AIMEE
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MARCELO LOPES
A TRAJETÓRIA DE UM CARISMA:
Usos da cura divina entre o pentecostalismo do Evangelho Quadrangular e o
neopentecostalismo da Igreja Mundial do Poder de Deus
Juiz de Fora
2014
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MARCELO LOPES
A TRAJETÓRIA DE UM CARISMA:
Usos da cura divina entre o pentecostalismo do Evangelho Quadrangular e o
neopentecostalismo da Igreja Mundial do Poder de Deus
Juiz de Fora
2014
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MARCELO LOPES
A TRAJETÓRIA DE UM CARISMA:
Usos da cura divina entre o pentecostalismo do Evangelho Quadrangular e o
neopentecostalismo da Igreja Mundial do Poder de Deus
BANCA EXAMINADORA
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AGRADECIMENTOS
RESUMO
A cura divina é um dos três importantes componentes da tríplice crença e prática pentecostal,
juntamente com a glossolalia e o exorcismo. No Brasil, pelo que se sabe, a primeira onda ou
pentecostalismo clássico não deu muita ênfase à cura divina, pelo que foi a partir da segunda
onda ou deuteropentecostalismo, com a inserção da Igreja do Evangelho Quadrangular no
campo religioso brasileiro na década de 1950, que esse carisma ganhou notoriedade pública e
centralidade cúltica. Com o surgimento do neopentecostalismo ou pentecostalismo autônomo
na década de 1970, a cura divina, já inserida na teologia da prosperidade, alcançou outro
patamar, sobretudo com a fundação da Igreja Mundial do Poder de Deus, cuja especialidade é
a taumaturgia. Assim, a presente dissertação objetiva investigar o fenômeno da cura divina
circunscrito à Igreja do Evangelho Quadrangular e à Igreja Mundial do Poder de Deus. A
pesquisa foi desenvolvida a partir da revisão bibliográfica, da observação participante e de
entrevistas semiestruturadas com fiéis de ambas as igrejas. Tomando como base os dados
obtidos com tais procedimentos metodológicos, procuramos analisar e discutir a dimensão
mítica e ritual da cura divina nestes nichos religiosos. Finalmente, partindo de uma
perspectiva comparativa, a presente dissertação analisa alguns aspectos, especialmente os
aspectos mítico e ritual, que envolvem a cura divina numa perspectiva diacrônica que culmina
no tempo presente, lançando luz sobre este fenômeno religioso que constitui o objeto de
pesquisa deste trabalho.
Palavras-chave: Cura divina. Mito. Rito. Igreja do Evangelho Quadrangular. Igreja Mundial
do Poder de Deus.
9
ABSTRACT
Divine healing is one of the three major components of the triple Pentecostal belief and
practice, along with glossolalia and exorcism. In Brazil, for what we know, the first wave or
classical Pentecostalism did not give much emphasis on divine healing, so it was from the
second wave or deuteropentecostalism, with the insertion of the Church of the Foursquare
Gospel in the Brazilian religious field in the 1950s, this charisma gained public notoriety and
cultic centrality. With the emergence of neopentecostalism or as autonomous pentecostalism
in the 1970s, divine healing, already inserted into the theology of prosperity, achieved another
level, especially with the founding of the World Church of the Power of God, whose specialty
is the thaumaturgy. Thus, this study intends to investigate the phenomenon of divine healing
circumscribed to the Church of the Foursquare Gospel and the World Church of the Power of
God. The research is developed from the literature review, participant observation and semi-
structured interviews with the faithful of both churches. Taking the data obtained with such
methodological procedures as a basis, we try to analyze and discuss the mythic and ritual
dimension of divine healing in these religious niches. Finally, from a comparative perspective,
this dissertation examines some aspects, especially the mythic and ritual aspects, that involve
divine healing in a diachronic perspective that culminates in the present time, shedding light
on this religious phenomenon that is the research object of this work.
Keywords: Divine Healing. Myth. Rite. Church of the Foursquare Gospel. Worldwide Church
of God's Power.
10
LISTA DE ILUSTRAÇÕES
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO...................................................................................................... 1
CONCLUSÃO........................................................................................................ 112
REFERÊNCIAS..................................................................................................... 115
APÊNDICES........................................................................................................... 121
1
INTRODUÇÃO
No Brasil, a cura divina, desde antes de sua descoberta pelos portugueses em 1500, já
fazia parte das crenças e práticas religiosas dos indígenas nativos desta terra. Esta assertiva,
assim colocada, resulta num questionamento pertinente: o que se entende por cura divina?
Mas antes de respondermos a tal pergunta é necessário frisar que nosso objeto de estudo aqui
é bem mais contemporâneo e está, mais precisamente, circunscrito ao pentecostalismo da
Igreja do Evangelho Quadrangular (IEQ) e ao neopentecostalismo 1 da Igreja Mundial do
Poder de Deus (IMPD), uma vez que são as denominações da segunda e terceira onda do
pentecostalismo brasileiro que se destacaram pelo uso ostensivo, justamente, da cura divina.
Em todo caso, no entanto, reconhecemos que há uma multiplicidade de termos para
designar tal fenômeno: cura sobrenatural, cura mágica e cura espiritual, dentre outros tantos.
Optamos pelo termo cura divina dada sua especificidade na tradição cristã, uma vez que uma
cura espiritual poderia ser mais adequada ao espiritismo, no qual os espíritos humanos
desencarnados poderiam fazê-lo, ou ainda cura mágica notadamente mais afeta ao
xamanismo, por exemplo.
Não obstante, há ainda os desdobramentos de concepções heterógenas de pessoa,
individuo e cura. Thomas Csordas, por exemplo, afirma que ―o conceito tripartite de pessoa é
a base para três tipos distintos mas inter-relacionados de cura: a cura física da doença
corporal, a cura interior da perturbação e da doença emocional, e a liberação dos efeitos
1 Parece-nos importante, antes de tudo, sublinhar que adotamos neste trabalho o termo neopentecostal para
designar as igrejas de matriz pentecostal surgidas na década de 1970, cujas ênfases teológicas que as diferem
significativamente daquelas da primeira e segunda onda do pentecostalismo brasileiro são: a guerra espiritual, a
teologia da prosperidade e o arrefecimento do ascetismo. Todavia, não adotamos tal termo acriticamente.
Sabemos de suas debilidades enquanto tentativa de uma tipologização do gradiente pentecostal, e, a par disso,
remetemos o leitor a dois textos que abordam as debilidades do termo neopentecostal. Em primeiro lugar, o
artigo do professor Dr. Paulo Donizéti Siepierski: Pós-pentecostalismo e política no Brasil; e, em segundo lugar,
o artigo do professor Dr. Gerson Leite de Moraes: Neopentecostalismo – um conceito-obstáculo na compreensão
do subcampo religioso brasileiro. Em ambos os textos os autores criticam de forma contundente e pertinente as
debilidades ensejadas pelo termo neopentecostal. Mas não se trata de crítica somente, Siepierski propõe o termo
pós-pentecostalismo em substituição ao neopentecostalismo. Já Moraes, propõe o termo transpentecostalismo em
substituição ao mesmo termo. Entendemos que o pentecostalismo é um fenômeno religioso bastante complexo,
e, por isso mesmo, qualquer tipologização apresentará vantagens e desvantagens. Portanto, utilizaremos o termo
neopentecostalismo para designar as igrejas da terceira onda sem que haja prejuízo na compreensão do fenômeno
que queremos indicar com tal termo.
2
2 É interessante estabelecer, ainda que de forma sucinta, a diferença entre doença e enfermidade, uma vez que é
o antítipo da cura divina, nosso objeto de pesquisa. Um axioma fundamental da antropologia médica é a
dicotomia entre dois aspectos da doença: doença (dieasse) e enfermidade (illness). A palavra ―doença‖ se refere
a um mau funcionamento de processos biológicos e/ou psicológicos, enquanto o termo ―enfermidade‖ se refere à
experiência e ao significado psicossocial do mal percebido. A ―enfermidade‖ inclui respostas pessoais
secundárias ao mau funcionamento primário da ―doença‖ (dieasse) no estado fisiológico ou psicológico do
indivíduo (ou ambos) [...]. Vista a partir dessa perspectiva, ―enfermidade‖ é o processo de moldar a ―doença‖ em
comportamentos e experiências. Ela é criada através de reações pessoais, sociais e culturais à ―doença‖. (Cf.,
KLEINMAN apud CROSSAN, A vida do Jesus histórico. In: André Leonardo CHEVITARESE e Gabriele
CORNELLI, A descoberta do Jesus histórico, p. 26.)
3
cura e o lugar mítico discursivo da cura. Este recorte nos permitiu algumas analogias
específicas e também pequenas digressões que o leitor perceberá logo, e, cujo fito foi o de
aquilatar a pesquisa.
Por fim, mas não menos importante, é preciso destacar os limites deste trabalho.
Destaco dois, ao menos, que me parecem fundamentais. O primeiro diz respeito ao escopo
mesmo desta obra. Como o próprio nome enseja – ―dissertação‖, é um exercício de escrita
acadêmica que se quer minuciosa sobre determinado assunto. Eis aí a questão! Pois, por mais
minuciosa que seja, sempre se escapará algo, alguma perspectiva, talvez algum aporte teórico.
Não fosse assim, não seria dissertação, seria enciclopédia. O segundo limite diz respeito à
pessoa do pesquisador propriamente dito. Sabemos que o locus desde o qual se escreve tem
relativa importância para a construção do trabalho. Não estamos aqui evocando o ―mito‖ da
imparcialidade acadêmica. De outro modo, sabemos também que não cabe neste tipo de
trabalho quaisquer julgamentos de valor. Todavia, se algo nos escapou involuntariamente e
inconscientemente, no sentido de um juízo de valor, desde já pedimos a absolvição do leitor
destas páginas, pois procuramos, sempre, fazer o melhor que podíamos. Dessa forma, fica
aqui registrado, então, o nosso mea culpa.
5
razão pela qual é certo afirmar que antes mesmo dos primeiros protestantes históricos e, mais
tarde, dos pentecostais chegarem ao Brasil, a cura divina, concebida em seu sentido mais
amplo, já fazia parte tanto dos ritos quanto dos mitos dos cultos indígenas, africanos e do
catolicismo popular aqui implantado. ―Basta lembrar que as curas mágico-religiosas eram
praticadas pelos povos que viveram antes da chegada dos europeus e que ainda hoje, após 500
anos de massacres, recuperam suas culturas nas quais estão inseridos ritos terapêuticos‖
(BOBSIN, 2003, p.22).
3 O termo cura divina aqui está sendo utilizado no sentido lato mesmo, podendo exprimir quaisquer alterações
qualitativas benéficas que sejam atribuídas ao sobrenatural num dado estado patológico de doença ou
enfermidade. Abarca, deste modo, diversificadas formas dessa experiência religiosa, desde a pajelança até as
sessões de cura do neopentecostalismo, por exemplo. Contudo, no decorrer deste trabalho este termo ganhará a
especificidade necessária própria do objeto de pesquisa.
6
Nesse sentido, vale ressaltar que a cura divina nas religiões indígenas também
ocupa lugar de destaque. Em seu estudo sobre os Tupis-guaranis, Roque de Barros Laraia
chega a afirmar que ―a maior parte do trabalho dos xamãs consiste em efetuarem curas
através dos espíritos que provocam as doenças e, até mesmo, a morte‖ (2005, p. 8, grifo
nosso), observação que denota a centralidade da cura neste componente da matriz religiosa
brasileira.
Já na vertente afro-brasileira, diferentemente da tradição indígena, não é aos
espíritos antepassados que se recorria e, ainda hoje, se recorre para a obtenção da cura divina,
mas aos orixás e sua estreita relação com a natureza, sobretudo com a flora, uma vez que a
―força vinda do axé das folhas facilita a incorporação mediúnica e também aumenta a saúde
física e psíquica. A força do orixá se funde na energia terapêutica do vegetal, aumentando o
poder e a eficiência no organismo da pessoa‖ (BOTELHO, 2010, p. 6), mormente, é claro,
àquelas pessoas acometidas por enfermidades.
O catolicismo popular ibérico que adveio de Portugal para o Brasil também
reservou lugar de destaque para a cura divina. No entanto, dadas suas peculiaridades em
relação às crenças e práticas devocionais, diferiu em parte daquele propugnado oficialmente
por Roma, de modo que ―a relação de troca entre o fiel e seu santo contempla questões
relativas à saúde. O devoto faz promessas pedindo cura e, em troca, faz o seu sacrifício ao
santo. Uma vez que o milagre ocorre, o devoto sente-se na obrigação de cumprir sua parte‖
(BOBSIN, 2003, p. 23). Pode-se acrescer ainda a tal componente, a prática da benzeção
amplamente difundida nesta forma de religiosidade popular, que tem lá seu cunho terapêutico.
O protestantismo, por sua vez,
Pelo que, também em função disso, o protestantismo provavelmente tenha sido o componente
(tardio) da matriz religiosa brasileira que mais distante ficou dessas práticas terapêuticas. Isso
devido, talvez, à sua característica mais racionalizante.
Nesse sentido, é bem sabido que esta questão se relaciona fundamentalmente ao
modo como se constituíram no Brasil as tradições protestantes, caracterizadas em seus
7
4 Aqui, há que se remeter, a fortiori, ao termo que designa o fenômeno religioso que marcara o evento de
pentecostes descrito no livro dos Atos dos Apóstolos e que os pentecostais evocam sua atualidade. O termo do
referido livro é a xenolalia, isto é, falar línguas ou idiomas estrangeiros desconhecidos por quem está sendo
batizado no (com) o Espírito Santo, numa espécie de capacitação sobrenatural para a anunciação do Evangelho,
enquanto que a glossolalia implica falar línguas desconhecidas, que não existem no nosso planeta, ou seja,
celestiais, mas de igual modo significa também algum tipo de capacitação sobrenatural para a edificação de si
mesmo ou para a edificação da comunidade em havendo quem as interprete, segundo a crença pentecostal.
8
religiosa pentecostal a busca pelos carismas, bem como o seu exercício efetivo, torna-se o seu
apanágio.
Tal crença fundamenta-se na narrativa do livro dos Atos dos Apóstolos por
ocasião do intermédio entre a ascensão de Cristo e o cumprimento da promessa da chegada do
parácleto.
Em todo caso, uma evidência externa do batismo no Espírito Santo era conditio
sine qua non para se tornar de fato um pentecostal ―pleno‖. Entrementes, na composição da
tríplice crença e prática peculiar do pentecostalismo brasileiro, acresceu-se à glossolalia, o
exorcismo e a cura divina.
Dito isto, a fim de situar historicamente a gênese do movimento pentecostal, se
pode citar
sagrada, quer dizer, um acontecimento primordial que teve lugar no começo do Tempo, ab
initio‖ (ELIADE, 2008, p. 80). Entretanto, ―uma narrativa mítica pode ser entendida como
uma forma de discurso religioso: o mito na forma do discurso. Se sistematizado, esse discurso
mítico ganha forma de teologia, de logos‖ (HUFF JÚNIOR, 2006, p. 18).
Este parece ter sido o caso do pentecostalismo, no qual a teologização da
atualidade dos carismas encontra eco na teoria fenomenológica eliadiana, observando-se que
―na vida no mundo do sagrado, há, portanto, uma dinâmica de constante retorno ao tempo
mítico das origens. O ser humano religioso possui a característica de repetir arquétipos, de
querer retornar à hierofania primordial‖ (HUFF JÚNIOR, 2006, p. 19), neste caso, a da era
apostólica, especificamente no que tange aos dons do Espírito.
Sendo assim, se pode atribuir a Pahram, o construto mítico inicial do
pentecostalismo moderno. Corroborando com isso, o
5 Cumpre rubricar aqui que há divergências quanto à ocorrência do primeiro caso de êxtase glossolal no
movimento pentecostal originário. Segundo Leonildo Silveira Campos, o primeiro caso ocorreu ―em uma
reunião/prece, na noite de passagem de ano, uma de suas estudantes, Agnes N. Ozman (1870-1937), entrou em
êxtase e falou em ‗línguas desconhecidas‘, confirmando a tese de Pahram.‖ In: Leonildo Silveira CAMPOS, As
origens norte-americanas do pentecostalismo brasileiro, Revista USP, n° 67, p. 108. Já Paulo Romeiro em seu
livro: Decepcionados com a graça, cita como primeiro caso, também envolvendo Pahram, se bem que, neste
relato, fora um jovem que irrompeu em línguas: ―No dia 1° de janeiro de 1901, um moço estudante estava
orando durante a noite, quando experimentou de repente a paz e a alegria de Cristo, começando a louvar a Deus
em línguas. Dentro de alguns dias, toda a comunidade recebera o batismo com o Espírito Santo dessa maneira
surgiu o moderno movimento pentecostal.‖ RANAGHAN apud ROMEIRO, Decepcionados coma Graça, p. 32.
Já Francisco Cartaxo Rolim, limitou-se a dizer que ―quem primeiro recebeu o batismo do Espírito foi um negro.‖
In: Pentecostais no Brasil, p. 69. Não obstante haver controvérsias e não poucas versões sobre o episódio em
questão, optou-se por trabalhar com aquela que pensamos ser a mais amplamente difundida no meio acadêmico,
a de Mendonça.
11
doutrinária que lhe dava centralidade teológica e litúrgica‖ (ANDERSON apud FRESTON,
1994, p. 75), Conquanto o carisma glossolal tenha sido a força dinamogênica inicial do
pentecostalismo, não tardou para que os demais carismas ganhassem espaço e prestígio no
seio do movimento.
Em consequência, o pentecostalismo foi ampliando a concepção do batismo no
Espírito Santo no que tange à sua manifestação exterior, tendo por referência a literatura
neotestamentária, mormente em passagens bíblicas como a de 1ª Coríntios 12.4-11 que
indica que dons podem ser atribuídos pelo Espírito Santo aos fiéis. São estes
via de regra classificados, de acordo com os livros doutrinários pentecostais
e a liderança, segundo três tipos fundamentais, ou seja: dons de revelação:
sabedoria, ciência e discernimento de espíritos; dons de expressão ou
inspiração: profecia, diversidade de línguas, interpretação de línguas; dons
de poder: fé, cura, operação de maravilhas ou milagres (SOUZA, 1983, p.
96).
proselitistas aqui, ―algo de pentecostal‖ já se manifestava neste campo religioso. Sobre isso,
Mendonça relata que
De fato, tal episódio foi e pode ser aventado como um tipo de proto-
pentecostalismo brasileiro, isso se se tomar como referência a experiência extática de Miguel
Vieira Ferreira e seus correligionários. Contudo, essa hipótese parece carecer de elementos
que a ratifiquem, sobretudo na perspectiva comparativa daqueles traços distintivos do
pentecostalismo advindo do avivamento da Rua Azuza, especialmente, porque este foi a
matriz do que foi implantado no Brasil.
