Livro Mortes No Templo de Hórus - Paul Doherty
Livro Mortes No Templo de Hórus - Paul Doherty
Livro Mortes No Templo de Hórus - Paul Doherty
PAUL DOHERTY
M o r te s n o T e m p lo d e H r u s
Traduo de
EUGNIA ANTUNES
LISTA DE PERSONAGENS
PALCIO DO FARA Mens: primeiro fara do Egipto unificado e fundador da dinastia do Escorpio (I dinastia). Ele e o filho reinaram entre c. 3310 e 2890 a. C. Imprio Novo 1550-1457 a. C. (XVIII dinastia) Hatusu (Hatchepsut): meia-irm e esposa de Tutms II, madrasta do jovem Tutms III CONSELHO REAL Rahimere: antigo gro-vizir do Egipto cado em desgraa Senenmut: sucessor de Rahimere. Amante de Hatusu e primeiroministro do seu governo Ualu: delegado real, os olhos e os ouvidos do fara Omendap: comandante supremo das foras armadas egpcias Pechedu: tesoureiro real SUMOS SACERDOTES DO EGIPTO (adoptam o nome dos deuses aos quais se consagram) Hani: sumo sacerdote de Hrus Uechlis: esposa de Hani Amon, Hathor, Isis, Osris e Anbis 5
SALA DAS DUAS VERDADES (TRIBUNAL SUPREMO DO EGIPTO) Amerotke: juiz da Sala das Duas Verdades, juiz supremo de Tebas e magistrado supremo dos tribunais do Egipto Prenhoe: parente de Amerotke e escriba na Sala das Duas Verdades Asural: capito da guarda do Templo de Maet, onde est sediada a Sala das Duas Verdades Chufoi: ano, servo e confidente de Amerotke Norfret: esposa de Amerotke SERVOS DO TEMPLO DE HRUS Neria: chefe dos bibliotecrios e arquivista Sengi: chefe dos escribas Pai Divino Prem: erudito sacerdote e astrnomo Sato: servo pessoal do sacerdote Prem
NOTA HISTRICA
A primeira dinastia do Antigo Egipto estabeleceu-se por volta de 3100 a. C. Entre essa data e o surgimento do Imprio Novo (1550 a. C), o Egipto passou por uma srie de transformaes radicais, tais como a construo das pirmides, a criao de cidades ao longo das margens do Nilo, a unificao do Alto e do Baixo Egipto, o desenvolvimento da religio, centrada em R, o deus do Sol, e o culto de Osris e sis. O Egipto teve de resistir invaso de outros povos, em particular os Hicsos, conquistadores asiticos que devastaram cruelmente o reino. Cerca de 1479-1478 a. C, data em que este romance se inicia, o Egipto, unido e pacificado sob o reinado do fara Tutms II, encontrava-se beira de um novo e glorioso desenvolvimento. Os faras tinham mudado a sua capital para Tebas, as deposies dos mortos nas pirmides haviam dado lugar construo da necrpole, na margem ocidental do Nilo, bem como utilizao do Vale dos Reis como mausolu real. Por uma questo de clareza, usei as designaes gregas das cidades, por exemplo, Tebas e Mnfis, em vez dos seus nomes egpcios arcaicos. O topnimo Sakara foi utilizado para descrever todo o complexo de pirmides em redor de Mnfis e Guiza. Tambm empreguei a verso mais curta do nome da rainha que teve o ttulo de fara: Hatusu em vez de Hatchepsut. Tutms II morreu em 1479 a. C. e, aps um perodo conturbado, Hatusu assumiu o poder durante vinte e dois anos. Ao longo deste perodo, o Egipto tornou-se um imprio poderoso e o estado mais rico do mundo.
A religio egpcia encontrava-se tambm em desenvolvimento, em especial o culto de Osris, morto pelo irmo Set, mas ressuscitado pela sua amada esposa Isis, que d luz Hrus, filho de ambos. Estes ritos devem ser encarados luz do culto do deus do Sol e do desejo de unificao das prticas religiosas. Os Egpcios tinham um profundo respeito por todos os seres vivos: animais e plantas, ribeiros e rios eram considerados sagrados, enquanto o fara, seu governante, era adorado como encarnao da vontade divina. Por volta de 1479 a. C, a civilizao egpcia exprimia toda a sua riqueza atravs da religio, dos rituais, da arquitectura, do vesturio, da educao e da busca de uma vida prspera. Soldados, sacerdotes e escribas dominavam esta civilizao, e a sua sofisticao est bem patente nos termos que usavam para se descrever a eles mesmos e sua cultura. Por exemplo, o fara era o Falco Dourado; o tesouro, a Casa da Prata; um perodo de guerra, a estao da Hiena; o palcio real, a Casa do Milho de Anos. Apesar da sua espantosa e deslumbrante civilizao, a poltica egpcia podia ser violenta e sanguinria, tanto a nvel interno como externo. O trono real era sempre fonte de intrigas, de inveja e de acesa rivalidade. Foi neste panorama poltico que a jovem Hatusu subiu ao poder, em 1479 a. C. Por volta de 1478 a. C, Hatusu havia surpreendido os seus opositores e crticos tanto no seu pas como no estrangeiro. Alcanara uma importante vitria, no Norte, contra os Mitnios e expurgara a corte da oposio liderada pelo gro-vizir Rahimere. Uma mulher extraordinria, Hatusu era apoiada pelo seu astucioso e matreiro amante Senenmut, tambm seu primeiro-ministro. Hatusu estava determinada a que todos os sectores da sociedade egpcia a aceitassem como fara e rainha do Egipto. semelhana de todas as revolues no Antigo Egipto, o favor e apoio dos sacerdotes era vital. PAUL DOHERTY
EGIPTO 1479 a. C.
Devorador de Coraes: demnio da Sala do Julgamento.
PRLOGO
O nmada desceu do seu dromedrio. A sela amarela e vermelha e os arreios estavam cobertos por uma fina poeira e bastante gastos e coados pelo uso que lhes dera desde que os tirara ao cadver de um mensageiro real que perdera o rumo e a vida nas ridas Terras Vermelhas a leste da cidade de Tebas. O nmada, um batedor enviado pela sua tribo, puxou pelo pequeno arco de chifre que trazia s costas e certificou-se de que a aljava estava mo. Encontrava-se coberto, da cabea aos ps, por panos cinzentos, sujos e andrajosos. Apenas se lhe viam os olhos, que perscrutavam o estranho crepsculo pur-preo do deserto. Chegara ao osis de Amarna, mas fora atrado pelo som de rodas de quadriga e pelas vozes trazidas pelo ar do deserto. Tinha de ter cuidado. Os arbustos nunca estavam to desabitados como primeira vista pareciam. Esquadres de quadrigas e batedores de Tebas costumavam vir at ali, j para no falar dos grupos de caadores. Todos eles deviam ser evitados. Andavam habitualmente bem armados e bem aprovisionados. Para alm disso, os nobres de Tebas faziam sempre sentir a sua raiva de tal forma que os bedunos apenas atacavam quando estavam seguros de uma vitria fcil. O deserto escondia outros perigos. A tagarelice e os mexericos passavam de boca em boca entre as tribos: dizia-se que um leo enorme de crina dourada, um devorador de homens que atormentava o povo do deserto, aparecera no osis de Amarna, atacando por vezes os acampamentos durante a noite. 11 O nmada colocou uma seta no arco e avanou, rastejando. A quadriga estava sozinha, a sua barra de tiro em forma de T pousada no cho. Mas onde se encontravam os cavaleiros? E os cavalos? Sondou melhor a escurido e reparou nas marcas de outra quadriga, a que ouvira to distintamente h pouco tempo, a galopar de regresso cidade. O nmada puxou para baixo o pano que lhe cobria a boca e o nariz. Sentiu um aroma perfumado e saboreou-o. Recordou-lhe o dia em que a sua tribo acampara nos arredores de Tebas e ele fora a uma casa de prazer. Nunca mais esqueceria aquela ondulante danarina de cabeleira oleada, brincos suspensos, e pele cor de cobre banhada de perfume. Pagara bem pelo seu uso, uma experincia que, ainda agora, lhe fazia crescer gua na boca. O nmada avanou mais um pouco. Cheirou-lhe a comida. Viu o que restava de uma fogueira, uma taa partida e um odre de vinho. Mais confiante, aproximou-se da quadriga. A aljava de pele de leopardo que abrigava as lanas estava vazia. O arco e a aljava das flechas, que habitualmente estariam pendurados num gancho no corrimo de bronze, tambm haviam sido levados. Mas onde estava o dono? O nmada examinou a quadriga com ateno. O vime estava tingido de azul e apresentava alguns relevos prateados em forma de estrela; as quatro pequenas rodas
encarnadas e os eixos de um preto brilhante indicavam que no se tratava de uma quadriga de combate, mas do brinquedo de algum nobre de Tebas. Por trs do nmada, o dromedrio, habitualmente dcil, resfolegou de medo. Sacudia o seu longo pescoo e abanava a cabea. O viajante das areias vacilava entre o medo e a cobia. A quadriga valia dinheiro e os nobres tebanos j brios podiam constituir uma presa fcil. As suas armaduras, roupas e jias valeriam uma boa quantia num dos muitos mercados ao longo do Nilo. No entanto, tinha de ter cuidado. De repente, a brisa nocturna trouxe-lhe as palavras de uma cano, que soavam dbeis, mas claras: Quando abrao a minha amada, Sou como um homem que velejou at Punt, Todo o mundo uma flor, Que irrompe numa chuva de rosas! 12
Reconheceu as palavras: era uma cano de amor muito popular entre os soldados. Tambm servira como batedor no regimento de Hrus, quando este, no h muito tempo, marchara em direco a norte para esmagar os Mitnios. O dromedrio pontapeava agora a corda que lhe travava as patas dianteiras. O nmada agachou-se e avanou. Perscrutou o deserto e distinguiu vagamente onde o cantor se encontraria. A tribo do nmada mantinha-se sempre afastada daquele local, um labirinto construdo por mo humana no meio do deserto, a que davam o nome de Sala do Mundo Inferior. Os ancios afirmavam que os cruis Hicsos, que haviam saqueado o Egipto e destrudo as suas cidades, tinham erguido uma enorme fortaleza para controlar o osis. Aps um terramoto, os Hicsos teriam arrastado os blocos de granito da fortaleza para fazer esse tortuoso labirinto. As lajes cinzentas, medindo entre um e trs metros de altura, formavam um ddalo com cerca de um quilmetro e meio. Poucas pessoas se atreviam a entrar nele, porm o nmada sabia, atravs das histrias que se contavam noite em redor das fogueiras dos acampamentos, que os nobres tebanos costumavam tentar a sua sorte como demonstrao de coragem. Estariam os donos da quadriga por l? Quando regressariam? Olhou para o cu. Parecia-lhe to prximo com as estrelas a brilhar contra a escurido. Passou a mo pelo anteparo de bronze. No podia deix-la ali. Virou-se. O dromedrio corcoveava enlouquecido e no parava de resfolegar. O que causaria tudo aquilo? Escutou um rosnar abafado, viu uma silhueta negra a avanar. O viajante das areias entoou uma prece: Sentei-me entre os portes gneos. Passei pela Casa da Barca Nocturna. Deus TodoPoderoso, protege-me agora do Devorador de Carne, do Esmagador de Ossos! Estes eram os nomes dados ao leo devorador de homens. O nmada aspirou o ar da noite. Sentiu o cheiro de carne putrefacta 13
no preciso momento em que o grande leo saltava em direco a si, a coberto da noite. A Divina Casa de Hrus, o imenso templo construdo sobre as runas de outro ainda mais antigo, ficava nas margens do Nilo, para sudeste de Tebas, a cidade-jardim, a morada dos deuses, com os seus portes dourados. O Templo de Hrus era considerado por todos um local sagrado. O seu complexo de edifcios estava protegido e rodeado por uma muralha com torres de vigia em todas as entradas. No centro encontrava-se o grande santurio contendo o Templo da Barca e o nos, ou tabernculo, que albergava a esttua do deus Hrus. Em redor do santurio, dispostas como se fossem os eixos de uma roda, ficavam as capelas laterais. Apenas se podia penetrar no santurio atravs do hipostilo, a Sala das Colunas, erguida em granito encarnadoclaro. Do complexo do templo faziam ainda parte outros edifcios: a Casa da Prata, onde se guardava o tesouro, a Casa dos Devoradores, local em que se matavam os animais tanto para sacrifcio como para alimentao, e a Casa de Vida, o centro de cultura e escola. Cada um destes edifcios estava rodeado por maravilhosos e paradisacos jardins, onde abundavam as sombras proporcionadas por palmeiras, sicmoros e accias, e onde cresciam plantas e flores exticas cultivadas no solo negro e frtil trazido propositadamente da Meso-potmia. O templo possua ainda os seus prprios pomares e vinhas, todos irrigados por um engenhoso sistema de canais que trazia a gua do Nilo. Sendo um local rico e poderoso, na sua Casa das Provises guardavam-se jias, pedras preciosas, incenso, pipas de vinho, sacas de cereais, uvas, figos e tmaras, bem como enormes cestas de vime recheadas das melhores verduras, pepinos, alhos-porros e ervas aromticas para tornar ainda mais deliciosas as refeies servidas aos sacerdotes do templo. Agora, porm, os jardins e as casas de Hrus estavam desertos. Os sacerdotes, as danarinas, os coros e guardas encontravam-se todos reunidos na entrada principal. Hatusu, rainha-fara do Egipto, escoltada pelo seu gro-vizir Senenmut, estava prestes a chegar para realizar um sacrifcio aos deuses 14
bem como para receber a aprovao dos sacerdotes. Hatusu fora conduzida ao templo numa quadriga azul-brilhante puxada por duas guas srias, brancas como o leite. Por trs dela, num maravilhoso rio de cor, avanavam os seus nobres, conselheiros e comandantes de regimento. Hatusu era o fara imperial, rei e rainha das Duas Terras, senhora da Terra dos Nove Arcos. Destrura todos os inimigos dentro e fora das fronteiras, mas, segundo os mexericos que corriam nos mercados, no deixava de ser mulher. Poderia haver uma rainha-fara no Egipto? Os sinais e pressgios eram auspiciosos: o Nilo flua livre e caudaloso, as colheitas prometiam ser fartas; as rotas comerciais haviam sido reabertas e fortalecidas; as guarnies, desde o delta do Nilo at ao Sul, para l da Primeira Catarata, tinham todas sentido o seu poder e determinao em governar; esquadres de quadrigas patrulhavam o deserto para leste e oeste de Tebas; chegavam tributos dos Lbios, da nobreza de Punt e dos guerreiros da Nbia. At os Mitnios, que habitavam do outro lado do grande deserto do Sinai, haviam inclinado o pescoo em sinal de submisso. Toda a Tebas aceitara a sua glria. Templos, palcios e casas de adorao estavam a ser renovadas e melhoradas. Lpis-laz-li, ametistas, ouro e prata afluam das minas do Sinai e o ar exalava o cheiro do incenso enviado de Punt como oferta de paz. No seria tudo apenas uma fase passageira? Hatusu aniquilara qualquer oposio. Apesar disso, no deveria a coroa ser usada pelo seu enteado de seis anos? O que por todo o lado se murmurava era que o verdadeiro governante devia ser o herdeiro varo do marido de Hatusu, o fara Tutms, cujo corpo mumificado repousava agora na Casa da Eternidade construda para ele na Cidade dos Mortos, na outra margem do Nilo. Se tais questes a perturbavam, Hatusu no o demonstrava. Apeou-se da quadriga vestida como uma deusa. A cabeleira oleada que cobria a sua cabea estava rodeada por uma faixa de ouro decorada com maravilhosas rosetas. No centro erguia-se a uraeus, a cobra-capelo do Egipto, talhada em turquesa e com dois rubis que resplandeciam no lugar dos olhos. Pesados discos solares pendiam-lhe das orelhas, e as trancas da sua cabeleira 15
estavam presas por tiras de prata incrustadas de pedrarias. Estava vestida da cabea aos ps no mais dispendioso linho branco plissado. Um peitoral de ouro e prata decorado com cornalinas, turquesas e lpis-lazli pendia-lhe do pescoo. O medalho azul embutido representava a deusa Maet, com plumas de avestruz na cabea, a adorar o pai, o deus do Sol, R. Uma serva ajoelha-se para se assegurar de que as sandlias de ouro esto bem apertadas e depois Hatusu, segurando o ceptro e o mangual, sobe a longa srie de degraus at ao altar decorado com grandes quantidades de jacintos, ldo e folhas de accia. Jarros de alabastro repletos das mais caras fragrncias perfumavam o ar. Sacerdotes e sacerdotisas percutiam cmbalos e agitavam os sistros, os instrumentos sagrados, enquanto um coro de cantores cegos entoava um hino divino: A Hrus, Falco Dourado, O que d o alento direita, O que tira o alento esquerda. Tu que habitas nos campos do Ocidente eterno, Glria dos cus! Hatusu permitiu-se um breve sorriso ao atingir o topo das escadas. Estariam a cantar sobre Hrus? Ou sobre si mesma? Levantou os olhos para a altaneira esttua branca do deus de cabea de falco que se erguia por trs do altar. Embora no tivesse ainda completado vinte anos, Hatusu conhecia o valor da prudncia e ocultou os seus pensamentos. No acreditava inteiramente nos deuses do Egipto. O verdadeiro poder residia nos seus esquadres de quadrigas e fileiras de soldados de infantaria, na Casa Encarnada e na Casa Branca, nos tesouros do Baixo e do Alto Egipto, e no homem que tinha ao seu lado, to silencioso e sempre to prximo. As pessoas chamavam-lhe a sua sombra, a manifestao do seu ka, ou alma. Os olhos negros e rasgados de Hatusu sorriram. Oferecemos incenso, Senenmut murmurou. Eu que sou um deus rezo a um deus! Senenmut curvou-se, o seu rosto enrugado impassvel, mas 16
os olhos cheios de adorao por aquela jovem mulher que era ao mesmo tempo seu fara e sua amante. Tens de faz-lo de acordo com o ritual sussurrou ele. Dominamos todos menos os sacerdotes. Necessitamos do apoio deles. Os lbios de Hatusu retraram-se em sinal de desdm. Dali a poucas horas, os sumos sacerdotes de todos os principais templos de Tebas reunir-se-iam sob o pretexto de discutir a mudana de governo, ou melhor, para debater se uma rainha poderia usar a dupla coroa de fara bem como a coroa de abutre das rainhas do Egipto. Senenmut olhou para o fundo da escadaria, onde se encontrava Hani, sumo sacerdote do templo de Hrus. A cabea estreita e rapada, o rosto severo e os olhos azul-claros deste homem de meia-idade ocultavam uma inteligncia notvel. Ele e a sua esposa Uechlis haviam apoiado silenciosamente a subida ao poder de Hatusu. Agora, Senenmut estava determinado a que o seu fara recebesse a aclamao pblica que os sacerdotes lhe deviam. Aproximou-se mais de Hatusu. O teu amor sussurrou mantm-me cativo e o meu corao canta a uma s voz com o teu. Apenas penso no teu amor. O teu corao est ligado ao meu suspirou Hatusu ao mesmo tempo que se curvava diante da esttua. Os sacerdotes reunidos no patamar inferior soltaram um sussurro colectivo. O coro de cantores cegos comeou a cantar enquanto Hani subia os degraus com uma taa de incenso na mo. Hatusu, seguindo as discretas instrues de Senenmut, desceu as escadas e, em sinal de cortesia, acompanhou Hani at ao topo. O murmrio de aprovao dos sacerdotes ouviu-se com toda a clareza, e os cmbalos foram novamente agitados com grande estrpito. Frente ao altar, Hatusu deixou-se perfumar com o incenso, sinal de que estava purificada. Depois, com Hani sua direita e Senenmut esquerda, fez oferendas aos deuses. Algumas horas mais tarde, o silncio voltava a reinar no Templo de Hrus, as suas salas brancas, os pavimentos pintados,
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as paredes revestidas a mosaicos vidrados e belos hierglifos repletas de nada mais que sombras. Sob o templo, porm, nos antigos corredores e galerias subterrneas, Neria, bibliotecrio e arquivista da Casa de Vida, a escola do templo, caminhava em direco Sala da Eternidade. De quando em vez, detinha-se para, com o seu candil, acender as lamparinas de azeite dos corredores. As chamas tremeluziam e cresciam, agigantando a sua sombra e tornando-a mais ameaadora. Neria sorriu. Apenas os principais sacerdotes tinham acesso aos subterrneos. Agora estavam desertos, mas porque no haveriam outros de vir? Aquelas cavernas e passagens haviam outrora sido o refgio do Egipto, durante a estao da Hiena, quando os cruis invasores hicsos atravessaram o Nilo e subjugaram a cidade ao seu domnio do fogo e da espada. Este era um lugar sagrado e no seu centro ficava a Sala da Eternidade. Neria estugou o passo at chegar ao venerado centro, ao prtico desse templo subterrneo guardado por esttuas dos deuses pis e Hrus. Ali, acendeu um archote e penetrou na cavernosa cmara. O cho era revestido por mosaicos vidrados. Cada centmetro das paredes circundantes estava coberto por frisos que retratavam a histria do Egipto. O corpo mumificado do primeiro fara do Egipto, Mens, fundador da dinastia do Escorpio, repousava no enorme sarcfago de mrmore negro no centro da cmara. Era um tmulo de uma beleza impressionante, com cerca de trs metros de altura e outros tantos de largura. Cornijas de ouro decoravam cada canto, as paredes do sarcfago estavam repletas de smbolos mgicos traados a prata e a ouro. Num dos flancos, encimada por dois olhos encarnados, fora pintada uma porta para que o defunto fara pudesse, sempre que o desejasse, espreitar o mundo dos vivos. Na tampa do sarcfago erguia-se um abutre de mrmore com as asas abertas. Numa das pontas estava o deus Osris, na outra, a sua esposa Isis. Neria deteve-se para admirar a sala. Era de facto um local sagrado! Curvou-se diante do sarcfago e apressou-se a examinar o friso num dos cantos da cmara. Sentou-se e inclinou-se 18
para a frente, segurando o archote de forma a aperceber-se de cada pormenor. Sim, tinha a certeza, o que o friso descrevia era o mesmo que vira na biblioteca. E se tal viesse a pblico? Neria sorriu para si mesmo. Estava j a imaginar a aclamao da corte, o patrocnio do novo fara. Acariciou a tatuagem na sua coxa para lhe dar sorte, curvou-se uma vez mais ante a fonte da sua futura prosperidade e apressou-se a sair da Sala da Eternidade pelos mesmos corredores. Chegou ao fundo da escadaria de pedra e comeou a subir, os seus passos ecoando pelas paredes. Lembrou-se das lamparinas que devia ter apagado e voltou-se. Nesse preciso instante, a porta no topo das escadas abriu-se bruscamente. Neria sobressaltou-se. Uma silhueta ocupava a moldura da porta, com um balde de couro na mo. Quem...? A silhueta, com o rosto coberto por uma mscara de co, levantou o balde e, antes mesmo que Neria pudesse recuar, encharcou-o de leo. Neria escorregou nos degraus. Olhou para cima. Um farrapo em chamas voava na sua direco. O bibliotecrio caiu pelas escadas abaixo, esfolando tornozelos e mos. O farrapo flamejante incendiou o leo e, num abrir e fechar de olhos, Neria transformou-se num archote de carne e osso. Na sala do conselho do Templo de Hrus, os sumos sacerdotes de Tebas tomavam os seus lugares para a primeira sesso do seu importante conclave. Eram homens poderosos, ataviados com as tnicas de linho puro e peles de leopardo do seu cargo. Gargantilhas de ouro e braceletes adornavam os pescoos e os pulsos; as cabeas rapadas e os rostos reluziam com os leos mais preciosos. Eram os eleitos, os que entravam no santurio dos deuses e ofereciam sacrifcios diante do nos sagrado que albergava a esttua de Hrus. Eram homens de extrema influncia que comandavam os seus templos com mo de ferro. Sentaram-se em almofadas debruadas a ouro frente a pequenas mesas de madeira de accia onde se amontoavam manuscritos, rolos de papiro e utenslios de escrita. Sentiam-se muito orgulhosos; no s tinham toda a cidade de olhos postos
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neles, como tambm a divina Hatusu, o novo fara, pedira a sua opinio. Alguma vez se sentara uma mulher no trono do fara, com a dupla coroa, o basto, o mangual e o ceptro? Hatusu ascendera ao poder graas sua astcia e grande vitria que alcanara no Norte. Agora procurava a aprovao dos sacerdotes. Era bem conhecido por toda a Tebas que tal aprovao seria concedida de m vontade, se que fosse concedida. Ali, naquela sala decorada com cenas da vida de Hrus, o deus com cabea de falco, debateriam a questo. As suas palavras espalhar-se-iam como fogo pelo restolho ao longo das largas avenidas e estreitas vielas da cidade. No topo da sala encontrava-se Hani, sumo sacerdote do Templo de Hrus; a seu lado estava a sua esposa Uechlis, bastante mais nova do que ele. Uechlis, uma mulher alta e imponente, cobria a sua cabea rapada com uma bela cabeleira, e o seu vestido do mais suave linho realava as formas do seu corpo atltico. Investida de um grande poder graas sua condio de superiora das concubnas de Hrus, batia com as unhas vermelhas na mesa, sorrindo para si mesma. Essas duas figuras eram vistas como os nicos verdadeiros apoiantes de Hatusu. Os restantes sumos sacerdotes, conhecidos pelos nomes dos deuses que serviam, Amon, Hathor, Isis, Anbis e Osris, aguardavam que a sesso principiasse. Em redor de cada um deles viam-se escribas e seus ajudantes e peritos em teologia, cultos divinos e histria do Egipto. Hani bateu palmas e, baixando a cabea, entoou uma orao. Vamos comear? Olhou para a esquerda, onde estava Sengi, o chefe dos seus escribas, de clamo na mo, pronto para comear a transcrever a sesso. Sabemos por que razo aqui estamos declarou o sumo sacerdote de Amon. Olhou em redor da assemblia. Comecemos com a questo a partir da qual todas derivaro. Fez uma pequena pausa para criar efeito. Alguma vez houve na histria do povo dos Nove Arcos uma mulher no trono do fara? Poder algum fornecer prova disto? No seu rosto surgiu uma expresso triunfante ao ver o profundo silncio com que a sua pergunta foi recebida.
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Maet: deusa egpcia da Verdade, freqentemente retratada como uma jovem ajoelhada a rezar.
CAPTULO 1
Na Sala das Duas Verdades, na Casa Divina da deusa Maet, a justia do fara estava prestes a ser proferida. Amerot-ke, juiz supremo de Tebas e presidente dos tribunais do Egipto, amigo do fara e membro do conselho real, estava sentado na sua cadeira. Era um homem alto e de aspecto severo, olhos encovados, nariz afilado e lbios generosos apertados um contra o outro. Trazia uma tnica debruada a branco e umas sandlias da mesma cor para simbolizar a pureza. Em redor do pescoo via-se um peitoral de ouro e turquesa retratando Maet, a deusa da Verdade, ajoelhada ante seu pai R. O tribunal encontrava-se em silncio. Os olhos de todos fixavam, em suspenso, o rosto solene e a boca severa do juiz. De quando em quando, Amerotke afagava a faixa de cabelo preto que lhe pendia contra a face direita. Brincava com a pulseira de ouro no pulso esquerdo ou contemplava o anel de juiz no dedo mnimo da mo direita. Inspirou. Sempre madrugador, apenas comera algumas tmaras e um pouco de bolo de mel, preferindo deambular pelos mercados, seguido por Chufoi, seu servo, um ano de olhar atrevido e rosto desfigurado. Chufoi carregava a sombrinha do seu amo, sempre pronto a proteger Amerotke do sol da manh ou a proclamar, alto e bom som, que Amerotke, juiz supremo da Sala das Duas Verdades, se aproximava. Habitualmente, Amerotke ordenava-lhe que se calasse, mas Chufoi era irreprimvel. Adorava observar o rebulio que o seu amo provocava, quer fosse a 21
inspeccionar as balanas, os pesos e medidas dos vendedores ou visitando os tribunais menores que se reuniam nas antecmaras do templo: qenbet, saru e zazat. Amerotke chegava sempre a horas ao seu tribunal. Os raios de sol ainda mal tocavam nas pontas douradas dos obeliscos e os coros do templo cantavam ainda os hinos matinais ao Sol que nascia quando Amerotke tomou o seu lugar para proferir a justia faranica. Passou a lngua pelos lbios. Era um momento solene. S esperava que o seu estmago no ressoasse ou algum mensageiro, um rabizu, suado e empoeirado, chegasse da Casa do Milho de Anos. Amerotke recebera informaes secretas de que a rainha-fara Hatusu e o seu gro-vizir Senenmut desejavam falar consigo. O juiz supremo estava irritado. O caso que acabara de ouvir enchera-o de raiva e indignao; porm, recordou-se do ensinamento dos sacerdotes: Encoleriza-te apenas quando a clera necessria. Ergueu a cabea e olhou fixamente para o prisioneiro, um homem pequeno, de rosto descarnado, olhar cruel e falinhas mansas, o corpo gil e bronzeado coberto com uma tnica andrajosa, os ps calosos enfiados numas sandlias de junco entretecido. Amerotke acreditava em demnios e que estes podiam ocupar as almas dos homens. Naquele caso, fora isso seguramente o que acontecera. O prisioneiro parecia calmo e seguro apesar das provas irrefutveis que o acusavam de um crime blasfemo e sangrento em pelo menos duas, se no quatro, ocasies. O ru escarnecia dele, desafiando-o a pronunciar a sentena mais dura de que se lembrasse. Amerotke olhou em redor do tribunal. A sua esquerda, atravs dos prticos, viu de relance os jardins e fontes do templo, os prados verdes onde os rebanhos de Maet pastavam e o bis bebericava a gua sagrada sob a sombra das palmeiras e das accias. Desejou estar ali. Desejou dispor de tempo para poder pensar, reflectir, mas encontrava-se toda a gente espera. A sua esquerda, acocorados sobre almofadas com as paletas apoiadas nas coxas, estavam o chefe do seu pessoal e arquivista das peties e os seus seis escribas, incluindo o seu parente, o jovem Prenhoe. Tinham permanecido atentos, com os clamos preparados, espera que a sentena fosse ditada. 22
No lado mais afastado do tribunal, perto da porta, agrupavam-se os guardas do templo, liderados pelo musculoso Asural, que se colocara como se participasse num desfile, com o elmo de couro debaixo do brao. A direita de Amerotke encontrava-se Maiarch, rainha das cortess, chefe da Corporao das Prostitutas. Estava ajoelhada com as mos estendidas, o seu rosto gordo e maquilhado lavado em lgrimas que faziam o rimel e o khol correr em regatos negros pelas suas bochechas trmulas. Amerotke reprimiu um sorriso. Maiarch era uma actriz consumada. Desde que o caso terminara que se ajoelhara daquela forma, a peruca um pouco de lado, as mos sapudas erguidas no ar como se pretendesse arrancar a justia divina aos cus. De quando em vez, o esforo revelava-se demasiado e ela via-se obrigada a mudar de posio num chocalhar de pulseiras e pequenos guizos apensos sua indumentria. Excelncia comeou Maiarch com voz trmula, quebrando o silncio , clamamos por justia! Nehemu. Amerotke inclinou-se para a frente, a mo esquerda tocando na pequena esttua de Maet sobre o plinto ao lado da cadeira. Nehemu, pergunto-te uma vez mais, h alguma razo para que no deva pronunciar contra ti a sentena de morte? O rprobo devolveu-lhe uma careta. Amerotke! exclamou num tom escarninho. Um sibilo colectivo percorreu todo o tribunal. Nehemu insistia na blasfmia, negando ao juiz os seus ttulos e a devida cortesia. Dirige-te ao tribunal de forma adequada! ordenou Amerotke. Amerotke, juiz supremo da Sala das Duas Verdades rosnou Nehemu , e tu tens alguma coisa a dizer antes que a sentena de morte seja proferida contra ti? Amerotke no se moveu, mas Prenhoe e os outros escribas
Nota: khol Pasta, habitualmente negra, preparada base de gaiena em p que era misturada com gua e gordura e aplicada nas sobrancelhas e em redor dos olhos com um estilete. (N da T.T.)
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puseram-se de p de um pulo. Asural deu um passo frente com a mo na empunhadura de fio de cobre da sua espada. Se queres aumentar a lista dos teus crimes vociferou Amerotke , que assim seja! Nehemu inclinou a cabea um pouco para trs com os olhos semicerrados. Perteno Corporao dos Amemets anunciou num tom spero. Amerotke conteve um arrepio de medo. Os amemets eram uma corporao de assassinos; adoravam a terrvel deusa assassina Mafdet, representada sob a forma de um gato. Seria Nehemu um dos sobreviventes dessa associao? Nehemu estalou a lngua, saboreando a consternao que provocara. Amerotke tomou uma deciso. Nehemu, s um homem perverso! Vives e acoitas-te na necrpole, a Cidade dos Mortos, como o chacal que s. Em pelo menos duas ocasies, estiveste com uma cortes, uma cantora, uma danarina, um membro da Corporao das Prostitutas... Lixo sob os meus ps! escarneceu Nehemu. Asural avanava agora para ele, segurando na mo um cinto de couro largo. Rapidamente o colocou em volta do pescoo de Nehemu e o apertou. Amordao-o, Excelncia? perguntou. No, no para j. Amerotke acenou com a mo. Escuta, Nehemu, este tribunal far-se- ouvir. Tambm eu! Tambm a minha corporao! vituperou Nehemu com dificuldade devido tira de couro em redor da sua garganta. Retira-lhe a faixa ordenou Amerotke. Asural obedeceu com relutncia. Permaneceu atrs do prisioneiro, pronto para reprimir qualquer acesso de raiva ou movimento sbito. Cenas como aquelas eram raras. Os prisioneiros, em especial aqueles que, como Nehemu, eram acusados de crimes cruis, s desejavam uma morte misericordiosa: uma taa de vinho envenenado ou a corda do garrote. Nehemu perdera o direito a ela. Pegaste nessas jovens continuou Amerotke e mataste-as 24
por puro prazer. Estrangulaste-as e lanaste os seus cadveres para a zona do Nilo onde os crocodilos se juntam para comer. Nehemu suspirou como se escarnecesse de si mesmo. Privaste-as da vida e, ao profanares os seus corpos depois da morte, privaste-as de uma viagem segura at ao Ocidente, at aos Campos dos Bem-Aventurados. Amerotke inclinou-se para diante. Sobre a pequena mesa de sicmoro colocada sua frente encontravam-se os rolos de papiro contendo as leis do fara, bem como a insgnia do seu cargo. Pegou numa vara de madeira de terebinto com a extremidade esculpida com a forma de um escorpio. Um suspiro de alvio colectivo ecoou por todo o tribunal: a sentena de morte estava prestes a ser pronunciada. Maiarch baixou as mos e tocou no cho com a testa em sinal de agradecimento e submisso. esta a minha sentena. Os escribas apressaram-se a escrever. Nehemu, s um homem vil e cruel. Os teus crimes so horrendos. O capito da guarda levar-te- at ao local onde assassinaste as tuas vtimas. Sers atado e cosido vivo carcaa de um porco ainda ensangentada, que ser depois lanada ao Nilo. A expresso de Nehemu revelou algum choque. Pestanejou ao ouvir a medonha sentena a que iria ser submetido. Irs conhecer todo o horror dos teus prprios crimes continuou Amerotke. Capito da guarda, leva-o! Nehemu recuperara a compostura. Lanou-se para a frente com um ar feroz. Asural, assistido pelos outros guardas, agarrouo e comeou a arrast-lo dali. Amerotke baixou a cabea, colocando a vara do escorpio de novo sobre a mesa. Desejava que as coisas tivessem sido diferentes, mas que poderia fazer? Haviam sido arrebatadas vidas de forma sacrlega. A justia faranica fora desdenhada. Amerotke ouviu um grito e levantou os olhos. Nehemu soltara-se dos guardas, arrancara uma adaga a um deles e corria em direco ao juiz com o brao erguido. Amerotke no se moveu. No sabia se por coragem, se por medo. Apenas via Nehemu a correr para si, armado do punhal, o rosto contorci-do de raiva. Ouviu-se a vibrao de um arco. Nehemu estava 25
quase em cima de Amerotke quando ergueu as mos, deixando cair a adaga. Cambaleou para a frente, levando uma das mos s costas como se quisesse arrancar a haste emplumada da seta. Caiu de joelhos frente mesa, revirando os olhos, o sangue misturando-se com a saliva. Abriu a boca para falar. O que saiu foi um gargarejo e depois uma palavra meio murmurada. Amerotke no percebeu bem se fora vingana. Ento, Nehemu estatelou-se sobre a mesa, derrubando os rolos de papiro e as insgnias do juiz. Durante uns minutos, reinou a confuso. Amerotke levantou-se, batendo palmas. O assunto est encerrado. Foi feita justia declarou com um sorriso tnue. Embora de forma apressada e inesperada. Capito Asural, evacua a sala do tribunal. Leva este corpo at ao rio para que se cumpra o resto da sentena. Seguirse- um pequeno intervalo. Os presentes recordaram-se de onde estavam e curvaram-se. Amerotke respondeu da mesma forma e abandonou a sala. Assim que entrou na pequena capela lateral, fechou a porta, encostou-se a ela, suspirou e deixou o corpo relaxar. Devias ter ido para actor, Amerotke murmurou para si mesmo. A sua perna direita no parava de tremer, tinha o estmago s voltas, sentia-se atordoado, quente e frio ao mesmo tempo. Olhou para a tnica e agradeceu aos deuses por no haver nem sinal de sangue. Tirou as sandlias, o peitoral, a pulseira e o anel e colocou-os no pequeno tabuleiro de jogo de damas junto entrada. Depois, pegou numa pitada de sais de natro, misturou-a com a gua sagrada da pia e lavou as mos, a boca e o rosto. Sentou-se na almofada frente ao nos, cujas portas estavam abertas, e contemplou a esttua de Maet, ajoelhada, de mos juntas, o rosto sereno, as plumas de avestruz, smbolo da verdade, erguendo-se acima da coroa de pedra que lhe cingia a cabea. Amerotke considerava aquele o lugar onde lhe era mais fcil rezar. Tinha grandes reservas em relao aos deuses do Egipto. Muito interessado pela teologia, concordava cada vez mais com os telogos que argumentavam que Deus era um esprito eterno, pai e me de toda a criao, que se 26
manifestava no Sol, fonte de toda a luz. Maet fazia parte disso e a verdade mantinha-se constantemente pura. Amerotke fechou os olhos e entoou a sua orao preferida. Oh, Senhora da Terra dos Nove Arcos, Amada Palavra de Deus. Mantm-me no caminho da verdade, consagra-nos verdade. Dou-te graas pela minha vida, pela da Norfret, minha esposa, e pela dos meus filhos Curfai e Ahms. Amerotke abriu os olhos. As mas do rosto da deusa, os olhos rasgados e a boca sorridente recordavam-lhe sempre Norfret. To serena e, porm, quando estavam no seu quarto secreto, to ardente quando faziam amor. Amerotke despertou dos seus pensamentos, inclinou-se para a frente e comps as jarras de flores, os frascos de perfumes e o pequeno prato de comida que um dos sacerdotes colocara frente ao nos. Algum bateu porta. Entre! A porta abriu-se, revelando Maiarch, rainha das cortess, de queixo a tremer e olhos suplicantes. Venho dar graas, Excelncia. Amerotke sorriu. Entra. No sou pura. No estou purificada. O mesmo se poderia dizer de todo o Egipto respondeu o juiz. A obesa cortes irradiou de satisfao perante o cumprimento. Atravessou a moldura da porta numa onda de perfume caro acompanhada pelo tilintar de pulseiras. Sentou-se numa das almofadas encostadas parede, lembrando a Amerotke um hipoptamo a submergir, deleitado, nas guas do Nilo. Podia gastar algum do seu tempo com aquela gorda cortes to teatral. Era uma mulher amvel que tomava conta das suas raparigas e que sabia comportar-se. Vim agradecer-lhe, Excelncia. No preciso. Lamento o que aconteceu s raparigas. Apontou para o altar. Os deuses so compassivos. Talvez os kas delas tenham atingido o Campo dos BemAventurados e sejam levados para l do Horizonte Longnquo. Maiarch acenou com a cabea, pestanejando para combater 27
as lgrimas. De vez em quando, limpava delicadamente um dos olhos. Amerotke reparou que as suas unhas, pintadas de um vermelho de tom vivo e brilhante, eram to compridas que mais pareciam garras. Ser sempre bem-vindo a nossa casa, Excelncia. O rosto de Maiarch enrugou-se num sorriso. As minhas raparigas podiam fazer um jogo consigo... Amerotke abanou a cabea. Agradeo, Maiarch, mas tenho uma mulher, uma esposa. Ah, sim, a Norfret. Bela como a Lua num cu estrelado. Maiarch balanou os ombros rolios e levantou-se, fazendo mais uma vez chocalhar as pulseiras e os guizos. Nesse caso, Excelncia... Ainda mal tinha sado quando Asural entrou de rompante, seguido de Prenhoe. O capito da guarda do templo no esteve para cerimnias; os seus olhos, pequenos e negros como seixos, dardejavam contra os do juiz supremo. A confuso j foi toda resolvida, mas no devias ter permitido tal coisa, Amerotke! Quantas vezes j disse que os prisioneiros deviam ser atados? Teve uma morte rpida. Seria mesmo um ameme perguntou Prenhoe, preocupado. Sentou-se nas almofadas com um ar desolado. Ontem noite sonhei que estava a nadar no Nilo com uma rapariga nua s costas. Os seus seios eram pequenos e firmes... Quem me dera ter sonhos assim interrompeu Asural. No, no nada disso. O rosto magro de Prenhoe era um retrato de ansiedade. Enquanto nadava, entrou uma serpente na gua. Perguntei ao Chufoi o que achava disto e ele respondeu que o sonho era o augrio de um grande perigo que ameaava algum que me estava prximo. Olhou fixamente para o seu parente. O Chufoi estava certo murmurou. O Chufoi est sempre certo concordou Amerotke. No lhe contaram nada, pois no? No consegui encontr-lo respondeu Asural. Suponho que deve andar por a algures ocupado a vender amuletos e escaravelhos. Ele j no se interessa por isso acrescentou Prenhoe. 28
Diz que os mercados esto cada vez mais povoados de pensadores e comerciantes e que alguns detm o monoplio da venda de adornos preciosos. Ento, o que anda ele a vender agora? indagou Amerotke. Vamos, Prenhoe, diz-me o que sabes. Comprou um papiro antigo sobre medicina. Oh, no! Amerotke escondeu a cara nas mos. Oferece um vasto leque de remdios prosseguiu Prenhoe , para lbios rachados, dores de ouvidos... E os amemetsi insistiu Asural, interrompendo a tagarelice. Olhou desdenhosamente para o jovem escriba. A propsito, a tua paleta no ficou danificada? No devias ir tratar dela? Amerotke acenou na direco da porta, indicando a Prenhoe que podia sair. O escriba curvou-se para o altar, suspirou e saiu, resmoneando por entre dentes. Asural fechou e trancou a porta. Os amemets repetiu. Seria o Nehemu membro dessa associao de assassinos profissionais? Amerotke olhou fixamente na direco da esttua. - Pensava que tinham sido todos aniquilados. O que te levou a achar isso? inquiriu Asural enquanto se ajoelhava frente quele enigmtico juiz. Nada em especial. Amerotke fechou os olhos. J no a primeira vez que os encontro. Recordou-se daquelas galerias sombrias por baixo das pirmides de Sakara, das pedras a desagregarem-se, daquelas figuras vestidas de preto a correrem na sua direco e a serem esmagadas pelas lajes de granito. - Sabes bem que no existe apenas uma associao alertou Asural. E se o Nehemu pertencia a alguma delas? Ele assassinou uma rapariga do templo disparou Amerotke. Agiu sozinho. No sei. Asural ps-se de p. O lema daquela associao de serpentes que atacar um atacar todos. Porm, se era apenas uma fanfarronada do Nehemu... Asural encolheu os ombros. Nesse caso, no passar de areia soprada pelo vento do deserto. 29
E se no era? Tem cuidado com bolos de sementes de alfarroba besuntados com fezes de gato e sangue de um qualquer animal respondeu Asural. Os amemets costumam envi-los como aviso de que Mafdet, a deusa deles, anda caa. Ah, ento pelo menos tm a cortesia de avisar de que esto para chegar brincou Amerotke, escondendo o medo que sentia. No podero ser subornados ou ameaados? No. Asural encaminhou-se para a porta. Tm as suas prprias regras sanguinrias. Quando mandam um aviso, tentam por duas vezes matar a pessoa. Se no conseguirem, consideram-na sagrada para Mafdet e nunca mais levantaro sequer um dedo contra ela. Tenho-te a ti para me proteger, Asural gracejou Amerotke. Sim, sou o teu fiel co de guarda, mas lembra-te de que Mafdet uma caadora nocturna. Asural saiu. Amerotke ajoelhou-se novamente sobre os calcanhares. As ameaas dos amemets no o preocupavam em demasia; depunha toda a sua confiana em Maet. Estava habituado a combater na linha de batalha e, como juiz, enfrentava ameaas todos os dias. Algures no templo soou um corno de concha, sinal de que o tribunal estava reunido outra vez. Amerotke curvou a cabea em direco esttua, ergueu-se e colocou as insgnias do seu cargo, o peitoral, o anel e a pulseira. Comps a tnica, abriu uma caixa de madeira de sndalo e retirou de l um pequeno espelho de mo. O rosto de um juiz murmurou. Amerotke recordou-se do conselho dos seus mestres: Um juiz sentir muitas emoes, mas no dever mostrar nenhuma delas. Endireitou o peitoral e delineou os olhos com kohl. Ouviu uma pancada na porta. O assistente entrou. Est tudo pronto, Excelncia. Os trs suplicantes esto espera. Amerotke olhou para ele com a testa franzida. o caso da mulher que tem dois maridos explicou o seu assistente. Ah, sim. Amerotke esfregou as mos. Lera o rolo de 30
papiro com os pormenores desse caso. Regressou sala do tribunal. Todos os sinais do caos provocado por Nehemu haviam sido eliminados. O cho de mrmore negro brilhava, reflectindo as flores prateadas que adornavam o tecto verde. A mesa estava frente sua cadeira e os escribas sentados entre as colunas. Asural e os seus guardas ocupavam os seus postos perto da porta, no extremo da sala. Amerotke ocupou a cadeira e examinou as pessoas que se ajoelhavam ante si. Os vossos nomes? Antef, Excelncia declarou o homem direita de Amerotke. Era alto, bronzeado, tinha um rosto tpico de soldado e um corpo seco. Apesar do porte digno, o seu olhar era arrogante, como se esperasse no s que se fizesse justia, mas que esta fosse feita rapidamente. E s... perguntou Amerotke. Era oficial dos nakhtu-aa, Excelncia. Ah, sim. Amerotke sorriu. Sabia bem quem eram os soldados de infantaria veteranos que seguiam as quadrigas para a batalha. De que regimento? Anbis, Excelncia. Combati com o Esquadro Abutre na grande batalha do fara no Delta. Tambm l estive respondeu Amerotke lentamente. Pretendia ganhar a confiana das trs pessoas, bem como mostrar ao tribunal que o ataque de Nehemu no o perturbara. Amerotke pousou as mos nos joelhos e olhou fixamente para o soldado. Foi assaltado por memrias daquela longa e sedenta marcha e do sangrento confronto quando Hatusu, feroz como a deusa-leoa Sekhemet, se lanara contra os Mitnios e esmagara o seu poder. E qual o teu nome? inquiriu o juiz, virando-se para a jovem mulher, com cara de boneca, as mas do rosto muito pintadas, os olhos orlados de kohl. Usava uma cabeleira debruada a prata, as longas madeixas quase a tocar no xaile branco que trazia aos ombros. Dalifa. E s... 31
minha esposa respondeu o soldado por ela. O homem esquerda de Amerotke levantou a mo, indicando que pretendia falar. No , Excelncia! protestou ele. O meu nome Paneb acrescentou pressa. Sou escriba na Sala da Verdade do Templo de Osris. O homem recordou a Amerotke o seu parente Prenhoe. Era bvio que ele e a jovem mulher estavam profundamente apaixonados. O juiz recostou-se na cadeira. Adorava aquele tipo de casos: nada de mortes ou derramamento de sangue, apenas um emaranhado de relacionamentos que juntam ou dividem as pessoas. Fez um sinal e o chefe dos escribas leu os antecedentes do caso: Antef, na estao do Plantio, seis meses atrs, marchara para norte com os exrcitos do fara onde recebera uma pancada na cabea, perdera a memria e permanecera no Delta at recuperar. Meses mais tarde, regressara a Tebas para descobrir que a sua jovem e bela esposa, convencida de que estava viva, desposara, com a permisso dos sacerdotes, o jovem Paneb. Amerotke coou o queixo. E devo ento decidir se o primeiro casamento ainda vlido e o segundo dever ser dissolvido? Antef acenou vigorosamente com a cabea. Amas Antef? perguntou a Dalifa. Nunca o amei. O seu tom de voz elevou-se. O meu casamento foi arranjado pelo meu pai, Excelncia. E onde est ele? Era comerciante de incenso respondeu a mulher. Morreu h dois meses com uma doena nos pulmes. Amerotke acenou compreensivamente e vislumbrou uma expresso de desespero no rosto de Paneb. O teu pai era rico? Sim, Excelncia respondeu Dalifa , e eu sou a sua nica herdeira. Um rumor percorreu o tribunal. Amerotke sorriu. Antef no queria apenas a esposa de volta, pensou, queria tambm uma parte da sua herana. 32
Trata-se de uma questo de amor perguntou Amerotke , ou de riqueza? Antef, ficarias satisfeito com um quinho da herana dela? No sua protestou a jovem mulher. O juiz ergueu a mo para a silenciar. Antef era demasiado astuto para cair nessa armadilha. uma questo de amor respondeu ele calmamente. No pretendo nenhum tesouro, apenas recuperar a minha esposa, Excelncia. Ele quer o dinheiro! gritou Paneb, furioso. Vossa Excelncia sabe bem que isso! No sei nada retorquiu Amerotke. Tamborilou os dedos no lbio inferior. Se decretasse que a rapariga podia ficar com o segundo marido, Antef interporia recurso, valendo-se da influncia dos seus oficiais. Senenmut gostava de revogar sentenas de vez em quando, como forma de exibir o seu poder. Amerotke examinou Antef. Em que stio da cabea levaste a pancada? O soldado voltou-se e Amerotke reparou na cicatriz do lado esquerdo. Uma maa de guerra dos Mitnios declarou ele com orgulho. E o que aconteceu depois? Fiquei inconsciente, Excelncia. Quando recuperei os sentidos, verifiquei que me haviam deixado como morto. Uma mulher que saqueava o campo de batalha encontrou-me e levou-me para a sua aldeia, perto do osis. Fiquei l at viajar para Mnfis. Dei graas aos deuses por ter recuperado a memria. Lembrei-me da minha esposa e regressei a Tebas. Amerotke baixou os olhos para ocultar o seu constrangimento. Estivera nesse campo de batalha. Os mariyannou, os bravos do rei, haviam supervisionado a recolha do pnis de cada guerreiro inimigo morto. A prpria Hatusu insistira nesse acto e enviara-os aos seus opositores em Tebas como um trofu macabro e escarnecedor, bem como para mostrar quantos guerreiros mitnios chacinara. Acho estranho. Amerotke levantou a cabea e reparou que Antef desviara o olhar. Estaria o soldado a mentir? 33
Porqu, Excelncia? Bom, foste membro dos nakhtu-aa, todos valentes soldados. Usavas as armas do regimento de Anbis. Por que motivo que eles no encontraram o teu corpo? Estava afastado dos demais, Excelncia replicou Antef. Como seguramente se lembrar, a batalha estendeu-se pelo deserto. Foi descoberto um corpo e pensou-se que era o meu. Amerotke acenou em sinal de assentimento. Sou um soldado prosseguiu Antef. Combati pelo divino fara. E esta a recompensa que recebo? A Dalifa minha esposa. Olhou em redor do tribunal em busca de apoio. Ser que os guerreiros de Tebas no podem deixar as suas esposas para ir combater os inimigos do Egipto sem encontrarem outro na sua cama e sua mesa quando regressam? Amerotke viu a expresso de dor nos olhos de Dalifa. Mas eu no o amo. Esticou os braos para a frente suplicantemente. Ele era um homem cruel, um fanfarro. Excelncia, encontrei o homem dos meus sonhos. Partilharia a minha riqueza para ficar com o Paneb. Amerotke voltou a acenar com a cabea. A justia faranica no ser apressada. A esposa de um homem a esposa de um homem declarou. Dalifa escondeu o rosto nas mos e comeou a soluar. Mas de que homem? acrescentou Amerotke maliciosamente. uma questo para este tribunal decidir. At que tal acontea, decreto que a casa da Dalifa seja selada. A jovem dever ficar na Sa la de Recluso no Templo de Isis. Amerotke desviou rapidamente os olhos na direco de Antef e, pela segunda vez naquela manh, viu a morte espelhada nos olhos de outro homem.
