O Filme Clube Da Luta
O Filme Clube Da Luta
O Filme Clube Da Luta
Miriam Chnaiderman*
Resumo: Duas abordagens possveis de anlise do filme Clube da Luta so colocadas lado a lado. Na
primeira, de Denise Hausen, a questo da crtica social est em primeiro plano. Na outra, explicitada em
ensaio meu j publicado, a questo do masculino e do feminino norteia a abordagem do filme.
Palavras-chave: Violncia, castrao, psicanlise, consumo, corpo, sexualidade, feminino, masculino,
linguagem.
The movie Fight Club: Psychoanalytic possible approaches
Abstract: Two possible approaches to analyse the movie Fight Club are placed here side by side. In one
of them, by Denise Hausen, the issue of social criticism is in the foreground. In the other one, already
explained in a essay I have published, the issue of masculine and feminine guides the approach of the
film.
Keywords: Violence, Castration, Psychoanalysis, Consumption, Body, Sexuality, Feminine, Masculine,
Language.
Introduzindo a questo
Em 2005 publiquei na Revista da Associao Psicanaltica de Porto Alegre o texto O filme Clube da luta:
[1]
produo ensandecida de masculinidades . O texto era parte de um painel que acontecia dentro de um
congresso de psicanalistas que tinha como tema Masculinidades. A partir da leitura do livro recm[2]
lanado Cinema e Psicanlise o conceito de Castrao em transversal de Denise Costa Hausen e da
anlise que faz do mesmo filme, resolvi voltar ao meu texto para indagar de que forma a psicanlise pode
operar na anlise flmica conduzindo por caminhos to distintos a concluses to diversas. Diversas e no
necessariamente divergentes. Mas, tomar as duas anlises, do mesmo filme, pode nos mostrar formas
distintas de utilizar o instrumental psicanaltico.
Sobre o livro Cinema e Psicanlise o conceito de castrao em transversal, seus pressupostos
na abordagem do filme O Clube da Luta
Denise Hausen escolhe trabalhar trs filmes: O clamor do sexo, de Elia Kazan, de 1961, Imprio dos
sentidos, de Nagisa Oshima, de 1976, e Clube da luta, de David Fincher, de 1999. A autora justifica a
escolha desses trs filmes: tiveram fora de ruptura no trato da questo da sexualidade, foram
propulsores dessas mesmas mudanas e tambm puderam se realizar, pela sensibilidade de seus
diretores, no sentido da antecipao, pela imagem, de algo que estava posto no imaginrio social. Para
pensar a sexualidade atravs desses nossos dois sculos, Denise se detm no conceito de castrao,
central na construo freudiana. Todo percurso de Freud percorrido, a autora passeando com
desenvoltura pelos textos fundadores Trs ensaios sobre a sexualide (1905) e As teorias sexuais das
crianas (1908). No meu propsito aqui discutir a centralidade do conceito de castrao na psicanlise
tanto freudiana quanto ps-freudiana, nem abordar as vrias possibilidades de leitura desse conceito.
Alis, Renata Cromberg, no Prefcio ao livro faz isso brilhantemente.
Meu foco aqui refletir sobre de que forma o cinema trabalhado quando o foco um conceito
psicanaltico. visando estudar fatos da cultura que Denise vai se deter no cinema. Afirma: O cinema,
tomado como um produto e um produtor do imaginrio coletivo, se oferece como uma alternativa de
estudo dos fatos culturais, viabilizando, portanto, ser usado como objeto de conhecimento. E explicita
sua meta: Atravs de sua forma, como do seu contedo, permitiu revelar e informar sobre o conceito de
castrao.
Aqui Denise deixa claro que vai aos filmes tendo um foco ou uma questo: quer ver de que forma a
sexualidade de cada contexto se faz presente nos filmes sendo a castrao o conceito freudiano que a
noteia em sua abordagem. No ignora a existncia de outras abordagens, sendo que inclusive as
enumera, indagando-se sobre o conceito de linguagem.
Denise assume que escolhe o cinema como pano de fundo habilitado a descortinar desdobramentos com
relao sexualidade e, portanto castrao. Toma o cinema como ferramenta de pesquisa outorgando
a ela o lugar de poder expressar mudanas ocorridas nos modos de viver a vida.