Assim, tais parâmetros não identificam esse dois movimentos como sendo da
mesma natureza, mas permitem levar a termo outra comparação, que os alinha como sendo
uma busca epidérmica pelo sagrado, isto é, no que se pode sentir, experienciar, quando o
Totalmente Outro perpassa a racionalização e ressoa na emoção do cultuante (OTTO, 2007).
Desse modo, conforme anteriormente mencionado, se a especificidade do
pentecostalismo foi justamente a exigência de uma manifestação externa do batismo no
Espírito Santo, cuja evidência mais comum era a irrupção do carisma glossolal; para o
iluminismo de Miguel Vieira Ferreira parece que bastava que a voz de Deus ecoasse em seu
interior, sendo uma eventual ocorrência de evidência externa secundária, senão insignificante.
Com isso, não se invalida a hipótese de Émile Léonard, tão pouco se minora a
importância desse significativo momento da história do protestantismo brasileiro, mas se
aventa a possibilidade de uma leitura alternativa deste episódio, realocando-o numa
13
perspectiva mística que parece ser um pouco mais adequada, sobretudo levando-se em
consideração o caráter introspectivo e subjetivo da experiência de Miguel Vieira Ferreira com
o sagrado, com o numinoso, e que parece exprimir o aspecto ―Fascinans do nume‖ (OTTO,
2007, p. 68), que é, como disse Otto, ―desconcertante, é cativante, arrebatador, encantador,
muitas vezes levando ao delírio e ao inebriamento – o elemento dionisíaco entre os efeitos do
nume‖ (OTTO, 2007, p. 68).
Com efeito, o pentecostalismo parece realmente ensejar também este efeito do
numinoso, pois foi a partir de experiências desta natureza que Luis Francescon, Daniel Berg e
Gunnar Vingren foram impulsionados para a obra missionária no Brasil. O primeiro foi o
fundador da Congregação Cristã no Brasil, e os outros dois foram os fundadores da
Assembleia de Deus, respectivamente a primeira e a segunda igreja pentecostal brasileira.
Conforme já mencionamos, o ambiente pentecostal era propício para o
profetismo. Assim, as experiências de revelações pessoais, muitas delas vocacionais, eram
frequentes. Decerto, este foi o caso de Francescon, Berg e Vingren. Neste aspecto, cumpre
rubricar, o pentecostalismo brasileiro descende ―genealogicamente‖ do avivamento da Rua
Azuza.
Explico: Seymour foi quem iniciou o movimento quando num culto presidido por
ele ocorreu o primeiro caso de glossolalia em Azuza Street. Naquele culto estava presente o
pastor batista William Howard Durham que também recebeu o carisma, e,
No entanto, cumpre rubricar, havia no Pará um pastor batista que poderia acolher
(e acolheu) Berg e Vingren. Tal fato dá ensejo a um certo ―planejamento‖, conquanto
insipiente, que desmistifica, em certo sentido, aquela aura sobrenatural de irracionalidade do
chamado missionário, muito embora isso não invalide a experiência com o Sagrado que deu
início a tal empresa.
Do mesmo modo ocorreu também com a empresa de Francescon, primeiramente
na Argentina em Buenos Aires, e depois, em São Paulo no Brasil. Na verdade, ambos tiveram
tanto uma experiência de chamamento sobrenatural com o sagrado, quanto um planejamento
insipiente, isso levando-se em consideração que ―Vingren e Berg vieram para o Brasil sem
sustento garantido e sem apoio denominacional. O dinheiro para a viagem fora doado por uma
igreja sueca de Chicago‖ (FRESTON, 1994, p. 80). No caso de Francescon, isto talvez seja
ainda mais explícito, de acordo com suas próprias palavras:
Portanto, sua aflorada emotividade, sua capacidade de síncrese bem como seus
traços mágicos certamente contribuíram para que tivesse melhor acolhida no campo religioso
brasileiro, e assim, lograsse êxito na empresa missionária. Assim, aquelas experiências
extáticas levantadas anteriormente parecem avultar de importância, e, avançando um pouco
mais nesse sentido se poderia até mesmo fazer um paralelo entre as condições e os
personagens que protagonizam eventos extáticos bastante significativos no campo religioso
brasileiro.
Exemplifica-se: se
Pode-se então afirmar que, em certo sentido, esses pentecostais ―mais ungidos‖ se
assemelham a médiuns mais evoluídos ou sensíveis, por exemplo. Pois, ambos quando
tomados por um espírito – os cristãos crêem serem cheios do parácleto, e os espíritas pelos
seus guias ou espíritos iluminados, enfim, o seu sagrado – revelam coisas ocultas, falam
línguas desconhecidas e, em função disso, tem respeitabilidade social no âmbito de suas
16
sede do batismo no espírito Santo, a busca a bem dizer exclusiva dos dons de
6 Não cabe aqui, nem é o nosso objetivo definir o que é mana dentro da teoria geral da magia. Pode-se, no
entanto, dar uma ideia generalizante do que pode vir a ensejar. Antes de tudo, cumpre sublinhar que mana não é,
com efeito, um conceito antropológico de fácil apreensão, pois remete a ideia de qualidade de uma coisa que não
se confunde com esta coisa, algo que é estranho, indelével, resistente, o extraordinário. Pode, contudo, de igual
modo remeter a uma substância, uma essência manejável, mas também independente. Por fim, o mana enseja
uma força, especialmente ―a força dos seres espirituais‖, que neste caso é o Espírito Santo e as entidades
espirituais que incorporam no iniciado da umbanda, por exemplo.
17
Jesus não tinha somente uma visão ou uma teoria, mas uma práxis e um
programa – e um programa não somente para ele, mas para outros (as)
também. Que foi isso? Basicamente, foi o seguinte: curar os doentes,
comer com tais pessoas a quem se curou e anunciar a presença do Reino
naquela mutualidade de vida, Pode-se perceber esse programa comunitário
funcionando em textos como Mc 6,7-13 e Lc 9,1-6 ou Mt 10,5-14 e Lc 10,1-
11‖ (2009, p. 25, grifo nosso).
8 Convém delimitar aqui o sentido deste termo também: entende-se por protocristianismo, uma grandeza cultural
de natureza religioso-política que se desenvolve na Palestina no contexto do judaísmo helenístico no século I
a.e.c., talvez a primeira metade e poucas décadas a mais, tendo como precursor João, o batista ou batizador; e
como profeta-fundador Jesus, o Cristo. Embora alguns estudiosos atribuam ao apóstolo Paulo a fundação do
cristianismo, aqui, parece mais plausível outorgar tal tarefa ao próprio Jesus como iniciador do movimento. Esta
concepção é advinda dos estudos do Jesus Histórico, sobretudo das leituras dos textos de John Dominic Crossan.
9 Grosso modo, taumaturgia significa aqui a capacidade, a função ou o ofício de um curador, isto é, alguém
dotado de tal carisma e que a exerce religiosamente.
21
Jesus não ficava lamentando os doentes, mas os curava e dizia aos seus
discípulos para ‗curar‘ os doentes como sinal da vinda próxima do reino de
Deus. Ele, porém, fez mais do que isso: propôs e mostrou que havia um nexo
inseparável entre seu mandado messiânico e sua obra taumatúrgica, de tal
modo que a veracidade da promessa do Reino passava pela cura dos doentes
(TERRIN, 1998, p. 196).
Este parece ser o arquétipo mítico que o pentecostalismo de cura divina evoca
para não só fundamentar seu mito originário, mas para reproduzi-lo, na crença de que a
taumaturgia é atual, ressalva feita à Igreja Mundial do Poder de Deus (IMPD), na qual o
carisma é de tal modo institucionalizado que somente quem cura são os agentes
especializados do sagrado. Logo,
divina por excelência em seus primórdios. Diz-se isso com base em sua própria história, que
nesse período, quase se confunde com a biografia de sua fundadora, a bela jovem canadense
de origem metodista: Aimee Kennedy.
Tratava-se de um movimento de cura divina por excelência não só porque este era
o centro de sua pregação, ou pela experiência pessoal de Aimee com a taumaturgia, mas
acima de tudo porque, curiosamente, Aimee pregava a cura divina antes mesmo de ter
recebido por revelação a mensagem do Evangelho Quadrangular em 1922, o que ocorreu
muitos anos após a sua conversão (1908) e o subsequente início de seu ministério de cura
divina (SCOTTI, 2010).
A propósito disso, aquela tendência intrínseca do homo religiosus de retornar à
hierofania primordial (ELIADE, 1998, p. 338), sobretudo com a finalidade de narrar um mito
arquetípico que, aliás, neste caso específico, busca legitimá-lo, torná-lo palatável
teologicamente, cristalizou-se na doutrina quadrangular.
Neste sentido, a IEQ não parece configurar exceção, pois sua teologia
confessional revela, de maneira peremptória, o construto mítico que fundamenta o Evangelho
Quadrangular. Assim, foi preciso revestir o discurso com um caráter sagrado, que fosse além,
23
Este construto mítico parece ser bem mais que apenas uma tentativa de
formulação teológica cuja hermenêutica carece de cientificidade à luz de uma análise
teológica protestante ortodoxa, por exemplo. Esta é a base sobre a qual as pessoas encontram
seu mito primordial com uma roupagem teológica, isto é, sancionada pela instituição, e é a
partir daí que elas fundamentam e buscam viver sua experiência religiosa.
Mormente no pentecostalismo onde a experiência religiosa se quer eminentemente
epidérmica, emocional,
Foi justamente a partir desta ―realidade viva‖ que Aimee, através de suas
experiências pessoais com a cura divina, deu início a um movimento de tendas itinerantes, nas
quais ministrava a cura divina, e que mais tarde originou a Igreja do Evangelho Quadrangular.
Embora até o período de sua adolescência Aimee tenha frequentado a Igreja
Metodista, segundo crônica oficial da IEQ,
Contudo, não tardaria para que Aimee tivesse contato com o que mudaria completamente sua
vida, a fé pentecostal.
Seu primeiro contato com o pentecostalismo foi numa reunião presidida por
Robert Semple, que mais tarde veio a ser seu primeiro esposo. Naquela reunião Aimee
também foi impactada pelos dons espirituais pentecostais de uma maneira bastante pessoal.
Num dado momento da reunião Semple parou de falar inglês e com os olhos fechados e mãos
estendidas na direção de Aimee começou a falar em línguas estranhas. Embora não tenha
havido interpretação, Aimee teve a plena convicção de que Deus falara com ela naquela hora
(EVANGELHO Quadrangular, p. 4-5).
Após isso Aimee iniciou sua busca pela própria experiência pentecostal, de modo
que aplicava-se constantemente em longas jornadas de oração pelo batismo no Espírito Santo.
Nesse ínterim, logrou êxito em sua empresa, mas antes de obter o carisma glossolal, teve uma
visão na qual estava subentendido seu chamamento para o ministério de pregação do
Evangelho, conforme indica o texto do historiador oficial da IEQ, o Rev. Júlio de Oliveira
Rosa:
Com os olhos fechados, Aimee viu o mundo como se fosse vasto campo de
trigo, já maduro para a ceifa; via o trigo se transformar em rostos humanos e
os ramos em mãos suplicantes. E sobre essa visão podia ver as palavras de
Cristo: ―Os campos já estão brancos para a ceifa. A seara é realmente
grande, mas poucos os ceifeiros. Rogai pois ao Senhor da seara para que
mande ceifeiros para sua seara.‖ Então o Senhor colocou na sua mão uma
foice, dizendo: Vai recolher o trigo, mas lembra-te que a foice te é dada para
cortar o trigo. Muitos ceifeiros usam-na corretamente apenas poucas horas, e
depois começam a cortar e marcar seus colegas. Aplica-te à tarefa que está
perante ti; corta somente o trigo e recolhe os molhos preciosos‖ (1978, p.
273-274).
10 Quando se fala da fundação de um novo mundo, remete-se, a fortiori, ao mundo de outrora. No caso de
Aimee, este mundo refere-se ao seu mundo religioso cheio de indagações e incertezas de sua adolescência no
metodismo, ―quando começou a aprender sobre a teoria da evolução [na escola], sofreu um grande impacto e
procurou seu professor com a pergunta sobre quem estava certo: seu livro de estudos, ou a Bíblia? O professor,
altivo, respondeu que embora a Bíblia fosse um maravilhoso clássico da literatura, o livro de gênesis e o
criacionismo eram uma história ridícula, um mito. Assim ele continuou a argumentar sobre o assunto, deixando-
a ainda mais confusa. Aimee então passou a questionar se tudo o que havia aprendido desde criança sobre Deus,
como criador dos céus e da terra, era verdade ou uma fábula, como disse seu professor. Deus existia? Como já
conhecia a Bíblia, começou a ler Darwin, Voltaire e Thomas Paine, com o propósito de chegar a uma conclusão
e resolver o dilema. Um dia, quando recebiam a visita de um pastor, amigo da família, para o chá, ela
procurando esclarecer suas dúvidas pergunta (sic!) ao pastor se Deus ainda operava milagres para provar
sua existência. O pastor, sem ajudá-la com sua resposta, diz: “O tempo dos milagres terminou”. O que ela
queria mesmo era encontrar alguém que lhe dissesse que a Bíblia era um livro em que deveríamos
“simplesmente crer”. Assim sua dúvida seria resolvida facilmente.‖ Cf., Alexandre Guidio DALIO, A
Chegada da Igreja do Evangelho Quadrangular no Brasil e o papel da cura divina na sua implantação, p. 12.
26
Algo, porém começou a incomodar Aimee, pois ela tinha cessado de pregar
para cuidar exclusivamente da família. Ela sentia que Deus continuava a
falar em seu coração, admoestando-a a voltar ao seu ministério. Isso fez com
que ela acabasse numa forte depressão. Sua saúde foi se tornando cada vez
mais debilitada. Passou por várias cirurgias, sempre clamando e esperando
que Deus a curasse. O que vinha em resposta à sua mente, no entanto, era:
Tu irás? Pregarás a Palavra?‖. Sua luta entre fazer a vontade de Deus e
cuidar de sua família continuou até que ela quase chegou à morte. Numa
madrugada, enquanto estava no leito de um hospital entre a vida e a morte,
ela ouviu novamente a voz do Senhor que dizia: ―Agora, tu irás?‖ Naquele
instante, ela reuniu todas as forças e respondeu: ―Sim, Senhor. Eu irei‖.
Sua resposta em obediência ao novo chamado de Deus para sua vida
devolveu-lhe a saúde e ela entendeu que não se pode fugir à vontade do
Senhor. A partir dali, não cessou de pregar o evangelho poderoso de Cristo
(SCOTTI, 2010, p. 31-32).
Os relatos das experiências de Aimee com a cura divina não cessaram por ali, ao
contrário, dali em diante não só continuaria sendo curada em várias outras ocasiões, mas
também seria ―usada por Deus com experiências de cura divina‖ (ROSA, 1978, p. 277) para o
mundo. Foi a partir dessa ―chancela‖ para o seu chamado não só para pregar o evangelho, mas
propagar a cura divina, que Aimee deu continuidade ao seu ministério evangelístico e, com
mais ênfase, ao da taumaturgia.
Em 1915 Aimee deu o pontapé inicial em suas campanhas na cidade de Mount
Forest. Foi num salão de reuniões alugado para tal que ocorreram os primeiros cultos.
Contudo, foi através das tendas de lona que o movimento de cura divina se espalhou pelos
EUA e pelo mundo, e a primeira tenda comprada por Aimee com as ofertas recolhidas nesses
cultos serviu de modelo de como os missionários propagariam a fé quadrangular nos locais de
(grifo nosso). Este era o antigo mundo religioso de Aimee, um mundo protestante desencantado, no qual a cura
divina dificilmente seria promovida, tanto mais nos moldes do pentecostalismo.
27
missão.
Mesmo já pregando a cura divina conforme outrora mencionado, foi numa dessas
campanhas que se relata ter Aimee recebido a mensagem do Evangelho Quadrangular, que
ajudaria a transformar o movimento de tendas de lona, cuja mensagem central era a de cura
divina, em Igreja do Evangelho Quadrangular (International Church of The Four Square
Gospel).
Em 1922,
Doutrinariamente,
O que Mendonça quer explicar, dito de outra maneira, é que houve uma
associação de algumas características ministeriais de Jesus com as faces do ser enigmático de
Ezequiel, de modo que, nessa perspectiva, o rosto de homem simboliza Jesus como salvador;
o rosto de leão simboliza Jesus como o batizador com o Espírito santo; o rosto de águia
simboliza Jesus como o rei que há de vir, e, finalmente, o rosto de boi que simboliza, como
não poderia deixar de ser, Jesus como o grande médico divino.
28
Inicialmente,
Figura 4. Foto de uma tenda da Cruzada Nacional de Evangelização. Disponível em: <
http://www.quadrangularbrasil.com/images/Raymond_Boatrigth/Raymond_Boatrigth%2001.jpg >. Acesso em: 20
jan. 2013.
Sobre a importância das tendas de lona nesse período, mas, sobretudo sobre sua
função simbólica, pode-se inferir, numa perspectiva eliadiana, que elas configuram um local
sagrado, e sagrado por excelência, pois era ali que ele se manifestava sobrenaturalmente
através das curas. Logo, lá ocorria uma rotura de nível, o espaço não era homogêneo, pode-se
dizer que lá era o verdadeiro mundo, o centro do mundo religioso.
Se assim for, pode-se afirmar que as tendas da Cruzada Nacional de
Evangelização eram lugares qualitativamente diferenciados, na perspectiva do nativo,
evidentemente. Assim, este
Sob este locus, se uma montanha, um cipó, uma escada podem ser considerados como Axis
mundi, por que não uma tenda também não poderia ser? Assim, a tenda era o ponto de rotura
no qual o sagrado não só se manifestava, mas também proporcionava cura.
Inclusive, pode-se ir um pouco mais além nesse sentido e traçar um paralelo com
a narrativa veterotestamentária, isto é, com a tenda da congregação ou tabernáculo de Moisés.
E isto em dois sentidos, quais sejam, primeiro como lugar da manifestação de Deus com
sinais e prodígios; e, em segundo lugar, como o sagrado itinerante, errante nesta terra, no
mundo profano dos homens, sacralizando o local onde estacionasse, fazendo com que este
último logo se tornasse um imago mundi (ELIADE, 2008). Paralelamente, no entanto, quando
as tendas viram templos perdem sua mobilidade e se rotinizam, o sagrado é também
domesticado e os milagres escasseiam. Foi assim com a tenda de Moisés que tinha a nuvem à
de dia e a coluna de fogo noite, e, ao tornar-se templo tal não mais ocorria.
