Paul Sabatier - Vida de São Francisco PDF

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Paul Sabatier

Vida
de So Francisco
Traduo e comentrios organizados
por Frei Jos Carlos Corra Pedroso

Centro Franciscano de Espiritualidade


Piracicaba - 2011

1
2
Advertncia

Os leitores e admiradores de Paul Sabatier no vo encontrar aqui


a edio revista refundida da Vida de So Francisco que estava no
pensamento do ilustre historiador havia muitos anos. Ele nunca deixou
de alimentar nesse projeto, que j anunciara em uma nota do Speculum
Perfectionis (1898), mas infelizmente, os acontecimentos no lhe per-
mitiram realiz-lo.
Podemos dizer que o prprio sucesso de sua Vida de So Francisco
, o impulso extraordinrio e universal que ele deu aos estudos francis-
1

canos, foram um obstculo para que cumprisse seu desgnio. Apareceram


numerosos trabalhos que reclamavam sua ateno; a maior parte dos
textos legendrios foram objetos de reedies crticas, seja por parte de
sbios estrangeiros, seja pelos cuidados do prprio Sabatier e de seus
colaboradores dos Opuscules de Critique historique ou da Collection
de documents pour lhistoire religieuse et littraire du moyen ge, e se
tornaram ponto de partida para novas controvrsias.
Sua concepo da personalidade do Poverello e contradies que seu
apostolado havia reencontrado, como tambm suas opinies sobre a data e
o valor de testemunho do Speculum Perfectionis, tinham levantado muitas
objees. Ele no podia deixar de se entregar ao estudo dessas objees
com todo o amor escrupuloso e desinteressado pela verdade que animava
todas as suas atividades. Depois veio a guerra, durante a qual Sabatier
consagrou-se ardentemente s obras de socorro e reconforto moral. De-
pois do armistcio, ele foi lecionar na Universidade de Estrasburgo, para
tomar parte na obra de reintegrao da Alscia na ptria francesa. Os
anos passavam, entretanto, e deveriam ver a sade do mestre alterar-se
cada vez mais, enquanto um luto, longamente temido e profundamente
sentido, feria cruelmente a ele e aos seus.

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Edio de 1894 com notas; 39 edies. Edio de 1918: 7 edies.

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Foi assim que tivemos a dor de perder Sabatier antes que ele pudesse
dar forma definitiva obra qual toda a sua existncia, todas as foras
de seu esprito e de seu corao tinham sido devotadas. Ento, esta
edio reproduz mais ou menos o texto original, com as modificaes e
acrscimos que o prprio autor tinha feito na chamada edio de guerra
(1918). Mas podemos considerar que, no conjunto, o pensamento de
Sabatier sobre So Francisco, sobre sua vocao de vir apostolicus, sobre
a natureza e as vicissitudes de sua ao, no tinha mudado.
Nessas condies, como teria sido a Vida completamente refun-
dida e transformada cuja preparao era sua preocupao constante?
Ousamos afirmar que, em seus pontos essenciais, ela no teria trazido
absolutamente emendas maneira de ver primitiva do grande historiador.
Seu sentimento sobre a fisionomia intelectual e moral do santo, sobre
as peripcias de sua carreira, etc., teria ficado intacta, tanto mais intacta
que os escritos de fonte ou de tradio leonina, cujo valor de prova
cada vez menos contestado atualmente, tinham confirmado, depois da
apario da Vida de So Francisco, as concluses dessa obra. No seria
uma modificao do pensamento de Sabatier, mas um aprofundamento,
um desabrochar de tudo que estava em germe na obra inicial e que tinha
amadurecido lentamente, a favor de uma meditao ininterrupta de mais
de meio sculo sobre o Poverello, sobre a mensagem que ele trazia,
sobre o sculo e as pessoas que o acolheram, sobre os documentos que
guardam a memria delas...
A convico que acabamos de expressar fundamenta-se na leitura de
uma parte dos pastas que Sabatier tinha montado para a elaborao da
nova Vida; pastas que a Sra. Viva Paul Sabatier nos deu a honra de nos
confiar. Ao lado de estudos minuciosos de textos comparados, ao lado
de trabalhos crticos de anlise, essas pastas contm numerosas pginas
de luminosa sntese, de rascunhos penetrantes sobre So Francisco,
sobre as caractersticas do seu gnio, o desenvolvimento de seu ideal
pela frequentao assdua e fervorosa das Santas Escrituras, seus rela-
cionamentos filiais com a Igreja, tanto quando sobre Santa Clara, Frei
Leo, Gregrio IX, Frei Elias, etc. Nada mais comovente que essas notas
que o mestre lanava, muitas vezes rabiscava, sobre qualquer pedao de

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papel,sobre um envelope de carta, nas costas de um prospecto, e que ele
classificava esperando a hora de us-las no trabalho. As principais, as
mais significativas entre elas sero recolhidas, com algumas das aulas
sobre So Francisco que Sabatier deu em Estrasburgo, em um volume
que vai aparecer dentro de alguns meses.

Elas nos introduzem no quotidiano da vida espiritual de Sabatier, de


uma vida vivida, poderamos dizer, em uma familiaridade quotidiana
com So Francisco e que a presena contnua do Santo o envvolvia em
uma maravilhosa serenidade. De tal forma, quando escutvamos Sa-
batier entretendo-nos com o Pobrezinho, evocando-o diante de ns na
simplicidade inefvel de sua pessoa, de sua palavra e de seus atos, com
uma compreenso feita bem menos de cincia que de amor, parecia-nos
ouvir uma testemunha ocular, um amigo, um confidente do Santo, que
poderia repetir, depois de Leo, ngelo e Rufino, essas belas palavras
to carregadasa de ternura e de saudades: Nos qui cum eo fuimus...

Arnold GOFFIN

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DEDICATRIA DA PRIMEIRA EDIO (1894)

Aos estrasburgenses

Amigos!

Aqui est, finalmente, o livro que eu lhes anunciava havia tanto tempo.
O resultado bem pequeno em comparao com o esforo; eu vejo isso
melhor que ningum. A viva do Evangelho ps s uma moedinha no
cofre do templo, mas foi isso que a fez ganhar o paraso, assim dizem.
Aceitem a moedinha que eu lhes dou hoje, como Deus aceitou a da
pobrezinha, olhando no tanto sua oferta quanto seu amor. Feci quod
potui, omnia dedi.

No reclamem por esses grandes atrasos, porque vocs so, um pouco,


a causa. Muita vezes por dia, em Florena, em Assis, em Roma, eu esqueci
o documento que estava estudando e senti alguma coisa em mim voejar
contra as suas janelas, e s vezes elas se abriam... Uma tarde, faz dois
anos, eu me esqueci em So Damio, muito tempo depois do pr-do-
sol. Um velho frade veio me avisar que o santurio estava fechado. Per
Bacco! murmurou docemente levando-me para fora e pronto a receber
confidncias sognava damore a di tristezza ? Sim, eu estava so-
nhando de amor e de tristeza, porque estava sonhando com Estrasburgo.

Paul Sabatier

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Introduo 1894

No reflorescimento dos estudos histricos, que caracteriza de maneira


to singular nosso sculo, a Idade Mdia foi objeto de uma predileo
especial por parte dos crticos e dos eruditos. Revistam-se todos os cantos
das bibliotecas, so trazidos luz velhos pergaminhos com o zelo e a
paixo de quem se consagrou a um ideal.
Esses esforos para fazer reviver o passado no s revelam a nossa
curiosidade ou a incapacidade de enfrentar os grandes problemas filo-
sficos, mas tambm so um sinal de sabedoria e modstia: comeamos
a perceber com clareza que o presente tem raizes no passado, e que no
campo da poltica e da religio, como nos outros, o trabalho lento, mo-
desto, perseverante, o que tem melhores resultados.
At nisso h um sinal de amor. Ns amamos as geraes de cinco
ou seis sculos atrs, e unimos a esse afeto muita comoo e reconhe-
cimento. Ora, se podemos esperar tudo de um filho que ama seus pais,
no podemos nos desesperar de um sculo que ama a histria.
A Idade Mdia constitui um perodo orgnico na vida da humanidade:
como todos os organismos poderosos, comeou com uma longa e mis-
teriosa gestao; Teve sua juventude, sua virilidade, e sua decrepitude.
O fim do sculo XII e o incio do XIII marcam seu desenvolvimento
orgnico definitivo. So os vinte anos, com sua poesia, os sonhos, o
entusiasmo, a generosidade, as audcias. O amor e a fora eram super-
abundantes. Por toda parte, os homens tinham um s desejo: dedicar-se
a uma causa qualquer, que fosse santa e grande.
A Europa, apesar de estar mais dividida em pedaos do que nunca,
sentiu um novo frmito percorr-la de alto a baixo, sob o impulso do que
poderia ser chamado de um estado de conscincia europeu.

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Nos sculos comuns, todo povo tem seus interesses, suas tendncias,
suas lgrimas e suas alegrias: mas quando se apresenta uma crise, a
solidariedade da famlia humana reaparece de repente com uma fora
que ningum suspeitava. Todo mar tem suas correntes, mas quando o
furaco se aproxima, elas se transmitem de uma maneira misteriosa e,
desde o oceano ao mais desconhecido lago das montanhas, o mesmo
frmito parece levantar todas as guas. Foi isso que aconteceu em 1789
e era isso que tinha acontecido no sculo XIII.
Jamais houve menos fronteiras 1; jamais, antes ou depois, houve tal
mistura de nacionalidades. E, no momento presente, apesar das estradas
e das ferrovias, os povos vivem divididos.
O grande movimento de idias do sculo XIII , antes de tudo, um
movimento religioso com duas caractersticas: popular e leigo ao mesmo
tempo. Sai das entranhas do povo e pretende, atravs de muitas incerte-
zas, nada menos do que arrancar as coisas sagradas das mos do clero.
Os conservadores de nosso tempo, que se voltam para o sculo XIII
como a idade de ouro da f imposta, cometem um estranho erro. Se
o sculo dos santos por excelncia, tambm o dos hereges. Veremos
que essas duas palavras no so to contraditrias quanto parecem: bas-
ta notar, por enquanto, que nunca como nesse tempo a Igreja foi mais
poderosa e mais ameaada.
Houve uma tentativa autntica de revoluo religiosa, que, se tivesse
dado certo, chegaria ao sacerdcio universal, proclamao dos direitos
da conscincia individual.
O esforo deu em nada e, se mais tarde a Revoluo fez-nos todos
reis, nem o sculo XIII nem a Reforma puderam fazer todos ns sacerdo-

1
Em sua origem, as ordens mendicantes tiveram uma verdadeira Internacional. Quando, na primavera de
1216, So Domingos reuniu seus frades em Notre-Dame de Prouille, eles eram dezesseis e, nesse nmero
havia castelhanos, navarros, normandos, franceses, langedocianos e at ingleses e alemes.
Os hereges viajavam por toda a Europa, no se detendo em parte alguma pela diversidade dos idiomas.
Ver sua enumerao em A. SS. Aug., t. I, pg. 1089. Arnaldo de Brescia, por exemplo, o famoso tribuno de
Roma, aparecia na Frana, na suia, e em plena Alemanha.

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tes. Est a, sem dvida, a contradio ntima de nossa vida e o que pe
periodicamente em perigo nossas instituies nacionais. Emancipados
politicamente, no o somos nem moral nem religiosamente 2.
O sculo XIII empreendeu com paixo juvenil essa revoluo que
no teve bom xito. Ela foi feita nas catedrais do norte da Europa e nos
santos do sul.
As catedrais foram as igrejas leigas do sculo XIII. Construdas pelo
povo e para o povo, no comeo eram a verdadeira casa da comunidade
em nossas antigas cidades. Transformavam-se ao mesmo tempo em
museus, celeiros, cmaras de comrcio, palcios da justia, arquivos e
at em cmaras de trabalho.
A arte medieval, que Victor Hugo e Viollet-le-Duc nos ensinaram a
compreender e a amar, foi a expresso comovida do entusiasmo do povo
que conquistava suas liberdades comunais. Mais do que sermos ns de-
vedores da Igreja, na origem foi um protesto inconsciente contra a arte
hiertica, imvel, esotrica das ordens religiosas. Na longa lista dos mes-
tres construtores, pintores e escultores que nos deixaram os incontveis
monumentos gticos espalhados pela Europa. S se encontram leigos.
Esses artistas geniais que, como os gregos, souberam falar multido
sem perder a fineza, eram em geral humildes operrios. No se inspiravam
nas formas dos mestres da arte monstica, mas na constante comunho
com a prpria alma da nao. E por isso que a renovao interessa mais
histria do nosso pas no que ela tem de mais profundo. Arqueologia
ou arquitetura interessam menos.
Enquanto, nas terras setentrionais, o povo construa suas prprias
igrejas e encontrava no prprio entusiasmo uma arte nova, original, com-
pleta, no sul, acima do sacerdcio oficial, clerical, de direito divino, o
2
A Reforma no soube fazer mais do que substituir a autoridade do livro do padre, isso no passa de
uma mudana de dinastia. Quanto maior parte dos que hoje se intitulam livres pensadores, confundem
emancipao religiosa com irreligio; no querem enxergar que, em religio como em poltica, h lugar, entre
a realeza de direito divino e a anarquia, para um governo que pode ser to forte como a primeira e garantir
melhor a liberdade, como a segunda. O esprito antigo colocava Deus fora do mundo, a soberania fora dos
povos, a autoridade fora das conscincia; o esprito dos tempos novos tem a tendncia contrria; no nega
Deus, nem a soberania, nem a autoridade, mas os v no lugar onde esto de fato.

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povo saudava e consagrava um sacerdcio novo, real, de direito natural,
o dos santos.
O santo era aquele que no tinha sinais especiais no hbito que anun-
ciassem sua misso. Impunha-se ao corao e conscincia de todos
pela a vida e pelas palavras.
Era aquele que, sem ter cura de almas na Igreja, sentia-se no dever de
levantar a voz. Filho do povo conhecia todos os seus sofrimentos ma-
teriais e morais, e escutava o seu eco misterioso em seu corao. Como
um tempo o profeta de Israel, ouvia uma voz imperiosa gritando: Eu
te estabeleci como profeta das naes. Ai, Senhor eterno, eu no sei
falar, porque sou jovem. No digas que s um jovem. Vai s onde eu
te mandar e anuncia o que eu te ordenar... E eu te proponho, hoje, como
cidade fortificada, como um muro de bronze contra os reis de Jud e seus
chefes, e contra os seus sacerdotes e o povo da terra.

De fato, os santos do sculo XIII foram autnticos profetas. Eles fo-


ram testemunhas da liberdade contra a autoridade, apstolos como So
Paulo no por terem recebido alguma consagrao cannica mas por
uma ordem interior do Esprito.

O visionrio calabrs Joaquim de Fiore tinha saudado a revoluo


nascente; tinha acreditado que ela teria um xito positivo, e tinha anun-
ciado ao mundo atnito o advento de um novo ministrio. Ele se enganou.
Quando o sacerdote v que foi vencido pelo profeta, muda brusca-
mente de comportamento. Toma o profeta sob sua proteo, introduz suas
pregaes no cnon sagrado, joga sobre seus ombros a casula sacerdotal.
Passam os dias, passam os anos, e chega o momento em que a multido
distrada j no distingue mais entre os dois e acaba vendo nos profetas
uma emanao do clero.
Essa uma das amargas ironias da histria.
Francisco de Assis foi o santo por excelncia da Idade Mdia.
O mais bonito de sua vida que foi realssima, radiosa; mas nela

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que vemos os escolhos e precipcios colocados em seu caminho, que
foram motivo de to brilhantes vitrias. Ela foi verdadeiramente uma
subida contnua; mas o Alverne com seus mistrios no o seu ponto
culminante, como o Tabor no o ponto culminante na vida de Jesus.
ter tomado posse da voz interior, a capacidade de perscrutar o horizonte
e se reconhecer.
Este caminho de perseverana d vida de Francisco sua beleza, mas
tambm lhe acrescenta um elemento terrivelmente dramtico.
Vamos chegar logo? exclama sempre do mesmo modo o discpulo, a
criana. Quer ver o ponto estabelecido e geme; hesita, perde a confiana,
rebela-se.
Francisco experimentou todas essas dores. Escutava seus filhos espi-
rituais que vinham interrog-lo sobre particularidades de casustas 3 e
no entendiam nada da evoluo do seu pensamento, nem das mudanas
na Regra mais aparentes que reais. Queriam uma Regra exatssima e
teriam dito de boa vontade com Israel: Faze-nos um Deus que caminhe
nossa frente.
Pobre Francisco! Os ltimos anos de sua vida foram verdadeiramente
uma via dolorosa, penosa como a do seu mestre, que tinha cado sob o
pesoi da cruz, de fato, morrer por uma idia prpria ainda uma alegria,
mas que dor amarga assistir antecipadamente a apoteose do prprio
cadver e ver a prpria alma, isto , o pensamento, mal entendido e trado!
Se formos buscar as origens de suas idias, elas sero encontradas
exclusivamente no meio do povo de seu tempo, e justamente por isso ele
encarna a alma italiana do comeo do sculo XIII como Dante haveria
de encarn-la cem anos mais tarde.
Ele pertencia ao povo, e o povo se reconheceu nele. Tinha a sua poesia
e as suas aspiraes, desposou suas reivindicaes e o prprio nome de
sua instituio teve, desde o incio, um significado poltico. Em Assis,
como em quase todas as cidades italianas, havia os Maiores e os Mino-

3
EP 2

11
res, o popolo grasso e o popolo minuto: ele se colocou resolutamente
do lado desses ltimos. O aspecto poltico de seu apostolado deve ser
tido em muita conta para compreender seu surpreendente sucesso e toda
a originalidade do movimento franciscano em seus incios. Sua atitude
diante da Igreja foi de obedincia filial.
A uma primeira vista isso pode parecer estranho em um pregador sem
mandato, que vinha falar ao mundo em nome de sua inspirao direta e
pessoal. Mas, a maior parte dos homens de 1789 tambm no achavam
que eram bons e leais sditos de Lus XVI?

Para os nossos antepassados, a Igreja era o que a ptria para ns


hoje: podemos querer derrubar o governo, revirar a administrao, mudar
a constituio, mas no por isso que nos achamos menos patriotas.

De maneira semelhante, naqueles anos de f ingnua, em que as


crenas religiosas pareciam mergulhadas na carne da humanidade, Dante
podia atacar o clero e a corte de Roma com uma violncia que ningum
superou, sem deixar a de ser um bom catlico. So Francisco estava to
convencido de que a Igreja tinha sido infiel a sua misso que falou em
sua linguagem simblica da viuvez de sua Senhora, a Pobreza, que no
tinha encontrado um marido desde Cristo at ele. Como poderia ter de-
clarado melhor seus projetos e deixado que adivinhassem seus sonhos?

Francisco queria muito mais do que a fundao de uma Ordem, e


uma injustia com ele reduzir dessa maneira a sua tentativa. Ele quis
um verdadeiro despertar da Igreja em nome do ideal evanglico que ele
tinha reencontrado.

Houve uma longa perturbao na Europa quando se espalhou a notcia


desses Penitentes sados de uma cidadezinha da mbria. Comentava-se
que eles tinham solicitado um estranho privilgio corte romana: o de
no possuir nada. Viam-nos passar ganhando a vida com o trabalho de
suas mos e aceitando s o estritamente necessrio para viver daqueles a
quem tinham dado, de mos cheias, o po da vida. Os povos levantaram
a cabea, enchendo os pulmes com o vento de primavera que j trazia
o perfume de flores novas.

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H, no mundo, uma multido de almas capazes de qualquer herosmo
se encontrarem um chefe que as conduza. Francisco foi o guia esperado
e o melhor da humanidade de seu tempo foi atrs do seu mpeto.
O movimento franciscano foi, no comeo, se no um protesto da
conscincia crist contra o monaquismo, pelo menos o reconhecimento
de um ideal singularmente mais elevado do que o do clero de seu tempo.
Imaginemos a Itlia, no comeo do sculo XIII, com suas divises, o
permanente estado de guerra, as campanhas; a impossibilidade de cul-
tivar os campos a no ser no reduzido raio que as guarnies da cidade
podiam defender; todas essas cidades, da maior menor, que passavam
o tempo espiando suas vizinhas para ver o melhor tempo para saque-
las; os assdios que terminavam com atrocidades inauditas, e, depois de
tudo isso, a carestia, seguida bem de perto pela peste para completar a
obra de destruio.
Pensemos, agora, nas ricas abadias beneditinas, verdadeiras fortalezas
construdas em alturas de onde pareciam comandar todas as plancies ao
redor. Sua prosperidade no tem nada de surpreendente. Protegidas pela
inviolabilidade, naqueles tempos de desordem e de violncias eram o
nico refgio das almas pacficas e dos coraes fracos 4. Os monges, na
maior parte, desertavam das lutas da vida: por motivos nada religiosos,
refugiavam-se dentro das nicas muralhas slidas daquele tempo.
Deixemos isso de lado, se quisermos. Vamos esquecer a depravao
e a ignorncia do baixo clero, a simonia e os vcios dos prelados, a
vulgaridade e a avareza dos monges, para julgar a Igreja do sculo XIII
simplesmente por seus filhos que mais honra lhe do: so os anacoretas
que, diante das guerras e dos vcios, fogem para o deserto, s parando
quando esto bem seguros de que nenhum rumor da terra vir inter-
romper sua meditao. s vezes, eles arrastavam consigo centenas de
imitadores para as solides de Claraval, de Valumbrosa, de Camldoli;

4
Os mosteiros mais ricos da Frana so do sculo XII ou foram ampliados nesse tempo: Arles, Saint-Gilles,
Saint-Sernin, Cluny, Vzelay, Brioude, Issoire, Paray-le-Monia1. O mesmo aconteceu na Itlia.
At o ano 1000, 1.108 mosteiros tinham sido fundados na Frana. O sculo XI viu nascerem 326 e o
sculo XII 702.Os conventos do Monte Atos, em seu estado atual, do uma idia muito exata do que eram
os grandes mosteiros da Europa no fim do sculo XI.

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mas ento, ainda que fssem uma multido, estavam sozinhos, porque
estavam mortos para o mundo e para os irmos. Toda cela era um deserto
em cuja porta eles exclamavam:

O beata solitudo
O sola beatitudo.

O livro da Imitao de Cristo o retrato dessa vida entregue ao


claustro no que ela tem de mais puro. Mas, seria cristo de verdade esse
abstencionismo?

Francisco respondeu que no. Ele quis fazer como Jesus, e podemos
dizer que sua vida foi uma imitao de Cristo especialmente mais ver-
dadeira que a de Toms de Kempis.

certo que Jesus foi para o deserto, mas s para reencontrar na orao
e na comunho com o Pai celeste as inspiraes e as foras necessrias
para continuar a luta contra o mal. Em vez de fugir das multides ia ao
encontro delas para ilumin-las, esclarec-las e converte-las: foi isso que
Francisco quis imitar.

Em diversas oportunidades ele sentiu a seduo de uma vida pu-


ramente contemplativa, mas todas as vezes o gnio advertiu-o de que
a estava um egosmo mascarado e que s salvando os outros ns nos
salvamos de verdade.

Em vez de fugir da vista das dores, das misrias e da corrupo,


Francisco mendigava, curava e sentia brotarem no corao rios de
compaixo. No se limitava a pregar o amor aos outros, pois ele mesmo
estava embriagado disso: cantava-o, o que mais importante, vivia-o.

Antes dele, muitos j tinham pregado o amor, mas, na maior parte das
vezes, apelavam para o mais vulgar egosmo. Pensavam que estavam
triunfando se provassem que, definitivamente, dar aos outros abrir uma

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conta: D ao pobre, diz So Pedro Crislogo 5 para dar a ti mesmo:
ds uma migalha e recebes um po: d um abrigo para receber o cu.
No h nada semelhante em So Francisco: sua caridade no ego-
smo, amor. No ia ao encontro dos sos que no precisam de mdico,
mas ia aos doentes, os marginalizados ou os desprezados. Derramava os
tesouros de seu corao de acordo com as necessidades, reservando o
melhor de si aos pobres e aos mais perdidos, aos leprosos e aos bandidos.
As lacunas de sua educao ajudaram-no maravilhosamente: se fosse
mais instrudo, a lgica formal da Escolstica ter-lhe-ia tirado aquela sim-
plicidade que o fascnio maior de sua vida. Teria visto toda a vastido
das chagas da Igreja e, sem dvida, teria perdido a esperana de cur-las.
Agora podemos determinar a que famlia religiosa pertence So
Francisco.
Olhando bem de longe, vemos que, em ltima anlise, as atitudes e
os sistemas religiosos se reduzem a duas grandes famlias postas, por
assim dizer, nos dois plos do pensamento. Os plos so simples pon-
tos matemticos, no existem na realidade concreta, mas ns podemos
marc-los no mapa do pensamento filosfico e moral.
H religies que visam a divindade; h outras que visam o homem.
Mais uma vez, a linha de demarcao entre as duas famlias pura-
mente ideal e fictcia. Misturam-se e se confundem muitas vezes to bem
que muito difcil distingui-las principalmente naquela zona intermedi-
ria em que se coloca nossa civilizao. Mas, se formos para os plos,
veremos como seus caracteres vo se tornando claros.
Nas religies centradas na divindade todo esforo concentra-se no
culto e no sacrifcio de maneira especial. O escopo a alcanar uma
mudana na disposio dos deuses, reis poderosos de quem precisamos
comprar o apoio ou o favor fora de presentes.

5
So Pedro Crislogo, sermo VIII de jejunio et eleemosyna. Da pauperi terram ut accipias caelum, da
nummum ut accipias regnum, da micam ut accipias totum panem. Da pauperi ut des tibi, quia quidquid
pauperi dederis, tu habebis: quod pauperi non dederis, habebit altero. Ed. Ugolino f 14.

15
A maior parte das religies pags entra nessa categoria, como tambm
o judasmo farisico. tambm a tendncia de alguns catlicos atrasa-
dos para os quais a coisa mais importante aplacar Deus ou comprar
a proteo da Virgem e dos santos custa de oraes, velas e missas.
Pelo contrrio, as outras religies centram-se no homem: seu esforo
dirigido para o corao e a conscincia para transform-los. O sacrif-
cio desaparece ou, antes, de externo torna-se interior. Deus concebido
como um Pai sempre pronto a acolher que se dirige a ele. A converso,
o aperfeioamento ou a santificao, tornam-se os atos religiosos por
excelncia. O culto e a orao deixam de ser encantamentos e se tornam
reflexo, meditao, esforo viril.
Enquanto, nas primeiras, o clero tem um papel essencial na qualidade
de intermedirio entre o cu e a terra, na segunda apenas um educador:
toda conscincia tem que entrar em relao direta com Deus.
Aos profetas de Israel cabia formular com preciso desconhecida o
ponto de partida do culto em esprito: Parai de me apresentar ofertas
inteis; o incenso uma abominao para mim; / Novilnio, sbado,
assemblia sagrada... mesmo que multipliqueis vossas oraes, no
escuto; vossas mos esto pingando sangue. / Lavai-vos, purificai-vos,
tirai o mal de vossas aes da minha frente; parai de agir mal, aprendei
a fazer o bem 6.
Em Isaias, essas apstrofes violentas so lampejos de gnio, mas em
Jesus a mudana interior torna-se contemporaneamente princpio e termo
da vida religiosa.
Todas as suas premissas no foram para aqueles que estavam em dia
com o cerimonial o que ofereciam sacrifcios superabundantes, mas para
os coraes puros, para os homens de boa vontade.
Essas consideraes talvez no fossem inteis para mostrar as ascen-
dncias espirituais do Santo de Assis. Para ele, como para So Paulo e

6
Is. 1,10-17. Cf. Joel 2; Salmo 50.

16
Santo Agostinho, a converso foi uma mudana radical e completa, o
ato de vontade com que algum tira sua escravido do pecado para se
dispor ao jugo da autoridade divina. A partir da, a orao, tornando-se
um ato essencial da vida, perde seu carter de frmula mgica; e se torna
um impulso do corao, reflexo e meditao que se levantam acima
das vulgaridades daqui de baixo para penetrar nos mistrios da vontade
divina e agir de acordo. o ato do tomo que compreende sua pequenez,
mas que quer, mesmo que fosse s um som, estar em harmonia com a
sinfonia divina.
Ecce adsum, Domine, ut faciam voluntatem tuam.
A pessoa que chega a estas alturas j no pertence mais a uma seita,
mas humanidade; como aquelas maravilhas da natureza que as cir-
cunstncias colocam no territrio deste ou daquele povo, mas que so
propriedade de todos, porque em substncia no so de ningum, ou
antes so propriedade comum e inalienvel de todo o gnero humano.
Homero, Shakespeare, Dante, Goethe, Michelangelo, Rembrandt so
de todos ns, como tambm o so as runas de Atenas ou de Roma. Ou,
melhor, so de quem as ama e melhor as entende 7.
Mas o que uma banal verdade quando se fala dos gnios da imagi-
nao ou do pensamento, ainda parece um paradoxo quando aplicado aos
gnios religiosos. A Igreja reivindicou-os to bem como propriedade sua
que acabou criando em seu favor uma espcie de direito. Esse confisco
arbitrrio no pode durar eternamente. Para isso no se deve vir com
negaes ou distores: deixemos que as capelas contenham esttuas
ou relquias e, longe de diminuir os santos, faamos resplandecer sua
verdadeira grandeza.
Est na hora de dizer alguma coisa sobre as dificuldades do trabalho
que hoje apresentamos ao pblico. A histria abraa sempre uma parte
do real muito reduzida: quando inculta como uma historinha infantil
7
Eu me sinto to verdadeiramente possuidor do senso humano, precioso e eterno da catedral de Chartres
quanto os que so cnegos ou sacristes. Paul Desjardins, Bulletin de lUnion pour lAction morale; 1o
de maio de 1901.
So Francisco disse: Bonum quod ibi est [scil. in scriptis paganorum] non pertinet ad paganos, neque ad
aliquos homines, sed ad solum Deum cujus est omne bonum, 1Cel 82 [I.XXIX].

17
dos acontecimentos normais; quando douta faz pensar em um museu
organizado de acordo com as ltimas descobertas; em vez de apresentar
a natureza com os seus ns, a vida que se difunde, as misteriosas res-
sonncias do corao, oferece uma espcie de herbrio.
Se difcil contar um fato contemporneo e normal, muito mais di-
fcil descrever as grandes crises atravs das quais a humanidade inquieta
busca seu caminho.
O historiador tem que esquecer seu tempo e seu pas para tornar-se
contemporneo comovido e benvolo do que narra. Mas, se difcil
estruturar para si mesmo uma alma de grego ou de romano, infini-
tamente mais difcil adequar-se ao sculo XIII. Eu disse que, naquele
tempo, a Idade Mdia estava nos seus vinte anos; agora, so as prprias
recordaes dessa idade que passam a ser, se no as mais breves, pelos
menos as mais difceis de descrever. Todo mundo sabe que no pos-
svel lembrar as recordaes da juventude com a mesma nitidez dos da
infncia ou da idade madura. No h dvida de que podemos ter presentes
na memria os fatos exteriores, mas no vamos poder redescobrir suas
sensaes e sentimentos: as foras confusas que querem nos arrastar
trabalham todas juntas e, para usar a linguagem do outro lado do Reno,
o momento essencialmente fenomenal do fenmeno que ns somos.
Tudo se encontra em ns, mistura-se, choca-se em um conflito cruento:
um instante de ebriedade diablica ou divina. Passam alguns anos e
nada no mundo pode mais fazer-nos reviver aquelas horas. Onde havia
um vulco no vemos mais que um montinho de cinzas enegrecidas. De
tanto em tanto, um encontro, um som, uma palavra vm com dificuldade
despertar a memria e fazer com que dela brote um feixe de lembranas;
mas um momento passageiro. Mal olhamos e j todas as coisas voltam
para a sombra e o silncio.
Encontramos as mesmas dificuldades quando queremos considerar
os impulsos impetuosos do sculo XIII, suas inspiraes poticas, as
amorosas e castas vises, que emergem de um fundo de grosseria, de
misria, de corrupo e de loucura.
Os homens desse tempo tiveram todos os vcios, menos o da vulga-
ridade; todas as virtudes, menos a medida: eram bandidos ou santos.

18
A vida era to dura que matava todos os organismos dbeis, e as per-
sonalidades possuam uma energia desconhecida pelas pessoas de hoje.
A toda hora tinham que tomar cuidado com mil perigos, tomar decises
imprevisveis em que se arriscava a vida. Quando abrimos a Crnica de
Frei Salimbene, ficamos assustados ao ver que o lugar maior usado
para contar as expedies anuais de Parma contra as cidades vizinhas
ou destas contra Parma.
O que seria essa Crnica se, em vez de um frade de inteligncia aberta,
apaixonado pela msica, no momento justo joaquimita ardoroso, incan-
svel viajante, o autor tivesse sido um homem dedicado guerra? E no
tudo, essas guerras entre cidades eram agravadas pelas discrdias civis,
por peridicas conjuraes em que os conspiradores, se descobertos, eram
massacrados; ou, se triunfavam, matavam com crueldade ou exilavam 8.
Imaginemos tudo isso dominado pelas grandes lutas entre o papado e o
imprio, os hereges, os infiis, e entenderemos como difcil descrever
uma situao histrica dessas.
Com a imaginao obsessionada por espetculos terrveis ou delicio-
sos como os dos afrescos do Cemitrio de Pisa, estavam continuamente
pensando no cu e no inferno, e se informavam sobre isso com a mesma
curiosidade febril do imigrante que, na ponte do navio, passa os dias
imaginando o lugar da Amrica em que vai se estabelecer dentro de
alguns dias.
Todo monge de uma certa notoriedade a devia ter estado. O poema
de Dante no uma obra isolada; o monumento mais bonito de um
gnero que tinha suscitado uma centena de composies, e o Alighieri
s teve que coordenar e dar vida com o sopro do gnio e o trabalho de
que o tinha precedido. O desequilbrio das mentes era inimaginvel. A
curiosidade mals que est no fundo do corao humano e que empurra
os homens de hoje para buscar prazeres refinados e tambm perversos,
empurrava os daquele tempo para devoes que parecem um desafio ao
bom senso.

8
As crnicas de Orvieto (Archivio storico italiano, t. I de 1889, p. 7 ss.) no passam de uma lista, to triste
quanto fastidiosa, das guerras que se travaram, nos sculos XIIIe e XIV, todas as localidades da regio, das
maiores at as mais nfimas.

19
Os coraes nunca tinham sido abalados por semelhantes terrores,
nunca tinham sido levados a esperanas to radiosas. Os hinos mais belos
da liturgia, o Stabat Mater e o Dies Irae vm do sculo XIII, e podemos
dizer que o lamento humano nunca foi mais cheio de angstia.
Quando se percorre a histria para nela encontrar no narrativas de
batalhas nem sucesses de dinastias, mas para tentar captar a evoluo
das idias e dos sentimentos; principalmente quando procuramos sur-
preender o corao dos homens e das pocas, chegando ao sculo XIII,
percebemos que soprou um vento novo sobre o mundo: a lira humana
ficou com uma corda a mais, a mais baixa, a mais profunda, a que canta
dores e esperanas com que o mundo antigo nunca tinha vibrado.
s vezes parece que estamos ouvindo bater coraes femininos; tm
sentimentos refinados, inspiraes deliciosas com terrores absurdos,
cleras incrveis, crueldades infernais. Fraqueza e medo tornam-nos
pouco sinceros; tm idia do grande, do belo, do escuro, mas no conse-
guem ter a de ordem. Jejuam ou se empanturram; para eles totalmente
estranho o conceito de leis da natureza 9, to profundamente e impresso
em nossas mentes; os termos possvel e impossvel no tm significado.
Alguns se entregam a Deus, outros se vendem ao diabo, mas ningum
se acha to forte que possa andar sozinho, que possa no ter necessidade
de um pedao de roupa.
Povoada de espritos e de demnios, a natureza lhes parece animada
de uma maneira especial: diante dela sentem todas as emoes que uma
criana experimenta de noite diante das rvores que se levantam ao longo
do caminho e das formas indefinidas das rochas.
Infelizmente nossa lngua um instrumento muito imperfeito para
apresentar tudo isso: no nem musical nem flexvel. Desde o sculo
XVII passou a ser de acordo com o decoro guardar para si as prprias
emoes, e os velhos termos que serviam para denotar estados de nimo

9
Um asno no quer levantar-se e, cinco minutos depois, obedece: um milagre. Vida de Frei Egdio,
Crnica dos XXIV gerais. An. fr., t. III, p. 85.

20
foram, pouco a pouco, caindo no esquecimento. A Imitao de Cristo e
os Fioretti ficaram intraduzveis.
Alm disso, em uma histria como esta, preciso levar bem em conta
o gnio italiano: evidente que em um pas onde chamam uma capela
de baslica e uma casinha de palazzo, ou, falando com um seminarista
chamam-no de reverendo, as palavras no tm o mesmo valor que tm
aqui, deste lado dos Alpes.
Os italianos tm uma imaginao que aumenta e simplifica. Mais do
que captar a alma, vm as formas o contorno das pessoas e das coisas. O
que admiram em Miguel ngelo so os corpos gigantescos, as posies
nobres e altivas, enquanto ns captamos melhor os pensamentos secretos,
as dores ntimas, os gemidos e os suspiros.
Se apresentarem aos seus olhos uma tela de Rembrandt, na maior
parte das vezes ela lhes parecer feia, porque no d para captar toda
a sua flor com um olhar como nas de seus artistas. Para v-la preciso
examina-la, esforar-se, e l o esforo j o comeo da dor.
Por isso, no lhes peais que compreendam o pattico das coisas,
que se deixem arrebatar pela emoo misteriosa e quase fantstica que
os nimos setentrionais descobrem e saboreiam nas obras do mestre de
Amsterdam. Em vez de uma floresta, eles precisam de poucas rvores,
que se destaquem com nitidez no horizonte de uma multido fervente na
penumbra da realidade, alguns personagens, maiores do que o natural,
que formem grupos harmoniosos em um tempo ideal.
O gnio de um povo 10 no se divide: os processos que aplica nas
artes tambm so referidos histria. Enquanto o esprito germnico
considera com melhor boa vontade os acontecimentos em sua evoluo,
em seu complexo devir, o esprito italiano capta-os em um momento
determinado, sem dar importncia s sombras, s nuvens e aos vapores:

10
No devemos nos esquecer de que no sculo XIII a Itlia no era uma simples expresso geogrfica.
Entre todos os pases da Europa era aquele que, apesar de todas as divises, tinha a mais ntida conscincia
de sua unidade. A expresso profectus et honor Italiae aparece com frequncia na pena de Inocncio III.
Ver, por exemplo, a bula de 16 de abril de 1198, dirigida justamente aos assisienses.

21
tudo que torna a linha indecisa; pe em forte relevo os contornos, e as-
sim constri uma histria muito clara, alegria para os olhos, mas s um
smbolo do real.
Outras vezes chama um homem, faz com que saia da multido anni-
ma e, com um trabalho muitas vezes inconsciente, faz dele o tipo ideal
de uma poca 11.
certo que, em quase todos os povos, existe uma tendncia a ter uma
crte de divindades e heris, que so como encarnaes de seus instintos;
mas, em geral, isso pede o longo trabalho de sculos. O carter italiano
no admite essas lentides: logo que se reconhece em um homem, declara,
grita e, se for necessrio, faz com que ele entre na imortalidade ainda
vivo. Ento a lenda quase se confunde com a histria e fica muito difcil
fazer os homens voltarem a suas verdadeiras dimenses.
Por isso, no se deve pedir muito da histria. Quanto mais bonita
uma aurora, mais difcil descrev-la.
As coisas mais bonitas da natureza, a flor, a borboleta, s devem ser
tocadas por mos delicadas. Por isso, o esforo para indicar as cores
variveis e mutveis que formam a atmosfera em que So Francisco
viveu s obtm um resultado muito incerto: talvez seja muita presuno
tentar isso.
Por sorte, j no estamos mais no tempo em que os historiadores acha-
vam que tinham feito um trabalho racional quando conseguiam colocar
tudo dentro das medidas, limitando-se a negar ou a omitir na vida dos
heris da humanidade o que supera o nvel de nossa experincia comum.
evidente que So Francisco no encontrou na estrada de Sena trs
virgens puras e doces vindas do cu para sada-lo, e que o diabo no
sacudiu as rochas para assusta-lo; mas, quando negamos essas vises e

11
Ver o que os Fioretti sobre Frei Bernardo: Stava solo sulle cime dei monti altissimi contemplando le cose
celesti, Fior. 28. O sbio historiador de Assis, M. Cristofani, tem frases semelhantes; falando de So Francisco,
diz: Nuovo Christo in somma e per degno dessere riguardato come la pi gigantesca, la pi splendida, la
pi cara tra le grandi figure campeggianti nellaere del medio evo (Storia dAssisi, t. I, p. 70, ed. de 1885).

