Juventude e Raa

A criminalizao da juventude popular no

Brasil: histrias e memrias de luta na cidade
do Rio de Janeiro
Vera Malaguti Batista1

Quero saudar a todos, comear agradecendo o

convite do Instituto de Sade, saudar os queridos companheiros da mesa, o Weber, professor Kabengele, Givanilda. Saudar o movimento organizado, as lutas hericas do Coletivo Fora Ativa, Educafro, Movimento
Negro Unificado, Coletivo Contra a Tortura, os heris
da resistncia. Sou do Rio de Janeiro, ento minha fala
vai ser pautada por essas histrias. Foi Foucault quem
disse que o racismo foi inventado pelo colonialismo
(FOUCAULT, 1999).
Essa teoria, como mostrou o professor Kabengele,
pretendia demonstrar cientificamente que a incorporao da periferia tinha alguma legitimidade. Se antes o
discurso era religioso, povos que no tinham alma, no
sculo XIX vai aparecer uma teoria cientifica, que vai
legitimar o racismo, fruto do colonialismo e do processo
de acumulao de capital. Ento estou querendo mostrar como o capitalismo produziu o racismo e mantm
o racismo, a devastao da frica, como que isso
faz parte de um processo profundo, como essas coisas
esto interligadas. Trata-se daquilo que Darcy Ribeiro
analisou como processo civilizatrio (RIBEIRO , 1987).
O processo de acumulao de capital promoveu
uma devastao na frica e na Amrica Latina. A Amrica Latina um continente que tem uma profunda ligao com a frica. A escravido e o extermnio dos
povos indgenas, que fazem parte daquilo que Darcy
Ribeiro, considerando cada ciclo econmico, chamou
de moinho de gastar gente (RIBEIRO, 1959): a extrao de pau-brasil era um moinho de gastar indgenas,
como o acar, o ouro e o caf eram moinhos de gastar
africanos. Estou tentando mostrar como o moinho de
gastar gente de hoje o moinho de gastar juventude
popular, juventude negra. O Joel Rufino dos Santos,
que um grande pensador brasileiro, diz que o Brasil
tem uma caracterstica perversa: ns temos 500 anos
de histria e desses 500 anos, apenas 100 sem escravido. Ento a nossa histria marcada, tem as marcas
da escravido no dia-a-dia. Cada vez que o povo brasileiro, nascido dos escombros das civilizaes indgenas e africanas no Brasil, vai avanar no sentido do
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Doutora em Sade Coletiva pelo Instituto de Medicina Social da UERJ; professora do Programa de PsGraduao em Sociologia e Direito da UFF; e Secretria-Geral do Instituto Carioca de Criminologia. E-mail:
[email protected]

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seu protagonismo, produzido um medo branco, que

serve para adiar as nossas revolues.
Esse medo aumentado e manipulado, como o medo da segurana pblica. Ele sempre produzido pelas
elites para manter uma hierarquia social muito cruel e
para legitimar o extermnio do povo brasileiro. Na
histria do medo na cidade do Rio de Janeiro (BATISTA,
2003), ao trabalhar duas conjunturas, a conjuntura
da entrada do liberalismo no Brasil a partir do contexto
da nossa emancipao em 1822 e o marco do
neoliberalismo do fim do sculo XX at os dias de hoje,
tentei mostrar quais so as rupturas e as permanncias
histricas dessas duas conjunturas. Na conjuntura em
torno de 1822, uma nao independente queria dizer
um povo que se apoderara do seu territrio, um povo
soberano, protagonista em seu territrio.
As elites brasileiras sempre fizeram uma espcie de
dique contra os desejos de nao desse povo meio
africano, meio indgena. Existia um medo muito grande,
que dominou todo o Brasil, principalmente a partir da
dcada de 30. Naquele momento, na Amrica Latina
como um todo, as elites brancas tinham muito medo
de uma histria muito bonita, que a histria da revoluo do Haiti, uma revoluo mgica. O povo haitiano
paga at hoje o preo de ter levado as promessas da
Revoluo Francesa at as ltimas conseqncias. Produziram uma histria linda, uma revoluo que era o
grande fantasma das elites brancas escravocratas na
Amrica Latina e no Brasil.
A histria do medo no Rio de Janeiro o medo das
rebelies escravas. Um exemplo disso a Revolta dos
Mals, na Bahia, narrada pelo grande historiador chamado Joo Jos Reis (REIS, 2003). Do conjunto das
rebelies escravas no Brasil, essa histria para mim
muito peculiar, porque os escravos muulmanos na
Bahia sabiam ler e escrever, ao contrrio de seus senhores. Ento a Revoluo Mal foi muito temida e
povoou por muito tempo o imaginrio das elites escravocratas, porque era uma rebelio militar, organizada.
Eles se sublevaram na cidade de Salvador, foram
dizimados e, alm disso, liam e escreviam em rabe, o
que tinha um efeito simblico. Essa revolta, e principalmente a revolta potencial contra a escravido, era um
medo que assombrava. A dcada de 30 do sculo XIX
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uma das dcadas mais bonitas da histria do Brasil,