O movimento de cura divina através das tendas de lona se propagou
paulatinamente por praticamente todo Brasil e, por fim, chegou também, à cidade de Juiz de
Fora, como relata Júlio O. Rosa (1978, p. 116):
O historiador da IEQ relata ainda um episódio inusitado, por assim dizer, que
ocorreu neste período relacionado às atividades da tenda. O fato em questão envolve um
sacerdote católico que era capelão militar. Este acusava a Cruzada de prática de feitiçaria,
pois sua própria mãe fora curada de reumatismo justamente numa reunião da tenda em que
fora escondida do filho.
Evidentemente, quando soube do ocorrido, o sacerdote ficou irado e no intuito de
desmascarar o ―charlatão‖ da tenda, levou um conhecido seu que há muito era paralítico e
desafiou o missionário a curá-lo. Nesse ínterim, saiu para chamar uma escolta policial na
certeza de que prenderia o falso taumaturgo.
anunciou o seu não comparecimento por estar doente (ROSA, 1978, p. 116).
Nesse contexto,
12 Conforme já pontuamos na introdução deste trabalho, adotamos tal tipologia, mas não acriticamente. Ao
contrário, sabemos de suas limitações e possíveis incongruências.
36
vindo de uma família muito pobre, católica não praticante, de Juiz de Fora,
Minas Gerais, Bispo Waldemiro diz ter alcançado a restauração aos
dezesseis anos, diz ele: ‗Deus me chamou aos dezesseis anos, quando eu,
38
uma pessoa muito sofrida, tive a minha restauração‘, dentro de uma Igreja
Universal do Reino de Deus. Foi lá, em Minas Gerais, onde Bispo
Waldemiro teve a primeira experiência de cura divina em sua carreira
ministerial, afirma ele em entrevista, ‗eu observava as pessoas sofrendo e
aquilo mexia comigo, então, pela primeira vez eu fui num hospital fazer uma
visita e ai me pediram oração, eu era novo ainda tinha menos de 17 anos de
idade, me pediram oração, tinha uma jovem paralítica, eu não sabia que
Deus tinha me ungido com esse dom também, eu fiz a oração, na verdade ela
estava na cadeira de rodas, mas naquela época eu pensei: ―essa jovem deve
estar ai nessa cadeira de rodas por causa das complicações, e de repente pra
não forçar por recomendações médicas‖ na verdade ela não andava a muitos
anos, ai eu fiz a oração, ai eu falei: ―você pode levantar um pouquinho?‖, ai
ela levantou, ai a família começou a chorar, as enfermeiras, lá em Juiz de
Fora, eu não sabia que ela tinha sido curada, eu não sabia de nada, ai eu
falei: ―num é que Deus me deu mesmo o dom‖. Então eu percebi o chamado
de Deus e ali nasceu um desejo de pregar, na época ainda na outra igreja
(Igreja Universal do Reino de Deus)‘ (BITUN, 2007, p. 43-44).
A ruptura com a IURD ocorreu em clima não amistoso. À época de seu retorno
como missionário da IURD na África, Valdemiro, ao chegar ao Brasil, resolveu iniciar um
ministério ―solo‖. Tal empresa não foi, obviamente, bem recebida pela cúpula da IURD. Em
sua fala sobre esta fase, Valdemiro não faz questão de esconder certa mágoa, fruto desta
reação da IURD:
13 Um exemplo fatídico disso foi o naufrágio sofrido por Waldemiro na baía de Maputo, capital de
Moçambique, na África, do qual escapou ileso em 1996. Naquela época servindo à IURD.
39
de forma célere. O senso de 2010 trouxe uma boa perspectiva do que ocorre neste acirrado
subcampo neopentecostal. O atual trânsito de ―fiéis‖ entre estas igrejas, por exemplo, causa
De todo modo, algo bastante patente neste caso, é que o apelo à cura divina tem
dado resultados bastante significativos na tática de crescimento da IMPD. É interessante
ressaltar que esta é a visão institucional da igreja, verificável no próprio site da Mundial:
―Nosso foco principal é obedecer todos os mandamentos e preceitos deixados por Deus
encontrados na Bíblia, expandir o evangelho divulgando a manifestação de Deus no
ministério através de curas e testemunhos.‖15 Segundo informações do site da instituição, há,
aproximadamente, mais de duas mil igrejas espalhadas pelos estados do Brasil e quarenta e
14 Sobre esta celeuma ver o texto de Magali do Nascimento Cunha: ―Casos de família‖: um olhar sobre o
contexto da disputa ―Igreja Universal do Reino de Deus X Igreja Mundial do Poder de Deus‖ nas mídias.
15 Informação disponível em: <http://www.impd.org.br/portal/index.php?link=institucional>. Acesso em: 25
jan. 2013.
40
Acerca disso, uma questão emerge: Por que a cura divina ter arrefeceu na IEQ, que foi o
movimento originário de cura divina no pentecostalismo brasileiro? Do mesmo modo, se quer
perscrutar como o fiel da IMPD concebe a cura divina? São concepções compatíveis ou
similares, mesmo que diacrônicas 16? Qual será a atual concepção de cura divina na IEQ? Por
quê?
Talvez a resposta a tais questões sejam, em essência, as fontes nas quais se pode
buscar compreender o porquê de tais mudanças ocorrerem, e é a perspectiva do nativo que
pode ajudar a elucidar esta problemática. Isto implica compreender a relação do fiel com a
crença e a prática da cura divina, e, a partir daí, analisar os usos da cura divina no âmbito
mítico e ritualístico da segunda para a terceira onda pentecostal. Tal é o escopo da pesquisa
que se segue.
16 No sentido de uma possível evolução histórica, isto é, seu devir no imaginário coletivo pentecostal.
41
Este tópico tem por escopo lançar luz sobre o fenômeno da cura divina em si, cujo
âmbito de investigação ficará restrito ao pentecostalismo da IEQ e da IMPD. Antes de tudo,
porém, parece relevante e apropriado abordar, ao menos de forma propedêutica, as duas
principais visadas dos pesquisadores do fenômeno da cura divina no pentecostalismo, a partir
das quais, se tem resultados diferenciados, quando não divergentes. A primeira é aquela mais
afeta às Ciências Sociais, especialmente a Sociologia; e, a segunda, à Fenomenologia, à
Teologia, e, em particular, à Ciência da Religião. Não se pretende, todavia, aprofundar
demasiadamente tal discussão, antes, se quer apresentar um quadro sinóptico geral das
pesquisas que dê conta de situar nosso objeto enquanto alvo de esforços heurísticos, além de
situar nosso locus de investigação.
A partir deste intróito, importa, neste ponto, rememorar que a tríplice
crença/prática glossolal, exorcista e taumatúrgica no pentecostalismo foi uma de suas marcas
distintivas em relação ao protestantismo do qual é egresso, e que caracterizou este movimento
de renovo espiritual baseado na atualidade da manifestação dos carismas neotestamentários.
Destes carismas, a glossolalia foi privilegiada, em certo sentido, pois era
considerada como a principal evidência exterior do batismo com o Espírito Santo. Porém,
muito embora a glossolalia tenha tido destaque no pentecostalismo originário, inclusive no
pentecostalismo que inicialmente foi implantado no Brasil por Berg, Vingren e Francescon,
com a implantação do embrião da Igreja do Evangelho Quadrangular em 1951, houve uma
inversão de visibilidade e ênfase em relação à cura divina, a qual passou a ocupar posição
central, tanto na doutrina quanto na liturgia.
Contudo, essa prática esteve sujeita, em maior ou menor grau, às conjunturas
socioculturais de cada época específica, e, por isso mesmo, condicionada a mudanças mais ou
42
menos significativas em função de suas relações sociais. Isso segundo muitos pesquisadores
adeptos de uma vertente mais reducionista da religião.
Sob esta ótica, a afirmação de Otto Maduro parece ter relativa pregnância quando
postula que
Dito isto, percebe-se, nos alinhamos com aqueles ―adeptos de armistícios‖ aos
quais se referem os autores supracitados, isto é, a religião
Contudo, é bastante sóbria a advertência destes autores quando alertam que não há
consenso sobre isso e este armistício pode ser artificial, muito embora este posicionamento
nos pareça ser o mais adequado, posto que moderado.
De fato, as condições sociais podem favorecer (e favorecem) certas práticas
religiosas e até mesmo o estabelecimento e crescimento de determinada religião ou
denominação. Assim, pode parecer óbvio que num país como o Brasil, onde o Sistema Único
de Saúde ainda está longe do ideal em que foi concebido, e, por isso mesmo, deficitário em
43
Porém, neste mesmo texto um pouco mais à frente, Mendonça relata que
É bem verdade que tais conjunturas sociais possam ter influenciado as práticas
pentecostais da década de 1960. Mas no Estado do Pará em 1911 também não havia
44
pobreza?17 Bem, se se admitir que havia, então será preciso questionar o porquê da
Assembleia de Deus não ter dado ênfase à cura divina, dadas as necessidades básicas de saúde
similares, provavelmente piores do que as atuais. Do mesmo modo, se pode questionar se não
havia pobreza e carências das mais variadas nos cortiços dos imigrantes italianos, em 1910,
onde a Congregação Cristã no Brasil inicialmente difundiu-se.
Ademais, o movimento pentecostal originário estadunidense não ficou restrito aos
negros nem aos pobres, antes, cresceu também entre os brancos de melhores condições
econômicas. Ora, nem tudo pode ser reduzido somente ao social ou à infraestrutura. Como já
foi ensejado anteriormente, é preciso considerar ao menos uma autonomia relativa do objeto,
do fenômeno religioso. Neste caso, a cura divina não seria somente reflexo de uma conjuntura
sociocultural desfavorável, mas produto também da fé, da experiência religiosa das pessoas,
tanto das que exercem a taumaturgia, quanto daquelas que se beneficiam das curas 18.
Para além de uma sombra dos infortúnios sociais das classes desfavorecidas, a cura
divina é parte fundamental da vivência pentecostal. ―Hoje, essa crença [e prática] faz parte da
teologia oficial de todos os ramos pentecostais, embora uns enfatizem a ‗cura divina‘ mais
que outros‖ (CAMPOS, 1997, p. 354).
Apesar de termos aventado estas incongruências da abordagem essencialmente
reducionista do fenômeno religioso, é preciso concordar com Leonildo Silveira Campos em
seu argumento de que
17 Segundo Alfonso Winiewski, pesquisador da Universidade Federal Rural da Amazônia, a ―evolução do ciclo
da borracha na Amazônia e particularmente no Estado do Pará (...) embora tenha criado um efêmero período de
extraordinária opulência e prosperidade, jamais conseguiu lançar qualquer base mais estável e duradoura na
economia regional. A exploração nos moldes colonialistas e manipulada por empresas estrangeiras que
formavam um sólido oligopólio tinha em mira apenas aferir lucros de natureza imediatista. A produção de
borracha extrativa vem decrescendo de ano a ano, apesar dos estímulos, não se reveste de nenhum maior
significado socioeconômico, mesmo nos municípios mais tradicionais, podendo-se prognosticar para um futuro
não muito distante o fim do ciclo do extrativismo da borracha‖ (WINIEWSKI, 1983, P. 1).
18 Com esta afirmação não queremos validar as curas que supostamente ocorrem no pentecostalismo e
neopentecostalismo como evidência fática. Do mesmo modo, não queremos verificar sua veracidade para refutá-
las. Ao contrário, é preciso ter uma consideração mínima pelo fenômeno religioso. E isto no amplo sentido do
termo fenômeno, isto é, aquilo que se mostra, neste caso a cura divina. Nesse sentido, Huff Júnior e Portela
(2012) parecem ter razão quando dizem que, conquanto não seja a religião propriamente em si, o que se pode
acessar da religião são suas manifestações empíricas, tangíveis, pictóricas, simbólicas, mas não ela mesma. Isto,
é claro, de forma alguma minora a pertinência da pesquisa, tampouco mina sua legitimidade.
45
Enxergada por esse prisma, a cura divina ou os movimentos de cura divina como a
IEQ nos anos 50 e a IMPD atualmente, enquanto movimentos religiosos não ficam incólumes
às dinâmicas dos processos sociais. Muito embora, nunca é demais lembrar, não se reduzam a
estes. Aquiescendo este argumento pode-se rememorar que, segundo relata Mendonça, a
Cruzada Nacional de Evangelização, embrião da IEQ, influenciou de maneira significativa
igrejas de sua época, uma vez que causou cismas sobretudo nas Igrejas Presbiterianas
Independentes de São Paulo, nas quais iniciou suas campanhas de cura divina (MENDONÇA,
2008) e que não eram igrejas de estratos sociais empobrecidos.
Como ocorre em todos os movimentos religiosos, houve espaços de interação e de
influências mútuas, isto porque ―boa parte da liderança nacional [da IEQ] era de pessoas
oriundas da IPI e da Igreja Metodista‖ (FRESTON, 1996, p. 112), que, obviamente, levaram
para dentro da IEQ boa parte, senão toda sua herança religiosa.
Assim, é significativo ressaltar a dialética que os movimentos religiosos mantêm
com o contexto ou conjuntura sociocultural. A cura divina, neste caso, é emblemática, pois
embora esta possa ter medrado a partir de condições sociais desfavoráveis específicas, de
igual modo influenciou Igrejas protestantes tradicionais daquele tempo, cujos fieis pertenciam
a um segmento da sociedade mais privilegiado em termos financeiros.
Deste modo, pensamos que alguns argumentos estritamente reducionistas do
fenômeno religioso, isto é, de causa e efeito no sentido sociedade-economia-religião podem
ser questionados em seu determinismo e unilateralidade. Este caso específico em que um
movimento de cura divina medrou a partir de igrejas de classe média como a IPI, por
exemplo, e que posteriormente atingiu as camadas mais carentes da população, ratifica a
insuficiência de tais reduções.
Ainda sobre esse processo social dinâmico a que se referiu Campos, Zwínglio Dias
assevera que o pentecostalismo
ou conhecem alguém que já teve, enquanto que entre os carismáticos este percentual flutua
entre 46% e entre outras vertentes cristãs a média é de apenas 28% (2006, p. 5).
Assim, este quadro sugere que, por um lado, muito embora a cura divina tenha
arrefecido em muitas denominações do pentecostalismo clássico, ainda representa importante
crença e prática neste subcampo religioso; e, por outro, evidencia a relevância da cura divina,
sobretudo no neopentecostalismo que provavelmente é o responsável pelo alto percentual das
experiências de cura divina na pesquisa supracitada.
Em relação à cura divina, ainda se pode concordar com a afirmação do professor
Duglas Teixeira Monteiro de que
de modo que, conquanto haja ênfases sazonais em sua prática nas diversas denominações
pentecostais, percebe-se a importância desse carisma através de sua perenidade neste nicho
religioso.
Por fim, percebe-se, nos alinhamos àqueles pesquisadores cuja perspectiva
epistemológica contempla, ao menos, uma autonomia relativa do objeto, do fenômeno
religioso, bem como o reconhecimento de uma dialética com o social e suas consequentes
influências mútuas. Não concebemos a passividade do fenômeno religioso em relação ao
social que enseja certa subserviência para dizer o mínimo. Assim, é a partir dessa
compreensão do objeto, um pouco mais moderada talvez, é que nos propomos a empreender
este esforço heurístico, mais especificamente em campo, através de observação participante e
entrevistas semiestruturadas, como veremos a seguir.
Este ―repetível até o infinito‖ parece ser refletido na teologia própria da IEQ, cujo
lema é precisamente: ―Jesus Cristo é o mesmo ontem, hoje e eternamente‖. De fato, com um
simples silogismo, percebe-se as imbricações da evocação de continuidade do discurso
quadrangular, pois Jesus curava e outorgou esse carisma à sua igreja, de modo que a IEQ,
como Igreja de Cristo, deveria exercer a cura divina.
Desta feita, sé ―é irrupção do sagrado no mundo, irrupção contada pelo mito, que
funda realmente o mundo‖ (ELIADE, 2008, p. 86), e se ―o mito descreve as diversas e às
vezes dramáticas irrupções do sagrado no mundo‖ (ELIADE, 2008, p. 86), tem-se na
repetição e transmissão destas narrativas, uma história sagrada. História esta que é construída,
e construída coletivamente, uma vez que
A esse respeito, é interessante sublinhar desde já, a estreita relação entre memória
e história. Mas antes, cabe ainda aludir a uma questão subjacente destacada por Adélia B.
Menezes, qual seja, de que há
19 Eliade assevera que o tempo sagrado, isto é, o tempo essencialmente distinto, diferente da duração profana,
―pode também designar um tempo mítico, ora reavivado graças ao intermédio de um ritual, ora realizado pela
repetição pura e simples de uma ação provida de um arquétipo mítico‖ (1998, p. 314).
49
No entanto, Loiva Otero Félix adverte que ―a história capta e estuda memórias;
constrói-se também com elas, mas história e memória não são sinônimos‖ (1998, p. 44). É
justamente aqui que a relação entre história e memória se intensifica e que as distinguem
quase que como opostas20.
Mais do que opostas, história e memória são distintas, mas com ao menos um
ponto de contato. Maurice Halbwachs sintetiza esta distinção, talvez de forma um pouco
radical, ―colocando do lado da memória tudo aquilo que flutua, o concreto, o vivido, o
múltiplo, o sagrado, a imagem, o afeto, o mágico, enquanto a história se caracterizava por seu
caráter exclusivamente crítico, conceitual, problemático e laicizante‖ (HALBWACHS apud
DOSSE, 2004, p. 170).
20 Maurice Halbwachs sustenta que ―ao acabar a memória, começa a história (história-conhecimento) para
salvar as lembranças através da fixação por escrito‖ (apud FÉLIX, 1998, p. 42). François Dosse se alinha com tal
perspectiva, mas vai além, pois, citando Pierre Nora, ele assevera que ―Memória, história: longe de serem
sinônimos, tomamos consciência de que tudo as opõe‖ (DOSSE, 2004, p. 173).
50
História e memória deste ponto de vista seriam como gêmeos siameses, cuja
ligação estaria justamente na questão da seletividade.