CAPTULO 2
Nas Terras Vermelhas, o abutre de asas compridas, com as penas encrespadas pela brisa do deserto, sobrevoava como um arauto da morte o pequeno osis perto da Sala do Mundo Inferior. O abutre era capaz de pressentir o derramamento de sangue antes mesmo de este ocorrer. Conhecedor da natureza do deserto, rondando constantemente os algozes, o abutre vislumbrara o devorador de homens, o esmagador de ossos, que avanava, fazendo deslizar a barriga pelo cho. O leo perseguia um vendedor ambulante que parara no osis para dar de beber ao seu burro e sacudir a areia e sujidade dos olhos e da boca. O vendedor ambulante, antigo soldado de Mnfis, viajava por todo o Nilo, vendendo anis de cobre e outros adornos. Ignorava por completo a sua morte iminente. Na realidade, o osis estava calmo. As folhas das palmeiras acima da sua cabea mal se mexiam e a nvoa produzida pelo calor distorcia a paisagem. O burro, porm, estava inquieto. O vendedor ambulante olhou para o cu, semicerrando os olhos para melhor avistar o abutre. Hoje no, galinha do fara murmurou. Inclinou-se e sorveu a gua como um co, deixando que a sua frescura se alastrasse pelo rosto. Levantou a cabea, abriu a trouxa de linho que pousara na rocha a seu lado e roeu algumas tmaras secas. O burro, um veterano dos trilhos do deserto, mantinha-se de orelhas levantadas. De vez em quando, lanava a cabea para trs num relincho. O vendedor ambulante 35
ps-se de p. Voltou a atar o esfarrapado pano em redor da cabea, de forma a que lhe cobrisse a boca e o nariz, e dirigiu-se orla do osis. Nmadas, habitantes do deserto?, interrogou-se. Era bem sabido que tais ladres podiam atacar a qualquer altura, mas aquele osis no ficava longe da cidade. Olhou novamente para o cu: o abutre continuava a pairar por ali. O comerciante inquietou-se e regressou ao lago. Agachou-se e escutou atentamente. Recordou-se das histrias que falavam dos demnios que viviam no deserto: o bebedor de sangue, o depenicador de olhos, o devorador de carne. Sentiu a boca seca, por isso arrancou o pano e submergiu outra vez a cabea no lago. Era to agradvel. Levantou a cara e fitou a paisagem. Pela primeira vez, reparou em alguma coisa entre o osis e aquele ominoso labirinto. Seria a carcaa de algum animal? Os restos de uma quadriga? Parecia ter j sido pilhado pelos que viviam do refugo do deserto. O vendedor ambulante ps-se de p. De repente, o burro zurrou e ele virou-se. Paralisou de medo. O burro passou por ele e galopou furiosamente para longe. Um enorme leo de crina dourada parecia ter emergido da nvoa. Seria um leo ou Sekhemet, a Destruidora. A besta permanecia imvel, uma das patas ligeiramente adiantada, o corpo como que paralisado. No era uma viso, mas antes um caador experimentado que se arrastara furtivamente na direco contrria ao vento para que nenhum nariz captasse o seu cheiro. Nunca antes o vendedor ambulante vira um animal to assustador. O leo baixou-se. Mostrava-se precavido. No era a primeira vez que caava homens e conhecia os perigos da espada, da adaga ou do arco. Os seus flancos exibiam cicatrizes de tais armas. No entanto, o leo sabia o pnico que infundia. Uma vtima em fuga era uma presa mais fcil. O seu lbio superior ergueu-se e rugiu. O vendedor ambulante libertou-se do medo que sentia e desatou a fugir. Nunca correra assim to ligeiro. Um segundo rugido quebrou o silncio. Olhou fugazmente por cima do ombro. O leo ficara emaranhado nas trouxas e arreios que deixara no cho. O vendedor ambulante continuou a correr. Estava agora sob o intenso sol, a areia a queimar-lhe 36
os ps e os tornozelos. Correu em direco ao labirinto. Conhecia as histrias e lendas, mas que outra coisa podia fazer? Virou a cabea de novo. O leo continuava a persegui-lo. O vendedor ambulante chegou entrada do labirinto, quase acolhendo de bom grado a fresca escurido das suas terrveis pedras negras. No se importava para onde ia ou o que ia fazer. S desejava perder-se, ocultar-se da fria que o pretendia caar. Embrenhou-se ainda mais no interior do labirinto. Percebia pelos sons atrs de si que o leo o seguira. Praguejava e soluava de cada vez que tropeava e chocava contra as paredes de pedra. Acima do caador e da caa, o grande abutre elevava-se nos ares. Iria haver sangue, carne e restos para comer. Era sempre assim com o devorador de homens. O abutre conseguia vislumbrar tanto a presa como o perseguidor. Foi sacudido por uma rajada de vento que o obrigou a subir, as asas e a cabea quietas, o pescoo esticado. Deu uma volta e desceu a pique, mas, confuso, interrompeu a descida e subiu novamente. No conseguia perceber. Qualquer presa, fosse ela um coelho ou uma gazela-beb, se escondia e procurava refgio. Aquilo era diferente. O labirinto por baixo dele estava calmo. O abutre j no conseguia vislumbrar nem o vendedor ambulante em fuga nem o leo. Era como se o caador e a sua presa se tivessem esfumado da face da terra. Nada. Nem um som, nem poeira. Apenas o labirinto, a Sala do Mundo Inferior, estendendo-se silenciosamente sob o calor abrasador do Sol. Na Sala das Duas Verdades, Amerotke, juiz supremo de Tebas, olhava para o cho. Tentava controlar a sua clera. No espao de poucas horas, fora insultado, quase morto, e agora aquele arrogante soldado recusava-se a aceitar o seu veredicto. Ajoelhado frente ao magistrado, Antef olhava-o com raiva. Amerotke respirou fundo e levantou a cabea. Podia mandar Antef embora... Foste oficial dos nakhtu-a. Sim, Excelncia. E serviste sob as ordens do general Omendap no Regimento de Anbis na grande batalha contra os Mitnios? 37
Sim, Excelncia. Que idade tens? Amerotke tentou manter um tom educado. Cerca de vinte e sete Veres. E tu, Dalifa? Acabei de passar o meu vigsimo quarto Vero. Nasci... Amerotke fez um gesto para a silenciar. E quantos anos estiveram casados? inquiriu. At isto acontecer acrescentou apressadamente. Nove anos respondeu Antef. Nove anos? Intrigado, Amerotke esqueceu a sua ira. Examinou Dalifa. Era muito bela, com o rosto suave, pescoo macio, seios firmes e cintura estreita. Ela ajoelhouse de uma forma elegante e olhou-o timidamente por baixo das suas longas pestanas. Chufoi chamar-lhe-ia uma bela pea ou uma alegre companheira de enxerga. Paneb, o jovem escriba e seu novo marido, tinha um ar bastante inocente. Amerotke vislumbrou um momentneo olhar astuto no rosto de Dalifa. Havia ali indiscutivelmente um lao entre ela e Antef. O juiz estava determinado a descobrir que elo era esse. Estiveram casados durante nove anos recapitulou. E foram felizes? Alguma vez estiveram no tribunal? Alguma vez a guarda foi chamada a vossa casa? Algum dos vossos familiares interveio em alguma querela? O meu nico familiar disse Dalifa serenamente com um pestanejo que recordou cada vez mais a Amerotke uma encantadora rola era o meu pobre pai, que j faleceu. E tu, Antef? Eu no sou de Tebas, Excelncia. Sou oriundo do Delta. A tua famlia? insistiu Amerotke. Reparou que Dalifa ficara um pouco agitada. Tambm Antef parecia atrapalhado. O que se passa? perguntou, cada vez mais curioso. No tens famlia, Antef? Fui trazido para c por uma tia idosa com o meu irmo gmeo. Amerotke olhou-o fixamente. O resto do tribunal, os escribas, o seu assistente, os guardas perto da porta sentiram a impacincia do juiz e agitaram-se. 38
Gostava que respondesses directamente s minhas perguntas ordenou Amerotke. Ento, tinhas um irmo gmeo. Onde se encontra ele agora? Excelncia Antef esticou as mos , h algum tempo que estou aqui espera. Escutei os rumores... Fazes o favor de responder pergunta? Tive um irmo respondeu o soldado logo de seguida. Era um jogador, um vagabundo. Eu juntei-me ao regimento e ele tornou-se pedreiro, mas passava a maior parte do tempo nas tabernas e bordis ao longo do cais. Foi atrado para uma querela e entrou numa aposta. E que aposta foi essa? Que conseguia atravessar a Sala do Mundo Inferior. O tribunal agitou-se num burburinho bem audvel. Os escribas, com as paletas assentes sobre os joelhos, olharam uns para os outros e sorriram. Amerotke manteve-se impassvel. Conheces a Sala do Mundo Inferior? Sim, Excelncia. Amerotke ergueu a mo. No queremos confundir um caso com o outro. No pretendo uma descrio ou explicao sobre o labirinto, apenas o resultado da aposta do teu irmo. Entrou no labirinto. Eu levei-o l de noite e dei a minha palavra como oficial em como esperaria que regressasse. E ento? Antef voltou a levantar os braos. Ele nunca de l saiu, Excelncia. Era o meu ltimo familiar. No estou a ver o que tem ele a ver com o meu casamento. Sim, regressemos ao teu casamento concordou o juiz. Foram casados nove anos. Estiveste ao servio do exrcito do fara? Sim, Excelncia. Pequenas campanhas nas Terras Vermelhas. E a batalha contra os Mitnios? Isso foi diferente. Pois foi aquiesceu Amerotke. Como poderia algum esquecer aquela longa, poeirenta e 39
abrasadora marcha: Hatusu procurando desesperadamente o exrcito mitnio, a traio de algumas das tropas egpcias. Hatusu, feroz e implacvel como uma pantera, mostrara bem de quem era filha. Subjugara o inimigo, regressando a Tebas em glria, mas aquele homem no. Amerotke apoiou o queixo na mo e mirou o casal. Havia ali algo de muito, muito estranho. A sua frente tinha um jovem soldado que conquistara a glria, mas perdera a memria, e deambulara pelas cidades do Egipto antes de regressar a casa e encontrar a sua esposa, agora uma mulher rica, casada com outro homem. E tu, Dalifa? Amerotke sorriu para a jovem. Examinemos o que o teu marido disse. Ele no meu marido! Isso cabe ao tribunal decidir! objectou Amerotke. Bom, regressemos ento altura em que o exrcito deixou Tebas. Despediste-te de Antef? Beijaste-o com ternura? A rapariga acenou que sim. Desejaste-lhe sorte? Responde, por favor. Sim, Excelncia, desejei. E em que templo rezaste pelo seu regresso? continuou o juiz docemente. esse o costume das esposas dos soldados, no ? O meu pai deu-me incenso para as oraes confessou ela de imediato. Fiz uma oferenda no Templo de Osris. Amerotke ignorou o sorriso irnico de Prenhoe. E foi a que conheceste o jovem Paneb? inquiriu ele. Embora ele seja um escriba e no um sacerdote. Eu estava muito preocupada explicou Dalifa , queria descobrir para onde o exrcito tinha ido. Ele mostrou-me mapas. Foi muito amvel. Amerotke olhou ameaadoramente para os escribas, que agora riam e tapavam a boca com as mos. Paneb! Sorriu para o escriba. Sabias que a Dalifa era uma mulher casada? A esposa de um dos valentes soldados do fara? O escriba deixou-se ficar calado. Ele sempre se comportou de forma honrada interps Dalifa. 40
Como pode ser isso? perguntou Amerotke. Ele agora teu marido, pelo menos a teus olhos. verdade que costume uma viva voltar a casar, especialmente sendo jovem e esbelta como tu. Dalifa agradeceu com um sorriso afectado. Mas porqu tanta pressa? Esperei notcias argumentou ela, chorosa. Soubemos da maravilhosa vitria do fara. Quando o Regimento de Anbis regressou e acampou s portas de Tebas, descobri que Antef no regressara com os companheiros. Um oficial informou-me de que ele tinha morrido. Amerotke ergueu a mo. Desculpa. Algum te disse que o teu marido falecera? Ento, fora encontrado um cadver? Onde est esse oficial? Dalifa estendeu a sua bonita mo. No sei dizer, Excelncia... O seu assistente levantou-se com uma folha de papiro na mo. Excelncia, tenho uma lista dos mortos do Regimento de Anbis. Amerotke acenou com a cabea e o escriba aproximou-se. O juiz estudou atenciosamente a lista. Viu os hierglifos de Antef e por baixo leu mutilado: morto em combate. Que significa isto? perguntou. Mutilado: morto em combate? Descreve o estado do corpo, Excelncia explicou o escriba. Como sabe, tentamos conceder a todos os nossos mortos um funeral digno. Ento, o corpo de Antef foi reconhecido? Foi, sim, Excelncia. Convocmos o mdico do regimento. Amerotke teve de esperar que o obeso clnico atravessasse a sala, segurando um leque ornamentado numa mo e um pequeno frasco de perfume na outra. No parava de o cheirar, como se achasse o resto do mundo nojento e contagioso. Uma das suas sandlias rompera-se e batia sonoramente contra o cho, dando ao mdico a aparncia de um truo. Olhou em redor com um ar ameaador ao escutar as gargalhadas que saudaram a sua presena. Curvou-se perante o juiz, que lhe 41
indicou as almofadas destinadas s testemunhas. Arquejando e arfando, o mdico sentou-se. Amerotke teve grande dificuldade em imaginar tal homem a marchar com um regimento, a suportar o vento seco e abrasador, a inclemncia do sol, a celeridade e terror de um exrcito que se posiciona para uma batalha. Ento, recordou-se de o ver durante a campanha. claro, ele nem sequer dera um nico passo, sendo carregado, qual trofu regimental, numa das carretas. Nome? demandou o juiz. Baki, mdico regimental. Amerotke levou uma mo boca para ocultar um sorriso. Baki falava como um oficial de carreira. E estiveste com o Regimento de Anbis, no assim? Sim, Excelncia. Foi uma vitria grandiosa. E depois disso? Como sabe, Excelncia, ns, os soldados, depois de uma tal vitria descansamos e rejubilamos... Sim, sim, continua instigou Amerotke. A minha tarefa era tratar dos feridos. Estes so divididos em duas categorias: os casos srios... E os menos srios interrompeu o juiz, terminando a frase por ele. Muito perspicaz, Excelncia murmurou Baki. E os mortos? So trazidos em maas, dispostos em filas de acordo com o regimento e a brigada, e depois tentamos identific-los. Por vezes fcil: uma ferida de seta, um ferimento de espada, mas noutros casos o corpo pode ter sido esmagado por uma quadriga ou a cara pisada pelos cascos de um cavalo. E o soldado conhecido como Antef? Baki mirou o soldado ajoelhado no muito longe de si. Bom, Excelncia, para cadver tem um aspecto invulgarmente vivo e sadio. Amerotke esperou que as risadas abrandassem. Mas reconheceste este cadver? No, Excelncia, pensava que o corpo era o de Antef. Recordo-lhe que a batalha se iniciou perto de um osis e que depois se foi dispersando, medida que derrotvamos e perseguamos 42
os Mitnios. Havia corpos espalhados por toda a parte. A tarefa de os recolher s comeou na madrugada seguinte. Durante a noite, as matilhas de hienas e lees estiveram muito ocupadas. Vrios nakhtu-aa do Regimento de Anbis encontravam-se desaparecidos. Os corpos foram trazidos com as respectivas insgnias e tivemos de adivinhar o resto. Pensei que um deles era o do Antef. Excelncia, isso no pode ser. Antef levantou a proteco de pulso representando a cabea de chacal do Regimento de Anbis. Apontou tambm para a pequena gargantilha de cobre em redor do seu pescoo. So insgnias pessoais? interrogou Amerotke. Sim, Excelncia, indicam o meu nome e regimento. Ento, no podiam ter sido encontradas nesse tal corpo? perguntou Amerotke a Baki. Pois no, Excelncia. Cometi um erro. Antes de te retirares, responde-me s a mais uma pergunta. Como estava o corpo? Golpeado e mutilado. Baki semicerrou os seus pequenos olhos. Em especial a cara e um dos lados da cabea. Faltava-lhe tambm uma sandlia, mas trazia o pano a cingir os rins e o saiote do Regimento de Anbis. Houve mais algum que acreditou que o corpo era o do Antef. No me lembro de quem, mas j sabe como so os funcionrios. Sorriu falsamente para os escribas, ocupados a transcrever as suas palavras. Todos os corpos tm de ter um nome e quele foi dado o nome de Antef. Amerotke agradeceu-lhe. O rechonchudo mdico ps-se de p e bamboleou-se dali para fora. O juiz olhou o tribunal como se estivesse absorto em pensamentos. Na realidade, tentava esconder a sua prpria inquietude. Havia qualquer coisa ali que no batia certo. Separadamente, cada parte da histria fazia sentido, mas em conjunto... Antef, quanto tempo estiveste ausente de Tebas? Alguns meses, Excelncia. E ao regressar ficaste surpreendido por ver a tua esposa casada? Muito protestou o soldado. 43
E tu, Dalifa, restabeleceste-te rapidamente do teu luto? Cumpri os setenta dias prescritos ripostou ela num tom altivo , mas estava desesperada. O meu pai morrera e o Paneb... Os seus olhos voltaram-se para o seu novo marido. O Paneb provou ser uma fonte de apoio e consolo. No duvido nada! berrou Antef. Silncio! vociferou o chefe dos escribas. Onde ests hospedado? perguntou Amerotke ao soldado. Regressaste ao teu regimento? No, Excelncia. Concederam-me uma licena honrosa. Os rostos dos meus companheiros relembram-me coisas que prefiro esquecer. Aluguei um quarto por cima de uma taberna enquanto espero pela deciso do tribunal. Ser uma deciso difcil. Amerotke esfregou o queixo. Podes querer a tua esposa de volta, mas bvio que ela no te quer a ti. Estarias disposto a aceitar o divrcio? Nesse caso argumentou Antef, raivoso , exigirei uma elevada compensao econmica minha ex-mulher. Amerotke olhou para o seu assistente, perito em casos como aquele. O escriba limitou-se a apertar os lbios e a abanar a cabea pesarosamente. O juiz observou Dalifa e Antef. Paneb era apenas um jovem escriba muito apaixonado por aquela nbil e rica viva. Mas... Antef e Dalifa? Um casal feliz? Ele partira para a guerra e, ao regressar, encontrara a sua suposta viva esposa de outro homem. Amerotke reparou que eles mal olhavam um para o outro. Estaria Antef verdadeiramente apaixonado? Ou apenas interessado na recente riqueza da sua esposa? O caso exigia mais investigao. Fez um gesto para que Prenhoe lhe trouxesse uma parte das transcries do caso e leu-a rapidamente. Antef, declaraste que durante a batalha sofreste uma pancada na cabea. Foste encontrado por uma mulher daquela zona que te levou para a sua aldeia? Sim, Excelncia. E o que fizeste l? Trabalhava a terra, apascentava as cabras. E durante quanto tempo? Trs ou quatro meses respondeu Antef. Amerotke
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surpreendeu-lhe um pestanejar revelador. A minha memria voltou. O soldado estalou os dedos. No de imediato, mas antes como um fio de gua que escorre por uma parede abaixo: primeiro em pequenas gotas, depois em fio. Dormia mal e tinha constantes pesadelos. Porm, assim que me recordei de quem era, decidi-me a partir. E tens testemunhas para o que afirmas? perguntou o juiz. Ou... acrescentou com um sorriso ... a tua memria ainda no recuperou totalmente? Excelncia, a mulher que me encontrou j morreu. Tentei agradecer-lhe. Mas a aldeia ainda l est. Algum se lembrar de ti. Amerotke fez um gesto com a mo para obter silncio. A minha deciso mantm-se declarou. Desta vez, Antef olhou para o cho. Dalifa mirou de relance o seu ex-marido com os olhos carregados de um dio profundo. Paneb escondeu o rosto nas mos ao mesmo tempo que Amerotke empurrava a sua cadeira para trs. A sesso est encerrada anunciou o juiz. Uniu as mos em orao. Que o poder do fara seja sustentado e engrandecido. Assim seja! disseram em coro os escribas. Amerotke recolheu-se capela lateral. Fechou a porta e encostou-se a ela. Algures no templo uma sacerdotisa cantava. Amerotke sorriu. Era um dos seus cnticos favoritos. Diz a verdade ao Senhor das Verdades. Evita fazer o mal. A integridade de um homem bom Extingue-se perante ele e depois morre, Porm, a verdade dura uma eternidade! Amerotke olhou os relevos da parede: um sarcfago de ouro com uma mscara de lpis-lazli era transportado para a cmara de um tmulo com pilares de pedra verde e encarnada. Amerotke recordou-se da referncia Sala do Mundo Inferior. Teria em breve de ocupar-se daquele caso, mas... e Dalifa e Antef? Se a verdade era mais que uma questo de palavras, um 45
ser, uma essncia, uma entidade, uma deusa, o mesmo no se aplicaria ao seu contrrio? Poderia uma mentira ter uma vida prpria, exsudar a sua prpria e terrvel fragrncia? O juiz estava certo de que era isso o que acontecia naquele caso. Tanto Dalifa como Antef mentiam e estavam unidos por essa mentira. Amerotke mordeu o lbio. Ia precisar de ajuda. Estava na altura de chamar o pequeno Chufoi.
CAPTULO 3
De enxota-moscas na mo, Amerotke saiu do Templo de Maet para a grande via pblica pavimentada que cozia sob o escaldante sol do meio-dia. Prenhoe consultara a clepsidra, proclamara a hora e Amerotke anunciara um intervalo durante as horas de calor. A multido que se apinhava em redor das tendas tambm diminura medida que as pessoas se apressavam para casa, para a zona ribeirinha ou para os jardins pblicos em busca de sombra e refgio do calor. Amerotke parou para ver o vice-rei de Kuch passar em procisso solene, um pra-sol dourado a proteg-lo, em direc-o Casa do Milho de Anos, o palcio real junto ao rio. Os guarda-costas do vice-rei, de pendentes brancos a brilhar sobre os rostos largos e morenos, caminhavam a seu lado com um ar afectado, vestidos com tnicas brancas plissadas e peles de leopardo sobre os ombros. Perucas curtas, verdes e douradas, adornadas de penas, cobriam as suas cabeas rapadas. O prncipe de Kuch, coberto de peles de lince, era ostentoso na forma como se adornava: pulseiras de prata cobriam-lhe os braos e no topo da sua peruca dourada repousava uma pequena e ridcula coroa que mais se assemelhava ao chapu de um bobo. frente da comitiva, aduladores profissionais anunciavam quem ele era e, de quando em vez, lanavam-se ao cho de braos no ar, proclamando a sua deferncia. Salve, prncipe de Kuch, amado do fara! Concede-nos o sopro da vida!
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Amerotke ficou a v-los afastar-se e depois prosseguiu por entre as tendas. Uma cortes com uma bela cabeleira e um difano vestido branco, trazendo uma chita-beb por uma tre-la de prata, aproximou-se para sussurrar meigas saudaes. Reconheceu Amerotke e afastou-se pressa. O juiz embrenhouse ainda mais no mercado, inalando os fragrantes odores do blsamo aromtico, da canela, das ervas e dos outros produtos expostos para venda. Esta era a zona abastada do bazar, onde ornamentos preciosos e dispendiosos tecidos eram vendidos a preos exorbitantes. Amerotke interrogou-se se poderia comprar alguma coisa para Norfret e depois decidiu-se por uma estatueta em marfim de uma pantera em posio de ataque. Afastou-se do mercado pela estrada pavimentada. Chufoi devia estar andar por ali. Encontrou-o por fim sentado sombra de uma palmeira na esquina de uma das estradas que conduziam ao templo. O pequeno homem estava a dormir, os braos cruzados sobre o peito, o chapu-de-sol atado ao pulso por um pedao de cordel. Amerotke agachou-se. Examinou o rosto bastante engelhado do ano, a medonha cicatriz que marcava o local onde o nariz estivera. Chufoi fora vtima de uma terrvel injustia e Amerotke recebera-o em sua casa num acto de reabilitao. O ano compensara tal gesto com a sua lealdade e bom humor. O juiz espantava-se com a erudio do seu servo, a sua determinao em acumular fortuna por meio de um esquema a seguir a outro. No estou a dormir, meu amo. Ento, porque no abres os olhos? troou Amerotke. Ests bem, amo? Amerotke suspirou de alvio. Pelos vistos, Chufoi ainda nada ouvira em relao ao ataque perpetrado por Nehemu. Fico sempre melhor quando te vejo, Chufoi. O ano abriu os olhos e entreabriu os lbios num sorriso desdentado. Olhou em redor e bateu com os dedos na bolsa de couro atada sua protuberante barriga. Uma bela manh de trabalho, amo. O que vendeste? Amerotke sentou-se mais confortavelmente. Uma cura para desarranjos intestinais. Pega-se num escaravelho, 48
corta-se-lhe a cabea e as asas, cozinha-se em gordura de cobra e mistura-se com mel. O ano bateu palmas. Mantm a pessoa longe da latrina durante dias! Muito bem. Amerotke sorriu. E qual a cura para isso? Pega-se num escaravelho declarou Chufoi , retira-se a cabea e as asas, cozinha-se com rebentos de trigo, mistura-se com sumo de figos... E estamos de volta s latrinas? perguntou Amerotke. Chufoi suspirou e ps-se de p. Toda a gente se foi embora, foram todos descansar. verdade o que se diz, amo, o comrcio e a riqueza dependem do tempo. J comeste? Olhou para o juiz. Esta manh s mastigaste um pouco de bolo. Abanou um dedo. A minha ama Norfret foi peremptria... J comi interrompeu Amerotke. Passou um mercador conduzindo uma azmola cujos alforges decorados com guizos chocalhavam ruidosamente. Posso vender-te uns tampes para os ouvidos props Chufoi. Amo, porque me procuraste? No tarda, a multido est de volta. Tenho de voltar ao trabalho. Preciso de um favor, Chufoi. Conheces os barqueiros ao longo do rio? Um ou dois respondeu Chufoi. Amerotke agarrou na mo do ano e apertou-a gentilmente. Coleccionam mais mexericos que os pescadores pescam peixe. Quero que lhes peas informaes sobre um soldado. O nome dele Antef. Combateu na grande batalha no Norte. Ao que parece, perdeu a memria, ficou durante algum tempo em Mnfis e depois regressou para reclamar a sua esposa e a sua recente herana. Chufoi apertou os lbios e inflou as bochechas, lembrando a Amerotke o pequeno deus Bs, o travesso gnio que protegia as crianas e os animais. Fazes isso por mim, Chufoi? Vo querer alguma coisa em troca. Uma pedra preciosa anunciou Amerotke. Vislumbrou a ofensa nos olhos de Chufoi. Duas pedras preciosas. Uma para ti e outra para quem me trouxer novidades. Virou-se para ir embora. 49
Estarei aqui ao pr do Sol, amo gritou. Amerotke no se voltou. Ali vai Amerotke, o grande juiz supremo da Sala das Duas Verdades! ressoou a voz de Chufoi. Veio para me felicitar pela destilao de um remdio para achaques do estmago. Aproximem-se! Aproximem-se! Amerotke apressou-se medida que Chufoi atraa a ateno de um grupo de sacerdotes. Espero que gostem de escaravelhos murmurou o juiz para si mesmo. Rezou para que Chufoi tivesse cuidado. No era a primeira vez que Amerotke castigava charlates e vendedores ambulantes por negociarem com poes que faziam mais mal que bem. Penetrou na frescura do templo pelos corredores marmreos que conduziam parte traseira da Sala das Duas Verdades. Prenhoe esperava-o, saltitando de impacincia. Segurava um pequeno rolo de papiro fechado com o selo real do fara. Tenho estado espera. O mensageiro disse que era urgente. Amerotke aceitou o rolo, beijou o selo e quebrou-o. A mensagem, escrita pelo prprio Senenmut, era breve: Amerotke convocado Casa do Milho de Anos. Dever a apresentar-se para uma audincia imediatamente antes do pr do Sol. Algum problema? perguntou Prenhoe. Tive outro sonho a noite passada. O Chufoi e eu estvamos a partilhar uma rapariga... Amerotke entrou na pequena capela e fechou a porta a Prenhoe, mas o escriba no desistiu; com grande pormenor, gritou um relato do seu sonho atravs da porta. O juiz apressouse a tratar da sua higiene, purificou a boca e as mos, colocou as insgnias e abriu a porta. Mais uma palavra sobre os teus sonhos advertiu Prenhoe , e mando-te de volta para a Casa de Vida. Isso no, meu senhor. Os meus exames so no final da estao do Plantio. Ento, trata de te dedicares ao estudo. O tribunal esperanos! Assim que tomou o seu lugar e olhou para as folhas de papiro 50
que o seu assistente lhe entregara, Amerotke percebeu que o caso que naquele momento se lhe apresentava era ao mesmo tempo srio e delicado. Levantou os olhos das folhas. Toda a gente tinha ocupado o seu lugar; invulgarmente, no olhavam para si, mas para o jovem oficial ajoelhado nas almo-fadas. Amerotke sorriu-lhe. O jovem parecia nervoso: no parava de torcer a tnica ou de brincar com a pulseira de cobre que provava que era oficial do Esquadro Pantera do Regimento de Anbis. O juiz tambm ouvira os rumores. A prpria Norfret lhos transmitira depois de os escutar da boca de alguns amigos que visitara na cidade. Amerotke tentava sempre manter-se longe de mexericos; temia ser arrastado para conversas e dizer alguma coisa que pudesse ser destorcida. Olhou de relance para o seu assistente. Pensava que este caso ainda no estava pronto para ser julgado. O assistente, um homem de rosto severo, abanou a cabea e apontou para a sala do juiz. Deixei-lhe uma mensagem esta manh, Excelncia, mas o ataque daquele malfeitor... A sua voz diminuiu de intensidade. Este assunto no pode esperar mais. Amerotke estudou o papiro que segurava no colo. As notcias daquele caso haviam corrido por toda a Tebas, deliciando os amantes da m-lngua. O jovem que tinha sua frente, Ramose, era o filho mais novo de Omendap, comandante supremo das foras armadas egpcias, amigo pessoal de Senenmut e Hatusu e uma figura que desempenhara um papel vital na tomada do poder pela rainha. De acordo com o resumo do caso, Ramose fora amigo ntimo de outros dois jovens oficiais, Ba-nopet e Usurel. Estes eram os filhos gmeos de Pechedu, capa-taz da Casa do Po e da Casa da Prata. Um dos homens mais ricos do Egipto, Pechedu controlava a venda dos cereais e o fornecimento de prata procedente das principais cidades do reino. De acordo com o relatrio, os filhos de Pechedu haviam discutido com Ramose e levado as suas quadrigas para o deserto, at Sala do Mundo Inferior, o grande labirinto construdo pelos Hicsos. Alegadamente, Ramose seguira-os at ao deserto para fazer as pazes. Ao chegar Sala do Mundo Inferior 51
percebera que os dois companheiros tinham entrado no labirinto. Em jeito de brincadeira, Ramose decidira desatrelar os cavalos da quadriga e traz-los de volta para Tebas. Um dia passara e nada dos dois jovens oficiais. Organizou-se uma busca e a quadriga fora descoberta, bem como os restos de um nmada que fora atacado por algum animal selvagem. Batedores, destacados para as Terras Vermelhas, descobriram as pegadas de um enorme leo. Segundo os boatos que corriam em redor do osis, esta besta, alcunhada de Esmagador de Ossos ou Devorador de Carne, no parava de aterrorizar a zona. Mais importante ainda, no fora encontrado qualquer vestgio dos dois oficiais, por isso, Ramose fora acusado do homicdio dos companheiros. Amerotke terminou de ler e levantou a cabea. - s um assassino, Ramose? No, Excelncia. Por que razo foram os teus amigos at ao labirinto? Levaram armas? Sim, bem como comida e odres de vinho respondeu Ramose, visivelmente nervoso. No h muito tempo, numa festa, vangloriaram-se de que eram capazes de entrar no labirinto e sair ilesos. Isso no deve ser difcil. Alguma vez foi ao labirinto, Excelncia? J l estive perto. Amerotke olhou para o chefe dos escribas. O que se sabe deste ddalo, a Sala do Mundo Inferior? Segundo reza a lenda, Excelncia respondeu o escriba , antes de serem expulsos pela Casa Divina, os Hicsos erigiram uma enorme fortaleza nas redondezas do osis de Amarna. O chefe dos escribas, um homem atarracado e pomposo, envaidecia-se sempre que lhe era dada oportunidade de exibir os seus conhecimentos. Amerotke comeou a tamborilar numa tatuagem que tinha no joelho, sinal de que comeava a ficar impaciente. No entanto, o escriba teria o seu momento de glria. Os deuses do Egipto intervieram declarou ele sonoramente. A grande serpente Apfis estremeceu... 52
Por outras palavras, houve um terramoto interrompeu Amerotke, j irritado. A grande serpente estremeceu prosseguiu o chefe dos escribas , a fortaleza desmoronou-se, mas o rei hicso tinha uma alma tenebrosa. Escravos e prisioneiros de guerra foram arrastados para as Terras Vermelhas e os blocos de granito foram redistribudos de maneira a formar um gigantesco labirinto. Os Hicsos adoravam sangue. Homens, mulheres e crianas foram obrigados a entrar no labirinto sem comida, gua ou qualquer outra forma de subsistncia. Muitos morreram e os seus esqueletos ficaram a adornar os sombrios becos do labirinto. Um murmrio de repugnncia contra tais prticas sacrlegas percorreu o tribunal. Matar uma pessoa e depois negar ao seu corpo um enterro decente era a derradeira crueldade, pois tal negava alma o poder de viajar para o Ocidente atravs do Horizonte Longnquo. Por vezes continuou , eram libertados animais selvagens no interior do labirinto. Tambm eles se perdiam e tinham de depender da carne humana para sustento. E agora? interveio o juiz. possvel que animais selvagens ainda vivam no labirinto? Prenhoe ergueu o seu clamo. pouco provvel, Excelncia. O jovem escriba sorriu constrangido ao escutar o chefe dos escribas estalar a lngua em sinal de reprovao. Continua, Prenhoe ordenou Amerotke. A Sala do Mundo Inferior um labirinto tortuoso explicou. Um animal selvagem, como um leo ou uma hiena, poderia conseguir sair. Prenhoe pousou o clamo sobre a paleta. Mas duvido que chegassem sequer a entrar. O chefe dos escribas, desejoso de reivindicar a sua autoridade, levantou a mo, pedindo a palavra. H outro factor, Excelncia. Amerotke acenou com a cabea. A Sala do Mundo Inferior um lugar solitrio com uma perversa reputao. Os habitantes do deserto e os Bedunos no ousam entrar, mas, ao longo dos anos, os jovens mais fanfarres da corte... o seu rosto enrugou-se num sorriso desdenhoso. Bom... atrevem-se por vezes a entrar para testar a sua coragem. 53
E ento? Alguns conseguem sair, Excelncia. Outros, no. O que quer isso dizer? Limitam-se a desaparecer. Os rumores falam de demnios que se ocultam no labirinto e que capturam tanto a alma como o corpo dos que entram. Amerotke observou a luz do Sol que entrava pelo prtico, um raio dourado e quente no qual danavam os gros de poeira. Teria gostado de dizer que no acreditava em demnios e que as pessoas no desapareciam assim, sem mais nem menos, da face da terra. E procedeu-se a alguma busca para esses que se perderam? perguntou. Sim, Excelncia, mas no se encontrou qualquer vestgio. Apenas os esqueletos daqueles que os Hicsos mataram. E desta vez? Amerotke comeou a bater com o p impacientemente. Dois jovens oficiais, os filhos gmeos do comandante supremo do exrcito do fara, desapareceram. Amerotke olhou para Ramose. Sem dvida, aquele homem agira insensatamente, mas seria culpado de homicdio? Foi conduzida uma busca minuciosa? quis saber. Sim, Excelncia. Com vossa permisso, chamaria o oficial que dirigiu tal. busca. O juiz concordou e o chefe dos escribas levantou-se e bateu as palmas. Que Kharfu se apresente a este tribunal! Seguiram-se algumas movimentaes no fundo da sala. Asural deu dois passos ao lado e um homem alto e seco avanou. Vinha de chapu de couro, botas de montar at aos joelhos, tanga de guerra com fivelas e botes de bronze e, em redor do peito nu, um largo cinto de cabedal. As suas bolsas e bainhas encontravam-se vazias. No era permitido s testemunhas usar armas na presena do juiz supremo de Tebas. Amerotke apontou para as almofadas escarlates perto do pequeno altar de Maet. O homem inclinou-se, colocou os dedos no altar e, fechando os olhos, repetiu o breve juramento que um escriba lhe leu. Amerotke observou Kharfu com ateno. Era 54
um soldado tpico, rosto curtido pelo tempo, faces secas, olhos semicerrados de perscrutar constantemente o horizonte atravs do sol escaldante e dos ventos do deserto. O seu musculoso corpo revelava cicatrizes rosadas. Reparou nas proteces dos pulsos guarnecidas com borlas, nas penas azuis e encarnadas presas ao cinto. Um soldado, mas tambm um janota, concluiu. Um homem que gostava de exibir-se nas tabernas e atrair a ateno das bailarinas. O teu nome Kharfu? Sim, Excelncia. Tira o chapu no tribunal advertiu Amerotke em voz baixa. O soldado obedeceu de imediato. s soldado? Chefe dos batedores da Brigada Gazela do Regimento de Isis. E foste enviado para procurar os homens perdidos? Eu e mais cerca de uma dzia de homens da brigada. Partimos bem cedo na manh seguinte ao seu desaparecimento. E o que encontraram? Uma quadriga. As aljavas da lana, do punhal e das setas estavam vazias. Ento, os dois oficiais entraram no labirinto armados? - o que parece, Excelncia. Havia ainda vestgios de uma fogueira, uma taa partida e um odre vazio. Encontrmos tambm os restos mortais do que parecia um beduno, algum sangue, ossos e roupas rasgadas ao lado das pegadas de um leo. O beduno viera de um osis vizinho, o seu dromedrio fugira. Poderia esse leo ter atacado os dois oficiais? O batedor abanou a cabea. Mandei um dos meus homens dar uma volta em redor do labirinto. No encontrmos qualquer rasto de animal. Quantas entradas tem o labirinto? Cinco ou seis. Apenas descobrimos pegadas numa delas, a que ficava mais prxima do local onde a quadriga fora deixada. Continua. Os rastos estavam j esbatidos, mas os meus homens so bons. Detectaram pegadas de dois homens que se dirigiram para o interior do labirinto. 55
Amerotke apontou para o ru. Poderia ele ter tambm entrado? Talvez, mas no encontrmos vestgios disso. Como poderemos saber que os dois oficiais no esto ainda perdidos no labirinto, fracos, famintos ou enlouquecidos pela sede? No creio que estejam vivos, Excelncia. Ao que parece, o Usurel levou consigo uma trompa de caa. Se estivessem perdidos, ele t-la-ia tocado. Para alm disso, ordenei a alguns dos nossos batedores que tocassem as suas. No houve resposta. E o que fizeram ento? inquiriu Amerotke. Recevamos entrar, no por causa das lendas, mas porque o tal leo devorador de homens poderia ter-se abrigado no labirinto. No entanto, alguns dos meus homens combateram em zonas montanhosas, so bons trepadores e os blocos do labirinto esto separados entre si a altura de um homem. Ah! Amerotke sorriu e mudou de posio. Ento, mandaste batedores para o topo dos blocos. Sim, Excelncia, saltaram de pedra em pedra. Era uma tarefa cansativa, mas eles deram conta do recado e cobriram todo o labirinto. Encontraram outros esqueletos de pessoas que tiveram o infortnio de ali morrer anos antes, mas nem vestgio dos oficiais Banopet e Usurel. O juiz supremo voltou-se para Ramose. E qual a tua verso dos acontecimentos? H dois dias, Excelncia, eu e os meus dois amigos tivemos uma discusso. Sobre qu? Sobre coragem. Queriam que eu me juntasse a eles na travessia do labirinto. Recusei. Chamaram-me cobarde. E onde ocorreu tal discusso? Numa taberna perto do Santurio dos Barcos. Disseram que iriam sem mim. O jovem no parava de mexer nervosamente no cordo de ouro em redor do pescoo. Na manh seguinte, passaram por minha casa para me chamar. Recusei novamente e eles partiram na quadriga a rir e a fazer pouco de mim. E ento decidiste segui-los? 56
Sim, Excelncia, mas quando cheguei Sala do Mundo Inferior, j o dia ia avanado e no vi quaisquer sinais dos meus amigos. Porm, ouvi cantar. Penso que era o Usurel. Cantar? Amerotke inclinou-se para a frente. Apenas um dbil murmrio na brisa. Fiquei irritado. Decidi dar-lhes uma lio, por isso, desatrelei os cavalos e regressei a Tebas. No te parece que foi um acto deveras insensato? Pensando melhor, foi, Excelncia, mas era apenas uma partida. Tinham-se vangloriado da sua dureza e coragem. Pensei que um passeio at casa lhes faria bem ao orgulho. Eram soldados e estavam bem armados. E o leo? perguntou Amerotke. E os bedunos? Os bedunos no atacam soldados bem armados respondeu Ramose. E, quanto ao leo, Excelncia, desconhecia a sua existncia. Ainda assim, foi um acto irreflectido. O juiz levantou as mos indicando que ia pronunciar a sentena. No restam dvidas de que estes dois jovens esto mortos. No so do gnero de desertar e no havia razo para no quererem regressar a Tebas. As provas indicam que entraram na Sala do Mundo Inferior, mas nada nos mostra que chegaram a sair. Apontou para Ramose Agiste de forma irresponsvel e tola. A minha deciso que deveras responder pelos teus actos Acenou com uma das mos, mandando o batedor embora. Ramose sentou-se sobre os calcanhares. Os funcionrios agitaram-se, sussurrando entre si, acenando em sinal de concordncia. Os sussurros propagaram-se a quem assistia. Amerotke gesticulou para um servo que se apressou a atravessar a sala para lhe servir um copo de maru, um vinho branco fresco. Amerotke bebeu um gole e devolveu a taa. Os funcionrios comearam a preparar o tribunal para uma audincia formal, dispondo grandes almofadas no cho. Amerotke apercebeu-se de um movimento ao fundo da sala. Ualu, o delegado real, ataviado de forma assaz ostentosa com uma tnica de linho branco plissada e um leno de brocado em redor dos ombros, avanava, meneando-se e fazendo as sandlias adornadas a prata bater contra o cho. Ualu era 57
atarracado, praticamente no tinha pescoo, e os refegos de gordura no rosto quase lhe ocultavam os olhos escuros e brilhantes. O delegado lembrava sempre ao juiz um pardal, constantemente de um lado para o outro. A sua chegada provocou algumas risadas abafadas. Ualu tinha o hbito de pintar o rosto como uma mulher: risco preto sob os olhos, as plpebras pintadas de verde, carmim nos lbios e mais rouge nas mas do rosto que qualquer cortes. Arquejou, bufou, ajoelhouse nas almofadas e inclinou-se para Amerotke. O juiz supremo reparou nas suas unhas, pintadas de verde-escuro para condizer com as pulseiras. Excelncia, uma deciso muito sbia e acertada comentou, sorrindo afectadamente. Seja bem-vindo, delegado Ualu cumprimentou Amerotke. Examinou-o bem. Ualu no iria baixar a guarda. Adorava fazer-se de nscio, mas era um funcionrio implacvel e ambicioso cuja aparncia ocultava uma astcia capaz de provocar inveja a um mangusto. Desde que deixara a Casa de Vida, demonstrara ser um dos mais eminentes funcionrio de Tebas, os olhos e os ouvidos do fara, o investigador de conspiraes, o lebreiro de qualquer inimigo da Casa Divina. O delegado real apresentava todos os casos importantes. Ualu no se preocupava com quem ofendia. Torcia-se e retorcia-se como uma serpente e afirmava que estava simplesmente a obedecer vontade do fara, e quem se atreveria a contestar tal vontade? Uma deciso muito sbia e acertada, Excelncia repetiu Ualu , prpria de quem detm o cargo mais elevado na Sala das Duas Verdades. No me parece que seja uma deciso sbia ou acertada replicou Amerotke. Se tivesse admitido que era uma boa deciso, trairia a imparcialidade e ofenderia profundamente o general Omendap. Excelncia? As sobrancelhas rapadas de Ualu ergueram-se, fingindo-se surpreendido. No estou a perceber. O tribunal decidir o que bom e sbio. A minha deciso apenas o resultado de um exerccio de lgica. O que tm os olhos e os ouvidos do fara para dizer? 58
Examinei as provas respondeu Ualu, molhando os lbios e esfregando as mos uma na outra. Reclinou-se sobre os calcanhares. E ento? Sabemos que os dois jovens oficiais foram para a Sala do Mundo Inferior. Temos provas aceitveis de que no encontraram nenhum animal selvagem ou qualquer outro inimigo nas Terras Vermelhas. Aceitamos que devem ter entrado no labirinto. Porm, se assim , deveriam ter sido capazes de achar a sada ou ento ter-se-iam perdido. Sabemos que no saram. Ualu sorriu. E sabemos por intermdio dos batedores que j no se encontram l. Amerotke comeou a ficar apreensivo. O jovem Ramose podia ser acusado de estupidez, de um acto impensado, mas Ualu parecia conduzir o julgamento por um caminho diferente. Estava a tecer uma acusao bem mais grave. No farei comentrios declarou Amerotke. Delegado Ualu, exponha o seu caso perante o tribunal. Ualu suspirou. Estes dois oficiais no regressaram a Tebas. No esto no labirinto. No existem provas de que tenham sido atacados por homem ou animal. Ramose admite abertamente que tiveram uma discusso sria e que trocaram acusaes e censuras. Levantou a cabea e repousou as mos nas coxas. Eu, os olhos e os ouvidos do fara, afirmo que o Ramose no s lhes tirou os cavalos, como tambm matou os dois companheiros, e os respectivos corpos esto ainda algures sob as areias escaldantes do deserto. Est a acus-lo de homicdio? perguntou Amerotke, aplacando o clamor com as mos. Sim, Excelncia, de homicdio duplo!
