2022 - Zoia Prestes e Elizabeth Tunes - Pontes Ou Muralhas

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http://dx.doi.org/10.18224/educ.v25i1.

12439
ARTIGOS TEMÁTICOS
PONTES OU MURALHAS: EXAME
CRÍTICO DE TRADUÇÕES
DE CONCEITOS DA TEORIA
HISTÓRICO-CULTURAL *

Elizabeth Tunes **
Zoia Prestes ***

Resumo: o objetivo do presente trabalho é tecer um exame crítico de propostas


de tradução de alguns conceitos importantes da teoria histórico-cultural de Lev
Semionovitch Vigotski. Busca-se demonstrar que algumas dessas propostas refle-
tem um modo ocidental particular de pensar cujas bases se diferenciam bastante
dos fundamentos filosóficos e metodológicos da teoria de Vigotski. Parte-se de
um rápido exame da natureza da atividade de tradução e segue-se apresentando
alguns problemas e exigências para a elaboração de uma nomenclatura científica
própria da psicologia. Em seguida, examinam-se os conceitos de zona blijaiche-
vo razvitsia [zona de desenvolvimento iminente/proximal], obutchenie [instrução/
aprendizagem] e retch [fala/linguagem], criticando-se algumas propostas de tra-
dução para os mesmos e apontando equívocos a que conduzem na interpretação e
compreensão da teoria histórico-cultural elaborada por Vigotski.

Palavras-chave: Tradução. Zona de desenvolvimento iminente. Fala. Instrução.

* Recebido em: 29.05.2022. Aprovado em: 03.09.2022.


** Doutora e Mestre em Psicologia pela Universidade de São Paulo. Psicóloga
pela Universidade de Brasília. Foi professora da Pontifícia Universidade Ca-
tólica de São Paulo, da Universidade Federal de São Carlos e da Universidade
de Brasília. E-mail: [email protected].
*** Doutora em Educação pela Universidade de Brasília. Mestre em Ciências
da educação pela Universidade Estatal de Pedagogia de Moscou (União So-
viética). Graduada em Pedagogia e Psicologia pré-escolar pela mesma uni-
versidade. Professora da Faculdade de Educação da Universidade Federal
Fluminense atuando nas licenciaturas e no Programa de Pós-Graduação em
Educação. E-mail: [email protected].

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OBJETIVOS

T raduzir impõe imensos desafios. É uma realização quase impossível.


São inúmeras, profundas, inquietantes e desafiadoras as questões que
emergem dessa atividade. Elas não passam despercebidas e têm sido exa-
minadas há tempos por diversos autores. As circunstâncias que envolvem
a constituição das culturas humanas sejam sociais, econômicas, históri-
cas, linguísticas concorrem todas elas para a apreensão do significado e
escolha do sentido de uma palavra, de uma frase, de um conceito pelo
tradutor. Desse modo, necessariamente, o sentido crivado por ele reflete
o seu próprio modo de pensar que, também necessariamente, insere-se no
modo particular de organização da cultura a que pertence. Isso é inevitável
e, com certeza, engendra muitas imperfeições no modo de compreender
um fato, um conceito ou uma teoria científica. Enfim, pode-se dizer que
traduzir é uma

forma de pensamento que explora os procedimentos cotidianos de uma


língua. [...] traduzir é desafiar a intraduzibilidade [...] criar equiva-
lências de comunicação [...] saltar sobre abismos. Compreender que
há diferentes modos de se dizer algo. Possibilitar o alargamento do
horizonte de sua própria língua [...] é refletir, interiorizar o pensamento
na busca de dizer algo de outro modo, voltar para a comunicação com
uma solução aproximativa. De modo geral, traduzir é uma atividade
reflexiva (OLIVEIRA, 2017, p. 48).

No presente texto são examinadas, criticamente, traduções pro-


postas para alguns conceitos importantes da obra de Lev Semionovitch
Vigotski, com vistas a demonstrar que algumas refletem muito mais um
modo ocidental particular de pensamento cujos fundamentos não parecem
corresponder adequadamente àqueles adotados por ele, na elaboração da
teoria histórico-cultural. Foram escolhidos para exame os conceitos de
zona blijaichevo razvitsia [zona de desenvolvimento iminente/proximal],
obutchenie [instrução/aprendizagem] e retch [fala/linguagem]. Além disso,
será também examinada a proposição bastante difundida de que Vigotski
entende a função do professor como a de um mediador, talvez, por se
compreendê-la como a função de alguém que apenas faz mediação sígnica

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[snacovoe oposredovanie], o que distorce, por inteiro, o modo como ele
concebe o importante papel do professor e o do conhecimento na relação
entre instrução e desenvolvimento.

SOBRE A POSSIBILIDADE E A LEGITIMIDADE


DA TRADUÇÃO

[...] a sociedade é a base da realidade [...] o homem


é real somente como membro da sociedade [...] o in-
telecto não é real, a não ser que pense em alguma
língua.
Vilém Flusser

Na sua busca por ordem, o homem transforma o mundo de caos em


cosmos, em sistema bem ordenado. Essa façanha é realizada pela língua,
conforme Flusser (2004). Para ele, há uma identidade estrutural entre língua
e cosmos; a maioria das informações de que dispõe nosso intelecto, isto é,
a matéria prima de nosso pensamento, são palavras:

O intelecto senso stricto é uma tecelagem que usa palavras como fios.
O intelecto “senso lato” tem uma ante-sala na qual funciona uma fiação
que transforma algodão bruto (dados dos sentidos) em fios (palavras). A
maioria da matéria-prima, porém já vem em forma de fios (FLUSSER,
2004, p. 40).

