Afroperspectivismo em Psicoterapia

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Estudos e Pesquisas em Psicologia

ISSN: 1676-3041
ISSN: 1808-4281
Universidade do Estado do Rio De Janeiro

Nascimento, Andrea dos Santos; Souza, Gabriela


Faria de; Silva, Maiara da; Oliveira, Mário Silva de
"Pretitude" e o Afroperspectivismo em Psicoterapia: Desafios para a Abordagem Gestáltica
Estudos e Pesquisas em Psicologia, vol. 19, núm. 4, 2019, Dezembro, pp. 927-946
Universidade do Estado do Rio De Janeiro

DOI: https://doi.org/10.12957/epp.2019.49293

Disponível em: https://www.redalyc.org/articulo.oa?id=451863017006

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ARTIGOS

“Pretitude” e o Afroperspectivismo em Psicoterapia:


Desafios para a Abordagem Gestáltica

“Pretitude” and Afroperspectivism in Psychotherapy:


Challenges for the Gestalt Approach

“Pretitude" y Afroperspectivismo en Psicoterapia: Desafíos


para el Enfoque de la Gestalt

Andrea dos Santos Nascimento*


Universidade Federal do Espírito Santo – UFES, Vitória, Espírito Santo, Brasil

Gabriela Faria de Souza**


Instituto Gestalt de São Paulo - Gestalt SP, São Paulo, São Paulo, Brasil

Maiara da Silva***
Universidade Federal do Espírito Santo – UFES, Vitória, Espírito Santo, Brasil

Mário Silva de Oliveira****


Universidade Federal do Espírito Santo – UFES, Vitória, Espírito Santo, Brasil

RESUMO
Apresentamos a intervenção do projeto de extensão “Gestalt-Terapia, escuta
e acolhimento psicológico de grupos”, realizado desde 2018 por alunos
extensionistas negros do Curso de Psicologia da Universidade Federal do
Espírito Santo utilizando a abordagem Gestáltica. O objetivo é desenvolver a
prática do acolhimento psicológico de grupos, para homens e mulheres
negras, principalmente universitários. Para tanto, foram realizados 07
encontros no ano de 2018 (04 participantes) e 15 encontros no ano de 2019
(07 participantes), sendo 04 mulheres e 07 homens, com idades entre 19 e
45 anos. Os encontros aconteceram no Núcleo de Psicologia Aplicada em
horário noturno. Os principais recursos terapêuticos são provenientes da
expressão verbal e corporal, entretanto, músicas, vivências e atividades de
colagens foram agregadas. Os resultados parciais indicaram que os
encontros grupais proporcionaram cuidado e reconhecimento de si, do
mundo e do outro, e melhora da autoestima na população assistida. Os
participantes reconheceram muitos processos que interrompem as trocas
afetivas, como resultado do racismo estrutural que a população negra
brasileira vivencia. A consciência corporal e afetiva possibilitou uma
reaproximação dos afetos positivos entre pessoas negras, de modo a
reafirmar as características positivas dessa população.
Palavras-chaves: racismo, juventude negra, autoestima, autoimagem.

ISSN 1808-4281
Dossiê
Estudos e Pesquisas em Psicologia Rio de Janeiro v. 19 n. 4 p. 927-946
Gestalt-Terapia
Andrea dos Santos Nascimento, Gabriela Faria de Souza,
Maiara da Silva, Mário Silva de Oliveira

ABSTRACT
We present the intervention of the extension project “Gestalt-Therapy,
listening and psychological reception of groups”, conducted since 2018 by
black extension students of the Psychology Course of the Federal University
of Espírito Santo using the Gestaltic approach. The objective is to develop
the practice of psychological group reception for black men and women,
mainly university students. To this end, 07 meetings were held in 2018 (04
participants) and 15 meetings in 2019 (07 participants), 04 women and 07
men, aged 19 to 45 years old. The meetings took place at the Center for
Applied Psychology at night time. The main therapeutic resources came from
verbal and body expression, however, songs, experiences and collage
activities were added. The partial results indicated that the group meetings
provided care and recognition of self, of the world and the other, it also
improved self-esteem in the assisted population. The participants recognized
many processes that interrupt affective exchanges as a result of the
structural racism that the black Brazilian population experiences. Body and
affective awareness made it possible to re-approach positive affections
among black people in order to reaffirm the positive characteristics of this
population.
Keywords: racism, black youth, self-esteem, self-image.

RESUMEN
Presentamos la intervención del proyecto de extensión “Terapia Gestalt,
escucha y acogimiento psicológico de grupos”, realizado desde 2018 por
estudiantes negros extensionistas del Curso de Psicología de la Universidad
Federal do Espírito Santo utilizando el enfoque Gestáltico. El objetivo es
desarrollar una práctica de acogimiento psicológico de grupos, para hombres
y mujeres negros, principalmente estudiantes universitarios. Para esto, fue
realizado 07 encuentros en el año de 2018 (04 participantes) y 15
encuentros en el año de 2019 (07 participantes), siendo 04 mujeres y 07
hombres, con edades comprendidas entre 19 y 45 años. Los encuentros
ocurrieron en el Núcleo de Psicología Aplicada en horario nocturno. Los
principales recursos terapéuticos provenían de la expresión verbal y
corporal, sin embargo, se agregaron la música, las experiencias y
actividades de collage. Los resultados parciales indicaron que los encuentros
grupales proporcionaron cuidado y reconocimiento de sí mismos, del mundo
y del otro, y mejoraron la autoestima de la población asistida. Los
participantes reconocieron muchos procesos que interrumpieron,
destacándose los intercambios afectivos como resultado de un racismo
estructural que la populación negra brasileña experimenta. La consciencia
corporal y afectiva posibilitó una reaproximación de los afectos positivos
entre personas negras, a modo de reafirmar las características positivas de
esta populación.
Palabras clave: racismo, juventud negra, autoestima, autoimagen.

