de redes possam criar “mashups”4 ligados
a “agregadores de feed”5 que avisam quando uma nova atualização se encontra
disponível e, assim, alimentam com suas postagens uma determinada mídia social.
Castells (2015) compreende que a evolução do formato e do conteúdo da co-
municação, sejam elas genéricas ou específicas, depende da evolução da sociedade
a partir de caminhos e ritmos próprios. O capital cultural do coletivo social é que
determina o nível e a complexidade a partir dos acessos e usos da internet a partir
das mídias sociais, por exemplo.
Nesta direção, e em correlação, Santaella (2003) explica que
[...] o fetiche das mídias oblitera encontra-se no fato de que quaisquer mídias,
em função dos processos de comunicação que propiciam, são inseparáveis

4
Um mashup ou mescla-musical é uma canção ou composição criada a partir da mistura de duas ou
mais canções preexistentes, normalmente pela transposição do vocal de uma canção em cima do
instrumental de outra, de forma a se combinarem.
5
Feed em inglês significa “alimentador”. Os sites que disponibilizam algum tipo de Feed, comu-
mente chamado pelo nome do formato ou por um apelido de XML, RSS, Syndication, Feeds ou
Atom, permitem ao usuário adicionar (alimentar) o link de um ou mais feeds de um ou vários sites
em um mesmo “agregador de feeds”, que é um programa que administra todos os sites agregados.
564 TRANSCICLOPÉDIA EM DIFUSÃO DO CONHECIMENTO

das formas de socialização e cultura que são capazes de criar, de modo que o
advento de cada novo meio de comunicação traz consigo um ciclo cultural que
lhe é próprio e que fica impregnado de todas as contradições que caracterizam
o modo de produção econômica e as consequentes injunções políticas em que
um tal ciclo cultural toma corpo (SANTAELLA, 2003, p. 25).

Já no sentido de seus usos e possibilidade, mídias sociais é um conceito polis-


sêmico e polilógico porque seres humanos diferentes produzem sentidos diferentes.
A amplitude de suas possibilidades se mostra evidente, por exemplo, no contexto
do marketing de internet cujo desenvolvimento se tornou um fenômeno econômico
notável e incontrolável. Assim, as mídias sociais se prestam também para a venda
e troca de produtos através dos múltiplos sites hoje existentes com fins econômicos.
Pode-se observar, também, que a mídia social se mostra como plataforma de me-
diação para atividades culturais que antes requisitavam a presença física das pessoas
e que hoje encontram espaços virtuais/atuais correspondentes: cultos religiosos,
educação a distância, relacionamentos amorosos, relações sexuais, jogos de azar,
cassinos, consultórios astrológicos e terapêuticos etc. É a sociedade se reinventando e
se transformando a partir dos seus meios: meio ambiente, meio social, meio mental,
meio telemático.
Tecnicamente falando, as mídias sociais apresentam duas características mar-
cantes. A primeira é o SMO (Social Media Optimization) (Tradução: Otimização
das Mídias Sociais), que é um sistema de referência das características a serem
aprimoradas em uma página, estratégias que um webmaster usa para a otimização
de um site que intenciona expandir-se e ganhar o maior número possível de acessos
e seguidores. Tais otimizações incluem a adição de ligações para serviços determi-
nados, como Digg, Reddit e Del.icio.us, que agilizam o salvamento dos dados de
uma página e seu compartilhamento Tornou-se, assim, também um lugar para a
fama e notoriedade de personalidades que na atual era das mídias sociais dependem
desse meio para permanecerem em destaque. A segunda característica marcante é o
Marketing de mídias sociais e que diz respeito à criação de um conteúdo considerado
importante e único, com potencial para se tornar notícia viral, um conteúdo que
pode ser memetizado (replicado) por todos os canais da web agregando fama ou
ruína ao seu “personagem social”.
Uma mídia social é, portanto, um dispositivo telemático de relacionamento
societário, o que implica também a relação entre mídias sociais diversas, sejam blogs,
fóruns, comunidades de nicho etc. Isto significa também o grande poder das mídias
sociais, um poder que vem se tornando investigado em diversas frentes, dando origem
TRANSCICLOPÉDIA EM DIFUSÃO DO CONHECIMENTO 565

a uma nova sociologia, a uma diversa economia e a uma política radicalmente outra
que se impõe para além das fronteiras de Estados e Nações de modelagem racional
moderna, abrindo-se para novas maneiras de ação política e ética. A capacidade de
influenciar pessoas e moldar decisões coletivas cruciais revela o poder efetivo das
mídias sociais na atualidade. Curioso é que não importa o tamanho da mídia social
para que ocorra a disseminação de seu poder e a sua possível difusão como meio de
promoção de políticas igualitárias, para além das polarizações comuns, que favore-
çam o pleno desenvolvimento humano de todos e não apenas de uma minoria de
privilegiados prepotentes e desumanos.
Desse modo, o poder das mídias sociais está a serviço das relações de poder
que os seres humanos praticam em seus modos de ser no mundo com os outros
e com o ambiente natural, podendo o seu uso beneficiar ou prejudicar pessoas e
corporações, promover alguns e impedir tantos outros de acesso ao seu usufruto e
benefício. Castells (2015) explica que o poder governa e os contrapoderes lutam,
resistem. Essa ambiguidade das mídias sociais é inerente ao comportamento humano
societário que, afinal, encontrou nas novas mídias um meio de multiplicação de
seus valores e perspectivas de vida societária. Uma ambiguidade, portanto, inerente
aos seres humanos em suas evoluções e involuções continuadas, sendo hoje possível
afirmar que não há diferença entre a barbárie dos tempos mais remotos da presença
humana no planeta Terra e a barbárie que hoje também se dissemina e encontra
força nas mídias sociais. Como é o caso de grupos ideológicos partidários de toda
espécie, de seitas, de gangues, de ladrões, de máfias e tantos outros que promovem
a barbárie do ser humano contra o ser humano, usando as mídias sociais disponíveis.
Devido ao seu amplo espectro de uso, uma definição sintética e geral foi dada
por Schwingel: “[...] Tudo que se refere a compartilhamento e produção coletiva
de conteúdo é mídia social”. (2012, p. 106). Logo, não há limites previsíveis para
a expansão das mídias sociais, e elas hoje são o espelho da sociedade/mundo em
construção com todas as ambiguidades e contradições dos seres humanos e suas
relações afetivas com os outros e o mundo da vida.
Os dois mapas abaixo apresentam as diferentes formas das mídias sociais e suas
sete características assinaladas por Kietzmann et al. (2011), que são a identidade, a
conversa, a presença, a reputação, os relacionamentos, o compartilhamento e os grupos.
Tais traços ou características diferenciam as diversas mídias sociais entre si, sendo
que uma mídia pode ter uma ou mais das características assinaladas, ou até mesmo
todas elas ao mesmo tempo.
566 TRANSCICLOPÉDIA EM DIFUSÃO DO CONHECIMENTO

REFERÊNCIAS
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participação política de organizações da sociedade civil. In: Artefatos digitais
para mobilização da sociedade civil: perspectivas para avanço da democracia.
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TRANSCICLOPÉDIA EM DIFUSÃO DO CONHECIMENTO 567

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2015.

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COMUNICAÇÃO SOCIAL DA PRESIDÊNCIA DA REPÚBLICA. Pesquisa
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KAPLAN, Andreas M.; HAENLEIN, Michael. Users of the world, unite! The
challenges and opportunities of social media. In: Business Horizons, Vol. 53,
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KIETZMANN, J.H.; HERMKENS, K.; MCCARTHY, I.P.; SILVESTRE, B.S.


Social media? Get serious! Understanding the functional building blocks of social
media. In: Business Horizons, Vol. 54(3), p. 241-251, 2011.

OLIVEIRA, B. Conexão em tempo real: impactos, inovações e tendências.


Revista Fonte, n. 11, v. 8, dez. 2011.

SANTAELLA, Lúcia. Da cultura das mídias à cibercultura: o advento do pós-


humano. Revista FAMECOS, Porto Alegre, n.º 22, dezembro 2003.

SCHWINGEL, Carla. Mídias Digitais. São Paulo: Paulinas, 2012.


65. Multiletr amento

Patrícia Souza Leal Pinheiro


Maria Inês Corrêa Marques

As práticas sociais modificaram-se devido às novas configurações para trans-


missão de informações e conhecimentos, determinada pelo avanço da tecnologia
e dos vários meios de comunicação, provocando um necessário repensar sobre os
conceitos de alfabetização e letramento. Conforme Vygotsky, (2004), os processos de
apropriação das experiências presentes na cultura dos indivíduos são essenciais, bem
como a importância da ação da linguagem dos processos interativos na construção
das estruturas mentais superiores. Ignorar tal assertiva na contemporaneidade, em
que as tecnologias digitais da informação e comunicação (TDIC) são parte da cultura
e do cotidiano das pessoas em qualquer idade, não é pertinente. Alfabetizar hoje
não pode limitar-se ao ensino de signos das linguagens, deve considerar o aporte da
TDIC, a convivência on-line, demandas de aprendizagens advindas do contexto
social para absorção de práticas de leitura e escrita, adequadas a este tempo.
Para se comunicar é necessário o domínio de normas ou padrões estruturais
(formais) da língua e possuir o conhecimento social, do contrário, os indivíduos
não se comunicam, conforme Bakhtin (2003), o ato comunicativo requer também
o domínio dos padrões sociais de organização dos textos. Observa-se a importância
da interação e a construção do significado, bem como o envolvimento da cultura e
interação social no desenvolvimento da consciência humana. Atualmente a vida em
sociedade requer saber interpretar, fazer análise dos textos, dos discursos que estão
sendo veiculados, difundidos, considerando que “as práticas sociais influenciam
todos os indivíduos de uma sociedade” (TFOUNI; ASSOLINI, 1999, p. 5).
Revendo os discursos e paradigmas para tratar a questão da alfabetização neste
contexto, constata-se que novos conceitos devem emergir para responder ao com-
plexo quadrante da história em que aprender, exige acompanhar a velocidade das
constantes atualizações tecnológicas. Dias (2012, p. 8) afirma que “[...] as mudanças
sociais, culturais e tecnológicas advindas da era do ciberespaço, necessitam de ci-
dadão contemporâneo, que precisa tornar-se aberto à diversidade cultural, respeitar
a pluralidade étnica e saber conviver on-line”. Para tanto, o requisito principal é a
aprendizagem de habilidades para utilização das tecnologias digitais da informação
e comunicação, das sempre atualizadas.
TRANSCICLOPÉDIA EM DIFUSÃO DO CONHECIMENTO 569

Os autores selecionados aqui, afirmam que os novos meios de comunicação


estão remodelando a forma como usamos a linguagem e o significado passa a ser
construído de maneira multimodal. Silva (2011) ressalta que nos anos 1970 o
termo multiletramento emergiu ligado à concepção Freiriana, que nunca
descolou o letramento de práticas sociais para promover a alfabetização. A
autora ressalta que “[...] a perspectiva de ‘iletrado’ como o sujeito a quem
foram negadas a justiça social e as mais altas posições nas relações de
poder, fez surgir o termo letramento com uma perspectiva social” (SILVA,
2011, p. 109).
O termo multimodalidade utilizado desde 1920, foi ampliado para o campo
linguístico nas áreas de linguagem e educação. Na Psicologia, na Linguística e na
análise do discurso o termo multimodalidade é utilizado para entender e explicar
as reações das pessoas. Para Leeuwen (2011, p. 668), multimodalidade é o “uso
integrado de diferentes recursos comunicativos, tais como linguagem [texto verbal],
imagem, sons e música em textos multimodais e eventos comunicativos”.
O multiletramento visa aliar novas práticas do letramento englobando a
multiplicidade cultural, a semiótica na constituição dos textos (ROJO, 2012). O
termo multiletramento foi cunhado por Cope e Kalantzis (2000), olhando para a
multiplicidade dos meios de comunicação e para a grande diversidade cultural e
linguística, gerada pelos espaços digitais. O conceito de multiletramento focaliza a
apropriação dos diferentes algoritmos de linguagem que produz estímulos de todos
os sentidos humanos, envolvendo corpo, mente e ambiente, relacionados às práticas
sociais, políticas, tecnológicas e culturais. Exigindo um cidadão que pense, que discute
criticamente questões sociais, culturais, tecnológicas, históricas e políticas, que se
posicione sobre os textos híbridos e a multimodalidade difundida nas redes sociais.
Para o multiletramento o conhecimento surge como elemento constitutivo
e identificador dos tempos atuais (STEHR, 2000), nos quais, o conhecimento
pedagógico, na contemporaneidade, deve apresentar natureza múltipla, inter/
transdisciplinar, situando-se entre fronteiras, com noção de linguagem múltipla,
complexa, conforme Faraco (2009). Os avanços tecnológicos favoreceram o acesso
de informações, rompimentos de barreiras geográficas e possibilitaram comunicações
por meio de mensagens, emoticons, bate papo, entre outras formas que são expres-
sas e divulgadas virtualmente). Diferentes linguagens, múltiplos modos e recursos
semióticos convergem para um novo cenário de (multi) letramentos.
Diante da multiplicidade, da multiculturalidade e multimodalidades dos textos
que circulam via internet, a praticidade e acesso aos meios tecnológicos provocaram
570 TRANSCICLOPÉDIA EM DIFUSÃO DO CONHECIMENTO

uma nova forma de alfabetização e letramento científico em que se aprende a ter


habilidades, competências, capacidades para dominar as diferentes linguagens que
envolvem contextos sociais, políticos e culturais. Oliveira e Szundy, (2014, p. 188),
afirmam que os saberes não estão mais centrados nos livros e escola, os meios au-
diovisuais, o computador, celulares entre outras inovações tecnológicas contribuem
para a construção de conhecimentos e saberes. Assumem os multiletramentos como
propôs Barbero:
uma transversalidade constituída de saberes múltiplos, desde aqueles da ordem
do lógico-simbólico, construtores de uma mentalidade em consonância com o
mundo das tecnologias informáticas e das lógicas que essas requerem, passan-
do por aqueles de natureza histórica, que possibilitam desnaturalizar o obvio,
evitando qualquer tipo de determinismo, desestabilizando o presente para criar
horizontes e projetos futuros e, finalmente, chegando aos saberes estéticos, os
saberes da sensibilidade, incluídos nas formas do expressivo, que remetem para
o corpo, para emoção, para o prazer. Esse conjunto de saberes amplia o campo
de atuação docente de forma a dar respostas às novas exigências da vida social
e à construção da cidadania. (OLIVEIRA; SZUNDY, 2014, p. 189).

Com as discussões do New London Group sobre novas práticas pedagógicas no


que se refere às mudanças sociais e culturais advindas da globalização e das tecnolo-
gias da informação e comunicação, o termo multiletramentos passa a ser empregado
com mais propriedade, entendido por habilidades que se diferenciam da leitura e
escrita, pois não se limitam à alfabetização. Diferentes linguagens, múltiplos modos
e recursos semióticos confluem para um novo cenário de (multi) letramentos, que
se iniciam no Brasil com intuito de ressignificar as aulas de línguas, aproximando
a escola, à vida e a língua, à prática social (SOARES, 2000).
De acordo com as Diretrizes Curriculares da Educação Básica (BRASIL, 2008,
p.71), “no processo de leitura também é preciso considerar as linguagens não-ver-
bais. A leitura de imagens deve contemplar os multiletramentos mencionados nestas
Diretrizes”. As principais estratégias para os multiletramentos e materiais possíveis
de serem utilizados, destacam-se a internet e sua enorme gama de possibilidades
textuais, multimodais ou não, incluindo hipertextos (PINHEIRO, 2020).
Rojo e Moura (2012) afirmam que a juventude há muito tempo utilizava as
ferramentas de acesso à comunicação, informação e de agência social. Ressaltam
que o termo de multiletramentos foi pensado para subsidiar os “[...] dois ‘multi’ — a
multiculturalidade característica das sociedades globalizadas e a multimodalidade
— dos textos por dos quais a multiculturalidade se comunica e informa” (ROJO;
MOURA, 2012, p. 13). Os autores apresentam as características dos multiletra-
TRANSCICLOPÉDIA EM DIFUSÃO DO CONHECIMENTO 571

mentos que consideram essenciais para possibilitar o leitor/produtor interação com


os interlocutores que são (interface, ferramentas, outros usuários, textos/discursos),
podendo utilizar a argumentação e recursos que permitam o aprendizado de novas
linguagens e uso de ferramentas, sendo criadores de sentidos, no qual a escola precisa
considerar o ensino das linguagens e tecnologias e discuta a prática de multiletramentos.
(a) Eles são interativos, mais que isso, colaborativos; (b) eles fraturam e
transgridem as relações de poder estabelecidas, em especial as relações de pro-
priedade (das máquinas, das ferramentas, das ideias, dos textos) [...]; (c) eles
são híbridos, fronteiriços, mestiços (de linguagens, modos, mídias e culturas)
(ROJO; MOURA, 2012, p. 23).

Ao tratar das práticas pedagógicas insere-se a necessidade de abordar os gêneros


textuais que nos permitem viabilizar os discursos da esfera social e, assim, viven-
ciarmos os textos em diferentes esferas de comunicação e que circulam em nosso
cotidiano e são considerados novos gêneros do discurso, tais como blog, e-mail, chat,
Skype, homepages, entre outras multiplicidades de textos encontrados na web. Isso
exige do leitor a aquisição de novas habilidades na leitura e escrita de textos que são
organizados em diferentes modalidades de linguagem, verbal escrita, verbal oral, não
verbal, imagética e sonora entre outras (MELO; OLIVEIRA, VALEZI, 2012 p. 147).
Segundo Sousa (2011, p. 140) somos agentes de mudanças sociais, a língua não
apenas comunica, ela permite questionar criticamente, ela também “inclui, exclui,
transmite ideologias, liberta, aprisiona, conscientiza, aliena”,. O multiletramento
possibilita reflexão, fazer a crítica da realidade, do mundo global compreendendo
que a língua, quando ensinada e interpretada de modo descontextualizado social-
mente é incompleta. As práticas de multiletramento destacam o “reconhecimento
da diversidade étnica, linguística, identitária e cultural, assim como das múltiplas
maneiras de se (re)construir sentidos pelas igualmente diversas formas e meios de
comunicação” (ROCHA, 2010, p. 67).
A internet apresenta funções como qualquer outro tipo de texto e se constitui
formas de linguagem que é capaz de imprimir as intenções dos interlocutores que
estão interagindo como emoções, sentimentos, informações, desejos entre outros
(SILVA; CAMPOS, 2010). Para isso, é necessário estimular o trabalho colaborativo
utilizando formas de motivação que facilitem o processo de aprendizagem, favore-
cendo a construção do conhecimento do aluno coletivamente com a participação
e cooperação de todos possibilitando resolução de problemas, constantes desafios,
atividades em grupo e criação de ambientes interativos. Uma das tarefas do mul-
tiletramento, cujas práticas se voltam para interpretação, compreensão, produção,
572 TRANSCICLOPÉDIA EM DIFUSÃO DO CONHECIMENTO

argumentação que alternam com os diferentes tipos de linguagem, seja ela verbal,
não verbal, que comuniquem com a multiculturalidade da sociedade globalizada.
As práticas pedagógicas envolvem a estimulação de ideias, análise de fatos e
discursos, criticidade, diálogos, para que oportunizem a construção e geração de
conhecimentos e aprendizagem, com a intencionalidade de se pensar em ações com-
petentes e comprometidas com determinadas práticas sociais e diálogos com o outro.
A base das atividades do multiletramento são as interações entre sujeito e objeto
(mundo), as quais devem acontecer de acordo com as vivências e conhecimento de
mundo.A reorganização das funções psicológicas, no que se refere a atenção, memória
e imaginação, ocorrerá devido a aquisição da linguagem, que dará sustentabilidade
ao pensamento (PINHEIRO, 2020).
As atividades de multiletramento devem ser aplicadas para indicar não apenas
a diversidade de prática de letramento, mas a multiplicidade cultural das populações,
produção e circulação dos textos, além de apontar para a multiplicidade semiótica de
constituição dos textos, a diversidade de linguagens que os constituem (ROJO, 2012).
O atual documento norteador curricular nacional denominado Base Nacional
Comum Curricular, que alterou a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional
(BRASIL,1996), foi aprovado em dezembro de 2017, pela Resolução CNE/CP nº
2, e determina o multiletramento como uma importante abordagem para o ensino
na área de Linguagens no qual prepara o educando para a vida social e profissional
para exercer plenamente a cidadania e ampliação de conhecimento e utilização das
novas tecnologias no aprendizado corroborando com os ideais democráticos e de
inclusão defendidos pelo documento (PINHEIRO, 2020).
O multiletramento produz nas pessoas “[...] diferentes efeitos cognitivos,
culturais e sociais em função de variadas e múltiplas formas de interação com o
mundo - não só a palavra escrita, mas também a comunicação visual, auditiva,
espacial” (SOARES, 2000, p.105). A escola deve proporcionar métodos variados
de leitura e de escrita, levando em conta a multiplicidade linguística e cultural da
sociedade e as multimodalidades (linguísticas, visual, gestual, espacial e de áudio),
considerando as significações e os contextos, repensando inclusive o diálogo com a
linguagem tecnológica. Cope e Kalantzis (2006) afirmam que a lógica dos multi-
letramentos é o reconhecimento de que a produção de significados é um processo
ativo e transformacional. A pedagogia do multiletramento destaca o “reconhecimento
da diversidade étnica, linguística, identitária e cultural, assim como das múltiplas
maneiras de se (re) construir sentidos pelas diversas formas e meios de comunicação”
(ROCHA, 2010, p. 67).
TRANSCICLOPÉDIA EM DIFUSÃO DO CONHECIMENTO 573

O multiletramento amplia o campo de visão, extrapolam o letramento, pro-


põem repensar a prática e dialogam com a cultura midiática. Ser multiletrado é
compreender como funcionam os textos e como se pode participar ativamente da
negociação de seus significados com sucesso e erros (KALANTZIS; COPE, 2000).
O multiletramento apresenta a pluralidade de culturas e semioses que estão presentes
na sociedade e rompe dicotomias entre o letrado/iletrado, popular/erudito, culto/
inculto entre outros que consideram a diversidade de linguagem e multimodalidades
sensíveis em cada contexto sociocultural, que desafia a estreita noção de texto como
língua escrita ou como imagem (PINHEIRO, 2020).
Por meio do multiletramento a aprendizagem estabelece relações nos níveis po-
líticos, educacionais, sociais, culturais e econômicos, no qual essa construção coletiva
enfatiza como o saber de cada pessoa interage com outros saberes, estabelecendo teias
de relações que são transformadas em redes, rompendo o paradigma da construção
do conhecimento de forma única. Na perspectiva dos multiletramentos o ato de ler
envolve diferentes modalidades da linguagem que vai além da escrita, a exemplo, as
linguagens híbridas que são desafios para os leitores. Essa nova pedagogia educacional
do multiletramento, no qual a tecnologia da informação e comunicação está presente
no cotidiano, defende a teoria da implementação de todas as mídias, incluindo as
digitais, na realidade escolar transformando as práticas de ensinar e aprender, no
qual as interações sociais e a linguagem passam a se reconfigurar digitalmente ao
transformar os modos de assimilação, apropriação, internalização, aprendizagem e
difusão do conhecimento.

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66. Multirreferencialidade

Homero Gomes de Andrade

A ÁRVORE GENEALÓGICA DA MULTIPLICIDADE DE OLHARES


As ciências, seus conceitos, técnicas de pesquisa, metodologias e construções
epistemológicas desde o Renascimento (século XV-XVII) aos dias atuais passam por
constantes transformações e quebras de paradigmas.
No século XIX e com fortes influências na primeira metade do século XX,
consolida-se a ideia de especialização, fragmentação e isolamento do conhecimento
em áreas e separações entra as ciências com o objetivo de dividir para conhecer
isoladamente as partes e entender o todo.
É inegável que graças às divisões entre conhecimento, disciplinas e ciências
obtivemos descobertas científicas e tecnológicas, e interpretações de fenômenos
sociais, culturais e religiosos nas áreas antropológicas e sociológicas que nos servem
de referências para a contemporaneidade.
É necessário destacar que a disciplina, os isolamentos, fragmentações e especia-
lizações nos campos científicos foram necessários e importantes para a construção do
conhecimento e hoje atendem a conservação do que foi produzido, servindo como
uma base para darmos um passo à frente e religar esse conhecimento, dando-lhes
sentido de complexidade e aprofundamento multirreferencial.
Segundo Morin (2013, p. 15): “[...] a conservação é de importância capital e
significa salvaguardar a preservação. Só se pode preparar um futuro quando se salva
um passado”. Porém, com as transformações de ordem global, maior velocidade ao
acesso à informação, novas reorganizações de ordem política, econômica e social,
avanços tecnológicos e a mudança da mentalidade (PETER BURKE, 2013), come-
çou a se exigir que o conhecimento — sua produção científica e difusão — também
passassem por transformações, levando-se que as fragmentações e isolamentos de
disciplinas e áreas do conhecimento não atendiam os propósitos do pensamento
complexo (MORIN, 2000), que objetiva conhecer de forma múltipla, envolvendo
várias áreas do conhecimento e disciplinas.
O conhecimento como um instrumento de poder, mesmo que seja um conhe-
cimento especializado e isolado, ainda exerce muita força e exercício nas sociedades.
O olhar complexo se torna uma necessidade para ampliar o conhecimento, e por que
TRANSCICLOPÉDIA EM DIFUSÃO DO CONHECIMENTO 579

não, pela sua forma ser mais abrangente, também agregar conhecimentos do senso
comum que era desprezados ou pouco valorizados em séculos passados.
Para pensar em relação aos conceitos que cercam a multirreferencialidade
primeiro é preciso apontar o papel da disciplina. Enquanto conceito, disciplina tem
a sua conotação estabelecida no século XIX na formação das universidades moder-
nas, tais como as conhecemos hoje. Disciplina está associada a conceitos, objetos,
matérias particulares de um ramo do conhecimento científico. Há ainda o uso de
disciplina como sinônimo de ciência, apesar do pouco uso. “A disciplina é, portanto,
uma categoria organizadora dentro do conhecimento científico”. (BURNHAM/
FAGUNDES, 2001, p. 41), e assim foi definido pelas autoras:
A disciplina tornou-se equivalente a conjunto de enunciados que tomam
emprestados de modelos científicos sua organização, que tendem à coerência
e à demonstratividade, que são recebidos, institucionalizados, transmitidos e
às vezes ensinamos como ciência. (BURNHAM/FAGUNDES, 2001, p.41)

É coerente destacar que os caminhos da interdisciplinaridade, transdisciplina-


ridade e multidisciplinaridade não se mostram como oposição à disciplina, afinal,
na raiz epistemológica das palavras a “disciplina” está presente. Então, os conceitos
inter-, trans- e multi- disciplinares agregam a ideia de sair do isolamento, seja den-
tro de um mesmo ramo do conhecimento, seja em ciências distintas, disciplinas
distintas e passar a admitir o conhecimento ampliado e complexo, que nos permita
aprofundar o entendimento de objetos de estudos.
A formação inter-, multi- e trans- disciplinar atendem a demandas da contem-
poraneidade em discutir e analisar mudanças e tendências nos campos da economia,
política, do fazer ciência, cultura, religião, tecnologia e educação, mostrando a
pluralidade de contextos históricos e suas inserções nas sociedades.
A multirreferencialidade tende a absorver os conceitos inter-, multi- e trans-
disciplinar. Segundo Burnhan e Fagundes (2001), a multirreferencialidade “[...] pode
ser entendida como uma pluralidade de olhares dirigidos a uma realidade e uma
pluralidade de linguagens para traduzir esta mesma realidade e os olhares dirigidos
a ela”. (2001, p. 43). As articulações de saberes — teóricos e práticos —, contextos
históricos da produção do conhecimento, resoluções de problemas e/ou situações,
análises de comportamentos de grupos sociais etc. são elementos que compõem o
referencial da multirreferencialidade que, por sua vez, agrega os três conceitos aqui
abordados.
Não há formação de verdades ou destruição de saber para edificar um novo
saber, a proposta inter-, multi- e trans- disciplinar dentro do contexto multirreferencial
580 TRANSCICLOPÉDIA EM DIFUSÃO DO CONHECIMENTO

é de religar (MORIN, 2013) o saber e o conhecimento, tirando do isolamento que


também nos afeta. O que marca o método multirreferencial é o cuidado em ligar
elementos e conceitos diversos para maior complexidade de entendimento, mas, ao
mesmo tempo, evidenciar que tais elementos, objetos de estudos e conceitos não são
conflitantes, eles são dialogáveis, mesmo que sejam opostos, para que possamos ver
nas diferenças e similaridades do pensar e na construção do conhecimento, assim
descrito em sua forma de trabalho por Burnham e Fagundes (2001, p.45):
Na perspectiva multirreferencial, portanto, aborda-se o objeto de maneira
dialética, aceitando e até reivindicando uma certa lógica do antagonismo.
Mas isto não deve ser entendido como um “vale tudo” teórico-metodológico.
Esta perspectiva atrela-se, antes de mais nada, ao balizamento preliminar das
implicações que ligam o pesquisador, individual ou coletivo, a seu campo e
a seu objeto.

Desse modo, dentro dessa perspectiva de não atestar o “vale-tudo” teóri-


co-metodológico é necessário diferenciar os elementos que podem constituir a
multirreferencialidade.

INTERDISCIPLINARIDADE

Cinco princípios subsidiam uma prática docente interdisciplinar: humildade,


coerência, espera, respeito e desapego
(Ivani Fazenda)

A proposta interdisciplinar, seja para educação ou pesquisa, dever ser norteada


pelos princípios acima epigrafados. É necessário humildade em percebermos que
em nossa formação, tanto no ensino geral (básico, fundamental e médio) quanto
na graduação, não há propostas interdisciplinares consolidadas. A nossa construção
interdisciplinar carece de coerência, pois “[...] com o primeiro passo dado é preciso
ir além da nossa formação acadêmica, seja em que área for, e despir de preconceitos
e determinismos para ouvir e contribuir coletivamente” (ANDRADE, 2017, p. 9).
Para a área do ensino, notadamente, há grandes contribuições da interdiscipli-
naridade, para que docentes possam rever suas práticas isoladas de ensino e a visão
estreita de estar ligado apenas em suas disciplinas. A interdisciplinaridade também nos
provoca a reflexão do papel do professor e da educação, desde a formação docente até
o compartilhamento de saber, conforme nos aponta Dante A. Galeffi (2017, p. 106):
TRANSCICLOPÉDIA EM DIFUSÃO DO CONHECIMENTO 581

O fato é que o educador aulista não será valorizado pela sociedade do conheci-
mento com o que oferece como competência. Mas para que algo assim se faça
outra formação do educador se faz imperante. Também porque a sociedade
só muda através da educação, o educador somente será valorizado de forma
justa pela sociedade quando realizar um papel relevante na formação humana
descolada dos valores e regulações dos séculos passados.

A partir do objetivo de religar conhecimento, sair da postura isolada de disci-


plina, com a humildade em reconhecer que deve haver compartilhamento de saber
entre docentes de todas as áreas, só assim será possível discutir-se problemas micro
e macro que afetam a atividade docente.
Na propositura interdisciplinar se faz relevante a espera, uma vez que traba-
lhamos com coletividade de conhecimentos e pessoas envolvidas, e com isso há
que ter respeito para os ritmos de aprendizado e de conhecimentos prévios a serem
compartilhados. E se faz justo o desapego, as nossas posturas dogmáticas de entender,
fazer e difundir ciência e conhecimento, o que assim definiu Ivani Fazenda (2011, p.
32): “[...] na vida intelectual é indispensável que façamos compromissos com nossa
ignorância, com nossos limites de conhecimento e com os quadros mesquinhos e
estreitos de nossa especialização”.
A interdisciplinaridade tem a preocupação com o saber, sem generalizações ou
sem verdades totalizantes. É fazer dialogar duas ou mais disciplinas em níveis
de igualdade, e sendo que — esta integração pode ir da simples comunicação
das ideias até a integração mútua dos conceitos, da epistemologia, da termi-
nologia, da metodologia dos procedimentos, dos dados e da organização da
pesquisa‖ (JAPIASSU; MARCONTES, 2011, p. 105).

Como elemento da multirreferencialidade, a interdisciplinaridade se apresenta


como uma primeira possibilidade de pensarmos em múltiplos olhares, conjugar
disciplinas, compartilhar saberes e produção de novas análises e interpretações nos
campos acadêmicos e de ensino em geral.

TRANSDISCIPLINARIDADE

A escola instituída também é um meme, mas que no caso replica o que já se


encontra desafinado em relação ao tempo presente, produzindo um efeito de
desperdício ontológico generalizado e até mesmo criminoso. (Dante Galeffi)

Assim definimos o que seria a TRANSDISCIPLIRIDADE como um passo


além do proposito de religar o conhecimento, para além da interdisciplinaridade.
582 TRANSCICLOPÉDIA EM DIFUSÃO DO CONHECIMENTO

Buscar a afinação com o tempo presente, conforme é citado em oposto a epígrafe


inicial. Que afinação seria essa, e como ela pode ser possível? São reflexões trans-
disciplinares que aqui estabelecemos.
Primeiro, é preciso rever o que está equivocado na educação, como plane-
jamento, isolamento disciplinar, condições de livros didáticos conservadores e as
demais questões tradicionais ao ensino. Pensar as relações sociais, culturais, políticas,
religiosas — espirituais, ecológicas, educacionais, científicas e econômicas é o passo
além que constitui o desafio Transdisciplinar.
Para Morin (2000), a transdisciplinaridade é vista como reorganização mental
e prática de sistemas cognitivos que transcendem as disciplinas. A transdisciplinari-
dade tem por forma de ação a prática de que o conhecimento (ciência — disciplina)
deve ser integrado entre aspectos de ordem acadêmica e aspectos de ordem social, e
assim será possível uma percepção complexa.
Para exemplificar, as problemáticas referentes ao meio ambiente, ecologia e
desenvolvimento sustentável estão em foco, seja nos meios sociais ou nos círculos
educacionais. Se tratarmos dos temas como formas tradicionais, as análises estarão
reduzidas ao isolamento de saberes, disciplinas e que não dialogam.
Se tratarmos pela interdisciplinaridade, teremos um avanço, pois poderemos
tratar os temas através da história, da geografia, da sociologia e da antropologia. Se
constitui como um salto, mas ainda é possível pensar mais complexo. Se pensarmos
na complexidade do pensamento transdisciplinar, então podemos agir em relação às
temáticas ecológicas, ambientais e de desenvolvimento sustentável vendo elementos
científicos, disciplinares, sociais, culturais, religiosos, políticos e econômicos atin-
gindo a complexidade dos problemas que nos envolvem, discutindo as relações de
poder que cercam o conhecimento e vendo as estruturas econômicas determinando
as relações de poder — conhecer.
Podemos também pensar as relações tradicionais e religiosas de grupos
sociais com a natureza a oportunizar voz histórica aos que são historicamente
silenciados por relações políticas opressoras, conforme nos descreve Burnham
& Fagundes (2001, p. 42): “Nunca foi tão grande a discrepância entre a pos-
sibilidade técnica de uma sociedade melhor, mais justa e mais solidária e a sua
impossibilidade política”.
A transdisciplinaridade tem por objeto principal não dar uma receita meto-
dológica pronta, mas de reflexão ao redor dos elementos que nos cercam, ver que
por detrás do ambiente escolar, há relações familiares, relações de poder, relações
econômicas, relações religiosas e obviamente relações educacionais.
TRANSCICLOPÉDIA EM DIFUSÃO DO CONHECIMENTO 583

MULTIDISCIPLINARIDADE

Eu vezes eu, espalhados em mim, eu vezes eu, mínimo – múltiplo – comum.


Ele, ela, eu e nos!

(Titãs: Álbum Tudo ao mesmo tempo agora)

Da epígrafe acima cabe explicar o compositor e o título do álbum. Lançado em


1991, a banda brasileira Titãs optou por criar um álbum conceitual chamado Tudo
ao mesmo tempo agora, que seria assinada todas as músicas por todos os integrantes
e, assim, a assinatura conjunta teria apenas o nome da banda, Titãs. A produção e
arranjos do álbum também foram assinados de forma coletiva, sem identificação
de algum membro ou produtor.
O desafio da multidisciplinaridade consiste em sairmos das nossas zonas de
conforto de formação, não significa assumir a formação do outro, não exercer algo
para aquilo que não tivemos a formação específica, mas estar livres para ouvir, con-
tribuir e construir reflexões, análises e resoluções que envolvam muitas disciplinas,
ciências e áreas do conhecimento.
Do ponto de vista da Linguística, mais especificamente do processo de for-
mação das palavras, o prefixo “mult” ‘se configura como um afixo, do tipo prefixo,
ou seja, grupo de letras acrescentado ao começo da raiz de uma palavra para formar
novas palavras. Nesse entendimento, a multidisciplinaridade é a junção de múltiplas
disciplinas e suas áreas de conhecimento científico que realizam junções de meto-
dologias, conhecimentos, conceitos, práticas, técnicas e saberes.
Segundo Bicalho; Oliveira (2001, p. 7):
A multidisciplinaridade corresponde à busca da integração de conhecimentos
por meio do estudo de um objeto de uma mesma e única disciplina ou por
várias delas ao mesmo tempo. Este tipo de pesquisa traz contribuições signi-
ficativas a uma disciplina específica, porque ultrapassa as disciplinas, mas sua
finalidade continua inscrita na estrutura da pesquisa disciplinar.

A busca por integrar conhecimentos que nos auxiliem em nossas áreas especí-
ficas é uma forma de abordagem multidisciplinar. Por exemplo, se formos estudar
na História algo ligado ao tema da Revolução Industrial, podemos buscar muitas
explicações e conceitos de outras disciplinas e ciências, como, por exemplo, a ma-
temática, a física e a química. Aparentemente, essas disciplinas, ligadas à área de
ciências exatas, ao olhar desatento ou isolado pelo comodismo tradicional pouco
584 TRANSCICLOPÉDIA EM DIFUSÃO DO CONHECIMENTO

dialogariam com a História, porém, se pensarmos multidisciplinarmente as contri-


buições são possíveis.
Referencial de padrões de pesos e medidas, evoluções e transformações técnicas
de produção de bens, descoberta de novos elementos para baratear ou criar novos
produtos, todos esses elementos estão presentes na Revolução Industrial e causaram
impactos sociais, econômicos e políticos que podem ser estudados pela História.
A multidisciplinaridade, como uma junção de disciplinas, tendo como produto
final o conhecimento em suas formas complexas e isso nos permitirá, enquanto
professores (as) sair da condição de reprodutor de conhecimento para a de produtor
de conhecimento (GALEFFI, 2017).

CONSIDERAÇÕES FINAIS
O conhecimento como instrumento de poder e as nuances que envolvem o
ato de produzir, difundir e discutir o conhecimento, têm, infelizmente, hierarquias
e interesses escusos. Como romper essas amarras e como socializar, produzir, com-
partilhar e difundir conhecimento em nosso mundo globalizado? E como tornar
a educação atrativa e significativa é o maior desafio para o século XXI?
Sair da postura de professor aulista (GALEFFI, 2017) saindo do isolamento
acadêmico disciplinar é o passo fundamental. No mundo moderno é preciso religar
saberes, práticas, ciências e conhecimentos para avançarmos na complexidade de
entendimento do mundo que nos rodeia.
Dentro da multirreferencialidade, inter-, multi- e trans- disciplinaridade são
possibilidades práticas, de método e metodologia que nos permite religar pessoas
com objetivo comum de compartilhar, produzir e difundir saberes, sempre tendo
em mente que pode haver hierarquização, mas não opressão de formas de pensar
de cada indvíduo.

REFERÊNCIAS
ANDRADE, Homero Gomes de. A interdisciplinaridade: reflexões sobre a
prática educacional. In: Revista do VI Simpósio de Educação Química de
Sergipe (VI SEQSE), Aracaju-SE, Faculdade PIO X, 2017 (p. 9-21)

BICALHO, Lucinéia Maria; OLIVEIRA, Maria. Aspectos conceituais da


multidisciplinaridade e da interdisciplinaridade e a pesquisa da ciência da
informação. In: Revista Eletrônica de Biblioteconomia e Ciências da
Informação. V.16, n.32, p. 1-26, 2011.
TRANSCICLOPÉDIA EM DIFUSÃO DO CONHECIMENTO 585

BURNHAM, Teresinha Fróes; FAGUNDES, Norma Carapiá.


Transdisciplinaridade, Multirreferencialidade e Currículo. In: Revista da
FACED, n. 5, 2001.

FAZENDA, Ivani. Integração e interdisciplinaridade no ensino brasileiro.


São Paulo: Loyola, 2011.

GALEFFI, Dante Augusto. Didática Filosófica Mínima: ética do fazer-aprender


a pensar de modo próprio e apropriado como educar transdisciplinar. Salvador:
Quarteto, 2017.

JAPIASSU, Hilton, MARCONDES, Danilo. Dicionário Básico de Filosofia. 3.


ed., Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2011.

MORIN, Edgar; LE MOIGNE, Jean-Louis. A inteligência da complexidade.


2.ed. São Paulo: Peirópolis, 2000.

MORIN, Edgar. Educação e complexidade: os sete saberes e outros ensaios. 6.


ed., São Paulo: Cortez, 2013.

ÁLBUM: Tudo ao mesmo tempo agora! TITÃS, gravadora WEA, 1991.


N
67.Níveis de Realidade e as três Éticas
(segundo Stéphane Lupasco)

Dante Augusto Galeffi

O conceito de “Níveis de Realidade” remete à discussão da ciência em torno


de seus fundamentos e princípios. De modo geral, só na modernidade se concebeu
uma Realidade definida por um único nível de efetuação: o macrofísico. Basta
compreender os efeitos do florescimento da racionalidade científica com seu poder
indiscutível de convencimento e sedução para se ter presente a gênese da racionali-
dade monológica moderna. Não é necessário recorrer a nenhum grande tratado de
­História da Ciência para se compreender os motivos que fazem do conhecimento
científico o mais poderoso no rol dos outros modos de conhecimento: o artístico, o
filosófico e o místico. A hegemonia do conhecimento científico na modernidade se
deve primacialmente à sua capacidade de controle e previsibilidade das ocorrências
macrofísicas e extensivamente àquelas microfísicas.
Entretanto, a certeza e o controle calculativo da ciência monológica e redu-
cionista moderna foram definitivamente abalados pelo poder criador de uma nova
física dos quanta, uma física que, além da criação da Relatividade Geral, inaugura
a Era da Incerteza em seu próprio plano de referência: a matéria-energia do átomo e
suas partículas. Para se delimitar com mais rigor o conceito de Níveis de Realidade,
é oportuno rever o caminho histórico de sua invenção, o que se pode fazer recor-
rendo a autores consagrados, como é o caso de Basarab Nicolescu (1999), em sua
obra fulcral O Manifesto da Transdisciplinaridade. A escolha se deve ao fato de ser
uma obra de difusão de conhecimento que visa alcançar o maior número possível de
pessoas na apresentação de seus novos argumentos para a concepção de uma nova
ciência transdisciplinar, como escreveu Nicolescu, ao tratar do tema da grandeza e
decadência do cientificismo:
A ciência moderna nasceu de uma ruptura brutal em relação à antiga visão de
mundo. Ela está fundamentada numa ideia, surpreendente e revolucionária para
a época, de uma separação total entre o indivíduo conhecedor e a Realidade,
tida como completamente independente do indivíduo que a observa. Mas, ao
mesmo tempo, a ciência moderna estabelecia três postulados fundamentais,
que prolongavam, a um grau supremo, no plano da razão, a busca de leis e
da ordem:
590 TRANSCICLOPÉDIA EM DIFUSÃO DO CONHECIMENTO

1. A existência de leis universais, de caráter matemático.


2. A descoberta destas leis pela experiência científica.
3. A reprodutibilidade perfeita dos dados da experiência.
Uma linguagem artificial, diferente da linguagem da tribo — as matemáticas
— era assim elevada, por Galileu, ao nível de linguagem comum entre Deus
e os homens.
Os sucessos extraordinários da física clássica, de Galileu, Kepler e Newton
até Einstein, confirmam a justeza destes três postulados. Ao mesmo tempo
eles contribuíram para a instauração de um paradigma da simplicidade, que
se tornou predominante na entrada do século XIX. A física clássica conse-
guiu construir, ao longo de dois séculos, uma visão do mundo apaziguante e
otimista, pronta a colher, no plano individual e social, o surgimento da ideia
de progresso (1999, p. 1415).

Como se pode atestar, a física clássica tem o seu plano de referência na ideia de
continuidade, segundo a evidência fornecida pelos cinco sentidos corporais. Nesse plano
de referência, não há saltos entre pontos distintos e, temporalmente, para se ir de um
ponto a outro, é preciso passar por todos os pontos que separam um ponto inicial e
outro final determinado no espaço finito. Por meio do cálculo infinitesimal de Leibniz
e Newton se alcançou com precisão a continuidade do espaço-tempo, imaginando-se
que ele seria o aparelho para a medição de todo o universo extensivo, o único que se
poderia dizer Real. Assim, a continuidade da matéria-energia se liga a um conceito
crucial da física clássica: a causalidade local. Logo, todo fenômeno físico teria em si
um ordenamento contínuo de causas e efeitos, ordenamento necessariamente local.
Segundo Nicolescu,
A causalidade mais rica dos antigos, como por exemplo a de Aristóteles,
era reduzida a um só destes aspectos: a causalidade local. Uma causalidade
formal ou uma causalidade final já não tinham seu lugar na física clássica.
As consequências culturais e sociais de uma tal amputação, justificada pelo
sucesso da física clássica, são incalculáveis. Mesmo hoje aqueles muitos que
não têm agudos conhecimentos de filosofia, consideram como uma evidência
indiscutível a equivalência entre “a causalidade” e “a causalidade local”, a tal
ponto que o adjetivo “local” é, na maioria dos casos, omitido.
O conceito de determinismo podia realizar assim sua entrada triunfante na
história das ideias [...]
É evidente que a simplicidade e a beleza estética de tais conceitos — ­continuidade,
causalidade local, determinismo — tão operativos na Natureza, tenham fas-
cinado os maiores espíritos destes quatro últimos séculos, incluindo o nosso
(sec. XX). (1999, p. 15-16).
TRANSCICLOPÉDIA EM DIFUSÃO DO CONHECIMENTO 591

Eis que surge a ideologia científica com seu complexo de reducionismo e supe-
rioridade axiológica. A ideologia científica se fez a vanguarda da evolução racional
humana pelo discurso filosófico da modernidade e tomou o lugar da mais elevada
forma de conhecimento absoluto objetivo. A produção de mais uma ilusão de sentido,
inevitável no florescimento espiritual de humanos em busca de certezas e controles
totais. Mas o humano e a sua racionalidade realizam diferentes níveis de percepção
e experiência de florescimento material-vital-mental, muito além da racionalidade
científica reducionista: apenas um único nível de Realidade.
Com palavras de Nicolescu,
Se o universo não passasse de uma máquina perfeita regulada e perfeitamente
previsível, Deus poderia ser relegado à condição de simples hipótese, não neces-
sária para explicar o funcionamento do Universo. O Universo foi subitamente
dessacralizado e sua transcendência jogada nas trevas do irracionalismo e da
superstição (1999, p. 17).

Tudo nessa perspectiva científica revela alto grau de falocentrismo, machismo e


relações sexuais de domínio do alfa macho. Por que se negligenciou a feminilidade do
mundo? Por que a ciência moderna é monológica e machista? Fato é que se trata de
uma concepção machista da Natureza física. É importante reconhecer esse fato porque
ainda prevalece o critério monológico e machista na concepção de ciência: ciências
duras e ciências débeis. Tal nomenclatura desconsidera a sensibilidade atribuindo a
esta uma instância feminina, como se fosse possível definir absolutamente o que é
do masculino e o que é do feminino, Para Nicolescu (1999), na euforia cientificista
moderna, era natural postular, como o fizeram Marx e Engels, o isomorfismo entre
as leis econômicas, sociais, históricas e as leis da Natureza. Assim, as ideias de Marx
correspondem aos conceitos da física clássica, como continuidade, causalidade local,
determinismo, objetividade.
São consideráveis para Nicolescu as consequências do cientificismo monológico
no plano da vida espiritual. Como ele diz:
Um conhecimento digno deste nome só pode ser científico, objetivo. A única
Realidade digna deste nome era, naturalmente, a Realidade objetiva, regida
por leis objetivas. Todo conhecimento, além do científico, foi afastado para o
inferno da subjetividade, tolerado no máximo como ornamento, ou rejeitado
com desprezo como fantasma, ilusão, regressão, produto da imaginação. A
própria palavra “espiritualidade” tornou-se suspeita e seu uso foi praticamente
abandonado.
A objetividade, instituída como critério supremo de verdade, teve uma
­consequência inevitável: a transformação do sujeito em objeto. A morte do
592 TRANSCICLOPÉDIA EM DIFUSÃO DO CONHECIMENTO

homem, que anuncia tantas outras mortes, é o preço a pagar por um conhe-
cimento objetivo. O ser humano torna-se objeto: objeto da exploração do
homem pelo homem, objeto de experiências de ideologias que se anunciam
científicas, objeto de estudos científicos para ser dissecado, formalizado e
manipulado. O homemDeus é um homem objeto cuja única saída é se au-
todestruir (1999, p. 18).

Para Nicolescu, além da imensa febre de esperança que provocou, o cientifi-


cismo produziu uma ideia persistente e tenaz: a da existência de um único nível de
Realidade, em que a única verticalidade concebível é aquela de uma pessoa ereta em
uma Terra submetida e regida pela lei da gravidade universal.
A formação do conceito de Níveis de Realidade deve muito a Max Planck ao
descobrir que a energia tem uma estrutura discreta, descontínua. Trata-se do que
foi chamado de quantum de Planck, dando seu nome à mecânica quântica, que
revolucionará toda a física e mudará de modo profundo a visão de mundo humano.
Nicolescu refaz de modo sintético os passos dessa nova descoberta-invenção.
Colocar em questão a continuidade, significa colocar em questão a causalidade
local e abrir assim uma temível caixa de Pandora. Os fundadores da mecânica
quântica — Planck, Bohr, Einstein, Pauli, Heisenberg, Dirac, Schrödiger, Born,
de Brolie e alguns outros, que também tinham uma sólida cultura filosófica,
estavam plenamente conscientes do desafio cultural e social de suas próprias
descobertas (1999, p. 20).

Não que o salto dado pela mecânica quântica tenha sido em algum momento
tranquilo e linear, pois não é fácil mudar um paradigma e uma concepção de verdade
monológica tão enraizada. Em suas idas e vindas, em suas oscilações inevitáveis na
tentativa de manter o princípio da causalidade local intocado, a mecânica quântica
encontra no teorema de Bell (sete décadas após a sua invenção) o que faltava para a
descrição do novo tipo de causalidade quântica. O conceito de não separabilidade
surge como solução do impasse. Como diz Nicolescu:
Em nosso mundo habitual, macrofísico, se dois objetos interagem num
momento dado e, em seguida, se afastam, eles interagem, evidentemente,
cada vez menos. Pensemos em dois amantes obrigados a se separar, um numa
galáxia e outro noutra. Normalmente, seu amor tende a diminuir e acabar
por desaparecer.
No mundo quântico as coisas acontecem de maneira diferente. As entidades
quânticas continuam a interagir qualquer que seja seu afastamento. Isto parece
contrário as nossas leis macrofísicas. A interação pressupõe uma ligação, um sinal
e este sinal tem, segundo a teoria da relatividade de Einstein, uma velocidade
limite: a velocidade da luz. Poderiam as interações quânticas ultrapassar esta
TRANSCICLOPÉDIA EM DIFUSÃO DO CONHECIMENTO 593

barreira da luz? Sim, se insistirmos em conservar, a todo custo, a causalidade


local, e pagando o preço de abolir a teoria da relatividade. Não, se aceitarmos a
existência de um novo tipo de causalidade: uma causalidade global que concerne o
sistema de todas as entidades físicas, em seu conjunto. E, no entanto, este conceito
não é tão surpreendente na vida diária. Uma coletividade — família, empresa,
nação — é sempre mais que a simples soma de suas partes. Um misterioso fator
de interação, não redutível às propriedades dos diferentes indivíduos, está sempre
presente nas coletividades humanas, mas nós sempre o repelimos para o inferno
da subjetividade. E somos forçados a reconhecer que em nossa pequena Terra
estamos longe, muito longe da não separabilidade humana (1999, p. 21-22).

A não separabilidade quântica não põe em dúvida a própria causalidade, e sim


apenas uma de suas formas, a causalidade local. As correlações não locais expandem
o campo da Realidade e sua verdade. Há, assim, em certa escala, uma coerência e
unidade das leis que garantem a evolução do conjunto dos sistemas naturais. De modo
semelhante ao que ocorre com a causalidade local, outro pilar do pensamento clássico,
o determinismo, irá também desmoronar diante das evidências da física quântica, pois
as entidades quânticas (quantuns) são muito diferentes dos corpos da física clássica.
Os quantuns são formados de corpúsculos (partículas) e ondas simultaneamente,
ou mesmo podem não ser nem partículas e nem ondas. Os quantuns se mostram
por certa extensão de seus atributos físicos, como são suas posições e velocidades.
Heisenberg já havia mostrado que é impossível localizar um quantum em um lugar
preciso do espaço e em um ponto específico do tempo, o que impossibilita traçar
uma trajetória bem determinada de uma partícula quântica.
Trata-se de um indeterminismo constitutivo e não aleatório e impreciso. Como
diz Nicolescu:
No fundo, o conceito de ‘acaso’, como o de ‘necessidade’, são conceitos clás-
sicos. O aleatório quântico é ao mesmo tempo acaso e necessidade ou, mais
precisamente, nem acaso e nem necessidade (1999, p. 23).

É um aleatório construtivo cujo sentido é a construção do mundo macrofísico.


Os estados da matéria coexistem e cooperam em uma unidade que a tudo abarca, da
partícula quântica à composição do cosmos em seus diversos níveis de matéria-ener-
gia. Indeterminismo quântico não é imprecisão e sim outra precisão que requer uma
polilógica para ser conhecida e compreendida em seu comportamento paradoxal. E
mesmo para a concepção clássica, a noção de precisão é abalada pelo questionamento
da teoria do “caos”. A questão é que, no âmbito das distâncias estelares, qualquer
mínimo desvio produz variações no cálculo de uma determinada trajetória. Assim,
o caos instala-se no próprio seio do determinismo.
594 TRANSCICLOPÉDIA EM DIFUSÃO DO CONHECIMENTO

Com palavras de Nicolescu:


[...] O maior impacto cultural da revolução quântica é, sem dúvida, o de
colocar em questão o dogma filosófico contemporâneo da existência de um
único nível de Realidade (1999, p. 24).

É preciso, então, que se diga o que se entende por Realidade: o que é Realidade?
Nicolescu define a Realidade como aquilo que resiste às nossas experiências, repre-
sentações, descrições, imagens ou formalizações matemáticas. Na física quântica a
abstração aparece como parte constitutiva da Realidade. Formalismo matemático
e experiência são inseparáveis na física quântica.
Portanto, Realidade é tudo aquilo que é matéria-energia em suas invariâncias e
composições/combinações infinitas, inumeráveis, incontáveis, incontornáveis. A Rea-
lidade, além daquilo que resiste, tem também sua dimensão ontológica, pois Natureza
é também ser-no-mundo-com. Realidade, portanto, não é apenas o consenso de uma
coletividade, um acordo intersubjetivo. Há também uma dimensão trans-subjetiva,
pois um simples fato experimental pode derrubar a mais bela teoria científica.
Assim, Nicolescu diz que
Deve-se entender por nível de Realidade um conjunto de sistemas invariantes
sob a ação de um número de leis gerais: por exemplo, asv entidades quânticas
submetidas às leis quânticas, as quais são radicalmente separadas das leis do
mundo macrofísico. Isto quer dizer que dois níveis de Realidade são diferentes
se, passando de um a outro, houver ruptura das leis e ruptura dos conceitos
fundamentais (como, por exemplo, a causalidade) Ninguém consegue encontrar
um formalismo matemático que permita a passagem rigorosa de um mundo a
outro. [...] A descontinuidade que se manifestou no mundo quântico manifesta-se
também nas estruturas dos níveis de Realidade. Isto não impede os dois mundos
de coexistirem. A prova: nossa própria existência. Nossos corpos têm ao mesmo
tempo uma estrutura macrofísica e uma estrutura quântica (1999, p. 25).

É importante também salientar a diferença de níveis de Realidade e níveis de


organização, segundo definição das abordagens sistêmicas. Como esclarece Nicolescu
(1999), os níveis de organização não pressupõem uma ruptura dos conceitos fundamen-
tais, pois vários níveis de organização pertencem a um mesmo nível de Realidade. As
mesmas leis fundamentais estruturam diferentes níveis de organização, como é o caso
do desenvolvimento das disciplinas na modernidade, todas pertencentes a um único
nível de Realidade determinado pela visão mecanicista do universo. A consideração da
existência de diferentes níveis de Realidade é uma abertura fundamental para se poder
conceber a complexidade que, em sua dispersão, encontra-se reunida no sem-funda-
mento — a consistência da consistência — em suas variações criadoras imprevisíveis.
TRANSCICLOPÉDIA EM DIFUSÃO DO CONHECIMENTO 595

É possível também aprofundar o conceito de níveis de Realidade recorrendo a


um autor fundador no campo. O físico, filósofo e músico Stéphane Lupasco (1900-
1988), nascido na Romênia e radicado na França, desenvolveu um pensamento
considerado paradigmático para a compreensão dos diferentes níveis de Realidade
e do que chamará de triética humana. O principal de sua concepção triética, que
explicita os diferentes níveis da matéria-energia, foi publicado no livro L’ homme et
ses trois étiques (1986), dois anos antes de sua morte, com tradução para o português
em 1994, O homem e suas três éticas. Trata-se de uma concepção paradigmática jus-
tamente pela sua densidade conceitual articuladora de uma concepção de natureza
que parte do reconhecimento de três modalidades de matéria-energia constitutivas
também do ser humano em seu modo de ser fatual e histórico.
O caráter paradigmático do pensamento de Lupasco pode ser reconhecido
no grande vigor criador de sua concepção e explicação das três formações de
­matéria-energia que constituem a totalidade do que se conhece como o Cosmos, a
partir inevitavelmente do ponto de vista humano em seu ambiente de vida planetário.
Citando-o em uma passagem reveladora do que aqui interessa elucidar, anunciando
o que chama de “As Três Físicas”, afirma:
Tal como já escrevi numerosas vezes, é curioso que esse dado da nossa experi-
ência e de nossas especulações abstratas, que é a energia, à qual tudo se reduz
desde a célebre descoberta de Einstein — com exceção da afetividade, como
veremos —, não seja explicitado na sua constituição dinâmica com as suas
propriedades, em virtude das quais se manifesta e existe; nunca compreende-
remos nada da energia se não conhecermos a sua lógica específica, que é o seu
motor intrínseco e que a condiciona. Infelizmente, como se verificará e como
voltarei a sublinhar, a lógica clássica, que é a base do imperativo categórico do
nosso entendimento, opõe-se desde há séculos a tal explicação.
Ora eu descobri que existem três tipos de matéria-energia, ou seja, três tipos
de sistemas e de estruturas dinâmicas (LUPASCO, 1994, p. 9).

Realizando uma apresentação sumária das três matérias-energias descobertas


por Lupasco, temos o que segue.

I – A MATÉRIA-ENERGIA MACROFÍSICA OU FÍSICA DOS


FENÔMENOS DITOS INANIMADOS
Trata-se aqui da matéria física sujeita ao Segundo Princípio da Termodinâmica
descoberto no século XIX pela Estatística de Boltzman. De imediato, o segundo prin-
cípio ou lei da termodinâmica afirma que um sistema, com sua estrutura ou elementos
que o compõem, se for fechado ou não puder mais receber energia do exterior, se
596 TRANSCICLOPÉDIA EM DIFUSÃO DO CONHECIMENTO

degrada por si mesmo em energia térmica ou calor, produzindo uma homogeneização


progressiva e irreversível. Estamos diante da chamada entropia positiva, o que levou à
consideração, no século XIX, de que o universo caminhava para a morte. Uma con-
sideração que levava em conta apenas um tipo de matéria-energia e que logicamente
não serve para explicar os outros dois tipos de matéria-energia nem muito menos a
dinâmica dos processos existentes na extensão cósmica. De qualquer modo, do ponto
de vista macrofísico ocorre um fenômeno homogeneizante progressivo e irreversível,
sendo a homogênese o traço dominante dessa formação de matériaenergia.
Entretanto, mesmo reconhecendo o princípio de homogeneização como a
marca da matéria-energia macrofísica, Lupasco observa que isto já pressupõe uma
heterogênese de origem, e que esta inevitavelmente antecede qualquer fenômeno em
que se observa a entropia positiva. Isto significa a existência de uma função dialética
antagonista de base observada em todos os tipos de matéria-energia, também pres-
supondo as funções de atualização e potencialização. Assim, para que uma energia
manifeste a entropia positiva, tendendo para uma homogeneização crescente, ela
necessariamente contém uma heterogeneidade inicial.
Com as palavras de Lupasco (1994, p. 10):
Foi preciso que a energia passasse de uma heterogeneidade inicial relativa
para uma homogeneidade crescente. Por outras palavras, foi necessário que
esta heterogeneidade se atualizasse, primeiro, e depois se potencializasse
progressiva e irreversivelmente para que a homogeneização passasse do seu
estado de potencialidade ao de atualização por entropia positiva. Que esta
atualização homogeneizante seja no fim de contas definitiva, é um outro
problema, mas o que parece fundamental, antes de mais, é que a energia
possui as propriedades constitutivas não só da heterogeneidade e da homo-
geneidade, mas também as da potencialização e da atualização. Qualquer
experiência física é a prova disso, pois, para que uma reação física ou química
se possa efetuar, é necessário que uma certa energia passe de um certo estado
de potencialidade a um certo estado de atualização.

Portanto, já na matéria-energia macrofísica ou “inanimada” é possível en-


contrar um processo dinâmico e antagônico em ação, no qual os tipos de energia
(mecânica, elétrica, química etc.) se transformam em energia térmica degradada.
O que não ocorre linearmente, mas em ziguezague, indicando que apenas certa
quantidade de energia se degrada determinando a quantidade crescente que cons-
titui a entropia progressiva.
TRANSCICLOPÉDIA EM DIFUSÃO DO CONHECIMENTO 597

II – A MATÉRIA-ENERGIA BIOLÓGICA OU BIOFÍSICA, OU FÍSICA


DOS FENÔMENOS ANIMADOS
Tudo aqui se passa aparentemente como o oposto da matéria-energia macrofísica.
Trata-se da matéria — viva —. Neste âmbito se assiste a uma atividade energética
constituída pelos mesmos elementos atômicos da macrofísica, todos expressos na
Tabela de Mendeléjev, e que engendram outras combinações e arranjos fazendo
emergir a complexa e prodigiosa sistematização heterogeneizante dos sistemas vivos
em toda a sua vasta extensão. Como alerta Lupasco, não há dúvida de que a partir
das propriedades fundamentais da energia (homogeneização, heterogeneização,
potencialização e atualização) já estamos em presença de dois tipos de matéria.
Com suas palavras (1994, p. 12):
O que os diferencia é de natureza estatística: um sistema físico contém ma-
téria heterogênea, e um sistema biológico contém matéria homogênea. Mas
é a dominação de uma sobre a outra que caracteriza estas duas matérias com
as consequências consideráveis que isso provoca. A atualização maioritária
do homogêneo sobre a potencialização minoritária do heterogêneo engendra
o sistema físico, enquanto a atualização maioritária do heterogêneo sobre a
potencialização minoritária do homogêneo faz nascer o sistema biológico.
Fala-se aqui de sistema porque a energia possui por sua constituição a possibilidade
de edificar sistemas. Ou como diz Lupasco “[...] tudo é sistema no seio da energia”. Há
neste ponto uma preciosa síntese da história do conhecimento físico que leva à ruptura
com a lógica clássica, lógica que não admite a presença de dois temas contraditórios.
O desenvolvimento conceitual dessa ruptura se encontra no célebre postulado de
Max Planck expresso em 1900, quando ele tentava resolver uma equação em virtude
da qual a energia aumentaria até ao infinito sempre que sua frequência fosse elevada.
E como a resolução dessa equação se verificou impossível, ele formulou a sua teoria
dos quanta, na qual um quantum seria uma quantidade discreta que caracteriza a
constituição da energia. Trata-se do célebre hf. No quantum assim pensado coexistem
a constante h de Planck (6,63 x 10-2 erg x segundos) e a frequência f.
Verifica-se uma contradição constitutiva do descontínuo e do contínuo, for-
mando, por assim dizer, o primeiro sistema, contradição que é a mesma, como se
deve ter notado, do homogêneo e do heterogêneo, do igual e do diferente, de A
e de não-A, no seio da mesma entidade, por outras palavras, da energia; uma tal
formulação não é aceitável pela lógica clássica que constitui a base do nosso entendi-
mento lógico, lógica essa em que dois temas contraditórios se anulam por si mesmos
(LUPASCO, 1994, p. 12).
598 TRANSCICLOPÉDIA EM DIFUSÃO DO CONHECIMENTO

O passo seguinte foi dado em 1904 por Einstein, ao descobrir que a luz é
feita de fótons, que são os quanta hf de Planck, simultaneamente corpusculares e
ondulatórios. A luz, assim, aparece como descontínua e, ao mesmo tempo, obedece
às leis da ótica, sendo também uma onda eletromagnética. Estamos na presença de
uma contradição fundamental no sistema da luz, do brilho.
Alguns anos mais tarde — diz Lupasco — apercebemo-nos, graças ao ex-
perimento de Davisson e Germer1, que toda a onda é ao mesmo tempo um
corpúsculo e todo o corpúsculo uma onda.
É a grande crise do pensamento clássico, que se prolonga até aos nossos dias,
em que se tenta reduzir tudo ao corpúsculo, à mecânica corpuscular, ou à
onda, à mecânica ondulatória, para evitar essa coisa incrível e impensável: a
contradição (LUPASCO, 1994, p. 13).

A contradição constitui a própria energia em suas diversas variações. Justamen-


te, tomando a contradição como princípio gerador dos estados de energia é que se
pode reconhecer a existência de diferentes tipos de matéria-energia, introduzindo
a contradição no seio da lógica do sentido em todos os seus níveis de atuação. E
na matéria energia biológica ocorre justamente o contrário da entropia progressiva:
a neguentropia autopoética (autoprodutiva). O antagonismo entre processos de
homogeneização e heterogeneização encontra-se na base da matéria “viva”, com a
predominância da função contrária ao que vigora na macrofísica.

III – A MATÉRIA-ENERGIA MICROFÍSICA E SUAS EXPRESSÕES:


A) A MATÉRIA-ENERGIA ATÔMICA OU FÍSICA DO ÁTOMO, B) A
MATÉRIA-ENERGIA NUCLEAR OU FÍSICA DO NÚCLEO ATÔMICO
E C) A MATÉRIA NEUROPSÍQUICA OU FÍSICA DO PSIQUISMO
Aqui nos deparamos com uma tripartição na delimitação da terceira matéria-
energia. Tanto ela é a física do átomo, como a física do núcleo atômico e a física do
psiquismo. São três físicas dentro da microfísica. Por que isso? Trata-se claramente
de reconhecer a terceira matéria como completamente diferenciada das outras duas,
porque esta não se constitui do antagonismo da homogeneização e da heterogenei-
zação, e sim de uma relação antagônica de outra ordem, em que nunca se alcança
o extremo, mas se gera uma dobra por superposição e por precipitação de estados

1
O experimento de Davisson-Germer foi conduzido pelos físicos americanos Clinton Davisson e
Lester Germer em 1927, que confirmou a hipótese do físico de Broglie, ao mostrar que as partí-
culas de matéria (tais como os elétrons) possuem propriedades ondulatórias, sendo o elétron um
quanta de energia que também se comporta como onda.
TRANSCICLOPÉDIA EM DIFUSÃO DO CONHECIMENTO 599

similares que se anulam instantaneamente. Procurar-se-á um melhor esclarecimento


dessa tríade da matériaenergia microfísica a seguir.

MATÉRIA-ENERGIA ATÔMICA OU FÍSICA DO ÁTOMO


Toda energia é composta por átomos. Todo átomo é formado por um núcleo
de eletricidade positiva e por elétrons de eletricidade negativa que giram em volta do
núcleo em orbitais diferentes. E os orbitais se mostraram diferentes graças ao postu-
lado de Pauli2, para o qual duas partículas idênticas como os elétrons, os prótons e
os nêutrons, mas não os fótons, se excluem mútua e reciprocamente do seu próprio
estado quântico definido por quatro números quânticos (nlms).
Assim, ao antagonismo eletrônico do núcleo positivo e dos elétrons negativos
que se atraem, e que a quantificação de Bohr impede de se confundirem no
mesmo núcleo (não sendo a força centrífuga dos elétrons suficiente para se
opor à atração eletromagnética dado que perderiam assim energia ao girarem
e caírem sobre o núcleo), junta-se o princípio dito de exclusão de Pauli,
que faz com que cada elétron exclua qualquer outro do seu estado quântico
diferente e individual, embora os elétrons que gravitam à volta do núcleo se
repartam diferentemente no seio do átomo, fazendo nascer toda a diversidade
das substâncias que conhecemos, do átomo de hidrogênio de um elétron ao
átomo de 106 elétrons. No núcleo, os nucleões3, que se repelem e se atraem,

2
Segundo nos informa a Enciclopédia Livre Wikipédia, o princípio de exclusão de Pauli é um
princípio da mecânica quântica formulado por Wolfgang Pauli em 1925. Ele afirma que dois fér-
mions idênticos não podem ocupar o mesmo estado quântico simultaneamente. Uma forma mais
rigorosa de enunciar esse princípio é dizer que a função de onda total de um sistema composto por
dois férmions idênticos deve ser antissimétrica. Para elétrons de um mesmo átomo, ele implica que
dois elétrons não podem ter os mesmos quatro números quânticos. Por exemplo, se os números
quânticos n, l, e ms são iguais nos dois elétrons, estes deverão necessariamente ter os números
ms diferentes e, portanto, os dois elétrons têm spins opostos. O princípio de exclusão de Pauli
é uma consequência matemática das restrições impostas por razões de simetria ao resultado da
aplicação do operador de rotação a duas partículas idênticas de spin semi-inteiro. Por outro lado,
um férmion é uma partícula que tem spin semi-inteiro (em unidades de) e obedece à estatística
de Fermi-Dirac. Recebem este nome em homenagem ao físico Enrico Fermi. Todas as partículas
elementares ou são férmions (prótons, quarks, elétrons, neutrinos) ou bósons. O bóson é uma par-
tícula que possui spin inteiro (em unidades de) e obedece à estatística de Bose-Einstein. Ele tem
esse nome em homenagem ao físico indiano Satyendra Nath Bose. Entre os exemplos de bósons
estão o fóton, o glúon, o átomo de Hélio-4 e o bóson de Higgs. Cf.:
http://pt.wikipedia.org/wiki/Princ%C3%ADpio_de_exclus%C3%A3o_de_Pauli, consulta em
18/4/2012.
3
Em física e química, um nucleão (nucleon) é a designação atribuída a um próton ou a um nêu-
tron, ambas partículas existentes no núcleo atômico, isto é, os nucleões são as partículas consti-
tuintes do núcleo. O número de nucleões é uma designação alternativa para o número de massa
de um átomo.
600 TRANSCICLOPÉDIA EM DIFUSÃO DO CONHECIMENTO

estão também sujeitos e esse princípio de exclusão, processo que os sistematiza


e os constitui (LUPASCO, 1994, p. 13).