Conforme o autor referido, o intelecto produz e é produzido por


palavras e se realiza apenas na palavra, por meio da conversação, que trans-
forma o caos em cosmos: “O intelecto em conversação conserva e aumenta
o território da realidade. Realizando-se, realiza” (FLUSSER, 2004, p. 50).
Desse modo, pode-se dizer que o intelecto é ou existe no cativeiro da língua.
Se a sua realização é condicional a sua materialização numa língua, somos
forçados a concluir que há tantas formas de realização do intelecto quantas
línguas existem. Dessas afirmações decorrem desdobramentos bastante
instigantes acerca da tradução e do conhecimento científico. Evidentemen-
te, não vamos tratar dessas duas questões em toda a profundidade que elas
comportam, mas apenas pincelar pequenos traços que interessam à discussão
central deste artigo e consecução de seu objetivo.

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No que tange à tradução, a primeira pergunta que vem à mente é se ela é
possível, se é legítima. Se, como ponto de partida, admitirmos as proposições
de Flusser (2004) de que todos os pensamentos são resultados da língua em
que são formulados, são frases de uma determinada língua e que, se traduzi-
dos para outra língua, adquirem novo significado, certamente, diferente do
original e, portanto, não pretendido por seu autor, teríamos que admitir que a
tradução é sempre ilegítima e que haverá tantas ciências de uma mesma coisa
quantas forem as línguas para as quais as formulações científicas originais
se traduzem. Ou seja, o mundo seria uma gigantesca torre de Babel, formada
de pequenos mundos autóctones e incomunicáveis entre si. Entretanto, é o
próprio Flusser que nos aponta a saída desse beco. Examinando, compara-
tivamente, o português, o alemão e o inglês que são três línguas flexionais
e, portanto, “perfazem a conversação resultante na civilização ocidental”
(FLUSSER, 2004, p. 128), ele demonstrou que, a despeito de diferirem entre
si quanto às palavras e conceitos, às regras, tipos de frases e pensamentos,
em todas elas, as estruturas são do mesmo tipo, isto é, as frases se compõem
de palavras relativamente constantes, flexíveis, com um modo hierárquico
de organização. Assim sendo, as palavras e os pensamentos, que diferem de
uma língua para outra, são comparáveis entre si, garantindo a possibilidade
de tradução e de conversação entre línguas, o que deu origem à civilização
ocidental. Ao mesmo tempo, essa possibilidade é indicativa da existência de
um cosmos diferente que corresponde à estrutura de cada língua individual.

Cada língua é um mundo diferente, cada língua é o mundo inteiro, e


diferente de toda outra língua. Esse paradoxo resolve-se se consideramos
que cada língua inclui em seu mundo todas as demais línguas pelo mé-
todo da tradução. O intelecto, realizado na conversação de uma língua
específica, apreende, compreende e articula a realidade específica de sua
língua. Pelo método da tradução pode participar de diversas realidades
(FLUSSER, 2004, p. 128)

Há, pois, nobreza na arte da tradução e somos forçados a concordar


com Bernardo em seu prefácio à obra de Flusser aqui referida, que a “tra-
dução, forçando uma língua a dobrar-se, a acompanhar as curvas de um
pensamento estrangeiro, seria talvez o meio mais requintado de comunhão
espiritual entre as nações” (BERNARDO, 2004, p. 15).

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Vê-se, assim, que, a despeito de ser um sistema completo, toda língua
não é um sistema fechado, o que possibilita a transição entre cosmos distin-
tos. Ou seja, a tradução é uma possibilidade (FLUSSER, 2004). Todavia,
será ela legítima? Tomando os exemplos examinados por Flusser, somos
levados a concordar com ele que ela é apenas, aproximadamente, legítima
(por exemplo, a tradução de Eu vou, no português, para I go, no inglês, é
uma aproximação, quando levamos em conta que não podemos traduzir
Vou estudar para I go study) e que essa legitimidade é função do grau de
parentesco entre as línguas: quanto menor esse grau, tanto menos legítima
será a tradução.
Devemos dar vivas à possibilidade de tradução. Durante esse processo,
no momento mesmo em que se realiza, o intelecto, por instantes, liberta-
-se do cativeiro da língua, e se aniquila. Contudo, rapidamente, penetra no
cativeiro da outra língua, ressurgindo. A tradução é, continuamente, morte
e ressurreição do intelecto. Devemos dar vivas ao fato de serem as línguas
“sistemas abertos que se cruzam com grande facilidade e promiscuidade”
(FLUSSER, 2004, p. 60).

SOBRE CIÊNCIA PSICOLÓGICA E TRADUÇÃO

Se, conforme já sugerido, ao ser feita a tradução de uma língua para


outra, as frases adquirem um significado diferente do original, por ser a
tradução apenas aproximadamente legítima, haveria tantas ciências de
um mesmo objeto quantas fossem as línguas para as quais as formulações
científicas originais se traduziriam. Entretanto, isso não acontece pois, os
resultados obtidos pelos estudos científicos demonstram validade em todas
as línguas, como nos indica Flusser (2004). Isso se deve a que a ciência é ela
própria uma língua, mesmo que bastante recente e, por isso, ainda incomple-
ta. Há, assim, dada essa incompletude, a necessidade de tradução contínua
da língua científica para o português, o inglês, o francês, etc. Essa visão
flusseriana é bastante instigante, provocativa e, certamente, desencadeia
inúmeras questões na mente do leitor. Certamente, caberia desenvolvê-las e
examiná-las aqui. Entretanto, isso acarretaria grande ampliação do volume
do presente texto. Assim, foi feita a opção de adotar-se a posição flusseriana
como premissa, dando-se continuidade ao raciocínio necessário para que
sejam cumpridos os objetivos da presente exposição.