“Pretitude” é a junção das palavras preta e atitude, uma provocação


e um convite para as pessoas negras serem protagonistas ativas de
suas histórias. Ressignificar lugares e existências, ocupando o lugar
de cidadão, de sujeito de direitos, de pertencimento e de cura, frente
ao racismo institucional e estrutural (Almeida, 2018) de mais de 500
anos de história brasileira. O convite que agora fazemos é ir ao
encontro amoroso e cuidadoso de pessoas de pele preta, àquelas que

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ainda sofrem os efeitos da escravização no Brasil (Conselho Federal


de Psicologia, 2017; Mbembe, 2018).
Nesse contexto, o que tem feito os psicólogos humanistas, mais
especificamente os gestalt-terapeutas, por um humanismo que seja
latino e que atenda às características da miscigenação brasileira, de
um povo colonizado, de um povo indioafrodescendente? Como
defender um “fazer psi” que seja holístico, contextual, crítico,
organísmico e amoroso, em busca da superação das interrupções de
contato, intra e interpessoais, por meio da abordagem humanista,
existencial e fenomenológica que é o cerne, e a alma, da Gestalt-
terapia de Perls, Hefferline e Goodman (1997)?
Tendo esse desafio do encontro com a diferença como figura, e o
contexto social como fundo, a abordagem gestáltica, entendida nesse
trabalho também como Gestalt-terapia, apresenta-se como uma
abordagem alicerçada em várias bases filosóficas e teóricas (Frazão &
Fukumitsu, 2013) que possui uma rica quantidade de conceitos
próprios que atendem a provocação que o tema da desigualdade
racial nos convoca a enfrentar. Para apresentação deste trabalho,
fundamentamo-nos no diálogo genuíno e na aceitação das diferenças
como uma aposta de vida e de cura, tal como apontam de Hycner e
Jacobs (1997), Ribeiro (1994) e na inclusão de Yontef (1998) para as
questões complexas da existência humana. Escuta atenta,
fenomenológica e empática também foram ferramentas essenciais
para proporcionar ao psicoterapeuta a validação dos afetos que
surgiram.

Fenomenologia, psicoterapia dialógica e cura

Para Ribeiro (1994) uma escuta baseada no método fenomenológico


significa atentar-se apenas à realidade que se apresenta e trabalhar a
partir dela. O fenômeno é o que comparece, é a figura que nos
conduzirá em direção à totalidade.
Uma postura dialógica e, também, fenomenológica aponta para a
importância do vínculo estabelecido entre terapeuta e cliente (Buber,
2001; Hycner & Jacobs, 1997) na relação que se coloca durante o
acolhimento, no nosso caso, no trabalho em grupo tal como descrito
inicialmente por Tellegen (1984) e Ribeiro (1994). O relacionamento
com o psicoterapeuta pode favorecer que o grupo apresente de forma
genuína seus conflitos, medos, expectativas e apostas (Fadel &
Pinheiro, 2015).
O trabalho em grupo, tal como apresentado por Tellegen (1984) e
Ribeiro (1994), e voltado para as minorias sociais, especificamente,
tem se demonstrado um desafio para a abordagem gestáltica. Para
fins desse estudo, adotaremos o entendimento de Hernandez,
Accorssi e Guareschi (2013), no qual afirmam que minorias sociais

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são grupos que não se definem por sua inferioridade quantitativa, e


sim por sua condição de marginalização e discriminação devido a
aspectos sociais, econômicos, culturais, físicos ou religiosos. Este
artigo traz no cerne de sua discussão a população negra enquanto
uma minoria social que, em decorrência de seus fenótipos, vivencia
processos de exclusão e preconceito.
Historicamente, fala-se muito pouco sobre gestalt e minorias sociais,
mais restrita ainda é a discussão sobre raça e atendimento
psicoterapêutico voltado para pessoas negras (Oliveira, 2008) por
essa abordagem. Neste caso, compreendendo a importância das
relações interpessoais - permeadas por afetos na qualidade de
emoções, sentidos, vivências, valores e crenças - que muitas vezes
são oprimidas e silenciadas em cada um e em todos, de formas e
níveis diferentes e que acabam por refletir um modo de ser
(individual e ao mesmo tempo coletivo) em uma determinada cultura,
classe, raça e gênero -, o trabalho com grupos ganha um destaque
especial. Neste contexto, o grupo torna-se uma rede de apoio
desenvolvendo e ampliando seus próprios horizontes, trabalhando
suas questões, sem esquecer os conflitos que atravessam a todos e
cada um, de maneira particular.
Em Gestalt-terapia, portanto, preconiza-se que no relacionamento
terapêutico a experiência do outro seja acolhida sem julgamentos,
análises ou interpretações, sem que se perca o sentido da própria
presença distinta do terapeuta ou facilitador, no caso do grupo.
Yontef (1998) vai chamar esse processo de inclusão da experiência
imediata do participante de forma a proporcionar um ambiente de
segurança, possibilitado pela condução fenomenológica, onde torna-
se possível a awareness de cada participante e do grupo enquanto
totalidade. Cabe ao psicoterapeuta da abordagem gestáltica
compreender o fenômeno tal como ele se apresenta e facilitar para o
grupo, lado a lado, uma ressignificação de sua própria experiência
(Fadel & Pinheiro, 2015).
O grupo de acolhimento para homens negros e mulheres negras, à
luz da abordagem gestáltica, tem se configurado como uma
possibilidade de escuta no qual o desenvolvimento de uma
observação paciente, de intervenções cuidadosas e respeitosas, de
uma leitura humilde e compartilhada do conteúdo acessado durante
os encontros, têm sido elementos priorizados. Essa proposta atende
ao que instrui Ribeiro (1994) em relação ao trabalho em grupo em
Gestalt-terapia.
O Conselho Federal de Psicologia (2017) enfatiza que é imprescindível
que os profissionais de psicologia compreendam as relações raciais
existentes na sociedade e que o racismo é causador de sofrimento
psíquico, uma vez que a população negra ao ser discriminada e
marginalizada, é assolada por sentimentos de inferioridade, um