22
essas aparies, somos vtimas de um erro talvez mais grave do que o
dos que as afirmam.
Na primeira vez em que fui a Assis, cheguei bem de noite. Era junho.
Quando o sol apareceu, inundando tudo de luz e calor, a antiga Baslica 12
pareceu mexer-se de repente, como se quisesse falar e cantar. Os afrescos
de Giotto, pouco antes invisveis, animavam-se com uma luz estranha;
parecia que tinham sido feitos um dia antes tanta era sua plenitude de
vida; tudo se movia, sem nada de desajeitado nem de cortante.
Voltei seis meses depois. No meio da nave, tinham levantado um
andaime; l em cima, um crtico de arte examinava as pinturas e, como
estava escuro, projetava nas paredes os raios de um refletor. Viam-se,
ento, braos ressaltados, rostos fazendo caretas sem unidade, sem har-
monia. As figuras mais deliciosas assumiam algo de bizarro, de grotesco.
Ele desceu triunfante com uma pasta cheia de esboos: aqui havia um
p, ali um msculo, mais para c um pedao de rosto; e eu no podia
deixar de pensar nos afrescos como os tinha visto inundados de sol.
O sol e a lmpada enganam, transformam o que nos fazem ver; mas,
se para dizer tudo, eu prefiro os enganos do sol.
A histria uma paisagem e muda continuamente como as da nature-
za. Duas pessoas que a contemplam ao mesmo tempo no sentem nela a
mesma atrao, e vs mesmos, se tivsseis a oportunidade de t-la diante
dos olhos continuamente, no a vereis igual duas vezes. As linhas gerais
se mantm, mas basta uma nuvem para esconder as mais importantes,
como basta um jogo de luz para fazer emergir este ou aquele detalhe,
conferindo-lhe um valor ilusrio.
Quando comecei esta pgina, o sol estava desaparecendo por trs das
runas do castelo de Crussol e os esplendores do ocaso davam-lhe uma

12
Nesse tempo, ficava aberta a noite inteira.

23
aurola radiante. A luz inundava tudo, mas no se via mais o sinal dos
estragos causados pela guerra na velha propriedade feudal.

Eu fiquei olhando, fazendo de conta que aparecia na janela o perfil


da castel... mas chegou o crepsculo e, agora, s esto l pedaos de
muros que desabam, um torreo sem coroa, runas e estragos que pare-
cem implorar piedade.

isso que acontece com as paisagens da histria. Os espritos mes-


quinhos no se satisfazem com estas transformaes ininterruptas:
querem uma histria objetiva em que o autor estude os povos como
o qumico analisa os corpos. E certamente possvel que haja, para a
evoluo histrica e para as transformaes sociais, leis exatas, pare-
cidas com as das combinaes qumicas. Mas precisamos esperar que
se chegue a descobri-las; por enquanto, no existe verdade puramente
objetiva na histria 13.

Para escrever a histria preciso pens-la,e portanto transforma-la.


verdade que, de alguns anos para c, achamos que encontramos o
segredo da objetividade publicando os documentos originais. Isso um
verdadeiro progresso, que presta servios inestimveis, mas no podemos
nos iludir sobre o seu alcance. Em geral, no d para publicar todos os
documentos relativos a uma poca ou a um acontecimento; preciso
fazer uma escolha, onde se revelar, com certeza, o modo de pensar de
quem a fizer. Admitamos que publiquem tudo que se encontra: em geral
os movimentos mais originais so os menos documentados. Vejamos,
por exemplo, a histria da Idade Mdia; j muito delicado colecionar
documentos oficiais, bulas, breves, cnones conciliares, constituies
monsticas, etc., mas ser que eles contm toda a vida da Igreja? Eu
acho que os movimentos que agitam surdamente as massas so muito
mais importantes, ainda que no haja mais do que raros fragmentos para

13
V. Delehaye, Lgendes hagiographiques, p. 14-18.

24
dar testemunho deles 14.

Pobres hereges! No s foram presos e queimados: queimaram os


seus livros com tudo que falava deles, e mais de um historiador, encon-
trando com dificuldade vestgios em montes de documentos, esquece
esses profetas de vises terrveis, esses monges poetas que, do fundo da
priso, sacudiam o mundo e faziam o papado tremer.
Por isso, a histria objetiva uma utopia. Ns criamos Deus nossa
semelhana e por isso deixamos a marca de nossa personalidade justa-
mente onde parece que ela est menos presente.
Mas, de tanto falar no tribunal da histria, fizeram com que a maior
parte dos autores acreditassem que tm para consigo mesmos e para com
os leitores a obrigao de formular julgamentos definitivos e imutveis.
sempre mais fcil emitir uma sentena do que saber esperar, sus-
pender o juizo e examinar a fundo. A multido, que deixou o seu sossego
para assistir um julgamento, fica quase sempre irada com os juizes que
adiam a causa para que se faam mais pesquisas. Sua mentalidade feita
de tal maneira que pedem preciso nas coisas que menos a suportam;
como os meninos, ela interroga ao acaso; quem se mostra hesitante ou
demorado perde sua estima e, obviamente, no passa de um ignorante.

14
Hoje, todo mundo est mais ou menos de acordo, e isso muito bom, por reconhecer que os documentos
diplomticos so a fonte histrica por excelncia e, entretanto, mesmo depois que a autenticidade de uma
carta foi demonstrada, preciso examinar, pesar, apreciar. Encontramos bulas que confirmam a mosteiros
bens que eles j no possuem, que alienaram. Um historiador que confiasse absolutamente nesses documentos
correria o risco de cometer verdadeiros erros, como os numismatas que viro dentro de alguns sculos se
imaginarem que Carlos-Alberto foi rei de Chipre e de Jerusalm.
Permitam-me citar aqui um diplomatista de profisso. Diz dit M. A. Giry em seu excelente manual (p.
17), Nesta temos uma bula-edital de Celestino III (Jaff, Regesta, 29 d.,1637), de 16 de maro de 1192,
renovando os privilgios j confirmados para a casa de So Lzaro em Paris por Inocncio II, Eugnio III
e Alexandre III. Esse documento contm, entre outras coisas, a confirmao da propriedade da feira de
Todos os Santos, que feita todos os anos, durante oito horas na cabeceira da igreja de So Lzaro, com
proibio a quem quer que seja de a transferir. Ora, a feira tinha sido prolongada de oito a quinze dias pelo
rei Lus VII em 1166 (Luchaire, tudes sur les Actes de Louis VII, catal. n 526), comprada da igreja de So
Lzaro em 1181 por Filipe Augusto e transferida para Champeaux (Delisle, Catalogue des actes de Philippe-
Auguste, n 27). Por isso no h nenhum termo exato na disposio da bula de Celestino III relativa a essa
feira: em 1192 a feira de So Lzaro no pertencia mais casa So Lzaro, durava mais de oito horas e no
era feita junto da igreja. Cf. ibid., p. 321.

25
Mas pode acontecer que, acima dos areopagitas, obrigados por seu
cargo a pronunciar sentenas, haja um lugar no famoso tribunal para um
simples espectador, que l entrou por acaso. Ele ajuntou uma documen-
tao e quer contar vontade a sua opinio aos vizinhos.

Por isso, esta no uma histria ad probandum, para usar a antiga


frmula. E eu no quis dar ao leitor um instante de distrao: seria
interpretar mal o meu pensamento. Em todos os grandes espetculos
histricos, como nos naturais, h algo de divino de onde escapa uma
fora que pacifica e encoraja ao mesmo tempo as mentes e os coraes;
entra-se em comunho com a humanidade, experimentamos salutarmente
a nossa pequenez, e, vendo quanto de bonito e de triste h no passado,
aprendemos a julgar melhor o momento atual.

Em um dos afrescos da igreja superior de Assis, Giotto representou


Santa Clara e suas companheiras saindo em lgrimas de So Damio para
beijar o cadver de seu pai espiritual, que estava sendo levado para a
ltima morada. Com uma licena toda artstica, fez da capela uma igreja
rica, coberta de mrmores preciosos.

Por sorte, o verdadeiro So Damio ainda existe, aninhado aos ps


de umas poucas oliveiras, como uma andorinha nas giestas; tem ainda
os seus pobres muros de pedras irregulares, parecidos com as muretas
dos campos vizinhos. Qual dos dois mais bonito, o templo ideal ima-
ginado pelo artista ou a pobre capela da realidade? Nenhum corao tem
dvidas na escolha!

Os historiadores oficiais de So Francisco fizeram com sua biografia o


que Giotto tinha feito com o pequeno santurio: por isso que, na maior
parte das vezes prestaram-lhe um mau servio. Os embelezamentos
fizeram esquecer o verdadeiro So Francisco, infinitamente mais belo.
Os autores eclesisticos cometem o grande erro, pelo menos o que
parece, de elaborar desse modo a vida dos seus heris, fazendo aparecer
s os fatos edificantes. Assim do oportunidade at aos mais devotos de
suspeitar de seu testemunho.
De tanto envolver os santos em luz, fazem deles seres acima do hu-

26
mano, sem nada em comum conosco. So privilegiados marcados com
o selo de Deus. So vasos escolhidos, como repetem as ladainhas, em
que Deus derramou os mais delicados perfumes. Sua santidade tornou-se
manifesta, quase contra a vontade deles, e nasceram santos, como outros
nascem reis ou escravos. Sua existncia ressalta no fundo dourado dos
trpticos e no sobre o fundo escuro da realidade 15.
Fazendo isso, possvel que os santos ganhem um pouco mais de
respeito diante das pessoas supersticiosas; mas sua vida perde algo de
sua virtude e de sua fora comunicativa. Se nos esquecermos de que
foram pessoas como ns, no vamos mais ouvir em nosso ntimo: Vai
e faze a mesma coisa.
Por isso uma obra devota buscar a histria por trs da legenda. Ser
que presumir demais se pedirmos aos leitores o esforo de entender o
sculo XIII e de entender So Francisco? Ficariam amplamente recom-
pensados e logo encontrariam um fascnio inesperado nas paisagens muito
tnues, nas almas sem corpo, nas imaginaes doentias que esto para
desfilar diante de seus olhos. O amor a verdadeira chave da histria.
Um livro sempre tem muitos autores. Por isso, as pginas que seguem
devem muito s pesquisas dos outros. Eu me esforcei, nas notas, por
sublinhar toda a importncia desses dbitos.
Tambm tive outros colaboradores a quem vai ser mais difcil expres-
sar minha gratido. Falo dos encarregados das bibliotecas italianas e de
todos que deles dependem. No conseguiria dar todos os seus nomes,
pois conheo melhor os rostos, que os nomes, mas quero dizer, aqui, que
durante os longos meses passados nas diversas colees da Pennsula.
Todos, at os funcionrios mais humildes, foram de uma cortesia sem
limites, mesmo nos perodos em que o pessoal era reduzidssimo.
O professor Leto Alessandri que, mal recuperado de uma forte gripe,

15
Hic vir... divinis charismatibus praeventus est clementer. 1a Ant. Do 1o noturno in festo b. Francisci... quem
Pater misericordiarum et luminum in tam larga dulcedinis benedictione praevenit. Legenda menor. lectio I.

27
quis me guiar pelos arquivos de Assis, tem direito a uma recordao par-
ticular. O prefeito e o municpio dessa cidade queiram receber tambm
eles a expresso de meu reconhecimento.
No poderia terminar sem mandar uma comovida recordao aos
filhos espirituais de So Francisco espalhados pelas montanhas umbras
e toscanas.
Queridos moradores de So Damio, da Porcincula, dos Crceri,
do Alverne, de Fonte Colombo, provvel que vos recordeis daquele
peregrino estranho que, sem ter nem hbito nem cordo, vos falava do
Pai Serfico com tanto amor quanto o mais devoto franciscano. Era um
espanto ver a paixo que o levava a ver tudo, a espiar tudo, a correr ao
longo de picadas inexploradas. Quisestes det-lo, repetindo que nas grutas
longnquas para onde ele vos arrastava, no havia a menor relquia nem a
mais insignificante indulgncia. Mas, no fim, o jeito era segui-lo, pensan-
do que s os franceses podem ter uma devoo to ardente e indiscreta.
Obrigado, devotos eremitas de Grcio, obrigado pelo po que fostes
mendigar quando eu cheguei ao eremitrio, tremendo de frio e esfomeado.
Se lerdes estas linhas, quero que nelas encontreis a gratido e tambm
um pouco de admirao. No sois todos santos mas tendes, quase todos,
momentos de santidade. De impulsos de puro amor.
Por isso, se alguma pgina deste livro vos desagradar, virai-a depressa.
Deixai-me pensar que outras vos agradaro e vos tornaro ainda mais
precioso, se possvel, o nome que trazeis.

Paul Sabatier

28
Prefcio
(1918)

No estamos publicando hoje uma obra nova: o mesmo texto das


edies anteriores, revisto e melhorado aqui e ali, e no qual introduzimos
o captulo sobre Honrio III e a Indulgncia da Porcincula, publicado
parte havia muito tempo.
A nica mudana que vai chamar imediatamente a ateno dos que
conhecem as edies precedentes a introduo, antes da cada captulo,
de duas pginas que contm principalmente passagens do Antigo e do
Novo Testamento.
Naturalmente precisamos avisar nossos leitores sobre o papel que vo
ter, no estudo da vida de So Francisco, essas citaes que, primeira
vista, podem parecer algo fora de lugar, porque no tm seno uma li-
gao longinqua com o texto.
Os que nos lem so, em geral, ou pessoas de uma piedade elevada,
que querem entrar em comunho de esprito e de corao com um dos
homens cuja irradiao no parou de se fazer sentir h tantos sculos
sobre a Igreja crist, e cuja mensagem, nestas horas de doloroso parto,
poderia tornar-se o programa de uma profunda renovao; ou ento so
espritos racionalistas, talvez estranhos s preocupaes religiosas mas
vidos de conhecer, de compreender at o fundo aqueles que so mais
difrentes deles e que exerceram uma inegvel influncia sobre o corao
da humanidade.

29
Tanto para uns como para outros, o que mais importa poder penetrar
na intimidade da conscincia de So Francisco, tornar-se testemunhas
simpticos da ecloso de seu pensamento, encontrar suas raizes e poder
contemplar seu desenvolvimento.
Ora, ns conhecemos tudo isso. Estamos amplamente informados
sobre esse assunto, seja pelo prprio So Francisco, seja pelas narrativas
de Frei Leo de Assis, o confidente fiel de seu pensamento, que a ele
sobreviveu durante quarenta anos e se consagrou a manter viva a figura
histrica de seu mestre.
O que sai dessa dupla fonte, que, por assim dizer, no mais do que
uma, tanto o discpulo se nutrira do pensamento daquele a quem tinha
dado sua admirao e sua f e isso brota tambm de todos os outros tes-
temunhos, que So Francisco foi essencialmente um vir catholicus
ou evangelicus ou apostolicus, expresses que tm, todas, um sentido
bem prximo e resumem a formao intelectual, moral, religiosa de
nosso santo, tanto quanto seu programa, que procede essencialmente do
Evangelho, da Bblia e de toda a tradio 1.
Ele foi um autodidata, e o primeiro em seu Testamento, a reivindicar
altamente esse carter: Ningum me mostrava o que eu tinha que fazer,
mas o prprio Altssimo me revelou que eu devia viver segundo a Regra
do Evangelho 2; mas se no lhe veio a idia de perguntar autoridade
eclesistica, do jeito que ele a via ao seu redor, o programa de uma
reforma religiosa que se tornara urgente e que ela no tinha sabido ou
podido realizar, ele tambm no pensou em se dirigir a qualquer outra
Igreja, ou qualquer uma das seitas que pululavam nesse tempo at nas
mais humildes cidades da Itlia.
Ele foi filho da Igreja, mais e melhor do que ningum no seu tempo,
porque em vez de enxergar na f como tantos outros apenas a obe-
dincia disciplinar s ordens da hierarquia, ou uma submisso fsica em

1
Os antigos retratos de So Francisco representam-no quase sempre segurando um livro. O da baslica
de Assis est aberto e se pode ler: Si vis perfectus esse vade et vende omnia qure habes et da pauperibus.
2
Ver no cap. XXI o texto integral desse documento.

30
que a vontade, a inteligncia e o corao no entrariam -toa, ele vivi-
ficou sua submisso, fortificou-a, exaltou-a por um incomparvel amor.
Sua originalidade foi ser, antes de tudo, poeta e artista, tomando essas
palavras em seu sentido mais elevado; ele sentia a vida, adivinhava-a
por toda parte, e o maravilhoso sucesso de seu apostolado foi de a fazer
desabrochar em seus passos. tambm desse ponto de vista que preciso
julgar seus sentimentos diante da Igreja. Ele no separava a presente da
do passado e do futuro. Para ele, ela era o cortejo eterno que, partindo
do caos inicial, sobe para a verdade, a justia e o amor, retida sem cessar
mas nunca aniquilada. O pensamento de se separar desse cortejo no
podia apresentar-se ao seu esprito: um bom cidado no se expatria, a
pretexto de que o governo de seu pas no cumpre sua misso. Os perigos
que ameaam so sinal, para ele, no da emigrao mas do devotamento
e do sacrifcio.
A tradio, que mostra So Francisco sustentando as colunas da Igreja
que ameaava ruir, corresponde realidade histrica. Foi o pobrezinho
de Deus que impediu a barca de Pedro de Soobrar.
A confiana absoluta que ele tinha na Igreja estava apoiada em seu
conhecimento vivo e aprofundado dos livros santos e da liturgia. Algumas
das legendas franciscanas, por uma desastrada tendncia a amplificar
o papel do sobrenatural em sua vida, pintaram-no como se no tivesse
uma elevada formao intelectual: certo que ele se manteve estranho
ao ensinamento teolgico do tempo, mas se o seu conhecimento da B-
blia muito diferente do que tinham seus contemporneos, no menos
profundo 3.

3
A essa afirmao poderamos opor uma passagem de Frei Jordo de Jano, dizendo, a propsito da Regra
de 1221: O Bem-aventurado Francisco, vendo que Frei Cesrio tinha um conhecimento aprofundado das
Santas Esacrituras, encarregou-o de ornar e completar com passagens da Escritura a regra que ele mesmo
tinha redigido muito simplesmente.
A obra de Frei Jordo est bem na primeira fila das fontes franciscanas, mas haveria alguma razo para
lhe atribuir uma espcie de inerrncia, como dizem os telogos? Parece-me que no. Ns podemos admitir
muito bem que Frei Cesrio teve algum papel na preparao da Regra de 1221, mas os pontos determinados
que Jordo d aqui so inconciliveis com o que demonstrado pelo estudo dos escritos de So Francisco
que foram compostos em momentos em que Frei Cesrio estava bem longe dele. O prprio exame da Regra

31
Ele no tinha procurado a argumentos teolgicos, mas a histria
eterna do povo de Deus, dos exemplos cujo contacto seu temperamento
de poeta e de cavaleiro se exaltava, e principalmente os conselhos e as
direes em que ele se aplicava.

Foi evidentemente na recitao dos ofcios e em uma ardente participa-


o em todos os ritos sagrados que ele tinha colocado seu conhecimento
da Bblia e dos Padres. Para ele, o calendrio eclesistico, que ainda
no estava carregado de tantas festas que dissumularam suas grandes
linhas era o programa de uma espcie de drama, em que cada ano re-
corda a histria do mundo, desde a criao at a consumao dos tempos.
E esse drama ele vivia com seu corao de crente, sua imaginao de
poeta, seu el de martir, para compreende-lo, atravessar seu mistrio,
buscar foras para encontrar um lugar humilde para ele tambm, para
a exercer seu papel.

Por isso, foi com toda a sua alma que ele tinha tomado posse do que
h de mais impressionante e mais humano na tradio crist. Ele tinha
se assimilado, tinha feito dela o seu alimento. Na verdade, esse conhe-
cimento que Francisco tinha do que ento se chamava de santas letras,
era bem diferente da formao dada nas escolas religiosas de seu tempo,
e foi por isso que se teve o direito de trat-lo como um genial inspirado
quase sem cultura. Mas basta ler suas obras para ver quanto, mesmo
ficando estranho formao escolstica de sua poca, ele se colocou
sob a influncia direta, constante, da Bblia e da vida ao mesmo tempo
real e ideal da Igreja.

de 1221 demonstra o erro de Frei Jordo. Para que ele pudesse ter razo, seria necessrio que o texto dos
preceitos da Regra pudesse ser destacado das passagens que lhe servem de garantia e de autoridade; ora
essa separao impossvel. O preceito brota da citao, faz com ela um s corpo; no poderiam existir
independentemente.
No podemos pensar em abrir aqui um longo estudo da Regra de 1221; o que acabamos de dizer suficiente
para explicar brevemente as razes pelas quais eu me separo, sem a menor hesitao, de vrios sbios crticos
que pintaram So Francisco como algum que s tinha uma cultura bblica elementar. Esse erro, que levou a
tantos outros, nasce simplesmente de terem estudado o Poverello sobretudo na primeira legenda de Celano,
esquecendo as obras do Santo, que so a fonte por excelncia.

32
Ora, as palavras, as imagens, os cantos, os poemas, todos os quadros
histricos, morais ou literrios que alimentaram inicialmente os senti-
mentos de Francisco, depois suas reflexes, e que enfim se impuseram
a ele para o dirigir, ns os possumos ainda tais como ele os viveu e
contemplou.

Se, para compreender sua personalidade, preciso ir a Assis e viver


nessa mbria de quem ele foi o filho mais caracterstico, ainda melhor
conhecer o horizonte religioso em cujo centro ele nasceu, rever os picos
para os quais ele marchou com um ardor, uma simplicidade, um heroismo
que nunca pararam de maravilhar o mundo.

Esses cumes so as montanhas eternas de que fala a Bblia, mas se


quisermos ficar na verdade histrica, preciso v-los como ele o viveu
e contemplou do seu ponto de vista.

Agora o leitor sabe porque vai encontrar no comeo de cada captulo


uma escolha de passagens que foram de fato o vitico quotidiano do
profeta da mbria.

Para comear, eles so citados de acordo com o texto da Vulgata,


porque foi nessa forma que ele os conheceu e cantou; ora, aqueles que,
como Francisco, esto habituados a esse texto, sabem que, se ele tem
alguns erros de traduo, tambm tem uma riqueza sentimental e histrica
que as tradues mais modernas e as mais cientficas esto bem longe de
possuir. H velhos textos como h velhas igrejas. Estas no receberam
mais uno a que suas irms que vieram depois, mas o visitante percebe
a indefinvel superioridade da mais humilde capela onde, h sculos, as
pessoas choraram e rezaram, sonharam com a vida ideal e de imolao;
a lenta e contnua consagrao do povo juntou-se a do rito pontifical.

Ora, foi pela Vulgata que a Igreja crist tomou posse do esforo re-
ligioso de Israel e da mensagem evanglica. A cincia tem o direito, e
at o dever, de perceber os erros de traduo de So Jernimo e de seus
colaboradores, mas se ela pretendesse acabar com a Vulgata por causa

33
desses erros, cometeria uma falta de gosto que alguns padres da roa,
que abandonam a venervel igreja, empoleirada l em cima, do sculo
XII, no p da colina, por uma nova construo.

Os sculos conferiram Vulgata uma consagrao que no certa-


mente de ordem cientfica, mas certo que seria muito pouco cientfico
no o constatar. Seu texto, fora de carrear as emoes mais profundas
da humanidade ocidental, impregnou-se dela. So as dores, os entusias-
mos, as esperanas, que ns revivemos no seu latim sonoro, e ao reviv-
los, cada nova gerao consagra-os de novo. Mas essa con-sagrao nova
nunca uma repetio pura e simples, ela completa o passado ou para
usar a palavra da lngua religiosa, que por si mesma germe de toda uma
filosofia completa-a; um degrau novo da escada misteriosa que liga
a terra ao cu, ou melhor o trabalho no perceptvel aos sentidos, mas
contnuo, que elabora sem cessar na rvore das seivas sempre antigas e
sempre novas.

O velho de hoje, que antes de morrer reune os filhos para abeno-


los, repete o gesto de Jac; esse gesto o mensageiro de bnos ricas
como as de Jac mas diferentes. Os que sabem pesar os imponderveis e
discernir as coisas invisveis percebem, entre a bno atual e a do velho
patriarca, a srie ininterrupta de pais, que so os nossos, e que, chegados
s portas da morte, fizeram um ato de f na vida, deixando-nos assim uma
herana espiritual, qual nenhum bem temporal poderia ser comparado.

Os nossos leitores que acompanham a exegese e estiverem habituados


a recorrer sem cessar, com justa razo, ao original hebraico ou grego,
talvez fiquem admirados com a traduo francesa das passagens citadas:
ns repetimos os erros da Vulgata.

As explicaes que acabamos de dar vo ajud-los a compreender a


razo verdadeiramente de sadia crtica desse mtodo. Ns at fomos
mais longe e, de propsito, algumas vezes at ultrapassamos as liberdades
tomadas por So Jernimo com o sentido original dos textos, para lhes dar
o sentido novo que a tradio posterior ou que So Francisco lhes deram.

34
Para ele a Bblia a fonte espiritual que brota para a vida eterna 4:
pedindo-lhe luz e fora, a idia de determinar sua origem cientfica no
passava por sua cabea do mesmo jeito que um viajante que atravessou
e deserto e chega a um osis nem pensa em mandar analisar a gua,
finalmente encontrada, antes de matar a sede.

Alm disso, como todos os crentes de seu tempo, ele viu no Antigo
Testamento no s uma preparao histrica para o Novo, mas sua prefi-
gurao: a sara ardente de onde sai a voz que fala com Moiss prefigura
a virgindade de Maria, Me de Jesus, e a promessa de um Redentor; a
passagem do mar Vermelho prefigura o batismo de Cristo; a oferta de
Melquisedeque, a instituio da Eucaristia; a venda de Jos, a traio
de Judas; o sacrifcio de Abrao, a morte de Cristo, e assim por diante.
Era atravs desses mtodos de interpretao, que j eram constantes em
So Paulo, que So Francisco meditava as Santas Escrituras. Por uma
tendncia anloga, e que no menos frequente entre os cristos, e apli-
cava a si mesmo certas passagens, encontrando nelas no s exortaes
morais que devia usar como todos os crentes mas estava habituado a ver
a uma profecia e uma prefigurao de sua misso.
Para ele, a doao que lhe fizeram da igrejinha da Porcincula era ao
mesmo tempo o resultado e a prova do plano eterno de Deus a respeito dos
Pobres do Senhor. Os que tinham dado esse nome humilde capela tinham
sido movidos, sem o saber, pelo Esprito Santo: eles tinham profetizado
a vinda dos frades menores, e a criao dessa nova famlia encontrava
os ttulos de sua misso na existncia e na obteno do santurio 5.
Quando os frades o aconselhavam a imitar os superiores de todas as
Ordens e a obter privilgios especiais da cria romana, ele respondia
sorrindo que nenhuma famlia religiosa tinha privilgios comparveis ao
que os frades menores tinham recebido do prprio Jesus, porque ele se

4
Jesus disse Samaritana: Quem beber desta gua (do poo de Jac) ainda vai continuar a ter
sede, mas quem beber da gua que eu lhe darei nunca mais ter sede, porque esta gua que lhe
darei vai se tornar em seu corao uma fonte que brotar e o far viver eternamente. Jo 4, 13-14.
5
V. Speculum Perfectionis, 55 (Collection, t. I, p. 97, I. 1-8) Cf. 2Cel 1,12.

35
constituiu como seu grande profeta e lhes deu seu nome, quando disse: O
que fizestes a um desses meus irmos menores, foi a mim que fizestes 6.
Vemos com que tranquila segurana Francisco se apropriava da B-
blia. Temos que imaginar essa apropriao em seu sentido mais realista:
todos os crentes procuram tirar proveito dos livros sacros e da tradio
eclesistica, e a encontram lies que aplicam a si mesmos, mas ele ia
muito mais longe: esse homem que tinha renunciado a todo bem tem-
poral recuperava sua vantagem nos bens espirituais. Via a Bblia como
um domnio divino, em cuja posse ele tinha entrado por direito devido a
seus esponsais com a pobreza. A Bblia e suas promessas eram para ele
e para sua famlia espiritual como uma herana especial, preparada de
sculo em sculo pelos Patriarcas e os Profetas, pelo Cristo e seus disc-
pulos, por aqueles que, no fim dos tempos 7, captariam em sua plenitude
a misso dos tempos novos e se ofereceriam para viv-la e realiz-la.
No poderemos compreender nada de So Francisco, de seus esforos,
de sua f, de suas dores, se no penetrarmos nas disposies completa-
mente especiais com que ele sondava as Escrituras. Para todos os cristos
elas so o livro de Deus; para ele elas eram mais uma coisa: era o livro
em que o prprio Jesus tinha anunciado e preparado, alm do Pentecostes
apostlico, o Pentecostes da mbria 8.

6
Trata-se da cena do julgamento final como contada no evangelho segundo So Mateus, 25, 34-45:
Ento o rei dir aos que estiverem sua direita: Vinde, benditos de meu Pai, tomai posse do reino que vos
foi preparado desde a fundao do mundo, porque eu estava com fome e me destes de comer; eu estava com
sede e me destes de beber; eu era um estrangeiro e me destes hospitalidade; eu estava nu e vs me vestistes;
eu estava doente e vs cuidastes de mim; eu estava na cadeia e vs me socorrestes. E ento os justos lhe
respondero dizendo: Senhor, quando foi que vos vimos passar fome e vos demos de comer? ter sede, e
vos demos de beber?... E o rei lhes responder: Na verdade eu vos digo, quando fizestes essas coisas a um
dos meus irmos menores foi a mim que o fizestes. Ver Speculum Perfectionis 26 (Collection, t. I, p. 51,
I. 18 ss.). Cf. 2Cel 3,17 (II, 41). As edies atuais da Vulgata do para o versculo 40 o texto seguinte: Et
respondens rex, dicet illis: Amen dico vobis, quamdiu fecistis uni ex fratribus meis minimis, mihi fecistis,
mas bem possvel que no sculo XIII, estivesse a a palavra minoribus. Seria muita ousadia comear aqui
uma discusso aprofundada sobre isso, tanto mais que no versculo 45 as edies atuais tm: Amen dico
vobis, quamdiu non fecistis uni de MINORIBUS HIS, nec mihi fecistis.
7
A expresso jonica in hac novissima hora constante nos escritos de So Francisco e em todos
os escritores religiosos de sua poca.
8
Ver 2Cel 3, 93 (II, 116).

36
A questo de saber se ele estava certo ou errado pode se impor para o
moralista ou para o telogo, mas no existe para o historiador, cujo papel
constatar a realidade, enxerg-la bem e no a julgar. Ora, incontes-
tvel, para ele, que na Bblia e na tradio litrgica da Igreja que So
Francisco encontrou inicialmente o chamado para a vida ideal pela qual
ele suspirava instintivamente, depois tambm as direes que ele buscou
realizar mais tarde, os exemplos e ensinamentos que o sustentaram na
luta, em fim as palavras que nas horas de angstia preservaram-no da
desesperana final.
Para as pessoas de hoje imagin-lo aplicando si mesmo as palavras
do Salmo 39 (40) 9:
Tunc dixi: Ecce venio,
In capite libri scriptum est de me,
ut facerem voluntatem tuam.
Deus meus, volui,
et legem tuam in medio cordis mei.

Mas essa dificuldade devida sobretudo ao fato de se ter tornado di-


fcil entender um homem que expulsou de seu corao todos os instintos
egostas e os substituiu pelo amor e pela paixo do divino.
Seguro da sinceridade de sua converso, ele se sentia porque se en-
tregara sem restrio nem reserva a Deus, a Cristo e Igreja no direito
de contar com a realizao literal e absoluta de todas as promessas de
Deus. Tambm sua alma cndida acreditava, durante as longas viglias
em que ele se preparava para o assalto s fortalezas do mal, perceber
o dilogo do Pai celeste e de seu Filho. Jesus intercedia dizendo: Pai,
dignai-vos nesta hora suprema me formar e me dar um povo todo novo
e todo humilde; um povo que por sua humildade e por sua pobreza seja
bem diferente de todos que o procederam, que nunca queira ter outro
chefe seno eu.

9
Ento eu disse: Eis-me aqui, Senhor, (porque na cabea do livro fala-se de mim), para fazer vossa vontade.
Meu Deus, eu obedeci, e eu coloquei vossa lei no fundo de meu corao.

37
E Deus respondia: Meu Filho, seu pedido vai ser atendido.
Nenhuma dvida vinha deter as foras que lhe conferiam essas vises
de poeta; porque esse povo de Deus, essa famlia de pobres frades
menores tinha sido expressamente profetizada, nomeada, caracterizada
no Evangelho, e Jesus tinha tido o cuidado de a premunir contra todo
desencorajamento, quando disse: No temas, pequeno rebanho, porque
aprouve ao Pai dar-te o Reino 10.
Alguns de seus bigrafos mesmo primitivos pensaram que estavam
exaltando sua misso ao mostr-lo, nos instantes definitivos, abrindo a
Bblia ou os Evangelhos ao acaso, para encontrar na primeira linha que
lhe casse sob os olhos a resposta providencial a suas questes. bem
possvel que, em certos casos, em que se tratava de tomar decises sem
importncia, ele tenha recorrido a esse sorteio de uma passagem do
Evangelho, meio muito popular naquele tempo, ainda que fosse conde-
nado por Santo Agostinho e diversos conclios 11. Mas seria enganar-se
completamente sobre a unidade e a coerncia de seu pensamento imaginar
que tais meios tenham tido algum papel essencial em seus atos.
O que ele considerou como sua misso foi retomar e continuar a obra
de Cristo pela pregao, e principalmente pela prtica da pobreza. Foi
nesse ponto de vista que ele tomou posse da Bblia, cada dia mais com-
pletamente, e nela se alimentou. Ele sabia onde estava indo. O que ele
pedia a suas novas meditaes no era mais do que o po de cada dia;
e ele o encontrava em superabundncia, porque seu olho cada vez mais
experimentado percebia muitas vezes o alimento espiritual onde tantas
outras pessoas s teriam visto pedras.

***

10
Speculum Perfectionis 26 (Collection, t. I, p. 51, I. 16 ss.).
Ver o artigo bem documentado que Ducange em seu Glossarium consagra s Sortes Sanctorum.
11

Sors 2.

38
Eu sei muito bem que espritos rabugentos podero sorrir diante de
todas as passagens que foram agrupadas no comeo de cada captulo;
podemos ve-los balanando a cabea e murmurando: Isso no nada
cientfico.
E tero muita razo, porque isso no cientfico no sentido que al-
gumas pessoas aplicam a essa palavra. Mas se a histria for diferente de
uma arqueologia, diferente do conhecimento material de alguma maneira,
de um passado morto, se ela for, ao contrrio, a tomada de posse de uma
poca ou da vida de um homem por aquilo que tem de mais vivo em
ns, se ela for um esforo de todo o ser para reviver o passado em sua
complexidade, para conhecer e para rever os caracteres exteriores, e
principalmente para sondar a conscincia, para continuar a marcha, para
ressuscitar a atividade e enfim sentir que em tudo isso j est o que ns
vivemos, ento essas passagens tm um papel histrico.
De alguma maneira, elas somo como que o preldio de uma obra
musical: elas a resumem e explicam.
Por isso esperamos que os leitores queiram no apenas l-las com
ateno, em latim ou na traduo, mas faam um esforo para reencontrar
as disposies intelectuais e morais em que So Francisco as meditava.
Se eu me dirgisse a profissionais da crtica ou da teologia, acrescentaria
uma longa nota a propsito de cada uma dessas passagens, para expor as
razes que me levaram a lhe dar um lugar; mas me pareceu que poderia
esperar mais tarde para fazer o pblico passar pelo escritrio em que foi
elaborada a obra que lhe apresentamos.
Em alguns casos muito raros, achei que devia citar escritos posteriores
a So Francisco. Por exemplo, me pareceu bem indicado recordar, ainda
no comeo das citaes, e para lhes servir como uma espcie de prtico,
os versos com que Alighieri quis marcar o papel, nico na histria, do
Poverello, e propos dar sua cidade natal o nome de Oriente.
Outras vezes, tomei emprestadas algumas linhas do Sacrum Com-
mercium, as pginas imortais que poderamos intitular em francs: As
npcias msticas do Bem-aventurado Francisco com a Senhora Pobreza,

39
em que, menos de um ano depois de sua morte, seu sucessor Joo Parenti,
sob o vu de uma transparente alegoria, contou com uma emoo que
lembra o Apocalipse, o sonho de renovao da primeira gerao francis-
cana e os temveis obstculos que se levantaram sua frente.
Afinal, como a finalidade deste trabalho fazer conhecer a atitude
do reformador umbro diante dos monumentos do passado religioso, sua
maneira de us-los, eu tambm o citei em pginas em que, primeira
vista, ele parece repetir textualmente as Escrituras. Mas dar para ver
que ele as usa com uma grande liberdade, a liberdade do filho que vive
na casa de seu Pai e que tomou ao p da letra a palavra de So Paulo:
Heredes quidem Dei, coheredes autem Christi. Ns somos os herdeiros
de Deus, os co-herdeiros de Cristo 12.

Dezembro de 1917

12
Carta aos Romanos 8, 14-17. Todos os que se deixam levar pelo Esprito de Deus so filhos de Deus.
Porque vs no recebestes um esprito de escravido para ainda ter medo, mas vs recebestes este Esprito
de adoo, pelo qual gritamos a Deus, dizendo: Abb! Pai! Este Esprito presta ele mesmo testemunho a
nosso esprito de que somos filhos de Deus. Ora, se somos filhos, tambm somos herdeiros; herdeiros de
Deus, co-herdeiros de Cristo, se sempre sofremos com Ele para ser glorificados com Ele.

40
Vida
de

So Francisco
de Assis

41
42
1

Juventude de So Francisco

43
I

Per chi desso loco fa parole


Non dica Ascesi, che direbbe corto,
Ma Oriente, se proprio dir vuole 1.

... Visitavit nos Oriens ex alto


illuminare his qui in tenebris et in umbra mortis sedent, ad
dirigendos pedes nostros in viam pacis 2.

Et ipse praecedet ante illum (Dominum) in spiritu et virtute


Eliae, ut convertat corda patrum in filios et incredulos ad prudentiam
justorum, parare Domino plebem perfectam 3.

Ego cognovi te in deserto (dicit Dominus),


in terra solitudinis 4.

In caritate perpetua dilexi te;


ideo attraxi te miserans 5.

1
Terceto de Dante sobre Assis, Paraso, XI, vers. 52-54.
2
Lc 1, 78-79.
3
Lc 1, 17.
4
Os 13, 5.
5 Jr 31, 3.

44
I

Quem falar deste lugar, no diga Assis, que isso pouco,


se quiserem dar-lhe o nome verdadeiro, chamem-na de Oriente 6,

O Oriente l do alto visitou-nos, para iluminar os que esto sentados


nas trevas da sombra e da morte
e dirigir nossos passos no caminho da paz 7.