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A incompletude da língua da ciência a que se refere Flusser (2004),
ciência tal como a conhecemos desde o Renascimento, faz-se muito maior
na psicologia, cujo desabrochar como disciplina científica é bastante recente.
Aconteceu a pouco mais de um século. A psicologia foi uma das últimas
disciplinas a se desgarrar da filosofia. Indevidamente, talvez? Terá sido
como a língua portuguesa, tal como cantou o poeta?

Última flor do Lácio, inculta e bela


És, a um tempo, esplendor e sepultura
Ouro nativo, que na ganga impura
A bruta mina entre os cascalhos vela

Amo-te assim, desconhecida e obscura


Tuba de alto clangor, lira singela
Que tens o trom e o silvo da procela
E o arrolo da saudade e da ternura

Amo o teu viço agreste e o teu aroma


De virgens selvas e de oceano largo
Amo-te, ó rude e doloroso idioma

Em que da voz materna ouvi: "meu filho"


E em que Camões chorou, no exílio amargo
O gênio sem ventura e o amor sem brilho

Toda comparação tem limites e imprecisões. É claro que não cabe


dizer que a psicologia seja o túmulo da filosofia. A filosofia não morreu, mas
tem sido muito negligenciada pela filha mais jovem. Num importante texto
que escreveu, em 1927, Vigotski chamou a atenção para essa negligência,
já na epígrafe, ao citar frase do Evangelho segundo Mateus: “A pedra que
os construtores rejeitaram se tornou a pedra angular” (PRESTES; TUNES,
no prelo, p.1). Logo no primeiro parágrafo, o autor destaca o fato curioso
de que os clamores sobre a falta de fundamentos que permitiriam conferir
uma unidade à ciência psicológica, então, em sua primeira infância, pro-
vinham não dos filósofos ou dos teóricos, mas exatamente do setor que se
ocupava da prática, da psicologia concreta. Diz ele: “O avanço em linha

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reta, a simples continuação do mesmo trabalho e o acúmulo gradual de
material se mostra estéril ou até mesmo impossível. Para seguir adiante, é
preciso demarcar um caminho” (VIGOTSKI, no prelo, p. 3). Mais adiante,
ele completa, baseando-se em fundamentos de Marx: “Quando se conhece
o final do caminho é mais fácil compreendê-lo como um todo, assim como
o sentido de cada etapa” (VIGOTSKI, no prelo, p. 7).
Em sua defesa de uma unidade da ciência psicológica, Vigotski
examinou inúmeras questões relativas aos fundamentos e ao método desta
ciência, incluindo a importante questão da criação de uma nomenclatura
própria da psicologia ou, no dizer de Flusser, da língua desta. Vigotski en-
tendia que a psicologia precisaria criar sua própria nomenclatura, ancorada
em princípios sólidos e métodos bem definidos, assim como, por exemplo,
já acontecia com a biologia, a química e a física. Todavia, essa tarefa não
deveria ser realizada de um modo puramente formal e arbitrário, mas ne-
cessitaria se ancorar num método bem definido que, para ele, consistia no
estudo histórico, conforme disse:

Do mesmo modo que o político extrai a regra para sua ação da análise
dos acontecimentos, extrairemos destas nossas regras para organizar a
investigação científica e metodológica, que se baseia no estudo histórico
das formas concretas que a ciência adotou, analisando-as teoricamente
para chegar a princípios generalizadores, verificados e válidos. Em
nossa opinião, é aí que deve estar o germe dessa psicologia geral [...]
(VIGOTSKI, no prelo, p. 9).

Cabe, aqui, chamar a atenção do leitor para o fato de que, à época de


Vigotski, a proposta da psicologia como ciência mal deixara as fraldas e esta
começara a se organizar numa profusão das chamadas escolas ou tendências
com variadas e múltiplas incompatibilidades entre si, cada uma lutando por
sua hegemonia e reivindicando para si a exclusividade do status de psico-
logia científica. Com base no estudo histórico dos princípios e métodos das
principais tendências da psicologia, tecendo um exame crítico comparativo,
Vigotski estabeleceu e anunciou alguns importantes fundamentos e postula-
dos que embasam toda a sua proposta teórica. Ele ansiava por uma unidade
da psicologia, e entendia como sua também a tarefa de pensar formas de
unificar a psicologia até ao ponto que bastaria chamá-la simplesmente de

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psicologia, sem qualquer adjetivo, já a entendendo, assim, como científica.
Fazer de outro modo equivaleria a chamar a biologia de darwinista, o que
não faz o menor sentido. Também não se justificaria, segundo sua opinião,
adjetivar de algum modo a psicologia, por exemplo, denominando-a de
marxista. Isso seria equivalente a um historiador dizer “história marxista
da Rússia”, o que também carece de sentido. Conforme disse, a psicologia
marxista não seria

uma escola entre outras, mas a única psicologia verdadeira como ciência;
outra psicologia, afora ela, não pode existir. Pelo contrário, tudo que já
existiu e existe de verdadeiramente científico na psicologia faz parte da
psicologia marxista. Esse conceito é mais amplo que o de escola e o de
corrente. Coincide com o conceito de psicologia científica, em geral, onde
quer que se estude e seja quem for que o faça [...]. Afinal, “psicologia”
é o nome de uma ciência e não de uma obra de teatro ou de filme. Ela
somente pode ser científica. Ninguém pensaria em chamar de astronomia
a descrição do céu num romance; tampouco serve o nome “psicologia”
à descrição dos pensamentos de Raskolnikov e dos desvarios de lady
Macbeth. O que não descreve, cientificamente, a psique não é psicologia,
mas algo distinto, qualquer outra coisa... (VIGOTSKI, no prelo, p. 179).