É por dever de honestidade na pesquisa, creio, que se faz necessário apontar para
este caráter político de uma de nossas fontes primárias, a saber, o livro: O Evangelho
Quadrangular no Brasil, do pastor Júlio de Oliveira Rosa, que foi ministro da IEQ. Falamos
em caráter Político em função da sua própria essência, pois é uma obra que se pretende
histórica, cujo fito seria o de apresentar a trajetória da IEQ no Brasil através do tempo, mas
que adquire, em certas passagens, tom inegavelmente apologético. Obviamente, um livro que
quer retratar a história de uma denominação ou tradição religiosa tende a pender para uma
leitura romântica do passado, sobretudo pelo fato de ter sido escrita por um nativo
comprometido com a instituição.
Nesse sentido,
51
Neste caso concreto, parece árdua a tarefa de delimitar onde começa uma e
termina a outra. No livro do Rev. Rosa, tradição, memória e história não parecem ser tão
distintas como a assertiva supramencionada sugere. Ao contrário, as fronteiras entre tradição,
memória e história são tênues e, em certas passagens, até mesmo borradas, conquanto o autor
tenha se esforçado por dar legitimidade histórica às memórias coletivas e individuais dos fiéis
da IEQ.
Com uma sinceridade resignada, Rosa admite:
Ainda sobre o fenômeno da cura divina em sí, Júlio Rosa assevera que
―observando hoje a proliferação dos movimentos ditos de ‗cura divina‘, digo com pesar que
nem de longe se parecem, pelo menos alguns deles, com os fundamentos da Igreja do
Evangelho Quadrangular‖ (1978, p. 14). Não é preciso nenhum grande esforço para perceber
nesta comparação certo tom de superioridade em relação a outros movimentos de cura divina
concorrentes, que foram originados por dissidências da própria IEQ 21.
Neste discurso percebe-se claramente como a tradição emerge com caráter
normatizador e como a memória cria o arquétipo de cura divina usado por ele como parâmetro
comparativo. Sendo assim, é à sua própria alétheia que o nativo recorre, em cujo discurso
deslegitimador do movimento de cura divina do outro está subjacente suas pretensões
exclusivistas da verdade, da alétheia reificada como história oficial da instituição, como disse
Huff Júnior: uma metanarrativa hierofânica (2006), só que, neste caso, numa visão
estritamente unilateral deste carisma.
Muito embora Júlio Rosa não tenha especificado quais eram os ―artifícios
especiais‖ a que se referiu na comparação com outros movimentos de cura divina daquela
época, pode-se inferir a partir dos relatos que passaremos a analisar, que, o rito da cura no
movimento inicial da Cruzada nacional de Evangelização era, de certo modo, menos
elaborado em termos de gestos, utilização de fetiches 22 e outros meios como óleo ungido,
água ungida, lenços ungidos, etc., do se percebe na prática da cura divina atualmente na
IMPD.
Esta queixa feita por Rosa é corroborada pelo relato de membros com bastante
tempo de IEQ, alguns até mesmo chegaram a participar do movimento de tendas. Vejamos.
Passaremos agora a expor e analisar o conteúdo das entrevistas concedidas a nós
pelos fiéis da IEQ. Antes, contudo, se faz necessário colocar que nossas entrevistas tiveram
como base um questionário semi-estruturado com dez perguntas que perpassam assuntos que
vão desde a biografia do entrevistado até aquelas que ensejam história oral como, por
exemplo, descrever como se davam as curas naquele tempo.
As entrevistas foram gravadas com o consentimento dos entrevistados. Em
relação ao ambiente em que ocorreram as entrevistas, a maioria ocorreu fora do ambiente
21 Citamos como exemplo a criação da Igreja Evangélica Pentecostal O Brasil para Cristo, fundada por Manoel
de Mello na década de 1950. Mello chegou a ocupar a posição de evangelista na IEQ, mas sempre almejou um
ministério próprio, também baseado na centralidade da cura divina (FRESTON, 1996; ROSA, 1978).
22 Grosso modo, fetiche remete, normalmente, a um objeto ou substância que se venera, cultua ou ao menos se
considera como especial do ponto de vista religioso. Isso se deve ao fato de se atribuir a tal objeto ou substância
valor mágico e/ou sobrenatural, uma vez que se crê em sua eficácia.
53
cúltico, exceção feita ao nosso colaborador Manoel que, por questão de oportunidade, foi feita
na própria igreja. As pessoas entrevistadas foram selecionadas dada a receptividade bem
como a disponibilidade de conceder a própria entrevista. Entretanto, julgamos interessante
manter a simetria da amostragem, por isso, já que entrevistamos quatro membros antigos da
IEQ, mantivemos o quantitativo de quatro entrevistas com os seus membros jovens. Além
disso, conversamos com diversas pessoas da igreja que, informalmente, enriqueceram nossa
observação e impressões do campo.
Nossa primeira colaboradora é uma senhora de setenta e dois anos, que há trinta e
sete anos é membro da IEQ, a qual receberá o nome fictício de Marli. Ao responder à
pergunta de como ela entendia a cura divina e qual era a sua importância naquela época, Marli
nos deu pistas que endossam o argumento do historiador da IEQ:
Pesquisador: ―Descreva com suas palavras o que você entendia por cura divina e
qual era a sua importância naquela época.‖
Colaboradora 1: ―Cura divina pra mim, acho que é uma pessoa que tá doente,
que tá com câncer, vamos supor, que a pessoa sente curado. Eu creio que é pela fé que as
pessoas sentem a mão de Deus curando ele naquela hora. Acho que é pela fé da pessoa e a do
pastor, acho que tem que ser as duas. Não adianta a gente estar orando com fé e o pastor estar
orando sem fé, eu creio que a gente não recebe a cura. Mas, eu acho mais que é a nossa fé,
porque se eu tiver fé que eu posso receber uma cura, eu creio que Deus faz pra mim. Porque
como ele fez em mim, eu não tava nem perto do pastor, o pastor nem tava orando por mim e
eu recebi a cura, eu creio que foi por minha fé.‖
Marli ao dizer ―eu não estava nem perto do pastor‖, deixa transparecer um aspecto
subjacente, mas significativo em relação à crença e à prática da cura divina nos primórdios da
Cruzada no Brasil. Tomando por base tal afirmação, isto significa, em tese, que bem menos
perto da magia estava a IEQ do que Mendonça pensou, ao menos no que diz respeito às suas
leis descritas pela antropologia, uma vez que não se percebe neste relato quaisquer resquícios
da contiguidade ou similaridade, a saber, as leis da simpatia característica da magia e do
pensamento mágico (MONTERO, 1990), tanto mais o uso de fetiches como artifícios
especiais para que a cura ocorresse.
Todavia, como não poderia deixar de ser, tais procedimentos não possuíam
unanimidade na padronização, pois como todo movimento religioso ainda não
institucionalizado, isto é, burocratizado, a Cruzada Nacional de Evangelização não perfazia
um bloco monolítico de crenças e práticas. Os pastores e missionários gozavam de certa
54
liberdade pela pouca centralização litúrgico-doutrinária inicial. Talvez por isso, também,
ainda no início percebemos, em algumas entrevistas, variações perceptíveis neste sentido.
Afirmamos isso com base no que nos relatou nosso segundo colaborador, a quem
chamaremos pelo nome fictício de Manoel. Manoel tem setenta e um anos de idade e há
quarenta e quatro anos pertence à IEQ. Seu relato é emblemático não só por ser
contemporâneo daquele movimento inicial, mas, sobretudo, porque é um especialista do
sagrado com mais de quarenta anos de ministério. Manoel relata já haver certas inovações na
prática da cura:
Pesquisador: ―Descreva com suas palavras o que você entendia por cura divina e
qual era a sua importância naquela época.‖
Colaborador 2: ―Olha ..., lá no início, na verdade, as curas aconteciam pela
oração apenas. Imposição de mãos pelo pastor ou missionário que repreendiam aquela
doença, mandava sair e ali a pessoa era curada. Agente via isso. A unção com óleo também
era ministrada, a pessoa era ungida com óleo e o pastor ou missionário orava por ela e ela era
curada. Então esses meios são bíblicos. Depois foram surgindo algumas novidades, mas com
base bíblica. Por exemplo: algumas vezes Jesus curava nos Evangelhos usando alguns
métodos. Não porque Jesus precisava daquilo, mas o doente, a pessoa que via ele é que
precisava. (...) Então são recursos pra ajudar a pessoa a alcançar a graça, pra ajudar a pessoa a
crer. (...) Mas no início, propriamente dito, era a oração pura e a unção com óleo, e com o
passar do tempo foram surgindo esses meios. E todos eles realmente têm base bíblica. Agora,
é preciso ter cuidado, em minha opinião, é claro. A Igreja Quadrangular, ela não descamba
muito pra isso, porque senão vira um misticismo e criam-se, aí, as chamadas superstições.
Mas um método que tenha base bíblica a igreja aplica.‖
Segundo este relato, percebe-se já certa condescendência com as inovações em
relação ao rito, à prática da cura, mas não só, pois houve a necessidade de amparo
escriturístico, isto é, um padrão na bíblia que fundamentasse o rito, uma narrativa mítica, um
mito como modelo exemplar. Isso fica patente na evocação que Manoel fez em relação ao
profeta-fundador: ―(...) algumas vezes Jesus curava nos Evangelhos usando alguns métodos.‖
Com este discurso, ele parece querer afirmar que se in illo tempore se fazia assim, então é
licíto, por isso apela-se para o mito com o fito de legitimação de uma prática talvez
considerada pouco ortodoxa ou ainda exógena a tradição protestante.
Neste sentido, a antropologia nos auxilia a lançar um pouco mais de luz sobre
isso.
55
de uns cinquenta anos. É significativo constatar na própria perspectiva do fiel, que nossa
hipótese da cura divina como chamariz pode ser aquiescida.
Pesquisador: ―Descreva com suas palavras o que você entendia por cura divina e
qual era a sua importância naquela época.‖
Colaborador 3: ―Naquela época foi o que mais chamou a atenção do povo. Não
era nem a pregação do evangelho, era a cura divina. O povo ia pra ser curado, né? E acabava
se convertendo. Quem abriu a obra em Curitiba foi o Rev. Júlio, então agente nunca esquece
porque agente participava naquele circo, naquela lona que era naquele tempo, a igreja. Que
nem um circo, né? Então eu assisti muitas reuniões nessa tenda, e eu vi muitas curas e muitos
milagres agente assistiu. Então foi o começo, né? Ali, é claro, o povo era curado e aceitava a
Jesus como salvador. Então, em Curitiba, nós participamos da abertura da obra da
Quadrangular lá. Eles [as pessoas] iam atrás da cura e Deus operava salvação.‖
Com base na análise do discurso daquela época em relação à divulgação do
movimento, aliada a constatação resignada do colaborador acima, parece haver
subjacentemente à função central – mítica e ritual – da cura, outra função para ela, qual seja, a
de chamariz de fiéis para o movimento. Talvez por isso, o próprio Rev. Júlio Rosa tenha se
queixado que os pastores nacionais só pregavam cura divina, conforme já mencionamos
anteriormente.
Entretanto, muito embora a cura divina tenha sido usada inicialmente como fator
atrativo para as massas, parece que durante o processo de institucionalização do movimento
de tendas, este carisma teria entrado em ocaso, o que, como veremos, dá razão a Mendonça ao
afirmar que a cura divina na Igreja do Evangelho Quadrangular não é mais rotina, tendo sido
relegada a um segundo plano (MENDONÇA, 2008).
Embora este ocaso paulatino da cura divina na IEQ possa parecer uma contradição
interna, uma vez que esta faz parte da doutrina própria da Igreja constituindo-se um de seus
quatro pilares, sabe-se também que
Desse modo,
Assim, se pode depreender a partir disso, que a cura divina enquanto ―selvageria‖
sagrada da Cruzada Nacional de Evangelização, no Brasil, não resistiu ao processo de
domesticação do movimento, isto é, na burocratização que culminou na formação da Igreja do
Evangelho Quadrangular.
Corroborando esta leitura, uma alteração expressiva da composição da membresia
da IEQ, que vem ocorrendo desde o último quartil do século passado, pode auxiliar a
compreender, em parte, este fenômeno. Qual seja: a ascensão de classe social no que tange à
adesão religiosa da igreja, ou, dito de outra forma, ―hoje, o nível médio dos membros da IEQ
parece ser o extremo superior do mundo pentecostal. Coerente com esse público, e IEQ
procura se distinguir da categoria de „cura divina‘‖ (FRESTON, 1994, p. 114-115, grifo
nosso).
De todo modo, pensamos que outro meio bastante eficaz de ratificar ou refutar tais
afirmações, é a pesquisa de campo em si. Com este fito, procedemos à observação
participante nos cultos de quarta-feira que são específicos de cura divina na sede
metropolitana situada à Rua Rafael Zacarias n° 65, no bairro Democrata em Juiz de Fora.
Fizemos, também, entrevistas semi-estruturadas com alguns membros mais jovens, com
menos tempo de denominação e que não participaram do movimento de tendas da Cruzada.
Nosso objetivo foi justamente o de verificar, in loco, se esta domesticação da cura divina se
58
deu na profundidade que asseveram os pesquisadores que nos baseamos na presente análise, e
o que ela significa para estes nativos no tempo presente. Para tanto, retomaremos as
entrevistas.
Nossa primeira colaboradora, que chamaremos de Camila, é uma jovem de vinte
anos. Camila relatou pertencer à IEQ desde os cinco anos de idade, tendo passado pelo
batismo aos doze anos, ou seja, não se pode considerá-la um neófita, ao menos no aspecto
cronológico.
Sobre este ocaso da cura divina, fizemos perguntas focadas, umas objetivas e
outras subjetivas, visando obter informações espontâneas de nossos colaboradores.
Pesquisador: ―Os pastores pregam muito sobre cura divina?‖
Colaboradora 1: ―Olha, na minha igreja não! Na igreja onde eu sou membro não,
mas...‖
Cumpre salientar que, diferentemente dos nativos que entrevistamos que
participaram do movimento inicial da Cruzada, os quais demonstravam desde entusiasmo até
certa nostalgia ao rememorar as curas que ocorriam in illo tempore, percebemos que os novos
membros da IEQ apresentavam, desde o início da entrevista, certo incômodo quando não
resignação acerca da ausência da cura na IEQ no tempo presente.
Prosseguimos, todavia, nas indagações acerca da cura.
Pesquisador: ―Há muitas curas nos cultos atualmente?‖
Colaboradora 1: ―Eu creio que em outros cultos [igrejas] sim, mas na nossa
igreja não. Outras igrejas eu acredito que sim. Eu acho que depende do propósito da igreja,
tem igreja que tem o propósito de ganhar almas, ... tem igreja que visa mais o milagre,
prosperidade.‖
Essa resposta um tanto quanto evasiva, deixou transparecer o intento de querer
justificar, de algum modo, a constatação da ausência da cura, embora seja parte fundamental
da doutrina quadrangular.
Conquanto soubéssemos da importância mítica da cura na IEQ, sobretudo em seus
primórdios, formulamos questões de cunho subjetivo, justamente pensando em acessar o que
paira no imaginário individual e coletivo deste fiéis contemporâneos.
Pesquisador: ―Qual é a importância da cura divina hoje?‖
Colaboradora 1: ―A importância? Eu acredito que não é a coisa mais importante
pra nós que somos servos de Deus. Agente conhece que é o agir de Deus. É Deus mostrando
que ele é Deus. Não é o mais importante, mas também agente não tem que menosprezar. É
Deus mostrando que ele tem poder pra fazer o que quiser na nossa vida.‖
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23 Embora esta concepção de rito nos pareça um pouco estreita, pois que não abarca o fenômeno em suas
múltiplas formas e funções, pode ser utilizada aqui sem que comprometa o escrutínio do objeto.
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um dos quatro pilares da doutrina quadrangular, não deveria (poderia) ser esquecida ou
negligenciável.
―De qualquer maneira, é importante saber que as narrativas orais e escritas,
inclusive aquelas que os narradores consideram pura verdade, encerram elementos
arquetípicos, estereotípicos ou míticos‖ (BURKE, 2002, p. 143). A questão assim colocada
resulta muito interessante, já que implica num questionamento subseqüente que, a princípio,
não é de simples elucidação. Poderia o Evangelho Quadrangular prescindir de sua memória,
de sua tradição religiosa, sobretudo quando esta é uma parte central tanto ritual quanto mítica?
Haveria lugar para a cura divina na IEQ no tempo presente? E mais, qual seria o papel da cura
divina hoje?
Tais questionamentos parecem ter relativa pregnância, pois sabe-se que ―o
processo de reprodução e conservação da memória religiosa garante a continuidade de uma
religião‖ (RIVERA, 1998, p. 103). Nesse caso, nos perguntamos: como, pois, se consegue
manter ou conciliar tal paradoxo? Dito de outro modo, como pode continuar a existir, e ter
sentido (legitimidade), um movimento de cura divina ou uma Igreja que tem em como
principal sua doutrina a cura divina, sem que haja cura divina na atualidade? Discutiremos
mais adiante esta questão, mas, antes, consideraremos as opiniões de mais dois fiéis.
Nossa terceira colaboradora tem vinte e quatro anos e há doze anos é membro da
IEQ. A chamaremos de Andréia.
Pesquisador: ―Os pastores pregam muito sobre cura divina?‖
Colaboradora 3: ―Não! Muito pouco.‖
Pesquisador: ―Há muitas curas nos cultos atualmente?‖
Colaboradora 3: ―Não, também não vejo. Um ou outro, e quando acontece de
curar uma pessoa é aquele comentário: oh! Você viu? Tal pessoa foi curada! Assim ..., como
se fosse uma novidade, uma coisa que não é comum de acontecer.‖
Pesquisador: ―Qual é a importância da cura divina hoje?‖
Colaboradora 3: ―Hoje? Hoje é diferente que no passado, né? Antes, não sei se
buscavam mais, se tinham mais pessoas que tinham esse dom de ministrar a cura. Eu sei que
caiu, caiu bastante [a ocorrência das curas] em relação à época que eu era criança. Porque
antes se buscava, se falava: tal pessoa foi curada, e hoje eu vejo que muitas pessoas às vezes
têm uma enfermidade, e anos e anos de Evangelho, e não recebe a cura. Infelizmente é um
defeito que eu vejo na igreja de hoje, porque a cura divina caiu, a importância dela caiu do
passado pra hoje.‖
62
24 Não tanto aos moldes da IURD, cuja ênfase recai quase que exclusivamente na área financeira, ao contrário,
na IEQ, a ênfase na prosperidade parece estar pulverizada no cotidiano, isto é, na vida emocional, no emprego,
nas relações interpessoais, na saúde física e, como não poderia deixar de ser, também na materialidade
financeira.