Ele andar diante do Senhor no esprito e no poder de Elias para fazer


voltar os olhos dos pais para os filhos, e os revoltados para a sabe-
doria dos justos, para preparar um povo perfeito para o Senhor 8.

Eu te conheci no deserto (diz o Senhor), no pas da solido 9.

Eu te amei com um amor eterno; foi por isso que, em minha misericrdia,
eu te atra 10.

6
Terceto de Dante sobre Assis, Paraso XI, vers 52-54.
7 Lc 1, 78-79.
8
Lc 1, 17.
9
Os 13,5.
10
Jr 31, 3.

45
Assis ainda mais ou menos o que o que era h seis ou sete sculos.
A fortaleza feudal est em runas, mas o aspecto da cidade sempre o
mesmo com suas longas ruas desertas, cercadas por casas seculares, 11.
Colocada na metade da encosta de uma colina dominada orgulhosa-
mente pelo monte Subsio 12, ela contempla a seus ps toda a plancie
da mbria desde Perusa at Spoleto. As casas escalam a rocha como
crianas que se empurram e ficam nas pontas dos ps para terem certeza
de que vo ver tudo; e conseguem fazer isso to bem que, de cada cru-
zamento, a gente abarca todo o panorama com seu enquadramento de
colinas encarneiradas, sobre as quais vilas e castelos se recortam sobre
um cu de limpidez incomparvel.

11
Entretanto, a cidade desenvolveu-se atualmente no sentido da largura, com suas grandes artrias indo
da baslica de So Francisco de Santa Clara. No sculo XIII, essas duas asas da cidade no existiam, e ela
se estendia bem mais no sentido da altura. A cidade teve que sofrer enormemente por terremotos, e, antes
de ser saqueada no sculo XIV, as partes mais baixas e as mais altas no foram reconstrudas, uma vez que
todo esforo de reconstruo foi dedicado s ruas que ligavam as duas igrejas mais freqentadas. Como
conseqncia, essas ruas, as nicas em geral percorridas pelos estrangeiros, so bem menos interessantes.
Trs portas davam acesso cidade do lado do vale, a Porta So Pedro ao lado da abadia beneditina do
mesmo nome, a Portaccia, murada at estes ltimos anos mas solenemente reaberta para o centenrio (1926)
e a Porta Moiano, a mais importante de todas.
De cada uma dessas portas partiam ruas que convergiam para a Piazza e depois se prolongavam at a Rocca.
A Porta So Pedro comandava o caminho da Insula ou Ilha, hoje Bastia; la Portaccia, o caminho que,
passando pelo lugarejo de Valecchie, o hospcio de So Salvador (hoje Casa Gualdi) e a Porcincula, levava
a Bettona; la Porta Moiano, uma grande estarda que ia diretamente unir-se, no vale, grande artria umbra
que unia Perusa a Foligno, Espoleto e Roma.
Veremos, adiante, a utilidade desses detalhes topogrficos.
12
1101 metros de altura; o vale, nas vizinhanas de Assis, est por volta de 200 metros, e a cidade, de 250.

46
Essas moradas simples no tm mais do que cinco ou seis pequenos
cmodos 13, mas os tons rosados da pedra lhes do uma extraordinria
jovialidade. Aquela em que dizem que So Francisco nasceu desapareceu
quase inteiramente para dar lugar a uma igreja; mas a rua to modesta,
o que sobrou da casa paterna de So Francisco to perfeitamente seme-
lhante s casas vizinhas, que a tradio deve ter razo. Francisco entrou
vivo na glria; seria estranho se uma espcie de culto no tivesse ido
imediatamente morada em que ele tinha nascido e passado os primeiros
vinte e cinco anos de sua vida.
Veio ao mundo por volta de 1182 14. Os bigrafos s conservaram
poucos detalhes sobre seus pais 15.
O pai, Pedro de Bernardone, vendia tecidos e, nesse comrcio, ganhava
muito dinheiro. Ns sabemos como a vida dos comerciantes era muito
diferente de hoje naquele tempo. Uma grande parte de seu tempo era
passada em excurses longnquas para se aprovisionar.
Essas viagens eram verdadeiras expedies. As estradas eram pouco
seguras, era necessria uma boa escolta para ir s feiras famosas em que,

13
Como na maior parte das cidades da Toscana, as dimenses das casas j estavam, ento, regu-
lamentadas na maior parte das cidades.
14 Os bigrafos dizem que ele morreu (3 de outubro de 1226) em seu quadragsimo quinto ano. Mas os
termos no so muito precisos para tornar improvvel a data de 1181. De resto, a questo pouco impor-
tante. Um franciscano de Erfurt j fixou desde o meio do sculo XIII a data de 1182. Pertz, t. XXIV, p. 193.
15 Fabricaram para Francisco um certo nmero de genealogias: no provam mais que uma coisa, o naufr-
gio da idia franciscana. Que compreendiam mal seu heri os que acharam que poderiam engrandec-lo e
glorific-lo fazendo-o proceder de uma famlia nobre! Quae vero, diz o Pe. Suyskens SJ, de ejus gentilitio
insigni disserit Waddingus, non lubet mihi attingere. Factis et virtutibus eluxit S.Franciscus non pravorum
insignibus aut titulis, quos nec desideravit. ASS., p. 557 a. No daria para dizer melhor.
No sculo XIV, formou-se todo um ciclo de legendas em torno de seu nascimento. Nem podia ser de
outra maneira. Todas derivam do conto de um velho que vai bater na porta de seus pais, implora at que lhe
permitam pegar o menino nos braos, e anuncia enfim que ele faria grandes coisas. Dessa forma, o episdio
no apresenta nada de impossvel, mas os traos maravilhosos logo se agruparam em torno desse n at
torn-lo irreconhecvel. Bartolomeu de Pisa conservou-nos mais ou menos a forma primitiva, Conform. 28
a 2. Cf. 13 b 2. Francisco teve certamente vrios irmos [LTC 9. Mater... quae cum prae ceteris filiis dili-
gebat], mas eles no deixaram nenhum sinal em sua histria a no ser o que contado mais adiante, ver p.
86 s. Cristofani publicou alguns papis de tabelio a respeito de ngelo, irmo de So Francisco, e de seus
descendentes: Storie dAssisi, t. I, p. 78 ss. Nesses documentos, ngelo chamado Angelus Pice e seu filho
Johannectus olim Angeli domine Pice, adjetivos que podem ser invocados em favor da origem nobre de Pica.

47
durante semanas, encontravam-se mercadores vindos dos pontos mais
longnquos da Europa. Em algumas cidades, Montpellier, por exemplo,
a feira era contnua; Benjamin de Tudela mostra-nos essa cidade fre-
quentada por todas as naes crists e maometanas: Encontram-se a
negociantes da frica, da Itlia, do Egito, da Palestina, da Grcia, da
Glia, da Espanha e da Inglaterra, de modo que se vem pessoas de todas
as lnguas com os genoveses e os pisanos.
No meio de todos esses mercadores, os mais ricos eram os que faziam
negcios com tecidos. Ao p da letra, eram os banqueiros do tempo, e
seus pesados carros levavam muitas vezes as quantias levantadas pelos
papas na Inglaterra ou na Frana.
Sua passagem era um dos acontecimentos da vida nos castelos;
retinham-nos por muito tempo, queriam saber de todas as novidades.
fcil entender quantos desses relacionamentos deviam reaproximar a
nobreza; tambm em algumas regies, na Provena, por exemplo, eram
considerados como nobres em segundo grau 16.
Bernardone fazia frequentemente essas longas viagens; vinha Frana
e, por isso, devemos entender seguramente a Frana setentrional e princi-
palmente a Champagne, onde eram feitas as trocas comerciais entre o
norte e o sul da Europa 17.
Era justamente l que ele estava quando nasceu seu filho. Na pia ba-
tismal de So Rufino 18, a me lhe deu o nome de Joo, mas, quando
voltou, o pai quis que se chamasse Francisco 19.
Ser que j estava decidido cobre a educao que queria dar-lhe e lhe
deu esse nome porque j se propunha educ-lo francesa, fazendo dele

16
Preuves de lhistoire du Languedoc, t. III, p. 607.
17
Ver a bula Cum sicut venerabilis de 18 de dezembro de 1232, Auvray Gregrio IX, n 998, que
nos mostra o bispo de Toul endividado diante dos comerciantes de Roma, de Sena, e de Florena,
e obrigado a dar cauo. Havia, ento, poderosos personagens.
18 Catedral de Assis; a ainda so batizadas hoje todas as crianas da cidade; as outras igrejas
no tm fontes.
19
LTC 1; 2Cel 1,1; ver tambm LTC edio de Pesaro, 1831.

48
um pequeno francs? No improvvel. Pode ser tambm que houvesse
nisso uma espcie de homenagem reconhecida dirigida pelos burgueses
de Assis a seus nobres clientes do outro lado das montanhas. Seja como
for, o menino aprendeu francs e sempre teve um gosto especial por
nosso pas e por nossa gente 20.
Essas indicaes sobre Bernardone so de extrema importncia:
mostram-nos no meio de que influncias Francisco cresceu. De fato, os
comerciantes tiveram um papel considervel nos movimentos religiosos
do sculo XIII. A prpria profisso obrigava-os a ser difusores de idias.
Como, quando chegavam a um pas, deixar de responder a todos que
pediam novidades? Ora, as mais impacientemente esperadas eram as
novidades religiosas, porque a curiosidade estava voltada para um lado
bem diferente do de hoje. Eles davam conta do papel: olhavam, ouviam,
felizes pensando que tinham alguma coisa para contar e, pouco a pouco,
tornavam-se missionrios das idias que, no comeo, tinham ouvido
como simples curiosos.

A importncia do papel desses comerciantes que iam e vinham, se-


meando por toda parte as novidades que recolhiam em suas excurses,
no foi suficientemente esclarecida; eles foram o veculo muitas vezes
inconsciente e involuntrio das idias, principalmente das heresias e
das revoltas, e ajudaram o sucesso dos Valdenses, dos Albigenses, dos
Humilhados e de muitas outras seitas.

assim que Bernardone pode ter sido, mesmo sem pensar, o artfice
da vocao religiosa de seu filho. As histrias de suas viagens, que ele
contava, podem ter parecido, de incio, nem chamar a ateno do menino,
mas foram como esses germes que ficam muito tempo sepultados mas,
de repente, sob um quente raio do sol, produzem frutos inesperados.

20
A lngua dol era nessa poca a lngua internacional da Europa. Na Itlia, era a lngua dos jogos e dos
torneios e se usava nas pequenas cortes principescas do norte da Pennsula. Ver Dante de vulgari eloquio
lib. I, cap. X. Brunetto Latini escreveu em francs porque o modo de falar da Frana o mais agradvel e
o mais comum para todos. No outro lado da Europa, o abade de Stade, na Westflia, falando da noblesse
de lidiome gaulois. Ann. 1224, apud Pertz, Script., t. XVI. Veremos So Francisco fazer frequentemente
aluses aos romances da Tvola Redonda e cano de Rolando.

49
A instruo de Francisco no chegou muito longe 21; nesse tempo
a escola abrigava-se sombra da igreja. O padre de So Jorge foi seu
instrutor 22 e lhe ensinou um pouco de latim. Essa lngua continuou a ser
usada na mbria at a metade do sculo XIII. Todo mundo a compreendia
e falava um pouco, ainda era a lngua dos sermes e das deliberaes
polticas 23.

Ele tambm aprendeu a escrever, mas como menos sucesso: durante


toda a vida, no o vemos pegar pessoalmente a pena a no ser raras vezes
e s para escrever algumas palavras 24. O autgrafo do Sacro-Convento
testemunha uma grande falta de jeito; na maior parte das vezes ele se
limitava a ditar e a assinar suas cartas com um simples T, smbolo da
cruz de Jesus 25.
A parte de sua instruo que deve ter tido mais influncia em sua vida
foi o francs 26 que pode ser que ele falava em sua famlia. J disse, com
razo, que saber duas lnguas ter duas almas. Aprendendo a nossa,
Francisco sentia o corao vibrar na tonalidade de nossa jovem poesia,
e sua imaginao misteriosamente perturbada j sonhava em imitar as
aventuras de nossos cavaleiros.
No comeo, sua vida foi como a das outras crianas de sua idade. O
quarteiro em que mostram sua casa desconhecido pelos carros; desde
cedo as pequenas ruas parecem ser propriedade das crianas. Elas se
divertem em grupos numerosos, brincando com um jeito interessante,

21
No devemos deixar-nos enganar por certas passagens sobre sua ignorncia de onde se poderia
concluir primeira vista que ele no sabia absolutamente nada, por exemplo 2Cel 3, 45. Quamvis
homo iste beatus nullis fuerit scientiae studiis innutritus. Trata-se, aqui, evidentemente da cincia como
foi logo compreendida pelos franciscanos , e especialmente da teologia. A prpria continuao do
trecho de Celano uma prova evidente.
22 LM 219; Cf. ASS. p. 560 a. 1Cel 23. CrJJ 50.
23
Ozanan, Documents indits pour servir lhistoire littraire dItalie du VIIIe au XIIIe sicle. Paris,
1851, in-8. Ver 65,68,71,73. Fauriel, Dante et les origines de la langue et de la littrature italiennes. Paris,
1854, 2 vol. in-8. Ver t. II, p. 332, 379 e 429.
24
Ver LTC 51 e 67; EP 42; 2Cel 3, 110; LM 55; 2 Cel 3, 99; CrEc 6; Bernardo de Bessa, Man. de
Turim, fo 96 a, qualifica frei Leo de secretrio de So Francisco.
25
Ver pg. XLII n. 8. LM 51 e 308.
26
EP 93; 1Cel 16; LTC 10; 23; 24; 33; 2Cel 1,8; 3; 67. Ver tambm o Testamento de Santa Clara. O francs e
no o provenal, pelas razes acima indicadas. Alm disso, cada vez que Salimbene cita alguma frase gallice,
sempre da lngua doil, por exemplo p. 16, ed. 1857. Cf. Della Giovanna S. Francesco Giullare, p. 18, n. 3

50
muito diferente dos pequenos romanos que desde os seis ou sete anos
vo se agachar durante horas atrs de uma coluna, um pedao de muro
ou uma runa, para jogar dados ou mora,e pem em seus jogo algo de
apaixonado e arisco.

Na mbria, como na Toscana, as crianas gostam principalmente de


diverses em que se pavoneia: brincar de soldados e de procisso um
prazer supremo em Assis 27. Durante o dia, eles ficam nas ruelas.

L pela tarde, cantando e danando, eles vo para uma das praas da


cidade. As praas so um dos encantos de Assis. A cada pouco as casas
se interrompem do lado da plancie e encontramos um delicioso terrao
plantado com algumas rvores, feito para se apreciar com gosto os es-
plendores do sol poente, sem perder nada. No h dvida de que, muitas
vezes, o filho de Bernardone dirigiu danas como as que se vem hoje:
ele foi, desde a infncia, o Prncipe da Juventude.

A profisso de seu pai e a origem talvez nobre, de sua me, elevavam-


no quase ao nvel das famlias importantes do lugar; o dinheiro, que
ele gastava a rodo, fez o resto. Felizes de festejar sua custa, os jovens
senhores faziam-lhe uma espcie de corte. Quanto a Bernardone, estava
feliz demais vendo seu filho conviver com eles para se importar com suas
loucuras. Ele era avarento, como esta histria vai nos mostrar depois,
mas sua vaidade e seu orgulho ganhavam da avareza.

Pica, sua mulher, doce e modesta criatura 28, sobre quem os bigrafos
so um pouco lacnicos demais, via tudo isso e se afligia em silncio;
mais fraca, como todas as mes, ela no queria desesperar de seu filho

27
to exato que, se h algo de especial para as crianas de Assis, o jogo por excelncia, o sino de
terracota, e cada ano, na segunda-feira de Pentecostes, faz-se uma feira especial, a fiera delle campanelle
onde se vendem quantidades inverossmeis desses sinos pintados berrantemente de modo muito pitoresco.
28
2Cel 1. Cf. Conform. 14 a 1. No nada impossvel no fato de que ela fosse de origem provenal, mas
nada o indica em documentos dignos de f. Ela descendia sem dvida de um tronco nobilirquico porque os
documentos dos tabelies sempre lhe do o ttulo de Domina. Cristofani, t. I, p. 78 ss. Cf. Matrem honestis-
simam habuit. LTC ed. de Pesaro, 1831, p.17.

51
e, quando as vizinhas lhe contavam as desordens de Francisco, ele
respondia sem se comover: Que que voc acham? Eu espero, se for
da vontade de Deus, que ele ainda vai ser um bom cristo 29. Palavra
muito natural na boca de uma me, mas que mais tarde seria vista com
um sentido proftico.
custa de singularidades, palhaadas, farsas, prodigalidades, ele
acabou conquistando uma espcie de celebridade. Viam-no a todas as
horas nas ruas com companheiros, chamando a ateno pelo luxo ou
bizarrice de suas roupas. Mesmo de noite, o bando alegre continuava a
suas aventuras e enchia a cidade com o barulho de seus cantos 30.

Justamente nessa poca, trovadores percorriam as cidades do norte


da Itlia 31 e punham em moda festas brilhantes e principalmente as cor-
tes de amor; mas, se eles exaltavam as paixes, tambm apelavam aos
sentimentos de cortesia e de delicadeza; Francisco ficou entusiasmado.

No meio dos prazeres e das festas, ele permanecia sempre polido e


amvel, abstendo-se cuidadosamente de qualquer expresso baixa ou
obscena 32.

29
A lio dada pelas Conformitates 14 a 1. Meritorum gratia Dei filium ipsum noveritis affuturum, parece
melhor que a de 2Cel. 1, Multorum gratia Dei filiorum patrem ipsum noveritis affuturum. Cf. LTC 2.
30
1Cel 1 e 2; 89; LTC 2. Cf. A.SS. 560 c. Vincent de Beauvais, Spec. hist. lib. 29, cap. 97.
A primeira Vida de Toms de Celano (1Cel 1 e 2) faz da juventude de Francisco um quadro muito
sombrio em que consideraes de ordem literria e resqucios das Confisses de Santo Agostinho
parecem estar presentes. prudente, aqui, ficar com a narrativa dos Trs Companheiros.
31
Pierre Vidal estava, por volta de 1195, na corte de Bonifcio, marqus de Montferrat, e se
achava to bem que l queria estabelecer-se, K. Bartsch, Peire Vidals Lieder, Berlim, 1857, n.41. E.
Monaci, Testi antichi provenzali. Roma,1889, col. 67. preciso ler esse trecho para ter uma idia do
fervor com que esse poeta partilhava as esperanas da Itlia e desejava sua independncia. Essa
nota poltica est em um texto de Manfred II Lancia a respeito de Pierre Vidal (Ver Monaci, lc., col.
68.) Gaucelme Faidit tambm esteve nessa corte, como Raimbaud de Vacqueyras (1180-1207).
Folquet de Romans passou quase toda a sua vida na Itlia. Bernard de Ventadour (1145-1195),
Peirol dAuvergne (1180-1220) e muitos outros l estiveram por tempos maiores ou menores.
Logo os italianos comearam a cantar tambm em provenal, entre outros esse Manfredo Lancia,
depois Alberto, marqus de Malaspina (1162-1210), Pietro della Caravana que, em 1196, excitou
as cidades lombardas contra Henrique IV, Pietro della Mula que estava por volta de 1200 na corte
de Cortemiglia. Podem ser encontrados fragmentos desses poetas em Monaci, op. cit., col. 69 ss.
32 LTC 3; 2 Cel. 1, 1.

52
Sua grande preocupao j era escapar da banalidade. Atormentado
pela necessidade de mirar longe e alto 33, deixara-se tomar por uma es-
pcie de paixo pela cavalaria, e crendo ver na dissipao um dos traos
caractersticos da nobreza, entregou-se a ela perdidamente.
Mas aquele que, aos vinte anos, corria de festa em festa e no tinha
o corao absolutamente fechado, foi obrigado a perceber s vezes, na
beira do caminho, pobres que tinham fome e que viviam meses com o
que ele gastava em algumas horas em futilidades. Francisco via-os e,
com sua natureza impressionvel, esquecia por um momento todo o resto.
Punha-se, em pensamento, no seu lugar, e at lhe aconteceu de dar todo
o dinheiro que tinha consigo e at mesmo suas roupas.
Um dia, ele estava ocupado com os fregueses na loja de seu pai, quando
apareceu um homem pedindo caridade por amor de Deus. Impaciente,
mandou-o embora com dureza; mas logo se arrependeu de sua brutali-
dade pensando: Que no teria eu feito se esse homem tivesse vendido
pedir alguma coisa em nome de algum conde ou baro? Que deveria eu
ter feito quando pediu em nome de Deus? Sou um mal-educado!. E se
comprometeu a nunca mais rechaar quem se dirigisse a ele por amor
de Deus 34.
Entretanto, durante os primeiros tempos em que o tinha feito trabalhar,
tinha ficado muito contente com sua aptido para o comrcio. Se seu
filho gastava demais, tambm sabia bem como ganhar dinheiro 35. Mas
no durou muito essa satisfao. As ms companhias exerciam sobre
Francisco a mais perniciosa influncia. Chegou uma hora em que no
conseguiu mais separar-se deles e, quando o chamavam, deixava tudo
sem que algum pudesse det-lo 36.

33
Cum esset gloriosus animo et nollet aliquem se praecellere, Cf. CrJj 10.
34
1Cel 17; LTC 3; LM 7. Cf. A SS. p. 562.
35
1Cel. 2; LM 6; Vit. sec. apud A SS. p. 560.
36
LTC 9.

53
Nesse tempo, a mbria e a Itlia viram que os acontecimentos polticos
estavam se precipitando: depois de uma luta formidvel, as repblicas
aliadas tinham forado o Imprio a reconhec-las. Pela imortal vitria
de Legnano (29 de maio de 1176) e a paz de Constana (25 de junho de
1183), a liga lombarda tinha arrancado de Frederico Barbarroxa quase
todas as prerrogativas do poder, deixando para o imperador s as insg-
nias e as aparncias.
De uma ponta outra da Pennsula, vises de liberdade faziam bater
os coraes. Em certo momento, pareceu que a Itlia inteira ia retomar
conscincia de sua unidade, levantar-se como um s homem para jogar o
estrangeiro fora de suas fronteiras, mas as rivalidades das cidades estavam
muito acesas para deixar ver que a liberdade local, sem a independn-
cia comum era precria e ilusria. O sucessor de Barbarroxa, Henrique
VI (1183-1196), imps sobre a Itlia um jugo de ferro e talvez tivesse
conseguido garantir o domnio do Imprio se no o tivesse impedido
bruscamente uma morte prematura.
Embora fosse uma cidade secundria, Assis no tinha ficado atrs nas
grandes lutas pela independncia 37. Foi duramente castigada. Perdeu
suas franquias e teve que se submeter a Conrado da Subia, duque de
Spoleto, que, do alto da fortaleza, manteve-a submissa.
Mas quando Inocncio III subiu ao trono pontifcio (8 de janeiro de
1189), o velho duque sentiu-se perdido 38; ofereceu-lhe dinheiro, homens,
a sua f. Mas o pontfice recusou tudo: no queria parecer que estava
favorecendo os germnicos que tinham pisado o pas to odiosamente.
Conrado da Subia teve que se entregar e ir prestar sua submisso em
Narni, nas mos de dois cardeais.

37
Em 1174, ela foi tomada pelo chanceler do Imprio, Chrtien, arcebispo de Mogncia. A. Cristofani,
t. I, p. 69.
Para tudo o que diz respeito vida da cidade pode ser consultada com grande interesse a Nova Vita di San
Francesco dAssisi, por Arnaldo Fortini, prefeito de Assis. Milano, 1926. M. Fortini, graas a sua situao
oficial, conseguiu mandar abrir os Arquivos de So Rufino, cujas portas tinham estado ciosamente fechadas
at ento, apesar de todas as solicitaes, e oferecem uma mina extremamente rica para os eruditos.
38
Ver tudo isso em A. Sansi, Storia del comune di Spoleto, I, p. 27 ss.

54
Pragmticos, os assisienses no duvidaram nem um instante: desde
que o conde saiu para Narni, precipitaram-se no assalto ao castelo. Ache-
gada de enviados encarregados de tomar posse como domnio pontifical
tambm no os deteve: no deixaram pedra sobre pedra 39.
Depois, com incrvel rapidez, construram ao redor de sua cidade
muralhas que ainda esto, em parte, em p. Elas testemunham, por sua
imponncia, o vigor com que toda a populao trabalhou.
No natural pensar que Francisco, que estava, ento, com dezessete
anos, foi um dos mais valentes trabalhadores desses dias gloriosos e que
aprendeu a carregar pedras e a manejar a colher de pedreiro, que haveria
de lhe ser to til alguns anos mais tarde?
Infelizmente, seus compatriotas no souberam aproveitar a conquista
da liberdade. O povo mais baixo, que tinha tomado nessa revoluo
conscincia de sua fora, quis continuar a vitria e se apoderar dos bens
dos nobres; estes se refugiaram em suas casas fortificadas dentro da
cidade ou em seus castelos na redondeza. Vrios foram incendiados.
Ento os condes e bares dirigiram-se s cidades vizinhas para pedir
ajuda e socorro.
Nesse momento, Perusa estava no apogeu de seu poder 40 e j tinha
feito muitos esforos para submeter Assis; por isso, acolheu imedia-
tamente os trnsfugas, assumindo sua causa e declarando guerra. Era o
ano de 1202.
Houve um choque na plancie, na Ponte So Joo, ao p da colina em
que se erguia Perusa. Os assisienses foram vencidos, e Francisco, que
estava em suas fileiras, foi feito prisioneiro 41.

39
Todos esses acontecimentos so contados pelos Gesta Innocentii III ab auctore coetaneo, editados
por Baluze: Migne, Inn. op., t. I, col. XXIV. Ver principalmente a carta de Inocncio Rectoribus
Tusciae; Mirari cogimur de 16 de abril de 1198, Migne, t. I, col. 75-77. Potthast n 82.
40 Ver Luigi Bonazzi, Storia di Perugia, 2 vol. in-8. Perugia, 1875-1879, t. I, cap. V, p. 257-322.
41
LTC 4; 2 Cel. 1, 1. Cristofani, op. cit., I, p. 88 ss.; Bonazzi, op. cit., p.257. Sobre a guerra entre Assis
e Perusa ver Bolletino Umbro, t. VIII, p. 138-150. Sobre todo esse perodo da vida de So Francisco ver
Francesco Pennacchi, Lanno della prigionia di S. Francesco. Archivio per la storia Ecclesiastica dell
Umbria, 11, p. 543-560.

55
A traio dos nobres no tinha sido geral; alguns lutaram com o povo.
Esses foram levados como refns pelos vencedores. Foi com eles, e no
com os populares, que Francisco, em considerao da nobreza de seus
costumes 42, passou o tempo de cativeiro: um ano inteiro.
Surpreendeu bastante seus companheiros pela jovialidade. Muitas
vezes eles at achavam que estava louco. Em vez de passar os dias ge-
mendo e praguejando, fazia planos para o futuro, de que falava a todos
os que chegavam. Ele imaginava sua vida como era pintada nos cantos
dos trovadores; sonhando com gloriosas aventuras e sempre dizendo, no
fim: Vocs vo ver que um dia eu serei adorado pelo mundo inteiro 43.
Durante esses longos meses, Francisco deve ter tido muitas desiluses
a respeito desses nobres, que ele tanto admirava de longe. Seja como for,
manteve com eles seu modo franco de falar e tambm sua plena liberdade
de ao: um deles, um cavaleiro, era mantido parte por causa de sua
vaidade e mau carter. Francisco, longe de abandon-lo, testemunhou-lhe
sua afeio e teve a alegria de reconcili-lo com os outros prisioneiros.
Houve, afinal, uma transao entre os condes e o povo de Assis. Em
novembro de 1203, os rbitros designados pelos dois partidos pronuncia-
ram sua sentena: a comuna de Assis devia reparar, em certa medida, os
danos causados aos bens dos senhores, e estes se comprometiam a no
fazer mais nenhuma aliana sem autorizao da comuna 44. A servido
rstica continuou, o que prova que a revoluo tinha sido dirigida pela
burguesia e para o seu proveito. Mas no haveriam de passar dez anos
antes que o prprio povo chegasse a conquistar sua liberdade. A tambm
veremos Francisco combatendo do lado dos oprimidos e merecendo o
ttulo de patriarca da democracia religiosa, que lhe foi outorgada por um
de seus compatriotas 45.
Depois desse acordo, os prisioneiros que estavam em Perusa foram
soltos. Francisco voltou para Assis. Estava com vinte e dois anos.

42
LTC 4. O documento de 1203, de que vamos tratar mais adiante, aproxima-os: milites et mercatores.
43 LTC 4; 2Cel 1, 1.
44
Ver essa arbitragem em Cristofani, op. cit., p. 93 ss.
45
Cristofani, loc. cit., p. 70.

56
2

AS ETAPAS
DE CONVERSO
(Primavera de 1204 primavera de 1206.)

57
II

Spiritus adjuvat infirmitatem nostram: nam quid oremus, sicut


oportet, nescimus; sed ipse Spiritus postulat pro nobis gemitibus
inenarrabilibus 1.
Exspectans, exspectavi Dominum,
et intendit mihi
Et exaudivit preces meas,
et eduxit me de lacu miseriae et de luto faecis
Et statuit super petram pedes meos,
et direxit gressus meos.
Et immisit in os meum canticum novum
carmen Deo nostro.
Videbunt multi et timebunt
et sperabunt in Domino 2.
Dixit autem Dominus ad Abram: Egredere de terra tua et de cognatio-
ne tua, et de domo patris tui, et veni in terram quam monstrabo tibi 3.
Et exiit nesciens quo iret 4.
Intellectum tibi dabo, et instruam te in via hac qua gradieris; firmabo
super te oculos meos 5.
Humiliavit semetipsum [Christus Jesus], factus obediens usque ad
mortem, mortem autem crucis. Propter quod et Deus exaltavit eum,
et donavit illi nomen quod super omne nomen 6.
Ecce venio,... ut faciam, Deus, voluntatem tuam 7.

1
Rm. 8, 26.
2
Sl. 39, 2-4.
3
Gn. 12, 1.
4
Hb. 11, 8.
5
Sl. 31, 8.
6
Fl 2, 8-9.
7
Hb. 10, 7.

58
II

O Esprito ajuda nossa fraqueza: pois no sabemos o que convm orar;


mas o prprio Esprito pede por ns com gemidos inenarrveis 8.
Cheio de esperana, voltei-me para o Senhor
E ele se voltou para mim
Ele escutou minhas preces,
E me tirou do lago da misria e da borra lodosa
Ele estabeleceu meus ps sobre a rocha
e dirigiu meus passos
Colocou em meus ossos um cntico novo,
um hino ao nosso Deus.
Muito vero e temero
E vo esperar no Senhor 9.
O Senhor disse a Abrao: sai da tua terra, do meio de teus conhecidos e
da casa de teu pai, e vem para a terra que eu te mostrarei 10. Ele partiu,
sem saber para onde ia 11.
Eu te darei compreenso e te instruirei neste caminho
por onde devers ir. Estarei com os olhos firmes sobre ti 12.
Ele [Jesus Cristo] se fez obediente at a morte, e morte de cruz. Por
isso, Deus tambm o exaltou e lhe deu um nome que est acima de
todo nome 13.
Eis-me aqui, Senhor, para fazer tua vontade 14.

8
Rm. 8, 26.
9 Sl. 39 (40), 2-4.
10 Gn. 12, 1.
11
Hb. 11,8.
12
Sl. 31 (32), 8.
13 Fl. 2, 8-9.
14
Hb. 10, 7,

59
De volta a Assis, Francisco voltou logo ao seu modo de viver; pode
ser, at, que ele tenha desejado descontar de alguma maneira o tempo
perdido. Festas, jogos, festins... tudo recomeou. Ele ficou gravemente
doente 15.
Durante longas semanas, viu a morte to de perto que a crise fsica
acabou transformando-se em uma crise moral. Toms de Celano con-
servou-nos um detalhe de sua convalescena: foi recuperando pouco a
pouco as foras e comeou a ir para l e para c dentro de casa, at que
um dia quis sair, para contemplar tranqilamente a natureza e tomar posse
da vida outra vez. Apoiado em um basto, foi para a porta da cidade.
A mais prxima, chamada Porta Nuova, a que abre para os mais
belos pontos de vista. Depois que passa por ela, a pessoa se encontra no
campo raso: uma dobra do terreno esconde a cidade, da qual no chega
nenhum barulho. Bem na frente, esto s voltas do caminho para Fo-
ligno; esquerda, as massas imponentes do monte Subsio; direita,
todo o vale da mbria com suas fazendas, vilas, suas colinas vaporosas
em cujos flancos os pinheiros, os cedros, a vinha e a oliveira estendem
uma alegria e uma animao incomparveis, A regio inteira brilha de
beleza, mas de uma beleza harmoniosa e toda humana, isto , feita sob
medida para o homem.

15
1Cel. 3; Cf. LG. 8 e A.SS. p. 563 c. Os trs companheiros no falam nada sobre essa doena e sem dvida
tiveram boas razes para isso, porque tinham o texto de Celano na sua frente e em geral o seguiam. Foram
preocupaes literrias que levaram Celano a dramatizar a realidade, tambm aqui.

60
Francisco esperava reencontrar nesse espetculo as deliciosas impres-
ses de sua adolescncia. Aspirava, com a sensibilidade aguada dos
convalescentes, os eflvios da primavera, mas a renovao interior, que
ele esperava, no veio. Aquela risonha natureza no lhe permitiu ouvir
mais que melanclicas palavras.
Pensara que a brisa dessa paisagem amada levaria embora os ltimos
arrepios da febre, mas sentia-se no cerne mesmo de uma falta de coragem
mil vezes mais penosa que o mal fsico. O vazio lamentvel de sua vida
tinha aparecido de repente, inteiro; ficou com medo dessa solido de uma
grande alma, em que no h nenhum altar.

As lembranas de sua vida passada assaltavam-no com uma amargura


insuportvel; tinha desgosto de si mesmo; suas ambies de outros tempos
pareciam ridculas e desprezveis. Voltou para casa acabrunhado sob o
peso de um sofrimento novo.

Nessas horas de angstia moral, a pessoa busca um refgio no amor


e na f. Infelizmente, a famlia e os amigos de Francisco eram incapazes
de compreend-lo.

Quanto religio, nem se lembrou de nela procurar o blsamo espi-


ritual que era necessrio para curar suas feridas. fora de uma santa
violncia, tinha que chegar f pura e viril, mas o caminho para isso
longo, semeado de obstculos e, na hora que l chegamos, ainda no
estamos nele comprometidos; s se sabe que os prazeres levam ao nada,
saciedade e ao desprezo de si mesmo.

Teria experimentado distrair-se, esquecer esse sonho amargo? Pode-


ramos pensar que sim, vendo que isso o levou a novos projetos 16.

Apareceu uma oportunidade de realizar seus sonhos de glria: um


cavaleiro de Assis, talvez um daqueles que estiveram presos com ele

16
1Cel. 3 e 4.

61
em Perusa, preparava-se para ir para a Aplia, sob as ordens do conde
Gentil 17. Este ltimo devia encontrar-se com Gualter de Brienne que
estava guerreando no sul da Itlia por conta de Inocncio III.

A fama de Gualter de Brienne era imensa, em toda a Pennsula: era


tido como um dos grandes cavaleiros da poca. O corao de Francisco
se rejubilou: achava que ao lado de to grande heri, ele conseguiria
cobrir-se de glria bem depressa. Decidiu partir e se entregou sem re-
servas alegria.
Fez seus preparativos com faustosa prodigalidade. Seu equipamento,
de um luxo principesco, tornou-se bem depressa o assunto de todas as
conversas. O fato era comentado principalmente porque o chefe da ex-
pedio, arruinado talvez pela revoluo de 2002 ou pelas despesas de
um longo cativeiro, teve que fazer as coisas bem mais modestamente 18.
Mas na casa de Francisco a felicidade j era maior do que o gosto de
aparecer. Deu suas roupas suntuosas a um cavaleiro pobre. Os bigrafos
no dizem se foi justamente para aquele que ele devia acompanhar 19.
Vendo-o ir e voltar ruidosamente, poderamos pensar que era o filho
de um grande senhor. Seus companheiros no demoraram a ficar es-
candalizados com esses modos. Ele mesmo nem se dava conta da inveja
que suscitava, pensando dia e noite na sua glria futura. Em seus sonhos,
parecia-lhe ver a casa de seus pais completamente transformada: em vez

17
LTC 5. No estado atual dos documentos, impossvel saber o que quer dizer esse nome,
porque naquele tempo era usado por uma multido de condes que no se pode distinguir pelo
nome de seus castelos. Trs hipteses so possveis: 1 Gentile comes de Campilio, que em 1215 fez
homenagem de seus bens comuna de Orvieto: Le antiche cronache di Orvieto, Arch. stor. ital. Ve
srie, 1889, t. IlI, p. 47; 2 Gentilis comes filius Alberici que com outros fez a doao de um mosteiro
ao bispo de Foligno: Bula de confirmao, In eminenti de 10 de abril de 1210; Ughelli, Italia sacra, I,
p. 697. Potthast 3974; 3 Gentilis comes Manupelli, que se encontra em julho de 1200, garantindo a
Palermo a vitria das tropas enviadas poe Inocncio III contra Marckwald: Huillard-Brholles, Hist.
dipl. I, p. 46 ss. Cf. Potthast 1126. - Gesta lnnocentii, Migne, I t. I, c. XXXII ss. Cf. Huillard-Brholles,
loc. cit., p. 60, 84, 89, 101. errado dizer que que Gentil poderia ser aqui um simples adjetivo; A
LTC diz Gentili nomine.
18
1Cel 4; LTC. 5.
19
LTC 6; 2Cel 1, 2; LM 8.

62
de peas de tecidos, s via escudos brilhantes pendurados nas paredes
e armas de todo tipo como em um palcio senhorial. Contemplava a si
mesmo ao lado de uma bela e nobre esposa e no duvidava de que essa
viso era um pressgio do futuro que lhe estava reservado. Tambm nunca
o tinham visto to comunicativo, radiante, e quando lhe perguntavam pela
centsima vez de onde vinha toda essa alegria, respondia com espantosa
segurana: Eu sei que eu vou ser um grande prncipe 20.
Finalmente, chegou o dia da partida. Francisco a cavalo, seguido por
seu escudeiro, disse um alegre adeus a sua cidade natal e foi com sua
pequena tropa pela estrada de Spoleto, que serpenteia pelos flancos do
monte Subsio.
Que aconteceu, ento? Os documentos no esclarecem. Talvez no
estejamos longe da verdade pensando que, mal comeada a viagem, os
nobres se tenham vingado do filho de Bernardone por suas atitudes de
grande prncipe. So coisas que dificilmente se perdoam aos vinte anos 21.
bem possvel tambm que, desde esse primeiro dia, Francisco tenha
tido uma cruel desiluso percebendo que, enquanto ele s sonhava com a
glria, o sonho do senhor a quem seguia eram os ganhos. Tinha pensado
que se pusera s ordens de um cavaleiro, mas o cavaleiro revelara ser
um mercenrio 22.
Cada uma dessas explicaes pode conter uma parte da verdade.
No posso deixar de pensar que na tarde desse primeiro dia to cheio
de emoes, Francisco sentiu necessidade da solido. Como deixaria de
pensar em sua me, nas lgrimas que ela no tinha conseguido esconder?
E imagino a figura saindo de sozinha de Spoleto e subindo as ladeiras
do Monte Luco para lanar um ltimo olhar a Assis, Foligno, Perusa,
sobre todas essas cidades onde tinha passado a juventude e que talvez
nunca mais voltasse a ver.

20 1Cel. 5; LTC 5; 2Cel 1, 2; LM 9.