A tarefa a que se propôs não foi a de distinguir o próprio trabalho do


que fora feito no passado. O que ele pretendia era contribuir lançando as ba-
ses para diferenciar a ciência da não ciência, a psicologia da não-psicologia.
Ele não desejava criar uma nova escola e reconhecia que a criação de uma
psicologia verdadeiramente científica era tarefa de muitos, no decorrer de
muitos anos. Admitia, portanto, que a psicologia de que falava ainda não
existia e apenas começava a se estruturar no limiar de uma nova sociedade
que surgia, pois via como impossível que se desenvolvesse na velha socie-
dade. Para ele, era impossível dominar a verdade sobre a personalidade e a
própria personalidade sem dominar a verdade sobre a sociedade e a própria
sociedade. Somente numa nova sociedade a psicologia poderia ocupar o
centro da vida:

O salto do reino da necessidade ao reino da liberdade trará, inevita-


velmente, a questão do domínio de nosso próprio ser, de subordiná-lo a

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nós mesmos. Assim, tinha razão Pavlov, ao denominar nossa ciência de
a última ciência do homem como tal. Será, com efeito, a última ciência
do período histórico da humanidade ou ciência da pré-história dessa
humanidade. A nova sociedade criará o homem novo (VIGOTSKI, no
prelo, p. 181).

Assim, numa mimese à última flor do Lácio, a psicologia se faria


sepultura não da filosofia, mas da história. Esse foi o vaticínio de Vigotski.
Quase cem anos depois, essa profecia – ou seria apenas um desiderato? –
ainda não se cumpriu. A psicologia continua a ser pronunciada no plural e
ainda carrega fortes adjetivações. A maior prova dessa irrealização é o fato
de se identificar a própria teoria de Vigotski como psicologia histórico-
-cultural. Na realidade, até os dias de hoje, a psicologia somente existe no
plural, não houve a pretendida unificação da mesma. A rigor, nos termos
vigotskianos, ela ainda não se tornou, estritamente, uma ciência. Será que
um dia se tornará? Um fato é certo. Se correto em suas previsões, somente
em uma nova sociedade isso será realizável. Curiosamente, essa perspectiva
torna as proposições teóricas de Vigotski adiantadas em, praticamente, um
século, no mínimo. É uma teoria do futuro. Uma teoria do amanhã. Haverá
esse amanhã? Há muitos e fortes indícios de que ainda se luta por ele. A
forte e ampla permanência da teoria de Vigotski é um desses indícios e não
é por mero acaso que tentam, a todo custo, descaracterizá-la.
Desde que foi desembarcada na parte mais ocidental do nosso mundo
ela vem passando por reconstituições e descaracterizações que, por vezes,
a tornam uma pálida lembrança do que foi quando proclamada pela fala de
seu criador. Há muitas formas de descaracterizá-la ou de a empalidecer, por
exemplo, tecendo comparações entre conceitos dela e de outras teorias, de-
monstrando ligações onde se encontram abismos intransponíveis. Contudo,
a mais poderosa forma de enfraquecê-la, de torná-la igual a todas as outras
em importância ou até mesmo irrelevante é por meio da tradução, talvez,
por ser também o modo mais fácil e ágil.
Toma-se um conceito aqui, outro acolá e, por variadas razões,
carimba-se nele uma palavra da nova língua, divulga-se e, pronto. Eis aí
a nova palavra que, na maioria das vezes, na verdade, é outro conceito,
diferente daquele formulado no idioma original. Isso ocorre por distintas
razões, a maioria das quais, quase sempre, sequer é consciente ao tradutor,

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o que nos impede de afirmar que a ação tenha sido praticada intencional-
mente. O açodamento, a irreflexão, a má compreensão da teoria, a pouca
profundidade no estudo e na compreensão dos fundamentos filosóficos e
metodológicos da teoria, em geral, encontram-se na base da grande maioria
das más traduções. É verdade que o acesso à obra de Vigotski é bastante
dificultado pela própria língua em que foi escrita – comparativamente a
outras línguas como o espanhol, o inglês, francês, italiano, etc., poucas
pessoas dominam o russo como segunda língua – e, principalmente, pelo
fato de não se ter acesso à obra completa do autor, o que possibilitaria maior
aprofundamento no estudo, compreensão e interpretação de suas ideias.
Contudo, nada disso pode justificar a permanência no erro. Ele precisa ser
corrigido imediatamente, tão logo seja detectado, pois quanto maior a sua
permanência, maior a porosidade e vulnerabilidade do pensamento original
à penetração de ideologias estranhas e indevidas, solidificando-se, no final
das contas, completa deturpação e descaracterização das ideias do autor
pela via da tradução mal feita e resistente à correção. A revisão é sempre
bem-vinda, não é um mal.
Traduzir é correr riscos. Isso não deve inibir as iniciativas de fazê-lo.
Entretanto, é preciso que se tenha consciência desses riscos e enorme dispo-
sição e humildade para reconhecer, voltar atrás e corrigir erros cometidos.
Traduzir implica o aniquilamento do eu, conforme aponta Flusser (2004),
ainda que no mero instante de transição de uma língua a outra, e requer um
compromisso ético com o autor traduzido (PRESTES, 2020).
Há profundas diferenças entre tradutores construtores de pontes e
tradutores construtores de muralhas. Precisamos saber reconhecê-las. Os
primeiros procuram, incessantemente, pelos mesmos fundamentos da cons-
trução original e criam condições de possibilidade de autêntica comunhão
espiritual entre homens. Os segundos descuidam dos fundamentos, fazem
descaso deles e acabam por erigir muralhas que impossibilitam ou, no mí-
nimo, dificultam essa comunhão tão desejável e salutar.
A seguir, são apresentados alguns fundamentos das pontes que, desde
a primeira década deste século, as autoras deste artigo têm tentado construir
no âmbito da tradução de conceitos importantes da teoria de Vigotski.