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constante estado de alerta e é vítima de violências físicas e


emocionais.
Por meio dessa proposição, evidencia-se que considerar a dimensão
raça no acolhimento psicológico - e por isso proporcionar um espaço
de escuta para questões dos sujeitos negros - é, antes de tudo,
considerar a integralidade do sujeito. É comprometer-se com o
trabalhoso e doloroso processo psicológico de tomada de consciência
do racismo por parte dos homens negros e mulheres negras.
Tal como pontuou Oliveira (2008), a experiência de acolhimento para
pessoas negras salienta a importância de romper com a tendência de
invisibilização da raça no cuidado psicológico. Como expõe Bento
(2002a), estar inserido em uma sociedade que enfatiza o
pertencimento a um grupo racial, torna o desenvolvimento da
identidade racial um processo inevitável. Em decorrência do racismo,
a forma que esse processo ocorre nas pessoas negras atrela-se a
dores e a sofrimentos. Kilomba (2010) discorre que o racismo associa
a imagem do negro a aspectos pejorativos, tais aspectos interferem
de forma intensa na formação da identidade da pessoa negra,
gerando sentimento de culpa e vergonha.
O espaço grupal fenomenológico, dialógico e acolhedor pode
proporcionar um ambiente em que as dores diversas e o sofrimento
psíquico vivenciado pela população negra podem ser expressos,
compartilhados e coletivamente articulados. O sofrimento presente no
cotidiano das pessoas negras, como afirma Kilomba (2010), não tem
suas raízes apenas em experiências individuais e particulares do
sujeito negro, mas sim em uma experiência que é coletiva e comum à
população negra: o contato com a brutalidade do racismo, a partir de
uma lógica segregacionista que privilegia a branquitude. Neste
sentido, a cura dos efeitos do racismo na subjetividade negra, não é
só do cliente, mas também do terapeuta.

Por uma afroperspectiva na psicologia gestáltica, que


proposta é essa?

Como podemos fazer um acolhimento em grupo, tendo por base a


abordagem gestáltica, que não seja atravessada pela leitura
detalhada de intelectuais negros e negras que sofreram e ainda
sofrem com anos de silenciamento impostos pela branquitude? Veiga
(2017), psicólogo, pesquisador e militante do movimento negro,
provoca a psicologia a se descolonizar, que significa colocar a própria
subjetividade negra como referência para a prática clínica de
acolhimento às pessoas negras.
Nesse sentido, é preciso colocar em suspensão (e suspeição) todo o
conhecimento branco, patriarcal e europeu a respeito dos diferentes
modos de ser e estar no mundo. Para Veiga (2017) somente no

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encontro entre subjetividades negras que o processo de cura se torna


possível, tendo em vista os traumas provocados pelo racismo. Assim
destaca o autor que a:

Clínica e política são inseparáveis na Psicologia Preta porque o


sofrimento de pessoas negras não é da ordem da neurose, da
ordem do privado, mas é sim produzido e mantido social e
historicamente através de dispositivos políticos que desde a
abolição trabalham para exterminar a população negra. A cura
dos traumas do racismo e a luta pela igualdade racial
caminham lado a lado na prática profissional do (a) Psicólogo
(a) Preto (a). A dor dos pacientes é entendida para além do
sofrimento psíquico, mas também como um problema político.
É neste sentido que clínica e política se fundem produzindo, nos
psicólogos e nos pacientes, deslocamentos e reparações aos
danos que a diáspora e o racismo causaram. (Veiga, 2017,
“Uma Psicologia Preta só é Feita por Psicólogos(as) Pretos(as)”,
para. 5).

Psicologia Preta, para Veiga (2019), tem como ponto de partida a


valorização e estudo de narrativas pretas, problematizando as
narrativas brancas hegemônicas. “Dizemos não a uma certa
psicologia, branca demais para acolher e tratar dos efeitos do racismo
em nossas subjetividades, e nos aprofundamos no estudo para o
desenvolvimento de uma Psicologia Preta no Brasil.” (p. 4).
No Brasil, por exemplo, Souza (1983) apresentou de forma
autobiográfica e inquietante um debate sobre identidade negra,
racismo e, consequentemente, o sofrimento psíquico advindo da
discriminação e da exclusão social. Após 19 anos de sua escrita,
Carone e Bento (2002) pela ótica da Psicologia Social, estudaram a
branquitude como foco de análise, mostrando os mecanismos de
manutenção de status quo racial perante as demais. Ainda de acordo
com Bento (2002b), branquitute pode ser entendida como uma lógica
de dominação ideológica, na qual a raça branca é tida como o
“modelo universal de humanidade.” (p. 25).
Nesse espectro de escrita de intelectuais negros e negras que
agregaram aos estudos acerca do sofrimento psíquico e da
subjetividade negra destacamos: Almeida (2018); Moreira (2018);
Davis (2017, 2018); Mbembe (2018); Berth (2019); Ribeiro (2017),
entre outros que podem ser encontrados ao longo desse texto. Tais
autores foram centrais para o desenvolvimento e aperfeiçoamento
constante do acolhimento de pessoas negras em diálogo com a
abordagem gestáltica.
A filósofa Djamila Ribeiro (2017) trouxe maior proximidade com o
conceito de “lugar de fala”, muito utilizado nos debates em sala de
aula e nos movimentos sociais da negritude universitária. A autora