Em síntese, um átomo é um sistema de sistemas, o sistema do núcleo e o sistema


do núcleo e dos elétrons. Uma molécula é um sistema de sistemas de sistemas de
sistemas, pois é composto por átomos, portanto, de sistemas de sistemas em sistemas
de sistemas, chegando aos objetos que afetam os nossos sentidos, aos planetas, estrelas,
galáxias, universos e multiversos. E como observa Lupasco, é notável, entretanto, como
os fótons não se submetem ao princípio de Pauli, pois podem acumular-se livremente
no mesmo estado quântico, ainda que a transformação da energia dos sistemas “ma-
teriais” em energia fotônica permita a homogeneização da energia, enquanto na base
de sua heterogeneidade se encontra o princípio da exclusão de Pauli. Esse princípio,
segundo Lupasco, se encontra igualmente na base de toda matéria “viva”.

A MATÉRIA-ENERGIA NUCLEAR OU FÍSICA DO NÚCLEO


ATÔMICO
No campo microfísico, a matéria do núcleo atômico realiza propriamente a
terceira modalidade de matéria-energia. E por que isto? Ora, o núcleo apresenta uma
coexistência tão forte dos dinamismos antagônicos contraditórios que é muito difícil
quebrar com o seu campo de força. Isto só é possível mediante uma força superior à
coesão nuclear, capaz de rompê-la, promovendo o desequilíbrio dessas interações fortes.
A expressão “interações fortes” é apropriada para indicar o que se passa no seio
do núcleo atômico. Isto apresenta a terceira modalidade de força da matéria-energia,
a força nuclear forte intercalada à força nuclear fraca, ao lado da força gravitacional
e do eletromagnetismo.
Como diz Lupasco (1994, p. 14),
Assim, a matéria do núcleo constitui uma terceira matéria. Nas duas primeiras
certos dinamismos dominam, em termos estatísticos, como é evidente, os
outros, dando assim origem às duas matérias antagônicas e contraditórias a
caminho de uma não-contradição e, desse modo, de uma perda da energia,
enquanto no núcleo estamos no próprio cerne do antagonismo mais forte
e da contradição mais resistente, um princípio de antagonismo, como o
chamei em todos os meus trabalhos, está na base de toda energia e de todos
os sistemas que ela engendra. Isso é facilmente compreensível, pois, para que
uma quantidade de energia esteja no estado potencial e se possa atualizar,
é necessário que uma quantidade antagônica de energia a mantenha nesse
estado pela sua própria atualização e se potencialize, por sua vez, para que
ela possa atualizar-se.
TRANSCICLOPÉDIA EM DIFUSÃO DO CONHECIMENTO 601

Ora aqui ocorre uma torção conceitual extraordinária, reintroduzindo o antago-


nismo e a contradição como princípios constitutivos de toda forma de matériaenergia,
não sendo possível conceber os diversos e diferentes níveis de matéria-energia em
seu dinamismo senão como um fluxo de conexões e desconexões, entre atualizações
e potencializações variadas, geradoras do estado T (Terceiro) em suas derivações
fortes e fracas (residuais).

A MATÉRIA NEUROPSÍQUICA OU FÍSICA DO PSIQUISMO


Para compreender o que se passa com a matéria-energia no estado T é preciso
compreender o comportamento da física do psiquismo ou matéria neuropsíquica.
Trata-se de um comportamento semelhante àquele da física do núcleo atômico.
Como pontua Lupasco (1994, p. 15),
Veremos que as noções fundamentais de sujeito e de objeto, tal como as de
consciência e de inconsciência, vão ser profundamente modificadas, em relação
às concepções existentes, no seio do sistema energético do homem — uma
nova noção capital vai aparecer: a da consciência da consciência e do conhecimento
do conhecimento.

Também no sistema nervoso central do homem encontramos as propriedades


fundamentais da energia: o antagonismo sistematizante da homogeneidade e da
heterogeneidade com as suas potencializações e atualizações. Enquanto o homogêneo
domina no seio da matéria macrofísica, e o heterogêneo domina no seio da matéria
biológica, ambos coexistem de maneira antagônica e contraditória num estado de
semiatualização e de semipotencialização no seio da matéria psíquica e no seio do
núcleo atômico. Lupasco chamou esse estado de equilíbrio que apresenta a maior
densidade de energia: o estado T. Estamos, portanto, em presença de três matérias possíveis
e reais, cujas lógicas específicas se diferenciam segundo a orientação da sua sistematização.
Foi observado como os dinamismos antagônicos em suas transições da potencializa-
ção à atualização e vice-versa alcançam o sistema psíquico ou o núcleo atômico em
um estado mediano ou a meio caminho dos campos antagônicos (homogeneidade
e heterogeneidade). Assim, tanto o psiquismo como o núcleo atômico operam com
uma espécie de mediana resultante da inter-relação conflitual mais acirrada: alcan-
çam estados de semiatualização e de semipotencialização, correspondendo ao estado
T de Lupasco — um estado de equilíbrio e de conflito contraditório ampliado ao
máximo, alcançando a mais densa energia.
Sabemos hoje como o sistema nervoso central é composto de neurônios, por
sua vez compostos de células nervosas contíguas e separadas entre si por um tipo de
602 TRANSCICLOPÉDIA EM DIFUSÃO DO CONHECIMENTO

fenda chamada de sinapse. Na sinapse, a célula é prolongada por um cilindraxe (uma


rotação cilíndrica do eixo) e por terminações dendríticas. Enquanto as terminações
dendríticas estão em contato, pela sinapse, com os órgãos sensoriais periféricos,
as cilindraxes veiculam o influxo nervoso da região pré-simpática para a região
­pós-simpática do cérebro.
Como pontua Lupasco (1994, p. 16-17),
A célula nervosa é constituída por um meio interior onde dominam os íons
de potássio, carregados igualmente de eletricidade positiva, e por um meio
exterior em que predominam os íons de sódio, carregados igualmente de
eletricidade positiva. O meio exterior e o meio interior são separados por
membrana cuja camada interior está carregada negativamente por íons nega-
tivos. Existe, assim, um equilíbrio eletroquímico, entre a repulsa dos íons de
potássio internos e os íons de sódio externos, ambos positivos, que se excluem
eletrostaticamente, a membrana que os separa feita de íons negativos, que
os atraem respectivamente. Este estado da célula é designado por “potencial
de repouso”, o que não é uma expressão muito exata, dado que não só se
verificam continuamente bombagens de sódio e bombagens de potássio entre
os meios interior e exterior, como, além disso, este equilíbrio eletrostático
bioquímico luta contra a lei física de difusão dos líquidos. Quando a célula é
tocada por um agente exterior — diz-se também “agredida” — é despolarizada
e o seu potencial de repouso transforma-se em “potencial de ação”. Que se
passa de fato? Enquanto os íons de sódio entram abundantemente, os íons de
potássio saem também abundantemente. Durante um certo lapso de tempo,
a face interna negativa da célula é, então, posta a descoberto e os elétrons
dos seus íons negativos são liberados. Este processo dialético corresponde
ao influxo nervoso chamado “onda de negativação”. Este influxo nervoso é
veiculado de célula em célula através das sinapses da periferia sensorial até aos
centros nervosos por neurônios ditos aferentes. Quando percorre o sentido
inverso dos centros para as ramificações neuromusculares da motricidade,
é veiculado por neurônios ditos eferentes.
No âmbito da matéria neuropsíquica, a dinâmica antagonista gerada pela
relação dos sistemas Aferente e Eferente o sujeito é o centro das atualizações
tal como tudo o que se atualiza é o centro do sujeito, é a obra do sujeito. Como
centro das atualizações, pode-se também dizer que o atualizador é o sujeito, ele é
a operação subjetiva, subjetivante. Sem atualização não há sujeito operador, sem
sujeito operador não há atualização. No plano neuropsíquico, toda atualização é
uma subjetivação, e toda subjetivação enquanto operação nervosa é uma atualização
(Lupasco, 1994, p. 20).
É preciso também enfatizar como toda atualização subjetivante é inconsciente,
apesar de arrastar consigo uma consciência de qualquer coisa, como, por exemplo, a
TRANSCICLOPÉDIA EM DIFUSÃO DO CONHECIMENTO 603

criação mental de um objeto externo, objeto das sensações no estado de potenciali-


dade. Assim, no sistema Aferente o sujeito é a atualização e a inconsciência de uma
heterogeneidade, assim como o objeto engendrado por ele é a sua potencialização
consciente, como também a consciência de uma homogeneidade, consciência da iden-
tidade do objeto. Já no sistema Eferente a coisa se passa de outro modo. Os influxos
eferentes partem dos centros cerebrais e seguem até às terminações neuromusculares
e operações motoras (movimento dos órgãos, das pernas, das mãos, dos olhos etc.).
Lupasco melhor elucida (1994, p. 20-21),
Qual é o processo que aqui está em jogo? Na origem, na fonte da despolarização
das células cervicais, encontra-se um projeto motor: mexer esta ou aquela
mão, este ou aquele dedo, por exemplo, para agarrar qualquer coisa, andar,
fugir para evitar um perigo etc.; este projeto é uma potencialidade, enquanto
projeto está evidentemente no estado potencial, em potência (se quisermos
usar uma terminologia aristotélica), um estado que contém, como tal, o que
vai atualizar (mover um braço, levantar-se etc.). Por esse fato ele é consciente,
povoa a consciência, nem que seja por um instante (quero agarrar qualquer
coisa, quero andar, levantar-me etc.) ou mesmo mais longamente: penso (que
desejo fazer qualquer coisa ir a qualquer lado, traçar um itinerário de ação,
sair à rua para comprar um selo etc.). Este projeto motor é uma identidade,
e deve sê-lo se quero atualizá-lo, passá-lo ao ato. [...] como projeto motor, ele
deve permanecer o mesmo, se quero realizá-lo. Vou, portanto, atualizá-lo, ou
seja, operar uma homogeneização pelo sujeito atualizador.[...] Para realizar
a sua operação, o sujeito atualizador deve relegar para o mundo dos objetos
o mundo objetivo, toda a heterogeneidade perturbadora.

Para uma melhor visualização das consequências da compreensão da maté-


riaenergia neuropsíquica, apresentamos abaixo um diagrama tirado de Lupasco.
O diagrama elucida com propriedade a dinâmica antagonista e contraditória do
psiquismo humano perpassado por ortocausalidades distintas e complementares,
pois no sistema nervoso central do homem é primordial o processo sináptico, e é
graças a ele que todas as gradações da percepção e da motricidade, bem como do
pensamento, vão existir.
Após a exposição densa das três matérias-energias descobertas por Lupasco,
encontro-me em condições favoráveis para elucidar as três éticas ou atitudes do ser hu-
mano em contenda com os fenômenos que o rodeiam, atravessam e agridem, a partir das
quais ele pode e deve agir na perspectiva de uma comum-responsabilidade planetária.
Procurarei sintetizar as principais linhas de conduta correta/incorreta de cada
instância ética, segundo a modelagem conceitual de Lupasco, para daí tratar da
emergência triética planetária como tarefa ética para o ser humano contemporâneo.
604 TRANSCICLOPÉDIA EM DIFUSÃO DO CONHECIMENTO

Figura 1 – Transcrição do diagrama do estado T de Lupasco (1994, p. 22)


apresentando a dinâmica do estado T entre a Potencialização e a Atualização
dos sistemas somatopsíquico e neurológico Aferente e Eferente. As cores
(sombras) foram acrescentadas, assim como o círculo para provocar uma
leitura mais precisa do diagrama de Lupasco.

I – A ÉTICA MACROFÍSICA OU ÉTICA DA ENERGIA


HOMOGENEIZANTE
De acordo com Lupasco, a ética macrofísica se impõe em dois planos: o do
mundo exterior e aquele de nossa ação sobre ele. Cada ser humano vivente está na
presença de objetos exteriores que se apresentam como subsistentes ou dotados de
uma permanência. Ninguém poderia viver sem as regularidades subsistentes dos
objetos percebidos. Os objetos externos são a referência perceptiva de que haverá
sempre um plano de consistência para o desenvolvimento humano em seu fluxo exis-
tencial. Trata-se, talvez, da instância primária do habitus como homogeneização do
comportamento vital, o que oferece o primeiro plano de identidade do ser humano,
pois, diariamente, percorremos os mesmos caminhos e realizamos as mesmas ações
TRANSCICLOPÉDIA EM DIFUSÃO DO CONHECIMENTO 605

do dia anterior, repetimos as mesmas necessidades vitais, sociais e mentais. E mesmo


na suposição de que é sempre possível ocorrer algum fenômeno desagregador dessa
referência homogênea do mundo exterior, isto será um acontecimento advindo do
exterior. Por exemplo, o que aconteceria se um meteoro se precipitasse na Baía de Todos
os Santos? Dependendo do seu tamanho, poderia varrer instantaneamente a cidade do
Salvador do mapa do mundo. E mesmo esse evento alcançaria uma homogeneização
exteriorizante imperativa para todos os habitantes do planeta. Tratar-se-ia, então, de
uma supressão de uma permanência pela introdução de uma situação inicialmente
caótica, heterogeneizante. Uma não-identidade se sobrepondo a uma identidade
anterior ao acontecimento catastrófico igualmente objetiva no plano macroscópico.
Na descrição de Lupasco (1994, p. 45-46),
Ora, nós vimos que essa operação polarmente não contraditória cognitiva é
engendrada por um sujeito que atualiza a heterogeneidade dos objetos exterio-
res: cadeira, mesa, casa etc. Estes apresentam-se sob uma grande variedade de
aspectos diferentes mediante sensações heterogêneas: visuais, auditivas, táteis
etc. Esta atualização criada pelo sistema neurológico aferente potencializa, por
contradição dinâmica, uma identidade desses objetos, conferindo-lhes uma
permanência, uma estabilidade. Mesmo uma mudança, a passagem de um
estado, de um aspecto a outro, aparecem como uma sucessão de identidades:
uma nuvem altera-se, um objeto desloca-se. Esta alteração ou esta deslocação
são elas próprias percepções objetivas; a sua velocidade uniforme ou acelerada
é uma velocidade, a deslocação uma deslocação.

É evidente como aqui se toca o cerne da homogeneização dos processos de


identificação operados pelo sistema neuropsíquico. Sendo primacialmente um sistema
biológico, o ser humano atualiza a heterogeneidade e potencializa a homogeneidade
antagônica e contraditória dominada no exterior e no interior de seu próprio sistema.
A potencialização, assim, é a configuração da objetividade como consciência da
consciência em subjetivações atualizantes. Faz parte, portanto, do comportamento
humano operar na ordem da homogeneização em seus atos psíquicos, em virtude
de estados de matéria-energia que estão na base de sua afetividade vivente. Assim, o
comportamento homogeneizante imposto pelo mundo macrofísico tem o seu lugar
reservado no sistema neuropsíquico.
A nossa biologia depende do plano de homogeneização para manter-se aderente
ao acontecimento da heterogeneização contínua que é a própria vidavivente. Tudo
o que vive está na passagem contínua da heterogênese à homogênese e vice-versa,
com predominância da heterogênese quando tudo de novo recomeça e de novo
se autoproduz repetindo-se e variando-se em combinações fora do controle e da
606 TRANSCICLOPÉDIA EM DIFUSÃO DO CONHECIMENTO

previsibilidade. Sem a concretude aparente da macrofísica tudo se reduziria a uma


sucessão de instantes cada um anulando o anterior sem manter minimamente
qualquer vínculo gerativo de continuidade homogeneizante. A própria existência de
sistemas de sistemas, tudo afinal é sistema de sistemas, é um traço da homogeneiza-
ção sem a qual nada poderia se precipitar no mundo dos acontecimentos formativos
atualizantes. Sem formações homogêneas nada poderia ser distinto de nada. Sem
gradações e processamentos neuropsíquicos antagônicos e contraditoriais, nenhuma
inteligência comum seria possível.
Portanto, no plano da matéria-energia macrofísica a ética consiste justamente
no comportamento homogeneizante que introduz o princípio de identidade primária
em relação aos objetos externos. E toda interiorização desses objetos por parte dos
sujeitos atualizantes parece reproduzir a potencialização deles como unidades em
si. Trata-se já do sistema eferente em sua função de atualização ou precipitação da
subjetivação que sempre ocorre marcada pelo princípio de identidade espreitado
pelo princípio da diferença.
Como sintetiza Lupasco (1994, p. 48),
Esta ética é comandada pela lógica de não-contradição, da identidade em que
uma coisa não pode ser o que é e, ao mesmo tempo, num mesmo lugar e ao
mesmo instante, ser outra coisa, a partir da qual se deduz o terceiro excluído.
Ética eficaz sem a qual não poderíamos viver nem ir de descoberta em des-
coberta “material”, considerando o volume extraordinário e cada vez maior
de realizações técnicas.
É a ética, compreendemo-lo agora, da energia sistematizante do homogêneo,
de polaridade não contraditória, da matéria que ela engendra e que a engendra
ela própria, ética que só pode ser imediatamente eficaz no seu domínio próprio.
No entanto, existem outros domínios em relação aos quais ela é, talvez, não
só inadequada, mas também perigosa.

A ética macrofísica, portanto, não é a única dimensão ética atuante no construto


humano e se somente ela funcionasse não seria possível compreender o fenômeno
heterogenético que é a própria vida biológica. Não seria possível ultrapassar o hori-
zonte monológico dos totalitarismos de toda espécie no domínio político, assim como
o monoteísmo religioso fechado e irredutível ideologicamente. Não seria possível
criar novos desenhos ontológicos na saga evolutiva do humano, pois dominaria um
determinismo absoluto em relação ao ser-aí. Não haveria a liberdade ontológica
que tanto se fala, que é a diferença do ser humano em relação a outros entes não
dotados do modo de ser possuidor de um sistema neuropsíquico que intercala o
TRANSCICLOPÉDIA EM DIFUSÃO DO CONHECIMENTO 607

perceber (sistema aferente) e o agir (sistema aferente) no contínuo espaço-tempo da


existência vivente.

II – A ÉTICA BIOLÓGICA OU ÉTICA DA ENERGIA


HETEROGENEIZANTE
Parece contraditório e mesmo estranho o fato de o sistema biológico só ter
podido ser investigado em sua diferença em relação ao sistema macrofísico muito
recentemente. Até muito pouco tempo atrás se acreditava piamente em um único
princípio soberano da natureza. Em sua unidade universal, a natureza seria pre-
dominantemente macrofísica. A própria biologia estaria subordinada ao princípio
homogeneizante geral. Tudo era visto como ordem e o caos um efeito secundário.
Prevalecia o princípio de identidade como lei maior para o ordenamento da disper-
são vital. Assim, os fenômenos vitais deveriam estar submetidos à ética macrofísica
dominada pelo homogêneo e pela homogênese.
Mas, como a ciência precisa sempre se desembaraçar de seus preconceitos
para evoluir, foi preciso suspeitar de que, afinal, as leis macrofísicas não se prestam
para explicar os fenômenos bioquímicos, biológicos. O próprio estudo relativo às
origens das estruturas e sistemas biológicos encontrou a contradição em seu pró-
prio postulado: se o protoplasma aparecia como a menor partícula dos organismos
biológicos e, portanto, como fundamento da ciência biológica, apresentando assim
a homogeneidade necessária para se constituir uma ciência rigorosa, ele também
apresentava a heterogeneidade ao abarcar toda a espécie de constituintes vitais cada
vez mais complexos e diversificados.
Corrobora Lupasco (1994, p. 51-52),
Ao acompanhar o desenvolvimento do embrião a partir da fusão do esperma-
tozoide e do óvulo, descobriu-se uma prodigiosa diferenciação do animal, tal
como, a partir da semente, se constatou a arborescência igualmente prodigiosa
do reino vegetal.
Para onde quer que dirigisse o seu olhar, o investigador biológico era confron-
tado com uma extraordinária heterogeneização dos sistemas biológicos e da
hierarquia que o compunha. Senhor das duas suas conquistas macrofísicas, o
sujeito de conhecimento orientava o seu sistema eferente da homogeneização,
tal como orientara o sistema aferente, e achou-se na presença de uma realida-
de objetiva, isto é, de uma potencialização enquanto objeto consciencial de
heterogeneidade, de diversidade e de diferenciação extraordinárias. A partir
daí, aplicando o sistema que havia resultado em macrofísica, ele atualizou,
pelo sujeito do conhecimento, essa heterogeneidade, mas não encontrou,
608 TRANSCICLOPÉDIA EM DIFUSÃO DO CONHECIMENTO

na objetividade ou potencialidade consciencializante as leis que regiam essa


heterogeneidade, pois apenas utilizou as leis físicas. Não dispondo de outra
lógica para além da lógica matemática da física que, pela sua homogeneidade
fundamental e criadora de objetos ditos inanimados, não poderia explicar
o fenômeno vital e isolar as leis específicas dessa diferenciação, ela não as
compreendeu.

Tornou-se, então, inviável procurar explicar os sistemas vivos apenas pelo princípio
de homogeneização e de identidade não contraditorial. Foi preciso introduzir a hetero-
gênese e a diferença como princípios igualmente estruturantes dos sistemas vivos. Essa
operação ainda está em andamento, pois prevalece ainda em muitos setores da ciência
a lógica clássica do terceiro termo excluído. Mas, o antagonismo entre o heterogêneo e o
homogêneo é o mecanismo geral de toda sistematização biológica e se encontra presente
em toda construção de sistemas de sistemas de sistemas. Foi preciso, pois, introduzir
a lógica do antagonismo no âmbito das ciências da vida para se alcançar uma nova
modulação de compreensão dos fenômenos biológicos, necessariamente antagonista.
Copiando Lupasco (1994, p. 53),
Então, como explicar, por exemplo, a constituição e a atividade do célebre ADN
ou ácido desoxirribonucleico? O ADN é a famosa dupla hélice, que preside e
comanda tanto a elaboração do fenótipo como do genótipo, em todo o reino da
matéria-energia biológica, desde a filogênese à ontogênese, para todas as espécies
e todos os indivíduos vivos. No entanto, a comunidade científica encontra-se
novamente desprovida de faculdades mentais conhecedoras das propriedades
energéticas, da potencialização e da atualização inerentes à própria energia.
Como compreender que nos genes do cromossoma, na organização de suas
bases negativas ligadas por pontes positivas de hidrogênio contido no ADN,
se ache todo o programa que vai engendrar tal espécie de animal ou tal animal
em particular? Para empreender este processo, parece-nos fundamental que
a ética do biológico comporte as noções de antagonismo entre o homogêneo
e o heterogêneo, bem como as propriedades gerais de potencialização e de
atualização de toda energia.
Assim, sem uma lógica do heterogêneo não é possível compreender o processo
de heterogeneização que preside os fenômenos vitais (biológicos). É preciso, pois
considerar a heterogênese como a polaridade antagonista presente nos sistemas vivos,
em oposição à homogênese macrofísica, sendo necessário operar com uma lógica do
antagonismo para se alcançar a explicação condizente da ética biológica.
Como ser biológico a espécie humana encontra-se atravessada pelo antagonis-
mo e pela contradição permanentes, devendo operar processo de equilibração do
antagonismo como condição básica de sua existência fática. A ética biológica ou da
TRANSCICLOPÉDIA EM DIFUSÃO DO CONHECIMENTO 609

matéria-energia heterogeneizante é tão importante quanto à ética macrofísica homo-


geneizante. Sem ela, como seria possível compreender a diversidade e multiplicidade
que estão na base dos fenômenos vitais?
Sem a contrapartida da heterogênese, a espécie humana não passaria de uma
máquina concluída em sua estrutura determinista e fechada a novos arranjos criadores.
Tudo seria monótono, linear, sempre seguro, sempre claro, esférico, completo. Não
haveria diferenciação exceto como excrescência da ordem imperante. Ao contrário,
vive-se justamente uma luta constante de opostos e contraditórios que, afinal, está
na base de quaisquer sistemas de sistemas de sistemas.
Sem a ética da matéria-energia heterogeneizante, ninguém poderia aprender com
o outro e mesmo nem se poderia propriamente aprender nada, pois tudo seria uma
repetição do projeto ontológico contido na programação celular. Justamente, a vida
é o reino da heterogênese e da diversificação exuberante, da multiplicidade gerativa
e da perpetuação simultaneamente, em devir e em movimentos de saltos de natureza
e de repetição de natureza. A ética da matéria-energia heterogeneizante comanda
também a vida ambiental, social e mental do humano em suas derivações históricas.
Contudo, se cabe a todos a aprendizagem da ética da heterogênese como condição
para uma existência sustentável, cabe também compreender a dinâmica dialógica da
matéria-energia em suas idas e vindas antagonistas. Também nesse âmbito há sempre
uma “justa medida”, uma mediana que modula a equilibração dos opostos diferentes,
produzindo séries de séries de resoluções criadoras. Também o excesso de heteroge-
neização leva a desequilíbrios muitas vezes fatais. É preciso, pois, ter presente como
as duas funções antagônicas se entrelaçam na produção do acontecimento do sentido
encarnado, e como é preciso cuidar do equilíbrio para se alcançar uma vida plena de
metamorfoses e superações, realizações e aventuras espirituais criadoras e solidárias.
Assim como o excesso da função homogeneizante produz toda espécie de tota-
litarismo e de monismo negador da diversidade e da diferença, o excesso da função
heterogeneizante produz toda espécie de dispersão e de decadência ética, abrindo as
portas do individualismo exacerbado e de toda espécie de vandalismo e de cegueira
ambiental, social e mental. Para se alcançar o cerne das resoluções conflituais que
implicam na existência da terceira matéria-energia, precisa-se justamente aprender
mais do funcionamento neuropsíquico do ser humano, em que se dá o fenômeno
mais extraordinário do máximo antagonismo e da máxima potenciação criadora de
novas e imprevisíveis formações antagonista do Estado T.
610 TRANSCICLOPÉDIA EM DIFUSÃO DO CONHECIMENTO

III – A ÉTICA NEUROPSÍQUICA OU ÉTICA DA ENERGIA


ANTAGONISTA DO ESTADO T
Como afirma Lupasco (1994), se o ser humano deve estar na posse das duas
éticas anteriormente descritas, a fim de fazer funcionar ao longo de toda a sua vida,
adaptando-as às circunstâncias externas e internas da sua existência individual e
coletiva, é da maior importância que ele aprenda igualmente a terceira ética imposta
pela terceira matéria-energia que é o neuropsiquismo.
Foi visto como essa terceira matéria-energia elabora-se a partir dos influxos
antagonistas aferentes e eferentes, o primeiro dos quais partem do aparelho senso-
rial e acabam nos centros cerebrais, e os segundos partem desses centros cerebrais e
comandam os aparelhos neuromotores.
A partir da dialógica neuropsíquica mostrada tem início a vida interior dos seres
humanos assim como todo o seu desenvolvimento mental desde o início da espécie.
Aparece a dimensão fundamental do imaginário e a capacidade de meditação, assim
como desponta a consciência da consciência e da inconsciência, como também o
conhecimento do conhecimento e do desconhecimento. O cérebro humano se torna
o operador dos processos de subjetivação e de objetivação que dão origem a todo
tipo de valor e de valoração, de identificação e de diferenciação, de conjectura e de
efetividade acional.
Foi preciso aprender a tomar distância dos estímulos sensoriais resultantes do
conhecimento do mundo mediado pelo sistema neuropsíquico, para o engendramento
da abertura para o mundo mental subjetivante, o que demarca também uma conquista
na evolução da espécie que desenvolve uma capacidade de antecipação e de previsão
relativa de acontecimento futuros na linha do tempo. A capacidade humana de anteci-
pação é a resultante de um longo processo evolutivo da ética antagonista do estado T.
Transcrevendo Lupasco (1994, p. 60),
É necessário, de tempos a tempos, deixar de perceber e de agir e concentrar-se
sobre si mesmo, a fim de aprender o que se passa. Todos o fazemos instintiva-
mente, “refletindo”, excelente expressão, mas sem avaliar o seu alcance, a não
ser pragmático, levantando o problema do “pró e do contra”, perante questões
mais ou menos difíceis de resolver e tendo apenas como fim resolvê-las o mais
depressa e o melhor possível.
Se o homem souber concentrar-se e aprender o antagonismo de sua vida
interior aplicando antes de tudo a ética do estado T, evitará a esquizoidia
e, mais gravemente, a esquizofrenia, por um desvio hipertrófico do sistema
aferente da ética macrofísica, ou a ciclotimia que pode degenerar em doença
maníaco-depressiva pela hipertrofia do sistema aferente da ética biológica,
como se viu (existem éticas mórbidas).
TRANSCICLOPÉDIA EM DIFUSÃO DO CONHECIMENTO 611

Além disso, por via dessa ética neuropsíquica, o ser está no centro psíquico do
controle e do conflito do estado T, constituindo, contrariamente a opiniões
muito divulgadas, o “normal”, o estado de domínio por excelência das orienta-
ções patológicas que acabo de salientar; o ser está em presença simultaneamente
da incondicionalidade e da liberdade, bem como das cargas mentais afetivas
mais densas, dos dados ontológicos mais amplos e mais presentes no homem
enquanto ser humano.
Entretanto, também essa terceira ética contém os seus perigos próprios. A
imaginação e o imaginário são armas temíveis sendo necessário aprender os limites
da importante função que ocupam na vida neuropsíquica do ser humano. Aqui
também é preciso aprender e continuar aprendendo sempre.
Sabemos dos prodígios da imaginação em todos os momentos da história
humana. Toda produção humana intencional é antecedida pela função imagi-
nante da mente, o que permite projetar e planejar acontecimentos futuros. Sem
imaginação não existiria nem arte, nem ciência, nem filosofia e nem mística. E
são essas expressões da atividade neuropsíquica humana que constituem o acervo
espiritual da humanidade em suas peripécias históricas. O que seria o célebre
Cavalo de Troia (o presente de grego) se antes não tivesse sido imaginado e pro-
jetado por seu construtor? Só para dar um exemplo do poder da imaginação. A
história humana nada seria sem o poder da imaginação e da antecipação. E até
mesmo a memória, a memorização e a evocação do vivido dependem da função
imaginante da mente.
No campo, pois, da matéria-energia neuropsíquica há também um ambiente
ecológico próprio, um ambiente feito de conexões neuronais marcadas por in-
formações sequenciais na elaboração dos estados mentais. Assim, segundo a sua
própria ecologia ou ética, o mundo mental tem também suas espécies e subespécies
de micro-organismos psíquicos, de vírus e de antivírus diversificados, logicamente
interligados à história do psiquismo humano em seu processo de desenvolvimento
até o presente tempo. O acervo psíquico da espécie humana encontra-se armazenado
em seus sistemas de códigos linguísticos em sentido mais amplo, compreendendo-se
a linguagem como o meio universal das elaborações mais sofisticadas, como também
das mais brutais, do espírito humano.
Sintetizando a dinâmica da ética neuropsíquica na perspectiva de Lupasco
(1994, p. 61),
O psiquismo, como se viu, é apresentado pelo estado T de semiatualização e
de semipotencialização dos dinamismos antagonistas macrofísicos e biológicos,
do homogêneo e do heterogêneo, engendrando, por isso, a consciência da
consciência e da inconsciência, bem como o conhecimento do conhecimento
e do desconhecimento.
612 TRANSCICLOPÉDIA EM DIFUSÃO DO CONHECIMENTO

Ora, é neste o conflito mais intenso da energia que aparecem a noção de morte
e a noção de vida. E é aqui sobretudo que a afetividade se instala sob a forma
de ansiedade, inquietação e, ao mesmo tempo, de euforia, prazer, felicidade.
O estado T é, pois, a coexistência conflitual de dinamismos antagônicos em
certos graus de desenvolvimento, respectivos e recíprocos. Há, pois, graus do
estado T, variações dos estados de potencialização e de atualização que se vão
encontrar no estado T de equilíbrio de semipotencialização e de semiatuali-
zação. Há T1, T2, T3,...Tn, T-1, T-2, T-3,... T-n.

Temos aqui um precioso instrumento conceitual para a investigação das pro-


priedades e leis da terceira ética. Há tudo a se descobrir e inventar neste campo, pois
é muito recente esta maneira complexa de investigar os fenômenos mentais, pelo
estudo sistemático de seus sistemas e aparelhos perceptivo e acional. Há muito a fazer
para que se constitua uma ciência noológica com a precípua função de investigar
todo o espectro da ecologia mental, sem perder de vista suas relações de dependência
e diferença em relação às outras éticas ou ecologias.

Figura 2 — Transcrição do diagrama do estado T de Lupasco (1994, p. 69)


mais complexo do que o anterior, apresentando a dinâmica do estado T
entre 1/2 Potencialização e a 1/2 Atualização dos sistemas somatopsíquico e
neurológico Aferente e Eferente, significando o estado T em sua propriedade
semiatualização e semipotencialização dos estados neuropsíquicos. As cores
(sombras) foram acrescentadas, assim como o círculo para provocar uma
leitura mais nítida do diagrama de Lupasco
TRANSCICLOPÉDIA EM DIFUSÃO DO CONHECIMENTO 613

Com o intuito de recolher o máximo possível de potência da compreensão das


três éticas que atravessam a constituição humana comum, apresenta-se ao lado o
diagrama com o qual Lupasco encerra a exposição preliminar das três éticas. Isto me
permite considerar a emergência triética planetária em um plano muito mais avançado
de consideração, projetando possibilidades na condução ética necessária para lidar
com inteligência e afeto dos grandes desafios planetários da contemporaneidade.
Com essa elucidação a partir do pensamento de Lupasco, o conceito de níveis
de Realidade ganha maior consistência, e a associação das três matérias-energias
com as três éticas humanas fazem ver as potentes consequências da compreensão
filosófica e científica da natureza complexa de tudo o que é e de nada que não é
ainda devido ao desconhecimento humano. É importante ainda salientar a relação
de copertencimento entre os níveis de Realidade e os níveis de percepção humana.
Diferentes níveis de Realidade são diferentes níveis de percepção. Diferentes maté-
rias-energias desencadeiam diferentes éticas que constituem o agir humano e suas
consequências fáticas e possíveis.

REFERÊNCIAS
LUPASCO, Stéphane. O homem e suas três éticas. Tradução de Armando
Pereira da Silva. Lisboa: Instituto Piaget, 1994.

MORIN, Edgar. O Método. 6. Ética. Tradução de Juremir Machado da Silva. 2.


ed. Porto Alegre: Sulina, 2005.

NICOLESCU, Basarab. O Manifesto da Transdisciplinaridade. Tradução de


Lúcia Pereira de Souza. São Paulo: TRIOM, 1999.
O
68. Or áculo Iorubano

Leonor Franco de Araújo

Sistema Oracular Iorubano — Oráculo de Ifá e Jogo de Búzios (Merindilogum)


— sistemas divinatórios que orientam e organizam diversas ações comunitárias
e pessoais nas comunidades de matrizes africanas.

As religiões de matrizes africanas foram disseminadas pelo mundo através da


Diáspora Negra, sendo que as Américas foram o locus privilegiado de tal vivência,
já que a maior parte dos africanos escravizados, para cá vieram. Os africanos, nas
suas diversidades regionais, culturais e existenciais, (re)fundaram e (re)construíram
em território americano, no amálgama com outras populações, modos de ser, pensar
e estar na vida.
Segundo Sodré (2006) foi um verdadeiro processo civilizatório que instituiu
influências na estética, na música, na culinária, na religiosidade, na política e no
pertencimento brasileiro.
O termo Candomblé hoje engloba muitas matrizes religiosas africanas, que
possuem diversidades importantes a partir de suas origens regionais e linguísticas.
As principais nações de Candomblé no Brasil são Ketu, de origem Iorubá (África
Ocidental, principalmente Nigéria e Benin), Angola, das regiões bantas de Ngola
(Angola e Congo) e Jeje, das regiões ewé-fons do antigo Dahomé, atual Benin e
Togo (SERRA, 1995).
O Sistema Oracular Iorubano tem como estrutura divinatória principal na
Diáspora Negra africana dois oráculos: O Jogo de Búzios é utilizado pela maior
parte das tradições religiosas de Matrizes Africanas do Culto Lesse Orixá (o Can-
domblé, a Santeria, a Regla de Oxa) e o Oráculo de Ifá, pertencente ao Culto de Ifá,
exclusivo da tradição Ioruba. A “popularização” do Jogo de Búzios entre os terreiros
de Candomblé cresceu a partir da primeira metade do século XX, quando houve
a diminuição numérica e da influência dos babalaôs, e as mulheres assumiram a
liderança dos cultos Lesse Orixá.
O Sistema Oracular (Filosófico) Ioruba tem nesses oráculos divinatórios es-
truturas importantes na organização e orientação de ações comunitárias, ou seja, os
oráculos são consultados para diversas ações realizadas no culto religioso dos terreiros
618 TRANSCICLOPÉDIA EM DIFUSÃO DO CONHECIMENTO

e do Culto de Ifá, como a iniciação, nomeação de cargos, a sucessão de yalorixás


e babalorixás, entre muitas outras coisas. No campo pessoal, tanto os adeptos de
religiões de matrizes africanas como os não iniciados podem se beneficiar/orientar
da consulta dos oráculos.
O Mito Ioruba da Criação do Mundo, um dos mais relevantes ensinamentos
iorubanos, demarca desde nossa origem o locus fundamental da consulta ao oráculo
em diversas ocasiões da nossa caminhada, e ressalta a importância da reciprocidade
como âmago da vida comunitária e do equilíbrio de seu Ori. Quando Oxalá, esco-
lhido por Olodumare para criar o mundo, na sua arrogância, considera que não há
a necessidade de cumprir com suas obrigações para com Orunmilá e, consequente-
mente, com Exú, é-lhe retirada a dádiva e dada a sua irmã Ododua.
As religiões africanas, por serem fundantes dos componentes da vida social
dos que dela participam, independente da Iniciação, promovem o relacionamento
e o imbricamento do sagrado com o profano. São várias as maneiras de relacionar
a força vital, o Axé, com o todo existente. A oralidade é sacralizada, pois sobre ela
se assentam as potencialidades do poder, do querer e do saber, além do valor moral
por ser emanada de Olodumare e seus designados.
Cantarela (2013, p. 106) diz “[...]. Sobre a palavra como sacralidade se assenta
o especial valor das histórias e mitos, com seu caráter fundador e doador de sentido à
ordem social e às realidades cotidianas.” E Ifá, o sistema divinatório Iorubá, é um dos
principais caminhos da revelação da oralidade sacralizada, do conhecimento divino,
que (re)transmite orientações, instruções e ações para o equilibro e felicidade da vida.
A importância de Ifá1 e suas diversas formas divinatórias, na socialização
democrática dos conhecimentos permitidos aos iniciados pela ancestralidade, dina-
mizam o Axé, acolhem e orientam na busca pelo equilíbrio espiritual e comunitário.
Diaz e Ribeiro (2004) consideram que Ifá facilita a aproximação das pessoas com
a religião Ioruba, pois não discrimina quem necessita, sejam eles pertencentes ou
não a religião, todos e todas são importantes e têm o mesmo direito na busca que
fazem aos Oráculos.
Essa divindade não discrimina. Responde igualmente a mulheres e homens,
crianças e adultos, negros e brancos. Responde a todos, independentemente
de gostos e inclinações, de nível cultural, condições econômicas e sociais. Ifá é

1
Ifá é o nome que Olodumare, o Deus Criador, deu para Orunmilá enquanto divindade manifes-
tada no mundo. Ifá é o Oráculo, o sistema divinatório composto de diversos métodos. Os mais
conhecidos são o Opelé, o Ikin e o Merindilogun ou jogo de búzios. Orunmilá é a divindade e Ifá
é o sistema onde esta divindade se manifesta. Não há Ifá sem Orunmilá e nem Orunmilá sem Ifá.
TRANSCICLOPÉDIA EM DIFUSÃO DO CONHECIMENTO 619

detentor de um código ético e moral rigoroso, porém não mesquinho. Divindade


imparcial aconselha a cada um segundo suas necessidades, favorecendo uma
melhor relação da pessoa com o próprio passado e uma avaliação daquilo que
mais lhe convém para o presente e para a construção de seu futuro. (2004, p. 5).

A manipulação desses Oráculos divinatórios são campos dos iniciados2, um


processo de construção coletiva do sujeito, como bem coloca Oliveira (2005, p. 15)
“[...] Os ritos de iniciação (socialização) são coletivos, [...], pois, aí, a construção do
sujeito dá-se fundamentalmente no processo religioso. A iniciação forma coletiva-
mente a pessoa para a sociedade africana.” Deve-se ressaltar que não são todos os
iniciados que detêm os conhecimentos para revelar os desígnios do oráculo; como
falamos no Candomblé “[...] não escolhemos, somos escolhidos”. Essa escolha está
ligada à ancestralidade e aos ancestrais, pois, como disse Altuna (1993),
[...] Ninguém se pode fazer adivinho a si mesmo. Só os antepassados podem
escolher e chamar, só eles modificam a força vital, iniciam o eleito e com ele
mantém uma relação vital, constitutiva da especialidade.

Isso implica em dizer que nem todo alto cargo hierárquico, babalaôs, babalo-
rixás, yalorixás estão autorizados ou qualificados para ler os oráculos.
Os dois sistemas divinatórios, o Jogo de Búzios e o Oráculo de Ifá, possuem
características comuns e específicas dos conhecimentos aí (re)significados na leitura
do jogo. Os sistemas são consagrados aos orixás Orunmila-Ifa, orixá da profecia
e a Exu que, como o mensageiro dos Orixás, confere autoridade aos oráculos. O
conhecimento ancestral e tradicional iorubá para a leitura do Oráculo de Ifá tem no
Corpus Literário de Ifá, o Odu Corpus, o seu principal conjunto de conhecimentos
filosóficos e culturais e registros históricos dessa milenar tradição, unido ao conhe-
cimento transmitido oralmente entre padrinho e afilhados, enquanto é unicamente
a tradição ancestral oral que promove o conhecimento nos Jogos de Búzios, sem que
se prescinda de conhecimentos dos Odus.
O Corpus de Ifá, como descrito por Ribeiro (1996), é tratado no Brasil, tanto
pelos babalaôs da tradição afro-cubana quanto pelos da tradição nigeriana. O cor-

2
A entrada de uma pessoa para um candomblé se dá de várias maneiras, sendo a mais conhecida
delas a iniciação, que consiste em fazer com que alguém pertença à comunidade ampliando os
vínculos com o orixá, inquice ou vodu que “afiliam” esse indivíduo e ocupando uma função no
meio comunitário. (FLOR DO NASCIMENTO, 2016). No caso do Candomblé são as Ialorixás
(Mães de Santo) e Balorixás (Pais de Santo) que detêm a cultura divinatória; no Culto de Ifá, em
algumas comunidades, principalmente na rama afro-cubana, somente os babalaôs estão autoriza-
dos a interpretar o Oráculo de Ifá; em outras as Yaninfás, mulheres iniciadas na mesma posição de
babalaôs também podem ler o oráculo de Ifá.
620 TRANSCICLOPÉDIA EM DIFUSÃO DO CONHECIMENTO

pus literário de Ifá contém um total de 256 capítulos ou categorias conhecidas em


iorubá pelo nome de Odu. Esses capítulos dividem-se em duas partes — 16 Odu
“maiores” chamados Oju Odu (Odu Mejí) e 240 “menores” chamados Omo Odu
ou Amulu Odu. O total compõe 4.096 (16 x 16 x 16) poemas, com base nos quais
é feita a interpretação oracular.
Os oráculos iorubanos (re)produzem, (re)organizam e (re)socializam orienta-
ções e indicações com base nos conhecimentos ancestrais da religiosidade ioruba,
e ao mesmo tempo relacionam conhecimento privado, público e pessoal (FRÓES
BURNHAM, 2014). Ou seja, (re)constroem, visibilizam, empoderam o (re)conhe-
cimento (re)instituído nessas comunidades e na interação com seus Mitos, Itans,
com sua família/comunidade de terreiro, outras famílias de outros terreiros, ou com
seus clientes3.

Figura 1 – OPONIFÁ ou OPON IFÁ – Tabuleiro de Ifá eito de madeira com


formas diversas e com molduras entalhadas com figuras e símbolos diversos

O oráculo de Ifá é um sistema divinatório do Culto de Ifá, reconhecido em


2005 pela UNESCO como Patrimônio Imaterial da Herança Oral e Cultural da
Humanidade, e possui métodos diferentes de consultas (Opelê-Ifá, Jogo de Ikin)
para interpretar os Odus e orientar seus consulentes.

3
Aqui utilizaremos a conceituação de NASCIMENTO (2016, p. 36), “[...] A figura do cliente nos
terreiros de candomblé — aquele/a que usufrui dos serviços prestados pela comunidade sem, no
entanto, pertencer internamente à família comunitária do terreiro”.
TRANSCICLOPÉDIA EM DIFUSÃO DO CONHECIMENTO 621

A consulta se baseia na interpretação dos Odus sacados pelo jogo feito pelo
babalaô, também conhecido como “Pai do segredo”, aquele que realiza todos os
procedimentos ritualísticos e iniciáticos, que é a figura mais importante do culto. Os
babalaôs não incorporam Orixás, a interpretação das caídas dos Inkis ou do Opelê,
se dá a partir dos estudos realizados por esses sob a orientação de seus padrinhos, e
levam em média de 10 a 20 anos para estarem aptos às leituras. Em muitas ocasiões
as leituras têm o acompanhamento de outros babalaôs para qualificação da mesma.
Os Odus (256) são compostos pelas histórias oraculares (Mitos e Itans) que
acumulam o ensinamento universal, teológico e cosmológico dos iorubás. Cada
um deles tem um nome e um sinal. São signos apresentados sob a forma de poemas
compostos por narrativas denominadas Itan. Por ação da sincronicidade, essas nar-
rativas espelham condições existenciais do consulente e contêm conselhos a respeito
de condutas que devem ser adotadas para o bom cumprimento do próprio destino.
(SANDOVAL; SANTOS, 2014).
Os Odùs principais (Odus Méjì)4 são em número de 16 que combinados pro-
duzem 240 odus, que recombinados podem chegar a mais de 4096 combinações,
sendo que cada leitura é única, mesmo sendo feita outras vezes para a mesma pessoa.
O Sistema Oracular de Ifá tem como base a mais pura matemática; é sempre
bom lembrarmos que o sistema binário dos computadores possui 256 bites. Cada odù
é representado por um conjunto constituído por duas colunas verticais e paralelas
de quatro sinais cada. Cada um desses sinais compõe-se de um traço vertical ou de
dois traços verticais paralelos que o babalaô traça no pó (iyerosun) espalhado sobre
um tabuleiro sagrado de madeira esculpida (OponIfá) de acordo com as caídas do
Opelê ou Inki. Embora sejam símbolos matemáticos, não são números, como vimos
anteriormente.
Para se obter o Onã Ifá/caminho de Ifá de um dos dezesseis Odús que, associados
aos Esé Itan/ Versos dos contos de Ifá, se constituíam nos Signos-Respostas Básicas
do Sistema Ifá, se segue os resultados de uma sequência inicial de quatro manipu-
lações marcados sobre o Ìyerosún5, no lado direito do Tabuleiro, verticalmente, a
segunda marca sob a primeira e, sucessivamente, a terceira sob a segunda, a quarta
sob a terceira, sempre cada uma delas ao acaso de sua manipulação.

4
1-Ogbé Méjì; 2-Òyèkú Méjì; 3-Ìwòri Méjì; 4-Òdi Méjì; 5-Ìròsùn Méjì; 6-Òwónrín Méjì; 7-Òbàrà
Méjì; 8-Òkàràn Méjì; 9-Ògundá Méjì; 10-Òsá Méjì; 11-Ìká Méjì; 12-Òtùrùkpòn Méjì; 13-Òtúrá
Méjì; 14-Ìretè Méjì; 15-Òsé Méjì; 16-Òfún Méjì.
5
Pó branco espalhado no Oponifá para se realizar os desenhos dos Odus sacados. Os babalaôs
africanos usam geralmente o pó (Iye) da árvore Baphia Nitida (Osun) daí o nome Iyerosun.
622 TRANSCICLOPÉDIA EM DIFUSÃO DO CONHECIMENTO

Figura 2 — Opon Ifá com símbolos desenhados em interpretação aos Odus

O Jogo de Ikin conhecido como “o grande jogo” é utilizado em cerimônias im-


portantes de forma obrigatória, se colocando hierarquicamente acima dos outros jogos.
O jogo compõe-se de 16 nozes de um tipo especial de dendezeiro Ikin (Elaeis
Guineensis), em ioruba chamados de igi ope. Essas sementes de dendezeiros, que
devem possuir quatro “olhos” quando o normal é três, além de raras, recebem
tratamento tradicional com lavagem de folhas litúrgicas de Orunmilá, sacrifícios,
louvores, cânticos e oferendas, só depois desses ritos pode ser chamada de Ikin. São
manipuladas pelos babalaôs com a finalidade de se configurar o signo do odu a ser
interpretado e transmitido ao consulente. São colocados na palma da mão esquerda,
e com a mão direita rapidamente o babalaô tenta retirá-los de uma só vez com um
tapa na mão oposta. Assim se obterá um número par ou ímpar de ikins na mão.
Caso não sobre nenhum ikin na mão esquerda, a jogada torna-se nula e deve ser
repetida. Ao restar um número par ou ímpar de ikins em sua mão, se fará dois ou
um traço da composição do signo do odu que será revelado pelo sistema oracular. A
determinação do Odú é a quantidade de Ikin que sobrou na mão esquerda. O mesmo
será transcrito, atefá, para o Opon Ifá sobre o pó do Iyerossún. Se for um risco se
usa o dedo médio da mão direita e para dois riscos usam-se dois dedos, o anular e
o médio da mão direita. A operação se repetirá quantas vezes forem necessárias até
obter duas colunas paralelas riscadas da direita para a esquerda com quatro sinais,
formando assim a configuração do signo de Odu.
TRANSCICLOPÉDIA EM DIFUSÃO DO CONHECIMENTO 623

Após o atefá, marca do Odu no Oponifá, o babalaô com a ajuda de seu Irofá,
sineta da adivinhação (em forma de sino ou bastão), realiza saudações e rezas para
a interpretação do Odu. O babalaô bate na lateral do Oponifá com o Irofá para
atrair a atenção de Orunmila e proceder a interpretação de maneira justa e correta.

Figura 3 – Irofá

O Òpelè-Ifá ou Rosário de Ifá é um colar aberto composto de um fio trançado


de palha da costa ou fio de algodão, onde são afixados oito metades de fava de opele.
É um instrumento divino e recebe uma série de tratamentos litúrgicos para sua sacra-
lização. As sementes utilizadas para a confecção do Opelê variam de local para local
e podem ser feitas de coco, nozes, semente de manga africana (irvingia gabonenses),
conchas, casco de tartaruga, sendo a mais aceita a semente do Igí Opele (árvore do
Opelê). Existem outros modelos mais modernos de Opele-Ifá, feitos com correntes
de metal intercaladas com vários tipos de sementes, moedas ou pedras semipreciosas.
O jogo de Opele-Ifá é o mais praticado por ser a forma mais rápida, pois a
pessoa não necessita perguntar em voz alta, o que permite o resguardo de sua pri-
vacidade. Com um único lançamento do rosário divinatório aparecem duas figuras
que possuem um lado côncavo e outro convexo, que combinadas, formam o odu.
624 TRANSCICLOPÉDIA EM DIFUSÃO DO CONHECIMENTO

Figura 4 – Opelê

O jogo de Búzios é um sistema de divinação que se originou na África Oci-


dental entre os yorubas, na Nigéria. O sistema se popularizou nas áreas da Diáspora
Africana, principalmente no Candomblé do Brasil, entre os adeptos da Lukumí de
Cuba através da Regla de Ocha.
Segundo Babalaô Ifaleke Arailé Obi, Adilson Antonio Martins (2013, p. 31)
O jogo de Búzios ou Merindilogun tornou-se, no Brasil, o sistema oracular
mais amplamente aceito e difundido. A preferência do brasileiro por esse sis-
tema verifica-se, provavelmente, pela inexistência, até quase o final do século
XX, de Babalaôs no Brasil, o que tornava absolutamente impossível o acesso
aos dois processos divinatórios anteriormente descritos, enquanto os búzios
podem ser jogados por qualquer um que seja iniciado no culto aos Orixás6
[...] É Exu quem, por meio dos búzios, intermedeia a comunicação entre
homens e os habitantes dos mundos espirituais, levando pedidos e trazendo
os conselhos e as orientações, os recados e as exigências.

Como originalmente descrito em alguns mitos e itãs de Ifá, o acesso à adivi-


nhação pelo Opelê e Ikin não era permitido as mulheres, e Orunmilá tinha criado
uma sociedade secreta masculina para resguardar os oráculos. Quando Orunmilá
se encanta com Osun e a toma como esposa, essa coloca algumas condições sendo

6
Essa afirmação não é fato para a maior parte do Candomblé no Brasil, onde apenas alguns inicia-
dos, indicados pelo próprio jogo são autorizados a usá-lo. Tradicionalmente Ekedjis e Ogãs, por
exemplo, não estão autorizados a jogar búzios.
TRANSCICLOPÉDIA EM DIFUSÃO DO CONHECIMENTO 625

o acesso ao oráculo um deles. Orunmilá tentando contornar a situação e não ceder


a adivinhação a Osun lhe dá o cargo de Apetebi, cargo esse de importância tal que
nenhum babalaô procede a seus afazeres sem elas. Mesmo assim Osun não satisfeita
consegue convencer Exú Elegbara a conseguir para ela o segredo da adivinhação.
Exu apodera-se do segredo dos 16 Odus principais e ensina a Osun manipulá-los
com os búzios.
O predomínio das mulheres na condução dos cultos de matrizes africanas no
Brasil e com os conhecimentos necessários para manipulação do Jogo de Búzios fez
com que esse se estabelecesse como o principal oráculo do Candomblé no Brasil.

Figura 5 – Jogo de Búzios

Acessar o jogo de búzios requer da Yalorixá e do Babalorixá conhecimentos


ancestrais e rituais diários que variam de terreiro para terreiro, mas não compro-
metem a tradição oracular. Para “abrir o jogo” a pessoa deve recitar rezas e Orikis
apropriados para reverenciar Orunmilá, Exú, os Orixás de uma maneira geral,
ancestrais, entre outros. Rezar a Mojuba do jogo é uma tradição muito comum e
necessária, é como se o jogo estivesse sendo abençoado. Ela é feita com os búzios
entre as mãos, com a/o sacerdotisa/e já colocada entre seus apetrechos no local de
jogo seja uma esteira, uma mesa, uma superfície onde esteja sua peneira, e com os
cinco símbolos indicadores da natureza da consulta em posição irê. Esses símbolos
são utilizados para identificação do problema do consulente e sua disposição Irê se
626 TRANSCICLOPÉDIA EM DIFUSÃO DO CONHECIMENTO

faz da direita para a esquerda com elementos que variam entre búzios, pequenas
pedras, caracóis, pedaços de ossos, cacos de porcelanas ou cerâmicas e tem seus
significados na seguinte ordem: Okutá — Irê Aiku — não ver a morte; Cauri — Irê
Ajê — dinheiro; Igbin — Irê Okó — cônjuge; Egum — Irê Omó — filhos; e Apadi
— Irê Axegun — vitória sobre os inimigos.
MARTINS (2013, p. 50) afirma que a primeira mão jogada é a mais importante
pois indica o Odu Opolé. Esse é o Odu que rege o jogo, responsável pela orientação
do que vai ser lido nos búzios. Através da “amarração do íbo” se determina se o Odu
Opolé está positivo (Irê) ou negativo (Osôbo). É a partir dessa determinação que
quem está responsável pelo jogo por meio de uma série de técnicas e ações busca
ajudar o consulente no reequilíbrio de sua jornada terrestre. A consulta termina
quando as respostas feitas pelo consulente foram respondidas e os Ebós (oferendas)
determinados para atendimento as solicitações feitas ao jogo.

REFERÊNCIAS
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Secretariado Arquidiocesano de Pastoral. Luanda. 1993. 622 p. il.,

BURNHAM, Terezinha Fróes; Coletivo de autores. Análise cognitiva e espaços


multirreferenciais de aprendizagem: currículo, educação à distância e gestão/
difusão do conhecimento. Salvador: EDUFBA, 2012.

CANTARELA, Antonio Geraldo. Traços do proprium cultural africano e sua


relação com o sagrado. In: Dossiê: religiões afro-brasileiras, Belo Horizonte, v.
11, n. 29, p. 88-108, jan./mar. 2013.

DIAZ, Ricardo Borys Córdova; RIBEIRO, Ronilda Iyakemi. Ifá-Orunmilá


em Cuba e no Brasil. In: PINTO, Elisabeth (Org.). Religiões, tolerância e
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P
69. Perdur ância

Ginaldo Gonçalves Farias

Ao conceber intuição como faculdade ou forma de consciência, avançamos e


criamos o conceito de Perdurância e com ele apresentar algumas características da
intuição.
Nos dicionários, perdurar é o que possui grande durabilidade; o que dura
muito tempo; persistir no tempo. Porém, em nosso trabalho, imprimimos um sen-
tido diferente ao termo. Para melhor explicar, seguimos a técnica de espelhamento,
apresentando conquistas da tradição filosófica sobre a inteligência, confrontando-as
com nossas explicações sobre intuição.
Consideramos que a faculdade da inteligência ou do entendimento funciona
sempre impondo ao objeto condições a priori, como Kant estudou exaustivamente
na Crítica da Razão Pura.
Para Kant, os conhecimentos a priori puros não dependem de experiência e
são destituídos de elementos empíricos. E o conceito kantiano de Transcendental
consiste em considerar o transcendental em condição da possibilidade da coisa e
considerar a coisa cuja condição é o transcendental como fenômeno. Fenômeno,
por sua vez, é tudo que nos aparece segundo nossas condições cognitivas porque a
coisa-em-si não podemos conhecer, apenas os fenômenos são objetos do conhecimento
humano. E a intuição por sua vez pretende conhecer a coisa em si, simpatizar com
ela em perdurância.
Afirmamos que diferente da inteligência a priori e transcendental, a intuição é
perdurante. Como seria isso? Asseveramos que a intuição é uma faculdade perduran-
te, que atua na relação com o objeto simpatizando com sua duração, não impondo
nada a priori, acompanhando a novidade do fluir do acontecimento. Enquanto a
faculdade a priori do entendimento deforma o objeto para conhecê-lo, impondo
a ele regras gerais, como tempo, espaço e causalidade, a intuição busca no objeto
aquilo que ele tem de espiritual, de singular, busca no objeto aquilo que ele possui
de genuíno, busca no objeto sua duração. Enquanto a inteligência ou entendimen-
to encaixa o acontecimento nas regras gerais do fenômeno, a intuição retira-o de
qualquer generalidade. Um acontecer junto, uma simpatia, no dizer bergsoniano.
Perdurar é como o pincel faz, acompanhando o movimento do pintor no qua-
dro. Ele vive as alterações, as intensidades, as curvas, paradas e emoções. O pincel
632 TRANSCICLOPÉDIA EM DIFUSÃO DO CONHECIMENTO

perdura com o artista, simpatiza com ele a um ponto de pincel e pintor ser um único
ser. Como se um interpenetrasse o outro, eles coincidem em duração.
Como a intuição precisa das ideias para se expressar, conforme Bergson, a
intuição cavalga as ideias; no esforço de comunicar a intuição, é preciso dissolver os
conceitos como o pintor faz com a tinta, as ideias e as palavras precisam ser plásticas
como a tinta para deixar escorrer a duração.
Então, perdurância tem duplo sentido, a perdurância que exprime o funciona-
mento da intuição e uma perdurância descritiva que plasma a linguagem ao objeto.
Um exemplo de perdurância descritiva é o poema Canção do vento e de minha
vida do poeta Manuel Bandeira; nesse poema, a palavra vento é dissolvida para passar
a ideia de tempo e, ao ler o poema, os conceitos vento e tempo disputam o sentido
da palavra vento, como uma tinta no jogo de um pintor.

O vento varria as folhas,


O vento varria os frutos,
O vento varria as flores...
E a minha vida ficava
Cada vez mais cheia
De frutos, de flores, de folhas.

O vento varria as luzes,


O vento varria as músicas,
O vento varria os aromas....
E a minha vida ficava
Cada vez mais cheia
De aromas, de estrelas, de cânticos.

O vento varria os sonhos,


E varria as amizades...
O vento varria as mulheres...
E a minha vida ficava
Cada vez mais cheia
De afetos e de mulheres.

O vento varria os meses


E varria os teus sorrisos...
TRANSCICLOPÉDIA EM DIFUSÃO DO CONHECIMENTO 633

O vento varria tudo!


E a minha vida ficava
Cada vez mais cheia
De tudo.

Bergson já indicava as dificuldades de comunicação da intuição e indicava


uma flexibilização na linguagem:
Que não nos peçam, então, uma definição simples e geométrica da intuição.
Será por demais fácil mostrar que tomamos a palavra em acepções que não se
deduzem matematicamente uma das outras... Acerca daquilo que não é abs-
trato e convencional, mas real e concreto, com mais forte razão acerca daquilo
que não é reconstituível com componentes conhecidos, acerca da coisa que
não foi recortada no todo da realidade pelo entendimento nem pelo senso
comum nem pela linguagem, não se pode dar uma ideia a não ser tomada dela
vistas múltiplas, complementares e não equivalentes. (2006d, p. 31, grifo nosso)
Acrescento a essas vistas múltiplas a perdurância discursiva que seria uma di-
namização no vocabulário ou uma espécie de representação flexível. Muito esforço
se fará em relação às dificuldades da comunicação da intuição e sua perdurância,
porém a principal ação perdurante é um acontecimento epistemológico.
Na palavra perdurância, explode um esquema epistemológico na maneira de
conhecer da inteligência a relação sujeito-objeto. A noção objeto obriga o sujeito a um
distanciamento e a uma exterioridade do que pretende conhecer, como está afastado do
objeto o sujeito precisa de uma ligação, um caminho para chegar até seu objeto, essa
mediação é feita por conceitos; grosso modo, podemos denominar a isso de análise.
A inteligência gravita em torno do objeto pontuando perspectivas, esse conhecimento
produzido de fora para dentro vai analiticamente dos conceitos às coisas. No entanto,
há um lugar que o olhar exterior do conceito não alcança: o interior do objeto. Essa
forma de conhecer reúne suas impressões em sequências e apreende o objeto como
uma coisa na sua totalidade acabada. Com tudo lá no interior do objeto a intuição
em perdurância entende que a coisa é um processo, um movimento, um vir-a-ser. Por
isso, uma das principais distinções do conhecimento da inteligência para o da intui-
ção é que um define em conceito a coisa e o outro apresenta um processo em curso.
A equação do conhecimento constituída de sujeito e objeto, onde Kant pode
fazer sua revolução copernicana invertendo a ordem de determinação porque antes
de Kant pensava-se que o objeto era o centro do sistema cognitivo, e o sujeito se
adaptaria ao objeto, porém Kant refez essa equação colocando o sujeito no centro
do sistema; para Kant o sujeito deforma o objeto para conhecê-lo.
634 TRANSCICLOPÉDIA EM DIFUSÃO DO CONHECIMENTO

Com a intuição essa equação é substituída pela simpatia, em vez de determina-


ção entre sujeito e objeto acontece a perdurância que não se constitui uma equação
nem uma análise, mas um contato.
Segue abaixo uma experiência ou um testemunho da intuição onde podemos
notar a perdurância: Minha teologia.
Depois do mar de lama da política, que parecendo acidente ecológico em mi-
neradora, saiu invadindo tudo, carnaval, discussões filosóficas, papos de futebol e
de sexo. Tudo enlameado pela lama da política de lama. Resta a teologia como lugar
arejado onde fica muito difícil levarem pra lá coxinhas e mortadelas.
Hoje ao levar a netinha à praia, falei em Salvação. Salvação geralmente é utilizada
como a ida para o paraíso ou o prêmio da vida eterna e felicidade depois da morte.
Na minha teologia ateia torci o conceito de Salvação, arranquei dele a eterni-
dade e afirmo que há momentos de salvação, uma salvação assim é fabulosa, pois
ela vem como um prêmio e depois passa, então voltamos à nossa miséria cotidiana.
Os existencialistas afirmam que a angústia seria um momento assim, de existência
autêntica, onde o mundo perde o sentido e ficamos suspensos no nada. Diferente da
angústia essa Salvação momentânea nos insere na singularidade do mundo, com uma
precisão de instante, com tamanha intensidade que, nesse instante, tudo é alegria e
vitalidade, respiração, pulso e rotação da terra, as ondas do mar, as nuvens do céu, as
flores e os pássaros. Tudo, o mundo completamente comprimido nesse momento, as
forças universais contidas em um corpo de criança com seus movimentos inseguros
e de uma fragilidade tremendamente poderosa, superior, inocente, angelical.
Se o salário do pecado é a morte, na minha teologia, morte é não experimentar
essa salvação de momento, essas gotas de paraíso, que não acontecem para lhe oferecer
vida eterna, essa conversa mole, mas vem lhe oferecer na sua vida de mortal uma ex-
periência de deuses, uma fé de Abraão, uma força de Hércules, uma resignação de Jó,
e a baleia que engoliu Jonas serão peixinhos mordiscando o coral e Deus em todo seu
esplendor nos aparece como criança. Em vez de cair por terra como Moisés, carrega-
mos Deus, tão pequenino, tão indefeso, que comove qualquer velho ateu rabugento.
Hoje fui salvo, por um momento. Como tudo nessa vida, a salvação vai embo-
ra, resta esperar que antes do último suspiro, ela volte para outros banhos de mar.
Resultado da experiência: Salvação momentânea ou paraíso como duração
Conceito de salvação ou paraíso está presente na teologia associado à ideia de
imortalidade e eternidade e a um lugar de felicidade, um jardim, o paraíso. Em
minhas pesquisas e intuições, desviei o conceito, retirei dele a ideia de eternidade e
de lugar (espaço). Entendi a salvação como momentos, onde a intensidade do viver
TRANSCICLOPÉDIA EM DIFUSÃO DO CONHECIMENTO 635

e alegria de estar aí ilumina, mas, como tudo, a salvação vai embora e depois desse
surto de alegria intensa, voltamos à perdição e à miserabilidade de nossa existência.

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Editora 34, 1999.
70. Polifonia

Osvanildo de Souza Ferreira


Maria Inês Corrêa Marques

Para o enciclopedista Houaiss, polifonia é um conjunto harmonioso de sons;


multiplicidade de sons, simultâneos. Este linguista entende que a combinação de
sons pode representar, a um só tempo, várias tonalidades vocais na música gótica.
­(LAROUSSE, 1979, p. 661).
A palavra polifonia é a combinação de poli + fonia onde poli vem do grego
polus, e significa um número indefinido e elevado. Poli participa da composição de
diversos termos, logo costuma ser usado em diversas palavras em português. Por sua
vez, o significado fonia é representado por elementos de composição que exprime
som. Fonia também entra na composição de várias palavras ou dialetos nacionais ou
regionais e aparece na língua para dar sentido aos grupos de falantes ou escreventes,
usuários da língua vernácula. Assim posto, à combinação de poli + fonia se forma
a palavra polifonia.
A palavra “polifonia” percorreu diversos caminhos adquirindo muitos sentidos
na história da humanidade. A gama de significados assumidos pela palavra polifonia
ao longo da história nos levou a uma variante da palavra original dando origem à
polifonia linguística que nos dá uma grande dimensão polissêmica, o que permite
sua aplicação nas diversas áreas das ciências humanas.
O registro histórico convalida a proposta desse verbete transciclopédico, que é
pensar a palavra polifonia linguística numa acepção contemporânea, não compor-
tando, portanto, neste breve estudo, debates nem refutação, mesmo porque o que
se pretende é apresentar uma proposta para a palavra original sem perder de vista a
radicalidade da palavra polifonia.
Da música à literatura os sons das vozes vão sendo adaptados até que no século
XIX o filósofo linguístico Mikhail M. Bakhtin desenvolveu uma nova visão para a
palavra polifonia nos romances de Fiódor Dostoiévski, tendo a perspectiva de autoria
onde a criatura refuta o criador. Para Bahktin torna-se possível auscultar a voz das
personagens dos romances de Dostoiévski.
O objetivo deste verbete transciclopédico, desde o início, foi o de percorrer a
história da palavra polifonia no tempo, da Grécia antiga aos dias atuais. Por este
motivo, foi feita uma seleção na obra de Bakhtin, sendo destacados dois livros que
TRANSCICLOPÉDIA EM DIFUSÃO DO CONHECIMENTO 637

tratam sobre polifonia na acepção linguística no seu uso nas obras: “A Cultura
Popular na Idade Média e no Renascimento” (2013a) e “Problemas da Poética em
Dostoiévski” (2013b).
A palavra polifonia no livro “Problemas da Poética em Dostoiévski” (2013b),
para Bathkin, está revestida da consciência do outro como sujeito, mostra a cons-
ciência de vários sujeitos de maneira imiscíveis. Bakhtin não perdeu de vista a voz
do sujeito no mundo e mesmo assim mostrou o salto linguístico que Dostoiévski
precisou dar a sua personagem ao sair da antinomia para a dialética. Descreve
Bakhtin que o iluminismo desenvolveu um tipo especial de pensamento por meio
de aforisma, mas faz um contraponto a este pensamento, pois sua obra exige do
leitor a captura de muitos capítulos e a profundidade reflexiva para entender o viés
de seu pensamento. O que vemos em PPD é que para compreender sua acepção
sobre polifonia é preciso mergulhar em sua obra e perscrutar as vozes das perso-
nagens que debatem com o autor e refutam-no através das vozes polifônicas dos
romances de Dostoiévski.
Para Bakhtin em PPD, a polifonia tem seu apogeu ao apresentar que as “[...]
vozes permanecem independente e, [...] se falamos em vontade [...] ocorre a com-
binação de várias vontades individuais [...] é a vontade da combinação de muitas
vontades, a vontade do acontecimento.” (BAKHTIN, 2013, p. 23). É esta vontade
do acontecimento que pode ser representada pela vontade artística da polifonia
sendo a vontade de muitas vontades. Na obra PPD, existe um processo dialógico de
interação na relação das vozes que povoam a obra de Dostoiévski. Para deixar mais
claro o que queremos dizer, convidamos a pesquisadora e escritora Beth Brait para
nos dar sua contribuição.
Por sua maleabilidade no tempo, os dramaturgos têm se apropriado da pala-
vra polifonia para dar voz às suas personagens nos palcos da Grécia Antiga.
No período medieval a polifonia entra na Escola de Notre-Dame de Paris.
Nos romances russos de Dostoiévski, a polifonia continua atuando em cena.
Pesquisadores das diversas áreas acadêmico-científicas também se utilizam da
palavra polifonia como um recurso linguístico para dar voz a suas personagens
no período contemporâneo (BRAIT, 2013, p. 60).