21
Forse lo avevano deriso per la sua strana profezia. P. Vittorino Facchinetti. Fr. dAs., p. 22, c.f.
22
LTC 5 : quidam nobilis de civitate Assisii militaribus armis se praeparat ut ad pecuniae vel honoris lucra
augmentanda in Apuliam vadere.

63
Monte Luco j era o que ainda hoje, uma espcie de Tebida s portas
de uma grande cidade. Quando, depois do sop da montanha, percebe-
mos esses bosques como fechados por um cordo de igrejas e onde, por
trs de cada rochedo escondem-se eremitrios, poderamos pensar que
tnhamos sido transportados de repente para os desertos encantadores,
onde os afrescos e quadros dos Lorenzetti em Pisa e em Florena fixaram
uma imagem inesquecvel.
Hoje, quase todas as celas esto vazias e s alguns franciscanos 23
ocupam ainda o ritiro no lato da montanha. A pessoa pode perder-se nes-
ses pequenos bosques sem risco de encontrar os bravios anacoretas que
outrora tinham como um dever repetir para os transeuntes o tradicional
Memento mori. (Lembra-te da morte)
Que pressentimentos teriam vindo ao corao de Francisco?
O caminho que desce da montanha santa passa na frente da antiga
catedral de Spoleto e sobre a fachada da venervel igreja de So Pedro.
Francisco pde contemplar os baixos-relevos, j bem antigos naquele
tempo e que ainda existem at hoje em sua simples e real beleza. H
um entre outros que representa a morte do mau, do qual deve ter tirado
inspirao, mais tarde, para uma de suas comoventes pginas de seus
opsculos, aquela em que, na Carta a todos os Cristos, ele pinta com
um realismo nunca ultrapassado a morte do pecador.
Seja o que for de todas essas suposies, de tarde ele foi obrigado a ir
para a cama. A febre devorava-o; em algumas horas ele tinha visto ruir
todos os seus sonhos. No dia seguinte, voltou ao caminho de Assis 24.
Uma volta to inesperada causou um grande rumor na pequena cidade
e foi uma cruel decepo para seus pais. Quanto a ele, duplicou a caridade
pelos pobres e procurou ficar parte; mas seus companheiros vieram

23
Uma tradio muito autorizada atribui a So Francisco a fundao desse convento. Ver Analecta
fr. , t. I, p. 378. Antonio dOrvieto, Chronologia, p. 165-189. Jacobilli, Vite I, p. 391 ss. III, p. 287-290.
Wadding ann. 1218, n. 12. Sobre Monte Luco ver Helyot Migne, t. lI, col. 520.
24
LTC 6; 2 Cel. 1, 2.

64
bem depressa de todos os lados, esperando reencontrar nele o incansvel
provedor de suas loucas despesas. Ele deixou as coisas correrem.
Entrementes, uma grande mudana se operara nele dessa vez. Nem os
prazeres nem o trabalho podiam ret-lo por muito tempo; passava uma
parte dos seus dias caminhando pelos campos, muitas vezes acompanhado
por um amigo muito diferente dos que j vimos at agora em torno dele.
No sabemos o seu nome; por alguns indcios, seramos tentados a crer
que se tratava do futuro Frei Elias 25.
Francisco recomeou as reflexes que fizera logo depois de sua doena,
mas com menos amargura. Seu corao e seu amigo estavam de acordo
em dizer-lhe que possvel no acreditar mais no prazer, nem na glria,
e encontrar, entretanto, causas dignas a que consagrar a vida. Parece que
foi nesse momento que despertou nele o pensamento religioso. Desde
que divisou esse novo caminho, quis correr para ele com a fogosa impe-
tuosidade que punha em tudo que fazia. Ia constantemente chamar seu
confidente e o levava pelos caminhos mais apartados.

25
Celano recorda-nos esses dias com uma preciso bem especial. improvvel que Francisco, habitualmente
to reservado sobre sua vida interior, tenha contado isso (2Cel 3, 68 e 42. Cf. LM 144). Ao contrrio, nada
se ope a que Celano tenha sido informado sobre isso por Frei Elias. O amigo era da mesma idade (unius
aetatis, 1Cel 6) que Francisco, e temos boas razes para crer que era o caso de Frei Elias. [Duvido muito
da legenda que nos mostra um velho indo no dia do nascimento de Francisco suplicar que lhe confiassem
o recm-nascido e dizendo: Hoje nasceram aqui dois meninos, este, que estar entre os melhores homens,
e um outro, que estar entre os piores (LTC. ed. Amoni, p. 10, Conform. 28 a 2). Acho que foi imaginada
pelos zelantes contra Frei Elias. evidente que uma histria dessas visa algum. Quem? Seno aquele que
dever aparecer mais tarde como o anti-Francisco?] Temos muitos detalhes sobre os onze primeiros dis-
cpulos para ver que no se trata de nenhum deles. No de espantar que Elias no aparea nos primeiros
anos da Ordem (1209-1212) pois, depois de ter exercido em Assis sua dupla funo de professor primrio
e colchoeiro (Suebat cultras et docebat puerulos psalterium legere, Salimbene, p. 402), ele foi scriptor em
Bolonha (Eccl. 13). Afinal, do ponto de vista psicolgico, essa hiptese explica muito bem a ascendncia
que Elias sempre exerceria sobre seu mestre. Mas ainda difcil entender que Celano no tenha nomeado
Elias aqui, mas a passagem 1Cel 6 difere nos diversos manuscritos (Cf. ASS. e ed. Amoni, p. 14) e pode t-la
retocado depois da queda dele. Ao encontro dessa hiptese preciso notar que as relaes de Francisco com
o amigo da gruta tambm so contadas pela LTC 12, o que seria surpreendemente por parte dos adversrios
de Elias, se se trata dele.
Sobre o amigo da gruta ver LTC Marcellino, p. LXVIII e 28 n. a. Os Padres Marcellino e Tefilo dizem que
a frade Magnus inter caeteros exclui toda possibilidade de identific-la com Elias, professor de meninos
e colchoeiro. Mas, como eu disse, o texto difere nos diversos manuscritos. O dos bolandistas diz magis
inter caeteros e o manuscrito de Montpellier est de acordo com ele.
O Pe. Cuthbert, Life of S. Francis, p. 23, tambm nota que se o amigo da gruta fosse Frei Elias, lCel o
teria dito. Tudo bem pesado, parece que, diante do silncio de Celano, a hiptese deve ser definitivamente
abandonada..

65
Mas os combates interiores so indizveis: a pessoa luta sozinha, sofre
sozinha: o combate noturno, misterioso e solitrio de Jac com o anjo.
A alma de Francisco era capaz de aguentar esse trgico duelo, Seu
amigo tinha compreendido bem o papel que ele devia representar. Dava
alguns raros conselhos; mas a maior parte do tempo limitava-se a mani-
festar sua solicitude seguindo Francisco por toda parte, jamais pedindo
para saber mais do que ele podia dizer.
Muitas vezes Francisco ia para uma gruta dos campos de Assis, onde
entrava sozinho. L desafogava seu corao transbordante em longos
gemidos. s vezes, tomado por um verdadeiro horror das faltas de sua
juventude, implorava misericrdia, mas na maior parte do tempo era
para o futuro que voltava seu olhar. Procurava febrilmente essa verdade
superior qual queria entregar-se essa prola de grande preo de que
fala o Evangelho: Quem procura, encontra; quem pede, recebe e se abre
para quem bate porta.
A palidez de seu rosto, a tenso dolorosa de suas feies diziam mui-
to, quando ele saa depois de longas horas, o vigor de seus pedidos e a
violncia de suas batidas 26.
O homem interior, para falar como os msticos, ainda no estava
formado nele, mas no faltava seno uma ocasio para lev-lo a romper
definitivamente com o passado. Ela logo se apresentou.
Seus amigos faziam esforos contnuos para faz-lo retomar seus
costumes. Um dia ele os convidou todos para um suntuoso festim. Eles
pensaram que tinham vencido e, como nos velhos tempos, proclamaram-
no rei da festa.
O banquete penetrou bastante dentro da noite. Depois os convivas
foram para as ruas, enchendo-as de seus cantos e alarido. De repente,
perceberam que Francisco no estava mais com eles. Depois de demo-
radas buscas, descobriram-no finalmente bem longe l para trs deles,

26
1Cel 6; 2Cel 1, 5; LTC 8 e 12; LM 10,11 e 12.

66
segurando ainda nas mos o basto de rei dos loucos, mas mergulhado
em um devaneio to profundo que parecia preso ao cho e insensvel a
tudo que acontecia.
Que que tens? gritaram-lhe, agitando-se ao redor dele como para
acord-lo. Vo vedes que ele est sonhando em se casar?, disse uma
voz. Sim, respondeu Francisco voltando a si e olhando-os com um
sorriso que no conheciam nele. Estou sonhando que vou ter uma mulher
mais bonita, rica e pura do que podeis imaginar 27.
Essa resposta marca uma etapa decisiva em sua vida interior. Com
ela, ele tinha cortado os ltimos laos que o prendiam aos prazeres vul-
gares. Ainda vamos ver atravs de que lutas, depois de se ter arrancado
do mundo ele ia se entregar a Deus.
provvel que seus amigos no tenham entendido nada do que se
havia passado, mas tinham percebido o abismo que se abrira entre eles
e Francisco. Trataram logo de cuidar de suas coisas.
Quanto a ele, no tinha mais nada a resolver. Abandonou-se mais do
que nunca a sua paixo pela solido.
Se voltando a chorar com freqncia por seus erros passados,
espantava-se de ter vivido durante tanto tempo antes de sentir como
amarga borra da taa encantada, mas no se deixava dominar por inteis
arrependimentos.
Os pobres tinham ficado fiis a ele. Entre eles, sentia uma admirao
de que se achava indigno, mas que tinha uma doura infinita. Diante de
seu reconhecimento, diante dessa amizade tmida, tremula que eles no
ousavam dizer e que seu corao revelava, o futuro se iluminava. Essa
culto que ele no merece hoje, haver de merec-lo depois e promete a
si mesmo que, pelo menos, vai fazer de tudo para merec-lo.
Para poder entender esses sentimentos preciso imaginar o que eram
os pobres numa localidade como Assis.

27
LTC 7; 1Cel 7; 2Cel 1, 3; LTC 13.

67
Em um pas agrcola, a pobreza no acarreta quase inevitavelmente
a misria moral, essa degenerescncia de todo ser humano que s vezes
torna a caridade to difcil.
A maior parte dos pobres que Francisco conhecia estava na misria em
conseqncia das guerras, das ms colheitas ou da doena. Nesse caso,
os socorros materiais so muito pouco, o mais necessrio a simpatia.
Francisco tinha tesouros para partilhar com eles.

E eles retribuam. Todos os sofrimentos so irmos. Entre os coraes


perturbados pelas mais diversas dores, se estabelecem compreenses
secretas. Os pobres sentiam que seu amigo sofria, tambm ele. Eles no
compreendiam bem por que, mas esqueciam suas tristezas e choravam
seu benfeitor. A dor o alicerce do amor. Para se amar de verdade
preciso ter partilhado lgrimas.

Ainda no vimos uma influncia estritamente eclesistica atuar sobre


Francisco. No h dvida de que ele tinha em seu corao esse fermento
de f crist que nos penetra, mesmo que no queiramos. Mas o trabalho
de transformao interior que se realizou nele ainda era, nesse momento,
fruto de uma intuio pessoal.

Esse perodo estava chegando ao fim. Seu pensamento ia se manifestar


e, justamente por isso, ia receber a marca das circunstncias. Francisco
vai reencontrar no ensino cristo direes que daro uma forma precisa
a idias vagamente entrevistas. Mas ele haveria de encontrar tambm
quadros em que seu pensamento perderia alguma coisa de sua originali-
dade e de seu vigor: o vinho novo seria colocado em odres velhos.

Entretanto, ele estava calmo. Na contemplao da natureza, encontrava


alegrias que tinha saboreado em outros tempos, mas s pressas, quase
inconscientemente, e que agora estava aprendendo a saborear. Da no
tirava s apaziguamento; sentia nascer em seu corao compaixes novas
e, com elas, a necessidade de agir, de se doar, de gritar a essas cidades
penduradas nas colinas, ameaadoras como guerreiros preparando-se
para o combate, que deviam se reconciliar e amar.

68
claro que, nesse momento, Francisco nem entrevia o que ele ha-
veria de ser; mas essas horas talvez sejam as mais importantes para a
evoluo do seu pensamento. Foram as que deram a sua vida esse jeito
de liberdade, esses perfumes campestres que a tornavam to diferente
da piedade das sacristias e tambm dos sales.

Foi nessa ocasio que ele partiu em peregrinao a Roma. Teria sido
por conselho de seu amigo? Seria uma penitncia imposta por seu con-
fessor? Um ato espontneo? No sabemos. Pode ser que ele pensasse
que uma visita aos Santos Apstolos, como ento se dizia, ajudaria a
encontrar a resposta a todas as questes que levantara.
Foi. Teria encontrado alguma influncia religiosa? pouco provvel,
porque seus bigrafos contam a penosa surpresa que teve na Baslica de
So Pedro quando viu como eram mesquinhas as ofertas dos peregrinos.
Por isso, quis dar tudo ao prncipe dos Apstolos: esvaziou a bolsa e
jogou todo o seu contedo no tmulo.
Essa viagem foi marcada por um incidente importante. Muitas vezes,
quando consolava os pobres, ele se tinha perguntado se saberia suportar a
misria: no se sabe o peso de um fardo seno depois de t-lo carregado
nas costas pelo menos um instante. Quis saber, ento, como no ter
nada e esperar o po da caridade ou do capricho dos passantes.
No adro da baslica fervilhavam nuvens de mendigos. Emprestou os
trapos de um deles em troca de sua roupa e, durante um dia inteiro, l
ficou, esfomeado, estendendo a mo 28.
Isso tinha sido uma grande vitria: o triunfo da compaixo sobre o
orgulho natural. Voltando a Assis, redobrou sua bondade para com aqueles
que tinham o direito, de verdade, de chamar de seus irmos.
Com esses sentimentos, no podia escapar por muito tempo influ-
ncia do Evangelho.

28
LTC 8-10; LM 13 e 14; 2Cel 1, 4.

69
Em todas as estradas dos arredores da cidade havia, como hoje, nume-
rosas capelas. Deve ter assistido com frequncia missa nesses rsticos
santurios, sozinho com o celebrante. Se levarmos em conta a queda das
naturezas simples por pensarem que so visadas pessoalmente por tudo
que ouvem, compreenderemos sua emoo e sua perturbao quando
o padre se voltava para ele e lia o evangelho do dia. O ideal cristo
revelava-se e lhe dava respostas a suas secretas preocupaes. Tambm
quando entrava nos bosques alguns instantes depois, todos os seus pen-
samentos iam para o pobre carpinteiro de Nazar que, colocando-se em
seu caminho, vinha dizer tambm a ele: Vem, segue-me.
J tinham passado quase dois anos desde o dia em que sofreu o pri-
meiro abalo: uma vida de renncia aparecia-lhe como o alvo de suas
buscas, mas sentia que seu noviciado espiritual no havia terminado:
teve, de repente, uma amarga experincia disso.
Passeava, um dia, a cavalo, com o esprito obcecado mais do que
nunca pelo desejo de levar uma vida de absoluta entrega quando, numa
volta do caminho, se encontrou face a face com um leproso. A terrvel
doena sempre lhe causara uma invencvel repulsa. No pde conter um
gesto de horror e, instintivamente, virou a rdea.
O choque foi duro, mas a derrota no tinha sido completa. Repreendeu-
se amargamente. Alimentar to bonitos projetos e se demonstrar to
fraco! O cavaleiro de Cristo estava entregando as armas? Voltou atrs e,
saltando do cavalo, deu ao infeliz estupefato todo o dinheiro que tinha.
Depois, beijou-lhe a mo como teria feito com um padre 29.
Como ele mesmo percebeu, essa nova vitria marcou uma data em
sua vida espiritual 30.
De fato, h muita distncia entre o dio do mal e o amor do bem.
So mais numerosos do que pensamos os que o disseram depois de du-
ras experincias do que as antigas liturgias chamam de mundo, suas

29
Ainda hoje, no centro e no sul da Itlia costume beijar a mo dos padres e monges.
30
Ver o Testamento. Cf. LTC 11; 1Cel 17; LM 11; A. SS., p. 566.

70
pompas e suas obras, mas a maior parte no tem um grozinho de puro
amor no fundo do corao. As desiluses s deixam nas almas vulgares
um terrvel egosmo.
Essa vitria tinha sido to rpida que Francisco quis complet-la:
dirigiu-se, alguns dias depois, a um leprosrio 31.
Para ir, tomou a maior das estradas que partiam de Assis, a que ia da
Praa para a porta Moiano e descia da em linha reta para a plancie. Ela
ainda existe, ainda que bem mais solitria depois que se abriam novos
caminhos mais cmodos.
Depois de uma breve hora de caminho, encontramos a capela de San-
ta Maria Madalena: era a que servia aos leprosos. A perto estava uma
outra, So Lzaro de Arce, que servia aos leprosos e que desapareceu,
a menos que restem algumas pedras que so parte de um oratrio parti-
cular dedicado a So Rufino de Arce ou San Rufinello. O Estatuto da
Magnfica cidade de Assis menciona frequentemente esse leprosrio.
Ento foi l, sem dvida, que Francisco quis estar para provar ainda mais
sua vocao e inaugurar sua misso de misericrdia.
Podemos imaginar o espanto dos infelizes quando viram chegar o
elegante cavaleiro. Se em nossos dias, para os doentes de um hospital
um verdadeiro acontecimento, esperado com impacincia febril, como
deve ter sido a apario de Francisco no meio desses pobres reclusos?
S quem j viu doentes abandonados pode compreender a alegria que
pode dar uma palavra afetuosa, s vezes mesmo um simples olhar.
Emudecido e arrebatado, Francisco sentia todo o seu ser interior vibrar
com sensaes desconhecidas 32. Pela primeira vez, estava escutando o
som indizvel do reconhecimento que no tem palavras suficientemente
quentes para se expressar, que admira e adora o benfeitor quase como
um anjo do cu.

31
LTC 11; LM 13.
32
Ver o Testamento, p. 458.

71
72
3

A Igreja em 1209

73
III

Non est qui invocet nomen tuum; qui consurgat et teneat te. Abscon-
disti faciem tuam a nobis, et allisisti nos in manu iniquitatis nostrae.
Et nunc, Domine, pater noster es tu, nos vero lutum; et fictor noster
tu, et opera manuum tuarum omnes nos. Ne irascaris, Domine, satis,
et ne ultra memineris iniquitatis nostrae; ecce, respice, populus tuus
omnes nos. Civitas Sancti tui facta est deserta, Sion deserta facta est,
Jerusalem desolata est. Domus sanctificationis nostrae et gloriae nos-
trae, ubi laudaverunt te patres nostri, facta est in exustionem ignis, et
omnia desiderabilia nostra versa sunt in ruinas. Numquid super his
continebis te Domine, tacebis, et affliges nos vehementer 1?
Et nunc, Domine Deus noster, qui eduxisti populum tuum de terra Ae-
gypti in manu forti, et fecisti tibi nomen secundum diem hanc, pec-
cavimus, iniquitatem fecimus, Domine, in omnem justitiam tuam;
avertatur, obsecro, ira tua et furor tuus, a civitate tua Jerusalem, et
monte sancto tuo; propter peccata enim nostra, et iniquitates patrum
nostrorum, Jerusalem et populus tuus in opprobrium sunt omnibus,
per circuitum nostrum. Nunc ergo exaudi, Deus noster, orationem
servi tui, et preces ejus; et ostende faciem tuam super sanctuarium
tuum, quod desertum est, propter temetipsum. Inclina, Deus meus,
aurem tuam, et audi, aperi occulos tuos, et vide desolationem nos-
tram, et civitatem super quam invocatum est nomen tuum; neque
enim in justificationibus nostris prosternimus preces ante faciem
tuam, sed in miserationibus tuis multis. Exaudi, Domine; placare,
Domine; attende et fac; ne moreris propter temetipsum, Deus meus,
quia nomen tuum invocatum est super civitatem et super populum
tuum 2.
Vox dilapsa est de cruce, dicens: Francisce, vade et repara domum
meam quae tota destruitur; per hoc Romanam significans Ecclesiam
3
.

1
Is., 64, 6-12.
2
Dn., 9, 15-19.
3
Inscrio do quarto afresco da igreja superior da baslica de So Francisco, em Assis.

74
III

Ningum invocava o teu nome, nem se esforava por se apoiar em ti,


porque escondias de ns a tua face e nos entregavas s nossas iniqi-
dades. Mas tu, Senhor, que s o nosso pai. Ns somos a argila e Tu
s o oleiro. Todos ns fomos modelados pelas tuas mos. Senhor,
no te irrites em demasia, nem te lembres para sempre de nossa
iniqidade: olha que todos ns somos o teu povo. As tuas cidades
santas tornaram-se num deserto: Sio tornou-se num ermo e Jerusa-
lm numa desolao. O nosso templo santo, o nosso orgulho, onde
os nossos antepassados celebravam os teus louvores, tornou-se presa
das chamas; aquilo que mais queramos converteu-se em runas.
Diante de tudo isso, Senhor, pode ficar insensvel? Vais permanecer
calado para nos humilhar ainda mais 4?
Agora, Senhor nosso Deus, que tiraste o teu povo do Egito, por tua
mo poderosa, e criaste uma glria que persiste ainda hoje, pecamos
e praticamos o mal. Senhor, pela tua misericrdia, digna-te afastar a
tua clera e o teu furor da tua montanha santa, Jerusalm, pois por
causa de nossos crimes e dos pecados de nossos pais que Jerusalm
e o teu povo esto expostos aos insultos de todos os que nos cercam.
Escuta, pois, nosso Deus, a splica insistente do teu servo. Pelo teu
amor, Senhor, faz brilhar a tua face sobre o teu santurio devastado.
meu Deus, presta ateno e ouve-nos; abre os olhos para ver as
nossas runas e a cidade que tem um nome que vem de ti. No por
causa dos nossos atos de justia que depomos a teus ps as nossas
splicas, mas em nome de tua grande misericrdia. Senhor, ouve!
Senhor, perdoa! Senhor, presta ateno! Age! Pelo teu bom nome,
meu Deus, no tardes, porque foi o teu nome que foi dado tua cida-
de e ao teu povo 5.
Uma voz desceu do crucifixo e disse: V, Francisco, repara minha
casa que cai em runas; ora, ela designava assim a igreja romana 6.

4
Is., 64, 6-12.
5 Dn., 9, 15-19.
6
Inscrio do quarto afresco da igreja superior da baslica de So Francisco, em Assis.

75
So Francisco foi, tanto quanto possvel, um inspirado, mas seria um
erro grosseiro arranc-lo de seu sculo para estud-lo fora das circuns-
tncias em que ele viveu.
verdade que ele acreditou e quis imitar Jesus, mas o que sabemos
sobre Cristo muito pouco para tirar de So Francisco seu carter de
originalidade. A persuaso de ser um imitador teve como resultado
preserv-lo de qualquer aparncia de orgulho. Ela permitiu que ele pre-
gasse suas idias com uma fora incomparvel, sem parecer que estava
pregando a si mesmo.
Por isso, no se deve nem isol-lo nem mostr-lo muito dependente.
Foi durante o perodo de sua vida a que chegamos (1205-1206), que a
situao religiosa da Itlia deve ter influenciado mais em seu pensamento,
levando-o pelo caminho em que ele ia entrar.
O clero tinha costumes mais corrompidos do que nunca e tornava
impossvel, por isso, qualquer reforma sria. Se entre as heresias havia
pessoas puras e honestas, havia muitas absurdas e abominveis. Algumas
vozes levantavam-se aqui e ali para protestar, mas as profecias de Joaquim
de Fiore, como tambm os de Santa Hildegarda no tinham conseguido
desenraizar o mal. Lucas Wadding, o piedoso analista franciscano, co-
meou sua obra com esse quadro assustador. O progresso das pesquisas
histricas permite-nos refaz-lo com mais detalhes, mas a concluso a
mesma: sem Francisco de Assis, a Igreja talvez tivesse soobrado, e os
Ctaros seriam os vencedores. O pobrezinho, expulso pelos servidores
de Inocncio III salvou a cristandade.

76
No se pode fazer aqui um estudo aprofundado sobre o estado da
Igreja no comeo do sculo XIII; basta anotar em algumas linhas os
pontos principais.
Se olharmos para o clero secular, ficamos assustados com a devas-
tao da simonia 7: o trfico dos cargos eclesisticos era feito com uma
audcia sem limites; os benefcios pareciam estar em leilo, e Inocncio
III confessava que precisaria de ferro e fogo para curar essa praga 8. Indi-
cavam-se como excees espantosas 9 os prelados que no se deixavam
comprar pelas propinae, as gorjetas!

Eles so de pedra para entender, dizia-se dos oficiais da cria roma-


na, de madeira para entregar julgamentos, de fogo para se enfurecer, de
ferro para perdoar, falsos como as raposas, orgulhosos como os touros,
to vidos e insaciveis quanto o Minotauro 10!

Os louvores dados ao papa Eugnio III por ter repelido um padre


que, no comeo de um processo, lhe ofereceu um marco de ouro, falam
bastante sobre os costumes de Roma a esse respeito. 11

Os bispos, por seu lado, encontravam mil meios, muitas vezes repug-
nantes, para extorquir o dinheiro dos simples padres. 12 Violentos, bri-

7 Os esforos de So Romualdo na regio de Camerino contra a simonia e os bispos sagrados em troca de


dinheiro tinham sido inteis. Ver sua Vida por So Pedro Damio A.SS. febr., t. 11, n 60 s., p. 117.
Um monge que tinha abominavelmente caluniado So Romualdo tornou-se por simonia bispo de Nocera
Umbra; ib., no 76, p. 120.
8
Bula de 8 de junho de 1198, Quamvis, Migne, t. I, col. 220: Potthast 265.
9
Por exemplo Pedro, cardeal de So Crisgono e antigo bispo de Meaux, que numa s eleio recusou a
oferta magnfica de quinhentos marcos de prata: Alexandre III, ed. Migne, epist. 395.
Fizeram o mesmo elogio ao prprio Inocncio III. Fuit in ferendis sententiis ita justus ut nunquam propinas
acciperet. Inocentii Opera. Gesta, d. Migne, t. I, cal. LXXXI.
10 Fasciculus rerum expetend. Et fagiend., t. lI, 7, p. 254-255, ed. Brown, 1690.
11
Joo de Salisbury, Policrat., ed. Migne, V. 15.
12
Entre as fontes de lucro encontra-se o direito de collagium, por cujo pagamento os clrigos adquiriam
o direito de manter sua concubina: Pedro, o Cantor, Verb. abbrev., 24.

77
guentos, batalhadores, eles eram ridicularizados pelo povo de uma ponta
outra da Europa, atravs de canes. 13

Quanto aos padres, tratavam de acumular benefcio, captavam he-


ranas e se viam reduzidos aos mais vis meios para estabelecer seus
bastardos. 14
As ordens monsticas no eram mais respeitveis. 15 Tinham aparecido
muitas nos sculos XI e XII, mas bem depressa a sua reputao de santi-
dade provocava liberalidades, e essas levavam fatalmente decadncia.
Poucas comunidades tinham tido a preocupao dos primeiros monges
da Ordem de Grammont (diocese de Limoges): quando Estevo de Muret
seu fundador, comeou a mostrar sua santidade curando um cavaleiro
paraltico e dando a viso a um cego, seus discpulos se alarmaram, pen-
sando na riqueza e na notoriedade que viriam a obter. Pedro de Limoges,
que o sucedeu como prior, foi a seu tmulo:
servidor de Deus, disse-lhe, tu nos mostraste o atalho da pobreza
e agora queres nos fazer sair do caminho direto e difcil da salvao para
nos colocar na estrada larga da morte eterna. Tu nos pregaste a solido
e agora vais mud-la numa feira e numa praa de mercado. Ns bem
sabemos que tu s um santo! Por isso no precisas fazer milagres que o
comprovem, mas que destruiriam a nossa humildade. No cuides demais

13
Ver Carmina Burana, Breslau, in-8, 1883; Political songs of England publicados por Th. Wright,
Londres, in-8, 1839; Posies populaires latines du moyen ge, ed. du Mril, Paris, 1847. Ver tambm Ray
nouard, Lexique roman, I, 446, 451, 464, a bela poesia do trovador Pedro Cardeal, contemporneo de So
Francisco, sobre as infelicidades da Igreja, e Dante: Inferno XIX. Se se quiser ter uma idia do que custava
nesse tempo a suas ovelhas um bispo de uma cidade pequena, basta ler a bula de 12 de fevereiro de 1219,
Justis petentium, dirigida por Honrio III ao bispo de Terni e fechando o contrato pelo qual os habitantes
dessa cidade constituem a mesa da s episcopal. Horoy, t. III, col. 114 ou no Bullarium romanum, t. III, p.
348, ed. de Turim.
14
Conosco sacerdoti che fanno gli usurai per formare un patrimonio da lasciare ai loro spurii: altri che
tengono osteria collinsegna del collare e vendono vino... Salimbene ed. Cantarelli, Parma 1882, 2 voI.
in-8, t. 11, p.307.
15
A bula Si diligente de Inocncio III, 15 de maro de 1213 (Potthast 4680) terrvel contra Cluny.
O triste estado do monte Cassino provado pela bula de Inocncio III, Ad Reformationem de 20 de setembro
de 1215, publicada por Dantier, Monastres bndictins, t. I, p. 506-509.

78
da tua repu-tao para aument-la em detrimento de nossa salvao.
isso que ns pedimos e esperamos de teu amor. Se no ns te declara-
mos pela obedincia que um dia te prometemos nos desenterraremos
teus ossos e os jogaremos no rio.
Estevo obedeceu at a sua canonizao (1189), mas a partir desse
momento a ambio, a avareza e a luxria invadiram tanto a solido de
Grammont, que transformaram seus monges em fbula e ridculo no
mundo cristo 16.
Pedro de Limoges no estava enganado de ver seus mosteiros trans-
formados em campo de feira: sombra da maior parte das catedrais os
membros dos cabidos tinham verdadeiros negcios de vinho, e em certos
mosteiros no hesitavam em atrair os fregueses atravs de jograis de todo
tipo e at de cortess. 17
Para ter uma idia da degradao da maior parte dos monges, preciso
ler, no as apstrofes quase sempre oratrias e exageradas dos prega-
dores, obrigados a bater forte para comover, mas percorrer as colees
de bulas, onde os apelos na corte de Roma por assassnios, violaes,
incestos, adultrios aparecem quase em cada pgina.
Compreende-se que mesmo um Inocncio III se tenha sentido muito
fraco diante de tantos males a conjurar, que ele tenha tentado entregar-se
ao desencorajamento 18.
Os melhores coraes voltavam-se para o Oriente e se perguntavam
se de repente a Igreja grega no viria purificar tudo isso e ficar com a
herana de sua irm. 19

16
Ver Brevis historia Prior. Grandimont. - Stephani Tornacensis. Epist. 115, 152, 153, 156, 162; Honrio
III, edio Horoy, lib. 1., 280, 2840, 286-288; 11, 12, 130, 136, 383-387.
17
Gurard, Cartulaire de Notre-Dame de Paris, t. I, p. CXI; t. 11, p.. 406. Cf. Honrio III, bula: Inter
statuta de 25 de julho de 1223, Horoy, t. IV, col. 401. Ver tambm o cnon 23 do conclio de Bziers 1233;
Guibert de Gemblours, epist. 5 et 6 (ed. Migne); Honrio III, lib. IX, 32, 81; II, 193; IV, 10; 111,253 e 258;
IV, 33, 27, 70, 144; V, 56, 291., 420, 430; VI, 214, 132, 139, 204; VII, 127; IX, 51.
18 Ver Bula Postquam vocante Domino de 11 de julho de 1206, Potthast 28400.
19
Ver Annales Stadenses [Monumenta Germaniae historica, Scriptorum, t. 16], ad ann. 1237. Entre os
quadros de conjunto da situao da Igreja no sculo XIII, no h nenhum mais interessante do que o que nos
foi deixado pelo cardeal Jacques de Vitry (+ 1244) em sua Historia occidentalis: Libri duo quorum prior
Orientalis, alter Occidentalis historiae nomine inscribitur Duaci 1597, n-16, p. 259-480.

79
O clero, ento, no era mais respeitado, mas ainda se impunha pelo
terror supersticioso que se tinha de seu poder. Por toda parte podiam ser
vistos sintomas anunciando terrveis revoltas; os caminhos de Roma
estavam atulhados de monges que iam pedir proteo da Santa S contra
as populaes em cujo seio viviam. O papa pronunciava regularmente
o interdito, mas no dava para sonhar em recorrer a ele eternamente. 20
Para manter os privilgios da Igreja, o papado era levado muitas vezes
a cobrir com sua proteo os que menos a mereciam. Seus clientes nem
sempre foram to interessantes como a infeliz Ingelburga. Ficaramos
mais vontade para admirar sem restrio a conduta de Inocncio III, se
pudssemos ter a convico de que, para ele, o caso era manter a causa
de uma pobre mulher abandonada. Mas muito evidente que ele queria,
acima de tudo, manter as imunidades eclesisticas. Isso ficou bem claro
em sua interveno em favor de Waldemar, bispo de Sleswig.

Mas no devemos pensar que tudo era corrupo no seio da Igreja;


mas, como sempre, o mal fazia mais barulho do que o bem, e voz dos que
queriam uma reforma no chegava a criar seno movimentos passageiros.

No meio do povo, a superstio era incrvel; a pregao, que teria


podido difundir algumas luzes, ainda era reservada aos bispos, e os raros
pastores que no esqueciam seu dever a esse respeito, estavam muito
absorvidos por outros cuidados. Foi o nascimento das ordens mendicantes
que obrigou o clero secular inteiro a se acostumar a pregar.

O culto, reduzido s cerimnias litrgicas, no conservava mais nada


que apelasse para a inteligncia; tornava-se cada vez mais uma espcie
de frmula mgica agindo por si mesma. Uma vez nesse caminho, ia-se
logo ao absurdo. Pessoas que se criam piedosas contavam as maravilhas
operadas pelas relquias, sem que precisasse intervir o ato moral da f.

20
Ver Honrio III, ed. Horoy, lib. I, ep. 109, 125, 135, 206, 273; lI, 128, 164; IV, 120, etc.

80
Aqui, havia um periquito que, agarrado por um gavio, comeava a
gritar a invocao de que sua dona gostava: Sancte Thoma, adjuva me e
ficava milagrosamente livre. L, era um comerciante de Groningue que
roubava um brao de So Joo Batista e ficava rico como por encanto,
enquanto o conservava em sua casa, mas que reduzido mendicidade
quando, descoberto o seu segredo, a relquia lhe foi tirada e colocada
em uma igreja21.

E preciso notar que essas narrativas no provm de devotos igno-


rantes, perdidos no fundo dos campos; foram feitos por um dos monges
mais instrudos de seu tempo, que os contou a um novio para formar
suas idias!

As relquias agiam ento como verdadeiros talisms. No s operavam


milagres sem que o miraculado precisasse estar em condies especiais
de f ou de devoo, mas as mais poderosas curavam doentes at sem
que o quisessem. Um cronista conta que o corpo de So Martinho de
Tours tinha sido escondido e levado para longe em 887, por medo da
invaso dinamarquesa. Quando resolveram repatri-lo, havia em Touraine
dois aleijados que, graas sua doena, ganhavam muito mendigando.
A notcia de que estavam levando as relquias causou-lhes um grande
terror: So Martinho iria certamente cur-los e lhes tirar o ganha-po.
Seus temores eram muito bem fundamentados. Eles comearam a fugir,
mas coxeavam muito para ir depressa e ainda no tinham passado as
fronteiras de Touraine quando o corpo do santo chegou e os curou22!

Poderamos colecionar centenas de contos do mesmo tipo, fazendo


estatsticas em que se mostraria como, na ascenso de Inocncio III, a
maior parte das sedes episcopais estavam ocupadas por indignos, os
conventos povoados de monges preguiosos e debochados. Daria para
fazer, assim, um quadro verdadeiramente exato da Igreja nessa poca?

21
Dialogus miraculorum de Cesrio de Heisterbach [edio Strange, Colnia, 1851, 2 vol. in-8], t. II, p.
255 e 125. Esse livro , com a Legenda dourada de Tiago de Voragine, o que pode ajudar melhor a compre-
ender o estado do pensamento religioso no sculo XIII.
22
Ver Leg. Aur., ed. Graesse, p. 750.

81
Acho que no. Para comear, preciso levar em conta as almas de elite,
mais numerosas, sem dvida, do que podemos pensar. Cinco justos teriam
salvado Sodoma; o Eterno no os encontrou. A Igreja do sculo XIII teve
os seus, e foi por isso que a tempestade da heresia no acabou com ela.

H mais: a Igreja dava, ento, um belo espetculo de grandeza moral.


preciso saber desviar os olhos das misrias que acabamos de indicar
para lev-las at o trono pontifcio e ver a beleza da luta que era feita:
um poder todo espiritual pretende dominar os reis da terra, como a alma
domina o corpo, e acaba vencendo.

certo que os soldados e os generais desse exrcito foram muitas


vezes verdadeiros bandidos, mas ainda preciso, para ser justo, com-
preender o fim que eles visavam.

Nessas idades do ferro, em que a fora bruta era tudo, a Igreja, apesar
de suas pragas, mostrou aos homens camponeses e operrios recebendo
a humilde homenagem dos mais altos potentados da terra, simplesmente
porque estavam sentados na cadeira de So Pedro e porque representa-
vam a lei moral.

por isso que Alighieri e muitos outros antes e depois dele puderam
amaldioar os maus ministros, mas sem ter no fundo do corao algo
mais que uma imensa compaixo e um ardente amor por essa Igreja que
eles no deixavam de chamar de me.

Mas no era todo mundo que os imitava, e os vcios do clero explicam


um nmero infinito de heresias.

Todas elas tiveram sucesso, desde as que eram simples gritos da


conscincia revoltada, como a dos Valdenses, at as mais loucas, como
a de on da Estrela. No meio delas houve belas e santas causas; mas
no podemos esquecer que as perseguies sofridas pelos hereges no as
fazem interessantes a ponto de perturbar nosso julgamento. Seria melhor
para Roma que ela tivesse triunfado pela doura, pela instruo e pela
santidade; mas, infelizmente, um combatente no escolhe sempre as suas
armas e, quando parte, toma as melhores que encontra ao seu alcance. O

82
papado no esteve sempre do lado da reao e do obscurantismo: quando
arrasou os Ctaros, por exemplo, sua vitria foi a do bom senso e da razo.

A lista das heresias do sculo XIII j bem longa; e continua a se alon-


gar todos os dias para a maior alegria dos eruditos que fazem laboriosos
esforos para classificar tudo. Na confuso do misticismo e da loucura.

Nesse momento, as heresias foram muito vivas e, conseqentemente,


muito complexas e dotadas de uma plasticidade surpreendente. Podemos
indicar correntes, marcar as direes; ir mais longe condenar-se e no
entender mais esses movimentos instintivos, apaixonados, bizarros, que
nascem, projetam-se e caem outra vez, de acordo com o capricho de mil
circunstncias impossveis. Em certos condados da Inglaterra, h em
nossos dias vilas que tm at oito ou dez lugares de culto para algumas
centenas de habitantes. A maior parte dessas pessoas muda de seita cada
trs ou quatro anos; voltam para a que tinham abandonado, deixam-na
para entrar outra vez e isso durante toda a vida. Seus chefes do o exemplo
e se lanam entusiasmados em cada novidade para deix-la logo depois.
Uns e outros ficariam embaraados para dar razes compreensveis dessas
idas e vindas. o Esprito que os conduz, dizem eles, e seria impertinente
no acreditar neles. Mas o historiador que quisesse estudar tudo isso
perderia a cabea, a no ser que abrisse em seu arquivo uma pasta para
cada um desses Proteus. Na verdade, no valem a pena.