CAPTULO 4
Na torre do jardim do Templo de Hrus, Sato, servo e guarda do sacerdote, trepou penosamente os degraus de pedra da escadaria em caracol que conduzia aos aposentos do andar superior. Sato estava verdadeiramente cansado. No princpio do dia, bebera mais cerveja que o que devia e depois divertira-se com uma jovem prostituta numa casa de prazer. Ela revelara-se enrgica e vigorosa e o seu corpo oleado escorregara e contorcera-se sobre o dele. Sato conseguia ainda sentir o perfume dela, recordar o seu rosto macio. Sato j havia subido torre, mas depois lembrara-se dos bolos e da cerveja; regressara pois cozinha para ir buscar o tabuleiro que deixara preparado no pequeno armrio ao fundo dos degraus. Estava to cansado! Devia era estar na cama gemeu. Porm, a noite comeava a cair e o velho sacerdote, Prem iria observar as estrelas antes de se deitar. Sato faria a vigia da noite. Por vezes, o velho sacerdote acordava a meio da noite, em conseqncia de alguma viso que tivera em sonhos, e levantava-se para consultar os livros sagrados. Nessas ocasies, Prem pedia sempre um jarro de cerveja e alguns bolos de mel. Explicara a Sato que a astrologia e a astronomia, j para no falar das vises, lhe aguavam o esprito e estimulavam o apetite, mas referira isso com um sorriso desdentado e Sato ficara na dvida se o ancio no estaria a troar de si. Prem era um homem curioso. Tinha uma cabea pequena, com os ossos e as veias muito marcados, mas era um verdadeiro repositrio 60
de conhecimentos e sabedoria; um homem de provecta idade que estudara na Casa de Vida e orara no Templo de Hrus desde a infncia. Precisamos de Hrus costumava dizer o velho sacerdote. O Falco Dourado do Egipto com os seus olhos de diamante. Ele o nosso protector. Com as suas asas argnteas abertas, Hrus protege o Egipto contra os ataques sbitos do Anjo da Morte, esse demnio que se lana dos cus para se mear a dor, a fome e a guerra! Sato fez uma pausa para recuperar o flego e olhou para o alto, onde reinava a escurido. A torre era muito antiga, toda em pedra e rodeada de rvores e jardins. Elevava-se bem acima no cu. Algumas pessoas afirmavam que os Hicsos a haviam construdo como fortaleza para manter o povo dos Nove Arcos subjugado. Agora, fazia parte da academia e era usada por quem estudava os cus. Vamos l... suspirou Sato. Chegou ao patamar, pousou a bolsa de cabedal que trazia, desapertou o coado cinturo de guerra e lanou-o para um canto. Prem era mesmo um homem curioso. Dizia-se que, enquanto jovem, combatera os ltimos hicsos; sem dvida que temia aquela torre e os fantasmas e demnios que talvez a assombrassem. Sato bateu porta dos aposentos. Pai divino? No obteve resposta. Deve estar l em cima no terrao murmurou Sato. Subiu os degraus. Tal como esperava, a porta que dava para o terrao encontrava-se aberta. Sato empurrou-a e olhou para fora. O cu nocturno estava limpo, as estrelas bem visveis. E l estava Prem, de costas para ele. Tinha o chapu de palha na cabea, para o proteger das brisas frias da noite, e um xaile grosso e branco sobre os ombros arqueados. Pai divino, estou aqui. O sacerdote ergueu uma mo como resposta e baixou a cabea. Sato suspirou, fechou a porta e arrastou-se escada abaixo. Prem estava ocupado com as cartas e mapas dos cus que mostravam as diferentes constelaes. Era uma noite afortunada que o templo marcara como propcia para o estudo 61
dos cus. O velho sacerdote iria procurar a Cabea do Cisne ou a Estrela dos Milhares, ou qui uma das grandes estrelas cadentes que descrevia como centelhas do fogo eterno. Sato acomodou-se num banco e observou as estranhas pinturas que decoravam a parede. Grifos de olhos flamejantes e lnguas negras bifurcadas perseguiam lees e outras criaturas por uma paisagem cor de sangue. Homens em estranhas armaduras seguiam-nos de quadriga. Sato interrogou-se se seriam aqueles os Hicsos, caadores cruis e rapaces. Ouviu um som e empertigou-se. Seria o vento? Ou algum animal rastejando escada acima? Levantou a tnica e olhou ansiosamente em redor. Examinou o poo da escadaria em trevas e os degraus, atento presena de serpentes e escorpies. Nada. Seriam fantasmas? As concubinas, essas tagarelas, estavam sempre a aterrorizar as crianas com histrias sobre o passado do templo, sobre as criptas e passagens escuras que existiam sob ele e que se dizia serem habitadas pelos fantasmas daqueles que os Hicsos haviam chacinado. Sato escutara algum contar que os cruis invasores haviam usado panteras para perseguir homens. Desejou que Prem deixasse as observaes e descesse; poderiam assim ir dormir e ter um pouco de paz, pois os tempos eram difceis. Os sumos sacerdotes dos outros templos tinham-se reunido com o pretexto de discutir teologia, embora toda a gente conhecesse o verdadeiro motivo. A rainha Hatusu autoproclamara-se fara. Poderia a casta sacerdotal aceitar tal coisa? O exrcito adorava Hatusu devido sua vitria. Os mercadores, banqueiros e comerciantes bajulavam-na, pois o comrcio fora restaurado e expandira-se. Porm, os cortesos, os que haviam seguido o gro-vizir Rahimere, agora desacreditado, ainda esperavam derrot-la. Deixem-na governar, zombavam, mas ser que os deuses a favorecem? Sato escutou a porta do terrao abrir-se, a respirao ruidosa de Prem e o som de passos medida que este descia lentamente os degraus. O servo levantou-se. Algo tiniu no cho e rolou escada abaixo. Sato apressou-se a segui-lo, at que o anel se deteve. Apanhou-o e, quando voltou a subir, Prem tinha j aberto a porta dos seus aposentos e entrado. Deixa-o em cima da mesa murmurou Prem. O velho 62
sacerdote estava sentado num banco de costas para a porta. Com a mo, apontou para a mesa que se encontrava junto porta. Sato obedeceu. Deixou o quarto, fechou a porta e o sacerdote, como de costume, trancou-a. Sato voltou ao seu banco. Abriu a sacola de cabedal, mordiscou o bolo de trigo que a guardara e quase se engasgou com o terrvel grito que ressoou do quarto do sacerdote. Nunca ouvira nenhum ser humano gritar daquela forma, expressar assim tamanha agonia e horror! Sato deixou cair o bolo, ps-se de p de um salto e comeou a bater na porta do quarto do sacerdote. Pai divino! Pai divino! Nem resposta. Correu escada abaixo, escorregou e torceu o tornozelo. Praguejando e coxeando, chegou ao fundo da torre, abriu a porta e saiu para o jardim, gritando por socorro. No se atrevia a deixar a torre. E se o assassino ainda l estivesse e tentasse escapar? Correu de volta para a entrada e continuou a berrar o mais alto que podia, apenas parando quando os guardas atravessaram o jardim com as espadas desembai-nhadas. Havia ainda outras pessoas que se precipitavam em direco a ele: sacerdotes de outras casas do complexo do templo. o pai divino Prem! Os guardas empurraram-no para o lado sem contemplaes e correram escada acima. Sato seguiu-os. A escadaria ficou apinhada. Sato empurrou a porta do quarto, mas esta continuava trancada. O divino sacerdote foi atacado arquejou. Ouvi-o gritar. A janela! indicou um dos guardas. Impossvel bradou outro. - muito alta. Nunca ouviste falar de cordas? escarneceu o capito da guarda. Os guardas desceram e de novo Sato foi empurrado para fora do caminho. Trouxeram um tronco de sicmoro para ser usada como arete e, sob as ordens do capito, arremeteram contra a porta. A fechadura de madeira do lado de dentro cedeu, os pregos de bronze deformaram-se e a porta tombou para dentro assim que as dobradias de cabedal deixaram de oferecer resistncia. Os guardas passaram por cima da porta seguidos por Sato. 63
O quarto cheirava a gua de rosas, a pergaminho e a mais qualquer coisa, ao odor ferruginoso dos matadouros. Prem estava esticado sobre a cama; o seu velho chapu de palha rolara para o cho e aquela cabea sbia e anci repousava numa poa de sangue que encharcara a almofada e os lenis. Sato voltou-se para vomitar numa bacia de cobre que estava a um canto. Os sacerdotes chegaram, liderados por Hani, sumo sacerdote do templo. Pelo flego de Hrus exclamou Hani , a cabea dele foi esmagada! Sato acercou-se da cama. O sumo sacerdote tinha razo: a testa do velho padre estava comprimida para dentro. Em cada lado da sua cara viam-se cortes profundos, como se tivessem sido provocados pelas garras de um enorme felino. Dir-se-ia que esteve aqui um animal declarou o capito da guarda. Mas como? indagou Hani. Sato olhou por cima do ombro. As persianas de madeira estavam fechadas. Atravessou o quarto e foi abri-las. Inalou o ar da noite e olhou para baixo. Era uma altura vertiginosa. L em baixo, segurando archotes, os guardas olharam para cima. No h sinal de ningum nem de qualquer escada de corda gritou um soldado. Apontou para a base da torre. O cho est hmido e lamacento, mas no h quaisquer pegadas. Sato fechou as persianas. Que disseram os guardas? perguntou Hani. Sua Santidade, quem quer que tenha morto o sacerdote Prem no saiu pela janela. Mas isso impossvel resmungou o capito. A porta ainda estava trancada por dentro. Verifiquem o terrao! ordenou Hani. Os guardas apressaram-se a cumprir a ordem, subindo ruidosamente os degraus. Regressaram com um ar abatido. Nada, Sua Santidade, a no ser uma pequena mesa e duas almofadas. O quarto ficou em silncio. Sato sabia o que os soldados estavam a pensar. A torre era assombrada por demnios. Teria 64
alguma fora, alguma sombra negra, sado do Alm e assassinado o pai divino de forma to horrenda? Hani aproximou-se do sacerdote e esticou gentilmente um lenol sobre o rosto desfigurado de Prem. Levem o corpo para a Casa da Morte instruiu. Deixemos os embalsamadores fazerem o seu trabalho. Hani encaminhou-se para a porta, depois deteve-se e voltou-se com a cabea bem erguida. Com o seu apurado nariz sondava o ar, ao mesmo tempo que varria o quarto com os olhos. Vou ao palcio anunciou. Esta a segunda morte que ocorre no nosso templo. O divino fara tem de ser informado! O teu lbio superior Isis, O teu lbio inferior Nftis. O teu pescoo a deusa, Os teus dentes so espadas, A tua carne Osris, As tuas mos so almas divinas. Os teus dedos so serpentes azuis, Os teus flancos so duas penas da nossa Lua. s nosso pai e ns somos teus filhos. s o basto do idoso, s o pai adoptivo da criana. s o po dos aflitos. s o vinho dos sedentos. s o escudo dourado do Egipto. Amerotke permaneceu ajoelhado com a testa tocando o cho da grandiosa Sala de Audincia, paralela sala onde ocorriam os banquetes da Casa do Milho de Anos. Nuvens brancas de incenso elevavam-se de vasos de prata e misturavam-se com o aroma agridoce das ervas aromticas e com a forte fragrncia das rosas e inmeras grinaldas de flores colocadas em redor da sala. sua frente, num estrado com pilares estucados, pintados de azul, verde e amarelo e encimados por uma fila de cobrascapelo douradas, estava Hatusu, rainha e fara do Egipto. Amerotke escutou os coros que permaneciam de p de 65
ambos os lados do Altar Divino. Sentia-se desconfortvel, mas, para observar o protocolo e a etiqueta, manteve a cabea encostada ao cho. As paredes de ambos os lados da sala brilhavam de pedras preciosas e as estrelas de prata, no tecto verde-gua, reflectiam e misturavam-se com os raios de sol no cho de mrmore azul. O juiz supremo percebeu que estava a ser-lhe concedida uma grande honra. O fara convocara-o quela magnfica sala para que todo o Egipto fosse testemunha da grande estima que tinha pelo juiz supremo da Sala das Duas Verdades. Os cnticos pararam, extinguindo-se como uma cano na brisa. Podes levantar-te. Amerotke assim o fez, procurando uma posio mais cmoda na almofada de penas por baixo dos seus joelhos. Hatusu estava sentada no grande trono de alabastro ornamentado a ouro e marfim e guarnecido de maravilhosas pedras preciosas. As suas sandlias incrustadas a jias descansavam num escabelo com patas de leo. Dos seus ombros, sobre o vestido de li-nho branco, pendia o precioso nenes, a capa divina dos faras do Egipto. Para essa ocasio, Hatusu escolhera usar o toucado do abutre com o seu disco de ouro entre penas de avestruz tingidas. Amerotke observou o belo rosto moreno de Hatusu que revelava uma expresso impassvel. Tinha acabado de completar o seu vigsimo Vero e j empunhava o basto e o mangual e governava a Terra dos Dois Reinos. Os seus olhos delineados com kohl fixavam um ponto mais ao fundo da sala; as unhas das mos, pintadas num tom rosa-claro, agarravam os braos do trono, talhados em forma de uma chita no momento de atacar. sua direita, de tnica branca, via-se Senenmut, de rosto sorridente e radiante. Mantinha uma das mos pousada suavemente no trono, enquanto que com a outra acariciava o peitoral de ouro que o proclamava como primeiro-ministro de Hatusu e gro-vizir do Egipto. Senenmut tossiu e piscou o olho a Amerotke. O juiz supremo corou. Estava a ser objecto de uma grande honra e devia responder. Vejo o teu rosto, Ser Divino. O teu esplendor como ve o meu corao. A minha alma enche-se de prazer por contemplar a tua majestade. Amerotke fez uma vnia. 66
Senenmut bateu palmas suavemente, sinal de que a audincia terminara. Os guardas, nos seus toucados azuis e brancos, couraas de bronze e saiotes de couro com ornamentos de metal, deram meia volta e marcharam em direco porta com a lana numa das mos e escudo retratando o emblema do Regimento de bis na outra. Amerotke permaneceu ajoelhado. Surgiram ento dois servos que correram uma cortina de seda dourada pela frente do estrado, resguardando o fara divino dos olhos dos mortais. Amerotke continuou espera. O guardio dos perfumes, o porta-sandlias do fara, o portador do leque real, os camareiros e outros criados abandonaram a sala. Amerotke espreitou por cima do ombro. Perto das portas revestidas a prata j s restavam alguns soldados. Senenmut apareceu, caminhando entre as colunas na sua direco. Esticou ambos os braos e ajudou Amerotke a levantar-se. Um pouco cansativo declarou o gro-vizir com um sorriso , mas Sua Majestade insiste em mostrar o seu divino esplendor, bem como em demonstrar a toda a Tebas o quanto aprecia o seu juiz supremo da Sala das Duas Verdades. Os joelhos so o que mais sofre respondeu Amerotke , mas suporta-se. A Hatusu receber-te- agora. Senenmut conduziu-o ao longo de uma estreita galeria cujas paredes se encontravam pintadas em cores brilhantes. Amerotke reparou com divertimento que todas as pinturas eram frescas, representando a grande vitria de Hatusu sobre os Mi-tnios, poucos meses antes. Hani, sumo sacerdote de Hrus, esperava na antecmara. A seu lado encontrava-se a sua esposa, Uechlis, mulher alta e de rosto afilado, com os olhos muito pintados e as mas do rosto cobertas de rouge. Cada uma das madeixas da cabeleira preta que lhe chegava aos ombros era presa por um pequeno tubo de prata. Uma mulher de porte altivo, olhos brilhantes e lbios finos. Amerotke conhecia-a desde a infncia. Saudou-a com uma vnia. uma alegria ver-te. Uechlis respondeu ao cumprimento com um sorriso. O mesmo digo eu, Amerotke. As tuas aces e as tuas 67
palavras so j famosas por toda a Tebas. Uechlis aproximouse dele e estreitou-lhe o rosto entre as mos. Tinha os olhos marejados de lgrimas. Parece que foi ontem que passeei contigo pelos jardins do templo para te mostrar um rouxinol. Eras um rapaz to calado, mas to perspicaz! Precisamos de ti, Amerotke. Tens de participar na reunio no Templo de Hrus. A tua presena ajudar o divino fara e a causa do meu marido. Amerotke despediu-se com nova vnia e seguiu Senenmut at cmara privada da rainha. As paredes de pedra calcria branca no revelavam qualquer adorno. Hatusu despojara-se de todas as insgnias reais. Estava sentada numa almofada com as costas apoiadas contra a parede. Pela janela aberta por cima da sua cabea entrava a brisa da tarde e ela abanava a tnica para aproveitar o fresco. Por tudo o que mais sagrado queixou-se a rainha , o poder e a majestade so muito cansativos! Fecha a porta, Se nenmut. Levantou a mo para que Amerotke a beijasse e depois apontou para umas almofadas. Fica vontade. Amerotke e Senenmut sentaram-se no cho frente ao seu fara. O juiz supremo sentia-se um tanto incomodado. Hatusu tinha agora o mesmo aspecto que qualquer outra rapariga, os olhos brilhantes e os lbios entreabertos como se houvesse estado a danar em alguma festa e tivesse vindo ali para descansar. Recordou-se de como, anos atrs, costumava encontrar-se com ela na corte do seu pai. Sentavam-se como agora e contavam histrias um ao outro. Naquele momento, essa jovem mulher que assumira a coroa de fara, e que insistia em que lhe fossem prestadas todas as dignidades, sentava-se como uma mulher no mercado, pronta a partilhar das coscuvilhices da vizinhana. Queres tomar alguma coisa? perguntou ela. Temos vinho branco e sumo de fruta Amerotke abanou a cabea. Custou-te muito estar de joelhos? acrescentou ela com um sorriso traquinas. Majestade respondeu Amerotke graciosamente , valeu a pena cada segundo. Hatusu lanou a cabea para trs e soltou uma gargalhada. 68
Inclinou-se depois para a frente e deu-lhe uma palmada no ombro. s um pssimo mentiroso, Amerotke. Ficou com uma expresso grave. Soube do ataque de que foste vtima no tribunal s mos do malvado Nehemu. Ordenei que o cadver fosse exposto na muralha. O seu olhar era duro. Uma clara advertncia de que ningum levanta a mo contra os funcionrios do fara! Pegou num leque e abanou-o frente ao rosto. Ento, o filho do Omendap foi acusado de homicdio? - o que o delegado real pretende. Alega que os dois camaradas do Ramose no se perderam no labirinto da Sala do Mundo Inferior, mas que o jovem os matou e enterrou os corpos no deserto. Algum tempo depois, apareceu um nmada, provavelmente com a inteno de roubar qualquer objecto valioso da quadriga, e foi morto por um leo. O Ramose ficou com os cavalos deles? Um assassino no faria tal coisa declarou Hatusu. O rapaz admite ter ido para as Terras Vermelhas procura dos companheiros. Mais uma vez, no parece provvel que um homicida confessasse semelhante coisa. Amerotke abanou a cabea. Isso, minha rainha, no verdade. Antes de sair do tribunal, estudei as provas apresentadas pelo delegado. De acor do com estas, o Ramose pegou nos cavalos e regressou a Tebas. Comeava a anoitecer. No decorrer normal dos acontecimentos, teria chegado cidade sem que ningum desse conta. O delegado real afirma que pode apresentar testemunhas que confirmam que o Ramose no disse a ningum onde ia ou o que pretendia fazer. Limitou-se a informar um dos servos de que ia dar um passeio pelas margens do Nilo e que no demoraria. Senenmut fez um ar srio e olhou de relance para Hatusu. Porm, a quadriga do Ramose sofreu uma avaria no regresso prosseguiu Amerotke. Nada de grave, apenas uma roda que se soltou, o que o obrigou a parar. Um dos cavalos que levava soltou-se, fugiu e cruzou-se com uma patrulha de cavalaria. Um dos soldados agarrou o animal, seguiu-lhe o rasto e encontrou o Ramose, prestes a retomar viagem. 69
De acordo com o testemunho do soldado, o Ramose tentou fugir. Soltou o outro cavalo que levava e partiu a todo o galope, como se todos os demnios do mundo inferior o perseguissem. Mas as rodas voltaram a soltar-se interrompeu Senenmut. - Assim . O Ramose viu-se novamente forado a parar. A patrulha comeou a ficar muito desconfiada. Perceberam que os cavalos que o Ramose levara eram de grande qualidade. Na verdade, um deles tinha o ferro do Pechedu. E por que motivo o oficial responsvel no enviou uma patrulha a essa tal Sala do Mundo Inferior? inquiriu Senenmut bruscamente. Anoitecia respondeu o juiz. Os cavalos estavam cansados. Para alm disso, no levavam muitas provises e queriam interrogar o Ramose um pouco mais. Quantas pessoas esto ao corrente de tais pormenores? Por esta altura, minha rainha, quase toda a cidade. E parece que todos acreditam que o filho do Omendap mente. Ora bem... Senenmut apoiou os cotovelos sobre os joelhos e juntou as pontas dos dedos. Temos a histria do Ramose e as alegaes do delegado real. J estou a ver as intenes escondidas naquele seu cerebrozinho astuto. Vai fazer o tribunal crer que o Ramose deixou Tebas em segredo, se dirigiu Sala do Mundo Inferior, matou os dois amigos, enterrou os corpos na areia e lhes levou os cavalos com a inteno de os fazer desaparecer. Se a patrulha no se tivesse cruzado com o Ramose, os viajantes das areias, os habitantes do deserto ou os salteadores lbios teriam acarretado com as culpas. - Nem mais concordou Amerotke. Algum referiu que foram encontradas pegadas dos dois homens desaparecidos na entrada do labirinto referiu Hatusu. Amerotke olhou pela janela. Norfret estaria sua espera, e onde se teria enfiado Chufoi? Prenhoe dissera que o haviam visto a falar com Maiarch, a cortes. O juiz mordeu o lbio inferior. Teria Maiarch feito ao ano a mesma proposta que lhe fizera a ele? 70
Meu juiz chamou Hatusu, inclinando-se para a frente e apertando-lhe o joelho com a mo , esperamos ansiosamente as tuas palavras. As pegadas que conduzem ao labirinto no significam nada murmurou Amerotke. Tudo o que provam, caso sejam mesmo as pegadas dos dois oficiais, que estiveram na entrada do labirinto. Mas poderia o Ramose matar dois soldados? inquiriu o gro-vizir. Porque no? Amerotke passou as costas das mos pelos lbios. Suponhamos que foi at l na sua quadriga. Os dois companheiros esto cansados, talvez mesmo brios; no esqueamos que levaram um odre de vinho. Encontram-se na entrada do labirinto quando o Ramose chega. Saem ao seu encontro, cambaleando, insultando-o e provocando-o. O Ramose um excelente arqueiro. Puxa de duas flechas da aljava e os dois homens esto mortos num abrir e fechar de olhos. O Ramose apeia-se da quadriga, arrasta os corpos para longe do labirinto e enterra-os. Faz o mesmo com as armas deles. Recordo que, para alm do odre de vinho e de uma taa partida, no se encontrou mais nada. O delegado real pode argumentar que quando o Ramose deixou Tebas no tinha a inteno de matar os companheiros, mas que acabaram por se envolver numa briga que levou ao derramamento de sangue e que o Ramose fugiu depois de esconder os corpos. Ento concluiu Hatusu , o filho do Omendap s poder escapar sentena se os dois oficiais forem encontrados, mortos ou vivos. Se aparecerem vivos, acabamse os problemas; se aparecerem mortos, o Ramose continuar a ser suspeito da morte deles at que se prove no ter tido qualquer envolvimento no crime. por isso que estou aqui? perguntou Amerotke bruscamente. O divino fara conceder-me- a graa da sua infinita sabedoria? Hatusu inspirou com um sibilo agudo. No interfiro no trabalho dos meus juizes! declarou de modo contundente. Pois claro que no, pensou Amerotke, a no ser que tenha 71
mesmo de ser. Fez girar o anel do seu cargo no dedo. Se Hatusu tentasse manipul-lo, renunciaria ao seu cargo e assunto encerrado. No queria tornar-se motivo de chacota nas tabernas e que o considerassem um fantoche de Hatusu, um homem que facilmente se podia comprar e vender. Calma, Amerotke murmurou Senenmut, pousando a mo no brao deste. Pergunta a ti mesmo uma coisa: ser o Ramose um assassino? J conheci muitos viles de sorriso no rosto. Diz-se que as guas calmas escondem os fundos mais traioeiros. Ests preocupado, no assim? Se o Ramose for declarado culpado, perdes a amizade e o apoio do Omendap, teu comandante supremo. Se o caso for arquivado, perders a riqueza e ajuda do Pechedu, pai dos dois rapazes desaparecidos. No se poder chegar a um compromisso? perguntou Senenmut. Teramos de esperar at que se recolham mais provas e ver ento se se poderia chegar a um acordo. Irs at l? indagou Hatusu At Sala do Mundo Inferior investigar por ti mesmo? - claro, minha rainha. S os deuses sabem o que h naquele labirinto. No vs brevemente disse ela em voz baixa. Puxou pela tnica de tal forma que deixou a descoberto um dos seus perfeitos seios, com o mamilo pintado a tinta dourada. Amerotke desviou o olhar rapidamente e Hatusu riu num tom brejeiro. Estou a ver que a Norfret te mantm ocupado, meu juiz. No tanto como Sua Majestade. A risadinha juvenil fez-se novamente ouvir. O filho do Omendap pode esperar disse ela pausadamente. Enviei batedores s Terras Vermelhas a ver o que descobrem. Tenho outros assuntos para ti, Amerotke. J ou-viste os rumores sobre os sumos sacerdotes? Ah, sim, a reunio no Templo de Hrus. muito importante declarou Senenmut. Tirou o peitoral, apoiou-o no joelho e, com o dedo, seguiu delicadamente o contorno rendilhado que demarcava a figura do deus 72
Osris. ascendncia divina por parte do pai, como fora concebida pelo prprio Amon. Ests a A estrondosa vitria da nossa divina rainha contra os par da Mitnios continuou Senenmut , a destruio dos situao seus inimigos e a aclamao do povo confirmaram o seu , verdadeiro destino. Amerot S te resta esperar pela aprovao dos sacerdotes ke. A rematou Amerotke , e esse destino ficar selado. Hatusu Quero que te juntes reunio amanh anunciou fara Hatusu com uma expresso divertida nos seus olhos por azuis. Falars em meu nome, Amerotke. Sers o decreto paladino da minha causa. Tu, o Hani, sumo sacerdote de divino, Hrus, e a Uechlis, sua esposa. herdeira No ters partidrios mais fervorosos respondeu o ao trono juiz supremo. Tens razo, os assuntos na Sala das por ser Duas Verdades podem esperar, mas o que se passa? filha de Bom, Amerotke disse Hatusu, sorrindo , que um Tut-ms dos teus velhos amigos decidiu intervir. Amerotke fez Primeir um ar intrigado. Assassnio explicou ela. A mo o e por de Set, o senhor do mal! ter sido concebi da por Amon no ventre de sua me. Am erotke manteve uma express o impass vel. Era esta a propaga nda que se escutav a por toda a cidade, que se via nas pinturas dos templos , em pilones e em oraes esculpid as nos santuri os e monum entos reais. Hatusu tinha no s
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Amerotke teve de esperar um pouco. Senenmut empilhou as almofadas e disps as cadeiras para que tudo tivesse um aspecto mais formal. As aparncias so tudo murmurou ele maliciosa mente. Hatusu estava sentada numa cadeira, como se num trono, com Senenmut e Amerotke diante dela em dois tamboretes mais baixos, quando o sumo sacerdote Hani e Uechlis entraram. A rainha terminou rapidamente com as formalidades, permitindo que o sumo sacerdote e a esposa lhe beijassem o p antes de lhes indicar os tamboretes sua frente. Majestade, viemos directamente do templo disse Uechlis. O pai divino Prem foi assassinado de forma horrenda. Descreveu resumidamente as circunstncias que rodearam a morte do sacerdote. O seu marido estava agitado. Oficialmente conhecido como Hrus, o rosto contrado de Hani poucas semelhanas apresentava com o deus-falco a quem servia. Uechlis era de um temperamento mais firme; de rosto duro, os seus olhos brilhavam de cada vez que mirava Hatusu. Amerotke escutou o relato, fascinado. A maioria dos assassinatos eram torpes, maliciosos e reveladores de pouca preparao prvia. Este era diferente. Quando Uechlis terminou, Hatusu voltou o seu olhar para Amerotke. De acordo com as provas, juiz supremo disse a rai nha , o pai divino morreu vtima do ataque de um felino
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selvagem. Mas... Hatusu olhou para o sumo sacerdote havia algum indcio da presena de tal animal nos aposentos? Hani abanou a cabea. Sabe-se de algum que desejasse a sua morte? Nova resposta negativa. Era muito estimado fez notar Uechlis. Um ancio erudito. Quem desejaria matar um pobre velho de forma to hedionda? E h ainda a outra morte. verdade, gro-vizir confirmou Hani. O Neria, o nosso arquivista e chefe dos bibliotecrios. Desceu s antigas galerias sob o templo. Como sabe, no centro encontra-se o tmulo do mais antigo fara do Egipto, Mens, da linhagem do Escorpio. Foi no dia em que Sua Divina Majestade visitou o templo. Hani fez uma pausa. Todos os visitantes e convidados descansavam depois da festa. Um servo viu fumo a sair do poo da escadaria que conduz ao tmulo e deu o alarme. Abanou a cabea lentamente. Uma viso terrvel murmurou. O Neria devia estar j a subir as escadas. Algum abriu a porta, despejou leo sobre ele e ateou-lhe fogo. No restava mais nada a no ser carne carbonizada. E crs que esses crimes tm alguma coisa a ver com a reunio dos sumos sacerdotes no teu templo? inquiriu Amerotke. Talvez respondeu Hani , mas so todos homens santos, carregam os nomes dos deuses do Egipto: Isis, Osris, Amon, Anbis, Hathor. Cinco ao todo, seis se me inclurem a mim. Mas insistiu o juiz supremo os crimes s comearam quando eles chegaram. H quanto tempo dura a reunio? Dois ou trs dias. At agora s discutimos assuntos mundanos: rendimentos, impostos, as escolas da Casa de Vida, os ritos e rituais dos diferentes templos confessou Hani envergonhadamente. Comemos a discutir a subida ao trono do divino fara, mas, para ser franco, no fizemos grandes progressos. Ento, quem insistiu que a pretenso de Sua Majestade ao trono do Egipto fosse tema de debate posterior? Hani encolheu os ombros. 75 No sei, meu senhor Amerotke. Ora, ora interveio Senenmut, impaciente. bem sabido que os sumos sacerdotes, excepto tu e a tua esposa, no se mostraram muito entusiasmados na hora de aceitar a vontade dos deuses. Ns... Olhou de relance para Hatusu. Ns decidimos fazer um pouco de presso, inquirindo a opinio deles. Encolheu os ombros. Algumas pessoas acham que foi um erro. No o nosso caso. Pelo menos, a questo agora do domnio pblico, mas... acrescentou com um tom de advertncia exigimos o apoio deles. So tradicionalistas argumentou Hani. Testemunharam a agitao provocada por... Hesitou, olhando temerosamente para Hatusu. - Di-lo, meu senhor Hani proferia a rainha num tom firme. Cospe as palavras que o teu corao esconde. Os Hicsos foram rechaados continuou Hani, falando quase de rajada. Durante os ltimos sessenta anos, a Terra dos Dois Reinos conheceu a paz, a segurana e o poder no estrangeiro. Porque haveriam eles de aceitar uma rainha como fara, quando h um... A voz esmoreceu-se-lhe. Herdeiro. O filho do fara Tutms concluiu Ue-chlis por ele. Majestade, limito-me a repetir a opinio geral. Os sumos sacerdotes acham que devia ser o rapaz a usar a dupla
coroa do Egipto. De onde surgiram tais rumores? perguntou Amerotke. Uechlis esboou um sorriso. Ns, mulheres, somos consideradas umas terrveis mexeriqueiras, porm no somos nada quando comparadas com um bando de sacerdotes. Isso no maneira de falares dos teus irmos! censurou-a Hani. Uechlis mirou-o desdenhosamente antes de desviar o olhar. E em que direco prosseguir o debate? indagou Amerotke. O que convencer este bando de sacerdotes, como tu lhes acabaste de chamar, de que a Hatusu reina por decreto divino? Um estudo do passado respondeu logo Hani. Um exame crtico dos arquivos, dos antigos manuscritos. 76
Ah! Amerotke levantou uma mo. Ento foi esse o motivo dos assassnios do Neria e do Prem. Eram ambos estudiosos da histria do Egipto, no assim? Hani acenou com a cabea em sinal de assentimento. Apostava um jarro de incenso dourado em como as suas simpatias eram bem conhecidas. Eram da mesma opinio que ns respondeu Ue-chlis. Que a Hatusu foi concebida divinamente, que a sua extraordinria vitria sobre os Mitnios, bem como o triunfo sobre os seus inimigos na prpria ptria, so sinais evidentes do direito da divina Hatusu de governar. A Hatusu controla o exrcito, o povo realou Amerotke. Que pode este corrilho de sacerdotes dizer? Que a nossa rainha no tem qualquer direito ao trono? Vo despoj-la do basto, do mangual, da coroa e do nenesi No, no. Uechlis brincou com um dos canudos de prata da cabeleira. Tenho a certeza de que no seriam to ousados ou estpidos. Sua Majestade sabe o que acontecer. Uma campanha de maledicncia? sugeriu Senenmut. Sim, meu senhor. A oposio deles no ser forte como o vento, mas antes uma brisa suave e persistente que buscar qualquer descontentamento ou dissenso, sempre atenta a sinais e maus augrios. E, claro, estes assassnios comentou Hatusu sero encarados como sinais da desaprovao divina. Precisamente, Majestade confirmou Hani. s ir ao mercado, aos cais, ao Santurio dos Barcos, s tabernas, necrpole do outro lado do Nilo, ou at mesmo aqui, na Casa do Milho de Anos, e encontraremos os boateiros, ocupados como serpentes, deslizando em busca de uma oportunidade. E sou eu que devo acabar com eles? perguntou Amerotke. Majestade, no sou um erudito nem um telogo. - s o smbolo da nossa vontade divina respondeu-lhe Hatusu. Tens um esprito aguado e uma grande inteligncia. Defenders as minhas pretenses e apanhars este assassino. A rainha cerrou os punhos e endireitou-se na cadeira, os olhos flamejantes. Podes crer que farei com que o responsvel seja pendurado na muralha de Tebas! 77
Amerotke girou um pouco o seu tamborete para ficar frente a frente com Hani e a esposa. Estas mortes tm vrias coisas em comum declarou. Ambas as vtimas pertenciam ao vosso templo, ambas se interessavam pela histria do Egipto e ambas morreram em circunstncias muito misteriosas. Que ests a insinuar? inquiriu Hani. Que o assassino deve ser algum que conhece o Templo de Hrus muito bem. Ests a esquecer-te apontou Uechlis de que todos os sacerdotes do Egipto estudaram na nossa Casa de Vida e na sua Escola de Escribas. Amerotke assentiu com a cabea; era verdade, esquecera esse detalhe. O Templo de Hrus era famoso pela qualidade do ensino que ministrava e, porque albergava o corpo do primeiro fara do Egipto, era considerado um local especialmente sagrado, um santurio, um local de peregrinao. Dizes... Amerotke brincou com o anel que tinha no dedo mindinho. Dizes que este debate sobre a sucesso do divino fara provocou muita controvrsia entre os sacerdotes, excepto para ti, sumo sacerdote Hani, e para a tua esposa, que so os seus mais fervorosos partidrios. Mas quem no ? perguntou de imediato Hani. Os restantes sumos sacerdotes respondeu Hatusu. Esses no ocultam a sua hostilidade. E quem mais? indagou Senenmut. Sabeis bem quem, meu senhor respondeu Uechlis. Sengi o chefe dos escribas na nossa Casa de Vida. Manifestou abertamente a sua oposio ante os eruditos. O rosto de Hatusu ficou encarnado de raiva ao escutar o nome de Sengi. Mesmo na Sala das Duas Verdades, Amerotke ouvira falar desse brilhante estudioso, sem papas na lngua, apadrinhado pelo defunto marido de Hatusu, o divino Tut-ms II. Sengi no pertencia a qualquer faco, mas questionava constantemente que uma mulher pudesse sentar-se no trono do Egipto. Sengi conta com a ajuda de um sbio errante prosseguiu Uechlis , um homem famoso pelo seu domnio da 78
retrica. Esse velho amigo do nosso chefe dos escribas apressouse a vir a Tebas para oferecer o seu auxlio. Pepi! exclamou Hatusu. Sim, Majestade, Pepi. Amerotke franziu a testa. Recordou o tempo que passara na Casa de Vida do Templo de Maet. Ah, sim, Pepi. Um intelectual de visita que zombara das modas dos sacerdotes ao deixar crescer o cabelo, a barba e o bigode; alto, magro, com olhos trocistas e lbios acerados. Os sbios murmuravam que Pepi no acreditava em nada. Para ele no havia Horizonte Longnquo, deuses ou Campo dos Bem-Aventurados. Proclamava que a mumificao de corpos era um desperdcio de tempo e de valiosos tesouros, e que os mortos se convertiam em partculas sopradas pelo vento do deserto. Conheo esse Pepi disse Senenmut. Diz-se que um ateu. O meu marido devia t-lo mandado queimar escarneceu a rainha. Ele muito esperto, Majestade. Senenmut inclinou-se e esfregou as costas da mo de Hatusu, um sinal para que se mantivesse calma. O Pepi um erudito brilhante concordou Hani. O Sengi pagou-lhe para que viesse de Mnfis. O Pepi uma pessoa que aprecia o ouro, a prata e as pedras preciosas. Porque permitiste que entrasse no teu templo? perguntou Hatusu. Que podia eu fazer, Majestade? Hani encolheu os ombros e esticou as mos em sinal de impotncia. Amerotke reparou como os seus compridos dedos eram secos e enrugados, como as garras de um felino. O Pepi famoso, um mestre no debate. certo que acusado de vrias coisas, mas nunca se provou nada. Se o tivesse recusado, seria acusado de parcialidade. O Sengi no uma pessoa que perdoe com facilidade fez notar Uechlis. Afirmaria que o Templo de Hrus estava a tentar abafar o debate por ordem de Sua Majestade. Esse tal Pepi estuda agora no teu templo? perguntou Amerotke. 79
F-lo at ontem informou Hani. O Sengi e o Neria permitiram que entrasse na nossa biblioteca. Os nossos arquivos guardam valiosos manuscritos com centenas de anos. Albergam tambm uma coleco de inscries, desenhos e textos em lnguas que nem sequer conhecemos. E permitiste que semelhante velhaco entrasse numa biblioteca to prestigiada? exclamou Senenmut. Ora, ora, meu senhor Hani, o Pepi pode ser um intelectual famoso, mas o seu amor pelo ouro e pela prata bem conhecido. J foi acusado por outras bibliotecas e escolas da Casa de Vida de ter subtrado manuscritos. No me esqueci disso defendeu-se Hani num tom irado. E, consequentemente, o Pepi s obteve permisso para entrar na biblioteca acompanhado de dois guardas do templo. Sentaram-se mesa com ele e revistaram-lhe a sacola e a roupa antes de sair. Hoje no apareceu. O que queres dizer? perguntou Amerotke. Foram-lhe oferecidos aposentos, mas o Pepi gosta, como hei-de dizer, dos pequenos prazeres da vida. Ao que parece, h dois dias arrendou um quarto numa taberna perto do cais. Tpico desse freqentador de bordis! rosnou Hatusu. Um homem de gostos variados, segundo ouvi dizer. Devia ter vindo ao templo hoje continuou Hani, agora receoso da ira da rainha , mas no apareceu. E ento? inquiriu o juiz supremo. Mandei um guarda do templo at ao cais para ver se estava tudo em ordem. Foi o Sengi quem insistiu para que o fizesse. O Pepi estava de facto l e, de acordo com os rumores, a gastar dinheiro com grande generosidade. Verificaste se no faltava nada na biblioteca? perguntou Senenmut. Hani fez um ar assustado e abanou a cabea. Est a insinuar que o Pepi pode ter roubado alguma coisa? possvel respondeu Senenmut. Iria ficar com os dedos cheios de formigueiro diante de tantos manuscritos antigos. Nos cais encontraria compradores: mercadores ricos, sacerdotes de outros templos. 80
Eu ia organizar uma busca tartamudeou Hani , mas a morte do Prem, a minha vinda aqui... Hatusu interrompeu-os, batendo suavemente as palmas. Amerotke, j ouviste o bastante. Os casos que te esperam na Sala das Duas Verdades podem, como um bom vinho, amadurecer um pouco mais. Amanh de manh, o conselho de sacerdotes voltar a reunir-se e tu estars presente. Encarregar-te-s tambm de procurar este tal Pepi com toda a diligncia. Encontra-o e qui encontrars o assassino. O seu rosto iluminou-se com um sorriso amvel. Quanto a vs, meu senhor Hani e minha senhora Uechlis... Esticou a mo e abriu os dedos. Hani arquejou, surpreendido. Na palma de Hatusu estavam dois pequenos rolos de ouro puro com os hierglifos do selo pessoal de Hatusu. So vossos declarou a rainha. As marcas e os smbolos da minha amizade. Solucionem este caso de forma satisfatria e sereis proclamados como amigos ntimos do divi no fara. Fez um gesto com a mo, indicando que a reunio estava terminada. Hani, Uechlis e Amerotke apressaram-se a ajoelharse e a prestar obedincia. No entanto, enquanto o fazia, Amerotke ocultou o medo que o assolava. Hatusu tinha razo. No Templo de Hrus ocultava-se o destruidor, o perigoso Set, deus da morte sbita e do assassnio. Chufoi estava seguro de que atravessara o Horizonte Longnquo e se encontrava no Campo dos Bem-Aventurados. Maiarch, rainha das cortess, convidara-o para uma das suas selectas casas perto do Santurio dos Barcos. No era um prostbulo vulgar, mas uma verdadeira casa do prazer com sales frescos e tanques de gua entre as colunas pintadas com cores brilhantes. Chufoi descansava no canap. As concubinas giravam em torno dele, os seus corpos desnudos e esbeltos cuidadosamente depilados e untados, os lbios pintados, os olhos delineados com kohl, as unhas das mos e dos ps pintadas de carmim. Uma trouxe-lhe uma taa de cermica cheia de flores de ldo para obsequiar o seu olfacto, outra ofereceu-lhe talhadas 81
de melo doce e fresco para lhe aplacar a sede. Chufoi agradeceu languidamente a ambas. Voltou-se para contemplar um grupo de raparigas nuas que jogavam a uma mesa e, entre risadinhas e murmrios jocosos, dispunham as peas de terra-cota esmaltada com a forma de gazelas, lees e chacais. Por trs do canap, duas concubinas agitavam grandes penas de avestruz fortemente perfumadas. Chufoi olhava em redor e gemia de prazer. As paredes estavam decoradas com cenas pintadas em cores vivas: pssaros a esvoaarem sobre roseiras, gazelas escondidas entre a folhagem, peixes que saltavam da gua azul. De um canto da sala ecoavam os acordes de harpas e liras. Uma rapariga de Cucha aproximou-se do canap, ajoelhou-se e comeou a cantar: Ela levou-me pela mo. Fomos passear pelo seu jardim. Deu-me a comer mel tirado do corao do favo. Os juncos eram verdes, os arbustos cobertos de flores. As groselhas e as cerejas mais encarnadas que os rubis. O jardim era fresco e arejado. Ela deu-me um presente: Um colar de lpis-lazli com lrios e tlipas. A rapariga terminou a cano e retirou-se. A msica soou mais forte; apareceram danarinas com os mamilos pintados de azul e as perucas presas atrs. Chufoi fechou os olhos. Isto que viver murmurou. Um homem deve gozar o descanso que merece, e o corpo necessita de ser mimado tanto quanto a alma. Chufoi! Conheo esta voz. O ano abriu os olhos. Amerotke caminhava na sua direco, com Maiarch a seu lado, gesticulando sem cessar. Meu senhor juiz! queixou-se ela. Se no podemos agradar-lhe a si, pelo menos permita que satisfaamos o seu servo. 82
Chufoi olhou para o amo com uma expresso de splica. Deixa-me ficar aqui, amo! Deixa-me boiar como um lrio num lago. Eu j te dou os lrios! replicou Amerotke. Voltou-se para a rainha das cortess. Senhora Maiarch, o juiz supremo no pode aceitar presentes, nem to-pouco os seus servos. Assim que terminou de proferir estas palavras, apercebeu-se do quanto soavam ridculas e pomposas. Olhou de novo para Chufoi. Podes ficar, se quiseres. Eu tenho de regressar a casa. O ano girou as suas pequenas pernas para fora do canap e levantou-se. Pegou na mo de Maiarch e beijou-lhe os dedos sapudos. Fica para outra vez, minha senhora. Tenho assuntos a tratar com o meu amo. Pegou no seu pra-sol e na bolsa. Assegurou-se de que nenhuma das raparigas se servira das suas mezinhas e unguentos e apressou-se a seguir o juiz. Nas ruas reinava grande bulcio. Senhoras e cavalheiros da aristocracia desfrutavam da brisa do fim da tarde, os grandes da terra misturando-se com a gente da rua numa multido colorida e vibrante. Os nobres exibiam o seu orgulho e linhagem no luxo insolente das suas roupas e adornos. Os funcionrios regressavam do trabalho com grandes bastes nas mos, acabados de barbear e maquilhados, vestidos com mantos plissados e saias ondulantes. Os sacerdotes de cabea rapada avanavam em grupo como galinhas, ataviados nas suas tnicas brancas e joalharia ostentosa. A entrada de uma taberna, um grupo de soldados berrava uma cano militar: Aproxima-te e eu te contarei o que marchar na Sria. E lutar em terras distantes. Bebes gua estagnada e peidas-te como uma trombeta. Se regressares a casa, no s mais que um pedao de madeira carunchosa. Sers esticado no cho e morto. Amerotke abriu caminho por entre eles. De vez em quando, apertava o nariz para no sentir a mescla contrastante e repugnante 83
de odores: a gordura das cozinhas, o azeite do vendedor de figos, que esmagava a fruta e a misturava com azeite e mel. Nas vielas e azinhagas, os trabalhadores limpavam as cloacas e esvaziavam as latrinas. As moscas voavam em grandes nuvens pretas; os ces ladravam; as crianas, sem roupa, perseguiam-se umas s outras brandindo canas; as pessoas gritavam dos andares superiores; os guardas dos templos pavoneavam-se pelas ruas. Por fim, Amerotke e Chufoi viram-se livres da multido e prosseguiram caminho em direco s portas da cidade. O juiz deteve-se o olhou tristemente para o seu servo. Sinto muito desculpou-se. Peo desculpa, mas estava cansado. Eu tambm sinto muito respondeu Chufoi com um ar contrariado. A lngua deve dizer a verdade, o corao deve falar ao corao. Que ests para a a arengar, Chufoi? No me disseste nada sobre o ataque que sofreste esta manh no tribunal. Bateu com a ponta do pra-sol no cho e comeou a dar pulos de raiva. Depois parou e mirou o amo. Pensava que os amemets estavam todos mortos. Amerotke colocou a mo no ombro do ano e continuou caminho. No a primeira vez que a Corporao dos Assassinos cruza o meu caminho. Chufoi agarrou no pulso do amo. Mas tu disseste que estavam aniquilados, que tinham sido mortos no deserto. - possvel que alguns tenham sobrevivido argumentou o juiz. Os espies da Casa dos Segredos informaram-me que os amemets esto a reorganizar-se, que recrutaram novos membros. Deu umas palmadinhas na cabea de Chufoi. O ano afastou-lhe a mo e colocou o barrete. Deves saber mais sobre eles do que eu. Escutas os mexericos nos bazares e mercados. Chufoi acenou que sim. Adoram Mafdet, a deusa que toma a forma de um felino. Se jurarem matar-te... 84
Sim, sim, j sei tudo sobre os bolos de sementes de alfarroba interrompeu-o Amerotke. Farei algumas investigaes. Os amemets podem gostar de matar, mas gostam ainda mais de ouro. Amerotke permaneceu em silncio enquanto se aproximavam das portas da cidade. O capito da guarda saudou respeitosamente o juiz e franqueou-lhes a entrada sem problemas. Achas mesmo que Nehemu era um deles? perguntou Chufoi. Talvez no passasse de uma fanfarronada respondeu o juiz. No podemos fazer outra coisa a no ser esperar. Pediste aos teus amigos ao longo do rio que investigassem o tal Anefe? Sim, claro. Regressava de l quando me cruzei com Maiarch. E o outro assunto da Sala do Mundo Inferior? Logo se ver. Amerotke mirou o rio, ainda animado com o bulcio de barcas e barcos de transporte que se dirigiam ao cais da cidade. No vejo a hora de chegar a casa - murmurou. Mais uma vez, Chufoi, lamento o sucedido. O ano decidiu que j havia castigado o suficiente o amo e comeou a contar-lhe uma despudorada histria sobre um sacerdote, uma bailarina e uma nova posio que esta lhe havia oferecido. Amerotke no o escutou muito atentamente. Passaram pelas cabanas cinzentas que abrigavam os trabalhadores que afluam aos arredores da cidade em busca de trabalho e comida barata. Era um local rido e malcheiroso. Umas poucas accias e sicmoros ofereciam alguma sombra; o cho parecia salpicado de montes de lixo, o campo de ferozes batalhas travadas entre ces, falces e abutres. Alguns homens dedicavam-se a reparar os estragos que uma recente tempestade provocara nas suas casas de adobe. Outros mandriavam beira do caminho com os olhos inchados e, ao sorrir, mostravam os dentes estragados devido ingesto de farinha em ms condies e carne putrefacta. Amerotke parou para dar esmola. Chufoi no se calou nem um instante. Deixaram as barracas e entraram na zona onde ficavam as 85
manses dos altos funcionrios tebanos, protegidas por muros ameados e pesadas portas de madeira de cedro. Amerotke interrogou-se se Hatusu teria algum plano para distribuir a riqueza, para conter a ambio dos ricos e dar aos pobres a oportunidade de prosperar. Seria o assunto discutido no conselho real? Estava perdido em tais pensamentos quando Chufoi lhe puxou pela mo. Tinham chegado a casa e Chufoi batia na porta das traseiras com a sombrinha, reclamando entrada em nome de seu amo. As portas abriram-se. Amerotke penetrou no seu paraso privado, sentindo-se culpado pela pobreza que acabara de testemunhar. Aquele era o seu osis de paz. Macieiras, amendoeiras, figueiras e romzeiras cresciam ali em gloriosa profuso. Na horta abundavam os canteiros de cebolas, pepinos, beringelas e outros legumes que perfumavam o ar com os seus odores caractersticos. Seguido por Chufoi, Amerotke percorreu a vereda e subiu os degraus que conduziam ao vestbulo. Norfret esperava-o. Descalou-lhe as sandlias, trouxe gua para lhe lavar os ps e as mos e um frasco de alabastro com leos para lhe untar a cabea. Colocou-lhe uma grinalda de flores em redor do pescoo. O ano olhou em redor. No havia nenhum outro criado. O vestbulo estava repleto de um delicioso perfume. Norfret estava vestida com uma simples tnica branca e sandlias douradas. Chufoi comeou a sentir-se um pouco incomodado. Pareceu-lhe que Norfret desejava estar a ss como o marido; por isso, murmurou uma desculpa e foi procura dos dois filhos deles, cujas vozes se ouviam vindas do outro extremo da casa. Amerotke estreitou o rosto da esposa entre as mos e beijoua na testa. Fora destas paredes sussurrou , os homens com portam-se como lobos uns com os outros. No entanto, aqui o paraso. Norfret sorriu para ele com um olhar irnico. J soube o que se passou no tribunal declarou. O ataque. O Prenhoe esteve aqui? Ela acenou que sim. So coisas que acontecem, j sabes. 86
No isso o que mais me assusta. Amerotke abraou-a ao aperceber-se da ironia na sua voz. Que mais te disse o Prenhoe? Que a Maiarch, a rainha das cortess, te convidou para a sua casa do amor. Amerotke sorriu. Que necessidade tenho eu de l ir? J estou na casa do amor. Norfret levou os dedos aos lbios ao recordar-se de algo. Um mensageiro trouxe uma coisa para ti! Dirigiu-se a uma pequena alcova e regressou com uma caixa de sndalo toda trabalhada. Abriu-a. Amerotke tirou um embrulho de papiro, abriu-o e ficou a olhar fixamente para o bolo de sementes de alfarroba que este continha. Pepi, o escriba e erudito itinerante, andava cheio de si mesmo, bem como da cerveja e do vinho que bebera. Avanava em ziguezagues pela rua malcheirosa e cheia de moscas em direco aos seus aposentos. Mal acreditava na sua sorte. Na verdade, os deuses... Parou e desfez-se em sorrisos. Caso existissem, os deuses tinham sido muito generosos. Voltou a parar frente entrada de um pequeno ptio e, com os olhos turvos, mirou a fonte donde jorrava gua. Atravessou a entrada e sorriu para a porteira, uma velha grisalha, sentada num recanto da parede. Largou uma moeda na mo da mulher e subiu cambaleante os degraus da casa do amor. Apareceram servas com grinaldas de flores e colocaram-lhe na cabea uma pasta perfumada. Olharam-no de soslaio e com um desdm mal dissimulado. Pepi deixara crescer o cabelo, a barba e o bigode. A tnica branca bem como a capa colorida que trazia sobre os ombros estavam cheias de ndoas. No entanto, escutaram o tilintar de moedas no seu bolso e repararam na valiosa gargantilha que lhe adornava o pescoo. Conduziram-no sala de espera. As raparigas preguiavam e recostavam-se em canaps, graciosas como gazelas. Para alm das tangas de linho, no traziam nada vestido, e os pescoos, braos, tornozelos e ps resplandeciam de ornamentos. Pepi andou em redor da sala, inspeccionando a oferta; envaidecido 87
com a sua recm-adquirida riqueza, sentia-se como o leo do deserto. Uma das raparigas despertou-lhe a ateno. Era esbelta, sinuosa e o seu corpo cor de cobre brilhava, untado de leo. Agarrou-a pela mo e obrigou-a a levantar-se. Ela seguiu-o recatadamente e com uma certa resistncia, mas Pepi j conhecia o jogo. No prtico de entrada concordou o preo com a dona da casa, sorrindo para o musculoso escravo cuchita armado de espada e maa. No desfrutar aqui da sua escolha, meu senhor? perguntou a mulher num tom dengoso. Pepi abanou a cabea. Eu pago a diferena disse, enrolando a lngua. O dinheiro mudou de mos e Pepi e a sua acompanhante saram para a rua. A rapariga demorava-se atrs dele. De quando em vez, Pepi parava para a abraar e tentar beijar. A rapariga abria os olhos delineados com kohl e fazia de conta que se sentia incomodada com os avanos do seu cliente. Ele aproveitava a ocasio para puxar o corpo dela voluptuosamente contra o seu. Os pequenos guizos nos seus pulsos e tornozelos tilintavam cada vez que se entregavam a essas disputas. Um grupo de soldados parou para oferecer conselhos grosseiros. A rapariga sussurroulhe qualquer coisa ao ouvido e Pepi estugou o passo. A noite tinha cado e nas janelas e entradas comeavam a acender-se lamparinas. Chegados taberna, subiram pela escada exterior. Pepi abriu a estreita porta de madeira e fez entrar a rapariga. No reparou no balde de leo junto porta, do lado de dentro. A rapariga enrugou o nariz ao sentir o cheiro acre do leo. Pepi assentou-lhe uma palmada nas ndegas. Ela sobressaltou-se e uma expresso de raiva petulante assomou-lhe ao rosto. O erudito meteu a mo ao bolso e pescou dois pequenos cubos de prata. Um deles teu disse com voz empastada. Lembrou-se do papiro com cenas erticas que estudara em Mnfis. Educaria aquela beleza de forma inesperada. Ela atravessou o quarto para encher dois copos de vinho, mas Pepi agarrou-a pelo pulso e arrastou-a at ao amplo div colocado sob a janela. Mais uma vez, a prostituta tentou falsamente resistir, 88
mas Pepi levou a melhor, obrigando-a a estender-se no div, deitando-se a seu lado e acariciando-lhe o corpo. Estava to absorto que no ouviu a porta abrir-se. Ao ver os olhos esbugalhados da rapariga, virou-se, mas mal teve tempo de se levantar. Viu o balde de madeira ser puxado para trs e depois o seu contedo derramado sobre si e a concubina. Pepi levantouse, cambaleante; porm, enquanto o fazia, o segundo balde, o que fora colocado junto porta, foi derrubado e uma lamparina lanada ao cho. As chamas propagaram-se ao leo como um raio, transformando o quarto num inferno.