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evita com maestria termos academicistas para a explicação do


conceito, mostrando de forma didática de onde ela própria fala.
Interessante destacar que é preponderante em toda a reflexão da
autora o diálogo com autoras feministas negras, tanto brasileiras,
quanto estadunidenses, fazendo um histórico do movimento feminista
negro, destacando a opressão das mulheres negras e de que forma o
lugar de fala vocaliza e dá visibilidade aos diversos tipos de
feminismo.
Lugar de fala para a autora não é individual, mas estrutural, social e
contextualizado, mostrando a importância de vocalizar grupos sociais
historicamente marginalizados, como é o caso das mulheres negras.
Só quem pode dizer do seu sofrimento é quem sofre, ao mesmo
tempo em que um sofrimento não é menor que o outro, mas alguns
sofrimentos não são comparáveis entre si, principalmente em
ambientes onde imperam a desigualdade social, de classe e de
gênero. Para a autora é preciso reconhecer que as narrativas são
construídas tendo por base a realidade do grupo social que o enuncia
(Ribeiro, 2017), e isso significa que nem todos têm igual acesso aos
espaços de narrativas privilegiadas. A autora defende que se
questione uma suposta neutralidade e objetividade no conhecimento
que ainda é produzido, principalmente as epistemologias produzidas
pela branquitude. Lugar de fala é uma forma de permitir que as
narrativas emudecidas compareçam ao cenário político e social.
Uma vez entendido que todos têm direito a fala, desde que
localizados socialmente e que respeite os diversos modos de
subjetivação, era preciso entender o conceito de empoderamento.
Berth (2019) discute que para que haja empoderamento é preciso
que aconteça uma transformação social profunda. Empoderar-se não
se trata de um voo solo, ninguém se empodera sozinho, o que é
essencial para o trabalho em grupos, mas que antes de tudo é um
processo orgânico entre o individual e o coletivo, um instrumento de
luta por igualdade, emancipação, aceitação da sua imagem, estética,
cultura e história, rompendo com a realidade opressora que vem
sendo imposta como natural.

O empoderamento que seguimos neste trabalho não visa retirar


poder de um para dar a outro a ponto de se inverter os polos
de opressão, e sim de uma postura de enfrentamento da
opressão para eliminação da situação injusta e equalização de
existência em sociedade. (Berth, 2019, p. 23).

Desse modo, o racismo estrutural age de forma silenciosa, ardil e


despotencializante. Almeida (2018) entende o racismo como modos
de tratamento destinados a pessoas alocadas em grupos raciais
específicos, ou seja, por meio da discriminação racial. Essa prática
encontra fundamento nas relações de poder que se estabelecem

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entre os grupos raciais, uns com vantagens sobre outros, devido a


essa discriminação racial estruturada, que se manifesta ainda nos
diversos espaços de poder, sejam econômicos, institucionais ou
políticos.
Institucionalmente, o racismo privilegia determinados grupos de
acordo com a raça. Instituições regulamentam normas que
determinam modos de pensar, preferências, valores, ou seja,
determinam práticas comportamentais e afetivas. Em um contexto de
relação de poder, por meio de regras que são naturalizadas pela
maioria, a hegemonia “natural” de um grupo sobre o outro se torna
possível e mantém seus interesses sociais, políticos e econômicos
garantidos, “as instituições são a materialização das determinações
formais na vida social.” (Aldeida, 2018, p. 30). A mass media possui,
para Almeida (2018), um papel fundamental, assim como a cultura e
a escola, pois são instituições que, por meio de uma perspectiva
racista, moldam o imaginário social em “uma rede de sentidos
compartilhados coletivamente.” (p. 53).
Freire (1996), em Pedagogia da Autonomia, convoca a sociedade
para um processo de cura em relação aos seus modos de existência
excludentes. Em palavras que não cabem relativismos:

Não me venha com justificativas genéticas, sociológicas ou


históricas ou filosóficas para explicar a superioridade da
branquitude sobre a negritude, dos homens sobre as mulheres,
dos patrões sobre os empregados. Qualquer discriminação é
imoral e lutar contra ela é um dever por mais que se reconheça
a força dos condicionamentos a enfrentar. (p. 25).

Apropriando-nos do nosso lugar de fala, de produção de saberes


científicos (ainda que elitistas) somos estimulados a exercer o que
Freire (1996) denomina como “curiosidade epistemológica.” (p. 54).
Autoanálise, reflexão, contestação de quem somos e o que queremos,
em uma perspectiva menos europeia e mais afrobrasileira.
A cura do outro, e nossa também, só se dará pelo enfrentamento das
práticas racistas compreendendo a própria subjetividade da pessoa
negra e, neste sentido, esse trabalho se justifica social e
cientificamente, pois além de propiciar aos alunos de psicologia uma
intervenção humanista com grupos de minorias sociais, é
revolucionário no que tange as necessidades e particularidades desse
grupo específico. No campo acadêmico, a discussão e a reflexão da
proposta que apresentamos chega a nos apontar para o que
chamamos intuitivamente de “psicologia gestáltica em
afroperspectiva”. Entendemos, tal como Nogueira (2011a, 2011b), a
afroperspectiva como um referencial, prático e filosófico, que é
construído a partir das pessoas africanas, afrobrasileiras e
afrodescendentes em diáspora. Neste sentido, a pessoa negra não

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está à margem, nem é um recorte, encontra-se no centro de nossa


análise.
O objetivo geral dessa intervenção é propiciar, nas dependências da
universidade pública, um grupo de acolhimento psicológico para
homens negros e mulheres negras, com foco principal em
universitários. Entende-se que essa intervenção também possui
outros objetivos, que em muitos momentos tornam-se figuras, tais
como: reconhecer e cicatrizar as feridas psíquicas promovidas pela
dominação colonial branca europeia; propor uma atitude preta frente
à branquitude dominante nos espaços sociais, principalmente o
universitário, e oferecer um espaço de discussão e afirmação da
identidade negra.