Sobre meu trabalho com o cinema e o que me norteou na anlise de Clube da Luta
Nunca tenho uma questo em mente quando assisto a um filme. Tenho um prazer enorme de ir sendo
conduzida, sem mais. Um delicioso mergulho. Em geral so os filmes que me colocam as questes,
conceituais ou no. Discuto muito, em vrios textos meus, o perigo de utilizar um filme para ilustrar os
conceitos psicanalticos. No o que Denise Hausen faz, pois seu objetivo utilizar os filmes para refletir
sobre fatos da cultura, sobre a sexualidade em diferentes momentos da nossa histria . Seu referencial
psicanaltico, portanto, busca ver de que maneira os filmes explicitam conceitos tais como o complexo de
castrao para poder pensar a sexualidade no mundo.
Em relao ao Clube da luta, encontrei-me em situao prxima quela que Denise Hausen explicitou:
embora seja eu que tenha escolhido trabalhar esse filme, a demanda que me foi feita era de uma fala
dentro de um evento que queria refletir sobre a questo da masculinidade. Pediam-me tambm que
falasse algo ligado ao cinema, sugeriam que eu escolhesse um filme. Passei alguns dias pensando e logo
me veio mente o Clube da luta. Eu no tinha muito claro por qu, embora, de imediato, esse fosse um
filme de homens. Um filme masculino?
Sempre me coloquei se existiria, por exemplo, uma escrita feminina. Ou se existiria uma diferena no
cinema feito por mulheres. Foi lendo Clarisse Lispector que pude aceitar que algo do corpo determina
sobre nossa escrita. No cinema tambm. Mas, no sei se o cinema que sentimos como masculino
sempre feito por homens. E h lindos filmes femininos feitos por homens. A feminilidade ou masculinidade
no esto ligados ao anatmico.
Foi mergulhando no filme Clube da Luta e indo s questes psicanalticas que ele me suscitou que tentei
me debruar sobre o masculino (e o feminino, claro). Sempre que analiso um filme fico com a sensao
que as questes psicanalticas brotam dele e no de mim ou de um questionamento terico. Tanto que,
muitas vezes, os filmes questionam a prpria teoria. Penso ser esse o caso de Clube da luta.
A construo das anlises flmicas
Em todo seu livro, na anlise que Desise Hausen faz dos trs filmes, h sempre a contextualizao do
campo onde surge cada uma das produes: d sempre uma breve biografia dos diretores e atores, situa
a crtica de cada momento dos lanamentos ou relanamentos. E isso sempre muito til e curioso.
Depois,
conta
do
enredo
para
ento
iniciar
sua
anlise.
No captulo dedicado ao Clube da Luta h o item Reportagens, cartazes de divulgao e crtica
cinematogrfica acerca do filme. Nesse item, a questo de se o filme incitaria ou no violncia fica em
primeiro plano.
Realmente, o primeiro item de meu artigo j publicado : O filme Clube da Luta estimularia a violncia?
Denise Hausen faz um interessante levantamento do que foi dito sobre o filme desde o seu lanamento,
contando que seu produtor, Tom Sherak, teria dito para a imprensa: vocs vo adorar esse filme. Ele
diferente. Na estreia na Frana o Le monde publicou uma entrevista com o diretor, Fincher, onde ele
contesta o pressuposto de risco com relao a filmes violentos. No Brasil ele foi liberado para maiores de
12 anos. Nos Estados Unidos, menores de 18 anos deveriam estar acompanhados. Foi censurado no
Reino Unido, teve cenas de violncia suprimidas.
Segundo Denise Hausen a imprensa escrita polarizou-se entre consider-lo um filme violento ou
esperanoso. Conta que a produtora exigiu, no Reino Unido, que fosse publicada uma entrevista com os
dois atores principais, Brad Pitt e Edward Norton, onde afirmam a impropriedade de consider-lo como
um filme pernicioso ou gratuito em sua violncia. Depois do 56 Festival de Veneza, a imprensa o
considerou um filme anti-Deus. O autor do livro no qual o filme se baseou, Palahniuk comentou: acho que
voc pode retratar essas coisas, rir delas e, assim, tira o poder delas. Da as pessoas vo desistir de fazer
isso. A seguir, Denise Hausen conta o episdio que ocorreu no Morumbi Shopping, durante a exibio do
filme em novembro de 1999. com esse episdio que inicio meu artigo, no trecho que, passo agora a
reproduzir.