C A P T U L O 6
Amerotke tamborilou na mesa com a ponta dos dedos numa tentativa de controlar a impacincia. Chegara ao Templo de Hrus logo depois da alvorada na companhia de Prenhoe e Chufoi. Fora recebido e acolhido com considerao, mas a reunio j durava h duas horas e pouco progresso se fizera. O juiz pensou no importante caso que o aguardava na Sala das Duas Verdades. Ordenara uma suspenso. O delegado real procurava mais provas e Ramose fora colocado sob priso domiciliria. Ignorara por completo o bolo de sementes de alfarroba, a terrvel ameaa dos amemets. Apressara-se a desviar a ateno de Norfret, brincando continuamente com ela at que se retiraram para os seus aposentos para comer, beber e descansar no canap no terrao da casa. Ali haviam permanecido, os corpos entrelaados, a contemplar o cu nocturno. O juiz supremo suspirou e olhou em redor da cmara do conselho. Era uma parte antiga do Templo de Hrus, uma sala sombria de paredes sinistras e nuas. As grinaldas de flores pouco alegravam o ambiente ou dissipavam o forte cheiro a bolor. Apesar dos raios de sol que penetravam pelas estreitas e altas janelas, tiveram de acender-se lamparinas de leo e archotes. Amerotke e os demais estavam sentados em almofadas dispostas ovalmente em redor de pequenas mesas. Os sumos sacerdotes de Isis, Osris, Anbis, Amon e Hathor estavam todos presentes. Amerotke no sabia os seus verdadeiros nomes e nem sequer se preocupava com isso. Tinham todos o mesmo aspecto: rostos astutos cuja aparente humildade e santidade escondia 90
uma ambio desmedida e uma rivalidade feroz. Estavam vestidos da mesma maneira, com tnicas de linho branco adornadas com peles de leopardo ou pantera. A esquerda do juiz encontrava-se Hani, com os ps apoiados num pequeno escabelo, como que para realar a sua proeminncia. A seu lado encontrava-se Uechlis, com uma tira de prata em redor da cabeleira. Tinha pleno direito a estar presente como superiora das concubinas do deus Hrus e suma sacerdotisa do templo. Amerotke estava mais interessado no homem que tinha sua frente: Sengi, chefe dos escribas da Casa de Vida, um homem pequeno e atarracado, de lbios grossos, bochechas rechonchudas e orelhas que sobressaam como as asas de uma jarra. Percebeu que o juiz o mirava, sorriu e revirou os olhos como se tambm ele estivesse profundamente entediado. At ao momento no haviam discutido mais nada a no ser o protocolo e a etiqueta: quem se sentaria onde, quem falaria primeiro, que provas deveriam ser apresentadas e aceites. Sengi mexeu os lbios. Amerotke no entendeu a mensagem silenciosa, por isso o escriba pegou no clamo, rabiscou num pedao de papiro e entregou-o a um dos servos, apontando para o juiz. O sumo sacerdote de Isis discursava sobre a convenincia de mudar a reunio para outro local. Amerotke leu a mensagem que lhe foi entregue: o representante do fara. Acabe de vez com este disparate. Sorriu e assentiu com a cabea. Acomodou-se nas almofadas e bateu as palmas ruidosamente. Os sacerdotes olharam para ele, assombrados. Meu senhor disse o juiz, dirigindo-se a Hani , h quanto tempo aqui estamos? Uechlis escondeu um sorriso por trs da mo. Um servo consultou a clepsidra colocada a um canto. Depois, aproximou-se do sumo sacerdote e sussurrou-lhe ao ouvido. H mais de duas horas respondeu Hani num tom entediado. Meus senhores, estamos aqui a discutir assuntos fteis enquanto outros mais importantes nos esperam. Tenho em 91
meu poder o cilindro da divina Hatusu. Ergueu-o da mesa e mostrou-o a toda a audincia. Os sacerdotes inclinaram-se em sinal de submisso. isso precisamente o que iremos aqui debater replicou o sumo sacerdote de Amon com um tom de malcia e uma expresso de fria nos olhos encovados, ao mesmo tempo que franzia os lbios com petulncia. Em qualquer outro lugar, meu senhor advertiu Amerotke , as suas palavras seriam interpretadas como uma traio. A divina Hatusu fara e rainha das Duas Terras. Corre-lhe sangue real nas veias e o seu poder foi confirmado pelas suas grandes vitrias, bem como pela aclamao do povo. No duvido disso argumentou o representante de Amon , mas os sumos sacerdotes do Egipto tm a especial responsabilidade de o debater. Amerotke estudou o rosto rancoroso do sumo sacerdote. Aquele homem tinha uma viso muito clara do que considerava a poltica a seguir: o fara devia ser um homem; Hatusu devia ser mantida na Casa de Recluso, com as restantes mulheres do harm, e no ostentar o basto e o mangual. Uechlis olhava o sumo sacerdote de Amon furiosamente, umas das mos no pulso do marido para que se mantivesse calado. O objectivo desta reunio prosseguiu ele, dando um puxo na tnica enquanto olhava em redor em busca do apoio dos companheiros discutir diversos assuntos e no, meu senhor juiz, acatar ordens reais para que faamos isto ou aquilo. H tambm a questo dos assassinatos interveio o sumo sacerdote de Hathor. Ser o Templo de Hrus o local mais adequado para as nossas discusses? O seu recinto no foi j contaminado por mortes violentas? - verdade concordou Amerotke, contente por a discusso se comear a centrar em questes mais prementes. Dois membros deste templo foram assassinados, mas isso um assunto para a justia do fara. De facto, ambos os homens, se no estou em erro, aclamavam publicamente a subida de Hatusu ao trono e ambos foram mortos violentamente. Dizem que o povo murmura sobre o direito de Hatusu de governar. Tambm murmura sobre o motivo por que foram cometidos tais crimes. 92
Est a insinuar que o assassino se encontra nesta sala? interveio Sengi. Que provas tem disso? No somos criminosos num tribunal exclamou o sumo sacerdote de Isis. No estamos na Sala das Duas Verdades. No somos malfeitores, mas sumos sacerdotes do Egipto! No afirmei que eram malfeitores argumentou Amerotke sem perder a calma. Estava a falar de rumores. Quando o Neria e o Prem foram mortos, onde estavam os senhores? A pergunta foi recebida com grande alvoroo. O sumo sacerdote de Hathor levantou-se de um salto. Era um homem baixo, com cara de macaco, que teria atirado com a mesa para o outro lado da sala caso o de Amon, sentado a seu lado, no o tivesse detido. Amerotke voltou a mostrar o cilindro com o selo real. Podem pular como bailarinas escarneceu , ou podem responder s minhas perguntas aqui, na Sala das Duas Verdades ou perante o fara em pessoa. O Neria e o Prem foram mortos porque apoiavam a subida ao trono da rainha. Os seus assassnios foram premeditados, maliciosos e blasfemos. A viso do cilindro com o selo real aplacou a ira dos sacerdotes. Uechlis sussurrou qualquer coisa ao ouvido do marido, Hani. Este acenou com a cabea e levantou as mos para pedir silncio. O Amerotke tem razo. Ele juiz supremo do fara. Antes de prosseguirmos, cada um de ns deve responder pelos seus actos. O Neria foi morto nona hora. Toda a gente nesta sala tem de dar uma explicao. Exalou um grande suspiro. E eu serei o primeiro. A hora a que assassinaram o Neria, estava eu com a minha esposa nos nossos aposentos. Como sabemos isso? perguntou o sumo sacerdote de Amon. Estvamos juntos replicou Uechlis. Quando a clepsidra indicou a nona hora, pedi que nos trouxessem comida da cozinha do templo. O meu marido responde por mim e eu pelo meu marido. No entanto, quando o pai divino Prem foi morto, o meu marido estava no santurio ante Hrus. No me lembro onde eu me encontrava. 93
Os outros sacerdotes tomaram as palavras da sacerdotisa como exemplo. Amerotke percebeu que as suas apressadas explicaes nunca revelariam a verdade. Apenas Sengi permanecia silencioso e impassvel. E onde estavas tu, Sengi? inquiriu o juiz. O chefe dos escribas levantou a cabea. Na verdade, e por tudo o que sagrado, s posso dizer que em ambas as noites estava a estudar. E que estudavas? Sengi encolheu os ombros. Como todos os meus irmos aqui presentes, estudava os arquivos e registos. O Templo de Hrus antigo, as suas bibliotecas contm tesouros que no se encontram em mais parte nenhuma do Egipto. Mas o que procuravas? insistiu Amerotke. Partilha os teus conhecimentos connosco. A histria do antigo Egipto respondeu Sengi abarca muitas centenas de anos, remontando aos primeiros reis da dinastia do Escorpio. Eu, como os demais aqui presentes, pretendo descobrir se, em toda a linhagem de antigos governantes, alguma mulher ostentou as duas coroas, empunhou o basto e o mangual e se sentou no trono de R. Descobriste alguma coisa? perguntou o juiz supremo. Sengi abanou a cabea. E qual poderia ser a prova de tal facto? Amerotke tinha agora a ateno de todos. Hani sorria para si mesmo, satisfeito por finalmente se discutir o verdadeiro motivo daquela reunio. Pode ser qualquer coisa respondeu o sumo sacerdote de Hathor. Um decreto, uma carta, um fragmento... A discusso estava prestes a continuar quando se ouviram umas pancadas na porta. Um guarda do templo entrou e murmurou qualquer coisa ao ouvido de Hani, que estalou os dedos contrariado e se ps de p. Pais divinos, parece que o escriba e erudito Pepi foi assassinado no seu quarto, perto do cais. O que aconteceu? perguntou Sengi, levantando-se tambm. No dispomos de muitos pormenores respondeu 94
Hani. Os majidou, a guarda da cidade, esto a investigar o caso. Ao que parece, o nosso erudito ambulante entrou na posse de uma certa riqueza. Comeu e bebeu generosamente. A noite passada contratou uma cortes de uma casa de amor e levou-a para o seu quarto. Ele, a sua companheira e todo o quarto foram consumidos pelo fogo. Poderia ter sido um acidente? inquiriu o sumo sacerdote de Isis. O proprietrio, que tambm perdeu a taberna, foi muito claro nesse ponto informou Hani. O quarto do Pepi s tinha leo suficiente para as lamparinas, nada que pudesse provocar um incndio de tais dimenses. Os cadveres ficaram reduzidos a cinzas. Amerotke olhou em redor para os sacerdotes. Seria intil perguntar onde haviam estado a noite anterior. Receberia outro amontoado de explicaes, qual delas a mais disparatada. Foi morto da mesma forma que o Neria declarou Amerotke, erguendo-se das almofadas. No quero ouvir dislates sobre a desaprovao dos deuses. Meus senhores, trata-se de um crime. A biblioteca! exclamou Sengi, levando os dedos aos lbios. Que tem a biblioteca? perguntou Amerotke. Passaram-se dois dias desde que o Pepi l esteve. Sengi parecia muito nervoso. Sai! ordenou Uechlis ao guarda. O homem retirou-se de imediato. Toda a gente se voltou a sentar. Sengi esfregava as mas do rosto. Partilhe as suas preocupaes connosco, irmo incitouo Amerotke gentilmente. O Pepi era brilhante, mas pobre. Todos aqui o sabemos. Estava sempre a mendigar isto ou aquilo. De repente, mudase para fora do templo. Arrenda um quarto, enche a barriga de tudo o que bom e ainda lhe sobra dinheiro para se divertir com uma cortes... Pode ter roubado alguma coisa concluiu Amerotke por ele. Sengi acenou com a cabea. 95
Contratei-o para nos ajudar, mas de pouco prstimo foi. Talvez tenha... Ridculo! ripostou Hani. A nossa biblioteca est bem guardada. O Pepi foi vigiado e revistado. Amerotke voltou a levantar-se. Acho que devemos investigar. Ningum se ops. Abandonaram a sala. Prenhoe e Chufoi estavam sentados numa alcova, partilhando um cacho de uvas. Levantaram-se de um salto assim que o juiz se destacou do grupo de sacerdotes e se aproximou deles. Prenhoe, tu levas o meu selo. Sim, meu senhor. Vai ao Templo de Maet. Procura Asural e rene alguns guardas do templo. Vo at ao cais e averigem tudo o que puderem sobre um homem chamado Pepi que, em conjunto com uma concubina, morreu queimado no quarto. No ters de procurar muito. J sabes a que velocidade correm os boatos. Amerotke juntou-se aos restantes. Hani encabeava o cortejo. Passaram por um corredor ladeado de colunas e saram para o jardim, um lugar fresco e bonito com vinhas luxuriantes, cujos cachos de uvas pendiam de latadas presas s paredes de pedra. Passaram o Lago da Pureza rodeado de palmeiras, tanques onde se criavam peixes, caramanches e pomares de figueiras onde os criados do templo usavam macacos amestrados para colher os figos dos ramos mais altos. De quando em vez, o jardim dava lugar a pequenos bosques onde pastavam ovelhas e veados. Passaram por outros edifcios: armazns, celeiros, a Escola de Vida e os alpendres onde ficavam os matadouros. Amerotke olhou para a torre que se elevava acima de todas as restantes construes. As ameias no topo contrastavam com o azul do cu. As paredes eram de pedra lisa, difceis de trepar, e uma vez mais se interrogou como havia actuado o assassino do sacerdote Prem. No extremo mais afastado dos jardins do templo, rodeado por um muro de pedra, ficava o alvo edifcio de dois pisos que albergava a biblioteca. Os portes da entrada eram vigiados 96
por sentinelas. Os lintis e pilares da grande porta de cedro estavam decorados por magnficos hierglifos e pinturas que representavam escribas e estudiosos a ler, a escrever, a discutir ou sentados aos ps dos seus mestres. Penetraram no pequeno e fresco vestbulo com cho de cedro do Lbano e lamparinas protegidas por vasos de alabastro. As sentinelas e servos saudaram respeitosamente to augustos visitantes. A biblioteca principal ficava no segundo piso. Era uma sala rectangular comprida e os postigos de sicmoro estavam abertos, embora todas as janelas fossem estreitas e barradas, para dissuadir o roubo. As paredes estavam cobertas por estantes feitas medida para albergar livros, rolos de papiro e manuscritos. No centro da sala via-se uma fileira de mesas baixas com almofadas para serem usadas pelos estudiosos. Cada mesa estava fornecida de uma paleta de escrita com clamos e pequenos potes de tinta azul, encarnada e verde. O aroma da goma, da resina, do papiro e da tinta inundava a sala. Um dos escribas saiu de uma das cmaras anexas sala da biblioteca. Pai divino cumprimentou, curvando-se perante Hani. A biblioteca est vazia? perguntou o sumo sacerdote. Pai divino, ordenou que durante a vossa importante reunio a biblioteca ficasse reservada ao uso exclusivo dos nossos visitantes e, claro, do erudito Pepi. - por causa dele que nos encontramos aqui declarou Sengi. Ele trabalhou aqui, no assim? At h dois dias. O jovem escriba comeava a ficar cada vez mais agitado. Amerotke deu um passo em frente. E esperavas que ele regressasse? Sou Amerotke, juiz supremo da Sala das Duas Verdades. Sim, Excelncia, sei quem . Proferiu sentena a favor da minha me num litgio sobre um campo ao qual haviam sido mudadas as pedras que marcavam os limites. Efectivamente, espervamos que o Pepi regressasse. Amerotke avanou mais para o interior da sala, examinando as estantes que se prolongavam at ao tecto. Reparou num pequeno friso ao longo da parede, mesmo por baixo do tecto, que retratava macacos que colhiam livros das rvores. Por cima 97
da cena encontrava-se o olho omnividente de Amon-R e o ankh, o smbolo da vida eterna. O Pepi est morto anunciou o juiz calmamente. Foi assassinado perto do cais. De acordo com os rumores, o nosso nobre Pepi parecia ter-se tornado um homem rico. No era o que parecia quando aqui esteve gaguejou o escriba e bibliotecrio. Nem sequer tinha dinheiro para um clamo decente. Estava sempre a pedir isto ou aquilo emprestado. O escriba empalideceu e levou os dedos aos lbios. Oh, deuses! Que manuscritos estudou ele? perguntou Amerotke. O bibliotecrio olhou para Hani. O juiz Amerotke tem jurisdio nestes assuntos de clarou o sumo sacerdote. O escriba apressou-se at ao fundo da sala, onde havia vrias arcas de madeira de carvalho reforadas com bronze. Abriu uma delas e tirou de l uma caixa de sicmoro polido. Colocou-a sobre a mesa e abriu o fecho enquanto os visitantes se juntavam em seu redor. Hani levantou algumas folhas de papiro translcidas entre as quais se encontravam certos fragmentos de inscries. De que se trata? quis saber Amerotke. Percebeu que a escrita era muito antiga. Os hierglifos e smbolos assemelhavam-se aos que estudara quando fora aluno da Casa de Vida. So fragmentos de manuscritos informou Sengi. Alguns tm centenas de anos. Amerotke pegou num fragmento de manuscrito com cerca de um palmo de comprimento e palmo e meio de largura. As cores estavam um pouco desbotadas. Representava um sacerdote frente a um altar e, por baixo, havia um texto que tanto podia ser uma bno como uma praga. Voltou a coloc-lo no lugar. Falta alguma coisa? O escriba esvaziou todo o contedo da caixa, contou as folhas de papiro e consultou o ndice pegado tampa da caixa. Com um ar preocupado e uma respirao cada vez mais rpida, reiniciou a contagem. Umas gotculas de suor comearam a aparecer-lhe na testa. 98
O que se passa? perguntou Sengi. Devia haver onze fragmentos. S conto dez. Qual o que est em falta? interrogou Amerotke. Um fragmento com cerca de dois palmos de comprimento e um de largura. o extracto de uma crnica, um livro antigo com cerca de mil e trezentos anos. Amerotke assobiou baixinho, ignorando a consternao nas suas costas. Era uma pintura tartamudeou o escriba. Uma representao do primeiro fara da dinastia do Escorpio. Mens? perguntou Amerotke. O escriba assentiu com as mos sobre a cara. Atingiria um preo muito elevado? Claro. Sengi passava agora os manuscritos a pente fino. Sim, sim, desapareceu. Olhou fixamente para o escriba bibliotecrio. Era nisto que o Pepi estava a trabalhar? O jovem escriba acenou novamente com a cabea, dominado pelo medo. O roubo de um manuscrito to antigo da biblioteca de um templo podia significar desonra, priso ou mesmo morte. Mas impossvel! exclamou ele. Quando o Pepi aqui esteve... Esperem, meus senhores, por favor, esperem aqui. O bibliotecrio saiu a correr. No tardou a reaparecer acompanhado de dois guardas, ambos corpulentos, vestidos da mesma forma que os nakhtu-aa: saiotes e sandlias de couro, os cintures de guerra em redor dos troncos musculosos e suados. Ambos usavam um toucado encarnado e branco que lhes pendia sobre a nuca. Estes guardas estavam aqui declarou o bibliotecrio. Encarregados de vigiar o erudito Pepi? - perguntou-lhes o juiz supremo. Sim, senhor respondeu o mais alto e grisalho. Apontou para uma das mesas. Ele sentava-se ali e ns ficvamos sua frente. Porqu? Aconteceu alguma coisa? Os seus olhos arregalaram-se, alarmado. Nunca gostei muito dele apressou-se a acrescentar. Nunca o deixmos sozinho e, de cada vez que saa, revistvamo-lo. 99
Ele trazia alguma bolsa? perguntou Amerotke. Uma bolsa! repetiu o guarda num tom sarcstico. Nem podia dar-se ao luxo de ter uma. Chegmos a partilhar as nossas raes com ele. E revistvamo-lo sempre muito bem acrescentou o outro guarda. Dos ps cabea. Meu senhor... Inclinou-se e esticou as mos. O Pepi no significava nada para ns. Tnhamo-lo na conta de um erudito malcheiroso. Ignorou o ar contrafeito de Sengi. Era um tipo de olhar matreiro e gil de mos. A nosso obedincia para com Hrus, no para com esse tal Pepi. Poderia ter escondido o manuscrito? indagou Amerotke. - esse o problema interrompeu o bibliotecrio. Caso o tenha feito, o papiro to antigo que provavelmente se partiu ou amachucou. E ele demonstrou algum interesse em particular no manuscrito desaparecido? prosseguiu o juiz. O bibliotecrio encolheu os ombros. Meu senhor, o Pepi pedia isto e aquilo, mas, de facto, passava mais tempo com esta caixa do que com qualquer outra. Os guardas corroboraram a resposta do jovem bibliotecrio. Amerotke sentou-se num tamborete e ficou a olhar para a caixa de sicmoro. O que dizia o manuscrito? No sei ao certo. A imagem tinha uns hierglifos por baixo. No era nada de especial. Mas ainda assim valeria bom dinheiro? Ah, sim. Pelo menos trs ou quatro saquinhos de ouro puro. Sengi interpelou Amerotke, esboando um sorriso , foste tu que contrataste este homem... No sei de nada! protestou Sengi, nervoso. O Pepi no estava interessado em quem se sentaria no trono imperial. Disse que investigaria se alguma vez houvera um fara mulher e depois me diria. No fim, no chegou a dizerme nada. 100
Mas perguntaste-lhe? Claro. Respondeu-me que apenas me diria quando tivesse acabado. Bom, agora ele que est acabado escarneceu Uechlis. Amerotke levantou a mo a pedir silncio e mordeu o canto do lbio. Tebas estava cheia de mercadores ricos, coleccionadores de artefactos e relquias do passado. Se Pepi havia roubado e depois vendido o manuscrito, este podia agora estar em qualquer lado. Dispensou os guardas e pediu aos restantes que se sentassem. Todos se apressaram a faz-lo; o presumvel roubo do manuscrito f-los respeitar a autoridade de Amerotke. Teoricamente, todos os templos e respectivos contedos eram propriedade do fara. Hatusu no iria ficar satisfeita. O juiz disse ao jovem bibliotecrio que se juntasse a eles. Isto um autntico mistrio comeou ele. Se o Pepi tivesse tentado roubar o manuscrito, os guardas t-lo-iam descoberto. No entanto, desapareceu, e antes de morrer o Pepi tornou-se um homem rico. Olhou em redor da biblioteca. O Neria era o chefe dos bibliotecrios, no assim? O rosto do jovem enterneceu-se e os olhos encheram-se-lhe de lgrimas. Era um bom mestre, Excelncia, um verdadeiro intelectual. Sabes de alguma coisa que levasse algum a querer matlo? O Neria era uma alma gentil, Excelncia. Este era o seu mundo: os livros e os manuscritos. Uma e outra vez vinha dar com ele aqui a altas horas da noite, absorto no estudo de um manuscrito, a falar sozinho. E nos dias que antecederam a sua morte, notaste alguma coisa diferente? O Neria era um erudito, Excelncia, e solteiro. Afirmava que estes manuscritos eram as suas mulheres e os seus filhos. Andava muito excitado com a reunio dos sumos sacerdotes aqui no templo e com as provas que poderiam encontrar-se. Ele disse-te alguma coisa? 101
No. O bibliotecrio abanou a cabea. No me disse nada. O Neria por vezes era muito reservado. Tambm no gostava muito do Pepi. Uma vez ouvi-os discutir, mas no sei qual foi o motivo. Uechlis tamborilou no tampo da mesa com as suas unhas pintadas de vermelho. O Neria era um homem muito estimado, mas quando se tratava de conhecimentos era um verdadeiro sovina. Encontrava verdadeiras jias, artigos preciosos, mas guardava-os s para si. O Neria tambm estava envolvido na busca de provas para confirmar ou negar o direito ao trono da divina Hatusu, no estava? Sim, meu senhor respondeu Hani. No posso falar pelo Pepi, mas o Neria andava muito ocupado acrescentou Uechlis. Via-o aqui muitas vezes a escrever, tanto que enchia um rolo de papiro. Um dia perguntei-lhe o que tanto escrevia. Olhou para mim, os olhos brilhantes de excitao, sorriu e abanou a cabea. Antes que mo perguntes, Amerotke, na noite em que foi morto, o meu marido mandou revistar os seus aposentos cuidadosamente. O rolo de papiro desaparecera e com ele os frutos da investigao do Neria. Revistei todos os seus pertences com bastante ateno confirmou Hani , tal como o Sengi. No encontrmos nada. E agora? perguntou Amerotke. Eu recomecei as investigaes declarou o bibliotecrio , mas no sou um erudito como o meu senhor Neria. Descobriste alguma coisa? indagou o juiz. O bibliotecrio olhou para Hani e, com um gesto, o sumo sacerdote autorizou-o a responder. No descobri nada, Excelncia murmurou. Ora, ora. O sumo sacerdote de Amon inclinou-se para a frente e apontou para o jovem bibliotecrio. Queres dizer que no encontraste nada que prove que uma mulher alguma vez tenha empunhado o basto e o mangual e tenha sido fara do Egipto. E porque nunca encontrars. 102
No seja presunoso! recriminou-o Uechlis. O assunto ainda no est resolvido. Teriam voltado mesma discusso que os ocupava na sala do conselho no tivesse Amerotke erguido a mo para pedir silncio. Meu senhor Hani, terias de usar o tesouro do teu templo para descobrir se esse manuscrito foi vendido pelo Pepi. Sorriu. Deves ter informadores ao longo do cais. A venda de um tal manuscrito sem dvida que causaria alguma excita-o entre os coleccionadores e compradores de objectos preciosos. Tenho ainda uma pergunta: no dia em que o Neria foi morto, o divino fara visitou graciosamente este templo para oferecer sacrifcio. Onde estava o Neria enquanto tudo isto se passou? Depois houve uma festa respondeu Hani rapidamente. Um banquete para os meus irmos aqui presentes e suas comitivas. O Neria deveria ter estado presente, mas no compareceu. Encontrava-se nas cavernas e passagens secretas que existem por baixo do templo para visitar o tmulo de Mens. Porque haveria de fazer tal coisa? indagou Amerotke. Hani limitou-se a olh-lo. O que h l em baixo? Directamente por baixo do altar explicou Uechlis fica o mausolu real de Mens, o primeiro fara do Egipto, fundador da dinastia do Escorpio. E ali a sua sepultura. Quando os Hicsos invadiram o Egipto, na estao da Hiena, quando nos subjugaram a ferro e fogo e tingiram as guas do Nilo de vermelho com as suas oferendas de sangue, os sacerdotes de Hrus abandonaram o templo e esconderam-se nessas passagens e cmaras. Abarcou a sala da biblioteca com um gesto. Os Hicsos apoderaram-se de tudo isto. No entanto, nas galerias secretas por baixo da terra alguns sacerdotes conseguiram sobreviver. Um deles achou que a luz do Egipto se extinguiria para sempre, por isso, cobriu as paredes da cmara que alberga o tmulo de Mens de frescos que relatam a histria do Egipto, para que as geraes futuras pudessem ao menos ter uma idia da glria da nossa ptria antes da chegada dos brbaros. 103
O Neria gostava de ir at l confirmou o bibliotecrio, sorrindo. Dizia que era um bom local para pensar. Ento, toda a gente sabia que o Neria podia ser encontrado l em baixo concluiu Amerotke. Claro. Quem quisesse encontr-lo, procur-lo-ia aqui ou na cmara de Mens. Na verdade, autoproclamou-se custdio do santurio, embora no fosse sumo sacerdote. Fui l a baixo uma vez declarou Sengi. As tochas e lamparinas estavam acesas. Percorri as galerias em bicos dos ps. O Neria estava sentado frente ao tmulo e falava com ele como se conversasse com um velho amigo. O Neria disse uma coisa. O jovem bibliotecrio olhou para o tecto. Fiz-lhe uma pergunta sobre a divina Hatusu e a reunio que aqui ia decorrer, o grande conselho de sumos sacerdotes. Fez uma pausa. Amerotke reparou como se instalara de repente um grande silncio, apenas quebrado pelo zumbido das abelhas que, atradas pelo aroma das flores e o odor da madeira, haviam entrado pelas janelas. O que disse ele? perguntou Amerotke. Estou a tentar recordar-me, Excelncia. Perguntei-lhe a sua opinio. O Neria respondeu: No incio, apenas existia a Me divina. Todas as coisas, no seu incio, so femininas. Uechlis aplaudiu, entusiasmada. Esto a ver! Mas todos aceitamos isso disse o sumo sacerdote de Hathor. Os telogos afirmam que antes de a terra se formar, de os mares em ebulio serem controlados e a escurido ser separada da luz, existia um ser: Nut, a deusa do cu. Creio que o Neria se referia a algo mais que isso murmurou o bibliotecrio, porm, ao ver a expresso de contrariedade no rosto do sumo sacerdote de Hathor, apressou-se a acrescentar: Mas claro que no sou telogo. Vai haver mais perguntas? indagou o sumo sacerdote de Osris, um homem magro e de rosto sardnico, levantando-se. Est na hora da purificao. Temos de rezar e descansar do calor do dia. Os outros concordaram. Amerotke bateu com as mos na mesa. 104
Falam de ritos e purificao, de comida e bebida, de descansar sombra dos sicmoros. Voltar o Neria a sentir o calor do sol no rosto? Voltar o sacerdote Prem a contemplar as estrelas no firmamento? Estamos a falar de assassnios. Set, o deus das Terras Vermelhas, o criador do caos e da diviso, encontra-se neste templo. Encher as nossas barrigas de bolos de mel e beber o mais doce dos vinhos e as mais delicadas cervejas no o far ir-se embora. Ser que no vem, pais divinos, que qualquer um de ns pode estar marcado pelo Anjo da Morte? perguntou, furioso.
CAPTULO 7
As palavras de Amerotke mitigaram a arrogncia dos sumos sacerdotes. Sengi assentia circunspectamente. Uechlis juntou as mos num aplauso silencioso. Hani sorriu. Tens razo, meu senhor Amerotke afirmou. A tua brusquido bem conhecida. No era minha inteno ser brusco disse o juiz , apenas franco. Olhai em redor. Os jardins so espaosos e soalheiros, as rosas, os lrios e as flores de ldo perfumam o ar. Os cachos de uvas pendem, maduros. As colunatas so frescas, mas existem lugares escuros, galerias estreitas, recantos sombrios. A noite, quando a escurido quem comanda, quem estar seguro? Podemos ficar aqui sentados a cavaquear, mas recordem-se do que me trouxe aqui. Dois sacerdotes, eruditos, escribas, membros da alta hierarquia do Templo de Hrus, foram brutalmente assassinados. Estas mortes s comearam quando este conselho foi convocado. minha convico, e no pretendo assustar-vos, que o assassino se encontra entre ns. Amerotke suspirou. Depois de terminarmos aqui, quero visitar as passagens e galerias por baixo do templo. Lembrem-se de que tambm eu estou ameaado pelo perigo. Vou mandar acender as tochas e lamparinas murmurou Hani. Falas verdade, meu senhor. Devemos todos andar atentos sombra encarnada de Set. Os outros concordaram relutantemente. No obstante, os sumos sacerdotes de Amon, Osris, Hathor, Anbis e Isis acabaram por aceitar as palavras de Hani. Amerotke ainda no 106
conseguia simpatizar com aqueles homens secos, duros, dominados pela ambio. A subida ao trono de Hatusu dera-lhes uma oportunidade para tagarelar e rezar e no iriam abrir mo disso. O juiz esperava que eles protestassem, que percebessem o que estava por trs daquele conselho: o Templo de Hrus era um local perigoso, quanto mais depressa terminassem a reunio, mais depressa sairiam dali. H mais perguntas? inquiriu o sumo sacerdote de Osris. Amerotke acenou que sim. A morte do pai divino Prem um verdadeiro mistrio. Estava a estudar as estrelas, deixou o terrao da torre e regressou ao seu quarto. Foi ento brutalmente assassinado, mas, quando a porta foi arrombada, o assassino j tinha fugido. Como? O criminoso no podia ter escapado por uma janela. Seria necessria uma escada de corda, a terra hmida ao fundo da torre no revelou marcas de pegadas e o assassino teria precisado de mais tempo para fugir. - de facto um mistrio concordou Sengi. Na verdade, h dois mistrios afirmou Amerotke. Primeiro, como que o assassino matou o sacerdote Prem e depois escapou? Segundo, para qu dar-se a tais extremos? Como assim? perguntou o sumo sacerdote de Hathor. O juiz estendeu as mos. O pai divino costumava passear pelos jardins ou descansar sombra das rvores. Comia e bebia. Uma flecha ou uma taa com veneno teriam acabado com ele com a mesma eficcia de uma pancada na cabea no seu prprio quarto. O jovem bibliotecrio foi o primeiro a quebrar o silncio com que as palavras do juiz foram acolhidas. Uma coisa clara declarou, passando a lngua pelos lbios e olhando nervosamente para o seu sumo sacerdote , o pai divino Prem morreu como se tivesse sido atacado por uma pantera. Apontou para as estantes de manuscritos atrs de si. As crnicas antigas esto repletas de relatos da crueldade dos Hicsos. Usavam panteras, leopardos e outros felinos para caar e matar os seus inimigos. Os guerreiros hicsos tambm usavam maas de bronze com garras de pantera na ponta. 107
E tais maas ainda existem? perguntou Amerotke. Temos artefactos da poca dos Hicsos. Esto na Casa da Guerra. O bibliotecrio referia-se armaria do templo. H artesos que ainda as fabricam e vendem nos mercados. Mas porque no usar uma simples maa ou uma adaga? interrogou Amerotke. Os olhares de todos centraram-se no jovem bibliotecrio, que corou ao ver que era objecto da ateno dos seus superiores. A torre do jardim muito antiga respondeu. Diz-se que foi construda pelos prprios Hicsos, que usaram escravos para talhar e empilhar as pedras. Quando o av do divino fara atacou os Hicsos, os brbaros usavam torres como estas como centros de resistncia. E o que tem isso a ver com a morte do pai divino Prem? interveio o sumo sacerdote de Osris num tom contrariado. Amerotke fez sinal ao bibliotecrio para que continuasse. Rezam as lendas que os Hicsos misturavam sangue humano argamassa que usavam para fazer os tijolos e que enterravam prisioneiros vivos nas fundaes como oferendas ao deus da guerra. A torre tem fama de estar assombrada por estes infelizes e pelos hicsos que aqui morreram. Fez uma pausa. Uma teoria possvel que o assassino pretendia se mear a agitao e o medo entre os que vivem no templo. No h nada como uma histria de fantasmas e assassnios brutais e misteriosos perpetrados por foras ocultas para inquietar as mentes e as almas da nossa comunidade. Amerotke estudou atentamente o bibliotecrio: rosto afilado e cabea rapada, o nariz estreito um pouco desviado como se tivesse sido partido. Era um pouco afectado e no lbulo da orelha direita trazia uma argola de ouro. O juiz admirou a sua douta astcia. Como te chamas? Khaliu, meu senhor. E concluste tudo isso sozinho? O jovem assentiu, os lbios apertados. Ento, fizeste muito bem. Meu senhor Hani... 108
Amerotke virou-se para o sumo sacerdote. O Templo de Maet adoraria ter um escriba assim como bibliotecrio. H mais uma coisa interrompeu Khaliu. Os Hicsos eram uma raa blica. Tratavam as mulheres, incluindo as suas, como meros animais. No havia qualquer manifestao feminina do deus deles. Ah! Amerotke inclinou-se sobre a mesa. Ento, ests a dizer que o assassnio do pai divino Prem na torre foi deliberadamente planeado e executado para perturbar a comunidade do templo numa altura em que os sumos sacerdotes de toda a Tebas discutem a ascenso ao Trono da Eternidade da divina Hatusu? Sim, meu senhor. Creio que disseste a verdade. Amerotke esticou o dedo indicador e abanou-o como sinal de advertncia. Em circunstncias normais, discutiramos a ascenso do fara num ambiente de serenidade. Agora, estamos cercados por um caos sangrento, ameaas secretas e crimes misteriosos. Mas no ho-de amedrontar-nos afirmou o sumo sacerdote de Amon. A vontade dos deuses tem de ser proclamada relativamente ao tema que nos ocupa. Amerotke percebeu pela expresso obstinada no rosto daquele sumo sacerdote que ele j tinha tomado a sua deciso. Mas seria uma questo de princpio ou t-lo-ia Hatusu desprezado? Ou pior, recusado suborn-lo? O juiz afastou a sensao de inquietude. Percebia agora por que motivo Hatusu insistira que ele assistisse s reunies. Se sumos sacerdotes como o de Amon levassem a sua avante, o reinado de Hatusu seria constantemente minado por uma animosidade silenciosa e rumores maliciosos propagados pela casta sacerdotal de Tebas. Percebo porque o Neria foi morto declarou abruptamente , mas o Prem? Era um erudito explicou Hani. Tambm ele estava interessado na questo da ascenso de uma mulher ao trono do Egipto. Havia uma relao prxima entre o Prem e o Neria? perguntou Amerotke. Eram muito amigos respondeu Uechlis , mas no 109
colegas no estudo. O relacionamento deles era mais a um nvel espiritual. O Neria considerava o Prem como seu mentor. Recorria a ele em busca de conselho e orientao? Todos os sacerdotes deste templo escolhem um conselheiro ou mentor explicou Hani. Ento, possvel que o Neria tenha descoberto ou visto alguma coisa que depois contou ao sacerdote Prem. Consequentemente, ambos tinham de morrer. Mas o que ter sido, por que motivo tiveram de ser assassinados e s mos de quem continua a ser um mistrio. Isso tambm significa acrescentou Uechlis que o assassino conhecia este segredo. Sim, sim, verdade. Ento, devemos tambm perguntarnos: com quem mais do templo poderiam o Prem e o Neria ter falado? Todos olharam para Hani. O sumo sacerdote empalideceu e passou a ponta do seu cinto de linho pelos lbios. No sei de nada declarou lapidarmente , de nada mesmo. Meu senhor Amerotke, j terminaste? Por enquanto. O juiz supremo permaneceu sentado enquanto os restantes se retiravam. S Khaliu, o bibliotecrio, ficou. Precisa de alguma coisa, meu senhor? Eles sero revistados? Amerotke acenou com a cabea em direco porta. No, Excelncia, s se tivessem pedido para estudar os manuscritos. Chamaria ento os guardas e seguir-se-ia o procedimento habitual. Amerotke agradeceu e o bibliotecrio retirou-se para uma pequena sala junto entrada. O juiz supremo ficou a contemplar as estantes. Escutou atentamente. Nada perturbava a harmonia daquela bela e aromtica sala. Tentou pr um pouco de ordem nos pensamentos e imagens que lhe povoavam a mente. O caso da jovem Dalifa apaixonada pelo seu novo marido. Lembrou-se do rosto arrogante de Antef, o dio nos seus olhos. Bom, por agora no podia fazer nada a esse respeito. E Ramose, agora em priso domiciliria e sob suspeita de homicdio? Amerotke sabia que teria de ir Sala do Mundo Inferior, 110
que teria de ver o lugar com os seus prprios olhos. Para tal, precisaria de uma escolta militar. O osis de Amarna era um local perigoso, e no apenas devido aos lees devoradores de homens; nmadas, habitantes do deserto e saqueadores nbios estavam sempre atentos, em busca de vtimas fceis. De facto, quanto mais pensava no caso, mais desconfiado ficava. Ramose no agira nem de forma muito estpida nem maldosa. Porque levara os cavalos? O que acontecera aos dois jovens, soldados bem treinados? Decerto, no podiam ter simplesmente desaparecido da face da terra. Quando poderia ir at ao labirinto? E agora este novo assunto? Neria fora morto de forma brbara, o assassnio de Prem era um verdadeiro mistrio. E qual seria a conexo entre ambos? Neria era a chave. Trabalhara naquela biblioteca, mas tambm visitara as galerias subterrneas do templo, onde fora morto. Amerotke comeou a sentir as plpebras pesadas. A porta da biblioteca abriu-se e Uechlis entrou seguida por uma serva. Devias descansar. A superiora das concubinas sorriu. Mudara de roupa. Vestia agora uma tnica branca de pura l cingida cintura por um cinto entretecido com fios de prata e tirara a cabeleira. Amerotke reparou como agora parecia muito mais jovem; uma mulher alta e vigorosa, mas elegante e majestosa. Vou nadar um pouco anunciou. No o faas no Nilo! gracejou o juiz. A sacerdotisa olhou por cima do ombro para a serva que a esperava no umbral da porta. Tenho a certeza de que alguns dos colegas do meu marido iam adorar! O brao de rio que passa junto ao nosso templo est infestado de crocodilos, mas talvez no me ligassem. J no sou o pedao de carne tenra que fui em tempos. Continuas muito bela respondeu Amerotke. Quando vim para a Casa de Vida... Cala-te, cala-te! Uechlis ergueu uma mo e arrastou os ps. As boas recordaes entristecem-me. Os outros esto a banquetear-se no jardim. Devias juntar-te a eles, Amerotke, ainda que a tua presena os incomode. Incomoda? Tm medo de ti. Sempre gostaste de fazer perguntas. 111
Essa voz incisiva, esses olhos penetrantes! No admira que os criminosos de Tebas estremeam ao escutar o teu nome. Agora vens com lisonjas brincou o juiz. Uechlis riu e deixou a sala. Amerotke suspirou e levantou-se. Sentia fome e estava um pouco cansado, mas dissera que visitaria as galerias e passagens secretas e o tmulo de Mens, o fara da dinastia do Escorpio. Abandonou a biblioteca e, depois de pedir a um servo que lhe indicasse o caminho, andou pelos corredores e cmaras do templo. Em algumas partes, o edifcio era dourado e espaoso, a luz reflectindo-se nas brilhantes pinturas que adornavam as paredes brancas, no cho e prticos de mrmore, nos cntaros com os perfumes mais caros. Ouviu risos provenientes dos jardins e cnticos vindos de uma das capelas. Um grupo de bailarinas ensaiava os seus passos num ptio banhado pelo sol. Danavam, os seus corpos desnudos e voluptuosos cobertos pelos vus mais transparentes, as cabeas adornadas por magnficas cabeleiras, os rostos maquilhados. Moviam-se como uma s, lenta e sinuosamente, ao compasso de um ritmo cativante. O sistro que traziam soava como o toque de um tambor, enquanto que as pulseiras de guizos nos seus pulsos e tornozelos tilintavam e tiniam. Ao passar junto ao ptio, Amerotke escutou parte do que entoavam: Dancei para ti, meu deus, Junto ao rio e em verdes campos. Abri o meu corpo para ti, Aceitei o teu doce vigor dentro de mim. Cantavam em voz baixa, porm a cano podia ouvir-se distncia. Uma das raparigas reparou nele e sorriu, mas a professora bateu com a cana no cho para a admoestar. Amerotke esboou um sorriso de desculpas e prosseguiu. Cruzou um prtico e atravessou um ptio aberto cercado de colunas que ofereciam um pouco de sombra. As paredes estavam cobertas com cenas de deuses e reis pintadas com cores brilhantes. Por fim, estas deram lugar a zonas mais estreitas e escuras, onde a luz do Sol mal penetrava. sua esquerda e direita abriam-se 112
recessos sombrios nos quais esttuas de granito negro representando deuses e animais o olhavam ameaadoramente. O ambiente era muito mais fresco e a pedra cheirava a humidade. Era uma parte mais antiga do templo. Para l das suas paredes e lgubres passagens soavam debilmente risos, a msica de uma harpa e o rumor da gua nas fontes. Um guarda indicou-lhe de novo para onde se dirigir e, por fim, Amerotke deu com o escuro poo que conduzia s criptas. A porta de baixo, reforada com rebites e braadeiras de cobre, estava aberta. Hani cumprira a sua palavra: as tochas e lamparinas de leo encontravam-se acesas. Amerotke desceu as escadas e avanou por vrias galerias at chegar a uma cmara povoada por sombras danantes. No centro elevava-se o grande sarcfago ornado de estranhos hierglifos e smbolos. O mrmore negro do tmulo estava frio como o gelo. Amerotke caminhou lentamente em seu redor e reprimiu um calafrio ao ver os olhos pintados sobre a porta encarnada. Mens, o velho fara da dinastia do Escorpio, continuaria a espreitar por eles c para fora? O seu ka vaguearia por ali vindo dos Campos da Eternidade? O juiz lembrou-se de Neria e retrocedeu caminho ao longo das galerias at aos degraus. O odor a leo e carne humana queimada desaparecera, mas era ainda possvel vislumbrar a mancha e as marcas do fogo. Regressou sala do sarcfago e caminhou junto s paredes. Era perceptvel que os frescos e pinturas haviam sido executados pressa, porm tinham um vigor e vida prprios. Relatavam a histria do Egipto: a criao de cidades, a construo de pirmides em Sakara, o ataque dos reis-pastores e a invaso dos Hicsos. Estes ltimos eram retratados como guerreiros terrveis e os seus cavalos, demnios do mundo inferior, exibiam olhos flamejantes. O artista recheara cada cena do mais nfimo pormenor, determinado a no omitir nada da glria do Egipto. Amerotke pegou numa tocha para examinar os frescos com mais cuidado. Cada parede mostrava um grupo de cenas diferentes; levaria semanas a estud-las todas em detalhe. Que esperara Neria encontrar ali que no tivesse encontrado nos antigos manuscritos? Algumas das pinturas estavam um pouco desbotadas. Noutros locais, o gesso partira-se e cara. 113
O juiz acercou-se do lugar onde aquela crnica tinha incio. Reconheceu os smbolos do mar e da areia, o rolo, ou selo, dos reis da dinastia do Escorpio. Cada um desses monarcas era representado em todo o seu esplendor. Examinou a figura de Mens, o primeiro fara da dinastia do Escorpio: rosto sereno, olhos de gazela, um toucado muito caracterstico e um colar de pedras preciosas. Parte da pintura desvanecera-se e a parede estava raspada. Preparava-se para prosseguir quando ouviu uma voz, profunda e grave, proferir o seu nome. Meu senhor Amerotke! Sim, o que se passa? Estava oculto pelo enorme sarcfago, prestes a rode-lo para se mostrar, quando se deteve. Quantas pessoas sabiam que se encontrava ali em baixo? Se se tratava de um servo ou de um mensageiro, porque no entrara sem aviso? Amerotke praguejou entre dentes. Estava totalmente desarmado, nem sequer uma adaga trazia no cinto. Espreitou por trs do sarcfago e, ao faz-lo, uma flecha atravessou o ar, embatendo contra a parede por trs de si. Voltou a esconder-se atrs do tmulo e assomou uma outra vez, rapidamente. Vislumbrou uma silhueta escura, meio agachada, elevando de novo o arco de chifre. Outra flecha sibilou pelo ar, fazendo saltar um pedao do gesso da parede ao embater contra ela. O juiz apoiou as costas banhadas em suor contra o mrmore frio e moveu-se um pouco. Que haveria de fazer? O archeiro demoraria alguns momentos a lanar nova flecha, mas se calculasse mal o tempo e comeasse a correr, a luz da tocha convert-lo-ia num alvo fcil. Ps-se de ccoras. O tmulo era o seu nico escudo. Outra flecha cruzou o ar. Amerotke olhou em redor. A cmara estava vazia. O misterioso e silencioso archeiro ter-se-ia retirado? Ou estaria ainda na cripta, do outro lado do sarcfago? Amerotke obrigou-se a relaxar, usando tcnicas ensinadas na Casa de Vida: inspiraes profundas e longas, os ombros descados, os braos pendendo ao longo do corpo. Escutou atentamente. Se o archeiro estivesse em movimento, acabaria por escutar a sua respirao. Porm, reinava o mais absoluto 114
silncio. Humedeceu os lbios e deu a volta ao sarcfago. A cripta estava vazia. Avanou pelas passagens. Nada. Subiu os degraus, abriu a porta e assomou a cabea. Era bvio que o atacante no esperaria ali. Caminhou pela colunata, tentando controlar a fria. Ouviu um som, parou, pressionando as costas contra a parede. Escutou arfadas, gemidos de prazer e espreitou. Viu o sumo sacerdote de Amon com uma das bailarinas. Segurava-a contra a parede, com as mos a apertar-lhe as ndegas, enquanto a rapariga se segurava a ele com as pernas enroladas volta da cintura. Fazia amor com ela da maneira mais rude, movendo-se para trs e para a frente, qual marinheiro que goza com uma prostituta contra a parede de uma taberna num beco malcheiroso da cidade. A rapariga no colocava quaisquer entraves e os guizos nos seus pulsos e tornozelos tiniam a cada investida dele. O rosto da bailarina contor-cia-se de prazer. Amerotke sorriu e seguiu o seu caminho. A viso do sumo sacerdote, as ndegas desnudas, desfrutando de forma to vulgar de uma rapariga do templo f-lo esquecer os momentos de terror na cripta. Regressaria, talvez investigasse as passagens que conduziam ao sepulcro, mas da prxima vez iria armado e na companhia de Chufoi e Prenhoe. Por fim, chegou aos jardins. Interrogou-se se deveria investigar os movimentos de cada um dos sumos sacerdotes, mas tal levaria horas. O calor do meio do dia comeava a abrandar e umas poucas nuvens salpicavam o azul do cu. Sentou-se sombra de uma rvore, deixando que o canto dos pssaros lhe aquietasse a mente. Pensou no sumo sacerdote de Amon e no que acabara de testemunhar e interrogou-se se as mortes de Prem e Neria estariam mesmo relacionadas com a reunio ou seriam meramente acasos da poltica e intrigas do templo. Olhando para cima, vislumbrou as ameias da torre, agigantando-se acima da copa das rvores, e resolveu ir at l. Levantou-se e atravessou a relva. Os jardins de Hrus eram lindssimos, cheios de canteiros, canais de irrigao, tanques de gua e uma grande variedade de rvores, entre as quais predominavam figueiras, palmeiras, sicmoros e accias. O ar estava impregnado dos odores provenientes das vrias 115
oficinas e armazns onde se preparavam as oferendas para o servio matutino: po, bolos, cerveja, vinho, legumes e fruta. Amerotke deu-se conta de que estava cheio de fome e lembrouse de que naquela noite iria haver um grande banquete. Por fim, chegou torre do jardim. Uns quantos degraus davam acesso a uma porta de madeira. Comeou por descrever uma volta em redor da torre: tinha uma forma oval e as pedras eram lisas, porm, como que para desencorajar qualquer tentativa de a escalar, os construtores haviam colocado aqui e ali umas telhas pontiagudas e afiadas. As janelas eram largas e quadradas, mas Amerotke percebeu que, em caso de cerco, uma pequena fora poderia refugiar-se ali e resistir aos ataques do inimigo. Subiu os degraus e abriu a porta. As paredes da torre tinham a grossura de pelo menos o comprimento de um brao. Seriam precisas catapultas e aretes para fazer alguma mossa em semelhante solidez. O interior cheirava a flores espalhadas pelo cho. Agarrou-se ao corrimo de corda e comeou a subir. Em cada patamar havia uma cmara. O piso principal da torre era usado como armazm. As divises estavam cheias de cestos, caixas, barris, redes, tudo o que o templo desejava manter seco e fora do alcance de roedores e insectos. Subiu mais e atingiu o topo. Uma porta abriu-se e apareceu um servo. Era um homem forte e corpulento e usava um saiote atado com uma faixa. Tinha o tronco coberto de suor e trazia nas mos uma paleta de aguardas de madeira de buxo. Parou e ficou a olhar embasbacado para Amerotke. O que faz aqui em cima, senhor? Amerotke apresentou-se e o homem adoptou de imediato uma atitude servil. O meu nome Sato explicou. Era servo do pai divino Prem. J ouvi falar de si, meu senhor. Est de visita, no ? acrescentou. Tem andado a fazer perguntas. Todo o templo o sabe. Ai, sim? Amerotke sorriu. Apontou para a porta. Estes eram os aposentos do pai divino Prem? Sim. Estava apenas a reunir... Os olhos de Sato encheram-se de lgrimas. Estou a reunir as coisas dele. O corpo est com os embalsamadores. Em breve ser levado para a 116
outra margem do rio. O templo tem os seus prprios tmulos l. Sato sorriu. Prometeram-me uma cmara, um pequeno recanto perto do meu amo. Uma recompensa bem merecida comentou Amerot-ke. Passou por Sato e entrou no quarto. Parecia uma caixa, as paredes caiadas de um branco resplandecente. Poucas coisas restavam para alm da cama de juncos, alguns tamboretes, uma cadeira e almofadas. As prateleiras estavam vazias, ex-cepo de alguns potes e uma bacia rachada. Onde que Prem guardava os seus manuscritos? Ele tinha muito poucos, meu senhor. O que precisava ia buscar biblioteca, ou sala dos manuscritos da Casa de Vida. Mas na noite em que morreu ele tinha cartas dos cus, no tinha? Sim, senhor, mas foram recolhidas e levadas. Mais alguma coisa? perguntou Amerotke. Sato pestanejou, levando os dedos boca. Na verdade, no simpatizara com aquele juiz de olhar penetrante que deslizara escada acima como um felino. Isso trazia-lhe ms recordaes. Sato queria esquecer aquela noite terrvel; por isso se dedicara to diligentemente limpeza do quarto. O pai divino Prem partira, viajara para o Ocidente. Era melhor que as coisas se mantivessem em silncio e em paz. Fiz-te uma pergunta recordou-lhe Amerotke. Sato suspirou e sentou-se na beira da cama. O sumo sacerdote Hani perguntou-me o mesmo e, sabe, senhor, o meu amo tinha... Fez uma pausa para tossir. Bom, antes de morrer, trazia com ele um rolo de papiro atado com um cordo encarnado. Andava com aquilo para todo o lado. Lembro-me disso muito bem. Vinha para aqui e trancava a porta. Quando lhe trazia comida, ou alguma coisa para beber, era sempre muito amvel comigo. Entra, Sato, dizia-me; no entanto, reparava que ele ocultava o papiro com o brao, como se no quisesse que eu lesse ou visse alguma coisa. E viste alguma coisa? Amerotke tirou a bolsa da tnica. Abriu-a e pegou num disco de prata. 117
Sato sorriu. Iria precisar de dinheiro, especialmente nos dias que se aproximavam. No final de contas, no passava de um servo de meia-idade que gostava de beber a sua cervejita. H dois dias respondeu ele , trouxe-lhe o jantar. Como de costume, o pai-divino colocou o brao sobre o papiro, mas depois pensou que o copo ia cair da mesa e moveu a mo para o apanhar. E o que viste? No tenho a certeza. Sato percebeu o ar contrafeito de Amerotke. Acho que era um escaravelho, o desenho de um escaravelho. Um escaravelho? Ou talvez fosse um escorpio. Sim, acho que era um escorpio. Amerotke manteve o disco de prata na mo. Diz a verdade. Sato fechou os olhos. Tenho a certeza de que era um escorpio, um desenho um pouco tosco de um escorpio, meu senhor. Muito bem. Amerotke pressionou a moeda de prata contra a palma da mo de Sato e depois agarrou-lhe o polegar e torceu-lho. E onde est esse desenho agora? No sei, meu senhor. Quando arrombmos a porta, admito que senti curiosidade. Olhei em redor, mas no vi nem vestgio do papiro. E no encontraste nada de suspeito? Sato abanou a cabea. Nos dias anteriores morte do teu amo, ele e o bibliotecrio Neria reuniram-se? No, meu senhor. O Neria veio aqui? Sato voltou a abanar a cabea. Ento... e o pai divino foi visitar o bibliotecrio? perguntou o juiz, exasperado. No, senhor. Sato olhou para a porta. Mas no me parece que as suas mortes estejam ligadas. Sato j no lhe parecia to nscio. Amerotke vislumbrava agora a astcia no seu olhar. Vamos l, Sato murmurou. Diz-me o que sabes. 118
CAPTULO 8
Na casa das mortes do Templo de Hrus, o assassino observava os mdicos e embalsamadores a preparar o corpo do pai divino Prem para a sua derradeira viagem para o Ocidente. Numa mesa de mrmore no outro extremo da sala, jaziam os carbonizados restos mortais do arquivista Neria, envoltos em ligaduras brancas. Os mumificadores haviam procedido da melhor maneira possvel, mas o que seriam capazes de fazer com carne queimada at aos ossos, olhos liqefeitos, lngua e outros rgos engelhados? Seria que Osris, pai dos que viajam para o Ocidente, iria compreender? O ka de Neria seria autorizado a viajar at aos Campos dos Bem-Aventurados? Neria fora um homem bom. Quando a sua alma fosse pesada na Sala dos Mortos, poderia ser protegido dos devoradores, os demnios malficos que permaneciam atrs da balana da justia espera das almas que eram rejeitadas pelos deuses. O homicida no sentia qualquer arrependimento. Fizera o que tinha de ser feito. Como poderia uma mulher, uma criatura pattica como Hatusu, atrever-se a usar a coroa dupla e o manto sagrado e descansar os seus bonitos ps no antigo escabelo do fara? O assassino viera com a desculpa de apresentar os ltimos respeitos devidos a um sacerdote falecido, mas tambm para se assegurar de que no se descobrira nada de sinistro. Felizmente, a luz era fraca. Os embalsamadores e purificadores estavam mais preocupados com o cumprimento do ritual sagrado de acordo com o que O Livro dos Mortos estipulava. 119
O corpo de Prem jazia estirado, nu, vestido apenas pela penumbra da cmara subterrnea. A luz das velas funerrias encarnadas, colocadas em candelabros de filigrana de prata, realava os contornos do seu corpo rechonchudo. O chefe dos embalsamadores inclinava-se agora sobre o cadver e, com ganchos de bronze, terminava a extraco do crebro atravs das narinas. Este foi colocado numa bacia de ouro. Um sacerdote entoou uma orao enquanto um escriba traou uma linha a tinta encarnada, com dez centmetros de comprimento, no lado esquerdo do cadver, exactamente onde Hrus abrira o corpo do divino Osris. Uma inciso profunda e larga foi feita ao longo da linha com uma faca de obsidiana etope. Um embalsamador enterrou as mos na fenda e, murmurando uma orao, retirou os intestinos, o corao, os pulmes e o fgado. Tambm estes rgos foram colocados em bacias. Entretanto, outros mumificadores lavaram a cavidade com vinho de palma misturado com especiarias. Retiraram-se. O corpo foi erguido por servos e mergulhado numa grande tina de na-tro lquido. Ali ficaria durante setenta dias antes que os embalsamadores regressassem para rechear o ventre do cadver com panos de linho, serradura e l perfumada. O assassino voltou-se para observar o lado oposto da sala, onde j se preparavam outros objectos para a cerimnia fnebre: um sudrio, uma mscara de prata, um peitoral de ouro simbolizando o ka de Prem a voar para o Alm. Havia ainda pulseiras e anis para as pernas e dedos dos ps, e um precioso cofre, sobre uma almofada, colocado em cima d'O Livro dos Mortos. Urnas funerrias, ornamentadas com cabeas de homens, falces, chacais e babunos, estavam prontas a receber as entranhas e o crebro. O criminoso observou o corpo a ser imergido no seu banho de natro e murmurou uma orao. Tudo correra bem. Ningum reparara em nada. Os mdicos e os embalsamadores estavam mais preocupados em preparar o corpo do que em descobrir a causa da morte. Descontraiu-se. Era verdade que Amerotke escapara morte e que, devido ao seu olhar penetrante e mente inquiridora, teria de ser silenciado, mas para isso havia tempo. Os rumores j haviam comeado e espalhavam-se 120
pelos mercados e bazares. Arrastar-se-iam at aos cais e seriam repetidos nas tabernas e lojas de cerveja. Deveria Hatusu ser fara? Poderia uma mulher, por muitos partidrios e bons augrios que tivesse, ser ama e senhora do povo dos Nove Arcos? Na torre, Sato, auxiliado por um jarro de cerveja, comeava a tornar-se mais loquaz. Sentia-se lisonjeado por aquele juiz supremo que descera a escadaria e regressara com um jarro de cerveja e dois copos. Tambm sentia muita pena de si mesmo e lanou-se na enumerao dos infortnios que lhe iriam ocorrer agora que o pai divino Prem estava morto. Amerotke bebericava a cerveja e escutava-o. Recordou a mxima de Chufoi: O vinho e a cerveja enchem a barriga e soltam a lngua. O pai divino Prem estudava sempre aqui? perguntou Amerotke para desviar a conversa para o tema que o interessava. Sim, meu senhor. A torre est deserta. As restantes divises so usadas como armazns. O meu amo era um astrnomo. Na sua juventude, foi consultado pelo prprio fara divino. Mas com certeza no corria perigo. Porque tinhas tu de montar guarda? Estava sempre de guarda respondeu Sato na defensiva. O pai divino era bastante despistado. Esquecia-se disto e depois daquilo. Ia dormir e esquecia-se de apagar a lamparina. Deixava as lamparinas perto dos papiros ou pedia alguma coisa para comer ou beber s primeiras horas da madrugada. E na noite em que morreu? No foi diferente. Sato empurrou o lbio inferior para fora. Eu estava cansado acrescentou com um sorriso lascivo. Uma bailarina dignara-se olhar para mim. Passei toda a tarde com ela e um jarro de cerveja. Muito agradvel comentou Amerotke. E ento chegaste atrasado torre. Chegaste tarde, no foi? No te preocupes, no contarei a ningum. J era tarde quando aqui cheguei confessou Sato. H mais alguma coisa, no ? pressionou Amerotke. Diz-me a verdade. 121
Vim para aqui, meu senhor, mas esquecera-me de trazer algumas provises, por isso, corri cozinha e regressei. No reparei em nada suspeito. Os aposentos do pai divino estavam fechados e trancados. Era sempre assim? Por vezes. Mas disseste que ele era despistado. No quando se tratava do seu quarto. Supus que estivesse no terrao, a estudar ou a rezar. Ele no gostava de ser incomodado. Subi e espreitei. O que estava ele a fazer? Encontrava-se de joelhos. Tinha um xaile pelos ombros e o seu chapu de palha preferido na cabea. A noite? Mantinha-lhe a cabea protegida das frias brisas nocturnas. E depois? Regressei ao meu posto e esperei. E depois o pai divino Prem veio ter contigo? Desceu os degraus. Ouvi a sua respirao entrecortada. Ele usava um anel no dedo, um anel de prata que caiu escada abaixo. Fui busc-lo. Quando voltei, o pai divino estava no seu quarto sentado secretria. Coloquei o anel ali. Apontou para uma pequena mesa de madeira polida com incrustaes de lpis-lazli, junto porta. Depois, o pai divino fechou a porta e trancou-a. Um pouco mais tarde escutei aquele terrvel grito. Sato contorceu o rosto numa expresso de dor e as lgrimas comearam a correr-lhe cara abaixo. O resto j sabe. No, no sei. Amerotke sorriu. Conta-me. Corri escada abaixo e sa da torre. Comecei a gritar. Apareceram guardas e servos e depois os outros sacerdotes. Quem exactamente? Oh, todos eles. E depois? Bom, a porta foi forada. Encontrmos o corpo do pai divino estendido na cama com o crnio esmagado e a cara arranhada. 122
Mas nenhum vestgio da maa? Ora a est uma coisa nova. Sato bebeu um ruidoso trago de cerveja. O qu? No contei ao sumo sacerdote Hani, mas o pai divino Prem tinha uma maa com uma garra de pantera na ponta. Como? S... S me lembrei disso agora, meu senhor gaguejou Sato. O pai divino costumava brincar com isso. Dizia que era uma recordao da estao da Hiena, a poca da fome e da espada. E, como no podia deixar de ser, a maa desapareceu. Sim, meu senhor, desapareceu. Amerotke ergueu-se e foi at janela. Tudo fazia sentido at ao momento de explicar a fuga do assassino. Olhou por cima do ombro. A porta do quarto no fora consertada e ainda era visvel o local onde havia sido forada. Mas como teria o criminoso escapado? Espreitou para baixo. At um soldado experiente necessitaria de algum tempo para atar uma corda e descer, e teria ferido os joelhos e braos nas telhas afiadas. Mostra-me o terrao da torre. Sato pousou o copo de cerveja e conduziu-o escada acima. A porta estava aberta, permitindo a passagem de uma brisa fresca. Amerotke saiu para o terrao. Era uma rea quadrada, a cortina da muralha alta e ameada, com fendas estreitas para os archeiros dispararem. Havia uma pequena mesa ao centro, rachada pelo sol e pelos elementos. Sato explicou que Prem a usava para esticar os mapas e cartas. Amerotke encaminhou-se at muralha e assomou a cabea. Entardecia e a tnue brisa era refrescante. L em baixo viu pessoas a caminhar e sentiu os apetitosos odores provenientes das cozinhas. A torre tambm proporcionava uma vista deslumbrante de Tebas. Vislumbrou os impressionantes pilones da Casa do Milho de Anos, os obeliscos com as cspides douradas, a Avenida das Esfinges, os altos mastros encarnados dos templos. Inclinou-se um pouco. Tratava-se de uma altura vertiginosa. Os terrenos em redor da torre eram desimpedidos em todos os lados, excepto num, onde cresciam algumas roseiras e outros arbustos. Percorreu todos 123
os lados do terrao, cobertos com gravilha para impedir que algum resvalasse. No viu qualquer marca de violncia. Parou, agachou-se e apanhou um pedao de corda. Era como plo de crina, mas mais resistente e encerado. Levou-o para mostrar a Sato. Parecem filamentos de uma corda, no achas? O pai divino no costumava ter nenhuma aqui explicou Sato. S trazia comida, rolos de papiro, a sua caixa de clamos, penas e tinta. Amerotke sentou-se com as costas encostadas muralha. Enrolou o pedao de corda entre os dedos. Muito inteligente murmurou. Pergunto-me se a minha teoria tem alicerces de pedra ou de areia. Ps-se de p. Muito obrigado, Sato. Meu senhor? Amerotke deu-lhe uma palmadinha no ombro. Foste de uma grande ajuda. Sato abriu a porta e ficou a ouvir o juiz supremo descer as escadas. Seguiu-o sem pressa e deteve-se no umbral da porta, como havia feito na noite em que o pai divino Prem fora assassinado. No vira algo nessa altura? Algo suspeito? O que era? O juiz supremo fora muito generoso; com a moeda de prata que recebera, talvez pudesse voltar a contratar os prsti-mos daquela bailarina que agora se mostrava to esquiva. No se comportara com a mesma frieza quando se deitaram juntos e ela se entregara com tanta paixo. Sato suspirou e sentou-se. Tentou recordar-se do que vira naquela noite. Passou a lngua pelos lbios. Iria procurar aquela rapariga to bela e gil. Amerotke abandonou a torre e encaminhou-se para o roseiral que avistara do terrao. Os caules eram grossos e espinhosos. Avanou cautelosamente e descobriu os ramos partidos e os filamentos de corda. Fechou os olhos e murmurou uma orao: Mostraste-me o teu rosto, Ser Divino, e sorriste para mim. No sabia que te interessavas por rosas. Amerotke voltou-se de repente. Chufoi olhava-o, com um basto numa das mos, sacola de couro na outra. Ao seu lado 124
estavam Prenhoe e Asural, ambos com um ar abatido e empoeirado. Procurmos-te por todo o lado. O capito da guarda do templo limpou a testa. Meu senhor, estou cansado e esfomeado. Asural esfregou a ponta do nariz rechonchudo. Pois respondeu Amerotke , se insistes em andar armado at aos dentes e com essa couraa de couro, no me admira nada. Venham comigo. Conduziu-os atravs do recinto do templo, passando pelas vinhas, at um conjunto de accias onde as borboletas revoluteavam entre as flores e o ar perfumado fazia as abelhas voarem freneticamente. Ao longe, o lago sagrado brilhava sob os raios do Sol que comeava a pr-se. Amerotke f-los sentar-se. Deitou-se no cho e olhou as copas das rvores. Uma poupa balanava-se num dos ramos como se tambm ela desejasse desfrutar da brisa vespertina. No adormeas advertiu-o Chufoi, aproximando o seu grotesco rosto do do seu amo. Temos coisas para te dizer. Eu tambm tenho muitas para vos contar. Amerotke ajudou Asural a tirar a couraa de couro. Deu o seu anel a Chufoi e mandou-o s cozinhas do templo. O ano no tardou a regressar, acompanhado de servos que traziam bandejas e po fresco, ganso assado, taas de fruta. Os servos pousaram as bandejas na relva, frente deles. Andam a preparar um banquete anunciou Chufoi, todo contente. A senhora Uechlis disse que estvamos todos convidados. Amerotke sorriu e deixou-os aplacar a sede. Agora disse , contem-me o que descobriram sobre o Pepi. H muito pouco para contar resmungou Asural , pois tambm resta muito pouco dele. A guarda da cidade est a conduzir a investigao, por isso no consegui descobrir grande coisa. O Pepi podia ser um brilhante intelectual, mas tambm era um miservel, sempre a mendigar comida e vinho. Depois, subitamente, arrenda aquele quarto e traz na bolsa mais ouro e prata que um comerciante rico. 125
E o incndio? perguntou Amerotke. Tanto o quarto como a taberna arderam por completo. Tudo o que vimos do Pepi e da sua cortes foram os seus crnios e alguns ossos calcinados. Ento, ficou tudo destrudo? Asural limpou o suor do pescoo. Absolutamente tudo confirmou. Os sbios afirmam sentenciou Chufoi que uma mulher tola age por impulso, insensata e no sabe nada. A este tolo ela diz: As guas roubadas so doces e o po sabe melhor quando comido em segredo. De que ests para a a falar, Chufoi? Da cortes respondeu o ano. No caso do Pepi, o po sagrado dela conduziu-o morte. Qual era a origem de tal sbita riqueza? inquiriu Amerotke, ignorando o seu enigmtico servo. Asural abanou a cabea. Ningum sabe. Ouviram algum rumor sobre o Pepi ter vendido um manuscrito? No. Ele roubou algum daqui? - possvel murmurou Amerotke. O preo do pecado a morte afirmou Chufoi. Pode um homem transportar fogo dentro da camisa sem queimar a roupa? Pode caminhar sobre brasas sem chamuscar os ps? Vivemos tempos muito perigosos interveio Prenhoe, decidido a mostrar os seus conhecimentos. Ontem noite tive um sonho, amo. Estava sentado nas margens do Nilo e uma mulher, semelhante a um crocodilo, emergiu da gua para copular comigo. J chega refilou Amerotke. Deixem-me contar-vos o que descobri aqui. Um momento, amo. Asural acomodou-se na relva. Lembras-te do Nehemu? Como poderia esquec-lo? E as suas ameaas? Asural observou o rosto do juiz. Recebeste um aviso, no foi? 126
Recebi. Amerotke suspirou. Enviaram-me um bolo de sementes de alfarroba para casa envolto em linho e guardado numa caixa de sndalo. O qu? berrou Chufoi. Bom prosseguiu Asural, ignorando a indignao do ano , podes esquecer os amemets. Como assim? A Corporao de Assassinos desapareceu na estao do Plantio. Seguiram o seu mestre para norte e, desde ento, no voltaram a ser vistos. Amerotke fechou os olhos. Num centsimo de segundo estava de volta quelas passagens secretas sob a Grande Pirmide: o tecto desmoronava-se, esmagando aqueles assassinos vestidos de negro. Amo? Amerotke abriu os olhos. Ouvi rumores de que se haviam reorganizado com novos membros afirmou Chufoi. Ainda restavam uns poucos em Tebas declarou Asural. Nada mais que uns seixos chocalhando no fundo de uma jarra vazia. Amo, queria levar-te outra margem do Nilo para conheceres o Lehket, membro da Sociedade dos Mortos-Vivos. Amerotke ignorou a exclamao de desaprovao vinda de Prenhoe. Os mortos-vivos! exclamou Chufoi com a boca cheia de carne. Engoliu pressa. Que tem uma colnia de leprosos a ver com os amemets? O Lehket era um deles explicou Asural , antes de ter sido contagiado. Fui falar com ele, amo. Ele falar contigo. Mas ias contar-nos o que descobriste por aqui. Amerotke dissimulou a sua inquietao. O que poderia Lehket dizer-lhe? Seria uma armadilha? Alguma artimanha para o atrair a uma emboscada? Ele no representa qualquer perigo, amo acrescentou o capito da guarda como se tivesse lido os pensamentos do juiz. No te far mal, mas, tal como todos os da sua laia, quer ser pago em ouro. 127
Como o encontraste? Tu tens as tuas leis, eu tenho os meus espies respondeu Asural com um sorriso matreiro. O Lehket recebe-nos amanh, depois do amanhecer. E o outro assunto? indagou Amerotke. A jovem mulher casada com dois homens? Estou a tratar dele declarou Chufoi sentenciosamente. Mas o que se tem passado no Templo de Hrus? Embora no tivesse parado de empanturrar-se de po e ganso assado, havia observado o rosto de Amerotke com muita ateno. Pressentira que havia alguma coisa errada. O seu amo estava nervoso, irritvel. Mal tocara na comida, mas bebera a cerveja bem depressa. Fui atacado confessou Amerotke. Isso foi uma estupidez reclamou Chufoi. Abanou o dedo indicador frente ao rosto do juiz. Foste a algum lado sozinho, no foi? Quantas vezes j te avisei para que no o fizesses? Se a minha ama souber disso! Amerotke agarrou o dedo do ano e apertou-lho. Mas no vai saber, pois no? Bom, o que importa que j sei como mataram o pai divino Prem. Encontrava-se na torre e o assassino fez-lhe uma visita. Devia ser algum em quem Prem confiava e de quem gostava. Provavelmente at beberam um copo de cerveja ou vinho. S que a bebida do Prem continha uma poo que o fez ficar sonolento. O assassino pegou na maa de guerra dos Hicsos que o Prem tinha e deu-lhe com ela na cabea. O velho crnio do Prem deve ter-se rachado como uma casca de ovo. Em seguida, o assassino voltou a sua ateno para o verdadeiro motivo da sua visita: o rolo de papiro que o pai divino transportava para todo o lado. S que calculou mal o tempo. Sato, o servo bbedo, regressou antes do previsto. O criminoso escondeu o corpo do Prem de baixo da cama, pegou no xaile e no chapu de palha deste e subiu para o terrao. Amerotke fez uma pausa. Ou tal vez o assassino fosse mais matreiro. Talvez o Sato no o tenha surpreendido. Seja como for, o que importava para o assassino era abandonar a torre sem ser visto. Coou a testa. Alguns pormenores ainda no esto muito claros. Bom, ento, o 128
assassino pega no chapu de palha, no xaile e, sim, no anel, e sobe para o terrao. claro! interrompeu Prenhoe. E fingiu ser o pai divino! Precisamente. Na penumbra, a nuca de uma cabea rapada parece-se com qualquer outra, em especial se estiver coberta por um chapu de palha e os ombros por um xaile. O Sato, atencioso como sempre, pensou que era o seu amo e regressou ao seu posto. O assassino desceu por fim. Possua a chave dos aposentos do Prem, mas tinha de distrair o Sato o tempo suficiente para conseguir entrar. Ento, deixa cair o anel? Sim. O Sato, como bom guarda e servo que , corre escadas abaixo para o ir buscar. O assassino abre a porta e entra no quarto. A luz escassa e ele mantm-se de costas para a porta. O Sato deixa o anel em cima da mesa e a porta ento fechada e trancada. Amerotke interrompeu o seu discurso e desviou o olhar para a torre que se agigantava acima das copas das rvores. aqui que o homicida demonstra grande astcia. Emite um grito terrvel como se estivesse a matar o Prem naquele momento, tira o cadver do sacerdote de debaixo da cama e coloca-o em cima desta. Talvez tenha sido nessa altura que matou o ancio, dando-lhe uma pancada na cabea com a maa. Mas como conseguiu sair? perguntou Asural. Amerotke sorriu, contente por ter uma resposta. Quando pensamos na fuga de um quarto situado no cimo de uma torre, tendemos naturalmente a imaginar al gum a descer. O assassino do Prem foi mais astuto. Antes de deixar o terrao da torre, lanou uma escada de corda entre as ameias at janela do quarto do Prem. Chufoi comeou a aplaudir, contorcendo o seu feio rosto num sorriso. Saiu do quarto e trepou pela corda at ao terrao, fechando a janela com os ps. Amerotke assentiu que sim com a cabea. Assim que chegou ao terrao, retirou a corda e lanou-a para o roseiral que h aos ps da torre. Depois, deparou-se 129
com duas opes: ou esperava no cimo da torre at que a porta fosse forada e misturava-se com os restantes, ou ento seguia o Sato escada abaixo, escondia-se numa das divises e juntava-se por fim aos guardas quando viessem derrubar a porta. Mas porqu dar-se a tais subtilezas? indagou Asural. Porque no envenenar simplesmente o sacerdote ou atravessar-lhe a garganta com uma flecha? No estaria o assassino a assumir um risco desnecessrio? Sim, tambm pensei nisso respondeu o juiz. Fez uma pausa, escutando o grito de um pavo num dos jardins. Possuo vrias explicaes para isso. Primeiro, tinha de separar o Prem do papiro. O pai divino tinha de ser morto e o papiro roubado. Para consegui-lo, era necessrio elaborar um plano. O assassino tinha de assegurar-se de que, quando atacasse, o manuscrito estava mo. verdade. No h dvida de que um velho sacerdote como o Prem teria provavelmente o manuscrito muito bem guardado. Talvez o assassino tenha manifestado o seu interesse por ele e o Prem decidisse partilhar o que sabia. Em segundo lugar prosseguiu Amerotke, arrancando pedaos de relva , o Prem era um homem de hbitos. Pelo que pude averiguar, encontrava-se habitualmente na biblioteca ou na torre. Quando estava na torre, o Sato andava sempre por perto, da a necessidade de tais preparativos. A escada de corda foi talvez levada de antemo e escondida algures no terrao. Por ltimo... Amerotke enxotou uma mosca. Por ltimo, o assassino est deliberadamente a criar uma atmosfera de inquietude e terror. A morte do Neria foi sbita e brutal. Regressava das criptas sob o templo quando o encharcaram de leo e o transformaram numa tocha humana. Suspeito que o mesmo aconteceu ao nosso erudito ambulante e sua concubina. Mortes brutais e misteriosas desencorajam uma comunidade sacerdotal pouco habituada a violncias. E o que aconteceu ao rolo de papiro, maa de guerra e escada de corda? Era capaz de apostar que o papiro foi destrudo. A maa e a escada foram lanadas para o roseiral e recuperadas mais 130
tarde. Concordo contigo, Asural, quando dizes que o assassino correu grandes riscos, mas, no final, foi bem-sucedido. A nica ocasio em que correu perigo foi quando trepou do quarto para a torre, mas tendo em considerao que j era noite e a subida curta, valia a pena correr esse risco. Tudo o resto podia ser explicado. E o motivo? perguntou Asural. Tem alguma coisa a ver com a reunio dos sumos sacerdotes e a subida ao trono da divina Hatusu. Amerotke calou-se abruptamente. O que estar o homicida a tentar fazer? murmurou para si mesmo. Seriam o Neria e o Prem amigos sinceros da divina Hatusu e da sua corte? perguntou em voz alta. Oh, Maet, s minha testemunha! O que se passa? exclamou Chufoi. E tu ainda me repreendes por citar provrbios e falar por enigmas! No ests a ver? Amerotke sorriu. Em qualquer dos casos, o assassino no perde. Temos dois fiis servos do templo assassinados numa altura em que os sumos sacerdotes discutem a ascenso da divina Hatusu. Algumas pessoas pensaro que foram mortos porque descobriram alguma coisa que provaria que uma mulher no pode sentarse no trono do Egipto. Por outro lado, o cinismo do nosso escriba errante era famoso. Ento, as trs mortes podem ser interpretadas como uma tentativa do divino fara para sufocar o debate concluiu o capito da guarda. Sim, uma possibilidade concordou Amerotke. Por outro lado, se a divina Hatusu souber que os homens assassinados descobriram provas importantes a seu favor e foram brutalmente chacinados por isso e as provas roubadas, a sua ira no conhecer limites. O que transportava o Neria quando morreu? O que ter o Pepi roubado da biblioteca e vendido? O que continha o papiro secreto do pai divino Prem? Conheo a divina Hatusu, sei que ser impiedosa na altura de retaliar e, ao faz-lo, provocar ainda mais inimizades entre a casta sacerdotal. Para alm disso, o assassino j azedou a reunio do conselho, criando uma atmosfera de terror. Por isso, temos de encarar o nosso assassino como um caador que tenta encurralar a divina Hatusu. 131 E qual achas que ser o desfecho? perguntou Chufoi. Se tivesse de ditar sentena na Sala das Duas Verdades declarou Amerotke , diria que esta reunio no nos levar a lado nenhum. Nenhum dos lados sair vitorioso. As dvidas e incertezas no pararo de crescer e, de uma forma ou de outra, a divina Hatusu, Senenmut, e at eu mesmo, acabaremos acarretando as culpas de tais homicdios. Tens alguma soluo? Chufoi sentia-se agora verdadeiramente alarmado com a situao em que o seu amo se envolvera. H duas solues, meu caro Chufoi. A primeira: encontrar provas de que uma mulher pode ser fara. A segunda: desmascarar o assassino.