Apresentando o método do projeto de extensão

No final de 2017 foi apresentado para o Departamento de Psicologia,


a pedido de um grupo de alunos, um projeto de extensão para
acolhimento das minorias sociais sob os cuidados da professora
responsável pela cadeira de Gestalt-terapia. Era interesse propor um
grupo de acolhimento psicológico para pessoas negras, tendo em
vista o grande número de jovens que sofriam preconceito dentro da
universidade devido às ações afirmativas, tal como demonstrado nos
estudos de Guimarães (2003), Gonçalves e Ambar (2015).
Uma vez aprovado o projeto, foram selecionados os extensionistas
voluntários para dar início aos trabalhos e foi convidada uma
psicóloga gestalt-terapeuta que atuava em consultório particular,
tendo como público também as pessoas negras. O critério de seleção
dos alunos era: ter realizado a disciplina optativa de Gestalt-terapia;
ter interesse no trabalho psicoterapêutico em grupos; se identificar
como negro/negra 1; estar finalizando quarto ano de graduação em
Psicologia e ter afinidade com a abordagem gestáltica.
Para que o trabalho fosse iniciado, além do conhecimento em Gestalt-
terapia, era importante a leitura e discussão dos textos escritos por
intelectuais negras e negros. Acentuamos a diferença entre os
gêneros, pois existem diferenças de temáticas abordadas entre os
homens negros e as mulheres negras, entre eles destacamos a
solidão da mulher negra, o feminismo e o empoderamento da mulher
negra. Esta parte foi imprescindível para a escuta acolhedora e
compreensão dos afetos que compareceram no grupo, com atenção
às diferenças entre os gêneros (e orientação sexual também).
Os encontros do grupo são abertos, no qual as pessoas podem entrar
e sair a qualquer momento. Outro destaque é que o grupo acolhe
tanto a jovens universitários, quanto a comunidade externa. Tem-se
investido na construção de um espaço em que as pessoas possam se

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envolver em seus processos de mudança, responsabilizando-se de


forma livre e autônoma por isso.
Foram realizados 07 encontros no ano de 2018 e 15 encontros no ano
de 2019, com um total de 07 participantes: 02 mulheres e 05
homens, com idades entre 19 e 45 anos. Todos os encontros
aconteceram no Núcleo de Psicologia Aplicada (NPA/Ufes) em horário
noturno com duração máxima de duas horas semanais. A supervisão
era realizada em outro dia e horário com a presença da coordenadora
do projeto e da psicóloga externa convidada. Os principais recursos
terapêuticos utilizados foram a expressão verbal e corporal, contudo,
em muitos momentos adotamos estratégias diversas como músicas,
experimentos, vivências e atividades de colagens de forma a
enriquecer e proporcionar um maior contato com as questões que
foram colocadas pelo grupo.
Os diários de campo eram preenchidos pelos extensionistas a cada
encontro, assim como o prontuário de grupo, cujas anotações,
sentimentos e percepções eram debatidos em supervisão. Esses
documentos propiciaram a escrita deste artigo, mantendo o sigilo e a
privacidade dos participantes. Todo participante, ao ingressar no
grupo, era informado sobre as supervisões semanais com a
coordenadora e a psicóloga convidada, além da possibilidade de que a
vivência do grupo fosse transformada em trabalhos de congressos,
capítulos de livros ou artigos científicos para impulsionar mais
pesquisas e intervenções na área da Gestalt-terapia voltadas para a
saúde mental da população negra.
A seguir, apresentaremos as principais discussões que ocorreram nos
encontros. Todos os participantes receberam nomes fictícios de
afrobrasileiros e afrobrasileiras que lutaram pela liberdade e pelo fim
da escravização no Brasil.

Resultados e discussão

Historicamente, a população negra tem enfrentado e resistido ao


constante silenciamento de seu discurso e de suas dores (Kilomba,
2010). Os participantes do grupo relataram a ausência de espaços
seguros para expressão do sofrimento causado pelo racismo, no qual
as dores psíquicas não serão deslegitimadas, ou até mesmo utilizadas
para subjugação do sujeito em sofrimento:

“Se você se apresenta como frágil [com dores] diante de


alguém que não ocupa essa posição, tal pessoa pode tentar te
dominar de alguma forma.” (Jacimba Gaba, 19 anos).
“O sofrimento da pessoa negra ainda é visto como no período
da escravidão, algo naturalizado, que não comove.” (Zumbi dos
Palmares, 22 anos).

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Foi narrado no grupo que, frequentemente, as pessoas pretas


expõem nos ambientes que frequentam suas dores oriundas do
racismo, todavia, estas são constantemente minoradas e ignoradas.
Em contrapartida, quando uma pessoa branca é a enunciadora de tais
questões, esta é escutada:

“Eu sei que elas [alunas brancas] querem ajudar, mas me


incomoda quando eu falo e ninguém escuta e quando uma
menina branca da minha sala fala e todo mundo ouve. Pô, a
experiência é minha, eu quero dizer.” (Anastasia, 22 anos).
“Quando um negro fala sobre seu sofrimento ninguém ouve,
mas se for uma pessoa branca geralmente escutam.” (Jacimba
Gaba, 19 anos).