25 Afirmamos isso com base tanto na observação a que procedemos em campo, quanto nas entrevistas e
conversas informais com os fiéis da IEQ. Estes parecem atribuir uma aura e uma autoridade sobremodo
diferenciadas dos demais crentes batizados com (no) Espírito Santo. O que parece ser um paradoxo, pois que, se
―há um só batismo‖ e ―um só Espírito‖, e se todos os pentecostais se querem batizados com (no) Espírito Santo,
como pois fazem tal acepção de pessoas? Obviamente, não negligenciamos Weber sobre o carisma institucional
delegado ao pastor, ou do qual ele usufrui, antes, queremos problematizar o que deveria ser um ―axioma‖
pentecostal, isto é, a capacitação carismática do Espírito concedida indistintamente aos crentes. Retomaremos o
argumento mais adiante.
64
Talvez este exemplo seja um daqueles a que se referiu Rômulo, nosso quarto
colaborador, queixando-se de que hoje prega-se muito sobre prosperidade e pouco ou quase
nada sobre cura divina. Embora a cura divina possa ser alocada no espectro da teologia da
prosperidade, enquanto especificidade da IEQ parece ter dado lugar a outras ênfases da
teologia da prosperidade, aliás, foi realocada num segundo plano, senão terceiro.
Para encerrar os cultos o pastor ou pastora executa uma oração intercessória
―forte‖. É interessante que normalmente é o único momento do culto que há prática glossolal
por parte de alguns fiéis, mas raramente dos pastores, que oram por assuntos diversos, e,
cumpre rubricar, muito superficialmente toca no assunto cura durante a oração, e isto sem ser
específico nem enfático a cerca de qualquer enfermidade. Curiosamente, nas oito reuniões que
assistimos, não presenciamos nenhuma cura, testemunho de cura ou algo parecido. Para findar
a reunião, o pastor impetra a bênção apostólica com a qual encerra o culto.
Do que se pode observar, ficou bem claro que o ocaso da cura divina no tempo
presente é peremptório. Muito embora tenhamos tido informações, em conversas informais,
de que ainda há poucas e pequenas congregações em bairros mais afastados que ainda
possuem resquícios da prática ostensiva da cura divina em seus cultos. Não se pode,
obviamente, investigar a exceção e tomá-la como regra, sob pena de incorrer em crasso erro
metodológico.
Por isso, sinalizamos aqui que a IEQ não se constitui um bloco monolítico, e pode
haver, sim, a prática da cura divina atualmente. Entretanto, a sede metropolitana, serve de
parâmetro e modelo para as demais igrejas menores26. Ademais, normalmente, tais igrejas são
fruto ou ―filhas‖ da igreja matriz. Logo, seguem de um modo ou de outro, ao menos em tese,
suas crenças e suas práticas.
Por fim, retomaremos o aporte teórico sobre a questão do sentido e da memória
religiosa acerca da cura divina na IEQ hoje. Se observarmos bem os depoimentos em tela,
verificaremos que os pastores pouco pregam ou não pregam sobre a cura divina; nos cultos, as
curas escassearam de tal modo que uma de nossas entrevistadas disse que quando ocorre uma
cura as pessoas se espantam ―como se fosse uma novidade‖; e mais, no Instituto Teológico
Quadrangular o ocaso da cura parece concretizar-se.
26 Esta afirmação encontra esteio no próprio sistema de formação da liderança quadrangular, sobretudo porque é
na sede metropolitana que está situado o Instituto Teológico Quadrangular (ITQ) que é o órgão institucional
regional encarregado de formar os (as) futuros (as) líderes religiosos, normatizando e padronizando a teologia e
liturgia, ao menos em tese, das demais igrejas quadrangulares. Ressalte-se para que um fiel possa cursar o ITQ, é
necessária não só a aquiescência do pastor, mas uma carta formal de anuência encaminhando o candidato ao
seminário.
65
Ora, sob esta perspectiva, se a cura divina como fato fundante não é revivido no
pentecostalismo da IEQ, crise não seria um termo tão inadequado assim. Todavia, retomamos
a nossa hipótese de que a cura divina da alma, embora em franco ocaso nas doenças físicas,
parece ter sido forjada como fenômeno substitutivo para o fato fundante em ocaso. Desta
feita, ―desenvolveram-se então, muitas memórias de substituição que tentam preencher o
vácuo deixado pela perda de densidade e de unidade da memória coletiva‖ (RIVERA, 1998,
p. 106).
Desta feita, a cura divina embora em processo crepuscular no que tange a curas de
doenças físicas mesmo, ainda continua a desempenhar sua função mítica na IEQ, pois,
conforme afirmou Eliade, ―a função mais importante de um mito é, pois, ‗fixar‘ os modelos
exemplares de todos os ritos e de todas as atividades humanas significativas‖ (2008, p. 87).
Assim, como um dos quatro pilares da doutrina quadrangular, a cura divina não poderia
simplesmente desaparecer, deixando uma lacuna mítica talvez irreparável. Destarte, o mito
parece ter se transmutado e ganhado ares mais subjetivos, cuja prática estaria restrita quase
que totalmente à cura da alma antes de tudo.
Portanto, pensamos que os dados levantados através das entrevistas e da
observação participante, bem como da análise bibliográfica aqui exposta, corroboram
pesquisas anteriores que já apontavam para o ocaso da cura divina, se bem que, com o
diferencial de apontarem para uma leitura alternativa do fenômeno, que nos conduziu a
formular uma hipótese de que a cura divina da alma substitui, em parte, a crise ou ocaso da
cura divina física na IEQ no tempo presente.
Perspectivamos esta mudança com base não só em nossa observação participante,
mas, sobretudo nas entrevistas com fiéis da IEQ de ontem e de hoje. Nesse sentido, cumpre
sublinhar que os números apresentam uma discrepância significativa, pois cem por cento dos
membros antigos da IEQ por nós entrevistados relataram uma experiência ao menos com a
cura física, enquanto que apenas vinte e cinco por cento dos membros atuais, isto é, os bem
mais jovens, relataram uma experiência de cura física.
27 É preciso sublinhar que a utilização destes galpões não constitui novidade alguma no campo neopentecostal.
À bem da verdade, nem no meio pentecostal. Neste sentido, Paul Freston nos fornece um claro exemplo disso:
―A BPC [Igreja Pentecostal o Brasil para Cristo] foi um sucesso imediato e [Manoel de] Mello chegou à fama
nacional com menos de 30 anos de idade. Se a IEQ inovara com tendas, trazendo a cura divina para fora dos
templos, a BPC foi mais longe, alugando espaços seculares como cinemas, ginásios e estádios. Já em 1958,
enchia o Pacaembu em feriados nacionais, com a presença de autoridades civis e bandas do Exército‖ (1994, p.
118-119).
28 Cf., Atos 19. 11-12. Esta prática fetichista é bastante comum na IMPD. Elisa Rodrigues cita, por exemplo,
que em certo momento de uma das reuniões da IMPD, Valdemiro ―aproximou-se da grade de proteção que
separa a multidão do lugar que ele fica, tocou um bebê no colo da mãe e afirmou que ele seria curado. Enquanto
ele tocava a criança, pessoas ao redor o tocavam e passavam toalhas em seu rosto para recolherem seu
suor. Ele virou-se para aqueles próximos e passou-lhes a mão sobre as cabeças‖ (RODRIGUES, 2011, p. 13,
grifo nosso).
70
não quer dizer que o planejamento esteja ausente da reunião, mas as ênfases
ao longo delas serão determinadas pela interação entre oficiante (pastor, bispo
ou apóstolo) e presente. O improviso diz respeito não à atitude não
premeditada. Pelo termo improviso queremos explicitar a qualidade do
oficiante em, com base na discursividade dos testemunhos, resgatar o enredo
em torno do qual circula a reunião, qual seja, os milagres como resultado da
atuação sobrenatural divina (RODRIGUES, 2013, p. 213).
músicas com fone de ouvido, outros ainda liam livros. Sublinhe-se, porém: usamos aqui esses
termos espetáculo e show na ausência de termos mais adequados, não queremos com isso
ensejar a carga semântica negativa de tais termos ou atribuir uma nomenclatura às reuniões
que não pertença ao vocabulário nativo.
Foi interessante observar que não obstante o clima de informalidade, talvez
subjacentemente, houvesse a intenção de uma preparação para a reunião, aparentemente não
tão bem sucedida. Isso porque havia sempre um aparelho de televisão instalado na parede do
palco e de frente para o público, que passava gravações de programações de curas com o
apóstolo Valdemiro. Havia ainda, um rapaz tocando no teclado músicas gospel. O teclado era
o único instrumento musical e o referido rapaz, o único instrumentista da igreja.
Normalmente, o culto é iniciado por um dos pastores que cumprimenta a
audiência e passa a conduzir um curto período de louvor com cânticos que varia de três a
quatro corinhos no máximo. Tais corinhos, invariavelmente, em suas letras, contemplam
temas como milagres, a prosperidade e, sobretudo, a cura. Nesse sentido, é interessante
observar a coerência interna ou sinergia entre a proposta da reunião com os corinhos cantados,
denotando a centralidade da cura divina.
Após este breve período de cânticos, o pastor passa a palavra para o bispo. Este
parece dominar totalmente a platéia, pois fica claro que há uma forte expectativa quanto à sua
atuação, sua performance. As pessoas que antes estavam dispersas, agora voltam sua atenção
para o dirigente, e quem circulava pelo salão toma assento. O bispo retoma, intencionalmente
ou não, o clima de informalidade. Dialoga com o público, chama à atenção de seus obreiros,
pastores e até do músico, num eventual atravesso da harmonia.
Desde a assunção do comando da reunião, é notória a desenvoltura do bispo. Uma
característica, no entanto, pareceu-nos bastante peculiar, qual seja, o mimetismo em relação
ao apóstolo Valdemiro Santiago. Registre-se que o tipo de discurso, os gestos e até o modo de
falar, parece ser apropriado mimeticamente do apóstolo. Expressões como ―não resenha‖ 29,
―é forte isso‖, ―glorifica de pé igreja‖, normalmente utilizadas por Valdemiro são de uso
comum por parte do bispo, talvez numa tentativa de identificar-se com o líder da IMPD em
busca de mais legitimidade para o seu ministério.
Em todo caso, o momento da pregação é paradigmático. O bispo lê um pequeno
trecho da bíblia, quando não um versículo apenas, e passa a explaná-lo cotejando com
29 Grosso modo, ―não resenha‖ é uma forma lúdica de chamar a atenção daquelas pessoas que são prolixas ao
prestar seu testemunho de fé, ou que não se expressam com a clareza julgada necessária pelo apóstolo
Valdemiro.
74
situações do cotidiano que, ao final, vão desembocar na cura divina. Nesse ínterim, faz
perguntas à plateia, interage com alguns fiéis em particular, sempre num tom de descontração
e intimidade, de modo que neste aspecto parece querer imitar o apóstolo também
(RODRIGUES, 2011).
Já no final da pregação, inicia-se o momento da cura divina. Antes, porém, alguns
testemunhos de cura previamente selecionados pelos obreiros e pastores ganham notoriedade.
É interessante a dinâmica dos testemunhos. Nesses cultos há sempre um cinegrafista de
plantão que filma a reunião e a transmite simultaneamente no aparelho de televisão instalado
no palco à frente da igreja. Um ou mais microfones ficam a disposição para os que vão
testemunhar as curas, mas sempre empunhados pelos obreiros. Neste momento, as pessoas
contam de que foram curadas e como foram curadas, mas a ênfase sempre recai em qual
ministério obtiveram a cura, ou seja, na IMPD.
São dados em torno de dez testemunhos, cuja variação de quantidade para mais ou
para menos, depende sempre da orientação do bispo. Após os testemunhos, parece que o
clima de informalidade se desfaz e a reunião adquire um tom mais sério. O tecladista inicia
uma harmonia em tom menor com quatro ou cinco acordes em volume baixo e o dirigente
emite o comando para que os fiéis fiquem de pé. A partir daí os obreiros e pastorem se
posicionam nas laterais do salão e o bispo passa a adorcizar 30 o mal. Percebemos que há
nítida associação das doenças como a possessão ou opressão demoníaca, daí a adorcização
para que o mal possa ser exorcizado e as pessoas libertas de suas enfermidades.
A oração de cura divina do bispo é bastante genérica, por vezes ele cita um sem
número de doenças que vão do câncer à enxaqueca, e, do mesmo modo, da conquista de um
emprego a restauração de um casamento. Cumpre sublinhar que durante a oração de cura
efetuada pelo bispo, os obreiros e pastores que antes estavam posicionados nas laterais do
salão, passam a orar pelas pessoas individualmente cujo padrão de escolha parece ser,
aparentemente, aleatório. Nessa oração específica, eles colocam uma das mãos sobre a cabeça
do fiel a outra nas costas ou no ombro. Nessa hora algumas pessoas manifestam demônios, o
que ocorre sem maiores alardes.
É digno de nota que depois de terminada a oração são poucas as pessoas que se
dizem curadas e já não há ênfase nos testemunhos. Segue-se o culto com o período de ofertas
e distribuição de fetiches como a toalhinha ungida, sabonete ungido, fronha ungida, enfim, o
que estiver na ordem do dia. Há, inclusive, neste ínterim, espaço para que se venda livros e
30 Adorcizar aqui é empregado com o sentido de desvelar o mal que pode estar oculto, fazendo-o emergir.
75
CD‘s e DVD‘s do apóstolo Valdemiro, o que pareceu-nos fazer bastante sucesso entre os
fiéis.
Por fim, o próprio bispo conduz um cântico, quase sempre com a temática de
vitória, e, com a bênção apostólica, impetrada à sua moda, encerra a reunião da Terça-feira do
Milagre Urgente.
Passaremos agora a expor e analisar o conteúdo das entrevistas concedidas a nós
pelos fiéis da IMPD. Antes, contudo, se faz necessário colocar que nossas entrevistas tiveram
como base um questionário semi-estruturado com doze perguntas que perpassam assuntos que
vão desde a biografia do entrevistado até as subjetivas como, por exemplo, o que o apóstolo
Valdemiro representa para essas pessoas.
As entrevistas foram gravadas com o consentimento dos entrevistados, exceção
feita ao colaborador que demos o nome fictício de Vinícius, que foi manuscrita por motivo de
oportunidade. Todas as entrevistas ocorreram fora do ambiente cúltico. As pessoas
entrevistadas foram selecionadas dada a receptividade bem como a disponibilidade de
conceder a própria entrevista. Mas também julgamos interessante manter a simetria da
amostragem, por isso, já que entrevistamos quatro membros antigos da IQE e quatro membros
jovens da IEQ, mantivemos o quantitativo de quatro entrevistas com os membros da IMPD. É
preciso frisar, entretanto, que conversamos com diversas pessoas da IMPD que,
informalmente, enriqueceram nossa observação e impressões do campo.
Nossa primeira colaboradora é uma mulher de sessenta e nove anos que
chamaremos de Rosemeire. Anteriormente católica, Rosemeire frequenta a IMPD há dois
anos.
Pesquisador: ―Qual é a importância da cura divina para você? Como você a
encara?‖
Colaboradora 1: ―Como eu encaro a cura divina? Eu acho que agente tem que
acreditar mais em Deus, que é só ele que pode fazer isso, outra pessoa não. Só ele.‖
Pesquisador: ―Há muitas curas nos cultos atualmente?‖
Colaboradora 1: ―Há! Há muitas curas, eu mesma já vi, são pessoas que
fumavam maconha, que usavam cocaína, pessoas desempregadas, pessoas querendo vender
casas; e conseguiram isso tudo lá.‖
Pesquisador: ―Já teve alguma experiência de cura divina?‖
Colaboradora 1: ―Tive várias. Comigo mesmo, meu pé foi curado dentro da
Mundial. Eu ia fazer uma cirurgia, colocar quatro parafusos no meu pé e eu fui curada lá na
Mundial. Ainda tive bênçãos pra minha família. Eu mando óleo, toalhinha pra minha irmã lá
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no Rio pra ela usar. Eles usam, o Marquinho arrumou emprego. Porque eu mando as coisas
pra lá e tudo.‖
Pesquisador: ―Como foi?‖
Colaboradora 1: ―O meu pé? Eu fui aos melhores médicos de Juiz de Fora, Dr.
Vitor Caiafa, aí ele virou pra mim e falou que tinha que abrir meu pé aqui e colocar uma placa
e colocar quatro parafusos. O problema não era a cirurgia, era após a cirurgia. E eu comecei a
orar, comecei a pedir. Eu fui muito abençoada lá, eu recebo muitas bênçãos lá. Eu amo a
mundial. A minha cura foi pela minha fé, porque eu trago tudo de lá, porque à noite, às vezes,
eu colocava a toalhinha, amarrava um pano ali, e orando, via o apóstolo na televisão. Até que
eu esqueci do meu pé, e aí eu calcei e tava boa. Não tinha mais nada.‖
Nosso segundo colaborador é um homem de cinquenta anos que há um ano e sete
meses frequenta a IMPD, ao qual atribuímos o nome fictício de Alexandre.
Pesquisador: ―Qual é a importância da cura divina para você? Como você a
encara?‖
Colaborador 2: ―Ah, eu acho muito importante, as curas que tem lá que eu já vi.
Muito boa.‖
Pesquisador: ―Há muitas curas nos cultos atualmente?‖
Colaborador 2: ―Com certeza.‖
Pesquisador: ―Já teve alguma experiência de cura divina?‖
Colaborador 2: ―Já.‖
Pesquisador: ―Como foi?‖
Colaborador 2: ―O meu irmão estava internado e através da toalhinha eu só
encostei na mão dele sem que ele percebesse e hoje, graças a Deus, ele está curado.‖
Nosso terceiro colaborador é um jovem rapaz de dezenove anos que chamaremos
de Vinícius. Há dez meses frequenta a IMPD.
Pesquisador: ―Qual é a importância da cura divina para você? Como você a
encara?‖
Colaborador 3: ―A cura divina ajuda muito as pessoas. Tem muito caroço que
some lá. Na hora da cura divina eu sinto um aperto no coração que só na hora mesmo, agora
não dá nem pra lembrar.‖
Pesquisador: ―Há muitas curas nos cultos atualmente?‖
Colaborador 3: ―Há! Muitas não: várias!‖
Pesquisador: ―Já teve alguma experiência de cura divina?‖
Colaborador 3: ―Ter eu tive, né? Tive uma libertação.‖
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chega muito cansada, mas eu sempre falo com ela, vamos Ana Carla que você vai sair melhor,
tudo vai melhorar, aí ela está indo.‖
Acerca do conteúdo das entrevistas e mais especificamente sobre as respostas às
perguntas que ora exploramos aqui, de imediato, tivemos a impressão de que os fiéis
entrevistados não tinham uma ideia teológica consistente ou sistematizada do que era a cura
divina. Do mesmo modo, as respostas sobre sua importância também foram fluidas,
subjetivas, quando não evasivas. E mais, não tocaram sequer em qualquer embasamento
doutrinário ou bíblico ao menos para demonstrar alguma relevância da cura divina.