Para Brait, a palavra polifonia é utilizada no “[...] diálogo socrático e na sátira


menipeia que, conjuntamente”, vão fertilizar o terreno para que a polifonia possa
florar e ter seu “apogeu em Dostoiévski”, que teve sua obra profundamente revisitada
por Bakhtin, filósofo linguista que apresentou ao mundo a polifonia nos romances
de Dostoiévski. (BRAIT, 2013, p. 60)
638 TRANSCICLOPÉDIA EM DIFUSÃO DO CONHECIMENTO

Brait, em “Bakhtin, dialogismo e polifonia” (2013), nos apresenta Bakhtin


como o criador da tradição do gênero polifônico. Por meio desse gênero m ­ ostra-nos
a cosmovisão carnavalesca que está diretamente ligada aos escritos no século XVIII e
XIX, especialmente de Bocaccio, Rabelais, Shakespeare e Cervantes. Essa cosmovisão
de Bakhtin entre os romancistas dessa época permite que Bakhtin possa reviver uma
sátira menipeia reformada e um diálogo socrático que organicamente o faz articular
as tramas e as particularidades do romance polifônico. (BRAIT, 2013).
Para tanto, afirma Brait (2013), esses termos polifonia e carnavalização exigem
como leitura um livro também importante de Bakhtin: “A Cultura Popular na Idade
Média e no Renascimento” (2013a). Este livro nos leva a perscrutar e a mergulhar
nos bastidores da vilania da Idade Média. Nele, Bakhtin mostra os vícios e o barulho
das vozes humanas provocadas por suas vísceras e suas necessidades físicas. Bakhtin
escreve que o carnaval é uma festa universal e tem caráter peculiar no mundo, portan-
to, nesta obra o filósofo transporta a ideia de polifonia/carnavalização para fora dos
muros dos castelos da Idade Média, para os arredores, para o burgos. (BRAIT, 2013)
Na obra “A Cultura Popular na Idade Média e no Renascimento” (2013a),
Bakhtin apresenta o conceito de cultura a partir do romance de Rabelais, descreven-
do que esta obra é citada pelos franceses como uma sabedoria na corrente popular
dos antigos dialetos. Afirma o filósofo que não quer decidir se é justo ou não que o
Romance de Rabelais seja igualado a Shakespeare ou mesmo ao lado de Cervantes.
Para Bakhtin, o mais importante é que o romance de Rabelais apresenta a chave
para entender a cultura, sendo considerado porta-voz da literatura cômica popular.
(BAKHTIN, 2013).
Entre centenas e centenas de artigos publicados em revistas especializadas,
escolhemos o artigo de Faraco por sua envergadura e por conter 39 publicações
relacionadas. O documento a seguir traz uma rápida visão do círculo de Bakhtin
onde a ética e estética são os temas que ocupam estes pensadores.
Faraco em seus estudos vai encontrar Bakhtin no início da década de 1930
como um pensador esfuziante. Em relação aos romances de Dostoiévski, Faraco o
considera como inovador, ao vislumbrar a voz da ética/estética e dá forma ao novo,
a polifonia enquanto um conjunto de vozes equipolentes é também um mixe de
todas as vozes no interior do objeto estético. Vai mais longe Faraco ao afirmar em
nome de Bakhtin que “[...] a polifonia é um contraponto dialógico, uma espécie de
Ágora perfeita”. (FARACO, 2017).
Ao final do artigo, Faraco surpreende o leitor com uma proposição estonteante:
Será que Bakhtin “Teria se dado conta de que um mundo radicalmente democrático
TRANSCICLOPÉDIA EM DIFUSÃO DO CONHECIMENTO 639

e dialógico, do qual estão ausentes relações de poder, de subordinação de redução


da alteridade era um exagero quimérico? (FARACO, 2017, p. 25).
A pergunta que responde e que coloca em suspensão a possibilidade de uma
Ágora perfeita, perturba, desequilibra nossas certezas. Por outro lado, cria novo viés
ao possibilitar outras descobertas que pensamos plausíveis e ancoradas na realidade
vivida, sem pensar nas “certezas metafísicas” da razão do iluminismo, e nem na
revolução copernicana de Kant, mas, numa realidade baseada na construção de um
ser também inconcluso como o ser que Bakhtin alcançou em Dostoiévski, mas sem
a utopia inatingível de uma Ágora perfeita. Este ser inconcluso está materializado
no dia a dia, vive, sofre e ri, sendo aqui representado na voz individual ou do grupo,
falada e construída nas relações hodiernas de um contemporâneo que tem suas bases
ancoradas na construção de ser histórico social.
No século XXI, uma nova forma de pensar e penetrar nas entranhas da sono-
ridade polifônica se instaura e muitas vozes se apresentam. No meio do caminho,
entre tantas vozes, a recepção das vozes de um cotidiano que querem ser ouvidas
clama por socorro. Este pedido nos chega como se existisse uma metáfora das vozes.
O que é isto, a emissão/recepção das vozes? É como se houvesse muitas bocas
abertas a reverberar seus clamores. Um conjunto de vozes se apresentam e querem
ser ouvidas, esta é a condição primária para mostrar indignação perante a negação
dos clamores.
As vozes que querem ser ouvidas falam na calada da noite, nas esquinas, nos
bares, nas áreas baldias. Seja na Idade Média ou na era Contemporânea os renega-
dos na sociedade moram nas redondezas dos castelos ou das grandes metrópoles.
Os indivíduos alijados do sistema vivem os reveses da falta de atenção dos ouvidos
moucos aos clamores dessas populações, em qualquer época ou lugar.
As vozes que pedem atenção são de indivíduos que se escoram uns nos outros. A
maioria não participa de grupos por falta de afinidades. Seus desejos de completude
são diferentes entre si, mas se aceitam e se compreendem na indiferença social que
os toca de perto, são os não incluídos. Sabem que não pertencem a nenhum grupo.
Fazem parte do conjunto de vozes a protestar. Querem ser ouvidas, bradam por um
estado polifônico. Pedem pela atenção do outro.
Nesse movimento de alteridade onde o meu eu precisa ser visto eu também
preciso fazer o movimento para ver e ouvir o outro. É preciso pensar a palavra que
será lançada ao mundo. Estas palavras ecoam carregadas de signos. O signo de um
paradigma a ser superado. O signo da indiferença social precisa ser transformado
em som audível, em som polifônico.
640 TRANSCICLOPÉDIA EM DIFUSÃO DO CONHECIMENTO

Quando indivíduos se unem por afinidades, qualquer que sejam, formam gru-
pos. Os grupos são capazes de lançar as palavras que os definem. Precisam fazer com
que suas palavras possam ecoar num processo de difusão para ocupar um território.
Em grupo, reunidos por afinidades, os indivíduos são capazes de compreender as
dificuldades, as rejeições para enfrentá-las, consciente, e poder lançar as palavras
do grupo na comunidade, fazê-la reverberar ao produzir o som que representa os
diversos indivíduos que pertencem ao grupo. Neste sentido, é preciso difundir o
som do grupo. É preciso criar as palavras que representam o grupo. É vital ocupar
território e fazer ecoar o som, difundindo os anseios na direção da produção do
som polifônico.
Qual será a interrogação principal para pensar a palavra que quer soar como
o som polifônico do grupo? Como interrogar a palavra lançada pelo grupo, qual o
seu papel social? As palavras lançadas na comunidade deverão ser antes desveladas
pelo grupo, assim como a pedra traduzida por Champoleon? Logo, a pedra/palavra
desvelada quer participar da Ágora e possibilitar debates que possam ir para além do
ponto que nos toca e nos fere. Mesmo que esta pedra/palavra nos fira, será essa a voz
da palavra polifonia desse tempo? Por que os grupos devem se revelar e difundir seu
conhecimento? São interrogações que deverão ser tratadas mais à frente de forma a
que cada indivíduo tire suas conclusões e produza no coletivo a palavra do grupo.
Este esboço aspira lançar a semente que transgride e exige a saída dos indiví-
duos do senso comum, pois pretende perscrutar, indagar e investigar. Estas são três
palavras que contribuem para entender o que seja o som polifônico de um grupo.
Encontre-o, essa é a proposta. Esse pensar/refletir precisa ganhar voz, precisa rever-
berar e, ao final, difundir conhecimento do grupo. O grupo precisa se fazer presente
e dar significado para o conjunto de palavras lançadas, elas precisam ganhar um
único significado, o do grupo.
Os indivíduos juntos precisam contribuir com o que tem de similar e produzir o
significado que dá voz ao grupo e representar o som polifônico do grupo. As palavras
precisam ecoar para transmitir o som do seu grupo. As palavras lançadas por um
grupo de excluídos precisam sair do lugar comum e sofrer transmutação para ocupar
um território. Sair do não lugar e ocupar o locus da voz polifônica. Pretende este
esboço, para além de transgredir, provocar, para que os indivíduos possam evocar
o som que é capaz de dar um significado apropriado de pertencimento, elaborando
o signo que expressa o som polifônico do grupo.
É preciso perscrutar e ouvir com calma a voz interior como se estivesse sentado
em uma pedra, embaixo da cachoeira, ouvindo o som das águas que, ao tocar nas
TRANSCICLOPÉDIA EM DIFUSÃO DO CONHECIMENTO 641

pedras, respingam o som que precisa ser resgatado por seu grupo. Nesse começar,
pelo que nos toca, é necessário se fazer iniciado e se fazer capaz por meio do exer-
cício de ouvir a si e ao outro em um processo de alteridade. Será preciso ser capaz
de decodificar o escrito pelo grupo e transcrever o que está se apresentando como
código. Pode ser que se queira desde o início se apresentar como membro de um
grupo por afinidades, um grupo que tenha ou não, a sua voz polifônica. Então: este
querer é a confirmação de uma iniciação por já ter sido tocado por uma pedra que
carrega em si significados milenares.
Uma dessas pedras, que foi repositório de uma época, foi encontrada por sol-
dados de Napoleão na cidade de Roseta no Egito. A Pedra de Roseta continha três
mensagens codificadas. Assim como a caixa preta dos aviões, a Pedra de Roseta, sim-
bolicamente, representava a voz de seu tempo. As três mensagens reproduziram uma
só voz após terem sido decifradas por hermeneutas, o som polifônico de um grupo.
Ao decodificar e lançar o contido na Pedra de Roseta ao mundo, projetou-se a difusão
do conhecimento. Por meio dessa mensagem, o ocidente pode ouvir a voz polifônica
de uma época. A mensagem sintetizada nas três escritas da Pedra revelou os segredos
“próprios e apropriados” dos sacerdotes (Galeffi, 2017). Essa mensagem representou a
voz polifônica do grupo dos sacerdotes Mênfis do Egito. (SÃO PAULO, 1996, p. 852).
Os códigos que aparecem cunhados nos corpos dos seres são como herança genética.
O desvelar das mensagens cunhadas na pedra encontrada no Egito são como as vozes
polifônicas dos sacerdotes de Mênfis que se fizeram ecoar após decifradas. Os seres, as
coisas e os indivíduos são carregados do carbono 14 que permite analisar os códigos
e após leitura podem determinar o tempo de vida do que estiver sendo analisado. Po-
der-se-ia pensar que quando o Demiurgo criou os seres com toda sua complexidade,
cunhou esses códigos, tipo os fractais para que as pedras, os vegetais e outros objetos
da natureza pudessem ser decodificados por meio de suas medidas e suas formas o
que determina uma perspectiva de proximidade por afinidades.
As afinidades aproximam os seres humanos, isto ajuda a entender seus códigos.
As informações contidas nos códigos são transmitidas por seus ancestrais. As coisas
do mundo também compõem e contém o arcabouço antropológico de um tempo.
Na relação espaço/temporal, a decodificação das informações permite identificar a
complexidade existente nos seres e nas coisas de uma época. As informações colhidas
por cada grupo podem ser repassadas por um processo de difusão do conhecimento,
podem ser transmitidas como legado para outras gerações. Esses dados transmiti-
dos poderão ser lidos no futuro como o som polifônico de uma época ou como a
polifonia cultural.
642 TRANSCICLOPÉDIA EM DIFUSÃO DO CONHECIMENTO

As civilizações têm transmitido seu legado cultural para cada um de nós, esse
legado é acrescido das experiências de nossas vidas. Essas informações trocadas,
acrescidas, transmutadas reverberam como se fossem uma difusão do conhecimento
do mundo, como o saber universal que transmitimos e o saber que nos chega como
a voz da polifonia cultural.
A voz da polifonia cultural vai sendo transmutada como legado a outros povos.
Nós somos como a Pedra de Roseta, que precisa ser decodificada e desvelada. O ser
que sou está carregado da cultura transcendental e milenar. Articulando a cultura
da ancestralidade. Compreende-se aí todo legado universal da formação humana.
No conjunto dessas articulações entram todas as informações humanas. Ler as
informações dos diversos grupos torna possível ouvir o som da polifonia cultural.
O som da polifonia cultural é heracliteano, por isto, permite construir e recons-
truir o processo cultural todos os dias, sendo assim, morre o velho que dá lugar ao
novo. É um re-nascer que permite transmutar o processo cultural. O som da polifonia
cultural exige entender o conjunto de dados novos que se apresenta em forma de
vozes ao coletivo de indivíduos. Esse movimento de novo/velho/novo representa a
voz heracliteana que tem no seu cerne o paradigma da mudança. Ao entender esse
movimento se compreende a voz da polifonia cultural que está em tudo e em todos.
A voz da polifonia cultural é a voz que representa a história da vida dos in-
divíduos, a história dos membros dos grupos e das comunidades, sendo assim é a
voz que comporta os símbolos e os valores da sociedade. Neste sentido, essa voz é
dialógica, não sendo meramente lógica/linguística. Os grupos organizados convivem
e têm a dimensão dos valores que estão na base de todos os indivíduos, na base de
seus grupos e comunidades. Isto posto, os indivíduos podem ouvir o som/voz das
mitologias e das religiões que tentam explicar o início de tudo o que existe no mundo
e representar a diversidade cultural humana nas mais diversas formas, deixando suas
obras como legado cultural, promovendo a difusão do conhecimento produzido por
uma época. Este esboço não pretende encontrar a matriz biológica da existência
humana, não obstante, neste parágrafo, deseja sinalizar que, na natureza humana,
nas pedras e nas coisas do mundo, existe um código que pode se revelar através
de um som próprio e este som é intrínseco à natureza de cada existência. Este som
das coisas, por meio de sua manifestação, é denominado aqui como som polifônico
das coisas e da própria natureza. Quando falamos de natureza envolvemos todo o
complexo existente no mundo que contribui para a vida humana.
As florestas, os rios, o ar e a terra são elementos essenciais para a vida. Todavia,
o que este esboço pretende é sinalizar que o som polifônico existe e depende da cadeia
TRANSCICLOPÉDIA EM DIFUSÃO DO CONHECIMENTO 643

ecológica existente para se tornar manifesto. Os seres humanos são mais complexos e
por ser de natureza diferente, seu som polifônico é carregado de uma complexidade
própria, o que exige outras formas para se manifestar numa complexidade para além
da natureza e da lógica. Experimente ver e ouvir os sons polifônicos dos rios, das
aves e das florestas.
As florestas dependem da voz propagada pelos bichos que nela residem. Os
pássaros contribuem com o som da floresta. As abelhas e os beija-flores têm um
som próprio de seus grupos. Esses bichos polinizam a floresta e contribuem para
a continuidade da vida. Na parte inferior da floresta, existe o som das raízes que
alimentam os caules e auxiliam com sua seiva a fortalecer as raízes fracas na manu-
tenção da vida desse grupo. Esse é o som do rizoma subterrâneo que mantém a vida
das grandes árvores formando um parque ecológico em cada lugar de sua existência.
A manutenção da vida ou da existência desses seres se dá pela forma como
cada grupo se apropria de seu som, disto depende cada coletivo. As florestas são
um grande exemplo da apropriação e da difusão desse som. O conjunto de sons
da floresta contribuem para prover um rizoma ecológico forte que é responsável
pela manutenção da vida na floresta e de outras vidas para além da floresta. O som
emitido e apropriado por esse rizoma é a voz polifônica da floresta.
Essa voz polifônica da floresta deveria ser o exemplo a ser seguido pelos seres
humanos. Quando a humanidade for capaz de entender todo o bioma e a voz da
floresta ela será capaz de entender o som polifônico da floresta que contém nela o
significado da vida. Os seres humanos com toda sua complexidade precisam apren-
der o significado da manutenção da vida, que é transmitido pela natureza. Nesse
tocante, a ecologia da floresta comporta uma similaridade com o coletivo humano.
Alguns grupos já perceberam que fazemos parte de uma comunidade ecológica, assim
como a voz polifônica humana que está representada pela voz polifônica cultural, a
natureza em sua “sabedoria” nos transmite a lição de que cada um na comunidade
depende de todos. Há uma diversidade ecológica nas comunidades da floresta, dos
rios e dos pássaros que emitem som próprio. Dentro dessas comunidades encontra-
mos os grupos que voam em bando emitindo som próprio, nos rios os cardumes têm
seu som e sua polifonia. No encontro dos rios com o mar se dá o estrondo, que é a
voz da pororoca. Esse encontro emite o som da contradição dialética da existência
e manutenção da vida nas duas comunidades. A dialética se dá na entrada do rio no
mar e o mar no leito do rio. A contradição das duas partes que se unem através de
uma força oculta promove o som da polifonia da pororoca, que é dialético por não
ter propriedade definida e por se encontrar em contradição nas suas representações
644 TRANSCICLOPÉDIA EM DIFUSÃO DO CONHECIMENTO

simbólicas. Se afastando a uma pequena distância da pororoca em relação ao rio,


encontramos o som polifônico dos rios e se a distância da pororoca for mar adentro
o som polifônico do mar é privilegiado.
Portanto, a luta dos contrários mantém viva cada sistema e sua ecologia, a
mistura dos dois mantém a vida de ambas as comunidades.
No ar existe uma infinidade de pássaros que emitem o som de seus bandos/
grupos e esse som ajuda a manutenção e direção dos bandos/grupos conservando
suas existências. Alguns bandos/grupos voam formando um “V”. Nesses grupos, um
pássaro se mantém provisoriamente como líder emitindo o som acompanhado por
seu grupo que, ao voar atrás e ao lado dos que emitem o som, simbolizam afinidade e
direção a ser seguida. Grandes bandos precisam de muitos indivíduos para emitirem
o som representativo da afinidade. Os sons emitidos por esses pássaros representam
o som polifônico desse bando/grupo de pássaros.
As comunidades ecológicas provam que a sobrevivência dos grupos depende
das afinidades e da emissão da voz do grupo. A voz polifônica das comunidades e
de seus grupos nos faz compreender o que é uma voz polifônica. É preciso treinar
para ouvir a voz dos grupos e dos micros grupos, incluindo os grupos humanos que
fazem parte dessa ecologia.
Muitas vozes ajudaram a compor a voz de cada grupo. Existe uma voz em
cada um de nós que, no conjunto de vozes, compõe por afinidade a voz polifônica.
Os diversos indivíduos de um grupo, reunidos e reflexivos, podem produzir a voz
polifônica dos grupos. Nesse conjunto de vozes ecoadas nos palcos da criação/de-
codificação se dá a compreensão das vozes polifônicas.
Cada indivíduo em sua singularidade aprende a ouvir a voz de seu grupo em
seu percurso de vida. Os signos que lhe dão sentido representam a voz da criação.
Os grupos, ao se organizarem, pronunciam a voz polifônica do grupo. Essa voz
difundida é um conhecimento que precisa ser ouvido e assimilado. Só o grupo é
capaz de fazer reverberar a agonia, as mazelas e as delícias que é fazer parte de um
grupo por afinidade. Refutar o isolamento e dar voz a sua realidade é empoderar
os indivíduos como protagonistas da sua própria história e do seu grupo. A experi-
ência de com-viver em grupo é produzir e difundir o conhecimento, empoderar, é
possibilitar o pertencimento, essa é a voz polifônica de um grupo.
Portanto, existem muitas polifonias a serem desveladas. Ao conjunto de
todas as polifonias do mundo denominamos voz polifônica da humanidade. São
muitas vozes nessa construção e aparição dos grupos que estão às margens; muitos
sons nos chegam borbulhando como numa cachoeira, uns compreensíveis outros
TRANSCICLOPÉDIA EM DIFUSÃO DO CONHECIMENTO 645

ainda inaudíveis por incapacidade subjetiva de interpretação linguística, filosófica


e antropológica.
Por existir muitos grupos, cada grupo precisa se desvelar e se apresentar. Nem
a Hermes (mensageiro dos deuses gregos) foi dada a primazia em desvelar todas as
vozes/palavras do mundo. A voz/palavra dos deuses são a representação simbólica
do som polifônico do mundo/deuses.
Em Heráclito existe uma voz que se renova após o banho do rio, mas o mergulho
exige coragem, pois os seres precisam se despir para encontrar o novo e abrir mão
do velho. O rio de Heráclito provoca o fascínio do ciclo da vida/morte/vida. Esae
paradigma da morte que dá lugar à vida é o mote do som da polifonia. Destruir para
reconstruir com os elementos existentes um novo paradigma onde a com-vivência dê
primazia à existência e à manutenção de uma vida entre os humanos, assim, difundir
o som produzido a partir dessa experiência é propagar o som da polifonia humana.
Como fazer reverberar/difundir a palavra/voz? A palavra que provoca agonia
e a palavra que provoca felicidade é que dá o tom do grupo. A resposta está na in-
tervenção do grupo! Como fazer a intervenção? Depende de cada grupo. As vozes
que se unem por suas afinidades tendem a sobreviver. Cada grupo precisa revelar os
pesquisadores que vão dar voz ao grupo. Esses pensadores serão os responsáveis pela
difusão desse conhecimento denominado de voz polifônica do grupo.
Como descobrir a voz polifônica do grupo? Isto só será possível a partir da
imersão dos membros do grupo. A sobrevivência do grupo depende dos indivíduos
se re-unirem por afinidades e procurar ouvir a voz de pertença. Desvelar ao social
as necessidades e impor a ocupação de um território é a forma de se aproximar por
afinidade ao seu grupo. Dar visibilidade e se fazer respeitar através da emissão da
voz do grupo e demonstrar ao social que não há mais estranhamento no grupo e
sim uma exigência de respeito mútuos. Isto só é possível quando se conhece a voz
polifônica do grupo na comunidade.
Inexiste uma fórmula a ser passada ao grupo. Neste esboço é oferecida a provoca-
ção que pode alimentar o processo construtivo dos indivíduos. É importante produzir
a voz polifônica que seja identitária do que toca, fere e regozija cada grupo. Ao ouvir
a voz dos membros do grupo é a sua voz sendo reproduzida de maneira uníssona.
Cada grupo precisa se apresentar e criar a voz polifônica do grupo a ser di-
fundida à sociedade.
Os indivíduos que não conseguem se organizar em grupos para produzir sua
própria voz podem ser convidados a decifrar as palavras da Efígie de Tebas “Deci-
fra-nos ou te devoro”.
646 TRANSCICLOPÉDIA EM DIFUSÃO DO CONHECIMENTO

REFERÊNCIAS
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coordenada e revisada por Alfredo Bosi, et al. 2.ed. São Paulo: Mestre Jou, 1962.

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Paulo Bezerra. 5.ed., Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2013b.

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BRAIT, Beth (Org.). Bakhtin, Dialogismo e Polifonia. São Paulo: Contexto,


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FARACO. C. A. Aspectos do pensamento estético de Bakhtin e de seus pares.


Disponível em http://revistaseletronicas.pucrs.br/ojs/index.php/fale/ article/ view
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GALEFFI, Dante Augusto. Didática filosófica mínima: ética do fazer-aprender


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LAROUSSE, Koogan. Pequeno Dicionário Enciclopédico. Rio de Janeiro:


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SÃO PAULO. Folha de, Nova ENCICLOPÉDIA ILUSTRADA, FOLHA, vol.


1 e 2, Editora, PUBLIFOLHA, São Paulo, SP, 1996.
R
71. R aciocínio Baseado em Casos

Márcio Vieira Borges

Corriqueiramente, recorre-se a experiências passadas para resolver problemas


atuais. Paralelamente, aproveita-se para aprender e adquirir conhecimento com a
nova situação.
O Raciocínio Baseado em Casos (RBC) é, segundo Wangenheim e Wangenheim
(2003, p. 8), “[...] um enfoque para a solução de problemas e para o aprendizado
baseado em experiência passada”. De forma simplificada (ou reduzida), pode-se
entender o RBC como solução de novos problemas por meio de casos anteriores já
conhecidos. Um caso antigo pode ser usado (aplicado) como solução total ou parcial
de um novo problema, podendo ainda modificar-se a solução de acordo com os
requisitos da nova situação (WANGENHEIM; WANGENHEIM, 2003, p. 1-2).
O RBC é aplicado de forma simples e direta em uma ampla gama de tarefas,
inclusive no dia a dia várias pessoas recorrem a essa técnica no exercício da sua
profissão, como, por exemplo, um médico que sugere ao paciente um tratamento
similar a um que usou em outro e obteve resultados positivos. Ou quando um ad-
vogado reforça seus argumentos através de jurisprudências semelhantes. O RBC é
ideal para situações onde os usuários são iniciados capazes de entender problemas,
mas de não, inicialmente, resolvê-los nem classificar seus sintomas.
Dificilmente a solução de um problema novo é exatamente a mesma que foi
usada em um caso anterior, porém baseado na premissa de que “[...] problemas
similares possuem soluções similares” (WANGENHEIM; WANGENHEIM,
2003, p. 96), um caso anterior pode servir de norte para a solução de um problema
atual, ou ser uma solução parcial ao novo caso. Porém, o que é comum em todos os
casos é que se trata de experiências reais armazenadas que, ao serem relembradas,
formam um contexto no qual o conhecimento nela inserido é supostamente aplicável
­( WANGENHEIM; WANGENHEIM, 2003, p. 65).
Os sistemas RBC necessitam que seja inserida uma sequência de casos que
representa o conhecimento sobre determinada área expressada na forma de uma série
de características e soluções de problemas. Dessa forma, o conceito de similaridade
se torna imprescindível para o sucesso dessa ferramenta. Como o RBC usa casos
antigos para resolver problemas novos, geralmente desconhecidos, a indicação de
casos adequados como solução não necessita ser idêntica à situação atual.
650 TRANSCICLOPÉDIA EM DIFUSÃO DO CONHECIMENTO

De acordo com Wangenheim e Wangenheim (2003, p. 27), “[...] sistemas


baseados em conhecimento são de difícil manutenção”; e normalmente esses arma-
zenam conhecimento sob forma de regras ou modelos gerais de conhecimento. A
representação de conhecimento sob forma de regras nem sempre reflete a forma de
pensar do usuário, uma vez que estas, para serem compreendidas pelo sistema, muitas
vezes são formuladas de uma maneira de difícil entendimento para os seres humanos.
A criação de regras que sintetizem o conhecimento tácito construído durante
anos de experiência de um profissional, não se trata de uma tarefa simples. Porém,
esses mesmos conhecimentos podem ser documentados facilmente sob a forma de
casos reais.
O RBC é uma abordagem incremental, alimentado de aprendizagem, uma vez
que uma nova experiência é armazenada cada vez que um problema foi resolvido,
tornando-se imediatamente disponível para solução de problemas futuros (AAMODT;
PLAZA, 1994, p. 1). Assim, um sistema baseado em RBC pode ser adotado com
uma pequena base de casos, denominado por Wangenheim e Wangenheim (2003,
p. 27) como “casos-semente” e ir crescendo ao passar do tempo. Isto requer menor
esforço para a implantação do sistema e possibilita o desenvolvimento do mesmo
de acordo com a necessidade da organização.
Davenport e Prusak (1999, p. 167-168) afirmam que a tarefa de coleção e modifi-
cação de casos trata-se de algo complexo (embora, segundo os autores, essa tarefa tenha
se tornado mais simples devido à aparição de novas ferramentas) e exija conhecimento
no método de RBC. Se existe um grande grupo de trabalhadores do conhecimento cuja
especialização seja interessante para aproveitar, deve-se ser apontado um administrador
de casos como intermediário. É interessante também haver um especialista da área
que possa decidir quando um novo caso merece ser inserido, quando um caso antigo
está obsoleto e se um caso recém-submetido está realmente correto.

CASOS
A principal forma de representação de conhecimento em um sistema de RBC
são os casos. Um caso é uma peça de conhecimento contextualizado que registra
um episódio quando um problema ou situação problemática foi total ou parcial-
mente solucionado. Um caso representa tipicamente a descrição de uma situação
(problema) conjuntamente com as experiências adquiridas (solução) durante a sua
resolução (WANGENHEIM; WANGENHEIM, 2003, p. 11). Casos contêm
primordialmente experiências concretas, vividas em uma situação específica. A
TRANSCICLOPÉDIA EM DIFUSÃO DO CONHECIMENTO 651

sua coleção trata-se de um banco de dados de experiências (WANGENHEIM;


­WANGENHEIM, 2003, p. 12).
De acordo com Wangenheim e Wangenheim (2003, p. 14), o modelo mais
aceito de RBC é o ‘Ciclo RBC’ proposto por Aamodt e Plaza (1994). Segundo os
autores, no mais alto nível de generalização, o modelo pode ser descrito por quatro
processos contínuos: recuperar (retrieve), reutilizar (reuse), revisar (revise) e reter (retain).
Um novo problema é resolvido através da recuperação de um ou mais casos
previamente vividos, reutilizando casos antigos de uma forma ou de outra, revisando
a solução baseada na reutilização de um caso anterior, e retendo a nova experiência
por meio da sua incorporação na base de conhecimentos existentes (AAMODT;
PLAZA, 1994, p. 6).
Como pode-se observar na Figura 3, no Ciclo RBC, um problema é definido
como novo caso (new case). Este, por sua vez, é usado como referência para recuperar
(retrieve) casos antigos (previous cases) armazenados na base de conhecimento, que
combinados, através da reutilização (reuse), irá gerar uma solução ao problema inicial.
Através do processo e revisão (revise), a presente solução é testada para o su-
cesso e reparada em caso de falha. No processo de retenção (retain), é armazenada
a experiência útil (learned case) na base de casos para reutilização futura.

Figura 3 – Ciclo RBC (AAMODT; PLAZA, 1994, p. 12)


652 TRANSCICLOPÉDIA EM DIFUSÃO DO CONHECIMENTO

SIMILARIDADE
Durante o processo de recuperação (onde dada uma situação problema é
realizada uma procura na base de casos com a finalidade de encontrar tarefas ante-
riormente resolvidas cuja descrição se assemelhe com a atual) os resultados obtidos
com a pesquisa não podem obedecer ao que Wangenheim e Wangenheim (2003,
p. 15) chama de “filosofia tudo ou nada”.
Essa filosofia, muito utilizada em sistemas de banco de dados comuns, despreza
resultados inexatos, o que para o RBC é algo ineficaz. Wangenheim e Wangenheim
(2003, p. 15) destaca a utilização de uma ordem de preferência, que estabelece quais
casos da base mais se assemelham ao atual e quais são menos. A determinação da
medida de similaridade é um importante componente para determinar a utilidade
do caso. Isto porque de acordo com Wangenheim e Wangenheim (2003, p. 96):
“[...] Problemas similares possuem soluções semelhantes”.

RECUPERAÇÃO
O objetivo da recuperação é encontrar numa base de casos uma ou mais experi-
ências que venha a ajudar na solução de um problema atual. Aamodt e Plaza (1994, p.
11) afirmam que essa tarefa se inicia com uma descrição parcial do problema e termina
quando é encontrado um caso anterior com maior utilidade para solução do caso atual.
O conceito de similaridade é de extrema importância para recuperação de casos,
isto porque ao contrário dos bancos de dados que recuperam registros com campos
idênticos, na base de casos, a busca é realizada para encontrar casos semelhantes e
que sejam úteis para solução de um problema atual.
Outro conceito importante para esse processo é o de utilidade. Conforme
Wangenheim e Wangenheim (2003, p. 96), “[...] Problemas similares possuem so-
luções semelhantes”, assim, um caso torna-se mais útil do que outro na medida em
que menos se necessite modificá-lo para adaptá-lo na solução de um problema atual.

REUTILIZAÇÃO
A reutilização ocorre toda vez que um caso é recuperado e a solução dele é
utilizada na tentativa de resolver um problema atual. Dois aspectos são focados nesse
processo: as diferenças entre o caso antigo e o atual; e que parte do caso antigo pode
ser transferida para o novo caso (AAMODT; PLAZA, 1994, p. 13).
Normalmente, o problema atual não coincide com nenhum caso armazenado;
nesse caso, o processo de reutilização faz uma adaptação da solução anterior para a
TRANSCICLOPÉDIA EM DIFUSÃO DO CONHECIMENTO 653

atual. A tarefa de reutilização observa os seguintes fatores: quais aspectos da situação


devem ser adaptados, quais modificações devem ser realizadas para essa adapta-
ção, qual método aplicar para realizar a adaptação e como controlar esse processo
­( WANGENHEIM; WANGENHEIM, 2003, p. 174).

REVISÃO
Nesta fase surge a oportunidade de aprendizagem devido à aplicação mal
sucedida de uma solução para um caso. A revisão é, de acordo com Wangenheim e
Wangenheim (2003, p. 96) e Aamodt e Plaza (1994, p. 11), dividida em duas tarefas:
a primeira é avaliar a solução do caso gerada pelo reuso e, caso esteja correta, apren-
der com o sucesso (retenção); já a segunda depende da falha na fase de reutilização,
neste caso, se faz necessário reparar a solução para o caso.

RETENÇÃO
A retenção é a fase em que acontece a incorporação do conhecimento gerado
pela solução de um novo caso. Esse processo é responsável pelo constante cresci-
mento e especialização da base de casos, e trata-se de selecionar quais informações
do caso deve-se armazenar, de que forma retê-la, como indexar o caso para posterior
recuperação de problemas similares e como integrar o novo caso na estrutura de
memória (AAMODT; PLAZA, 1994, p. 14).
72. R adiohormese

Antonio Cardoso

O termo Hormese, do grego hormáein, designa ações de estimulação, incitação


ou excitação (CALABRESE, 2015a). Foi primeiramente introduzido por Southam e
Erlich, (1943) na avaliação de um fungicida. Tradicionalmente aplicado à toxicolo-
gia, o termo define um fenômeno bifásico de dose/resposta representado pelo efeito
excitatório em baixa dose e inibitório em alta (CALABRESE, 2005).
Há uma tendência daqueles que iniciam o estudo da hormese em confundi-la
com a homeopatia, a qual tem como Similia similibus curentur (o semelhante cura o
semelhante) o conceito fundante. Esse método foi instituído no século XVIII pelo
médico alemão Samuel Hahnemann ao construir uma base terapêutica sistematizada
por meio da potencialização por repetidas diluições do agente causador da doença
(FISHER, 2014).
Enquanto a homeopatia tem sua fenomenologia associada a pós-exposição a
substâncias inorgânicas e ainda não tem fundamentações em evidencias científicas
empíricas, a hormese circunscreve uma gama de fatores que vão além de substâncias
(radiação, calor, exercícios físicos, restrição nutricional etc.) que conduzem a um
processo de adaptação do organismo e, além disso, é um conceito da toxicologia
largamente evidenciado empiricamente (MOFFETT, 2010); (LÓPEZ-DIAZGUER-
RERO, 2013).
Segundo Radak (2014), um dos fatores ativadores do efeito hormético nos
sistemas biológicos é o exercício físico, que tem sido estudado devido a relação
com o stress orgânico causado pelas espécies reativas do oxigênio (ROS — Reactive
Oxigen Species). O efeito adaptativo faz com que haja um aumento da tolerância
aos agentes oxidativos.
O vocábulo radiohormese é formado ao se prefixar o termo com a contração
gramatical da palavra radiação “[...] processo de emissão, transmissão e absorção de
energia radiante” (WEBSTER, 2018), o que caracteriza o fenômeno como tendo
seu efeito proveniente dessas energias em baixa intensidade.
Para Baldwin e Granthan, (2015) a radiohormese é caracterizada pela resposta
estimulatória de sistemas biológicos quando de sua exposição à radiação ionizante
em doses suficientemente pequenas para que os efeitos deletérios, normais em doses
maiores, não ocorram.
TRANSCICLOPÉDIA EM DIFUSÃO DO CONHECIMENTO 655

Na figura 1, observamos a representação esquemática do modelo dose/


resposta hegemônico reducionista (linha tracejada) e o modelo radiohormético
(linha cheia). No primeiro, qualquer dose de radiação a que se esteja exposto
conduz a um efeito nocivo. No segundo, existem valores de dose que resultam
em um efeito benéfico.

Figura 1 — Modelos dose/resposta

Segundo Sacks; Meyerson e Siegel (2016), o modelo vigente não está totalmente
errado, mas deduz uma relação linear em baixa dose que não se verifica empirica-
mente. Além disso, conduz a um pensamento reducionista ao desconsiderar indícios
empíricos da existência de mecanismos de resposta biológica, tais como: melhora
na produção de enzimas reparadoras no núcleo celular, diminuição da velocidade
de mitose, indução a apoptose, produção de enzimas antioxidantes, a melhora da
indução da apoptose por células vizinhas não-afetadas (efeito Bystander), e melhoria
na vigilância imunológica dos organismos.
Ao buscarmos expandir nossa percepção desse fenômeno, em uma abordagem
não-reducionista, nós nos aproximamos com uma perspectiva de complexidade, na
qual a bioestimulação conseguida seria um acontecimento emergente, inesperado,
656 TRANSCICLOPÉDIA EM DIFUSÃO DO CONHECIMENTO

segundo o modelo hegemônico, de um sistema biológico em seus níveis hierárquicos


bioquímico, celular e tecidual, que se auto-organiza em resposta à absorção de energia.

REFERÊNCIAS
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Perspectives. Journal of Nuclear Medicine Technology, v. 43, n. 4, p. 242–246,
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FISHER, P. Does homeopathy have anything to contribute to hormesis? Human


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LÓPEZ-DIAZGUERRERO, N. E. et al. Hormesis: lo que no mata, fortalece.


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MOFFETT, J. R. Miasmas , germs , homeopathy and hormesis : Commentary


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SACKS, B.; MEYERSON, G.; SIEGEL, J. A. Epidemiology Without Biology:


False Paradigms, Unfounded Assumptions, and Specious Statistics in Radiation
Science (with Commentaries by Inge Schmitz-Feuerhake and Christopher Busby
and a Reply by the Authors). Biological Theory, v. 11, n. 2, p. 69-101, 17 jun.
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Southam CM, Ehrlich J. Effects of extracts of western red-cedar heartwood on


certain wood-decaying fungi in culture. Phytopathology. 1943; 33:517–524
73. Redes Complexas

Simone Gonsalves Mendes de Araújo

Rede: 1. Fios, cordas, arames, etc., entrelaçados, fixados por malhas que formam
um tecido (FERREIRA, 2010).
Complexo: 1. Que abrange ou encerra muitos elementos ou partes. 2. Obser-
vável sob diferentes aspectos. 3. Confuso, complicado. 4. Composto por elementos
de naturezas distintas (FERREIRA, 2010).
Em um sistema complexo, a rede representa as conexões formadas entre as
ligações (arestas) entre os nós da rede, que são os atores do processo. Essas ligações,
visualmente, formam as “teias” (rede). Complexa (adj. Feminino), informa que
essas ligações envolvem elementos de naturezas distintas. Mas a complexidade do
sistema merece maior aprofundamento; em 1974 Edgar Morin, Isabelle Stringers
e Ilya Pregonine inauguraram o termo complexidade como sinônimo de epistemo-
logia; a epistemologia da complexidade estuda os sistemas complexos e fenômenos
associados. Nesse, ao invés da fragmentação dos saberes ele propõe a complexidade,
do latim “Complexus”: aquilo que foi tecido em conjunto. A complexidade do todo
decorre do entrelaçamento de influências mútuas à medida que o sistema evolui
dinamicamente. Redes + Complexas definem a teia de ligações que se relacionam e
evoluem por meio de suas interações.
Não há uma definição universal para sistemas complexos, simplesmente porque
não conseguimos definir com uma única teoria; são sistemas dinâmicos, em constante
movimento não linear, abertos, decorrem da interação entre os atores (nós) do siste-
ma, de onde emergem propriedades coletivas. Num sistema desse tipo encontramos
elementos como complexidade, não-linearidade, auto-organização, entropia e caos.
A Teoria das Redes complexas tem como fundamento a teoria dos grafos, que
pertence ao ramo da matemática. Historicamente, muitos fatos aconteceram antes
que tivéssemos as definições que temos hoje, destacando alguns:
1736: O matemático suíço Leonard Euler (1707-1783) formulou e resolveu o
problema das 7 pontes de Könisberg, utilizando um grafo. A cidade de Könisberg, na
Rússia, é banhada pelo rio Pregel, por isso 7 (sete) pontes fazem a travessia das ilhas
às margens. Os moradores da cidade tentavam fazer um percurso que passasse por
todas as pontes, mas apenas uma vez cada, como eles nunca conseguiram, queriam
saber se seria possível fazer esse caminho.
658 TRANSCICLOPÉDIA EM DIFUSÃO DO CONHECIMENTO

Figura 1 – Desenho da cidade/pontes de Köninsberg

Fonte: Problema das pontes de Köninsberg1

Euler construir um grafo para a situação; as pontes seriam as arestas e o nós,


as ilhas. Ele concluiu que o problema não tem solução, e o observou características
do grafo que tornaria possível percorrer todos os nós passando por todas as arestas
apenas uma vez. Tal grafo ficou conhecido como ‘Grafo de Euler’, formulando um
de seus teoremas mais conhecidos: “Um grafo conexo G é um grafo de Euler se e
somente se todos os seus vértices são de grau par”. Observemos que todos os vértices
(nós) do grafo desenhado para o problema tem grau (número de arestas incidentes
para com o vértice) ímpar. Desde então, se num problema precisa-se descobrir se
num grafo qualquer pode-se percorrer todas os nós, passando apenas uma vez cada
aresta, usamos o teorema de Eule.

Figura 2 – Grafo construído por Euler para representação do problema das


pontes de Könisbeerg

Fonte: Problema das pontes de Köninsberg2


Nós: A, B, C, D Arestas: a, b, c, d, e, f, g

1
Disponível em: http://www.inf.ufsc.br/grafos/problema/pontes/grafos.html. Acesso em: 26 de fevereiro de
2018.
2
Disponível em: http://www.inf.ufsc.br/grafos/problema/pontes/grafos.html. Acesso em: 26 de fevereiro de
2018.
TRANSCICLOPÉDIA EM DIFUSÃO DO CONHECIMENTO 659

1956: Solomon e Rappaport, Erdös e Rényi (ER) em 1959: Propõem modelos


de redes cuja conectividade com base aleatória.
1967: Stanley Milgran, num experimento em psicologia, solicitou a 296 volun-
tários que fizessem uma chegar nas mãos de um “destinatário” em Boston, dando-lhes
nome e endereço. Os voluntários deveriam enviar as cartas a conhecidos, de modo que
as mesmas chegassem ao seu destino. Apenas 1/3 das cartas chegaram, e ele observou
que, em média, a carta passava por 5,2 pessoas (aproximadamente 6) até chegar no
destinatário. Com esse experimento, verificou-se que as redes de pessoas (redes sociais)
têm um caminho curto, onde qualquer pessoa no mundo estaria conectada a outra
por, no máximo, seis conexões (seis graus de separação). Tal problema ficou conhecido
como problema do mundo pequeno (Small World Problem).
1972: Bélla Bollobás matemático húngaro-britânico iniciou trabalho sobre
teoria dos grafos, apresentando trabalhos importantes na teoria extremal dos grafos,
análise funcional e a fase de transição na evolução dos grafos aleatórios e percolação
(robustez de um grafo).
1998: Watts e Strogatz remontam o modelo proposto por Erdös e Rényi (ER)
e verificam que, apesar de muitas aplicações possíveis, a proposta não contempla
duas importantes propriedades do mundo real:
1. Os grafos de ER, por sua conexão ser aleatória, têm coeficiente de clustering
(agrupamento por grau de semelhança) baixo;
2. A distribuição de grafos converge para uma a distribuição de Poisson, ao
invés da lei de potência, mais observada nos exemplos reais.
O modelo Watts e Strogatz proposto no seu artigo Nature (WATTS D. J. e
STROGATZ, S. H., 1998) tem quantidade de nós fixa, e gera grafos aleatórios com
propriedades de pequeno mundo; como alto clustering (agrupamento) e pequenas
distâncias entre os vértices.
2000: Modelo Barabási-Albert (BA): é um algoritmo que gera redes livre
de escala, cuja distribuição segue a lei de potência. Nesse modelo, a dinâmica de
estruturação dos nós depende do grau de popularidade desse nó e não acontece de
forma aleatória como propunha Watts. Esse padrão (BA) ficou conhecido como
“rich get richer”. Como exemplo de redes de livre escala (Barabási/Albert, 2016)
pode-se citar as redes sociais, cuja ordem dinâmica de estruturação não aleatória,
a qual depende de quão popular é o nó. A estrutura social é auto-organizada com
efeito small world, cujo grau de distribuição segue a lei de potência, a maioria dos
nós tem poucas ligações em contraste com outros com elevado número de ligações.
660 TRANSCICLOPÉDIA EM DIFUSÃO DO CONHECIMENTO

Figura 3 – Tipos de Redes

Fonte: (WATTS; D.J.; STROGATZ, S.H., 1998)

Principalmente os modelos de Watts-Strogatz e Barabasi-Albert, impulsio-


naram o surgimento da Teoria das Redes Complexas, que relaciona a Teoria dos
Grafos e Mecânica Estatística. A Teoria das Redes Complexas estuda os sistemas
que evoluem dinamicamente com o tempo, através da estrutura desses sistemas. Os
estudos sobre essa teoria ainda estão no início, mas já se observa a importância em
todas as áreas do conhecimento.

Figura 4 – Exemplos de Redes Complexas

Fonte: https://pt.slideshare.net/ieausprp/iea-modelagem-do-impacto-de-caractersticas-deneurnios-em
redes-cerebrais-complexas
Fonte: Modelagem do Impacto de características de neurônios3

3
Disponível em: https://pt.slideshare.net/ieausprp/iea-modelagem-do-impacto-de-caractersticas-
TRANSCICLOPÉDIA EM DIFUSÃO DO CONHECIMENTO 661

A representação matemática de uma rede é um grafo; conjunto formado por


nós e arestas, definido por número de vértices (nós) (V) e arestas (a), assim G(V,a)
representa um grafo G com V vértices e a arestas. Por meio das ligações da rede
podemos calcular estatísticas para melhor análise da topologia desta rede, e assim
defini-la. Um grafo pode ser direcionado ou não direcionado, ponderado ou não
ponderado (peso do nó ou aresta).

Figura 5 – Grafos não direcionados/ Figura 6 – Grafos Não Ponderados/


direcionados Ponderados

Fonte: Treinamento para competição de programação4

Mesmo que os fundamentos das redes complexas estejam ligados à te-


oria dos grafos, essas redes possuem propriedades topológicas. Sua estrutura
complexa é dinâmica e irregular, essas características fazem com que vários
problemas possam ser modelados em rede, são exemplos de redes complexas:
redes sociais (Ex: facebook,) redes biológicas (Ex: interações de proteínas),
redes de informação (Ex: citações), redes de tecnologia (Ex: internet), etc.
Por causa de seu poder visual, muitos programas constroem e geram a rede,
além realizam os cálculos estatísticos para auxiliar na sua caracterização topoló-
gica estão sendo utilizados. Esses softwares fazem os cálculos de vários índices
estatísticos como: número de nós e arestas, grau e grau médio, diâmetro da rede,
densidade, modularidade, entre outros. Outro cálculo importante são as medidas
de centralidade; closeness (proximidade entre os vértices) e betweeness (quantifica
a intermediação do vértice/aresta).

-de-neurnios-em-redes-cerebrais-complexas. Acesso em: 26 de fevereiro de 2018.


4
Disponível em: https://pt.slideshare.net/muriloadriano/treinamento-para-competies-
-de-programao-do-infufg-grafos-parte-1-turma-iniciantes. Acesso em: 26 de fevereiro
de 2018.
662 TRANSCICLOPÉDIA EM DIFUSÃO DO CONHECIMENTO

Segundo NEWMAN (2003), a Teoria das Redes Complexas deve:


1. Observar as propriedades estatísticas que caracterizam a estrutura e o
comportamento de sistemas baseados em rede e sugerir formas para medir
essas propriedades.
2. Definir modelos de redes para a compreensão do significado dessas
propriedades.
3. Inferir o comportamento de sistemas em rede considerando suas proprie-
dades estruturais e as regras do sistema.

REFERÊNCIAS
ALBERT, R.; BARABÁSI, A. – L. Network Science. Julho de 2016. Disponível
em: <barabasi.com/networksciencebook/>. Acesso em 01 de fevereiro de 2018.

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Redes Complexas. Disponível em: http://homepages.dcc.ufmg.br/~valdete/
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ARAÚJO, Adérito. As pontes de Köninsberg. Departamento de Matemática da


Universidade de Coimbra. Disponível em: <http://www.mat.uc.pt/~alma/escolas/
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ARAÚJO, Rodolfo. Experimentos em Psicologia – Stanley Milgram e o


Choque de Autoridade, 2009. Disponível em: <http://www.naopossoevitar.
com.br/2009/06/experimentos-em-psicologia-stanley-milgram-e-o-choque-de-
autoridade.html>. Acesso em 26 de fevereiro de 2016.

CASTRO, Paulo. A.. Rede Complexa e Criticalidade Auto Organizada:


Modelos e Aplicações. 2007. 156f. Tese (Doutorado em Ciências: Física Básica) –
Instituto de Física de São Carlos, São Carlos, 2007.

FADIGAS, Inácio d. S.; HENRIQUE, Trazíbulo; SENNA, Valter; MORET,


Marcelo; PEREIRA, HERNANE B. d. B. Análise de redes semânticas baseada
em títulos de artigos de periódicos científicos: o caso dos periódicos de
divulgação em educação matemática. Revista eletrônica Educação Matemática
Pesquisa. Vol.1, n.1 (2009), PUC, São Paulo. Disponível em <http://revistas.
pucsp.br/index.php/emp/article/view/2139>. Acesso em 5 de fevereiro de 2018.
TRANSCICLOPÉDIA EM DIFUSÃO DO CONHECIMENTO 663

FADIGAS, Inácio d. S. Difusão do conhecimento em educação matemática


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Universidade Federal da Bahia. Universidade do Estado da Bahia, Universidade
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FERREIRA, Aurélio Buarque de Holanda. Mini Aurélio: o dicionário da


língua portuguesa. 8. Ed. – Curitiba: Positivo, 2010.

LIPNACK, Jéssica. Rede de Informações/ Jéssica Lipnack, Jeffrey Stamps,


tradução Pedro Catunda, revisão técnica Cláudio Mesanelli – São Paulo: Makron
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NEWMAN, M. E. J. The structure and function of complex networks. SIAM


Review, v. 45, n. 2, 2003.

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Estado da Bahia, Universidade Estadual de Feira de Santana, Instituto Federal de
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para competições de programação – Parte 1- TAP Turma iniciante. Disponível
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664 TRANSCICLOPÉDIA EM DIFUSÃO DO CONHECIMENTO

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wiki/Modelo_Erdős–Rényi. Acesso em: 26 de fevereiro de 2018.
74. Redes Neur ais Artificiais

Soltan Galano Duverger

Redes Neurais Artificiais (RNA) são modelos matemáticos (simplificados) de


aprendizado de máquina inspirados no funcionamento do cérebro humano em que
centenas de neurônios biológicos são conectados entre si e transmitem e processam
as informações através de suas conexões.
O primeiro modelo neural foi apresentado por MCCULLOCH and PITTS
(1943), e permitia, dado um conjunto de entrada, transmitir um sinal 0 ou 1 como
saída, e por isso foi considerado como uma primeira aproximação para o desenvol-
vimento de arquiteturas mais complexas. O segundo modelo apareceu em 1958, e
foi criado pelo psicólogo norte-americano Frank Rosenblatt, e apresenta o que se
conhece como Perceptron, que permite resolver problemas linearmente separáveis,
como os problemas com operações de conjuntos AND e OR.

Figura 1 – Modelo de perceptron simplificado,


com 5 sinais de entrada e uma saída.

Fonte: https://es.wikipedia.org/wiki/Perceptrón
666 TRANSCICLOPÉDIA EM DIFUSÃO DO CONHECIMENTO

Outras pesquisas sobre estes modelos se desenvolveram, mas foi a partir de


1975 que o pesquisador norte-americano Paul J. Werbos desenvolveu o algoritmo
backpropagation, capaz de aprender a solucionar problemas mais complexos, permi-
tindo que as Redes Neurais Artificiais se expandissem para outras áreas da ciência
que começaram a utilizar algoritmos de Inteligência Artificial. Múltiplas aplicações
das RNA com arquiteturas mais robustas como o Perceptron Multicamadas foram
aplicadas em várias áreas como medicina, segurança pública, processamento digital
de imagens, setor financeiro, na área de Geociências, no setor elétrico, entre outros.
Outros algoritmos de aprendizado de máquina tiveram desempenhos maiores para
problemas mais complexos com o crescimento da computação e das comunicações.

REFERÊNCIAS
BRAGA, Antônio de Pádua; Carvalho, André Carlos Ponce de Leon Ferreira;
LUDERMIR, Teresa Bernarda. Redes neurais artificiais: teoria e aplicações.
Rio de Janeiro: LTC, 2007.

FERNEDA, Edberto. Redes neurais e sua aplicação em sistemas de


recuperação de informação. Ciências da Informação, vol. 35, n. 1, 2006.

ROJAS, RAÚL. Neural networks: a systematic introduction. Springer Science


& Business Media, 2013.

VALENCIA REYES, MARCO ANTONIO. Algoritmo Backpropagation para


Redes Neuronales: conceptos y aplicaciones. Instituto Politécnico Nacional.
Centro de Investigación en Computación, 2007.

WERBOS, PAUL. Beyond regression:” new tools for prediction and analysis
in the behavioral sciences. Ph. D. dissertation, Harvard University (1974).
75. Relação Mente-Cérebro

Jéssica Plácido Silva

REDES COMPLEXAS E A PROPRIEDADE EMERGENTE


Além das redes sociais que conhecemos, os conceitos de rede podem ser diver-
sos. Neste momento, interessa-nos compreender melhor as redes complexas. Essas
redes aparecem de várias formas no mundo, por exemplo, no formigueiro, no corpo
humano e nos fenômenos geológicos e, também, na internet e redes de transporte.
Barabasi (BARABÁSI; OLTVAI, 2004; STROGATZ, 2001) em seu clássico
trabalho chegou à conclusão de que todas as redes complexas apresentam algumas
características específicas: nós e arestas, sendo que alguns nós são concentradores,
chamados de hubs; efeito mundo pequeno e uma dinâmica não-linear; evoluem
ao longo do tempo e apresentam características de um fenômeno criticamente
auto-organizado.
O cérebro é definitivamente uma rede complexa. Os neurônios são os nós, e
as sinapses, as arestas. O cérebro é descentralizado, auto-organizado e não-linear
(portanto, não é hierárquico), pois não tem um comando central. O cérebro intera-
ge com outras partes do corpo humano e é extremamente robusto, o que pode ser
percebido por meio da sua neuroplasticidade. Existem casos registrados na literatura
de, por exemplo, um paciente que sofreu acidente e teve parte do cérebro danificada
e, apesar de apresentar prejuízos cognitivos, manteve o sistema geral em funciona-
mento devido à reorganização da rede. (BARABÁSI; ALBERT, 1999; POWER; et
al., 2011; ALMEIDA, 2008; LENT, 2008).
O cérebro funciona com lei de potência: os neurônios tendem a repetir as mesmas
sinapses (portanto, não é aleatório). A teoria dos grafos é um modelo matemático
que descreve o funcionamento das redes funcionais cerebrais. Além disso, o cérebro
apresenta propriedade emergente, que é outra característica de redes complexas.
O conceito de emergência surgiu pela primeira vez em 1875, por Lewes (1875,
p. 368-377), para explicar porque não é possível compreender a química por meio da
física. Lewes pergunta como seria possível compreender a água, em sua complexidade
e qualidade, por meio do entendimento das moléculas de hidrogênio e oxigênio. A
partir disso, o autor percebe que da combinação dos agentes de um determinado
668 TRANSCICLOPÉDIA EM DIFUSÃO DO CONHECIMENTO

sistema é possível emergir um novo sistema, que definitivamente não pode ser ex-
plicado pelo funcionamento dos seus componentes. Quando a matéria adquire um
certo grau de complexidade, aparecem propriedades genuinamente novas.
Alguns autores, baseados nesse conceito de emergência, apresentam uma
possibilidade filosófica conhecida por fisicismo não-reducionista, que significa que
das atividades cerebrais emerge a consciência. Então, a consciência ou a mente
(portanto, a experiência subjetiva e os processos cognitivos) seria uma propriedade
emergente das atividades cerebrais. Assim, as atividades cerebrais trariam em si um
papel causal, organizador e controlador das funções mentais. Logo, no momento
em que a consciência emerge do cérebro não pode ser mais reduzida a ele. Entre-
tanto, a conexão entre eles é muito intensa e eles estão profundamente interligados.
(SANVITO, 1991)
Apesar do fisicismo não-reducionista ser uma possibilidade muito válida, apre-
senta alguns pontos de dúvida. Uma lacuna explicativa seria a questão: Como uma
atividade cerebral (física) pode gerar uma atividade consciente (não-física)? Naquela
época, Lewes não entendia como a água emergia das moléculas, porém, com o
avanço da ciência, foi descoberto o mecanismo que faz isso ocorrer. Por isso, alguns
fisicistas afirmam que, em breve, a ciência avançará e explicará a lacuna existente.
De fato, é possível que seja só uma questão de tempo (MOREIRA-ALMEIDA,
2013; ARAUJO, 2013).
Entretanto, o professor Saulo Araújo fez um estudo e descobriu que esse
tipo de argumento chamado de “materialismo promissório” existe na literatura há
pelo menos 300 anos. Ou seja, há muitos anos os fisicistas-materialistas nos têm
informado que falta muito pouco tempo para descobrir como um elemento físico
gera um elemento não-físico. Patrícia Churchland, uma das principais expoentes e
defensoras dessa tese, após 40 anos de pesquisas neurofisiológicas, informa que não
sabe quanto tempo terá que esperar para resolver os problemas mais simples sobre
a consciência humana (ARAUJO, 2013).
Aqui surge um outro questionamento: e se for o contrário? E se o mundo
físico for uma propriedade emergente da consciência? O filósofo David Chalmers
(2002) organizou essa questão no que ele chamou de “monismo”, também co-
nhecido de “naturalismo expandido” por outros autores. Nesse conceito, a cons-
ciência poderia ser estudada como um elemento irredutível do universo, como
a massa, o tempo e a onda eletromagnética. A consciência seria um elemento da
natureza. É uma ideia simples: se não é possível explicar um fenômeno por meio
de outros fenômenos, talvez ele seja um fenômeno irredutível a qualquer outro. A
TRANSCICLOPÉDIA EM DIFUSÃO DO CONHECIMENTO 669

consciência, então, seria, a natureza intrínseca de uma rede complexa de entidades


básicas que obedecem a um conjunto de leis específicas. O mundo físico seria uma
propriedade emergente dessa rede complexa de entidades básicas (CHALMERS,
1995; TEIXEIRA, 1997).
Essa concepção apresenta um argumento confortável para os físicos, pois, nesse
caso, as leis físicas não precisariam de serem mudadas. Seria apenas acrescentada
uma propriedade intrínseca nessas leis e, para tanto, seriam necessárias leis de ponte
ou leis psicofísicas (CHALMERS, 1995; TEIXEIRA, 1997).
Evidente que as lacunas continuam existindo, seja no fisicismo não-reducionista
ou no naturalismo expandido. A ideia aqui é chamar atenção para outras possibilidades
filosóficas que devem ser levadas em conta no universo acadêmico-científico com
seriedade e, portanto, podem ser estudadas como tal. A ciência não é materialista
por definição e se a consciência pode fazer parte da Natureza, então, a ciência precisa
debruçar-se sobre este fenômeno (BEAUREGARD et al., 2014).

REFERÊNCIAS
ALMEIDA, Rita M. C. de. Redes Neurais. In: NUSSENZVEIG, H. Moysés
(org.). Complexidade e Caos. 3. ed., Rio de Janeiro: Editora UFRJ/ Copea,
2008.

ARAUJO, S. de F.. Materialism’s eternal return: recurrent patterns of


materialistic explanations of mental phenomena. Archives of Clinical
Psychiatry, v. 40, n. 3, p. 114-119, 2013.

BARABÁSI, A.-L.; ALBERT, R. Emergence of Scaling in Random Networks.


Science, v. 286, n. 5439, p. 509-512, 15 out. 1999.

BARABÁSI, A.-L.; OLTVAI, Z. N. Network biology: understanding the cell’s


functional organization. Nature Reviews Genetics, v. 5, n. 2, p. 101-113, fev.
2004.

BEAUREGARD, M. et al. Manifesto for a Post-Materialist Science. Explore:


The Journal of Science and Healing, v. 10, n. 5, p. 272-274, 1 set. 2014.

CHALMERS, D. O enigma da experiência consciente, 1995. Disponível em:


<https://www.scribd.com/doc/164634167/Chalmers-O-Enigma-da-Experiencia-
Consciente>. Acesso em: 7 jan. 2018.
670 TRANSCICLOPÉDIA EM DIFUSÃO DO CONHECIMENTO

CHALMERS, D. J. Consciousness and its place in nature. In: Stich SP, Warfield
TA, editors. Blackwell Guide to Philosophy of Mind. Malden: Blackwell; 2002.

LENT, Roberto. Fabricação do cérebro. In: NUSSENZVEIG, H. Moysés (org.).


Complexidade e Caos. 3.ed., Rio de Janeiro: Editora UFRJ/ Copea, 2008.

LEWES, George Henry. Problems of Life and Mind. [s.l.] Osgood, 1875.

MOREIRA-ALMEIDA, A. Explorando a relação mente-cérebro: reflexões e


diretrizes. Archives of Clinical Psychiatry, v. 40, n. 3, p. 105-109, 2013.

POWER, J. D. et al. Functional Network Organization of the Human Brain.


Neuron, v. 72, n. 4, p. 665-678, 17 nov. 2011.

SANVITO, W. L. The brain/mind complex an epistemological approach.


Arquivos de Neuro-Psiquiatria, v. 49, n. 3, p. 243-250, set. 1991.

STROGATZ, S. H. Exploring complex networks. Special Features. Disponível


em: <https://www.nature.com/articles/35065725>. Acesso em: 25 jul. 2018.

TEIXEIRA, J. de F. A Teoria da Consciência de David Chalmers. Psicologia


USP, v. 8, n. 2, p. 109-128, 1997.
76. Repositórios Arquivísticos Digitais

Rodrigo França Meirelles


Francisco José Aragão Pedroza Cunha

Os repositórios são mecanismos de transferência, de armazenamento e de


acesso a objetos analógicos e digitais. Os repositórios agregam facilidades ao
gerenciamento dos objetos neles acumulados (e.g. preservação e difusão) (SHIN-
TAKU; ­MEIRELLES, 2010). Os repositórios digitais surgem a partir de conceitos
e aplicações da informática aprimorada por áreas que investigam a informação
(e.g. Arquivologia, Biblioteconomia e Ciência da Informação), impulsionados no
século XX por meio do movimento de acesso livre (Open Acess) e com a criação de
repositório arquivísticos.
Os repositórios apresentam flexibilidade relacionadas às suas finalidades e são
classificados como institucionais e/ou temáticos. Os institucionais representam o
que é produzido no âmbito de uma instituição, o que significa que todos os objetos
possuem ligação direta com aquela instituição. Nos temáticos, a origem dos objetos
tem como finalidade representar a produção de um determinado assunto ou área e,
assim, diversas instituições ou pessoas podem armazenar os objetos nestes repositórios,
pois a finalidade é agregar a produção relacionada a uma temática (SHINTAKU;
MEIRELLES, 2010).
Os repositórios são categorizados quanto ao tipo de acervo: científicos; pro-
dução técnica; dados; arquivísticos; mistos podem ainda ser monodocumentais,
direcionados para um único tipo de documentos (e.g. teses, dissertações ou rela-
tórios); multidocumentais abrigam uma diversidade de documentos; entre outros.
Assim, a categorização não é única, um repositório pode apresentar mais de uma
para atender a sua finalidade.
Os repositórios arquivísticos, foco deste verbete, utilizam métodos e técnicas
da Arquivologia que possibilitam a manutenção da autenticidade, da preservação,
consequentemente, da cadeia de custódia dos documentos. A cadeia de custódia
constitui uma
[...] linha contínua de custodiadores de documentos arquivísticos (desde o seu
produtor até o seu legitimo sucessor) pela qual se assegura que esses documentos
são os mesmos desde o início, não sofreram nenhum processo de alteração e,
portanto, são autênticos” (CONARQ, 2012, p. 2)
672 TRANSCICLOPÉDIA EM DIFUSÃO DO CONHECIMENTO

É recomendável, para o desenvovlimento desta categorização de repositórios,


considerar os metadados ou os elementos de descrição da informação, os quais são
encontrados nas Normas de Descrição Arquivística, a saber: ISAD(G) (Norma
geral de descrição arquivística); ISAAR(CPF) (Norma Internacional de Registro de
Autoridade Arquivística para Entidades Coletivas, Pessoas e Famílias); ISDF (Nor-
ma internacional para descrição de funções); ISDIAH (Norma internacional para
descrição de instituições com acervo arquivístico); NOBRADE (Norma Brasileira
de Descrição). Os elementos de descrição nos repositórios arquivísticos viabilizam
a criação de padrões para possibilitar a cooperação técnica entre as instituições e a
interoperabilidade entre os sistemas de informações. Ainda, é essencial considerar os
modelos de requisitos para desenvolvimento de Sistemas Informatizado de Gestão
Arquivística de Documentos (SIGAD), baseado no E-arq Brasil, para sistemas de
informação arquivísticos digitais confiáveis.
Um repositório digital de documentos arquivísticos “[...] é um repositório digital
que armazena e gerencia [...] documentos, seja nas fases corrente e intermediária,
seja na fase permanente” (CONARQ, 2014, p. 9). Desde a década de 1990, ocorrem
iniciativas no sentido de orientar e criar requisitos para implantação de repositórios
arquivísticos. É a partir de 2010 que se intensificaram estudos, normas, padrões,
protocolos e sistemas para implantação de repositórios arquivísticos que assegurem
a preservação, o acesso e a autenticidade de longo prazo dos objetos digitais.
Atualmente, a principal norma é a Open Archival Information System (OAIS),
um modelo conceitual desenvolvido pelo Consultive Committee for Space Data Systems
(CCSDS), que resultou na norma ISO 14721:2003 (ISO, 2012). O OAIS descreve as
funções de um repositório digital e os metadados necessários para a preservação e o
acesso aos objetos digitais gerenciados pelo repositório, que constituem um modelo
funcional e um modelo de informação (CONARQ, 2014).
Os Repositórios Arquivísticos Digitais (RaD) contemplam de um modo geral
apenas os documentos permanentes. No entanto, a Câmara Técnica de Documen-
tos Eletrônicos (CTDE) do CONARQ (2014) indica que Repositório Arquivístico
Digital Confiável (RDC-Arq) contemplem os documentos das duas primeiras idades
documentais, corrente e intermediário, adotando boas práticas de gestão arquivística
de documentos (FLORES, 2013).
Conforme as boas práticas recomenda-se que os documentos arquivísticos
digitais em fase corrente e intermediária devem ser gerenciados por meio de um
SIGAD, com objetivo do cumprimento da destinação prevista e a autenticidade dos
documentos. Nessa perspectiva, é necessário implantar repositórios arquivísticos
TRANSCICLOPÉDIA EM DIFUSÃO DO CONHECIMENTO 673

que contemplem todas as idades documentais e garantam a preservação digital e a


relação orgânica dos documentos.
É recomendável que os SIGAD voltados para a gestão de arquivos corrente
e intermediário sejam interoperabilizados com sistemas de preservação digital em
conformidade com o modelo ISO-OAIS ou a outro modelo que atenda a tais re-
quisitos, associados às políticas de informação da instituição, permitindo a gestão
das informações orgânicas em todas as fases documentais. Faz-se necessário a
convergência dos SIGAD com sistemas voltados para a descrição arquivística e a
difusão dos arquivos. Os repositórios desenvolvidos nesta perspectiva possibilitam
a autenticidade, a preservação e a difusão das informações/documentos, consequen-
temente, dos conhecimentos institucionais/organizacionais.

REFERÊNCIAS
CONSELHO NACIONAL DE ARQUIVOS (CONARQ). Câmara Técnica
de documentos eletrônicos. Diretrizes para a presunção de autenticidade de
documentos arquivísticos digitais. Rio de Janeiro: Arquivo Nacional, 2012.
Disponível em: < http://www.conarq.arquivonacional.gov.br/media/Diretrizes_
presuncao_autenticidade%20finalizada.doc >. Acesso em: 13 ago. 2014..

CONSELHO NACIONAL DE ARQUIVOS (CONARQ). Câmara Técnica


de documentos eletrônicos. Diretrizes para a implementação de repositórios
digitais confiáveis de documentos arquivísticos. Rio de Janeiro: Arquivo
Nacional, 2014. Disponível em: < http://www.conarq.gov.br/images/publicacoes_
textos/diretrizes_rdc_arq.pdf >. Acesso em: 29 nov. 2018.

FLORES, D. Os repositórios arquivísticos digitais. Ci. Inf., Brasília, DF, v. 41 n.


1, p. 81-97, jan./abr. 2013.

INTERNATIONAL ORGANIZATION FOR STANDARDIZATION


(ISO). ISO 14721: Space data and information transfer systems. Open archival
information system (OAIS. Reference model, 2012. 126 p.

SHINTAKU, M.; MEIRELLES, R. Manual do DSPACE: administração de


repositórios. Salvador: EDUFBA, 2010. Disponível em: < https://repositorio.ufba.
br/ri/bitstream/ri/769/1/Manual%20do%20Dspace(2).pdf >Acesso em: 29 nov.
2018.
77. Rizoma

Lívia Santos Simões


Júlia Carvalho Andrade

Em botânica, encontra-se o significado de rizoma como caule longo, horizontal


e subterrâneo, geralmente em forma de raiz que, rico em nutrientes e reservas, emite
novos ramos. Diferente das raízes, rizomas possuem gemas laterais. É a extensão do
caule que une brotos sucessivamente.
Segundo Ramos e Meimes, na biologia, um rizoma é compreendido como:
Estrutura componente em algumas plantas cujos brotos podem ramificar-se
em qualquer ponto e transformar-se em um bulbo ou um tubérculo. Este
rizoma pode funcionar como raiz, talo ou ramo, independentemente de sua
localização na planta. Diferentemente de uma árvore, portanto, o rizoma
tem a capacidade de conectar um ponto a qualquer outro. Não possui uma
raiz pivotante — inexistência de uma unidade que sirva de pivô. (RAMOS;
MEIMES, s.d.)

Figura 1 – Rizoma

Na epistemologia, o rizoma é um modelo de sistema dinâmico e não linear.