Um espaço de escuta e acolhimento para pessoas negras é por si


desafiador, pois convoca os participantes, incluindo os estudantes de
psicologia, a romperem com essa lógica massacrante de
silenciamento, processo doloroso para todos os envolvidos. Neste
sentido, os estudantes ocuparam o papel de facilitadores, mas
também de participantes ativos (Tellegen, 1984; Veiga, 2017) da
vivência grupal, sendo impossível não participarem organicamente
dos afetos interpessoais compartilhados. Transgredimos, desta forma,
com a ideia do terapeuta isento a cultura racializada na qual ele
mesmo, na qualidade de pessoa negra, também é vítima.
Os processos de tomada de consciência do racismo, assim como os
afetos gerados por tais processos compuseram desde o início as
discussões do grupo. Os movimentos do grupo evidenciaram que falar
sobre racismo envolve não apenas entrar em contato com o
sofrimento e efeito desse sistema de opressão em si mesmo, como
também possibilita refletir acerca da influência do racismo na
estruturação da sociedade e na forma que as relações se
estabelecem. É colocar em análise as hierarquias que são sustentadas
pela imposição do privilégio branco, as vantagens usufruídas pela
branquitude e os efeitos desses processos no cotidiano das pessoas
negras. Durante os encontros, os participantes compartilharam
diversas situações vivenciadas ao longo de suas vidas que foram
marcadas pela discriminação, as quais foram elaboradas depois da
tomada de consciência do racismo:

“Eu me esforço muito, sou a primeira da turma, moro longe,


mas não falto aula, mesmo se for em dia de chuva. Sou capaz
de ir em dia de greve de ônibus.” (Anastasia, 22 anos).
“Não posso falhar, tenho que ser 10 pelos meus, porque se eu
falhar alguém pode morrer. Geralmente os seguranças que nos
seguem são negros também. São homens que estão inseridos

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em comunidades, nas quais a juventude está envolvida com a


criminalidade e a associação da imagem de qualquer jovem
negro com o crime é algo inevitável.” (Dandara, 25 anos,
Educadora social).

Comportamentos inicialmente considerados aspectos individuais, tais


como elevada autocrítica, busca por alto desempenho escolar,
problemas com a própria imagem, foram ressignificados no contato
com as narrativas de outros participantes, percebendo com isso, a
influência massiva do racismo nesses corpos, tal como também
aponta Almeida (2018) quando discorre do impacto social do racismo
institucional nas pessoas negras.
Durante os encontros, os participantes identificaram em suas
trajetórias a influência de discursos racistas que inferiorizam a
imagem das pessoas negras, os entraves impostos pelo racismo que
dificultam a inserção do negro em diversos espaços do tecido social, o
que exige que o esforço de uma pessoa preta seja maior que de uma
pessoa branca em diversos aspectos do cotidiano, como também
apontado nas reflexões de Almeida (2018), Berth (2019), Ribeiro
(2017) e Moreira (2018).
Foi discutido no grupo que além dos entraves reais resultantes de
uma estrutura racista que impede que pessoas pretas ocupem
determinados lugares, une-se a isso a consolidação no imaginário
social de que alguns lugares não são propícios para as pessoas
negras ocuparem (Guimarães, 2003; Gonçalves e Ambar, 2015),
naturalizando, desta forma, a ocupação de subempregos por pessoas
negras. A discussão suscitada no grupo enfatizou que a crítica não diz
respeito a uma desvalorização de determinadas profissões associadas
às práticas de servir, as quais são extremamente importantes para o
funcionamento da sociedade, e sim a naturalização de que apenas
determinados grupos devem, indubitavelmente, ocupar esses cargos.
Um trecho da música “Da Lama”, interpretada por Tássia Reis e
Stefanie 2, foi usada como referência pelos participantes em relação a
essa discussão: “É ver que pra nós a chance nunca sai do zero”.
Nesta música, foi explicado que a cantora fala sobre o assassinato do
irmão de uma amiga e, deste modo, aponta para a problemática do
racismo estrutural brasileiro e da discriminação, que tem como
consequência o extermínio da juventude negra (Mbembe, 2018).

“Nunca nos dizem que podemos chegar onde queremos. E


quando chegamos ainda nos sentimos inadequados em alguns
espaços.” (Zumbi dos Palmares, 22 anos).
“Se eu fosse mais branco abriria um restaurante.” (Jacimba
Gaba, 19 anos - refletindo sobre como o racismo estrutural
aparece na fala desesperançosa de seu irmão).

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A expressão de afetos foi um tema recorrente no grupo. Vários


participantes narraram a dificuldade de expressar seus sentimentos e
vivenciar as emoções no momento em que acontecem. A
demonstração de afeto foi, por vezes, associada por eles a
vulnerabilidade e a fraqueza. Foi discutido que a demonstração de
afetos é um processo socialmente aprendido, e que no caso das
pessoas negras esse processo não ocorre da mesma forma que nas
pessoas brancas. Um dos participantes relata:

“Desejo conseguir expressar-me, não precisar ‘engolir as


coisas’, mas tenho receio de demonstrar sentimentos, emoções
e afetos e mostrar-me vulnerável, fraco. Expor-me ao outro
[demonstrar afetos] pode ser danoso, faz com que eu me sinta
vulnerável.” (Dragão do Mar, 24 anos).

A recusa em sentir, como colocado por Mercy (como citado em hooks,


2006), provoca um empobrecimento emocional marcado por um
entorpecimento psíquico. Entrar em contato com os afetos é
importante para que os processos que usam a energia de tais afetos
de forma criativa sejam fortalecidos. hooks (1994) discorre que a
relação das pessoas negras com a expressão de afetos pode ser
relacionada com a escravização. O modelo de sociedade estruturado
na opressão das pessoas negras condicionou essa população a
contenção de seus sentimentos.
A autora relata que durante a escravização, a repressão das emoções
determinava muitas vezes a sobrevivência das pessoas escravizadas.
Mesmo após o término formal da escravização, a repressão dos
sentimentos como estratégia de sobrevivência continuou a ser um
aspecto da vida dos negros. O racismo e a supremacia dos brancos
permaneceram após a abolição da escravatura e as barreiras
emocionais foram mantidas pelo povo negro.
Diante desse cenário, assim como propõe hooks (2006), é urgente a
necessidade de fortalecer modos de vida que vão além da
sobrevivência, é necessário fomentar condições para que as pessoas
negras possam viver plenamente. E para isso, o reconhecimento das
necessidades emocionais como algo merecedor de atenção é
fundamental para pessoas negras.
Pensando na diferença de perspectivas de vida para homens negros e
mulheres negras, mesmo que ambos sejam hipersexualizados
culturalmente (Conselho Federal de Psicologia, 2017), as mulheres
possuem um diferencial, pois delas se espera uma vida de abnegação
e cuidado dedicado aos filhos e da casa das pessoas brancas. Para a
participante Dandara, 25 anos, a mulher negra é estereotipada
socialmente como “boa de serviço pesado, não foi feita para falar de
seus desejos e vontades, muito menos de felicidade que não seja o
samba”. Há um consenso silencioso e socialmente aceito, e