Assim me referia ao episdio do shopping Morumbi: O filme O Clube da Luta, exibido no Brasil no
segundo semestre de 1999, ficou ligado a um antes annimo estudante de medicina, Mateus Rocha
Meira: durante uma sesso, em pleno Shopping Morumbi, depois de dar um tiro no espelho, na sua
prpria imagem refletida, o jovem dirigiu-se sala de projeo e, com a metralhadora semi-automtica,
adquirida no decorrer daquele mesmo dia, disparou contra a platia e matou trs pessoas. A matana
aconteceu durante as cenas de luta.
Tambm nos Estados Unidos um jovem de 16 anos foi violentamente espancado numa briga em Seattle,
quando do lanamento do filme. Os pais do adolescente ferido disseram que os jovens agressores
estavam lutando como no filme, conforme reportagem publicada no Le monde.
A seguir, eu polemizava com as posies que abominavam o filme, e, principalmente com Contardo
Calligaris:
[3]
Contardo Calligaris, no ensaio Virilidade em crise assim escreve: Na semana passada, nos EUA,
estreou Clube da Luta, filme dirigido por David Fincher, com Brad Pitt e Edward Norton() o que
ficar desse filme no sonho dos espectadores eventualmente seduzidos, ser a seguinte mensagem: para
no se perder no consumismo ornamental que nos aliena, os homens devem se reunir entre eles, encher
a cara reciprocamente de porradas e, enfim, salpicar a cidade de bombas. Se h um filme que merece ser
classificado de pornogrfico, esse (CHNAIDERMAN, 2005).
Continua Contardo: Infelizmente, contrariamente a Thelma e Louise, Norton e Pitt no se jogam em
nenhum abismo. Ao contrrio, eles fundam um grupinho que tem toda a cara de um partido fascista.
Segundo Contardo, criticar o equivocado ideal masculino da propaganda Calvin Klein (Contardo est se
referindo ao livro de Susan Faludi, jornalista feminista) poderia levar a aprovar uma boa
homossexualidade reprimida de grupo. Contardo afirma preferir qualquer Parada Gay ou qualquer desfile
de moda-homem marcha alinhada de enrustidos da SS (CHNAIDERMAN, 2005).
Eu, a partir de pesquisa que havia feito para um documentrio sobre a violncia, havia tentado um contato
com Mateus da Rocha Meira. Assim prosseguia meu artigo:
Mateus da Rocha Meira foi preso e, em 2004 foi responsabilizado por seus atos, considerado nopsictico, ou seja, sem direito a qualquer tratamento especial. Quando tentei entrevistar Mateus para um
documentrio que estava buscando fazer, sobre a violncia, ele ainda estava sendo julgado. Negou-se a
conceder a entrevista pois o jornalista Roberto Cabrine havia trado sua confiana e levado ao ar trechos
que ele pedira que no aparecessem. Soube ento que Mateus no se d com ningum, arruma briga por
todos os lugares de carceragem pelos quais tem passado e que, assistindo entrevista na televiso,
arrebentou o aparelho. Tudo leva a pensar em parania e todos sabemos das relaes entre parania e
homossexualismo (CHNAIDERMAN, 2005).
Contardo teria razo, ento? Logo que soube que Mateus Meira fora considerado no psictico, pensei
que o jri deveria ter assistido ao filme Clube da Luta. Basta assistir ao filme para perceber a
fragmentao dolorosa de Mateus e a confuso total em que devia estar imerso, invadido por vozes e
vises.
Eu continuava o artigo polemizando ou concordando com outras leituras. Assim, no segundo item, Outras
leituras, referia-me a Jorge Coli que, contrariamente a Contardo Caligaris, afirmou que o filme de Fincher
diabolicamente inventivo pois uma histria regressiva de homens-meninos, bonzinhos e
inconformados, fsica ou socialmente emasculados, sentindo a necessidade imperiosa de se
reencontrarem num mundo prprio, onde uma saudvel violncia, sangrenta e regeneradora o
[4]
ncleo .
Continuava citando o ensaio de Paulo Jorge Ribeiro, A era da frustrao: melancolia, contra-utopia e
[5]
violncia em Clube da Luta . Citando meu artigo: Para o autor, o que se revela, na viso de Contardo e
de Jorge Colli, a percepo de uma imagem traumtica fornecida por Clube da Luta, na qual coexiste o
mito da indignao (tica) e a seduo da violncia e da cmera. Lembra Ces de Aluguel de Tarantino.