nas lutas do povo brasileiro, dos Farrapos at a Cabanagem no Par. A represso aos cabanos dizimou quase 50% da populao do estado do Gro-Par, que
inclua Amazonas e Par. No toa que at hoje
essas histrias esto l, o eterno retorno dessas revolues adiadas. Aps a emancipao brasileira em 1822,
na construo do Estado brasileiro, o marco legal e
todas as instituies penais produziram um dique contra
o protagonismo do povo brasileiro.
A escravido foi um motor do capitalismo. O Rio
de Janeiro foi a maior cidade africana das Amricas.
O historiador Sidney Chalhoub diz que o Rio de Janeiro
era uma cidade africana muito maior do que muitas
cidades da prpria frica (CHALHOUB, 1990). Essa
cidade era habitada na sua maior parte por africanos,
ou descendentes de africanos. Essa populao majoritria tentava construir a cidade-esconderijo, produzir
espaos de liberdade dentro da opresso da escravido: a cidade que esconde a cidade que liberta. E
no toa que ento as elites brancas construam
isso, que est at hoje no cotidiano da populao brasileira, as estratgicas de suspeio generalizada. Para
dar conta da movimentao livre e das estratgias de
resistncia dentro das cidades constrem-se estratgias
de policiamento, estratgias de conteno social. A
imprensa o tempo todo magnifica, aumenta o medo
da revoluo quilombola que, legtima e justa, era o
tempo todo demonizada e crimininalizada. As leis, a
imprensa, a polcia e o sistema penal trabalhavam no
sentido de manter a ordem escravocrata. O importante,
como se v nos arquivos de jornais do sculo XIX, era
em nenhum momento colocar, discutir, questionar a
legitimidade da escravido. Ento o tempo todo ns
estamos discutindo, no sculo XIX, polticas de segurana pblica, maneiras de controlar, mas no questionando a qual ordem queramos servir. Tem um trecho
de um jornal chamado Po de Acar, no Rio de
Janeiro do sculo XIX, que, depois da Revoluo dos
Mals, com os pnicos e as fantasias de pavor das
elites brancas, dizia o seguinte: Precisamos de uma
polcia que a ns inspire confiana e aos escravos
infunda terror. Ento eu acho que essa um pouco a
matriz a que nossas polcias so atiradas e tambm o
nosso sistema penal como um todo.
As polticas de embranquecimento do Imprio brasileiro mal sabiam que dentro da importao de mode-obra europia viriam tambm outros medos, outros
perigos, que eram os trabalhadores europeus pobres,
anarquistas, socialistas, que lutavam tambm por justia. Mas essa estratgia do embranquecimento vinha
junto agora com as novas idias positivistas, que
legitimavam o racismo cientificamente; todas essas
idias que hoje esto sendo recuperadas pelo neopositivismo que so as neurocincias, as explicaes
patolgicas do crime, pelo tamanho do crebro, que
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tm analogias muito grandes com o pensamento racista