O conceito filosófico de rizoma foi construído por Deleuze e Guattari (1995) e
apresentado no livro “Mil Platôs: capitalismo e esquizofrenia”, junto com outros
conceitos capazes de pensar a contemporaneidade e contribuir para a construção
TRANSCICLOPÉDIA EM DIFUSÃO DO CONHECIMENTO 675

do pensamento por meio do “múltiplo” (teoria das multiplicidades) e não a partir


de uma lógica binária, dualista, dicotômica.
O rizoma enquanto epistemologia se contrapõe às raízes arborescentes, modelos
de árvore, onde há proposições ou afirmações mais fundamentais do que outras e
que se ramificam segundo dicotomias estritas (BAREMBLITT, 2003).
Um rizoma como haste subterrânea distingue-se absolutamente das raízes e
radículas. Os bulbos, os tubérculos são rizomas. Plantas com raiz ou radícula
podem ser rizomórficas num outro sentido inteiramente diferente: é uma
questão de saber se a botânica, em sua especificidade, não seria inteiramente
rizomórfica. [...] O rizoma nele mesmo tem formas muito diversas, desde sua
extensão superficial ramificada em todos os sentidos até suas concreções em
bulbos e tubérculos (DELEUZE; GUATTARI, 1995, p. 13).

No rizoma não há proposições ou afirmações mais fundamentais que outras,


ou seja, não há hierarquia entre elas.
Acreditamos que as linhas são os elementos constitutivos das coisas e dos
acontecimentos. Por isso cada coisa tem sua geografia, sua cartografia, seu
diagrama. O que há de interessante, mesmo em uma pessoa, são as linhas
que a compõe, ou que ela compõe, que ela toma emprestado ou que ela cria.
[...] Este ou aquele tipo de linha envolve determinada formação espacial e
volumosa (DELEUZE, 1992, p. 47).
[...] Pode-se definir os tipos de linhas; daí não se pode concluir que esta é
boa e aquela é ruim. [...] Numa cartografia, pode-se apenas marcar caminhos
e movimentos, com coeficientes de sorte e de perigo. É o que chamamos de
esquizoanálise, essa análise das linhas, dos espaços, dos devires. (DELEUZE,
1992, p. 48).

O rizoma não deve reduzir-se a unidade, é sempre multiplicidade e têm múlti-


plas entradas e saídas. O rizoma também é não linear. Não se deve estabelecer um
sentido de organização, disposição e ordem dos elementos essenciais que o compõem.
As estruturas quebram o rizoma, cortam as multiplicidades e reduzem seu objeto.
Segundo Deleuze e Guattari (1995, p. 12), “[...] toda vez que uma multiplicidade se
encontra presa numa estrutura, seu crescimento é compensado por uma redução das
leis de combinação”. A construção do rizoma se dá por cartografia. O pensamento
rizomático se move e se abre em todas as direções. E é o desejo que movimenta o
rizoma.
O que Guattari e eu chamamos de rizoma é precisamente um caso de sistema
aberto [...] Um sistema é um conjunto de conceitos. Um sistema aberto é
quando os conceitos são relacionados às circunstâncias, e não mais a essência.
Mas, por outro lado, os conceitos não são dados prontos, eles não preexistem: é
676 TRANSCICLOPÉDIA EM DIFUSÃO DO CONHECIMENTO

preciso inventar, criar os conceitos, e nisso há tanta criação e invenção quanto


na arte e na ciência (DELEUZE, 1992, p. 46).

Deleuze e Guattari apresentam cinco princípios que explicam o conceito de


rizoma: 1. conexão, 2. heterogeneidade, 3. multiplicidade, 4. ruptura a-significante,
5. cartografia e 6. decalcomania.

1º e 2º – PRINCÍPIOS DE CONEXÃO E HETEROGENEIDADE


Os princípios de conexão e de heterogeneidade dos rizomas são apresentados
em conjunto pelos autores: qualquer ponto de um rizoma pode ser conectado a
qualquer outro e deve sê-lo. É muito diferente da árvore ou da raiz que fixam um
ponto, uma ordem. Começa ainda num ponto tal e segue uma ordem (DELEUZE;
GUATTARI, 1995, p. 13). Qualquer ponto do rizoma pode ser conectado a qualquer
outro e não se fixa pontos, nem se estabelece ordem.
Para Deleuze e Guattari:
Um rizoma não cessaria de conectar cadeias semióticas, organizações de poder,
ocorrências que remetem às artes, às ciências, às lutas sociais. Uma cadeia se-
miótica é como um tubérculo que aglomera atos muito diversos, linguísticos,
mas também perceptivos, mímicos, gestuais, cogitativos: não existe língua em
si, nem universalidade da linguagem, mas um concurso de dialetos, de patoás,
de gírias, de línguas especiais (DELEUZE; GUATTARI, 1995, p. 13).

3º – PRINCÍPIO DE MULTIPLICIDADE
O princípio da multiplicidade complementa a visão sobre o conjunto como
determinante sobre as partes, diz que
[...] somente quando o múltiplo é efetivamente tratado como substantivo,
multiplicidade, que ele não tem mais nenhuma relação com o uno como
sujeito ou como objeto, como realidade natural ou espiritual, como imagem
e mundo. As multiplicidades são rizomáticas e denunciam as pseudomulti-
plicidades arborescentes. Inexistência, pois, de unidade que sirva de pivô no
objeto ou que se divida no sujeito. Inexistência de unidade ainda que fosse
para abortar no objeto e para “voltar” no sujeito. Uma multiplicidade não tem
nem sujeito nem objeto, mas somente determinações, grandezas, dimensões
que não podem crescer sem que mude de natureza (as leis de combinação
crescem então com a multiplicidade) (DELEUZE; GUATTARI, 1995, p. 14).

Segundo Deleuze e Guattari (1995, p. 15), “Um agenciamento é precisamente


este crescimento das dimensões numa multiplicidade que muda necessariamente de
natureza à medida que ela aumenta suas conexões”. “As multiplicidades se definem
TRANSCICLOPÉDIA EM DIFUSÃO DO CONHECIMENTO 677

pelo fora: pela linha abstrata, linha de fuga ou de desterritorialização segundo a


qual elas mudam de natureza ao se conectarem às outras. O plano de consistência
(grade) é o fora de todas as multiplicidades”. (DELEUZE; GUATTARI, 1995, p. 15).

4° – PRINCÍPIO DE RUPTURA A-SIGNIFICANTE


Traz um olhar específico sobre o comportamento do rizoma frente aos cortes
na sua estrutura. Mesmo sofrendo cortes significativos, o rizoma pode recompor-se
seguindo outras de suas linhas ou mesmo linhas de outro rizoma.
[...] contra os cortes demasiado significantes que separam as estruturas, ou que
atravessam uma estrutura. Um rizoma pode ser rompido, quebrado em um lugar
qualquer, e também retoma segundo uma ou outra de suas linhas e segundo
outras linhas. Todo rizoma compreende linhas de segmentaridade segundo as
quais ele é estratificado, territorializado, organizado, significado, atribuído etc.;
mas compreende também linhas de desterritorialização pelas quais ele foge
sem parar. Há ruptura no rizoma cada vez que linhas segmentares explodem
numa linha de fuga, mas a linha de fuga faz parte do rizoma. Estas linhas não
param de se remeter umas às outras (DELEUZE; GUATTARI, 1995, p. 16).

5º e 6º – PRINCÍPIO DE CARTOGRAFIA E DE DECALCOMANIA


Segundo o princípio de cartografia e de decalcomania: “Um rizoma não pode
ser justificado por nenhum modelo estrutural ou gerativo. Ele é estranho a qualquer
ideia de eixo genético ou de estrutura profunda.” (DELEUZE; GUATARI, 1995,
p. 19). Desta forma, não existe um modelo que estruture o rizomático e tentar en-
gessá-lo pode levar a sua ruptura.
O mapa não reproduz um inconsciente fechado sobre ele mesmo, ele o cons-
trói. Ele contribui para a conexão dos campos, para o desbloqueio dos corpos
sem órgãos, para sua abertura máxima sobre um plano de consistência. Ele faz
parte do rizoma. O mapa é aberto, é conectável em todas as suas dimensões
desmontável, reversível, suscetível de receber modificações constantemente.
Ele pode ser rasgado, revertido, adaptar-se a montagens de qualquer natureza,
ser preparado por um indivíduo, um grupo, uma formação social. [...] Uma
das características mais importantes do rizoma talvez seja a de ter sempre
múltiplas entradas. [...] Um mapa é uma questão de performance, enquanto
o decalque remete sempre a uma presumida “competência”. (DELEUZE;
GUATARI, 1995, p. 20).

Assim, encerra-se com um trecho de Deleuze e Guattari sobre multiplicidades:


Não seja nem uno nem múltiplo, seja multiplicidades! Faça a linha e nunca o
ponto! A velocidade transforma o ponto em linha! Seja rápido, mesmo parado!
678 TRANSCICLOPÉDIA EM DIFUSÃO DO CONHECIMENTO

Linha de chance, jogo de cintura, linha de fuga. Nunca suscite um General


em você! Nunca ideias justas, justo uma ideia (Godard). Tenha ideias curtas.
Faça mapas, nunca fotos nem desenhos (Deleuze e Guattari, 1995).

Figura 2 – Rizoma – detalhe

REFERÊNCIAS
BAREMBLITT, G. Introdução à esquizoanálise. 2.ed. Belo Horizonte:
Biblioteca do Instituto Félix Guattari, 2003. 138p.

DELEUZE, G. Conversações. Rio de Janeiro: Editora 34, 1992. 240p.

DELEUZE, G.; GUATTARI, F. Mil platôs: capitalismo e esquizofrenia. Rio de


Janeiro: Editora 34, 1995. v. 1. 94 p.

RAMOS, L.; M., MEIMES, Rizoma. Disponível em: <http://www.ufrgs.br/


epsico/subjetivacao/espaco/rizoma.html>. Acesso em: fev. 2018.

RIZOMA. In: DICIO, Dicionário Online de Português. Porto: 7Graus, 2018.


Disponível em: <https://www.dicio.com.br/rizoma/>. Acesso em: fev. 2018.
78. Role Playing Game Digital

Igor Bacelar da Cruz Urpia


Marcos Vinícius Castro Souza

O Role Playing Game (RPG) tem sua origem na década de 1970, nos Estados
Unidos da América, com inspiração nos “[...] jogos de mesa, estes criados por mili-
tares no final do século XIX com finalidade de treinamento sob a forma de simulação
de situações-problema.” (DANIEL MACKAY, 2001 apud CUPERTINO, 2008, p.
21, grifo nosso).
O RPG chega ao Brasil nos anos 1980, entretanto, sua utilização ocorreu,
primeiramente, por um público de jovens e adolescentes que dominavam a língua
inglesa. Todavia, o jogo passou a ser popularizado por volta dos anos 1990, visto
que possibilitou sua edição em português. Foi nesse período que surgiram também
os primeiros jogos criados por autores brasileiros, tais como: Tagmar — jogo de fan-
tasia medieval e o Desafio dos Bandeirantes — que se utilizou de uma ambientação
totalmente voltada para a cultura nacional.
O RPG se constitui um jogo que possibilita a interpretação de personagens
pelos seus jogadores, os quais assumem papéis e criam uma narrativa de forma co-
laborativa, pilares para a relação ensino-aprendizagem. Trata-se de um jogo em que
os personagens vivenciam uma história-aventura, proposta pelo “Mestre” do jogo, o
qual ambienta o cenário e o contexto em que todos estão inseridos. (CABALERO,
2012). O Mestre também é responsável por atuar como uma espécie de juiz do
jogo, mediando à ação e interação dos jogadores, além de fiscalizar o cumprimento
do sistema de regras adotado. (PEIXOTO; PINTO, 2011 apud RIBEIRO, 2016).
Por possuir influências da linguagem teatral, o jogo de RPG obedece a uma
estrutura básica de funcionamento, devendo considerar na sua modelagem os
seguintes aspectos que garantem a interatividade do jogo: Ambiente; Sistema de
Regras; Enredo; Dados; Mestre; Personagens Jogadores e Classe (SOUZA, 2016).
680 TRANSCICLOPÉDIA EM DIFUSÃO DO CONHECIMENTO

ESTRUTURA BÁSICA DO RPG


CONCEITO DESCRIÇÃO

Ambiente É o lugar onde se encontram os personagens e se passa a narrativa.

Sistema de Regras É a regra que ordena o mundo fictício.

É o que conduz a narrativa do jogo, os objetivos e o motivo do


Enredo
jogo. O enredo é divido em Aventura e Campanha.

O rolamento de dados junto com as regras dá o caráter de aleato-


riedade na ação dos jogadores, ou seja, se um jogador deseja rea-
Dados
lizar uma ação, o êxito ou fracasso dependerá dos valores obtidos
nos dados.
É o narrador que inicia a história e que interpreta os personagens
Mestre
não jogáveis NPC (non-player character).

São personagens inseridos na história interpretados pelos


PJ – Personagens Jogadores
jogadores;

É a profissão do personagem. Cada classe possui habilidades e


Classe
características particulares.
Fonte: (SOUZA, 2016, p.45-46).

O RPG Digital é um software que se constitui em um Ambiente Educacional


de Aprendizagem, o qual deve ser modelado a fim de proporcionar um espaço des-
tinado à construção cognitiva e difusão do conhecimento proposto, favorecendo
práticas de ensino-aprendizagem, baseadas no socioconstrutivismo, que preceitua
que a construção do conhecimento é estabelecida por meio de uma relação dialética
entre os sujeitos (personagens/jogadores) e o contexto social (ambiente complexo
desenvolvido no RPG Digital).
De acordo com os ensinamentos de Matta (2011) podemos entender que
A proposta socioconstrutivista, ao contrário da construtivista, não se propõe a
construir um ambiente capaz de deixar o sujeito imerso em interação desejáveis
e construídas, mas sim preparar o sujeito e o que se vai aprender para que parti-
cipe do ambiente e mundo no qual o sujeito vive. É uma diferença elementar e
que nos ajuda a entender as duas. O construtivismo pretende imergir o sujeito
no ambiente criado para a aprendizagem, enquanto o ­socioconstrutivismo
pretende engajar a aprendizagem e o processo pedagógico proposto no mun-
do e no ambiente concreto e cotidiano do sujeito (MATTA, 2011, p. 245).
TRANSCICLOPÉDIA EM DIFUSÃO DO CONHECIMENTO 681

No RPG Digital, a mediação do conhecimento é realizada pelo Mestre do


Jogo, desenvolvendo, em uma perspectiva epistemológica vygotskyana, o papel de
interlocutor na relação ensino-aprendizagem, na constante interação entre os sujeitos/
jogadores, as tecnologias utilizadas e os conteúdos a serem trabalhados colaborati-
vamente, em espécies de aventuras, campanhas, que se constituem na ambientação
proposta pelo jogo.
Para tanto, o RPG Digital se desenvolve por intermédio da mediação tecno-
lógica de computadores conectados a uma rede. O que caracteriza a criação de um
ciberespaço, compreendido, de acordo com Levy (1999, p. 26), como
[...] dispositivo de comunicação interativo e comunitário, apresenta-se jus-
tamente como um dos instrumentos privilegiados da inteligência coletiva. É
assim, por exemplo, que os organismos de formação profissional ou de ensino
à distância desenvolvem sistemas de aprendizagem cooperativa em rede.

Com isso, nota-se que a utilização do RPG Digital pode favorecer a apren-
dizagem dos sujeitos participantes, na medida em que promove um ambiente de
cooperação, construção coletiva e colaborativa do conhecimento, interatividade e,
também, por meio da interdisciplinaridade que essa proposta assegura.
Nessa perspectiva, importa salientar que o jogo RPG, como outros jogos, atua
por intermédio da Zona de Desenvolvimento Proximal, caracterizada por Vygotsky
pelas ações que o sujeito só consegue realizar mediante orientação ou ajuda de um
indivíduo mais experiente. Ou seja,
[...] a zona de desenvolvimento proximal define aquelas funções que ainda
não amadureceram, mas que estão em processo de maturação e que estão em
estado embrionário. Essas funções poderiam ser chamadas de ‘brotos’ ou ‘flores’
do desenvolvimento, ao invés de frutos do desenvolvimento (VYGOTSKY,
1984, p. 97).

Daí a necessidade de o RPG Digital promover um Ambiente Virtual de


Aprendizagem capaz de oportunizar a mediação, a busca pelo conhecimento por
meio da colaboração.
O RPG Digital, ante esse contexto, utiliza-se de estratégias lúdicas para favo-
recer a construção do conhecimento por parte da comunidade envolvida no jogo,
pois, é por intermédio do brincar, que o sujeito encontra liberdade para expressar
pensamentos, trocar ideias, cumprir tarefas, bem como aprender de modo signi-
ficativo. Assim, além da diversão, o jogo propicia a expressão de comportamentos
mais avançados do que em situações da vida real, além de aprender separar objeto
e significado.
682 TRANSCICLOPÉDIA EM DIFUSÃO DO CONHECIMENTO

REFERÊNCIAS
CABALERO, Sueli da Silva Xavier (Org). RPG by Moodle. Salvador. 2012.
Disponível em < http://www.matta.pro.br/editora_virtual/RPGbyMoodle.pdf>
Acesso em 25 abr. 2017.

CUPERTINO, Edson Ribeiro. Vamos jogar RPG? Diálogos com a literatura,


o leitor e a autoria. Dissertação (Mestrado). Programa de Pós-Graduação em
Estudos Comparados de Literaturas de Língua Portuguesa, Universidade de São
Paulo, São Paulo, 2008, 126 fl. Disponível em < http://www.teses.usp.br/teses/
disponiveis/8/8156/tde-13022009-122722/pt-br.php> Acesso em 3 maio 2017.

LÉVY, Pierre. Cibercultura. Tradução de Carlos Irineu da Costa. São Paulo:


Editora 34, 1999.

MATTA, Alfredo Eurico Rodrigues. Desenvolvimento de metodologia de design


socioconstrutivista para a produção do conhecimento. In: GURGEL, Paulo;
SANTOS, Wilson. (Org.). Saberes plurais, difusão do conhecimento e práxis
pedagógica. Salvador: EDUFBA, 2011, v. 1, p. 237-258.

RIBEIRO, Josete Bispo. RPG Digital e Segurança Pública: Uma proposta


de aplicação pedagógica para instrução policial militar. Tese (Doutorado) –
Universidade Federal da Bahia. Faculdade de Educação, Salvador, 2016, 247 fl.
Disponível em < https://repositorio.ufba.br/ri/bitstream/ri/20299/1/Tese%20
JOSETE%20BISPO%20RIBEIRO.pdf> Acesso em 20 abr. 2017.

SOUZA, Antônio Lázaro Pereira de. RPG digital instrumento pedagógico


para o ensino da abolição da escravidão na Bahia. Dissertação (Mestrado).
Programa de Pós-Graduação em Educação e Contemporaneidade, Universidade
do Estado da Bahia, Salvador, 2016, 119 fl.

VYGOTSKY, L. S. A formação social da mente. São Paulo: Martins Fontes,


1984.
S
79. Saberes

Amilton Alves de Souza

Os saberes, por uma opção política, histórica e cultural, são compreendidos


como um conjunto de experiências constituídas socialmente. É importante res-
saltar que estamos nos referindo aos saberes de mundo. Sob esta ótica, os saberes
sempre serão trazidos a partir de uma construção da valorização das experiências,
dos conhecimentos acumulados na relação dos sujeitos com o seu mundo social e
do trabalho. Estaremos sempre nos distanciando do conhecimento conservador,
dominante, centralizador e verticalizado.
A partir daqui a experiência será compreendida e tratada em nosso texto como
aquela que nos faz ter sentido, nos dar sentido de si, é aquela que passa; aquela que
é processual. Portanto,
[...] Poderíamos dizer, de início, que a experiência é, em espanhol, ― o que
nos passa ―. Em português se diria que a experiência é ― o que nos acontece
―; em francês a experiência seria ― ce que nous arrive ―; em italiano, ―
quello che nos succede ― ou ― quello che nos accade ―; em inglês, ― that
what is happening to us ―; em alemão, ― was mir passiert ―. A experiência
é o que nos passa, o que nos acontece, o que nos toca. Não o que se passa,
não o que acontece, ou o que toca. A cada dia se passam muitas coisas, po-
rém, ao mesmo tempo, quase nada nos acontece. Dir-se-ia que tudo o que se
passa está organizado para que nada nos aconteça. Walter Benjamin, em um
texto célebre, já observava a pobreza de experiências que caracteriza o nosso
mundo. Nunca se passaram tantas coisas, mas a experiência é cada vez mais
rara (BONDÍA, 2005, p. 21).

A construção do saber se dará sempre por meio das relações, do vivido e co-
nhecimento do mundo no qual se está inserido, sempre por meio das experiências
sociais e individuais que vai empoderando, amadurecendo e ressignificando o sujeito.
Para Charlot (2000), todo saber vai ser construído por meio da relação com o
saber, ou seja, com o próprio saber e com o outro na relação com o próprio sujeito.
Ele afirma que todo saber existe na relação com o mundo, pois não existe — sujeito
de saber ― (p. 63), o saber existe a partir da experiência do sujeito com e no mun-
do. Esse mundo pode ser o próprio sujeito ou o outro sujeito e as suas construções.
O autor em sua obra — Da relação com o Saber: elementos para uma teoria, nos
provoca, chamando atenção com o intuito de refletirmos que a relação com o saber
686 TRANSCICLOPÉDIA EM DIFUSÃO DO CONHECIMENTO

não é processo para compreensão, mas é a experimentação da vivência com o pró-


prio saber. Nessa significação, o aprender é fundamental, pois aprender para nós
humanos é uma condição. Assim,
O saber da comunidade, aquilo que todos conhecem de algum modo; o saber
próprio dos homens e das mulheres, de crianças, adolescentes, jovens, adultos e
velhos; o saber de guerreiros e esposas; o saber que faz o artesão, o sacerdote, o
feiticeiro, o navegador e outros tantos especialistas, envolve, portanto, situações
pedagógicas interpessoais, familiares e comunitárias, onde ainda não surgiram
técnicas pedagógicas escolares, acompanhadas de seus profissionais de aplicação
exclusiva. Os que sabem: fazem, ensinam, vigiam, incentivam, demonstram,
corrigem, punem, premiam. Os que não sabem espiam, na vida que há no
cotidiano, o saber que ali existe, veem fazer e imitam, são instruídos com o
exemplo, incentivados, treinados, corrigidos, punidos, premiados e, enfim, aos
poucos aceitos entre os que sabem fazer e ensinar, com o próprio exercício vivo
do fazer. Esparramadas pelos cantos do cotidiano, todas as situações sempre
mediadas pelas regras, símbolos e valores da cultura grupo ― têm, em me-
nor ou maior escala, a sua dimensão pedagógica. Ali, todos os que convivem
aprendem da sabedoria do grupo social e da força da norma dos costumes
da tribo, o saber que torna todos e cada um pessoalmente apto e socialmente
reconhecidos e legitimados para a convivência social, o trabalho, as artes da
guerra e os ofícios do amor‖ (BRANDÃO, 1993, p. 20-21).
Como diria Freire (2000) somos seres inconclusos e inacabados, e é nesta con-
dição de inacabamento que aprendemos, todos nós aprendemos sempre. Voltando
ao aprender na relação com o saber, ele será sempre experimentado a partir das suas
referências e construções sociais, a partir do outro e, nesse caso, com os objetos,
ações, sujeitos, sentidos, língua.
Face ao exposto, aprender faz parte da relação do sujeito no e com o mundo,
bem como com o saber; é a própria experimentação de novos saberes, então, diríamos
que aprender é tomar para si o objeto por meio da crítica, da inquietude, da proble-
matização e do questionar-se. Essa é a nossa compreensão epistêmica do aprender.
O saber é resultado da experimentação (experiência) do sujeito com o outro e
o mundo. É a significação do encontro com o outro. O que iremos propor com os
círculos de leitura e escrita no laboratório de informática é o encontro entre o saber
do sujeito, adquirido fora da escola, com as relações de novos diálogos, ali mediados
por meio do professor e o laboratório de informática, ressignificando os saberes
adquiridos ao longo da existência, das relações e produzindo novos.
Para Ferreira (2011), os saberes comunicacionais não estão desconectados e nem
sozinhos, mas são construídos por meio das experiências coletivas entre os sujeitos,
os outros e o seu meio.
TRANSCICLOPÉDIA EM DIFUSÃO DO CONHECIMENTO 687

Se os saberes são resultados da experiencia, logo, é fundante pensar as com-


preensões e sentidos da palavra experiência, que carrega consigo um sentido de ação
ampla. Para os ingleses, um sentido geral atrelado a ação (experience), mas quando
é um sentido técnico ou sentido do fazer, a palavra experiência dialoga muito mais
no campo da experimentação (experiment).
Para Japiassu e Marcondes (2016), “a experiência — é um princípio que me
instrui sobre as diversas conjunções dos objetos no passado”. E vai além quando
trata da experiência no tempo vivido, experienciado, pois “Nenhum conhecimento
a priori nos é possível senão o de objetos de uma experiência possível”. Logo seu
resultado constitui-se campos de saberes diversos fruto desse campo do vivido.

REFERÊNCIAS
BRANDÃO, Carlos Rodrigues. Educação Popular. São Paulo: Brasiliense, 1984.
p. 7.

BONDÍA, Jorge Larrosa. Notas sobre a experiência e o saber de experiência. In:


Revista Brasileira da Educação, n. 19, Jan./Fev./Mar./Abr., Rio de Janeiro,
ANPED, 2005.

CHARLOT, B. Da relação com o saber: elementos para uma teoria. Porto


Alegre: Artmed, 2000.

FERREIRA, Maria da Conceição A. Saberes pedagógicos/comunicacionais,


pesquisa/formação: reflexões sobre as experiências formativas das professoras
online. Tese (Doutorado em Educação). Universidade Federal do Rio Grande do
Norte, 2011.

FREIRE, Paulo. Educação e Mudança, 17.ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2000.

JAPIASSU, Hilton; MARCONDES, Danilo. Dicionário Básico de Filosofia.


3.ed. Rio de Janeiro: Zahar, 1996.
80. Self

Ivana Libertadoira Borges Carneiro

O Si mesmo representa o objetivo do homem inteiro, a saber, a realização de


sua totalidade e de sua individualidade, com ou contra sua vontade (JUNG,
2013, p. 45).

O Self foi a descoberta mais proeminente do inconsciente coletivo feita por


Jung. O Self é um arquétipo1, isto é, uma forma atribuída a experiências e memó-
rias, uma soma de influências herdadas de nossos antepassados, o qual transmite
padrões de comportamento. Consoante Jung2, não nascemos tábulas rasas, nascemos
inconscientes. Para ele, o arquétipo é inato. Na verdade, “[...] o arquétipo é uma fonte
primária de energia e padronização psíquica. Constitui a fonte essencial de símbolos
psíquicos, os quais atraem energia, estruturam-na e levam, em última instância, à
criação de civilização e cultura” (STEIN, 2006, p. 81).
Com efeito, nosso amadurecimento se dá, também, a partir dessa relação com
o contexto histórico, cultural, nossa condição humana e a influência dos arquétipos,
segundo Jung, levando-nos, desta maneira, a criações/padrões diversos como a própria
formação cultural, religiosa/espiritual e de símbolos. Cabe atenção para não sermos

1
A imagem primordial que também chamei de “arquétipo” é sempre coletiva, ou seja, é, no míni-
mo, comum a todos os povos e tempos. Provavelmente, são comuns também a todas as raças e
épocas os principais motivos mitológicos. Pude constatar a existência de uma série de motivos da
mitologia grega nos sonhos e fantasias de negros de raça pura que sofriam de doenças psíquicas
(exemplo típico de imagem arcaica em Jung, Símbolos da Transformação) (JUNG, 2016, Vol. VI,
p. 459).
Jung iniciou seus estudos [...] das sombrias regiões das condições neuróticas, chegando finalmente
à descoberta de mais ou menos invariantes fantasias e padrões de comportamento universais (os
arquétipos) numa área da psique profunda a que chamou o “inconsciente coletivo”. A descrição
e o relato detalhado do arquétipo e do inconsciente coletivo converter-se-iam na sua assinatura,
a marca que distingue o seu mapa dos de todos os outros exploradores da psique profunda, o
inconsciente (STEIN, p. 14).
Jung entende mais tarde [...] “o arquétipo como a força que estrutura a psique e a energia psíquica”
(STEIN, 2006, p. 68).
[...] A teoria dos arquétipos é o que torna platônico o mapa junguiano da alma; entretanto, a
diferença entre Jung e Platão é que Jung estudou as ideias como fatores psicológicos e não como
formas eternas ou abstrações (STEIN, 2006, p. 82).
Para aprofundar: O eu e o Inconsciente, OC 7/2 esp. Cap. 1, “A função do inconsciente”
­(HOPCKE, 2017, p. 113).
2
(Carl Gustav Jung, 1875–1961).
TRANSCICLOPÉDIA EM DIFUSÃO DO CONHECIMENTO 689

‘tragados’ pela cultura, distanciando-nos de nós mesmos, mas essa apreciação nos
levaria para um outro artigo.
O Self é visto por Jung como Uno, um arquétipo primordial do qual os demais
são provenientes. Considera-o como o centro de toda a personalidade de onde emana
todo o potencial energético de que a psique dispõe. É o ordenador dos processos
psíquicos e oportuniza uma noção de integração. Como o Self ou Si-mesmo é uma
imagem arquetípica, ele representa, de certo modo, o nosso desejo por unidade e
se constitui como a plenitude do potencial humano e de nenhum modo se vincula
a uma noção egoica comumente utilizada. Podemos conferir essa perspectiva nas
palavras de Hall & Nordby:

O Self é o principal arquétipo do inconsciente coletivo, assim como o sol é o


centro do sistema solar. O Self é o arquétipo da ordem, da organização e da
unificação; atrai a si e harmoniza os demais arquétipos e suas atuações nos
complexos e na consciência, une a personalidade, conferindo-lhe um senso
de “unidade” e firmeza (2014, p. 43).

São necessários sutileza e cuidado para entendermos o Self ou Si-mesmo, dada


a sua concepção de totalidade, isso porque ele agrega ao consciente o inconsciente,
que está sempre em movimento. Ademais, o que se apresenta de forma inconsciente
em nós, em geral, é projetado devido à dificuldade de acessar tais conteúdos. Adiante
retomaremos essa discussão mais verticalizadamente.
Muitos agentes povoam o inconsciente e todos revelam importância e comple-
xidade de compreensão e apreensão como a anima (aspecto contrassexual masculino),
o animus (aspecto contrassexual feminino)3 e a sombra, por exemplo, apesar de
Jung estabelecer hierarquias. A sombra desempenha relevante papel na ampliação
da consciência e no contato mais efetivo com o Si-mesmo. A atenção direcionada
a buscarmos aspectos sombrios em nós nos conduz à possibilidade de alcançarmos
aspectos ‘desconhecidos’ que seriam como agentes reveladores de ‘verdades’ antes
inimagináveis. O diálogo com nossa sombra4 e seu acolhimento são partes indis-
pensáveis e profícuas para o encontro com a totalidade e integração de conteúdos.

3
Para mais detalhes sugerimos a leitura das Obras Completas de Jung, Parceiros invisíveis da edi-
tora Paulus, Animus e anima de Emma Jung, Anima: Anatomia de uma noção personificada de
James Hilman da Editora Cultrix, dentre outros.
4
Para aprofundar sobre o assunto sugerimos a leitura das Obras completas IX/II (Aion – cap. 2),
IX/I (Os arquétipos do inconsciente coletivo), XVI (Os problemas da psicoterapia moderna), Ao
encontro da Sombra de Zweig e livros da Von-Franz – A sombra e o mal nos contos de fadas e
outros.
690 TRANSCICLOPÉDIA EM DIFUSÃO DO CONHECIMENTO

Com efeito, a sombra é uma parte negativa em nós, normalmente reprimida


e denegada. São as nossas mais terríveis, sórdidas e egoísticas características, uma
espécie de mal que habita as profundezas do nosso ser. Um atributo demasiadamente
humano e pertinente a todos nós. O maior problema da sombra é que a negamos
e, em geral, projetamo-la na alteridade. Vale ressaltar, entretanto, que a sombra não
tem apenas negatividades, ela traz aspectos não desenvolvidos e outros renegados por
nós pela nossa educação, formação e cultura também, os quais podem ser valiosos
para nossa construção como indivíduos. O que reitera a sua importância na com-
preensão de quem somos de fato. Se atentarmos para esta dinâmica com minúcia,
iniciaremos um processo de percepção de partes do nosso íntimo e isto poderia nos
auxiliar na tentativa de acessarmos conteúdos inconscientes e nos conhecermos
melhor, levando-nos para um encontro com a nossa personalidade supra-ordenada.
A personalidade supra-ordenada é o homem total, isto é, o homem como
realmente é, não como aparece para si mesmo. A essa totalidade também
pertence a psique inconsciente, com suas exigências e necessidades, da mesma
forma como as tem a consciência [...].

[...] Habitualmente chamo a personalidade supra-ordenada de si-mesmo e


separo estritamente o eu, o qual como se sabe só vai até onde chega a consci-
ência do todo da personalidade, no qual se inclui, além da parte consciente, o
inconsciente. O eu está para o “si-mesmo” assim como a parte está para o todo.
Assim sendo, o si-mesmo é supra-ordenado ao eu. Empiricamente o si-mesmo
não é sentido como sujeito, mas como objeto e isto devido à sua parte incons-
ciente, que só pode chegar indiretamente à consciência, via projeção. Por causa
da parte inconsciente, o si-mesmo se acha tão distante da consciência que se,
por um lado, pode ser expresso por figuras humanas, por outro, necessita de
símbolos objetivos e abstratos [...] (2002, Vol. XIV/1, p. 186-187).

Devido à condição inconsciente, por vezes, para conseguirmos acessar o


­Si-mesmo, precisamos desenvolver nossa capacidade de percepção de nós mesmos e
da linguagem simbólica, já que é imprescindível para a consecução deste processo.
No entanto, devemos lembrar que nós fomos distanciados da linguagem simbólica
e assumimos uma natureza determinada, lógica e dirigida para a consciência e, por
isso, precisamos reaprender e reconsiderar este entendimento, buscando o simbólico,
o imaginal.
Com efeito, o inconsciente dialoga conosco através da sua linguagem expres-
sando-se e fazendo-se presente. É imprescindível, para lograrmos êxito, ‘treinarmos’
nossa percepção para podermos captar o simbolismo presente na compensação, a
qual contrapõe-se ao estilo dominante da consciência, à unilateralidade e funciona
TRANSCICLOPÉDIA EM DIFUSÃO DO CONHECIMENTO 691

como uma tentativa de homeostase.


Seguindo nosso entendimento sobre o Self, temos que existem muitas dinâ-
micas na compreensão desse conceito além de tentativas de acesso a suas formas de
expressão como, por exemplo, a meditação, a imaginação dirigida, as fantasias, os
pensamentos intrusivos, a sincronicidade, as expressões criativas, a imaginação ativa
(grosseiramente, presença do ego como observador participante do que o inconsciente
está trazendo para ser apreciado, um sonhar acordado, um diálogo com conteúdos
inconscientes), os sintomas, a análise dos sonhos e sua simbologia.
A forma talvez mais comum de percepção da expressão do inconsciente é o
sonho, pois funciona como uma compensação da atitude dominante da consciência
e é acessível a todos, afinal, todos nós sonhamos. Podemos citar alguns símbolos
presentes no sonho que representam o Si-mesmo: mandalas, figuras antropomórficas,
humanas, vegetais, animais, formas geométricas, pais e filhos, mães e filhas, reis e
rainhas, deuses e deusas, dragões, serpentes, elefantes, leão, urso, aranha, caranguejo,
borboleta, besouro, verme, lótus, rosa, árvores, lagos, montanhas, igrejas, castelos,
vasos, círculo, esfera, quadrado, quaternidade, falo (quando são muito reprimidas
as questões da sexualidade), pedras preciosas, relógio, estrela, firmamento5 etc.
O Self, de algum modo, é responsável pela jornada do sujeito, parece tentar
nos conduzir para o nosso ‘chamado’, para darmos sentido ao nosso existir, para
caminharmos em direção à totalidade. Ele se ocupa da tarefa expressiva de tentar
fazer com que o ego entre em contato com seu processo de individuação, isto é,
o processo através do qual nos constituímos a pessoa que deveríamos ser de fato6,
tornamo-nos nós mesmos, realizando, deste modo, o Si-mesmo:
[...] Individuação significa tornar-se um ser único, na medida em que por
“individualidade” entendermos nossa singularidade mais íntima, última e in-
comparável, significando também que nos tornamos o nosso próprio ­si-mesmo.
Podemos, pois, traduzir “individuação” como “tornar-se si-mesmo” (Verselbstung)
ou “o realizar-se do si-mesmo” (Selbstverwirklichung) (JUNG, 2015, p. 63).

Tornar-se Si-mesmo vincula-se, assim, diretamente ao esforço em ser quem somos

5
Adaptado do livro: Os arquétipos e o inconsciente coletivo (IX/I, p. 189 e 190) e O mapa da alma
(p. 146).
6
A Individuação, em geral, é o processo de formação e particularização do ser individual e, em
especial, é o desenvolvimento do indivíduo psicológico como ser distinto do conjunto, da psico-
logia coletiva. É, portanto, um processo de diferenciação que objetiva o desenvolvimento da per-
sonalidade individual. É uma necessidade natural; e uma coibição dela por meio de regulamentos,
preponderante ou até exclusivamente de ordem coletiva, traria prejuízos para a atividade vital do
indivíduo (JUNG, 2013, p. 467, § 853).
692 TRANSCICLOPÉDIA EM DIFUSÃO DO CONHECIMENTO

e integrarmos partes nossas antes desconhecidas. Quando estamos conectados com


esse processo nos tornamos menos reativos e mais equilibrados. Esse entendimento
se distancia sobremaneira da ideia de individualismo, sendo essa uma incompreensão
comum associada ao conceito.
Não obstante, vale lembrarmos a diferença entre ambos. Individuar-se é uma
aproximação com a nossa totalidade, com o Self, com as peculiaridades que dizem
do ser que somos e de suas proximidades com o coletivo, considerando inclusive as
relações que estabelecemos com esse coletivo e, por isso, não poderia se acercar de
atitudes egoicas apenas e da noção comum que temos de individualismo vinculada
a egoísmo.
[...] O egoísta (“salbstisch”) nada tem a ver com o conceito de si-mesmo, tal
como aqui o usamos. Por outro lado, a realização do si-mesmo parece ser o
contrário do despojamento do si-mesmo. Este mal-entendido é geral, uma vez
que não se distingue corretamente individualismo de individuação. Individu-
alismo significa acentuar e dar ênfase deliberada a supostas peculiaridades, em
oposição a considerações e obrigações coletivas. A individuação, no entanto,
significa precisamente a realização melhor e mais completa das qualidades
coletivas do ser humano; é a consideração adequada e não o esquecimento das
peculiaridades individuais, o fator determinante de um melhor rendimento
social. A singularidade de um indivíduo não deve ser compreendida como
uma estranheza de sua substância ou de suas componentes, mas sim como uma
combinação única, ou como uma diferenciação gradual de funções e faculda-
des que em si mesmas são universais (JUNG, 2015, p. 63 e 64 § 266 e 267).

O Self é também uma maneira de desenvolvermos um proveito social mais


expressivo porque nos tornamos mais centrados e mais conscientes de nossas possi-
bilidades positivas e negativas, o que irá reverberar em nossas relações.
O Self é, do mesmo modo, o reconhecimento das nossas partes esquecidas,
renegadas, reprimidas e não desenvolvidas, sendo, dessa forma, a nossa totalidade
psíquica e englobando partes conscientes e inconscientes, como já explanamos. Essas
características o dimensionam como não totalmente empírico, pois há partes que
não são experimentáveis, entretanto, essa peculiaridade não retira sua condição de
cientificidade. Tal peculiaridade foi muito bem pontuada por Jung ao referenciá-lo
como postulado, como um conceito transcendente. Afinal, segundo o autor, – e para
além dele podemos encontrar outros defensores bem como inúmeros exemplos – a
própria ciência possui aspectos teóricos que não são experimentáveis e igualmente
aceitos. Vejamos nas palavras do próprio Jung:
TRANSCICLOPÉDIA EM DIFUSÃO DO CONHECIMENTO 693

O si-mesmo, como conceito empírico, designa o âmbito total de todos os


fenômenos psíquicos no homem. Expressa a unidade e totalidade da per-
sonalidade global. Mas, na medida em que esta, devido a sua participação
inconsciente, só pode ser consciente em parte, o conceito de si-mesmo é, na
verdade, potencialmente empírico em parte e, por isso, um postulado, na mesma
proporção. Em outras palavras, engloba o experimentável e o não-experimen-
tável, respectivamente o ainda não experimentado. Essas qualidades ele tem
em comum com muitos conceitos das ciências naturais que são mais nomina
(nomes) do que ideias. Na medida em que a totalidade que se compõe tanto
de conteúdos consciente quanto de conteúdos inconscientes for um postulado,
seu conceito é transcendente, porque pressupõe, com base na experiência, a
existência de fatores inconscientes e caracteriza, assim, uma entidade que só
pode ser descrita em parte e que, de outra parte, continua irreconhecível e
indimensionável. Uma vez que, na prática, existem fenômenos da consciência e
do inconsciente, o si-mesmo como totalidade psíquica tem aspecto consciente
e inconsciente (2009, Vol. VI, p. 485 e 486, § 902).

Seguindo nossa compreensão sobre o si-mesmo, podemos acrescentar, ainda, que


“[...] como todos os arquétipos, [...] também tem um caráter paradoxal e antinômico.
[...] O si-mesmo é uma verdadeira complexio opositorum (convivência de opostos)”
(JUNG, 2013, p. 268). Na verdade, essa oposição pode ser uma enantiodromia da
própria consciência que ora se posiciona favorável, ora desfavorável à totalidade como
assevera Jung no Aion. A consciência vai aos poucos sendo aumentada para que
possa contemplar a integração dos opostos e vislumbrar o acesso à totalidade como
possibilidade. Não podemos olvidar, entretanto, que tal expansão se constitui num
processo demorado, angustiante e bem difícil, mas necessário para nos tornarmos
aquilo que somos, a totalidade.
Assim, o si-mesmo, que, reiterando, é o arquétipo da totalidade, não faz distin-
ção entre opostos no sentido maniqueísta de bem ou mal, macho ou fêmea, certo ou
errado. A noção de totalidade nos faz refletir que não podemos negar todas as nossas
possibilidades como nos propõe a moral judaico-cristã. Nós somos, igualmente, a
concepção de yin-yang como totalidade psíquica, o acolhimento dos opostos.
A dimensão que o Self estabelece contato na questão ética, na nossa interiori-
dade, suscita a sua amoralidade, uma vez que ele nos permite atuar de acordo com
nossas convicções, sendo fiel a nossos princípios, impulsionando-nos para rompermos
com a autotraição que nos é ‘imposta’ no seio social. Porém, se transgredirmos nossa
própria moral ele nos faz ‘adoecer’, isto é, gera sintomas para que possamos voltar o
olhar para nossa conduta. Portanto, precisamos estar atentos para percebermos e, às
vezes, dependeremos de um profissional para nos auxiliar nesta análise.
694 TRANSCICLOPÉDIA EM DIFUSÃO DO CONHECIMENTO

Estamos vinculados à sociedade e este convívio cultural nos impele a crenças


diversas: algumas limitantes; outras preconcebidas; algumas equivocadas; outras
necessárias. Para sermos nós mesmos, aproximarmo-nos deste vínculo necessário
com o si-mesmo, devemos trair esse coletivo para escolhermos nossas próprias crenças
e peculiaridades, o que se constitui custoso, ‘um descolar de nossa própria pele’. A
esse movimento reflexivo, temos de associar o mergulhar no mar do inconsciente,
e, de suas possibilidades; adaptarmos essa ‘nova’ apreensão à realidade, continuando
nessa atividade repetidas vezes para integrarmos partes nossas antes desconhecidas,
empreendendo, para isso, um esforço titânico.
Concernente à autotraição, a ciência dessa atitude nossa é imprescindível in-
clusive para a descida ao inconsciente, visto que ela pode nos trazer sintomas mais
perceptíveis e imediatos. Para elucidarmos o citado, poderíamos examinar milhares
de relatos de pessoas que, ao agirem de forma que elas julgam imoral, prejudican-
do outrem ou traindo-se, desenvolveram sintomas físicos. Psicólogos e terapeutas
também são testemunhas dessa realidade que, entretanto, carece ficar guardada no
vaso alquímico. É como se o Self buscasse meios de nos alertar sobre nossas ações e
condutas que, devido à necessária ampliação da consciência, não são tão bem aceitas.
Para concebermos melhor sobre o que estamos explanando, traremos um
exemplo de pessoa próxima que autorizou o comentário: ela se envolveu em um re-
lacionamento por interesses financeiros e outras benesses e desenvolveu um sintoma
de náusea seguida de vômito, além de uma espécie de urticária. Investigou e não
encontrou nenhum problema físico. Tendo sido diagnosticado ‘nada’7, o médico a
encaminhou ao psiquiatra que sugeriu que procurasse um psicólogo ou terapeuta e
ela conseguiu entender na terapia que o sintoma era uma forma da psique lhe dizer
que o comportamento era repudiado. Ela só se livrou do sintoma depois que acabou
o relacionamento e fez as pazes consigo mesma.
De outro modo, podemos assegurar que a nossa psyche nos ensina que, ao
negarmos nossas crenças íntimas8 e criarmos uma tensão entre os opostos, podere-
mos adoecer. A questão ética interna nos leva ao entendimento de que toda vez que
renegamos nossa intimidade psíquica, somos tomados por sintomas que sinalizam
a traição a nosso sistema de crença interna, uma espécie de código de ética interior,
7
Isto nos remeteu a uma aula do professor Carlos São Paulo quando asseverou que o ‘nada’ é trata-
do por psiquiatra, terapeuta ou psicólogo.
8
Não iremos adentrar, neste contexto, como são construídas essas crenças por motivos lógicos: a
necessidade de profundas e radicais discussões que não cabem neste texto.
Outra questão é lembrar que a traição se dá quando seguimos um caminho diferente daquele que
acreditamos, daqueles valores construídos e introjetados.
TRANSCICLOPÉDIA EM DIFUSÃO DO CONHECIMENTO 695

às vezes, inconsciente, certamente ‘gerenciado’ pelo Self. O ser humano é complexo


e essas suas complexidades e questões endógenas interferem diretamente no seu
processo formativo e existencial.
Podemos relacionar, de certa maneira, o exemplo citado com a relação que Jung
faz do Self com a concepção de Deus, como se o Self fosse uma espécie de Deus
interior (2013). Nesse contexto, Jung sugere que carregamos uma Imago-Dei, como
uma ‘divindade interior’ que todo indivíduo traz consigo. Ela pode remeter tanto a
sentimentos nobres quanto a temores, por exemplo. Ampliando esse entendimento,
Jung afirma que não pode provar a existência de Deus, mas o seu trabalho pautado
na empeiria o fez compreender que existe uma espécie de “padrão de Deus” em cada
ser humano e que se constitui numa energia muito forte e transformadora9. Ele itera
que se conseguirmos encontrar esse padrão em nós, poderemos transformar nossa
forma de lidar com o existir.
Convém salientar que este conceito (Imago-Dei) gerou uma polêmica signi-
ficativa sobre a psicologia analítica, assim como o de inconsciente coletivo. Essa
ilação se propôs porque os religiosos acreditavam que Jung submeteu Deus a uma
função da psique e os cientistas o acusaram de místico, pois traria a metafísica de
volta à ciência. Jung defendia-se dizendo que, na verdade, a sua definição era de
ordem psicológica e não metafísica ou religiosa, como seus opositores apregoavam.
Não podemos esquecer que nossos cientistas, os quais se autointitulam de ‘núcleo
duro’, buscam sempre se afastar de qualquer teoria que não seja ‘espelho’...

9
Jung descobriu símbolos do Si-mesmo arquetípico em muitos dos sistemas religiosos do mundo,
e os escritos dele se sustentam como testemunha do contínuo fascínio dele por esses símbolos de
completude e integração: o passado paradisíaco de unidade não rompida simbolizada pelo jardim
do Éden ou pela Era Dourada do Olimpo: o Mitológico Ovo Cósmico do qual toda a criação
teria saído; o Homem Original hermafrodita, ou antropos, que representa a humanidade antes da
sua queda e degradação, ou o ser humano em seu estado mais puro, como Adão, Cristo e Buda;
os mandalas da prática religiosa asiática, aqueles círculos extraordinariamente belos dentro de
quadros, usados como foco de disciplina meditativa, com a intenção de levar o indivíduo a uma
consciência maior de toda a realidade. Como psicólogo, mais do que como filósofo ou teólogo,
Jung notou que esse arquétipo organizado da totalidade era particularmente bem apreendido e
desenvolvido por meio de imagens especificamente religiosas, e ele, então, veio a compreender que
a manifestação psicológica do Si-mesmo era realmente a vivência de Deus ou da “Imagem-Deus
dentro da alma humana”. Obviamente Jung não pretendia reduzir a todo-poderosa e transcen-
dente entidade divina a uma experiência psicológica, um mero arquétipo do inconsciente coletivo;
em vez disso, o objetivo dele era mostrar como a imagem de Deus existe dentro da psique e age
de modo apropriadamente semelhante ao de Deus, seja a crença em Deus da pessoa consciente ou
não (HOPCKE, 2017, p. 110 e 111).
696 TRANSCICLOPÉDIA EM DIFUSÃO DO CONHECIMENTO

Seguindo nossa explanação, Jung entende que na relação eixo ego-self há uma
interdependência, pois o Self necessita do ego para se relacionar com o mundo
externo. O ego é o centro da consciência e o Self é o centro da personalidade psí-
quica. Isso implica que o ego está subordinado ao Self, apesar de tentar negar essa
condição e, por vezes, julgar equivocadamente ser o ‘Senhor’ da psique. Podemos
assegurar sobre o eixo ego-self que ele se constitui, inicialmente, como uma espécie
de embrião indiferenciado ego-self e que, aos poucos, o ego e o Self vão se dife-
renciando, distanciando-se e, na idade adulta, em geral na metanoia10, recomeça o
processo de integração dos dois. Existe um fluxo de conteúdo, o qual impulsiona o
desenvolvimento do ego, do inconsciente para a consciência e da consciência para
o inconsciente:
O Si mesmo representa o objetivo do homem inteiro, a saber, a realização de
sua totalidade e de sua individualidade, com ou contra sua vontade. A dinâmica
desse processo é o instinto, que vigia para que tudo o que pertence a uma vida
individual figure ali, exatamente, com ou sem a concordância do sujeito, quer
tenha consciência do que acontece, quer não (JUNG, 2013, p. 56, grifo nosso).

O Si-mesmo é um mundo de possibilidades que integra aspectos inconsciente


e consciente, como já referimos, por isso é concebido como totalidade psíquica. É
através do Si-mesmo que construímos alicerce para nossas convergências eu-mundo
e nossas estruturas internas. Ele agrega as partes que existem em nós numa tentativa
de integração. Sendo assim, o Self nos impulsiona para um encontro profundo com
nossa individualidade: “[...] o Self é a meta de nossa existência, por ser ele a mais
completa expressão da combinação a que estamos fadados e que denominamos
individualidade” (JUNG, 2013, p. 38).
Seguindo nesta perspectiva, podemos asseverar que as pessoas procuram por
felicidade, satisfação e autorrealização, querem uma instantaneidade nas coisas que
não é viável ou mesmo existente, uma espécie de realidade não alcançável. Vivem
numa superficialidade frustrante. A contemporaneidade está pautada no consumo,
em um conjunto de relações sociais mediadas por imagens, uma sociedade do es-
petáculo, como sugere Debord (1997), onde ‘nem ser, nem ter, parecer’. Igualmente
vivem uma liquidez em suas relações, como sugere Zygmunt Bauman. Tal compor-
tamento impulsiona o indivíduo para viver cada vez mais em um ‘mar raso’. Nesta
perspectiva, talvez seja lícito afirmar, sem sermos reducionistas e acolhendo uma

10
Consoante Jung, quando chegamos à segunda metade da vida, nossas questões íntimas, interme-
diadas pelo Self, começam a nos direcionar para um encontro com problemas que se vinculem a
alma, que tenham sentido e significado para além da materialidade.
TRANSCICLOPÉDIA EM DIFUSÃO DO CONHECIMENTO 697

somatória de possibilidades, que o vazio existencial, tão comum na hodiernidade,


constitui-se num dos principais pontos no aumento das estatísticas de depressão e
suicídio, inclusive em crianças.
Por outro lado, sabemos que não existem pílulas que transformem as pessoas
imediatamente, operem milagres, embora pareça existir uma busca frenética e irra-
cional na atualidade por tal remédio. É fundamental compreender que só o exercício
contínuo, diário, hercúleo de busca do conhecimento de si, da heautognose, é capaz
de nos proporcionar tais reflexões para empreendermos atitudes diferentes e mais
salutares. O que Jung sinaliza é que o Self nos impulsiona a dulcificar as intem-
péries da vida, a vivermos o necessário para nosso amadurecimento psicológico, a
encontrarmos paz, a acolhermos nossa totalidade e diminuirmos a tensão entre os
opostos. Há real necessidade de entendermos que quando ocorre de nos sentirmos
infelizes e desconectados, em geral, há uma dissonância entre ego e Self e não estamos
deixando o Self guiar-nos, agindo egoicamente.
O Self incita um retorno para nosso interior, então, quando o indivíduo está
direcionando a vida para ‘fora’, o Self cria alternativas para o sujeito se vincular com
o seu ser mesmo. Na verdade, o Self tem a função de nos conduzir à autorrealização,
como se fosse um vetor interno de orientação. Somos impulsionados pelo Self para
encontrarmos sentido-significado para o existir, essa necessidade que nossa psique
traz em si de que a vida seja vivida de forma saudável e efetiva. Nas palavras de Jung:
Tenho visto as pessoas tornarem-se frequentemente neuróticas quando se
contentam com respostas erradas ou inadequadas para as questões da vida.
Elas buscam posição, casamento, reputação, sucesso externo ou dinheiro, e
continuam infelizes e neuróticas mesmo depois de terem alcançado aquilo
que tinham buscado. Essas pessoas encontram-se em geral confinadas a hori-
zontes espirituais muito limitados. Sua vida não tem conteúdo ou significado
suficientes. Se têm condições para ampliar e desenvolver personalidades mais
abrangentes sua neurose costuma desaparecer (JUNG, 2013, p. 67).

Nossas neuroses regem nossas vidas por não termos consciência delas ou bus-
carmos evitar admiti-las. O não (re)conhecimento da totalidade do Self, das nossas
características também sombrias faz com que projetemos nossa parte inconsciente
nas outras pessoas, responsabilizando-as, criticando-as, condenando-as por atitudes
nossas. Como não temos maturidade para assumirmos nossos erros e responsabi-
lidades, tendemos a atribui-los sempre a terceiros, vitimizando-nos. Certamente
por isso, Jung nos adverte: “[...] o melhor trabalho político, social e espiritual que
podemos fazer é parar de projetar nossas sombras nos outros” (2017, p. 37), tal é a
698 TRANSCICLOPÉDIA EM DIFUSÃO DO CONHECIMENTO

importância de compreendermos e reconhecermos essa peculiaridade nossa. Quando


nos conscientizamos disso, nossas relações são aprimoradas e nos tornamos pessoas
mais leves, livres e melhores.
Nós somos seres para a totalidade, quando nos afastamos de nós mesmos, desse
‘chamado’ para a heautognose, de uma vida com sentido e significado algo em nós sinaliza
para esta transgressão e muitos são os sintomas: somatizações, angústias, dores, alergias,
dificuldade de aprendizagem, depressão, agressividade, rebeldia etc. O Self vibra todo
o tempo para que saíamos do conforto do conhecido e nos incita para algo mais. O
Self não reconhece a materialidade apenas como sentido para o existir, ele quer mais e
nos impele a isto. Se negarmos esse convite, ele não cessará até que possamos perceber
sua presença e ‘chamado’, como se fosse uma condução para uma efetiva realização de
aspectos que são pertinentes à alma e a ela completam e se remetem.
Com efeito, o Si-mesmo, para Jung, não é como o ego, não apresenta conota-
ções narcisistas, autocentradas ou egoicas. Ao contrário. O indivíduo que consegue
aproximar o ego do Si-mesmo sem inflações, torna-se menos suscetível a reações, a
intempestividades, poderíamos, até mesmo, asseverar que desenvolve posturas mais
maduras e equilibradas nas relações como um todo. Tais pessoas em geral, apre-
sentam uma personalidade mais voltada à radicalidade da vida, tornando-se menos
direcionadas a ganhos imediatos, mesquinharias e materialidades. Elas parecem
estabelecer um vínculo mais profundo consigo mesmas e, talvez por isso, tenham
mais tolerância com a sombra alheia, uma espécie de heautognose que as conduz a
uma vida mais significativa e, poderíamos até mesmo dizer, mais feliz.
De forma sucinta, é plausível asseverarmos que compreender o si-mesmo sugere
uma longa caminhada e a estrada é muito tortuosa. O próprio Jung admite que é
muito difícil alcançarmos a totalidade, mas cabe a nós tentarmos integrar o máxi-
mo possível daquilo que realmente somos. Poderíamos pensar que é necessário um
olhar direcionado e, porque não dizermos, amoroso, especialmente para o sombrio
que habita em nós, aproximando-se, assim, da heautognose para se constituir como
processo ‘homeostático’.
Gostaríamos de finalizar propondo, desta maneira, uma reflexão, um mergulho
radical e necessário que pode nos auxiliar nesta busca pelo si-mesmo, pela nossa
totalidade, atentando para nosso processo íntimo, apoiando-nos, mais uma vez, para
tal, como sugere o filósofo Isaac Newton, no ombro de um gigante:
Mas o que acontecerá, se descubro, porventura, que o menor, o mais admirável
de todos, o mais pobre dos mendigos, o mais insolente dos meus caluniadores,
o meu inimigo, reside dentro de mim, sou eu mesmo, e precisa da esmola
TRANSCICLOPÉDIA EM DIFUSÃO DO CONHECIMENTO 699

da minha bondade, e que eu mesmo sou o inimigo que é necessário amar?


(Carl Gustav Jung)

REFERÊNCIAS
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81. Superdotação

Daniela Fernanda da Hora Correia

O termo superdotação define capacidades especiais dos seres humanos. Diz-se


de pessoas com capacidade acima da média. É formado pelo prefixo super de origem
latina, que indica acima, excesso, posição superior, e pelo adjetivo dotado do latim
dotatus, que significa pessoa que obteve de maneira natural, certo dom, que conse-
guiu uma graça, uma benfeitoria: dotado de perspicácia. O termo faz referência a
pessoas que possuem capacidade intelectual acima da média, como talento e dons
inatos que não podem ser adquiridos pelo esforço pessoal.
Hoje, no Brasil, o termo superdotação é utilizado em parceria com o termo
altas habilidades, como forma de amenizar a representação que existia no imaginário
coletivo, no que diz respeito ao talento, à genialidade ou até mesmo à superdotação.
Essa confusão de terminologias, conforme afirmam Guenther e Rodini (2012),
começou na década de 1950, quando nos Estados Unidos houve a expansão da edu-
cação voltada para essa clientela e, por conta das publicações que se disseminaram
na área, resultando em traduções, algumas vezes equivocadas, como ocorreu com
a incorporação do prefixo “super” nas traduções das palavras giftedness e gifted, as
quais deveriam ser traduzidas como dotação e dotado, respectivamente. Todavia, o
conceito superdotação não foi bem aceito no meio educacional, fato que acarretou
na importação da expressão high ability que, da mesma forma, teve problemas na
tradução e, ao invés de ser traduzida como capacidade elevada, traduziu-se como
altas habilidades (no plural), ocorrendo, conforme afirma Guenther (2011), perda
de essência conceitual.
Pérez (2003, p. 54), por sua vez, afirma que não há falta de exatidão na tradução
de high ability como altas habilidades:

Como se percebe, ability tem como sinônimos aptitude (aptidão) e skill (ha-
bilidade). Também encontramos um sinônimo de ability, no termo capacity,
que é definido como capacidade, calibre, estatura: poder mental, capacidade
e discernimento (ou perspicácia) combinados que permitem que o indivíduo
compreenda ideias, analise e julgue, e enfrente problemas: máxima capacidade
mental potencial [...] Como em inglês, (habilidade em português) também é
sinônimo de capacidade. PERÉZ (2003, p. 54)
TRANSCICLOPÉDIA EM DIFUSÃO DO CONHECIMENTO 701

Sem o consenso necessário, pesquisadores se dividiram entre as expressões


“altas habilidades” e “superdotação”, por conta das ideias que transmitiam. Os que
defendiam o termo “altas habilidades” afirmavam que a palavra “superdotação”
aumentava as expectativas em relação à pessoa, como aquela que deveria ser boa em
tudo por conta do prefixo “super”. Já os que defendiam a expressão “superdotação”
sugeriam que o termo “altas habilidades” ficasse apenas direcionado para pessoas
que apresentavam capacidade acima da média, relegando a segundo plano os demais
indicadores: criatividade e motivação.
Nesse contexto de discussões acerca do termo a ser utilizado, estudiosos e ins-
tituições governamentais e não governamentais que discutem a temática acordaram
em 15 de novembro de 2002 que seria usado o termo altas habilidades/superdotação.
Ressalte-se que o termo altas habilidades/superdotação já havia aparecido em publi-
cação do Ministério da Educação (MEC) pela primeira vez em 1995, nas Diretrizes
Gerais para atendimento Educacional aos alunos Portadores de Altas habilidades/
superdotação e talentos (ALENCAR, 1986).
O termo Altas Habilidades/Superdotação (AH/SD) acordado vem tendo boa
adesão em âmbito nacional, inclusive sendo utilizado em publicações do Ministério
da Educação. Entretanto, percebe-se que a adesão não é unânime, pois encontramos
entre pesquisadores brasileiros e estrangeiros a alternância do emprego desses ter-
mos e de outros sinônimos: Na literatura internacional e em publicações brasileiras
encontramos várias expressões para designar pessoas com habilidades superiores,
utilizadas, via de regra, como sinônimos:

[...] mais capazes (DELOU, 2007; FREEMAN; GUENTHER, 2000), ca-


pacidade e talento (GUENTHER, 2006), bem dotados (CAMPOS, 2002;
MILLER, 1994), superdotados (ALENCAR; FLEITH, 2001), indivíduos
com altas habilidades, potencial humano (FLEITH; ALENCAR, 2007) e altas
habilidades/superdotação (BRASIL, 1995, 2006; FLEITH, 2007; PÉREZ,
2006, VIRGOLIN, 2007). (CHAGAS; FLEITH, 2011, p. 8).