Paulo J. Ribeiro pensa que o Clube da Luta no um culto violncia. Afirma:
De todo modo, este universo em chamas no deixaria tambm de conter, como sua tarefa, refletir sobre
os possveis limites na representao da perversidade. Limites externos a questo da censura, a
existncia ou no de temas proibidos s artes, os prejuzos que essa exposio pode ocasionar e
internos o fracasso de vrios discursos em dramatizar o fenmeno da gratuidade do mal, em
transformar o Inominvel em matria de reflexo comunicvel, o desafio tendncia teleolgica de certas
narrativas que vem na obrigao de apresentar uma justificativa final assimilvel e indubitvel para
as metdicas carnificinas perpetradas por seus personagens (RIBEIRO, 2002).
Abordagens possveis
Para Denise Hausen, o que norteia a construo do filme a denncia de uma sociedade que esvazia o
homem. Afirma que os personagens so viciados em violncia como forma de dar conta de uma
angstia sem nome. Ser que aqui no h uma busca de razo para a violncia, quando o filme irrompe
em um no-sentido total para o que vai se passando? A luta seria luta ferramenta de resistncia a uma
sociedade que gera nas pessoas o despojamento da responsabilidade pela prpria vida, da prpria
angstia do viver, organizada em torno de pressupostos do consumo que obrigam os indivduos
aquisio de objetos talvez inteis O filme mostraria ento a ausncia de qualquer limite e a ausncia
da castrao. Haveria uma identificao com a imposio social, a luta seria uma forma de submeter em
vez de ser submetido. Os corpos sangram na impossibilidade de reconhecimento de um limite simblico.
Na anlise de Denise Hausen, no filme, o ato se encarrega de executar o que seria funo da palavra.
Haveria uma impossibilidade de abdicar do mundo das sensaes do corpo.
interessante pensar que, na abordagem que fiz, tambm parto da questo da impossibilidade de
simbolizao. Fao toda uma reflexo sobre o no-lugar que o feminino vem ocupando na teoria
psicanaltica para tomar o filme como uma importante reflexo sobre o tambm no-lugar do masculino.
Afirmava
eu
no
terceiro
subttulo
O
enigmtico
na
masculinidade:
O filme Clube da Luta interroga at o limite exatamente a masculinidade. Em nosso mundo
contemporneo, sem dvida. Mas tambm questiona radicalmente o como a psicanlise vem pensando o
masculino. Eu partia da constatao do quanto a psicanlise vem deixando o enigmtico apenas do lado
do feminino e citava Marie Claire Booms, no ensaio Da seduo entre os homens e as mulheres: uma
[6]
abordagem lacaniana onde mostra como nossa cultura vem colocando a mulher fora da possibilidade
do simblico. Afirma Marie Claire Booms:
pois numa sociedade que se funda sobre a rejeio para fora do simblico do feminino no h
significante de A mulher. H apenas o significante flico e sua funo para significar a diferena, dividindo
a humanidade falante em metade masculina e metade feminina, segundo a maneira como cada sujeito se
inscreveu em relao castrao que esta funo designa (BOOMS, 1987)..
A metade masculina tem o acesso ao simblico bem garantida. Na outra metade, a nomeada como
feminina, haveria um gozo que escaparia castrao, sendo ento portadora de um segredo sempre
inviolado. Nessa metade, o acesso ao simblico permanece problemtico. interessante notar que os
termos psicanalticos que Marie Claire Booms usa para se referir ao feminino so aqueles que Denise
Hausen usa para se referir ao filmeClube da Luta.
O que eu propunha era, citando meu ensaio, que o Clube da Luta inverte a lgica baseada no falo e
recoloca o enigmtico do lado do masculino. Da sua importncia. No por acaso, em um dos vrios
grandes momentos do filme, Marla, nico personagem feminino, competindo com o personagem em
relao aos grupos de ajuda que cada um deveria freqentar, afirma sobre os homens portadores de
cncer nos testculos: Eu que deveria ir a esse grupo. Voc ainda tem as suas bolas
Eu refletia ento: Se o Real, tal como pensado por Lacan, o verdadeiro contrrio da realidade, no h
um significante que d conta seja de O homem seja de A mulher.