de Lombroso na Europa e de Nina Rodrigues no Brasil.
O importante dessa nova estratgia era manter a hierarquia sem a escravido, manter essa hierarquia social
perversa brasileira, manter os negros nos seus lugares
sem a escravido.
Desde o sculo XIX at o sculo XXI, ns temos idas e
vindas dessas revolues adiadas, essa uma questo
presente. No Rio de Janeiro, o sistema penal brasileiro
assessora a escravido: as primeiras prises brasileiras
tinham 95% de populao africana ou escrava, o resto,
uma percentagem mnima de trabalhadores livres. Essa
uma estratgia permanente; por exemplo, a capoeira,
que hoje a gente v como uma manifestao cultural,
era criminalizada e foi criminalizada at o governo de
Getlio, que descriminalizou o candombl e a capoeira.
Pode-se fazer uma analogia com a cultura funk, que tem
que trabalhar o tempo todo com a perseguio cultural, policial, social, com a mdia sempre trabalhando o
local do lazer negro como um local de perigo, um local
de violncia. E tambm as permanncias entre o olhar
que se lanava ao quilombo e o olhar que se lana s
favelas. Tm alguns historiadores e gegrafos no Rio de
Janeiro que fazem mapas, observando como muitas
favelas tm uma localizao que se vincula s histrias
dos quilombos. O Rio de Janeiro teve um grande comandante da Polcia Militar, no governo do Brizola, Carlos
Magno Nazar Cerqueira, que se referia ao arrasto
como uma coreografia. Como aquilo foi utilizado pela
grande imprensa, pelo Fantstico, pelo Jornal Nacional,
para criar uma mensagem apartadora, de que a praia,
que o melhor lugar do Rio de Janeiro, se tornara perigosa pela freqncia das populaes da periferia,
como se no pudessem ter acesso praia.
Ao longo do tempo essas permanncias histricas,
que produzem o que eu chamo da manuteno de
uma arquitetura do medo e de uma esttica da escravido, no se d s pela perverso da truculncia e do
extermnio, mas tambm por mil modos, visveis e invisveis, de manter essa hierarquia social bem rgida. O
professor Kabengele estava contando algumas histrias, de como essa juventude popular vai sendo contida,
detida, ela nunca pode se movimentar livremente pela
cidade. Logo depois da Revolta dos Mals, em 1835,
tinha uma legislao que estabelecia que os negros,
escravos ou libertos, tinham que andar, no Rio de Janeiro e na Bahia, com o passaporte dizendo a quem
eles pertenciam, para onde eles iam e que horas eles
teriam que voltar. Esse controle da movimentao da
juventude popular, por mil modos invisveis, se d no
s pelo extermnio, mas tambm pela seleo efetuada
pelas blitzen policiais de quem vai ser revistado. Esses
massacres cotidianos vo produzindo uma naturalizao dessa hierarquia social perversa. Nessa nova fase,
o capitalismo de barbrie uma devastao, que produziu relaes de domnio no s do homem sobre o
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homem, mas tambm do homem sobre a natureza.

um capital cnico que no tem nem mais as iluses que
tinha at a dcada de 70, iluses de pleno emprego,
iluses de ressocializao: domnio puro, ele tem uma
estratgia muito grande de controle social da juventude
popular, da juventude negra, da juventude palestina,
da juventude resistente. Por isso me d alegria dirigirme juventude organizada e ao movimento negro aqui
de So Paulo, perceber sua potncia, sua energia, sua
capacidade que tem de transformao. Isso se d na
Frana, nos Estados Unidos, no Brasil. O qu foi a
eleio desse presidente na Frana, que chamou a
juventude da periferia francesa, basicamente jovens
rabes e jovens africanos, de ral? Acho que vai acontecer na Frana aquilo que Loc Wacquant chama de
a brasilizao das questes de segurana pblica
(WACQUANT, 2007). Alarme de incndio no gueto
francs, diria Paulo Arantes (ARANTES, no prelo).
Mas qual a estratgia desse poder central, desse
capitalismo de barbrie? um gigantesco processo
de criminalizao, uma estratgia de controle social
que vai fazer com que essa populao, que deixa de
ser assistida pelo desmantelamento do Estado social,
passe a ser assistida pelo sistema penal. Isso faz com
que os afro-americanos j tenham hoje ndices de mais
de um quarto dos jovens negros norte-americanos, entre
dezoito e vinte e cinco anos, sendo criminalizados ou
presos, ou sob medidas. J est chegando a quase
cinqenta por cento. Isso uma estratgia de controle
pela criminalizao. Quem est preso? Quando voc
vai olhar quem est preso, quem que est povoando
as prises na Europa, nos Estados Unidos e no Brasil?
a juventude negra, a juventude latino-americana, e
agora, com essa nova onda, a juventude rabe. Isso se
d tambm pelo extermnio e tambm pela criao de
uma mentalidade punitiva, de uma cultura punitiva, que
vai dizer que a conflitividade social, decorrente desses
400 anos de histria de escravido vai ser resolvida
atravs da pena, diminuindo a maioridade penal,
aumentando o tempo de priso e escondendo o tempo
todo que o sistema penal uma mquina de seletividade. No estudo que fiz sobre adolescentes presos
com drogas no Rio de Janeiro, percebi que um menino
branco e de classe mdia, quando entra no sistema
penal com uma quantidade de drogas, vai receber um
tratamento fora do sistema, psicolgico. Quando um
menino negro e favelado, pode ser a mesma quantidade de droga, o destino dele vai ser no esteretipo
criminalizante. O qu est em jogo no so as drogas
em si, mas o controle social daquela parcela especifica
da juventude popular brasileira (BATISTA, 2003).
Com as marcas dessa histria de escravido, e na
fase atual de capitalismo neoliberal que a gente est
vivendo, eu acho que so conjugadas duas estratgias
contra a potncia juvenil, uma a estratgia do assistencialismo, da vitimizao e da preveno, e a outra a
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estratgia da criminalizao e da represso. Essas duas