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ZONA BLIJAICHEGO RAZVITIA: TEMPO
E DESENVOLVIMENTO

A teoria elaborada por Vigotski já recebeu diversas denominações.


Luria (1992, p. 48), em sua autobiografia afirma:

Vygotsky gostava de chamar essa abordagem de psicologia "cultural",


"instrumental" ou "histórica". Cada um desses termos refletia uma carac-
terística diferente da nova abordagem que ele propôs para a psicologia.
Cada qual enfatizava uma das facetas do mecanismo geral pelo qual a
sociedade e a história social moldam a estrutura daquelas formas de
atividades que distinguem o homem de outros animais.

Em 2003, foi possível o acesso a outra versão do prefácio, escrito por


Vigotski, para o livro de A. N. Leontiev Razvitie pamiati [Desenvolvimento
da memória] (LEONTIEV, 2003)1. Nela, Vigotski atribui uma denominação
à teoria que estava desenvolvendo.

A principal ideia deste livro e, ao mesmo tempo, a ideia principal de


todas a investigações, junto às quais ele adquire um sentido autêntico e
um significado próprio, é o reconhecimento do desenvolvimento histórico
da personalidade do homem e suas funções psicológicas. Essencialmente,
a assim denominada teoria do desenvolvimento histórico (ou histórico-
-cultural) na psicologia representa a teoria das funções psicológicas
superiores (memória lógica, atenção voluntária, pensamento verbal,
processos volitivos, etc.) – nem mais e nem menos (VIGOTSKI, 2003,
p. 200, grifos do autor).

Para além de dissipar qualquer dúvida a respeito do nome da teoria


elaborada por Vigotski, pode-se afirmar que os dois autores deixam evidente
que história e cultura são conceitos basilares e articuladores. Esse fato tem
repercussão importante para a discussão que se quer fazer do conceito Zona
Blijaichego Razvitia, termo que ganhou notoriedade com a tradução para o
português como Zona de Desenvolvimento Proximal, principalmente, entre
professores que têm na ponta da língua mais ou menos a seguinte definição:
fazer junto com o aluno para que, depois, ele faça sozinho.

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Teria Vigotski dedicado tanto esforço, em sua curta vida e volumosa
produção intelectual, para elaborar um conceito teórico com intuito de
compreender a relação entre atividade humana e desenvolvimento, caso a
definição fosse tão simples? O que será que o teórico quis enfatizar com
o termo blijaichego? A palavra proximal (como a palavra blijaichego foi
traduzida para o português) transmite com precisão científica o significado
do que é mais importante nesse termo para o pensador?
Vigotski era um homem de seu tempo e continua, até hoje, desafiando
a todos com suas ideias. Não à toa, vivendo os conturbados anos pós-revo-
lução Socialista de Outubro, dedica-se a questões da educação, realizando
pesquisas sobre o desenvolvimento humano, apresentando discussões iné-
ditas e originais que contrastavam com as formulações teóricas ocidentais
de sua época. Seu objetivo principal era investigar e compreender, tendo
por base o materialismo histórico-dialético, a natureza social das funções
psíquicas superiores, as estritamente humanas, e rechaçar, principalmente,
as visões pautadas no determinismo biológico.
Nesse sentido, os estudos desenvolvidos por Vigotski sobre desen-
volvimento infantil, seguindo o rigor teórico e metodológico imprescindível
para a ciência, apresentam ideias que podem colaborar para a organização
da situação social de desenvolvimento no processo de instrução e o conceito
Zona Blijaichego Razvitia tem o peso enorme, em especial, porque atribui
ênfase à categoria tempo.
Em diversos trabalhos publicados há mais de 10 anos, as autoras do
presente texto empreenderam esforços para análise e discussão desse impor-
tante conceito, apresentando críticas às escolhas que foram feitas por alguns
tradutores (PRESTES, 2021). Afinal, trata-se de construtos científicos e,
como dito anteriormente, a precisão na tradução de conceitos é imprescin-
dível. Não são preferências pessoais e muito menos o desejo de concorrer
com a popularidade das escolhas feitas por tradutores da obra de Vigotski
para o português, como é possível encontrar em algumas produções no Bra-
sil. A defesa feita pela tradução para Zona de Desenvolvimento Iminente (e
não proximal e, muito menos, imediato) fundamenta-se na compreensão de
que desenvolvimento, para Vigotski, é uma possibilidade de emergência de
algo novo por meio da colaboração, das relações de convivência (obschenie)
estabelecidas entre as pessoas em atividade. Isto é, não basta fazer junto para
que, num momento seguinte, se faça de forma autônoma. Para que haja de-