Analisando a mesma cena
Transcrevo aqui de que maneira Denise Hausen nos conta sobre o incio do filme:
O filme abre, desde o incio, se mostrando como um filme caracterizado pela velocidade. A velocidade
com que inicia sua apresentao, os efeitos especiais so paradigmticos dos anos 90. Uma srie de
fotos mostra uma sequncia que tem incio em um close up de uma sinapse. A partir da, a cmera se
afasta, mostrando o neurnio, a substncia cinzenta, o crnio, a pele e termina em uma tomada de Jack
pensando se deve disparar uma arma ou no. Arma na boca simulando um felatio. A cena expe dois
homens (HAUSEN, 2012).
No quarto item de meu ensaio, O filme Quem quem, assim descrevo o incio do filme:
As primeiras tomadas de o Clube da Luta so imagens de entranhas entranhas/teias. Os primeiros
rudos so orgnicos, barulhos de vsceras. Um corpo nem feminino nem masculino. A cmera penetra
e
se
afasta,
a
cpula
no
movimento
da
cmera.
Vai surgindo uma epiderme, invlucro pele, gotas de suor, a cmera se fixa em dois globos oculares o
olho
de
Bataille,
aquele
que,
se
revirado,
cega.
Surge a imagem de um revlver enfiado em uma boca. E uma voz em off: Com uma arma na boca, voc
fala apenas em vogais. Um homem ameaado de morte s fala vogais, um homem feminilizado a
vogal tem a ver com o feminino, as consoantes cortantes lembram o masculino (CHNAIDERMAN, 2005).
interessante observar o quanto a problemtica que suscita a anlise do filme vai determinando o olhar.
Para Denise, o revlver na boca um felatio. Para mim, aponta para a feminilizao do homem.
Assim continuo minha anlise:
O momento inicial do filme, o personagem principal, que d o foco ao filme (ele no tem nome ou
chamado por diferentes nomes no decorrer do filme - pois somos todos ns) ameaado de morte fala
em off: Sempre me pergunto se conheo Tyler Durden. Quem quem? Em um determinado momento
escutamos: Sou o fgado de Jack. Sou o dio de Jack. No momento inicial Tyler tira a arma da boca de
seu parceiro e afirma: Est ficando excitante. A nica excitao possvel a da proximidade da morte e
a busca da morte ou a vida por um fio permeia o filme todo. Trata-se da busca exasperada de uma
linguagem que d conta do inomevel do xtase e da dor, busca to caracterstica dos msticos. So
Joo da Cruz afirmava: Que mais queres, alma, e que mais buscas fora de ti, se tens dentro de ti tuas
riquezas, teus deleites, tua satisfao, tua fartura e teu reino, que teu Amado a quem procuras e
desejas () no vs busca-lo fora de ti, porque te distrairs. A causa estar ele escondido e no te
[7]
esconderes tambm para acha-lo e senti-lo . O Clube da Luta montado para que todos possam
encontrar esse amado inomevel e o encontro tem que ser clandestino, escondido. Na pertinncia
seita, os seguidores passam a olhar o mundo de outro jeito. Os meros mortais no tm acesso a esse
saber do inomevel (CHNAIDERMAN, 2005).
Denise Hausen afirma: Na fita, o corpo dos personagens precisa ser batido, deformando, mostrado com
cicatrizes () Teatro do psquico, o corpo precisa ser destrudo para aludir a um sistema social: me d
um soco bem no meio da cara, ordena Tyler ao narrador (HAUSEN, 2012).
Eu, em meu ensaio, buscando a partir do filme colocar questes da possibilidade da linguagem
associadas ao feminino e/ou masculino e Denise Hausen buscando os sintomas do lao social na
construo da sexualidade.
No que eu abandone a questo do contemporneo. Cito, logo aps o incio do filme, a afirmao em off:
Estamos na primeira fila neste teatro de destruio em massa. Afirmo ento:
a referncia, a ns, espectadores, clara ns que, em nosso dia a dia e na tela do cinema e da
televiso assistimos, de camarote, a destruio em massa. Zizek mostrou como no dia 11 de setembro,
na destruio do World Trade Center, ficou evidenciado como a realidade a melhor aparncia de si
[8]
mesma . Zizek faz essa afirmao para pensar mega-eventos televisionveis, como a destruio das
torres em Nova Iorque. Mas, podemos pensar essa afirmao tambm a nvel molecular. Se a realidade
sempre semblante, temos que repensar o masculino (CHNAIDERMAN, 2005)..