CAPTULO 9
A grande porta dupla de cedro-do-lbano fora fechada. A luz das tochas, velas e fachos reflectia-se nas folhas de bronze da porta. Amerotke observou aquele brilho tremeluzente que lhe lembrava o reflexo do Sol na gua. Acomodou-se nas almofadas e empurrou a pequena mesa sua frente, coberta de pratos de ouro, copos e bacias de prata. A sala de banquetes do Templo de Hrus era magnfica, com colunas encarnadas e douradas e paredes decoradas com lindssimas pinturas que retratavam cenas da vida dos deuses. Por todo o lado se encontrava o motivo do falco dourado. Nas colunas havia vrias inscries gravadas. Amerotke sorriu ao ler uma: A cerveja e o vinho despedaam a alma. Um homem que se entrega bebida como um camelo sem bossa, ou uma casa sem po, com as paredes esburacadas e em runas, e a porta prestes a cair. Um grupo de anes, um dos quais se parecia extraordinariamente com Chufoi, conduzia uma esplndida matilha de ces por trelas de prata: bassets, greyhounds e chacais com jaquetas encarnadas bordadas a fio de ouro e esmeraldas. Hani e a esposa sentavam-se na mesa do topo. Escravos de muitas nacionalidades, vestidos com saiotes brancos, serviam bandejas de couve-roxa, sementes de ssamo, anis e cominho. 133
Estes eram os acepipes que secavam a garganta e faziam o estmago ansiar pela cerveja gelada que estava a ser servida. Amerotke decidira prudentemente no os provar. Todos os presentes fizeram silncio quando Hani, cambaleante, se levantou com um copo de ouro na mo. Levantou o copo e todas as cabeas se voltaram para o extremo da sala onde se encontrava a grande esttua de Hrus com a cabea de falco revestida a ouro. Hani entoou a orao: Volta o teu rosto para ns, Falco Dourado, Cujas asas abarcam os dois mundos. O Pssaro de Luz que impele a escurido Para baixo de si. Um murmrio de aprovao saudou as suas palavras, e os pratos principais comearam a ser servidos: ganso e codornizes assadas, pernas de vitela decoradas com tiras de presunto. No canto da sala, um grupo de mulheres tocavam flauta, lira e harpa acompanhadas por um coro que batia as palmas, dando msica uma cadncia rtmica. Os servos deslocavam-se de mesa em mesa, depositando em cada qual uma pequena mmia de madeira dentro de um atade em miniatura. Ao faz-lo, murmuravam: Contempla-o e depois bebe e s feliz porque, depois da morte, acabars deste modo. Chufoi guardou de imediato a sua no bolso e continuou a sua conversa com Prenhoe. Amerotke inclinou-se na direco deles para os escutar melhor. O ano estava determinado a transformar-se num famoso vendedor de remdios e poes nos mercados e bazares de Tebas e fazia todo o possvel para convencer Prenhoe a ajud-lo. Digo-te uma coisa murmurou Chufoi , se pegares na urina de uma mulher grvida e a misturares com trigo, poders saber se vai ter um menino ou uma menina. Amerotke mordeu o lbio num esforo para conter o riso. Amo, achas que isto tem graa? Bom, se a mulher est grvida replicou o juiz , lgico que tenha um rapaz ou uma rapariga. Pois, mas, com o teste, poderemos determinar qual o sexo do beb. 134
De que forma? perguntou Amerotke, levado pela curiosidade. Pela mudana de cor da urina. Chufoi fez um gesto com a mo, abarcando toda a sala. Aqui podia fazer um grande negcio, amo. Apontou para as diferentes perucas usadas pelos sacerdotes e respectivas esposas agora empapadas com os bonitos cones de perfume que lhes haviam sido dados entrada. Amerotke recusara. A maioria agora sente-se bem, perfumados e tranqilos sob as suas perucas. Depois, sofrero de indigesto. Vo precisar de pata de galgo, semente de tmara misturada com leite de burra e servida em azeite. Ou ento relva e p de... Amerotke riu e afastou-se deles. Estava prestes a pegar no seu copo de vinho quando foi sobressaltado por um grito vindo do outro extremo da sala. O sumo sacerdote de Hathor levantarase de um pulo com uma mo em torno do pescoo e a outra agarrada ao estmago. A jovem concubina sentada a seu lado olhava-o com uma expresso de horror. Ele cambaleou para a frente, agitando uma das mos. Derrubou a mesa, lanando copos e pratos para o cho. Tinha a cara roxa, os olhos protuberantes e uma espcie de espuma branca a sair-lhe da boca. Amerotke observou-o, atnito, enquanto o sumo sacerdote avanava na sua direco. Estaria a ser acometido por um ataque? A msica cessou. Os servos correram em seu auxlio, mas ele afastou-os com a mo. Caiu de joelhos, abrindo e fechando a boca, e depois estatelou-se no cho, os braos esticados para a frente, as pernas agitando-se espasmodicamente. O juiz supremo recuperou o nimo e levantou-se de imediato. Virou o corpo, ignorando a poa de urina que manchava a tnica do sacerdote. Agarrou-lhe o queixo e introduziu-lhe dois dedos na boca, pensando que talvez estivesse engasgado com alguma coisa, mas no encontrou nada. Sabia que o sumo sacerdote de Hathor estava moribundo. Tinha a pele pegajosa e fria e o pulso fraco. Os convivas formaram um crculo em redor dos dois. Foi chamado um mdico do templo, mas j nada se podia fazer para salv-lo. O seu corpo contorceu-se num ltimo espasmo e a cabea tombou para um dos lados. Morreu murmurou Amerotke. 135
Evacuem a sala! Evacuem a sala! gritou Hani. Apareceram os guardas do templo armados de lana e escudo de couro. Criados, bailarinas, concubinas, msicos e membros do coro foram sumariamente obrigados a abandonar a sala. O corpo do sumo sacerdote de Hathor foi erguido e colocado sobre almofadas. O mdico do templo chegou e agachou-se ao seu lado, apalpando-lhe o estmago, auscultando-lhe o peito e levantando-lhe as plpebras. Tal como Amerot-ke, estranhava que o corpo tivesse arrefecido to rapidamente. O que comeu e bebeu ele? O sumo sacerdote de Amon encaminhou-se de imediato para as mesas. Pegou numa das travessas que um dos servos deixara e recolheu os pratos e copos do sumo sacerdote de Hathor. O mdico examinou-os e abanou a cabea. O que foi? perguntou Hani. No tenho a certeza, mas a morte do sumo sacerdote de Hathor parece ter sido provocada por... Veneno? interveio o de Osris. Foi envenenado, no verdade? O mdico assentiu com a cabea. Com qu? indagou Amerotke. No sei, meu senhor, mas nos bazares de Tebas fcil comprar ps que matam um homem numa questo de segundos. Os restantes sumos sacerdotes olhavam acusadoramente para Hani. Achava que estvamos seguros aqui declarou o sumo sacerdote de Amon. Mas parece que ningum est a salvo no Templo de Hrus. Os restantes quatro concordaram ruidosamente com ele. Devamos ir embora sugeriu o sumo sacerdote de Isis. A reunio do conselho devia ser suspensa. Uma vez mais, estas palavras mereceram a aprovao dos outros sacerdotes. Isso no pode ser argumentou Amerotke, visto que Hani parecia demasiado aturdido para tomar conta da situao. Uechlis tambm no era de grande ajuda. Contemplava o cadver boquiaberta e com uma mo erguida, como se no acreditasse realmente que o sacerdote estivesse morto. 136
Porque no? inquiriu o sumo sacerdote de Osris. O mdico acabou de dizer que ele foi envenenado. Quantos mais tero de morrer? Todos ns? por isso que estamos aqui? Sua Majestade nomear depois outros sacerdotes mais do seu agrado? Se repetir tal comentrio fora desta sala advertiu-o Amerotke severamente , ser acusado de traio! O sacerdote empalideceu. Pestanejou e murmurou qualquer coisa entre dentes. Amerotke agarrou na mo de Hani. Pai divino, s temos a opinio deste mdico sobre a causa da morte do sumo sacerdote de Hathor. Talvez no tenha sido envenenado. Parecia mais confiante do que realmente estava. Porm, se o que ocorreu foi mesmo um homicdio, ento, um erro atribuir culpas sem uma investigao formal. Apontou com o dedo na direco do sumo sacerdote de Osris. O que o leva a suspeitar de que o seu anfitrio ou o divino fara tm alguma coisa a ver com a morte deste homem? Devemos ter cuidado com o que dizemos. Olhou por cima do ombro at ao local de onde Chufoi e Pre-nhoe seguiam os acontecimentos. Amerotke tem razo declarou Hani, recuperando o domnio das suas emoes. Mandarei chamar outros mdicos para que examinem o corpo. Rodou nos calcanhares e conduziu os restantes sacerdotes para fora da sala de banquetes. Percorreram um corredor at chegarem a uma pequena diviso usada como sala de espera para convidados ou visitantes especiais do templo. Na parede fora talhado um banco. Os sumos sacerdotes, em conjunto com Uechlis e Amerotke, sentaram-se em silncio enquanto Hani trancava a porta e depois se apoiava contra ela com a cabea inclinada para trs. O juiz percebeu que Hani tremia; fosse qual fosse o veredicto, Hani acarretaria com alguma da responsabilidade por aqueles terrveis assassnios. No final de contas, era ele o anfitrio, o responsvel pelas vidas e segurana dos seus convidados. Sinto muito declarou Hani com a voz embargada. Retirou o luxuoso pendente que trazia ao pescoo e quase o 137
lanou ao cho. Desprendeu ento as pulseiras cerimoniais e entregou-as esposa. Por ltimo, sentou-se no cho, com as costas contra a porta, movendo a cabea para trs e para a frente como se estivesse em transe. No devemos fazer acusaes afirmou Uechlis. Levantou-se e foi sentar-se ao lado do marido, levando-lhe uma almofada para que ficasse mais confortvel. O que sugere, meu senhor Amerotke? perguntou o sumo sacerdote de sis. Estamos aqui por ordem do divino fara. Todos sabem o que viemos aqui debater. Se formos embora, nada se resolver. O divino fara ir ordenar-nos que prossigamos com o debate num outro local e numa outra ocasio. Amerotke fez uma pausa. Sim, pensou, e por essa altura o estrago j estar feito. As suas palavras foram recebidas com protestos e exclamaes. O sumo sacerdote de Amon ps-se de p, caminhou at porta e comeou a bater-lhe com os punhos. Vim aqui para falar, no para morrer! proclamou. Hani, ajudado pela esposa, levantou-se e esfregou o rosto com as mos. Ningum vai morrer declarou calmamente. Amerotke est certo. Temos assuntos importantes a discutir. Algum bateu porta. Amerotke foi abri-la. Deu de caras com Asural, que no estivera presente no banquete. J soube o que aconteceu, meu senhor murmurou. O corpo foi examinado por outro mdico, bem como por Chufoi, que tem alguns conhecimentos sobre venenos. O sumo sacerdote de Hathor foi assassinado. - melhor entrares. Depois de Asural passar, fechou a porta. O nosso maior receio confirma-se anunciou aos restantes. O capito da guarda do meu templo assegura-me que o sumo sacerdote de Hathor foi envenenado. Como? perguntou o de Amon. No sei, meu senhor respondeu Asural rapidamente. Ambos os mdicos, bem como o servo do meu senhor Amerotke, dizem que era um veneno de aco rpida. Ento, deve ter sido administrado durante o banquete aventou Hani. 138
Sim, meu senhor. Nesse caso concluiu Amerotke , ter sido quando se serviu o primeiro prato. Mas a comida foi servida em travessas. Ele comeu o mesmo que todos ns. E o mesmo se pode dizer da cerveja acrescentou Hani. Mas os copos de cerveja j estavam nas mesas lembrou o sumo sacerdote de Isis. Que quer dizer com isso? perguntou Uechlis. Entrmos todos na sala proferiu calmamente o juiz supremo. Tommos os nossos lugares. Nas mesas nossa frente nada mais havia para alm dos pratos, travessas e um copo de cerveja. Foi servido o primeiro prato e a bebida, e depois os servos retiraram os pratos e os copos. Portanto, o veneno j devia estar no copo do sumo sacerdote de Hathor. E deve l ter sido colocado antes de o banquete comear. O prato quente foi servido, e ele, como os restantes, bebeu a cerveja rapidamente. Isso possvel? perguntou Hani. Porque no? respondeu o sumo sacerdote de Amon. Quantos de ns se lembraram de olhar para o copo da cerveja antes de sermos servidos? Seria fcil deitar para l uns ps que depois se dissolveriam com a cerveja. Caso ele tivesse notado algum sabor estranho, teria, como provavelmente ns, pensado que era das especiarias e s se aperceberia quando fosse tarde de mais. E ser intil interrogar todos os que entraram e saram da sala de banquetes antes de termos tomado os nossos lugares opinou Amerotke. A lista seria interminvel: servos, msicos... E a coisa deve ter sido feita num abrir e fechar de olhos. Que ir fazer, juiz supremo? indagou o sumo sacerdote de Osris. Montar aqui um tribunal? Pode chegar a isso respondeu o juiz supremo. No entanto, meu senhor Hani, amanh de manh terei de ausentar-me. Tenho um assunto a tratar na necrpole. J est a pensar no seu tmulo? troou o sumo sacerdote de sis. A minha vida est na palma da mo do meu deus 139
replicou Amerotke. Voltou-se para Hani, pouco disposto a deixar-se arrastar para um conflito pessoal com aqueles sacerdotes rancorosos. Meu senhor Hani, o assunto urgente. Precisas da barca do templo? perguntou Hani. Amerotke respondeu que sim com a cabea. O Prenhoe, o meu escriba, ficar aqui. Parto de madrugada e espero estar de regresso ao meio-dia. Quanto ao resto, pouco mais h a dizer ou a fazer, mas aconselho-os a ter cuidado. Fez uma vnia a Hani, ignorou os restantes e abandonou a sala de espera. Voltou aos seus aposentos. Contou a Chufoi o que acontecera e deu as boas-noites ao ano. Tenho os meus prprios aposentos declarou Chufoi, ajustando a tnica arrogantemente. Como convm a um praticante de medicina. Amerotke estendeu-se numa cadeira e sorriu para o seu incorrigvel servo e amigo. - s mesmo um praticante, Chufoi? Quando acabar os meus estudos, amo, saberei mais que essa pandilha de charlates e bufarinheiros que se apregoam a si mesmos como mdicos. Serei um especialista. Chufoi projectou o lbio inferior para cima, sinal claro de que determinara o caminho a seguir. Serei o guardio do nus, perito em curar doenas dos intestinos. Essa talvez uma declarao adequada para terminar um dia como o de hoje murmurou o juiz supremo. Tirou as pulseiras e os anis, o peitoral e a tnica branca. Ajustou a tanga e deitou-se na cama. Chufoi aproximou-se e tapou-lhe os ombros com o lenol de linho. Revista o quarto murmurou, sonolento. J o fiz, amo. Nenhuma spide, escorpio ou serpente venenosa se atrever a entrar. Esfreguei as paredes com gordura de mangusto. Amerotke sorriu e adormeceu, com a sua curiosidade satisfeita relativamente ao estranho cheiro que imperava naquele quarto outrora to fragrante. Dormiu at tarde. Chufoi teve de aban-lo para que despertasse. Sentia a cabea pesada. Saiu para a varanda que dava 140
para norte, de onde soprava o alento de Amon. Ps-se de joelhos, com a testa no cho, e rezou por si e pela sua famlia. Nadou ento no lago sagrado e permitiu que Chufoi lhe aplicasse uma massagem com leo nos braos e pernas. Fez a barba enquanto o ano lhe segurava o espelho, tagarelando sem cessar. Chufoi s pensava em novos remdios e poes. Amerotke vestiu-se e, ante a insistncia do ano, que levava o seu pequeno arco e aljava, aceitou colocar o cinturo de guerra. Tomaram o pequeno-almoo sentados na erva, ainda hmida do orvalho matinal. Ouviam-se os sacerdotes entoar os hinos do primeiro ofcio do dia. O Sol brilhava forte, dissipando a bruma matutina, quando se dirigiram ao pequeno embarcadouro. Amerotke estreitou a mo de Prenhoe, recomendou-lhe que tivesse cuidado, e percorreu o caminho pavimentado a ladrilhos encarnados que conduzia aos degraus onde estava amarrada a barca. Chamava-se Glria de Hrus, era esguia e elegante, feita de juncos reforados e entretecidos. Tinha um s mastro, com a vela j desfraldada, e a proa, alta e curvada, reproduzia a forma de uma cabea de falco. Na popa estava sentado o barqueiro, com uma mo apoiada na cana do leme. No meio, de ambos os lados, seguiam dois remadores. Sobre o estrado de madeira que tapava o poro fora montada uma pequena tenda, com almofadas e cobertores, para proteger os viajantes do sol. Amerotke, Asural e Chufoi tomaram os seus lugares. O barqueiro gritou uma ordem e o barco afastou-se do embarcadouro e deslizou um pouco ao longo do Nilo antes de virar para se meter na bruma e atravessar para a outra margem, onde ficava a necrpole. Os cais e a margem fervilhavam j de actividade. A tripulao e os passageiros contemplaram os sacerdotes e sacerdotisas de um templo menor que se acercavam da margem para praticar os seus alegres ritos acompanhados por uma cacofonia de castanholas, flautas, cornos, cmbalos e pandeiretas. Homens e mulheres moviam-se ao som desses instrumentos, danando em redor das esttuas sagradas que carregavam. O ritmo aumentou e os fiis comearam a abanar os braos e as pernas num autntico frenesim. Anes com grandes chapus 141
de palha conhecidos como coroas do fara davam saltos mortais e rasgavam as roupas. Devamos juntar-nos a eles gritou um dos remadores. Os restantes companheiros responderam proposta com comentrios obscenos. Chufoi fez um gesto reprovador. Asu-ral, mais sentencioso, declarou que deviam estar bbedos e que deviam ter mais cuidado para no carem gua. uma zona onde abundam os crocodilos explicou. Amerotke olhou para l das rvores e avistou os terraos, templos e manses de Tebas. Interrogou-se sobre o que estariam Norfret e os filhos a fazer. O barqueiro gritou uma ordem e o barco comeou a virar, os remos erguendo-se e mergulhando novamente na gua. A vela com as armas de Hrus inchou ao vento; os marinheiros puxaram os cabos e manobraram a vela para aproveitar ao mximo a fora do vento. Ouviu-se um baque e um barulho de loua no poro. Alarmado, Amerotke olhou para um dos remadores. So s os cntaros de gua. O homem sorriu, mostrando os dentes sujos e partidos. S espero que aqueles idiotas os tenham selado bem. A nossa roupa e a comida tam bm l esto em baixo. Amerotke descansou. A barca ganhou velocidade. Os remadores levantaram os remos, deixando o vento cumprir a funo deles. Apenas curvariam as costas e voltariam a remar se o vento cessasse. Foi o que sucedeu. A vela murchou e caiu. O barqueiro gritou; um dos remadores comeou a cantar: A minha rapariga tem os seios macios e suculentos, mais doces que qualquer fruto. O refro foi entoado em coro pelos seus companheiros. O barco rangeu e os remos marcaram o ritmo. Amerotke olhou por cima do ombro e avistou a cabea verde e escamosa de um crocodilo, os olhos tona da gua, nadando na direco deles. No era uma viso pouco usual. Os crocodilos costumavam absorver o calor do Sol antes de comear a caar. Asural seguira o olhar do juiz. Agarrou-lhe o brao. Meu senhor, atrs de ns! Tinham aparecido mais crocodilos. Cinco, seis, sete. Outros 142
agrupavam-se a bombordo. O barqueiro tambm reparara neles e levantara-se com uma expresso de alarme no rosto. O que se passa? gritou. Como que em resposta sua pergunta, a embarcao foi sacudida como se tivesse embatido numa rocha. Ouviram-se pancadas a estibordo. Esto a atacar-nos! vociferou um dos remadores. Largou o seu remo e ps-se de p para espreitar por cima da amurada. Chufoi colocou uma flecha no seu arco. Asural e Amerot-ke desembainharam as respectivas espadas. A barca balanava para todos os lados. No havia dvida. Os crocodilos cercavam-nos e submergiam para atacar a embarcao com as suas poderosas mandbulas. Horrorizado, Amerotke viu um enorme crocodilo saltar da gua com a boca aberta. Os seus dentes afiados cravaram-se no pescoo do remador que se levantara. O juiz avanou para o ajudar, mas o homem caiu borda fora. Chufoi lanou uma flecha, mas foi intil. O remador veio tona da gua e gritou. Outros crocodilos lanaram-se sobre a vtima. Um dos rpteis abocanhou-o pela cintura e sacudiu-o. A gua borbulhava e espumava, tingida pelo sangue do remador. O barqueiro gritava ordens numa tentativa de restabelecer a disciplina. O que os ter atrado a ns? perguntou Asural, meio sem flego. Amerotke afastou as almofadas, levantou a escotilha do poro e desceu os degraus de madeira. Dois ou trs cntaros estavam tombados e esvaziavam-se. A gua potvel encharcoulhe os ps. Mas havia mais qualquer coisa, um cheiro que fez Amerotke recordar-se dos matadouros do templo. Novo embate sacudiu o casco. Apercebeu-se de que a gua comeara a infiltrar-se por entre os juncos. Agachou-se para recolher um pouco de gua com a palma da mo, cheirou-a e correu para o convs. sangue! gritou. Os cntaros esto cheios de sangue! Asural, Chufoi e os restantes olharam-no boquiabertos. Perceberam que se encontravam numa situao desesperada. 143
Uma embarcao daquele gnero no podia transportar sangue ou carne de nenhuma espcie, em especial num trecho do rio onde se sabia que abundavam os crocodilos. Os animais sentiram-lhe o cheiro arquejou Asural. Agarrou-se quando a barca sofreu novo ataque. Todos se mantinham longe da amurada. Amerotke empurrou os homens para os bancos e tomou o lugar do remador morto. Vamos! gritou. Remem! Remem ou iremos ao fundo! Os remadores obedeceram. O barqueiro agarrou a cana do leme. Amerotke inclinou-se sobre o remo. Asural montou guarda de um dos lados, Chufoi do outro. O juiz comeou a suar e a sentir fortes dores nas costas e nos braos, mas por fim conseguiu acompanhar o ritmo estabelecido pelos outros remadores. Tentou concentrar-se na sua tarefa, no fazendo caso dos gritos de Chufoi. Cada vez era mais difcil avanar medida que as fendas e rasgos no casco aumentavam e permitiam a entrada de mais gua. J estavam abaixo da linha de flutuao. Chufoi no parava de lanar setas, mas estas pouco impacte tinham na dura e escamosa armadura daquelas enormes bestas. Frenticos, os crocodilos atacavam qualquer coisa, incluindo os seus congneres. A barca j mal avanava. Levantou-se uma brisa, mas no houve tempo para desfraldar a vela e manobr-la. Amerotke s conseguia pensar naquelas tremendas pancadas contra o casco. De vez em quando, um dos crocodilos emergia da gua, mostrando as suas enormes mandbulas. Um dos remadores entrou em pnico, mas, com a ponta da espada, Asural obrigou-o a regressar ao seu posto. O vigia da popa pegara na sineta e tocava-a, sinal de que havia uma embarcao em apuros. A gua, tingida de sangue, comeou a sair pela escotilha. Amerotke fechou os olhos e rezou a Maet. Se a barca se afundasse, pouco poderiam fazer para se salvar. Os crocodilos acabariam com eles numa questo de minutos. Acidentes como este costumavam acontecer no Nilo: jovens brios que esqueciam o perigo que estes monstros do rio representavam eram as vtimas mais habituais. Os crocodilos haviam-se j afeioado ao gosto da carne humana, devorando os corpos dos 144
afogados e atacando os mais incautos que se aproximavam das margens. Abruptamente, como se em resposta sua orao, Amerotke escutou o tanger de outra sineta. Olhando para a sua direita, viu uma enorme barca encarnada e verde irromper da bruma. A sua alta proa, talhada com a forma de uma flor de ldo, cortava a gua na direco deles. Amerotke tentou manter os remadores nos seus postos, mas um levantou-se e correu para a borda, gritando e acenando. Um crocodilo, mais rpido que os restantes, deu um pulo, qual gato lanando-se sobre um pssaro. Agarrou o homem por baixo do brao e levou-o para dentro de gua num abrir e fechar de olhos. No se mexam! gritou o juiz. Recolham os remos! Os homens obedeceram. A barca que acorrera em seu socorro estava mais prxima. Os seus remadores eram mulheres despidas da cintura para cima e Amerotke percebeu que devia tratar-se de alguma festa de casamento ou outra celebrao. O barqueiro teve o bom senso de manobrar a embarcao de modo a que ficassem lado a lado. O juiz temeu que a Glria de Hrus se virasse ao bater contra a outra, mas manteve-se firme. Ouviram-se gritos e foram lanadas cordas. Amerotke ajudou Chufoi a trepar por uma e depois fez o mesmo com Asural. O resto da tripulao seguiu-os. Amerotke foi o ltimo. Apercebeu-se de rostos, de mos que se esticavam, e depois foi puxado por cima da borda e deixou-se cair no convs. Sentiu mos acariciarem-lhe o rosto e viu-se ser transportado para debaixo do grande toldo, perto do mastro. Apercebeu-se dos perfumes, dos panos de cores garridas. Colocaram-no sobre almofadas. Algum lhe ps um copo de vinho gelado nas mos. Bebeu um gole, mas sentiu-se enjoado e deixou-se ficar sentado com a cabea pendida para baixo. Todo o seu corpo latejava de dores. Ingeriu novo trago e olhou para os seus salvadores. A barca era quase to grande como uma galera de guerra. Estava decorada com uma enorme abundncia de ramos de flores, flmulas e pequenas mesas recheadas de comida e bebida. Um jovem com uma grinalda de flores em redor do pescoo agachou-se sua frente. 145
No foi convidado para o nosso casamento, meu se nhor disse com um sorriso , mas muito bem-vindo. Amerotke colocou-lhe uma mo no ombro. Prometo-te murmurou que contratarei um chantre para que cante os teus louvores aos deuses! Olhou em redor. Chufoi e Asural no pareciam estar em melhor estado. Um dos marinheiros desmaiara. Os outros soluavam num misto de aflio e alvio. Amerotke ps-se de p e, segurando o seu copo de vinho, caminhou ao longo do convs at proa. A barca estava a dar a volta. Olhou por cima da amurada. A barca do templo estava quase afundada. Ao seu redor, os dorsos dos crocodilos continuavam a investir contra o casco, desejosos de alcanar o sangue que no deixava de os atrair.
Fazer coisas verdes: antiga expresso egpcia que significava fazer coisas boas.
CAPTULO 10
Sato, o servo do templo, subiu as escadas desanimadamente e entrou no seu quarto por cima dos armazns da torre. Era um cubculo malcheiroso com uma janela minscula e poucas peas de moblia. Passou as mos pelo rosto para limpar o suor e fez um esforo por conter lgrimas de autocomiserao. Na noite passada, tentara encontrar a rapariga que o entretivera de forma to generosa poucos dias antes. Mostrara-lhe o disco de prata que Amerotke lhe dera, mas ela no quisera nada com ele. Desaparece daqui! gritara ela, e depois afastara-se, abanando as ancas e fazendo tilintar as pulseiras. Sato no percebia o motivo de tal indiferena. Queria falar com ela, explicar-lhe o que sabia. Percorrera o templo em busca do juiz supremo. Perguntara por ele a este e quele, mas todos haviam abanado a cabea. Foi-se embora disse-lhe um dos guardas do templo. Atravessou o rio para ir necrpole. Haviam sido atribudas a Sato numerosas tarefas, e este protestara vivamente; como antigo servo do pai divino Prem, estava de luto e isso devia ser respeitado. Sato tambm escutara os rumores. O templo ficara chocado com a morte repentina do sumo sacerdote de Hathor. Sato, ansioso por demonstrar o que sabia, repetira mais uma vez, a quem o quisesse ouvir, o ocorrido na noite do homicdio do seu amo. Ningum pareceu muito interessado no seu relato. Se calhar, o melhor que tinha a fazer era partir daquele lugar. 147
Observou a pequena esttua da deusa Isis colocada num pedestal de madeira a um canto do quarto. Era a divindade preferida de Sato, embora nesse momento s lhe trouxesse recordaes daquela formosa cortes. Bom, talvez o melhor fosse fazer notar a sua presena. A nica pessoa que o tratara ama-velmente fora o juiz supremo Amerotke. O prprio Sato o comentara com os outros servos. Talvez, se desse voltas ao miolo e conseguisse lembrar-se do que vira com mais clareza, Amerotke o recompensasse novamente e, porque no, lhe arranjasse um emprego longe daquele lugar de mortes inesperadas e violentas. Sato levantou a cabea e, pela primeira vez, reparou numa jarra de vinho sobre a mesa. Ps-se de p e aproximou-se dela. A jarra era muito bonita, de cermica vidrada com figuras de cegonhas, gansos e outras aves. A tampa, de papiro endurecido e presa ao rebordo por um cordel, era nova. Pegou num copo. Sem dvida que se tratava de um presente do generoso juiz. Sato desatou o cordel, serviu-se e bebeu o vinho de um s trago. Ia no segundo copo quando a dor o atingiu como uma punhalada na barriga. Levantou-se, cambaleante. Era bvio que no se tratava de nenhum presente. Tentou provocar o vmito, mas no conseguiu. Comeou a sufocar e, no meio do desespero, tombou a jarra. O vinho derramou-se pela mesa, espesso como sangue. Sato recordou-se do que vira e, mergulhando as mos no vinho, cambaleou at parede branca. Uma e outra vez pressionou as palmas contra a parede, at que a dor se tornou insuportvel e ele tombou inconsciente. Amerotke, Chufoi e Asural encontravam-se sentados sob uma palmeira perto de uma taberna, no cais da necrpole. O juiz insistira em comprar-lhes tiras de gazela assada em lume de carvo e bastante condimentada, um cesto de po acabado de cozer e canecas de cerveja. A princpio mantiveram-se em silncio. De vez em quando, Asural levantava-se para andar um pouco. Chufoi comentou que a palidez do capito da guarda se devia ao facto de ter vomitado. O juiz obrigou-se a relaxar, inspirando profundamente e deixando o corpo descontrair-se. Tentou no pensar em nada 148
e concentrou-se nos odores, fortes e salinos, que emergiam das lojas de cadveres, como Chufoi chamava aos locais onde os embalsamadores trabalhavam. A necrpole dedicava-se a uma nica funo: preparar os mortos para a derradeira viagem para o Ocidente. Um pouco mais abaixo elevava-se a grande esttua de Osris, deus do Mundo Inferior, o primeiro dos habitantes do Ocidente. O bulcio nos desembarcadouros era constante. A todo o minuto chegavam embarcaes carregadas de caixes. Alguns trazidos pelas famlias. Os atades dos ricos eram, obviamente, os mais ostentosos. Uma carreta fora decorada a prata para carregar um fretro chapeado a ouro. Era puxada por quatro bois brancos com grinaldas em redor dos cornos. Sacerdotes e chantres rodeavam a carreta, aspergindo o caminho com gua perfumada e leite. Ficaste mudo, amo? Amerotke olhou para Chufoi. O ano estava ainda fora de si com aquele resgate ltima hora. Desde que haviam posto p em terra, passara a maior parte do tempo a murmurar pragas. Pelo menos, ests vivo retorquiu Asural, mais com posto. Lvido de raiva, o ano deu um murro na mesa. Perdi a minha sacola conta daqueles canalhas! vociferou. A sabedoria do Egipto estava naquela sacola. Me dicamentos pelos quais qualquer sacerdote daria os dentes. Quando os apanhar, amo... Amerotke largou a rir. As suas gargalhadas eram to altas que um grupo de carpidores profissionais que passava ali por perto se deteve um momento e os olhou com desdm. Onde esto os marinheiros? perguntou Asural. Gostava de os interrogar. J o fiz informou-o o juiz. Paguei-lhes e disse-lhes que fizessem um requerimento ao Templo de Maet para que recebessem uma compensao. Comportaram-se como uns cobardes rosnou o capito da guarda. Comportaram-se como homens assustados argumentou Amerotke , tal como eu. 149
Foi homicdio, no foi? perguntou Asural. Sim, foi homicdio. Morreram dois homens, mas o plano era que morrssemos todos. Ao cair da noite, a notcia j se ter espalhado por toda a Tebas. Porque no revistaram o poro? indignou-se Chufoi. Revistaram, meu mui magnfico mdico disse Amerotke. Abriram a escotilha e verificaram que os cntaros de gua l estavam. So enchidos a partir de um poo do templo. A noite passada, ordenaram ao piloto que preparasse a barca para a nossa travessia. E isso pouco trabalho envolvia, para alm de reunir a tripulao. E foi ento que o assassino entrou em aco afirmou Asural. Sim, durante a noite, algum foi ao Santurio dos Barcos. No havia ningum a vigiar a barca, pois no havia motivos para tal. Foi um trabalho fcil de executar. Dois ou trs dos cntaros foram esvaziados e depois enchidos com um odre de sangue de boi obtido nos matadouros. As tampas foram colocadas, sem serem apertadas, e os calos dos cntaros foram afrouxados. Amerotke fez uma pausa e enxotou as moscas que rodeavam a sua caneca de cerveja. A barca deixou o embarcadouro e comeou a balanar enquanto virvamos. Ouvimos os cntaros tombar e o sangue verteu nessa altura. Uma jogada muito astuta comentou Chufoi. Se no estivssemos no rio, teramos dado pelo cheiro a sangue. Os crocodilos so como as moscas, um excita-se e atrai os restantes. Aqueles marinheiros no foram cobardes, Chufoi, mantiveram aquela barca a flutuar por mais tempo do que se esperava. Se no fosse aquela boda... O juiz deixou que cada um completasse a frase na sua cabea. Asural ficou ainda mais plido e at Chufoi permaneceu calado enquanto imaginava o horror do que podia ter acontecido. Uma morte dolorosa, corpos a serem despedaados debaixo de gua pelos crocodilos que os rasgavam em tiras e disputavam os pedaos. Um final blasfemo, sacrlego, sem honras fnebres, sem embalsamamento nem oraes que os ajudassem a passar para o Horizonte Longnquo. 150
Digo-vos uma coisa continuou o juiz num tom sinistro. Juro por Maet que vou apanhar o assassino. Quero v-lo morrer. Bebeu o resto da cerveja e levantou-se. Tinha a tnica suja, uma das tiras da sandlia rasgara-se e perdera o seu cinturo de guerra, a espada e a adaga durante a louca fuga da barca. Sem dvida que temos todo o aspecto de quem sofreu uma travessia muito atribulada comentou ironicamente. E perdeste o teu dinheiro em conjunto com o resto recordou-lhe Chufoi com um brilho de picardia nos olhos. Amerotke inclinou-se, pegou no ano, levantou-o do cho e sacudiu-o, sorrindo ao escutar o tilintar proveniente das suas volumosas roupas. Pe-me no cho, amo reclamou Chufoi. Emprestas-me dinheiro se eu precisar? Com juros respondeu o ano. Os trs percorreram as ruas da Cidade dos Mortos. Eram largas e constantemente buliosas com cortejos fnebres ou familiares que visitavam a Casa da Eternidade onde os seus entres queridos dormiam. Muitos estavam ali para escolher e comprar urnas, caixes, mobilirio fnebre, ou para consultar pedreiros e escultores sobre a construo e adorno dos seus tmulos. Aprendizes, com bandejas penduradas ao pescoo, procuravam novos clientes, gritando os nomes dos seus mestres e oferecendo amostras em miniatura do que se fazia nas suas respectivas oficinas. Amerotke e os seus companheiros atravessaram a cidade, passando pelas inmeras esttuas de Osris, do deus ano Bs e outras divindades que ajudavam os mortos. Passaram pelas oficinas dos embalsamadores, das quais saa um fumo salobro que lhes irritou o nariz e os olhos. O interior das oficinas assemelhava-se a um aougue, com cadveres sobre mesas de pedra e outros, em avanado estado de decomposio, pendurados em ganchos sobre os caldeires de natro a ferver. Seguiram em direco s escarpas de um amarelo brilhante, onde ficavam as oficinas e barracas que tratavam dos corpos dos menos afortunados. O fumo era mais denso e a fuligem das fogueiras pairava pelo ar como moscas. As casas erguiam-se 151
em socalcos em ambos os lados. Nas ruas, o lixo e os excrementos amontoavam-se. As moscas avanavam em nuvens negras, ces e gatos disputavam restos, mendigos suplicavam esmola, bufarinheiros e tendeiros tentavam atra-los, agarrandoos pelos braos. Asural parou numa esquina. Olhou em redor, grunhiu e guiou-os por um beco estreito e tortuoso. Pararam frente a uma casa. Um homem apareceu porta. Estava vestido como um nmada, coberto de faixas brancas sujas da cabea aos ps. Os seus olhos brilhavam, mas Amerotke conseguiu ver as marcas por cima das suas sobrancelhas, as horrveis laceraes encarnadas da lepra. Asural ordenou-lhe que no se aproximasse. Viemos falar com o Lehket disse-lhe o capito da guarda. O homem subiu um lano de escadas exteriores, sussurrando e gesticulando que o seguissem. O terrao estava varrido e surpreendentemente limpo, e havia taas de flores junto s paredes. No canto mais afastado, sentado sobre almofadas, encontrava-se um homem vestido da mesma forma que o guia. Bebericava de uma tigela. Detiveram-se enquanto o guia se dirigia ao homem. - s o Lehket? perguntou Asural. Sou o Lehket. Aproximem-se. Com um gesto da mo, convidou-os a sentarem-se no extremo da mesa. Tambm ele estava coberto de ligaduras, mas os seus olhos tinham uma expresso alerta e a voz revelava um tom mais culto. Pelo que percebi, desejava falar comigo, meu senhor Amerotke. O Asural eu j conheo, por isso este deve ser o Chufoi, o seu servo ano. - um dos melhores mdicos de Tebas! proclamou Chufoi, no perdendo a oportunidade de se evidenciar. E tens uma cura para a lepra, Chufoi? Os olhos por trs das ligaduras brilharam de divertimento e a voz exibia um tom de brincadeira. Amerotke simpatizou com ele. A lepra era uma doena revoltante; porm, Lehket assumia uma atitude filosfica, adoptando uma dignidade calma ante o mal que o condenara a uma morte em vida. Tens notcias dos amemets! perguntou Amerotke. 152
Porque pergunta isso, meu senhor? A voz manteve o mesmo tom risonho. Esto mortos e sabe-lo bem. Mas ouvimos rumores. Tebas sempre teve os seus assassinos. Sem dvida que, medida que o tempo for passando, se formar uma nova corporao, mas haver grande derramamento de sangue antes que tal acontea. Lehket levantou uma mo vendada antes que Amerotke tivesse oportunidade de falar. Conheo os seus problemas, juiz. Os rumores so como a brisa, vo onde quiserem. Porm, digo-lhe uma coisa, o Nehemu no era um amemet, no prestou juramento a Mafdet, a terrvel deusa felina. Era um fanfarro e um bbedo. Admira-me que vivesse tanto tempo. Como sabes tudo isso? inquiriu Chufoi. Homenzinho, na minha juventude fui um amemet. Durante algum tempo liderei-os, mas depois os deuses castigaramme. Tirava vidas, eles tiraram-me a minha. Assim, vagueei pelas Terra Vermelhas. Voltei para me redimir. Trabalho para os mortos. Embalsamo os corpos dos pobres e no exijo nenhum pagamento, para alm de vinho e comida para mim e para os meus servos. Conheo os amemets. O Nehemu no era um deles. Mas eu recebi um bolo de sementes de alfarroba declarou Amerotke. E ento? No um aviso dos amemets? Diga-me como lhe foi parar s mos. Numa caixa de sndalo e envolto num pedao de papiro. Lehket riu. Se isso fosse obra dos amemets, no desperdiariam dinheiro numa caixa de tal qualidade. Eles podem mandar qual quer coisa, um bolo, uma maldio, mas sempre entregue pessoalmente e em mo. Quem quer que lhe tenha enviado esse bolo de sementes de alfarroba, meu senhor juiz, tanto membro dos amemets como o Asural, o capito da guarda do seu templo. A Corporao dos Assassinos desmembrou-se e a sua sanguinria funo cessou. Procure entre os seus inimigos, juiz supremo. A encontrar o remetente e, talvez, o assassino. 153
J soube da vossa travessia. Amerotke agradeceu-lhe e fez teno de se levantar. Ah, s mais uma coisa. Amerotke olhou para ele. A Sala do Mundo Inferior, o labirinto dos Hicsos nas Terras Vermelhas. O filho do Omendap acusado da morte dos seus dois companheiros, no verdade? Sim, . Quando pertencia aos amemets, e os deuses sabem que o sangue ainda me pesa na alma, levmos para a um mercador que nos contratou, mas que no nos quis pagar. Obrigmo-lo a entrar no labirinto. E depois? perguntou Chufoi. No voltou a sair. O que aconteceu? No sei, meu senhor Amerotke. Espermos trs dias. Se tivesse sado, a dvida estaria saldada. Mandmos um dos homens trepar parede, mas ele no viu o mercador em parte alguma. Juro que no entrou nenhum animal selvagem e ningum saiu do labirinto. Amerotke e os seus companheiros regressaram ao Templo de Hrus. Assim que desembarcaram, o sumo sacerdote Hani e Uechlis apressaram-se a receb-los na Sala de Boas-Vindas. Tinham ambos um ar perturbado, tal como Prenhoe, que permanecia no umbral balanando de um p para o outro, ansioso por ouvir o que acontecera. Uechlis agarrou a mo do juiz e olhou-o nos olhos. Soubemos do sucedido por meio de um dos marinheiros. Dmos graas aos deuses por se terem salvo. Sim e, mais uma vez, obrigado. O sumo sacerdote de Amon, seguido pelos de Isis, Osris e Anbis, apareceu porta. Empurraram Prenhoe para o lado a irromperam sala adentro com os olhos a brilhar ante a perspectiva de novos confrontos. Seguramente que ainda se lembra do que disse a noite passada. O sacerdote no conseguia dissimular o rancor na sua voz. Sabe, meu senhor Amerotke, uma tal barca nunca poderia transportar sangue. Foi l colocado deliberadamente para que tivesse uma morte sacrlega. Ainda nos aconselha a ficarmos aqui? perguntou o sumo sacerdote de Osris. 154
No pude evitar o sucedido interrompeu Hani. Olhou furioso para os seus colegas. Qualquer pessoa poderia ter entrado naquela barca e colocado sangue nos cntaros. Amerotke deu um passo atrs e observou os sumos sacerdotes, os seus rostos estreitos e as cabeas rapadas. A excepo de Hani, pareciam irmos, unidos na malcia e antipatia. Interrogou-se se no estariam todos envolvidos naquelas mortes, cada qual encobrindo os restantes, lanando a discrdia e semeando o medo e deixando-os correr livremente pelas inmeras torrentes de rumores que corriam por Tebas. s expresses nos seus rostos deixavam bem claro que ficariam satisfeitos por ver o conselho interrompido no meio de semelhante atmosfera; poderiam ento regressar aos seus templos para novas maquinaes e deixar que o pobre Hani acarretasse com as conseqncias. Procedeste a uma investigao minuciosa? perguntou o juiz a Hani. O sumo sacerdote abanou a cabea. O Santurio dos Barcos acessvel a qualquer pessoa. Depois de escurecer, torna-se um local solitrio e deserto. Os marinheiros prepararam a barca, asseguraram-se de que estaria pronta para partir pela manh e depois foram sua vida. Uechlis agarrou novamente a mo de Amerotke e apertou-a. Lamentamos muito murmurou com lgrimas nos olhos. A divina Hatusu ter de ser informada? Provavelmente soube-o antes de ns zombou o sumo sacerdote de Amon. Este verdadeiramente um local de morte comentou o de sis, abanando a cabea. Meu senhor Hani, disseramme que um dos servos do templo tambm tinha morrido. De apoplexia apressou-se Hani a explicar. Um conhecido bbedo. Quem era? perguntou Amerotke, embora lhe parecesse que conhecia a resposta. O Sato respondeu Uechlis. Foi encontrado morto no seu quarto pouco antes do meio-dia. O corpo j foi levado aos embalsamadores. Quanto ao quarto, o meu marido decidiu que seria melhor que o investigasses. Queres tomar um banho e purificar-te? 155
Amerotke respondeu que sim. Sentia-se cansado e oprimido por aqueles sacerdotes agrupados em seu redor. Queria afastar-se deles, mas, acima de tudo, pretendia visitar o quarto de Sato. No tinha iluses de que a morte do rechonchudo servo fosse um acidente. Fez uma vnia, agradeceu a preocupao de todos e abandonou a Sala de Boas-Vindas, penetrando nos jardins. Ontem noite tive um sonho, amo exclamou Pre-nhoe, aproximando-se a correr. Se no me deixas em paz replicou o juiz por entre dentes cerrados , ser o ltimo sonho que ters! Parou to abruptamente, que o escriba esbarrou nele. H alguma novidade? Mensagens da corte respondeu Prenhoe. O delegado, os olhos e os ouvidos do fara, insiste que lhe seja permitido apresentar o seu caso contra o jovem Ramose. Pede desculpa, mas diz que, tal como tu, tem de lidar com presses. Sim, no tenho a menor dvida. O juiz limpou a mo suada tnica. E que mais? O Omendap. Amerotke fechou os olhos. Omendap, o comandante supremo do exrcito do fara, pressionava-o para que o caso fosse arquivado. Abriu os olhos. E que tinha o mensageiro do general para dizer? Que os dias vo passando e est ansioso por proclamar a inocncia do filho a toda a cidade. Ter de ter pacincia afirmou Amerotke. Chufoi, procura um servo! Quero inspeccionar os aposentos do Sato. Quando chegaram, o quarto estava deserto e quase vazio. Ao olhar em redor, o juiz percebeu que os outros servos do templo no haviam tardado em repartir os humildes bens do defunto. No entanto, provavelmente devido a ordens de Hani, o copo e a jarra de vinho tombada no haviam sido levados e a mesa no fora limpa; o vinho derramado formava um charco carmesim sobre o qual as moscas zumbiam. Quem disse que foi apoplexia? inquiriu Amerotke, caminhando at janela e olhando para a rua. 156
Os mdicos do templo. Examinaram o cadver cuidadosamente. Toda a gente sabia continuou Prenhoe que o Sato era gordo e bebia de mais. Mas andei muito ocupado em teu nome, amo. Amerotke virou-se e sentou-se no parapeito da janela. A que ponto, Prenhoe? O Sato saiu esta manh. Dizem que foi procura de uma rapariga, uma cortes que lhe vendera os seus favores. Sim, sim, ele falou-me nela. Algum sabe quem ela ? O escriba abanou a cabea. Quando regressou... Prenhoe fez uma pausa ao escutar uns sonoros roncos e olhou por cima do ombro. Asural estava de guarda porta, mas Chufoi acomodara-se a um canto e adormecera profundamente. O pobre est cansado disse o juiz em voz baixa e desgostoso com a perda de todas as suas poes e remdios. Lutou como um verdadeiro guerreiro esta manh. Estou to esgotado que ainda nem lhe agradeci, ou ao Asural, convenientemente. Continua, Prenhoe. O Sato regressou ao templo. Parece que estivera a beber e, de acordo com os servos, andava tua procura. Disse que tinha uma coisa para te contar. J sabes como so os servos quando tm notcias importantes a relatar. Prenhoe seguiu o olhar de Amerotke. O juiz supremo contemplava a parede. Aproximou-se e examinou as marcas cuidadosamente. So frescas murmurou o juiz. H umas seis ou sete. Repara, Prenhoe. Ao que parece, o Sato molhou as mos no vinho e pressionou-as contra a parede. O mdico disse que o deve ter feito enquanto agonizava. Onde encontraram o corpo? Prenhoe apontou para o fundo da parede. Ali, meio agachado. Tinha as mos pegajosas de vinho. Amerotke j vira homens mortos de apoplexia. Eram mortes sbitas. Observou novamente a mesa, o copo, a jarra cada. Sato devia estar sentado mesa quando bebera o vinho. Depois, levantou-se e acercou-se da parede. Olhou outra vez para as manchas encarnadas. 157
O vinho foi analisado? Cheguei aqui quando os mdicos examinavam o corpo respondeu o escriba. Cheiraram o vinho, o copo e a jarra. At o provaram. Era puro, sem mcula. Amerotke regressou mesa. O vinho parecia espesso como sangue. Reparou como as moscas no paravam de rodear e pousar sobre a mancha. No pareciam afectadas por qualquer efeito nefasto. O vinho estragado era habitualmente usado pelas criadas para apanhar moscas e outros insectos. Sentou-se num banco e estudou a mesa com mais ateno. Alguma coisa estranha, amo? Como que em resposta, Chufoi soltou um ronco e bateu nos lbios, murmurando qualquer coisa. Sim, Prenhoe. Repara. Amerotke apontou para o outro extremo da mesa. O que vs ali que no bata certo? Prenhoe levantou a jarra, o pedao de cordel e a rolha de papiro. O Sato teria posses para dar-se ao luxo de um vinho to caro? perguntou. Muito bem murmurou o juiz. Mas a jarra barata. Mergulhou um dedo no vinho e cheirou-o. Olha para a mancha. H duas manchas! exclamou. Apontou para a mais descolorada. Talvez o Sato j tivesse entornado algum vinho muito antes de morrer. No penso assim. Acho que o assassino derramou vinho depois. Sabes o que me parece que aconteceu, Prenhoe? O Sato andou por a esta manh a dizer que queria falar comigo. O assassino tomou conhecimento disso. Talvez j tivesse decidido mat-lo, no fosse dar-se o caso de ele ter visto alguma coisa suspeita. Assim, deixa uma jarra de vinho envenenado no quarto dele. O Sato regressa, cansado e desiludido. V a jarra e nem quer acreditar na sua sorte. Algum amigo lhe deixou uma jarra de vinho. Talvez tenha pensado que fui eu quem lha enviou ou que era um presente da tal prostituta. Um homem como o Sato no faz perguntas. Enche um copo e bebe-o de um s trago. Serve-se de outro, mas o veneno j est no estmago e comea a produzir o seu efeito. Derruba a 158
jarra, deixa cair o copo. Apercebe-se de duas coisas: que est a morrer e que foi envenenado, provavelmente devido ao que queria dizer-me. Acerca-se da parede. Amerotke olhou por cima do ombro para as manchas, agora j bastante descoloradas, embora ainda se conseguissem perceber os contornos das palmas e dos dedos. Pergunto-me o que estaria ele a tentar dizer. Abanou a cabea. O pobre Sato morre, o veneno faz-lhe parar o corao. Da que parea que morreu de um ataque. Duvido que o Hani tenha insistido numa averiguao mais aturada; a ltima coisa que o nosso sumo sacerdote deseja mais homicdios. Estar ele a ocultar alguma coisa? perguntou Prenhoe. Pode ser. Amerotke levantou-se e dirigiu-se de novo janela. Porm, mais uma vez, a explicao mais simples a mais provvel. O Hani no quer que a morte do Sato seja considerada suspeita. Tenho a certeza de que os mdicos no examinaro o corpo com muito pormenor e h ps e poes que no deixam vestgios. Encolheu os ombros. E quem se importar com o Sato, um mero servo do templo? Podem at dizer que morreu de desgosto, embora, como bvio, as pessoas acabem por murmurar e mexericar. Mas este vinho no est envenenado. Pois no. Muito provavelmente, o assassino viu o Sato regressar. E uma parte solitria e esquecida do templo. O assassino esperou e subiu as escadas. Se o Sato ainda estivesse vivo, convenc-lo-ia a beber o vinho, mas claro que a vtima estava morta. O assassino devia trazer uma bolsa, uma jarra de vinho e um pedao de pano. A jarra envenenada retirada, o vinho entornado limpo e o copo lavado. E o vinho de uma segunda jarra derramado sobre a mesa? concluiu Prenhoe. Muito bem, meu erudito escriba. Assim, temos um cadver e vinho puro. O Sato rapidamente levado daqui sem que ningum suspeite que foi homicdio. Quando terminar tudo isto? perguntou Prenhoe, desanimado. Muito em breve respondeu-lhe o juiz. A resposta est no Neria; foi ele o primeiro a morrer. Se soubermos o motivo, descobriremos o assassino. 159
CAPTULO 11
Amerotke pegou em Chufoi ao colo, abandonou o quarto de Sato e atravessou os jardins em direco aos seus prprios aposentos. O ano dormia profundamente, ressonando como um porco. O juiz deitou-o na cama e correu o mosquiteiro para que as moscas e os mosquitos no o incomodassem. Asural, fica aqui e guarda o Chufoi. Depois olhou para Prenhoe da cabea aos ps e caminhou lentamente em seu redor. Importas-te de te molhar? Como, amo? O que sonhaste a noite passada? Sonhei que nadava no Nilo com duas raparigas nuas ao meu lado. Parei de nadar e pus-me de p. Uma das raparigas colocou-se minha frente e a outra atrs e comearam a apertar-me com os seios. Como gostava de ter sonhos como os teus suspirou Asural. J chega afirmou Amerotke. Parte do teu sonho ir tornar-se realidade. Quero que vs buscar um balde de gua e te encontres comigo junto esttua de Hrus, aquela que est rodeada por cedros-do-lbano. Um balde de gua, amo? Faz o que te digo. Prenhoe apressou-se a cumprir a ordem. O juiz voltou a recomendar a Asural que se mantivesse alerta e partiu tambm. Nos jardins, banhados pela luz do Sol, reinava a paz e o 160