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senvolvimento, para que funções psicológicas superiores emerjam e passem
para o plano individual, transformando o comportamento do ser humano, é
preciso estabelecer uma relação de convivência, um diálogo autêntico com
o outro, compreender sua forma de agir e pensar. Afinal, a transposição de
modos de comportamento para o plano interno, para o plano individual não
ocorre de forma mecânica ou automática. Está, isso sim, ligada à alteração
da estrutura e da função de todo o processo de desenvolvimento que se apre-
senta como um estágio peculiar das formas superiores de comportamento
(VIGOTSKI, 1984, p. 71). A Zona de Desenvolvimento Iminente refere-se
à possibilidade de ocorrer um processo de grande importância psicológica:
o domínio de modos culturais do próprio comportamento com a colabora-
ção do outro (numa atividade coletiva), que pode gerar um novo sistema
psicológico muito mais complexo. São neoformações que passam a ser
“patrimônio” da pessoa, de sua personalidade e “se transformam em meios
sociais do comportamento aplicados a si mesmo” (VIGOTSKI, 1984, p. 71).
As palavras: proximal ou próximo, embora possam carregar algum
sentido de proximidade temporal, induzem facilmente à compreensão de
proximidade espacial, o que está mais perto (LALANDE, 1999, p. 880),
ou seja, ligam-se mais à categoria espaço. Por sua vez, a palavra iminente
diz respeito ao que está a ponto de acontecer e, portanto, liga o pensamento
mais fortemente à categoria tempo. Por isso, é mais adequada e mais precisa
para se referir ao que Vigotski conceitua.

A RELAÇÃO INSTRUÇÃO E DESENVOLVIMENTO

Muitos estudiosos do fenômeno denominado de aprendizagem foram


contemporâneos de Vigotski e produziram importantes estudos no período
de vida deste autor. Por exemplo, E. L. Thorndike publicou um trabalho no
ano em que Vigotski nasceu (1898) e, em 1928, um livro intitulado Adult
learning, pela editora Macmillan, em Nova York. E. R. Guthrie, identificado
como autor de uma das teorias de aprendizagem (teoria do condicionamento
contíguo) publicou, em 1930, um artigo com o seguinte título Conditioning
as a principle of learning, no importante periódico Psychological Review.
Em 1920, C. L. Hull, também conhecido como um dos teóricos da apren-
dizagem, publicou um artigo na Psychological Monographs com o título
Quantitative aspects of the evolution of concepts: an experimental study.

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Outro teórico da aprendizagem, E. C. Tolman, também na Psychological
Monographs, em 1917, tem um artigo intitulado Retroactive inhibition as
affected by conditions of learning (para uma boa revisão das teorias de
aprendizagem, ver HILGARD, 1966). Citam-se aqui apenas alguns teóricos
da aprendizagem e um ou outro artigo ou livro que escreveram em cujo
título aparece a palavra aprendizagem (learning). Vários deles, inclusive,
aparecem citados na obra de Vigotski.
Um teórico da grandeza deste autor, que elabora uma complexa teoria
do desenvolvimento cultural da criança, que conhece e cita vários estudiosos
e teóricos da aprendizagem, que tem todo o cuidado e rigor de deixar claras
as bases e fundamentos que adota ao tratar do conceito de desenvolvimento,
empregaria o conceito de aprendizagem, relacionando-o ao de desenvolvi-
mento, sem apresentar um fundamento teórico sequer a respeito do mesmo?
As pessoas que traduziram assim a expressão que ele emprega em russo
(obutchenie) não se preocuparam e nem sentiram a menor necessidade de
compreender o que ele entenderia por aprendizagem, uma área de estudos da
psicologia de tamanha complexidade? Pela ausência desse cuidado na obra de
um autor que preza pela precisão e rigor metódico, não chegaram a duvidar,
em momento algum, que a tradução poderia estar equivocada? Não leram ou,
ao menos, consultaram a versão para o inglês de Mishlenie i retch – Thinking
and Speech – (VYGOTSKY, L. S., 1987)? Nela, é esclarecido o seguinte:

o termo aqui traduzido como ‘instrução’ (obutchenie) foi traduzido


em outros textos como ‘aprendizagem’. Nenhum desses termos é uma
tradução inteiramente adequada do vocábulo russo. Obutchenie é a
forma nominal associada com o verbo ativo utchit (‘ensinar’) e o verbo
reflexivo utchitsia (‘ser ensinado’, ‘aprender por meio da instrução’,
‘estudar’). Assim, o vocábulo obutchenie parece-nos implicar o processo
de ensino-aprendizagem envolvido na instrução; não meramente a ação
do instrutor ou do aprendiz. Aqui, empregamos o termo ‘instrução’ por-
que, assim como o vocábulo obutchenie, ele implica uma transmissão
intencional de conhecimento, ao passo que o termo ‘aprendizagem’ não
parece fazer isso (RIEBER; CARTON, 1987, p. 388).