Mas, a citao de Zizek vem apenas para problematizar formas da psicanlise pensar o feminino e o
masculino. Citando:
A confuso entre pnis e falo tem colocado o masculino como mais capaz de simbolizao. O falo
(pnis?) seria a possibilidade de diferena e constituio da linguagem. Marie Claire Booms, citada acima,
j criticara essa confuso de conceitos. A partir de Zizek podemos afirmar que a realidade do masculino o
torna puro semblante, iluso de um simblico que se esvai e por isso leva a um mergulho no Real (ZIZEK,
2003).
A questo do consumo e da imagem tambm presente na reflexo de Denise Hausen, quando cita
Dantas e Tobler, que falam de indivduos que se deixam apreender pela manipulao do imaginrio
social. Eu cito Zizek: Na sociedade consumista do capitalismo recente, a vida social real adquire, de
certa forma, as caractersticas de uma farsa representada, em que nossos vizinhos se comportam na vida
real como atores no palco.. Cito ento Badiou para quem a paixo pelo Real, caracterstica do sec. XX,
culminaria no seu oposto aparente o espetculo teatral:Estamos na primeira fila neste teatro de
destruio em massa. Afirmo: Se a paixo pelo Real termina no puro semblante do espetacular efeito do
Real, ento, em exata inverso, a paixo ps-moderna pelo semblante termina numa volta violenta
paixo pelo Real (CHNAIDERMAN, 2005).
A paixo pelo Real
Para mim o tema do filme Clube da Luta tem como tema a paixo pelo Real . um filme que
aparentemente exemplificaria a paixo pelo Real. E a, sim, cairamos na pura pornografia de que nos fala
Calligaris. A imagem obscena um conceito que nos vem de Andre Bazin o termo que cunhou para
exprimir o que sentia quando ia todas as tardes ao cinema para ver a morte de um toureiro. A morte
nica e sua repetio obscena. A paixo pelo Real s poderia levar obscenidade. Mas, essa paixo
pelo Real que questionada.
Quando Denise Hausen fala da ausncia de palavra tambm est fazendo referncia ao inomevel, ao
Real. Afirma: O filme fundado de tal forma que as palavras no sejam ditas e que o corpo no seja
destrudo
Tyler pede que todos se livrem do mundo das aparncias e quando organiza um exrcito destruidor
afirma que est prestando um grande servio humanidade. Sua misso libertadora quer libertar o
homem do mundo das aparncias. Como So Joo da Cruz.
A violncia como possibilidade de redeno ou como negao do limite
Assim continuo a anlise que fao do filme:
Depois da cena em que o revlver est enfiado na boca do ator, ficamos sabendo, enquanto a cmera se
move por subsolos de prdios, que dois edifcios vo explodir, foram colocados explosivos em suas
fundaes. Ouvimos a voz em off: Em dois minutos uma cadeia de explosivos vai se iniciar e alguns
blocos sero reduzidos a uma pilha de entulho. Depois ficamos sabendo que so os prdios centrais dos
Cartes de Crdito e que os homens sero libertos de suas dvidas com o capitalismo. Surge ento a
violncia como possibilidade de redeno do mundo (CHNAIDERMAN, 2005).
Para Denise Hausen, atrelada idia de uma cultura do consumo vem a da cultura da imagem Faz
uma crtica do discurso publicitrio onde a castrao como normatizadora da interdio do gozo se esvai
uma vez que o postulado o dever do gozo suplantar a tudo, at mesmo o princpio da realidade que
advoga que nada se alcana sem que se processe um trabalho fsico ou mental. No filme de Fincher,
para Denise Hausen, a luta a nica forma de resistncia, sendo o ato a nica possibilidade de
subjetivao. Ou de no subjetivao, busca da pura descarga.
Denise Hausen toma como tema norteador de sua anlise a frase de um dos protagonistas: somos filhos
de uma gerao criada por mulheres para afirmar uma ausncia do Pai na sociedade contempornea.
Cita Fantimi no artigo Violncia e imagens do pai no cinema contemporneo, onde mostra em o Clube
da luta o quanto o pai no reconhecido como pai simblico, aquele que realiza a funo castradora.
O fato de o personagem buscar grupos de ajuda apenas atesta a falncia da funo paterna: um
mdico que em vez de medicar a insnia de Jack o aconselha a procurar grupos de pessoas que sofrem.
Ou seja, o mdico no assume a funo paterna. Afirma Denise: O mdico, por presuno podendo
exercer o lugar de funo paterna, daquele que cuida, o remete para o grupo dos que representam a
falncia.