Com efeito, é bem sabido que o neopentecostalismo em geral não é muito afeto a
questões doutrinárias. Contudo, é de se espantar que no maior movimento de cura divina da
atualidade os fiéis não reproduzam a construção mítica acerca da cura divina propalada pela
instituição IMPD, sobretudo porque, em tese ao menos, seria esta compreensão mítica que
tornaria essa prática plausível ritualisticamente.
Embora nossos entrevistados sejam todos fiéis comuns da IMPD, isto é, não são
especialistas do sagrado, é curioso observar que nenhum deles sequer mencionou o versículo
que embasa o mote da igreja e que está nas fachadas dos templos, e que, coincidência ou não,
é o mesmo da IEQ, qual seja, Jesus Cristo é o mesmo ontem, hoje e sempre, conforme mostra
a foto abaixo.
Figura 6. Foto do banner da fachada da IMPD localizada no bairro Jardins das Palmeiras, em Sumaré - SP. Disponível em:
<http://libertosdoopressor.blogspot.com.br/2010/10/pastor-da-igreja-mundial-e-preso.html>. Acesso em: 17 set. 2013.
Suspeitamos, todavia, que essa nossa constatação segue de perto a questão da
relação de ―indiferenciação entre o apóstolo e ‗sua‘ igreja‖ aventada por Elisa Rodrigues
79
(2011, p. 16) em relação às críticas direcionadas tanto a IMPD quanto a Valdemiro por parte
da mídia, do Estado e de outras neopentecostais.
Destarte, talvez se cumpra o adágio (adaptado) que diz: ―a congregação é o
espelho do seu líder‖. Nesse aspecto, pensamos avultar de importância a figura de Valdemiro.
Com o quinto ano do ensino fundamental e notadamente avesso aos estudos, o apóstolo
admite: ―Ninguém pode dizer que sou um sujeito dotado de uma inteligência, uma sabedoria‖
(CARDOSO; LOES; DIAS, 2011, p. 2). Mas não só, pois critica de forma aguda aos que
chama de ―doutores da lei‖, declara ele: ―(...) não adianta diploma, canudinho debaixo do
braço, não adianta conta bancária cheia, se Jesus não estiver na sua vida. Não adianta! Isso é
bom, se você tiver Jesus, se não, não vale nada! Aprende isso. É.‖ (RODRIGUES, 2011, p.
11).
Valdemiro não valoriza, ou melhor, desvaloriza o ensino acadêmico, e o
teológico, sobretudo31. Deste modo, coerente com seu líder, o público da IMPD dificilmente
será adepto ao ensino sistemático da bíblia como ocorre nas Escolas Bíblicas Dominicais das
igrejas protestantes e pentecostais clássicas. Mas tal desvalorização possui uma função
significativa, qual seja, a da retórica, cujo intuito, parece, é o da identificação de Valdemiro
como homem rude, pobre, sem cultura letrada. Essa pretensa humildade visa obter uma
identificação maior daquele público mais carente em termos sociais com a ―saga‖ do apóstolo
da IMPD, o que através desse discurso quer dizer que é como um deles, talvez pensando em
aumentar sua confiabilidade, sua credibilidade em função dessa retórica da humildade 32.
À guisa de comparação, o Instituto Teológico Quadrangular (ITQ) em Juiz de
Fora, por exemplo, iniciado em 1985, já possui vinte e oito anos de fundação, e, tomando
como base o relato de Ricardo, nosso colaborador, é, em parte, responsável pelo
arrefecimento da cura divina na IEQ, pois segundo este colaborador, que é seminarista do
ITQ, praticamente não se fala ou ensina sobre cura divina lá. No entanto, ainda há estudo
teológico regular. Já na IMPD, não.
Em relação à IMPD, conquanto isso explique só parcialmente esse
desconhecimento acerca da evocação mítica da imutabilidade de Jesus enquanto taumaturgo
especialmente, parece haver coerência neste mérito. No entanto, pensamos que há um
31 Parece-nos mais uma retórica do que uma desvalorização de fato, pois Valdemiro quer manter seu estereótipo
de homem pobre, não instruído na academia, de pessoa da roça, simples. Com isso, talvez queira que os fieis se
identifiquem com ele, sobretudo os mais pobres, numa espécie de solidariedade durkheimiana.
32 Observação feita pela Profa. Dra. Elisa Rodrigues por ocasião da defesa desta dissertação.
80
Todavia, isso não quer dizer que a fé pessoal tenha sido anulada em detrimento da
fé do apóstolo. Pode, sim, haver pessoas que digam que foram curadas pela sua própria fé.
Muito embora isso seja possível e até certo ponto provável, reiteramos que, via de regra,
avulta de importância a figura de Valdemiro na obtenção da cura. Esta asserção de Rodrigues
foi corroborada em nossas entrevistas. Uma de nossas perguntas foi justamente sobre a
significância de Valdemiro.
Pesquisador: ―O que o Ap. Valdemiro Santiago representa para você?‖
Colaboradora 1: ―Pra mim ele representa tudo! Pode falar o que quiser dele que
eu não acredito, ele é o verdadeiro homem de Deus.‖
Colaborador 2: ―Tudo de bom. Sempre que eu ouço ele minha fisionomia até
muda.‖
Colaborador 3: ―Pra mim representa um enviado de Deus que veio aqui pra
ajudar as pessoas. Pra muitos não é não, mas pra mim é!‖
Colaboradora 4: ―Pra mim é tudo. Podem falar que ele é isso, que ele é aquilo. A
fé que eu tenho no Deus dele é muito forte. As pessoas podem não ter fé, mas fé do apóstolo e
a minha fé vai.‖
Nota-se, com certa tranquilidade, que a crença no apóstolo é sólida. A fé das
pessoas no apóstolo parece ser ―blindada‖. Isso fica patente nas afirmações de todos os nossos
colaboradores, mas em particular das colaboradoras 1 e 4 quando afirmam: ―podem falar o
que quiser [de Valdemiro]‖, a crença deve ser inabalável. Em termos durkheimianos, parece
81
ocorrer uma espécie de solidariedade mecânica que visa manter a coesão social, digo, coesão
religiosa.
Isso se deve a vários motivos dentre os quais se pode citar: a identificação com
seu público, dado o seu discurso de homem simples da roça, comedor de taioba como ele
mesmo gosta de se intitular; o uso da linguagem popular de fácil compreensão, seu papel de
servo de Cristo sofredor e perseguido; mas, sobretudo, pelo seu carisma, e carisma
taumatúrgico.
Se esta inferência estiver correta, será então admissível que haja uma estreita
relação entre a cura e o taumaturgo, uma construção mítica que envolva o carisma de
Valdemiro e seus ritos de cura. Exploraremos, portanto, tal relação entre mito e rito na seção
seguinte, abarcando não só o caso da IMPD, mas de igual modo o caso da IEQ.
82
Ora, o que nos interessa é justamente este estudo comparativo, o único capaz
de nos revelar, por um lado, a morfologia inconstante do sagrado e, por
outro, o seu devir histórico. (Mircea Eliade)
33 Retomamos aqui a definição, necessariamente arbitrária e artificial, que propusemos inicialmente para
precisar o objeto de pesquisa, porquanto estão contidas nela mesma algumas dessas características específicas
a que nos referimos: O termo cura divina, sinteticamente, remete aqui a quaisquer intervenções entendidas
como supraempíricas num dado estado de perturbação da saúde psicofísica, tenha ela causas espirituais ou
não, e, que como condição sine qua non para seu reconhecimento como cura divina, seja atribuído ao Deus
do cristianismo (pentecostalismo) a alteração, a melhora qualitativa do estado morbo anterior, e, quiçá, a
erradicação da doença/enfermidade física ou psicológica.
34 O termo essência é utilizada aqui para expressar unicamente o sentido de algo irredutível e identitário que
qualifica o fenômeno ora em tela.
83
A propósito do título que demos a este tópico, cumpre relembrar também que, via
de regra, a manifestação da cura divina, conforme concebida no pentecostalismo tomando-se
84
por base as narrativas neotestamentárias de cura, requer três componentes ao menos para que
possa ocorrer, quais sejam, o Deus que cura, o doente e a pessoa do curador. Focaremos agora
o papel da pessoa do curador.
É bastante significativo salientar o papel da pessoa do curador, pois normalmente
é ele quem funda determinada vertente religiosa (baseado em seu carisma, tanto no sentido
weberiano quanto naquele que se refere a um dom espiritual específico como manifestação
extraordinária do poder de Deus) ou ainda pereniza essa prática nessa vertente pelo uso
ostensivo de tal carisma.
Nesse sentido, cabe ressaltar que o próprio pentecostalismo em termos de cura
constitui de certa forma um complexo, uma vez que se quer
Tal perspectiva nos conduz à inevitável conclusão de que cada pentecostal, isto é, cada fiel
batizado com (no) o Espírito Santo, ao menos de uma forma ideal, é um curador em potencial,
isso, é claro, sem menosprezar a questão da especificidade dos carismas distribuídos
discricionariamente pelo próprio Espírito, segundo crêem.
Mas sabe-se, na prática, tal não ocorre como no modelo ideal preconizado nas
Escrituras e nos cânones confessionais. Esse distanciamento entre crença e prática religiosa
pentecostal, de fato ―esfria‖ o sagrado quente ou selvagem. Com isso, ainda que a experiência
extática, carismática tenha sido ampla ou ainda se queira universal, o processo de
burocratização é quase que inevitável.
Com o carisma da cura divina não é diferente. Conquanto cada crente pentecostal
seja um curador em potencial, parece que não só pela especificidade do dom espiritual, mas
também (e muito mais) por causa de uma pretensa maior santificação individual, alguns
crentes sobressaem-se aos demais, de modo que passam a ser reconhecidos na comunidade
pentecostal e a exercer o papel de curadores.
85
Pensamos que tal sucede, sobretudo, por dois motivos principais igualmente
significativos, a saber: em primeiro lugar pelo substrato mágico-religioso da matriz religiosa
brasileira, que permite medrar uma cosmovisão encantada do mundo no qual algumas pessoas
são ―qualitativamente‖ diferentes das outras em função de seu carisma, de seu poder de
curar35; e, em segundo lugar, ―porque o homem contemporâneo é, antes de tudo, um ser
doente de corpo e espírito, um paciente e um sofredor que sabe que está doente e que pede,
com absoluta prioridade, para ser curado‖ (TERRIN, 1998, p.149).
Assim,
o Rev. Durham colocou suas mãos sobre o seu tornozelo e disse: ―No nome
35 Quando falamos ―qualitativamente diferentes‖ em relação à pessoa do curador, de maneira alguma estamos
falando em superioridade ou inferioridade, mas diferenciadas no que tange ao carisma da cura que os possibilita
ter certo status na comunidade dos crentes. Prócoro Velasques Filho afirma que ―o pentecostalismo de cura
divina é constituído de grupos que romperam com o pentecostalismo tradicional. (...) [No entanto], tanto quanto
no pentecostalismo tradicional, aqui os pastores tampouco tem preparo teológico formal. Eles são escolhidos
dentre os ‗crentes‘ por demonstrarem maiores dons de liderança carismática e ‗poder‘ de curar.‖ (1985, p. 71).
86
entendida esta como a irrupção do sagrado, cada uma ao seu modo, permite
uma dada e diferente aproximação do sagrado. A hierofania, com poucas
exceções, é um epifenômeno que se apresenta a um indivíduo e constitui
nele uma experiência fundante ou transformadora, ou mesmo mantenedora
de uma forma de religião (MENDONÇA, 2004, p. 35).
De fato, há indícios de que isso tenha sido possível e talvez ainda o seja. No início
do ministério de Aimee, por exemplo, as curas estavam praticamente vinculadas à pessoa de
Aimee, isto significa dizer que, olhada por este prisma, a pessoa do curador torna-se o
epicentro do fenômeno da cura divina. Talvez, em função disso, não tenha sido uma
coincidência o fato de que ―Aimee atravessou os Estados Unidos nada menos de oito vezes,
realizando cerca de trinta e oito campanhas por todo o país, em auditórios com capacidade
para três a dezesseis mil pessoas‖ (ROSA, 1978, p. 279).
Figura 7. Foto de Aimee ministrando a cura divina. Disponível em: <http://www.nbz.com.br/ieq/aimee.html>. Acesso em:
15 dez. 2013.
Talvez seja nesse sentido que o curador seja um verdadeiro administrador da cura
divina. Mas e a cura divina em si, pode ser considerada um serviço religioso administrável?
Sobre isso Rodrigues nos dá pistas que tanto curas quanto milagres
Isso, é claro, não se constitui novidade alguma. A própria Aimee, por exemplo, se
utilizou de meios que, em seu tempo, foram de vanguarda. Referimo-nos a ―consagração da
Rádio KFSG em 6 de fevereiro de 1924. Mesmo na época, era algo muito avançado. Tratava-
89
se da primeira emissora de propriedade de uma igreja nos Estados Unidos, e a terceira em Los
Angeles‖ (ROSA, 1978, p. 282).
Percebe-se, sob este prisma, uma íntima sinergia entre a pessoa do curador e a
midiatização da cura, cujo objetivo principal, na perspectiva do fiel, seria de propagar a fé
verdadeira (isto é, a sua própria, é claro), e assim expandir o Reino de Deus.
Obviamente, de Aimee para Valdemiro houve uma evolução célere e abissal dos
meios de comunicação de massa, mormente com o advento da internet. Conforme já citamos
aqui, Aimee foi uma pioneira na utilização de meios de comunicação de massa, uma vez que
administrou a primeira rádio ―evangélica‖ dos Estados Unidos. É patente que naquela época,
dadas as circunstâncias histórico-religiosas já descritas, não havia uma concorrência midiática
como se vê na atualidade.
Deste ponto de vista, a IEQ estadunidense desfrutou de certa vantagem, sobretudo
por poder propagar a cura divina, sua especialidade, através do meio de comunicação de
massa mais eficaz de sua época sem que houvesse, inicialmente, concorrência que lhe fosse
párea. Atualmente, no entanto, a IEQ brasileira utiliza os mais variados meios de
comunicação disponíveis, mas sobretudo a internet.
Sobre este aspecto, há certa liberdade ou autonomia para que as igrejas
propaguem a fé quadrangular, bem como o ―ministério‖ do pastor responsável. Os sites das
igrejas disponibilizam, inclusive, material histórico como fotografias, vídeos, etc., que não
seguem uma padronização institucional. Alguns materiais iconográficos utilizados neste
trabalho para ilustração foram tirados desses sites, cabe ressaltar.
Já na IMPD a questão da midiatização é diametralmente oposta tanto no sentido
da institucionalização, quanto no sentido da concorrência midiática a que nos referimos em
relação à IEQ. O que é comum às duas denominações é a ampla utilização midiática na
propagação da fé, mas com uma diferença bastante significativa por parte da IMPD: a
espetacularização da fé como estratégia de marketing.
Passemos primeiramente à questão da concorrência midiática que envolve a
IMPD. Já afirmamos anteriormente que a relação de Valdemiro com a IURD e seu líder tem
sido conturbada por diversos motivos. O principal deles seria o da saída de Valdemiro da
IURD para fundar uma igreja concorrente, com o agravante de se utilizar, para isso, de uma
estratégia peculiar, quase de guerra mesmo, qual seja, a de minar o adversário em suas
próprias fileiras. Ricardo Mariano exemplifica tal tática afirmando
90
os testemunhos de milagres e, principalmente, de curas tomam boa parte dos cultos. Segundo
Elisa Rodrigues
minha fé‘‖ (2011, p. 9, negrito nosso). Pensamos que, ainda assim, constitui-se uma questão a
ser discutida36.
Agindo dessa maneira, Valdemiro assume a disposição por parte do doente para
que se efetue a cura. Nesse sentido,
Este prisma pelo qual estamos fitando o objeto nos remete a uma passagem
neotestamentária bastante conhecida e que diz respeito tanto à universalidade quanto à
reciprocidade em relação à cura e ao curador: ―(...) rezai uns pelos outros, a fim de serdes
curados.‖ (TIAGO, 5.16b, Bíblia TEB). Nesse sentido, Souza corrobora nossa observação na
medida em que afirma que
Por fim, em termos comparativos, o agente curador tanto na IEQ quanto na IMPD
exerce ainda um papel significativo, embora muito mais discreto atualmente na IEQ se
comparado à época da Cruzada Nacional de Evangelização ou à atual IMPD. No entanto,
ainda assim permanece um paradoxo não negligenciável e observado ao longo desta seção,
pois a centralização da pessoa do curador afeta sensivelmente a universalidade do batismo no
(do) Espírito Santo em função de uma especialização carismática individual, cuja
complexidade está concentrada justamente na pessoa do curador.
36 Se, como afirma o apóstolo Valdemiro, ele prega o evangelho tal como na Bíblia, como compreender esse
―venha pela minha fé‖? Não seria isso um retorno à intermediação sacerdotal combatida pelos reformadores?
Onde fica, nessa concepção, o sacerdócio universal de todos os crentes, tão caro à fé protestante? Na seria uma
negligência óbvia daquilo que, em várias ocasiões, Jesus falou: ―vai-te em paz, a tua fé te salvou‖? Ou não está
escrito: ―Ora, sem fé é impossível agradar a Deus‖? (HEBREUS, 11.6b, Bíblia TEB, grifo nosso).
93
Antes de mais nada, é interessante aqui aclarar o uso do conceito de liturgia neste
trabalho. Segundo James F. Withe, liturgia
Este mesmo autor afirma que ―o conceito de serviço, então, é fundamental para
entender o culto‖, e é basicamente esse sentido que queremos dar ao falarmos de liturgia, ou
seja, liturgia aqui indica aquilo que acontece recorrentemente no culto, no ritual pentecostal.
Contudo, o uso do termo, nesse sentido, não se aproxima necessariamente dos conceitos
teológicos normativos vigentes no campo dos estudos litúrgicos 37. De todo modo, aqui,
função litúrgica significa função ritual no âmbito cristão pentecostal.
Ao focarmos a função litúrgica da cura propriamente dita no pentecostalismo das
duas igrejas estudadas neste trabalho, pensamos ser bastante profícuo proceder a uma breve
anamnese que seja, da herança cúltica protestante que o pentecostalismo reteve, ao menos em
parte, para que se possa comparar a evolução da função litúrgica da cura.