ar cheirava a rosas em flor e a jacintos e lrios. Os sacerdotes caminhavam em direco ao santurio para o sacrifcio vespertino, onde abririam as portas do nos para vestir e alimentar o seu deus. Do interior do templo chegava o som de cmbalos, do sistro e as vozes de um coro: Para ti, Hrus, Falco Dourado, Todos os louvores. As tuas asas estendem-se de um extremo do firmamento ao outro, Senhor da Vida. Amerotke seguiu o seu caminho. A atmosfera era calma e tranqila, porm, devia estar alerta; sem dvida que a pessoa que o tentara matar no Nilo tambm era o autor da morte de Sato. O juiz pouco sabia sobre a alma, o funcionamento da mente humana, excepto o que aprendera no exerccio da justia faranica. A maioria dos crimes com que lidava tinha a ver com a paixo, a luxria, o desejo mal dirigido, homens e mulheres que perdiam a razo ou eram negligentes. No entanto, por vezes deparara-se com almas que viviam envoltas na noite eterna, que agiam com malvadez, dispostas a semear a morte. Sempre se interrogara se tais indivduos eram sos ou se estariam possudos por Set, o deus vermelho. Os assassnios cometidos no Templo de Hrus eram desse cariz. Quem quer que os cometera, agia com malvadez e estava determinado a levar a sua avante, custasse o que custasse aos outros. O juiz chegou ao pequeno bosque de cedros-do-lbano e parou sob a sua sombra. Mas porqu? Os homicdios haviam comeado quando o conselho de sumos sacerdotes se reunira para discutir a subida ao trono da divina Hatusu. Amerotke recordou-se de ver o sumo sacerdote de Amon a possuir a rapariga contra a parede. Seria essa a sua verdadeira atitude em relao s mulheres? Encarava-as como escravas, brinquedos sexuais? Objectos propriedade do templo? Seria essa a razo por que ele e os outros sacerdotes se opunham assim to ferozmente a que uma mulher se sentasse no trono do fara e usasse a coroa dupla? Especialmente uma mulher to jovem que 161
poderia ser filha, ou at neta deles? No era a primeira vez que Amerotke se deparava com tal preconceito. A casta sacerdotal era composta, na sua maioria, por homens. Era verdade que mulheres como Uechlis podiam chegar a ocupar cargos elevados, mas eram sempre funes subalternas. Estariam o dio e o ressentimento machistas na raiz desses assassnios? Amerotke agachou-se e contemplou o voo de uma borboleta sobre as flores, as suas asas batendo na brisa da tarde. Ha-tusu era uma jovem que no se preocupava em ocultar o seu desapreo pelas convenes e rituais. O juiz adorava a deusa da Verdade, mas tinha srias dvidas relativamente a outros aspectos da religio que se praticava nos templos. Sacerdotes que adoravam babunos, gatos e at crocodilos! Hatusu compartilharia da mesma opinio? Por vezes, durante as ocasies mais solenes, vira-a a rir para si mesma e com um olhar sarcstico. Teriam os sumos sacerdotes percebido que ela zombava dos rituais? Para alm disso, Hatusu vivera na sombra de seu pai Tutms I e depois como fiel e submissa esposa do seu meio-irmo Tutms II. Os sacerdotes e nobres de Tebas haviamse acostumado a ela, encarando-a como nada mais que uma rapariga de origem nobre sem a menor importncia. Hatusu, porm, saltara da escurido como uma pantera. Marchara para norte e infligira uma esmagadora derrota aos inimigos do Egipto. Regressara ento a Tebas para purgar o conselho real e, em conjunto com Senenmut, um vulgar plebeu, designara os seus prprios candidatos para a Casa da Guerra e para a Casa da Prata. Tais aces apenas serviram para alimentar a fria nos coraes de homens como o sumo sacerdote de Amon. Uma mera rapariga no tinha o direito de manifestar semelhante poder, de usar os atributos reais e de observ-los a beijar o cho a seus ps. Seriam ento todos estes homicdios obra daquele sumo sacerdote e seus apoiantes? Amo? Amerotke sobressaltou-se e levantou os olhos. Prenhoe estava junto a si com um balde na mo. ptimo. O juiz supremo ps-se de p. Vem comigo. Levou o escriba at sombria escadaria que conduzia s 162
criptas. No cimo das escadas, do lado de fora da porta, Amerotke disse a Prenhoe que se chegasse para o lado. Ajoelhou-se e no tardou a encontrar o que procurava: uma mancha escura na laje branca. Tocou-lhe com os dedos. No gua murmurou o juiz. Provavelmente leo, leo puro. Foi a que o assassino do Neria colocou o leo? perguntou Prenhoe. Sim. Colocou o balde ali. Amerotke retirou uma das tochas do nicho na parede. Abriu a porta e entregou a tocha ao escriba. Desce os degraus. Prenhoe engoliu em seco. A cripta era um lugar frio e sombrio e mesmo onde se encontrava conseguia vislumbrar as marcas do fogo nos degraus e na parede. Quero que vs at ao fundo das escadas e depois voltes para cima, Prenhoe. Tenta agir o mais naturalmente possvel. O escriba obedeceu. Escutou a porta fechar-se por trs de si enquanto descia. No fim da escada, parou e voltou-se. Tentou no olhar para as sombras que pareciam ter ganho vida prpria com as oscilaes das chamas das tochas. Tinha quase a certeza do que iria acontecer. Do outro lado da porta, Amerotke sorriu. A cripta fazia eco. Ouvia na perfeio os passos de Prenhoe. Esperou, calculando a distncia, depois abriu a porta, pegou no balde e, embora Prenhoe se tenha agachado, conseguiu encharc-lo. Em seguida, lanou o balde escada abaixo, como se fosse uma lamparina ou uma tocha. O escriba emergiu da cripta ensopado da cabea aos ps. Lamento ter tido de te encharcar. Amerotke sorriu com afecto. Mas precisava de perceber com que rapidez o Neria morreu. Em vez de gua e um balde de couro, lanaramlhe leo e uma tocha ou uma lamparina. Acontece o mesmo em cercos. O leo arde com muita facilidade; basta a mnima chama para que um homem se converta numa tocha. Amerotke fez uma pausa e usou a tnica para limpar o rosto de Prenhoe. O assassino viu o Neria descer cripta e decidiu mat-lo. Esperou aqui, um lugar solitrio e desolado do templo. No te esqueas de que os restantes estavam na festa oferecida depois da visita do fara. 163
Mas porqu? perguntou Prenhoe. Porque no enviar ao Neria uma jarra de vinho envenenado, ou mat-lo com uma punhalada na escurido, ou atravess-lo com uma flecha? O assassino estava furioso com o Neria. Queria negar-lhe a vida e um enterro honrado. Mas, concordo contigo, o pobre bibliotecrio poderia ter sido morto de muitas outras maneiras. Porqu esta? E o Pepi, morreu da mesma maneira? Ah, isso foi diferente. Amerotke subiu os degraus, acenando a Prenhoe para que o seguisse. Na minha opinio, o assassino queria matar o nosso erudito ambulante e destruir tudo o que ele tinha no quarto. que o criminoso no pretendia somente matar as suas vtimas, mas tambm destruir qualquer coisa que pudessem ter: apontamentos, notas ou textos copiados da biblioteca. Ou o que o Pepi roubou acrescentou Prenhoe. Se tinha de facto roubado alguma coisa argumentou o juiz , j a teria vendido, o que explica a sbita riqueza do nosso intelectual. Fez uma pausa. Mas talvez isso no corresponda verdade. O qu, amo? Nada, Prenhoe. Amerotke colocou o brao em redor dos ombros do seu escriba. Desculpa ter-te encharcado. Regressaram aos seus aposentos. Chufoi estava j acordado e explicava a Asural que algumas doenas podiam propagar-se com o toque da mo ou atravs do mau hlito. O capito da guarda do templo parecia muito interessado; estava prestes a pedir a Chufoi um pouco do seu unguento mgico quando Amerotke e Prenhoe entraram. Chufoi olhou indignado para o seu amo e murmurou qualquer coisa sobre no ser digno de confiana na hora de ajudar. Dormias profundamente! replicou Amerotke. Roncavas como um leitozinho. Agachou-se junto ao ano. Ou como um guerreiro depois da batalha. Levantou os olhos. Asural, sei que andaste a percorrer os mercados e que desejarias possuir uma certa bainha hitita. Quando isto 164
terminar, essa bainha ser tua. Quanto a ti, vigilante do hlito e guardio do nus, presentear-te-ei com um verdadeiro estojo mdico do mais puro carvalho, com uma fechadura especial, e uma bolsa de couro para o transportar. Poders vender as tuas poes e mezinhas de uma ponta a outra de Tebas. Agora, pretendo ir para a biblioteca estudar. Amerotke ordenou-lhes que ficassem nos seus aposentos. Tirou a tnica suja e amarrotada e, apenas de tanga, desceu aos jardins e nadou num dos lagos sagrados, construdos de propsito e cheios com gua do Nilo. A gua estava morna e perfumada com o aroma dos lrios e flores de ldo que boiavam superfcie. No pequeno santurio ao lado do lago, purificou a boca e as mos com sais de natro, aspergiu-se com gua sagrada da pia, murmurou uma orao e regressou aos seus aposentos, onde Chufoi lhe preparara uma tnica de linho limpa, um cinto em brocado e outro par de sandlias. O servo insistiu ainda para que o amo levasse uma adaga, permanecendo a seu lado enquanto Amerotke passava leo pelo rosto e delineava os olhos com kohl negro. Tem muito cuidado, amo recomendou o ano. Como um gato num beco respondeu-lhe o juiz. O mesmo vale para ti. No comas ou bebas nada que te seja trazido. Vai tu mesmo buscar a comida s cozinhas. Amerotke partiu e dirigiu-se biblioteca. O jovem arquivista Khaliu preparava-se para fechar a sala, mas acedeu alegremente a ficar. Seguiu o juiz supremo enquanto este percorria as estantes onde se acumulavam os rolos de papiro. Que procura, meu senhor? Amerotke deu uma palmadinha no ombro de Khaliu. Peo desculpa por tomar o teu tempo e o dos guardas. Ora essa. No tivemos muita gente respondeu o bibliotecrio. Estes horrveis assassnios aterrorizaram toda a gente. Os nossos visitantes tendem a vir em grupo. No podemos censur-los comentou Amerotke num tom seco. Quem tem as chaves desta sala? Apenas eu prprio e o sumo sacerdote Hani. No, no, espere. O bibliotecrio levou a palma da mo boca. Demos outra aos nossos visitantes. Acho que o sumo sacerdote de Amon que a guarda. 165
Ento, qualquer pessoa pode aqui entrar e roubar qualquer coisa depois de os guardas se irem embora. No, fica c sempre uma sentinela durante a noite e as caixas e arcas so fechadas chave. Amerotke sentou-se num tamborete e convidou o bibliotecrio a sentar-se num outro sua frente. Confio em ti, Khaliu. Queria fazer-te algumas perguntas. O Neria foi o primeiro a morrer. Chegaste a descobrir o que ele andava a ler ou a estudar? O bibliotecrio abanou a cabea. O Neria era um erudito. Entrava aqui como uma borboleta, revoluteando de um manuscrito para outro. Deixava-o tirar o que quisesse. No final de contas, era chefe dos arquivos e guardio dos rolos. Alguma vez o ouviste conversar com o pai divino Prem? Sim, mas nunca falavam de nada importante, embora o pai divino fosse o mentor do Neria. Amerotke dissimulou a sua desiluso. E o erudito Pepi? O Neria mantinha-se bem longe dele. No simpatizava mesmo nada com o Pepi. Considerava-o uma pessoa rude e vulgar, tal como ns. Amerotke olhou de relance para a porta. Sengi, o chefe dos escribas, acabara de entrar na sala. Ah, sim, pensou o juiz, no me posso esquecer de ti, deslizando como uma sombra pelo templo. Posso ajudar? perguntou Sengi, sentando-se a uma mesa sem esperar que o convidassem. Sim, ambos podem ajudar-me respondeu Amerotke. Digamos que haviam roubado um manuscrito deste templo. Onde iriam vend-lo? Sengi olhou para Khaliu. Aqui no afirmou. Referes-te aqui ao templo? No, refiro-me a Tebas. Sim, foi o que pensei concordou Amerotke. A investigao que o Pepi conduziu aqui no o cansaria muito, pois no? 166
Sengi fez um ar intrigado. No sei se estou a entender, meu senhor. O Pepi era um insolente, um homem que achava que estava a fazer-nos um favor ao cumprimentar-nos. Nem sei ao certo se seria to estudioso e erudito como se apregoava. Andava sempre atrs de raparigas e bebia mais que a conta. Mas nunca mencionou que descobrira uma coisa? No respondeu Sengi , embora mais cedo ou mais tarde lhe acabasse por pedir que fizesse um relatrio do seu trabalho. Ah. Amerotke sorriu. Estou a seguir o fio condutor do teu argumento. O Pepi no tinha de esforar-se muito, no ? No lhe agradava a idia de ver uma mulher no trono do fara. Podia sentar-se tranqilamente, palitar os dentes e dizer: Estudei isto e aquilo. No descobri nada que justifique a subida ao trono da Hatusu. Sengi mostravase agora completamente desconcertado. Ests a jogar um jogo perigoso comentou o juiz num tom spero. A divina Hatusu no se mostrar muito contente com aqueles que frustrem a sua vontade e a dos deuses. Somos eruditos protestou Sengi. O conselho reuniuse por ordem da prpria Hatusu. No podemos tirar provas do ar. E o que acontece se no for do ar? perguntou Amerotke. Que acontece se o Neria e o pai divino Prem tiverem descoberto alguma coisa que possa fazer as pessoas levantar as sobrancelhas e pensar? Tal como o qu? zombou Sengi. Sou um historiador, meu senhor Amerotke. Posso garantir-lhe com toda a certeza que jamais uma mulher ocupou o trono do Egipto. certo que apressou-se a acrescentar j houve regentes femininas, rainhas-mes... E isso o que tu e os outros desejam, no ? interrompeu-o Amerotke. Que a divina Hatusu seja uma espcie de tutora. Durante quanto tempo? s casado, Sengi? O chefe dos escribas abanou a cabea. O juiz foi assolado por um acesso de ira; algum como Sengi era responsvel pelos assassnios e os implacveis ataques sua pessoa. Onde deveria 167
estar a Hatusu? Na Casa de Recluso com as outras mulheres do harm, usando flores de ldo, um cone de perfume na peruca, um copo numa das mos, o sistro na outra? Sengi engoliu em seco. S... s fiz o que me pediram gaguejou. At onde vai a tua amizade para com os outros sumos sacerdotes, os de Isis, Osris, Amon, Anbis e o falecido de Hathor? O jovem bibliotecrio olhava-os boquiaberto. Sengi corara at raiz dos cabelos. Pergunto-me se no estars a soldo deles. Ter-te-o subornado como chefe dos escribas da Casa de Vida do Templo de Hrus para afirmares, em conjunto com o grande erudito Pepi, que no descobriram nada? No tenho de ficar aqui a ouvir isto! Sengi ps-se de p. Meu senhor, no estamos na Sala das Duas Verdades. Pois no, mas poderamos estar. Amerotke sorriu. Como costuma dizer o meu servo Chufoi, cada dia uma nova vida e a fortuna uma roda caprichosa. Fez um gesto com a mo e Sengi voltou a sentar-se. s estpido. No vs como o delegado, os olhos e os ouvidos do fara, deturpar isto tudo? A divina Hatusu pretende que a sua ascenso seja aclamada por todos, mas h discrdia e oposio entre os sumos sacerdotes de Tebas. O divino fara decidiu que o assunto fosse discutido aqui no Templo de Hrus. Pessoalmente, acho que ela cometeu um erro. A divina Hatusu fez-lhes uma pergunta e eles daro a resposta que quiserem. Demonstraro que no existe qualquer precedente. verdade que o sumo sacerdote Hani e a sua esposa Uechlis se mostram favorveis ao fara, mas o mesmo no acontece com os restantes, no assim? Suspeito que muitos deles, tu inclusive, eram apoiantes do Rahimere, o antigo gro-vizir que se ops Hatusu. Sengi estava cada vez mais perturbado. Comeo a achar que esta reunio do conselho uma perda de tempo. Os sacerdotes fingem que discutem quando, na realidade, j tomaram uma deciso. Pode ser, mas isso no faz de mim um assassino! Sengi voltou a levantar-se. Sou um sacerdote e um erudito. Sempre servi bem a Casa Divina. E, no esperando por 168
uma resposta, voltou costas, dirigiu-se porta e abandonou a biblioteca. Quer que v atrs dele, meu senhor? No nos disse o que veio aqui fazer murmurou Amerotke. Provavelmente, ficou surpreendido por v-lo aqui explicou Khaliu. Ele costuma vir at c. verdade o que disse, sobre os sumos sacerdotes, excepo do Hani, j terem tomado a sua deciso? Claro. Ento, porqu os assassnios? Porque talvez o Neria tenha descoberto alguma coisa extraordinria. E acho que a descobriu aqui. Mas nunca o disse a ningum. Eu sei, eu sei Amerotke tamborilou na mesa com a ponta dos dedos. isso mesmo que me faz dar voltas e voltas e me leva a uma pergunta a que o Sengi no chegou a responder, ou antes, respondeu, mas no a seguimos at sua concluso lgica. O Pepi agora considerado um ladro. Alegadamente, ter roubado daqui um manuscrito de valor incalculvel. Demonstraria assim grande astcia para o fazer desaparecer nas barbas dos guardas, mas uma enorme estupidez ao vend-lo a algum comerciante de Tebas. Khaliu olhava-o, intrigado. S nos resta uma concluso. No creio que o Pepi tenha roubado qualquer manuscrito. Algum lhe deu dinheiro e fez parecer que ele roubara um manuscrito. O que significa que o manuscrito desaparecido que o Pepi estudava ainda est aqui. O jovem bibliotecrio coou a cabea. Meu senhor, tenho a certeza de que ainda aqui se encontra. As nossas medidas de segurana tornam praticamente impossvel que se roube alguma coisa. Mas as coisas podem ser mudadas de lugar. Amerotke sorriu. Que melhor lugar pode haver para se ocultar um fragmento ou um manuscrito, meu erudito Khaliu, que entre outros fragmentos e manuscritos? O juiz ps-se de p e encaminhou-se para as estantes. Quando tudo isto acabar, Khaliu, a divina Hatusu far com que o seu desagrado seja 169
sentido. Os opositores sentiro o peso do seu p na nuca. Olhou por cima do ombro. Mas os seus amigos, aqueles que defenderam a verdade, sero generosamente recompensados. Khaliu contemplou-o com os olhos a brilhar e a boca entreaberta. Procurarei o manuscrito do Pepi, meu senhor. Hei-de encontr-lo. Muito bem. Amerotke regressou ao banco. Como te disse antes, confio em ti, Khaliu. No acredita que possa ser eu o assassino? Amerotke abanou a cabea. No. s demasiado jovem e inocente. Quem quer que tenha planeado estes assassnios, algum muito astuto e experiente. Se ao menos soubesse algo mais sobre o Neria. Ele gostava de mulheres? Sim, mas era muito discreto. A que ponto? Como sabe, meu senhor, o templo uma aldeia. As pessoas apaixonam-se, entusiasmam-se por algum. Khaliu esboou um sorriso. A noite os corredores enchem-se de sombras e do som de passos sigilosos. Diz-me uma coisa. Amerotke cruzou os braos. Alguma vez viste o Neria com uma mulher? No, meu senhor, mas no templo ou no santurio, como qualquer outro homem, os seus olhos fixavam as mulheres. E antes de morrer, fez alguma coisa de estranho, de suspeito? No, meu senhor. Tens a certeza? Meu senhor, se soubesse, dir-lhe-ia. Amerotke fechou os olhos. Pensou naquela silenciosa e fria cripta, nos degraus que conduziam a ela, nos frescos ao longo das paredes. Tens aqui algum documento que explique as pinturas da cripta? Temos uma crnica respondeu o bibliotecrio. 170
Quando os Hicsos invadiram o Egipto, alguns destes manuscritos foram escondidos, outros dispersos. A biblioteca foi incendiada, mas quando o pai da divina Hatusu expulsou os Hicsos, a vida no templo voltou normalidade. Um sacerdote ancio registou os acontecimentos daqueles anos numa crnica. Khaliu levantouse e caminhou ao longo das estantes. Encontrou a crnica, um rolo de papiro amarelecido que fora submetido a um tratamento especial para melhor se conservar. Trouxe-o para a mesa. Amerotke agradeceu-lhe e desatou o cordo escarlate. A crnica estava escrita numa mistura de estilos, continha alguns desenhos toscos, hierglifos e a escrita hiertica dos sacerdotes. Inclua tambm oraes e preces ao fara, uma pequena biografia do autor e depois o velho escriba iniciava o relato dos terrveis acontecimentos produzidos pela invaso dos Hicsos: a sua crueldade, os sacrifcios humanos, a devastao das cidades e dos altares, o incndio de templos e santurios, o assassnio ou expulso de sacerdotes. O autor contava com orgulho como os sacerdotes de Hrus haviam permanecido fiis ao Egipto e aos seus deuses e como se tinham refugiado nas catacumbas. Amerotke estava to absorto na leitura que se sobressaltou quando Khaliu lhe tocou no ombro. Queres que me v embora? perguntou o juiz supremo. Olhou em redor; Khaliu j tinha iniciado a busca do manuscrito desaparecido. No, no, meu senhor. Tambm ainda no encontrei nada, mas lembrei-me de uma coisa sobre o Neria. Amerotke empurrou o papiro para o lado enquanto Khaliu se sentava no tamborete sua frente. Como sabe, certos sacerdotes tm tatuagens no corpo. Pode ser a cabea de Hrus ou um escaravelho, algum sinal para se protegerem da m sorte. E o Neria tinha algum? No, quer dizer, sim tartamudeou o bibliotecrio. Foi dois ou trs dias antes da sua morte. Veio biblioteca e reparei que coxeava um pouco. Perguntei-lhe se estava tudo bem. claro, meu rapaz, respondeu-me ele. Chamava-me sempre assim. Perguntei-lhe depois se tinha cado e o Neria respondeu-me que fora a um salo de tatuagens na cidade. Fiz 171
uns gracejos a propsito disso, perguntando-lhe se era o nome de alguma mulher. No, no, respondeu ele, apenas uma imagem de Selket. A deusa-escorpio murmurou o juiz. E uma manifestao do calor ardente do Sol. Ele tinha alguma devoo especial por ela? Khaliu encolheu os ombros. No fao idia. Mas disseste que ele vinha a coxear, o que significa que devia ter a tatuagem na coxa. Presumo que sim, meu senhor. O habitual fazerem-nas nas coxas, no abdmen, no peito ou nos ombros. Amerotke agradeceu-lhe e Khaliu afastou-se. Porque haveria um sacerdote, um escriba, um bibliotecrio, de fazer semelhante coisa?, interrogou-se o juiz. Haveria alguma ligao entre Selket e os antigos faras que governaram o Egipto? Afinal de contas, Neria fora morto nas catacumbas perto do tmulo de Mens. As pinturas na parede da cmara funerria mencionavam a dinastia do Escorpio. Amerotke abanou a cabea e voltou de novo a sua ateno para a crnica. Comeou a escurecer. O juiz supremo prosseguiu com a sua tarefa; a crnica era fascinante. Conhecia j uma parte da histria, mas o cronista testemunhara aqueles episdios sangrentos e relatava-os com uma paixo que provinha do corao. Amerotke acomodou-se melhor, consciente dos movimentos do bibliotecrio, que murmurava para si mesmo e esvaziava as prateleiras. Admirou o seu entusiasmo ante essa monumental tarefa. Os guardas bateram porta e Khaliu ordenou-lhes que esperassem. Amerotke chegou a uma parte que lhe aguou o interesse. O cronista aludia ento s espoliaes cometidas pelos prncipes hicsos nas Terras Vermelhas. Descrevia em grande pormenor o cruel labirinto que haviam construdo, agora conhecido como Sala do Mundo Inferior. Amerotke deteve-se numa das frases. No estranho, Khaliu? Meu senhor? 172
Procuras uma verdade e tropeas noutra. Amerotke leu rapidamente. Ps de lado todos os pensamentos referentes a Neria e aos assassnios no templo. Fechou os olhos e rezou uma orao de agradecimento a Maet. Khaliu, rpido! Envia um dos guardas aos meus aposentos. Pede-lhe que traga imediatamente o Asural, o Prenhoe e o Chufoi! Amerotke releu o pargrafo e enrolou o papiro. Entregou-o a Khaliu e deulhe uma palmada no ombro. Amanh, deixarei o templo por algum tempo. Ergueu um dedo em sinal de advertncia. Continua as tuas buscas, mas em segredo. Se o assassino descobre o que ests a fazer, asseguro-te que estars morto antes do meu regresso!
Aker: o guardio do Mundo Inferior; deus egpcio com duas cabeas de leo.
CAPTULO 12
As quatro quadrigas de guerra avanavam rapidamente atravs dos frteis campos verdes e amarelos e canais de irrigao que se estendiam para leste do Nilo. Sobre as suas cabeas, o cu azul adquirira um tom violceo medida que o Sol mergulhava no horizonte. As quadrigas desviaram-se um pouco e seguiram pelos trilhos poeirentos, deixando para trs o acidentado Vale dos Reis e dirigindo-se s perigosas Terras Vermelhas, a leste de Tebas. Os cascos dos cavalos batiam contra o cho pedregoso que fazia as rodas dos carros saltar. A luz do Sol reflectia-se nos corrimos de bronze e nos adornos em electrum, uma liga de ouro e prata, do vime. As grandes rodas giravam, os cocheiros manejavam as rdeas com mo experiente; os cavalos eram negros como a noite, os mais rpidos dos estbulos do fara. Cada quadriga carregava um cocheiro e um soldado. A que ia frente, e na qual seguia Amerotke, exibia o estandarte prateado do Regimento de Hrus. As quatro quadrigas estavam ornadas com as insgnias das cegonhas selvagens, uma unidade do regimento formada pelos mariyannou, os bravos do rei. Eram os soldados que haviam sido pessoalmente recompensados pelo divino fara com a medalha de mrito em ouro. Amerotke afastou um pouco os ps e agarrou-se ao corrimo. O ar quente do deserto fustigava-lhe o rosto. Olhou de esguelha para o seu cocheiro, ligeiramente inclinado e agarrando 174
com firmeza as rdeas. A cara do homem estava crispada de tenso, embora fosse bvio que sentia prazer no que fazia, satisfeito por j se encontrar longe das ruas estreitas e das apinhadas avenidas da cidade. Os cavalos, descansados e bem alimentados, puxavam os carros vigorosamente e os penachos encarnados de guerra abanavam entre as suas orelhas. O juiz olhou para as armas que transportavam: dois compridos arcos, uma aljava de flechas, trs lanas e, junto ao seu joelho, um escudo para ser usado em batalha. No que esperassem encontrar qualquer inimigo, mas o jovem oficial que comandava a operao mostrara-se muito cauteloso. Ao receber ordens de levar Amerotke ao osis de Amarna e acampar perto da Sala do Mundo Inferior, torcera um pouco o nariz. As lendas no te assustam, pois no? perguntara-lhe Amerotke num tom brincalho. No, meu senhor, mas tambm no iria at l de vontade prpria. Ouvimos rumores de que alguns nmadas se uniram e que andam a assaltar caravanas. Tambm tivemos notcias de ataques a um ou dois postos avanados. Encolheu os ombros. Mas isso um acontecimento sazonal. Amerotke dedicara grande parte do dia aos preparativos. Enviara mensagens urgentes a Ualu e a Omendap, dizendo que o desaparecimento misterioso dos dois jovens oficiais apenas poderia ser esclarecido com uma investigao minuciosa do prprio labirinto. Omendap, como claro, reagira de imediato e colocara um esquadro inteiro disposio de Amerotke. O juiz supremo pedira mais. Queria ces de caa bem treinados dos canis reais, bem como batedores experientes. Omendap respondeu, dizendo que isso levaria algum tempo a organizar, por isso, Amerotke decidira partir primeiro e esperar pela chegada dos restantes na manh seguinte. Posso estar enganado, pensou, mas pelo menos poderei regressar ao meu tribunal e dizer que visitei o local do crime. As quatro quadrigas avanavam separadas entre si pelo comprimento de uma lana. Os cocheiros haviam dado rdea livre aos cavalos, que pareciam dispostos a devorar a distncia. Amerotke olhou em frente. Ao longe, os penhascos cor de cinza erguiam-se da areia dourada como a crina de um leo. Uma 175
manada de gazelas selvagens cruzou-se no seu caminho e a brisa vespertina trouxe os latidos dos chacais e as lgubres risadas das hienas. As criaturas do deserto preparavam-se para as suas caadas nocturnas. Os cocheiros pararam um pouco para descansar e beber gua e retomaram viagem. O juiz estava fascinado com o deserto. As Terras Vermelhas eram uma imensa plancie rochosa, salpicada de pequenas elevaes e sulcada por sinuosas ravinas e desfiladeiros profundos. Apenas a giesta e a erva mais resistente cresciam nessas paragens. Ocasionalmente, passavam por um pequeno osis, mas agora encontravam-se no limiar do verdadeiro deserto que se estendia at ao imenso mar a leste. O ar comeou a arrefecer e o cu adquiriu um tom mais escuro de azul medida que chegavam a Amarna, onde planeavam passar a noite. Uma das quadrigas acelerou e adiantou-se para explorar o terreno. Ao regressar, o cocheiro informou que o osis estava deserto, mas que havia sinais de um grupo de nmadas ter ali acampado recentemente. O esquadro prosseguiu marcha at ao osis. Amerotke desceu da quadriga. Ajudou o cocheiro a desatrelar os cavalos e passeou-os um pouco para que arrefecessem antes de permitir que saciassem a sede. As quadrigas foram dispostas em formao defensiva. Sacaram das provises, nada mais que raes de combate: carne de codorniz seca e salgada, po zimo e algumas uvas j um pouco pisadas. Recolheram bosta seca e fizeram uma pequena fogueira. Amerotke agradeceu aos homens a rapidez da viagem e, recusando amavelmente a companhia do capito, deixou o osis e dirigiu-se aos sinistros blocos de granito que formavam o terrvel labirinto conhecido como Sala do Mundo Inferior. O juiz recordou-se da crnica que lera na biblioteca. O labirinto devia ter pelo menos um quilmetro e meio em cada direco, oferecendo o mesmo aspecto que cubos de madeira espalhados no cho por crianas. Um vento frio levantara-se com o pr do Sol. Amerotke puxou a capa de montar de forma a que esta lhe cobrisse a boca e o nariz e avanou. A entrada do labirinto era extremamente sinistra, escancarando-se como a abertura escura de uma caverna. Sentiu medo. Era um 176
local maldito. Atrs de si conseguia ouvir o relinchar dos cavalos, os gritos e as gargalhadas dos soldados. No limiar da entrada, tirou do cinturo de guerra um novelo de fio encarnado. Deixou cair a ponta no cho e, medida que avanava, ia desenrolando o novelo. A macabra escurido abateu-se sobre ele. Parou e olhou para o cu. Em cada um dos lados elevavam-se duas paredes de granito; debaixo dos ps sentiu o poeirento caminho de cascalho mido. Na tnue luz, o labirinto pregava partidas. Amerotke tinha a sensao de que caminhava contra rocha viva, at perceber que umas vezes podia virar para outro corredor, outras se encontrava no meio de uma bifurcao. As enormes lajes de granito haviam sido colocadas umas em cima das outras at perfazer o dobro da altura de um homem. Apalpou a superfcie das pedras: estavam polidas, dificultando que fossem escaladas. Qualquer pessoa que se perdesse e desejasse trepar ao cimo para pedir ajuda descobriria que era impossvel. Por vezes, o corredor estreitava de tal forma que Amerotke via-se obrigado a avanar de lado. Outras vezes, podia esticar os braos em direces opostas para alcanar as paredes. A sua inquietao aumentou. As sombras e silhuetas que via pertenceriam aos infelizes que haviam perecido no labirinto? Escutou sons que pareciam sussurros ou lamentos, mas era apenas o vento a soprar entre as fendas nas pedras. Numa ocasio, tropeou em restos humanos; uma pilha de ossos e uma caveira rachada que jaziam num pattico monte. Parou e aguou o ouvido. Escutou debilmente os rudos da noite. Estava consciente de que penetrara no labirinto h pouco tempo, mas a sua paz de esprito encontrava-se j afectada e sentia os nervos flor da pele. Era um local verdadeiramente sinistro. O que teriam sentido os prisioneiros ali enfiados e entregues sua sorte? Ou os perseguidos por feras selvagens loucas de fome e de raiva por se verem encurraladas entre aquelas gigantescas lajes de granito? De quando em vez, Amerotke detinha-se para examinar o solo. Por vezes sentia areia, outras granito ou as fundaes do antigo castelo que outrora se erguera naquele local. Em alguns stios, havia fendas, como se o solo tivesse cedido, e Amerotke recordou-se de que a zona fora abalada por um terramoto. 177
Comeou a achar a atmosfera asfixiante, como se as paredes se movessem contra si. Deu meia volta e seguiu o fio encarnado para regressar entrada. Caminhava cada vez mais rpido. Haveria alguma coisa a segui-lo? Algum ser maligno aoitado na escurido e prestes a atac-lo? Quando chegou entrada, arquejava e estava banhado em suor. O capito, que se encontrava junto abertura segurando uma tocha, fez um ar de alvio quando o viu surgir e aproximou-se. Meu senhor, era prefervel que no tivesse feito isso. Agarrou Amerotke pelo brao e quase o arrancou do labirinto. Agradecia, meu senhor, que permanecesse junto a ns. O general Omendap mandaria cortar-me a cabea se alguma coisa lhe acontecesse. Pois , tens razo desculpou-se o juiz. Voltou-se e olhou novamente para a escura entrada. Acredita que, se tiver alguma influncia na corte, pedirei divina Hatusu um favor: que mande demolir este local. O nome de Sala do Mundo Inferior bem merecido. Caminharam de regresso ao osis. Agradeo muito a tua preocupao, capito. A noite cara j, abruptamente, como se algum pssaro se tivesse lanado do cu. Amerotke ficava sempre espantado com a velocidade com que, no deserto, o dia e a noite se encontravam. O oficial estugou o passo. Meu senhor, acho que temos problemas. Que tipo de problemas? O resto do esquadro estava reunido em volta da fogueira. Uma sentinela montava guarda junto s quadrigas. No tenho a certeza, meu senhor respondeu o oficial , mas enquanto montvamos o acampamento, um dos soldados avistou cinco ou seis nmadas naquele cume. Mas no nos atacaro opinou Amerotke. Estamos bem armados e os nmadas deslocam-se em pequenos grupos. Como lhe disse, meu senhor, por vezes as tribos unem-se. Devem ter-nos visto chegar. Somos apenas oito e os nmadas adorariam apoderar-se dos nossos cavalos, j para no falar das armas e das jias que trazemos. Encolheu os ombros. 178
- Bom, seja como for, pouco mais podemos fazer a no ser esperar. Permaneceram sentados em redor da fogueira, escutando os rudos dos animais. O deserto converteu-se num local perigoso. Os soldados murmuravam histrias sobre Chah, o animal malfico enviado por Set cujo olhar transformava os homens em pedra, ou sobre o saga, um ser terrvel surgido do abismo com cabea de falco e uma cauda que terminava numa flor de ldo envenenada. Amerotke fez um turno de guarda e dormia j profundamente sob as palmeiras quando se deu o ataque. Silhuetas escuras avanaram atravs da areia, disparando flechas que no atingiram os seus alvos. O acampamento despertou. Cada soldado armou-se de arco e aljava. Contra-atacaram, mas as suas setas tambm produziam pouco impacte. Amerotke pegou na sua capa, ensopou-a num pouco de leo, pegou-lhe fogo e lanou-a para a areia. Concedeu-lhes um pouco de luz, permitindo aos archeiros distinguir os seus alvos. Ouviram-se gritos. Os nmadas rodearam as quadrigas, mas o seu ataque carecia de ordem. Amerotke e os soldados travaram combate com eles junto ao osis, usando os escudos para se protegerem. Escutou-se o estrpito de espadas contra adagas, escudos contra maas. Dois dos nmadas caram por terra. Um dos soldados cambaleou para trs ao ser ferido num brao. Por fim, os atacantes fugiram ao abrigo da noite, pouco dispostos a continuar a refrega. Amerotke e o oficial esperaram um pouco, sem se afastarem da linha de defesa constituda pelas quadrigas, perscrutando a escurido, atentos a qualquer rudo. Convencidos de que os nmadas se haviam retirado, ocuparamse dos atacantes mortos. Os corpos foram simplesmente arrastados e arremessados para a areia. Um dos soldados percorreu a zona para ver se ficara algum ferido para trs, mas os nmadas haviam-nos levado com eles. No regressaro declarou o oficial. Viram que somos mais duros de roer do que pensavam e perderam a esperana de conseguir um saque fcil. Amerotke concordou e regressou ao seu leito improvisado. Durante um momento, ficou a observar o cu, pensando em 179
Norfret e nos filhos e esperando que Chufoi e Prenhoe mantivessem as coisas sob controlo no Templo de Hrus. Tinha a sensao de ter vivido um sonho: a viagem de quadriga a toda a velocidade, os terrveis momentos no labirinto, o ataque dos nmadas: silhuetas negras vestidas de trapos da cabea aos ps, tal como Lehket. Alguns dos seus cadveres endureciam agora sob o olhar frio da Lua. Recordou o que Lehket lhe dissera sobre a Sala do Mundo Inferior. Os dois oficiais desaparecidos estavam ainda no ddalo e, antes de adormecer, Amerotke rezou a Maet para que o guiasse at eles. O acampamento voltou actividade antes do amanhecer. Amerotke acordou gelado e derreado. O cu era inundado por raios de luz que banhavam o deserto numa mirade de tonalidades. parte alguns cortes e feridas, flechas cravadas nos troncos das palmeiras e os montes de trapos que jaziam na areia, no havia mais indcios do ataque da noite anterior. Os soldados estavam bem-dispostos e desejosos de quebrar o seu jejum. Mal tinham acabado de comer quando a sentinela os avisou da aproximao de quadrigas. O calor comeara j a distorcer a paisagem. Amerotke protegeu os olhos com a palma da mo e vislumbrou o refulgir de metais. Em breve todo o esquadro era bem visvel, avanando lentamente por causa do grupo de infantaria que seguia atrs com os seus toucados encarnados. A brisa matinal trouxe o latido de ces. Dali a pouco tempo, o osis fervilhava de actividade, medida que as quadrigas chegavam, seguidas da infantaria e dos batedores de caa que Amerotke pedira expressamente. Ualu apeou-se do seu carro, sorrindo de orelha a orelha. Bamboleou-se at ao juiz e apertou-lhe a mo. Bom, meu senhor juiz, isto no se parece em nada com a Sala das Duas Verdades. Apontou por cima do ombro para Ramose. O jovem vinha desamarrado, mas era cuidadosamente vigiado por dois oficiais. O pai dele e o dos dois rapazes desaparecidos quiseram estar presentes. O delegado real abanou a cabea e enxugou o suor da careca. Mas eu disselhes para ficarem em Tebas. Estalou os dedos e um 180
servo aproximou-se a correr com um odre de gua. Ualu molhou o rosto e a cabea. No suporto o calor... e no gosto do deserto. Deixou Amerotke e aproximou-se do limiar do osis para contemplar o labirinto. Estive aqui quando era mido e nunca mais regressei. O lugar aterrorizava-me. Recordo-me de que senti como se uma das asas do Anjo da Morte me tivesse tocado. Olhou para trs, para o juiz. Ento, acha que os rapazes ainda ali esto? Assim respondeu-lhe Amerotke, juntando-se a ele. Ualu saiu da sombra das rvores e vociferou a um criado para que lhe trouxesse o pra-sol. Vamos, meu senhor disse, agarrando o brao de Amerotke , deixe-me revisitar os meus pesadelos. Caminharam atravs da areia e das pedras. Ualu gritou aos demais que no se aproximassem. No podia ter esperado pelo meu regresso para avanar com o processo? perguntou-lhe o juiz. Ualu mudou o pra-sol de mo para que tambm Amerotke beneficiasse da sombra. J fui informado dos acontecimentos no Templo de Hrus. Naturalmente, sendo os olhos e os ouvidos do fara. E o divino fara no est nada satisfeito. Todos aqueles assassinatos. Ouviu os rumores? Os olhos de Ualu fixaram-se no rosto do juiz. - evidente que no. A Hatusu e o Senenmut vo ao Templo de Hrus. Desejam participar na reunio do conselho. Isso um erro opinou Amerotke, irritado. Creio que foi isso mesmo que o Senenmut disse, mas Sua Majestade Imperial tem muito pouca pacincia com os sacerdotes, especialmente quando se murmura que a sua mo est por trs destes homicdios. Ualu contemplou o deserto. No estamos nas Terras Vermelhas propriamente ditas, pois no? No, no estamos respondeu o juiz. Sentia-se ainda surpreendido com as novidades de Ualu. Suspeitava que Hatusu iria ao templo no apenas para intimidar o conselho e enfrentar os seus opositores, mas tambm para pedir ao juiz supremo algumas explicaes. 181
Bem me pareceu comentou Ualu, olhando os abutres que voavam em crculo sobre as suas cabeas. Os soldados chamam-lhes galinhas do fara. Virou-se para Amerotke. Ouvi dizer que foram atacados a noite passada. O delegado chutou uma pedra. Se isto se revelar uma per da de tempo, meu senhor, o Ramose que sofrer as conseqncias. Tinham entretanto chegado entrada do labirinto. Apesar do sol matinal e de ter o poder do Egipto a apoi-lo, Amerotke sentiu-se dominado por um profundo desassossego. Ualu, no entanto, caminhou at entrada e parou. Viu as gravuras aqui? Amerotke seguiu-o. Ualu examinava dois enormes escorpies talhados na pedra. O artista preenchera os contornos com tinta. Os dois animais estavam voltados um para o outro, enganchados, como se combatessem entre si. O que ? indagou Amerotke. Esto a acasalar respondeu Ualu. Nunca viu dois escorpies a acasalar? Engancham as pinas e balanam em conjunto como se estivessem a danar. O macho acaba por fecundar a fmea, mas, se for estpido o suficiente para permanecer perto dela, ela mata-o e come-o. O delegado real sorriu. Um pouco como o nosso fara sussurrou, erguendo logo depois as sobrancelhas. Refiro-me, como bvio, a uma semelhana relativamente ao poder e rapidez. - claro. Amerotke sorriu de volta. Examinou melhor as imagens. Recordaram-lhe as gravuras de escorpies na cripta sob o Templo de Hrus. Qual deles o macho? No sei. Apenas um olho experiente consegue perceber a diferena. Mas venha da, meu senhor juiz, estamos na Sala do Mundo Inferior, onde tiveram lugar crimes terrveis. O poder do Egipto est s suas ordens. Tocou ao de leve na mo do juiz com o leque que tirara da tnica. Mas para que estamos aqui exactamente? Falei com um homem chamado Lehket respondeu-lhe Amerotke. Afirmou que, pelo menos, um homem entrou aqui. No havia nenhum animal selvagem. O Lehket e outros guardaram todas as entradas, mas o homem nunca 182
saiu, e no havia qualquer sinal seu quando um deles percorreu o labirinto pelo cimo das lajes. Histrias... opinou Ualu. No creio. O Lehket no mentiroso e tambm li uma crnica no Templo de Hrus que dizia a mesma coisa. Fixou o delegado nos olhos. Dizia que este labirinto, este local de morte, come as pessoas, devora-as vivas. - um lugar sinistro e sombrio concordou Ualu , mas, no final de contas, no passa de um monte de pedras e areia. Um bom local para homicdios, meu senhor Amerotke. Trouxeram ces de caa? inquiriu Amerotke. Os melhores dos canis reais. ptimo. Amerotke esfregou as mos. Ento, vamos a isso. Regressou ao osis e acenou ao oficial, que se aproximou com os batedores e os ces. Vamos ter de dividir-nos explicou o juiz. Viu expresses de preocupao no rosto de alguns deles. No se preocupem. No vo entrar no labirinto, mas percorr-lo por cima. Os ces que entraro e vocs iro gui-los pela trela, a partir de cima. Deixemos que eles se encarreguem da busca. capaz de levar algum tempo. De que estamos procura? perguntou um dos homens. Sabero quando o encontrarem respondeu Amerotke. Olhou para o cu. Informaram-me de que so cerca de trinta. Assegurem-se de que percorrem todos os blocos de granito. Mantenham os ces no solo e no desam sob nenhum pretexto. O calor vai apertar. Por isso, coloquem pintura em redor dos olhos e protejam-se do brilho do sol. Usem um tou-cado. No devero regressar at termos terminado. Bebam toda a gua que precisarem antes de comear e aliviem a bexiga onde vos aprouver. Os homens comearam a rir. O mesmo se aplica aos ces. No deixem que se distraiam com os esqueletos ou outros restos humanos. Reparou no calado que traziam: boas botas de infantaria. Os vossos ps suaro muito, mas as vossas botas proteger-vos-o quando o calor apertar. Se encontrarem alguma coisa estranha, fiquem onde esto e chamem algum. 183
Os batedores murmuraram entre si, intrigados com as instrues de Amerotke. Mas os ces no vo poder seguir nenhum rasto murmurou Ualu. Qualquer pista dos homens perdidos j ter desaparecido h algum tempo. Logo ficaremos a saber quando terminarmos respondeu-lhe Amerotke. Protegeu os olhos contra o sol. E se ficarmos mais esclarecidos antes do meio-dia, melhor. Formaram-se vrios grupos, e cada um, sob o comando de um oficial, dirigiu-se a uma das vrias entradas. Trouxeram uma besta de carga com escadas de corda que foram atadas, e Amerotke subiu para um dos blocos de granito e gesticulou para que o chefe dos batedores de caa se juntasse a ele. O homem assim fez, dando mais trela ao seu co, e, sob as ordens do juiz, comeou a percorrer os blocos de granito. Amerotke observou-o. Caminhava lentamente. Em baixo, na estreita passagem entre as duas paredes de blocos, o co trotava com cautela. De quando em vez, parava e olhava para o seu dono com um ar triste. O batedor murmurava-lhe palavras encorajadoras, estalava a lngua e avanava. O juiz assomou-se beira da pedra. Notava uma sensao estranha, irreal. Via as voltas e reviravoltas que os blocos formavam. Os outros batedores comeavam tambm, a trepar noutras partes do labirinto. Um soldado seguia-os com uma paleta para marcar os blocos por onde passavam. O calor era cada vez mais forte. Amerotke sentia-se um pouco trmulo, mas no saiu de onde estava. Havia j batedores por todos os lados. Alguns dos ces ganiam, assustados com o labirinto. Dois chegaram mesmo a puxar os seus donos para o interior. Outro conseguiu libertar-se e fugiu em direco ao osis. Por fim, os ces lanaram-se ao trabalho, rompendo o silncio com os seus latidos e rosnadelas. Amerotke desceu e abrigou-se sombra, rezando em voz baixa para que a sua caada no resultasse num exerccio intil. Repetidas vezes, era chamado por batedores e tinha de voltar a subir para ver o que fora descoberto. Ualu recusava-se a acompanh-lo. No labirinto, os ces encontravam farrapos de roupa ou ossos velhos de vtimas desconhecidas. O Sol brilhava 184
mais forte e o calor emanado pelos blocos de granito tornara-se insuportvel. Amerotke mudou de idias e ordenou aos soldados que subissem com odres de gua. Preparava-se para regressar ao osis quando ouviu uns horrveis latidos como se um dos ces estivesse gravemente ferido. Seguiram-se gritos dos batedores. Amerotke trepou de novo s lajes. Todos os batedores haviam parado. Um, no entanto, acenava freneti-camente. O juiz e alguns dos batedores avanaram quase at ao centro do labirinto. O batedor puxava a trela com toda a fora e tinha j as mos ensangentadas. Gritava para que Amerotke e os outros o ajudassem. O juiz foi o primeiro a chegar. Olhou para baixo. O co afundava-se na areia; s tinha a cabea e as patas dianteiras de fora. Um dos soldados fez teno de saltar, mas Amerotke agarrou-o pelo brao. No sejas parvo! gritou. O poo acabar por te engolir a ti tambm! Tentaram puxar o co para a frente, mas tornou-se bvio que o poo era mais largo do que pensavam. Foram lanadas mais cordas e, depois de muito suar e praguejar, conseguiram extrair o pobre animal e i-lo at ao topo. O co mostrava-se enlouquecido de medo e sangrava dos cortes provocados pelas cordas. Amerotke disse-lhes que o levassem para o osis e ordenou aos restantes batedores que retirassem. Foram trazidas lanas para testar o solo. A estreita passagem no parecia muito diferente das restantes. Nos rebordos do poo, o solo era rochoso e duro, depois havia areia, firme, mas perto do centro as lanas escorregavam simplesmente entre os gros de areia. Talvez no tenha fundo murmurou um dos soldados. No me parece respondeu Amerotke. O deserto tem armadilhas de areia, mas so simplesmente pequenos barrancos cheios de cascalho mido. A Sala do Mundo Inferior foi outrora um posto fronteirio. O que estamos a observar neste momento talvez uma cave ou masmorra que se encheu de areia por processos naturais ou, mais provavelmente, transformada numa armadilha mortal pelos Hicsos. No admira que poucas pessoas conseguissem sair do labirinto. Se no perdessem a calma, no desmaiassem ou fossem vencidos pela 185
exausto, acabariam por chegar aqui. Apontou para os blocos do outro lado. J reparaste que todos os corredores conduzem aqui? S com muita sorte algum escaparia com vida. Ouviu algum chamar o seu nome. Ualu avanava cautelosamente at eles, o pra-sol numa das mos e a outra esticada para manter o equilbrio, recordando ao juiz uma daquelas ancis que vo titubeando de tenda em tenda nos mercados. Ouvi o que aconteceu. O delegado real mirou furioso os soldados que riam, troando dele, e entregou a sombrinha ao que estava mais prximo. Agachou-se para melhor ver o cho do labirinto. Uma armadilha do Mundo Inferior murmurou. S um olho mais experiente e apurado notaria a mudana de textura no solo. E mesmo nessa altura, poderia j ser tarde de mais. Olhou para Amerotke. Acha que os oficiais desaparecidos caram ali? O poo largo e profundo o suficiente para engolir dois homens e respectivas armas. Ualu suspirou, amaldioou o calor asfixiante e ps-se de p. o bastante para declarar o Ramose inocente afirmou. Acenou para que Amerotke o seguisse. Vai permanecer aqui o resto do dia? Temos de investigar aquele poo. Alguma vez tentou virar o mar do avesso? replicou o juiz. Depois encolheu os ombros. Mas talvez seja possvel. Depende da profundidade do poo. Vamos atar as lanas a uns postes e afund-los na areia. Se emergirem sem nada, talvez seja demasiado profundo. Mas se vierem manchados... Ualu concordou. Os batedores e seus ces abandonaram o labirinto. As lanas foram preparadas e os soldados comearam a atir-las para o poo, uma e outra vez. O calor tornara-se demasiado opressivo; por isso, Ualu ordenou que toda a gente descansasse nas sombras do osis. Tinham regressado ao trabalho h pouco tempo quando se ouviram uns gritos. Fora encontrada qualquer coisa. Improvisaram uma roldana. Um engenheiro, que acompanhara o esquadro, estava agora no comando das operaes. Informou que o poo, provavelmente uma adega, continha de facto 186
qualquer coisa. A areia foi extrada e, ao fim da tarde, foi retirado o primeiro corpo, com os olhos, nariz e boca cheios de areia. Ramose insistiu para o ver e depois ajoelhou-se, com o rosto entre as mos, virado para norte. Ualu tocou-lhe no ombro. O outro corpo tambm ser encontrado. Todas as queixas contra ti sero retiradas e a tua inocncia ser proclamada. No foi cometido qualquer crime. Discordo. Amerotke observou o cadver que revelava as grotescas contores de uma morte horrvel. No fim de contas declarou , foram assassinados. A Sala do Mundo Inferior reclamou a vida deles, como fez com outros. Virou-se para Ualu. O caso est agora nas suas mos. Como sabe, tenho de atender a outros assuntos em Tebas.