Assim me refiro aos grupos de ajuda: Na construo do roteiro, vamos, paulatinamente, conhecendo
nosso personagem e podendo entender o que o leva a procurar tais grupos de ajuda. A compreenso
sempre a-posteriori: primeiramente surge uma situao que nos estranha e depois a trama que d algum
sentido ao que estamos assistindo.
Relato como surgem os grupos de ajuda:
O personagem apresentado no trabalho. E, ainda depois, em sua casa bem montada,escravo do
consumismo. Em off, a pergunta: Que tipo de porcelana me define como pessoa? H uma clara
referncia porcelana azul de Oscar Wilde, escritor que assumiu seus conflitos com a masculinidade,
tanto em obra quanto na vida. Ficamos sabendo que o personagem sofria de terrveis insnias. Procurara
um mdico que lhe aconselhara exerccios de relaxamento, e ele, desesperado, lhe implora algo que o
alivie, pois est sofrendo. O mdico aconselha que entre em contato com o sofrimento, indo ver o grupo
de homens com cncer nos testculos(CHNAIDERMAN, 2005).
Denise Hausen afirma que a insnia o incio da produo flmica. Recorre a todo um pensamento
psicanaltico que v na insnia uma das primeiras alteraes manifestadas pelo bebs, denunciadora de
uma indiferenciao dos corpos, num pressuposto de fuso vivenciada pelas mes que no identificam,
atropelam ou ignoram os sinais expressivos da necessidade ou vontade peculiar do beb. O filme
denunciaria um mundo fusional, sem distino entre sujeito e objeto.
Vou refletindo, em meu ensaio, que nosso personagem se vicia nesses grupos de ajuda e a partir da sua
insnia desaparece: alcolicos annimos, positividade positiva, tuberculose, livre e limpo, todos os
cnceres possveis. H uma busca identificatria exasperada, onde a perda como marca, trao unrio,
vivida no concreto do real do corpo. Concluo: A ironia, to clara na caricatura desses grupos, marca um
mundo contemporneo onde os modelos ideais se perderam, onde no h mais heris. Prossigo:
Nesses grupos conhece Marla, que tem o mesmo vcio: no consegue viver sem freqentar os grupos de
ajuda. Marla entra na sala do cncer dos testculos perguntando: Aqui cncer, certo?
Em off, a voz: Ela uma mentirosa, no tinha cncer nenhum! Marla, a grande turista. Sua mentira
refletia a minha!
Concluses possveis
Em meu texto afirmo: A questo da morte tema do filme. Morte tem tanto a ver com a possibilidade da
linguagem a linguagem s pode acontecer na ausncia do objeto quanto com os limites da
linguagem. Lembro ento quando em um grupo de auto-ajuda de cancerosos, uma mulher anuncia:
Tenho uma boa nova: no tenho medo da morte. S que gostaria de uma ltima transa.
Remeto ento ao texto de Foucault onde afirma: A palavra que demos sexualidade contempornea,
[9]
no tempo e na estrutura, daquela pela qual anunciamos que Deus est morto . Continuo: Falar a
sexualidade tem a ver com a nomeao de um morto. No filme, a busca desenfreada por algum Deus.
Deus Tyler, Deus o clube da luta. Pois, o clube da briga no era sobre palavras. No se trata de falar
e sim de brigar. A briga o encontro mstico com Deus.
Interessante, tantos anos depois, ler, atravs do texto de Denise, que o filme, depois de 56 Festival de
Veneza, foi considerado um filme anti- Deus.
As concluses de Denise vo em outra direo. A partir do texto de Freud Formulaes sobre os dois
princpios de funcionamento mental, fala de uma perda de contato com a realidade em Tyler, sobretudo a
impossibilidade de dar conta do que desagrada atravs do pensamento e da palavra. H um no
confronto com a prpria dor, os afetos indesejveis so dissipados. Denise afirma que h um no
reconhecimento da castrao e portanto uma impossibilidade de simbolizao.
Em minha concluso lembro que
Zizek nos lembra de Ernest Jnger que, nas trincheiras da Primeira Guerra Mundial j celebrava o
combate corpo-a-corpo como o autntico encontro intersubjetivo. Tyler e o personagem fundam um clube
onde o combate corpo-a-corpo propicia o autntico encontro inter-subjetivo.