Essa situao lembra um pouco a de uma grande parte da cristandade


sob Inocncio III, mas enquanto as seitas de que acabo de falar movem-se
em um crculo muito estreito de dogmas e idias, no sculo XIII todos
os excessos se encontram e se sucedem. Passava-se sem transio pelos
sistemas mais contraditrios.

Mas d para notar dois ou trs traos gerais: de incio, as heresias no


so mais, com outrora, sutilezas metafsicas; rio e Prisciliano, Nestrio
e utikes esto bem mortos.
Em segundo lugar, elas no partem da classe mais elevada e dirigente,
mas principalmente do baixo clero e do povo. Os golpes que puseram
de verdade a Igreja medieval em perigo vieram de operrios obscuros,

83
de pobres e oprimidos que, em sua misria e degradao, sentiam que
ela tinha falhado em sua misso.

Quando uma voz se elevava pregando a austeridade e a simplicidade,


reunia ao seu redor no s leigos mas tambm membros do clero. Vemos,
assim, um certo Pons comover todo o Prigord l pelo fim do sculo XIII,
e pregar antes de So Francisco a pobreza evanglica. 23

Duas grande correntes so manifestas: de um lado, os ctaros; do


outro, as numerosas seitas que se revoltam por fidelidade ao prprio
cristianismo e querem voltar Igreja primitiva.

Entre as seitas da segunda categoria, o fim do sculo XIII viu eclodir


na Itlia a dos pobres que se ligavam sem dvida tentativa de Arnaldo
de Brscia e que negavam a eficcia dos sacramentos administrados por
mos indignas. 24

Um verdadeiro ensaio de reforma foi tentado pelos valdenses. Sua


histria, ainda que mais conhecida, ainda continua bem obscura em al-
guns pontos; seu nome de Pobres de Lio recorda o dos precedentes com
os quis eles tiveram estreitos relacionamentos, como tambm com os
Humilhados. Todos esses nomes levam-nos involuntariamente a pensar
no que Francisco viria a dar sua Ordem. As analogias de inspirao
entre Pedro Valdo e So Francisco so to numerosas que poderamos
ser tentados e crer em uma espcie de imitao. Seria errado: as mesmas
causas produziam por toda parte os mesmos efeitos; as idias de reforma,
de volta pobreza evanglica, estavam no ar, e isso ajuda a compreender
a ressonncia que a pregao franciscana devia ter em poucos anos no
mundo inteiro. Se os comeos desses dois homens foram idnticos, a
sequncia de sua vida vai diferir bastante: Valdo, jogado na heresia contra
a sua vontade, foi obrigado a tirar as conseqncias das premissas que

23
Recueil des historiens de la France, Bouquet, t. XII, p. 550-551.
24
Bonacorsi, Vitae haereticorum [dAchery, Spicilegium, t. l, p. .215.]. Cf. Lcio III, epist. 171, ed. Migne.

84
tinha colocado, 25 enquanto Francisco, que permaneceu filho submisso
da Igreja, empregou todos os seus esforos para desenvolver nele e em
seus discpulos o caminho do corao.

De resto, parece muito provvel que, por seu pai, Francisco tinha
sido posto a par das tentativas dos Pobres de Lio. Assim se explica a
frequncia de seus conselhos sobre a submisso que os frades deviam
ter para com o clero.
Quando foi pedir a aprovao de Inocncio III, evidente que os
prelados com os quais se entrevistou avisaram-no contra os perigos de
sua criao citando justamente o exemplo de Valdo. 26
Valdo tinha vindo a Roma em 1179, com alguns companheiros, para
pedir ao mesmo tempo a aprovao de sua traduo das Escrituras em
lngua vulgar e a permisso de pregar. Foram atendidos com a condio
de obter para todas as pregaes a autorizao dos padres. Gautier Map
(+1210), encarregado de examin-los, mesmo ridicularizando sua sim-
plicidade, no pde deixar de admirar sua pobreza e seu zelo pela vida
apostlica. 27
Dois ou trs anos mais tarde, no tiveram a mesma acolhida em Roma,
e em 1184 foram anatematizados pelo conclio de Verona. A partir desse
momento, nada mais conseguiria det-los, at o estabelecimento de uma
nova igreja.
Eles se multiplicaram com uma rapidez que mal seria ultrapassada
pelos franciscanos. So encontrados, desde o fim do sculo XII, espa-
lhados desde a Hungria at a o corao da Espanha; foi nesse ltimo
pas que comearam a persegui-los. Nos outras regies, contentaram-se
inicial-mente de trat-los como excomungados.

25 Ver Bernard Gui, Practica inquisitionis, ed. Douais, in-4. Paris, 1886, p. 244 ss. E principalmente o
manuscrito da Vaticana, 2548, fo 71.
26
Um cronista contemporneo de So Francisco fez esta aproximao: Burchard, paroco de Ursperg (+1226)
[Burchardi et Cuonradi chronicon. Monum. Germ. hist. Script.: t. XXIII] deixou-nos um relatrio sobre
a aprovao de Francisco pelo papa, mais precioso ainda por ser de um contemporneo. Loc. cit., p. 376.
27
De nugis Curialium. Dist. I, cap. 31, p. 64, d. Wright. Cf. Chronique de Laon, Bouquet XIII, p. 680.

85
Obrigados a se esconder, colocados na impossibilidade de fazer seus
captulos que deviam acontecer uma ou duas vezes por ano, e que teriam
podido manter entre eles certa unidade de doutrina, os Valdenses se trans-
formaram rapidamente de acordo com os ambientes, uns obstinando-se
em se crerem bons catlicos, outros chegando a pregar a derrubada da
hierarquia e a inutilidade dos sacramentos. 28
Por isso houve essa multido de ramos to diferentes e mesmo inimi-
gos que se transformavam de uma hora para outra.
Entretanto, a perseguio comum aproximava-os dos ctaros e favo-
recia o amlgama de idias. No d para imaginar como eram ativos.
Sob pretexto de peregrinao a Roma, estavam sempre viajando, sim-
ples e insinuantes. Sua maneira de viajar era particularmente favorvel
difuso de suas idias. Contando as notcias para os que lhe davam
hospitalidade, falavam do triste estado da Igreja e da reforma necessria.
Essas conversas eram um meio de apostolado bem mais eficaz que os de
hoje, pelo livro e o jornal: para comunicar o pensamento, nada melhor
que a viva vox 29.
Por conta dos valdenses espalharam-se s vezes ms histrias; a
calnia uma arma muito fcil para no tentar os adversrios em apu-
ros. Tambm lhes atriburam promiscuidades imundas, como tinham
acusado outrora os primeiros cristos. 30 Na realidade, sua verdadeira

28 Ver por exemplo a carta do ramo italiano dos Pobres de Lio [Pauperes Lombardi] a seus irmos da
Alemanha, l chamados de Leonistas. A eles expem os pontos sobre os quais no esto de acordo com
os valdenses franceses. Publicada por Preger: Abhandlungen der K. Bayer. Akademie der Wiss. Hist. Cl., t.
XIII, 1875, p. 179 ss.
29
Essas viagens contnuas fizeram com que s vezes fossem chamados de Passantes, como no sul da Frana
os pregadores de certas seitas ainda hoje so chamados de Carteiros. Mas esse termo designa especialmente
uma seita judaizante que pregava a volta total da observncia literal da lei mosica; Dllinger, Beitrge, t. Il, p.
327 et 375. Identificavam-se ento com os Circuncidados da constituio de Frederico II (Huillard-Brholles,
t. V, p. 280). Ver principalmente o belo estudo de M. C. Molinier, Mmoires de lAcadmie de Toulouse, 1888.
30
A bula Hujus pestis de 13 de junho de 1233 no deixa nenhuma dvida sobre isso. L. Auvray, Registre
de Grgoire IX, n 1391.

86
fora estava em suas virtudes que faziam um contraste to grande com
os vcios do clero.
Os inimigos mais poderosos e mais decididos da Igreja foram os c-
taros.31 Sinceros, audaciosos, frequentemente instrudos e disputadores,
tendo entre eles cortes de elite e personalidades de um grande poder
intelectual, foram, no sculo XIII, os hereges por excelncia. Sua revolta
no levava, como entre os primeiros valdenses, a pontos de detalhes ou a
questes de disciplina; tinha uma base doutrinal decidida, em contradio
com todo o dogma catlico.
Entretanto, ainda que essa heresia florescesse na Itlia, e justamente
embaixo dos olhos de Francisco, s vou me referir a ela com brevidade.
Se as infiltraes do movimento valdense sobre a sua criao foram
numerosas, era totalmente estranha ao catarismo.

Isso se explica naturalmente, pelo fato de que ele nunca quis se ocupar
com questes de doutrina. Para ele, a f no era do domnio intelectual
mas do moral: a consagrao do corao. Para ele, o tempo passado
dogmatizando era perdido.

Uma passagem da vida de Frei Egdio mostra bem em que magra


estima os primeiros frades menores tinham a teologia. Um dia, diante
de So Boaventura, talvez com uma ponta de ironia, ele gritou: Que
vamos fazer ns, ignorantes e simples para merecer a bondade de Deus?
~Meu irmo, disse o famoso doutor, tu sabes que basta amar o Senhor.
- Tens certeza, replicou Frei Egdio, crs que uma mulher simples pode
agradar a Ele tanto quanto um mestre de teologia? Diante da resposta
afirmativa do interlocutor, ele correu para fora, chamando com toda
fora uma mendiga: Pobre velha, gritou-lhe, alegra-te porque, se amas
a Deus, poders estar no reino dos cus acima do Frei Boaventura 32.

31
Sobre os ctaros, ver um resumo imparcial em Hfl, t. VIII, p. 61-71.
32
A. SS. Aprilis, t. III, p. 238 d.

87
Os ctaros, ento, no tiveram influncia direta sobre So Francisco
, mas nada poderia mostrar to bem a desordem do pensamento nessa
33

poca do que a ressurreio do maniquesmo.

A que grau desnimo e de loucura teria sido necessrio que a Itlia


religiosa tivesse chegado para que essa mistura de idias budistas, maz-
deistas e gnsticas tenha tido sucesso?
A doutrina ctara firmava-se sobre o antagonismo dos dois princpios,
um mau, outro bom. O primeiro criou a matria, o segundo criou as almas
que passam de gerao em gerao de um corpo para outro para chegar
salvao. A matria a causa e sede do mal; todo relacionamento com
ela uma mancha 34; como conseqncia os ctaros renunciavam ao
casamento, propriedade, e recomendavam o suicdio. Tudo isso estava
misturado com mitos cosmognicos muito complicados.
Seus seguidores dividiam-se em duas categorias, os puros ou perfeitos,
e os crentes que eram proslitos de segundo grau e s tinham obrigaes
muito simples. Os adeptos propriamente ditos eram iniciados pela ceri-
mnia do consolamentum, ou imposio das mos, que devia fazer descer
sobre eles o esprito consolador. Havia alguns to entusiastas que, depois
da cerimnia, colocavam-se em endura, isto , deixavam-se morrer de
fome para no sair desse estado de graa.
No Languedoc, onde comeou o costume de cham-los de albigenses,
tinham uma organizao que abraava toda a Europa central, e mantinham
por toda parte escolas florescentes frequentadas pelos filhos da nobreza.

33
Quero dizer que entre a inspirao de Francisco e as doutrinas ctaras h uma anttese irredutvel; mas
no seria difcil encontrar nele palavras e atos que lembram o dio dos ctaros pela matria; por exemplo,
a maneira de tratar seu corpo; alguns de seus conselhos aos frades: Unusquisque habet in potestate sua
inimicum suum videlicet corpus, per quod peccat. Man. 338 de Assise, fo 20 b. Conform. 138 b. 2. - Cum
majorem inimicum corpore non habeam. 2Cel 3, 63. Cf. EP 59. So obscurecimentos momentneos, mas
inevitveis; instantes de esquecimento, de desencorajamento, em que o homem no mais ele mesmoe em
que repete maquinalmente o que dizem ao seu redor. O verdadeiro So Francisco , ao contrrio, o amigo
da natureza,aquele que v em toda a criao a obra da bondade divina, a irradiao da beleza eterna. o do
Cntico das criaturas, que no via em seu corpo o Inimigo mas um irmo: Caepit hilariter loqui ad corpus:
Gaude, frater corpus 2Cel 3,127. Confessus est se multum peccasse in fratrem corpus, LTC 14.
34
Quodam die, dicta fabrissa dixit ipsi testi praegnanti, quod rogaret Deum, ut liberaret eam a Daemone,
quem habebat in ventre... Gulielmus dixit quod ita magnum peccatum erat jacere cum uxore sua quam cum
concubina. Dllinger, loc. cit., p. 24 e 35.

88
Na Itlia, no eram menos poderosos: Concorrezo, perto de Monza
na Lombardia, e Bagnolo, perto de Milo, deram seus nomes a duas
congregaes umas pouco diferentes das do Languedoc 35.

Mas foi principalmente em Milo 36 que se difundiram por toda a Pe-


nnsula e fizeram proslitos at nos distritos mais longnquos da Calbria.

O estado de anarquia em que estava o pas foi muito favorvel a eles.


O papado estava muito ocupado em cuidar dos esforos espasmdicos
dos Hohenstaufen para colocar em sua luta contra a heresia a perseve-
rana e o acompanhamento necessrios. As idias novas eram pregadas
at na sombra da baslica do Latro: em 1209 Oto IV, vindo se fazer
coroar em Roma, a encontrou uma escola em que o maniquesmo era
ensinado publicamente 37.

Apesar de sua energia, Inocncio III no tinha conseguido erradicar


o mal nos Estados da Igreja. O caso de Viterbo esclarecedor sobre as
dificuldades da represso: em maro de 1199, o papa escreveu ao clero
e ao povo dessa cidade para lembrar e agravar as penas contra a heresia.
Apesar disso, os Patarenos tiveram maioria em 1205 e conseguiram
nomear cnsul um deles.38

A clera do pontfice foi sem meios termos; fulminou uma bula em que
ameaava a cidade de mandar saque-la, e ordenava s cidades vizinhas
de se lanar sobre ela se em quinze dias no tivesse prestado satisfao.39

35
As dos Concorrezenses e dos Bajolenses. Na Itlia, Cathari tranforma-se em Gazzari: alis, em que cada
regio havia nomes particulares; uma das mais difundidas nos pases do norte era a de Bulgares que indica
a origem oriental da seita, de onde vem o termo dialetal Boulgres e seus derivados (Ver Matthieu Paris, ann.
1238). Cf. Schmidt, histoire des Cathares, in-8, 2 vol. Paris, 1849.
36 O nome mais corrente na Itlia foi Patarenos, que lhes foi dado por causa do bairro dos brechs, onde
eles moravam em Milo: la contrada dei Patari, que encontramos em muitas cidades. Patari I at hoje
o grito dos trapeiros nas pequenas cidades da Provena. No sculo XIII, Patareno e Ctaro so sinnimos.
Mas, antes, o termo Patarenos teve um sentido bem diferente. Ver o notvel estudo de M. Flix Tocco sobre
o assunto em seu Eresia nel medio evo, in-12. Florena, 1884.
37
Cesrio de Heisterbach, Dial. mirac., t. I, p. 309, ed. Strange. Htl, t. VIII, p. 72.
38 Innocentii opera, Migne, t. I, col. 537; t. 11, 654.
39
Computruistis in peccatis sicut jumenta in stercore suo ut fumus ac fimus putrefactionis vestrae jam fere
circum adjacentes regiones infecerit, ac ipsum Dominum ut credimus ad nauseam provocaverit. Loc. cit.,
col 654. Cf. 673, Potthast 2532, 2539.

89
Foi em vo. Os patarenos no foram inquietados, era necessria a
presena do prprio Papa para garantir a execuo de suas ordens e fazer
demolir as casas dos hereges e dos que os apoiavam (outono de 1207) 40.

Mas, sufocada em um ponto, a revolta aparecia em outros cem. Nesse


momento ela triunfava em toda parte: em Ferrara, Verona, Rimini, Flo-
rena, Prato, Faenza, Trevis, Placncia. O clero foi expulso desta ltima
cidade, que ficou mais de trs anos sem padre.41

Viterbo est a vinte lguas de Assis, Orvieto a dez apenas, e as de-


sordens tinham sido graves nesses lugares. Um nobre romano, Pietro
Parentio, que l era comandante pela Santa S, quis exterminar os Pata-
renos e foi assassinado.42

Mas Francisco no tinha que ir to longe para ver os hereges. Em Assis


acontecia o mesmo que nas cidades vizinhas. Desde 1203, a cidade tinha
escolhido como podest um herege chamado de Giraldo di Gilberto, e,
apesar das advertncias vindas de Roma, ela se obstinara em mant-lo
frente de seus negcios at o fim do mandato (1204).

Inocncio III, que ainda no tinha sido severo com Viterbo, usou a
persuaso e mandou para a mbria o cardeal Leo da Santa Cruz, que
reaparecer vrias vezes neste estudo 43.

O sucessor de Giraldo e cinqenta dos principais cidados pediram


desculpas e juraram em suas mos fidelidade Igreja.

40
Gesta Innocentii, Migne, t. I, col. CLXII. Cf. epist. VIII, 85 et 105.
41 Campi, Historia Ecclesiastica di Piacenza, parte lI, p. 92 ss. Cf. Innoc. epist., IX, 131, 166-169; X,
54, 64, 222.
42 A.SS. Maii, t. V, p. 87.
43
Bula de 6 de junho de 1205, Potthast 2237; Migne, VII, 83. Esse cardeal Leone (do ttulo presbiteral
da Santa Cruz de Jerusalm) era um dos mais apreciados por Inocncio III. Foi a ele e a Hugolino, futuro
Gregrio IX, que ele confiou nessa poca as misses mais delicadas (por exemplo, em 1209, foram nome-
ados legados junto de Oto IV). Essa escolha prova como era importante para o papa o problema de Assis,
embora fosse uma cidade bem pequena.

90
Percebemos em que estado de ebulio estava a Pennsula durante
esses primeiros anos do sculo III. Era necessrio que a decadncia moral
e do clero estivesse bem profunda para que as almas se tivessem voltado
para o maniquesmo com tanto ardor.
A Itlia deve ser grata a So Francisco: ela estava to infestada de
catarismo quanto o Languedoc, e foi ele quem a purificou. Ele no fi-
cou demonstrando por silogismos ou teses de teologia a vacuidade das
doutrinas ctaras. Elevando rapidamente a vida religiosa, ele fez que
brilhasse de repente aos olhos de seus contemporneos um ideal novo,
diante do qual desapareceram todas essas seitas bizarras, como pssaros
noturnos espantados pelos primeiros raios do sol.
Uma parte do poder de So Francisco devida ao fato de ele se
abster sistematicamente de polmicas. Elas so sempre mais ou menos
uma forma de orgulho espiritual; s conseguem aprofundar os abismos
que pretendem fechar. A verdade no precisa ser provada: ela se impe.
A nica arma que ele quis usar contra os maus foi a santidade de uma
vida bem plena de amor para esclarecer e reaquecer os que o cercavam
e obrig-los a amar.44
O desaparecimento do catarismo na Itlia, sem choques, foi um re-
sultado indireto do movimento franciscano, e no s isso. 45 voz do
reformador umbro, a Itlia se refez; reencontrou seu bom senso e seu
bom humor; eliminou essas idias de pessimismo e de morte como um
organismo robusto elimina os princpios mrbidos.
Procurei mostrar acima como a iniciativa de Francisco apresenta uma
analogia com a dos Pobres de Lio. Seu pensamento amadureceu em um
meio todo impregnado por suas idias, onde elas puderam penetrar sem
ser percebidas. As profecias do Abade calabrs tiveram sobre ele uma
influncia igualmente difcil de definir, mas bem profunda.

44
Ns no o vemos nenhuma vez s voltas com os hereges. Os primeiros dominicanos, em vez, esto
sempre ocupados com a argumentao. Ver EP 53; 2Cel 3, 46.
45
No quero dizer, claro, que no se encontre nenhum vestgio depois do ministrio de So Francisco,
mas isso no foi uma fora, e no colocou mais em perigo a prpria existncia da Igreja.

91
Colocado nos confins da Itlia e praticamente s portas da Grcia,
Joaquim de Fiore 46 constitui o ltimo elo de uma sequncia de monges
profetas, que se sucederam durante perto de quatrocentos anos nas lauras
e nos eremitrios do sul da Pennsula. O mais famoso tinha sido So Nilo,
espcie de Joo Batista bravio, vivendo nos desertos mas que deles saa
bruscamente quando seus deveres de justiceiro chamavam-no a outros
lugares. Um dia apareceu em plena Roma, onde anunciou ao papa e ao
imperador a chegada da clera divina.47
Espalhados nas solides alpestres da Basilicata, esses eremitas cala-
breses eram obrigados a subir cada dia mais alto para fugir dos povoados
que, perseguidos pelos piratas, iam para as montanhas. Ento, passavam
sua vida entre o cu e a terra, com dois mares por horizonte. Perturbados
pelo medo dos corsrios e os gritos de guerra cujo eco subia at eles,
voltavam-se para o futuro. As pocas dos grandes terrores so tambm as
das grandes esperanas; ao cativeiro da Babilnia que devemos, com a
continuao de Isaas, os quadros com que a alma humana ainda no se
cansou de se encantar; as perseguies de Nero deram-nos o Apocalipse
de So Joo, e as borrascas do sculo XII, o Evangelho eterno.
Convertido depois de uma vida dissipada, Joaquim de Fiore viajou
longamente pela Terra Santa a Grcia e Constantinopla. Voltando para a
Itlia, embora fosse leigo, ps-se a pregar nos arredores de Rende e de
Cosenza. Mais tarde entrou nos cistercienses de Cortale [Corace], perto
de Catanzaro, e a fez seus votos. Bem depressa eleito abade do mosteiro,
apesar de ter recusado e fugido. Depois de alguns anos, foi tomado pelas
saudades da solido, e foi encontrar o papa Lcio III para ser dispensado
de suas funes (1181) e poder consagrar todo o seu tempo s obras que
meditava. O papa acolheu seu pedido e lhe permitiu ir onde bem lhe
parecesse no interesse de seus trabalhos. Comeou, ento, para Joaquim
uma vida errante de convento em convento que o levou Lombardia, a

46 Essa fisionomia estranha seduziria ainda por muito tempo os historiadores e os filsofos. No conheo
nada mais sbio nem mais luminoso do que o belo estudo de M. Flix Tocco, em seu Eresia nel medio evo,
Florena, 1884, 1 vol. in-12, p. 261-409. Ver tambm Paul Fournier, tudes sur Joachim de Flore et ses
doctrines. Paris, 1909, in 8, VIII e 102 p.
47
A.SS. Setembro, t. VII, p. 283 58.

92
Verona, onde o encontramos junto ao papa Urbano III.
Quando voltou para o sul, reuniram-se discpulos ao redor dele para
ouvi-lo explicar as passagens mais obscuras da Bblia. De bom ou mau
grado,ele se achou obrigado a receb-los, falar-lhes, dar-lhes uma regra
e, em fim, instal-los em pleno corao da Sila, essa Floresta Negra
da Itlia,48 diante do pico mais alto, nas gargantas onde o silncio s
interrompido pelo murmrio do Arvo e do Neto, cujas nascentes no
esto longe dali. O novo monte Atos recebeu o nome de Fiore (flor),
transparente smbolo das esperanas de seu fundador.49
Foi a que ele deu a ltima demo nos escritos que, depois de cin-
quenta anos de esquecimento, deviam tornar-se o ponto de partida de
todas as heresias e o alimento de todas as almas ansiosas pela salvao
da cristandade.
Os homens da primeira metade do sculo XIII, muito ocupados com
outras coisas, no perceberam logo de incio que as fontes espirituais em
que eles bebiam desciam dos picos nevados da Calbria.
o que acontece sempre com a influncia mstica. Ela tem algo de
vago, de contido e de penetrante que escapa a uma apreciao exata.
Mesmo que duas almas especiais se encontrem, tero muita dificuldade
para analisar e dizer as impresses que sentiram uma da outra. o mesmo
para uma poca; nem sempre so os que lhe falam mais frequentemente
e mais forte que ela entende melhor; nem mesmo aqueles a cujos ps,
como discpula fiel, ela vai se sentar dia aps dia. s vezes, indo
casa dos mestres habituais ela encontra, de repente, um desconhecido;
mal compreendeu algumas palavras do que ele dizia, ela no sabe nem
de onde ele vem nem para onde vai, no o encontrar mais. Mas essas
poucas palavras cantam no mais profundo dela prpria, perturbam-na
e a inquietam.

48
A.SS: Maii, VII; Vincent de Beauvais, Speculum historiale, lib. 29, cap. 40: Sila um massio mon-
tanhoso situado a leste de Cosenza, que l chamam de Monte Nero. Os picos chgegam a perto de 2.000
metros de altitude.
49
Por volta de 1195. Joaquim a morreu no dia 30 de maro de 1202.

93
Foi assim no tempo de Joaquim de Fiore. Suas idias, difundidas aqui
e ali por discpulos entusiastas, germinaram sem rudo nos coraes.50
Devolvendo aos homens a esperana, deu-lhes fora. Pensar j agir.
Sozinho sombra dos abetos que cercavam sua cela, o cenobita de Fiore
trabalhava pela renovao da Igreja com tanto vigor quanto os reforma-
dores que vieram depois dele.
Mas estava longe de atingir a altura dos profetas de Israel. Em vez
de se lanar como eles s claras, ele ficou sempre preso ao texto que
comentava pelo mtodo alegrico e de onde fazia sair, graas a esse
processo, as bizarrices mais inverossmeis. Algumas pginas dessa leitura
enjoam o leitor mais paciente. Mas, sobre esses campos queimados pelo
arrazoado teolgico, que seca mais do que o vento do deserto, e no qual,
a uma primeira vista, no se percebem mais do que pedras e espinheiros,
encontram-se finalmente o osis encantador e, sua sombra, o repouso
e os sonhos.
A exegese de Joaquim de Fiore abusava de uma espcie de filosofia da
histria, cujas grandes linhas deviam tocar de maneira singular as imagi-
naes: a vida da humanidade divide-se em trs perodos. No primeiro,
onde reinou o Pai, vivamos sob o rigor da lei; no segundo, onde reina o
Filho, vivemos sob o regime da Graa; no terceiro, reinar o Esprito e
viveremos na plenitude do Amor. O primeiro foi o da obe-dincia servil,
o segundo da obedincia filial, o terceiro da liberdade.
No primeiro vivemos no temor; no segundo repousamos na f; no
terceiro arderemos de amor Um viu brilharem as estrelas, a segunda viu
romper a aurora, o terceiro ver o esplendor do dia. O primeiro produziu
urtigas, o segundo d rosas, o terceiro ser o tempo dos lrios.

50
Toda uma literatura apcrifa floresceu em torno de Joaquim. Alguns hipercrticos quiseram provar que ele
nunca escreveu coisa alguma. So exageros. Trs grandes obras so certamente autnticas: A concordncia
do Antigo e do Novo Testamento, o Comentrio sobre o Apocalipse e O Saltrio de dez cordas, publicadas
em Veneza, a primeira em 1517, as outras duas em 1527. Suas profecias eram to conhecidas ainda durante a
sua vida que um cisterciense ingls, Rodolfo, abade de Coggeshall (+ 1228), vindo a Roma em 1196, quis ter
uma conferncia com ele, e nos deixou uma lembrana interessante. Martne, Amplissima collec., t. V, p. 839.

94
Se lembrarmos que, no pensamento de Joaquim, estava para surgir o
terceiro perodo, a Idade do Esprito Santo, compreenderemos com que
entusiasmo foram saudadas as palavras que devolviam alegria a almas
ainda perturbadas por temores milenares.
evidente que So Francisco conheceu essas radiosas esperanas.
Quem sabe se no foi o Vidente calabrs que lanou em seu corao essa
embriaguez de amor. Se isso for verdade, ele no teria sido apenas seu
precursor, teria sido verdadeiramente seu pai spiritual,
Seja como for, So Francisco encontrou no pensamento joaquimita
muitos elementos que deviam, seguramente sem que ele o soubesse,
tornar-se fundamentos de seu instituto.
O nobre desdenho que ele tem por tudo que cincia, e que ele teria
querido inculcar em sua Ordem, era para Joaquim um das caractersticas
da nova era: A verdade que fica escondida aos sbios, diz ele, revela-se
aos filhos; a dialtica fecha o que est aberto, torna obscuro o que era
claro, ela a me das palavras inteis, das rivalidades e da blasfmia.
A cincia no edifica, ele pode destruir, como provam os escribas dessa
Igreja, inchados de orgulho e de arrogncia, que, fora de raciocinar,
tombam na heresia 51.
Vimos que a volta simplicidade evanglica se impunha; todas as
manifestaes da heresia estavam de acordo nesse ponto com os catli-
cos piedosos, mas ningum falou disso de uma maneira to franciscana
como Joaquim de Fiore. Ele no s fazia da pobreza voluntria um dos
caracteres da idade dos lrios mas falava disso em pginas de uma emoo
to profunda, to vvida que So Francisco que so Francisco do poder
maisdo que repeti-las. O monge ideal que ele nos descreve 52, que no
tem mais do que uma lira por todo seu bem, no um franciscano antes
de seu tempo, aquele com quem sempre sonhou o Poverello de Assis?

51
Comm. in Apoc., fo 70 b 2.
52
Qui vere monachus est nihil reputat esse suum nisi citharam. Apoc. ib., fo 183, a 2.

95
O sentimento da natureza tambm brilha nele com um vigor incom-
parvel. Um dia, estava ele pregando em uma capela mergulhada em
uma escurido quase completa, to coberto estava o cu de nuvens. De
repente, abre-se um claro, o sol irradia, a luz inunda a igreja; Joaquim
pra, sada o sol, entoa o Veni Creator e leva seu auditrio para con-
templar o campo.
No haveria nada de espantoso saber que Francisco, por volta de
1205, tenha ouvido falar desse profeta para o qual j ento se voltavam
algumas almas, desse anacoreta desse anacoreta que, olhando para o cu,
falava com Jesus como amigo fala com seu amigo, mas que tambm sabia
descer para o meio dos homens para consol-los, e que aquecia em seu
peito o rosto dos agonizantes.
Em outro extremo da Europa, em plena Alemanha, as mesmas causas
tinham produzido os mesmos efeitos; do excesso do sofrimento do povo
e do desespero das almas religiosas nascia um movimento de misticismo
apocalptico, que parece ter secretas comunicaes com o que perturbava
a Pennsula.
So as mesmas vises do futuro, a mesma espera ansiosa de novos
cataclismos, unida perspectiva de um rejuvenescimento da Igreja.
Grita com voz forte, diz a Santa Elizabete de Schnau (+1164) seu
anjo familiar, grita a todas as naes: Infelicidade, porque o mundo in-
teiro se converteu em trevas. A vinha do Senhor morreu, no h quem a
cultive. O Senhor enviou operrios, mas viu que todos estavam ociosos.
A cabea da Igreja est doente e seus membros esto mortos... Pastores
de minha Igreja, vs dormis, mas eu vos despertarei! Reis da terra, o
grito de vossa iniquidade subiu at mim 53.
A justia divina, diz Santa Hildegarda (+1178), vai ter sua hora; a
ltima das sete pocas simbolizadas pelos sete dias da criao j chegou,
os julgamentos de Deus vo se cumprir; o imprio e o papado, cados

53
E. Roth, Die Visionen der heiligen Elisabeth von Schnau. Brnn, 1884, p. 115-117.

96
na impiedade, vo se desmoronar juntos... Mas ento, sobre as runas
aparecer um povo de Deus novo, um povo de profetas iluminados pelo
alto, vivendo na pobreza e na solido. Ento, os mistrios divinos vo
ser revelados, e a palavra de Joel se cumprir; o Esprito Santo vai es-
tender sobre o povo o orvalho de suas profecias, de sua sabedoria e de
sua santidade; os pagos, os judeus, os mundanos e os incrdulos vo se
converter em massa, a primavera e a paz reinaro sobre a terra regenerada,
e os anjos voltaro com confiana morar junto dos homens.

Essas esperanas no foram de todo confundidas. Na tarde de sua


vida, o profeta de Fiore pde, como um novo Simeo, entoar seu Nunc
dimittis, e a cristandade pde, durante alguns anos, virar-se maravilhada
para Assis como para uma nova Belm.

97
98
4

LUTAS E TRIUNFO
(Primavera de 1206 - 24 de fevereiro de 1209)

99
IV
Exspectabam eum qui salvum me fecit
a pusillanimitate spiritus, et tempestate 1.
Dirupisti vincula mea;
tibi sacrificabo hostiam laudis 2.
Cum autem placuit ei qui me segregavit ex utero matris meae et vocavit
per gratiam suam, ut revelaret Filium suum in me, ut evangelizarem eum
in gentibus, continuo non acquievi carni et sanguini 3.
Agatha, laetissima et glorianter ibat ad carcerem, quasi ad epulas
invitata, et agonem suum Domino precibus commendabat 4.
Summa ingenuitas est in qua servitus Christi comprobatur 5.
Christe Jesu, adjutor meus, quam suave mihi subito est factum ca-
rere suavitatibus nugarum mearum, et quas amittere metus fuerat, jam
dimittere gaudium erat 6.
Qui ergo mente integra Deum desiderat,
profecto jam habet quem amat 7.
Vobis datum est nosse mysterium regni Dei,
ceteris autem in parabolis 8.
Si vis perfectus esse, vade, vende (omnia) quae habes et da pauperibus,
et habebis thesaurum in caelo; et veni, sequere me 9.
Magnificat anima mea Dominum
et exsultavit spiritus meus in Deo salutari meo...
Deposuit potentes de sede
et exaltavit humiles.
Esurientes implevit bonis
et divites dimisit inanes.
Suscepit Israel, puerum suum
recordatus misericordire suae 10.

1
Sl 54, 9. 6
Legenda de Santo Agostinho.
2
Sl 115, 16-17. 7
Hom. sancti Gregorii, Lectio I in festo Pentecostes.
3
Gl. 1, 15 s. 8
Lc 6, 10.
4
Legenda de Santa gueda. 9
Mt 19, 21.
5
Ibid. 10
Lc, 1, 46-54.

100
IV
Esperava aquele que me salvou
da pusilanimidade do esprito e da tempestade 11.
Quebrastes minhas correntes;
eu vou te oferecer um sacrifcio de louvor 12.
Como foi do agrado daquele que me escolheu desde o tero de minha
me e me chamou por sua graa, para revelar em mim o seu Filho, para
que eu evangelizasse entre os povos, imediatamente deixei de me aco-
modar carne e ao sangue... 13.
gueda ia toda alegre e gloriosa para o crcere como fosse convidada
para um banquete, e orando recomendava ao Senhor sua provao 14.
A maior nobreza aquela que prova servido de Cristo 15.
Cristo Jesus, que me ajudais, como de repente tornou-se suave para
mim deixar de ter meus luxos e frivolidades! Tinha medo de perd-los
e agora tenho alegria de a eles renunciar 16.
Quem deseja Deus de mente ntegridade j possui aquele a quem
ama 17.
A vs foi dado conhecer o mistrio do reino de Deus;
aos outros, s em parbolas 18.
Se queres ser perfeito, vai, vende tudo que tens, da-o aos pobres e
ters um tesouro no cu. Depois, vem e segue-me 19.
Minha alma engrandece o Senhor,
E meu esprito se alegra em Deus meu Salvador...
Ele derrubou os poderosos de seus tronos
E exaltou os pequenos,
Ele encheu de bens os que no tinham nada,
E despediu sem nada os ricos.
Acolheu Israel, seu servidor recordando-se de sua misericrdia 20.

11 Sl 54 (55), 9. 16 Legenda de Santo Agostinho.


12
Sl 115 (116), 16-17. 17 Homilia de So Grgorio: I. Leitura para a festa de Pentecostes.
13
Gl 1, 15 s. 18
Lc, 8, 10.
14
Legenda de Santa gueda. 19
Mt 18, 21.
15
Ibid. 20
Lc 1, 46-54.

101
Os bigrafos de So Francisco conservaram uma aluso que mostra
como a fermentao religiosa era grande, mesmo na pequena cidade de
Assis. Viram passar e repassar pelas ruas um desconhecido que lanava
a todos que encontrava duas palavras: Paz e Bem!

Pax et bonum 21! Assim ele expressava, a seu modo, a perturbao


dos coraes que no queriam se entregar nem s guerras eternas, nem
desapario da f e do amor; eco ingnuo vibrava com as esperanas
e os terrores que sacudiam toda a Europa.

Vox clamantis in deserto! diriam. No, porque todo grito do corao,


mesmo quando parece cair no vazio, deixa um sinal, e o do desconhe-
cido de Assis pde contribuir de certa forma para a vocao definitiva
de Francisco.

Depois de sua volta brusca de Spoleto, sua vida estava ficando cada
dia mais difcil na casa paterna. O amor prprio de Bernardone tinha re-
cebido de sua m sorte um desses ferimentos que, nos homens vulgares,
nunca se curam.

Se tinha dado o dinheiro sem olhar para as loucuras que permitiam a


seu filho andar como um jovem nobre, no podia resignar-se a v-lo dar
s mos cheias a todos os mendigos do caminho.

21
LTC 26.

102
Francisco, continuamente perdido em seus sonhos e passando os dias
a vaguear sozinho pelo campo, j no o ajudava mais em nada. Os meses
passavam e crescia sem cessar a distncia entre esses dois homens, sem
que a doce e insignificante Pica pudesse fazer nada para prevenir uma
ruptura que j parecia inevitvel. Francisco bem depressa teve um s
desejo: fugir da casa onde, em vez de amor, s encontrava repreenses,
tormentos e gritaria.

O fiel confidente dessas primeiras lutas tinha sido obrigado a deix-lo,


e essa solido absoluta pesava muito em seu corao quente e amoroso.
Fez o que pde para sair dessa situao, mas ningum o compreendia.
As idias que comeava a expressar timidamente s provocavam nos
que o ouviam sorrisos de caoada ou um balanar de cabea de pessoas
seguras de sua razo na presena de quem est caminhando direto para
a loucura. Chegou a ir se abrir com o bispo, mas ele no compreendeu
melhor os projetos vagos, incoerentes, cheios de idias irrealizveis e
talvez at subversivas 22.
Foi assim que, sem querer, Francisco foi levado a no pedir mais
nada aos homens, elevando-se intuio da vontade divina pela orao.
Fechavam-se as portas das casas e dos coraes, mas a voz interior ia
brilhar para sempre e fazer-se obedecer para sempre.
Entre as numerosas capelas dos arredores de Assis havia uma de que
ele gostava de maneira especial, a de So Damio. Chega-se l em pou-
cos minutos, seguindo um atalho cheio de pedras, que mal se via entre
as oliveiras, no meio de cheiros de lavanda e de alecrim. Est em cima
de um montculo de onde se v a plancie inteira, mas atravs de uma
cortina de ciprestes que parecem querer esconder do olhar a humilde
ermida, estabelecendo entre ela e o mundo uma barreira ideal.
Servido por um pobre padre que mal tinha o que comer, o santurio
caa em runas. L dentro s havia um simples altar de pedra e, como
retbulo, um crucifixo bizantino. Esse Cristo est bem longe de se pare-
cer com o Cristo doloroso que os artistas deviam representar a partir do

22
LTC 10.

103
sculo XIII. Tem uma expresso de calma e doura inexprimveis; em
vez de fechar as plpebras para se abandonar sem volta ao peso de suas
dores, ele olha, ele esquece a si mesmo, e seu olhar puro e claro no diz:
Estou sofrendo. Ele diz: Vinde a mim 23.
Um dia Francisco estava rezando diante do pobre altar: Grande e
glorioso Deus, e vs, Senhor Jesus, fazei que brote a tua luz, eu vos peo,
nas trevas do meu esprito... Fazei que eu vos encontre, Senhor, para
que eu aja em todas as coisas de acordo com a vossa santa vontade 24.
Rezava no corao, mas, pouco a pouco, pareceu-lhe que seu olhar
no podia despregar-se do de Jesus; ele sentia alguma coisa de maravi-
lhoso acontecendo dentro e ao redor dele. A santa vtima de animava e,
no silncio exterior, ele percebia uma voz que se insinuava docemente
at o fundo de seu corao para lhe falar em uma linguagem inefvel.
Jesus aceitava sua oblao, Jesus queria seu trabalho, sua vida, toda a
sua pessoa e, em troca, o pobre abandonado j sentia o corao inundado
de luz e fora 25.
Essa viso marca o triunfo definitivo de Francisco. Sua unio com
Cristo estava consumada. De agora em diante, ele poderia gritar com os
msticos de todos os tempos: Meu bem amado meu, e eu sou dele.
Mas, em vez de abandonar embriaguez da contemplao, pergun-
tou-se bem depressa como retribuiria a Jesus amor por amor, em que
empregaria essa vida que acabava de oferecer. No teve que procurar
muito tempo; vimos que a capela em que eles acabavam de celebrar as
npcias espirituais ameaava runa. Ele pensou que restaur-la seria a
obra que lhe tinha sido designada.