CAPTULO 13
Chufoi e Prenhoe estavam a divertir-se muito. A grande taberna e prostbulo junto ao embarcadouro encontrava-se apinhada de clientes. Meliantes, marginais, bufarinheiros, adivinhos, charlates e curandeiros misturavam-se alegremente. Qualquer um deles tinha o bom senso de no tentar vender os seus bens e servios ao outro. O ano e o escriba, sentados a um canto, no perdiam pitada. Havia raparigas de todas as nacionalidades: nbias, lbias, canaanitas, cuchitas, hititas, e at raparigas de tez clara das ilhas para l do grande Delta, que satisfaziam todos os gostos da clientela, ou assim rezava a inscrio na parede. Todo o vilo das margens do Nilo acaba por vir aqui murmurou Chufoi num tom anelante. Apontou para um marinheiro fencio. J esteve em locais com os quais ns apenas podemos sonhar. Afirma ter atravessado o Grande Verde e visitado terras onde as florestas so to densas como os picos de um porco-espinho e as montanhas esto coroadas de neve. Relata histrias que provocariam pesadelos durante uma semana. Mas so verdadeiras? perguntou o escriba ansiosamente. E isso interessa alguma coisa?! Chufoi esfregou o local onde outrora estivera o seu nariz. No a histria que conta, Prenhoe, mas o modo como contada.
Nota: Verde, Nome que os Egpcios davam ao mar Mediterrneo. (N da T.)
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Prenhoe estava a gostar de se encontrar ali, mas sentia-se um pouco inquieto. O fumo das lamparinas de leo dificultava a viso e tornava o ar malcheiroso e praticamente irrespirvel. Viam-se sombras que se arrastavam entre recantos e prticos. Algures no ptio irrompera uma luta com facas. Um trabalhador da necrpole andava de mesa em mesa a angariar clientes para uma visita a uma gruta onde se veria o cadver de um homem enterrado vivo. O cabelo da cor do trigo publicitava ele , a pele to clara como a areia. Chufoi fez um gesto obsceno e o homem afastou-se. De que estamos espera? perguntou Prenhoe. O meu amo incumbiu-me de uma tarefa explicou o ano , e estou aqui para a realizar. Uma sombra surgiu da penumbra e sentou-se no banco frente deles: era um homem magro, seco, de feies delgadas, nariz aguado como uma pena e olhos rasgados. A pele do desconhecido estava queimada pelo sol. Deixara crescer o cabelo e no fazia a barba h vrios dias. Vestia uma tnica amarela muito suja. Prenhoe reparou que o homem s tinha um brao, o outro era um coto cauterizado com breu. Abriu a nica mo e gesticulou com os dedos. Encontrei o que querias. Quem s tu? perguntou Prenhoe. Os olhos do homem desviaram-se para o escriba. No tens nada a ver com isso. Quem o teu amigo abelhudo, Chufoi? Um bom amigo e um escriba muito inteligente respondeu Chufoi. Os burros peidam-se, os escribas escrevem. O homem olhou de novo para Prenhoe. No tenho nome. Chamamme Vagabundo do Rio. Chufoi entregou-lhe um pequeno pedao de prata. Se estiveres a mentir... No estou apressou-se a garantir o Vagabundo do Rio. Mas as notcias no so todas boas. O homem a quem chamaste Antef esteve, de facto, no exrcito. Ao que parece, foi ferido na grande batalha perto do Delta. 189
Sei a que batalha te referes disse Chufoi , o meu amo participou nela. Depois apareceu em Mnfis. Disse que perdeu a memria, no foi? O ano acenou que sim. Pois no foi isso que ouvi dizer. Correm rumores de que desertou e que at voltou a casar. E com quem? inquiriu Prenhoe. Ora, escriba, com uma rapariga, pois claro! O Vagabundo do Rio soltou uma gargalhada e tirou qualquer coisa dos dentes. Apaixonou-se pela filha de um comerciante que tem uma banca num dos ptios do templo de Mnfis. E o que aconteceu depois? No sei bem. Alguma desavena domstica. O sogro expulsou-o de casa. Porqu? Por roubar. Dinheiro, prata? No. O Vagabundo do Rio abanou a cabea. Pequenas caixas de sndalo. Ah, sim? No me digas. O ano sorriu de felicidade. Podes fazer-me mais um favor? Inclinou-se para a frente e segredou ao ouvido do homem. O Vagabundo do Rio fez uma careta, mas acabou por aceitar. Isso ter o seu preo. J te dei o suficiente protestou Chufoi. Mas, se fizeres o que te pedi, talvez no diga nada ao meu amigo da guarda do templo sobre uns artefactos que desapareceram de algumas bancas... O Vagabundo do Rio sorriu, levantou-se e abandonou a taberna. O que vai acontecer? perguntou Prenhoe. Ontem noite sonhei que montava um hipoptamo com uma rapariga sentada minha frente. Sentia as suas macias ndegas contra o meu pnis. O que achas que significa, Chufoi? Algum augrio de boa sorte? Com certeza garantiu o ano , mas primeiro tens 190
de encontrar duas coisas: um hipoptamo que aceite ser montado e uma rapariga que queira ir tua frente. Est tudo ao gosto dos senhores? Chufoi levantou os olhos. Duas damas da noite, gmeas idnticas, encontravam-se frente deles de mos dadas. Usavam perucas encharcadas em leo e o rosto muito pintado; nos mamilos traziam um sininhos e panos prateados a cobrir os genitais. As camas aqui so macias afirmaram ambas em unssono. Por um certo preo, podero escolher uma de ns e pelo dobro tero as duas. Prenhoe engasgou-se, dominado pelo entusiasmo. Chufoi, cujo rosto estava oculto pela sombra, inclinou-se para a frente. As raparigas soltaram um grito e fugiram. Melhor assim disse o ano. No ias querer mergulhar as mos em tinta, pois no? Como assim? Anda da, eu mostro-te. Suponho que ainda teremos de esperar um bom bocado. Chufoi conduziu Prenhoe atravs de um prtico. As gmeas, uma de cada lado de um marinheiro, subiam as escadas. Prenhoe observou a parede com uma expresso de assombro. Estava coberta de impresses de palmas de mos de vrias cores: azuis, encarnadas, verdes. Chufoi apontou para o fundo da parede. Prenhoe observou umas pequenas impresses amarelas. So tuas, no so? O ano anuiu orgulhosamente. H alguns anos atrs. Era uma rapariga nbia, alta e lindssima. Hathor minha testemunha de que a coisa foi de tal forma que at partimos a cama. Se comprares uma das raparigas, ou antes, os seus servios, escolhes a tua cor e deixas a tua marca na parede. Porqu? O dono do estabelecimento cuchita. Ao que parece, na terra dele, quando tomas uma prostituta do templo, assim que fazes a tua oferenda aos deuses. Juras que pagas, mergulhas a mo em tinta encarnada e tocas na parede do templo. 191
Deve estar coberta de tinta comentou Chufoi, rindo. E o dono do bordel introduziu esse costume aqui. Ouviram-se distrbios no cimo das escadas. Um velho, praguejando e resmungando, desceu as escadas a correr. Quando chegou ao fundo, baixou-se, apanhou a tnica do cho e abanou o rabo descarnado para o corpulento guarda ao cimo das escadas. Ah, essa a outra razo. As nicas pessoas que podem subir so as que tm as mos pintadas. muito comum que um cliente tente desfrutar do que no pagou ou pretenda observar outros que tenham pago. Regressaram sua mesa. Havia dois barqueiros sentados nos seus bancos. Chufoi olhou para eles ameaadoramente, mencionou o nome de Amerotke e os homens desapareceram no meio da multido. Os dois amigos pediram mais cerveja. Prenhoe sentia-se um pouco maldisposto. As marcas na parede recordavam-lhe o que vira no quarto de Sato. Porque teria o servo moribundo mergulhado as mos no vinho envenenado, pressionando-as depois contra a parede? O que estaria a tentar dizer? Que mensagem queria transmitir? Prenhoe levantou-se de um pulo. Aprendeu a faz-lo aqui! exclamou. O que se passa, Prenhoe? Perdeste o juzo? No, no. O escriba abanou a cabea e sentou-se. Contou-lhe o que tinham visto no quarto de Sato. Ento, achas que h uma relao entre o quarto do Sato e este bordel? Claro! exclamou Prenhoe. Foi por isso que o Sato fez o mesmo com o vinho. Talvez o frasco tenha vindo daqui. Coou a cabea. Lembro-me de o nosso amo ter referido que o Sato chegara tarde ao templo na noite em que o pai divino Prem morreu, porque estivera com uma prostituta. Na manh em que o Prem foi morto, o Sato dirigiu-se cidade para tentar comprar os servios da mesma prostituta, mas regressou contrariado. Chufoi bateu com o punho na mesa. Prenhoe, fica aqui. O ano abandonou a mesa. Prenhoe encostou-se parede 192
e ficou a observar uma cortes que apostara com um encantador de serpentes em como no tinha medo do seu animal de estimao. O encantador abriu o cesto e deixou a serpente sair para cima da mesa. A rapariga esticou o brao. O ofdio trepou lentamente pelo brao, como se se tratasse de um ramo de rvore. Depois, com grande velocidade, enroscou-se em volta do pescoo dela. A rapariga comeou a gritar e a espernear. O encantador de serpentes riu-se. Os gritos da cortes atraram a ateno dos palermas que guardavam o local. O encantador comeou a assobiar enquanto, calmamente, desenrolava a serpente. Depois, insistiu que ganhara a aposta. A desanimada rapariga no teve outro remdio seno pagar a sua dvida num dos quartos no andar de cima. Chufoi regressou. Perguntei ao dono do bordel. No sabe nada sobre o Sato e no se recorda de nenhum homem que corresponda sua descrio ter estado aqui recentemente. Prenhoe suspirou, desiludido. O Vagabundo do Rio reapareceu. Agarrou o ano pelo ombro e murmurou: Est l fora no ptio. Disse-lhe que tinhas boas novas sobre o caso dele em tribunal. Trazes algum punhal? perguntou-lhe o ano. O Vagabundo afastou o seu xaile enegrecido, revelando um pouco a arma. ptimo. Vem comigo. Antef esperava, oculto pela sombra de um beco que corria paralelo ao bordel. Chufoi agarrou-o pelo brao, fazendo-o recuar mais para o interior do beco. Ainda bem que vieste. Antef olhou para Chufoi, depois para Prenhoe e para o Vagabundo do Rio. O que isto? Empunhou a moca que trazia. Disseram-me que tinhas boas notcias. Ah, mas para ti, meu rapaz, so excelentes. Vamos dar-te tempo para sares de Tebas antes que o meu amo regresse. De contrrio, esperam-te vrios anos de trabalhos forados nas pedreiras ou o encarceramento numa das prises das Terras Vermelhas. 193
Uma expresso de raiva inundou o rosto de Antef. A Dalifa minha mulher! rosnou. Apresentar-me-ei ao tribunal e direi que fui ameaado! Se no baixas essa moca advertiu-o Chufoi , sers mesmo ameaado. Agora, escuta, Antef. No acho que tenhas levado uma pancada na cabea. Desertaste do exrcito e andaste a divertir-te viajando de aldeia em aldeia ao longo do Nilo. Fazias-te passar por valente soldado? Ou por heri ferido? No tens nenhuma prova! No, mas um certo mercador de Mnfis tem. Antef mudou de atitude. Arvorou um olhar atento, esfregou os ps no cho e mediu a sada do beco. Em Mnfis casaste, o que significa que te davas por divorciado da Dalifa. Roubaste pequenas caixas de sndalo ao pai da tua segunda esposa e, quando ele te expulsou, regressaste a Tebas, onde, para tua grande alegria, a tua primeira esposa recebera uma pequena fortuna. Chegara, mais uma vez, a altura de interpretar o papel do heri ferido que regressa ao lar. Estavas muito confiante. Levaste o caso Sala das Duas Verdades, mas o meu amo um homem muito astuto, tanto assim que podia ensinar um truque ou dois a um mangusto. Talvez tenha percebido o patife que s. - No sei do que... Sabes, sim. Ficaste furioso por o Amerotke no ter dado razo tua pretenso. Estavas no tribunal, ouviste aquele maldito canalha proferir aquelas ameaas e atacar o meu amo. Ento, o que fizeste? Fingiste ser um amemet e enviaste ao meu amo um bolo de sementes de alfarroba numa das tuas caixas de sndalo. Antef mostrava-se claramente agitado. Chufoi tocou na bolsa que Antef trazia no cinturo. Eu fico com isto. No, no ficas! Antef levou a mo adaga. Prenhoe sentiu a boca seca. A situao comeava a tornar-se perigosa. - Eu fico com a bolsa insistiu Chufoi , e tu vais a um templo, rediges uma nota de divrcio, renunciando a todas as pretenses sobre a tua esposa e sua propriedade. Ao amanhecer, estars longe de Tebas. 194
Achas mesmo que faria isso, ano estpido? Achas mesmo que vou deixar tudo de mo beijada para outro desfrutar? zombou Antef com o rosto desfigurado pela raiva. Prenhoe pensou que Antef tinha uma alma muito negra. Sim, acho respondeu Chufoi , ou ters de escolher entre as minas e a priso! Antef agiu muito rapidamente. Desembainhando a adaga, lanou-se sobre Chufoi, mas o ano desviou-se para o lado e, enquanto o fazia, cravou o seu punhal na barriga do atacante. Antef caiu ao cho, cuspindo sangue. Esperneou, tossiu um par de vezes e, aps alguns espasmos, jazia imvel. Mataste-o! exclamou o Vagabundo do Rio. Prenhoe recuou, humedecendo os lbios. Chufoi estava impassvel. Virou-se para os seus companheiros. Era um patife da cabea aos ps. Ameaou o meu amo, juiz supremo na Sala das Duas Verdades. Foi-lhe dada a opor tunidade de viver, mas ele escolheu a morte. A deciso foi dele. Vocs so minhas testemunhas. Foi em legtima defesa, no foi? Prenhoe acenou que sim. Mas fizeste-o deliberadamente, no foi, Chufoi? Talvez. O ano sorriu. O Antef era um homem violento e vingativo. O nosso amo no teria descanso com ele. Um cobarde, um desertor, um bandido e um ladro. Arrancou a bolsa do morto e lanou-a ao Vagabundo do Rio. Leva o corpo para a necrpole. Assegura-te de que a alma dele faz a viagem at ao Horizonte Longnquo. Amerotke estava sentado sobre a cama com as pernas cruzadas, no seu quarto no Templo de Hrus. Chegara tarde na noite anterior e, depois de banhar-se e comer, deitara-se. Sorriu para os seus companheiros. - como estar de volta Sala das Duas Verdades. Vejo pelas vossas caras que tm coisas para me contar. O que aconteceu nas Terras Vermelhas? inquiriu Chufoi. Amerotke descreveu o que tinham descoberto na Sala do Mundo Inferior. 195
Ento, o Ramose foi absolvido de todas as acusaes? perguntou Prenhoe. Sim e no, meu caro parente e escriba. Os dois jovens entraram no labirinto e foram engolidos pela areia. O Ramose est inocente de ter agido com malcia; o caso no voltar a ser levado Sala das Duas Verdades. No entanto, o que o Ramose fez foi uma estupidez. Se tivesse ido procura dos amigos em vez de levar os cavalos para lhes pregar uma partida, haveria uma remota possibilidade de sobreviverem. O jovem oficial ter de viver com isso o resto da sua existncia. Nada na vida preto no branco. E o que se passou por aqui? Prenhoe contou-lhe que os outros sacerdotes continuavam com o debate. Mas no chegaram a qualquer concluso. Suspeito que acabaro por deixar o assunto tal como est: nem sim nem sopas. Chufoi relatou ento o sucedido no bordel no dia anterior. Amerotke escutou-o atentamente. um final adequado declarou, e depois olhou para o ano, cujos olhos brilhavam de expectativa. No s nada palerma, Chufoi. Sabias que o Antef era um fanfarro. Ainda assim, se o caso tivesse chegado a tribunal, a sentena no seria exlio ou priso, mas a morte. A divina Hatusu e o Senenmut tm idias muito claras sobre o que fazer com aqueles que ameaam funcionrios reais. Tambm a ti, Prenhoe, devo agradecimentos. Dizes que o Sato nunca esteve naquele bordel? O escriba abanou a cabea. Mas no deixa de ser um mistrio, amo. Porque haveria um moribundo de deixar tais marcas numa parede, mergulhando as mos em vinho envenenado? Revistei o quarto do Sato declarou Asural. Parecia desconcertado, como um peixe fora de gua. No gostava daquele templo com os seus grandes jardins, rodeado de recessos sombrios e antigas passagens e prticos. E ento? incitou-o Amerotke. Nada. Tambm fui ao Santurio dos Barcos. Se encontrasse o canalha que colocou o sangue a bordo da barca, faria o que o Chufoi fez ao Antef! 196
Mas no encontraste nada? Nada, amo. A embarcao est amarrada desde o anoitecer ao amanhecer. No h nenhum guarda, nem razo para que houvesse. J substituram a barca perdida. Estive a bordo, desci ao poro. No levaria muito tempo a esvaziar um cntaro e a ench-lo de sangue. Tambm visitei os aposentos do Neria e do Prem. Suponho que j esto vazios disse Amerotke. A maioria dos seus haveres ir com eles para o tmulo respondeu o capito da guarda. O sumo sacerdote Hani disse que no encontrou nada de estranho. E o Pepi, o nosso erudito ambulante? Bom, de acordo com os servos, levou tudo com ele. No entanto, por trs da cabeceira da cama h uma coisa que gostaria de te mostrar. O que ? indagou Amerotke. Asural riu. No podia traz-la comigo. Ters de ver para crer. Amerotke secou o suor do pescoo com um pano hmido. lgico pensar que os pertences das vtimas, em especial dos que serviram no Templo de Hrus, tenham sido revistados pelo assassino. Depois de o Neria morrer, o criminoso no deve ter tardado muito a saquear os seus haveres. Sabemos o que aconteceu s coisas do Prem, e o que quer que o Pepi tivesse foi consumido pelo fogo. Quanto ao pobre Sato... passou o pano pela testa. O assassino teve tempo para mudar a garrafa de vinho envenenada e nem precisou de revistar o quarto. Esticou as pernas e sentouse na beira da cama. Queres cerveja, amo? No, Prenhoe, quero a verdade. O Neria, o bibliotecrio, era um homem muito reservado. Concordo contigo opinou Asural. Era muito calado, mas no como o pai divino Prem. O que queres dizer com isso? Bom, o Prem era um sacerdote velho e venervel. O Neria, segundo algumas pessoas, era um tanto matreiro. Sabemos que o Neria apoiava a ascenso da divina Hatusu. 197
Descobriu qualquer coisa naquela biblioteca e na cripta. O qu, no sabemos. Suspeitamos que talvez tenha dito alguma coisa ao Prem sobre as suas descobertas, selando dessa forma o destino de ambos. Amerotke fez uma pausa e esboou um sorriso ao escutar um bonito hino vindo de algum lugar do templo. Que bonitos so os teus ps, Hrus! O teu olhar penetrante como o da guia, Todo o Egipto se esconde sob as tuas asas. Por alguma razo, o Neria foi morto de forma brutal, no com uma silenciosa punhalada ou um subtil veneno, mas convertido numa tocha humana. Tal como o Pepi observou Prenhoe. O homicdio do Pepi foi diferente argumentou o juiz. Era um ateu, um cnico, um gabarolas e muito conflituoso. Foi contratado para conduzir uma pesquisa, mas era um charlato e um intrujo. Aposto que fez muito pouco e estava mais interessado em bisbilhotar no templo do que em estudar os manuscritos da biblioteca. Foram-lhe dados aposentos confortveis, mas mudou-se daqui como se fosse um homem rico. Somos levados a acreditar que roubou um manuscrito e o vendeu, mas o Pepi era demasiado esperto para isso. No roubou manuscrito nenhum; provavelmente, foi escondido algures na biblioteca. Ento, de que suspeitas? perguntou Chufoi. Comeo a interrogar-me se o Pepi no ter sido subornado, se no lhe tero dado dinheiro para que se fosse embora. Ele no teria abandonado um lugar to cmodo como o Templo de Hrus a no ser que tivesse a bolsa recheada de prata. Acho que o assassino o subornou e depois escondeu o manuscrito para que a suspeita de roubo casse sobre o nosso erudito itinerante. Pouco tempo depois, o assassino dirige-se a Tebas e queima o Pepi e o seu quarto, silenciando para sempre a sua boca tagarela. Ento, possvel que a morte do Pepi no tenha nada a ver com as outras concluiu Prenhoe. 198
possvel concordou Amerotke. Excepto que o Pepi e o Neria morreram da mesma forma horrenda. E o pai divino Prem? Isso tambm diferente. Amerotke pegou numa taa de gua e sorveu um pouco. O assassnio do pai divino Prem foi muito bem planeado, mas quase falhou. Uma prostituta encarregou-se de distrair o Sato. bem sabido que estava sempre a tentar arranjar uma rapariga, mas raramente angariava o dinheiro suficiente para satisfazer o seu desejo. No dia em que o Prem morreu, o Sato chegou atrasado. O assassino necessitava de tempo para falar com o pai divino Prem, descobrir o que ele realmente sabia e revistar-lhe o quarto. Sato regressou antes de o assassino ter terminado, mas este havia-se preparado para tal eventualidade e, no final, foi bem-sucedido. O Prem foi silenciado. E a morte do sumo sacerdote de Hathor? No sei. Suponho que tenha sido apenas para semear o caos. Ou, mais uma vez, possvel que ele tenha visto ou ouvido alguma coisa. No entanto, no nos podemos esquecer de que ningum sabia em que mesa os visitantes iam sentarse. O homicdio do sumo sacerdote de Hathor pode no ter passado de um mero capricho. Mas porqu? insistiu Prenhoe. O assassino ope-se firmemente ascenso ao trono da divina Hatusu. Homicdio e caos seguidos de uma concluso que no uma coisa nem outra no far muito em benefcio da reputao do nosso divino fara entre os sacerdotes. Amerotke suspirou. E, finalmente, chegamos ao Sato. O gordo, desajeitado, libertino e bebedolas Sato, to facilmente ludibriado em relao morte do seu amo. Depois, recordouse de qualquer coisa e tambm ele enviado para o Reino dos Mortos. O juiz levantou-se e enfiou os ps nas sandlias. Asural, mostra-me o que encontraste no quarto do Pepi. Achas que alguma vez descobriremos a verdade? perguntou Chufoi enquanto se encaminhavam para o quarto de Pepi. Tambm me pergunto o mesmo. Talvez o nosso bibliotecrio 199
descubra alguma coisa ou o assassino cometa algum erro. O quarto de Pepi era simples e parco em moblia. As janelas estavam fechadas e havia um jarro de flores j mortas no parapeito. Encostadas contra a parede viam-se algumas esteiras de junco. Havia ainda um tamborete e uma cadeira de desarmar. A cama era ampla com as pernas rematadas por patas de leo. O colcho e os lenis haviam sido levados, deixando a descoberto as cordas entranadas que serviam de estrado. A cabeceira era de madeira vermelho-escura. Asural afastou a cama e Amerotke agachou-se. Na parede por trs da cabeceira algum fizera um desenho obsceno de duas pessoas copulando. Uma delas estava inclinada para a frente, e a outra, colocada atrs, puxava as ndegas dessa contra o seu baixo-ventre. As figuras haviam sido traadas com a ponta de um punhal. A pessoa responsvel pelo desenho vestira as figuras com o que parecia uma pele de leopardo, insgnia dos sumos sacerdotes. Sobre eles via-se o esboo de um pequeno falco. Isto obra do Pepi? inquiriu Amerotke. Segundo os servos, sim. Fez outros desenhos, mas foram cobertos de tinta. Este escapou. Disse aos servos que no tocassem nele at tu regressares. Parecem dois rapazes a ter relaes sexuais observou Chufoi. bastante comum entre os sacerdotes dos templos. Pois sim concordou Amerotke , mas depende de quem so e, mais importante ainda, ter sido isto o que o Pepi descobriu? Algum escndalo sexual no Templo de Hrus? Avista do que sabemos sobre o erudito ambulante, suspeito que dever ter tentado chantagear algum. Levantou-se e empurrou a cama para o seu lugar. Bateram porta. Chufoi abriu-a, e Khaliu, o bibliotecrio, entrou. Tenho andado sua procura, meu senhor. Acho que encontrei qualquer coisa. claro que no pude traz-la comigo, mas... - importante? perguntou Amerotke. No tenho a certeza, senhor. O melhor vir comigo e ver por si mesmo.
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CAPTULO 14
Khaliu estendeu a folha de papiro amarelecido sobre a mesa, frente a Amerotke. As suas cores h muito que se haviam esbatido: os dourados, encarnados e pretos convergindo para o mesmo tom de cinzento. Os hierglifos eram muito antigos e a passagem do tempo fazia-os parecer deformados. O juiz olhou para o papiro, desiludido: mais no era que a imagem de um fara com a sua coroa e insgnias e um piedoso louvor. este o manuscrito que o Pepi teria supostamente roubado? Sim, meu senhor. Estudei-o com grande cuidado. No h nada de extraordinrio nele. Nem sequer sei que fara este. Algum governante antigo que, por certo, no pertencia dinastia do Escorpio. Ento, que razes haveria para escond-lo e fazer parecer que o Pepi o roubara? inquiriu Amerotke. - muito valioso para os coleccionadores de antigidades respondeu o bibliotecrio. Sem dvida, pagariam por ele um bom preo. Mas a biblioteca est cheia de manuscritos como este. No entanto... No seu rosto apareceu um sorriso. Nas minhas buscas encontrei outros dois manuscritos que tinham sido mudados de lugar. Tero sido usados pelo Neria? perguntou o juiz. O facto de haverem sido retirados da respectiva caixa indicaria tal coisa. O bibliotecrio dirigiu-se porta para se certificar de que estava fechada. No me parece que sejamos incomodados murmurou, voltando para a mesa. 201
Encontrei uma coisa que seguramente agradar divina Hatusu. Antes de lho mostrar, meu senhor, permita-me uma breve nota histrica. Khaliu sentou-se num tamborete, como um professor prestes a dirigir-se aos seus alunos. H mil e quinhentos anos, como sabe, meu senhor, o Egipto foi unificado sob o governo do rei Mens, da dinastia do Escorpio, cujo corpo no repousa na necrpole de Sakara... Mas na cripta sob o Templo de Hrus. Isso mesmo, meu senhor. Ora bem, Mens era um' prncipe do Baixo Egipto, provavelmente oriundo da cidade de Abido. A sua ambio era unir o Norte e o Sul do Egipto numa nica grande nao. Nessa altura, o Norte do Egipto era governado a partir do Delta e tinha a sua prpria, e muito antiga, divindade, Neit, cujo centro de culto fica em Sais, no Delta Ocidental. Neit a deusa freqentemente retratada como uma mulher que usa a coroa encarnada, o diadema associado ao antigo reino do Norte. Correcto, meu senhor. Neit era uma deusa primeva e bissexual. Reza a lenda que ela criou o mundo e foi a me virgem de um filho. Khaliu parou e esfregou o rosto. O Templo de Neit em Sais foi apelidado de Manso da Abelha, pois este animal era um dos smbolos de Neit. Quando Mens desposou uma princesa do Norte, na realidade, casou com o fara ou rei desse reino nortenho. Viu a surpresa nos olhos de Amerotke. Por outras palavras, meu senhor, os primeiros governantes do reino do Norte foram mulheres e tomavam o nome de Neit. Por fim, tanto Mens como o seu filho Horaha adoptaram um ttulo, um termo arcaico egpcio, que significa aquele que pertence abelha, ou seja, Neit. Estou a seguir o teu raciocnio, meu erudito bibliotecrio afirmou Amerotke. Antes de Mens, o Egipto estava dividido em dois, o Norte e o Sul. Mens comandava o reino do Sul. O do Norte era liderado por mulheres que tomavam o nome de Neit em honra da sua deusa-me, cujo templo fica em Sais. Eram as legtimas portadoras do diadema encarnado. Sim, meu senhor. Mas depois de Mens ter casado com uma princesa do 202
Norte prosseguiu o juiz , a legitimidade do fara para governar ambos os reinos e usar o diadema encarnado dependia da submisso sua esposa e deusa que ela servia. Mais do que isso, meu senhor. A dinastia de Mens adoptou o smbolo do escorpio no selo real. E o escorpio... interveio Amerotke, recordando-se da gravura que vira na entrada da Sala do Mundo Inferior um smbolo hermafrodita, ao mesmo tempo homem e mulher. Fez uma pausa. Como descobriste tudo isto? Num manuscrito antigo. Numa crnica. Descobri mais coisas. Khaliu levantou-se, dirigiu-se a um cofre, abriu os ferrolhos e retirou dois pedaos de papiro muito duros. Abriu-os. - uma imagem de Mens, o primeiro rei da dinastia do Escorpio. Examine-a bem. Amerotke exclamou de surpresa. Hatusu, quando subira ao trono, usara deliberadamente todas as insgnias de um fara masculino, incluindo a barba cerimonial. No entanto, aquela imagem de Mens, usando a coroa dupla, mostrava-o a fazer precisamente o contrrio. Era retratado como um governante feminino: pescoo esguio, peitos grandes e cintura fina. O rosto barbeado aparecia maquilhado como o de uma mulher; as suas partes ntimas estavam cobertas por um pano especial que as sacerdotisas costumavam usar tambm para tapar os genitais; as suas mos e dedos era finos e esguios, as unhas pintadas de um verde-claro. Em seu redor apenas se viam imagens de abelhas, smbolo da divina Neit. As suas pernas, meio tapadas por uma capa, eram tambm de mulher, ao passo que as sandlias revelavam sinais tpicos do calado de uma senhora nobre. Em tudo uma mulher murmurou o juiz. Mens apenas se tornou fara e lhe foi permitido governar o Norte e o Sul quando demonstrou devoo deusa-me e se conver teu, ele prprio, numa mulher. Oh, Khaliu agarrou o escriba pelo pulso , a divina Hatusu sentar-te- a teus ps e ela mesma te servir vinho. Khaliu afastou a imagem e colocou uma segunda no seu lugar. Isto uma inscrio, uma orao de louvor a Mens. 203
Amerotke leu rapidamente as poucas linhas. Algumas das frases eram convencionais, ainda usadas nos templos tebanos, mas havia uma alterao fundamental. Mens j no era o pai real, mas a me divina, amada filha de Neit, cujo ventre fonte de toda a vida. Amerotke afastou o pergaminho. Por que razo isto no do conhecimento pblico? certo que tem mil e quinhentos anos de idade. No entanto, a acreditar nestes manuscritos, os primeiros faras do Egipto, aqueles que uniram o Norte e o Sul, s foram reconhecidos como legtimos devido a terem casado com as princesas de Neit e se terem devotado deusa-me e assumido atributos femininos. A histria reescrita constantemente respondeu Khaliu. Pense na consternao que estes manuscritos causariam nos templos de Tebas. Os sculos passaram, a casta sacerdotal masculina no Sul reafirmou-se. A pouco e pouco, os ttulos e as oraes foram mudados. O nico sobrevivente foi o toucado do abutre, o direito da rainha do fara a ser encarada como sagrada e divina. E o Neria descobriu tudo isto? Sem dvida. Deve ter ficado muito entusiasmado, o que explica o escorpio tatuado na sua coxa. E que tenha contado tudo ao pai divino Prem acrescentou Amerotke. O velho erudito deve ter ficado fascinado. Devem ter ambos tirado notas, feito esboos, uma transcrio da orao que acabei de ler. O juiz bateu com a mo na mesa. Isso explica por que motivo o Neria foi morto daquela forma. O seu corpo tinha de ser queimado para esconder qualquer indcio do escorpio. Suspeito que, se encontrssemos o homem que fez a tatuagem, ele nos diria que o escorpio usava as insgnias reais. Fez uma pausa. Depois de matar o Neria, o assassino foi ao quarto da sua vtima e destruiu quaisquer manuscritos ou notas que por l estivessem. Com o Neria fora do caminho, era a vez do Prem. O assassino teve de o visitar para averiguar o que ele sabia e depois levou a cabo o brutal homicdio. Quanto s outras mortes... Amerotke encolheu os ombros. Penso que o Pepi foi morto por ser um chantagista, e o Sato por ter visto 204
alguma coisa. J o sumo sacerdote de Hathor foi uma oferenda ao sombrio caos no qual o assassino desejava afundar a reunio do conselho. O assassino prosseguiu o bibliotecrio veio ento at esta biblioteca. Sabia da existncia dos manuscritos e escondeu-os, privando dessa forma os partidrios da Hatusu de qualquer prova, ao mesmo tempo que apresentava o Pepi como um ladro. Consegues lembrar-te de quem ter pedido para ver os manuscritos? Khaliu enrugou a testa. Seria impossvel enumerar todos aqueles que aqui vm e que manuscritos leram. Tambm seria fcil perder um deles ou mud-lo de uma prateleira para outra. Amerotke levantou-se e, de to excitado que estava, ps-se a andar de um lado para o outro. Porm, ainda nos restam duas perguntas declarou , e muito importantes. A quem mais contou o Neria as suas descobertas? E o que havia de to importante na cripta? A primeira no posso responder, mas segunda... Queres acompa nhar-me? Khaliu assentiu. O juiz supremo olhou para os manuscritos. Esconde-os em local seguro. Quando sairmos da biblioteca, comporta-te com naturalidade e calma e no digas a ningum o que descobrimos. Tens uma adaga? Tenho mais que isso, meu senhor. Tenho um pequeno arco e uma aljava de flechas. Traz tudo isso ordenou Amerotke. Pouco tempo depois, Amerotke e Khaliu pegaram numa tocha e desceram os degraus que conduziam cripta. O bibliotecrio apressou-se a acender as lamparinas e tochas. As galerias e cmaras ganharam vida. Amerotke caminhou em redor do tmulo. Tinhas razo, Khaliu, quando disseste que a histria est sempre a ser reescrita. Este sarcfago relativamente novo. Claro, meu senhor. Suspeito que o antigo estivesse coberto de smbolos e gravuras retratando o fara como uma 205
mulher. Os sacerdotes de Hrus, muito antes das invases dos Hicsos, destruram provavelmente o tmulo e mandaram fazer um novo. No entanto, as pinturas nas paredes contam a verdade. Porqu? indagou Amerotke. Por que motivo estas pinturas no continuam a mentir, a perpetuar o mito de que os governantes do Egipto eram apenas vares? Khaliu colocou o arco e a aljava no cho e passou a mo pelas paredes. - Estas gravuras foram feitas por sacerdotes, eruditos que acreditavam realmente que os Hicsos sepultariam o Egipto sob um mar de cinza ardente. , E em tempo de catstrofe prosseguiu Amerotke, respondendo sua prpria pergunta , necessrio preservar a verdade e esquecer a mentira. O artista viu o mesmo que ns disse Khaliu, acenando com a cabea. Provavelmente, viu at outros manuscritos que entretanto j foram destrudos. Olhou em redor. Estudei algumas destas pinturas. Parecem desmaiadas em alguns locais, mas deve ser propositado. Aproximaram-se de uma esquina onde as gravuras representavam a origem da dinastia do Escorpio. O fara, sem dvida Mens, aparecia sentado em toda a sua glria, usando a coroa dupla do Egipto. Khaliu, segurando a tocha com a mo tremente de tanta emoo, mostrou como a pintura havia sido danificada deliberadamente. Uma figura, de algum que estaria sentado ao lado do fara, fora apagada de forma a parecer obra do passar do tempo. O mesmo acontecia com a prpria imagem do fara. No havia nenhum sinal dos peitos aumentados, do smbolo da abelha, e quaisquer referncias a Neit haviam sido cuidadosamente eliminadas. No entanto, qualquer pessoa que tivesse visto o desenho que Khaliu encontrara na biblioteca repararia nos subtis contornos que mostravam os atributos femininos que Mens, o primeiro governante do Egipto unificado, tomara para si mesmo. Assim que isto se souber afirmou o juiz, dando um passo atrs , a reunio do conselho terminar. Hatusu sair triunfante. Deu uma palmadinha no ombro do bibliotecrio. 206
Vou proteger-te. No deves ficar aqui. No, no insistiu Amerotke quando viu que Khaliu se preparava para protestar. Tens de partir, para tua prpria segurana, pelo menos durante algum tempo. Asural montar guarda enquanto escreves o que descobriste. Enviarei tambm uma carta ao meu senhor Senenmut... Onde ests? Amerotke sobressaltou-se ao ver Chufoi e Prenhoe entrarem na cmara. Como souberam que estvamos aqui? perguntou Amerotke. Um dos guardas viu-te. Chufoi mirou Khaliu desconfiadamente. No devias andar sozinho por este lugar maldito. Tenho muitos e bons amigos respondeu o juiz , e o Khaliu um deles. Chufoi, torna-te til. Apaga as lamparinas e as tochas. J estvamos de sada. Descobriste o assassino? inquiriu o ano, excitado. Vamos v-lo pendurado da muralha? No, no descobrimos respondeu-lhe Amerotke enquanto empreendiam o caminho de regresso pelas galerias , mas descobrimos as suas motivaes. Prenhoe, quero que leves imediatamente o Khaliu ao Asural. Ele que o acompanhe ao palcio real para que seja colocado sob a proteco pessoal do meu senhor Senenmut. Vo agora mesmo! No cimo das escadas, Amerotke voltou-se. Khaliu, no digas a ningum onde vais. No leves nada contigo, limita-te a ir. Agarrou Chufoi pela mo. E tu, o mais sbio dos mdicos, leva uma mensagem ao sumo sacerdote Hani. Diz-lhe que urgente que o conselho se rena na sala de banquetes. Ah, e depois disso, vem ter comigo accia junto ao lago sagrado. A partir de agora e at que este assunto esteja acabado... Amerotke pegou no arco e na aljava de Khaliu e passou-os para as mos de Chufoi ... anda sempre com isto. Vais contar aos sacerdotes? perguntou o bibliotecrio. Vou. Talvez consiga evitar novos assassinatos. 207
Passou-se uma hora at que a Amerotke, sentado em almofadas na sala de banquetes, se juntassem os restantes sacerdotes: Hani e Uechlis, e os de Amon, Osris, Isis e Anbis. O ltimo a chegar foi o chefe dos escribas, Sengi. claro que todos justificaram o seu atraso dizendo que estavam muito ocupados. O sumo sacerdote de Amon chegou mesmo a insinuar que estava prestes a abandonar o templo. Amerotke preparava-se para revelar o que descobrira, quando um mensageiro real entrou na sala e se aproximou de Hani para lhe sussurrar qualquer coisa ao ouvido. O sumo sacerdote, com um ar plido e nervoso, anuiu com a cabea e despediu o mensageiro com um aceno da mo. Tenho uma mensagem da Casa Divina anunciou. Amanh de manh, antes da nona hora, Sua Majestade Imperial, a divina Hatusu, escoltada pelo senhor Senenmut, honrar este templo com a sua presena. Olhou o sumo sacerdote de Amon com uma expresso de rancor. Portanto, ningum se ir embora. As suas palavras foram recebidas com silncio. Os sumos sacerdotes pareciam todos muito constrangidos. E por que motivo ela, quero dizer, Sua Majestade Imperial apressou-se o sumo sacerdote de Isis a corrigir se digna mostrar-nos o seu rosto? Ou f-lo s pelo prazer de nos ver com o nariz no cho a seus ps? Somos eruditos afirmou o sumo sacerdote de Amon , servimos o Egipto e os seus governantes h muitos anos. Somos tambm sacerdotes e no podemos ser intimidados. No sero intimidados replicou Amerotke , pois tenho algo a dizer-vos. Colocarei um ponto final nos vossos debates e explicarei os horrendos homicdios que foram cometidos. Uechlis bateu palmas, os seus olhos brilhando e as faces afogueadas. Os restantes murmuraram por entre dentes uns com os outros. Amerotke, escolhendo cuidadosamente as palavras, descreveu o que Khaliu descobrira. A princpio, foi interrompido por exclamaes de desaprovao e protestos de que no estavam ali para receber lies sobre a histria do Egipto. 208
No entanto, medida que continuava, percebeu neles uma mudana de humor e expresso, que passou da incredulidade ao medo, ao perceberem que se haviam oposto a algo ainda mais antigo e venervel que eles mesmos. Quando Amerotke terminou, ningum desafiou ou criticou as suas palavras. Permaneceram sentados com um ar grave e, embora o juiz os tenha observado atentamente, no detectou o menor sinal de alarme ou culpabilidade, nenhum passo em falso que revelasse o assassino. O sumo sacerdote de Amon ergueu uma mo, a palma voltada para a frente, num gesto de paz. Pela primeira vez desde que se haviam encontrado ali no templo, encarou Amerotke com um certo respeito. Sei que fala verdade, meu senhor Amerotke, mas ter de admitir que surpreendente. Isso... Olhou de soslaio para os seus companheiros. Isso muda muita coisa. E, ao mesmo tempo interveio o sumo sacerdote de Osris , confirma tambm aquilo de que muitos de ns suspeitvamos. Amerotke baixou os olhos. Os sacerdotes haviam interpretado os sinais e, quais barcos esperando uma brisa, rodavam a vela para mudar de rumo. A reunio do conselho afirmou Amerotke deve ser dada por terminada. A divina Hatusu fez aos senhores sacerdotes uma pergunta, ou antes, foi o Senenmut quem a colocou: existe algum impedimento para que uma mulher, divinamente concebida e aprovada pelos deuses, use as duas coroas e empunhe o basto, o mangual e o ceptro sobre o povo dos Nove Arcos? Como poder haver impedimento perguntou , quando o primeiro fara que unificou o Egipto apoiou mais o feminino que o masculino? Na verdade, baseou nele a legitimidade do seu governo. Lamento que o sumo sacerdote de Hathor no possa encontrar-se hoje aqui comentou o de Osris num tom triste. E porqu? indagou Amerotke. Depois de termos estado na biblioteca para investigar que manuscritos poderia ter roubado aquele desavergonhado 209
do Pepi, fomos dar um passeio pela cidade, eu e os meus senhores sumos sacerdotes de Hathor, Isis e Anbis. Eu tambm fui interrompeu Sengi, desejoso de se associar a qualquer coisa que pudesse ganhar a aprovao dos presentes. Sentmo-nos sombra de uma palmeira continuou o sumo sacerdote de Osris. O sumo sacerdote de Hathor, como representante da deusa do Amor, sugeriu algo muito semelhante ao que o juiz supremo prope. Muito bem, pensou Amerotke. Escondeu o desprezo que sentia por aqueles traidores e mentirosos que agora no tinham outra escolha a no ser aceitar, sem quaisquer objeces, a subida ao trono de Hatusu e a aprovao dos deuses. Meu senhor Amerotke, pareces um pouco desconcertado reparou Hani. Amerotke exalou um longo e profundo suspiro. " A divina Hatusu vir aqui amanh. Seria bom que falssemos a uma s voz na hora de expor... fez uma pausa de expor os frutos da nossa investigao. Os restantes sacerdotes descontraramse, ajeitando as tnicas e sorrindo presumidamente. Para qu fazer inimigos?, pensou Amerotke. Quem sabia quando, para bem da justia ou do Egipto, precisaria daqueles homens? Seria melhor apresentar as descobertas de Khaliu como a causa comum de todos eles. Temos de recompensar o nosso bibliotecrio, claro! bvio! responderam em unssono. - justo afirmou Hani. O Khaliu um jovem erudito de grandes mritos. Deve ser apresentado a Sua Majestade. J foi declarou o juiz sem cerimnia. No devemos esquecer, meus senhores, que temos assuntos pendentes. O Khaliu foi enviado para a Casa Divina para sua proteco. O meu senhor Senenmut colocar a mo sobre o seu ombro. Os assassnios! exclamou Hani. Sim, meu senhor, os assassnios. As horrveis mortes, os cruis atentados minha vida e dos meus companheiros ainda esto por resolver. Ests perto da verdade? perguntou Uechlis. 210
Gostaria de responder que sim. Encolheu os ombros. Descobri algumas coisas. Fez um breve resumo das suas concluses sobre os assassinatos de Neria, Pepi, Prem, o sumo sacerdote de Hathor e Sato. Mas isso... isso... tartamudeou Hani no o que pensvamos. Meu senhor, no sei o que dizer. O Neria era um homem reservado, mas esse assunto da tatuagem... Enxugou o suor da cara. Porm, o que dizes lgico. As gravuras na cripta foram deliberadamente vandalizadas? perguntou o sumo sacerdote de Amon. Oh, no respondeu o juiz. Provavelmente os danos so resultado do passar dos anos, mas acho que os sacerdotes ajudaram um pouco. Mas a morte do Prem? Para qu tantos subterfgios? quis saber o sumo sacerdote de Isis. - de certeza que a morte do Sato foi acidental declarou Uechlis. Olhou para o marido. Os mdicos no testaram o vinho? O assassino fez de propsito para que parecesse um acidente explicou Amerotke. Meus senhores, sabem tanto como eu. Olhou fixamente para a imagem de um pssaro de bela plumagem pintada na parede no extremo da sala. Algo de importante fora dito ali. Abanou a cabea. Teria de lembrar-se disso mais tarde. Tm mais alguma coisa a acrescentar s minhas concluses? O sumo sacerdote de Hathor pode ter sido morto devido aos seus pontos de vista opinou o sumo sacerdote de Amon. Amerotke abanou a cabea. No. Ele foi morto para semear o caos. Tamborilou na mesa com os dedos. Tinha a certeza de que o assassino estava presente naquela sala. Mas como poderia exp-lo? Eram todos homens astutos, duros e secos, bem capazes de trepar uma escada de corda, disparar uma flecha ou despejar um balde de leo sobre o pobre Neria. A questo era saber qual deles teria sido. Ou havia mais que um? Seriam todos cmplices e estavam a proteger-se uns aos outros? Mais alguma coisa? perguntou Hani. 211
Amerotke respondeu que no. Levantou-se e aceitou os agradecimentos dos restantes com uma expresso pensativa. Abandonou a sala de banquetes e dirigiu-se aos jardins onde Chufoi o esperava sob a accia. J sabes da notcia, amo? A divina Hatusu vem visitar-nos. Observou o seu amo. Ests melanclico. Posso preparar-te uma poo que te animar: osso de mangusto esmagado e misturado com pata de veado, cera pura e uma pitada de papoila. Amerotke abanou a cabea. Estou a tentar descobrir um assassino muito inteligente... Falei com o Khaliu interrompeu o ano. O Neria descobriu qualquer coisa, no foi? Sim. Chufoi abriu a pequena bolsa que trazia sempre consigo e pescou de l um pedao de cera endurecida que utilizava para calcular os seus ganhos. Agachando-se ao lado do amo, desenhou um tringulo. O Neria a base explicou , o pai divino Prem um dos lados. E o outro lado? o assassino. Sabemos que h uma relao entre o Neria e o Prem. Ambos conheciam a terceira pessoa e falaram com ela em conjunto ou separadamente. Bom, se estivssemos a jogar, eu apostaria no sumo sacerdote Hani. No final de contas, conhece o Templo de Hrus, e o Neria e o Prem trabalhavam para ele. S h uma coisa. O que ? O Hani tem medo das alturas. Amerotke ficou boquiaberto. Como vs Chufoi sorriu e deu umas palma-dinhas na cabea , posso ser pequeno, mas consigo enfiar-me em locais onde os outros no conseguem e escuto a tagarelice dos criados. bem sabido que o Hani fica com tonturas s de subir uns quantos degraus. Ento, no ser a pessoa mais indicada para andar a trepar por escadas de corda. Bem visto, amo. 212
Amerotke ignorou o sarcasmo do seu servo. E que mais descobriste? Algo que tu seguramente no fizeste, meu senhor. O Neria, o Hani, os sumos sacerdotes de Hathor, Amon, Osris e Isis freqentaram a Casa de Vida juntos. certo que o Neria era bem mais novo que eles. Que Casa de Vida? perguntou Amerotke. Pois esta mesmo, meu sbio juiz, a do Templo de Hrus. E entre eles nunca houve a mnima afeio. Por essa razo, se o Neria descobriu alguma coisa, manteve-a em segredo. Mas contou ao pai divino Prem. Sim, mas o Prem, j homem maduro, foi professor e escriba na Casa de Vida. Todos gostavam muito dele, mas o Neria era o seu preferido, o que explica que o Neria o tenha escolhido como mentor. Amerotke encostou-se rvore e olhou para cima. Uma ave de brilhante plumagem cantava, empoleirada num ramo. Amerotke partira do pressuposto de que Neria contara tanto a Prem como ao assassino o que descobrira, mas Prem poderia bem ter sido a nica fonte de informao do homicida. Tambm estavam unidos por outra coisa prosseguiu o ano, erguendo uma sobrancelha maliciosamente. Amerotke soltou uma gargalhada. Um escndalo? Sim, amo, um escndalo. Aconteceu quando eram jovens. Chufoi passou a lngua pelos lbios. Conheces a minha fraqueza, amo: uma bela rapariga, um copo de vinho e uma cama macia. No entanto, segundo rezam os rumores, durante a juventude, estes sacerdotes amavam-se uns aos outros. Mas disseste que se detestavam. - essa a razo da antipatia. So piores que amantes despeitados. Amerotke fechou os olhos. O que Chufoi afirmava soava a algo muito prximo da verdade. Quando freqentara a Casa de Vida, a homossexualidade era coisa corrente. Algumas vezes era censurada, outras encorajada. Na maioria das vezes, os homens eram bissexuais. Encaravam as mulheres como um mero 213
apndice da vida, da a sua atitude relativamente divina Hatusu. Abriu os olhos e sorriu. Agradeo-te o que me contaste, Chufoi. Agora, deixa-me s por uns momentos. Agarrou na pequena mo do ano. Mas no vs muito longe. Os jardins podem ser bonitos, mas tambm o uma travessia do Nilo. Chufoi afastou-se. O juiz voltou a rever cada um dos assassinatos. Podia excluir Hani da morte do pai divino Prem, mas, ainda assim, era possvel que estivesse envolvido. Um homem desesperado faria qualquer coisa para atingir os seus objectivos. E os outros? Qualquer um deles podia ser o assassino. E o homicdio de Pepi? Teria ele descoberto alguma coisa escandalosa? Seria essa a explicao para aquele desenho obsceno na parede? Amerotke bateu com o punho no cho. Sentia-se como um dos ratos do seu filho s voltas na gaiola. Haveria outro caminho para chegar verdade? Deveria tentar outra chave na fechadura? Pensou no seu encontro com os sacerdotes e nas palavras do sumo sacerdote de Osris sobre o pobre sumo sacerdote de Hathor. Queres um copo de vinho ou cerveja, amo? Chufoi regressara. No, no, agora, no. Escutou os cnticos e inalou o perfume a incenso, os quais provinham do santurio do templo. Hani estaria agora a abrir as portas do nos e a oferecer ao deus a sua refeio matinal. Amerotke voltou a sua ateno para o ataque sua pessoa. Colocar o sangue na barca era fcil; ao abrigo da noite, qualquer pessoa poderia esgueirar-se at ao embarcadouro. E o assassnio de Sato? Amerotke dominou a sua impacincia. Na manh seguinte, a divina Hatusu faria a sua apario no templo. Ficaria satisfeita com as notcias, mas exigiria vingana pelas mortes. Ele desejava o mesmo. Recordou-se da silhueta negra nos degraus da cripta, das flechas sibilando pelo ar. Quem poderia ter sido? E onde estavam os outros? O sumo sacerdote de Amon encontrava-se perto da cripta, agarrado quela bailarina do templo. O juiz pensou por um momento e ficou plido. Ps-se de p to depressa que bateu com a cabea 214
num ramo e praguejou. Chufoi apareceu por detrs de um arbusto. O que foi, amo? Olhou assustado para o juiz, que permanecia de boca aberta como um tolo. Um erro to pequeno... murmurou Amerotke. O nico que cometeu... Amo? Amerotke sentou-se. Chega aqui, Chufoi. Quero que faas uma coisa por mim. Vai levar algum tempo, mas escuta. Chufoi agachou-se frente ao seu amo e este deu-lhe instrues muito precisas sobre o que o ano deveria fazer. Onde pretendes chegar com isso, amo? Amerotke captou o brilho no olhar do seu servo. A verdade que tu e eu servimos, Chufoi. O assassino cometeu um pequenssimo erro. To pequeno que quase no dei por ele. Agora, sei qual foi. Conta-me. No, Chufoi, no contarei. J te conheo. Tomaras a lei nas tuas mos. E tens provas? perguntou Chufoi. No, esse o segundo problema. Faz o que te pedi, Chufoi. Este assassino no ser desmascarado, mas apanhado em flagrante, e pretendo faz-lo na presena da divina Hatusu. O ano foi-se embora e Amerotke regressou aos seus aposentos. Acabara de chegar quando algum lhe bateu porta. Foi abrir e viu o general Omendap. Meu senhor Amerotke. General Omendap. Vim para lhe agradecer. O general sorriu. E para lhe falar da morte de um soldado, um tal Antef.