Zizek refletiu sobre o sintoma, bastante comum em nosso mundo: a necessidade que algumas pessoas
tm de se auto-mutilar. Esses indivduos estariam tentando fugir no apenas da sensao de irrealidade,
de virtualidade artificial do mundo em que vivemos, mas do prprio real que explode sob a forma de
alucinaes descontroladas que nos invadem quando perdemos a ncora que nos prende realidade
(CHNAIDERMAN, 2005).
Denise tambm discute exatamente essas questes ao final do seu texto: atravs do corpo concreto
que Tyler emerge, numa metfora ao primeiro tempo do processo de constituio psquica em que o
corpo fala direto, Tyler implora que Jack o reconhea e o faa vivo mediante o toque violento no
corpo: no quero morrer sem cicatrizes. Cita Lacan, atravs de Nasio, que se refere ao corpo como
aquele atravs do qual possvel dizer mais do que se sabe sobre si mesmo.
Em meu ensaio concluo indo para o final do filme:
quando o personagem atira em Tyler e ele que sangra, ficamos sabendo que talvez tudo que aconteceu
tenha sido uma exploso do Real, bem no sentido em que nos fala Zizek. Os dois personagens so um s
e ns tambm nos fundimos ao personagem. Tyler tambm Fincher, o diretor do filme, que insere um
pequeno pnis no canto do quadro da cena Tyler inseria imagens pornogrficas em filmes inocentes
(CHNAIDERMAN, 2005).
A luta ento a automutilao de que nos fala Zizek, a possibilidade de ter alguma ncora na realidade.
Mas, o filme como um todo nos teria mostrado alucinaes descontroladas
Ausncia de castrao ou busca exasperada de encarnar um corpo para alm de uma lgica do consumo
e da pura imagem?
Concluo meu ensaio afirmando que no final abraado a Marla, o personagem assiste destruio dos
prdios que so a sede dos cartes de crdito, no de um encontro homem/mulher de que se trata: a
mulher o duplo do homem, e o homem o duplo da mulher naquilo que ambos tm de inomevel e no
simbolizvel.
Afinal, assim como Denise Hausen tinha como foco a questo da sexualidade em nosso mundo
contemporneo, eu queria desmontar um pensamento psicanaltico sobre o que consiste o masculino e o
feminino. O interessante poder ver o quanto as duas abordagens se complementam. E mostrar como, a
partir de referenciais prximos, podemos chegar a diferentes leituras de um mesmo filme.
(Escuta). Vem participando de debates, mesas redonda, conferncias para profissionais de artes,e
psicanlise nas mais diversas instituies e nos mais diferentes eventos, pelo Brasil todo. diretora dos
curtas documentrio: Dizem que sou louco (1994), Artesos da Morte (2001), Gilete Azul (2003), Isso,
aquilo e aquilo outro (2004), Voc faz a diferena (2005) , Passeios no Recanto Silvestre (2006),
Afirmando a vida (2009), Mboi Mirim, Dos ndios, das guas, dos Sonhos (2009). Realizou os mdiasmetragens, Procura-se Janana (2007) e Sobreviventes (2008).
[1] Revista da Associao Psicanaltica de Porto Alegre, n 28 Abril 2005.
[2] Denise Hausen, Cinema e psicanlise o conceito de castrao em transversal. Porto Alegre, Editora
Movimento, 2012.
[3] Contardo Calligaris, Virilidade em crise, in jornal Folha de S.Paulo, 28-10-1999.
[4] J. Colli, Punhos in Caderno Mais do jornal Folha de S. Paulo, 7 de novembro de 1999.
[5] Trabalho apresentado na IV Reunio de Antropologia do Mercosul, em Curitiba, no Frum de Pesquisa
Estudos recentes sobre arte, cultura e sociedade.
[6] M.C. Booms, Da seduo entre os homens e as mulheres: uma abordagem lacaniana in Homem
mulher, abordagens sociais e psicanalticas, org. Carmen Da Poian; R.J.: Livraria Taurus Editora, 1987.
[7] So Joo da Cruz (1542-1591) Canes de amor entre a alma e Deus.
[8] Zizek, Slavoy, Bem-vindo ao deserto do real. SP; Editora Boitempo, 2003.
[9] M. Foucault,Prefcio transgresso, In: Ditos & escritos III esttica: literatura e pintura, msica e
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Referncias Bibliogrficas
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COLLI, J. Punhos in Caderno Mais do jornal Folha de S. Paulo, 7 de novembro de 1999.
CHNAIDERMAN, Miriam. O filme Clube da luta: produo ensandecida de masculinidades. In: Revista da
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