Beatriz Muniz de Souza em seu estudo ―A cura divina entre os pentecostais‖
(1983), solicitado pelo antigo Instituto Metodista e publicado na Revista de Ciências da
Religião (Edições Paulinas), afirma, sobre a liturgia pentecostal, que ―as reuniões religiosas,
cujo ritual segue modelo de inspiração protestante, revestem-se sobretudo de característico
clima permeado por contagiante exaltação emocional.‖ (1983, p. 91).
37 Como por exemplo: SARTORI, D. ; TRIACCA, A. M. (Org.) Dicionário de liturgia. São Paulo: Edições
Paulinas, 1992; e, WHITE. James F. Introdução ao culto cristão. São Leopoldo: Sinodal, 1997.
94
são aquelas que, por tradição histórica, mantêm uma ordem no culto pré-
estabelecida, um conjunto de ritos solenes, uma simbologia expressa em
trajes apropriados para cada rito e estação do calendário litúrgico, e em
aparatos do culto e na arquitetura. A tradição litúrgica não é uma tradição
espontânea, mas uma acumulação de dados e fatos que se somam no
decorrer dos séculos. (...) Nas Igrejas Litúrgicas, os ritos (Eucaristia,
Batismo, Matrimônio, confirmação, Ordenação, etc.) ocupam lugar central
na vida cúltica da comunidade. Aqui, embora a pregação ocupe um lugar
destacado, o centro é ocupado pelos ritos (VELASQUES FILHO, 1985, p.
70, grifo nosso).
Palavra de Deus, razão pela qual deveria ocupar lugar central no culto?‖ (1985, p. 129,
grifo nosso).
Sua leitura é a de que ―a Eucaristia ainda não está encontrando um ‗lugar ao sol‘
na teologia protestante brasileira‖ (ZIMMER, 1985, p. 129), e, talvez por isso, tal fenômeno
reflita diretamente nessa descentralização da eucaristia no culto.
Em todo caso, o que se pretende com esta abordagem inicial é indicar uma
evolução de local, isto é, central ou periférico, e de função da cura divina na liturgia
pentecostal, a partir de sua herança cúltica protestante. Conforme se pode perceber de forma
nítida, a cura divina não fazia parte do culto protestante, obviamente, senão de maneira
pontual e absolutamente discreta, sem quaisquer manifestações extáticas ou emocionalismo
incontido.
Assim, ―de lugar, por excelência, da mensagem de conversão-salvação e,
secundariamente, de orientação ética, a bíblia passa a ser um instrumento de legitimação do
poder – especificamente – do poder de ‗operar maravilhas‘. Isso para os dirigentes.‖
(MONTEIRO, 1979, p. 109).
No entanto, percebe-se com igual clareza, que as manifestações carismáticas
tinham (têm) um papel fundamental no culto pentecostal. Diríamos até mesmo que era
parelho à homilia, em termos de importância, como escopo cúltico. Embora conforme
observaram Beatriz Muniz de Souza e Prócoro Velasques Filho, em relação àquelas igrejas
não-litúrgicas, nas quais o centro é a homilia, cuja herança cúltica protestante influenciou e
até certo ponto prevaleceu na tradição pentecostal, de algum modo houve, paulatinamente, um
movimento no qual a cura divina migrou da periferia para o centro da liturgia pentecostal,
bem como assumiu uma função deveras significativa em termos cúlticos.
Tal movimento, pensamos, se deu em circunstâncias e época específicas. Mas
quais? De imediato nos reportamos à tipologia de Freston que dividiu metaforicamente o
movimento pentecostal em ondas. É bem sabido que a primeira onda, com a Assembleia de
Deus e a Congregação Cristã no Brasil, não deu muita ênfase à cura divina, a ênfase estava na
glossolalia como manifestação clara do batismo no (com) o Espírito Santo. Assim, é da
primeira para a segunda onda que pode ter ocorrido, e pensamos que seja, este movimento
migratório, da periferia para o centro cúltico, da cura divina.
O movimento de cura divina iniciou suas atividades no Brasil na segunda metade
do século XX, mais especificamente em 1953 com os missionários Harold Williams e
Rymond Boatright através da Cruzada Nacional de Evangelização. Neste mesmo período, o
97
país passava por mudanças rápidas e estruturais, e que se mostraram, ao longo dos anos,
estruturantes de uma situação socioeconômica cujos reflexos ainda hoje se fazem presentes.
Referimo-nos ao processo de industrialização e urbanização nacional: tardio,
caótico e, sobretudo, contraditório em termos de desenvolvimento social. Sobre essa questão,
João Décio Passos afirma que
o homem não pode conviver com o caos e a desordem absoluta. Ele precisa
introduzir algum tipo de ordem. Qualquer ordem é melhor que a desordem
total. É isso que faz o pensamento mágico: dá certa ordenação para aquilo
que, aparentemente, à vista das pessoas, surge como sendo desordenado.
(...) A imprevisibilidade do dia-a-dia de uma grande cidade é total. A falta
de infra-estrutura urbana, de ajuda dos poderes públicos, a exploração
existente, a falta de perspectiva de melhora, e o anseio de paz e de calma
interior levam o homem urbano a se utilizar desse tipo de manifestação, no
98
intuito de garantir certa ordem, pelo menos de tentar garanti-la. Não que a
religião, o pensamento mágico resolvam todos os problemas (MAGNANI,
1984, p. 133),
seu público veio da classe média baixa de migrantes rurais brancos, mais do
que das classes mais humildes que frequentavam as missões pentecostais
menores (Anderson 1979:125). Em sintonia com esse público, Aimee às
vezes pregava em reuniões da Ku-Klux-Klan. Após doze anos de
funcionamento, o Four Square Church tinha apenas 25 membros negros,
organizados separadamente dentro da igreja (ib.: 190-191) (apud
FRESTON, 1994, p. 111).
No entanto, a cura divina não só foi fecunda lá, como também o foi aqui. Desse
modo, é necessário ter bem claro que a crença e a prática da cura divina não é um reflexo de
condições sociais adversas, embora possa ter relação de fecundidade, como no caso brasileiro,
não o tem de causa e efeito.
Em todo caso, é necessário reconhecer também, que parece ter sido nesse mesmo
período em que chegaram ao Brasil os primeiros missionários da Cruzada Nacional de
Evangelização, na década de cinquenta, que a cura divina passou a ter não só maior
visibilidade, mas migrou da periferia para o centro da liturgia pentecostal das igrejas da
segunda onda. Sobretudo das três maiores denominações desse deuteropentecostalismo: a
IEQ, a Igreja Evangélica Pentecostal o Brasil para Cristo e a Igreja Pentecostal Deus é Amor.
Todas as três, importa sublinhar, deram muita ênfase à cura divina, cada qual à sua maneira, é
bem verdade.
Sob este prisma, percebe-se que a chegada da Cruzada Nacional de Evangelização
e sua inserção no campo religioso brasileiro, com sua hipertrofia da cura divina, influenciou
de maneira decisiva nesta migração da cura da periferia para o centro litúrgico. Assim, não foi
99
se motivo que o Rev. Júlio Rosa, historiador da IEQ, queixou-se de que os pastores brasileiros
estavam pregando somente a cura divina, o que não correspondia à totalidade da doutrina
quadrangular (1978).
Portanto, pensamos que foi sob as condições sociais da sociedade brasileira desde
a segunda metade do século XX, catalisadoras do movimento de cura divina, que se deu esta
centralização da cura na liturgia, a partir da IEQ, isto é, a antiga Cruzada, e que influenciou
outras denominações pentecostais, chegando até a IMPD38, atual ícone de cura divina no
campo religioso brasileiro.
Pode-se depreender daí que, mudada a posição litúrgica da cura divina, sobretudo
porque ocupa agora o centro, muda-se também sua função litúrgica. Nesse sentido, nos
reportamos ao fundamento mítico da função liturgica da cura baseada na literatura
neotestamentária e nos estudos do Jesus histórico. John Dominic Crossan afirma que Jesus
tinha uma função específica para a cura divina, qual seja, a de ser um epifenômeno da
presença do Reino de Deus.
Segundo essa óptica, Jesus
pede para que os (as) outros (as) façam exatamente o que ele está fazendo:
curando doentes, comendo com eles e proclamando a presença do Reino. (...)
ele não lhes pede que curem em nome dele ou até mesmo que rezem a Deus
antes de curar – nem mesmo reza antes da cura. Isso é realmente
extraordinário e só pode ser explicado pela presença do Reino e pela
participação das pessoas no interior dele – se você já se encontra no Reino
presente aqui e agora, você já está em união com Deus e pode agir de modo
correspondente. A lógica do programa do Reino de Jesus é a mutualidade da
cura – como poder espiritual básico – e a comensalidade – como poder físico
básico –, compartilhadas livre e abertamente. (...) Acredito ser claro e
evidente o fato de que Jesus era um grande curandeiro e, mesmo que nós não
consigamos explicar essa capacidade, a veracidade dela parece seguramente
afirmada (CROSSAN, 2009, p. 26).
38 Não estamos afirmando que haja alguma influência direta da IEQ sobre à centralidade da cura na IMPD. O
que queremos dizer com isso é que foi a partir da IEQ que o lugar cúltico da cura passou a ser o centro, e que é
provável que este posicionamento tenha servido de modelo ou, no limite, tido alguma influência sobre outras
denominações que focavam a cura divina, mesmo que superficial e indiretamente.
100
enfoque porque a cura divina, ou como definiu Crossan, a mutualidade da cura, não poderia
acompanhar a lógica pré-milenarista pentecostal, pois no Reino de Deus celestial os corpos
dos crentes estarão glorificados, sendo assim, não precisariam da cura divina, uma vez que
jamais ficariam doentes, dada sua incorruptibilidade. O mesmo ocorre com a comensalidade
que acaba se transformando no rito eucarístico.
Assim, a função litúrgica da cura divina, conforme concebida nos primórdios da
IEQ, parece muito mais centrada numa manifestação carismática de cunho pragmático do que
aquela aventada por Crossan, cujo fito seria da imanência do Reino de Deus. Essa concepção
se aprofunda muito no contexto brasileiro conforme já citamos nas palavras do Rev. Júlio
Rosa. Nesse sentido, Mendonça afirmou que
Esse momento, até então desconhecido do povo brasileiro, agora iria tomar
impulso incomum. Evangelização das multidões fora dos templos, passou a
ser a tônica da Cruzada Nacional de Evangelização. Claro que todas as
denominações vinham fazendo o melhor que podiam, dentro das suas
próprias limitações. Mesmo as igrejas pentecostais, não realizavam a rigor
campanhas de cura divina para as massas, mas limitavam-se a pregar mais
dentro dos templos. Impedidos por certas limitações e preconceitos, faziam o
melhor possível com fé, sinceridade e amor; por isso, Deus os abençoou
grandemente. Mas isso não bastava diante do gigantesco trabalho por fazer
no campo espiritual, num Brasil que se preparava para entrar numa fase de
progresso e desenvolvimento jamais vistos. (...) O movimento de cura divina
cresceu, utilizando-se primeiramente as tendas de lona para as campanhas;
depois o sistema de campos da bênção, comunicando o Evangelho completo
às massas sedentas (ROSA, 1978, p. 269).
complexa, pois o autor assevera que o pentecostalismo predecessor à Cruzada no Brasil era
incompleto, uma vez que não realizava campanhas de cura divina para as massas, embora
Rosa tente minimizar a crítica quanto à ausência da taumaturgia. Mas a complexidade
consiste mesmo na associação direta do ―Evangelho completo‖ com a ―cura divina‖.
Essa leitura de Rosa reforça o argumento de Mendonça sobre a especialização do
―grande médico‖, característica da Cruzada. No entanto, outro aspecto nos chama atenção na
narrativa de Rosa e que parece denotar a função da cura divina à época. Rosa especifica que
as campanhas de cura divina eram direcionadas à evangelização das massas e eram a tônica de
da Cruzada à época. Que significa isto? Grosso modo, significa que a pregação do evangelho
era associada à cura divina, isto é, a ―boa nova‖ era que Jesus Cristo curava ainda hoje, o que
Rosa chama de Evangelho completo, obviamente um paradoxo, uma vez que ele mesmo
queixou-se dessa hipertrofia da cura.
Assim, a cura divina para a cruzada, em termos litúrgicos, funcionava como um
fator agenciativo39, ou, em outras palavras, chamariz das massas. Interessante é o fato de que
―as massas‖ aqui é um termo bastante genérico, uma vez que não indica ou especifica o
destinatário desse ―Evangelho‖. Objetivamente, a Cruzada inicia, no início da década de
cinqüenta, seus trabalhos numa Igreja Presbiteriana Independente, ou seja, pregando o
―Evangelho completo‖ a já evangélicos.
Todavia, o tempo passou e a Cruzada institucionalizou-se dando origem à IEQ.
Obviamente a concepção da cura divina mudou com o tempo, sua prática arrefeceu e, em
decorrência disso, sua função de chamariz ou fator agenciativo caiu em obsolência. Situação
que pudemos verificar em campo nos cultos da IEQ, de modo que a função litúrgica da cura
divina na IEQ, hoje, está muito mais para um mito de origem que para um rito exeqüível no
tempo presente.
Já a IMPD, tem ainda a cura divina como principal fator agenciativo. Conforme já
afirmamos anteriormente, a ênfase, o escopo cúltico repousa na expectativa, na perspectiva da
epifania da cura, mormente através da pessoa do apóstolo Valdemiro Santiago e sua equipe de
fé. Nesse sentido, a cura divina na IMPD tem, à semelhança da Cruzada, uma função também
agenciativa, além de legitimadora.
39 Beatriz Muniz de Souza em seu trabalho: A cura divina entre os Pentecostais, percebeu esse viés da função
litúrgica da cura divina: ―Muitos dos que pela primeira vez são atraídos a um culto ou reuniões de
oração, sendo estas últimas via de regra realizadas no sentido de curar toda sorte de enfermidades, chegam a
converter-se instantaneamente ao ouvirem uma mensagem em ‗língua estranha‘ para eles interpretada
como se lhe fora pessoalmente dirigida, presenciarem curas instantâneas ou emocionantes „testemunhos‟
de fé‖ (1983, p. 96, grifo nosso). A palavra falada continua aqui muito forte, na forma dos testemunhos.
102
A cura divina, portanto, na IMPD, tem uma função central, é dela que emergem os
―testemunhos‖ que ocupam boa parte do tempo do culto. Os testemunhos são
seria difícil encontrar uma definição do mito que fosse aceita por todos os
eruditos e, ao mesmo tempo, acessível aos não-especialistas. Por outro lado,
será realmente possível encontrar uma única definição capaz de cobrir todos
os tipos e todas as funções dos mitos, em todas as sociedades arcaicas e
tradicionais? O mito é uma realidade cultural extremamente complexa, que
pode ser abortada e interpretada através de perspectivas múltiplas e
complementares. A definição que a mim, pessoalmente, me parece menos
imperfeita, por ser a mais ampla, é a seguinte: o mito conta uma história
sagrada; ele relata um acontecimento ocorrido no tempo primordial, o tempo
fabuloso do ―princípio‖. Em outros termos, o mito narra como, graças às
façanhas dos Entes Sobrenaturais, uma realidade passou a existir, seja uma
realidade total, o Cosmo, ou apenas um fragmento: uma ilha, uma espécie
vegetal, um comportamento humano, uma instituição. É sempre, portanto, a
narrativa de uma ―criação‖: ele relata de que modo algo foi produzido e
começou a ser. O mito fala apenas do que realmente ocorreu, do que se
manifestou plenamente. Os personagens dos mitos são os Entes
Sobrenaturais. Eles são conhecidos sobretudo pelo que fizeram no tempo
prestigioso dos ―primórdios‖. Os mitos revelam, portanto, sua atividade
criadora e desvendam a sacralidade (ou simplesmente a ―sobrenaturalidade‖)
de suas obras. Em suma, os mitos descrevem as diversas, e algumas vezes
dramáticas, irrupções do sagrado (ou do ―sobrenatural‖) no Mundo. É essa
irrupção do sagrado que realmente fundamenta o Mundo e o converte no que
é hoje. E mais: é em razão das intervenções dos Entes Sobrenaturais que o
homem é o que é hoje, um ser mortal, sexuado e cultural (1972, p. 9).
Assim, a partir dessa definição mais abarcante do mito, poderemos abordar a concepção
pentecostal mítica acerca da cura divina.
Em termos míticos, ambas denominações pentecostais, a IEQ e a IMPD,
convergem no sentido da evocação ao Cristo taumaturgo, isto é, ―Jesus Cristo é o mesmo
ontem, hoje e eternamente‖, mormente em sua ênfase na atualidade de sua ação terapêutica
através da igreja, num sentido mais lato, e, através daqueles fiéis que possuem
especificamente o carisma da cura divina, num sentido mais estrito.
104
Desse mesmo modo na religião cristã, o médico São Lucas fala do encargo
preciso confiado pelo Senhor tanto na primeira missão dos Doze como na
dos setenta e dois discípulos: Jesus convocou os Doze, e deu-lhes poder e
autoridade sobre todos os demônios e para curar as doenças. E enviou-os a
pregar o Reino de Deus e a curar. Os discípulos partiram, e percorriam os
povoados, anunciando a Boa Nova, e fazendo curas em todos os lugares
(TERRIN, 1998, p. 151).
Por outro lado, este mesmo mito de origem cujo centro era o Cristo taumaturgo,
teve seu escopo no evento de pentecostes, narrado no início do livro dos Atos dos apóstolos,
Assim, o evento de pentecostes é, em certo sentido, também um mito cosmogônico 40.
Explico: falamos em mito cosmogônico, pois antes do evento de pentecostes, o Espírito Santo
não era ―derramado sobre toda carne‖. Ou, dito de outra maneira, somente três classes de
pessoas poderiam usufruir da bênção do Espírito Santo, a saber, os reis, os sacerdotes e os
profetas, e isso para capacitá-los a exercerem seus respectivos ofícios.
Isso significa reconhecer que antes do pentecostes o Espírito Santo era restrito, e
após o pentecostes ele é ampla e irrestritamente difundido sobre os cristãos. Observando por
esse prisma, é possível afirmar que o evento do pentecostes inaugura uma nova era, a ―era do
parácleto‖. Que seria isso, senão um evento mítico primordial no qual o Ente sobrenatural
(nesse caso o Espírito Santo) funda um novo mundo, uma nova era?