estratgias esto juntas, sempre querendo botar o
menino popular na falta, no menos. Ou ele vai ser
assistido pelo voluntariado ou por programas em que
vigora o bom mocismo das elites, onde aquela falta
vai ser exacerbada o tempo todo, ou ele vai ser jogado
pro extermnio, como disse o prefeito do Rio h pouco
tempo: Comigo no tem conversa, priso ou vala,
quer dizer, essa a estratgia para a juventude popular.
Eu me lembro que h pouco tempo atrs tinha um
anncio do O Globo que era assim, uma assinatura
social, com a imagem de um menino negro, com uma
tarja preta, dizendo: Ajude esse menino a no ir para
o crime, como se essa fosse a tendncia natural da
juventude popular brasileira.
Ento eu acho que o que est em jogo na luta
poltica (e esse um encontro em que no estamos
nos colocando como acadmicos e professores, mas
estamos colocando o nosso saber a servio dessas
lutas) como a juventude popular brasileira pode sair
fora dessa estratgia dupla e partir para o protagonismo, que uma expresso que a Givanilda tambm
usou, e avanar para a linha de frente, constituir fora
poltica. Ento eu convido vocs a conhecerem as
histrias de resistncia do Brasil. S quem se apropria
da sua memria que pode produzir uma utopia, que
pode sonhar com outro futuro que no seja esse futuro
de estar sendo sempre detido, revistado, preso, criminalizado, exterminado. Ns podemos produzir, e s pelo
apoderamento da memria dessas lutas histricas de
resistncia que ns vamos poder assistir a essa juventude popular com toda a sua fora, toda a sua energia,
toda a sua beleza, no protagonismo poltico. O funk,
que to criminalizado, to criticado musicalmente,
ele consegue expandir suas fronteiras o tempo todo,
isso uma demonstrao de fora. Nos ltimos dez
anos, no Rio de Janeiro, morreram cerca de 30.000
jovens assassinados, muitos pela polcia. Quando voc
vai olhar esses 30.000, quem a populao que est
sendo assassinada, quem a populao no alvo?
exatamente aquela que os meios de comunicao
querem mostrar como os perigosos. No Rio de Janeiro
tem mais ou menos um milho de funkeiros; imaginem
Malcom X formando com um milho de funkeiros conscientes! Ns temos que fugir dessas duas estratgias
polticas de vitimizao e de criminalizao e nos
organizarmos, juntarmos foras para tomar o poder,
porque s vocs que podem construir essa outra
Histria do Brasil.

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Referncias Bibliogrficas
ARANTES, P. Alarme de incndio no gueto francs. In:
Revis t a Discursos Sediciosos Crime, direit o e
sociedade, n. 17. Rio de Janeiro: no prelo.
BATISTA, V.M. Difceis ganhos fceis: drogas e juventude
pobre no Rio de Janeiro. 2. ed. Rio de Janeiro: Revan/
Instituto Carioca de Criminologia, 2007.
________. O medo na cidade do Rio de Janeiro:
dois tempos de uma histria. Rio de Janeiro: Revan,
2003.
CHALHOUB , S . Vises da liberdade. So Paulo:
Companhia das Letras, 1990.
FOUCAULT, M. Em defesa da sociedade. So Paulo:
Martins Fontes, 1999.
REIS, J .J . Rebelio escrava no Brasil: a histria do
levante dos Mals (1835). So Paulo: Companhia das
Letras, 2003.
RIBEIRO, D. O processo civilizatrio: estudos de
antropologia da civilizao. Petrpolis: Vozes, 1987.
________. O povo brasileiro: a formao e o sentido
do Brasil. So Paulo: Companhia das Letras, 1959.
WACQUANT, L. Punir os pobres: a nova gesto da
misria nos Estados Unidos (A onda Punitiva). 3. ed.
rev. e ampl. Rio de Janeiro: Revan/Instituto Carioca de
Criminologia, 2007.

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