CAPTULO 15
Sob um sol escaldante, os remadores, com as costas a brilhar de suor, moviam a grande barca real, a Glria de Amon-R, ao longo do Nilo. A divina Hatusu, o Falco Dourado, amada dos deuses, lder do povo dos Nove Arcos, dignara-se mostrar o seu rosto aos seus sbditos, navegando em glorioso triunfo Nilo acima at ao Santurio dos Barcos no Templo de Hrus. Ao longo das margens marchavam batalhes dos melhores soldados de infantaria e, atrs deles, protegendo os flancos, esquadres de quadrigas. O ar estava repleto de sons de msica e dos gritos da multido. As enormes penas de avestruz que quase ocultavam o fara agitavam fragrantes perfumes pelo ar. Hatusu seguia no seu trono revestido a ouro com uma expresso de majestosa serenidade. s primeiras horas da madrugada, os guardies dos perfumes e unguentos haviam banhado e oleado o seu corpo cor de cobre. As suas plpebras foram ento pintadas de verde-escuro e os seus belos olhos delineados com khol. Uma cabeleira bem oleada, e entranada com fios de ouro e prata, foi-lhe colocada sobre a cabea, adornada com um diadema de prata no qual o uraeus, a cobracapelo que protegia o Egipto, se empinava, pronta para o ataque. A soberana vestia uma tnica de linho pregueada sob uma capa dourada incrustada de pedras preciosas e presa por correntes e ganchos de prata. Ao lado de Hatusu ia Senenmut, o gro-vizir, voz da rainha, 216
seu amigo predilecto e, claro, companheiro de cama. As mos de Hatusu apertavam os braos do trono. Sentia-se profundamente satisfeita. Escutara com a maior das atenes o jovem bibliotecrio Khaliu e agora mostraria queles sacerdotes o que os esperava! Obrig-los-ia a dobrar o pescoo e a beijar o cho. Permitir-lhes-ia que a contemplassem na sua glria e, se apropriado, recompens-los-ia com uma rpida vista de olhos. Os seus lbios cor de carmim esboaram um sorriso. Recompensaria Amerotke. Imporia tambm o mais cruel dos castigos ao malfeitor que ousara levantar a mo contra o juiz supremo. Desfruta do teu triunfo, Majestade murmurou Senenmut. Descansamos na palma da mo do teu pai, o glorioso Amon-R. Hatusu inspirou. Preparara aquela viagem, aquela exibio real, com todo o pormenor. A barca era a melhor de toda a frota real. O casco argnteo era revestido a ouro, a proa e a popa, em forma de cabea de carneiro, resplandeciam de jias. Entre os altaneiros mastros prateados onde ondeavam as flmulas encarnadas seguia o altar do deus. Uma serva susteve um espelho para que a soberana pudesse contemplar-se em toda a sua glria. Na verdade, tinha vontade de rir. Hatusu insistia no estrito cumprimento da etiqueta e protocolo da corte, porm, algumas vezes, sentia o impulso de despojar-se de todos os atavios reais e de danar como quando era menina, na corte de seu pai. Senenmut pressentiu a sua excitao e tossiu discretamente. Hatusu observou o seu reflexo. Parecia uma esttua sob o enorme toucado de ouro com grandes penas de avestruz brancas. Essa noite, tiraria tudo e danaria nua para o seu amante, o homem que a ajudara a tomar o poder. Para se distrair, Hatusu voltou ligeiramente a cabea. A multido na margem direita do Nilo reparou no gesto e aclamoua. O fara dignara-se olhar para eles! Para demonstrar o seu favor para com todos, Hatusu olhou em seguida para a esquerda. Na margem mais prxima, escoltando a barca, os sacerdotes seguiam em procisso cantando hinos, as sacerdotisas agitavam sistros e as bailarinas danavam e cantavam ao ritmo 217
de castanholas. Ao longe, viu os obeliscos de vrtices dourados da cidade, as colunatas dos templos e as paredes rosadas pelo sol-nascente. Atrs dela, o capito da barca real gritou uma ordem. A embarcao mudou de direco e dirigiu-se ao ancoradouro. Soaram outras ordens, os remos foram levantados e a barca deslizou at ao seu destino. Um palanquim esperava a soberana. Hatusu reparou no grupo de sacerdotes. Olhou-os friamente. Amerotke tambm a esperava. Sorriu para ele, saudando-o com a mo medida que se instalava no palanquim. Este foi erguido suavemente e Hatusu foi conduzida pelo caminho real at ao templo. Grandes nuvens de incenso elevavam-se no ar para a saudar, ptalas de flores embebidas em perfume eram lanadas no caminho. Coros, reunidos nas escadarias, entoavam um salmo divino. Como s bela, como s bela, glria do Egipto. Manifestao da vontade divina, sorri-nos. Os nossos coraes rejubilaro, Os nossos corpos estremecero Como se tivssemos bebido o mais doce dos vinhos. Hatusu deixou-se relaxar. O palanquim foi pousado. Ela saiu para uma carpete escarlate e dourada e avanou majestosamente para o interior do templo. Conduziu o sacrifcio no santurio e passou para um pequeno vestbulo onde tirou os trajos e insgnias do poder. A sala do conselho j tinha sido preparada; o seu trono fora colocado num dossel coberto com um manto purpreo, com uma cadeira mais baixa ao lado para Senenmut. Hatusu tomou o seu lugar e descansou os ps no tamborete dourado. Funcionrios e cortesos tomaram os seus lugares em seu redor. Os sacerdotes entraram e prostraram-se ante ela, tocando o solo com as testas. Hatusu manteve-os assim mais tempo que o necessrio. Meu senhor Amerotke disse a soberana num tom muito baixo , tu e os teus companheiros podem j sentar-se. 218
Fizeram-no depressa e sem dizer palavra. Hatusu observouos a todos. Percebeu o desagrado no olhar dos sumos sacerdotes, mas nenhum se atreveu a fit-la nos olhos. Amerot-ke, notou ela um pouco contrariada, no estava sequer a olhar para ela, permanecendo sentado com as mos nos joelhos e os olhos postos no cho. Vamos dispensar o cerimonial declarou ela num tom seco e ignorando o murmrio de desaprovao vindo dos camareiros atrs de si. Falarei e as minhas palavras sero cumpridas. Ocupo o trono do fara e uso a coroa dupla. Empunho o ceptro e o mangual. Esta a vontade dos deuses! Sim, ! Sim, ! disseram todos em unssono. Creio que o meu senhor Amerotke, com a ajuda do bibliotecrio do Templo de Hrus, levou este assunto... Hatusu escolheu as palavras cuidadosamente ... a uma concluso muito surpreendente. Sorriu para o juiz supremo, que se levantou. Amerotke fez ento um relato sucinto do que se descobrira em relao dinastia do Escorpio, os primeiros faras do Egipto. Quando terminou, Hatusu perguntou se havia consenso geral sobre este ponto. Os sumos sacerdotes manifestaram em coro o seu assentimento. No dia da festa de Isis proclamou Senenmut , o divino fara oferecer sacrifcio no santurio. Todos os sumos sacerdotes de Tebas estaro presentes e o povo ser testemunha da sua gloriosa aclamao. Levantou a mo. Estes assuntos esto concludos. O conselho permaneceu em silncio. Hatusu inspirou pelo nariz e deixou o ar sair lentamente pela boca, sinal de que iria falar. Amerotke percebeu que a tenso dominava os sacerdotes. Escondeu a sua excitao. Hatusu ia presidir ao conselho, o assassino seria desmascarado. O juiz chegara a uma concluso lgica, mas prov-la no era fcil. Manteve-se impassvel, evitando com muito cuidado o olhar do seu suspeito. Temos outros assuntos a tratar. A voz do fara soou como um latido. As portas do templo esto seladas. A justia faranica deve ser administrada! Elevou o tom da sua voz. Foram cometidos crimes horrveis! Fez uma pausa para criar efeito. 219
Amerotke esperou. Na noite anterior, terminara as suas reflexes e chegara a uma concluso. A informao que Chufoi lhe trouxera na vspera fora vital. Enviara de imediato uma carta a Senenmut e depois, recordando-se da morte de Antef, emitira um edital, assinado com o seu prprio selo, permitindo a Dalifa casar e administrar os seus bens sob a proteco do fara. Meu senhor Amerotke chamou Senenmut. O juiz supremo tornou a levantar-se. No pretendo voltar a falar do que todos j sabem. Este o Templo de Hrus, mas o vermelho Set, deus da morte repentina, fez notar a sua presena. Sua Divina Majestade falou em crime; as razes destes assassnios encontram-se na traio. Algum, de corao muito negro e alma perdida, recusou-se a aceitar a vontade dos deuses. Se se conseguisse provar que uma mulher tinha o mesmo direito que um homem de se tornar fara, que, de facto, os primeiros faras do Egipto deviam a sua legitimidade ao lado feminino da divindade, ento, toda a discusso teria cessado. E, agora, tal prova existe! exclamou Hani. Assim respondeu Amerotke. Reparou que os sumos sacerdotes tremiam e estavam plidos. O Neria prosseguiu o juiz era um homem reservado, mas um brilhante erudito. Tambm ele chegara mesma concluso. Estudara as gravuras na cripta sob o templo. Talvez tenha reparado em alguma coisa e depois encontrado a prova que lhe faltava nos arquivos do templo. Desejoso de exibir os seus conhecimentos e receber os aplausos do seu antigo professor, o Neria informou o pai divino Prem. Nem se preocupou em falar com o Pepi, o erudito ambulante, que acertadamente encarava como um intrometido, um incitador de escndalos. O Pepi fora contratado pelo Sengi. O chefe dos escribas baixou a cabea. Mas o Pepi s aceitou a tarefa para assegurar uma cama confortvel e boa comida. No estava interessado em manuscritos ou papiros, mas nos mexericos e intrigas do templo. Muito astuto e observador, o Pepi talvez se tenha interessado pelo Neria devido ao seu isolamento e reserva. Amerotke fez uma pausa. Deve ter suspeitado que o Neria descobrira alguma coisa e comeou a observ-lo de perto para descobrir o 220
que poderia ser. Em vez disso, tropeou noutra coisa. O Neria mantinha uma relao amorosa com algum aqui do templo. possvel que o Pepi os tenha surpreendido. Olhou para Hatusu, a qual tinha a mesma expresso de um gato que vigia a toca de um rato. Fez um desenho obsceno na parede do quarto. Quando o vi pela primeira vez, pareceram-me dois homens a fazer amor. Amerotke caminhou ao longo da fila de almofadas e deteve-se. Agarrou na mo de Uechlis. Estava gelada. Mas claro que eras tu e o Neria. Hani deixou escapar um gemido. O juiz supremo compreendeu s com um olhar que o sumo sacerdote j suspeitava de que algo no ia muito bem no seu matrimnio. No sei h quanto tempo durava esta relao prosseguiu Amerotke , meses, talvez anos. Os jardins do templo so espaosos, repletos de recantos e esconderijos. Olhou para o sumo sacerdote de Amon. No assim, meu se nhor? Vi-o num deles com uma das bailarinas do templo. O sumo sacerdote de Amon baixou os olhos. Amerotke olhou novamente para Uechlis, que permanecia imperturbvel. Interrogou-se se ela no estaria a fazer pouco dele com aquele olhar condescendente. No dizes nada? gritou Hani. Uechlis olhou o marido de soslaio. Amerotke soltou-lhe a mo. O Neria contou-te o que descobrira, no foi? Viste a tatuagem do deus-escorpio na sua coxa, um acto um tanto pretensioso para ganhar o favor da corte. Uma proclamao perptua da sua sabedoria. O Neria devia saber que quando a sua descoberta se tornasse pblica, receberia a aprovao divi na do fara e da sua corte. Na sala do conselho reinava o mais absoluto dos silncios. Hatusu esquecera o protocolo e permanecia sentada com os lbios entreabertos e uma expresso de fria nos olhos. Senenmut inclinava-se para a frente na sua cadeira, como se no pudesse acreditar no que ouvia. Amerotke informara-o de que desmascararia o assassino, mas no mencionara qualquer nome. Mataste o Neria, no foi? 221
Uechlis no respondeu. Amerotke interrogou-se se no estaria em estado de choque. Limitava-se a morder o lbio inferior com as mos colocadas no colo. Mesmo agora, as suas belas unhas, pintadas de vermelho-escuro, chamavam a sua ateno. Sabias que o Neria pretendia descer cripta, um local deserto do templo. Todos os demais estavam longe dali, no banquete ou a recuperar dos efeitos deste, depois da visita do divino fara. Neria subiu os degraus, tu abriste a porta de rompante; tomado de surpresa, estacou. Em poucos segundos foi encharcado de leo e viu uma chama cair na sua direco. O Neria, a sua ridcula tatuagem e o que quer que transportasse nas mos foram transformados numa tocha humana. Fechaste a porta, livraste-te do balde e correste para o quarto dele para uma busca apressada. Afinal de contas, conhecias todos os seus esconderijos. Qualquer coisa comprometedora, todos os frutos da sua investigao foram rpida e discretamente retirados. Limitas-te a ficar a sentada e a aceitar isto sem dizer uma nica palavra? rugiu o gro-vizir. Primeiro, escuto respondeu Uechlis calmamente , e depois responderei, pedreiro! Senenmut estremeceu perante a insultante referncia s suas humildes origens. Por favor, continua, meu senhor Amerotke disse ela num tom amvel. Lembras-te de quando eras um mido? Adorava escutar as tuas histrias. Sim, minha senhora, e escutars. O Neria foi eliminado, mas o pai divino Prem tinha tambm de ser silenciado, pois o Neria partilhara as suas descobertas com o seu mentor. Para alm disso, no fazias idia se o pai divino sabia da tua relao amorosa com o Neria. Vais ento falar com ele. Planeias tudo muito bem. O Prem era um recluso, um eremita. O Sato, o servo, seus olhos e seus ouvidos, quem atendia a todas as suas necessidades, andava pela cidade de olho nas raparigas. Toda a gente conhecia a sua afeio por elas. Era alvo de chacota. Contrataste aquela prostituta para o entreter? Para o embebedar de cerveja? Seja como for, vais ter com o pai divino Prem torre do jardim. Levas contigo uma pequena escada 222
de corda e deixa-la porta do quarto do ancio. Entras e encetas conversa com ele. O Prem era muito tagarela. Tomas ento uma deciso, pois alguma coisa que ele te diz ou te mostra desperta suspeitas da tua parte. Mata-lo com a antiga maa dos Hicsos e revistas o quarto. Porm, o Sato regressa. Escondes o corpo debaixo da cama e corres para o terrao da torre, lanando a escada por cima das ameias. Pegas ento no xaile e no chapu de palha do padre e fazes passar-te por ele. E como poderia eu fazer isso? interrompeu ela. Minha cara, estava escuro. Tiras a peruca, colocas o chapu e o xaile sobre os ombros. Ests meio encoberta pela escurido e provavelmente de costas para a porta que d para o terrao. O Sato v o que esperava ver e desce as escadas. Passado um bocado, desces tu. Para o distrair, tiras um anel e deixa-lo cair escada abaixo. Enquanto o Sato vai atrs dele, entras no quarto do Prem. Mais uma vez, est escuro, continuas com o chapu e o xaile e mantns-te de costas para a porta. O Sato coloca o anel na mesa. Fechas e trancas a porta quando ele sai. Amerotke encolheu os ombros. Suponho que um grito soa igual a qualquer outro. O Sato tenta abrir a porta, mas v que intil. Vai ento chamar ajuda. Tu colocas o corpo do Prem na cama, levas a maa, sais pela janela e sobes pela escada de corda at ao terrao. Eu a trepar por uma escada de corda? Uechlis, provavelmente ests mais capacitada para isso que muitos dos soldados do fara. s uma nadadora exmia e tens uma preparao fsica invejvel. Assim que chegas ao topo da torre, lanas a escada e a maa para o roseiral que h aos ps da torre. Juntas-te ento aos restantes quando a porta do quarto do Prem est a ser arrombada. Sim, verdade, estava l confirmou o sumo sacerdote de Isis. E, agora que penso nisso, foi como se tivesses surgido do nada. Que sabes tu de mim? escarneceu Uechlis. No digas disparates, velho caqutico! Uechlis parecia ter perdido qualquer receio de Hatusu e seus acompanhantes. O Pepi foi a vtima seguinte continuou Amerotke. Pensando melhor, acho que ele no te chantageou. Talvez apenas 223
tenha insinuado que sabia da tua relao com o Neria. O Pepi s queria ter os bolsos cheios de prata, a barriga cheia de vinho e as mos em redor das ndegas de uma jovem prostituta. Apareceram ento umas bolsas de dinheiro no seu quarto, em jeito de suborno, e o Pepi dedica-se a percorrer todos os bordis da cidade. Mas claro que os chantagistas nunca se contentam, no assim? Tiveste de o destruir e a qualquer prova que pudesse ter, por exemplo, notas do que vira. O seu quotidiano era o habitual de qualquer libertino: embe-bedar-se durante a tarde e contratar os prstimos de prostitutas para passar a noite. Ests a dizer que eu seria capaz de ir at aos cais, eu, uma suma sacerdotisa? Tu no tens medo de nada, Uechlis, e muito menos de um homem! Com um odre de leo comprado no mercado e uma capa com a qual te fizesses passar por uma qualquer velha, podias dirigir-te taberna sobre a qual o Pepi alugara o quarto, ter esperado que ele regressasse e atacado. Quem no Templo de Hrus controla a grande e poderosa Uechlis? Tens provas de tudo isto? perguntou Senenmut. Tenho, meu senhor. S ento que os olhos de Uechlis adquiriram uma expresso de alerta e o seu corpo se retesou. A prxima vtima, o sumo sacerdote de Hathor, foi escolhida ao acaso, para semear a confuso e aumentar a tenso. As mesas foram dispostas na sala de banquetes. Amerotke caminhou at Hani e olhou para ele. Foste tu o nosso anfitrio, meu senhor, mas quem decidiu onde se sentaria cada pessoa? Quem tratou de supervisionar essa tarefa? Hani parecia ter envelhecido anos em poucos minutos. Estava plido e os seus olhos revelavam medo. Abriu a boca para responder, mas no conseguiu pronunciar uma s palavra. Foi a Uechlis, no assim? antes de o banquete comear, com criados e msicos a entrar e a sair, seria to fcil passar junto mesa e deitar veneno em p num copo de cerveja. Quem suspeitaria? O sumo sacerdote de Hathor morre. O juiz supremo caminhou de novo para junto de Uechlis. O Sato tam bm foi enviado para a escurido. O assassnio do Prem foi 224
talvez o mais atabalhoado de todos. Nunca pudeste saber ao certo se o Sato vira alguma coisa estranha no dia da morte do amo, e ele tinha uma lngua que mal lhe cabia na boca. No dia em que morreu, o Sato andou minha procura para falar comigo. Amerotke agachou-se em frente de Uechlis. O seu destino foi rapidamente traado. O Sato nunca recusaria uma jarra de vinho. Seria como pedir a um gato sequioso que no bebesse leite. O pobre homem morre, tu sobes ao quarto dele e substituis a jarra envenenada por outra. O juiz ps-se de p. O Sato no era um homem inteligente, mas acho que percebeu que o tinham envenenado. Molhou as mos no vinho e fez aquelas marcas na parede. O que estaria a tentar dizer-nos? Bateu ao de leve nas costas da mo de Uechlis. Ser que o Sato comeou a interrogar-se sobre a figura que vira quando colocou o anel sobre a mesa na noite em que o seu amo morreu? Ter visto os teus dedos? A cor das tuas unhas muito caracterstica. O Sato estava a tentar dizer alguma coisa sobre a mo do assassino. Nunca saberemos se era sobre as unhas, a textura da pele ou o anel que fora apanhar. Suponho que tambm me culpas a mim pelo ataque contra a tua pessoa murmurou Uechlis. Sim, culpo. Seria fcil para a esposa do sumo sacerdote ir ao Santurio dos Barcos durante a noite e subir a bordo com um odre cheio de sangue conseguido nos matadouros. Verteste a gua de um dos cntaros, encheste-o com o sangue e afrouxaste as tampas e os calos que o travavam. Divino fara! Uechlis sentou-se muito direita na sua almofada e olhou directamente para Hatusu. Escutei pacientemente este chorrilho de mentiras. Onde esto as provas, para alm das marcas feitas com vinho tinto por um servo bbedo? Como sabes que o vinho era tinto? perguntou o juiz. Foi o meu... o meu esposo Hani quem mo disse gaguejou ela. No, no disse! A resposta foi categrica. Hani dardejou a esposa com os olhos. Juro perante o fara em pessoa que nunca lhe disse tal coisa! 225
Uechlis rejeitou a jura do marido com um olhar de desprezo. Pediste provas interveio Amerotke. Virou-se e fez uma vnia a Hatusu. Chegaro em duas partes, Majestade. Desci cripta no dia em que aqui cheguei. Desejava examinar as gravuras na cmara funerria. Um assassino seguiu-me, disparou as suas flechas sobre mim e desapareceu. Fez uma pausa. Mas porque haveria a Uechlis de o querer ver morto, meu senhor juiz? inquiriu o sumo sacerdote de Amon. Esperava que a minha morte tivesse o mesmo efeito que a do sumo sacerdote de Hathor: semear o caos, tornar pblico o fracasso da reunio do conselho de sumos sacerdotes. Tinha-lhes sido pedida uma opinio e a ocasio fora marcada por uma sucesso de mortes, um augrio muito pouco favorvel para o incio de um novo reinado. Continua ordenou Hatusu. Estavas na cripta, meu senhor? Sim. O ataque falhou, mas o archeiro tinha de ser um dos membros do conselho, pois apenas eles tinham conhecimento da minha inteno de visitar a cripta. Ora bem, a princpio pensei que seria impossvel saber onde estava cada um deles na ocasio do ataque, mas, por pura sorte, obtive essa informao. O sumo sacerdote de Amon estava ocupado com uma das raparigas do templo. Os de Hathor, Isis, Osris e Anbis, e tambm o Sengi, tinham sado do templo para ir cidade e o Hani estava no santurio para oferecer o sacrifcio. Quanto a ti, Uechlis, o caso muda de figura. Lembras-te daquela manh? Foste ter comigo biblioteca acompanhada de uma serva. Disseste-me que ias nadar num dos lagos sagrados. Na altura, no dei a mnima importncia informao. Mas, ao record-lo, comecei a pensar melhor. Terias ido biblioteca comunicar-me a tua inteno para que nenhuma suspeita casse sobre ti? Mandei o Chufoi procurar a tua serva. Ele tirou-a do templo e levou-a para uma casa onde se encontra a salvo de qualquer perigo. Ela lembrava-se bem daquela manh. Ias tomar banho, mas depressa mudaste de idias. Despachaste a criada e foste buscar o arco e as flechas com que tentaste matar-me na cripta. 226
Se me trouxeres essa cabra aqui vociferou Uechlis , tratarei de lhe refrescar a memria. Mudou de tom. - essa, meu senhor, a nica prova de que dispes? No, no . Amerotke virou-se para o gro-vizir, que tentava esconder a sua excitao. Meu senhor, l fora est uma mulher chamada Dalifa. Gostaria de a mandar entrar. Senenmut deu ordem que lhe franqueassem a entrada. Os guardas apressaram-se a ir busc-la. Dalifa entrou. Parecia assustada e no se atreveu a passar da entrada. Amerotke encontrara-se com ela umas horas antes e explicara-lhe exactamente o que devia fazer. Quem ela? perguntou Uechlis. A minha prova conclusiva. Olha bem para ela, Uechlis. O que vs? Uma rapariga, pouco mais que uma criana. Observa bem as suas feies. Uechlis assim fez. Deveria reconhec-la? Talvez a ela ou a algum que conheceste. Apresento-te a filha ilegtima do Neria. Impossvel! retorquiu Uechlis. Ele disse-me... Interrompeu-se abruptamente. Disse-te o qu? perguntou Amerotke. Porque haveria esse bibliotecrio, conhecido pela sua reserva, zeloso da sua privacidade, de partilhar segredos com a esposa do sumo sacerdote? s a muito amada filha de Neria, no s, Dalifa? A rapariga assentiu com a cabea. Mantida na sombra continuou Amerotke , bem longe da vista de todos. No entanto, o Neria costumava visit-la. Contava-lhe tudo: a relao contigo, Uechlis, e com o pai divino Prem. E que mais, Dalifa? O que descobriu na biblioteca respondeu a jovem. Estava to entusiasmado com a tatuagem na coxa. At ma mostrou. Amava-te de verdade. Dalifa levantou a cabea. Uechlis recostou-se na cadeira. No verdade murmurou como que para si mesma. 227
O Neria ter-me-ia dito. Ele contava-me tudo! Conhe-camonos h anos! Que tens a dizer, Uechlis? perguntou Senenmut. Foram formuladas graves acusaes contra ti. Cala-te, pedreiro! Uechlis inclinou-se para a frente com um sorriso no rosto. Descendo do melhor sangue do Egipto. No respondo a pedreiros! Ento, responders a mim interveio Hatusu com uma voz gelada. O sorriso de Uechlis cresceu. Mirou Hatusu da cabea aos ps com um ar de desdm. Se no falo com o pedreiro escarneceu ela , porque haveria de o fazer com a meretriz do pedreiro? Uechlis recostou-se e desfrutou das exclamaes de protesto. Pequena Hatusu, costumava andar contigo ao colo e limpava-te o rabo. Eras uma beldade na corte do teu pai. Como te atreves? rugiu ela. Como te atreves sequer a pensar em ascender ao trono! Queres que nos curvemos todos ante ti? Morrers! exclamou Hatusu. Ora, todos morremos, mais cedo ou mais tarde, meretriz do pedreiro! Hatusu fez um esforo por se controlar. Senenmut ainda estendeu a mo, mas recordou-se de onde estava. Uechlis ps-se de p e passou os olhos pela fileira de sacerdotes. Olhem bem para vs prprios, senhores! bramiu. Sou mais homem que vocs todos, bando de velhas assustadas! Vocs apoiam tanto o pedreiro e a sua meretriz quanto eu! - O fara descende de sangue divino lembrou Amerotke. Por favor, poupa-me aos discursos, juiz! Uechlis humedeceu os lbios. No foi porque... No, no. Abanou a cabea como se ensaiasse as palavras. No foi porque uma mulher se sentaria no trono do fara. Foi porque se trata de Hatusu. A pequena Hatusu que brincava com as suas coisinhas e corria pelo palcio. Casa com o meio-irmo e permanece na sombra com a sua carinha de boneca. Mas, ento, aparece o pedreiro e tudo mudou. 228
Ela fara disse Amerotke. E o seu pequeno meio-irmo? Ento, confessas interveio Senenmut, desejoso de acabar com a discusso. Confesso e regozijo-me, pedreiro. Sempre pensei que esta cambada de ancis aqui reunidas fosse apreciar tudo isto. Mas eras uma fervorosa apoiante da divina Hatusu argumentou o juiz supremo. Oh! Amerotke! Uechlis sorriu, condescendente. esse o teu problema, juiz. Como no usas mscara, acreditas que todos os restantes so como tu. Sim, amei o Neria. Bom, minha maneira. Pensei que esta caterva de sacerdotes no descobriria nada de novo at o Neria comear a falar sobre umas pinturas na cripta e o que descobrira na biblioteca. O grande palerma tinha um escorpio tatuado na coxa. Via-o como a sua grande oportunidade de captar a ateno do pedreiro e da sua meretriz. Senenmut preparava-se para protestar, mas Hatusu ergueu a mo. Deixa-a falar. Em breve no falar mais! Isso no ameaa zombou Uechlis. Prefiro ir para o Horizonte Longnquo do que humilhar-me perante ti e o teu pedreiro! a forma como empreenders a viagem que talvez lamentes respondeu-lhe Hatusu. Uechlis encolheu os ombros. Que importa? O vinho est derramado e o copo partido. Estava furiosa com o Neria. Queria destru-lo, destru-lo completamente! Aconteceu to depressa. Acho que ele nem me viu o rosto. O Pepi no era melhor. Uma verdadeira cobra. Viu-me com o Neria no extremo dos jardins. Nunca me confrontou, mas j sabem como ele era com os seus olhos matreiros e sorriso escarninho. Deixei trs bolsas de prata no seu quarto. E ele partiu, como tu disseste, Amerotke, para freqentar tudo o que era bordel. Sabia que ele havia de voltar, pois descobrira uma nova fonte de riqueza. Assim, pus uma capa velha. Foi fcil comprar o leo. Deixei um pouco dentro do quarto dele, mais um pouco num recesso escuro. Ele estava to brio, to entretido com aquela prostituta. 229
E o pai divino Prem? indagou Amerotke. Foi como tu disseste. O Neria contara-lhe tudo. O velho erudito morava naquela torre com o Sato sempre em redor dele como uma mosca em cima de estrume de boi. Portanto, aproveitei o momento. Coloquei a escada de corda no topo da torre. Planeava sair da torre por ali e evitar que algum me visse nas imediaes. O Sato chegou mais cedo que o previsto. No foi muito perigoso. A suma sacerdotisa voltou a encolher os ombros. Que importa? Fiz tudo como tu descreveste. Mas fiquei sempre na dvida se o Sato no teria reparado em alguma coisa. Morreu, tal como o sumo sacerdote de Hathor. Mataste uma e outra vez acusou Amerotke. Atacaste-me na cripta, colocaste as nossas vidas em perigo quando atravessmos o Nilo. Toda a gente naquela barca teria uma morte horrvel, e para qu? Porque no podias aceitar a divina Hatusu como fara? Vai s nossas bibliotecas replicou Uechlis. Encontrars relatos de rebelies onde morreram milhares. Se fosse homem, se fosse soldado, ter-me-ia revoltado. Apontou para Hatusu. Quantos matou ela para se sentar onde est? J ouvi o suficiente! declarou Hatusu. Olhou de relance para Hani, sentado de cabea pendida, os ombros a tremer. A reunio do conselho est terminada. Os deuses proclamaram a verdade e eu sou a sua porta-voz! Senenmut levantou-se e dirigiu-se para a sada. Voltou com um grupo de guardas reais. Levem-na! ordenou o fara. Permanecer detida nas masmorras sob o Templo de Maet. Antes do anoitecer, ser levada para as Terras Vermelhas e enterrada viva. Mais tarde... Os olhos de Hatusu brilhavam de raiva enquanto mirava Uechlis. Mais tarde, o seu corpo ser exumado e exposto nas muralhas de Tebas. Ergueu-se, derrubando o escabelo com um pontap. Toda a gente, excepto Uechlis, se prostrou. Quando Amerotke levantou os olhos, Hatusu j abandonara a sala. Hani desfalecera no cho e chorava como uma criana. As mos de Uechlis j haviam sido atadas pelos guardas que a conduziam 230
aos empurres por uma porta lateral. O juiz levantou-se. Ignorou os sacerdotes e foi ter com Dalifa para lhe agradecer. O que foi tudo isto? perguntou a jovem. S fiz o que me pediste. Era necessrio. Amerotke pegou-lhe na mo e apertoulha. Por vezes, na busca da verdade, devemos apelar ao engano. E mais ainda neste caso. Tinha muito poucas provas. Muitas suspeitas, mas nenhuma prova conclusiva. Se estivssemos na Sala das Duas Verdades, a Uechlis talvez no fosse declarada culpada. Teria de arquivar o caso por falta de provas. No entanto, sabia que o autor destes crimes nutria uma profunda repugnncia pelo facto de a Hatusu usar a coroa de fara. Tudo indicava que fosse a Uechlis. Se conseguisse provoc-la com a presena do fara, talvez ela mordesse o isco. Esboou um sorriso. O dio, tal como o amor, acaba sempre por manifestar-se. A Uechlis apostou e perdeu. Ao perder, deu vazo sua frustrao e acabou desmascarando-se a si mesma. Assim, a verdade veio ao de cima e foi feita justia.
CAPTULO 16
Dalifa tentou afastar a mo, mas Amerotke reteve-lha com firmeza. Os olhos dela arregalaram-se de medo. O que foi, meu senhor? Quando me visitou, disse-me o que haveria de dizer. Foi o que fiz. Agradeo-lhe. Tambm agradeo ao seu servo: o Antef teve a morte que merecia. Amerotke largou-lhe a mo. Escutaste o que acabei de dizer? perguntou ele cal mamente. Que necessrio que a verdade se saiba? Agarrando-a de novo pela mo, conduziu Dalifa at uma pequena sala lateral e sentou-a num banco. Puxou de um tamborete e sentou-se frente dela. A jovem tremia e mordia o lbio inferior. No conseguia olhar o juiz nos olhos, mantendo a vista na parede mais afastada como se estivesse fascinada por uma pintura que retratava almas que viajavam pelo Mundo Inferior. Tive uma visita comeou Amerotke. O general Omendap. Veio agradecer-me por uma coisa, embora no fosse necessrio faz-lo. Visitara tambm a necrpole com alguns dos seus oficiais. O corpo do Antef fora levado para l. O juiz sorriu um pouco. Diga-se o que se disser sobre o general, ningum pode negar que um firme partidrio do cumprimento de regras e regulamentos. O Antef era membro de um regimento e fora morto, embora em legtima defesa. O mnimo que o Omendap podia fazer era decretar que a Casa da Prata pagasse o embalsamamento e o funeral do Antef. O comandante do regimento de Anbis tambm foi com ele. 232
O corpo do Antef estava j sobre a mesa e os embalsamadores faziam o seu trabalho. Fora contratado um sacerdote para cantar um hino. O comandante do regimento fazia as suas prprias obsquias quando suspendeu bruscamente a cerimnia. O que quer dizer? Os bonitos olhos de Dalifa pestanejaram. - O comandante fez uma declarao surpreendente: o corpo deitado sobre a mesa no era o do Antef. Mas tinha de ser. Talvez tenham levado o cadver errado? tartamudeou ela. Oh, no. O meu servo foi chamado para identificar o homem que matara como o mesmo homem que aparecera diante de mim no tribunal. O comandante explicou que, anos antes, o Antef estivera num barco que sofrera o ataque de um hipoptamo. Antef foi um dos poucos sobreviventes. Da fuga para salvar a vida resultou uma terrvel cicatriz aqui. Amerotke traou uma linha no cimo da sua coxa. Se a ferida foi provocada por um crocodilo ou outro animal, o comandante no se recordava, mas lembrava-se da cicatriz, pois visitara o Antef no hospital. Agora, diz-me uma coisa, Dalifa. Fez uma pausa. Bom, j deves saber o que vou perguntar-te. Ela voltara-se, plida e a tremer. Sim, sim, o meu marido tinha uma cicatriz assim. Mas o cadver no tinha. O comandante ficou perplexo. O morto parecia-se de facto muito com o Antef que ele conhecia: tinha a mesma altura, a mesma constituio, feies, mas o que acontecera cicatriz? Assinalou ainda outros detalhes. O Antef recebera uma facada no brao e, mais uma vez, no havia qualquer vestgio da cicatriz. Dalifa baixou a cabea. Imaginas a surpresa do meu servo Chufoi? Afinal de contas, um tal Vagabundo do Rio dissera-lhe que o Antef desertara do exrcito e viajara ao longo do Nilo at chegar a Mnfis, onde casara, mas, devido sua desonestidade, fora expulso da cidade. Ora bem, o Chufoi era o nico que conhecia as circunstncias da desero do Antef. Na confuso dos ltimos dias, quem se importava com um desertor, um cobarde que recebera o castigo merecido? At eu, que no sou um soldado, 233
deveria ter percebido que havia alguma coisa que no encaixava. O comandante do Regimento de Anbis percebeu: explicou que o Antef era membro de um corpo de veteranos, os nakhtu-aa. O Antef tinha os seus defeitos, como toda a gente, mas a cobardia e o roubo no figuravam entre eles. Amerotke enrugou a testa. Podes ajudar-me a resolver este mistrio? Dalifa limitou-se a olh-lo. O general Omendap tambm ficou intrigado, pois havia sido informado de que o Antef tinha alguma ligao com a Sala do Mundo Inferior e o recente desaparecimento de dois jovens nobres. O labirinto foi destrudo e os seus poos explorados. Uma experincia sinistra. Foram descobertos cadveres de homens, mulheres, e at de algumas crianas, j para no falar de animais. Alguns datam da poca dos Hicsos, outros pertencem a vtimas mais recentes. Conheces a Sala do Mun do Inferior? Dalifa acenou com a cabea. Estavas casada com o Antef quando o malandro do seu irmo aceitou o desafio de atravess-lo. De acordo com a verso aceite, o irmo do Antef desapareceu, como aconteceu a tantos outros que penetraram no labirinto. No creio que tenha sido isso que aconteceu e nem tu. O que eu suspeito que o Antef deixou o irmo escapar. Como se chamava ele? Kiembu. Bom, o Kiembu tinha de desaparecer. O Antef e tu ficaram satisfeitos por v-lo pelas costas. O Kiembu manteve-se escondido at recente guerra contra os Mitnios, quando toda a Tebas se viu imersa no caos. O Antef e o resto do exrcito marcharam para norte e o Kiembu reapareceu. Tu e ele reencontraram-se. Chegaram a acordo. O Kiembu juntou-se aos seguidores do exrcito: as hordas de ladres, vagabundos, assassinos, prostitutas e saqueadores que se arrastam atrs de todos os exrcitos. Mudou a sua aparncia. Ningum o reconheceu, por isso ningum fez perguntas... Mas ele era um cobarde! exclamou Dalifa. Sim, era. O Kiembu no queria lutar, mas no teve grande escolha, pois no? Os Mitnios atacaram o acampamento 234
do exrcito do fara. O Kiembu e a restante horda de vagabundos viram-se envolvidos na refrega. E claro que quando a divina Hatusu logrou a vitria, eles foram os primeiros a ir recolher o saque. Deve ter sido isso o que aconteceu opinou a jovem. O Kiembu deve ter encontrado o corpo do irmo, roubou-lhe as insgnias pessoais, fez a barba, tomou banho e fez-se passar pelo Antef. Eram idnticos em quase todos os aspectos. Talvez at tenha desfigurado ainda mais o rosto do irmo. Depois, viajou por todo o Nilo, antes de regressar a Tebas com a sua histria de amnsia. Gostava de acreditar nisso respondeu Amerotke. Parece o mais lgico e faz sentido. O impostor regressa a Tebas. Manteve-se bem longe do regimento do Antef. Ainda assim, se algum reparasse em alguma coisa estranha, o Kiembu poderia atribuir as culpas s campanhas, s suas feridas ou longa ausncia. Mas tu eras a esposa do Antef. A ti no te podia enganar, ou podia? O outro aspecto intrigante a tua relao com o jovem escriba do templo. A corte foi breve, casaram... Mas isso foi apenas quando pensei que o Antef estava morto. Amerotke permaneceu calado por uns momentos, escutando os sons do exterior. No acredito em ti replicou. Ests a mentir, Dalifa. O que aconteceu foi o seguinte: o Antef partiu para a guerra. O seu irmo gmeo no tardou a reaparecer para encontrar a jovem e bela Dalifa sozinha e muito triste. Estava bem feliz. No, no estavas! O Antef era um soldado muito rude, rpido com os punhos. O Kiembu no era melhor. Uma coisa que me surpreende que o Kiembu se aproximasse do regimento. Suspeito que entre os dois tenham planeado a morte do Antef. Prometeste ao Kiembu uma recompensa. Talvez te desejasse a ti a tua riqueza? Ento, seguiu o exrcito e deu por si no meio de uma batalha. Eu estive l, Dalifa. Os combates estenderam-se por grandes extenses em redor do osis. Ter o Kiembu encontrado o irmo sozinho e assassinou-o? 235
O juiz fez uma pausa. Ou talvez o Kiembu tenha voltado a reconciliar-se com o irmo. O Antef j o tinha protegido uma vez, porque no agora tambm? Consegues imaginar, Dalifa? O Kiembu a chorar, escondido atrs do irmo gmeo. S Maet sabe o que aconteceu na realidade. No foi coincidncia o Kiembu encontrar o irmo, mas antes o resultado do seu sinistro plano. No meio de toda aquela violncia, durante a matana e derramamento de sangue, o Kiembu ou matou o irmo ou acabou de o matar. Arrancou as insgnias ao Antef, desfiguroulhe o rosto, deixando no entanto provas suficientes de que fora morto em combate. Depois disso desapareceu. O Kiembu era um fanfarro e um charlato. Durante algum tempo, desempenhou o papel de soldado valente. Consegue seduzir a filha de um comerciante e, sem pensar no dia de amanh, casa com ela para desfrutar dos despojos das suas artimanhas. E porque no voltou de imediato a Tebas? T-lo-ia feito, mais cedo ou mais tarde, para reclamar a sua recompensa, fosse esta os teus encantos ou a tua prata. Porm, um intrujo um intrujo. O leopardo nunca muda de manchas. O Kiembu era um ladro da ponta dos ps raiz do cabelo. Assim que a sua desonestidade se tornou evidente, foi expulso de Mnfis, por isso, voltou a elaborar novo plano. No podia continuar para sempre com a farsa do valente e ferido soldado que perdera a memria na guerra. Assim, estava na altura de cobrar a sua recompensa ou dedicar-se chantagem. Regressa ento a Tebas, mas a situao mudara. A bela Dalifa est casada e, mais importante ainda, convertera-se numa mulher rica. O Kiembu queria-te a ti e, seguramente, cobiava a tua fortuna. A nica maneira de consegui-las era arriscando. Continuou a afirmar que era o Antef, mas manteve-se bem afastado do seu antigo regimento, no fosse algum notar alguma coisa diferente. Eu podia afirmar que ele me enganou - avanou Dalifa abruptamente. Mas no vais faz-lo, pois no? Ningum acreditaria que te deixasses enganar to facilmente. Suponho que o Kiembu te ter abordado primeiro. Podia ameaar o teu novo marido, 236
pedir que o seu silncio fosse comprado, mas o Paneb comearia a fazer perguntas, no ? A sua nova esposa, esbanjando dinheiro? O Kiembu, o jogador, decidiu apostar forte. Argumentos em seu favor era o que no faltava: um soldado veterano que se distinguira pela sua bravura, ferido enquanto lutava pelo seu fara, regressa a casa e encontra a sua formosa e jovem esposa nos braos de outro. Mas, ento, no acreditou nele? No, no acreditei. E nem sei porqu. Talvez tenha sido a forma como se ajoelharam diante de mim no tribunal. A prova deveu-se mais a mero acaso, de que lgica ou deduo. Amerotke sorriu. Bom, de certa forma, o Kiembu foi o responsvel pela sua prpria queda. Devia esperar uma vitria fcil. Quando viu que eu no decidi logo em seu favor, fez jus sua fama de rufia e atacou-me. Ouvira as ameaas do Nehemu e decidiu vingar-se, at que o Chufoi interveio. Que vai fazer? sussurrou Dalifa. Eu podia ser acusada de homicdio. Conta-me a tua verso da histria insistiu Amerotke. Diz-me a verdade. A minha me morreu quando eu era criana. Amava o meu pai, era um homem muito trabalhador. Dalifa, mais tranqila, semicerrou os olhos e encostou-se parede. O meu pai estragava-me com mimos. Um dia estava com outras jovens raparigas no mercado frente ao Templo de Amon-R. Conheci o Antef, um jovem soldado fanfarro. J sabe como so os jovens. Apaixonei-me perdidamente. O meu pai objectou, mas eu insisti que casssemos. E sabias da existncia do irmo gmeo do Antef? Dalifa soltou uma risada amarga. Quer que lhe conte como conheci o Kiembu? Durante os primeiros dias do meu casamento, notei que o Antef estava diferente, em especial em questes de cama. As lgrimas assomaram-lhe aos olhos. Descobri ento o seu cruel truque. O Antef tinha um irmo gmeo. Eram to parecidos que s o tempo nos ensinava a distingui-los. Para eles, a brincadeira era muito divertida. Tambm j haviam pregado a mesma 237
partida a outras mulheres. Dalifa limpou as lgrimas. Durante semanas andei doente, sentia uma profunda repulsa. No me atrevi a contar nada ao meu pai. Penso que foi por isso que o meu ventre secou. Nunca concebi um filho. Recusaste-te a continuar com o truque? perguntou Amerotke. Como podia eu faz-lo? Levei algum tempo a distinguir um do outro. Fui o alvo da chacota deles. Porm, medida que o tempo passava, comecei a notar as diferenas. O Antef era um fanfarro. Bebia bastante, batia-me algumas vezes, mas tinha um mnimo de sentido da honra. O Kiembu... Pronunciou o nome com um profundo asco. O Kiembu era pior que excremento de co, era um jogador, perverso e cruel. O prprio Antef comeou a ficar preocupado. O Kiembu no parava de jogar. Certa noite, aceitou uma aposta e perdeu. Teve de pagar o preo: atravessar a Sala do Mundo Inferior. Quando veio a nossa casa, deixou cair a mscara e revelou-se como o cobarde que era. O Antef disse que se oferecia como seu fiador, pois, no final de contas, era um nakhtu-aa. O Antef deu-lhe trs opes: arriscar a sua sorte no labirinto, ser morto rpida e discretamente pelo prprio Antef, ou fugir sob a condio de nunca mais se aproximar de ns ou da cidade. E o Kiembu aceitou a ltima opo? Sim, embora tenha ficado furioso com o Antef. Acusou o irmo de lhe montar uma armadilha, de o querer bem longe de Tebas. O Antef no fez caso das palavras dele. Levou o irmo para as Terras Vermelhas, deu-lhe algum dinheiro e comida e regressou a casa dizendo que os nossos problemas tinham acabado. Na realidade, por essa altura o nosso casamento j estava acabado, mas que podia eu fazer? Por vezes, o Antef ausentava-se em servio. Foi assim que conheci o Paneb. A jovem estendeu a mo. Mas o nosso relacionamento foi sempre respeitoso. Havia momentos em que ficava com a impresso de que o Kiembu regressara a Tebas disfarado e andava a espiar-nos. At que, o ano passado, os Mitnios lanaram o seu ataque de surpresa ao longo do Sinai e o Antef juntou-se ao seu regimento. Beijei-o chorosa, desejei-lhe 238
sorte e rezei em silncio para que no regressasse nunca mais. Mas o Kiembu regressou? O Antef ainda mal tinha partido quando o Kiembu fez a sua apario. Estava de muito mau humor. Acusou-me a mim e ao irmo de o querermos fora da nossa vida, tentou violar-me. Eu tinha de fazer alguma coisa. O Kiembu reclamava vingana. Vivia com vagabundos e malfeitores fora da cidade. Disse que se juntaria aos seguidores do exrcito e mataria o irmo. Fiquei aterrada. Prometi-lhe tudo, s para me ver livre dele. Para ser sincera, rezei para que ambos morressem. Endireitou a tnica. Comearam a chegar notcias da batalha a Tebas. Nos meses que se seguiram partida do Antef, e apesar da morte do meu pai, conheci a verdadeira felicidade. Agora seria para sempre: o Antef fora morto. No me importei minimamente se tinha sido coisa do Kiembu ou dos Mitnios. - Mas sabias que o Kiembu podia estar vivo? Nem me importava com isso. O Antef era um soldado. O Kiembu no passava de uma ratazana, correndo pelos cantos. Eu era agora uma viva rica, muito apaixonada pelo Paneb e ele por mim. Expus o meu caso aos sacerdotes do Templo de Osris. Eles decretaram que eu estava viva e que tinha o legtimo direito de me casar com o Paneb. Assim fiz. casado, meu senhor Amerotke? Sim, e sou muito feliz. Tambm eu. Pela primeira vez na minha vida, estava livre do Antef e o seu horrvel irmo desaparecera. No entanto suspirou , certo dia, encontrava-me eu no mercado perto da margem do Nilo, o Kiembu emergiu das sombras. Pensei que estava a ver um fantasma. Pestanejou. Teria o Antef regressado do Horizonte Longnquo para me assombrar? O Kiembu estava vestido da mesma forma que o irmo e caminhava como ele. Soltou uma risada. claro que tivera vrios meses para praticar, no ? Queria viver comigo. Respondi-lhe que preferia morrer. Depois, descobriu que eu recebera a herana do meu pai. Tentei satisfaz-lo com algum dinheiro, mas ele queria-o todo. Ameaou denunciar-me. 239
Mas no podia faz-lo, pois no? No. Podia apresentar-me como uma assassina, mas ele tambm seria culpado. Encolheu os seus bonitos ombros. Que podia eu fazer? O Paneb acreditaria em mim? Se contasse a verdade no tribunal, podia ser acusada de homicdio. S me restava rezar e esperar que tudo corresse bem. O que queria o Kiembu na realidade? perguntou o juiz. Toda a tua riqueza? Penso que sim. Eu ainda piorei mais as coisas. Quando ele me abordou pela primeira vez, perdi a calma. Disse-lhe que nunca passara de um cobarde, que sempre temera a sombra do irmo. E ainda lhe disse que na cama percebia sempre a diferena. Amerotke ergueu uma mo. O Kiembu queria-te a ti, tua riqueza e vingar-se? Dalifa anuiu com a cabea. Se o meu senhor Amerotke tivesse decretado que eu era esposa do Paneb, o Kiembu, fazendo-se passar pelo Antef, teria pedido recurso. E se eu tivesse ditado que eras esposa do falso Antef? Ento, ter-me-ia condenado morte respondeu ela. O Kiembu desfrutaria de mim, bater-me-ia e esbanjaria todo o meu dinheiro. Um dia, acabaria por sofrer um acidente, talvez uma queda ou um assalto por parte de uns vagabundos. Esfregou o rosto nas mos. Rezei, rezei, e finalmente aconteceu. O Kiembu foi morto pelo teu servo em legtima defesa. Pensei que era o fim do assunto. Fixou Amerotke nos olhos. O que vai acontecer comigo agora? Amerotke retribui-lhe o olhar. Dalifa era formosa, encantadora, mas seria uma actriz? Teriam ela e o Kiembu planeado a morte do Antef e depois o irmo regressara para reclamar a sua recompensa? Mas que prova tinha ele disso? E, mesmo que ela fosse culpada, no teriam aqueles dois homens abusado dela e aviltado a sua pessoa? O juiz olhou em redor da sala. Faz uma oferenda respondeu ele deusa da Verdade. Levantou-se. Vou ser franco contigo. Talvez tenhas sido cmplice de um homicdio. Talvez apenas tenhas parte da culpa ou sejas totalmente inocente. Tocou no peitoral 240
que trazia em redor do pescoo. S a deusa o saber. Penso que sofreste e os prprios deuses pem um limite ao sofrimento humano. No que me diz respeito, o Antef e o Kiem-bu esto mortos. Devero responder Verdade pelos seus pecados. Sorriu. s esposa do Paneb. Que tenhas uma vida longa, prspera e feliz. Caminhou at porta. Meu senhor Amerotke? Virou-se. Fez um acto de verdadeira justia. O juiz encolheu os ombros e saiu. Na noite do dia seguinte, Amerotke, vestido com o trajo e as insgnias do seu cargo, encontrava-se na cela dos condenados sob o Templo de Maet. No lado oposto da mesa, Uechlis rodava um copo entre as mos. Fazia girar o seu contedo, sorrindo para si mesma. A luz das tochas fixadas parede distorcia as sombras dos guardas e carrascos, com os rostos cobertos por mscaras de chacal, dando cela o aspecto de uma antecmara do Mundo Inferior. Suponho que devo agradecer-te por isto. Uechlis levantou a cabea. Foi muito bondoso da tua parte, Amerot ke. mais do que mereo. Quanto ao resto, no lamento nada. Os seus olhos brilhavam de dio. O Neria traiu-me. Foi ele quem provocou tudo isto. Disposto a vender-se meretriz real. Eu amava-o, sabias? Talvez fosse isso a gota que fez transbordar o copo. J foi mau o suficiente ver toda a cidade curvar-se diante da Hatusu, mas o Neria, o erudito, o homem que eu amava! Mas no foi s isso, pois no? Uechlis abanou a cabea. Quando a Hatusu ocupou o trono, o Hani foi um dos poucos sumos sacerdotes que a apoiaram. Eu no tive outra escolha seno segui-lo. Em segredo, no entanto, correspondia-me com aqueles que se lhe opunham, liderados pelo antigo gro-vizir Rahimere. Pousou o copo. Mas a prostituta real saiu vitoriosa, por isso juntei-me aos hinos de louvor. De pois, ela foi estpida o suficiente para pedir a opinio dos sacerdotes. 241
essa a grande fraqueza da Hatusu, no ? Quer ser amada e adorada por toda a gente. Pensei que a reunio do conselho no chegaria a qualquer concluso. Os meses passariam e eu faria o meu melhor para atiar as chamas dos rumores: a divina Hatusu poderia ser isto ou aquilo, mas no tinha o apoio dos sacerdotes de Tebas. O Neria estragou tudo! Parecia uma criana toda contente com o seu novo brinquedo. Bati palmas e fiz de conta que estava de acordo. Oh, ele mostrava-se to orgulhoso. O Hani suspeitou de alguma coisa? perguntou o juiz. H anos que deixmos de ser marido e mulher respondeu Uechlis. Ele tinha as suas... como direi?, pequenas compensaes. A minha antiga amizade com o Neria prosperou. Bom... Fez uma careta. O passado acaba sempre por nos alcanar, no , Amerotke? Os dias da infncia estendem-se ao longo dos anos e arrastam-nos de volta. Sorriu. Pensei que estava a salvo, especialmente quando o Neria morreu. Sabes do relgio de gua? Ah, sim. Amerotke assentiu com a cabea. Manipulaste-o, retirando alguma da gua, para que parecesse que havias estado com o Hani por volta da hora nona, quando o Neria morreu. Tinhas tanta certeza sobre onde te encontravas numa determinada hora de um determinado dia. Poucas pessoas tm tanta certeza quando acontece uma coisa assim Pois . Uechlis olhou em redor da cela. Lamento o ataque contra ti, mas era necessrio. Esqueamos tudo isso. Lembras-te, Amerotke, quando eras criana, no palcio? Eu costumava ir buscar-te para passearmos pelo jardim. Mostrava-te os diferentes pssaros e plantas e depois tu ficavas a ver-me nadar. Olhou para ele, a cabea ligeiramente inclinada para trs, os olhos semicerrados. s o filho que sempre quis. Suspirou e pegou no copo. Agora, tudo se reduz a isto. Um copo de vinho envenenado. Mas sempre melhor que ser enterrada nas areias escaldantes, sentir a vida esgotar-se lentamente, ter o cadver debicado pelos abutres enquanto a multido te observa. Amerotke pestanejou para conter as lgrimas. 242
O Hani morreu. Eu sei, eu sei. Olhou o contedo do copo. Foi tomar banho no Lago da Purificao. Os rumores dizem que teve um ataque, que o corao no agentou. Eu sei que no foi assim. O Hani mergulhou nas guas sagradas para se purificar por dentro e por fora. Afogou-se. Os sacerdotes cuidaro do seu corpo. Inclinou-se sobre a mesa. E tu? Encarre-gar-te-s de que rezem as oraes por mim, Amerotke? Asse-guras-te de que o meu corpo embalsamado e levado para a Cidade dos Mortos? Amerotke concordou. O que tiveste de fazer para abrandar o corao da meretriz? A divina Hatusu perguntou-me o que desejava como recompensa. Ah, estou a ver. Uechlis ergueu o copo num brinde. vida, morte! Bebe depressa! exortou Amerotke. Claro. Sorriu. Inclinando a cabea para trs, Uechlis bebeu o vinho envenenado de um s trago. Levantou-se, encaminhou-se at simples cama de juncos no extremo da cela e deitou-se, cruzando os braos sobre o peito. Amerotke fechou os olhos. Ouviu um gemido, o corpo dela estremeceu, e, quando abriu os olhos, ela jazia imvel, a cabea cada para um lado, a boca e os olhos abertos. Amerotke entoou a orao, mas estava distrado. Era novamente um rapaz e passeava de mos dadas pelos jardins do fara com uma mulher alta e elegante.
NOTA DO AUTOR
Este romance reflecte o cenrio poltico de 1479-78 a. C, depois de Hatusu assumir o poder. Tutms II morreu em circunstncias misteriosas e sua esposa apenas emergiu como governante aps uma cruel luta pelo poder. Nela contou com a ajuda do astuto Senenmut, que viera do nada para partilhar o poder com ela. O seu tmulo ainda existe, sendo catalogado com o nmero 353, e contm at um desenho do rosto do conselheiro favorito de Hatusu. No restam dvidas de que Hatusu e Senenmut foram amantes. De facto, dispomos mesmo de antigas gravuras que descrevem, de forma bastante explcita, a sua ntima relao pessoal. Hatusu foi uma governante poderosa. freqentemente representada nas pinturas murais como uma guerreira e sabe-se, pelas inscries, que conduzia as suas tropas nas batalhas. A histria do Antigo Egipto trouxe luz algumas governantes resolutas e astutas, entra as quais se contam Nefertiti e Clepatra. Hatusu pode ser considerada a primeira de todas elas. O seu reinado foi longo e glorioso, mas, aps a sua morte, o seu sucessor, com a conivncia dos sacerdotes, mandou apagar o seu nome e martelar o seu selo real de muitos dos monumentos religiosos do Egipto. O poder da casta sacerdotal, em especial em Tebas, era bastante grande. Hatusu teve de enfrentar uma renhida oposio, mas no final conseguiu impor a sua vontade. Dcadas mais tarde, um dos seus sucessores, Akhenaton, intentou uma revoluo religiosa. Quando viu que no conseguiria conquistar o apoio dos sacerdotes, construiu 245
uma nova cidade e transferiu toda a sua corte e a administrao do reino para l. Os sacerdotes de Tebas nunca lhe perdoaram. Tiveram um papel decisivo na queda do fara e na erradicao de qualquer vestgio da sua revoluo religiosa. Na grande maioria dos assuntos, tentei manter-me fiel a esta emocionante, brilhante e intrigante civilizao. O fascnio que o Antigo Egipto exerce sobre todos ns compreensvel: extico e misterioso. Esta civilizao existiu h mais de trs mil e quinhentos anos, porm, h alturas, quando lemos as suas cartas e poemas, em que sentimos uma ntima relao com ela; como se conseguissem comunicar connosco atravs dos sculos. PAUL DOHERTY