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T
82. Tecnologia Social

Juçara Freire dos Santos

Figura 1 – Mulheres treinadas em tecnologia para reúso de água

A palavra tecnologia diz respeito a um agrupamento de processos, métodos,


técnicas e instrumentos relacionados à arte, indústria, educação etc. Traz aplicação
prática de resolução de problema.
Na busca do conceito de Tecnologia, Veraszto et al (2008) refere-se ao saber
humano que se faz representativo na divisão entre ciência e tecnologia, e, mesmo
reservando cada uma delas as suas respectivas características, torna-se difícil fazer
uma dissociação desses termos. Na história da tecnologia, é necessário o entendimento
da complexidade de sua construção presente na trajetória da história do homem.
A associação da história do homem com a história das técnicas ocorre mediante a
utilização de artefatos modificados em instrumentos distintos no processo contínuo
de evolução em meio à complexidade, equivalente ao processo de construção das
sociedades humanas. O estudo da evolução histórica das técnicas desenvolvidas pelo
homem em contextos socioculturais e épocas distintas é ilustrativo da participação
ativa do homem e da tecnologia no desenvolvimento e progresso da sociedade.
Para Kneller (1978), a origem da palavra tecnologia encontra-se no grego techne,
que denota arte ou habilidade. Efetivamente a tecnologia é uma atividade prática cuja
conotação dá-se mais no sentido de transformar o mundo de forma prática do que
708 TRANSCICLOPÉDIA EM DIFUSÃO DO CONHECIMENTO

decifrá-lo. De natureza complexa, valoriza a eficiência, historicamente encontra-se em


desenvolvimento, na construção de máquinas, artefatos, invenção de técnicas e processos.
Em seu estudo, Veraszto et al (2008) ressalta que, no percurso histórico, a
palavra tecnologia é conceituada de modos diversos e por pessoas com base em
teorias divergentes e em diferentes contextos. Daí a dificuldade de uma definição
exata e precisa. A história da tecnologia e a história da técnica compõem-se com a
história do trabalho e da produção do ser humano. Compreender essa história com
base apenas nas descobertas dos artefatos pelos artífices não é suficiente, é necessário
assimilar principalmente o encadeamento de circunstâncias sociais que se apresen-
taram adequadas em alguns momentos e contrárias em outros, consequentemente
impedindo o avanço ao desenvolvimento dos artefatos que por seus esforços é de
transformar o mundo à sua volta, proporcionando qualidade de vida.
A ideia de que a Técnica é tão antiga quanto a humanidade é comentada por
Vargas (1999), que indaga e sente a necessidade de uma definição da Tecnologia,
bem como compreendê-la filosoficamente. Em sua busca, refere-se a antropólogos
que distinguiriam entre restos fossilizados de um homem dos de um hominídeo em
razão da presença de instrumentos encontrados, justificando a produção pelo homem.
No entanto refere-se à ideia de Levi-Strauss sobre os índios Nhambiquaras, que,
na condição de primitivos, não dispunham de Técnica, porém em seu livro Tristes
Tropiques, reconhece o equívoco, levantando a possibilidade de que, mesmo numa
sociedade primitiva, por mais primitiva que seja, a técnica estará presente, ainda que
seja simples. Conforme o autor, esse estágio primitivo da Técnica é chamado por
Ortega y Gasset de “técnica do acaso (azar)”, presumido que, nessa fase, a produção
dos instrumentos não se distinguia dos atos naturais. Logo, as ações técnicas não
seriam exclusivas de indivíduos mais aptos, seriam então executadas por todos de
uma mesma comunidade, similarmente.
Entretanto Vargas (1999) sobrepõe a Ortega a simbologia do pensamento
humano, considerando que entre os objetos percebidos e a mente há sempre a
interposição de um símbolo, sendo os mais próximos as palavras da linguagem.
Por sua vez, essas apresentam características de se vincularem, no sentido de suge-
rirem ao homem um progresso nos seus conhecimentos. O autor traz o argumento
para exemplificar o processo de desenvolvimento técnico, ao explicar que entre a
pedra lascada e o efeito de cortá-la há uma conotação que possibilita a melhoria
do instrumento; ou seja, a partir de um polimento corta-se melhor. Sendo assim,
na aquisição de um instrumento, constrói-se a princípio esse processo de desen-
volvimento pausadamente.
TRANSCICLOPÉDIA EM DIFUSÃO DO CONHECIMENTO 709

A partir desse processo, Vargas (1999) explica o segundo estágio da técnica,


imaginado por Ortega y Gasset, que é denominado de “técnica do artesanato”, que
consta de atos técnicos ensinados de geração a geração, que inclui os processos de
invenção e o aperfeiçoamento dos instrumentos. Nessa etapa, emergem os homens
portadores de maior habilidade em transmitir as funções técnicas com dedicação.
Esses são os protagonistas, os artesãos que propiciam a difusão entre mestres e
aprendizes dos ensinamentos das técnicas às novas gerações.
O século 17 marca o surgimento da ciência moderna, quando se torna aces-
sível a aplicação de conhecimentos científicos na solução de problemas técnicos. O
período é caracterizado pelo aparecimento da máquina a vapor, gerador e motor
elétrico, demarcando um terceiro estágio da técnica. Vargas (1999) pontua a atuação
de Ortega y Gasset denominando-a de “técnica dos técnicos”. Nessa etapa ocorre
a transferência da ferramenta do artesão para a máquina, que atua por si mesma.
A mudança vai transformar o homem num auxiliar da máquina, como operário.
Um outro protagonista passa a atuar por sua condição de saber projetar, construir e
conservar as máquinas, é a figura do engenheiro, que adota métodos e ações que se
aproximam dos métodos dos cientistas, utilizando da análise dos problemas, divi-
dindo-os em partes, buscando soluções das mais simples, experimentando resultados
parciais, encadeando-se em sequências de causas e efeitos.
Contudo Ortega não evidenciou que já se projetava no seu tempo o advento
de uma nova e radical etapa de desenvolvimento técnico, a Tecnologia. Para Vargas
(1999), nessa nova etapa a aplicação de conhecimentos científicos na construção de
uma determinada obra ou fabricação de um determinado produto deixava de ser
necessário, a exemplo do que ocorreu com a engenharia, a arquitetura, a indústria.
A necessidade era de solução de problemas técnicos de um modo generalizado, de
acordo com a Ciência, com suas teorias. O aparecimento da atividade tecnológica
ocorreu a partir das experiências de Edison, em seu laboratório de Menlo Park,
para obter um metal que servisse para os filamentos de lâmpadas elétricas para
emitir luz, encandecendo sem, porém, fundir-se; também a descoberta das válvulas
termiônicas por John Ambrose Fleming, físico inglês, e Lee De Forest, PhD
pela Universidade de Yale, para seu uso na transmissão e recepção radiofônica.
Dessa forma, a pesquisa de propriedades de materiais e o desenvolvimento da
eletrônica relacionam-se à origem dessa atual etapa da técnica: a Tecnologia,
que não dispensa a pesquisa tecnológica. Para se ter tecnologia é necessária a
pesquisa tecnológica, que se assemelha à pesquisa científica.
710 TRANSCICLOPÉDIA EM DIFUSÃO DO CONHECIMENTO

O argumento de Vargas (2001), em prefácio do livro Educação Tecnológica:


desafios e perspectivas, traz uma clareza ao explicar o modo progressista da técnica,
em que não basta o esclarecimento exclusivo pela habilidade manual encadeada
por uma “intencionalidade – transformação” inerente à espécie humana. O autor
inspira-se nas considerações de Ernest Cassirer, em seu: An Essay on Man, baseado
em pesquisas do biólogo Johanes von Uexküll, sobre os sistemas receptor e efetuador,
capazes de promover a adaptação dos organismos ao meio em que vivem. Como
explica, foi exclusivo do homem a adaptação a seu habitat, desenvolver um terceiro
meio entre os dois sistemas comuns a todos os organismos, denominado por Cassirer
de “sistema simbólico”. Essa condição singular dá-se pela percepção e atuação do
homem sobre o mundo exterior, introduzindo um símbolo que o “faz compreender
e guiar sua ação sobre o mundo em que vive” (p. 4).
Conforme Vargas (2001), no mesmo ensaio Cassirer trata da filosofia dos
sistemas simbólicos: a linguagem, a ciência, as artes e a história. Nesse sistema, a
linguagem é priorizada em sua aquisição pelo homem, e é estabelecida a diferenciação
do homem para o hominídeo, quando se dá a utilização de um instrumento pelo
homem, resultando necessariamente do surgimento da linguagem. Inicia-se então
com a linguagem o sentido progressista da técnica, em que os símbolos mentalizados
se associam à formação de conotações que vão favorecer a melhoria de fabricação
e ao uso dos objetos como instrumentos. O poder simbólico das palavras em meio
às denotações e conotações – a percepção das imagens mentais geradas por meio de
símbolos de coisas – possibilita ao homem o intento de transformá-las. Por meio da
linguagem é que acontece a comunicação, permitindo o aprendizado. Sendo assim é
compreensível a associação da técnica ao nascimento da humanidade e seu processo
progressivo na evolução do homem, prioritariamente pelo dom da linguagem.
A evolução histórica da técnica é acrescida em cada época, na aquisição de
novos aspectos cumulativos ao original. Como afirma Vargas (2001), nas civiliza-
ções míticas, geridas por mitos, os protagonistas deuses e heróis que geram crenças,
sabedoria, organização social e suas técnicas, a exemplo das civilizações egípcia e
mesopotâmica. O surgimento das protociências, ou seja, da ciência na condição de
estágio primário de evolução, ainda sob especulações ou hipóteses de conteúdos que
não foram testadas adequadamente, em busca do reconhecimento da comunidade
científica. Nesse caso, a aritmética babilônica e a geometria egípcia, técnicas de medir
e calcular. Numa pós-civilização mítica, as técnicas deixam de ser trazidas por deuses
ou heróis, mas por homens presentes na história, como Lao-Tsé, Confúcio, Buda,
Zaratustra, os profetas judaicos e os filósofos gregos, e passam a ser transmitidas de
TRANSCICLOPÉDIA EM DIFUSÃO DO CONHECIMENTO 711

geração a geração, dos mestres aos aprendizes. A técnica torna-se um saber possível
de ser aprendido, sem a necessidade de apelo ao divino tampouco do saber teórico.
O momento histórico da queda de Roma e a vinda do Cristianismo expressa certo
desinteresse pela natureza e seu conhecimento teórico, porém mantém-se o pensar
teórico na teoria de Deus, a Teologia. As técnicas são desenvolvidas nos mosteiros com
a prevalência do saber – fazer para fins práticos, transferindo de geração a geração.
Observa-se uma evolução de acontecimentos que vão proporcionar o desen-
volvimento das técnicas, resultando numa revolução medieval: industrial, na agri-
cultura e na mineração. A exemplo da arquitetura; medicina; tecelagem; confecção
de roupas; navegação; utilização da força motriz das rodas d’água e dos moinhos de
vento; a vinculação do cavalo como animal de tiro, que vai impulsionar o transporte
a longas distâncias, servindo ao uso de pessoas e de mercadorias. No final do século
XV, as navegações, a utilização da técnica naval, a navegação guiada pelas estrelas,
conhecimento adquirido pela astronomia e a matemática.
Esse tempo é marcado pelo despertar de um novo interesse pelo conhecimento
da natureza e seus segredos, repercutindo na manifestação do Renascimento. De
acordo com o texto de Vargas (2001), nesse período histórico já se compreende a
arte do ensino aos aprendizes praticada por seus mestres, por meio de habilidades
manuais, o que requeria o estudo e o conhecimento das teorias científicas. Esse
argumento é reforçado no século XVII, por Galileu, quando, recluso na Vila Ar-
cetri, escreve seus Discursos, apresentando os conhecimentos teóricos de uma nova
ciência, a “Mecânica Racional”. No entanto, a aplicação das teorias científicas
para a solução de problemas técnicos fez emergirem alguns problemas. Contudo
alguns embates foram travados por cientistas sem êxito, revelando uma tendência
denominada de Técnica Moderna, com o propósito de resolver problemas técnicos
por meio de conhecimentos práticos, embora eventualmente pudesse ter auxílio de
teorias científicas. Como exemplo, a máquina a vapor, uma invenção de Watt, com
experiência prática de laboratório, apenas instruído em conhecimentos científicos.
Esse invento perdurou de forma aceitável por um período de quase 50 anos
sem ainda haver uma compreensão sobre seu funcionamento, vindo a acontecer a
explicação por Carnot, que cria a Termodinâmica. Sucedendo-se com o gerador e o
motor elétrico, já na condição do conhecimento da teoria da indução elétrica. Sob o
amparo da Técnica Moderna faz-se a Revolução Industrial na Inglaterra. Na França
desponta a engenharia como profissão, logicamente para aqueles que escolhem a
construção de obras ou fabricação de produtos, baseados em conhecimentos científicos
e matemáticos. Como explica Vargas (2001), nessa conjuntura aporta a Tecnologia,
712 TRANSCICLOPÉDIA EM DIFUSÃO DO CONHECIMENTO

inicialmente com a conotação de disciplina, em que se estudam e sistematizam-se


os processos técnicos, e paulatinamente desdobra-se em pesquisa sob os materiais
de construção ou industriais. Repercutindo em um dos primeiros laboratórios de
pesquisa tecnológica, o de Edison, em Menlo Park, EUA.
No início do século XX, a indústria eletrônica ainda se apresentava como uma
principiante em relação às válvulas termiônicas para o rádio e a televisão. Por sua
vez, a Tecnologia conseguiu pleno sucesso utilizando teorias e métodos científicos
na solução dos problemas da técnica. Com o advento da computação eletrônica e a
informática, a tecnologia obteve seu predomínio. A pesquisa tecnológica adquire o
desenvolvimento, com dominância na cultura moderna de nossos dias. “Ela deixa
de ser o simples saber como fazer da técnica” Vargas (2001, p. 12). A Tecnologia re-
quererá de seus agentes um profundo conhecimento do porquê e como seus objetivos
são alcançados, passando a exigir da sociedade na qual encontra-se instalada uma
reformulação de suas estruturas e metas, compatível com os benefícios que causar.
Interessante o que nos diz Santos (2000, p.12): “As técnicas se dão como fa-
mílias. Nunca, na história do homem, aparece uma técnica isolada; o que se instala
são grupos de técnicas, verdadeiros sistemas. Um exemplo banal pode ser dado com
a foice, a enxada, o ancinho, que constituem, num dado momento, uma família de
técnicas”. Mas, segundo Santos (2000), existe uma relação de causa e efeito entre
o progresso técnico atual e as demais condições de implantação do atual período
histórico. Parte da unicidade das técnicas, sendo o computador uma peça central, o
surgimento da possibilidade de existir uma finança universal, principal responsável
pela imposição a todo o globo de uma mais-valia mundial. Com a ausência dessa, seria
também impossível a atual unicidade do tempo, o acontecer local sendo percebido
como um elo do acontecer mundial. Por outro lado, sem a mais-valia globalizada e
sem essa unicidade do tempo, a unicidade da técnica não teria eficácia.
Na Índia, quando se buscaram as estratégias de luta contra o domínio britâ-
nico, é de Gandhi a iniciativa da construção de programas, a reabilitação para o
incremento de tecnologias tradicionais por meio das atividades praticadas nas aldeias,
como popularizar a fiação manual produzida em uma roca de fiar. Tratava-se de
equipamento que foi reconhecido como primeiro tecnologicamente apropriado,
a Charkha. A atividade serviu de “bandeira” de luta contra a injustiça social e o
sistema de castas e também como “mobilizador” da industrialização nativa hindu e
o despertar da consciência política de milhões de habitantes das vilas. Numa frase,
ele traduz a autodeterminação de um povo: “Produção pelas massas, não produção
em massa”, Dagnino; Brandão; e Novaes (2004, p. 19).
TRANSCICLOPÉDIA EM DIFUSÃO DO CONHECIMENTO 713

A experiência de Gandhi foi difundida, chegando a ser aplicada na República


Popular da China e serviu de inspiração para o economista alemão Schumacher, que
criou a expressão “tecnologia intermediária”, no sentido de baixo custo de capital,
pequena escala, simplicidade, respeito ao meio ambiente e apropriada aos países
pobres. Também foi iniciativa do economista alemão a formação do Grupo de
Desenvolvimento da Tecnologia Apropriada. Em 1973, ele publicou o livro: Small
is beautiful: economics as if people mattered, traduzido em mais de quinze idiomas.
Ele é conhecido como introdutor do conceito de Tecnologia Apropriada (TA) no
mundo ocidental.
Com a participação de Schumacher, em 1966 foi criado o Grupo de Desenvol-
vimento de Tecnologia Intermediária, por iniciativa de profissionais e industriais do
Reino Unido com o objetivo de uma abordagem de “tecnologia intermediária”. O
grupo, atento à expansão do desemprego nos países pobres, organiza uma companhia
limitada sem fins lucrativos comprometida em oferecer aos pobres e desempregados de
países em desenvolvimento alternativas de vencer a pobreza por esforços próprios. O
conceito de “tecnologia intermediária” foi introduzido por Schumacher em relatório
à Indian Planning Comission, em 1963, e, em 1964, à Cambridge Conference on
Rural Industrialization. Eram primícias do grupo: a origem e o centro da pobreza
e do subdesenvolvimento mundial localizam-se nas áreas rurais dos países pobres,
ausentes dos programas de ajuda e de desenvolvimento; as áreas rurais mantêm-se
esquecidas e o desemprego continuará a crescer, somente com a tecnologia da auto-
ajuda com assistência ao alcance dos países pobres; os países doadores e as agências
não detêm conhecimento sistemático necessário sobre tecnologias e comunicação
adaptadas para assistência ao desenvolvimento rural (SCHUMACHER, 1974).
O grupo criado com a participação de Schumacher em 1966 reconhece que
o emprego produtivo apresenta-se como necessidade mais premente do mundo em
desenvolvimento e a oportunidade de criar atividades ao suprimento das necessidades,
as tecnologias e os métodos de produção devem ser apropriados às condições das
pessoas pobres em países pobres, ou seja, devem ser de baixo custo para a suficiência
do uso e praticados pelas populações das áreas rurais e pequenas cidades sem aptidão
técnica e organizacionais e de renda baixa. Os equipamentos devem ser fornecidos
por fontes internas e que atendam às necessidades locais.
Quanto às denominações da tecnologia de Schumacher, a intermediária foi
menos adequada pela conotação tecnocrática, sendo adotada genericamente a TA,
incorporada mais facilmente em razão de agregar os aspectos culturais, sociais e
políticos à discussão, além de propor transformação no estilo de desenvolvimento.
714 TRANSCICLOPÉDIA EM DIFUSÃO DO CONHECIMENTO

No período das décadas de 1970 e 1980, houve uma propagação de pesquisadores


em países avançados que adotavam a TA e tinham expressiva produção de artefatos
tecnológicos na expectativa de diminuir a pobreza nos países do terceiro mundo,
mas também nos países avançados, apreensivos pelas questões ambientais e fontes
alternativas de energia.
A opção pela TA trazia como característica a razão de ser gerada de forma
contrária à Tecnologia Convencional (TC), já que não era mais surpresa a não con-
secução da TC de ser resolutiva de problemas, inclusive acusada de ser inadequada e
agravante dos problemas sociais e ambientais. Outras questões mais radicais apontam
com criticidade o contexto socioeconômico e político que enquadra a relação Ciên-
cia, Tecnologia e Sociedade (CTS). A inadequação era vista como algo estrutural e
sistêmico, constatando a condição alternativa sobre esse contexto. Evidenciava-se a
diferenciação das tecnologias consideradas de uso intensivo de capital e poupadora
de mão de obra. Daí a inclusividade do movimento da TA.
A TA reúne uma série de iniciativas, acontecimentos e resultados que não podem
deixar de ser mencionados para a compreensão de sua contribuição ao desenvolvi-
mento econômico. Suas características de incremento de mão de obra, intensidade
de utilização de insumos naturais, simplicidade de implantação e manutenção,
capacitações locais fazem com que concebam a sua competência em evitar os danos
sociais e ambientais resultantes dos usos das TCs, além de favorecer a redução da
dependência de fornecedores habituais de tecnologia para os países periféricos. O
movimento de TA agiu de forma inovadora no aspecto do desenvolvimento econô-
mico. No aspecto tecnológico, prevalecia sem questionamento o modelo da cadeia
linear de inovação, cogitando que a pesquisa científica seguiria a tecnológica, o
desenvolvimento econômico e depois o social, visto como de objetivo imediato em
si mesmo e não como um resultado ex post de uma reação em cadeia dinamizada
pela soma de massa crítica científica.
No movimento de TA, a questão do desemprego foi compreendida por aliados
dos países avançados como que antevendo os problemas migratórios decorrentes, ou
mesmo no âmbito supranacional. A Organização Internacional do Trabalho (OIT)
dedicou-se apoiando estudos de caso de desenvolvimento de TA na Ásia e África,
considerando o impacto social e econômico, resultando no melhor desempenho
das tecnologias intensivas em mão de obra. Partem de aliados externos as poucas
pesquisas científicas e tecnológicas em TA desenvolvidas por pesquisadores dos
países periféricos mais sensíveis socialmente, já que internos quase não ocorreram.
Mesmo assim, a ideia de TA traz consigo expressivo compromisso social e originali-
TRANSCICLOPÉDIA EM DIFUSÃO DO CONHECIMENTO 715

dade na escolha de temas pela comunidade de pesquisa desses países (DAGNINO;


BRANDÃO; E NOVAES, 2004).
As críticas feitas ao movimento de TA fundamentaram-se nas ideias da neutra-
lidade da ciência e do determinismo tecnológico. Partem da compreensão da ciência
como permanente busca da verdade livre de valores e a tecnologia de uma evolução
linear e insensível em busca da eficiência. Segundo Dagnino; Brandão; Novaes (2004),
os críticos da TA não perceberam seu significado, visualizavam como uma ridícula
volta ao passado. Dickson (1978) não só questionou a neutralidade do determinismo
tecnológico como criticou a TC, defendendo a proposição de uma visão alternativa.
Refere-se às consequências da falta de atenção aos cientistas e técnicos ambientais
quanto ao controle e uso dos recursos perecíveis ao defenderem a reconsideração
radical das formas de crescimento tecnológico adotado pelos países industrializados
e subdesenvolvidos. Consequentemente os problemas que até então situavam-se na
esfera do meio ambiente hoje repercutem nas questões sociais e econômicas.
De acordo com Dickson (1978), a questão da falta de energia levou ao interes-
se de fontes de energia não convencionais. O que em tempos atrás era visto como
curiosidade de utilidade marginal, o interesse pela energia alternativa proliferou nos
experimentos em tecnologias alternativas em grupos de diversos países. Sendo que
muitos mostraram-se viáveis, porém surgiram problemas técnicos e sociais devido
aos estilos de vida construídos fundamentalmente diferentes do estilo habitual vi-
vido nas cidades ocidentais. A repercussão desses experimentos serve para desviar as
formas dominantes do crescimento tecnológico a objetivos mais desejáveis. As lições
servem não somente para aqueles que optam por deixar a sociedade convencional.
Numa crítica à racionalização da força de trabalho ao requerer uma crescente
qualificação científica e técnica para o controle e regulação do processo de produção,
aumentando a “eficiência” dos trabalhadores, recai o desemprego aos trabalhadores
não qualificados. Pondera Dickson (1978), a relevância das demandas por uma
tecnologia alternativa, que promove trabalho produtivo e satisfatório para o maior
número de pessoas possíveis e formas sociais alternativas que garantam o desenvol-
vimento do trabalho sem alienação ou exploração. Cientistas e técnicos defendem a
concepção de uma tecnologia baseada numa relação harmoniosa entre o indivíduo
e o meio natural, num futuro alternativo para o homem.
Na visão de pesquisadores e empresários aposentados do primeiro mundo,
a sensação era de “sentimento de culpa” pelo argumento sobre o movimento de
TA, como uma ação adequada para modificar a situação acusada. Esse segmento
de pesquisadores de TA foi limitado em seus trabalhos às populações do terceiro
716 TRANSCICLOPÉDIA EM DIFUSÃO DO CONHECIMENTO

mundo. Igualmente a participação da comunidade de pesquisa desses países mos-


trou-se insuficiente, excepcionalmente a Índia teve outro comportamento perante o
movimento. Conforme os autores Dagnino; Brandão; e Novaes (2004), a crítica em
questão traz como principal debilidade a suposição de que a ampliação do leque de
alternativas tecnológicas à disposição dos países periféricos modificaria a natureza
do processo e os critérios capitalistas que guiam a aceitação da tecnologia.
Explica Herrera (1983), sobre a condição de transferência da tecnologia
unidirecional e indiscriminada, ainda que portadora de valores sociais e culturais
subentendidos, não deve ser analisada somente pela razão de uma preponderância
da tecnologia ocidental. Mesmo sendo de elevada qualidade tecnológica de produti-
vidade, os países em desenvolvimento reúnem habilidades de adaptá-la às condições
sociais e culturais próprias, com possibilidades de adequação melhor às adquiridas
no processo de transferência. Ainda assim, as tecnologias adotadas, embora eficientes
nos aspectos econômicos e ambientais, não se mostraram superiores àquelas utili-
zadas nas sociedades acolhedoras. Defende o autor que a América Latina disponha
de capacidade científica autônoma, utilize as “tecnologias intermediárias”, direcio-
nadas à mão de obra em razão da insuficiência de capital e o agravante problema
do desemprego. Sendo assim, é necessário ciência e tecnologia “intermediárias”, de
menor custo e alinhadas às nossas possibilidades.
Dagnino (2001) levanta alguns pontos críticos relacionados à PCT latino-ame-
ricana naquele momento, referindo-se a uma postura evolucionista que não inclui
o desenvolvimento social, cujo modelo ofertado segue a abordagem dominante,
mesmo diante das críticas que são apontadas. Esse modelo desfruta de aceitação dos
responsáveis pela elaboração da PCT latino-americana. Sendo assim, os conceitos,
explicações e orientações políticas que concebeu mostram-se como abordagens:
“teoria evolucionária” ou “acumulação tecnológica”. A combinação resulta num
desenvolvimento social mecânico do desenvolvimento tecnológico, como algo que
obstrui. Visto como um processo que se dá em um plano paralelo, decorrente de
natureza não tecnológica, não relacionado à PCT.
Decorre dessa realidade a baixa qualificação da mão de obra, a ausência de
conexão com a acumulação tecnológica, condição intrínseca ao desenvolvimento
social. Este modelo mostra-se adequado ao ajuste neoliberal em curso nos países
latino-americanos. A disfuncionalidade da inter-relação entre inovação e desenvol-
vimento social apresenta-se cada vez mais evidente. A orientação na elaboração da
atual PCT latino-americana sofre a influência dessa situação, tornando passiva a
intervenção estatal na área de C&T na região. O Estado é facilitador e, por meio da
TRANSCICLOPÉDIA EM DIFUSÃO DO CONHECIMENTO 717

concentração dos interesses (intra e extrarregional), estabelece as alianças promotoras


da competitividade, no sentido de aumento da exportação.
O movimento de TA defendia o “pluralismo tecnológico”, visto por críticos da
esquerda como sinal de conservadorismo, já que se limitavam a uma desclassificação
da TC, significando uma postura funcional, que não atenderia aos interesses de
banimento das estruturas injustas predominante no terceiro mundo. A funcionali-
dade no modelo de acumulação capitalista dos países periféricos, consequentemente,
consentiria o aumento da produção e o barateamento da força de trabalho, uma
forma de atenuar o desemprego e amenizar a marginalização social. Razão da baixa
remuneração dos trabalhadores não qualificados, necessários à expansão do modelo
urbano-industrial, que certamente implicaria a redução do êxodo rural provocado
pelas TAs. Essas circunstâncias atingiam o movimento da TA com desqualificação
e ridicularização.
No movimento de TA há de se pontuar seu objetivo de desenvolvimento social
e adoção de postura defensiva, adaptativa, não questionadora das estruturas de poder
dominante nos planos internacional e local. Diferentemente do que apontavam seus
críticos, não generalizava condição “miserabilista”, “radical” e “retrógrada do em-
prego de TA. Defendidos por “setores atrasados”, onde as TCs não chegavam, e se,
ainda assim, estivessem, resultavam em distorções sociais e econômicas. Passou-se,
assim, à aceitação da TA como alternativa à TC. A utilização da TA poderia gerar
uma dinâmica de difusão similar à dominante, porém em razão de encontrar-se em
“setor atrasado”, estaria entre fronteiras.
É comentada por Dagnino (2004) a repercussão no movimento de TA na
formulação da Política de Ciência e Tecnologia (PCT) dos governos latino-ameri-
canos. O propósito era difundir a geração de postos de trabalho que demandassem
menores recursos que as TCs, principalmente em âmbitos de produtores de bens
que satisfizessem as necessidades básicas, adotadas com prioridade nos planos de
governo. Parcos avanços ocorreram, embora não faltasse a presença dos discursos
demagógicos dos governos autoritários de interesses elitistas.
A exacerbação nos anos 1980 do pensamento neoliberal reverberando mundial-
mente influencia o declínio do movimento de TA, já que “nesses tempos” a exclusão
da ideia de projeto, principalmente pelo que a TA propunha, um modo alternativo
de desenvolvimento, compreendido como a desconstrução e negação de TC, servia
de componente à sua base. Sobre esse momento, os autores Dagnino; Brandão; e
Novaes (2004) sinalizam a reemergência dos temas aderentes à Tecnologia Social
(TS). Contextualizam nesse cenário a condição do Brasil enquanto país periférico
718 TRANSCICLOPÉDIA EM DIFUSÃO DO CONHECIMENTO

engajado nos movimentos das Redes de Economia Solidária (RESs) e as Incubadoras


Tecnológicas de Cooperativas Populares (ITCPs) no seio de algumas universidades
brasileiras, como também ilustram esse tempo as empresas recuperadas, os empre-
endimentos autogestionários, que integram a Rede de Tecnologia Social (RTS), e
o cenário político internacional optante do processo de globalização unipolar, com
amparo aos possuidores do capital nas economias avançadas e prejuízo aos países
periféricos.
Em plano nacional, a orientação é por um projeto de integração subordinado,
desigual e excludente, agravante ao nosso modelo de desenvolvimento. A constatação
daqueles que optavam por outro tipo de projeto já trazia consigo a compreensão da
inviabilidade dele. Respondia à valorização da cidadania em segmentos penalizados
mais visivelmente à desigualdade social. A suspensão da trajetória de fragmentação
social, a pressão econômica e a construção de um modo de desenvolvimento mais
sustentável. Em meio ao ambiente econômico e tecnológico gerado com a difusão
do neoliberalismo, resultou em desenvolvimento teórico no processo de elaboração
do marco analítico-conceitual, à formulação de um conceito de TS em condição de
conferir à RTS de acordo com as características próprias.
Quanto à teoria da inovação, de acordo com Dagnino; Brandão; e Novaes
(2004), ela veio contribuir para a superação de algumas insatisfações do modelo
cognitivo que fundamentou o movimento de TA; critica a aplicabilidade do modelo
de “oferta e demanda” atinente ao produto conhecimento, propondo uma expectativa
relacionada à interação de atores no campo de inovação, com base nessa teoria; e
apresenta forma distinta da concepção do conceito de inovação, com propriedade
do conceito de inovação social mais coerente à visão de TS. O modelo de praxe que
distingue a TS como um “produto-meta” a ser desenvolvido nos espaços em que
normalmente se perseguem resultados de pesquisa “oferecidos”, numa espécie de
“mercado de TS”, a outros que se encontram dispostos a “demandar” esses resultados.
A contribuição da teoria da inovação faz entender a tecnologia pelas suas caracterís-
ticas. A TS constitui-se como tal quando tiver lugar um processo de inovação, um
processo do qual surja um conhecimento criado para atender aos problemas que
enfrenta a organização ou grupo de atores envolvidos.
Mesmo em ambientes formais de TC e das empresas, não se tem entendimento
se o conhecimento de fato resulte de alguma pesquisa previamente desenvolvida,
principalmente se ela se deu sem a participação daqueles que vão comercializar os
produtos que a tecnologia produzir. Procedimento igual e pelas mesmas razões que
a teoria da inovação entende o processo de difusão ou transferência de uma dada
TRANSCICLOPÉDIA EM DIFUSÃO DO CONHECIMENTO 719

tecnologia ou dada empresa, como um processo de inovação com características


particulares, corresponde ao que os participantes de RTS denominam de “reaplica-
ção”, como um processo específico com aspectos definitivos, próprios, pelo caráter
do contexto sociotécnico da relação configurada entre os atores com ela envolvidos.
Compreendida como um processo de inovação a ser levado a cabo, coletiva e
participativamente, pelos atores interessados na construção de cenário desejável, a
TS está próxima do que se nomeou de “inovação social”:
o conceito de inovação social, compreendido como conjunto de atividades
que pode englobar desde a pesquisa e o desenvolvimento tecnológico até a
introdução de novos métodos de gestão da força de trabalho, e que tem como
objetivo a disponibilização por uma unidade produtiva de um novo bem ou
serviço para a sociedade, é hoje recorrente no meio acadêmico e cada vez
mais presente no ambiente de policy making (DAGNINO; BRANDÃO; E
NOVAES, 2004, p. 34).

As contribuições de Baumgarten (2006) são importantes na discussão so-


bre o conceito de tecnologia social, compreendendo como produtos, técnicas ou
metodologias reaplicáveis. Ele percebe a necessidade de interação com a coletivi-
dade, para que de fato desenvolva-se e resulte em reais soluções de transformação
social, como proposta inovadora de desenvolvimento e prática. A tecnologia social
está baseada na propagação de soluções de problemas relacionados às questões e
privações visíveis de ordem alimentar, educacional, energia, moradia, renda, re-
cursos hídricos, saúde, meio ambiente e outros. Compreendem-se as tecnologias
sociais como decorrentes dos saberes populares, da organização social e também
de conhecimento científico, que implicam eficácia, reaplicação, promoção do
desenvolvimento social em escala.
Outro pesquisador da origem do termo TS é Manheim (1979), que desenvolve o
conceito ao referir-se à vivência em sociedade, a necessidade de adequar-se às normas
e costumes de uma dada coletividade, que encontra na educação a transmissão das
regras sociais já estabelecidas e que ele denomina de técnica social. A compreensão
do conceito requer o entendimento da mutabilidade das técnicas sociais, sujeitas
a viver transformações a depender do momento presente, do padrão de sociedade,
anseios e necessidades. Para Manheim (1979), a educação, enquanto técnica social,
modela o grupo conforme as exigências da época, pois o avanço das tecnologias
desde a Revolução Francesa vai influenciar as transformações vividas na sociedade
repercutindo em novos meios de produção, aumento populacional, passando a en-
frentar um contexto de novos problemas e necessidades sociais.
720 TRANSCICLOPÉDIA EM DIFUSÃO DO CONHECIMENTO

No final dos anos 1990, no Brasil, em meio a novos contextos políticos, o plane-
jamento e as técnicas sociais são retomados sob a concepção do Estado Gestor, quando
se dá paulatinamente a transferência deste pela “sociedade organizada” (terceiro setor)
em áreas não consideradas de serviços exclusivos do Estado (formulação, regulação
e execução das leis), de acordo com Baumgarten (2003). A partir de então o terceiro
setor é convidado a participar das políticas de ciência e tecnologia, culminando com
a fundação do Instituto de Tecnologia Social (ITS), organização da sociedade civil
de interesse público (Oscip), em 4 de julho de 2001. Em setembro do mesmo ano o
Ministério da Ciência e Tecnologia (MCT) promoveu, com a Academia Brasileira
de Ciências, a II Conferência Nacional de C&T (CNCT&I), com a participação de
gestores do setor de C&T, pesquisadores, empresários e legisladores, tendo na pauta
de discussão os avanços obtidos e os obstáculos a serem vencidos na implantação
de um efetivo sistema de ciência, tecnologia e inovação e a definição de uma nova
política para o setor. O objetivo era fortalecer parcerias com os diversos setores da
sociedade e viabilizar um projeto nacional de longo prazo que incorporasse o tema
da CT&I na agenda da sociedade brasileira (BAUMGARTEN, 2003).
Alguns eventos são pontuados por Baumgarten (2006), com destaque para a
participação do ITS na II CNCT&I e no projeto Centro Brasileiro de Referência
em Tecnologia Social (CBRTS), viabilizado pela parceria com o MCT, por meio da
Secretaria para a Inclusão Social. Em outro momento da CNCT&I, o ITS foi con-
vocado pelo MCT para a inclusão das organizações da sociedade civil na discussão.
Essa participação resultou na mesa Papel e Inserção do terceiro setor na construção e
desenvolvimento da Ciência, Tecnologia e Inovação e no Livro Branco, contendo uma
proposta estratégica do governo para C&T para um período de 10 anos.
No Caderno 1 do ITS-Brasil (2007), propõe-se à TS, o compromisso com a
transformação social. Recomenda o propósito de contribuir para um mundo mais justo
e menos desigual. É necessário estar atento aos desafios e oportunidades de reverter
o quadro e encontrar as soluções para desenvolver iniciativas justas. Ao Estado, o
cumprimento do papel que lhe cabe no objetivo de transformar as realidades injustas
e desiguais. Sem dúvida compete ao cidadão a corresponsabilidade no processo de
transformação social. Nas ações de TS devem-se incluir os processos mobilizadores
e conscientizadores, estimulando a democracia ativa, na busca de soluções e garantia
de direitos em processos educativos onde os participantes conquistem direitos na
satisfação de suas necessidades.
O conceito de técnicas sociais na contemporaneidade propõe a intervenção
sociológica nas situações sociais. Já em tecnologias sociais o conceito é ampliado
TRANSCICLOPÉDIA EM DIFUSÃO DO CONHECIMENTO 721

para uma ideia de intervenção da ciência e da tecnologia, na condição de solução de


problemas sociais, considerando a manifestação de necessidades e carências sociais
na reunião das coletividades abrangidas. Para Baumgarten (2006), essa forma de
pensar torna-se viável na opção pelo planejamento estratégico enquanto ação coletiva
na busca de caminhos para o comportamento humano e para as relações sociais
através de estruturas que possam assegurar a dignidade humana e a sustentabilidade
social e natural.
As tecnologias sociais oferecem a possibilidade de articulação de uma extensa
rede de atores sociais. Por sua vez, a inovação social baseada nas tecnologias sociais
requererá uma estruturação em modelos flexíveis, considerando a diversidade es-
pacial e situacional, de cada circunstância. O termo reaplicável relaciona-se à ideia
de adaptação e do espírito inovador. Na reaplicação de uma certa TS pressupõe-se
a existência de um modelo tecnológico em que os elementos fundamentais aceitem
escala. A Rede de Tecnologia Social (RTS), difundida em 2005, tem como objetivo a
reaplicação em larga escala das tecnologias sociais, permitindo que a ação inovadora
não se restrinja à localidade onde foi desenvolvida. É da sua natureza a promoção do
desenvolvimento sustentável, estimulando a reaplicação e a adoção de TS por meio
das políticas públicas. Conforme Baumgarten (2006), a RTS promove a união de
coletividades epistêmicas, agentes governamentais e potenciais usuários, abrindo
novos espaços de articulação e interação de atores sociais na resolução de problemas
locais e do desenvolvimento social.
A abordagem sociotécnica, ou seja, o elemento principal do conceito de adequação
sociotécnica (ATS), considerando o movimento de TA, as críticas apontadas e suas
contribuições, a AST ancora-se ao marco da TS como uma dimensão processual,
visão ideológica e a operacionalidade delas emanadas que não estavam presentes
naquele movimento. É explicado por Dagnino; Brandão; e Novaes (2004), que
ao transcender a visão estática e normativa, de produto já idealizado, e intro-
duzir a ideia de que a TS é em si mesma um processo de construção social e,
portanto, político (e não apenas um produto) que terá de ser operacionalizado
nas condições dadas pelo ambiente específico onde irá ocorrer, e cuja cena
final depende dessas condições e de interação passível de ser lograda entre os
atores envolvidos, a AST confere ao marco da TS características que parecem
fundamentais para o sucesso de RTS (p. 51).

A AST vem de um processo que promove a adequação do conhecimento cien-


tífico e tecnológico (mesmo incorporado em equipamentos, insumos e formas de
organização da produção, ou ainda na forma intangível ou tácita) não restritiva a
722 TRANSCICLOPÉDIA EM DIFUSÃO DO CONHECIMENTO

requisitos e finalidades de caráter técnico-econômico, usualmente procedido, mas


na reunião de aspectos de ordem socioeconômico e ambiental, na relação de CTS.
Bijker (1995) cria uma teoria em grande escala sobre a mudança sociotécnica. Nessa
iniciativa, descreve de onde vêm as tecnologias e como as sociedades lidam com elas.
O autor propõe a utilização de estudos de caso para sugerir conceitos teóricos que
servem como blocos de construção em uma teoria cada vez mais inclusiva, sendo
testada contra outros estudos de caso. Sua ideia é criar uma base para a ciência,
tecnologia e mudança social que exponha as raízes sociais da tecnologia, tornando-a
acessível para políticas democráticas.
O marco da TS ressalta o processo, o percurso que uma configuração
sociotécnica projeta ao longo da trajetória, sem, contudo, ter a cena de chegada
demarcada. Compreende assim o processo de AST, a ser construído a partir de
uma tecnologia existente, conforme a realidade imposta de um contexto anta-
gônico no plano econômico, político, científico etc., diante da sinuosa direção
da TC. Para Dagnino; Brandão; e Novaes (2004), falta um objetivo normativo
definido de forma estrita, já que o processo de construção sociotécnica tem
problemas quase sempre de consonância com os projetos e desenhos originais.
Nesse caso, é refutada por ser observada como irrealista e ingênua, com a ideia
de considerar uma oferta” e uma “demanda” de tecnologia. Mais precisamente
pela compreensão que os atores empenhados no uso da TS construam em con-
junto, do contrário não haverá TS.
A RTS tem a característica do marco analítico conceitual da TS e do caráter
de rede. Enquanto rede, é formada com o propósito do atendimento aos interesses
de seus participantes e deve atuar como uma policy network, ou seja, uma rede de
políticas, ajustada por atores dispostos a incorporar à forma de governar a relação
CTS em atividade um padrão de governança coesa com seus valores e marcos de
referência analítico-conceituais, de acordo com o cenário socioeconômico que se
deseja construir. Conforme
Dagnino; Brandão; e Novaes (2004), a razão da reemergência dos temas rela-
cionados à TS no Brasil traz a possibilidade de que a RTS funcione como instância
de integração dos movimentos RESs e ITCPs, com o propósito de fortalecer a
consciência propagada nesses movimentos da necessidade de dispor de alternativas
à TC que possam viabilizar sustentabilidade econômica aos empreendimentos
autogestionários em relação à economia formal e, consequentemente, fomentar a
expansão da economia solidária.
TRANSCICLOPÉDIA EM DIFUSÃO DO CONHECIMENTO 723

Diante do quadro exposto, a emergência da consolidação da RTS faz-se necessária


como espaço singular de expressivo impacto social para a promoção do desenvolvi-
mento e aplicação de TS. É necessária a legitimação da RTS como porta de entrada
de apoios a projetos de desenvolvimento e aplicação de TS, resultante da interação
dos atores motivados mediante a relação com o aparelho de Estado e outros órgãos.
Acrescenta-se, por meio da relação com os movimentos sociais, a regularização da
RTS como porta de saída de pacotes conectados com o objetivo da inclusão social,
idealizados com base na identificação de problemas a serem solucionados pela TS.

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11/02/2018.
83. Tempo-Vida-Dur ação

Luciana Accioly Lima

O TEMPO-VIDA-DURAÇÃO EM UM PROCESSO POÉTICO DE


PESQUISA
Existem muitos caminhos possíveis para iniciar a escrita deste verbete, que tem
por objetivo refletir sobre o conceito de duração — no tempo do nosso processo poético
de pesquisa — do filósofo francês Henri Bergson. De antemão, importante destacar
que este espaço aberto para a escrita nem de longe pretende esgotar a questão, já que
o tema se constitui no próprio coração da filosofia bergsoniana e uma empreitada
como esta exigiria uma vida de leituras e estudos orientados sobre a obra do autor.
Nos contentamos, portanto, em apenas tatear o conceito, que durante o percurso de
nossa pesquisa se insinuou como uma possível saída para muitos impasses. Vínhamos
de uma vivência da filosofia de Georges Bataille, cujo pensamento é atravessado por
uma certa morbidez, sintoma do retorno do real – podemos pensar — como bem
diagnosticou Hal Foster através das estéticas abjetas, realistas e informes. A nossa
necessidade premente era, portanto, de uma torção poética e epistemológica que
nos conduzisse à vida.
Uma leitura bastante superficial sobre o pensamento de Bergson, iniciada um ano
antes do ingresso no DMMDC, já indicava que algo extremamente vivo pulsava ali.
No primeiro semestre do curso — durante a disciplina Natureza da criatividade – o
pensamento de Bergson repercutiu em algumas discussões encabeçadas, sobretudo,
pelo professor Dante Galeffi. Agora, além dos artigos acadêmicos escarafunchados na
net, dispúnhamos de uma valiosa interlocução que nos permitiu avançar um pouco
mais. Uma ótima publicação – Henri Bergson: crítica do negativo e pensamento em
duração — que reúne artigos de alguns dos mais destacados estudiosos brasileiros
da obra de Bergson chegou em nossas mãos neste percurso, além de uma seleção
de textos realizada por Gilles Deleuze. Esta última obra, intitulada Henri Bergson:
memória e vida, nos permitiu uma imersão, digamos “mais direta”, em algumas das
principais questões que absorveram o pensamento do autor.
Em paralelo, nos aventurávamos na leitura de A evolução criadora a passos
muito lentos, já que embora algumas passagens fluíssem bem, outras fugiam da
nossa condição de apreensão. Este mesmo ritmo se impôs na leitura — ainda em
TRANSCICLOPÉDIA EM DIFUSÃO DO CONHECIMENTO 727

processo — de outros textos fundamentais do autor: Ensaio sobre os dados imediatos


da consciência, As Duas Fontes da Moral e da Religião e Matéria e Memória. A des-
peito das dificuldades, nos deslumbrávamos com a beleza da escritura bergsoniana,
o que apontava para a possibilidade de uma apreensão poética, própria e apropriada
da filosofia de Bergson. Tal visada encontra ressonâncias em diversos comentadores
que falam sobre uma possível estética bergsoniana. Diante destas questões, levan-
tadas introdutoriamente, nos perguntamos: Quais as implicações de uma apreensão
experiencial, poética, da filosofia de Bergson a partir da nossa própria duração? Como
falar da duração sem efetivamente experienciá-la em nosso percurso de pesquisa com-
preendido enquanto poética?
Não temos nem de longe a pretensão de nos tornarmos estudiosos especializados
da filosofia bersoniana, já que muitos se dedicaram a isso com mais competência
e afinco. Nos desvencilhar deste objetivo nos coloca imediatamente em um outro
tempo. No lugar de uma certa avidez, que costuma marcar a nossa relação com os
nossos objetos de estudo, intuímos que deveríamos, antes, sorver cada palavra, e,
sobretudo, os silêncios com os quais a escrita de Bergson nos interpelava. O tempo
da leitura — intercalado com o tempo de uma certa meditação sobre os temas ber-
gsonianos — deveria, portanto, estar afinado com o nosso próprio tempo. Assim,
nos entregamos aos mínimos movimentos e hábitos cotidianos, vividos a partir do
que supúnhamos ser a experiência da duração.
A nossa busca — em certo sentido — era de resgatar o nosso ritmo próprio,
perdido desde o ingresso no DMMDC. A questão dos prazos para produção textual
no contexto acadêmico nos coloca em uma relação com o tempo que consideramos
pouco saudável.
Uma tese deverá ser soerguida no prazo máximo de 3 anos e a linha do tempo
não para de se mover, mesmo quando desejamos colocar os livros de lado e expe-
rimentar a vida, o contato com a natureza, os pés no chão, as viagens, o cheiro do
mato ou a “sagração dos encontros” despretensiosos com os artistas. Intuíamos que
aí estava o que buscávamos, e logo nos redemos ao desejo de nos deslocarmos.
Na mochila, os livros de Bergson puderam nos acompanhar, e as leituras rea-
lizadas em ônibus, aviões, e salas de espera de embarque, possuíam uma dinâmica
própria que nos permitiam apreender algumas nuances mais sutis do pensamento
do autor. No percurso, a vivência dos espaços diversos, paisagens, imagens, desen-
rolava-se de modo extremamente fluido. Tudo estava no seu devido tempo e lugar, e
não nos fixar em nenhuma das — imagens‖ era uma espécie de método para que ser
do tempo se instaurasse. O contato direto com a natureza foi também fundamental,
728 TRANSCICLOPÉDIA EM DIFUSÃO DO CONHECIMENTO

porque logo compreendemos que não há local mais privilegiado para se experienciar
a vida — objeto privilegiado da filosofia de Bergson.
Um ensaio fotográfico realizado em Barra Grande — paraíso incrustado na
Baía de Camamu onde vive parte da minha infância – durante o II semestre do
doutorado, a partir do incentivo do orientador Joaquim Viana, se constitui em um
importante divisor em nosso processo de pesquisa; a tal virada poética e epistemo-
lógica que buscávamos. Durante 4 dias fotografamos vertiginosamente buscando
responder a seguinte questão: qual a imagem da duração? Mais do que respostas, a
experiência da imagem-duração através da fotografia nos propiciou a conexão com
um tempo outro, abrindo o campo para novas perguntas, lacunas e inquietações,
movendo o nosso processo de pesquisa.
Alguns aspectos nos chamaram especialmente atenção durante a realização
do ensaio, assim como nas outras camadas de tempo experimentadas na edição da
montagem, a exibição em sala — o compartilhamento das imagens com colegas,
professores. A visada realizada hoje, cerca de dois meses depois, quando voltamos a
ver/ser vistos pelas imagens do referido ensaio, também adquiri um sentido e uma
temporalidade própria. O primeiro tempo (ou I ATO) — onde cabem infinitos
tempos –, vivido em deslocamento (Salvador-Barra Grande-Camamú via Ferry Boat
e Costa do Dendê), foi marcado por uma espécie de desvario excessivo. Estávamos
mergulhados em uma crise acadêmica que repercutiu fortemente em nosso estado de
saúde, potencializando a instauração de uma gastrite causada pela bactéria h-pylore.
A doença, experimentada enquanto buraco na imagem-corpo, se converteu,
entretanto, em medida da saúde, mobilizando excessivamente o nosso processo. Per-
vertendo o olhar fotográfico, buscávamos experimentar diversas formas adulteradas de
ver: olhar de cima pra baixo/olhar de baixo pra cima, olhar de perto/olhar de longe, olhar
de dentro/olhar de fora, olhar através, olhar través (oblíquo),” olhar poliperspectivado”.
Os primeiros objetos privilegiados foram as manchas e marcas, que no tempo se
incrustaram na arquitetura do terminal marítimo de São Joaquim. O arruinamento,
experimentado desde dentro a partir do próprio olho da demolição, nos permitiu uma
imersão ainda mais excessiva na nossa proposição poética.
Compreendemos, somente agora, no tempo desta escrita, que o excesso é um
modo privilegiado de produção de subjetividades em contextos traumáticos. A
condição traumática pode ser compreendida introdutoriamente como um encon-
tro com o real – o que está fora de qualquer possibilidade de significação -, que só
pode ser experimentado pelo sujeito enquanto impossibilidade. Nos interessa, ao
longo do nosso processo de pesquisa, pensar o trauma em contextos históricos es-
TRANSCICLOPÉDIA EM DIFUSÃO DO CONHECIMENTO 729

pecíficos, tensionados pela obra de alguns artistas e coletivos comprometidos com


causas eminentemente políticas. Para além ou aquém dos acontecimentos violentos
envolvendo populações, minorias, gostaríamos ainda de problematizar a própria
condição contemporânea enquanto condição traumática, e pensar de que modo a crise
simbólica em que estamos atolados exige de nós a (re) invenção (criatividade que se
produção na duração) constante de subjetividades, que não podem prescindir de um
pensamento agudo (talvez igualmente excessivo) das relações traumáticas com o real.
Neste sentido, compreendemos que o nosso ensaio fotográfico — enquanto
empreendimento poético-excessivo — se constitui em uma tentativa de lidar com as
insurgências do real traumático. As machas e marcas — observadas inicialmente na
arquitetura — possuíam um caráter informe. Entendemos que o informe (nos termos
propostos por Bataille e repercutidos por Didi-huberman), não se encontra em lugar
algum, muito menos na superfície da imagem representada. O informe seria, antes,
um processo, um movimento vertiginoso das formas do ser posto em relação com
o objeto real do olhar — um corte no olhar, podemos pensar, a partir das sucessivas
provocações do professor Joaquim Viana, que durante o curso da disciplina Arte,
imagem e construção do conhecimento nos interpelou constantemente com imagens
que cortam. O que pode uma imagem que corta?
Já em Barra Grande-Camamú, onde a natureza se impunha, buscamos o in-
forme nas manchas e marcas dos materiais orgânicos e naturais. Assim, o concreto
(desgastado, descascado, desfigurado) e o ferro (corroído, ferido e perfurado) deram
lugar a madeira, as pedras – tantas vezes incrustradas por pequenos animais e abjetos
marinhos — e as flores. Estas últimas eram sempre fotografadas em close, já que o
nosso objetivo (conforme pudemos compreender somente depois) não era reforçar o
belo, comumente associado a experiência da visão de uma flor. Recorrendo mais uma
vez a estratégia – tributária de Bataille — de perverter o olhar abrimos o nosso campo
sensível para experiências outras, colapsadas pelo contato com o real traumático.
Trata-se de uma perspectiva de visão aberta, permeável aos contatos, contaminável.
Visão virulenta que tudo atravessa e é atravessada, alastrando o nosso corpo de
convulsão e incertezas. Uma das convicções que caem por terra nesta visada é de
que as “coisas” que conhecemos são o que são; o que em certo sentido se aproxima
do estranhamento infantil diante de um mundo a ser descoberto.
Para além, o que Bataille nos convoca a colocar em questão é o próprio
estatuto da forma, que na concepção clássica determina a matéria, a torna inte-
ligível, reconhecível pela razão humana. Se a forma está implicada com a fixação
de um sentido, o que interessa a Bataille, ao contrário, é o caráter instável da
730 TRANSCICLOPÉDIA EM DIFUSÃO DO CONHECIMENTO

forma (o escarro com sua inconsistência, seus contornos indefinidos); da forma


como formação, da forma que se abre para sua própria dessemelhança, diferen-
ça, heterogeneidade, para o seu informe, denunciando, através desta abertura,
o caráter sintomático da percepção e do idealismo humanos. Olhar uma flor a
partir desta visada outra não reforça, portanto, o juízo de valor (belo) em con-
formidade com os nossos mais altos ideais. Ao contrário, é via de abertura para
uma experiência que pode beirar uma certa náusea, se levarmos em considera-
ção que a matéria viva e delicada de que se faz a flor é facilmente susceptível ao
apodrecimento (o baixo).
Um certo paradoxo se instaura em nosso pensamento quando revemos mais uma
vez as imagens do ensaio. Se por um lado a vida se faz sentir de uma forma intensa
e trasbordante – seja através do desabrochar das flores em seu mais forte vigor, da
explosão das cores, do fulgor dos musgos e das minúsculas formas orgânicas -, por
outro lado este mesmo excesso parece apontar para um “outonamento”; o desenrolar
de um processo de arruinamento das formas orgânicas no plano horizontal, onde
a putrefação, a beleza, o lixo e a vida se misturam em um informe caos. A biosfera
do mangue é, sem dúvidas, um espaço em que a vida pode ser experimentada em
toda a sua complexidade. O local adquiri pra nós uma certa áurea sagrada, somada
às memórias de uma infância que se permitia o livre contato com a lama — além
do espanto diante das informas animais e vegetais.
Cremos que a experiência artística e poética pode ser pensada e vivida nos
termos de uma experiência do sagrado, a partir de “dogmas” próprios, como bem
nos indica o artista Caetano Dias. Acreditamos ainda que nestes tempos de morte,
em que a condição traumática se impõe colapsando a nossa própria condição de
humanidade, o resgate desta dimensão se faz necessário, sobretudo, no contexto
das experimentações artísticas. Como podemos pensar as nossas próprias proposições
artísticas (pesquisa enquanto poética) – e dos artistas e coletivos que pesquisamos — a
partir de um paradigma sagrado? Se compreendemos, como nos indica Bataille,
que a experiência do sagrado, assim como a experiência erótica, nos coloca em
“comunhão” com as forças do excesso cremos que não é absurdo pensar na possibi-
lidade de que um ensaio fotográfico – a partir das condições já observadas – seja
uma via de acesso ao heterogêneo em nós. O próprio Bataille aponta para estas
relações quando defende que a poesia busca atingir o mesmo ápice das experiências
eróticas e sagradas. Entretanto, nos perguntamos: se o excesso (enquanto violência,
enquanto mal) se impõe de modo privilegiado na contemporaneidade, por que resga-
tá-lo especialmente no campo das artes?
TRANSCICLOPÉDIA EM DIFUSÃO DO CONHECIMENTO 731

Existem muitos modos possíveis, a partir de uma leitura do conjunto da obra


de Bataille, de problematizarmos o conceito de excesso. Não faremos isso neste es-
paço, mas de antemão é importante destacar que a despeito das ofensivas alcunhas
— filósofo do excremento, filósofo louco -, o que Bataille propôs foi o resgate da
dimensão do excesso nos campos do sagrado, do erotismo, da poesia, conforme já
foi observado. Até mesmo as orgias e as guerras são observadas pelo autor como
uma suspensão temporária (e em certo sentido organizada) dos interditos da sexua-
lidade e da morte. A parte maldita (ou excessiva) encontraria no mundo “delirado”
por Bataille, sobretudo, na obra O erotismo, uma destinação certa: as experiências
transgressivas, que em equilíbrio dinâmico com os interditos, sustentaria a nossa
condição de humanidade.
Crítico ferrenho do seu tempo, Bataille entreve, diante da carnificina da II
Guerra mundial, que a desregrada violência contemporânea era sintoma de um
desequilíbrio sistêmico. O excesso, em alguns textos do autor (sobretudo na obra
A Parte Maldita), assume o sentido de um excedente produtivo, que ao exigir sua
própria consumação alastraria a violência-excesso para além dos limites do mundo
heterogêneo (do sagrado), onde estaria salvaguardada. Baudrillard — na esteira de
Bataille — vai dizer que as formas contemporâneas do mal são infinitas. Em um
mundo em que a dimensão do sagrado parece ter se esvaído – ou melhor capitali-
zada (como sinaliza Agamben no O Elogio a Profanação) – a violência explode em
toda parte. O excesso — não mais restrito ao mundo heterogêneo do sagrado — se
impõe hoje, interpelando os corpos de forma absolutamente irracional. Se por um
lado o excesso potencializa os nossos constantes encontros com o real traumático, é
o mesmo excesso que mobiliza os nossos processos subjetivos. O excesso é, portanto,
a “cura” para uma doença por ele mesmo instaurada.
Parece não haver saída para o impasse. Acreditamos, entretanto, com boa dose
de idealismo, utopia e fé mística que as experiências artísticas podem. Não sabemos
ainda o que pode a nossa pesquisa, pensada enquanto proposição poética. Não sabemos
ainda o que pode um ensaio fotográfico. Não sabemos ainda o que pode uma poética
curatorial, que implica em constantes contatos com artistas e coletivos. No auge do
não saber e de um profundo desencanto fomos cativados pela filosofia de Bergson.
Revendo um dos emails enviados para os orientadores, compreendemos a dimensão
deste acercamento filosófico:
[...] com Bergson, sinto que posso...é que antes tinha apenas diante de mim
um BURACO e a sensação de que nada podia fazer diante do IMPOSSÍVEL...
Bergson, portanto, me forneceu algumas
732 TRANSCICLOPÉDIA EM DIFUSÃO DO CONHECIMENTO

— ferramentas‖ para — SUTURAR‖ O BURACO DO TRAUMA. Creio


que com criatividade, no sentido bergsoniano (criatividade implicada com o
conceito de DURAÇÃO), é possível...possível, inclusive, recuperar Bataille e
o conceito de EXCESSO [...]

Diante destes novos aportes teóricos e filosóficos formulamos novas perguntas


de pesquisa: Qual o papel da criatividade em contextos traumáticos? A experiência do
rememorar em contextos traumáticos pode ser pensada enquanto criatividade (inven-
ção)? Com o reforço das proposições de Seligmann-silva, intuímos que diante do
buraco do trauma e a impossibilidade de narrar a situação traumática, a criatividade
pode ser convocada para reconstituir o tecido simbólico esgarçado ou rasgado.
Outra referência fundamental para pensarmos a questão é a obra de Joseph Beuys,
produzida no contexto da II guerra mundial. É paradigmático o “mito” fundador
da personalidade artística de Beuys, que depois de um traumático acidente aéreo
(como piloto da juventude hitlerista), inventou ter sido capturado por nômades na
Criméia que cobriram o seu corpo com feltro e gordura. Os materiais se tornaram
fundamentais na poética do artista, e durante o nosso percurso de pesquisa fomos
constantemente interpelados pela imagem informe do corpo de Beuys envolto em
feltro – que em certa medida dialoga (nos termos de uma semelhança) com a ima-
gem de uma habitação.
Mais ou menos neste mesmo período fomos fortemente impactados pelas
proposições do artista sertanejo Juraci Dórea. Não há espaço aqui para aprofun-
darmos uma reflexão sobre a poética do artista, mas não podemos passar ao largo
da importância que as esculturas de madeira e couro do artista (que se assemelham
a habitações primitivas) adquiririam em nosso percurso. Nos chama especialmente
atenção o fato de que as intervenções de Dórea eram realizadas em espaços fortemente
impregnados de história e memória. Uma das suas instigantes instalações foram
realizadas na região de Canudos, local onde ocorreu o sangrento massacre de um
batalhão de fiéis, seguidores do místico Antônio Conselheiro. A história de Canudos
– ou a própria impossibilidade de narrar a história de Canudos -, foi ganhando aos
poucos um espaço cada vez mais significativo no percurso de nosso pensamento.
Assim como Beuys, inventamos — a partir de um exercício excessivo da
memória – uma vivência de outras vidas em Canudos. Morremos ali, juntamente
aquele batalhão de crentes, esfomeados, esfarrapados e desesperados – os infames
e abjetados da história. Os abjetos sempre retornam, movendo os nossos processos
subjetivos, exigindo vida e novas aproximações poéticas. Neste sentido, é importante
dizer que as poéticas de Beuys e de Dórea não se constituem em objetos de estudo,
TRANSCICLOPÉDIA EM DIFUSÃO DO CONHECIMENTO 733

já que na nossa perspectiva elas só nos interessam na medida em que podem ser
experimentadas desde dentro, excessivamente. A imagem das habitações de Beuys e
Dórea, nos tocam, portanto, enquanto pura dessemelhança, interpelando os nossos
corpos, produzindo vida.
A obra de Caetano Dias, que desde sempre nos fascinava, tornou-se ainda
mais atraente no bojo destas interpelações da história e da memória de Canudos.
Os trânsitos do artista na região foram realizados no contexto da série Céu de
Chumbo. Trata-se de um conjunto de performances rituais, realizadas em locais que
protagonizaram acontecimentos históricos traumáticos. Com o corpo recoberto de
urucum, o artista abre o seu campo sensível para as forças do excesso. Em Canudos,
Dias afirma ter mantido contato com Antônio Conselheiro. Pensar sobre o ato de
rememor Canudos, a partir de um certo transbordamento excessivo, abre espaço para
perguntas outras: Em que circunstâncias a criatividade se constitui em uma experiência
excessiva (de transbordamento)? A experiência do rememorar pode ainda ser pensada
enquanto experiência excessiva?
Estas perguntas — assim como as demais realizadas no curso desta escrita –
permanecem sem resposta, assim como permanece em aberto o conceito de dura-
ção. Poderíamos ter optado por trazer possíveis definições para o termo, a partir de
comentadores ou do próprio Bergson. No lugar disto, optamos (ou fomos optados)
por deixar que a criatividade – que se produz na duração, no tempo real — nos con-
duzisse no processo de desta escrita, onde intercalamos (não de forma exatamente
organizada) algumas das invenções do nosso processo de pesquisa, compreendido
enquanto poética. Antes de finalizar a escrita deste verbete, gostaríamos ainda de
nos perguntarmos sobre as especificidades do tempo do traumático: qual o tempo
do trauma? De que forma esta temporalidade (colapsada) nos interpela? Pensar sobre
o tempo do trauma se constitui numa questão fundamental no nosso processo de
pesquisa daqui para frente. Contrapondo o tempo do trauma, com o tempo da in-
venção e da criação em duração (tempo bergsoniano), cremos que abrimos uma senda
de vida em tempos de morte.

REFERÊNCIAS
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734 TRANSCICLOPÉDIA EM DIFUSÃO DO CONHECIMENTO

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Zone Books, 1997.
84. Teoriação Polilógica1

Dante Augusto Galeffi

O termo Teoriação Polilógica foi cunhado por mim no ano de 2015, como
síntese conceitual do que chamava de “Teoria Polilógica dos sentidos”, desde 1999.
Trata-se da fusão das palavras “teoria” e “ação”, sendo uma teoriação e não uma
“teoria da ação”, pois se compreende e se admite a falácia da teoria separada da ação:
um contrassenso. A Teoriação Polilógica em criação pensa a polilógica a partir da
atitude aprendente radical, a atitude filosófica. Assim, considera a variação lógica dos
regimes de signos produzidos pelas sociedades humanas, como também a heterogê-
nese do mundo da vida em suas variações infinitas de singularidades, demarcando
os campos de constituição dos seres humanos a partir do que se mostra humano
em sua humanidade, evidenciando para o conhecimento e sua criação quatro ins-
tâncias que são operantes nos projetos ontológicos humanos: a poético-artística, a
epistêmica, a filosófica e a mística.
Assim, na Teoriação Polilógica dos sentidos a ênfase é dada à multiplicidade
das lógicas da natureza e humana. Sua investigação se dá em torno do paradigma
da complexidade e na criação de uma compreensão polilógica dos sentidos própria e
apropriada. É, assim, uma Teoriação da Transformatividade Humana Transmoderna.
A Teoriação Polilógica parte de um questionamento radical que diz respeito
ao próprio paradigma da complexidade, no sentido de sua proposição intencional
de ultrapassar a epistemologia monológica da ciência moderna.
Duas questões deflagraram o desenvolvimento da Teoriação Polilógica pela
realização de sua consistência: 1) Há de modo consistente um paradigma da
complexidade em substituição ao paradigma monológico da ciência moderna? 2)
O que pode fazer o paradigma da complexidade na gênese de um devir humano
solidariamente criador e curador?
Visando o mais possível dar visibilidade às tensões interrogantes formuladas
vou expor partes da Teoriação Polilógica por meio de cinco variações focais:
1. Coexistência de paradigmas: o paradigma moderno monológico e o para-
digma da complexidade — paradigma polilógico transmoderno;

1
As imagens/figuras/diagramas deste texto são uma produção do autor, sendo que algunas imagens
foram apropiadas e modeladas de modo singular
TRANSCICLOPÉDIA EM DIFUSÃO DO CONHECIMENTO 737

2. Hipertrofia da disciplinaridade moderna e suas variações de grau: discipli-


naridade, multidisciplinaridade, pluridisciplinaridade, interdisciplinaridade
e a transdisciplinaridade vazia;
3. O salto de natureza da epistemologia transdisciplinar e suas consequências
éticas e políticas para a gestão inteligente e sensível da vida abrangente –
planetária e cósmica;
4. A complexidade delineada e seus postulados: como tornar o pensamento
da complexidade uma mente incorporada atuante e potente a serviço do
devir humano espiritualmente sustentável?
5. Teoriação polilógica: uma teoriação de Tudo-Nada como horizonte prag-
mático para uma política revolucionária do desenvolvimento humano no
sentido de sua plenitude vivente.
Seguindo as variações focais descritas acima se apresentam as principais cone-
xões e postulações da Teoriação Polilógica.

1. COEXISTÊNCIA DE PARADIGMAS: O PARADIGMA MODERNO


MONOLÓGICO E O PARADIGMA DA COMPLEXIDADE —
PARADIGMA POLILÓGICO TRANSMODERNO (COSMODERNO)
Aqui se enfatiza a complexidade do campo focal que visa o devir humano no
mundo/munda da vida, tendo o corpo, o cérebro e a mente como plano de imanên-
cia que projeta o conceito de Teoriação Polilógica em seu campo de sobrevoo pela
presença do observador/observadora que dá sentido a todo o constructo teoriacional.

Figura 1 — Relação Corpo-Cérebro-Mente e o Observador (a) como ser


complexo no mundo-com

Fonte: Elaboração do autor


738 TRANSCICLOPÉDIA EM DIFUSÃO DO CONHECIMENTO

Significa considerar o conceito de paradigma em suas variações históricas, sempre


se referindo aos limites do real e seus contornos, o que se pode ver apresentado em
imagens, pois a linguagem humana articulada se projeta em imagens do mundo,
imagens das coisas e imagens de si-outro.

Figura 2 — Conjunto de imagens que representam concepções cosmológicas


e atômicas distintas, segundo o desenvolvimento histórico da Ciência

Fonte: Elaboração do autor que reuniu diferentes imagens públicas para expressar uma intuição sobre os
diferentes paradigmas científicos, o que mostra a fluidez do conhecimento científico

Nas imagens acima temos diferentes concepções cosmológicas que definiam e


definem os limites do Real e suas realidades. De um geocentrismo até um heliocen-
trismo, alcançando um galaxiacentrismo, um univercentrismo, um atomocentrismo
e um molecuncentrismo. Modelos diferentes para os diversos níveis da realidade
percebida e possivelmente descritível. É o caso do mundo microfísico, o mundo
atômico, que também definiu modelos que foram se modificando com o próprio
desenvolvimento do conhecimento atômico e daquele neuronal, também formado
de micro rizomas sinápticos ativos nas operações cerebrais e mentais autopoéticas.
TRANSCICLOPÉDIA EM DIFUSÃO DO CONHECIMENTO 739

Figura 3 — Reunião de diferentes representações geométricas do mundo


atômico e molecular

Fonte: Imagens públicas – Elaboração do autor. Unindo imagens públicas diferentes, com a intenção de mos-
trar as variações da representação da realidade microfísica

E de um modo geral, os paradigmas na modernidade foram sempre guiados


por princípios característicos do pensamento monológico reducionista e disciplinar,
que Morin apresenta de modo sintético e que aqui se transcreve em um diagrama:

Figura 4 — Os princípios guias do pensamento monológico reducionista


disciplinar, segundo Morin

Fonte: Elaboração do autor


740 TRANSCICLOPÉDIA EM DIFUSÃO DO CONHECIMENTO

Mas também na modernidade a ciência passou por um processo de transfor-


mação radical, aprofundando-se na matéria-energia macroscópica e naquela micros-
cópica. E pela ótica da ciência parece que nada mais interessa além dos descritores
matemáticos do micro e do macro físico. Produziu-se o esquecimento pela negação
de outras formas de conhecimento e de outras dimensões da cognição humana, que
agora se vê enredada em uma teoria enacionista, A teoria na enação é, ao seu modo,
uma teoriação do mundo cognitivo e suas várias ecologias constitutivas. Aqui o
observador se encontra na deriva cósmica que o torna observador/observadora. ´É
preciso, então, também incluir um terceiro termo: entre o mundo microfísico e o
macrofísico há o nível suprafísico: o plano da mente e de seu cérebro. Tudo o que
pode ser observado o é por alguém que observa. Quem é este “alguém” que observa?
Como observa o observado o/a observador(a)?
Hoje os paradigmas se encontram em transição porque a incerteza abriu a cena
de seu abismo, e o determinismo se viu abalado em sua forma polarizada de inventar
e recortar a Realidade. A propalada objetividade absoluta pretendida pelas ciências
duras é uma grande ilusão produzida pelo mundo da representação objetiva. Por
exemplo, a ciência dá provas de um grande poder de imaginação quando cria os
paradigmas dos “universos paralelos ou multiversos”, dos “Buracos de Minhocas” e
do Big Bang, como mostram as imagens abaixo. São três teorias determinantes de
paradigmas diferenciados, o que produz efeitos de inacabamento a todo paradigma
que queira representar a totalidade de tudo o que é e do que não é, como se só a
macrofísica com sua microfísica existisse como Realidade efetiva.

Figura 5 — Reunião de imagens públicas de Universos Paralelos, Buraco de


Minhoca e o Big Bang

Universos Paralelos Buraco de Minlhoca Big Bang

Fonte Elaboração do autor, imagem pública

E qual é o lugar da mesofísica ou neuropsíquica no âmbito da Realidade? A


mente e o cérebro se tornaram também objeto da ciência e abriu-se um novo fosso
entre as ciências duras e aquelas condicionadas na afetividade ecológica múltipla:
ecologia ambiental, ecologia social e ecologia mental (espiritual).
TRANSCICLOPÉDIA EM DIFUSÃO DO CONHECIMENTO 741

Assim, deve-se agora incluir formas de conhecimento que não se reduzem ao


paradigma ou paradigmas científicos, e que leva em conta o grande desconhecimento
humano de sua própria condição material-vital-mental. Trata-se de abrir o campo
da investigação noológica, portanto relativa ao mesomundo mental (espiritual). Uma
Teoriação Polilógica reúne, assim, os três mundos da matéria-energia com suas leis
próprias e seus distintos princípios, a partir do Terceiro que é o próprio humano
em sua propriedade de florescer no Acontecimento e não na representação exten-
siva das coisas e estados de coisas. E isto sem negar o plano da representação e sua
importância na economia cognitiva emergente.
Nesse sentido, três instrumentos distintos são as próteses mais avançadas para
se capturar os padrões e regularidades macrofísicas, microfísicas e mesofísicas: o
telescópio, o microscópio e o cérebro/mente humana.

Figura 6 — Os três principais instrumentos de investigação do mundo


macrofísico, microfísico e cerebral/mental (espiritual)

Fonte: Elaboração do autor reunindo imagens públicas que representam os instrumentos utilizados na investi-
gação dos diferentes níveis de Realidade e de percepção

Isso porque a Realidade espiritual não é regida pela macrofísica e a microfísica


da matéria-energia, tendo ela sua própria descontinuidade dentro de uma conjuntura
relacional e composicional. Um objeto de investigação para além da ciência regular
que a Teoriação Polilógica abraça em sua intensidade aprendente. Ora, podem ser
encontradas inúmeras representações não-científicas do mundo espiritual/mental,
e sua realidade, o que também compõe horizontes existenciais em ato e permitem
742 TRANSCICLOPÉDIA EM DIFUSÃO DO CONHECIMENTO

compreender lacunas que o conhecimento pode procurar investigar com métodos


que não são aqueles da ciência regular.

Figura 7 — Representação pública dos três planos de constituição da


entidade humana, segundo a perspectiva espiritualista e espírita — Espírito,
Periespírito e Corpo Físico

Fonte: Imagem pública

A figura acima apresenta bem um tipo de conhecimento que se apresenta com


a mesma consistência imagética dos outros modos justificados de conhecimento.
Na figura abaixo se vê a representação dos Veículos de Manifestação do Espírito
com seus vários corpos

Figura 8 — Os veículos de manifestação do Espírito — Nomenclatura e


Percepção – PPS

Fonte: Imagem pública


TRANSCICLOPÉDIA EM DIFUSÃO DO CONHECIMENTO 743

Figura 9 — Os sete chacras, sua localização no corpo físico e suas ações


diferenciadas e complementares

Fonte: Imagem pública

Nas figuras oito e nove se representam os sete corpos e os sete chacras e suas
funções expressas em afetos (eu sou, eu sinto, eu faço, eu amo, eu falo, eu vejo, eu
entendo — ser, sentir, fazer, amar, falar, ver, entender).
Tudo isso chama em questão uma contradição fundamental: a Realidade defi-
nida pela ciência monológica só alcança os níveis macrofísico e microfísico, mas não
alcança o mundo espiritual que não encontra modelo ideal em nenhuma objetividade
ao modo geométrico. O mundo espiritual é imanente ao mundo natural e não se
encontra apartado de sua totalidade como intensidade e extensão simultaneamente,
mas não pode ser medido como são medidos objetos macro ou microfísicos. Aparece
logo a perplexidade: há diferentes níveis de Realidade e diferentes níveis de percepção.
E o que diferencia e conecta a coexistência de diferentes níveis de Realidade com a
coexistência de diferentes níveis de percepção?
A clássica dicotomia entre Natureza e Espírito é absolutamente enganosa,
porque o Espírito é a Natureza, é imanente à Natureza. Nada há além da Natureza
e seu pensamento. Se o espírito é um incorporal o é a partir dos corpos que são a sua
natureza material-energética. A ciência monológica toma a Natureza em sua suposta
744 TRANSCICLOPÉDIA EM DIFUSÃO DO CONHECIMENTO

objetividade material. Porque, tudo o que é percebido como mundo da matéria-energia


em seus diversos níveis, é percebido por alguém. O Espírito na Natureza é o próprio
observador/observadora, o ente que percebe e pode ter consciência da consciência
e consciência da inconsciência. Do ponto de vista existencial, um Espírito é uma
entidade pertencente à matéria-energia do universo que realiza o modo de ser da
inteligência criadora que está em toda parte.
Se no mundo macrofísico e microfísico são conhecidas as quatro interações
físicas fundamentais (veja-se síntese no esquema abaixo), o que evidencia diferentes
níveis de Realidade da matéria-energia do Universo, no mundo neuropsíquico quais
seriam as leis correspondentes aos diferentes níveis de percepção?

Figura 10 — As quatro interações físicas fundamentais

Fonte: PAUL, Patrick – Referenciado na figira 10


TRANSCICLOPÉDIA EM DIFUSÃO DO CONHECIMENTO 745

2. HIPERTROFIA DA DISCIPLINARIDADE MODERNA


E SUAS VARIAÇÕES DE GRAU: DISCIPLINARIDADE,
MULTIDISCIPLINARIDADE, PLURIDISCIPLINARIDADE,
INTERDISCIPLINARIDADE E A TRANSDISCIPLINARIDADE VAZIA

Figura 11 — Localização/Contextualização histórica da disciplinaridade e


suas progressões

Fonte: Elaboração do autor

A Teorização Polilógica se constitui no plano de imanência do mundo da vida


e seus horizontes composicionais. É uma abordagem que procura compreender a
gênese da disciplinaridade moderna projetando a ultrapassagem da razão monoló-
gica instituída.
Compreende, então, sua conectividade epistemológica a partir da própria história
das disciplinas e seu salto de natureza pela abordagem transdisciplinar. Neste sentido,
a Teoriação Polilógica é transdisciplinar e complexa, importando a demarcação da
mudança de paradigma operada na própria escala da disciplinaridade, quando se
alcança um corte radical em relação ao plano de imanência da racionalidade mo-
nológica moderna, com a teoria da complexidade e a metodologia transdisciplinar.
Segue-se, então, a descrição aproximada de cada degrau da disciplinaridade
para se poder melhor compreender o significado de “salto de natureza” operado pela
abordagem transdisciplinar e complexa. A escala disciplinar será apresentada em
sínteses diagramáticas (figuras, a seguir:
746 TRANSCICLOPÉDIA EM DIFUSÃO DO CONHECIMENTO

Figura 12 – Delimitação do conceito primário de “disciplina”

Fonte: Elaboração do autor

Figura 13 – Diagrama do currículo disciplinar medieval

Fonte: Elaboração/montagem do autor

Na modernidade há um deslocamento da disciplina do campo moral para o


campo epistemológico, o que inicia o movimento de constituição das ciências e
suas especializações e hiperespecializações como campos estritamente disciplinares,
envolvendo distintos saberes e suas ramificações, o que se pode ver na imagem
da árvore de Descartes. Nesse âmbito, disciplina é a palavra-chave para definir o
estudo sistemático de determinado setor da realidade, indicando o movimento
TRANSCICLOPÉDIA EM DIFUSÃO DO CONHECIMENTO 747

da razão moderna na constituição de seus caminhos epistemológicos – científicos


arborescentes.