23
Quando as clarissas deixaram So Damio, levaram junto esse crucifixo como relquia. Est conservado
na antiga igreja de So Jorge, junto de Santa Clara, ou mais exatamente na parte da igreja que serve hoje
de coro para as religiosas.
O Pe. Leone Bracaleone, Storia di S. Damiano, p. 47, n. 1, diz que h um crucifixo anlogo na catedral
de Spoleto, datado de 1138.
24 Opuscula B. Francisci. Oratio I. Sobre essa orao v. Goetz, Zeitschr f. Kircheng. XXII, p. 557 s.
25
LTC 13; 2Cel 1, 6; LM 12; 15; 16.

104
Desde esse dia, a lembrana do Crucificado, o pensamento do amor
que triunfa imolando-se, tornou-se o prprio centro de sua vida religiosa
e como que a alma de sua alma. Pela primeira vez, sem dvida, Francisco
tinha sido posto em contato direto, pessoal, ntimo com Jesus Cristo;
tinha passado da crena para a f, essa f viva que um distinto pensador
definiu to bem: Crer olhar; um olhar atento, srio e prolongado, um
olhar mais simples do que o da observao, um olhar que olha, e nada
mais; um olhar ingnuo, olhar de criana, olhar em que toda a alma se
lana, olhar da alma e no do esprito, olhar que no pretende decompor
seu objeto mas receb-lo inteiro na alma pelos olhos.
Escrevendo essas palavras, Vinet caracterizou maravilhosamente, sem
nem pensar nisso, o temperamento religioso de So Francisco.

Esse olhar de amor lanado sobre o crucifixo, esse misterioso col-


quio com a vtima que se compadece, nunca mais ia acabar. A piedade
de Francisco sua fisionomia e sua originalidade em So Damio. Sua
alma carrega desde ento os estigmas e, como diz Frei Leo em uma
frase intraduzvel: Ab illa hora vulneratum et liquefactum est cor ejus
ad memoriam Dominicae passionis 26.

Agora ele enxergava claro diante dele. Saindo do santurio, deu ao


padre tudo que tinha de dinheiro para que mantivesse uma lmpada e,
de corao arrebatado, entrou em Assis. Estava decidido a deixar a casa
paterna e tratar da restaurao da capela, depois de ter rompido os ltimos
laos que o prendiam ao passado.

Um cavalo e algumas peas de pano de cores gritantes era tudo que


lhe pertencia. Chegando casa dos pais, fez um pacote com as fazendas
e, saltando no cavalo, partiu para Foligno.

Naquele tempo como hoje, essa cidade era a de maior comrcio em


toda a regio. Suas feiras atraam toda a populao da Sabina e da mbria.

26
LTC 14.

105
Bernardone tinha levado muitas vezes a ela seu filho 27, que conseguiu
vender bem depressa tudo que tinha levado. Livrou-se at da montaria
e retomou, cheio de alegria, o caminho de Assis 28.

Esse ato tinha uma grande importncia para ele: marcava sua ruptura
definitiva com o passado; a partir desse dia, sua vida ia ser em tudo o
oposto do que tinha sido; o Crucifixo se tinha dado a ele; ele, por sua
parte, entregava-se ao Crucificado em partilha e sem volta. s incertezas,
s perturbaes da alma, s angstias, s saudades de uma felicidade
desconhecida, Aos arrependimentos amargos tinha sucedido uma calma
deliciosa, a embriaguez da criana perdida que reencontra a me e esquece
num instante as torturas de seu corao.

O que h de belo na converso de Francisco que ela no foi um


ponto de chegada mas um ponto de partida.

A avareza, o egosmo, o individualismo, foram vencidos em seu cora-


o. Ele viu, sentiu, provou que a vocao do homem est em outra parte.

Sua vida no ser um dilogo extraterrestre, mas cada obstculo far


surgirem nele reflexes, um desenvolvimento contnuo, sem parada.

A regra absoluta, definitiva, intangvel, era contrria ao seu esprito.


Ela foi, mais tarde, uma necessidade para prevenir o relaxamento, mas
ele sofreu por causa disso.

De Foligno, Francisco voltou direto para So Damio. Para isso, no


precisava passar pela cidade, e estava com pressa de realizar seus projetos.

O pobre padre ficou bem espantado quando Francisco lhe entregou o


produto integral da venda. Acreditou, sem dvida, que era sua desunio
passageira entre Bernardone e seu filho e, por prudncia, recusou o pru-
dente. Mas Francisco insistiu tanto que queria ficar com ele que acabou

27
Esse detalhe brota da narrao de 1Cel 8: Ibi ex more venditis.
28
1Cel 8; LTC 16; LM 16. Foligno est a trs horas de caminho de Assis.

106
conseguindo sua permisso. Quanto ao dinheiro, agora intil, jogou-o
como um objeto sem valor numa janelinha da capela 29.

Nesse tempo, inquieto porque Francisco no voltava, comeou a


procur-lo e logo ficou sabendo que ele estava em So Damio. Num
instante, compreendeu que Francisco estava perdido para ele; resolvido
a tentar tudo, reuniu alguns vizinhos e, louco de clera, foi ermida para
arrancar Francisco de l fora.
Mas Francisco conhecia o furor do pai. Quando ouviu os gritos dos
que vinham atrs dele, sentiu que desfalecia e correu para um esconderijo
que preparara para isso. Bernardone, sem dvida mal assessorado em sua
busca, procurou em vo por todos os lados e teve que voltar para Assis.
Francisco ficou escondido por muitos dias, chorando e gemendo,
suplicando a Deus que lhe mostrasse o que devia fazer. Apesar de seus
temores, tinha no corao uma alegria infinita e no queria voltar atrs
de maneira alguma 30.
Mas no podia ficar muito tempo escondido. Francisco compreendeu
isso e disse a si mesmo que, para um novo cavaleiro de Cristo, ele fazia
uma figura miservel. Ento, armando-se um dia de coragem, dirigiu-se
para a cidade para se apresentar ao pai e lhe falar de sua resoluo.
Podemos imaginar como essas poucas semanas de recluso passadas
nessa situao, tinham alterado sua fisionomia. Ento, quando apareceu
plido e descarnado, com as roupas em trapos, na porta da cidade, onde
centenas de meninos no paravam de brincar o dia inteiro, foi acolhido
por um longo grito: Pazzo! Pazzo! Doido! Doido! Un pazzo ne fa cen-
to, um doido faz outros cem, diz o provrbio, mas preciso ter visto o
en-cantamento delirante dos meninos na Itlia quando vm um louco,
para compreender como isso verdade. Quando o grito mgico ressoou,
eles correm atrs com um barulho espantoso e ento, enquanto os pais

29
1 Cel. 9; 3 Soc. 16; LM 6. Cf. A. SS., p. 567.
30
1Cel 10; LTC 16; LM 17; A. SS., p. 568.

107
olham pelas grades, h cantos, gritos, urros selvagens, misturados com
rodas loucas danadas em volta do infeliz. Jogam pedras, cobrem de
lama, amarram-lhe os olhos. Se ele reage, fazem o dobro. Se ele chora,
se suplica, repetem seus gritos, imitando suas solues e splicas sem
d nem piedade 31.
Logo Bernardone ouviu o barulho, meteu-se pelas ruelas e saiu para
tomar parte no espetculo. Mas de repente pareceu-lhe ouvir seu nome,
o de seu filho e, sufocado pela vergonha e a raiva, viu Francisco.
Precipitando-se para estrangul-lo, arrastou-o para casa e o jogou
meio morto em um recinto escuro.
Ameaas, maus tratos, usou tudo para mudar as resolues do pri-
sioneiro; foi intil. No fim, cansado, desesperado, deixou-o tranquilo,
acorrentando-o antes solidamente 32.
Alguns dias depois, teve que fazer uma curta ausncia. Pica, sua mu-
lher, compreendia muito bem seus amuos com Francisco, mas achando
que as brutalidades no levariam a nada, tentou usar a doura. Foi em
vo. Ento, no suportando v-lo martirizado mais tempo, deu-lhe a
liberdade. Ele voltou direto para So Damio 33.
Quando voltou, Bernardone cobriu sua mulher de reclamaes. De-
pois, no admitindo que o filho pudesse ser a diverso de toda a cidade,
tentou faz-lo expulsar do territrio de Assis e, para isso, dirigiu-se aos
Cnsules da cidade.
Estes mandaram citar Francisco, mas ele respondeu simplesmente
que, como servidor da Igreja, no estava mais dentro da jurisdio de-
les. Felizes com essa resposta, que os livrava de uma questo delicada,
mandaram o queixoso para a autoridade diocesana 34.

31
1Cel 11.
32
1Cel 12; LTC 17; LM 18. Comparar Francisco doente por causa de seu pai e Santa Hermenegilda presa,
13 abril.
33
1Cel 13; LTC 18.
34
LTC 18 e 19; 1Cel 14; LM 19.

108
Diante de um tribunal eclesistico, a questo mudava de figura; era
intil pensar em pedir ao bispo que mandasse bani-lo, pois seu papel era
salvaguardar a liberdade dos clrigos. Bernardone s podia deserdar o
filho ou lev-lo a renunciar por conta prpria a toda herana. No foi
difcil.
Convocado diante do tribunal episcopal 35, Francisco ficou muito
feliz; seu noivado mstico com o Crucificado ia receber uma espcie
de consagrao oficial. A esse Jesus que ele tinha to frequentemente
ofendido e trado por palavras e atos, ele ia poder prometer publicamente
obedincia e fidelidade.

Mal adivinhamos a repercusso de tudo isso numa cidade pequena


como Assis e a multido que foi no dia marcado para a praa na frente
de Santa Maria Maior, onde o bispo fazia seus julgamentos 36.

claro que achavam Francisco um insensato, mas saboreavam ante-


cipadamente a vergonha e a clera de Bernardone cujo orgulho estava
sendo bem castigado.

O bispo comeou expondo a questo, e aconselhou Francisco a en-


tregar ao pai o dinheiro que tinha trazido de Foligno. Mas, para grande
espanto da multido, em vez de responder, ele entrou numa sala do palcio
do bispo para sair logo em seguida completamente nu.

Tinha na mo um embrulho com suas roupas, que colocou diante do


bispo com o dinheiro: E disse: Escutai todos e sabei que at hoje eu
chamei Pedro Bernardone de meu pai, mas agora eu quero servir a Deus.
Por isso, eu lhe entrego esse dinheiro pelo qual ele se atormentava tan-
to, assim como minhas roupas e tudo que dele recebi, porque de agora
em diante quero dizer Pai nosso, que estais no cu, e no mais meu pai
Pedro Bernardone.

35
A partir de 1204 at depois da morte de So Francisco, a s episcopal de Assis foi ocupada por Guido
II. Ver Cristofani, I, 169 ss.
36
Piazza di Santa Maria Maggiore o del vescovado. Tudo ainda est mais ou menos como era no sculo XIII.

109
Um longo murmrio ergueu-se na multido quando viram Bernardo-
ne recolher e levar as roupas, sem o menor sinal de piedade, enquanto
o bispo teve que tomar sob seu manto o pobre Francisco, tremendo de
emoo e de frio 37.

A cena da praa causou uma impresso imensa. O ardor, a ingenuidade,


a indignao de Francisco tinham sido to profundas e sinceras que os
que l estavam para rir ficaram desconcertados. Naquele dia ele ficou
seguro de havia secretas compreenses dentro de muitas almas. O povo
gosta dessas converses bruscas, ou, pelo menos, que ele acha que so
repentinas. Francisco se impunha de novo ateno de seus concidados,
com uma fora que duplicava o contraste entre sua vida antiga e a nova.
H pessoas piedosas cujo pudor se inquieta com a nudez de Francisco,
mas a Itlia no a Alemanha ou a Inglaterra, e o sculo XIII ficaria bem
admirado com a hipocrisia dos bolandistas. Nesse fato no h nada mais
que uma nova manifestao do carter de Francisco, com a sua ingenui-
dade, seus exageros, sua necessidade de estabelecer entre as palavras e
as aes uma completa harmonia, uma correspondncia literal.
Depois desse tipo de emoes, ele precisava ficar sozinho, saborear a
alegria, cantar a liberdade conquistada para sempre... ao longo de todos
os caminhos em que ele tinha gemido tanto, tinha lutado tanto.
Mas ele no quis voltar logo para So Damio. Saindo da cidade,
enfiou-se pelos atalhos desertos que subiam pelos flancos do Subsio.
Eram os primeiros dias da primavera. Aqui e ali ainda havia lamaais
de neve, mas, sob o sol de maro, parecia que o inverno se dava por
vencido. No meio dessa harmonia misteriosa e perturbadora, o corao
de Francisco vibrava deliciosamente, todo o seu ser se acalmava e se
exaltava; a alma das coisas acariciava-o docemente e o enchia de quie-
tude. Uma felicidade desconhecida invadia-o. Para celebrar a vitria e a
liberdade, ele encheu a floresta com o rudo de seus cantos.

37
1Cel 15; LTC 20; LM 20. Ver Bon. Sermones Opera, t. IX, p. 591. Quod cernens b. Fr. ut audivit vocem
Dei cuncta dimisit intantum, ut nec filum vestimenti ad cooperiendam nuditatem sibi reservaverit.

110
Quando as emoes so muito doces ou muito profundas para pode-
rem ser expressas na lngua ordinria, o homem canta. Mas, nesse caso,
a msica superior ao canto: , por excelncia, a lngua do inefvel. O
canto quase chega a atingir seu valor quando as palavras s esto presen-
tes para sustentar a voz. A maior beleza dos salmos e dos hinos da Igreja
provm desse fato que, cantados numa lngua morta, eles no tenham
nada que faa a cabea trabalhar; no dizem nada mas expressam tudo,
e se modificam maravilhosamente como um acompanhamento celeste
que acompanham as emoes do crente desde as lutas mais angustiosas
at os xtases mais indizveis.
Ele caminhava, ento, respirando a plenos pulmes os eflvios pri-
maveris, repetindo com toda fora uma dessas canes de cavalaria que
tinha aprendido outrora.
As florestas que atravessava eram o refgio ordinrio das pessoas
de Assis e dos arredores que tinham motivos para se esconder. Alguns
bandidos, despertados por sua voz, caram de repente sobre ele. Quem
s tu? Perguntaram Eu sou o arauto do grande Rei e, tambm, que
vos importa? 38.
Sua nica roupa era um velho manto que o jardineiro do bispo lhe
tinha dado a pedido de seu patro. Eles o despojaram e o jogaram em um
fosso de neve: Fica a no teu lugar, miservel arauto de Deus.
Quando os ladres foram embora, ele sacudiu a neve e, depois de muito
esforo, acabou saindo da cova. Gelado de frio, sem nada mais que uma
pobre camisa, recomeou a cantar, feliz de sofrer e de ir se acostumando
melhor s palavras do Crucificado 39.

38
Essa foi at o fim uma idia familiar de So Francisco. EP 86, os frades so os embaixadores do grande
rei junto rainha. Esta palavra, que provm sem dvida tanto das palavras e das expresses familiares
cavalaria (ver o ritual da bno dos cavaleiros), marca bem fortemente as cores com que a imaginao dos
franceses representaria da em diante sua misso (Parbola da pobreza e do rex pius et potens, ver p. 126).
Ele via tudo isso mais ou menos como o expressa a legenda de Epcteto e de Astion, Vitae Patrum, p. 220 s.,
cp. XXIlI. Ver A. SS. julii, t. II, p. 540. Tambm no impossvel que essa expresso tenha sido nelke uma
recordao emprestada de So Gregrio Magno, cuja regra pastoral era muito conhecida na Idade Mdia.
(Regula pastoralis, IV, p. 31) Praeconis officium.
39
LTC 16; LM 21. Cf. Salimbene, t. II, P 133.

111
L perto havia um mosteiro. Entrou e ofereceu seus servios. Nessa
solido, to mal frequentada, as pessoas eram suspeitosas. Permitiram
que fosse til na cozinha, mas no lhe deram nada para se cobrir e pouco
para comer.
Teve que partir. Dirigiu-se para Gbio, onde sabia que ia encontrar um
amigo. Pode ter sido aquele que fora seu confidente na volta de Spoleto.
Seja quem for, recebeu dele uma tnica e, poucos dias depois, retomou
o caminho de seu querido So Damio 40.
Mas no foi imediatamente. Antes de comear a restaurar o pequeno
santurio, quis rever os amigos leprosos, contar-lhes sua grande vitria,
prometer que os amaria ainda mais do que no passado.
Depois de sua primeira visita ao lazareto, o brilhante cavaleiro tornara-
se um pobre mendigo. Chegava de mos vazias, mas com o corao
transbordando de ternura e compaixo. Instalado no meio dos doentes foi
prdigo nos cuidados, mas tocantes, lavando e enxugando suas chagas,
tanto mais doce e radioso, quanto mais repugnantes eram as chagas 41.
O deslumbramento de amor que a criana tem por sua me, que o
doente desamparado tem por que vai visit-lo... parece todo poderoso.
Quando ele se aproxima, as crises mais dolorosas se acalmam e desa-
parecem.
Esse amor inspirado pela simpatia de um corao afetuoso pode tornar-
se to profundo que s vezes parece sobrenatural. Vemos moribundos
voltando a ficar conscientes para olhar pela ltima vez, no os membros
de sua famlia, mas o amigo que fez questo de ser o raio de sol de seus
ltimos dias. Os laos do amor puro so mais fortes que os da carne e do

40
1Cel 16; LM 21. Os curiosos lero com interesse a histria da viagem a Gbio em um artigo de M.
Mazzatinti intitulado: S. Francesco e Frederico Spadalunga da Gubbio [Miscellanea, t. V, p. 76-78]. Esse
Spadalunga de Gubbio pode bem ter sido o que deu uma tnica a Francisco, mas bem possvel que esse
presente tenha sido feito bem mais tarde e que fixaram nessa data solene da vida do santo por uma espcie
de iluso de tica, quase inevitvel, pela proximidade do nome e da localidade. Cf. Miscell. Ir., t. IV, p. 32
e Lipsin, p. 78.
41
1Cel 17; LM 11; 13, 21, 22; LTC 11; A. SS., p. 575.

112
sangue. Francisco teve muitas vezes essa doce experincia. Desde que
chegou ao leprosrio, sentiu que, se tinha perdido a vida, ia recuper-la.
Encorajado por sua permanncia no meio dos leprosos, voltou para So
Damio e ps mos obra, cheio de alegria e de ardor, com o corao to
ensolarado quanto a plancie da mbria nesse belo ms de maio. Depois
de ter confeccionado uma roupa de eremita, comeou a ir pelas praas
e esquinas da cidade. L, depois de cantar algumas msicas, anunciava
s vezes s pessoas aglomeradas em torno dele seu projeto de restaurar
a capela: Quem me der uma pedra, acrescentava com um sorriso, ter
uma recompensa; quem me der duas, ter duas recompensas; quem me
der trs, ter trs recompensas.
Muitos o tratavam como doido, mas outros se deixavam comover,
lembrando-se do passado. Quando a ele, surdo s caoadas, no se pou-
pava a nenhuma pena, carregando naqueles ombros to pouco feitos para
um duro trabalho, as pedras que lhe davam 42.
Durante esse tempo, um pobre padre de So Damio sentia o corao
sendo tomado de amor por esse companheiro que no comeo o confun-
dira, e se esforava por preparar-lhe seus pratos preferidos. Francisco
logo percebeu. Sua delicadeza se alarmou do peso que estava sendo
para seu amigo e, agradecendo-lhe, resolveu ir pedir de porta em porta
a sua comida.
No foi fcil. Na primeira vez, quando olhou para os restos amonto-
ados no fundo de sua tigela, achou que no ia ter coragem. Mas, quando
pensou que bem depressa ia ser infiel esposa a quem tinha dada sua f
gelou-o de vergonha, e lhe deu fora para comer com avidez. 43.
Cada hora, por assim dizer, trazia uma nova luta: um dia, ia pela cidade
mendigando leo para as lmpadas de So Damio quando chegou a uma
casa onde havia uma festa: a maior parte dos seus antigos companhei-
ros estava l, danando e cantando. Ouvindo essas vozes conhecidas,

42
1Cel 18; LTC 21; LM 23.
43
LTC 22; 2Cel 1, 9.

113
pareceu-lhe que jamais ousaria entrar, e at se afastou. Mas, logo, confuso
por sua fraqueza, voltou decididamente, foi at a sala da festa e, depois
de ter confessado sua covardia, insistiu tanto em seu pedido que todos
quiseram colaborar com essa obra piedosa. 44.
Sua prova mais rude foi a clera de seu pai, sempre to violento.
Mesmo tendo renegado Francisco, Bernardone no se aguentava mais
em seu orgulho ao ver esse tipo de vida, e quando encontrava o filho,
enchia-o de pitos e maldies.

A alma terna de Francisco muito se ressentia desse sofrimento e ele


recorreu a um estratagema para esconjurar as imprecaes paternas: Vem
comigo, disse a um mendigo, tu sers como meu pai, e eu te darei uma
parte das esmolas que recolho. Quando vires Bernardone me amaldioar,
e eu te disser: Abenoa-me, meu pai, tu me marcars com o sinal da
cruz e me abenoars no lugar dele 45.

Seu irmo se mostrava na primeira fila dos que caoavam dele. Uma
manh de inverno, eles se encontraram em uma igreja. Francisco tremia
embaixo de sua tnica fina. Ento ngelo se virou para um amigo que
o acompanhava e disse: Vai pedir a Francisco que venda seu suor por
um tosto. no!, respondeu Francisco, que tinha escutado, vou
vender bem mais caro a meu Deus.

Na primavera de 1208, terminou a restaurao de So Damio. Tinha


pedido a ajuda de pessoas de boa vontade, dando exemplo de trabalho e
principalmente de alegria: encantava o mundo inteiro por seus cnticos
e projetos de futuro. Falava com tanto entusiasmo e calor comunicativo
sobre a transformao de sua querida capela, sobre as graas que Deus
daria aqum fossem rezar l, que mais tarde se acreditou que ele tinha
falado de Clara e de suas filhas que, quatro anos mais tarde, deviam
retirar-se nesse lugar 46.

44
LTC 24; 2Cel 8; EP 224.
45
LTC 23; 2Cel 7.
46
LTC 24; Testamento de Santa Clara, Waddin, ann. 1253, V.

114
Esse acontecimento logo o inspirou a reparar outros santurios nos
arredores de Assis. Os que tinham chamado sua ateno pelo mau estado
eram: So Pedro e Santa Maria da Porcincula, tambm chamada Nossa
Senhora dos Anjos. O primeiro no foi mais citado em suas biografias 47.
Quanto ao segundo, deveria tornar-se o verdadeiro bero do movimento
franciscano.

Essa capela, em p ainda hoje, depois de ter escapado s revolues


e aos terremotos, verdadeiramente uma Betel, um dos raros pontos do
mundo em que se apoiou a escada mstica que une o cu terra. Foi l que
se realizaram alguns dos mais belos sonhos que j embalaram as dores
da humanidade. No em Assis, na maravilhosa baslica, que devemos
ir para compreender So Francisco; em Nossa Senhora dos Anjos que
precisamos ir nas horas em que cessam as oraes mais maquinais, no
momento em que as sombras da tarde se alongam, em que toda ninharia
do culto desaparece, mergulhada na escurido, em que a natureza parece
recolher-se para ouvir o som dos sinos longnquos..

Francisco deve ter pensado em se estabelecer a como ermito. Ele


sonhava passar a vida nesse lugar em recolhimento e silncio, mantendo
a igrejinha e chamando de vez em quando um padre para l celebrar a
missa.

Nada podia faz-lo o que lhe aconteceria mais tarde como fundador
religioso. Um dos lados mais interessantes de sua vida , na verdade, esse
desenvolvimento contnuo que a se revela: ele do pequeno nmero
daqueles para quem viver agir, e agir progredir.

S em So Paulo encontramos nesse mesmo grau a devoradora vontade


de fazer cada vez mais. E o bonito, neles, que isso foi absolutamente
instintivo.

47
1Cel 21; LM 23. Locatelli (Prior) parece ter provado bem que essa igreja era a abadia de So Pedro, que
ainda existe, mas que atualmente est dentro dos muros da cidade. Ver Della badia di San Pietro, p. 16. Cf.
Joergensen, Vie de saint Franois, p. 69.

115
Quando comeou a restaurar a Porcincula, seus projetos no iam
alm de um horizonte bem delimitado: ele estava se preparando mais
para uma vida de penitncia que de atividade. Mas, quando os trabalhos
acabaram, era impossvel que essa maneira um tanto egosta e passiva
de cuidar de sua salvao durasse muito. Lembrando-se da apario do
Crucificado, ele sentia surgirem em seu corao emoes incompreen-
sveis e se derramava em lgrimas sem saber se eram de admirao, de
piedade ou de inveja 48.

Quando as reparaes ficaram acabadas, a meditao ocupou a maior


parte de seus dias. Um beneditino da abadia do monte Subsio 49 vinha
de tempos em tempos celebrar a missa em Santa Maria. Eram horas lu-
minosas na vida de Francisco: no podemos imaginar com que piedoso
cuidado ele se preparava e com que f ouvia os ensinamentos divinos.

Um dia, possivelmente aos 24 de fevereiro de 1209, festa de So


Matias, foi celebrada a missa na Porcincula 50.

Quando o padre se voltou para ele para ler as palavras de Jesus, Fran-
cisco sentiu-se tomado por uma perturbao profunda. No estava enxer-
gando o padre; era Jesus, o Crucificado de So Damio, que lhe falava:

Por toda parte onde fordes, pregai e dizei: O reino dos cus est
prximo. Curai os doentes, limpai os leprosos, expulsai os demnios.

Recebestes de graa, dai de graa. Nem leveis convosco ouro ou


prata, nem moedas em vossa cintura, nem bolsa, nem duas tnicas, nem
sandlias, nem basto, porque o operrio merece a sua comida.

48
LTC 14; 2Cel 1, 6.
49
A Porcincula dependia dessa abadia.
50
a data adotada pelos bolandistas, porque antigos missais anotam a percope Mt 10 para o Evangelho
desse dia. A. SS. p. 574.
Essa considerao no tem, alis, grande valor. No sculo XIII, estava-se bem longe da unidade litrgica.
assim que Guilherme Durand, o clebre bispo de Mende, indica quatro epstolas e cinco evangelhos usa-
dos indiferentemente na festa dos mortos. G. Durand, Rationale div. off., Veneza, 1540, p. 270. Mas a data
indicada no pode estar muito longe da verdade.

116
Essas palavras brilhavam nele como uma revelao, como a resposta
do cu a seus suspiros e a suas preocupaes.

isso que eu quero, gritou, isso que eu procurava, e de hoje em


diante vou me aplicar com todas as minhas foras para coloc-lo em
prtica. Jogou logo o basto, a bolsa, os calados e quis obedecer na
hora e observar letra os preceitos da vida apostlica.
bem possvel que intenes alegricas tenham pesado um pouco
nessa narrativa 51. A longa crise pela qual Francisco passou para se tornar
um apstolo dos tempos novos aconteceu de repente em seu despojamento
na cena da Porcincula, mas j vimos como tinha sido lento o trabalho
interior que o havia preparado.
A brusquido da vocao foi s aparente, era a continuao de um
longo e obscuro trabalho ntimo. Para comear, ele tinha reconhecido
havia tempo que ao lado dele caminhava a noiva misteriosa pela qual
ele suspirava.
A vida de cavaleiro com que tinha sonhado podia ser imediatamente
vivida com uma intensidade, uma realidade jamais imaginada. O Mestre
que ele tinha sonhado seguir perdidamente estava ali e o chamava, e o
esperava, precisava dele para realizar sua obra.
Deus, a Igreja, Jesus, a Pobreza, era tudo isso ao mesmo tempo em
que, tendo recebido sua resposta, sua promessa, seu voto, enchia seu
corao de amor, de alegria, de uma fora irresistvel.
A vocao no foi uma ruptura com o passado, foi o instante em que o
passado desabrochou, em que o sonho de Francisco, longe de se quebrar,
adquiriu uma realidade suprema.

51
Ver especialmente LM 25 e 26. Cf. A. 58. p. 577 d.

117
118
5

Primeiro ano de Apostolado


(Primavera de 1209 vero de 1210)

119
V

In tempore placito exaudivi te,


Et in die salutis auxiliatus sum tui...
Et servavi te, et dedi te in foedus populi,
Ut suscitares terram
Et possideres hereditates dissipatas;
Ut diceres his qui vincti sunt: Exite!
Et his qui in tenebris: Revelamini! 1.
Qui autem confirmat nos vobiscum in Christo, et qui unxit nos, Deus, qui et
signavit nos, et dedit pignus Spiritus in cordibus nostris 2.
Mihi omnium sanctorum minimo data est gratia haec, in gentibus evangeli-
zare investigabiles divitias Christi, et illuminare omnes quae sit dispensa-
tio sacramenti absconditi a saeculis in Deo, qui omnia creavit, ut innotes-
cat principatibus et potestatibus in caelestibus per ecclesiam multiformis
sapientia Dei 3.
Et ego, cum venissem ad vos, fratres, veni non in sublimitate sermonis, aut
sapientiae, annuntians vobis testimonium Christi. Non enim judicavi me
scire aliquid inter vos, nisi Jesum Christum, et hunc crucifixum. Et ego
in infirmitate, et timore, et tremore multo fui apud vos; et sermo meus et
praedicatio mea, non in persuasibilibus humanae sapientiae verbis, sed
in ostensione spiritus et virtutis; ut fides vestra non sit in sapientia homi-
num, sed in virtute Dei 4.
Videns autem [Jesus] turbas misertus est eis quia erant vexati et jacentes
sicut oves non habentes pastorem. Tunc dicit discipulis suis: Messis qui-
dem multa, operarii autem pauci. Rogate ergo Dominum messis ut mittat
operarios in messem suam 5.
Et misit illos praedicare regnum Dei, et sanare infirmos. Et ait ad illos! Nihil
tuleritis in via 6.

1
Is 49, 8-9.
2
2Cor 1,21-22.
3
Ef 3, 8-10.
4
1Cor 2, 1-5.
5
Mt, 9, 36-38.
6
Lc 9,2-3.

120
V

Eu te respondi no tempo da graa,


E te socorri no dia da salvao.
Eu te defendi e te designei como aliana do povo.
Para restaurares o pas e repartires as heranas devastadas;
Para dizeres aos prisioneiros: Sa da priso!.
E aos que esto nas trevas: Vinde luz 7!.
Aquele que nos confirma juntamente convosco em Cristo, e nos d a uno
Deus. Ele nos marcou com um selo e colocou em nossos coraes o pe-
nhor do Esprito 8.
A mim, o menor de todos os santos, foi dada a graa de anunciar aos gentios
a insondvel riqueza de Cristo, e a todos iluminar sobre a realizao do
mistrio escondido desde os sculos em Deus, o criador de todas as coisas
para que agora, por meio da Igreja, seja dada a conhecer aos principados
e s Autoridades nos altos cus a multiforme sabedoria de Deus 9.
Eu mesmo, quando fui ter convosco, irmos, no me apresentei com o prest-
gio da linguagem ou da sabedoria, para vos anunciar o mistrio de Deus.
Julguei no dever saber outra coisa entre vs a no ser Jesus Cristo, e
este, crucificado. Estive no meio de vs cheio de fraqueza, de receio e de
grande temor. A minha palavra e a minha pregao nada tinham dos argu-
mentos persuasivos da sabedoria humana, mas eram uma demonstrao
do poder do Esprito, para que a vossa f no se baseasse na sabedoria
dos homens mas no poder de Deus 10.
Contemplando a multido, encheu-se de compaixo por ela, pois estava can-
sada e abatida, como ovelhas sem pastor. Disse, ento, aos seus discpu-
los: A messe grande, mas os trabalhadores so poucos. Rogai, portanto,
ao Senhor da messe para que envie trabalhadores para a sua messe 11.
Depois os enviou a proclamar o Reino de Deus e a curar os doentes, e disse-
lhes: Nada leveis para o caminho 12.

7
Is 49, 8-9.
8
2Cor 1, 21-22.
9
Ef 3,8-10.
10 1Cor, 2, 1-5.
11
Mt, 9, 3G.38.
12
Lc, 9, 2-3.

121
Desde a manh seguinte, Francisco subiu a Assis e comeou a pregar.
Suas palavras eram simples, mas to cheias de cordialidade, que todos
os que o ouviam ficavam tocados.
Tanto quanto fcil no entender nem aplicar a si mesmo as exortaes
dos pregadores que falam do alto do plpito e parecem estar cumprindo
uma formalidade, quanto difcil escapar aos apelos de um leigo que
caminha ao nosso lado. O espantoso pulular de seitas protestantes vem
em grande parte dessa superioridade da pregao leiga sobre a pregao
clerical. Os mais brilhantes oradores do plpito cristo so maus con-
vertedores; se seus gritos de eloquncia podem arrebatar as imaginaes
e levar alguns mundanos aos ps do altar, so resultados to brilhantes
quanto efmeros. Mas um campons ou um operrio dizem a algum
que encontram algumas simples palavras que tocam a conscincia, e l
est um homem sempre atento, muitas vezes j ganho.
Tambm as palavras de Francisco pareciam a seus ouvintes uma espa-
da acesa que penetrava no fundo de suas conscincias. No saberamos
imaginar muito simplesmente essas primeiras tentativas: elas consistiam
habitualmente em palavras dirigidas a pessoas que ele conhecia bastante
para conhecer seus pontos fracos e neles tocar com a ousadia do amor.
Sua pessoa, seu exemplo j eram uma pregao, e ele no falava do
que ele mesmo no tinha provado, anunciando o arrependimento, a bre-
vidade da vida, a retribuio futura, a necessidade de chegar perfeio
evanglica 13. No d para imaginar com facilidade como so numerosas

13
1Cel 23; LTC 25 e 26; LM 27. Cf. Auct. Vit. Sec. ap., A.SS., p. 579.

122
nesta terra as almas que esperam. A maior parte das pessoas passa a
vida com a alma adormecida. Parecem essas virgens do santurio que s
vezes sentem uma perturbao indefinvel: uma comoo infinitamente
doce e sutil mexe com seu corao, mas elas baixam os olhos e sentem
a fria umidade do claustro envolvendo-as de novo; o sonho delicioso e
envenenado se desvanece, e vai ser tudo que conhecero do amor que
mais forte do que a morte.
Assim so muitas pessoas em tudo que diz respeito vida superior.
s vezes, sentadas sozinhas no meio do campo, deixaram seus olhares
vagarem pelos clares morrendo no horizonte, e com a brisa da tarde
vem-lhes outra brisa, mais longnqua e quase divina, que lhes d sauda-
des do alm e da santidade. Mas a noite cai, preciso voltar. Sacode-se
o sonho e acontece, muitas vezes que, no fim da vida, vai ser tudo que
entreviram do divino: alguns suspiros, alguns estremecimentos, alguns
gemidos inarticulados, esse o resumo de nossos esforos para atingir
o soberano Bem.
Mas o instinto do amor e do divino est s adormecido. Diante da
beleza, o amor sempre desperta; ao chamado da santidade, a testemunha
divina que est em ns logo responde, e ento ao redor dos que pregam
em nome da palavra interior, vemos acorrer de todos os pontos do hori-
zonte longas procisses de almas sedentas de ideal. O corao humano
aspira to naturalmente por dar-se que, desde que encontramos em nosso
caminho uma pessoa que, sem duvidar nem dela nem de ns, no-lo pede
sem restries e ns lhe damos imediatamente. A razo compreende um
dom parcial, um devotamente momentneo; o corao no compreende
seno os holocaustos, e como o noivo a sua noiva, ele diz a seu vencedor:
S para ti, e para sempre!.

O que fez falirem miseravelmente todas as tentativas de religio na-


tural foi que seus iniciadores no tiveram coragem de tomar os coraes
e de no lhes permitir divises. Desconheceram a herica necessidade
de imolao que h no fundo das almas; as almas vingaram-se deixando
de escutar esses amantes to pouco apaixonados.
Francisco se entregara to completamente para no reclamar dos

123
outros uma renncia absoluta. Depois de mais de dois anos que deixara
o mundo, a realidade e a profundidade de sua converso brilhavam aos
olhos de todos; s caoadas dos primeiros dias tinham sucedido pouco a
pouco na maior parte das pessoas um sentimento prximo da admirao.
Esta provoca fatalmente a imitao. Um homem de Assis, apenas
mencionado pelos bigrafos, ligara-se a Francisco. Era um desses sim-
ples de corao que acham a vida muito bonita desde que podem ver e
contemplar quem fez brotar de sua alma a fagulha divina 14.
A chegada Porcincula deve ter sido uma advertncia para Francisco;
logo comeou a pensar na possibilidade de assumir alguns companheiros
com os quais continuaria sua misso apostlica pelas redondezas.
Recebera muitas vezes em Assis a hospitalidade de um homem rico
e considerado, chamado Bernardo de Quintavalle 15 que o fazia dormir

14
1Cel 24. preciso corrigir o texto dos bolandistas: Inter quos quidam de Assisio puer ac simplicem
animum gerens, por: quidam de Assisio pium ac simplicem, etc. O perodo em que estamos muito claro em
seu conjunto; o quadro dado pelos Trs Companheiros tem uma verdade que se impe primeira vista; mas
nem eles nem Celano fazem outros comentrios. Mais tarde, algum quis saber exatamente qual a ordem em
que os primeiros discpulos tinham chegado, e se torturou o texto para encontrar uma resposta. Foi o mesmo
que fizeram quanto s primeiras sadas missionrias. Mas, dos dois lados, chega-se a impossibilidades e
contradies. Que importa se houve duas, trs ou quatro misses antes da aprovao papal? Que importa o
nome desses primeiros discpulos que so personagens secundrios na histria do movimento franciscano?
Tudo isso aconteceu com muito mais simplicidade e espontaneidade do que normalmente se imagina.
Entretanto, considerando o carter da primeira Legenda de Toms de Celano, o quidam de Assisio pium ac
simplicem bem poderia ser simplesmente uma resposta aos esforos tentados pelo EP (cap. 107) para garantir
a Frei Bernardo um lugar privilegiado. Na pena de Celano, Frei Elias insinua aqui uma indicao bem clara
para tirar de seu adversrio o direito de primogenitura, muito vago para que os desmentidos fossem difceis.
Houve reclamaes? Seramos tentados a crer que sim vendo Juliano de Spira, que at aqui tinha seguido
1Cel parar bruscamente para retomar mais adiante sua narrao. A habilidade com que Celano se livra de Frei
Bernardo bem sugestiva. No momento em que ele parece que vai marcar seu lugar na Ordem, suprime-o
com algumas palavras que so uma obra prima de diplomacia: multiplicatis fratribus eum obedientia pii
patris ad alias transmissus est regiones. No tinha ousado calar-se sobre ele no comeo da Ordem, mas
bem evidente que o leitor que se reduzir a 1Cel no poderia supor que Frei Bernardo voltou dessas viagens
e que, durante os ltimos anos, ficou ao lado de Francisco. Desde esse momento Celano prepara-se para
concentrar toda a ateno de seus leitores s em Frei Elias. Bernardo s vai ser lembrado mais uma vez em
1Cel 30 (part. I, cap. XIl). Na segunda Vida, Toms de Celano retratou implicitamente o que disse aqui, 2Cel
2, 17. Bernardus secundus in ordine. 2Cel 3, 52, post sanctum Dei minorum prima plantula.
15
1Cel 24. Bernardo de Bessa foi o primeiro a cham-lo Bernardo de Quintavalle: De laudibus, fo 95 h.
Cf. sobre ele Marcos de Lisboa, t. I, segunda parte, p. 68-76; Conform. 17; Actus, 1,2,3,4,5,30; Fior. 1, 2,
3, 4, 5, 6, 28; LTC 27, 30, 39; EP, 107; 2Cel 1, 10; 2, 17; LM 28; 1Cel 30; Salimbene, ano 1229, et Tribul
Arch., 11, p. 278, etc.