Em relação a essa nota, há apenas um reparo a fazer. Para Vigotski, a


instrução é, claro, intencional, mas não se trata de transmissão de conheci-

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mento. Essa ressalva que aqui se faz diz respeito ao modo como ele concebe
o papel do professor que não é o de transmissor de conhecimento, um mero
gramofone, mas o de organizador do ambiente social de desenvolvimento.
Para ele, nessa organização, o professor deve ter em mente que não basta
ao estudante apreender um conteúdo, é preciso que ele o empregue como
um “instrumento” para si próprio, como um instrumento que lhe possibilite
o domínio do próprio pensamento (VIGOTSKI, 2003).
Vê-se, mais uma vez, que não é de aprendizagem que ele trata, mas de
autodesenvolvimento. Por essa razão, não seria correto dizer que o professor
tem função de mediador, que toma um conteúdo e o transfere para a cabeça
do aluno. A função do professor é de muito maior complexidade: ele deve
organizar o meio social do estudante de modo a propiciar condições que
possibilitem o seu autodesenvolvimento, isto é, a emergência de formas de
domínio das próprias funções psíquicas, seja o pensamento, a atenção, a
memória, a imaginação, etc. Isso não é a mesma coisa que mediar. É, acima
de tudo, atuar, agir sobre o meio, organizando-o para que o estudante possa
disso tirar o maior proveito em termos de autodesenvolvimento.

PENSAR E FALAR SÃO AÇÕES

Para finalizar o breve exame feito a respeito de alguns conceitos que,


ao que parece, têm implicações para a compreensão dos fundamentos da
teoria histórico-cultural, analisa-se, mais uma vez, a palavra russa retch. Não
há a pretensão de repetir argumentos de trabalhos anteriores (PRESTES,
2021), enseja-se tentar dissipar dúvidas que ainda parecem persistir entre
pesquisadores brasileiros que insistem em adotar a palavra linguagem para
traduzir o que, na verdade, significa fala.
Na obra Orudie i znakv razvitii rebionka (Instrumento e signo no
desenvolvimento da criança), Vigotski afirma:

O homem, ao submeter o processo de reação a seu poder, entra numa


relação completamente nova com o meio circundante, chegando a um
novo emprego funcional de elementos do meio que se configuram como
signos-estímulos, com o auxílio dos quais, apoiando-se em ferramentas
externas, orienta e regula seu comportamento, passando a dominar a si
mesmo, forçando os signos-estímulos a influir sobre si e provocar reações

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que deseja. A regulação interna da atividade racional surge, inicial-
mente, da regulação externa. A ação reativa, provocada e organizada
pelo homem, deixa de ser reativa e torna-se orientada para um objetivo.
Nesse sentido, a história filogenética do intelecto prático está intimamen-
te ligada não apenas ao domínio da natureza, mas também ao domínio
de si. A história do trabalho e a história da fala mal podem ser com-
preendidas uma sem a outra. O homem criou não apenas as ferramentas
de trabalho, com o auxílio das quais submeteu a seu poder as forças da
natureza, mas também criou estímulos que impulsionam e regulam seu
próprio comportamento, submetendo suas forças a seu domínio. Isso
pode ser observado nos estágios iniciais de desenvolvimento do ser
humano (VIGOTSKI, 1984, p. 83-84, grifo nosso).

De acordo com esse trecho, vê-se que a fala (cuja forma superior é
a palavra) surge ao mesmo tempo que os instrumentos que auxiliam o ser
humano em suas ações de trabalho. Ou seja, se for correta a afirmação de
Engels de que o trabalho criou o homem, seria também correto dizer que,
para Vigotski, o trabalho fez emergir as funções psíquicas superiores que
distinguem o homem do animal (VIGOTSKI, 1984, p. 85). A fala é uma das
funções estritamente humana e, caso fosse independente e desligada da ação,
não teria o poder de mudar o comportamento do homem. Então é forçoso
admitir que a fala [retch] tem a força de uma ação, ou seja, é uma ação.
Por fim, vale novamente mencionar que a palavra russa retch, empre-
gada por Vigotski em várias obras, com destaque para a sua última produção
intelectual – Michlenie i retch [Pensamento e fala] (1934) não deve ser
traduzida por linguagem.
Essa afirmação não decorre de um mero capricho de tradutor. Vá-
rias investigações de Vigotski tinham como objetivo desvendar as raízes
genéticas do pensamento e da fala. Ao realizá-las, verificou que possuem
raízes distintas, tanto na filogênese quanto na ontogênese. Logo ao início
do desenvolvimento da criança, o pensamento é pré-verbal e a fala, pré-
-intelectual e ambos seguem independentemente um do outro. A partir de
um determinado momento, aproximadamente, aos dois anos de idade da
criança, conforme Vigotski (1934), as duas linhas de desenvolvimento se
entrecruzam, dando origem ao pensamento verbal ou à fala intelectual.
Trata-se, aqui, não de uma mera mudança no curso do desenvolvimento,

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mas de uma transformação radical no psiquismo humano, ou seja, tem início
o processo de desenvolvimento da consciência humana. Ou seja, a relação
pensamento e palavra é uma formação histórico-cultural, isto é, não é dada
ao nascimento (KRAVTSOV, 2001). Tomando emprestadas palavras de
Goethe, pronunciadas por Fausto, No princípio era a ação, que modificam
os bem conhecidos dizeres do Evangelho (No princípio era a palavra), diz
que elas poderiam ser lidas “com outra ênfase, se levado em conta o ponto de
vista da história do desenvolvimento: no princípio, era a ação” (VIGOTSKI,
1934, p. 317-318, grifos do autor). Ou seja, ao se referir à criança, trata-se
da ação de fala e não da função linguagem (LALANDE, 1999, p. 627).
Do mesmo modo, o pensamento também é ação. Logo no primeiro
capítulo de Michlenie i retch [Pensamento e fala] quando trata do proble-
ma e do método de investigação, ele faz um esclarecimento que não deixa
qualquer dúvida:

Cada palavra é uma generalização encoberta; qualquer palavra gene-


raliza e, do ponto de vista psicológico, o significado de uma palavra é,
sobretudo, uma generalização. Mas, como podemos ver, uma generaliza-
ção é um extraordinário ato verbal de pensamento, que reflete a realidade
de um modo completamente diferente de como o fazem as sensações e
as percepções imediatas (VIGOTSKI, 1934, p. 10).