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estimulado, de que não existe possibilidade de realização e de


felicidade para essas mulheres que não esteja no rebolado e nas
funções domésticas da branquitude. Já a participante Jacimba Gaba
(19 anos), assim explica como seu futuro lhe era apresentado na
adolescência: “Quando você tiver 16 anos já vai estar trabalhando em
casa de família”. Romper com essa lógica ainda permanece como um
desafio para esse grupo.
A relação com o outro foi uma questão de destaque no grupo. Os
participantes narram que confrontar-se com o olhar do outro causa
desconforto e amedronta. Geralmente, esse olhar é marcado pela
avaliação e julgamento pautados em ideais racistas. Os participantes
discutiram que, de forma geral, esse olhar depreciador parte de
pessoas brancas em ambientes que a presença de pessoas negras
não é vista com naturalidade:

“Sei que devido ao meu cabelo [crespo] sou associado com


estereótipo de criminoso.” (Dragão do Mar, 24 anos).
“Sinto-me desconfortável em ambientes frequentados
majoritariamente por pessoas brancas, pois em tais ambientes,
geralmente, minha presença não é vista com naturalidade. No
meu antigo trabalho, por exemplo, não conseguia ser eu
mesma. Era calada e não conseguia me expressar de forma
espontânea.” (Jacimba Gaba, 19 anos).

Dessa forma, estar em ambientes com pessoas negras é mais


confortável, pois o reconhecimento recíproco torna a relação mais
leve e transmite a sensação de honestidade, horizontalidade e
ausência de julgamento baseados em estereótipos, o que também é
apresentado por Veiga (2017). Os participantes perceberam que
muitas vezes a privação de contato com determinados grupos é uma
estratégia de defesa, um mecanismo de proteção diante da violência
do racismo:

“Uma estratégia de enfrentamento é a aproximação de pessoas


pretas, para fortalecimento da autoimagem e autoestima, para
conseguirmos estar em ambientes que são desconfortáveis.”
(Luis Gama, 23 anos).

“Gostaria de entrar nos lugares e ver mais pessoas pretas (Luis


Gama, 23 anos) ou “Nunca estive em um lugar com tanta gente
preta" (Dragão do Mar, 24 anos), são exemplos que também
compõem o conteúdo de não-pertencimento e inadequação, que só é
possível se deixar tocar a partir da escuta atenta dos afetos da
população negra, discursos esses que geram sofrimento e uma
alienação de si.

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A relação com a imagem e com o próprio corpo foi um elemento


percebido como conflituoso pelo grupo. Alguns relatos evidenciaram
um progressivo processo de aceitação, afirmação e valorização da
estética negra, tais como:

“Meu pai não aceita meu cabelo, diz que eu fico feio com ele
grande, mas eu não raspo, é bonito assim.” (Zumbi dos
Palmares, 22 anos).
“Eu não pegava sol, porque eu não queria ficar mais preta.
Uma vez fui a praia e na volta minhas primas falaram que eu
estava mais preta, eu corri para minha mãe chorando e
perguntando se eu estava mais preta. Minha mãe me acalmou
dizendo que não havia como ficar mais preta. Eu não tomava
café com medo de ficar mais preta.” (Jacimba Gaba, 19 anos).
“Teve ocasiões em que eu estava tão cansado que só
conseguia pensar em como queria ser branco, pois as coisas
seriam mais fáceis.” (Zumbi dos Palmares, 22 anos).

Foi intensamente discutido a complexidade desse processo, que é


marcado por estereótipos que depreciam a estética e cultura negra
impondo ideais de beleza brancos e eurocêntricos (Gomes, 2017). Ao
longo dos encontros foi possível perceber no grupo movimentos com
o propósito de superação do pensamento racista, dos estereótipos
limitantes de ausência de beleza impostos por esse ideal, além de
uma ressignificação da própria autoimagem e da imagem de outras
pessoas negras que convivem ao redor.

“Eu sempre fiz chapinha, alisava mesmo. Depois queria meus


cachos, incentivada por uma prima. Foi difícil, hoje eu amo
meus cabelos. Tem muitos produtos atualmente, muita coisa
mesmo.” (Anastásia, 22 anos).
“Eu cortava meu cabelo careca, agora assumi que ele é crespo.
Meus pais não aceitaram, falavam que era feio, mas eu gosto
assim.” (Zumbi dos Palmares, 22 anos).
“O processo de aceitação de minha imagem, de considerar-me
bonita fez com que passasse a considerar de forma mais
intensa os traços negros bonitos.” (Jacimba Gaba, 19 anos).
“Reconhecer a própria beleza é o primeiro passo para
reconhecer a beleza do semelhante.” (André Rebouças, 19
anos).

Gomes (2017) afirma que o corpo negro deve ser entendido não
apenas em sua existência material, mas também em sua dimensão
simbólica e política. O movimento percebido no grupo reflete os
efeitos do processo mais amplo descrito pela autora, que descreve
que aos poucos ter um corpo negro no Brasil e expressar a negritude

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associa-se a uma afirmação positiva de expressão de cultura e


afirmação de identidade. Sendo assim, o desenvolvimento de uma
relação de afirmação com a própria imagem e corpo significa, para
uma pessoa negra, afirmar-se politicamente e resistir à opressão
branca. Marca o rompimento com uma corporeidade regulada pelos
processos de colonização e pela escravização.