124
em seu prprio quarto. Compreende-se como essa intimidade devia ser
favorvel para uma pessoa se abrir. Quando, no silncio das primeiras
horas da noite, uma alma ardente e entusiasmada te conta suas desiluses,
seus ferimentos, seus sonhos, suas esperanas, sua f, bem difcil no
se deixar envolver, principalmente quando o apstolo tem compreenses
secretas em tua alma e responde sem saber a tuas ntimas aspiraes.
Um dia, Bernardo foi pedir a Francisco que se hospedasse com ele 16
na noite seguinte. Deu-lhe a entender, ao mesmo tempo, que devia tomar
uma resoluo importante e queria falar com ele sobre isso.
A alegria de Francisco foi bem grande, adivinhando suas intenes.
Passaram a noite sem pensar em descanso; foi uma longa comunho de
suas almas: Bernardo estava decidido a distribuir seus bens aos pobres e
se unir a Francisco. Este quis faz-lo passar por uma espcie de iniciao,
mostrar-lhe que o que praticava, o que pregava no tinha sido inventado
por ele, mas era o que o prprio Jesus lhe mandava expressamente em
sua palavra.
Desde o amanhecer eles foram com outro nefito, chamado Pedro 17
a uma igreja de So Nicolau. L depois de terem rezado e assistido
missa, Francisco pegou no altar o livro dos evangelhos e leu para seus
companheiros a passagem que tinha decidido sua prpria vocao: as
palavras de Jesus enviando seus discpulos em misso.
Irmos, acrescentou, esta a nossa vida e a nossa regra, e a de todos
que quiserem juntar-se a ns. Ide, portanto, e fazei o que ouvistes 18.

16
De acordo com uma tradio que parece digna de crdito, a casa de Bernardo ainda existe.
a antiga construo que est encaixada no palcio Sbaraglini, a trs minutos da Praa, na rua
Antnio Cristfani. No exterior, essa casa antiga ainda est quase intacta.
17
Pedro Catani (ver p. 333 s.). Ver Coll. t. I, p. 71. Ver Mons. Faloci-Pulignani. Miscell., fr., t.
XIV, p. 12 ss.; ibid., p. 15. Notvel estudo sobre sua vida. Golubovich, Bibliotheca, t. I, p. 119-126.
18
1Cel 24; LTC 27, 28 e 29; 2Cel 1, 10; 3, 52; LM 28; A. SS., p. 580. O trabalho da tradio pode ser
sentido nessa narrao. Quiseram logo mostrar uma milagre na maneira de Francisco encontrar a passagem
para ler. A igreja de So Nicolau no existe mais; ficava no lugar hoje ocupado pelo quartel da polcia
(carabinieri reali). Em 1926, por ocasio do centenrio, erigiram no ngulo voltado para a praa uma pequena
loggia com um altar. Sobre a igreja de So Nicolau e o Missal encontrado por Mons. Faloci-Pulignani; v.
Miscell., fr., t. XV, p. 35-43.

125
A insistncia com que os Trs Companheiros contam que Francisco
consultou trs vezes o livro em honra da Trindade, e que ele abriu de
propsito nos versculos que falavam da vida apostlica, leva a crer que
essas passagens foram, se no naquele dia, pelo menos pouco depois, a
Regra da nova Associao.
Se queres ser perfeito, vai, vende o que tens, d o dinheiro aos pobres
e ters um tesouro no cu; depois, vem e segue-me.
Tendo convocado os doze, deu-lhes poder e autoridade sobre todos os
demnios e para curarem doenas. Depois, enviou-os a proclamar o Reino
de Deus e a curar os doentes, e disse-lhes: Nada leveis para o caminho: nem
cajado, nem alforje, nem po, nem dinheiro, nem tenhais duas tnicas. Em
qualquer casa em que entrardes, ficai l at ao vosso regresso. Quanto aos
que vos no receberem, sa dessa cidade e sacudi o p de vossos ps, para
servir de testemunho contra eles. Eles puseram-se a caminho e foram de
aldeia em aldeia, anunciando a Boa-Nova e realizando curas por toda parte.
Jesus disse, ento, aos discpulos: Se algum quiser vir comigo, renun-
cie a si mesmo, tome a sua cruz e siga-me. Quem quiser salvar a sua vida, vai
perd-la; mas, quem perder a sua vida por minha causa, h de encontr-la.
Que aproveita ao homem ganhar o mundo inteiro se perder a sua vida? 19.

Esses versculos foram, no comeo, a Regra oficial da Ordem, mas a


verdadeira Regra era o prprio Francisco. Eles tinham o grande mrito
de ser curtos, de ser absolutos, de prometer a perfeio e de ser tirados
do Evangelho.
Bernardo achou que era seu dever distribuir imediatamente sua for-
tuna aos pobres. Seu amigo assistia cheio de alegria a esse ato que tinha
atrado uma multido 20, quando um padre chamado Silvestre, que lhe

19
Mt 19, 21; Luc. 9, 1-6; Mt 16, 24-27. A concordncia da tradio sobre essas passagens completa.
LTC 29; 2Cel 1, 10; LM 28; Spec. Vitae 5 b; Conforme 37 b 2, 47 a 2; Fior. 2; Glassberger e a Crnica dos
vinte e quatro gerais inverteram a ordem (Analecta fr., t. II, p. 5) como tambm as Conformidades em outro
lugar, 87 b 2. Ver Commercium Paupertatis, p. 16.
Estou inclinado a crer que a cena de So Nicolau foi transformada pela tradio. Ser que no seria a esse
dia que se refere a narrativa que Frei Leo pe na boca do prprio Francisco? EP 4 (Coll., t. I, p. 12, I. 1 ss.).
20
In platea S. Georgii diz a Chron. XXIV gen. An. fr. III, p. 3, I. 26. Esse detalhe, que no provm dos
Actus, em que parece que foi calcado todo o resto das narrativas, faz pensar na legenda de Frei Bernardo
(escrita por Frei Leo).

126
tinha vendido pedras para a reparao de So Damio, vendo que se dava
tanto dinheiro aos que se apresentavam, aproximou-se e disse: Irmo,
ainda no me pagaste direito as pedras que me compraste.
Francisco tinha destrudo muito bem em si mesmo qualquer germe
de avareza para no ficar indignado quando ouviu um padre dizer isso.
Entregando-lhe o dinheiro, que pegou aos punhados do manto de Bernar-
do, respondeu: Toma! Achas, agora, que ests bem pago? Estou,
respondeu Silvestre, um pouco envergonhado diante dos murmrios
do povo 21. Esse quadro, em que as personagens se destacavam to
fortemente, devia impor-se na lembrana dos que o assistiram com uma
fora sem igual: os italianos s compreendem bem o que faz imagem.
Agora sabiam melhor do que por todas as pregaes de Francisco o que
seriam os novos frades.
Quando acabou a distribuio, desceram para a Porcincula, onde Ber-
nardo e Pedro construram cabanas de galhos. Depois arranjaram tnicas
como a de Francisco. No eram diferentes das roupas usadas pelos cam-
poneses e eram desse marrom cujos matizes variam ao infinito, que l na
Itlia eles chamam de cor de burro. Ainda podem ser encontrados alguns
parecidos entre os pastores dos lugares mais afastados dos Apeninos 22.
Oito dias depois, na quinta feira 23 de abril de 1209 23, apresentou-se
a Francisco um novo discpulo chamado Egdio. Doce e submisso por
natureza, era daqueles que tm necessidade de se apoiar, mas que, quando
encontram e comprovam o apoio, elevam-se s vezes to alto quanto ele.
A alma pura de Frei Egdio, conduzida pela de Francisco, devia saborear
as embriagadoras delcias da contemplao com inaudito ardor 24.

21
LTC 30. Cf. Anon. Perus.: A. 88., p. 581 a. Essa cena no apresentada nem por 1Cel nem pela LM,
mas est em 2Cel 3, 52.
22
A questo das roupas dos primeiros frades j fez correrem rios de tinta. evidente que ela no tem uma
soluo possvel. Francisco e seus companheiros pediam tnicas que, conseqentemente, tinham a maior
variedade de forma e cor. A dissertao do Pe. Papini sobre isso uma das melhores escritas por ele. (Storia,
1 parte, p. 234-238. Cf. Wadding I, p. 47, 2 ed.)
23
Essa data apresentada pela vidade de Frei Egdio: A.SS., Oct., t. II, p. 572; Aprilis, t. III, p. 220.
Combina bem com as narrativas. por ela que temos a data aproximativa da converso definitiva
de Francisco, dois anos inteiros antes. Ver tambm Dominicus Mandic, De Legislatione Ant. O.
F. M., p. 16 .
24
1Cel 25; LTC 23; LM 29. Cf. Anon. Perus.: A.SS., p. 582 et A. SS., Aprilis, t. III, p. 220 ss.

127
Precisamos cuidar, aqui, para no pressionar demais os textos,
pedindo-lhes mais do que podem dar. Mais tarde, quando a Ordem fi-
cou definitivamente constituda e passou a ter conventos organizados,
imaginaram o passado de acordo com o modelo do presente, e esse erro
ainda pesa sobre o quadro das origens do movimento franciscano.
Os primeiros frades viveram como os frades com que se misturavam
com prazer. A Porcincula era sua igreja predileta, mas seria um engano
pensar que moravam por ali longamente. Era o seu lugar de encontro,
s isso. Quando eles partiam, s sabiam que se reencontrariam nos arre-
dores da pobre capela. Sua vida era o que ainda hoje a dos mendigos
da mbria, por aqui e por ali de acordo com a sua fantasia, dormindo
nos paiis de feno, nos abrigos dos leprosos ou nos prticos das igrejas.
Seu domicilio era to pouco determinado que, quando Frei Egdio
decidiu juntar-se a eles, foi difcil saber onde encontrar Francisco, tanto
que, quando o encontrou perto de Rivotorto 25, viu nisso uma orientao
providencial.
Eles iam pelos campos, lanando alegremente sua semente. Era o
comeo do vero, no tempo em que todo mundo na mbria est fora para
recolher o feno ou ceifar. Os costumes no mudaram: quando andamos
pelos campos ao redor de Florena, Perusa ou Rieti no fim de maio, fcil
ver, ao cair da noite, os tocadores de cornamusa entrando nos campos
na hora em que os ceifadores se sentam para a refeio da tarde; tocam
algumas peas e, quando o cortejo de trabalhadores volta para a aldeia,
seguido pelos carros carregados com a colheita, so eles que abrem a
marcha, enchendo o ar com suas notas mais agudas.

25 EP 36. Qualiter dixit fratri Egidio priusquam esset receptus ut daret mantellum cuidam pauperi.
In primordio religionis cum maneret apud Rigum Tortum cum duobus fratribus quos tunc tantum
habebat. Se compararmos essa passagem com LTC 44, chegaremos certamente concluso de que
a narrartiva do Speculum mais satisfatria. De fato, compreendemos muito bem a iluso de tica
que levou mais tarde a fazer da Porcincula o teatro da maior parte dos acontecimentos da vida
de Francisco enquanto no se compreende porque se buscou criar uma aurola em Rivotorto. Os
Fioretti dizem: And inverso lo spedale dei lebbrosi, o que confirma a indicao de Rivotorto.
Vita dEgidio, 1. Ver Paul Sabatier, Dissertazione sul primo luogo abitato dai frati Minori, su
Rivo-Torto e sullospedale dei lebbrosi di Assisi. Roma, 1896. Broch in-8.

128
Os alegres penitentes que gostavam de se chamar Joculatores Domi-
ni, os jograis de Deus, devem ter feito muitas vezes a mesma coisa 26.
Fizeram at melhor, porque, no querendo ser pesados para ningum,
passavam uma parte de seus dias ajudando os lavradores nos trabalhos
do campo 27. Em geral, os moradores dessas regies so amveis e srios;
os frades logo conquistaram sua confiana contando inicialmente sua
histria, e depois suas esperanas. Trabalhavam e comiam juntos. s
vezes, os frades e os trabalhadores dormiam na mesma granja, e quando,
na madrugada seguinte, continuavam seu caminho, os coraes estavam
tocados. Ainda no havia converses, mas eles j sabiam que l, pelos
lados de Assis, viviam homens que tinham renunciado a seus bens e que,
devorados pelo zelo, iam por todo lado pregando a penitncia e a paz.
O acolhimento nas cidades era bem diferente. Tanto quanto o campo-
ns do centro da pennsula doce e servial, os citadinos j se mostram,
desde o comeo, caoadores e maldosos. Veremos logo as perseguies
sofridas pelos frades que foram a Florena.
Poucas semanas depois que Francisco comeara a pregar, suas pala-
vras e aes j ressoavam como um apelo resistvel no fundo de muitos
coraes.
Estamos no perodo mais original e mais interessante da histria dos
Franciscanos. Esses primeiros meses foram para sua instituio o que
os primeiros dias da primavera so para a natureza, quando o ramo de
amendoeira floresce e, testemunhando o misterioso trabalho que se cum-
pre nas entranhas da terra, anuncia as flores que vo matizar os campos
chegar quase todas juntas.
vista desses homens, de ps descalos, mal vestidos, sem dinhei-
ro, mas parecendo to felizes, as opinies eram muito diferentes. Uns
achavam que eram loucos, outros os admiravam e os julgavam muito
diferentes dos monges que viviam vagando pelo mundo, que eram uma
praga da cristandade.

26
AP: A. SS., p. 582. Cf. Fior., Vie dgide 1; EP 100; 2Cel 3, 68; A.SS. Aprilis, t. III, p. 227.
27
EP 55; Conform. 219 b 1; Ant. fr., p. 96.

129
Mas algumas vezes os frades percebiam que o sucesso no correspon-
dia a seus esforos, que o movimento de converso das almas parecia no
ter suficiente rapidez nem vigor. Francisco, para encoraj-los partilhava
com eles suas esperanas e vises: Vi uma multido de homens que
vinham a ns, pedindo para receber o hbito de nossa santa religio, e o
rumor de seus passos ainda ressoa em meus ouvidos. Eu os vi chegando
de todas as partes e enchendo os caminhos.

Digam os bigrafos o que quiserem, Francisco no previa as tristezas


que seguiriam a esse rpido crescimento da Ordem. Como a virgem que
se apia trmula e arrebatada no brao de seu noivo nem pensa nas dores
da maternidade, ele nem sonhava com a borra que deveria beber depois
de se ter embriagado com o vinho generoso do clice 28.

Toda obra que prospera provoca a oposio pelo simples fato da pros-
peridade. As ervas do campo amaldioam com sua linguagem as plantas
mais vivazes que as afogam. No d para viver sem provocar inveja: a
nova fraternidade tinha que ser humilde, no podia escapar dessa lei.

Quando os Frades subiam a Assis para mendigar de porta em porta,


muitos recusavam d-la, repreendendo-os por ter dissipado sua fortuna
e, depois disso, querer ver s custos dos outros. Muitas vezes, eles mal
tiveram com que matar a fome. Parece mesmo que o clero no foi estra-
nho a essa oposio. O bispo de Assis disse um dia a Francisco: Vosso
jeito de viver sem nada possuir me parece muito duro e penoso: Se-
nhor, respondeu ele, se possussemos bens precisaramos de armas para
defend-los, porque a est a fonte das querelas e processos. Muitas vezes,
a que o amor de Deus encontra habitualmente muitos obstculos.
por isso que no queremos ter bens temporais 29.

O argumento era sem resposta, mas Guido comeou a se arrepender


dos encorajamentos que tinha dado ao filho de Bernardone. Era mais ou

28
LTC 32-34; 1Cel 27 e 28; LM 31;
29
LTC 35. Cf. AP: A.SS., p. 584.

130
menos essa a situao e os sentimentos dos bispos anglicanos quando
viram organizar-se o Exrcito da Salvao. No se tratava propriamente
de hostilidade, mas uma desconfiana tanto maior quanto no ousava
se manifestar. O nico conselho que o bispo podia dar a Francisco era
de entrar no clero ou, se sentia atrado pelo ascetismo, em uma ordem
monstica j existente 30.
Se as perplexidades do bispo eram grandes, as de Francisco no eram
menores. Ele era muito atilado para no sentir o conflito que ameaava
explodir entre seus frades e o clero. Percebia como os inimigos do clero
louvavam a ele e a seus companheiros para opor sua pobreza avareza
e s riquezas dos eclesisticos, mas sentia-se interiormente forado a
continuar sua obra e teria gritado de boa vontade com o apstolo: Ai de
mim se no anunciar o Evangelho!
Por outro lado, as famlias dos Penitentes no podiam perdoar-lhe
ter distribudo todos os seus bens aos pobres, e os ataques vinham desse
lado com a dureza de linguagem e profundidade dio que encontramos
tantas vezes nos herdeiros decepcionados.

30
Mais tarde, disseram naturalmente que Francisco no teve apoio melhor que o de Guido; alguns at
fizerem dele o seu diretor de conscincia (Saint Franois, Plon, diteur, p. 24)! Temos uma prova indireta mas
inexcusvel da prudncia com que preciso aceitar essas piedosas tradies; Francisco chegou a anunciar a
seu bispo (pater et dominus animarum, LTC 19) seu desejo de fazer a Regra ser aprovada pelo papa. O que
chama mais a ateno que o bispo tivesse que ser seu advogado natural na corte de Roma, e que, na falta
de outra razo, a educao mais elementar exigia que ele fosse avisado antes. preciso acrescentar que os
bispos na Itlia no so, como em outros lugares, funcionrios dificilmente abordveis para o comum dos
mortais. Quase cada cidade da mbria tem seu bispo, ainda que sua importncia no seja muito maior que
a de um proco no interior da Frana.
De resto, diversos documentos pontifcios lanam uma triste luz sobre o carter de Guido. Em um captulo
dos Decretais de Honrio III (Quinta compil. Lib. Il. Tit. III. Cap. l), conta-se uma reclamao levada cria
contra esse bispo, acusado pelos crucgeros do hospital San Salvatore delle Pareti (arredores de Assis), por
ter maltratado dois deles e roubado uma parte do vinho do convento: pro eo quod Aegidium presbyterum, et
fratrem eorum conversum violentas manus injecerat... adjiciens quod idem hospitale quadam vini quanti-
tate fuerat per eumdem episcopum spoliatum. Honorii opera, ed. Horoy, t. I, col. 200 ss. Cf. Potthast 7746.
A meno do hospital de Pareti prova que se trata do bispo de Assis e no do de simo, como sugeriram
alguns crticos.
Um outro documento pontifcio mostra-o em luta com os beneditinos do monte Subsio (justamente os
que dariam a Porcincula a Francisco), e Honrio III no d razo ao bispo: Bula Conquerente oeconomo
monasterii ap. Richter, Corpus juris canonici. Leipzig, 1839, in-4o Horoy, loc. cit., t. I, col. 163; Potthast 7728.

131
Os frades eram vistos, ento, como um perigo para as famlias, e mui-
tos pais tremiam ao ver seus filhos juntarem-se a eles. De bom ou mau
grado, eles eram a constante preocupao de toda a cidade. Os boatos
maldosos espalhados de boa vontade sobre eles atingiam o objetivo: vo-
ando de boca em boca, logo encontravam contraditores que no tinham
dificuldade para demonstrar seu absurdo. Indiretamente tudo isso servia
a sua causa e punha do seu lado os coraes, mais numerosos do que se
pensa, que sentem a necessidade de defender os perseguidos.
Quanto ao clero, no podia deixar de sentir uma profunda desconfiana
por esses convertedores leigos, que suscitavam alguns dios interessados,
mas que provocavam tambm entre as almas mais piedosas o espanto,
primeiro, e depois a admirao.Ver de repente pessoas sem ttulos, sem
diplomas, sair-se brilhantemente na misso que nos foi confiada oficial-
mente e em que falhamos na pior maneira, um suplcio insuportvel.
No verdade que j vimos generais que preferiram perder uma batalha
do que venc-la com tropas de voluntrios?
Essa oposio surda no deixou marcas caractersticas nas biografias
de So Francisco. No de estranhar: Toms de Celano, mesmo que
tivesse indicaes a esse respeito, demonstraria falta de tato usando-as.
Alis, um clero tem mil modos de trabalhar a opinio, sem deixar de
testemunhar um religioso interesse por aqueles a quem detesta.
Mas, quanto mais Francisco se vir em contradio com o clero de seu
tempo, mais vai crer que um filho submisso da Igreja.
A idia de opor o Evangelho Igreja, que encontramos no fundo de
quase todas as tentativas de heresia, parece nunca ter aflorado em seu
esprito. Menos ainda em seu corao.
Ele no amava o Evangelho de um lado e a Igreja do outro; amava-
os com um nico amor ingnuo sem nunca pensar que algum pudesse
separ-los.
J fazia cinco anos que, apoiado em sua bengala de convalescente,
sentira-se invadido pelo desgosto dos prazeres materiais. Desde ento,
cada um de seus dias tinha sido marcado por um progresso.

132
Era primavera, outra vez. Perfeitamente feliz, sentia-se cada vez mais
obrigado a partilhar com os outros a sua felicidade, a ir dizer aos quatro
cantos do mundo como tinha chegado a esse ponto.
Ento, resolveu empreender uma nova misso. Empregou alguns dias
para prepar-la. Os Trs Companheiros conservaram-nos as orientaes
que deu a seus discpulos:
Consideremos, irmos carssimos, a nossa vocao, pela qual Deus
nos chamou com misericrdia, no s para a nossa salvao, mas para
a de muitos, a fim de irmos pelo mundo, exortando a todos, mais com o
exemplo que com a palavra, a fazer penitncia de seus pecados e lembrar-
se dos mandamentos de Deus. No tenhais medo por parecerdes poucos e
ignorantes, mas com firmeza e simplicidade anunciai a penitncia, confiando
no Senhor, que venceu o mundo, porque por seu Esprito falar por meio
de vs e em vs para exortar a todos que se convertam a Ele e observem
seus mandamentos.
Encontrareis alguns homens fiis, mansos e bondosos, que com alegria
recebero a vs e as vossas palavras, e muitos outros sem f, soberbos e
blasfemos, que, injuriando-vos, resistiro a vs e a tudo aquilo que disserdes.
Ponde, pois, em vossos coraes tolerar tudo com pacincia e humildade.
Ouvindo isso, os frades comearam a ter medo. Disse-lhes o santo:
No temais, porque no passar muito tempo e vir a ns um grande
nmero de sbios e nobres, que ficaro conosco pregando aos reis e aos
prncipes e a incontveis povos. Muitos se convertero ao Senhor, e pelo
mundo inteiro multiplicar e aumentar a sua famlia.

Depois de ter dito isso, ele os abenoou, dizendo a cada um uma


palavra que devia ficar para o futuro como uma consolao:
Meu irmo, entrega-te a Deus em todos os teus cuidados, e ele cuidar
de ti.
E os homens de Deus foram devotamente, e observando suas advertn-
cias. Quando encontravam alguma igreja ou cruz, ajoelhavam-se para rezar
e devotamente diziam: Ns te adoramos, Cristo, e te bendizemos, por
causa de todas as tuas igrejas que esto no mundo inteiro, porque pela
tua santa cruz remiste o mundo. Pois achavam que estavam sempre

133
encontrando um lugar de Deus onde quer que encontrassem uma cruz ou
uma igreja. Todos que os viam admiravam-se muito porque, no hbito e no
modo de viver eram to diferentes dos outros e quase pareciam homens do
mato. Onde quer que entrassem, fosse cidade ou aldeia, povoado ou casa,
anunciavam a paz, exortando a todos para que temessem e amassem o Criador
do cu e da terra e observassem seus mandamentos.
Uns, de boa vontade, os escutavam, outros, ao contrrio, riam-se deles;
muitos os cansavam interrogando-os: De onde sois? Outros perguntavam
que Ordem seria a deles. Embora lhes custasse muito responder a todas essas
perguntas, com simplicidade confessavam que eram homens de penitncia,
oriundos da cidade de Assis 31.
Esse frescor e essa poesia no sero mais encontrados nas misses
seguintes. Aqui, o rio ainda ele mesmo, e se ele sabe para que mar
vai correndo, nada sabe das margens mais ou menos lodosas que vo
turvar sua limpidez, nem dos diques e retificaes pelos quais vai
passar.
Uma longa narrativa dos trs companheiros d uma imagem viva
dessas primeiras tentativas de pregao:

Muitos os julgavam enganadores e loucos e no queriam admit-los em


casa para que, como ladres, tirassem furtivamente as suas coisas. Por este
motivo, em muitos lugares, aps terem recebido um sem-nmero de inj-
rias, abrigavam-se sob os prticos das igrejas ou das casas. Nesse mesmo
tempo, dois deles estavam em Florena, onde tinham percorrido a cidade
mendigando, mas no tinham conseguido onde se hospedar. Chegando a
certa casa que tinha um prtico, e dentro do prtico um forno, disseram:
Aqui poderemos hospedar-nos. Pediram dona da casa que os recebesse
dentro de casa, mas como ela recusasse, rogaram humildemente que pelo
menos lhes permitisse descansar por aquela noite junto ao forno.
Isso foi concedido por ela, mas o marido chegou e encontrando-os no
prtico. Mas chegou o marido encontrou-os no prtico e chamando a mulher
disse-lhe: Por que deste hospedagem em nosso prtico a estes vagabun-
dos? Ela respondeu que no quisera receb-los em casa, mas lhes

31
LTC 36 e 37. Cf. AP AP ap. A.SS. p. 585.; Test. B. Francisci.

134
concedera que ficassem no prtico, onde nada podiam roubar a no ser a
lenha.
No quis o marido que lhes fosse dado qualquer agasalho, embora fizesse
frio intenso naquele tempo, porque julgava que fossem vagabundos e ladres.
Naquela noite, tendo repousado at o alvorecer junto ao forno, com um
sono breve e sbrio, s aquecidos pelo calor divino e cobertos com o manto
da Senhora Pobreza, foram para a igreja mais prxima para ouvir o ofcio
da manh.
Na mesma manh, aquela mulher foi por acaso igreja e vendo ali aqueles
irmos persistindo to devotamente na orao, pensou consigo: - Se esses
homens fossem vagabundos e ladres, como meu marido disse, no ficariam
assim aqui rezando reverentemente. Enquanto pensava isso, um homem,
chamado Guido, distribua esmola aos pobres que permaneciam naquela
igreja. Quando chegou aos frades e quis dar a cada um uma moeda, como
dava aos outros, eles se recusaram e no quiseram receber o dinheiro. Ele lhes
disse: - Por que vs, sendo pobres, no recebeis dinheiro como os outros?
Respondeu Frei Bernardo: - verdade que somos pobres, mas para ns a
pobreza no pesa tanto como para os outros pobres, pois por graa de Deus,
cujo desgnio estamos cumprindo, nos fizemos pobres voluntariamente.
O homem ficou admirado do que ouvia e perguntou-lhes se j tinham
possudo algo. Responderam-lhe que haviam possudo muitas coisas, mas
por amor de Deus tinham dado tudo aos pobres A referida mulher, vendo
que os irmos no haviam aceitado o dinheiro, aproximando-se disse-lhes
que de boa vontade os receberia em sua casa, se quisessem ir l para se
hospedar. Os irmos humildemente responderam: Deus te recompense
pela boa vontade.
Mas o referido varo, ouvindo que os irmos no haviam podido encon-
trar hospedagem, levou-os para sua casa, dizendo: Eis a hospedagem
preparada por Deus para vs. Ficai aqui conforme vos aprouver.

Mas eles, dando graas a Deus, permaneceram junto dele alguns dias,
edificando-o por seu exemplo e palavra, no temor de Deus, de maneira que,
depois, ele deu muitas esmolas aos pobres.
Mas ainda que tenham sido tratados bondosamente por esse, por outros
eram tidos como vilssimos, de modo que muitos, pequenos e grandes, os
reprovavam e injuriavam, tirando deles, s vezes, at as roupas pauprrimas

135
que tinham. Como os servos de Deus ficavam nus, porque s vestiam uma
tnica, conforme o conselho do santo Evangelho, no reclamavam que
devolvessem o que tinham tirado. Mas se alguns, movidos pela piedade,
queriam devolver-lhes o que tinham levado, eles as recebiam de boa vontade.
Alguns jogavam barro neles; outros, pondo dados em suas mos,
convidavam-nos a jogar; outros, agarrando-os pelo capuz, carregavam-nos
suspensos nas costas.
Quando as pessoas viam que os frades exultavam em suas tribulaes,
insistiam solcita e devotamente na orao e no recebiam nem levavam
dinheiro, e tinham o maior amor entre si, pelo qual eram reconhecidos como
verdadeiros discpulos do Senhor, muitos ficavam de corao compungido
e os procuravam para pedir desculpas pelas ofensas feitas. Eles os perdo-
avam de todo o corao, dizendo: Deus vos poupe, e os admoestavam
saudavelmente acerca de sua salvao.

Uma traduo s pode transmitir muito imperfeitamente o que est no


latim incorreto dos trs companheiros sobre a emoo contida, a cndida
simplicidade, a juventude pudica, os amorosos ardores.

Nesse meio tempo, os frades dispersos suspiravam pela volta e pelas


longas conversas de seu pai espiritual nos tranquilos bosques dos arre-
dores de Assis. Quando ultrapassa certo grau, a amizade entre homens
tem algo de profundo, elevado, ideal, infinitamente doce, que nenhuma
outra amizade alcana. No havia nenhuma mulher no Cenculo quando,
na tarde de sua vida, Jesus comungou com seus discpulos e convidou o
mundo para o banquete das npcias eternas.
Francisco, principalmente, estava impaciente por reencontrar sua
jovem famlia. Chegaram quase todos ao mesmo tempo Porcincula,
j tendo esquecido antes de l estar, os tormentos sofridos, cuidando
apenas da alegria de se encontrar 32.

32
LTC 38-41.

136
6

SO FRANCISCO E
INOCNCIO III

137
VI

Ad hoc unxit nos Deus oleo laetitiae pro consortibus nostris ut diligamus
justitiam et odiamus iniquitatem 1.
Statuit ei [Dominus] testamentum aeternum et dedit ei sacerdotium gentis
et beatificavit eum in gloria;
et circumcinxit eum zona gloriae,
et induit eum stolam gloriae,
et coronavit eum in vasis virtutis...
Corona aurea super mitram ejus;
expressa signo sanctitatis, et gloria honoris;
opus virtutis, et desideria oculorum ornata...
Factum est illi in testamentum aeternum,
et semini ejus, sicut dies caeli,
fungi sacerdotio, et habere laudem,
et glorificare populum suum in nomine ejus.
Ipsum elegit ab omni vivente,
offerre sacrificium Deo, incensum et bonum odorem,
in memoriam placare pro populo suo,
et dedit illi in praeceptis suis potestatem,
in testamentis judiciorum;
docere Jacob testimonia et in lege sua lucem dare Israel 2.
Tu es Petrus et super hanc petram aedificabo ecclesiam meam
et portae inferi non praevalebunt adversus eam. Et tibi dabo claves regni
caelorum; et quodcumque ligaveris super terram erit ligatum et in caelis,
et quodcumque solveris super terram erit solutum et in caelis 3.
Tu ergo, accinge lumbos tuos, et surge, et loquere ad eos omnia quae ego
praecipio tibi. Ne formides a facie eorum, nec enim timere te faciam vul-
tum eorum. Ego quippe dedi te hodie in civitatem munitam, et in colum-
nam ferream, et in murum aereum, super omnem terram, regibus Judas,
principibus ejus, et sacerdotibus, et populo terrae. Et bellabunt adversum
te, et non praevalebunt, quia ego tecum sum, ait Dominus, ut liberem te 4.

1 Comeo da bula de 2 de maro de 1198, Potthast 31. (Cf. Sl 404, 8).


2 Eclo 45, 7-21.
3 Mt 16, 18-19.
4 Jr 1, 17-19.

138
VI

Foi para isso que Deus nos ungiu com o leo da alegria em vez de nossos
companheiros, para que amemos a justia e odiemos a iniqidade 5.
Estabeleceu com ele uma aliana eterna
e deu-lhe o sacerdcio do povo,
e o tornou feliz na glria;
Cingiu-o com uma faixa de glria
vestiu-o com um manto de glria,
coroando-o em recipientes de virtude...
Uma coroa de ouro sobre a sua mitra
trazendo seu ttulo de santidade e seu cargo glorioso;
jia esplndida cuja ornamentao encanta os olhos.
Foi nele que se concluiu a aliana eterna,
nele e em sua raa. Enquanto durar o cu,
ele ser o pontfice, ele ser o objeto de nossos cnticos,
ele ser a glria de seu povo, por causa do nome do Senhor.
Foi Deus quem o escolheu entre todos os homens,
para lhe oferecer os sacrifcios e incensos de suave odor
para lhe recordar seu povo e oferecer-lhe a expiao de seus pecados.
Em suas ordens deu-lhe o poder sobre as regras sagradas.
Para ensinar a Jac os preceitos divinos, para instruir Israel e lhe explicar sua
lei 6.
Tu s Pedro e sobre esta pedra edificarei a minha Igreja, e as portas do infer-
no no prevalecero contra ela. Eu te darei as chaves do reino de cu; e
tudo que ligares na terra tambm ser ligado nos cus, e tudo que desliga-
res na terra ser desligado nos cus 7.
Tu, porm, cinge os teus rins, levanta-te e diz-lhes tudo o que Eu te ordenar.
No temas diante deles; se no, serei Eu a fazer-te temer na sua presen-
a. E eis que hoje te estabeleo como cidade fortificada, como coluna de
ferro e muralha de bronze, diante de todo este pas, dos reis de Jud e de
seus chefes, dos sacerdotes e do povo da terra. Far-te-o guerra, mas no
ho de vencer, porque Eu estou contigo para te salvar. 8.

5
Comeo da bula de 2 de maro de 1198. (Cf. Sl 44 (45), 8.
6
Sir 45, 7-12.
7
Mt 16, 18-19.
8
Jr 1, 17-19.

139
Vero de 1210 9
Vendo aumentar cada dia o nmero de seus frades, Francisco quis
escrever a Regra e ir a Roma para que o papa a aprovasse.
Essa resoluo no foi tomada levianamente. De fato, seria errado
tom-lo como um desses inspirados que agem bruscamente depois de
inesperadas revelaes, e graas f que tm em si mesmos e em sua
infalibilidade, se impem aos demais. Pelo contrrio, ele estava cheio
de uma verdadeira humildade e, se acreditava que Deus se revela pela
orao, jamais se dispensou, por causa disso, de refletir e mesmo de
voltar atrs em suas decises. So Boaventura fez mal a ele mostrando
que maior parte de suas resolues importantes assumidas depois de
sonhos; isso tirar de sua vida a sua profunda originalidade, da sua
santidade sua mais rara flor. Ele era da raa dos que lutam e, para usar
uma das mais belas expresses da Bblia, dos que conquista sua alma

9
A fixada ordinariamente para a aprovao da Regra por Inocncio III agosto de 1209. Os bolandistas
acharam que podiam deduzir a data da narrativa de Toms de Celano (1Cel. 43) que lembra a passagem pela
mbria do Imperador Oto IV que ia ser coroado em Roma (4 de outubro de 1209). Sobre essa viagem,
ver Bhmer-Ficker, Regesta Imperii. Die Regesten des Kaiserreichs unter Philipp, Otto IV, etc. lnnsbruck,
1879, in-4, p. 96 e 97. Como essa narrativa vem depois da aprovao, concluram que ela tinha sido an-
terior. Mas Toms de Celano colocou a a narrativa porque foi levado pelo contexto e no para determinar
a data. Tudo leva a crer que os frades se retiravam (recolligebat, 1Cel 42) em Rivotorto antes e depois de
sua viagem a Roma. Alm disso, o espao entre 23 de abril e a metade de agosto de 1209 muito curta para
tudo que os bigrafos nos contam sobre a vida dos frades antes de sua visita a Inocncio III. A misso em
Florena aconteceu no inverno ou ao menos durante um ms muito frio. Mas o argumento decisivo que
Inocncio III saiu de Roma no fim de maio de 1209 para ir a Viterbo e s voltou para coroar Oto no dia 4
de outubro (Potthast 3727-3803). Por isso temos que adiar para o outono de 1210 a visita dos Penitentes ao
papa. Wadding tambm chegou a essa data.

140
pela perseverana. Por isso ns o veremos retocando sempre a Regra de
seu instituto, voltando a ela se cessar at o ltimo momento, medida
que o crescimento da Ordem e a experincia do corao humano foram
sugerindo modificaes 10.

A primeira Regra, a que ele submeteu a Roma, no chegou at ns;


s sabemos que era muito simples e composta principalmente de passa-
gens do Evangelho. Sem dvida, no era mais do que a reproduo dos
versculos que Francisco tinha lido para seus primeiros companheiros,
com alguns preceitos sobre o trabalho manual e sobre as ocupaes dos
novos frades 11.

Convm parar um pouquinho aqui para considerar os frades que vo


partir para Roma.

Os bigrafos esto de acordo quanto ao seu nmero; eram doze con-


tando Francisco. Mas, quando queremos dar um nome a cada um deles,
surgem as dificuldades, e s com esforos exegticos que se pode
pretender conciliar os diversos documentos.

10
LTC 35.
11
1Cel 32; LTC 51; LM 34. Cf. Test. O EP s conhece duas Regras, a regra primitiva e a nova regra. Os
documentos franciscanos nunca falam seno dessas (se acrescentam uma terceira, referem-se que foi perdida
por Frei Elias, idntica, dizem, que foi aprovada em 1223). Isso no inconcilivel com os estudos de KarI
MlIer (Die Anfnge der Minoritenordens; Fribourg, 1885, in-8 de XII e 210 p. v. p. 14-25; 184-188). Papini
por seu lado tinha chegado a resultados anlogos aos de Karl Mller. Ver na Storia di San Francesco o estudo
com o ttulo: Le varie regole composte da San Francesco (t. I, p. 208-234). Cf. ibid, p. 56, 68, 110, 176.
O estudo do EP me leva a pensar que a regra de 1221 mesmo a primeira, mas remanejada sem cessar
de 1210 a 1221.
Cada ano, depois dos captulos gerais, eles introduziam novas constituies editadas por essas assemblias.
Semel in anno conveniunt... et consilio bonorum virorum faciunt et promulgant institutiones sanctas et a
domino papa confirmatas. Jacques de Vitry V. Isso concorda muito bem com o que diz a LTC 35 (IX) e
57 (XIV). Cf AP, A. SS. october, t. II, p. 599; CrTc 5; CrJJ 11 e 15; 2Cel 3, 68 e 110 e explicaria os textos
passavelmente diferentes que temos da Regra de 1221. Os que a chamam de primeira regra ou regra de 1210
tm razo, e os que a chamam de regra de 1221 no esto errados. Cf. Dominicus Mandic, De legislatione
ant. Ord F.M., p. 49 ss.

141
A lista que apresentamos 12 expe resumidamente essas dificuldades. A
questo adquiriu importncia quando, no sculo XIV quiseram encontrar
uma constante conformidade entre a vida de So Francisco e a de Jesus.