Figura 14 — A árvore do Conhecimento, segundo Rene Descartes

Fonte: Elaboração do autor

A epistémê moderna encontrou o seu florescimento em três grandes ramos,


segundo Foucault (1981), o que mostra certa semelhança com o que foi imaginado
por Descartes na metáfora da árvore do conhecimento. São eles:
1. Ciências matemáticas e físicas
2. Ciências da linguagem, da vida (biologia), da produção e distribuição das
riquezas (economia)
Campo Comum: aplicação das matemáticas às ciências empíricas de tal gê-
nero — domínio do matematizável na linguística, na biologia e na economia.
3. Reflexão filosófica
Desenvolve-se como pensamento do Mesmo; delineia um plano comum
com a linguística, a biologia e a economia – filosofias da vida, do homem
alienado etc. Há também um plano comum com as disciplinas matemáticas:
a FORMALIZAÇÃO DO PENSAMENTO.
Em síntese, a gênese disciplinar moderna pode ser descrita pela forma arbores-
cente, a partir da qual é possível compreender o movimento progressivo da dispersão
disciplinar e da consequente fragmentação dos saberes, sob a égide do reducionismo
epistemológico físico-matemático que a tudo limita a um único nível de Realidade:
o macrofísico.
748 TRANSCICLOPÉDIA EM DIFUSÃO DO CONHECIMENTO

O paradigma racionalista moderno: hegemonia do conhecimento científico


sobre os demais modos de conhecimento humano. Conflito entre Fé e Razão, ilusão
subjetiva e verdade objetiva.]

Figura 15 — Contraponto de paradigmas epistemológicos

Fonte: Elaboração do autor

Figura 16 — Esquema da expansão da Razão Monológica Moderna

Fonte: Elaboração do autor

Figura 17 — Definição de Multidisciplinaridade

Fonte: elaboração do autor


TRANSCICLOPÉDIA EM DIFUSÃO DO CONHECIMENTO 749

Figura 18 — Definição de Pluridisciplinaridade, segundo Nicolescu

Fonte: Elaboração do autor

Figura 19 — Definição de Interdisciplinaridade, segundo Nicolescu

Fonte: Elaboração do auto


750 TRANSCICLOPÉDIA EM DIFUSÃO DO CONHECIMENTO

Figura 20 — As diversas formas de Interdisciplinaridade,


segundo Hilton Japiassu

Fonte: Elaboração do autor

Figura 21 — Definição de Transdisciplinaridade Vazia (GALEFFI), a partir


da definição dos “Níveis de Confusão”, segundo Nicolescu

Fonte: Elaboração do autor


TRANSCICLOPÉDIA EM DIFUSÃO DO CONHECIMENTO 751

Os diagramas apresentados sintetizam a escala da disciplinaridade até o limiar


do que se pode chamar de Transdisciplinaridade Vazia, com o intuito de mostrar em
seguida de modo consistente o “salto de natureza” dado na epistemologia transdisci-
plinar e na teoria da complexidade, elementos de composição da Teoriação Polilógica.

3. O SALTO DE NATUREZA DA EPISTEMOLOGIA


TRANSDISCIPLINAR E SUAS CONSEQUÊNCIAS ÉTICAS E
POLÍTICAS PARA A GESTÃO INTELIGENTE E SENSÍVEL DA VIDA
ABRANGENTE – PLANETÁRIA E CÓSMICA
A transdisciplinaridade, como o prefixo “trans” indica, diz respeito àquilo que
está ao mesmo tempo entre as disciplinas, através das diferentes disciplinas e
além de qualquer disciplina. Seu objetivo é a compreensão do mundo presente,
para o qual um dos imperativos é a unidade do conhecimento.
Haveria alguma coisa entre e através das disciplinas e além delas? Do ponto de
vista do pensamento clássico, não há nada, absolutamente nada. O espaço em
questão é vazio, completamente vazio, como o vazio da física clássica. Mes-
mo renunciando à visão piramidal do conhecimento, o pensamento clássico
considera que cada fragmento da pirâmide, gerado pelo bigbang disciplinar,
é uma pirâmide inteira; cada disciplina proclama que o campo de sua perti-
nência é inesgotável. Para o pensamento clássico, a transdisciplinaridade é um
absurdo porque não tem objeto. Para a transdisciplinaridade, por sua vez, o
pensamento clássico não é absurdo, mas seu campo de aplicação é considerado
como restrito. (NICOLESCU, 1999, p. 46)

Para Nicolescu (1999, p. 48),


[...] a pesquisa transdisciplinar não é antagonista e sim complementar à pes-
quisa disciplinar, pluri e interdisciplinar. A transdisciplinaridade é, no entanto,
radicalmente distinta da pluri e da interdisciplinaridade, por sua finalidade:
a compreensão do mundo presente, impossível de ser inscrita na pesquisa
disciplinar. A finalidade da pluri e da interdisciplinaridade sempre é a pesquisa
disciplinar. Se a transdisciplinaridade é tão frequentemente confundida com
a inter e a pluridisciplinaridade (como, aliás, a interdisciplinaridade é tão
frequentemente confundida com a pluridisciplinaridade), isto se explica em
grande parte pelo fato de que todas as três ultrapassam as disciplinas. Esta
confusão é muito prejudicial, na medida em que esconde as diferentes finali-
dades destas três novas abordagens.

A metodologia transdisciplinar alcança a dignidade de problema complexo e


é formulada em seus princípios por Basarab Nicolescu (1999).
Trata-se da apresentação de um “salto de natureza” em relação aos degraus da
disciplinaridade, apresentando-se como ferramenta epistemológica para a transfor-
752 TRANSCICLOPÉDIA EM DIFUSÃO DO CONHECIMENTO

matividade humana mais desejável e cocriadora como Natureza criada e criadora. É


no sentido de “salto de natureza” que os postulados da transdisciplinaridade foram
incorporados à Teoriação Polilógica, encontrando em suas relações complexas uma
natureza muito mais consistente e abrangente em suas leis áureas. Na Teoriação Po-
lilógica evidencia-se também a perspectiva da Ciência da Natureza, mas não apenas,
porque leva em consideração como os diferentes níveis de Realidade correspondem
a diferentes níveis de percepção. Em seguida são apresentados os três postulados
da Metodologia Transdisciplinar formulados por Nicolescu e que dá início a novos
desenvolvimentos éticos, estéticos, ontológicos, políticos, epistêmicos, pedagógicos
e ecológicos.

Figura 22 — Os três postulados da Transdisciplinaridade,


segundo Nicolescu

Fonte: Elaboração do autor.


TRANSCICLOPÉDIA EM DIFUSÃO DO CONHECIMENTO 753

Figura 23 — Definição do Postulado 1 da Transdisciplinaridade,


segundo Nicolescu

Fonte: Elaboração e síntese do auto

Deve-se entender por nível de Realidade um conjunto de sistemas invariável


sob a ação de um número de leis gerais: por exemplo, as entidades quânticas
submetidas às leis quânticas, as quais estão radicalmente separadas das leis do
mundo macrofísico. Isto quer dizer que dois níveis de Realidade são diferentes
se, passando de um ao outro, houver ruptura das leis e ruptura dos conceitos
fundamentais (como, por exemplo, a causalidade). [...] A descontinuidade
que se manifestou no mundo quântico manifesta-se também na estrutura dos
níveis de Realidade. Isto não impede os dois mundos de coexistirem. A prova:
nossa própria existência. Nossos corpos têm ao mesmo tempo uma estrutura
macrofísica e uma estrutura quântica”. (NICOLESCU, 1999, p. 25
754 TRANSCICLOPÉDIA EM DIFUSÃO DO CONHECIMENTO

Distinção entre níveis de Realidade e níveis de organização, segundo Nicolescu


(1999, p. 25),
Os níveis de Realidade são radicalmente diferentes dos níveis de organização,
tais como foram definidos nas abordagens sistêmicas. Os níveis de organização
não pressupõem uma ruptura dos conceitos fundamentais: vários níveis de
organização pertencem a um único e mesmo nível de Realidade. Os níveis de
organização correspondem a estruturações diferentes das mesmas leis funda-
mentais. Por exemplo, a economia marxista e a física clássica pertencem a um
único e mesmo nível de Realidade.
O surgimento de pelo menos dois níveis de Realidade diferentes no estudo dos
sistemas naturais é um acontecimento de capital importância na história do
conhecimento. Ele pode nos levar a repensar nossa vida individual e social, a
fazer uma nova leitura dos conhecimentos antigos, a explorar de outro modo
o conhecimento de nós mesmos, aqui e agora.

Figura 24 — Definição e esquematização do Postulado 2 da


Transdisciplinaridade, segundo Nicolescu

Fonte: Elaboração do autor


TRANSCICLOPÉDIA EM DIFUSÃO DO CONHECIMENTO 755

Diferença assinalada por Nicolescu entre a tríade do Terceiro incluído e a


tríade hegeliana:
Toda diferença entre uma tríade de terceiro incluído e uma tríade hegeliana
se esclarece quando consideramos o papel do tempo. Numa tríade de terceiro
incluído os três termos coexistem no mesmo momento do tempo. Por outro
lado, os três termos da tríade hegeliana sucedem-se no tempo. Por isso, a tríade
hegeliana é incapaz de promover a conciliação dos opostos, enquanto a tríade
de terceiro incluído é capaz de fazê-lo. Na lógica do terceiro incluído os opostos
são antes contraditórios: a tensão entre os contraditórios promove uma unidade
que inclui e vai além da soma dos dois termos”. (NICOLESCU, 1999, p. 33

A Teoriação Polilógica, assim, subsume a coexistência de diferentes níveis de


Realidade e diferentes níveis de percepção.

Figura 25 — Figuração de diferentes níveis de Realidade

Fonte: Elaboração e apropriação do autor


756 TRANSCICLOPÉDIA EM DIFUSÃO DO CONHECIMENTO

Figura 26 — Definição e esquematização do Postumado 3 da


Transdisciplinaridade, segundo Nicolescu

Fonte: Elaboração do autor

Além da abordagem epistemológica e metodológica da Transdisciplinaridade é


importante destacar a Transdisciplinaridade no campo social e humanista em que os
saberes encontram uma unificação aberta e transformativa. Neste sentido, é preciso
acrescentar ao conceito de Transdisciplinaridade o seu campo relativo à formação
integral do ser humano, compreendendo a relação de cada ser com o mundo, com
o outro, consigo mesmo e com a consciência/inconsciência do próprio ser – eco-
formação, heretoformação, autoformação e ontoformação, segundo Saturnino de
la Torre e outros (2008). Além disso, acrescente-se também o campo da Atitude
Transdisciplinar, que é propriamente o campo da experiência humana em toda a
sua vastidão e complexidade – A teoriação polilógica transdisciplinar (GALEFFI)
O salto de natureza dado pela transdisciplinaridade consiste em uma mudança
radical de compreensão da Realidade em um contraponto com os postulados que
fundamentam a Ciência Moderna:
TRANSCICLOPÉDIA EM DIFUSÃO DO CONHECIMENTO 757

Figura 27 — Os postulados da Ciência Moderna, em uma variação própria e


apropriada

Fonte: Elaboração do autor

Os postulados da transdisciplinaridade respondem diferentemente aos três


princípios que constituem os suportes da racionalidade moderna:

Figura 28 — Diferença na formulação dos postulados da Ciência Moderna e


aqueles da Transdisciplinaridade

Importante, então, relevar as diferentes variações de grau do plano de imanên-


cia da interdisciplinaridade e o salto de natureza que a abordagem transdisciplinar
realiza, porque entre a disciplinaridade e a interdisciplinaridade mantêm-se ainda
o mesmo plano de referência, havendo apenas variação de grau e não salto de plano
de natureza e referência. No plano da disciplinaridade a disciplina é o seu grau “0”
(fundador) e as demais variações apresentam aumento de complexidade no plano
de referência “disciplina”.
758 TRANSCICLOPÉDIA EM DIFUSÃO DO CONHECIMENTO

Figura 29 — Apresentação da escala da disciplinaridade e o salto de


natureza da Transdisciplinaridade

Fonte: Elaboração do autor

Figura 30 — Figuração da escala da disciplinaridade a partir do seu grau


“0” e o salto de natureza da Transdisciplinaridade e o seu grau “0”

Fonte: Elaboração do autor.

4. A COMPLEXIDADE DELINEADA E SEUS POSTULADOS: COMO


TORNAR O PENSAMENTO DA COMPLEXIDADE UMA MENTE
INCORPORADA ATUANTE E POTENTE A SERVIÇO DO DEVIR
HUMANO ESPIRITUALMENTE FLORESCENTE?
Outro importante elemento de composição da Teoriação Polilógica é a Teoria
da Complexidade irrestrita. A Teoriação Polilógica se apropria dos dispositivos me-
todológicos de Morin (2000) para compor o plano da inclusão da complexidade na
TRANSCICLOPÉDIA EM DIFUSÃO DO CONHECIMENTO 759

sua abordagem polilógica. A emergência da complexidade tem sido o principal plano


de imanência da Teoriação Polilógica, uma Teoriação de Tudo/Nada. ― Pensar a
complexidade – esse é o maior desafio do pensamento contemporâneo, que necessita
de uma reforma do nosso modo de pensar‖ (MORIN, 2000).
Edgar Morin tem razão quando assinala a todo o momento que o conhecimen-
to do complexo condiciona uma política de civilização. Demarcando a eclosão da
complexidade Morin (2000) chama a atenção para o desenvolvimento de três teorias
surgidas no início dos anos 40 do século XX, a partir das quais se inicia uma supe-
ração epistemológica do modelo da ciência clássica, a saber: a teoria da informação,
a cibernética e a teoria dos sistemas. Ocorre entre estas três teorias uma fecundação
mútua, dando origem a um campo epistemológico resultante da interrelação entre
campos disciplinares diversos. Hoje este é um campo identificado como Ciências
Cognitivas – uma interrelação de campos geradores de interdisciplinas e abertos ao
transdisciplinar.

Figura 31 — As quatro teorias que estão na base do edifício da


complexidade, segundo Morin

Fonte: Elaboração do autor.

Para Morin (2000), o pensamento da complexidade se apresenta, pois, como


um edifício de muitos andares. A base é formada a partir das três teorias (informação,
cibernética e sistêmica) e comporta as ferramentas necessárias para uma teoria da
organização. Em seguida, vem o segundo andar, com as ideias de Von Neumann,
760 TRANSCICLOPÉDIA EM DIFUSÃO DO CONHECIMENTO

Von Foerster e Prigogine sobre auto-organização. A esse edifício, Morin acrescentou


três princípios, que são o princípio dialógico, o princípio de recursão organizacional
e o princípio hologramático. Vejam-se os três esquemas abaixo que apresentam a
contribuição de Morin e sua formulação dos sete princípios guias da complexidade.

Figura 32 — Os três princípios da Teoria da Co9mplexidade acrescentados


por Morin

Fonte: Elaboração do autor

Figura 33 — Os sete princípios guias para o pensamento da complexidade,


segundo Morin

Fonte: Elaboração do autor.


TRANSCICLOPÉDIA EM DIFUSÃO DO CONHECIMENTO 761

Figura 34 — Outra figuração dos sete princípios guias da complexidade

Fonte: Elaboração do autor.

A Teoria ou Epistemologia da Complexidade de Morin pode ser considerada


como Complexidade Irrestrita, compreendendo os operadores dialógico, recursivo
e hologramático, e o tetragrama organizacional definido como Ordem, Desordem,
Interação e (re)Organização, como também a compreensão de que o ser humano é
100% natureza e 100% cultura, compreendendo que ele é um ser falante, produtor
de artefatos e simbólico.
762 TRANSCICLOPÉDIA EM DIFUSÃO DO CONHECIMENTO

Figura 35 — Diagrama dos operadores da complexidade irrestrita

Fonte: Elaboração do autor.

A proposta da complexidade é a abordagem transdisciplinar dos fenômenos,


e a mudança de paradigma, abandonando o reducionismo que tem pautado a in-
vestigação científica em todos os campos, e dando lugar à criatividade e ao caos. A
proposta da Teoriação Polilógica projeta o desenvolvimento humano para o devir-
-plenitude-vivente, impulso criador recolhido em seu mistério protetor.
Sendo transdisciplinar, não é possível uma definição sucinta do termo complexi-
dade e suas aplicações. Alguns dos conceitos que compõem o tecido da complexidade:

Figura 36 — Nuvem de alguns conceitos operadores da complexidade


irrestrita

Fonte: Elaboração do autor


TRANSCICLOPÉDIA EM DIFUSÃO DO CONHECIMENTO 763

5. TEORIAÇÃO POLILÓGICA: UMA TEORIAÇÃO DE TUDO-


NADA COMO HORIZONTE PRAGMÁTICO PARA UMA POLÍTICA
REVOLUCIONÁRIA DA VIDA HUMANA NO SENTIDO DE SUA
PLENITUDE VIVENTE
Na Teoriação Polilógica quatro modos de criação de conhecimento são tomados
como modulações da experiência humana em geral: a Arte, a Ciência, a Filosofia e a
Mística. A abordagem polílógica acrescenta o saber místico no rol da tríade deleuziana
e guattariniana que se tornou famosa na cena do discurso filosófico contemporâneo.
A inclusão da mística não se deve a razões de misticismo desvairado e sim à consta-
tação da criação mística e sua importância na história humana de todos os tempos
e lugares. A mística não é tomada na Teoriação Polilógica como representação dos
rituais sociais de divinação e acesso à experiência do sagrado. A instância Mística
é compreendida como experiência do sagrado, que se caracteriza não por conceitos,
ou fuctivos, ou perceptos e afetos, e sim por fusões de planos de compreensão e
intuitos de unidade indivisa de tudo, sempre de modo segmentário, portanto aberto
e inconclusível, contextualizado e circunstanciado em sua singularidade irredutível.
Fala-se do místico na ordem do Acontecimento e não da representação. De qualquer
modo, as outras formas de conhecimento nomeadas tradicionalmente: Arte, Ciência
e Filosofia são fundamentais à Teoriação Polilógica, que visa lidar com a polifonia
de vozes múltiplas em uma conjuntura de reunião cujo fundamento não tem fundo:
a diferença de cada parte em relação às outras partes e ao todo das partes.

Figura 37 — Diagrama das quatro formas de criação do espírito humano ou


polilógica do conhecimento humano

Fonte: Elaboração do autor.


764 TRANSCICLOPÉDIA EM DIFUSÃO DO CONHECIMENTO

A Teoriação Polilógica pode, assim, reunir setores distintos, planos diferentes,


singularidades sem nunca utilizar o critério de redução de uma das formas de cria-
ção do ser humano a alguma que se apresentaria como “a diferente da Diferença”:
a principal e mais importante. Ora, esta hierarquia de campos é um fenômeno po-
lítico humano e diz respeito ao jogo de forças imperante, que é um jogo de poder e
pelo poder, não é um jogo dialógico, colaborativo, integrador, inteligente e sensível.
É um jogo de máquinas mortíferas ao infinito. Na Polilógica é possível reunir os
postulados da Transdisciplinaridade de Nicolescu com os sete princípios da Teoria
da Complexidade de Morin, sem que com isso se faça algo absurdo. Pode parecer
absurdo admitir a convivência das diversas lógicas do mundo da vida, mas se torna
necessário reunir diferenças na Teoriação Polilógica. A imagem abaixo mostra a reunião

Figura 38 — Diagrama da reunião dos postulados da transdisciplinaridade


e dos princípios guias do pensamento da complexidade

Fonte: Elaboração do autor

Do mesmo modo, a Teoriação Polilógica leva em conta o que se pode chamar


de dimensões humanas comuns e suas relações aprendentes intuitivas, considerando
a viabilidade de se pensar o humano em sua relação intrínseca e imanente ao mundo
da vida e sua incontornável Natureza.
TRANSCICLOPÉDIA EM DIFUSÃO DO CONHECIMENTO 765

Figura 39 — Diagrama das dimensões humanas e suas relações aprendentes


intuitivas

Fonte: Elaboração do autor

A Teoriação Polilógica compreende também diferentes horizontes gramaticais


que mostram a Realidade sob diferentes perspectivas e configurações, reunindo
diferentes regimes de signos, como se pode ver nas imagens abaixo.

Figura 40 — Diagrama de oito constelações cognitivas como metaponto de


vista próprio e apropriado

Fonte: Elaboração do autor


766 TRANSCICLOPÉDIA EM DIFUSÃO DO CONHECIMENTO

Figura 41 — Diagrama de poli-horizontes cognitivos com suas constelações


gramaticais e suas totalidades segmentárias

Fonte: Elaboração do autor.

Figura 42 — Diagrama da Polilógica dos regimes de signos

Fonte: Elaboração do autor.

Salienta-se também a necessária polilógica dos operadores metodológicos


qualitativos e quantitativos na construção de uma nova ciência da Natureza trans-
disciplinar. E é evidente como na Teoriação Polilógica os operadores metodológicos
quantitativos façam parte igualmente da diversidade de seu metaponto de vista.
TRANSCICLOPÉDIA EM DIFUSÃO DO CONHECIMENTO 767

Figura 43 — Diagrama da Polilógica dos Operadores Metodológicos


Qualitativos

Fonte: Elaboração do autor.

A Teoriação Polilógica tem como elementos de composição de seu plano de


imanência a abordagem Multirreferencial, a Teoria da Complexidade, a Filosofia da
Diferença e a Transdisciplinaridade. É, deste modo, uma lógica do sentido próprio
e apropriado paradoxal.

Figura 44 — Diagrama dos três estados de constituição da Natureza e o eixo


intuição/supra-intuição

Fonte: Elaboração do auto


768 TRANSCICLOPÉDIA EM DIFUSÃO DO CONHECIMENTO

Figura 45 — Diagrama dos planos de referência e constituição


epistemológica da Teoriação Polilógica

Fonte: Elaboração do autor.

A emergência da transformação humana consciente da consciência e da incons-


ciência e consciente do conhecimento e do desconhecimento – aprender a sersendo
ultrapassagem – dádiva desejante – arte em vida. Vida-arte com ciência e consciên-
cia – política, ética, estética, poética – tudo reunido na diferença: a unidade como
a reunião de tudo na diferença convergente/divergente – a imagem da Totalidade
Vivente – Ser-com em tudo em sua transformatividade irredutível.
Consequências éticas, políticas, epistemológicas, estéticas, ecológicas, tecno-
lógicas, metafísicas etc.
O núcleo mediador inteligível de todo o conhecimento possível da Natureza é o
ser humano em sua constituição integral eco-bio-sócio-psico-antropo-cosmológica.
O ser humano é o protagonista desta ciência da natureza transdisciplinar / polilógica
e o seu principal foco intencional.
Há um novo humanismo nascente na perspectiva divisada e apresentada porque
cabe agora incluir tudo em tudo, compreender todos os níveis de Realidade e todos
os níveis de percepção a partir do ser humano e seu cuidado poliético – ambiental,
social, mental e cibernético – além da lógica do terceiro excluído.
Todo o conhecimento produzido até aqui pelo ser humano encontra um momento
de reunião dialógica em que cada parte é incluída no todo cada vez mais complexo.
TRANSCICLOPÉDIA EM DIFUSÃO DO CONHECIMENTO 769

Com a perspectiva transdisciplinar / complexa / polilógica e seu correspondente


paradigma, não há mais motivo para se agir monologicamente, como se existisse
apenas um único nível de Realidade e de percepção.
A questão continua sendo o agenciamento da transformatividade humana na
direção de sua plenitude vivente: um processo aberto e infinitamente criador que não
pode ocorrer sem a inteligência coletiva potencialmente disposta a ser e deixar ser
cada um em sua diferença radical, em sua singularidade irredutível. Uma aventura
infinita inevitavelmente amorosa.
A emergência poliética e poliestética planetária e a compreensão polilógica em
construção solidária diferencial abre-nos o campo da possibilidade humana de ple-
nitude vivente e livre a partir da comum-responsabilidade ambiental, social, mental
e cibernética – uma aprendizagem antropossocial local e global – para todos sem
exceção – projeto de longa duração – ecosofia criadora de plenitude justamente por
não ser intervencionista. Será isso possível ao desejo e à vontade humana?
1. Ainda que eu falasse as línguas dos homens e dos anjos, e não tivesse amor,
seria como o metal que soa ou como o sino que tine.
2. E ainda que tivesse o dom de profecia, e conhecesse todos os mistérios e
toda a ciência, e ainda que tivesse toda a fé, de maneira tal que transportasse
os montes, e não tivesse amor, nada seria.
3.
13
Agora, pois, permanecem a fé, a esperança e o amor, estes três, mas o
maior destes é o amor. Coríntios 13

REFERÊNCIAS
FAZENDA, Ivani C. A. Interdisciplinaridade: história, teoria e pesquisa. 4 ed.
Campinas: Papirus, 1994.

FAZENDA, Ivani C. A. Algumas considerações práticas sobre


interdisciplinaridade. In: JANTSCH, Ary; BIANCHETTI, Lucídio (Orgs.).
Interdisciplinaridade: para além da filosofia do sujeito. Petrópolis: Vozes, 1995.

FOUCAULT, Michel. As palavras e as coisas. Uma arqueologia das ciências


humanas. São Paulo: Martins Fontes, 1981.

JAPIASSU, Hilton. Interdisciplinaridade e patologia do saber. Rio de Janeiro:


Imago, 1976. 220 p.

MORIN, Edgar; LE MOIGNE, Jean-Louis. A inteligência da complexidade.


770 TRANSCICLOPÉDIA EM DIFUSÃO DO CONHECIMENTO

2.ed. São Paulo: Peirópolis, 2000.

NICOLESCU, Basarab. O Manifesto da Transdisciplinaridade. São Paulo:


Triom, 1999.

PAUL, Patrick. Os diferentes níveis de realidade. O Paradoxo do Nada. São


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TORRE, Saturnino de la (Org.) Transdisciplinaridade e ecoformação: um


novo olhar sobre a educação. São Paulo: TROM, 2008.

SEVERINO, Antônio Joaquim. O conhecimento pedagógico e a


interdisciplinaridade: o saber como intencionalização da prática. In: Fazenda,
Ivani C. Arantes (Org.). Didática e interdisciplinaridade. Campinas: Papirus,
1998. p. 31-44.
85. Tr abalho Colabor ativo

Anita dos Reis de Almeida


Hélio Souza de Cristo
Marcos Vinícius Castro Souza

Cada criatura traz duas almas consigo:


uma que olha de dentro para fora, outra
que olha de fora para dentro [...] a alma
exterior pode ser um espírito, um fluido,
um homem, muitos homens, um objeto,
uma operação [...] Está claro que o ofício
dessa segunda alma é transmitir a vida
como a primeira: as duas complemen-
tam o homem, que é, metafisicamente
falando, uma laranja. Quem perde uma
das metades, perde naturalmente metade
da existência: e casos há, não raros em
que a perda da alma exterior implica a da
existência inteira (ASSIS, 1959, p. 259).

Fonte: http://brasilprodutivo.com.brsua-
-equipe-rumo-ao-trabalho-colaborativo/

O trecho do conto “O Espelho”, de Machado de Assis, serve como ponto de


partida filosófico-poético à introdução e articulação das primeiras palavras sobre
trabalho colaborativo no âmbito da dimensão polilógica da vida humana e suas
particularidades com processos individuais, sociais e ecológicos. Nos últimos anos,
trabalho colaborativo tem sido um termo que vem ganhando, cada vez mais, visi-
bilidade literária nas mais diversas áreas do conhecimento e campos de articulação
entre ensino, aprendizagem, docência e gestão (PINTO; LEITE, 2014).
Para Ximenes (2000, p. 225), o verbo colaborar está associado a “prestar co-
laboração, ajudar, auxiliar; Ser coautor (de uma obra); Contribuir; Trabalhar em
conjunto”. Nesta perspectiva, devido seu caráter polissêmico e ramificado, a ideia
de trabalho colaborativo está relacionada a processos de interação, interatividade,
criação em conjunto e aprendizagem dialógica.
No eixo das relações humanas, o trabalho colaborativo está imbricado com
a construção coletiva e compartilhamento de tomada de decisões, de modo que
772 TRANSCICLOPÉDIA EM DIFUSÃO DO CONHECIMENTO

todos os sujeitos sejam igualmente responsáveis tanto pelos processos de produção


de decisões e estratégias quanto pelos resultados alcançados a partir das ações de-
senvolvidas em conjunto.
O trabalho colaborativo representa redes de comunicação e interação que são
construídas pelos sujeitos entre si ou grupos de sujeitos que mantém relações de afi-
nidades, interesses em comum ou ainda – e sobretudo – a capacidade de dialogar e
conviver em meio às diferenças e pluralidade de opiniões, visões de mundo, ideologias
e crenças. O aspecto fundamental da rede que constitui o trabalho colaborativo é
a percepção que esta rede não é formada unicamente pelo caráter individual dos
sujeitos, mas a coletividade é que a sustenta a partir do imbricamento entre as partes
individuais, suas interrelações, antagonismos e complementaridades.
Pelo pensamento de Morin (1977), podemos dizer que,
[...] os equilíbrios organizacionais são equilíbrios de forças antagônicas, assim,
toda relação organizacional e, consequentemente, todo sistema, comporta e
produz antagonismo e, ao mesmo tempo, complementaridade [seja entre as
partes ou entre as partes e o todo]: toda relação organizacional necessita e
atualiza um princípio de complementaridade, e necessita e mais ou menos
virtualiza um princípio de antagonismo (MORIN, 1977, p. 118-119).

Ilustrativamente, enquanto uma rede, o trabalho colaborativo se assemelha à


formação de uma teia de aranha: a teia (rede) se forma através do trabalho conjunto
da produção de cada fio. Embora cada fio seja importante à constituição da teia, um
fio por si só não garante a formação da teia, é necessário que um fio esteja unido a
outros, e estes a tantos outros, para que se forme a teia de aranha. Semelhantemente
ocorre no processo de trabalho colaborativo, especialmente no tocante à aprendi-
zagem, construção e difusão de conhecimentos, onde o coletivo (rede complexa de
interações e mediações) assume condição primordial ao desenvolvimento cognitivo
dos sujeitos.
Por este prisma, Lévy (2000) ao se referir à colaboração como um ato coletivo
à expansão da ecologia cognitiva mediada pelas novas tecnologias da informação e
comunicação, afirma que essa rede complexa de interações e mediações coloca em
evidência que “[...] não sou eu que sou inteligente, mas eu com o grupo humano do
qual sou membro. O pretenso inteligente nada mais é do que um dos microatores
de uma ecologia cognitiva que engloba e restringe” (LÉVY, 2000, p. 81).
Para o autor, a colaboração está subsidiada na ideia que no coletivo não há um
sujeito mais inteligente ou importante que outro, o que existe é o compartilhamento
de conhecimentos e saberes diferentes que, por meio da mediação e da práxis, formam
TRANSCICLOPÉDIA EM DIFUSÃO DO CONHECIMENTO 773

o coletivo; sendo este o lugar onde os indivíduos podem se transformar, descobrir-se


enquanto sujeitos de suas próprias histórias e desenvolverem-se cognitivamente. Neste
sentido, Lévy (2003, p. 28) traz o conceito de inteligência coletiva, a qual pode ser
definida como “[...] uma inteligência distribuída por toda parte, incessantemente
valorizada, coordenada em tempo real, que resulta em uma mobilização efetiva das
competências”. Assim, existe o reconhecimento dos saberes individuais dos sujeitos,
a fim de coordená-los para serem usadas a favor do coletivo.
No cenário de trabalho colaborativo, a partir das contribuições de Vygotsky
(1999, 2011), o coletivo se constrói por meio das relações e interações compartilhadas
entre os sujeitos, onde a dialética da práxis subsidia a aquisição de conhecimentos e
a construção de instrumentos que proporcionem a apropriação e mediação de con-
teúdos sobre seus contextos sociais, tecnológicos, políticos e culturais. O coletivo
não é compreendido distante da concepção protagônica, descentralizada e autônoma
dos sujeitos, ou seja, ele está relacionado ao compartilhamento das causas, conflitos
e lutas que mobilizam os sujeitos em suas relações e redes de interesses. Por isso, na
ausência do outro, os sujeitos não se constroem enquanto sujeitos coletivos, visto
que as construções de conhecimentos individuais por meio da práxis favorecem a
formação da coletividade em suas mais diversas instâncias sociais, tanto em espaços
escolares como não-escolares.
Quanto a este ínterim, Freitas (1997), referindo-se ao caráter social de cons-
trução da consciência humana por meio da linguagem enquanto conjunto de signos
e os processos constituintes do trabalho colaborativo à luz das teorias de Vygotsky
e Bakhtin, ressalta:
O outro é, portanto, imprescindível tanto para Bakhtin como para Vygotsky.
Sem ele o homem não mergulha no mundo sígnico, não penetra na corrente
da linguagem, não se desenvolve, não realiza aprendizagens, não ascende
às funções psíquicas superiores, não forma a sua consciência, enfim não se
constitui como sujeito. O outro é peça importante e indispensável de todo o
processo dialógico que permeia ambas as teorias (FREITAS, 1997, p. 320).

No campo da educação, o trabalho colaborativo (seja na relação professor-


-professor, aluno-aluno, professor-aluno ou gestão) se constitui como uma possível
alternativa de combate ao individualismo que, por vezes, tem se arraigado nas práti-
cas sociais e educativas, em especial aquelas reforçadas pelas propostas de educação
fundamentadas na formação de sujeitos capitalistas, que a exaltam e legitimam a
descrença no outro, a importância da coletividade, supervalorizam a competição e
marginalizam a colaboração e a partilha, o que – por sua vez – coloca em risco a
774 TRANSCICLOPÉDIA EM DIFUSÃO DO CONHECIMENTO

efetividade de relações humanas mais democráticas, igualitárias, emancipatórias e


sustentáveis.
Desse modo, nas palavras de Pinto e Leite (2014, p. 145),
[...] a valorização do trabalho colaborativo (TC), no âmbito das instituições
escolares, tem sido associada a possibilidades quer de positivamente se responder
aos desafios que a aprendizagem coloca quando se reconhece a importância de
o currículo se centrar nos estudantes, quer de promover o desenvolvimento
profissional dos professores.

As autoras ajudam-nos a compreender que o pensamento e a ação do trabalho


colaborativo no campo da educação perpassam pela efetiva mudança de mentali-
dade que se traduz, também, por novas concepções curriculares, que viabilizem o
deslocamento de práticas educativas lineares, hierárquicas, unidirecionais, apassi-
vadas e apassivadoras para as vertentes da autonomia, do pensar e criar junto, da
aprendizagem colaborativa e do diálogo como eixo fundamental à problematização,
leitura e reflexão sobre o mundo.
Se por um lado, o trabalho colaborativo – em sua gênese – distancia-se da ideia
de currículo como grade, que fecha, aprisiona, delimita o horizonte, separa, segrega,
não possibilita os sujeitos irem além e restringe as possibilidades de desenvolvimento
cognitivo, pessoal, emocional e coletivo. Por outro lado, articula-se com a percepção
de teias curriculares à medida que o trabalho colaborativo conecta os diferentes
conhecimentos, liga as potencialidades, amplia os horizontes e entrelaça os sujeitos
em busca de objetivos comuns sem desconsiderar as diferenças e antagonismos que
compõem as relações interativas entre os sujeitos; no entanto, leva-se em consideração
o apoio mútuo, a interatividade do grupo, a partilha e as interações como alicerces
essenciais à produção e difusão de conhecimentos.
Das grades às teias curriculares, no trabalho colaborativo,
[...] ao trabalharem juntos, os membros de um grupo se apoiam, visando
atingir objetivos comuns negociados pelo coletivo, estabelecendo relações
que tendem à não-hierarquização, liderança compartilhada, confiança mútua
e corresponsabilidade pela condução das ações (DAMIANI, 2008, p. 215).

A negociação e o constante diálogo entre os membros de um grupo reforçam


que as relações interativas de colaboração entre os sujeitos não são unidades fixas,
acabadas, absolutas e estáveis. Elas existem enquanto processo sócio-histórico me-
diado pelos sujeitos por meio da práxis, visando a superação de posicionamentos
dogmáticos e céticos.
TRANSCICLOPÉDIA EM DIFUSÃO DO CONHECIMENTO 775

Destarte, o trabalho colaborativo – da teoria à ação e da ação à teoria – não


é um fenômeno inerente aos sujeitos, organizações ou instituições sociais (como se
sempre existissem ou seguissem o “fluxo natural” dos fenômenos sociais), ele é fruto
de relações de poder, espaços de negociação, experiências e gestão de interesses que
motivam e transformam os sujeitos.
Desta forma, é preciso, em um processo de negociação, deixar explícito a
importância do papel de cada sujeito no trabalho colaborativo. Não se trata aqui
de uma simples distribuição de tarefas, de forma fragmentada, cabendo a cada um
fazer apenas a sua parte. É importante, neste processo, que todos trabalhem em uma
perspectiva dialógica com vistas ao alcance dos objetivos compartilhados, colabo-
rando uns com os outros na construção do conhecimento, considerando o contexto
cultural dos sujeitos, suas histórias, suas experiências, suas itinerâncias, suas vozes.
A este respeito, Freire (2014, p. 228) argumenta que:
[...] A co-laboração, como característica da ação dialógica, que não pode
dar-se a não ser entre sujeitos, ainda que tenham níveis distintos de função,
portanto, de responsabilidade, somente pode realizar-se na comunicação. O
diálogo, que é sempre comunicação funda a co-laboração.

Neste sentido, o trabalho colaborativo acontece de forma dialógica, sem imposi-


ção de vontades, envolvendo, conforme Pinto e Leite (2014), apoio mútuo, interação
produtora de conhecimentos e de saberes e concretização de ações conjuntas entre
os sujeitos envolvidos. As opiniões de todos os partícipes tornam-se essenciais para a
construção do conhecimento, a partir do momento que os sujeitos passam a enxergar
o objeto a partir de diferentes olhares, aprendendo uns em comunhão com os outros.

REFERÊNCIAS
ASSIS, Machado de. O espelho. In: Papéis Avulsos. São Paulo: Mérito,1959.

DAMIANI, Magda Floriana. Entendendo o trabalho colaborativo em educação e


revelando seus benefícios. In: Educar, Curitiba, n. 31, p. 213-230, 2008, Editora
UFPR.

FREIRE, Paulo. Pedagogia do Oprimido. 56. ed. rev. e atual. Rio de Janeiro:
Paz e Terra, 2014.

FREITAS, Maria Teresa de Assunção. Nos textos de Bakhtin e Vygotsky: um


encontro possível. In: BRAIT, Beth. Bakhtin: dialogismo e construção de
sentido. Campinas: Editora Unicamp, 1997.
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LÉVY, Pierre. A inteligência coletiva. São Paulo: Edições Loyola, 2003.

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informática. Rio de Janeiro: Ed. 34, 2000.

MORIN, Edgar. O método. v. 1: A natureza da natureza. Lisboa: Publicações


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PINTO, Carmem Lúcia Lascano; LEITE, Carlinda. Trabalho Colaborativo: um


conceito polissêmico. In: Conjectura: Filos. Educ., Caxias do Sul, v. 19, n. 3, p.
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VYGOTSKY, Lev S. A formação social da mente: o desenvolvimento dos


processos psicológicos superiores. Tradução de José Copolla Neto. 6.ed. São
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2011.

XIMENES, Sérgio. Dicionário Ediouro da Língua Portuguesa. 2.ed. São


Paulo: Ediouro, 2000.
86. Tr adições de Conhecimento e Sistemas de
Categorias

Jose María Barroso Tristán

A Ciência é uma tradição de conhecimento com extraordinárias conquistas, mas,


ao fim e ao cabo, mais uma entre tantas outras tradições possíveis. Somos cientes da
magnitude que tem esta afirmação, mas vamos desenvolver a continuação o porquê
a Ciência dever ser considerada como uma tradição de conhecimento a mais que
deve estar em um diálogo entre iguais com as demais tradições de conhecimento
em benefício do próprio conhecimento a ser desenvolvido.
Para começar a desenvolver esta afirmação, temos que ir ao mais básico da
Ciência, ao seu criador e quem lhe confere seu significado: o ser humano. A Ciên-
cia é uma atividade puramente humana1, por isso, incorpora subjetividades que se
encontram instaladas em cada pessoa e, por extensão, em cada comunidade. Estas
subjetividades estão determinadas pelo desenvolvimento histórico e as condições
de cada pessoa e comunidade em uma retroalimentação dinâmica entre ambas. Na
esteira de tais discussões, vamos realizar um breve percorrido sobre a relação entre
intersubjetividades individuais e sociais para compreender melhor a importância
disso na demonstração de que a Ciência é, no fim das contas, uma tradição de
conhecimento a mais.
Ao nascer, o fazemos no seio de uma comunidade-sociedade que possui uma
complexa relação de múltiplas contextualidades (familiares, geográficas, sociais,
políticas etc.) interconectadas. Por um lado, este tecido de contextualidades é interde-
pendente, influindo umas sobre as outras em uma lógica dinâmica e multidirecional,
ainda que em diferentes proporções. Por outro lado, cada um desses contextos contém
diferentes matizes políticos, econômicos, sociais e culturais com um caráter histó-
rico, que fazem parte fundamental no desenvolvimento de cada um dos contextos.
Em suma, encontramos que cada um dos contextos pode ser caracterizado por dois
elementos que não estão separados senão em constante relação, (a) ao exterior, pela
inter-relação com os outros contextos e (b) ao interior, pelas características próprias
que lhe dão forma e coerência. Isto nos leva à conclusão de que a menor unidade
contextual e as seguintes, por consequência, contêm umas características próprias que
1
Ainda que a Ciência possa envolver animais e outros elementos não-humanos tais como a nature-
za, no fim das contas é o ser humano quem planeja, organiza e realiza os processos científicos.
778 TRANSCICLOPÉDIA EM DIFUSÃO DO CONHECIMENTO

divergirão das outras individualidades, sendo impossível encontrar duas exatamente


iguais, o que lhe outorga sua característica de singularidade.
No entanto, como temos dito, cada singularidade está fortemente influen-
ciada tanto por (a) quanto por (b). Ao desenvolver-nos nesta complexa relação de
contextualidades, vamos adquirindo os elementos que deram forma a cada um dos
contextos. A aquisição dos elementos que compõem cada um deles é uma luta de
forças, na qual os mais próximos agem com maior força sobre as especificidades dos
indivíduos ao ser os que intervêm de forma mais direta nelas, embora, ao mesmo
tempo, os contextos mais globais afetam aos aspetos mais gerais da população que,
por sua vez, incidem nos contextos mais próximos.
Portanto, é uma retroalimentação constante entre ambos, em que as subje-
tividades particulares estão condicionadas pelos princípios básicos que sustentam
as subjetividades coletivas da sociedade à que pertence. É dizer, o contexto mais
geral de uma comunidade que compartilha alguns princípios básicos estabelece
os limites do razoável, e seus subsequentes contextos têm liberdade para fazer
a escolha, mas sempre dentro desses limites marcados pelo contexto geral. Por
exemplo, ao interior da comunidade ocidental podemos encontrar países, como
México, onde a ingestão de insetos é percebida como um manjar, enquanto em
outros países, como Brasil, é considerado como repugnante. Isto se encontraria
nos limites do razoável para o mundo ocidental. Neste caso, para a comunidade
mexicana, é racional e, com isso, muitos dos seus indivíduos consumem-nos e,
para a brasileira, seria irracional e, por isso, seus indivíduos não o comem. Em
síntese, vemos como os contextos influem sobre as individualidades ao estabelecer
os limites do que é considerado como racional ao interior das comunidades. Con-
tudo, isto não é absoluto, pois um brasileiro poderia comer insetos, mas isto só
aconteceria ao se inserir no conjunto de contextualidades de outras comunidades,
dificilmente o fará em sua cotidianidade brasileira2.
Como dissemos, em cada contexto intervêm elementos políticos, filosóficos,
históricos, econômicos, sociais e culturais que incidem em sua construção social, a
inter-relação destes elementos faz com que a construção social contenha determina-
dos significados, valores, crenças, prejuízos e estereótipos que diferirão, parcial ou
completamente, dos de outros contextos devido a sua característica de singularidade.
Desta maneira, cada contexto terá uma construção social diferente e, como dizem
Berger e Luckman (2003), a construção social de cada comunidade será a realidade
de cada um de seus indivíduos.
2
Temos realizado o exemplo com a ingestão de insetos e o contexto brasileiro, mas este exemplo
pode ser exportado para outras contextualidades e temas diferentes.
TRANSCICLOPÉDIA EM DIFUSÃO DO CONHECIMENTO 779

Queremos salientar que, dentro de uma determinada comunidade, se podem


encontrar uma multidão de micro comunidades que divergem nas suas construções
sociais de tal forma que podem parecer totalmente alheias, mas, ao afastar-nos, en-
contraremos os elementos comuns que as unem sob a comunidade que as abrange.
Voltando ao exemplo anterior, a realização de uma microanálise entre as comunidades/
contextos brasileiro e mexicano nos projetará informação sobre quão diferente que
são ambas culturas, mas, ao efetuar uma análise mais afastada das especificidades,
comprovaremos como existem generalidades que nos mostram que ambos pertencem
à comunidade ocidental.
Essa complexa construção social de cada contexto denominaremos formalmente
como sistema de categorias, pois, em seu interior se encontram categorias políticas,
filosóficas, históricas, econômicas, sociais e culturais que lhe dão coerência à comu-
nidade que a possui. Os sistemas de categorias possuem elementos fixos e elementos
variáveis. Os fixos são verdades inquestionáveis que sustentam ao sistema, e aos
subsistemas que emergem dele, e em torno ao que giram os elementos variáveis. Por
exemplo, a existência de Deus seria um elemento fixo na religião cristã, enquanto a
interpretação da bíblia seria um elemento variável. Os elementos variáveis de uma
comunidade podem se converter nos elementos fixos de suas subcomunidades.
Seguindo com o exemplo, das diferentes interpretações da bíblia, emanam diversas
escolas escolásticas convertendo um elemento que era variável no cristianismo, em
um elemento fixo da sub-comunidade e sobre o que giram, para adaptar-se a ele e
aos elementos fixos dos sistemas de categorias superiores (a existência de Deus, neste
caso), o resto de categorias que conformam o sistema.
Como temos dito, os elementos fixos de cada sistema de categoria são inques-
tionáveis, sendo interiorizados e naturalizados pelos integrantes da comunidade. Eles
se integram no imaginário das pessoas e dão forma às variáveis que as rodeiam, por-
tanto, influindo de uma maneira fundamental sobre o resto do sistema de categorias.
Concordamos com Feyerabend quando diz que:
Desde crianças aprendemos a reagir ante as situações com as respostas apro-
priadas, sejam linguísticas ou de outro tipo. Os procedimentos de ensino dão
forma à “aparência” ou ao “fenômeno” e estabelecem uma firme conexão com
as palavras, de tal maneira que os fenômenos parecem falar por se mesmos
sem ajuda exterior e sem conhecimento alheio ao tema. Os fenômenos são
justamente o que os enunciados associados afirmam que são. A linguagem
que eles “falam” está desde logo influído pelas crenças de gerações anteriores
sustentadas tão longo tempo que não aparecem já como princípios separados,
senão que se introduzem nos términos do discurso cotidiano, e, depois do
780 TRANSCICLOPÉDIA EM DIFUSÃO DO CONHECIMENTO

treinamento requerido, parece que emergem das coisas mesmas (FEYERA-


BEND, 1987, p. 59).

As crenças de gerações anteriores, das que nos fala Feyerabend, seriam os elemen-
tos fixos dos sistemas de categorias onde nós desenvolvemos que, ao se encontrar tão
enraizadas nos seus indivíduos, são consideradas como naturais. Estes intervêm sobre
as sensações recebidas, fazendo que tenham diferentes interpretações dependendo do
contexto do indivíduo, chegando, portanto, a percepções distintas dos acontecimentos.
Continuando com Feyerabend (1987, p. 52), “a impressão sensória por simples que
seja, contém sempre um componente que expressa a reação do sujeito que percebe
e que não tem correlato objetivo”. É dizer, as sensações3, que se encontram na base
de todo pensamento e atividade humana, ao serem recebidas por qualquer pessoa,
passam a conter uma visão subjetiva através de suas experiências e influenciada pelos
valores, crenças e prejuízos epistemológicos dos sistemas de categorias onde está inse-
rido, convertendo-se em sua percepção4 da sensação. Como dissemos, na percepção
influem os valores e crenças das comunidades que dão forma a nossos sistemas de
categorias, consideramos isto muito importante, pois, valores que são intersubjetivos
como a paz ou o desenvolvimento, tomarão diferentes concepções dependendo da
tradição de conhecimento desde a que se faça explícita. Por exemplo, nas últimas
décadas, temos visto como a paz para o mundo ocidental inclui o bombardeio e a
invasão de determinados países em diferentes zonas do mundo, conceito de paz que
nada tem a ver com a não-violência de Gandhi. Ou, por outra parte, vemos como
o desenvolvimento para o sistema capitalista é baseado (entre outros elementos) na
exploração dos recursos naturais procurando o lucro imediato sem dar atenção ao
cuidado do planeta, embora, o Sumak Kawsay5, ao contemplar a Terra como nosso
lar, levanta uma relação ecológica entre o ser humano e a natureza.
3
Para o presente trabalho, entenderemos sensação como “o ato de recepção de um estímulo por um
órgão sensório”, definição oferecida por Abraham Paul Sperling (2004, p. 39).
4
Também nos apoiaremos em Sperling (2004, p. 39) para a definição de percepção ao entendê-la
como “o ato de interpretação de um estímulo, recebido pelo cérebro por meio de um ou mais me-
canismos sensórios” e continua “a percepção representa a compreensão de uma situação presente
sobre a base de experiências passadas”.
5
Apoiamo-nos na definição fornecida por Dávalos (2014, p. 150) sobre o Sumak Kawsay entenden-
do que este “propõe a incorporação da natureza ao interior da história, não como fator produtivo
nem como força produtiva, mas como parte inerente ao ser social. O Sumak Kawsay propõe vários
marcos epistemológicos que implicam outras formas de conceber e agir; nestes novos formatos epis-
témicos considera-se a existência de tempos circulares que podem coexistir com o tempo linear da
modernidade; considera-se a existência de um ser-comunitário, ou se se prefere, não moderno, como
um sujeito ontologicamente validado para a relação entre seres humanos e natureza; considera-se
uma re-união entre a esfera política com aquela da economia, uma posição relativa dos mercados nos
que a lógica dos valores de uso predomine sobre aquela dos valores de troca, entre outros”.
TRANSCICLOPÉDIA EM DIFUSÃO DO CONHECIMENTO 781

A percepção, por conter uma influência subjetiva, impregna desta influência


o edifício conceitual que vai se estruturando no tecido de relações perceptuais que
conforma o pensamento de cada pessoa. Isto nos leva que a construção epistemoló-
gica que o indivíduo possui se encontra intimamente ligada à sua forma de olhar o
mundo, ao conjunto de contextualidades da que resultou sua singularidade, é dizer,
a seus sistemas de categorias.
Trasladando estas premissas ao interior da Ciência, podemos inferir que o cien-
tífico absorve, em seu edifício conceitual e perceptual, os princípios fundamentais
do grupo científico no qual se situa. Após um período de pertença ao grupo e de
relação dialética com seus colegas terá interiorizada a semântica própria do grupo
para facilitar a discussão e o desenvolvimento de teorias. Considerará a intersub-
jetividade dada aos conceitos e à articulação destes como a verdadeira, ainda que
nela se incluam os valores, crenças e prejuízos epistemológicos que o grupo possui
e dão forma e coerência aos conhecimentos atingidos. Por exemplo, um positivista
nunca utilizará a etnometodologia para uma pesquisa, assim como um marxista não
entenderá o conceito de sociedade sem recorrer à relação de exploração econômica
da burguesia sobre a classe operária, embora nenhum dos sistemas de categorias de
qualquer grupo científico pode ser considerado objetivo, pois:
O material que um científico tem realmente a sua disposição, suas leis, seus
resultados experimentais, suas técnicas matemáticas, seus prejuízos epistemo-
lógicos, sua atitude com as consequências absurdas das teorias que ele aceita,
este material, em efeito, está indeterminado de muitas maneiras, é ambíguo, e
nunca está completamente separado da base histórica. Este material está sempre
contaminado por princípios que o científico não conhece e que, em caso de
ser conhecidos, seriam extremadamente difíceis de contrastar. Pontos de vista
questionáveis sobre a sensação, como o de que nossos sentidos, utilizados em
circunstâncias normais, proporcionam informação fiável sobre o mundo,
podem invadir a linguagem de observação mesmo, estabelecendo os términos
observacionais e a distinção entre aparências verídicas e aparências ilusórias.
Como resultado, as linguagens de observação podem ficar atados a velhos níveis
de especulação que afetam, desta forma indireta, inclusive à metodológica mais
progressiva (FEYERABEND, 1987, p. 51).

Desse modo, podemos extrair duas conclusões: (1) que o conhecimento é com-
plexo e sempre existirão variáveis que serão desconhecidas para uma determinada
teoria, podendo estas variáveis modificar a teoria completamente; e (2) a intersub-
jetividade que impregna cada grupo científico, a Ciência, em um plano mais geral,
nos prende a uma realidade que é subjetiva, mas que se apresenta como objetiva
devido aos sistemas de categorias onde se encontra e que nos impede de avançar para
782 TRANSCICLOPÉDIA EM DIFUSÃO DO CONHECIMENTO

novos conhecimentos. Isto quer dizer que rejeitamos todo tipo de produção cientí-
fica? Não, quer dizer que somos conscientes de que toda comunidade produtora de
conhecimento tem limites e nenhuma pode ser totalizadora, inclusive a Ciência. A
intersubjetividade de cada grupo científico é o que dá forma ao sistema de categorias
sobre o qual se sustentam. No entanto, os sistemas de categorias que, por um lado,
facilitam a coesão interna do grupo, por outro, dificultam o diálogo externo com
outros grupos ao conter tecidos diferentes de valores, significados e relações entre os
conceitos. Portanto, os sistemas de categorias têm no seu interior tanto elementos
positivos quanto negativos para a proliferação do conhecimento.
Como elemento positivo, facilita um corpo de conhecimentos aceites e de-
monstrados (às vezes, erradamente) que possibilite encarar os processos de criação
de conhecimento com mais segurança, trabalhando sobre elementos estáveis que
são aceitos pela comunidade científica. Ao estar inserida em um sistema de catego-
rias comuns com outros colegas, a discussão científica se vê favorecida, pois todos
compartilham uma amplia quantidade de significados, o que lhes proporciona uma
maior facilidade para aprofundar, enriquecer e criar conhecimento. Além disso,
instala a confiança mútua entre os pesquisadores, pois ao compartilhar a cosmologia
do sistema de categorias, seus fundamentos filosóficos, epistêmicos e metodológicos
são comuns aos integrantes do grupo.
Pelo contrário, como elemento negativo, os sistemas de categorias estão formados
em base à uma série de conceitos e conhecimentos limitados que, ao estar aceitos pela
comunidade, se convertem nos elementos “racionais”. Isto limita as possibilidades
de avanço dos saberes, já que ao existir uma série de conhecimentos e métodos que
são considerados válidos, “qualquer coisa que não consiga encaixar dentro do siste-
ma de categorias estabelecidas afirma-se que é incompatível com este sistema, ou é
considerado como algo totalmente horroroso, ou, o que é pior, declara-se sem mais
inexistente” (FEYERABEND, 1986, p. 293). Ou seja, qualquer saber que pretenda
ser candidato a ser considerado como “racional” terá que seguir as regras do jogo dos
sistemas de categorias científicos. Isto se torna em um absurdo epistemológico, pois
um conhecimento que provenha de um sistema de categorias diferente aos cientí-
ficos, teria que modificar sua estrutura de categorias, para adapta-las às científicas,
perdendo, assim, a coerência que lhe confere a complexidade de qualquer que seja o
conhecimento ao encontrar-se em relação com os demais elementos de seu próprio
sistema de categorias. É dizer, “devem por tanto ser deformados, mal-empregados
e forçados a entrar em novos esquemas com objetivo de se ajustar às situações im-
previstas”. (FEYERABEND, 1987, p. 21)
TRANSCICLOPÉDIA EM DIFUSÃO DO CONHECIMENTO 783

Galileu e Copérnico são os dois maiores exemplos disso que tiveram que con-
frontar todo o sistema científico para que suas teorias fossem aceitas. Eles consegui-
ram derrubar o velho sistema de categorias e levantar um novo, embora este novo
também constasse das mesmas características tanto positivas quanto negativas que
relatamos anteriormente. É por isso que o anarquismo epistemológico, em benefício
do avanço da Ciência, defende a maior liberdade mental do pesquisador, alentando
a confrontação contra as restrições tornadas em dogma que se estabelecem através
dos sistemas de categorias.
Quanto mais sólido, bem definido e esplendido é o edifício erigido pelo enten-
dimento, mais imperioso é o desejo da vida por escapar dele para a liberdade‖.
Cada refutação vitoriosa, ao abrir caminho para um novo sistema de categorias
e ainda sem tentar, devolve temporalmente à mente a liberdade e esponta-
neidade que são suas propriedades essenciais. Contudo, a liberdade completa
nunca se consegue. Porque toda mudança, por dramática que seja, sempre
conduz a um novo sistema de categorias fixas (FEYERABEND, 1987, p. 32).

Feyerabend é ciente de que o estabelecimento de sistemas de categorias fixas


é negativo para o desenvolvimento da Ciência, mas, ao mesmo tempo, mostra a
necessidade deles. A evolução da Ciência necessita dos critérios e regras que con-
formam os sistemas de categorias, no entanto, faz especial incidência em que os
pesquisadores não devem guardar uma relação de submissão na frente delas. Sob
esta lógica se mostra a necessidade de agir contra o estabelecido, contra a norma,
porque atrás disso é que se escondem os futuros avanços, tanto na Ciência como na
sociedade. Cada novo sistema de categorias que atingimos torna-se uma nova prisão
de categorias fixas que necessitamos quebrar para renovar o sistema de categorias,
e sendo ciente de que este também será derrubado. Portanto, a Ciência deve obser-
var-se como um processo incomensurável no que os critérios e regras que se fixam
têm um caráter temporal e finito, pelo que deve ter-se a ousadia de enfrentá-los, no
seu interior e com outras tradições de conhecimento, para encontrar novas linhas
de evolução nela. Esta perspectiva da Ciência lhe dá um dinamismo fundamental
ao entendê-la como algo inacabado, em constante evolução, e predisposta a romper
com o estabelecido até o momento para iniciar novas etapas epistêmicas.
Agora vamos trasladar estas premissas à Ciência em geral para demonstrar
que é uma tradição de conhecimento a mais. A Ciência, como comunidade, se rege
também por um sistema de categorias sendo o método científico como meio para
atingir o conhecimento seu elemento fixo, dele derivam seus elementos variáveis,
como por exemplo seriam as diferentes interpretações do método científico, as quais
784 TRANSCICLOPÉDIA EM DIFUSÃO DO CONHECIMENTO

dão para um amplo e complexo tecido de diferentes metodologias com suas diferentes
variáveis e implicações. Somos conscientes da variedade e diferença de definições
existente ao redor do conceito de Ciência, mas vamos nos apoiar na que nos oferece
Merton, pois a consideramos a mais completa:
‘Ciência’ é uma palavra enganosamente ampla que se refere a uma variedade
de coisas distintas, ainda que relacionadas entre si. Comumente, é usada para
denotar: (1) um conjunto de métodos característicos mediante os quais se
certifica o conhecimento; (2) um acervo de conhecimento acumulado que
surge da aplicação destes métodos; (3) um conjunto de valores e normas cul-
turais que governam as atividades científicas; (4) qualquer combinação dos
elementos anteriores (MERTON, 1985, p. 356).

Como temos desenvolvido anteriormente, e relacionado com a definição de


Ciência de Merton, vemos como esta contém um “conjunto de valores e normas
culturais que governam as atividades científicas” (ibidem), é dizer, elementos inter-
subjetivos de uma determinada cultura, a científica. Portanto, a Ciência contém uma
determinada cosmologia subjetiva que a faz singular, mas em nenhum caso devemos
aceitar que seja considerada como a única forma de acessar ao conhecimento, senão
como mais uma entre tantas.
Os defensores da Ciência como a tradição válida para certificar o conhecimento
geralmente empregam dois supostos: (a) a suposta objetividade da Ciência e (b) o
suposto de que a Ciência já se demonstrou como superior ao resto de formas de
atingir o conhecimento.
Sobre (a), já temos demonstrado como essa suposta objetividade não é possível
ao provir seu edifício conceitual e perceptual de uma subjetividade inserida em um
determinado e complexo sistema de categorias. No que diz respeito a (b), rejeitamos
que a Ciência se haja demonstrado como forma superior de acessar ao conhecimen-
to, pois não existiu um diálogo entre as diferentes tradições de conhecimento que
indicasse que a Ciência fosse superior para atingir tais objetivos.
Consideramos que a fundamental diferença entre a Ciência e as demais tradições
de conhecimento provém de que a primeira se encontra localizada como aparelho
epistemológico da hegemonia, enquanto as segundas se encontram fora dos limites
do poder. Quando nos referimos à hegemonia o entendemos desde a perspectiva
de Antônio Gramsci:
[A] supremacia de um grupo social se manifesta de duas formas, como ‘domínio
e como direção intelectual e moral’. Um grupo social é dominante respeito dos
grupos adversários que tende a liquidar ou a submeter inclusive com a foça
armada, e é dirigente dos grupos afins ou aliados (GRAMSCI, 2005, p. 486).
TRANSCICLOPÉDIA EM DIFUSÃO DO CONHECIMENTO 785

A Ciência se situaria como o aparelho epistemológico do grupo social domi-


nante, gerando um “consenso espontâneo” através das ferramentas tanto estatais
quanto privadas para legitimar sua presença no poder e anular as alternativas pos-
síveis (Gramsci, 1986). No “consenso espontâneo” os intelectuais jogam um papel
fundamental:
Os intelectuais são os encargados pelo grupo dominante para o exercício das
funções subalternas na hegemonia social e do governo político, isto é: 1] do
consenso ‘espontâneo’ dado pelas grandes massas da população à orientação
imprimida à vida social pelo grupo dominante fundamental, consenso que nasce
historicamente‘ do prestigio (e por tanto da confiança) derivado pelo grupo do-
minante de sua posição e de sua função no mundo da produção; 2] do aparelho
de coerção estatal que assegura ‘legalmente’ a disciplina de aqueles grupos que
não ‘consentem’ nem ativa nem passivamente, mas que está constituído por toda
a sociedade em previsão dos momentos de crise no mercado e na direção em que
o consenso espontâneo vem a faltar (GRAMSCI, 1986, p. 357).

Por isso, consideramos que a Ciência não se tem erigido legitimamente como a
forma superior de atingir o conhecimento. É evidente que a Ciência como tradição
de conhecimento tem conquistado excelentes e inumeráveis logros, isso não está
sendo discutido, mas também consideramos que, para lograr o ‘consenso espontâ-
neo’ de considerá-la como a melhor tradição para atingir o conhecimento, a Ciência
tem contado com o apoio das estruturas políticas, econômicas, sociais, militares,
educativas e sanitárias da hegemonia capitalista. É como dizer que a Ciência se
valeu tanto de forma mediata quanto imediata pela hegemonia para se situar como
o monopólio do conhecimento válido.
De forma mediata, pois a Ciência como hegemonia nasceu junto à moder-
nidade que dá começo com a ocupação da América6 por parte dos espanhóis e os
portugueses através da força militar, e que traria, como consequência da coloniali-
dade, a imposição do conhecimento, as práticas e as relações intersubjetivas, entre
as que se inclui a Ciência, das nações colonizadoras. E de forma imediata, ao ter
sido estabelecida a Ciência como a tradição de conhecimento reconhecida como a

6
Situamos o nascimento da modernidade na ocupação da América ao nós enquadrar dentro da
teoria da modernidade-colonialidade. Esta teoria foi criada através de um grupo formado para
pesquisar multidisciplinarmente de forma crítica as relações entre colonialidade e modernidade
na zona da América Latina composto, entre outros, pelos pesquisadores Edgardo Lander, Ramón
Grosfoguel, Enrique Dussel, Walter Mignolo, Aníbal Quijano, Catherine Walsh o Nelson Mal-
donado-Torres. Nas suas pesquisas se estrutura a colonialidade sob três eixos fundamentais: a co-
lonialidade do ser, do saber e do poder. Para aprofundar, recomendo as seguintes leituras de Mal-
donado-Torres (2007), Quijano (1992, 2000), Lander (2000), Dussel (2000) e Mignolo (2005).
786 TRANSCICLOPÉDIA EM DIFUSÃO DO CONHECIMENTO

única válida pela hegemonia dos países ocidentais, que, através do Estado, lhe tem
outorgado a “direção intelectual e moral” da população mediante o monopólio de
aparelhos básicos da sociedade.
Por todo o anterior, salientamos as palavras de Feyerabend quando fala da
suposta supremacia da Ciência frente a outras tradições de conhecimento:
Finalmente quero refutar um argumento sobre a superioridade da Ciência
que parece ser muito popular, mas que está totalmente errado. Segundo este
argumento, as tradições não-científicas tiveram já sua oportunidade, mas não
sobreviveram à concorrência da Ciência e do racionalismo. Desde logo, a
questão óbvia é: Foram eliminadas por motivos racionais, ou sua desaparição
foi resultado de pressões militares, políticas, econômicas, etc.? Por exemplo, se
eliminaram os remédios oferecidos pela medicina indiana (que muitos médicos
norte-americanos ainda utilizavam no século XIX) por ter-se comprovado que
eram inúteis ou perigosos, ou porque seus inventores, os indianos, careciam de
poder político e financeiro? Se eliminaram os métodos tradicionais da agricultura
e foram substituídos por métodos químicos por uma superioridade sobre o
terreno, ou por ser a química claramente superior, ou porque se generalizaram
sem mais exame os sucessos da química em outros domínios muito limitados
e porque as instituições que apoiavam a química tiveram o poder de substituir
este salto intelectual com coação política? Em muitos casos, a contestação
é do segundo tipo: as tradições diversas das do racionalismo e das Ciências
foram eliminadas não porque um exame racional tivesse demonstrado sua
inferioridade, senão porque pressões políticas (incluída a política da Ciência)
arrasaram os seus defensores. (FEYERABEND, 1984, p. 6768).

É por considerar à Ciência como mais uma tradição de conhecimento que


entendemos que situar ela em uma posição hegemônica a torna em repressora das
demais formas de acessar ao saber, agindo contra a sua própria finalidade de ampliar
e aprofundar o campo do conhecimento. Embora, a relação horizontal com outras
tradições tem sido de grande utilidade para o desenvolvimento do conhecimento
como foi demonstrado, entre outras ocasiões, quando se deu a dualidade entre a
medicina ocidental e a tradicional chinesa onde “a acupuntura, a moxabustão, a
diagnose pelo pulso, tem conduzido a novos conhecimentos, a novos métodos de
terapia, e a novos problemas tanto para o médico ocidental quanto para o chinês”
(FEYERABEND, 1986, p. 301). Por outras palavras, permitir a proliferação de
tradições de conhecimento favorece a detecção de deficiências nos conhecimentos
estabelecidos e considerados como válidos, possibilitando encontrar novas formas
de atuar para resolvê-los e inclusive podendo modificar elementos básicos de outras
tradições de conhecimento.
TRANSCICLOPÉDIA EM DIFUSÃO DO CONHECIMENTO 787

Para concluir, podemos extrair algumas conclusões:


1. A Ciência é uma tradição de conhecimento a mais.
2. As tradições de conhecimento contêm elementos subjetivos. Por tanto,
“uma tradição de conhecimento adopta propriedades desejáveis ou indesejáveis
só quando se compara com outra tradição, isto é, só quando é contemplada
por participantes que veem o mundo em função de seus valores” (FEYE-
RABEND, 1998, p. 26).
3. A posição de uma tradição de conhecimento, neste caso a Ciência, como
hegemônica repercute de forma negativa na sociedade. Por um lado, ao
estabelecer limites ao cognoscível mediante seus sistemas de categorias
e, por outro lado, porque pode cometer erros que, antes de ser revelados
como tais, se traduzem em práticas abomináveis como aconteceu com a
declaração da homossexualidade ou a travestilidade como doenças mentais7
ou com os processos higienistas que aconteceram no Brasil e dos quais
falaremos mais adiante.
4. A proliferação de tradições de conhecimento em concorrência leal ajuda,
por um lado, a encontrar deficiências nas tradições de conhecimento e, por
outro, a enriquecer os processos de produção de conhecimento ao fornecer
diferentes saberes criados desde seus sistemas de categorias.

REFERÊNCIAS
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realidad. Buenos Aires: Amorrortu, 2003.

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DELEG, Nancy (Edrs.). Antología del Pensamiento Indigenista Ecuatoriano
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DUSSEL, Enrique. Europa, modernidad y eurocentrismo. In: LANDER, Edgardo


(Org.). La colonialidad del saber: eurocentrismo y ciencias sociales: perspectivas

7
Em 1952, a Associação Americana de Psiquiatria (APA) incluiu no seu livro — Diagnostic and
Statistical Manual: Mental Disorders (DSM-I) a homossexualidade e a travestilidade como — sexu-
alidades desviantes‖ (DSM I, 1952, p. 38). Isto produziu a legitimação da perseguição às pessoas
homossexuais e travestis, considerando-se como delito em muitos países e praticando-se terríveis
terapias para sua suposta recuperação. A homossexualidade não seria retirada do manual da APA
até sua edição de 1987 (DSM-III-R, 1987).
788 TRANSCICLOPÉDIA EM DIFUSÃO DO CONHECIMENTO

latinoamericanas. Buenos Aires: CLACSO, p. 24-33, 2000.

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SPERLING, Abraham. P. Psicología simplificada. México D. F.: Selector, 2004.