O pentecostalismo enquanto vertente cristã que baseia sua crença e prática na
possibilidade de repetição do evento do pentecostes acaba evocando, por consequência,
também a atualidade mítica dos carismas advindos do pentecostes, isto é, do derramamento do
Espírito Santo sobre os cristãos, cujas evidências são os próprios dons espirituais, incluindo aí
o da cura divina.
O mito do pentecostes e sua consequente universalização dos carismas, constitui-
se no ponto de partida para a teologia e liturgia pentecostal, ao mesmo tempo em que o ponto
de chegada também, isto é, no escopo cúltico e ponto doutrinal inalienável. O que podemos
40 Eliade afirma que ―toda história mítica que relata a origem de alguma coisa pressupõe e prolonga a
cosmogonia. Do ponto de vista da estrutura, os mitos de origem homologam-se ao mito cosmogônico. (...) Os
mitos de origem prolongam e completam o mito cosmogônico: eles contam como o Mundo foi modificado,
enriquecido ou empobrecido‖ (1972, p. 20). De igual modo, o mito de origem pentecostal, centrado no Cristo
taumaturgo, parece fazer o mesmo uma vez que re-cosmiciza e refunda o mundo, pois no evento de pentecostes é
que é fundada a ―era do parácleto‖.
105
concluir com isso é que ―a função mestra do mito é fixar modelos exemplares de todos os
ritos e de todas as ações humanas significativas‖ (ELIADE, 1998, p. 334).
Nesse sentido, as próprias ações de Aimee, que funda a IEQ, corroboram nossa
leitura. Segundo narra o Rev. Júlio Rosa,
já nos primeiros anos, Aimee foi usada por Deus com extraordinárias
experiências de cura divina. Numa noite em que ela pregou sobre o texto:
―Jesus Cristo é o mesmo ontem, hoje e eternamente‖, afirmando que ele está
vivo para curar e batizar com o Espírito Santo, aconteceu um grande
milagre. Uma moça toda deformada, com as mãos e pernas retorcidas pela
artrite, foi carregada até à frente; aquela moça aceitou a Jesus
imediatamente, e foi batizada com o Espírito Santo em seguida. A moça que
tinha também o pescoço duro, não podendo olhar para cima, quando a
missionária mandou que ela levantasse os braços e louvasse a Deus, ela o
fez. Suas mãos começaram a endireitar-se, conseguiu olhar para cima e saiu
andando por si sem muletas, e glorificando a Deus (1978, p. 277).
Essa narrativa demonstra bem o que quisemos sinalisar logo acima. Podemos
perceber, sem muito esforço, que, segundo Rosa, Aimee parte da evocação do mito, na
verdade de sua atualidade, e busca o cumprimento ritual desse mesmo mito. Não num sentido
de uma reatualização, mas do viver o modelo exemplar expresso no mito.
Com efeito, como bem disse Eliade,
propagação do Reino de Deus através das curas. Não seria isso levar ao limite o sentido de ser
um cristão, isto é, um imitador de Cristo? Pois, segundo os evangelhos, Cristo curava, e,
segundo os registros do livro dos Atos dos apóstolos, havia não poucos milagres na vivência
religiosa da igreja primitiva.
Cumpre observar que naquele contexto histórico, o da igreja primitiva,
obviamente, não havia sistematização ou teorização, ainda, em relação à cura divina,
sobretudo porque nenhuma literatura neotestamentária tinha sido escrita, tampouco
canonizada. No entanto, ―o mito desvenda uma região ontológica inacessível à experiência
lógica superficial. (...) O mito exprime plástica e dramaticamente o que a metafísica e a
teologia definem dialeticamente‖ (ELIADE, 1998, p. 340).
Nesse sentido, recordamos que a Cruzada Nacional de Evangelização
institucionalizou-se dando origem à IEQ, e aquele sagrado selvagem que o Júlio Rosa
queixava-se de hipertrofiado pelos obreiros brasileiros, foi domesticado, vindo a cair em
ocaso. Mas mesmo antes desse arrefecimento da cura divina, aliás, já em sua gênese, a cura
divina foi teorizada no âmbito da IEQ, e isso pela própria Aimee que afirmou ter recebido a
doutrina quadrangular numa revelação durante uma leitura do primeiro capítulo do livro do
profeta Ezequiel, no qual, a partir do ser emblemático de quatro rostos, postulou sobre o
evangelho quadrangular. Na verdade, na doutrina quadrangular, a cura divina figura como um
pilar sobremodo significativo, mormente por sua possibilidade de realização neste mundo.
Entretanto, o ―grande médico‖ da doutrina quadrangular e o ocaso da cura divina
na IEQ atualmente, constituem-se uma questão complexa, talvez até mesmo indicando uma
possível dissociação mítico-ritual. Quando falamos em questão complexa, queremos nos
referir a uma relação muito cara tanto à antropologia quanto à fenomenologia, qual seja, a
relação entre o rito e o mito. Por isso, olhando para a IEQ atualmente, poderíamos indagar:
pode haver mito sem rito?
Conquanto tenhamos percebido através das entrevistas, bem como na observação
do campo que a cura divina ainda permanece na crença dos fiéis, todavia ela atualmente está
quase totalmente restrita a curas da alma. E não estamos dizendo que isso não é significativo,
mas é preciso sublinhar que tanto o mito que evocam na literatura neotestamentária, quanto o
próprio modelo exemplar que Aimee se tornou apontam para curas de doenças físicas,
sobretudo. Por isso a indagação relativa à questão do mito sem rito.
108
Por outro lado, a IMPD, do mesmo modo, tem lá sua questão complexa, na
medida em que não sistematizou seu mito 42, isto é, não há uma linha doutrinária
sistematizada, sobretudo no que diz respeito à pneumatologia. Então, nessa mesma linha
interpretativa, poderíamos indagar: pode haver rito sem mito (teologia)? Tal questionamento é
pertinente, na medida em que percebemos que, diferentemente da IEQ, a IMPD já nasceu
institucionalizada. Levando-se em consideração que Valdemiro era bispo da IURD e,
notoriamente, percebe-se que se utilizou de todo know how eclesiástico-administrativo da
IURD na composição da IMPD.
Com isso não estamos querendo dizer, absolutamente, que a IMPD é uma cópia
da IURD. Longe disso. No entanto, é inegável que o modelo de igreja do qual Valdemiro é
egresso teve influência não superficial na formação da IMPD. O tipo de governo, a rígida
hierarquia eclesiástica, a maneira ostensiva de angariar os dízimos e ofertas, bem como em
seu pesado investimento midiático ratificam essa influência. Tais exemplos denotam
semelhanças não negligenciáveis entre as duas denominações. Sendo assim, ―não é difícil
visualizar, no crescimento da presença midiática da Igreja Mundial, que Valdemiro Santiago é
discípulo de Edir Macedo e de outros líderes da IURD e, na prática, segue seus passos‖
(CUNHA, 2012, p. 106).
Entrementes, é provável que haja outra mimetização em relação à IURD.
Referimo-nos a não preocupação com o aprofundamento e sistematização teológicos-
doutrinais. Mas de igual modo, não estamos dizendo que não há doutrina nessas igrejas.
Talvez sejam um tanto insipientes em relação às igrejas protestantes que têm lá seus cânones,
suas confissões e artigos de fé, verdadeiros símbolos denominacionais muito pouco alterados
no decorrer dos anos.
Isso sem mencionar a rigorosa formação teológica requerida dos candidatos ao
ministério pastoral em igrejas protestantes. Estes são instados a estudar ao menos quatro anos,
quando não mais, em um seminário ou faculdade teológica reconhecidamente ―séria‖ ou
sancionada, subsidiada pela denominação protestante, além de estágio probatório, exigência
de sermão de prova e sabatina teológico-doutrinal pelos conselhos sinodais, presbitérios ou
outros órgãos gestores da formação ministerial.
Um olhar um pouco mais acurado e menos preconceituoso, no entanto, perceberá
que há, sim, doutrinas na IMPD. Estas, contudo, não perfazem um compêndio teológico-
42 Sabe-se que a sistematização do mito é parte da docilização ou domesticação do sagrado selvagem e sua
consequente burocratização. Nesse sentido, há uma diferença entre mito e teologia, que são esferas relativas mas
não idênticas. Fique claro, no entanto, que utilizaremos aqui tais termos como se fossem correspondentes sem
perder de vista suas diferenças.
109
sistemático propriamente dito, tampouco perfazem uma tradição sólida nos moldes das igrejas
pentecostais clássicas. A nosso ver, a doutrina ou teologia da IMPD parece situar-se num
meio termo entre algum tipo de tradição oral e a diretrizes doutrinárias emanadas em função
de demandas específicas.
Tais diretrizes doutrinárias são moldadas conforme o entender de seu líder
supremo e disseminadas mimeticamente pelos bispos regionais, pastores, obreiros e
assimiladas pelos fiéis, em última instância. Isso não quer dizer que trata-se de invenções de
Valdemiro. Ao contrário, a própria IMPD surge dentro de um contexto maior, o
neopentecostalismo, mas que é recriado na IMPD. Em todo caso, cumpre sublinhar que essas
doutrinas não são fruto de abstrações filosóficas e teológicas, mas perfazem parte da herança
de uma hermenêutica bíblica pragmática, voltada quase que exclusivamente para os
problemas concretos do dia-a-dia dos fiéis.
Todavia, essa não sistematização em relação à cura divina na IMPD, não quer
dizer ausência total de teologia, pois, por exemplo, evoca-se a atualidade do Cristo
taumaturgo no texto referente ao livro aos Hebreus: ―Jesus Cristo é o mesmo ontem, hoje e
eternamente‖, mas não da forma sistematizada como se deu no protestantismo. Antes, a
teologia está subjacente às práticas, isto é, nas curas propriamente ditas e nos testemunhos de
fé, sobretudo. Nesse sentido, concordamos com a assertiva de Rodrigues: ―nosso suposto aqui
é que as práticas têm teologia. O argumento teológico está presente nas narrativas dos
testemunhos‖ (2013, p. 215).
Isso não significa que as pessoas não vão às reuniões para ouvi-lo, mas, no fim,
interessa-lhes muito mais ―o milagre urgente‖ do que a teologia propriamente dita, e, talvez
por isso mesmo, a não sistematização do mito da cura divina na IMPD não seja algo sentido
ou entendido como discrepante. Aliás, talvez, a figura de Valdemiro como um ―apóstolo
taumaturgo‖, semelhante aos ―doze‖, substitua, de algum modo, o mito sistematizado,
teologizado, perfazendo, em si mesmo, um mito vivo que prescinda de teorizações e
elucubrações teológicas.
A IEQ, por sua vez, já em sua gênese teve cristalizada em sua doutrina
quadrangular, a teologização da cura divina na concepção de Jesus Cristo como o ―grande
médico‖. Embora, vale à pena ressaltar, numa hermenêutica bem pouco convencional. Não
obstante, Júlio Rosa relata que desde o início da Cruzada no Brasil houve bastante
preocupação com a formação teológica dos obreiros.
Segundo Rosa, ―numa das reuniões da primeira diretoria da Cruzada, alguém fazia
uma proposta para a organização de um Instituto Bíblico (...) sua fundação ocorreu em 1957‖
110
(1978, p.303), ―os aprovados no Curso Regular de três anos, saem do Instituto
automaticamente credenciados como aspirantes ao ministério‖ (1978, p. 305).
Embora tenha havido muita preocupação com a teologização de seus mitos, o
ocaso da cura divina na IEQ perfaz um paradoxo não negligenciável. Pois,
Não se questiona o lugar mítico-discursivo da cura divina na IEQ. Está claro que
foi (é?) sobremodo importante para a denominação e a própria instituição cuidou para que
fosse perenizada na cristalização doutrinária da igreja. Contudo, o atual ocaso da cura,
levando-se em consideração os moldes do mito de origem e do mito cosmogônico, bem como
no modelo exemplar da fundadora Aimee, as curas que ainda ocorrem na IEQ não parecem
condizer com o modelo exemplar evocado pelo mito. Tal fato é deveras significativo, pois
denota certa dissociação ou modificação do rito, isto é, da cura em relação ao seu mito.
Deveria a religião, e, mais especificamente, a igreja pensar na salvação da alma e
não na do corpo? Porventura seria este ocaso da cura um indício do triunfo da modernidade ―e
comprovação ‗científica‘ de que uma coisa é a tarefa da medicina e da ciência médica e outra
é a tarefa da religião num contexto ‗evoluído‘ de conhecimentos técnicos e científicos‖
(TERRIN, 1998, p. 152)?
De todo modo, nossa pesquisa não foi conclusiva nesse sentido, de forma que não
se pôde identificar com precisão que requer um trabalho acadêmico, as causas do ocaso da
cura divina na IEQ, pelo que não se pode, por isso mesmo, afirmar categoricamente quais
fatores foram decisivos nesse processo. Contudo, retomamos dois fatores circunstanciais e
causas prováveis desse ocaso que já citamos anteriormente. As duas principais são: a primeira
seria a profunda burocratização, institucionalização sofrida pela denominação ao longo dos
anos (MENDONÇA, 2008); e, a segunda, o paulatino aburguesamento do público da IEQ
(FRESTON, 1994).
111
Por fim e à luz do que expomos no decorrer desta seção, muito mais do que nos
aproximarmos de conclusões peremptórias, entendemos que o lugar mítico-discursivo da cura
divina tanto na IEQ quanto na IMPD, é o lugar, por excelência, da taumaturgia sob uma
perspectiva bastante peculiar de ser cristão, a partir da qual o Cristo taumaturgo deve se
manifestar na vida religiosa comunitária, seja através de curas físicas como na IMPD, seja
através de curas da alma como na IEQ. De igual modo, a pessoa do curador possui papel não
negligenciável. Em todo caso, portanto, o que permanece é que, ao compararmos a cura
divina tanto na IEQ quanto na IMPD, percebemos que ela tem importância significativa,
talvez mais em termos míticos numa, talvez mais em termos rituais noutra, mas sempre
significativa. Obviamente permeada pela teologia da prosperidade na qual a saúde física e
psicológica, isto é, a cura das doenças do corpo e da alma figura como principais apanágios,
isso no neopentecostalismo, mas, atualmente, também em boa parte dos pentecostais a até
mesmo de protestantes43.
43 Oneide Bobsin (2003) ratifica essa possibilidade com um exemplo de igreja protestante. Diz assim o
pesquisador: ―O impacto do pentecostalismo e, em menor grau, do pós-penteostalismo nas igrejas tradicionais,
protestantes ou católica, conflui no surgimento do Movimento Carismático. Subentende-se por Movimento
Carismático a tradução do pentecostalismo no interior de igrejas tradicionais. Evidente que em cada igreja
tradicional o Movimento Carismático assume características próprias. No caso da Igreja Evangélica de Confissão
Luterana do Brasil – IECLB, o movimento Carismático é pouco agressivo na propaganda das curas se o
compararmos com igrejas pentecostais e, especialmente, com as neopentecostais. Mesmo assim, oração por ura,
imposição de mãos e, em alguns casos, exorcismos são enfatizados. Nos cultos carismáticos da IECLB, o
testemunho nos cultos é incentivado pelos pastores. Como em outras igrejas pentecostais, tais testemunhos
evidenciam a ação poderosa do Espírito Santo.‖ (2003, p.38)
112
CONCLUSÃO
divina está imiscuída nas igrejas estudadas, de forma que o leitor destas páginas pode inferir
que trata-se, assim, de uma sinergia da pesquisa de campo com a análise fenomenológica
dessas dimensões propostas.
Para tanto, nessa linha de pesquisa efetuada sob a égide da fenomenologia com o
auxílio do instrumental antropológico, cotejamos sobretudo com os fenomenólogos como
Mircea Eliade e Aldo Natale Terrin, a fim de aquilatar o arcabouço teórico que precisamos
para levar a cabo tal empresa.
Entrementes, o trabalho de campo mostrou-se sobremodo profícuo, pois em campo
podemos verificar que a hipótese anteriormente levantada por Mendonça e Freston, por
exemplo, de que a cura divina na IEQ já não tinha a pujança de outrora, tem realmente
pregnância no tempo presente. Ao contrário, na IMPD, a cura divina figura como principal
fator de agenciamento de fiéis, ou dito de outra forma, chamariz de novos adeptos sejam quais
forem suas origens religiosas.
Isso em termos funcionais, mas a dimensão mítica a ritual da cura na IMPD não
foi negligenciada, antes, dela emergiu algumas temáticas do terceiro capítulo, dentre elas o
papel da pessoa do curador, por exemplo, na qual pudemos analisar comparativamente esse
personagem tanto na IEQ quanto na IMPD, e daí inferirmos a questão complexa que a pessoa
e o papel do curador configura no pentecostalismo como um todo, e, na IEQ e IMPD em
particular, dada a ênfase na cura divina. De igual modo, nos detivemos na função litúrgica da
cura e em seu lugar mítico-discursivo. Sobre isso, conseguimos perceber que ela tem ainda
importância significativa, talvez mais em termos míticos numa, talvez mais em termos rituais
noutra, mas sempre significativa.
Como consideração final, resta, numa tentativa de síntese, caracterizar o que foi
possível concluir a respeito da cura divina circunscrita aqui ao pentecostalismo da IEQ e da
IMPD, e, sobre isso lançar algumas questões. Nesse fito, cremos que a afirmação do professor
Oneide Bobsin acerca da cura divina pode nos ajudar a pensar tal fenômeno e propor ainda
alguns questionamentos.
Diz assim esse pesquisador: ―a busca de cura divina constitui-se num grande fator
de mudança do mapa religioso no Brasil‖ (2003, p. 35). A partir desta assertiva algumas
indagações podem ser feitas: Estaria a IEQ se tornando uma igreja ―histórica‖, dado o ocaso
dos carismas, sobretudo o da cura divina no tempo presente? Seria a IMPD uma legítima
representante do deuteropentecostalismo ou segunda onda pentecostal adaptada à
modernidade midiática? E, por fim, como passar dos anos a cura divina irá arrefecer na IMPD
114
como ocorreu com a IEQ? Deixaria ela de ser neopentecostal por isso? Seu crescimento seria
afetado se isso ocorresse?
Tais questionamentos são deveras intrigantes, ao nosso modo de ver. Mas as
respostas a tais questionamentos, todavia, ensejariam outras dissertações, quiçá ou outras
teses. Mas esta que nos propusemos a escrever, findamos por aqui mesmo, pois como bem
disse Clarice Lispector, ―o entender é sempre limitado‖.
115
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WHITE, James F. Introdução ao culto cristão. São Leopoldo: Sinodal, 1997. 267 p.
APÊNDICES
APENDICE “A”
ANEXO “B”
ANEXO “C”