Tratar fala e pensamento como funções e não como ações implica,


necessariamente, a negação do fundamento maior que guiou a elaboração
da teoria de Vigotski, a saber, a ideia de movimento, de desenvolvimento,
de história: no início era a ação.
Não é incomum identificar incongruências no que se refere às es-
colhas de tradutores em edições brasileiras de obras de autores russos. Por
exemplo, o livro de M. M. Bakhtin Marksizm i filosofia iazika [Marxismo
e filosofia da linguagem], a palavra russa iazik foi traduzida como lingua-
gem. Em defesa dessa opção pode-se alegar que uma coisa é linguagem, na
teoria literária, e outra, na psicologia. Porém, sem adentrar em análises mais
aprofundadas, permanece a pergunta: qual a razão para traduzir a palavra
iazik como linguagem se, no idioma russo, ela pode ser empregada tanto
como língua, linguagem ou idioma?"

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De qualquer modo, o que se pretendeu, neste texto, foi chamar a
atenção do leitor para o fato de que toda tradução, seja literária ou de obra
acadêmica e científica, é um processo inacabado que deve, constantemente,
passar por revisão, aprimoramento e, mais do que tudo, ser fiel aos funda-
mentos filosóficos, éticos e históricos das ideias do autor.

BRIDGES OR WALLS: CRITICAL EXAMINATION


OF CONCEPTS' TRANSLATIONS OF HISTORICAL-CULTURAL
THEORY

Abstract: In this work we aimed to make a critical examination of translation


proposals of some important concepts of Lev Semionovitch Vygotsky’s cultural-
historical theory. We seek to demonstrate that some of these translations reflect
a particular western way of thinking whose bases are quite different from the
philosophical and methodological foundations of Vygotsky’s theory. We start with
a quick examination of the nature of translation activity and we proceed presenting
some problems and requirements for the elaboration of a scientific nomenclature
specific to psychology. Finally, translations of some Vygotsky’s concepts, such as
zona blijaishevo razvitsia (zone of imminent development/proximal development),
obuchenie (instruction/learning) and rech (speech/language) are criticized and we
point out misunderstandings of the cultural-historical theory developed by Vygotsky.

Keywords: Translation. Zone of imminent development. Speech. Instruction.

Nota

1 Uma versão diferente da aqui referida se encontra no Tomo 1 de Sobranie


sotchineni [Obras Reunidas], de L. S. Vigotski, editado em russo na URSS em
1982, p. 149-155.

Referências

BERNARDO, Gustavo. Prefácio. Em Vilém Flusser. Língua e realidade. São


Paulo: Annablume, 2004. p. 9-20.
FLUSSER, Vilém. Língua e realidade. São Paulo: Annablume, 2004.

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HILGARD, Ernest R. Teorias da aprendizagem. Tradução de Nilce Pinheiro
Mejias, Hilda de Almeida Guedes e Clea Abdon Rameh. São Paulo: Editora
Herder/EDUSP, 1966.
KRAVTSOV, Guennadi Grigorievitch. Psirrologuitcheskie sredstva litchnosti
[Meios psicológicos da personalidade]. In: Kulturno-istoritcheskaia psirrologuia
razvitia [Psicologia histórico-cultural do desenvolvimento]. Moskva: RGGU e
Institut Vigotskogo, 2001.
LALANDE, André. Vocabulário técnico e crítico da Filosofia. Tradução de
Fátima Sá Correia, Maria Emília V. Aguiar, José Eduardo Torres e Maria Gorete
de Souza. São Paulo: Martins Fonte, 1999.
LEONTIEV, Aleksei Nikolaievitch. Stanovlenie psirrologuii deiatelnosti [A
estruturação da psicologia da atividade]. Moskva: Smisl, 2003.
LURIA, Aleksandr Romanovitch. A construção da mente. São Paulo: Ícone, 1992.
OLIVEIRA, Eric Alberto Lima. As imagens técnicas e suas câmaras de eco: por
onde a educação ressoa? Tese (Doutorado) Universidade de Brasília, Brasília,
2017. Disponível em: https://repositorio.unb.br/bitstream/10482/23694/1/2017_
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da crise na Psicologia, Investigação metodológica, no prelo.
PRESTES, Zoia. Quando não é quase a mesma coisa: traduções de Lev
Semionovitch Vigotski no Brasil. 2. ed. Campinas, SP: Autores Associados, 2021.
RIEBER, Robert W.; CARTON, Aaron S. (ed.) The collected works of L. S. Vygotsky.
Volume 1. Problems of general psychology (including the volume Thinking and
Speech). Tradução de Norris Minick. New York: Plenum Press, 1987.
VYGOTSKY. L. S. The collected works of L. S. Vygotsky. V. 1. Problems of general
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Minick. Robert W. Rieber e Aaron S. Carton (ed.). New York: Plenum Press, 1987.
VIGOTSKI, Lev Semionovitch. Psicologia pedagógica. Tradução de Claudia
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VIGOTSKI, Lev Semionovitch. O sentido da crise na Psicologia, Investigação
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