87. Tr ansciclopédia

Dante Augusto Galeffi

O termo transciclopédia está sendo usado para nomear este livro que reúne as
palavras-conceitos operadas no campo da epistemologia da construção e difusão do
conhecimento, compreendendo também a sua gestão. O termo nunca foi usado antes
com a intenção de constituir uma obra de difusão dos “meta-ciclos” de estudos em
andamento no mundo globalizado, e pontualmente no âmbito do Doutorado em
Difusão do Conhecimento e que dizem respeito à produção cognitiva contemporâ-
nea em suas infindáveis ramificações epistemológicas, tecnológicas, éticas, políticas,
estéticas, artísticas, antropológicas, pós-antropológicas, ecológicas, místicas, multi-
-ontológicas (multi-espécies) etc.
Justificando o seu uso inédito, a nossa intenção não é arbitrária e vazia, e sim
a da criação de um conceito novo, compreendendo logicamente todas as estratifica-
ções relativas ao termo “enciclopédia” presentes na cultura letrada contemporânea.
De fato, não se trata de apagar os fios e planos das raízes etimológicas da palavra
consagrada “enciclopédia” e sim de torcê-los pela substituição do prefixo “en” pelo
prefixo “trans”, o que requisita um suficiente e consistente esclarecimento compo-
sicional na criação do novo conceito de transciclopédia. É o que faremos a seguir.
A palavra “enciclopédia” se encontra amplamente territorializada em sua função
de “esclarecimento de tudo”, ou “conjunto de todos os conhecimentos humanos”,
uma obra que reúne todos os conhecimentos, ou um determinado domínio, expon-
do-os de modo ordenado, metódico, seja seguindo o alfabeto ou elegendo temas
circunscritos em áreas específicas do conhecimento. Seu uso aparece no séc. XVIII
na França, encyclopédie, do grego egkuklopaideía, junção de egkúklios com paideia,
que significa ensino circular, panorâmico, por sua vez pelo latim tardio encyclopaedia,
adaptado ao português, enciclopédia.
Examinando sua composição, a palavra foi formada pela junção de um prefixo e
dois elementos de composição: en+ciclo+pédia. O prefixo “en-” deriva do latim “in-”,
significando em a, sobre; superposição; aproximação; introdução; transformação etc. Por
sua vez, o “en-” latino deriva da raiz indo-europeia “en-”, significando no interior de,
em, que no vernáculo se torna “em-” quando antecede vocábulos iniciados por “p” e
“b”. O elemento de composição “-ciclo”, deriva do grego kúklos, designando círculo,
redondo, roda, esfera, bola. O importante aqui é a palavra “ciclo” que tem a mesma
790 TRANSCICLOPÉDIA EM DIFUSÃO DO CONHECIMENTO

origem e sentido do elemento de composição anteriormente citado. Um “ciclo” é


um fenômeno temporal visualizado em seu espaço de configuração, o que traça uma
regularidade reconhecida, uma periodicidade interpretada, uma sequência de fatos
históricos localizados no tempo inicial de um fenômeno e sua recorrência “cíclica”.
Os exemplos são múltiplos: ciclo anual, ciclo menstrual, ciclo lunar, astronômico,
vital de determinado indivíduo e sua sociedade etc. Um início, um meio, um fim e
um reinício: eis um “ciclo” — florescimento de um processo determinado.
No âmbito de uma “enciclopédia”, cada palavra referendada, seja relativa a fatos,
a conceitos ou a pessoas segue a lei dos ciclos. A lei dos ciclos: o tempo-espaço do
desenvolvimento de corpos ecologicamente situados. Conjugando os dois compo-
nentes já tratados, tem-se um “enciclo”, algo inerente a um ciclo, no interior de um
ciclo, sobre um ciclo, necessariamente referente a “fatos” históricos.
E para compor o sentido completo da intenção de “enciclopédica”, justamente
o terceiro elemento de composição se destaca “pédia”, é ele quem confere sentido de
finalidade ao intuito de esclarecimento de uma “enciclopédia”. O termo “-pédia”
foi introduzido na língua portuguesa pela palavra “enciclopédia”. O pospositivo
“-pédia” vem do grego paideía,as, “educação das crianças”, por sua vez derivado
do grego país, paidós, “filho, filha, criança”. Tudo agora se refere ao grego egkúklios
paideía, isto é, ao “círculo da educação”, ao conjunto de saberes que constituem
uma educação completa.
Então, a finalidade é a educação, o início e o meio são os conhecimentos difun-
didos pela mediação escrita e impressa, sua comunicação literária. A “enciclopédia”
é um dispositivo criado com a intenção de iluminar com as luzes da razão todos
os conhecimentos possíveis e difundi-los indefinidamente. É um acontecimento
do “iluminismo” francês que se tornou “universal” e até mesmo a marca do racio-
nalismo científico com sua pulsão de tudo “esclarecer” e descrever com precisão
absoluta. Mas a precisão é apenas um formalismo epistemológico, uma idealização
abstrativa de algum acontecimento, algum fenômeno social eleito como modelo,
ideia, esquema geral. Mas a realidade dos acontecimentos não é resultante de for-
malizações discursivas, e sim do seu próprio campo de forças em relação e contraste,
um caos de origem como plano, que vai sendo ordenado por impulso neguentrópico
(não-entrópico). A ordem se impõe como traço da racionalização de todo o universo
com seus paralelos infindáveis. Mas não há um modelo de “ordem” a ser seguido
e imitado. Tudo o que partilha da matéria-energia existente se encontra na tensão
entre não-há-nada x há-algo, de um caos primordial para um ordenamento em luta,
em fluxo, em harmonia no seu todo.
TRANSCICLOPÉDIA EM DIFUSÃO DO CONHECIMENTO 791

A intenção generalista e totalitária de uma enciclopédia se exaure em seu


próprio ciclo temporal. As novas tecnologias e suas novas mediações expandem o
sentido atinente a uma enciclopédia escrita em uma determinada língua. A expansão
é multimidiática, e o que antes era restrito ao registro escrito ganha outros corpos
e até mesmo volume físico pela holografia.
Assim, a “enciclopédia” iluminista se transmuta em formatos outros, Wikipé-
dia etc., sofrendo uma transposição e expandindo-se em todas as mídias sociais e
em todos os seus meios (textos, imagens, vídeos, fotografias, sons). Deste modo, a
substituição do “en-” pelo “trans-” intenciona destacar a força da preposição latina
“trans”, “além de, para lá de, depois de”, prefixo fecundo no vernáculo, compondo
muitas palavras com ênfase no “além de, para lá de” (transalpino, transatlântico,
transgredir etc.), com usos variados, para situações que indicam 1) “a passagem de
um lugar a outro”, “travessia”, “transposição” (transmigrar, transpassar, transportar
etc.); 2) a “transferência”, a “cessão” (traduzir, transcrever, transferir, transplantar
etc.); 3) a “mudança”, “transformação” (transfigurar, transformar, transcender,
transmutar, transmudar etc.); 4) ação de impelir de uma para outra parte, “lançar”,
“arremessar”(atirar, precipitar etc.); 5) a “negação” (transcurar, descurar, preterir).
Tais sentidos determinados do prefixo “trans” mostram que é preciso estabelecer
o seu campo semântico efetivo, o seu “corte epistemológico” próprio e apropriado.
No caso, intencionamos enfatizar o ultrapassamento, o atravessamento, a transposição,
a mudança de um plano a outro, a passagem de um regime de signos para outro. De
uma crença monológica para uma concepção multilógica, passagem de uma lógica de
mão-única para uma polilógica de mão-múltipla, de um regime de identidade para um
campo de diferenças, de diferentes identidades e posicionamentos existenciais (políticos,
estéticos, éticos, epistêmicos, poéticos etc.). Enfatiza-se de imediato o transciclo, uma
superação da concepção de ciclos lineares e acabados, de temporalidades blindadas aos
imprevistos do fluxo e fora do controle de pontos de vista fixos. Enfatizase a velocidade
da transcomunicação global contemporânea, em suas variações cíclicas e seus domínios
construídos e ativos, seus projetos, seus anseios e realizações pontuais e consteladas,
sua atividade transformativa muitas vezes violenta e forçada.
Do mesmo modo, trata-se também de transpassar os ciclos de estudos moldados
na hegemonia da expressão escrita, sem abandonar a expressão escrita, mas deslocan-
do-a da centralidade para o compartilhamento inter-relacional de mídias diversas.
A escrita é um entre os tantos outros meios de expressão, cujo poder de “iludir” não
se deveria mais desconhecer ou fazer de conta que não é nada. A transciclopédia é
um ultrapassamento das formas de educação e transmissão moldadas por relações
verticais entre o mestre e os discípulos.
792 TRANSCICLOPÉDIA EM DIFUSÃO DO CONHECIMENTO

Mas por qual motivo ainda escrever uma transciclopédia que cola com a concep-
ção de enciclopédia? Por que não ultrapassar toda a referência ao passado iluminista
da razão européia moderna?
Uma transciclopédia reúne o que reúne como conhecimento sem estabelecer
hierarquias e fins de nenhuma espécie. A meta são metas a realizar, uma multiplici-
dade em obra, heterogênese polilógica, irredutível a esquemas gerais de dominação
e centralidade absoluta. O centro está em toda parte e em parte alguma. Daí a
transciclopédia ser concebida além de linearidades e identidades genéricas, mesmo
adotando-se a ordem alfabética, isto é útil apenas do ponto de vista da execução de
uma edição impressa. Mas em outra configuração multimidiática, as palavras podem
se misturar sem ordem prévia, mesmo podendo-se desenhar mapas de agrupamen-
tos e configurações constelativas de palavras, formando um “céu” possível feito de
pontos em um plano de referência em expansão.
Nossa intenção por uma transciclopédia é a de reunir o que se encontra separado
pela métrica de uma racionalidade monológica. Transpassar os círculos de estudo
baseados em processos colonizadores de toda espécie é poder afirmar acontecimentos
irregulares na ordem do previsível, inaugurando novos agenciamentos de sentido
pela transgressão aos sentidos dados e acolhida do inesperado, o imprevisível, o
criador em seu devir permanente. Porque tudo é movimento transformativo e não
há razão para se escolher apenas uma cosmovisão quando são muitos os modos de
ver e celebrar, de produzir e compartilhar pelos infinitos re-ciclos que a tudo envolve
na mesma dança e no mesmo canto. Reunião de vozes singulares na mais inesperada
polifonia: o salto de natureza no esplendor da multiplicidade criadora.
A transciclopédia aqui modulada apresenta-se como um constructo aberto
para todas as possibilidades, expandindo-se intensivamente para todas as direções
e sentidos, porosidades, corpos e superfícies de conexão. E como não cabe nenhuma
relação hierárquica entre as partes, porque cada parte pode ser acessada por cada
outra parte diretamente, Isto implica também em outra gestão do poder do conhe-
cimento como coisa pública, comum a todos pela reunião da multiplicidade em que
a Diferença é o plano de imanência oriundo do Caos que a tudo faz ser e não ser
em sua singularidade vital: aparecer, desaparecer, transparecer na reunião de tudo
no nada infinito de todas e mais algumas outras possibilidades.

REFERÊNCIA
HOUAISS. Dicionário Eletrônico Houaiss da Língua Portuguesa 1.0 Rio de
Janeiro: Objetiva, 2005.
88. Turismo de Base Comunitária (TBC)

Eudes Mata Vidal


Francisca de Paula Santos da Silva
Alfredo Eurico Rodrigues Matta

APORTES TEÓRICOS, CONTEXTOS E PRINCÍPIOS


O termo Turismo de Base Comunitária -TBC tem origem na década de 1980,
quando ocorreram algumas práticas nas comunidades rurais na América Latina, mas
que devido às divergentes práticas, sugere-se diálogos sobre a base epistemológica
do TBC, partindo principalmente de uma situação de contextualização histórica
da formação desse conceito e principalmente da organização de novas propostas de
acesso às Comunidades numa lógica de participação ativa no gerenciamento dos
custos e benefícios proporcionados por essa possibilidade de geração de renda e
formação histórica e cultural.
As primeiras iniciativas de Turismo de Base Comunitária surgem com Turis-
mo Rural Comunitário – TRC, tendo em vista a valorização do campo, a partir de
sua diversidade de ecossistemas e seus atrativos culturais singulares. Oriundo das
transformações mundiais geradas no mercado turístico, este tipo de turismo, buscava
atender uma coadunação entre turismo cultural e o enaltecimento da natureza, na
medida em que se propunha respeitar e valorizar os patrimônios naturais e culturais
sem necessariamente atender a uma lógica exploratória de um turismo comercial e
empresarial.
O turismo rural comunitário (TRC) encontra-se presente atualmente em todos
os ecossistemas da América Latina. O fenômeno tem sido observado em grande
ascensão em locais de beleza paisagística excepcional, dotada de vida selvagem
e de atrativos culturais únicos. Florestas primárias ou secundárias, sejam estas
secas de altitude ou tropicais; áreas lacustres, insulares ou costeiras; manguezais
ou salinas cobrem um vasto leque de zonas ecológicas: de exuberantes vales
amazônicos aos gélidos altiplanos. Diversas comunidades estão se abrindo para
o mercado graças a “um turismo com selo próprio”, combinando atributos origi-
nais e autênticos, mas sem perder a sua alma (MALDONADO, 2009. p. 25).

Nesse sentido esse tipo de iniciativa corroborara com os trabalhos desenvol-


vidos por ONGs militantes em questões ambientais com experiências de recepção
794 TRANSCICLOPÉDIA EM DIFUSÃO DO CONHECIMENTO

de turistas em suas comunidades de modo a estabelecer uma relação viável entre o


contato com os recursos naturais e culturais. Outro aspecto levantado por Maldonado
(2009), diz respeito à especialidade dessa esfera de atuação, para o campo do turismo
comercial, que entre outras possibilidades, permitiria um processo econômico mais
amplo e comprometido com a remuneração mais justa e adequada aos trabalhos
comunitários, contornando a lógica convencional do Turismo, no qual o retorno
econômico se desenvolve apenas para o lucro dos grandes empreendimentos do ramo.
O Turismo Rural Comunitário — TRC, enquanto base para entendermos o
conceito e a história pelo qual deriva o Turismo de Base Comunitária, desenvolveu-
-se por meio de engajamento na proposta de superação da pobreza e da indigência,
oriunda de um histórico processo de exploração dessas comunidades. Neste sentido,
Maldonado (2009) aponta que a escolha pelo Turismo Rural está na tendência da
concentração geográfica da pobreza e da indigência nas áreas rurais conforme indi-
cadores, pois: “a vontade de superar a pobreza levou milhares de comunidades a buscar
fontes alternativas de renda frente aos limitados resultados da economia de sobrevivência”
(MALDONADO, 2009. p. 29).
Ainda convém lembrar que na medida em que se desenvolvia, a partir do Turis-
mo Rural, um processo coletivo de novas alternativas de renda, sem necessariamente
perderem as condições tradicionais de sua própria comunidade, crescia com isso, o
desenvolvimento de ações de dinamização das atividades agrícolas e não-agrícolas,
bem como estabelecimento de eco economias, ao mesmo tempo em que se fortalecia
o papel para o desenvolvimento de micro e pequenas empresas locais. Este cenário
permitia principalmente a diversificação para o setor de turismo, para além de uma
escala ampla de operações e oferta de serviços, mas especialmente nas atividades em
escala reduzida que se tornariam mais sustentáveis e dialógicas com as tradições e
com o modo de viver e as condições das comunidades no qual esse tipo de serviço
estaria. Em contrapartida, é observante também considerar a emergência de uma
competitividade entre as muitas pequenas empresas que ofereceriam serviços espe-
cializados neste setor, favorecendo com isso, para uma deterioração dos recursos
locais em detrimento da atenção dos desejos e serviços dos seus usuários.
Outro aspecto considerado relevante desse tipo de turismo se desenvolveu com
as estratégias e políticas produzidas e fomentados por grupos indígenas e rurais,
que na tentativa de manutenção das suas tradições, estabeleceram um processo de
preservação de seus territórios ancestrais e, portanto, o fortalecimento de dinâmicas
próprias de cada comunidade. Em compensação, as corporações ligadas aos planos
de desenvolvimento, metabolismo reproduzido por uma lógica de exploração dos
TRANSCICLOPÉDIA EM DIFUSÃO DO CONHECIMENTO 795

recursos naturais de forma a violar o direito à propriedade dos povos naturais des-
sas comunidades vinculadas às identidades indígenas estão sempre presentes nos
territórios onde atuam. A tentativa é permitir que haja um processo de formação e
organização das comunidades sem oferecer um risco à organização e à sua convivência
enquanto grupos humanos que ao longo da história se constituiu estabelecer regras
de condições de existência naquela região (MALDONADO, 2009).
As abordagens que compreendem o Turismo de Base Comunitária – TBC, têm
uma relação estreita com aspectos socioeconômicos de valorização das comunidades,
a partir da implantação de roteiros turísticos, organizados, geridos e desenvolvido
por elas mesmas, em suas localidades. A experiência de valorização desta forma de
turismo, pode apoiar mecanismos de geração e complementação de renda, o que é
de emergente necessidade para as comunidades de baixa renda.
O conceito de Turismo de Base Comunitária, erige de um processo de reflexão e
crítica sobre o conceito clássico e, em certos aspectos, reduzido do campo de turismo
convencional, principalmente no aspecto econômico, exclusivamente desenvolvido e
orientado para atender o mercado de interesse de multinacionais, numa perspectiva
de exploração do turismo nacional e internacional sem considerar os atores envol-
vidos no processo. Doravante, entende-se que o TBC pode favorecer uma lógica de
turismo que não se apropria apenas de uma comunidade, para estabelecer apenas
relações de entretenimento, lazer e exploração econômica, mas sobretudo numa
relação e interação com espaço público que suporte as trocas interculturais, sem
ter como mote a destruição do patrimônio cultural e natural daquela comunidade.
Com efeito, a perspectiva exclusivamente capitalista que desapropria a comunidade
dela mesma, propõe uma lógica que gera consequências negativas na medida em que
a presença turística economicista, desagrega e altera negativamente a histórias das
relações socioculturais, econômicas e ambientais, bem como pode promover tensões
e conflitos que envolvem as comunidades, os turistas e visitantes.
Decerto que o desenvolvimento pensado na ótica capitalista, traz consigo
um processo de consolidação da exclusão social e da destruição dos patrimônios
culturais locais, que expressam o modo de existir social, histórico, cultural e am-
biental de determinadas comunidades. Neste sentido a turistificação dos lugares não
está, necessariamente, articulada com o desenvolvimento de oportunidade para as
comunidades que receberam os serviços e os sujeitos sociais, desestruturando com
isto, o princípio do desenvolvimento local. É neste sentido que pensar a prática do
TBC é considerar uma relação que promova uma ecossustentabilidade na medida
em que permite a efetiva proteção e manutenção dos recursos naturais, fugindo da
796 TRANSCICLOPÉDIA EM DIFUSÃO DO CONHECIMENTO

lógica de exploração e destruição para meramente fins mercadológicos. Defende-se


a democratização das oportunidades e benefícios promovidos por uma rede de ser-
viços no qual a protagonização dos mesmos se desenvolve pela comunidade local.
Por consequência, a comunidade é responsável por participar e colaborar para o
desenvolvimento turístico sustentável, a identificação dos serviços a serem oferecidos,
a partir da identificação de seus próprios potenciais. Outro fato existente é expresso
na capacidade de orientação para conservação e valorização do meio ambiente e
as possibilidades de gestão de uma socioeconomia possível e comprometida com a
superação da pobreza e da miséria.
Por quanto, a comunidade se constitui como um amálgama de princípios e
valores que manifestam uma organização e um modo de viver próprio de determinado
grupo humano a partir de uma perspectiva de um sistema formado por práticas que
se relacionam com os fatores internos e externos, e por conseguinte, essa interação
colabora com a promoção de uma identidade histórica que ao mesmo tempo carac-
teriza a sua singularidade, diferenciando-a das demais outras comunidades, bem
como pode sinalizar para identificá-la em uma dimensão mais ampla.
Isso posto, é percebe-se que quando se trata de debater a finalidade do TBC, fica
expressa a noção que não é um segmento ou tipologia turística, como alguns autores
consideram, mas sobretudo em uma construção alternativa que valoriza a dimensão
sociocultural de estímulos e trocas mediante o protagonismo dos moradores, tendo
em vista a melhoria das condições de existência e a superação das desigualdades na
população receptora, para o bem-estar local. (HALLACK, BURGOS, CARNEI-
RO, 2011, p. 10).
O TBC, segundo esses autores, sugere-se os princípios de autogestão, coope-
rativismo, democratização de oportunidades e benefícios, valorização da cultura
local, protagonismo das comunidades, oferta de bens e serviços produzidos pela
própria comunidade, parceria e participação, valorização da memória local. O TBC,
apresenta um panorama acerca das relações produzidas pelo turismo e a partir dele,
pautadas na dimensão de valorização dos contextos diversificados e plurais das co-
munidades, sejam urbanas ou rurais, bem na valorização dos aspectos socioculturais
produzidos por práticas criadas pelas populações tradicionais, em vista da superação
de processos de exclusão e marginalização socioeconômica que incidem sobre o
comunitário, e o popular.
De acordo com Hallack, Burgos e Carneiro (2011) e mais, corroborando com
Alves (2013), identifica-se princípios que orientam o turismo de base comunitária
— autogestão, associativismo, cooperativismo, bem como a democratização de
TRANSCICLOPÉDIA EM DIFUSÃO DO CONHECIMENTO 797

oportunidades e condições, a centralidade das condições de colaboração e parceria,


na valorização da história e cultura local, o protagonismo das comunidades locais
na gestão e participação da oferta dos serviços turísticos bem como apropriação de
todo processo de produção, desenvolvimento e gestão desta atividade.
Os mesmos autores, tratam de discutir os objetivos desse tipo de atividade, que
são a qualificação e posse da comunidade no planejamento e na gestão do turismo
a ser desenvolvido na sua localidade; a conservação dos recursos naturais, enquanto
relação sustentável impositiva na conservação dos recursos naturais e culturais; a
relação dos benefícios econômicos e sociais, gerados pela participação e cooperação,
economia solidária aplicada a partir dos projetos de fomento dos serviços turísticos
locais; e, por fim, a dimensão da recepção, enquanto compromisso da comunidade
em proporcionar experiências para o visitante ao tempo em que realizam uma cons-
cientização para o compromisso e a responsabilidade social, cultural e ambiental.
(HALLACK, BURGOS, CARNEIRO, 2011).
O TBC é, então, uma prática oriunda das comunidades, visando a interação e
integração entre seus pares, que de algum modo favorece o fortalecimento e valoriza-
ção dos legados históricos, culturais e de tecnologias sociais. Apresenta-se como uma
alternativa econômica e intercultural, que diverge do desenvolvimento do turismo
convencional, ainda em vigor, que se pauta na exploração e mercadização da natureza,
dos patrimônios histórico e cultural das comunidades receptoras (SILVA, 2014).
As iniciativas de Turismo de Base Comunitária — TBC e ou Turismo Comu-
nitário – TC, são, relativamente, recentes. Por conta da divergência de concepções e
práticas no seu fazer, posiciona-se aqui, diferenciando TBC de TC. De acordo com
Irving (2009), o TBC é uma modalidade de turismo que busca desenvolver o local
de maneira sustentável, respeitando os costumes da comunidade receptora, a sua
cultura, os modos de vida, sua identidade e, sobretudo, concebendo a comunidade
enquanto protagonista nos bens e serviços gerados, por meio de rede e autogestão,
solidária, coletiva e colaborativa.
E seu conceito, amplia-se com as contribuições de Silva et al (2012):
[...] uma forma de planejamento, organização, autogestão e controle partici-
pativo, colaborativo, cooperativo e solidário da atividade turística por parte
das comunidades, que deverão estar articuladas e em diálogo com os setores
público e privado, do terceiro setor e outros elos da cadeia produtiva do
turismo, primando pelo benefício social, cultural, ambiental, econômico e
político das próprias comunidades (SILVA et al 2012, p.11).
798 TRANSCICLOPÉDIA EM DIFUSÃO DO CONHECIMENTO

Tal concepção, norteia as práticas que vêm sendo desenvolvidas pela equipe
do projeto TBC Cabula, da Universidade do Estado da Bahia – UNEB, que con-
templa os seguintes aspectos, no processo de implementação do TBC: defende que
um processo de implementação do TBC precisa considerar os seguintes aspectos:
a] identificação, pelas comunidades, do potencial cultural, ambiental, social,
tecnológico, político e econômico dos contextos onde habitam; b] o desejo
de perpetuação das heranças e legados dos seus antepassados como hospita-
lidade, crenças, valores, saberes, sabores e fazeres; c] na valorização de suas
práticas; d] na ampliação de suas rendas por meio de produção associada; e]
na participação popular por meio de comitês, câmaras, comissões, associações,
centros comunitários, fóruns, conselhos, cooperativas, sindicatos, entidades
de classe, organizações não-governamentais, fundações, institutos e outras, em
plenárias, conferências, audiências públicas, reuniões sobre temas correlatos às
necessidades das comunidades como saúde, educação, saneamento, transporte,
por exemplo, e à atividade turística como infraestrutura, serviços, legislação,
orçamentos; e f ] na busca de melhoria de condições de vida (SILVA, 2014, p.10).

O TBC é uma forma de organização e articulação que envolve a comunidade


no intuito de promover um turismo local, seja ele urbano ou rural, de modo a reco-
nhecer o protagonismo dos atores que são a base dele, que são os moradores da região
em que ele será inserido. É a partir das ações coletivas produzidas no trabalho em
comunidade, que é possível construir a cadeia socioprodutiva que deverá se basear
na solidariedade, no associativismo e cooperativismo enquanto base primordial
para o desenvolvimento local e ou regional em diálogo com instituições públicas
e privadas e do terceiro setor de modo a construir pontes de superação da pobreza
e desenvolvimento cultural social ambiental e econômico criado em colaboração
com a comunidade.
A base de estruturação do TBC deve ser a própria comunidade, legitimadora
das ações que deverão se desenvolver em parceria com outros órgãos e parceiros,
de modo a atender o benefício direto de suas bases comunitárias. Outro aspecto
importante deve estar na consideração dos aspectos identitários e culturais existentes
enquanto elementos de reconhecimento destas comunidades de modo a partir do
lugar de contexto e do diálogo com os protagonistas, para se pensar ações concretas
e consistente que beneficiem a todos a partir da dimensão solidária.
Para Silva, Matta e Sá (2016), a diferença entre turismo de base comunitária
e o turismo convencional, detalhada no Quadro 1, a seguir, enquanto o primeiro
defende que o protagonista da gestão do turismo é a comunidade, que por sua vez, se
torna engajado e responsável por todo o processo de gestão e planejamento, também
TRANSCICLOPÉDIA EM DIFUSÃO DO CONHECIMENTO 799

da participação nos lucros obtidos, enquanto construído coletivamente a partir da


valorização das realidades e suas diversidades locais. E o segundo, está vinculado
predominantemente às atividades capitalistas, vinculadas às questões econômicas
planejadas e organizadas para fins de crescimento e acumulação de capital de um
determinado grupo em detrimento das condições ambientais que a preservação dos
meios materiais e imateriais de uma comunidade.

Quadro 1 – Características do Turismo de Base Comunitária e do Turismo


Convencional.
Turismo de Base Comunitária Turismo Convencional
Baseado no compartilhamento dos ganhos Baseado no lucro dos empresários.
entre sujeitos da comunidade.
Capital social, relação de confiança e Capital proveniente do mercado, relação de
transparência. oferta e demanda.
A cultura e o meio ambiente como base fun- A cultura e o meio ambiente como mer-
dante da organização do turismo. cadoria, produto, atrativo, atração,
descaracterizando-as.
Valorização da identidade local. Uniformização de culturas.
Organização em rede, coletiva, cooperativa, Organização setorial, individualizada, compe-
participativa, solidária, compartilhada. titiva, empresarial, centralizada.
Tem como fim a troca de experiências, de Tem como fim o consumo, compra e venda de
saberes e artesanatos manufaturados. produtos industrializados, ou não.
Singularizado, o humano, o ser. Massificado, o consumidor, o ter.
Princípio na economia solidária, no comércio Princípio no mercado, na competição.
justo.
Auto-gestão. Gestão departamentalizada, fragmentada.
Protagonismo das comunidades no processo de Alijamento das comunidades no processo de
desenvolvimento do turismo. desenvolvimento do turismo.
Trabalho. Emprego, expropriação e precarização do tra-
balho, e exploração de mão-de-obra.
Conscientização. Alienação.
Grupos marginalizados, politizados, classes Grupos detentores do capital, do poder, classes
populares. dominantes, membros de elites.
Foco no desenvolvimento local sustentável do Foco no crescimento econômico, especulação
território. imobiliária.
Apoderamento e empoderamento comunitário. Apropriação privada, propriedade.
Espaço para organizações populares e inicia- Espaço para cadeias e redes internacionais,
tivas comerciais tradicionais formais e infor- empreendimentos formais, de médio e grande
mais como quitandeiros, feiras populares, por porte como complexos hoteleiros, shoppings
exemplo. centers, por exemplo.
Bem-estar coletivo. Bem-estar individual.
Fonte: Silva (2014).
800 TRANSCICLOPÉDIA EM DIFUSÃO DO CONHECIMENTO

Em detrimento de noções distorcidas que, por sua vez, geram ações equivocadas
e prejudiciais para as comunidades, fez-se necessária a distinção também entre turismo
de base comunitária e turismo comunitário. No Quadro 2, apresenta-se esta diferença.

Quadro 2 – Diferenciação entre Turismo de Base Comunitária e Turismo


Comunitário.
Turismo de Base Comunitária Turismo Comunitário
Modo de organização e gestão. Segmento, tipologia ou modalidade.
Organizado pela comunidade em rede inter- Vivenciado pelo turista e ou visitante em diálo-
dependente, por meio de relações solidárias go com sujeitos das comunidades.
baseadas na confiança.
Valorização da cultura, respeito e conservação Imersão no cotidiano das comunidades, apre-
do meio ambiente. ciando, compreendendo e valorizando a cultu-
ra e o modo de ser e viver.
Abertura para troca de saberes e práticas, hos- Participação, voluntariado, intercâmbio
pitalidade, acolhimento. cultural.
Oferta de serviços e produtos disponíveis na Usufrui de coisas novas, diferentes do conheci-
localidade. do como a comida caseira, por exemplo.
Valorização e fortalecimento das feiras livres, Interesse no popular, original, singular e
mercados populares, grupos culturais, associa- plural.
ções e outras expressões.
Fonte: Silva (2014).

Segundo Rita Cruz (2007) o turismo é uma prática social e atividade econômica,
ou prática geradora de atividade econômica e que concorre, no cotidiano, na repro-
dução da vida nos lugares, com outras práticas socais e outras atividade econômicas,
podendo, portanto, ser um vetor de desenvolvimento para o município. Para Sansolo
(2009) o Turismo de Base Comunitária traz os espaços de encontro: os encontros ou
convivências são o que entendemos por espaços onde os comunitários compartilham
em seu cotidiano o lazer, a religiosidade, o ócio, a política e o esporte, dentre outras
atividades. São os espaços livres que se estabelecem as relações interpessoais.
Outro aspecto relevante, quando se pensa em TBC, é numa perspectiva da
economia solidária, enquanto uma experiência sobre a distribuição de renda, de
forma crítica é contrária ao modo de produção capitalista. A economia solidária, em
tese, deve produzir uma valorização dos trabalhadores, principalmente em seu senso
coletivo, na medida em que evidencia o caráter tradicional do trabalho, quando os
antigos trabalhadores dominavam todo seu processo de confecção de determinados
manufaturados, em contrapartida ao modo capitalista que desloca o trabalhador
de todo processo produtivo. Evidencia-se de forma crítica, o modo através do qual,
TRANSCICLOPÉDIA EM DIFUSÃO DO CONHECIMENTO 801

a tecnologização do trabalho, no processo de automação na história da Revolução


Industrial e da transformação do modo de produção, criou condições de salubridade
desumanas como as péssimas condições de salário e a carência de outros recursos.
Neste sentido, a economia solidária, enquanto parte da produção sócio-cultural
humana, se apoia no processo produtivo de modo que a organização desta produção
se desenvolva de modo democrático e autogestionário.
Quando se trata de discutir conceitos que se tornam importantes para a com-
preensão do fenômeno do turismo de base comunitária é importante situar que se
estabelece um processo alternativo ao vigente, ao tratar do desenvolvimento local, na
medida em que possibilita a criação de soluções pensadas em colaboração pela comu-
nidade, tendo como foco principal a solidariedade, o compromisso com a superação
da desigualdade e, principalmente, o compartilhamento dos lucros e da renda de
forma equitativa. Contrariando a economia vigente de base capitalista e excludente,
este tipo de alternativa de produção de renda, de forma criativa e comunitária, se
apresenta como uma solução viável para a dimensão existencial, principalmente
os aspectos socioeconômicos e culturais na medida em que fomenta a criatividade
vinculada a ações que desenvolvam a produção de bens e serviços culturais de forma
colaborativa e ou cooperada.
O cooperativismo é outro princípio que pode atuar como elemento importante
para o desenvolvimento das ações que envolvem o TBC, a medida em que sustenta
modelos de interação comprometido diretamente com a colaboração e a tomada de
decisões de base coletiva. O cooperativismo é uma ação que pode ser desenvolvida
por grupos multidisciplinares em torno de uma meta ou solução que se organizam
junto com a comunidade para efetivá-la, uma vez que é identificada as demandas
levantadas por ela e em conjunto construindo soluções (ROCHA, 2013).
Nesse sentido, o TBC, enquanto alternativa para a economia vigente, revela
que quando os trabalhadores têm a posse dos meios de produção, isto permite a
concretização de práticas que permitam uma distribuição mais igualitária dos resul-
tados econômicos. Quando se trata de pensar o processo da economia solidária no
Brasil, é necessário localizar o Fórum Brasileiro de Economia Solidária, que teve no
Fórum Social Mundial em 2001, enquanto parte de um grupo de trabalho que se
apoiou na convergência de alguns princípios como valorização social do trabalho, a
utilização criativa da tecnologia para atender às necessidades humanas, uma relação
intercambiar respeitosa com a natureza, a cooperação e a solidariedade, enquanto
medida de comportamento de produção dos trabalhadores que constrói suas relações
para além da desumanização vigente na economia capitalista.
802 TRANSCICLOPÉDIA EM DIFUSÃO DO CONHECIMENTO

Nesse sentido TBC atua enquanto uma catalisadora de base acadêmica com
a intensa mobilização para gerar organizações autogestionários e educacionalmente
formativos, no sentido de valorizar a cooperação e a contribuição das comunida-
des, enquanto parte do processo de reconstrução social no qual os sujeitos sejam
valorizados em suas potências coletivas, ou seja na capacidade de se relacionarem
com a territorialidade, a sociabilidade e a fortalecimento de vínculos socioculturais
e afetivos de base local.
O TBC, é uma abordagem social que busca democratizar a participação da
comunidade em todo processo de produção, na medida em que altera a norma lógica
do mercado, dos donos do capital, quando tenta ampliar o exclusivismo sobre a parti-
cipação do lucro apenas para conglomerados econômicos. No entanto, a organização
do nesta perspectiva, firma e valoriza o protagonismo histórico e a memória dos
sujeitos em suas comunidades que em sua própria trajetória foram marginalizados.
Quanto aos aspectos relevantes se dá na valorização das atividades turísticas no
âmbito do cotidiano dos grupos sociais. Diga-se, o TBC traz uma abordagem que
tem força em escala mundial, nacional, estadual e municipal, tanto nos âmbitos de
sua implementação em espaços rurais e ou urbanos.
O TBC oferece a partir do desenvolvimento local, a valorização da cultura
de identidade histórica e cultural, valorizando os modos de vida, respeitando as
dimensões de uma sociedade em seus aspectos sociais, culturais e ambientais. Esta
abordagem pressupõe que atividade turística desenvolve o local de forma sustentável,
respeitando-se os costumes da população receptora mediante a valorização da forma
como ela se constitui. (ALVES, 2013)

REFERÊNCIAS
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abordagens conceituais.

ALVES, Andrea. SANTOS, Andréa Cristina Serravale do. Turismo de Base


Comunitária e Tecnologias Educativas. In: SILVA, Francisca de Paula Santos da
(Org.): Turismo de base comunitária e cooperativismo: articulando pesquisa e
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HALLACK, Nathália; BURGOS, Andrés; CARNEIRO, Daniela Maria


Rocco. Turismo de base comunitária: estado da arte e experiências brasileiras.
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IRVING, Marta. Reinventando a reflexão sobre turismo de base comunitária:


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ROCHA, José Cláudio. Associativismo, Cooperativismo e Economia Solidária:


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sustentável.

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e entorno. Promoção e Progressão na Carreira do Magistério Superior de Titular
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Região do Cabula e entorno: processo de incubação de operadora de receptivos
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804 TRANSCICLOPÉDIA EM DIFUSÃO DO CONHECIMENTO

SILVA, Francisca de Paula Santos da et al. Cartilha (in) formativa sobre Turismo
de Base Comunitária “O ABC do TBC”. Salvador: Eduneb, 2012.

SOUZA. Ivana Carolina Alves da Silva. Design Cognitivo Colaborativo


para Ambientes Virtuais: o caso do Portal TBC Cabula. 225 f. il. 2018. Tese
(Doutorado) – Faculdade de Educação, Universidade Federal da Bahia, Salvador,
2017.

Universidade De Caxias Do Sul, I Semintur Jr. Seminário De Pesquisa Em


Turismo Do Mercosul. Saberes E Fazeres No Turismo: Interfaces: Possibilidades
E Limites Do Turismo De Base Comunitária No Município De Ponta De
Pedras, Ilha Do Marajó – Par Dias, Barriga Sávio. 2010. https://www.ucs.br/
site/midia/arquivos/possibilidades_limites.pdf
V
89. Vigilância

Eledison Sampaio

As variadas definições sobre vigilância dimensionam a complexidade episte-


mológica acerca do tema e sinalizam, por certo, para um debate que está longe do
consenso. Isto não obstante, a vigilância possui sua raiz etimológica ligada à obser-
vação e gestão de comportamentos, portanto, vigiar implica numa prática social e
ideológica que traduz um jogo de forças fluidas e desiguais (LYON, 2010).
Em sua configuração clássica na modernidade, a vigilância exalta o papel do
Estado como instrumento de controle social e violência legítima, tal como bem se
nota nas indicações de Max Weber (1996). O Estado é, pois, uma estrutura de im-
posição soberana da força justamente pela dificuldade natural dos homens gerirem
os seus diferentes desejos que, quando digladiados, conduzem à perversão social da
espécie (HOBBES, 1997).
Com o correr do processo histórico ocidental, o conceito de vigilância foi se
ampliando para além da vigilância estatal, tal como se vê nos conhecidos estudos
de Foucault no Vigiar e Punir (FOUCAULT, 2013). Ou seja, a vigilância passa a
proliferar sobre o tecido social tal como um vírus que fragiliza o sistema imunoló-
gico do corpo. Assim, tem-se a emergência de uma microfísica disciplinar que faz a
vigilância deslizar para todos os ângulos do ambiente citadino. Gary Marx adverte
sobre a progressiva centralidade da vigilância desde os estudos de Foucault:
A vigilância pode servir para fins de proteção, administração, cumprimento de
regras, documentação e de estratégias ao mesmo tempo em que para objetivos
relacionados a manipulação inapropriada, a limitar oportunidades de vida,
ao controle social e à espionagem. [...] Em graus variados, a vigilância é uma
propriedade de qualquer sistema social – seja entre dois amigos, num local
de trabalho ou num governo. (Marx, 2007: 535).

Em vista de tais palavras, havemos de nos perguntar: o caráter ontológico


atribuído à vigilância faz dela um conceito neutro? Ou ainda: entender a vigilância
como um conceito neutro significa colocar seus efeitos positivos e negativos num
mesmo plano categórico?
Como alegado nos primórdios do texto, não há consenso quanto ao con-
ceito de vigilância. Autores contemporâneos defendem um conceito negativo da
vigilância, a despeito de outros que a abordam com uma certa neutralidade. Uma
808 TRANSCICLOPÉDIA EM DIFUSÃO DO CONHECIMENTO

suposta neutralidade se justificaria por alguns fatores práticos em que as imagens


gravadas servem para fins de segurança e operacionalização da Justiça Criminal.
Giddens define vigilância como “a codificação de informações importantes para a
administração de uma população de sujeitos no interior de uma dada sociedade”
(1981, p. 169).
Em linhas gerais, pesquisadores calcados em Foucault (2013) acreditam que
esse enfoque conceitual se apresenta muito otimista e por isso mesmo problemático,
pois parece desmerecer ou encobrir o caráter eminentemente político ligado ao ato
de vigiar e as consequências daí decorrentes.
A abordagem de Giddens traz a vigilância como diretamente interligada ao
processo de produção da informação; como algo natural e existente em todas as
sociedades, como um dispositivo necessário para o gerenciamento do Estado sobre
a população.
Em outros termos, “os conceitos associados a uma vigilância neutra enten-
dem-na como uma categoria ontológica, vista como sendo válida universalmente e
como algo característico de todas as sociedades ou de todas as sociedades modernas”
(FUCHS, 2011, p. 112).
Por ser tanto facilitadora quanto constrangedora e por constituir uma ca-
tegoria ontológica de todas as sociedades, a vigilância se legitimaria sem grandes
controvérsias. Para Fuchs (2011), seguir essa linha de raciocínio repercute em pensar
numa abordagem neutra da vigilância; concepção essa que, para o autor, parte dos
seguintes pressupostos:
Há aspectos positivos na vigilância; A vigilância tem dois lados, é facilitadora
e constrangedora; A vigilância é uma faceta fundamental em qualquer socie-
dade. A vigilância é necessária como forma de organização; Qualquer tipo
de recuperação sistemática de informações é um tipo de vigilância (FUCHS,
2011, p. 112).

Outros analistas, a exemplo de Bogard (2006), defendem que os estudos de


Foucault sobre vigilância precisam ser trazidos para a atualidade com as devidas
adaptações. A argumentação do último poderia levar a uma ideia de que a vigilância
disciplinar contaria com um poder vigilante central, mas, ao revés disso, a vigilân-
cia contemporânea se nos apresenta de forma mais complexa, mais heterogênea e
descentralizada:
Certamente, a vigilância hoje é mais descentralizada, menos sujeita a restrições
espaciais e temporais (localização, horário do dia, etc.), e menos dirigida do
que nunca pelos dualismos entre observador e observado, sujeito e objeto,
TRANSCICLOPÉDIA EM DIFUSÃO DO CONHECIMENTO 809

indivíduo e massa. O sistema de controle é desterritorializante (BOGARD,


2006, p. 102).

Cumpre ressaltar que o caráter complexo da vigilância contemporânea não


deve, ao menos não sem cinca, ser observado como uma despolitização acerca do
fenômeno. Isso faz com que enxerguemos as aporias de uma conceituação negativa,
com uma matriz crítica a respeito da vigilância, considerando as forças de poder
reinantes na era do capitalismo selvagem. Por consequente, Fuchs (2011) considera
uma conceituação negativa de vigilância pode ser definida como uma tomada de
análise em que assimetrias e desigualdades são criadas e aperfeiçoadas, tornando o
capitalismo crucial em seu ímpeto de colonização das subjetividades.
Vejamos as justificativas para tal entendimento:
Um conceito negativo de vigilância aponta para um aspecto negativo das
estruturas de poder, das sociedades contemporâneas e das sociedades hete-
rônomas. A maneira como se apropria da noção de vigilância denuncia e
sinaliza a existência de sociedades dominantes e dominadas. Dessa forma,
aponta para um caminho de emancipação e de uma sociedade sem domi-
nantes, que é concebida como sendo uma sociedade também sem vigilância.
Numa teorização negativa, a vigilância é um conceito que está inerentemente
ligado à coleta de informações para propósitos de dominação, violências e de
coerção e, assim sendo, ao mesmo tempo acusa tais estados da sociedade e faz
exigências políticas tendo em vista uma sociedade participativa, cooperativa e
sem dominação. Esta não é apenas uma sociedade em que formas cooperadas
de produção e de propriedade substituem classes sociais e a exploração da
mais valia, mas também sociedades em que o cuidado e a solidariedade – em
resumo: o socialismo democrático – substitui a vigilância. Um conceito neutro
de vigilância é um desserviço para uma teoria crítica da vigilância, que torna a
crítica mais difícil e pode acabar fundamentando a valorização e a normatização
ideológica da vigilância (FUCHS, 2011, p. 115-116).

Tal modo de pensar, como se percebe, associa a vigilância à violência e apologiza,


claramente, a necessidade de emergência de uma sociedade elaborada eticamente
e fundada em pressupostos de solidariedade e cuidado. Poder-se-ia considerar um
posicionamento por demais utópico, mas, por outro lado, nada obsta pensar que
se trata de uma interessante estratégia reflexiva, capaz de estabelecer um corte
epistemológico cujas bases negam a noção corrente da vigilância como uma prática
despolitizada (BRUNO, 2013).
De todo modo, uma definição crítica da vigilância acaba por esbarrar numa
sociedade que naturaliza e legitima práticas de controle como jamais visto antes.
Isso faz com que a vigilância e seu correlato, a punição, sejam constantemente
810 TRANSCICLOPÉDIA EM DIFUSÃO DO CONHECIMENTO

demandados pela população fragilizada através da lógica da solidão organizada pelo


medo (ZALUAR, 2002).
Não à toa, fala-se constantemente em vigilância participativa (PASSETTI,
2004), em que o cidadão é estimulado e convocado a participar como uma exten-
são dos olhos do Estado, do Capital, e, enfim, como um trabalhador que realiza
gratuitamente o marketing necessário para a satisfação dos interesses das grandes
corporações informacionais. Gary Marx esclarece em duas passagens, ressaltando
um efeito da vigilância como movimento que emerge de dentro para fora e vice versa:
Com frequência, a autovigilância se ativa automaticamente. Nós nos tornamos,
a um grau sem precedentes, os conspiradores de nossa própria vigilância – seja
na condição de trabalho, no deslocamento do avião, nas prestações sociais, nas
compras de consumo ou nas chamadas telefônicas. Nós parecemos cada vez
mais prontos, ou mesmo impacientes, para oferecer informações pessoais e
de nos submeter à autoinvestigação graças às vantagens que imaginamos tirar
disso (GARY MARX, 2010, p. 155).
É pouco prático e muito custoso ao Estado vigiar todo o mundo constan-
temente. É muito mais eficaz captar a atenção do público por meio de um
estímulo que transmite mensagens diretas e indiretas sobre a conduta correta
a seguir, acompanhadas de contos morais sobre a sorte dos que se afastam do
caminho (correto). (GARY MARX, 2010, p. 157).

Diante disso, uma outra faceta da vigilância se faz vinculada ao debate, dando
a entender que cidades informatizadas funcionam como dispositivos de conexão e
explosão dos sentidos.
Ora vemo-nos compelidos ao registro de todos os fatos, próprios e alheios,
outrora, somos retirados de nós mesmos pela força inversa daquilo que nos convida,
perpassa e ultrapassa. O local e o global embrenham-se de tal forma que a Geografia
clássica se distancia dos limites antes ensinados; outrossim, a fluidez que habita nesse
processo extrapola a rotina do relógio.
Vigiados e vigilantes de nós mesmos, percebemos no estado atual das coisas
que a vigilância “tenta fazer florescer ou evitar certos comportamentos de grupos ou
indivíduos reunindo, armazenando, processando, difundindo, avaliando e usando
informação sobre seres humanos de forma que a violência física, ideológica ou es-
trutural, potencial ou real, pode ser direcionada aos humanos de forma a influenciar
seu comportamento” (FUCHS, 2011, p. 129).
Em razão do aqui exposto, entendemos necessário pensar a vigilância por um
viés crítico, que não só observe o contexto micropolítico em que cada prática seja
manejada para fins variados, mas que atribua à vigilância uma dimensão crítica, pois,
TRANSCICLOPÉDIA EM DIFUSÃO DO CONHECIMENTO 811

se tudo é vigilância, como certa compreensão ampliada em demasia quer convencer,


fica difícil dizer o que ela não é; muitas vezes justificando os efeitos negativos em
nome de alguns positivos. Entretanto, isso não implica necessariamente em ceder aos
essencialismos dualistas, mas em tratar a complexidade do fenômeno como expressão
da fluidez do poder em sociedades marcadas pelo conhecimento, pela informação,
pelo controle e pela vigilância.
Mas, para não encerrar o debate de forma catastrófica, deixemos uma música
da lavra do cantor Tom Zé:

Todos Os Olhos
Tom Zé

De vez em quando todos os olhos se voltam pra mim, de lá de dentro da escuridão,


esperando e querendo que eu seja um herói.
Mas eu sou inocente, eu sou inocente, eu sou inocente.
De vez em quando todos os olhos se voltam pra mim, de lá do fundo da escuridão
esperando e querendo que eu saiba.
Mas eu não sei de nada, eu não sei de ná, eu não sei de ná.
De vez em quando todos os olhos se voltam pra mim, de lá do fundo da escuridão
esperando que eu seja um deus
querendo apanhar, querendo que eu bata, querendo que eu seja um Deus.
Mas eu não tenho chicote, eu não tenho chicote, eu não tenho chicó.
Mas eu sou até fraco, eu sou até fraco, eu sou até fraco.

REFERÊNCIAS
BOGARD, William. Surveillance assemblage and lines of flight. In: Theorizing
surveillance, ed. David Lyon, 97-122. Portland, OR: Willan, 2006.

BRUNO, Fernanda. Máquinas de ver, modos de ser: vigilância, tecnologia e


subjetividade. Porto Alegre: Sulina, 2013, 190 p. (Coleção Cibercultura).

HOBBES, Thomas. Das coisas que enfraquecem ou levam à dissolução de um


Estado.

HOBBES, Thomas. Leviatã ou matéria, forma e poder de um estado


eclesiástico e civil. Tradução de João Paulo Monteiro e Maria Beatriz Nizza da
Silva. São Paulo: Editora Nova Cultural, 1997. p. 243-250.

FOUCAULT, Michel. Vigiar e punir. História da violência nas prisões 41. ed.
Petrópolis: Vozes, 2013.
812 TRANSCICLOPÉDIA EM DIFUSÃO DO CONHECIMENTO

FUCHS, Christian. Como podemos definir vigilância? Matriz, São Paulo, Jul-
dez, 109-136.

GIDDENS, Anthony. A contemporary critique of historical materialism. Vol.


1: power, property and the state. London: Macmillan. 1981.

LYON, David. Vigilância e Visibilidade: espaço, tecnologia e identificação.


In: LYON, D. 11 de setembro, sinóptico e escopofilia: observando e sendo
observado. Porto Alegre: Sulina, 2010. p. 115-140.

MARX, Gary T. Surveillance. In: ENCYCLOPEDIA OF PRIVACY. (ed.).


STAPLES, William G. 535-544. Westport, CN: Greenwood Press. 2007.

MARX, Gary. A sociedade de segurança máxima. Revista Plural do Programa


de Pós-Graduação em Sociologia da Us. Tradução de Adriana Loche, 2010, p.
145-174.

PASSETTI, Edson. Segurança, confiança e tolerância: comandos da sociedade


de controle. São Paulo em Perspectiva, 18(1): 151-160, 2004.

ZALUAR, Alba. Oito temas para debate: Violência e segurança pública.


Sociologia, Problemas e Práticas, nº 38, 2002, p. 19-24.

WEBER, MAX. A Ética Protestante e o Espírito do Capitalismo. São Paulo:


Pioneira, 1996.
90. Visão de Mundo

Jaildon Jorge Amorim Góes


Dante Augusto Galeffi

A visão de mundo ou cosmovisão é um conceito bastante complexo e muitas


vezes confuso de ser definido. É um termo muito utilizado pela filosofia e de forma
muito diferente, por outras áreas do conhecimento.
Etimologicamente, a palavra “visão”, vem do latim “visio — onis” ou “visionem”
que significa ato ou efeito de ver; o sentido da vista; percepção das possibilidades e
dos significados de cada coisa; percepção pelo órgão da vista. Já a palavra “mundo”,
vem do latim “mundum, mundus, -i”, que significa conjunto dos corpos celestes,
firmamento, universo, a totalidade das coisas criadas.
Costuma-se chamar de visão de mundo, a perspectiva, opinião ou o ponto de
vista que elaboramos sobre as coisas/acontecimentos, situações, histórias, pessoas, ou
seja, é a maneira como um indivíduo ou as pessoas de uma determinada sociedade
enxergam, olham, veem ou visualizam o mundo, buscando perceber a totalidade
dos acontecimentos, em um dado momento da história. Para Torres (2005, p. 00)
visão de mundo é:
Uma janela conceitual, através da qual nós percebemos e interpretamos o mundo,
tanto para compreendê-lo como para transformá-lo. Esta janela funciona como
uma espécie de lente cultural, na construção da qual os ingredientes incluem
valores, crenças, princípios, premissas, conceitos e enfoques que modelam
nossa percepção da realidade e, portanto, nossas decisões, ações e interações e
todos os aspectos de nossa experiência humana no universo.

Essa janela pelo qual observamos, percebemos e temos a oportunidades de


aprender a ver a realidade do mundo, passa necessariamente pelos aspectos socio-
culturais, além das lentes históricas, políticas e econômicas. As diversas sociedades
sempre modelaram suas percepções reais, ideais ou possíveis da realidade em torno
de paradigmas que promovessem inicialmente pela ética, diálogo, cuidado, alteri-
dade, empatia e respeito à diversidade. Mas nem sempre estas construções se deram
desta forma, muitas crises sem precedentes aconteceram na história da humanidade,
a partir dos paradigmas da violência, destruição, homogeneidade, fragmentação,
miséria, ignorância, estupidez e desumanidade.
814 TRANSCICLOPÉDIA EM DIFUSÃO DO CONHECIMENTO

Importante lembrar que o modelo de visão de mundo que influenciou o


imaginário de boa parte da Humanidade, centrou-se a partir da cultura ocidental,
no passado pela europeia e mais atualmente pela estadunidense. Outras relevantes
culturas e suas cosmovisões foram silenciadas, dominadas ou sofreram tentativas
de aniquilamento, como as culturas indígena e a africana, que foram (e ainda são)
estruturadas em uma cosmovisão inclusiva, dinâmica, ancestral, espiralar e de va-
lorização da natureza e da vida.
Para compreendermos a realidade, a partir de uma visão de mundo, a capa-
cidade de observação é o meio que nos permite percebê-la em seu fragmento e/ou
em sua totalidade. A partir daí passamos a reconhecer que nossa visão de mundo
formata nossos modelos mentais, através dos quais observamos, sistematizamos,
interpretamos, compreendemos e desenvolvemos sentidos e significados às nossas
próprias experiências e formas de existir no mundo.
Do ponto de vista da construção e difusão dos conhecimentos na perspectiva
ocidental, mediante uma diversidade de possibilidades de observação dos seus aspectos
paradigmáticos e epistemológicos, podemos destacar segundo Torre e Moraes (2004)
alguns paradigmas e conhecimentos que influenciam as nossas as visões de mundo,
do ponto de vista acadêmico (modos específicos de ver e compreender a realidade):
Paradigma Positivista (Cartesiano/Disciplinar): a realidade é concebida de
maneira objetiva, sendo o objeto observado pelo viés do racionalismo científico, leis
físicas, linearidade, fragmentação, monocausalidade, determinismo, reducionismo,
mecanicismo, visão fechada e pelo imediatismo;
Paradigma Interpretativo (Hermenêutico/ Fenomenológico): a realidade
é concebida de maneira subjetiva, sendo observada pelo viés do sujeito a quem se
outorga sentido/significado pessoal ao objeto estudado, ocorre implicação cognitiva
e afetiva e diversas possibilidades de visão e interpretação.
Paradigma Sociocrítico (Marxista/Sociointeracionista): a realidade é concebida
de maneira objetiva e subjetiva, mas na perspectiva concreta, sendo observada pelo
viés crítico do contexto sociocultural, histórico e político.
Paradigma Complexo (Ecossistêmico/Multirreferencial): a realidade é con-
cebida de maneira dinâmica entre os contextos subjetivo/objetivo, sendo observada
pelo viés transdisciplinar, local/global, integrado por fatos, interativo, não linear,
aberto, caótico, fractal, catastrófico, diverso, inacabado, fluído, difuso, (in)certo,
incompleto, em múltiplas conexões entre os componentes de uma mesma realidade.
Esses modos paradigmáticos e epistemológicos dos seres humanos perceberem
a realidade reúnem em si conhecimentos construídos e acumulados em um período
TRANSCICLOPÉDIA EM DIFUSÃO DO CONHECIMENTO 815

histórico em questão interferirão na formação da visão de mundo de todos os seres


humanos.
Alguns fatores contribuem para esta construção, como: a personalidade/caráter
de cada um; a interpretação e compreensão dos valores no ambiente sociocultural
em que vive; a combinação de experiências de vida; a apropriação de conhecimentos;
o repertório cultural acumulado; o desenvolvimento do autoconhecimento e da
autoestima; a investigação das informações/conhecimentos e saberes; a ampliação
da capacidade de observação; os modos de sentir, pensar, refletir, compreender e
ver o mundo de maneira criativa/diferente; ser curioso, ético e lúcido na busca por
conhecimentos; ter discernimento, sensatez, responsabilidade e bom-senso, em
relação ao que é visto, etc.
Na contemporaneidade, vivemos em uma sociedade altamente complexa, mul-
tirreferencial e heterogênea, em todos os níveis existenciais, tanto no pessoal, quanto
no sociocultural (local e global). Neste contexto dinâmico, a construção da(s) nossa(s)
visão(ões) de mundo, não podem se dar de maneira rígida, fechada, estanque, prag-
mática e homogênea, tornando-se necessário diversificar a forma como percebemos/
observamos, construímos, interpretamos, compreendemos e (re)criamos o mundo.
Para compreendermos o que vemos cotidianamente no mundo real e/ou virtual,
seja no nível pessoal e/ou sociocultural (local e global) necessitamos desenvolver
uma visão de mundo mais complexa, aberta, plural, dinâmica, multidimensional,
transdisciplinar, não linear, autônoma, crítica, política criativa, libertária, interativa,
(in)certa, integrada, (de)ordem, auto organizada e emergente.
A maneira como cada visão de mundo é construída tem relação direta com
a maneira que cada indivíduo observa e percebe a realidade, percebendo que não
deve haver separação entre sujeito e objeto, porque estes dois fenômenos existem
relacionalmente. Por isso, compreender a maneira como observamos a realidade do
mundo em sua multi/pluri/polidimensionalidade é um ponto chave. Para Torres e
Mourão (2004, p. 00):
Não há uma única realidade independente do observador, mas múltiplas
realidades e depende de cada um de nós, de nossas estruturas, de nossas ob-
servações, qual realidade será revelada. É um mundo semelhante a um fractal
com milhares de faces nas quais são possíveis múltiplas leituras. Esses aspectos
nos esclarecem que a nossa realidade não é unidimensional, mas multidimen-
sional, o que também, de certa maneira, traduz as diferentes dimensões do
ser humano e da sociedade, as dimensões interiores, as dimensões subjetivas
e intersubjetivas, além da dimensão objetiva, revelando também a natureza
imaginária do ser humano.”
816 TRANSCICLOPÉDIA EM DIFUSÃO DO CONHECIMENTO

Assim, como os seres humanos constroem sua visão de mundo, a partir de


diferentes áreas do conhecimento e de diversos olhares para a solução de seus pro-
blemas, em seu estado de complexidade, Galeffi (2017) sugere que as formações
dos metapontos de vista sejam construídos pela visão própria/apropriada sobre
os acontecimentos, com uma resposta similar ou diferente para um desafio que é
vivenciado, em sua história de vida.
Por conta da diversidade humana e das diversas possibilidades de relações exis-
tentes, a visão de mundo não pode mais ser construída ou compreendida, a partir de
um único ponto de vista/única realidade. A nossa visão, neste contexto, necessita ser
colocada em rede e por diversos pontos de vista (polipontos de vista) Góes (2018).
Para ampliar a visão de mundo, aprendendo a vê-lo de forma aberta, diversi-
ficada e expandida, precisamos compreender de que os acontecimentos cotidianos
sempre acontecem de forma inter-relacional em todos os níveis e no espaço/tempo
complexo e em constante fluxo transformativo.
Para desenvolver uma visão de mundo de maneira mais expandida, lúcida,
justa, sensata, inclusiva crítica e (re)criativa, Paulo Freire (2016) propõe que os
seres humanos, humanizem e transformem a sua visão da realidade, a partir da
“consciência-mundo”, que poderá ser desenvolvida, a partir de uma educação que
oportunize a todos vivenciarem uma “leitura crítica” do mundo para que o “estar
sendo no mundo” seja libertário das forças opressivas e injustas.
Como os sistemas de poder/saber tendem a impor as suas visões de mundo
sobre todas os outros seres humanos, Freire sugere que o desenvolvimento crítico
e consciente da realidade, implica a apreensão da esfera espontânea e ingênua para
uma esfera crítica, investigativa e transformativa.
Ainda para Freire, os seres humanos de vem assumir o seu papel de refazer o
mundo (visão de mundo), criando a sua existência a partir do material cognoscível
e que a vida lhes oferece e de um posicionamento epistemológico.
A partir destes pressupostos freirianos, não podemos abrir mão da consciência
política e crítica, mediante a realidade em que vivemos e enfrentamos, na tentativa
de construção de uma visão de mundo. Entenda a política neste contexto, como a
capacidade dos indivíduos se posicionarem na vida e de propor rupturas, a partir
das próprias visões de mundo, que refletirão de forma consciente, crítica e criativa
nas decisões e escolhas existenciais/vida.
Para começar a romper com as estruturas impositivas das visões de mundo
homogeneizantes, comece saindo da caixinha ou do quadrado e veja tudo ao seu
redor, fora do cercado em que você vive. Observe a realidade em 360 graus, saindo
dos 90 graus, circule os olhos e o direcione para diversas regiões/ territórios.
TRANSCICLOPÉDIA EM DIFUSÃO DO CONHECIMENTO 817

Lembrando que na era digital/virtual e também visual, em que temos que lidar
com o excesso de informações e de imagens; construir conhecimentos e saberes am-
pliados, contextualizados, complexos, compartilhados, interativos, interconectados,
colaborativos e diversos são necessários para que desenvolvamos comportamentos de
alteridade, empatia, equidade, cuidado, inclusão e respeito à diversidade humana e
às diferentes maneiras do ser humano perceber, sentir, pensar, refletir, compreender
às distintas realidades vividas.
Atualmente, não mais necessitamos viajar para conhecer o mundo. Para co-
nhecer as diferentes realidades e expandir os conhecimentos e a visão de mundo,
você nem precisa mais sair do lugar, só precisa viajar nas informações difundidas
nas redes sociais/virtuais (Internet).
Não temos mais como escapar das redes informacionais, enquanto fonte de
busca e construção do conhecimento, só precisamos tomar os devidos cuidados
para não cair em armadilhas (a vida virtual tem suas artimanhas de manipulação e
enganação, assim como a vida real).
Para escapar das possibilidades de manipulação da nossa visão de mundo algumas
orientações são necessárias: leia diversas informações sobre o mesmo assunto; busque
a fonte; identifique, questione, e critique o contexto/o autor; verifique a data de posta-
gem; observe se a mensagem é preconceituosa e desumana (nunca repasse, neste caso);
consulte especialistas do assunto pesquisado; compreenda além do que pode ver etc.
Enfim, neste contexto não podemos nos furtar em desenvolver e ampliar a
nossa a visão do mundo pessoal e sociocultural (local e global), o que precisamos
ficar atentos é se os nossos pontos de vistas são excludentes ou inclusivos (parafra-
seando Paulo Freire). A lógica é que seja sempre construída de maneira responsável,
cuidadosa, respeitosa e humanizada.
Seguindo esse fluxo podemos ainda acrescentar que uma “visão de mundo”,
uma “cosmovisão” é o modo peculiar dos seres humanos perceberem, lerem e inter-
pretarem suas existências concretas no mundo. Querendo ou não, cada ser humano
possui uma visão de mundo condicionada às suas circunstâncias e condições de vida.
Mesmo uma criança possui sua visão das coisas que a afetam em seu existir. É claro
que não tem que ser uma “visão filosófica” ou “científica”, ou mesmo “moral”. É
apenas um estado de percepção já perpassado por uma afetividade fundamental para
se compreender que toda visão de mundo é sempre uma visão singular de mundo.
O termo “visão” é sempre correspondente à “percepção”, e o termo “mundo”
é sempre aquilo que se percebe como intencionalidade construída historicamente e
que diz respeito ao conjunto das coisas existentes no “mundo próprio”. E cada um
818 TRANSCICLOPÉDIA EM DIFUSÃO DO CONHECIMENTO

que se “percebe percebendo” tem o seu “mundo próprio”. E esse “mundo próprio”
reúne tudo aquilo que pode ser percebido, julgado e pensado por cada ser humano
singular, mas que também diz respeito ao que é comum a todos. Pois todos estão
no mundo, e o mundo não é só o ambiente físico, mas também o ambiente social
e o ambiente mental (espiritual). Nesse sentido, todo ser humano já carrega uma
determinada visão de mundo e pode também querer criar novas visões de mundo,
através de sua própria criação humana.
Wilhelm Dilthey (1833-1911) em sua famosa obra “Teoria de la Concepcion
del Mundo” (1945), considera a antinomia entre a pretensão de validade univer-
sal de toda a concepção científica da vida e do mundo e a consciência histórica.
Com isso enfatiza a fundamental diferença entre o comportamento humano e as
generalizações objetivas de uma Ciência da Natureza pretensamente absoluta que
opera com números e cálculos e não com emoções e valores que são próprios da
vida espiritual humana. Neste sentido, há uma radical diferença entre a concretude
da experiência humana histórica e a abstração produzida hoje pela religião dos
dados e números que a tudo reduzem a quantidades e combinações que formam
pacotes de dispositivos de manipulação no campo das virtualidades e suas apli-
cações especulativas.
A importância de trazer à cena um filósofo alemão do sec. XIX é justamente
o abismo que existe entre uma concepção consciente da história atual do mundo da
vida e toda espécie de metafísica envolvida com concepções científicas do mundo
que insistem em negar a inquietante presença das subjetividades humanas fora dos
controles biológicos, biopolíticos e disciplinares. As formas humanas de vida são
100% naturais e 100% culturais. E esta afirmação vem do pensamento de Edgar
Morin, ao considerar a complexidade como aquilo que se tece conjuntamente. Elas
se multiplicaram na mesma intensidade da heterogênese do mundo biológico e
são tantas e tão variadas que por preguiça a razão monológica moderna preferiu
ignorar. Como alguém que insiste em ignorar a tempestade que se anuncia imagi-
nando que uma força objetiva vai resolver o problema. A tempestade chega e ele é
levado junto com ela, para sempre: desaparece na multidão dos ventos e das águas.
Isso aponta para o fato de que todo ser humano partilha de visões de mundo
que são as percepções de sua vida concreta a partir dos dispositivos cognitivos e
afetivos de suas circunstâncias e lócus vital. Essa visão de mundo pode ser ingênua,
dogmática e interrogante. Cada ser humano tem em algum nível visões ingênuas,
dogmáticas e interrogantes, com variações de intensidade e foco de pessoa para
pessoa. De modo geral, as visões ingênuas são persistentes além da vida infantil e
TRANSCICLOPÉDIA EM DIFUSÃO DO CONHECIMENTO 819

da juventude, sendo uma característica também das pessoas criativas inquietas em


relação ao instituído. Sem visões ingênuas não se realiza a singularidade radical de
todo ato criador, seja na arte, na ciência, na filosofia e na mística. Por outro lado,
a visão dogmática parece inicialmente inevitável, quando alguém por esforço e
instrução aprende as normas de uma moral fechada qualquer. Parece que todo ser
humano em algum momento de sua breve vida experimentou ou vai experimentar
uma visão de mundo dogmática. Pois, mesmo o cientista formado pode manter-se
dogmático em sua concepção de mundo, e mesmo o artista pode mostrar traços
de atitudes dogmáticas, e mesmo os místicos e os filósofos podem expressar visões
dogmáticas e demonstrar sua crença nelas.
As formas espirituais de crenças são tantas quantas são as espécies vivas do
planeta em sua rotondidade e finitude. Isto para dizer da variedade de visões de
mundo experimentadas por indivíduos e inteiras sociedades humanas. A questão aqui
diz respeito às formas de visão de mundo em que a atitude investigativa prevalece
acima dos regimes de crenças instituídas e dos dogmas estabelecidos. Pois sem uma
tomada de si na compreensão de sua própria singularidade humana não é imaginável
a saída das formas dogmáticas de visão de mundo. São disputas de poder o que se
vê como conflito de visões de mundo. Por que haveria de existir visões de mundo
certas e visões de mundo erradas?
Entretanto, há ingenuidade e desinformação, o que favorece o engano e a
manipulação das massas humanas alienadas de si, que não aprenderam a ler o
mundo e acreditam no que as vozes instituídas dizem o que é e o que não é o que
é e não é. E tudo o que se pode encontrar como discurso e palavras, léxico e gra-
mática é construção histórica do fazer discursivo humano que se estende a todos
os registros da comunicação, sejam verbais ou não-verbais. Há sempre linguagem
nos afazeres humanos, e é na linguagem que as visões de mundo se apresentam,
se articulam e se consolidam como “consenso inconsciente” ou “partilha cons-
ciente da dádiva”, algo que está além das formas de racionalidade que insistem
em explicar a linguagem dessa ou daquela maneira convencional e meramente
representacional, quantitativa, genérica. . Por exemplo, antes do século XVIII na
cultura da Europa o conceito de “humanidade” não existia como uma tematização
filosófica e científica. A visão de mundo da maioria dos humanos não ia além da
narrativa bíblica e teológica. Com a explosão do pensamento da subjetividade
transcendental nascida em Descartes e disseminada no idealismo alemão, toda a
visão de “humanidade” é construída e inventada por poetas, escritores, filósofos,
cientistas e místicos escritores.
820 TRANSCICLOPÉDIA EM DIFUSÃO DO CONHECIMENTO

Já Dilthey havia assinalado a antinomia nascida entre a variedade das formas


humanas de existência e a multiplicidade de modos de pensar, de sistemas religiosos,
de ideias morais e de sistemas metafísicos. Essa antinomia persiste, porque parece
que uma coisa é diferente da outra, a variedade das formas de existência humana
e a multiplicidade de modo de ser e estar no mundo com outros. Há, desse modo,
uma tendência uniformizadora hegemônica, instituída. Essa tendência pode ser
vista nas antinomias interpessoais entre distintas visões de mundo, como se devesse
existir uma visão de mundo certa e absoluta. Como se a variedade fosse uma falha,
uma impropriedade, uma falsificação. O dado é que uma antinomia não pode
ser resolvida a partir de sua zona de conflito, de sua superfície antinômica. Se sua
solução não pode ser encontrada nos pressupostos naturalistas dados, é necessário
escavar mais fundo o que se encontrava antes da própria antinomia posta. Assim,
é preciso caminhar para trás buscando o plano de imanência do que leva seres
humanos a produzirem visões de mundo e a imaginarem formas dogmáticas e
fechadas e formas questionadoras e abertas, formas já criadas e formas criadoras
ou em devir-criador.
Eis também o motivo de uma psicologia humana como uma ciência do compor-
tamento que logo em sua versão disciplinar se fechou em uma modelagem objetivista
de traço psicologista. O psicologismo das visões de mundo leva, também, a formas
de relativismo em que os valores são funções das relações de força e poder entre os
seres humanos. O fato é que o campo do conhecimento humano com suas peculiari-
dades irredutíveis a objetos matemáticos pode ser investigado em sua fenomenologia
própria, o que requer também um método de análise que parte daquilo que constitui
o modo de saber e comportar-se dos seres humanos, seus valores e suas culturas,
seus hábitos, suas mentalidades. Justamente aqui uma visão de mundo é também
necessariamente uma “ideologia”, uma forma discursiva em que se acredita como
“verdade”, “realidade”, “visão de mundo”. E isso não é uma abstração puramente
teórica e sim uma efetividade comportamental comum a todos os seres humanos.
Ora, o que é aquilo que se pode dizer “comum” entre os diversos seres humanos e
suas culturas espalhadas no planeta, no passado, no presente e no futuro do agora?
Uma “ideologia” se caracteriza por um regime de crenças, por uma crença de-
terminada da realidade. Toda crença é “ideológica” — é conceitualmente concebida
e verbalmente expressa. O ser humano é produtor de “ideologias”, visões de mundo”,
“crenças”. Todo ser humano se comporta “ideologicamente”, possui visões de mundo
ou “cosmovisões”. Mesmo equivocadas em relação a novos planos de descoberta e
invenção da realidade, as ideologias são as visões de mundo do ser humano produtor
TRANSCICLOPÉDIA EM DIFUSÃO DO CONHECIMENTO 821

de seus valores e costumes, artefatos e engenhocas que estendem a sua ação sobre as
coisas externas e que existem independentes.
De qualquer modo, ninguém escapa de ter uma visão de mundo, de produ-
zir/reproduzir sua cultura, aquilo que vê, o que ouve, toca, degusta, cheira, e isso
mesmo inconscientemente, pois o ser humano enquanto vive produz e reproduz
permanentemente sua conexão com o mundo da vida, o que ocorre de modo similar
em todo organismo ou sistema vivo. Neste sentido, os seres vivos não humanos são
dotados de percepção imagética do mundo, que se traduz em processos cognitivos
próprios e automáticos, mas nenhum deles tem algo como “visão de mundo”. Um
cão, um gato, uma árvore, um jacaré não têm “visão de mundo”, mas contato e
relação sensível. Qualquer ser vivo reagirá automaticamente a qualquer movimento
em seu meio vital imediato, mas não produzirá uma “visão de mundo” simplesmente
porque o seu mundo não tem linguagem e sim comunicação direta de estímulos
sensíveis, seu mundo não tem a linguagem ao modo dos falantes humanos: é uma
linguagem sem tradução, sem pensamentos percebidos como pensamentos. É um
outro mundo aquele das árvores e das montanhas, dos seres vivos em suas variações
intermináveis: nenhum deles precisa de uma visão de mundo ou de qualquer justi-
ficativo racional para continuarem existindo. São expressões da potência criadora
espalhadas em toda parte e também ausente de toda parte na sua condição de um
todo. E o todo é sempre uma maneira de perceber de alguém que percebe que percebe
de um metaponto de vista e suas circunstâncias históricas. Uma visão de mundo se
faz presente em cada ato humano em suas circunstâncias, seja uma visão local ou
mesmo global. Entretanto, uma suposta visão de mundo inspirada e formada no
contexto histórico da modernidade e da contemporaneidade se apresenta esvaziada
de sua racionalidade calculadora e previsível, o que vai de encontro à aspiração de
uma visão de mundo como acréscimo de potência e de vida abundante, de igual-
dade ontológica e fraternidade mundial, assim floresce a liberdade de uma visão de
mundo que não teme ler e acolher o inesperado. Tudo na pulsão do espanto em sua
intensidade aberta ao acontecimento instante.
Ter uma visão de mundo própria e apropriada é o sinal de que se deseja uma
plenitude vivente para todos, pelo menos como campo aberto para todas as possi-
bilidades benfazejas e criadoras de mundos poéticos intermináveis e sempre surpre-
endentes e novos, curadores incansáveis de suas crias para que sigam seu próprio
devir na transformatividade incontornável de tudo o que vive.
822 TRANSCICLOPÉDIA EM DIFUSÃO DO CONHECIMENTO