Considerações finais

Percebe-se que os encontros em grupo têm proporcionado aos


participantes um ambiente de cuidado e de reconhecimento de si, no
qual um modo de relacionamento consigo e com os outros,
diferenciado dos que são regidos pela lógica colonial e pelo racismo,
tem sido fortalecido. Tal como salienta hooks (1994) em uma
sociedade em que a supremacia branca prevalece, as vidas das
pessoas negras são permeadas por questões que resultam na
interiorização do racismo e de um sentimento de inferioridade. Assim,
articular um espaço de acolhimento para essa população busca,
justamente, romper com esses processos que massificam o corpo, a
estética, os afetos e o contato desse grupo.
Na prática terapêutica em grupo, partindo de uma postura
acolhedora, dialógica e fenomenológica, se almeja o cuidado com o
outro na sua totalidade, cuja ênfase está na relação, sem ignorar os
aspectos culturais, valores morais e éticos que atravessam essas
relações. A produção de sentidos que desse encontro decorre, se faz
tanto no nível individual, quanto grupal. Assim, a psicoterapia em
grupo enfatiza a vivência do encontro e depois se ancora na
compreensão do todo, desencadeada pelo próprio processo. As
considerações dos autores aqui citados dão maior destaque ao
momento presente e a abertura ao encontro, que só é possível
quando percebemos o quão incrivelmente estamos entrelaçados.
Apesar das limitações deste estudo, pois muitos conceitos da
abordagem gestáltica poderiam ter sido abordados e aprofundados,
tais como self, aqui-e-agora, interrupções do contato, autorregulação
organísmica, entre outros, fizemos uma escolha ao focar na questão
da relação grupal, na postura de escuta fenomenológica e dialógica
do terapeuta que propicia o aparecimento de questões existenciais
complexas do cotidiano das pessoas negras. Há uma gama de
possibilidades que ainda podem ser aprofundadas pelos
pesquisadores da área, no que se circunscreve a problemática de
como o racismo adoece e como a abordagem gestáltica pode intervir.
Além disso, consideramos que o presente texto é um instrumento
possível para nos aproximarmos de forma mais autêntica e
congruente das vivências e do sofrimento psíquico de pessoas negras.

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É desafiante, em meio a tantas violências, um fazer radical e amoroso


no enfrentamento do racismo, de forma a fortalecer uma “prática psi”
que não desqualifica, generaliza ou minimiza o sofrimento humano e
o adoecimento mental oriundo da opressão que a população de negra
sofre. Isso só tem sido possível a partir do momento em que se abre
a possibilidade do diálogo e da inclusão na prática da abordagem
gestáltica com os saberes construídos a partir dos autores e das
autoras que vivenciam e denunciam o racismo cotidianamente, e de
seus mais diversos modos.
Indiscutivelmente, a vida que existe em nós, e em cada um de nós,
não pode ser domada, excluída e violentada! A vida insiste e resiste!
Por mais pretitudes!

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Endereço para correspondência


Andrea dos Santos Nascimento
Rua Alma do Tempo, 08 Lt 08 Qd 08, Manguinhos, CEP 29173-005, Serra – ES,
Brasil
Endereço eletrônico: [email protected]
Gabriela Faria de Souza
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Maiara da Silva
Rua Tevio Batista da Silva, 104 apto 203, Segurança do Lar, CEP 29072-380,
Vitória - ES, Brasil
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Mário Silva de Oliveira
Rua 27, 03, Santa Mônica, CEP 29105-470, Vila Velha - ES, Brasil
Endereço eletrônico: [email protected]

Recebido em: 12/10/2019


Reformulado em: 03/01/2020
Aceito em: 06/01/2020

Notas
* Professora doutora da Universidade Federal do Espírito Santo. Responsável pela
disciplina de Gestalt-Terapia. Pesquisadora das áreas de orientação sexual e de
gênero, violência contra a mulher, cultura e negritude brasileira.
** Psicóloga clínica. Formação pelo Instituto de Gestalt de São Paulo em
andamento.
*** Graduanda do 8° período do curso de Psicologia pela UFES. Atua como
extensionista voluntária no Projeto de Extensão “Gestalt-Terapia, escuta e
acolhimento psicológico de grupos”.
**** Graduação em Teologia. Estudante de Psicologia. Especialização em Gestão e
Políticas e Segurança Pública. Atua como voluntário no Projeto de Extensão
“Gestalt-Terapia, escuta e acolhimento psicológico de grupos”.

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Andrea dos Santos Nascimento, Gabriela Faria de Souza,
Maiara da Silva, Mário Silva de Oliveira

1
Em 2017 foram selecionados para extensionistas um estudante branco e uma
estudante negra para a atividade no ano seguinte. O estudante branco foi um dos
idealizadores do projeto, entretanto seu desejo, assim como o da coordenadora,
era que os dois facilitadores do grupo fossem pessoas negras. Esse aluno só aceitou
ser extensionista após uma, das duas vagas, não ter sido preenchida por outra
pessoa negra, havendo, portanto, uma vaga disponível. Ao final de 2018 para
exercício em 2019, foram selecionados dois estudantes negros retintos, sendo um
do sexo masculino e outro do sexo feminino.
2
Tássia Reis. (2016). Da Lama / Afrontamento (part. Stefanie). Outra Esfera. São
Paulo: Tássia Reis / Independente.

Este artigo de revista Estudos e Pesquisas em Psicologia é licenciado sob uma


Licença Creative Commons Atribuição-Não Comercial 3.0 Não Adaptada.

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