REFERÊNCIAS
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91. Visão/Visualidade Poliperspectivada

Jaildon Jorge Amorim Góes

Nossa limitada capacidade humana de perceber a realidade faz com que en-
xerguemos apenas alguns ângulos por vez de qualquer objeto de estudo, e por isso
somos forçados, por diversas vezes, a reavaliarmos nossas opiniões e conceitos o tempo
todo. Surge sempre a necessidade de aprender a ver, unindo nossas descobertas e
saberes com os de outrem, e continuarmos revendo esse processo de construção do
conhecimento, de maneira espiralar em uma busca por revisão e ampliação contínua
das nossas “verdades”.
A expressão visão e visualidade poliperspectivada, antes denominada de multifa-
cetada Góes (2016), surgiu quando estava pesquisando as diversas possibilidades dos
processos de aprender a ver, a partir da compreensão da dos processos de formação
das identidades/diferenças e também do comportamento de alteridade dos educandos.
A partir da complexidade do ato de aprender a ver, o desenvolvimento da visão/
visualidade dos seres humanos de maneira poliperspectivada, busca a percepção da
complexidade da realidade, ao permitir que os seres humanos percebam e compre-
endam que as diferentes visões de mundo e os diversos pontos de vistas estão (inter)
relacionadas, contribuindo para a transformação da realidade vivenciada no campo
do simbólico, crítico e criativo.
Para compreender este verbete é preciso destacar etimologicamente e con-
ceitualmente as três palavras que as compõem. A palavra “visão”, vem do latim
“visio — onis” ou “visionem” que significa ato ou efeito de ver; o sentido da vista;
percepção das possibilidades e dos significados de cada coisa; percepção pelo órgão
da vista. Já a palavra “visualidade” vem também do latim “visualitas -atis” Que
significa qualidade do que é visual.
Partindo do pressuposto de que a visualidade é um patamar mais avançado no
aspecto cultural no processo de aprender a ver, em relação à visão, que é um aspecto
fisiobiológico, Romanelli (2010) ratifica que a visualidade pode ser definida como
parte de uma linguagem (artística) visual, que envolve a apropriação de conhecimen-
tos relativos aos elementos estéticos visuais que desenvolve a visão e outras formas
perceptivas de visualizar as coisas do cotidiano.
Já a palavra “poliperspectivada” é uma derivação da palavra “perspectiva”, que
surgiu do latim “perspectiva”, que significa representação das coisas tais como as
824 TRANSCICLOPÉDIA EM DIFUSÃO DO CONHECIMENTO

vemos; possibilidade, esperança; visão de mundo; a representar num plano os objetos,


de maneira que eles se mostrem, guardadas as distâncias e situações; ponto de vista.
A ideia do “poliperspectivado” pode ser ratificada por Martins, Picosque e
Guerra (1998) quando elas sugerem que é necessário nutrir esteticamente o olhar,
alimentando-o com muitas e diferentes imagens, provocando uma percepção mais
ampla da linguagem visual. Neste sentido é necessário alimentar a observação e a
percepção de uma mesma situação com múltiplas formas e diferentes perspectivas,
orientando os seres humanos a buscarem outras diversas soluções imagéticas para
resolverem as questões que aprofundam o sentido artístico e estético da existência.
Ao analisar a palavra perspectiva, a partir da expressão perspectivismo, pode-se
aferir que é uma concepção filosófica criada inicialmente por Leibniz (1991), toda
mônada ou substância simples representa o universo inteiro em uma determinada
perspectiva – onde toda percepção sobre a realidade, parte de uma perspectiva ou
ponto de vista, a realidade. O perspectivismo em Nietzsche (1989) tem relação com
uma concepção crítica da realidade, ao denunciar os valores reinantes na sociedade,
certas perspectivas têm servido com uma intencionalidade bem definidas, projetadas
erroneamente como essência das coisas que representam não uma verdade, mas a
ingenuidade do homem que se toma pelo sentido e pela medida das coisas. Já para
Ortega y Gasset (1994), a visão do mundo se dá sempre em perspectiva e no seu
conjunto, constitui a agregação de todas as perspectivas, no espaço e no tempo, ou
seja, a realidade, como uma paisagem, tem infinitas perspectivas, todas igualmente
verídicas e autênticas, sendo que a única falsa é a que pretende ser a única.
O que relaciona as palavras visão e visualidade ao conceito de perspectiva, são
os modos de como o ser humano vai construindo durante a sua história de vida, a
sua visão de mundo sobre a realidade. A forma como o(s) ponto(s) de vista vão sendo
construídos e formados interferem na sua condição existencial pessoal e coletiva de
cada ser humano, sendo em uma perspectiva única ou plural; inclusiva ou exclu-
dente, assertiva ou equivocada; aprisionante ou libertadora; crítica ou embotadora
da realidade.
Ao refletir sobre estes conceitos, a visão/visualidade poliperspectivada, no
contexto da complexidade pode ser definida, inicialmente, como o ato de aprender
a ver de maneira ampliada, expandida, (inter)transdisciplinar, multidimensional e
diversificada. Ou seja, é o desenvolvimento do olhar (observação) de uma pessoa
sobre uma mesma realidade, só que em diversos ângulos/perspectivas, em rede de
olhares entrecruzados/inter-relacionados para que se compreenda que existem outras
possibilidades de perceptivas/vistas distintas, além das dela.
TRANSCICLOPÉDIA EM DIFUSÃO DO CONHECIMENTO 825

Com isso, a visão poliperspectivada ao buscar uma diversidade de olhares


sobre uma mesma realidade, deseja desenvolver no ato de aprender a ver um olhar
mais aberto, dinâmico, movente, reflexivo, crítico, flexível, autônomo, libertário,
transdisciplinar, criativo, consciente sobre a realidade percebida. Contrário a esta
perspectiva, aprender a ver de maneira fechada, restrita, disciplinar, unidimensional,
embota e nega a complexidade da realidade, consequentemente, os olhares acabam
desenvolvendo-se de forma monológica e monoperspectivada.
Neste sentido, o que se olha, pode e deve ser visto não somente de maneira pa-
norâmica e única, mas sim aprofundada e plural, observando todas das perspectivas
(im)possíveis, de (in)certezas e de (de)ordem. Neste contexto, a ideia de perspectiva
pluralizadas (diversificadas) surge como possibilidade de os seres humanos deslocarem
os olhares para aprenderem a exercitar comportamentos de alteridade, empatia, equi-
dade, respeito, cuidado em relação a realidade de si mesmo, dos outros e do mundo.
O pensamento visual sobre a realidade, ao ser desenvolvido, a partir de diversos
pontos de vista (polipontos de vista), pode orientar os seres humanos a perceberem
quais as intencionalidades dos mecanismos de poder/saber estão postas entre o visível
e o invisível das imagens. Este conceito de polipontos de vista subsidia o desenvol-
vimento de estratégias cognitivas que promovam no campo visual dos sujeitos para
a saída de um único ponto de vista (monovisão/univisão) para a criação de uma
diversidade de pontos de vistas (polivisão/ cosmovisão).
O conceito de metapontos de vista propostos por Morin (2010/2015) e po-
lilógica Galeffi (2009/2017) estão diretamente relacionados à visão/visualidade
poliperspectivada, quando estes autores afirmam que cada ponto de vista tende a
se tornar um metapontos de vista ou metaponto, denominado nesta proposta de
polipontos de vista.
Esta visão/visualidade poliperspectivada, colabora para que os seres humanos,
nos momentos de construção do conhecimento visual (criação/produção, apreciação e
compreensão das imagens) desenvolvam as potencialidades cognitivas inerentes à sua
inteligência visual, ligadas à construção da memória imagética, que se retroalimenta
a partir do desenvolvimento da percepção e da observação, e colabora com o processo
de criação e produção no ato de aprender a ver, compreender e interpretar as imagens.
Aprender a ver de maneira poliperspectivada nos processos de construção e
difusão do conhecimento, como estratégia de aprendizagem significante/signifi-
cativa, ocorre cognitivamente na interconexão entre o corpo, espírito, percepção,
sentimento, pensamento, a partir da inter-relação com o ambiente sociocultural,
histórico, econômico e político.
826 TRANSCICLOPÉDIA EM DIFUSÃO DO CONHECIMENTO

Então, urge a compreensão de que os seres humanos, somente ampliarão as


possibilidades de humanização/humanidade, criação e transformação existencial
quando conseguirem romper com padrões fragmentadores, monológicos e homoge-
neizantes e acolher o pensamento complexo, a complexidade da vida, as (in)certezas,
a inter-relação da individualidade/coletividade, a multidimensionalidade, a unidade
na diversidade e a diversidade na unidade.
Com o desenvolvimento de olhares polilógicos/poliperspectivados, a Huma-
nidade tem uma grande chance de avançar no desenvolvimento de uma educação
mais condizente com as expectativas do século XXI, despertando os olhos físicos e
da alma em 360°, para a abertura e expansão reflexiva da realidade, — justamente
para a compreensão de que todos somos todos unidade na diversidade e diversidade
na unidade e podemos (con)viver (co)existir em harmonia para consigo, com os
outros e com o mundo.

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92. Visibilidade Cultur al
Anselmo José da Gama Santos
Maria Inês Corrêa Marques

Visibilidade aqui, é palavra e é conceito, a ser desenvolvido a partir do seu


antônimo, a invisibilidade, o que existe sem ser visto, reconhecido. A reflexão sobre
este fenômeno a partir de exemplos concretos, dará sentido às reflexões aqui dis-
postas. Visibilidade origina-se da palavra em Latim visibilitate e significa qualidade
de visível, ou seja, tudo aquilo que precisamos tornar visível para que possa haver
uma melhor compreensão do que se quer visibilizar. Nesta senda, primeiramente,
é preciso reconhecer o que está oculto, aquilo que se pretende tornar visível. Este
verbete foi construído para tratar da visibilidade da cultura Bantu e sua contribuição
para a formação étnica e cultural do povo brasileiro.
No século XVI, quando tem início o tráfico de escravizados africanos para o
Brasil, os primeiros contingentes que chegaram à nossa terra foram os povos que
habitavam a África Subsaariana, conhecidos como povos Bantu. A palavra “Bantu” foi
criada por um linguista alemão chamado Wilhelm Bleek (08 de março de 1827/17 de
agosto de 1875). Suas pesquisas foram desenvolvidas no território localizado abaixo
da Linha do Equador cujos habitantes falavam mais de 632 línguas chamadas de
línguas aparentadas. Elas eram estruturalmente semelhantes e oriundas do mesmo
tronco linguístico falado no continente africano há mais de 5000 anos, o “Proto-
bantu”. A palavra Bantu foi constituída utilizando-se a palavra “Ntu” que significa
pessoa, cidadão e antecedido com o prefixo “Ba” que é plural. Assim, o sentido da
palavra indica o coletivo, pessoas, sociedade, comunidades e foram e, são conhecidas
até hoje, como povos Bantu.
Os povos Bantu, historicamente são marcados por sua diversidade e culturas
muito ricas e religiosidade pulsante. As terras isoladas foram integradas ao mundo
conhecido, quando das viagens portuguesas pela costa africana, conhecidas como
périplo africano. A modernidade europeia e sua fúria colonial se apoderou de mui-
tos territórios africanos, retomando a prática do apresamento e tráfico de escravos
na negra África. Ainda em continente Africano, os sequestradores submetiam os
prisioneiros ao que chamavam de ritual da purificação, os escravizados tinham que
dar três voltas em torno de uma árvore, afirmando que deixariam ali, sua religião,
sua cultura, seu nome original e todas as lembranças de família. Queriam pessoas
sem memória, até para não reconhecerem sua condição servil.
830 TRANSCICLOPÉDIA EM DIFUSÃO DO CONHECIMENTO

Os habitantes de diferentes partes do território africano que foram sequestra-


dos, aprisionados e conduzidos ao Novo Mundo, em chamados navios negreiros,
como carga comercial viva, não esqueceram de onde vieram e o que sabiam. Sob
grilhões de ferro nos pés, nas mãos, instrumentos prendendo a boca, passavam por
toda ordem de tortura e maus tratos durante toda a travessia do Oceano Atlântico.
O sofrimento era tão grande que, durante a viagem muitos adoeciam e morriam.
Outros buscavam a morte lançando-se ao mar, acreditando que a Mãe D’Água vi-
ria socorrê-los. Havia os que chegavam vivos, porém, estavam fracos e combalidos
morrendo ao chegar em terra firme.
A travessia era tão cruel que, aqueles que conseguiam chegar ao Brasil e per-
maneciam vivos, se chamavam mutuamente de “Malungo” que quer dizer significa
amigos para sempre, até que a morte os separasse, pois já tinham superado todos os
sofrimentos da viagem e permaneciam juntos. Queriam os colonizadores, que eles
chegassem ao novo mundo para abraçarem uma nova religião, terem outro nome e
seguirem praticando outra cultura que desconheciam. Impossível deter a memória de
si, de suas origens, este é um dos processos psicológicos que nos localiza no mundo.
Os escravizados aprenderam uma nova forma de lidar com seus valores, sem que o
dominador soubesse, adaptaram cultura imaterial e os conhecimentos que trouxeram
de suas terras, reinventaram e preservaram suas tradições, ritos e rituais. Foi por
meio deste movimento preservação da memória, os africanos Bantu inscreveram
seus saberes e práticas na cultura, que chegaram ao século XXI.
Ao chegarem na colônia portuguesa, o Brasil, os escravizados africanos se apro-
ximaram dos povos naturais do lugar, chamados de indígenas brasileiros. O contato
deu-se pela condição de escravizados, que atingia igualmente os povos nativos e os
transplantados. Por meio da catequese jesuíta ou por força do trabalho junto aos senhores
e senhoras escravistas, aprenderam a língua portuguesa e outras, que não são nosso foco
aqui. Para além da comunicação estabelecida entre nativos e africanos, pela língua ou
pela condição social, estabeleceu-se uma relação de amizade e respeito, que permitiu
a troca de saberes e práticas. Na convivência estreita, inscreveram palavras na língua
dos portugueses que eles tiveram que aprender. Descobriram ritos e rituais comuns
às suas crenças e práticas religiosas, sendo o culto à natureza uma das semelhanças.
Os povos naturais do Brasil, acolheram os escravizados africanos que fugiam
dos seus donos embrenhando-se nas matas, foram os indígenas que com suas ervas
e conhecimentos ancestrais, cuidaram de suas mazelas e ensinaram a vida na selva.
Os quilombos foram espaços de convivência inter étnica e de trocas de saberes entre
povos, iniciou-se uma estreita aproximação entre os escravizados Bantu com os habi-
TRANSCICLOPÉDIA EM DIFUSÃO DO CONHECIMENTO 831

tantes naturais do chamado novo mundo. Estes povos foram os primeiros africanos
que aqui desembarcaram e interagiram com as diferentes culturas locais e entre si.
O europeu, do seu lugar hegemônico, inegavelmente, participou da miscige-
nação cultural de saberes e práticas. Como colonizador, fez parecer que não houve
rupturas, só permanências, aos indígenas e africanos construiu uma história de
submissão. Tratar de visibilidade cultural significa, reconhecer o protagonismo dos
negros e especial os de origem Bantu. Elas permanecem preservadas e espalhadas
em todos os lugares da cultura. As contribuições culturais e de conhecimento dos
Bantu, foram efetivas e marcantes na construção étnica e cultural, da língua falada
pelo povo brasileiro.
Um desdobramento deste encontro étnico, que deixa evidente a singularidade
desse fenômeno no Brasil, encontra-se na língua portuguesa aqui falada, que é dife-
rente, em relação a Portugal e outros países de língua oficial portuguesa. O português
do Brasil possui inúmeras palavras africanas introduzidas em nosso vocabulário
que o diferencia. Podemos exemplificar isto a partir da palavra que designa o irmão
mais novo, no Brasil é chamado de caçula, de origem Bantu, em Portugal o termo
é benjamim. A palavra está incorporada ao universo vocabular brasileiro, mas os
falantes não reconhecem a origem, nega-se ao brasileiro este conhecimento de que
não falamos um português castiço, o nosso é formado por um misto de culturas e
conhecimentos, que absorvemos de um vasto repertório afro Bantu. Ao reconhecer
essa outra versão da história, que não oculta os demais povos, que coloca os negros
Bantu no lugar de instituintes de uma cultura, que é absolutamente miscigenada, a
narrativa história se amplia, fazendo justiça aos demais povos que a configuraram.
Da relação direta com os espaços senhoriais, o vocabulário Bantu penetrou em
salas e salões e foi incorporado ao vocabulário português, ganhando uma configura-
ção brasileira. Apesar da inviabilidade deste fenômeno e do valor desta contribuição
para a construção da nação, é impossível negar que a nossa cultura está repleta do
conhecimento Bantu. Na música, o Samba, é palavra de origem Bantu, que reúne
ritmo e dança que se consolidaram como algo original da terra, dando visibilidade ao
Brasil no mundo, a partir dele. Do mesmo modo que a Capoeira, ganhou o mundo
como original deste lugar, surgindo como necessidade de um sistema defesa que
os conhecimentos ancestrais africanos ajudaram a florescer. Existem infinidades de
diferentes expressões coletivas como a Congada, o Maracatu, o Maculelê, o Jongo,
todas revelando os modos brasileiros de socialização da cultura.
Se nos voltamos para outros setores da sociedade ou da economia, também
encontraremos contribuições negadas, esquecidas ou não reconhecidas. Na agricul-
832 TRANSCICLOPÉDIA EM DIFUSÃO DO CONHECIMENTO

tura os Bantu introduziram a fundição do ferro para a produção das enxadas, os


ancinhos e outras ferramentas agrícolas que facilitaram o desenvolvimento da nossa
agricultura. A arte da carpintaria, da culinária, são algumas formas de demonstrar
a importância dos povos de origem Bantu para a formação do povo brasileiro. Na
gastronomia, o azeite de dendê, que foi trazido da África, faz parte do repertório
culinário brasileiro. As diversas comidas africanas, preservadas e difundidas a partir
Candomblé, tida como principal manifestação religiosa de origem africana, estão
nas mesas dos brasileiros de todos os níveis sociais. A diáspora africana trouxe a
cultura africana para estas terras e estas contribuições estão invisíveis, posto que,
não se ressalta, difunde, reconhece ou se valoriza estas origens culturais.
O racismo, a intolerância religiosa, a truculência dos dominadores, os que
escrevem a história oficial, explicam esta ação deliberada de invisibilização de
povos tornados escravos, que, paradoxalmente, foram mais fortes e se impuseram
na formação étnica e cultural do povo brasileiro. A legislação abre uma tarefa aos
estudiosos da cultura, professores e movimentos, a de colocar os povos negros em seu
merecido lugar na História. Os religiosos, pesquisadores adeptos do Candomblé que
optaram por buscar uma articulação com a esfera acadêmica, estão comprometidos
em trabalhar em prol da “Visibilidade Cultural” dos povos negros, o que significa
revelar as inúmeras contribuições africanas, suas construções coletivas, históricas
que deram o tom na configuração da diversidade cultural brasileira.
A análise cognitiva sobre a formação cultural e do pensamento brasileiro, no
que se refere às contribuições Bantu, permitiu destacar este grupo étnico, para iden-
tificar e revelar, as negações históricas sobre a participação do negro no processo de
construção cultural brasileiro. O racismo e preconceito, não deixaram espaço para
que os brasileiros reconheçam e se orgulhem dos legados destes povos na cultura
nacional e regional. É uma falácia difundir a ideia de que nossa sociedade é um
legado de brancos europeus.
Por meio deste processo analítico, identificou-se o que caracterizamos aqui,
visibilidade cultural das contribuições dos povos africanos Bantu, na formação
étnica e cultural do povo brasileiro. A palavra/conceito estudada utilizando como
contraponto o antônimo: invisibilidade, pretendeu provocar um efeito contrário,
ou seja, dar visibilidade aos contributos africanos em nossa cultura. Salientou-se
aqui os povos Bantu, mas, as tarefas de todos devem ser as de realçar as produções
científicas sobre cultura e conhecimentos africanos; lutar pela visibilidade cultural,
de forma ampla, irrestrita e encontrar o lugar na história de povos que, mantendo
viva memória, saberes e práticas no tempo, dão uma cara ao Brasil. Visibilidade
TRANSCICLOPÉDIA EM DIFUSÃO DO CONHECIMENTO 833

cultural para construir outra narrativa histórica, com protagonistas que fizeram
a diferença, porém, precisamos tirar o véu da versão oficial, reaprender a ver para
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SOUZA, Marina de Mello e. Reis Negros no Brasil Escravista. História da


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VIANA FILHO, Luís. O Negro na Bahia. Um Ensaio clássico sobre a


escravidão. 3.ed., Rio de Janeiro: Nova Fronteira. 1988.
X
93. Xirê: Um Olhar Estético

Alessandro Malpasso
Dante Augusto Galeffi

ABERTURA: UM OLHAR DE ARTISTAS ANALISTAS COGNITIVOS –


XIRÊ: PERFORMANCE, CRIATIVIDADE E TERAPIAS HOLÍSTICAS
NAS CULTURAS DOS ANTEPASSADOS
Existe um universo existencial que se vincula física e simbolicamente com
o mundo sobrenatural e mítico dos antepassados, e isto é evidente e presentes em
algumas culturas tradicionais deste planeta. No Brasil e em outros lugares em que
houve escravidão, estas culturas incorporam uma memória ancestral e uma cosmo-
visão oriundas de seus lugares de origem em África, expressando-se mediante um
simbolismo que se evidencia também no âmbito mitológico. Por esse motivo, se con-
sidera importante proteger as culturas ancestrais através de uma difusão analítica que
inclua uma perspectiva cientifica crítica. Um dos exemplos é o Xirê no Candomblé,
que se aborda como um dos acontecimentos culturais deste planeta, mediante uma
reflexão e uma vivência que inclui diferentes campos do conhecimento, tendo em
conta o elemento criativo, utilizando a metodologia qualitativa para uma melhor
compreensão do objeto de estudo. Se observam as expressões do corpo através de
uma visão estética e da complexidade relacionada com o componente psíquico.
Também, se leva em conta a diversidade, caraterística incorporada no humano e na
natureza, que é fonte de inspiração para o ser humano, inclusive nas terapias holísticas
trazidas pelos antepassados e nas expressões performáticas inspiradas a narrações
mitológicas. A finalidade deste artigo, é enfatizar a importância da difusão do co-
nhecimento das culturas, gerando também uma coesão entre elas. Assim mesmo,
se indica a necessidade de estimular o humano a uma reflexão, para poder ampliar
a compreensão sobre certos acontecimentos que se desenvolvem neste planeta e que
pertencem a um legado histórico da humanidade.

INTRODUÇÃO
Em várias áreas do planeta se desenvolvem inúmeros acontecimentos que são
o produto da sabedoria vivida e transmitida por procedimentos rituais e que fazem
838 TRANSCICLOPÉDIA EM DIFUSÃO DO CONHECIMENTO

parte da história da humanidade. A criatividade do humano pode ser estimulada e


demostrada mediante as produções culturais de distintos povos, por exemplo, com
a realização de terapias holísticas que incluem processos rituais. São práticas per-
formativas, que incorporam elementos simbólicos nas expressões corporais, como
também, nas decorações que podem ser apreciadas nos lugares de execução dos rituais.
Uma delas se denomina Xirê. É uma festa que se desenrola no Candomblé
brasileiro (religião animista de raízes africanas, que se baseia na alma e no espírito da
natureza), tendo o objetivo de louvar as divindades chamadas de Orixás, que foram
trazidas da África ao Brasil. O culto aos Orixás se fundiu com outros componentes
culturais procedentes de diferentes países, durante um processo de transculturação,
dando origem aos Candomblés e que produzem performances nas realizações de rituais
que incorporam uma riqueza estética emanada dos antepassados que se presentificam
nos rituais míticos. Nestas experiências, o tempo é transposto para o seu pulsar vital
e circula conectando o passado, o presente e o futuro em um fluxo único. O tempo
não linear do mundo sobrenatural dos antepassados se torna um círculo, uma roda
de orixás em festa e partilha: a beleza e a força resplandecem na abundância.
Não é por acaso que o Xirê se desenvolve em forma de roda, no sentido anti-
-horário, já que simbolicamente representa também um retorno ao passado, ou seja,
nesse momento os adeptos buscam uma conexão com os ancestrais. A dona do Xirê
é uma divindade feminina chamada de Obá. Em relação aos Orixás, Verger (1981)
considera que primordialmente são ancestrais divinizados, que em vida determinam
vínculos que assegure um controle sobre algumas forças da natureza, que são expres-
sas pelos adeptos, mediante o corpo e que se traduz em dança, música e cantigas.
Os seguidores da religião são os que participam ativamente da dança, endos-
sando vestimentas litúrgicas que geralmente incorpora uma estética rica de elementos
transmissores de conhecimentos trazidos pelos antepassados. Tudo o que foi dito
anteriormente é inerente às caraterísticas e às cores relacionadas com os Orixás
louvados, que podem se manifestar no corpo dos adeptos mediante o estado de
transe. O Xirê é acompanhado pelos ritmos dos atabaques, seguindo uma ordem
começando do Orixá mais novo (Exu), até chegar ao mais velho (Oxalá). Durante
a execução do Xirê, a depender do terreiro1, normalmente se louvam um total de
dezesseis divindades.

1
Templo onde se cultuam os Orixás.
TRANSCICLOPÉDIA EM DIFUSÃO DO CONHECIMENTO 839

Rita Amaral (2002) desvela a importância do Xirê nos Candomblés, assim como
o valor simbólico e ancestral que representa para o povo-de-santo2, que preserva a
tradição religiosa segundo a cosmovisão africana. O Candomblé não é simplesmente
uma religião, é também uma forma para criar uma coesão social, procurando educar
com valores relacionados com a ética e a estética. Assim, a cultura do Candomblé
é um estilo de vida com suas regras conectadas com as dinâmicas de cada terreiro,
que tem o próprio líder (Babalorixá3 ou Iyalorixá4).
Eles, pela importância da figura que representam, têm inúmeras responsabili-
dades e tarefas a desenvolver ao interno da comunidade. Por exemplo, umas delas é a
organização dos rituais e as festas vinculadas com as raízes mitológicas e proporcionar
consultas oraculares. Em relação aos cargos e a estrutura da comunidade, Turner
(1974) considera o seguinte:
A distinção entre estrutura e “communitas” não é apenas a distinção familiar
entre “mundano” e “sagrado”, ou a existente por exemplo entre política e
religião. Certos cargos fixos nas sociedades tribais têm muitos atributos sa-
grados; na realidade toda posição social tem algumas características sagradas.
Porém este componente “sagrado” é adquirido pelos beneficiários das posições
durante os “rites de passage”, graças aos quais mudam de posição. Algo da
sacralidade da transitória humildade e ausência de modelo toma a dianteira
e modera o orgulho do indivíduo incumbido de urna posição ou cargo mais
alto (TURNER, 1974, p.119).

Efetivamente, existe uma estrutura hierárquica, que vem determinada a de-


pender das culturas religiosas, através de processos rituais vinculados com o sagrado
e estabelecidos por regras que geralmente dependem do dogma, e dos líderes das
comunidades.
Smith (2005) falando a respeito do Xirê, descreve que são eventos multimídias
com a finalidade de louvar aos Orixás, incluindo várias tipologias de criatividades
artísticas (vestuário, dança, canto, percussões, comida-de-santo5 e performance,
entre outras). Assim que, é possível compreende que a atmosfera está circundada de
diferentes componentes que contribuem a criar um ambiente constituído de uma
riqueza simbólica, uma potência visual, acústica e olfativa. Tudo é especialmente
envolvente e místico. Almeida e Dupret (2012) retratam o Xirê da seguinte forma:

2
Forma popular para denominar os adeptos do Candomblé.
3
Sacerdote das religiões afro-brasileiras.
4
Sacerdotisa das religiões afro-brasileiras.
5
Oferendas votivas destinadas aos Orixás.
840 TRANSCICLOPÉDIA EM DIFUSÃO DO CONHECIMENTO

Em um universo de luzes e cores, ao som de tambores mágicos, deuses e


deusas ancestrais unem-se aos seus filhos humanos em festejo. [...] as festas,
o ápice do culto, revelam traços característicos da cultura negra no Brasil, e
a roda é um deles: roda de Candomblé, roda de samba, roda de jongo, roda
de capoeira, Xirê. A roda pressupõe igualdade, mesmo que haja hierarquias,
e é através da roda que os Orixás concedem o axé6. Em roda velhos e jovens,
das mais distintas classes e cores, se juntam, compartilhando o mesmo es-
paço sagrado, festejando a chegada do Orixá na Terra: um dos exemplos de
comunicação do Ayé (Terra) com o Orum (poder do Universo) (ALMEIDA
E DUPRET, 2012, p53).

De acordo com Almeida e Dupret (2012), vários acontecimentos podem se


observar durante o Xirê, que se desenvolve em forma de roda. Também, neste pla-
neta existem outras práticas culturais que utilizam a roda como um do elemento
simbólico básico pela unificação do povo. Basta pensar que algumas tribos africanas
ou comunidades indígenas de América, desenrolam certos rituais em círculo. No
decorrer da execução do ritual, todos os sentidos dos adeptos e do público presente
se estimulam, com uma explosão de cores e sons, impulsando força, entusiasmo e
alegria.
O Xirê, se desenvolve no mesmo espaço, acolhendo uma fusão de hábitos cul-
turais procedentes de vários povos convivendo na mesma comunidade constituída
de uma mestiçagem cultural entre etnias africanas, ciganos, indígenas do Brasil,
entre outras. Eles sacralizam os ingredientes de origem vegetal, mineral e animal,
que se utilizam durante o dinâmica ritual, que pode variar a depender da comuni-
dade e da linhagem. Assim que, eles trazem diferentes componentes culturais que
proporcionam unicidade e efemeridade aos rituais.

DIVINDADES LOUVADAS E COMPONENTES ESTÉTICOS NO XIRÊ


Existem várias formas de representação dos Orixás, seja no mundo sagrado
que no campo das artes. Como diz Marcondes (1998) os Orixás são simbolizados
e se manifestam em distintas maneiras, como, por exemplo: através de elementos
da natureza de origem vegetal, mineral e animal. Esses ingredientes, também tem
finalidades terapêuticas, tendo como um dos objetivos da religião, proporcionar ao
humano um equilíbrio psicofísico.
As divindades louvadas no Candomblé, são representadas em várias formas.
Uma delas é mediante o sistema divinatório denominado oraculo merindilogun.
Assim que, os Orixás são interpretados mediante os búzios, somando um total de
6
Energia, força da natureza, magica e invisível.
TRANSCICLOPÉDIA EM DIFUSÃO DO CONHECIMENTO 841

dezesseis. Eles são “jogados” pelo Babalorixá ou Iyalorixá, para poder orientar o
consulente, em assuntos vinculados com diferentes problemas, como, por exemplo,
de saúde, finanças e legais, entre outros. Outra forma, que é uma das mais impor-
tantes dentro da religião, é louvar os Orixás durante Xirê. Segundo Smith (2005)
os Xirês têm vários significados. Se executam em várias datas e horários, segundo o
que o líder da comunidade estabelece em cada terreiro:
Podem ocorrer no início da manhã e no meio da tarde, em preparação para
as grandes celebrações anuais que acontecem à noite, começando às 7:30
ou 8:00. Estas galas são popularmente conhecidas como festas ou Xirês. [...]
O último termo é derivado do Yorubá ṣire contraído de ṣe ire, que significa
fazer, agir, causar bondade, bênçãos, favores, benefícios (SMITH, 2005, p.45,
tradução dos autores).

A organização do Xirê, inclui um processo preparatório que pode durar várias


semanas. O financiamento para poder realizar os Xirês, geralmente procede de
consulentes e de alguns adeptos que tem maiores possibilidades econômicas. Os
que não contribuem economicamente estão convidados em colaborar, ajudando em
várias tarefas necessárias para o desenvolvimento do Xirê.
No dia da festa, normalmente, as pessoas presentes cuidam especialmente do
aspecto estético, endossando a melhor roupa e joias. Todos os detalhes são cuidados
de forma especial, estando comprometidos em dever proporcionar o máximo possível
para as divindades. É o dia de louvação dos Orixás! Se perceve que as expetativas
das pessoas presentes são muitas, e as emoções são intensas.
A continuação, pode-se observar a elaboração de algumas fotos (fig. 1, 2, 3 e 4)
do Xirê dedicado a louvação dos Orixás Exu e Ogum. Foram tomadas por Malpasso
(2017) durante uma pesquisa de campo relacionada com a tese doutoral dele, e de-
senvolvida no Ilè Asé Ijino Ilu Orossi (nome do terreiro de Candomblé liderado pelo
Babalorixá Toluaye) situado no bairro da Cidade Nova em Salvador-Bahia-Brasil.
Nas fotos, pretende-se evidenciar as performances das expressões corporais
durante a manifestação do transe em um contexto cultural sagrado, tratando de
criar um estilo artístico pessoal e indenitário. Assim que, nas imagens é possível
observar que o autor expressa uma técnica de tradução evidenciada pela textura e
pela predominante da tinta branca que acomuna todas as imagens.
Em língua Yorubá o branco chama-se de funfun, determinando um estilo e
simbolizando no Candomblé a criação, o momento primordial, o “começo do co-
meço”, quando não existia separação entre o universo material e imaterial, como se
narra na mitologia dos Orixás, e que também se representa durante os Xirês.
842 TRANSCICLOPÉDIA EM DIFUSÃO DO CONHECIMENTO

Figura 1

Figura 2
TRANSCICLOPÉDIA EM DIFUSÃO DO CONHECIMENTO 843

Figura 3 Figura 4

Figuras 1, 2, 3 e 4: Elaboração fotográfica durante o Xirê no Ilè Asé Ijino Ilu Orossi
Fonte: elaboração de MALPASSO, 2017

Prandi (2000) sustém que no Candomblé a festa é essencial, e é evidente já


que durante a observação pode se perceber que os adeptos estão atentos a qualquer
ditais, seja do ponto de vista físico, estético e sobre todo espiritual que se traduz
em um conjunto gestual. Todas essas práticas espirituais, estão vinculadas com a
louvação dos Orixás, com a finalidade de obter um equilíbrio psicofísico através
de um conjunto de saberes ancestrais e de terapias holísticas. Elas se desenvolvem
com estilo nas comunidades-terreiros, tendo um modo peculiar de ver o universo
mítico e místico.
No barracão7, é necessário cuidar de vários componentes que se precisam para
o desenvolvimento do Xirê, como, por exemplo: a decoração geralmente feita de
flores e folhas, que as “roupas de santo” sejam em perfeitas condições, os atabaques
bem afinados, a “comida de santo” esteja preparada com ingredientes específicos.
Enfim, tudo está pensado para louvar aos Orixás. Assim que, a relação com o divino
e o espiritual é básico e fundamental, já que é o momento em que os Orixás estão

7
Espaço incluído no terreiro, dedicado a rituais e festas.
844 TRANSCICLOPÉDIA EM DIFUSÃO DO CONHECIMENTO

chegando na Terra, podendo também ser manifestados ou incorporados no corpo


físico de alguns adeptos.
Ainda Marcondes (1998) em relação as divindades, afirma que a tendência é:
Traduzir ao Orixá antropomorficamente representa uma mudança na forma de
representação com as implicações teológicas e sociológicas. De qualquer forma,
os Orixás são um grupo em um panteão, um número fixo ou limitado sector
arquetípicos da vida (MARCONDES, 1998, p. 477, traduzido dos autores)

Marcondes (1998) inclui na sua obra o termo antropomorfo do grego “ανθρωπος”


“anthrōpos”, “homem”, e “μορφη”, “morphē”, “forma”, relacionado com as caraterís-
ticas estéticas dos Orixás, e também em vinculação com os componentes psíquicos
e estruturais-corpóreos. Tambem, é importante dizer que o humano pertence a
diferentes grupos étnicos, tendo peculiaridades especificas que podem-se traduzir
através do conceito de arquétipo que proporciona uma unicidade a criatividade do
homem e que Jung (1970) define a continuação:
Tendo em conta que todo o psíquico é pré-formado, assim são suas funções
particulares, em especial aquelas que procedem diretamente das predisposi-
ções inconscientes. A esse campo pertence ante toda a fantasia criadora. Nos
produtos da fantasia se faz visível as “imagens primordiais”, e é aqui onde
encontra sua aplicação especifica o conceito de arquétipo. […] É demostrado
que os arquétipos não se difundem meramente pela tradição, a linguagem
ou a tradição, mas podem volver a surgir espontaneamente em toda época e
lugar sem ser influídos por nenhuma transmissão exterior. […] Ideias, formas
e predisposições, se inconscientes, eles não são para isso menos ativas e vivas, e,
ao modo do instinto, pré-formam e influem o pensamento, o sentir e o atuar
de cada psique (JUNG, 1970, p. 73 — tradução dos autores)

Então, é assim que se pode observar algumas peculiaridades vinculadas com


determinadas caraterísticas que define uma identidade dos povos, que incorpora
essa essência trazida pelos componentes primordiais. Eles se reflexam na forma de
desenvolvimento das culturas, por exemplo, a través de manifestações ritualísticas
que são os resultados de conhecimentos ancestrais e da memória.
As vezes a inspiração criadora, através de uma pré-formação inconsciente, esti-
mula o humano na produção artística, expressando-se mediante a pintura, a dança
e o canto, entre outra, tendo, em várias ocasiões, a capacidade de incluir elementos
significativos que pertencem a uma determinada cultura, durante o processo de
tradução poética.
Em relação a religião, Durkheim (1982) reflexiona sobre a classificação dos
objetos sagrados protegidos pela comunidade, que podem contribuir a constituição
TRANSCICLOPÉDIA EM DIFUSÃO DO CONHECIMENTO 845

de novos cultos totêmicos. Também o autor afirma que é o sagrado que proporciona
maior importância a esses objetos religiosos, outorgando credibilidade a ser promo-
vidos e difundidos. Ainda Durkheim (1982) a continuação, descreve o sentido das
divindades nas religiões considerando o seguinte:
No momento que as religiões precisam se formar ulteriormente, aparecem
os deuses propriamente dito, cada um deles será o dono de uma categoria
especial de fenômenos naturais, o do mar, o da atmosfera, aquele do grão o
das frutas, etc., e se considera que cada um destes componentes da natureza
obteve a vida que em eles moura o deus do que dependem. Precisamente é
este reparto da natureza entre as diferentes divindades o constitutivo da re-
presentação que nos proporcionam sobre o universo (DURKHEIM, 1982,
p. 143, tradução dos autores).

Durante o Xirê, acontece uma representação festivo-ritualística. As divindades,


simbolicamente representam as forças da natureza, por exemplo: Xangó (o travão, o
relâmpago e a justiça), Oxalá (associado a criação do mundo e do humano) e Yemanja
(a deusa das águas doces e salgadas). Assim que, é compreensível que os Orixás estão
louvados no Xirê, pela emblemática importância que tem pelo povo-de-santo, que
com muita dedicação e devoção honram através de diferentes oferendas, dançando,
tocando e cantando pelos deuses.
Cada oferenda, dança, toque e cantigas é diferente, a depender da divindade
que se está louvando no ritual. Assim que, a coreografia tem uma riqueza que inclui
a vestimenta sagrada, as ferramentas e apetrechos, respeitando as cores, metais e
matérias que simbolizam os Orixás.

O CORPO DANÇANDO EM CONDIÇÕES DE TRANSE NO XIRÊ


Durante o Xirê, corpo e Orixá são protagonistas em uma perpetua execução
de danças acompanhadas pelos ritmos dos atabaques e cantigas. Qualquer pessoa e
coisa que esteja ali presente no barracão, se encontra, de alguma forma, envolvido
nesse momento solene e no mesmo tempo festeiro que inclui uma dinâmica ritualís-
tica, no fervor que abrange um importante envolvimento emocional dos assistentes.
Também, um dos componentes que geralmente chama maiormente a atenção
durante o Xirê, além das decorações e elementos estéticos, é a dinamicidade das
danças dos Orixás executadas por alguns adeptos e que em esse momento se encon-
tram em condições de transe. Em relação a uma entrevista realizada em 2017 ao
Babalorixá Toluaye, informa que o transe pode acontecer mediante uma manifes-
tação ou incorporação.
846 TRANSCICLOPÉDIA EM DIFUSÃO DO CONHECIMENTO

No primeiro caso, as expressões corporais não são tão evidentes, e incluem


alguns movimentos arquetípicos, que é comum a todos os adeptos que manifestam
um determinado Orixá. No segundo caso, a gestualidade resulta mais potente,
tendo em conta da peculiaridade gestual que se aproxima maiormente ao humano.
É também necessário dizer, que a depender do sujeito e da tipologia do Orixá,
as expressões do corpo podem ter variáveis mais ou menos importantes. São as forças
da natureza que podem se manifestar de forma tendencialmente imprevisível, mas,
no caso do Xirê são estimuladas pelos atabaques, pelas cantigas e pelos movimentos
corporais. O conjunto de expressões, contribui sinergicamente na provocação do
transe, como podemos melhor entender na fig. 5, que se encontra a continuação.

Figura 5 – Elementos que contribuem na provocação do transe

Fonte: Realização dos autores, 2018

Também, se consideram outros elementos que podem influir na provocação do


transe, e são os perfumes que emanam os ingredientes que se usam durante o Xirê.
Assim que, o componente olfativo é também importante no processo ritualístico,
já que produz aos adeptos certas sensações. É importante dizer, que não todos os
iniciados podem manifestar o transe. Pois depende das caraterísticas psicofísicas de
cada indivíduo. De qualquer forma, os religiosos que não podem chegar a ter uma
condição de transe, estão beneficiados de ter sentidos maiormente amplificados, já
que também devem de cuidar dos sujeitos que manifestam o transe, nos momentos
de alteração da consciência.

CRIATIVIDADE NAS DANÇAS PERFORMÁTICAS DOS ORIXÁS


Como já se declarou precedentemente, no Xirê existe um conjunto de expres-
sões artísticas que incluem a dança, a música e as cantigas que contribuem a unir
TRANSCICLOPÉDIA EM DIFUSÃO DO CONHECIMENTO 847

a família-de-santo. Assim que, é possível compreender a existência do componente


criativo que se desenvolve e relaciona com várias áreas do conhecimento, dando
como resultado uma multidisciplinaridade incorporada no Xirê. É impulsada pela
diversidade que faz parte da complexidade do humano durante o processo criador.
Como é possível diferenciar as expressões do corpo durante o transe e individuar a
criatividade dos adeptos? Em relação ao que sugere Malpasso (2017) por um lado,
é possível admirar o arquétipo presente nas danças dedicadas as divindades, e em
segundo lugar, a peculiaridade existente na singularidade gestual que expressam os
adeptos, que revivem através de uma performance, acontecimentos ligados com a
mitologia dos Orixás. A continuação, o expressando anteriormente, vem explicado
graficamente na fig. 6.

Figura 6 – Componentes que participam na expressão do corpo dando como


resultado uma performance

Fonte: Realização dos autores, 2018

Não se trata de qualquer performance, tendo em conta que são momentos


complexos vinculados com atos litúrgicos, incorporando a potência do sagrado e
com acontecimentos relacionados com a memória e a ancestralidade. Assim que, se
considera importante fazer essa distinção entre uma performance incluída no âmbito
religioso e uma performance que se desenvolve no campo artístico, já que no último
caso, o sujeito criador tem uma maior liberdade expressiva.
De acordo com Novato (2010) as expressões nos campos das artes, são uma
reunião simbólica que conecta a produção artística internacional com a criatividade
vinculada com a cultura popular local. Assim que, é necessário fazer uma distinção
848 TRANSCICLOPÉDIA EM DIFUSÃO DO CONHECIMENTO

entre Performance-art e Cultural Performance. A primeira, está relacionada com o


campo das artes, que tem um amplo destaque como estratégia de criação incluindo
confrontamento e hibridismo, dando como resultado, uma manifestação artística
contemporânea. Enquanto a segunda, se refere a uma prática cultural de origem
matricial-ancestral, que inclui raízes culturais da arte também na religião, em uma
tradução trazida pelos antepassados.
Geralmente, os artistas que se inspiram a acontecimentos religiosos, não
reproduzem, mas bem traduzem mediante a utilização de diferentes técnicas. Por
exemplo, um dos autores deste trabalho, interpretou através da fotografia as expressões
performáticas do corpo em condição de transe dos adeptos no Xirê. Sucessivamente,
as imagens foram elaboradas com técnicas gráficas-computacionais.
A inspiração criativa, como também, a compreensão da cosmovisão do
povo-de-santo, aconteceu a partir de uma vivência que se concretizou mediante
o diálogo com vários membros da comunidade, especialmente com o Babalorixá
Toluaye. Ele deu uma importante contribuição ajudando na tradução de certos
sucessos vinculados com a religião. Especialmente no início da pesquisa, o inves-
tigador não tinha uma profunda compreensão dessa religião, assim que precisava
de informantes, para poder melhor interpretar os acontecimentos expressivos do
corpo durante o Xirê.
Essa tradução, aconteceu mediante dispositivos e instrumentos de avaliação
polilógico, que se considera necessário um critério sensível do pesquisador, que
incluía vários elementos para poder chegar a um equilíbrio e que Galeffi (2017)
explica sucessivamente:
Que dispositivos e que instrumentos são necessários para avaliar polilogi-
camente? Há a disposição sensível e a disposição artística, o pensamento e
a ação como dispositivos. Fazer falar, fazer escrever, fazer ouvir, fazer sentir,
dialogar, acolher o singular como o plural, reconhecer a diferença, saber-sentir,
saber-pensar, saber ser-com saber fazer são instrumentos do avaliar polilógico.
Todo instrumento tem o sentido do operar e modelar a forma formante. O
instrumento é o médio da expressão. Por isso é preciso sempre aprimorar e
refazer os instrumentos, porque só se aprende através de instrumentos ou
meios de expressão (GALEFFI, 2017, p. 238).

Em realidade, dependendo do que se precisa fazer, são necessários instrumen-


tos de avaliação polilógico para poder escolher os dispositivos mais adequados, que
podem variar a depender do contexto e com que tipo de pessoas estamos interatu-
ando. Neste contexto, o modus operandi, inclui a reflexão e a compreensão sensível
e meditativa, para não chegar ao risco de poder ferir os sentimentos ou os hábitos
TRANSCICLOPÉDIA EM DIFUSÃO DO CONHECIMENTO 849

da comunidade. Sucessivamente, se encontra a fig. 7 que explica graficamente o


procedimento de avaliação polilógico-criativo.

Figura 7 – Sínteses dos instrumentos de avaliação polilógico-criativo

Fonte: Realização dos autores, inspirado em GALEFFI, 2017:239

Durante o processo de compreensão, se inclui também o componente criativo,


interpretando com paciência e equilíbrio, fenômenos da natureza incluídos em todos
os campos do conhecimento que estão presentes no mesmo Xirê. A criatividade, é
um elemento que faz parte do pesquisado, como também, dos adeptos, assim que
resultou maiormente interessante, durante o caminho da pesquisa, descobrir a
existência desse ponto em comum. Assim que, o processo polilógico possibilita ao
entendimento a través de uma análise diferenciada, tendo em conta da diversidade
e a complexidade do objeto de estudo.
Para poder contribuir estimulando a criatividade, é interessante a partir de uma
complexidade, incorporar ideias procedentes de distintos campos do conhecimento.
Por esse motivo, se considera coerente, incluir uma das mais importantes e valiosos
descoberta do século passado no campo da biologia da estrutura de dupla hélices
do DNA, por parte de Rosalind Franklin (1920-1958). É um manual de instruções
sobre a construção da vida. Define a unicidade que pertence ao humano, sendo
composta de códigos que determinam a peculiaridade do homem.
O DNA associado com o ARN8 tem a função de transmitir genes, dando como
resultado a diversidade do humano. O componente biológico do DNA, possibilita a

8
Macromolécula que ajuda o ADN nas funções de transmissão de genes e de sintetizar proteínas.
850 TRANSCICLOPÉDIA EM DIFUSÃO DO CONHECIMENTO

uma ulterior reflexão, na hipótese de que o DNA possa influir na criatividade humana
proporcionando originalidade nas formas de se expressar. Relembrando os princípios
da evolução da teoria darwinista, que Chaitin et al. (2014) consideram a continuação:
— O desenho sem desenhador- […] as mutações aleatórias do DNA geram
novos organismos; depois, a seleção natural se encarga de filtrar os mais aptos.
A criatividade procede das mutações. O entorno escolhe os melhores desenhos
e elimina os piores” (CHAITIN et al. 2014, p. 76, tradução dos autores).

Assim, é possível entender, que a natureza é criativa. Consequentemente, o


humano igual que outra coisa é um produto da mesma. A criatividade está incor-
porada no humano e definida por um código genético denominado DNA conteúdo
em qualquer parte do corpo e que Braden (2008) descreve da seguinte forma:
É o padrão genético que nos faz ser o que somos, sempre está ali no código
[…] ao igual que o universo está constantemente mudando do implicado ao
explicado, o fluxo do invisível ao visível é o que constitui a corrente dinâmica
da criação [...] É esta natureza incessantemente cambiante da criação [...]
Curiosamente, esta é a forma em que as antigas tradições sabias sugerem sobre
o funcionamento do mundo (BRADEN, 2008, p. 8, tradução dos autores).

Assistimos a um processo vinculado com uma indivisibilidade da natureza


que está em constante movimento no universo. Bohm e Peat (1988) ficaram fascina-
dos pelo enigma da criatividade, o mistério da natureza e a sua dinâmica perpetua,
incluindo todos seus componentes, em um processo de fluxo constante. Bohm e
Peat (1988), falando de revoluções científicas consideram que:
Iniciam com uma mudança radical que, mediante um amplo período de “ciên-
cia normal”, desenvolvem uma infraestrutura de ideias e pressupostos básicos
totalmente novos. […] estas transformações a longo prazo dentro do sistema
das ideias, praticamente inconsciente, implicam uma operação de criatividade
de forma contínua (BOHM y PEAT, 1988:70, tradução dos autores).

Em várias ocasiões, os cientistas do passado pesquisavam a partir de um sis-


tema metodológico rígido, limitando o conhecimento para eles mesmos e para os
fruidores. Tampouco levavam em conta a natureza da criatividade, que pela sua
complexidade precisa de aberturas em pensamentos e formas de compreensão mais
elásticas, incluindo em certos casos memória e ancestralidade que está incorporada
na complexidade das culturas deste planeta.
A seguir se encontra um desenho cognitivo (fig. 8), para poder melhor com-
preender o processo de transculturação e a constituição da cultura vinculada com
a dinâmica da natureza.
TRANSCICLOPÉDIA EM DIFUSÃO DO CONHECIMENTO 851

Figura 8 — Processo transcultural e construção da cultura

VARIÁVEIS

MEMÓRIA/RAÍZES CONSTITUIÇÃO DA

DESENVOLVIMENTO

Fonte: Elaboração dos autores, 2018

Para poder ampliar os horizontes do conhecimento é preciso ação, disposição e


pensamento, que são os dispositivos incluídos na avaliação polilógica, como também,
de paixão, coragem e flexibilidade. Assim, seria possível romper rígidos esquemas de
pensamentos científicos, já que não podemos observar só e exclusivamente de forma
objetiva. Isto é demostrado por meio das percepções e emoções de um artista, cujas
obras também fazem parte da natureza. Em vinculação ao pensamento, se considera
que é o transmissor para poder desenvolver a criatividade, e a natureza que incorpora
formas por se mesma, Bohm (2002) considera que
O primeiro passo para prestar ao pensamento e a linguagem a atenção que
se merecem é ver que o pensamento é real. Sua realidade pode se demostrar
mediante instrumentos como o eletroencefalograma onde se comprova
que não tem pensamentos sem câmbios elétricos e químicos, tensões
musculares, etc. Mas esta atividade que, por um lado, revelasse através
de tais instrumentos, pela outra considerasse uma função significativa,
interna e externa. (O aspecto interno é o pensamento, a imaginação, etc.,
enquanto o externo é a linguagem, a comunicação, a atividade prática, etc.)
852 TRANSCICLOPÉDIA EM DIFUSÃO DO CONHECIMENTO

[…] quase tudo o que vemos em nossa vida quotidiana são extensões do
pensamento. A natureza pode se considerar como aquilo que adopta forma
por se mesma, enquanto a atividade humana conduz a criação de artefatos,
modelados pela participação humana no processo natural, ordenado a
guiado pelo pensamento. O verdadeiro papel essencial do pensamento a
determinar não só a estrutura do entorno criado pelo ser humano, também
inclusive a estabilidade geral (ou instabilidade) de sua sociedade, que pode
se comparar perfeitamente com o DNA dos organismos vivos (BOHM,
2002, p. 112, tradução dos autores).

Ainda Bohm (2002) enfatiza o processo de criação de ideias em dois modelos:


o individual e o coletivo.
A criação de estruturas em um modelo é um processo fenomenológico -uma
atividade interna dinâmica que tem lugar antes que o acesso da experiência
consciente- ao mesmo tempo que o resultado da meticulosa recopilação dos
dados e da interpretação consensual. Deste modo a formação de ideias pode
se contemplar como uma construção individual criado momento a momento
e, por conseguinte, não necessariamente determinada pela ortodoxia predo-
minante. Comprometer-se com um “câmbio de ideia” é, pois, algo sensorial
e imediato, assim como epistemológico e histórico (BOHM, 2002, p. 13-14,
tradução dos autores).

É essa definição ampliada de criação que permite ao autor fazer comparações


entre aspetos — não representativos — da física do século XX e a perspectiva da arte
figurativa. Por exemplo, no século XIX a pintura clássica sofreu mudanças radicais
formadoras da arte moderno, em alguns casos sintetizando a figura representada em
abstração. Esse processo evolutivo de abstração, que inclui a intuição e as percepções
do pintor, lidando com pincéis, tintas e telas, lutando com uma realidade objetiva,
segue sendo o mesmo na atualidade
A abstração, segundo Bohm (2002) possibilita uma percepção mais ampla
da obra, e de uma “forma renovada: a criação ou visão destas obras” (BOHM,
2002:14, tradução dos autores) que precisa de um processo ativo de purificar, ou
seja, de traduzir a percepção e a experiência até sua alma. Examinar, mediante novas
estruturas se considera um ato criativo, por um lado porque não está vinculado com
condicionamentos históricos nem pessoais, possibilitando as perspectivas inovadoras
e absorção de impulsos que estimulam a criatividade.
Existem comunidades indígenas que podem ainda se comunicar com a na-
tureza, por meio de códigos criados por eles mesmos a partir da observação, das
necessidades, que são os resultados da inteligência humana, sendo componentes da
memória e da incorporação do conhecimento ancestral.
TRANSCICLOPÉDIA EM DIFUSÃO DO CONHECIMENTO 853

Para os povos que vivem em espaços urbanizados, algumas culturas são, em


várias ocasiões, ignoradas e as vezes até discriminadas. A natureza é imitada me-
diante a observação, sobretudo por parte de povos que vivem com ela em condições
sinérgicas. Assim, pode ser contemplada, absorvendo as energias propiciatórias do
universo, estimulando a criatividade e o equilíbrio psicofísico do humano.
Gregory Bateson (1904-1980) antropólogo visual e semiólogo inglês, passou
a última década da sua vida desenvolvendo uma “meta-ciência” da epistemologia
para reunir as várias formas iniciais da teoria de sistemas em desenvolvimento em
diferentes campos da ciência desafiando o pensamento tradicional demostrando que:
As separações são ilusórias e o funcionamento mental que se associa somente
aos seres humanos impregna toda a natureza, incluindo os animais, as prantas e,
incluso, os sistemas inorgânicos: sua extraordinária síntese criativa entre vários
campos do conhecimento demostrou que a mente e a natureza constituem uma
totalidade indivisível (Citado em GROF, 1999, p. 26, tradução dso autores).

Na contemporaneidade “nasceu” o termo biomimética (imitação da vida).


Em realidade é possível afirmar que não é novo, já que a partir da era primitiva, os
homens imitavam mediante a observação e a elaboração visual, as formas orgânicas
e inorgânicas de distintos componentes da natureza como, por exemplo, voláteis,
quadrúpedes, árvores, plantas e flores, entre outros.
Tudo tinha um sentido que estava vinculado com uma tradução através de
distintas expressões artísticas (danças, cantos, músicas e pinturas rupestres), como
também, mediante a construção de ferramentas pela caça, de cabanas, instrumentos
para cozinhar e que ainda podem-se encontrar vestígios em diferentes rincões deste
planeta.
Em relação a linguagem e a codificação icônica, ainda Bateson (1991) declara que:
As caraterísticas dos objetos de arte tratam de, derivam em parte, ou estão
determinadas por outros elementos dos sistemas culturais e psicológicos. Nosso
problema, pois, poderia representar-se de uma forma muito simplificada me-
diante o diagrama: [Características do objeto de arte/Características do resto
da Cultura] (BATESON, 1991, p. 103, tradução dos autores).

Ainda Bateson (1991) em relação a linguagem, considera o seguinte:


A palavra “conhecer” (know) é ambígua não só enquanto recobre as palavras
connaitre (conhecer pelos sentidos, reconhecer e perceber) e savoir (conhecer
na mente), sino que varia — alterna ativamente seu significado — por razões
sistemáticas básicas. O que conhecemos mediante os sentidos pode chegar a
ser conhecimento na mente (BATESON, 1991, p. 105, tradução dos autores).
854 TRANSCICLOPÉDIA EM DIFUSÃO DO CONHECIMENTO

Em relação aos estados de alteração de consciência do humano e a ancestralida-


de, as contribuições a psicologia moderna do psiquiatra Grof (1999) se aproximam a
psique a partir da transpessoalidade, ampliando os conceitos de arquétipo e incons-
ciente coletivo definidos por Jung (1970). As quatro matrizes perinatais (vinculadas
com um estado liminar, que vai do período anterior ou posterior ao nascimento do
bebé) se referem as experiências traumáticas do nascimento a partir da simbologia
e as experiências holotrópicas9, através de técnicas de meditação e respiração.
Os estados holotrópicos podem comparar-se aos que acontecem em certas
práticas espirituais, incluindo as religiões ou de meditação, transes, abstinências
de alimentos, ingestão de prantas, como também, os rituais com música, cantigas
e danças pertencentes a distintas culturas incluindo o Xirê no Candomblé, que
segundo Groff (1999) são obtidos mediante uma respiração rápida, hiperventilada
e com a ajuda de um certo tipo de música. Tudo o que se mencionou anteriormente
incorpora um conjunto criativo, interatuando sinergicamente.
As práticas espirituais, fazem parte de um processo cultural que em várias
ocasiões inclui os desenvolvimentos de rituais vinculados com elementos da natureza
que estimulam o homem a criatividade. De acordo com Dawkins (1993) pode-se
afirmar que a espécie humana é única, tendo em conta das diferentes ou extraordi-
nárias caraterísticas que: “podem se resumir em uma palavra: -cultura-. Não uso o
termo em sua conotação presumida sino como seria utilizada por um científico. A
transmissão cultural é análoga a transmissão genética enquanto, apesar de ser ba-
sicamente conservadora, pode dar origem a uma forma de evolução” (DAWKINS,
1993:215, tradução dos autores).
Ainda Dawkins (1993) afirma que a transferência cultural, não é um fenômeno
exclusivo do humano, levando em conta outros estudos, demostrando que pode
também acontecer no mundo animal, por exemplo, o canto de algumas espécies de
pássaros, varia a depender da área geográfica. A espécie humana é testemunha do
que a evolução cultural pode fazer de forma global. Não só a linguagem se desen-
volve, também a moda, a alimentação, os rituais, a arte, a tecnologia, entre outras.
Em relação a teoria de Darwin (1861) sobre a origem dos elementos da natureza,
incluindo a espécie humana, o autor considera o seguinte:
No caso da maioria dos nossos animais e plantas ancestralmente domesticados,
não creio que seja possível chegar a uma conclusão definitiva, tenham eles des-

9
Holotrópico deriva dos termos gregos “holos” (mover-se) e “trepein” (em direção da totalidade). A
respiração holotrópica permite atingir estados alterados de consciência, sem o auxílio de nenhuma
substância psicotrópica.
TRANSCICLOPÉDIA EM DIFUSÃO DO CONHECIMENTO 855

cendido de uma ou várias espécies. O argumento principalmente invocado por


aqueles que acreditam na origem múltipla de nossos animais domesticados é,
que encontramos nos registros mais antigos, mais especialmente no monumento
do Egito, muita diversidade nas raças; e que algumas das raças se parecem, talvez
idênticas, às que ainda existem. Mesmo que este último fato tenha sido encon-
trado mais estritamente e geralmente verdadeiro do que me parece ser o caso,
o que ele mostra, mas que algumas de nossas raças se originaram há quatro ou
cinco mil anos atrás? (DARWIN, 1861, p. 23, tradução dos autores).

Se considera que o humano e outras espécies criadas pela natureza são o produto
de vários acontecimentos vinculados com processos de transculturação e de transfor-
mações biofísicas, ou seja, onde contribuem as regras da natureza que dão origem a
uma diversidade e complexidade que se obtém gradualmente com o passar dos séculos.
Algumas transformações não são ditadas só pelas leis da natureza que se desenvolvem
mediante uma auto-organização. Em várias ocasiões é o ser humano que contribui, às
vezes desafiando a natureza de forma inconsciente, sem levar em conta as consequências,
com o resultado de prejudicar o ecossistema incluindo a mesma espécie.

CONSIDERAÇÕES FINAIS
Neste trabalho, se incluiu o diálogo de vários teóricos pertencentes a distintos
campos do conhecimento e que tem uma ideologia que consideramos se amolda
a nosso objeto de estudo, abordando um panorama vinculado com as culturas.
Enfatizou-se o Xirê, a través de uma visão estética, observando as expressões do
corpo e o componente criativo pertencente ao humano e a natureza. Tudo o que se
afirmou anteriormente, está relacionado com memória e ancestralidade, que está
incorporada no desenvolvimento das culturas deste planeta, que se evolucionam
em um dinamismo perpetuo e variável. Em qualquer caso a natureza demostra ser
fundamental e protagonista, inspirando ao humano durante a criação de artefatos
e as expressões corporais que se traduzem em performance. Se incluiu igualmente o
componente biológico e psicológico que contribui para essas variáveis da criativida-
de do homem e da natureza que se manifestam, com o desenvolvimento de certos
rituais que incorporam música, cantigas e danças, como também o arquétipo que faz
parte do inconsciente do humano e que traz essa essência ancestral, possibilitando
o desenvolvimento de atividades holísticas terapêuticas. Assim que, a pretensão é
estimular a uma visão mais ampla dirigida a compreensão e a coesão dos conhe-
cimentos das culturas e da criatividade do humano, resgatando assim os saberes
ancestrais e as práticas holísticas.
856 TRANSCICLOPÉDIA EM DIFUSÃO DO CONHECIMENTO

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W
94. Website

Thiago Novais Rodrigues

A palavra é de origem inglesa, oriunda da justa composição dos termos “web”


e “site”, onde web no inglês significa “teia”, e assim foi usada por Tim Berners-Lee,
ao criar em 1990 a “World Wide Web”, que atualmente é conhecida como “Rede
Mundial de Computadores”, mas até então deveria se entender como “Todo mundo
em Teia”, pois partia da ideia de que todos poderiam ligar suas páginas e conteúdos
em uma única rede(teia) global, atualmente bastante difundida no mundo inteiro
e muito utilizada, é reconhecida apenas como “web”.
Aqui vale salientar que web não é “internet”, e o que para muitos é até mesmo
um sinônimo, na verdade são coisas bem distintas, aonde internet é realmente a rede
mundial de computadores com propósito aberto, partindo do princípio da troca de
dados entre computadores e outros dispositivos, sendo usada para diversas finalidades
como email, atualização de sistemas remotos, comunicação, entre outros, e nesse
contexto a web é uma de suas faces, com o objetivo de interligar os mais diversos
conteúdos espalhados em uma rede computadores, no caso a internet.
Para esse objetivo, se faz uso principalmente do artifício de páginas web, que
são documentos digitais, com estrutura formal definida e padronizada, para a pu-
blicação de conteúdos digitais, assim como o recurso base para a formação da tal
teia, que seria o
“hiperlink” ou simplesmente “link” (ligação), que liga uma página/conteúdo
a outra página/conteúdo, assim constituindo a web propriamente dita.
Essas páginas e conteúdos ficam dispostos em computadores/servidores, que
pode ser um ou mais, e está tanto reunidos em um mesmo local físico, assim como
podem estar espalhados por cidades, países e até continues diferentes, ainda assim
um número indefinido de páginas podem representar um mesmo grupo, sendo
necessário um endereço virtual específico para referenciá-lo, e aqui se faz sentido
a palavra “site”, que no português é “sítio”, também derivada do latim “situs”, que
significa lugar, local. Logo website, é o endereço virtual de páginas eletrônicas na
web. E sua tradução de forma literal não é usual no Brasil, pois ninguém entenderia
o “Lugar na teia” como referência a páginas na web.
862 TRANSCICLOPÉDIA EM DIFUSÃO DO CONHECIMENTO

REFERÊNCIAS
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WIKIPÉDIA, Tim Berners-Lee. Disponível em: <https://pt.wikipedia.org/wiki/


Tim_Berners-Lee>. Acesso em: 19 fev. 2018.
Índice remissivo dos autores e autoras, com indicação do número
do tópico ou tópicos de sua autoria ou coautoria, em ordem
alfabética

A Eneida Santana 483


Érica Correia da Silva 362
Alessandro Malpasso 837 Eudes Mata Vidal 793
Alexandre Ghelman 333
Alexsandro da Silva Marques 134 F
Alfredo Eurico Rodrigues Matta 793
Alfredo Matta 304 Francisca de Paula Santos da Silva 304,
Alvaro Adriazola Uribe 33, 115, 441 793
Amilton Alves de Souza 344, 504, 685 Francisco José Aragão Pedroza Cunha
Ana Cristina de Mendonça Santos 269, 671
284, 506 G
Ana Maria Casnati Guberna 73
Ana Maria Casnati Guberna 41 Gedalva Neves da Paz 237
Ana Maria Ferreira Menezes 27, 281 Gilberto Pereira Fernandes 461
Ana Maria Maciel Bittencourt Passos 322 Ginaldo Gonçalves Farias 328, 489, 520,
Anita dos Reis de Almeida 771 631
Anselmo José da Gama Santos 829
Antonia da Silva Santos 225, 385 H
Antonio Cardoso 654 Hélio Souza de Cristo 771
Antonio Ribas Reis 227 Homero Gomes de Andrade 578
C I
Célia Tanajura Machado 366 Igor Bacelar da Cruz Urpia 679
Claudia Pereira de Sousa 58 Isabelle Pedreira Déjardin 189
Cláudia Pereira de Sousa 271 Ivana Libertadoira Borges Carneiro 688
Claudia Ribeiro Santos Lopes 73 Ivan Maia de Mello 102
D Iza Angélica Carvalho da Silva 183

Daniela Fernanda da Hora Correia 700 J


Dante Augusto Galeffi 21, 137, 189, 211, Jaildon Jorge Amorim Góes 501, 813,
271, 393, 559, 589, 736, 789, 823
813, 837 Jardelina Bispo do Nascimento 513
E Javier Collado-Ruano 175, 453
Jéssica Plácido Silva 667
Eduardo Oliveira 32, 261 João Paulo Jonas Almeida 211
Eledison Sampaio 807 José Francisco Barretto Neto 27, 281
864 TRANSCICLOPÉDIA EM DIFUSÃO DO CONHECIMENTO

José Garcia Vivas Miranda 545 O


Jose María Barroso Tristán 90, 479, 777
Joseni França Oliveira Lima 230 Osvanildo de Souza Ferreira 636
Juçara Freire dos Santos 427, 707
Júlia Carvalho Andrade 559, 674
P
Patrícia Souza Leal Pinheiro 568
L
Lela Pereira de Queiroz 239
R
Leliana Santos de Sousa 58, 271 Robenilson Nascimento dos Santos 393
Leonor Franco de Araujo 249 Rodrigo França Meirelles 671
Leonor Franco de Araújo 617
Lívia Santos Simões 674 S
Luciana Accioly Lima 726
Simone Gonsalves Mendes de Araújo
Luciana Martins 304
657
M Soltan Galano Duverger 125, 128, 497,
665
Marcílio Rocha-Ramos 132, 197, 347, Sônia Chagas Vieira 288
412, 533, 557
Márcio Vieira Borges 649 T
Marcos Vinícius Castro Souza 366, 501,
Tatiana Gargur dos Santos 545
679, 771
Teresinha Fróes Burnham 58, 59, 64,
Margarete Moraes 333
271
Maria Adelina Hayne N. Mendes 559
Thiago Novais Rodrigues 451, 861
Maria Celeste Souza de Castro 374
Thiago Rodrigues 27
Maria de Fátima Hanaque Campos 269
Maria Inês Corrêa Marques 18, 137, 288, U
322, 413, 568, 636, 829
María Luz García Lesmes 207 Urânia Auxiliadora Santos Maia de Olivei-
Marise Oliveira Sanches 58 ra 137, 413
Maristela Miranda 110

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