Para ns, isso no tem nenhum interesse. O perfil de dois ou trs desses
frades destaca-se muito claramente no quadro das origens da Ordem; os
outros fazem pensar nos quadros dos mestres umbros primitivos, em que
as figuras do fundo tm uma graa carinhosa e pudica, mas sem sombra
da personalidade. Esses primeiros franciscanos tiveram todas as virtudes,
inclusive a que mais nos faz falta, a de querer ficar annimos.
Na igreja inferior de Assis h um velho afresco representando cinco
dos companheiros de So Francisco; acima delas est uma Madona de
Cimabue que eles contemplam com todo o corao; seria mais verda-
deiro se, no lugar da Madona estivesse So Francisco: ns sempre nos
transformamos na imagem de quem admiramos, e por isso eles so
parecidos com seu mestre e parecidos uns com os outros 13. Comete-se
uma espcie de erro psicolgico e se tem a culpa de infidelidade sua

12
Lista de Toms de Celano: 1. Quidam pium gerens animum, 2. Bernardus, 3. Vir alter, 4. Aegidius, 5.
Unus alius appositus, 6. Philippus, 7. Alius bonus vir, 8. 9. 10. 11. Quatuor boni et idonei viri: 1Cel 24, 25,
29, 31. O texto Rinaldi-Amoni no diz nada sobre esses quatro ltimos. LTC 1. Bernardus, 2. Petrus, 3.
Aegidius, 4. Sabbatinus, 5. Moricus, 6. Johannes Capella, 7. 8. 9. 10. 11. Discpulos recebidos pelos frades
em suas misses: LTC 33, 35, 41,46, 52. - LTC Melchiorri-Marcellino. Primus fuit beatissimus frater et Pater
Franciscus, dux et fundator Ordinis Fratrum Minorum et primus Minister. Duobus annis post conversionem
suam, secutus est frater Bernardus de Quintavalle; tertius frater Petrus; quartus frater Aegidius; quintus
frater Sabbatinus; sextus frater Moricus; septimus frater Johannes de Capella; octavus frater Philippus
Longus, primus visitator Pauperum Dominarum; nonus frater Johannes de Sancto Constantio; decimus frater
Barbarus; undecimus frater Bernardus de Vida; duodecimus frater Angelus Tancredi. So Boaventura:
1. Bernardus, 2... 3. Aegidius, 4. 5... 6. Sylvester, 7. Alius bonus vir, 8. 9. 10. 11. Quatuor viri honesti: LM
28,29, 30, 31, 33. Os Fioretti, mesmo insistindo sobre a importncia dos doze apstolos franciscanos no
citam mais do que seis em sua lista: Joo de Capella, Egdio, Filipe, Silvestre, Bernardo e Rufino. Fior 1.
preciso chegar s Conformidades para encontrar a lista tradicional, f 46 b. 1: 1. Bernardus de Quintavalle,
2. Petrus Chatanii, 3. Egidius, 4. Sabatinus, 5. Moricus, 6. Johannes de Capella, 7. Philippus Longus, 8.
Johannes de Sancto Constantio, 9. Barbarus, 10. Bernardus de Cleviridante (sic), 11. Angelus Tancredi,
12. Sylvester. Como vemos, nesses dois ltimos documentos apresentam-se dozes discpulos, enquanto os
outros no tm mais do que onze. Isso bastaria para indicar uma tese dogmtica. Essa lista tambm est no
Speculum, s que, como Francisco est contado, ngelo Tancredi o dcimo segundo e Silvestre desaparece.
Spec. Vitae, 87 a.
13
De acordo com a tradio, os cinco companheiros do Santo l sepultados depois de seus mestre seriam:
Bernardo, Silvestre, Guilherme (ingls), Eletto e Valentim. Ver Papini, Notizie, p. 319; Storia II, p. 205.
Conti, Asio Serafico, p. 21.

142
memria querer dar-lhes um nome; o nico que eles teriam desejado
o de seu pai. Seu amor mudou seu corao e expande sobre toda a sua
pessoa uma irradiao de luz e de alegria. L esto os verdadeiros per-
sonagens dos Fioretti, esses homens que pacificavam as cidades, toca-
vam as conscincias, transformavam os coraes, conversavam com os
pssaros, alimentavam os lobos. Na verdade, deles que se pode dizer:
no tinham nada mas possuam tudo: Nihil habentes, omnia possidentes.
Eles deixaram a Porcincula cheios de alegria e de confiana. Fran-
cisco estava muito absorvido por seus pensamentos para no colocar em
outras mos a direo do pequeno grupo:
Faamos um de ns como nosso guia, e o tenhamos como representante
de Jesus Cristo. Aonde for, para l iremos. Quando quiser se hospedar, nos
hospedaremos. Elegeram Frei Bernardo, o primeiro aps o bem-aventurado
Francisco, e observaram o que o pai lhes dissera. Caminhavam contentes,
falando palavras do Senhor, no se atrevendo a falar outra coisa a no ser o
que fosse para louvor e glria de Deus e utilidade da alma, e frequentemen-
te se entregavam orao. O Senhor sempre lhes preparava hospedagem,
fazendo com que lhes dessem o necessrio 14.

Francisco estava preocupado com a finalidade da viagem. Pensava


nisso noite e dia e interpretava naturalmente os seus sonhos nesse sentido.
Uma vez, ele sonhou que estava caminhando por uma estrada e viu
ao seu lado uma rvore gigantesca e admiravelmente bonita; enquanto
estava a contempl-la, maravilhado, sentiu-se ficar to grande que tocava
os ramos e, ao mesmo tempo, a rvore inclinava os ramos para ele 15.
Levantou-se cheio de alegria seguro de que o papa haveria de receb-lo
bem.
Suas esperanas teriam um pouco de decepo: Inocncio III estava
havia doze anos na ctedra de So Pedro. Ainda jovem, enrgico, reso-
luto, tinha essa superabundncia de autoridade que provm do sucesso.
Vindo depois do fraco Celestino III, soube reconquistar em poucos anos

14
LTC 46; 1Cel 32; LM 34.
15
1Cel 33; LTC 53; LM 35.

143
o domnio temporal da Igreja e impor a influncia papal de modo a quase
realizar os sonhos teocrticos de Gregrio VII. Tinha visto o rei de Arago
declarar-se seu vassalo e vir depor a coroa no tmulo dos apstolos para
receb-la de suas mos. No outro extremo da Europa, Joo sem Terra foi
obrigado a receber a sua de um legado, depois de ter jurado homenagem,
fidelidade e tributo anual Santa S. Pregando a unio s cidades e s
repblicas da Pennsula, fazendo ecoar o grito ITLIA! ITLIA! Como
um relmpago, era o representante natural do despertar nacional e, de
alguma maneira, parecia uma espcie de suserano do imperador, como
j era dos outros reis. Enfim, em seus esforos para purificar a Igreja,
por sua indomvel firmeza para defender a moral e o direito no caso de
Ingelburga e em muitos outros, conquistou uma fora moral que, em
tempos to perturbados, era ainda mais poderosa por ser rara.
Mas esse poder incomparvel tinha seus problemas. De tanto defender
as prerrogativas da Santa S, Inocncio esqueceu que a Igreja no existe
por si mesma, que a supremacia apenas um meio transitrio e uma
parte de seu pontificado ficou parecendo com essas guerras inicialmente
leg-timas, mas em que o vencedor continua as devastaes e massacres
quase sem saber por que, s porque est embriagado de sangue e sucesso.
Roma, que canonizou o pobre Celestino, recusou essa consagrao
suprema ao glorioso Inocncio III 16. Ela percebeu, com fino tacto, que

16
Gloriosus a palavra preferida pelos analistas para caracteriz-lo. Ver Pertz 55. 22, p. 370 e 362, 437,
1Cel 33.
Seria bem desejvel que um historiador erudito decidisse fazer uma histria independente do pontificado
de Inocncio III. A obra seca e indigesta de Hurter foi estranhamente sobrestimada por pessoas cujas idias
ela louvava e que se dispuseram a crer muito sbio um escrito to enjoado..
A palavra gloriosus aplica-se a Inocncio nos seus mais diversos matizes. Como Napoleo I, ele no des-
denhava descer aos detalhes mais nfimos, pois conhecia o poder das palavras e sabia que, na histria, uma
batalha ganha vale dez vitrias se o boletim dos exrcitos sabe cont-la bem. Por isso ele cuidou de sua glria
e foi o primeiro arteso de sua legenda. Eis como, no dia seguinte ao de sua eleio ele a contou ao patriarca
de Jerusalm: Felicis memoriae Celestino patre ac praedecessore nostro VI Idus Januarii viam universae
carnis ingresso et in Lateran. basilica honorifice tumulato, tanta fuit inter fratres nostros super pontificis
substitutione concordia ut eo caelitus ipsorum desideriis aspirante qui facit utraque unum et concurrentes
lapides in se angulari lapide copulavit, omnes universaliter unum saperent et idem singulariter postularent,
nos in summum pontificem ipso die depositionis ejusdem praedecessoris nostri unanimiter assumentes.
Migne Innocentis III Opera t. I, col. 9.
Eis como um autor pouco suspeito, o historigrafo prefrido do pontificado, conta essa eleio: Cum ad
tractandum de substitutione pontificis consedissent, placuit omnibus in communi, ut ad terram humiliter

144
ele tinha sido mais rei que sacerdote, mais papa que santo.
Quando reprime as desordens eclesisticas menos por amor do
bem que por dio do mal; o juiz que condena ou ameaa apoiando-se
principalmente em uma lei, no o pai que chora. H uma coisa que esse
pontfice no entendeu em seu sculo: o despertar do amor, da poesia,
da liberdade. Eu disse acima que, no comeo do sculo XIII, a Idade
Mdia tinha vinte anos. Inocncio III quis trat-la como se no tivesse
mais do que quinze.
Possudo por seu dogma civil e religioso, como outros o so por suas
doutrinas pedaggicas, no adivinhou o que se agitava confusamente no
fundo das almas de ternuras insatisfeitas, de sonhos, talvez insensatos,
mas benfazejos e divinos.
Ele foi um crente, ainda que algumas frases dos historiadores 17 dei-
xem a porta aberta para muitas suposies, mas sua religio vinha mais
da Bblia que do Evangelho, e se ele lembra com frequncia Moiss, o
condutor dos povos, nada nele lembra Jesus, o pastor das almas.
No d para ter tudo: uma inteligncia de elite, uma vontade de ferro
so uma parte muito bonita mesmo para um sacerdote-deus; faltou-lhe
18

amor. A morte desse pontfice, grande entre os grandes, devia ser saudada
por cantos de alegria 19.

inclinati singuli pacis osculum sibi darent. Et exhortatione praemissa examinatores fuerunt secundum morem
electi, qui, sigillatim votis omnium perscrutatis, et in scriptis redactis, examinationem factam retulerunt ad
fratres, et quoniam in eum plurimi convenerunt licet tres alii fuissent ab aliquibus nominati, post disputationem
super aetate habitam inter eos, quia tunc annorum triginta septem, omnes tandem consenserunt in ipsum.
Gesta Innocentii apud Migne loco cit., col. XIX. Cf. Rogeri de Hoveden Chronica Pertz, t. XXVII, p. 176-177.
17
Santa Lutgarda (1182-1246) viu-o lanado no Purgatrio at o juizo final. Vida dessa santa por Thomas
de Catimpr em Surius Vitae SS. (1168). VI, 215-226. Ciacomissiol 2027; Pertz Script XXIV, p. 196.
18
Vir clari ingenii, magnae probitatis et sapientiae, cui nullus secundus tempore suo; Rigordus, de gestis
Philippi Augusti em Duchesne, Historiae Francorum scriptores coaetanei, t. V, p. 60. - Nec similem sui
scientia, facundia, decretorum et legum peritia, strenuitate judiciorum nec adhuc visus est habere sequen-
tem. Cf. Mencken, Script. rer. Sax., Leipzig, 1728, t. III, p. 252. Innocentius, qui vere stupor mundi erat et
immutator saeculi. Cotton, Hist. Anglicana, ed. Luard, 1859, p. 107.
19
Cujus finis laetitiam potius quam tristitiam generavit subjectis. Alberico des Trois Fontaines, ed. Leibnitz,
Accessiones historicae, t. 11, p.492.

145
Uma surpresa esperava os peregrinos: quando chegaram a Roma: en-
contraram o bispo de Assis 20 que ficou to espantado quanto eles. Esse
detalhe precioso, pois prova que Francisco no tinha conversado com
Guido sobre seus projetos. Apesar disso, dizem que ele lhes ofereceu
ser seu patrono junto aos prncipes da Igreja. No podemos deixar de
supor que suas recomendaes podem no ter sido muito calorosas. Em
todo caso, no pouparam a Francisco e a seus companheiros nem um
minucioso interrogatrio em os longos e paternais conselhos do cardeal
Joo de So Paulo 21 sobre as dificuldades da Regra, conselhos que lem-
bram bem de perto os do prprio Guido 22.

Entretanto, o que Francisco pedia era muito simples: no reclamava


nenhum privilgio: s que o papa aprovasse sua iniciativa de levar uma
vida absolutamente conforme aos preceitos do Evangelho. Existe a um
matiz que bom captar. O papa no tinha que aprovar a Regra, pois ela
procedia do prprio Jesus Cristo: o pior que ele poderia fazer seria ferir
Francisco e seus companheiros com censuras eclesisticas, por estar
agindo sem misso, e obrig-lo a deixar para o clero secular e regular o
cuidado de reformar a Igreja.

O cardeal Joo de So Paulo tinha sido informado sobre as coisas


relativas aos Penitentes. Prodigou-lhes os mais afetuosos sinais de seu
interesse, chegando a recomendar-se a suas preces. Mas essas garantias,
que parecem ter sido sempre os trocados da Cria romana, no o impe-

20
1Cel. 32; LTC 47.
21
Da famlia Colonna, morreu em 1216. Cf. LTC 61. Ver Cardella, Memorie storiche de Cardinali, 9 vol.,
in-8, Roma 1792 ss., t. I, p. 177. Cf. Ciaconius I col. 625. Ele estava em Roma no vero de 1210, porque no
dia 11 de agosto assinou a bula Religiosam vitam, Potthast 4061. ngelo Clareno conta a aprovao de uma
maneira mais precisa em alguns aspectos: Cum vero Summo Pontifici ea quae postulabat [Franciscus] ardua
valde et quasi impossibilia viderentur infirmitati hominum sui temporis, exhortabatur eum, quod aliquem
ordinem vel regulam de approbatis assumeret, at ipse se a Christo missum ad talem vitam et non aliam
postulandam constanter affirmans, fixus in sua petitione permansit. Tunc dominus Johannes de sancto Paulo
episcopus Sabinensis et dominus Hugo episcopus Hostiensis Dei spiritu moti assisterunt Sancto Francisco
et pro his quae petebat coram summo Pontifice et Cardinalibus plura proposuerunt rationabilia et efficacia
valde. Tribul. Man. de la Laurentienne, fo 6 a. Essa interveno de Hugolino no mencionada em nenhum
outro documento. Mas no impossvel. Ele tambm estava em Roma no vero de 1210. (Ver Potthast, p. 462.)
22
1Cel 32 e 33; LTC 47 e 48. Cf. AP: A. SS., p. 590.

146
diram de examin-la durante vrios dias 23, e de lhes apresentar uma
infinidade de questes que tinham sempre por concluso o conselho de
entrar em uma ordem j existente.

Francisco respondia como podia, muitas vezes sem se embaraar,


porque no ia ter o ar de quem no faria caso dos conselhos do cardeal,
mas sentia-se no corao do imperioso dever de obedecer sua vocao.
O prelado voltava carga, insinuava que seria difcil perseverar, que o
entusiasmo do primeiro momento passaria, e indicava mais uma vez os
caminhos mais fceis 24. A insistncia de Francisco, que no tinha vaci-
lado nem um instante, tinha se imposto a ele, ao mesmo tempo em que
a perfeita humildade dos Penitentes e de sua vida ingnua e brilhante
fidelidade Igreja romana garantiam-no na questo da heresia.
Anunciou-lhes, ento, que falaria sobre eles ao papa e que seria seu
advogado diante dele. Segundo os Trs Companheiros, ele teria dito ao
papa: Encontrei um homem da mais alta perfeio, que vive de acordo
com o Santo Evangelho e observa em tudo a perfeio evanglica. Creio
que, por ele, o Senhor quer reformar no mundo inteiro a f da Santa
Igreja 25.
No dia seguinte, apresentou Francisco e seus companheiros a Ino-
cncio III. O papa no lhes poupou naturalmente as palavras de simpatia,
mas lhes repetiu tambm as observaes e conselhos que lhe tinham
dado muitas vezes: Meus queridos filhos, teria ele dito, vossa vida me
parece difcil; creio que vosso fervor muito grande para que possamos
duvidar de vs, mas eu devo pensar nos que vos seguiro, com medo de
que vosso gnero de vida esteja acima de suas foras 26.
23
LTC 48; 1Cel 33.
24
1Cel 33.
25
LTC 48.
26
LTC 49; 1Cel 33; LM 35 e 36. Tudo isso foi muito arranjado pela tradio e no nos d mais do que um
eco da realidade. Pouco faltou para os Penitentes terem diante de Inocncio III a sorte dos Valdenses diante
de Lcio III. Encontramos vestgios desse acolhimento em dois textos que me parecem muito suspeitos para
inser-los no prprio corpo da narrativa. O primeiro um fragmento de Mateus Paris: Papa itaque in fratre
memorato habitum deformem, vultum despicabilem, barbam prolixam, capillos incultos, supercilia pendentia
et nigra diligenter considerans; cum petitionem ejus tam arduam et executione. impossibilem recitare fecisset,
despexit eum et dixit: Vade frater et quaere porcos, quibus potius debes quam hominibus comparari, et involve
te cum eis in volutabro, et regulam illis a te commentatam tradens, officium tuae praedicationis impende.

147
Depois de acrescentar algumas boas palavras, ele os despediu sem
tomar a deciso definitiva, prometeu consultar os cardeais e recomendou
a Francisco particularmente que se dirigisse a Deus, para que Ele mesmo
manifestasse sua vontade.
A ansiedade de Francisco deve ter sido bem grande: no compreen-
dia nada dessas delongas, desses testemunhos de afeto que nunca eram
seguidos por uma aprovao categrica.
Ele achava que tinha dito tudo que precisava. Para encontrar mais
argumentos s havia um recurso: a orao.
Sentiu-se atendido encontrando em sua conversa de Jesus a parbola
da Pobreza, e voltou para cont-la ao papa:
Certa mulher pobrezinha e formosa vivia num deserto. Um grande rei, admi-
rando-lhe a beleza, desejou receb-la como esposa, julgando que teria lindos filhos
dela. Contrado e consumado o matrimnio, nasceram e ficaram adultos muitos
filhos, aos quais a me falou: Filhos, no vos envergonheis, porque sois filhos do
rei! Ide pois a sua corte e ele vos dar tudo o que vos necessrio.
Quando chegaram diante do rei, este ficou admirado com a sua beleza, e reconhe-
cendo neles a prpria semelhana, perguntou-lhes: De quem sois filhos? Quando
responderam que eram filhos da mulher pobrezinha que morava no deserto, o rei
abraou-os com grande jbilo, e disse-lhes: no temais, pois vs sois meus filhos.
Se em minha mesa alimentam-se estranhos, muito mais vs que sois meus filhos
legtimos. E mandou dizer mulher que enviasse a sua corte todos os filhos que
dele tivera, para serem alimentados.
E Francisco disse: Eu sou, senhor, aquela mulher pobrezinha que Deus,
amando, tornou formosa por sua misericrdia e houve por bem gerar dela filhos
legtimos. Disse-me, pois, o Rei dos reis que alimentar a todos os filhos gerados
por meu intermdio, porque, se ele nutre os estranhos, bem que tem que nutrir os
filhos legtimos.27.

Quod audiens Franciscus inclinato capite exivit et porcis tandem inventis, in luto se cum eis tamdiu invol-
vit, quousque a planta pedis usque ad verticem, corpus suum totum cum ipso habitu polluisset. Sicque ad
consistorium revertens, Papam se conspectibus praesentavit dicens: Domine feci sicut praecepisti, exaudi
nunc obsecro petitionem meam, ed. Wats, p. 340. O trecho tem uma forma bem franciscana e deve ter alguma
base histrica. Coisa curiosa, ele vai se ajuntar de alguma maneira a uma passagem de Boaventura que
uma interpolao do fim do sculo XIII. Ver A. SS., p. 591.
27
LTC 50 e 51 ; LM 37; 2Cel 1,11; Bernardo de Bessa Ms. De Turin, f 101 b. Hubertino de Casale (Arbor
vitae crucifixae. Veneza, 1485, dib. V, cap. III) apresenta uma curiosa narrativa em que pinta a indignao dos

148
Tanta simplicidade, unida a to piedosa obstinao, convenceu afinal
Inocncio III. No humilde mendigo ele viu um apstolo e um profeta
cuja boca poder algum poderia calar. Se ele mesmo se sentia sucessor
de So Pedro e vigrio de Jesus Cristo, tinha visto levantar-se diante
dele um homem vil e desprezado, que com a autoridade da f absoluta
proclamava-se cepa de uma nova linhagem de cristos bem legtimos.
Os bigrafos acreditaram que Francisco, por essa parbola, tinha
querido mais que tudo tranquilizar o papa sobre o que aconteceria com
os frades; ela seria uma resposta s preocupaes do pontfice por temer
v-los morrer de fome. Desde o comeo, ela no deve ter tido um sentido
muito diferente. Mostra que, malgrado sua humildade, Francisco sabia
falar alto, e que todo o seu respeito pela Igreja no o impedia de ver e
de dizer, quando necessrio, que ele e seus frades eram filhos legtimos
do Evangelho, e que os membros do clero no passavam de extranei.
Encontramos em sua vida diversos exemplos dessa ousadia indomvel
que desarmou Inocncio III e tambm o futuro Gregrio IX.
No consistrio que deve ter acontecido entre as duas audincias,
alguns dos cardeais tinham expressado o parecer de que a iniciativa dos
Penitentes de Assis era uma novidade e que seu tipo de vida estava bem
acima das foras humanas. Mas, replicou Joo de So Paulo, se algum
pretende observar a perfeio evanglica e fazer voto disso uma novi-
dade, irracional ou impossvel, no isso uma blasfmia contra Cristo,
autor do Evangelho? 28.
Essas palavras tinham tocado vivamente Inocncio III: ele sabia me-
lhor que ningum que o grande obstculo para a reforma da Igreja eram

prelados contra Francisco: Quaenam haec est doctrina nova quam infers auribus nostris? Quis potest vivere
sine temporalium possessione? Numquid tu melior es quam patres nostri qui dederunt nobis temporalia et
in temporalibus abundantes ecclesias possiderunt? Segue-se a bela orao inserida por Wadding nas obras
de Francisco. A idia mestra a mesma da parbola da pobreza. Essa narrativa, mesmo sem se referir a
nenhuma fonte, tem sua importncia porque nos mostra como no ano de 1300, um homem que tivera todos
os documentos sob os olhos, via os primeiros passos de Francisco Deriva do Sacrum Commercium beati
Francisci cum Domina Paupertate, de Joo Parenti. Ed. Pe. Eduardo de Alenon, p. 3, 4, ed. Alvisi, p. 15.
28
LM 36.

149
os bens eclesisticos, e que o sucesso ameaador da heresia albigense se
devia especialmente ao fato de ele pregar a pobreza.
Dois anos antes, ele tinha mostrado seu favor a um grupo de Valdenses
que, sob o ttulo de Pobres Catlicos, queriam ficar fiis Igreja 29; por
isso ele aprovou os Penitentes de Assis, mas isso, como bem observou
um cronista contemporneo, esperando que eles arrancassem a bandeira
da heresia 30.
Mas suas hesitaes e dvidas no se dissiparam. Ento ele reservou
a aprovao definitiva, mas prodigalizando aos frades os mais afetuosos
testemunhos de seu interesse. Autorizou-os a continuar suas misses
por toda parte, depois de ter obtido a permisso dos Ordinrios. Exigiu
tambm que tivessem um superior, que fosse responsvel e a quem a
autoridade eclesistica sempre pudesse se dirigir. Naturalmente, foi
escolhido Francisco 31. Esse fato, aparentemente humilde, constitua a
famlia franciscana.
Os msticos que tnhamos visto andando de vila em vila, brios de
amor e de liberdade, acabavam de receber, sem pensar nisso, o jugo. Esse
jugo preservaria do esmigalhamento dos hereges, mas faria as almas
puras sentirem que olhariam a vida dos primeiros dias como a nica
verdadeiramente conforme ao Evangelho.
Quando Francisco ouviu as palavras do soberano pontfice, prostrou-se
a seus ps e lhe prometeu de todo corao a mais completa obedincia.
Abenoando-os, o papa lhes disse: Ide, irmos, que Deus esteja convos-

29
A tentativa de Durando de Huesca para criar uma ordem mendicante ainda no foi estudada com exatido.
Chefe dos Valdenses de Arago, assistiu em 1207 a conferncia de Pamiers e decidiu voltar para a Igreja.
Recebido com bondade pelo papa, teve inicialmente um grande sucesso e desde 1209 tinha estabelecido
comunidades em Arago, Carcassonne, Narbona, Bziers, Nimes, Uzs, Milo. Encontramos nesse movi-
mento todos os lineamentos do instituto de So Domingos; era uma ordem de padres, em que os estudos
teolgicos eram fortemente recomendados. Acabaram desaparecendo completamente na tormenta da cruzada
albigense. Inocncio III, epistolae XI, 196, 197, 198; XII, 17, 66; XIII, 63, 77, 78, 94; XV, 82, 83, 90, 91, 92,
93, 94c, 96, 137, 146. A primeira dessas bulas contm a Regra muito curiosa dessa ordem efmera. Sobre
o seu desaparecimento, V. Ripoll, Bullarium Praedicatorum, 8 voI. in-f, Roma, 1729-1740, t. I, p. 96. Cf.
Elias Berger, Registres dInnocent IV, 2752.
30
Burcardo, da ordem dos Premostratenses, que morreu em 1226. Ver esse texto p. 317 n. 1. Cf. Pe. Do-
mingos Mandi, Protoregula p. 38.
31
LTC 52; LM 38.

150
co. Pregai a todos a penitncia de acordo com o que o Senhor vos inspirar.
Pois, quando o Todo-poderoso vos tiver feito multiplicar e progredir, vs
no-lo relatareis, e ns vos concederemos o que pedirdes, e poderemos
vos conceder mais ainda, com maior segurana 32.
Francisco e seus companheiros conheciam muito pouco a fraseologia
romana para perceber que, definitivamente, a Santa S s tinha concor-
dado em suspender seu julgamento diante da retido de suas intenes
e da pureza de sua f 33.
As flores da retrica clerical no os deixaram ver como estavam sendo
atados. De fato, a cria no se contentou com o juramento de Francisco,
tambm quis marcar os penitentes com o selo da Igreja; o cardeal de
So Paulo foi encarregado de lhes conferir a tonsura. Da em diante eles
todos pertenciam ao foro interior da Igreja romana.
A criao to profundamente leiga de So Francisco tornava-se, que-
rendo ou no, uma instituio eclesistica; depressa devia degenerar em
uma instituio clerical. Sem saber, o movimento franciscano era infiel
a suas origens. O profeta tinha abdicado nas mos do sacerdote; no
sem retorno, entretanto, porque quando algum j reinou, quero dizer,
quando j pensou livremente que outra realeza existe na terra? no d
para ser mais do que um medocre escravo; mesmo querendo submeter-
se, acontece que, sem querer, levanta a cabea com valentia, sacode as
correntes, lembra-se das lutas, das tristezas, das angstias do tempo em
que foi livre, e chora.
Entre os filhos de So Francisco, muitos deveriam chorar a liberdade
perdida, muitos deveriam morrer para reconquist-la.

32
LTC 52 e 49.
33
Santo Antonino, arcebispo de Florena, percebeu muito bem que era quaedam concessio simplex habitus
et modi illius vivendi et quasi permissio. A.SS., p. 839. O termo aprovao da Regra que costumamos usar
para designar o ato de Inocncio , ento, errneo.

151
152
7

RIVOTORTO
(1210-1211)

153
VII

Confiteor tibi, Pater, Domine caeli et terrae, quia abscondisti haec a sapienti-
bus et prudentibus et revelasti ea parvulis...
Venite ad me, omnes qui laboratis et onerati estis, et ego reficiam vos. Tollite
jugum meum super vos, et discite a me, quia mitis sum et humilis corde;
et invenietis requiem animabus vestris. Jugum enim meum suave est, et
onus meum leve 1.
In illo tempore dixit Petrus ad Jesum: Ecce nos reliquimus omnia, et secuti
sumus te: quid ergo erit nobis? Jesus autem dixit illis: Amen dico vobis,
quod vos qui secuti estis me, in regeneratione, cum sederit Filius hominis
in sede majestatis suae, sedebitis et vos super sedes duodecim, judicantes
duodecim tribus Israel. Et omnis qui reliquerit domum vel fratres, aut
sorores, aut patrem, aut matrem, aut uxorem, aut filios, aut agros, propter
nomen meum, centuplum accipiet, et vitam aeternam possidebit 2.
Factum est autem, ambulantibus illis in via, dixit quidam ad illum: Sequar te
quocumque ieris. Dixit illi Jesus: Vulpes foveas habent, et volucres caeli
nidos; Filius autem hominis non habet ubi caput reclinet 3.
Et vidi alterum angelum volantem per medium caeli, habentem evangelium
aeternum, ut evangelizaret sedentibus super terram et super omnem gen-
tem, et tribum et linguam et populum 4.
Domina Paupertas surrexit festinanter, petens sibi claustrum ostendi. Et
(sanctus Franciscus et socii) adducentes eam in quodam colle ostenderunt
ei totum orbem quem respicere poterat, dicentes: Hoc est claustrum nos-
trum, Domina. Jussit ipsa pariter consedere et verba vitae locuta est ad
illos 5.

1
Mt 11, 25-30.
2 Mt 19, 27-29.
3
Lc 9,57-58.
4
Ap 14, 6.
5
S. Commercium b. Francisci cum domina Paupertate, 22.

154
VII

Eu vos bendigo, Pai, Senhor do cu e da terra, porque escondestes estas coi-


sas dos sbios e prudentes e as revelastes aos pequeninos...
Vinde a mim vs todos que trabalhais e estais carregados, e eu vos restaura-
rei. Tomai sobre vs o meu jugo, e aprendei de mim, porque sou manso e
humildade corao; e encontrareis o repouso para as vossas almas. Por-
que o meu jugo suave e o meu peso leve 6.
Naquele tempo, Pedro disse a Jesus: Ns deixamos tudo para te seguir: qual
ser nossa recompensa? E Jesus respondeu: Na verdade eu vos digo; vs
que me seguistes, na regenerao, quando o Filho do homem vai sentar-se
no trono da sua majestade, tambm vos sentareis em doze tronos, julgan-
do as doze tribos de Israel. E todo aquele que deixar a casa ou os irmos,
ou as irms, ou o pai, ou a me, ou a esposa, ou os filhos, ou os campos,
por causa do meu nome, vai receber o cntuplo e possuir a vida eterna 7.
Aconteceu que, quando eles iam pelo caminho, algum lhe disse: Eu te se-
guirei para onde fores. Disse-lhe Jesus: As raposas tm tocas e os pssa-
ros do cu tm ninhos, mas o Filho do Homem no tem onde repousar a
cabea 8.
E eu vi um outro anjo que voava em pleno cu, levando o evangelho eterno,
para anunci-lo aos habitantes da terra, a toda nao, a toda tribo, naes,
lnguas e povos 9.
A Senhora Pobreza levantou-se depressa e pediu aos frades que lhe mostras-
sem seu claustro. So Francisco e seus companheiros levaram-na a um
alto, mostraram-lhe o universo que seu estendia diante do seu olhar e lhe
disseram: Esse o nosso claustro, Senhora. Ento ela os mandou sentar
junto dela e lhes dirigiu palavras de vida 10.

6
Mt 11, 25-30.
7 Mt 19, 27-29.
8
Lc 9, 57-58.
9
Ap 14, 6.
10
S. Commercium ou Npcias msticas do bem-aventurado Francisco e da Senhora Pobreza, 22.

155
Os Penitentes de Assis transbordavam de alegria. Depois de tantos
dias mortalmente longos passados nessa Roma, to diferente das outras
cidades que eles conheciam, sofrendo a desconfiana pouco disfarada
dos prelados, a caoada dos funcionrios pontificais, tendo a impresso
de que viam sua partida como uma libertao. Pensando em rever suas
queridas montanhas, sentiam essas saudades infantis da aldeia natal que
as almas simples e boas conservam at o ltimo suspiro.
Logo depois da cerimnia, foram ajoelhar-se no tmulo de So Pedro
e, atravessando toda a cidade, saram de Roma pela Porta Salria.
Toms de Celano, muito breve no que diz respeito permanncia de
Francisco na cidade eterna, conta toda a alegria do pequeno grupo quan-
do saiu. Suas lembranas j se transfiguravam: penas, fadigas, temores,
perturbaes, hesitaes estavam esquecidas. S pensavam nas garantias
paternas do soberano pontfice o vigrio de Cristo o senhor e pai do
universo cristo e prometeram que fariam sem cessar novos esforos
para seguir fielmente a Regra.
Assim, conversando, eles tinham empreendido sem provises sua
viagem pelos campos de Roma, onde os raros habitantes no se arrisca-
vam pelo forte calor.
A estrada vai para o norte, mantendo-se bastante longe do Tibre.
esquerda, a crista denteada do Sorate mergulhada na bruma formada
pelas exalaes do solo, afasta-se e cresce desmesuradamente; direi-
ta, o ajuntamento eterno de montculos, com suas imensas pastagens

156
separadas por moitas to ressecadas, em tamanha desordem que pare-
cem gritar por graa e perdo. No meio, a estrada poeirenta, que vai
reta, implacvel, mostrando a perder de vista a dana descabelada da
atmosfera abrasada. Nenhuma casa, nenhuma rvore, nenhum sopro,
nada para proteger o viajante da inquietude que o domina. Aqui e ali,
algumas runas que pare-cem o cadver das civilizaes desaparecidas,
das cabanas abandonadas e, no fundo do horizonte, algumas colinas que
se erguem como gigantescas e insuperveis muralhas.
No h palavras para descrever os sofrimentos fsicos e morais a que
se uma pessoa se expe empreendendo sem precaues uma viagem por
essas paragens inspitas. Ao enervamento causado pela falta de ar sucede
logo uma insupervel lassido. Os ps se afundam numa poeira mole e
tnue, levantada por cada passo. Ela vos cobre, vos penetra e vos seca a
boca ainda mais do que o calor.
Depois, pouco a pouco, acaba a energia, um morno abatimento vos
domina, as idias se embaralham, chega a febre, e a pessoa deita na beira
da estrada, incapaz de dar mais um passo sequer.
Em sua pressa de sair de Roma, Francisco e seus companheiros tinham
esquecido tudo isso e se puseram imprudentemente a caminho. Teriam
sucumbido se um viajante no tivesse aparecido levando-lhes um pou-
co de socorro. Antes de terem sacudido as ltimas vises da febre, ele
precisou deix-los, deixando-os maravilhados pelo socorro inesperado
que a Providncia lhes enviara 11.
O abalo tinha sido to rude que, chegando a Orte, precisaram parar.
Encontraram, no longe dessa cidade, em um lugar deserto, um abrigo
adequado para lhes servir de refgio 12: era uma dessas tumbas etruscas,
to comuns na regio, cujas cmaras servem at hoje para abrigar os
mendigos e os bomios.

11
1Cel 34; LTC 53; LM 39.
12
Provavelmente em Orticoli, que fica nessa estrada de Roma a Spoleto. Orte est a uma hora e meia de
caminho. a antiga Otriculum onde se encontram muitas antiguidades. O que torna a passagem de Francisco
por Otricoli muito verossmil que essa localidade est situada na via Flamnia. Mas o Pe. Nicolau Cavanna,
LUmbria illustrata, no concorda com isso. Ver p. 254 e 247 ss.

157
Enquanto alguns frades iam cidade mendigar o que comer, os outros
que ficavam na solido gozavam a felicidade de estar juntos, formulavam
mil projetos e saboreavam mais do que nunca como era bom ter renun-
ciado aos bens materiais e no ter que cuidar de nada.
Esse lugar exercia sobre eles uma atrao to grande que, depois de
quinze dias, tiveram que se esforar para ir embora. A seduo da vida
puramente contemplativa dominava Francisco, que se perguntava se,
em vez de ir pregar, no seria melhor viver no retiro dedicado apenas
ao dilogo interior da alma com Deus 13.

Veremos essa aspirao pelo repouso egosta do claustro retornar


diversas vezes em sua vida; mas o amor haveria de vencer sempre. Ele
era muito filho de seu tempo para no se sentir s vezes tentado por essa
felicidade que a Idade Mdia via como o supremo gozo dos eleitos no
paraso: a paz. Beati mortui quia quiescunt! Sua grande originalidade
foi nunca ter cedido.

As reflexes de Francisco e de seus companheiros durante a perma-


nncia em Orte tornaram mais clara e mais imperativa sua misso de
apstolos. Ele principalmente parecia cheio de um ardor novo e como
um valente cavaleiro ardia de vontade de entrar na batalha.

Entraram no vale do Nera. O contraste entre essas gargantas frescas,


cheias de mil vozes e a desolao dos campos de Roma deve t-los ferido
vivamente: o rio no passa de uma grande torrente, mas rola to baru-
lhentamente sobre as pedras e as rochas que parece conversar com eles
e com as rvores das florestas vizinhas. Como em Otricoli, na estrada
de Roma, a pessoa se sente sozinha, aqui se sente cercada pela vida, a
fecundidade, a alegria da paisagem.

13
1Cel 35; LM 40 e 41. Celano tem aqui algumas linhas dobre o commercium cum sancta paupertate.
Seriam elas um desenvolvimento banal na pena de um franciscano e que deveramos relevar? O Pe. Eduardo
de Alenon pensa que no (Sacrum Commercium b. Francisci. p. XI), e eu acho que ele tem razo. No h
a apenas correspondncia verbal, h um paralelismo de sentimento, de inspirao entre o pequeno quadro
de Toms de Celano e clebre afresco conhecido como Commercium paupertatis.

158
A narrativa de Toms de Celano assume um tom to vivo para contar
a vida de Francisco nessa poca, que no podemos nos impedir de pensar
que ele deve t-lo visto nesse tempo, e que esse primeiro encontro ficou
para ele como a radiosa aurora de sua vida espiritual 14.

Os frades tinham sido enviados a pregar em todas as localidades que


estavam em seu caminho. Suas palavras eram sempre mais ou menos as
mesmas: desejavam a paz e exortavam penitncia: Encorajados pela
colhida que tinham tido em Roma e que podiam muito inocentemente
considerar como mais favorvel do que tinha sido na verdade, contavam-
no a todos que encontravam e os garantiam em seus escrpulos.

O efeito dessas exortaes, em que Francisco afagava to pouco seus


ouvintes, mas em que suas mais severas reprimendas estavam entreme-
adas de tanto amor, foi enorme. Mais do que tudo, o homem quer ser
amado, e se encontra algum que o ama sinceramente, raramente lhe
recusa o corao e a admirao.

o bom senso vulgar que confunde o amor com fraqueza e com-


placncia. s vezes vemos doentes beijando febris as mos do cirurgio
que os opera: muitas vezes fazemos o mesmo com os cirurgies espiri-
tuais, porque sentimos tudo que h de vigor, de piedade, de compaixo
nas torturas que infligem, e os gritos que nos fazem dar so tanto gritos
de reconhecimento como de dor.

As pessoas vinham de todos os lados para ouvir esses pregadores


ainda mais severos para consigo mesmo que com os outros. Membros
do clero secular, monges, homens instrudos, at ricos, misturavam-se
muitas vezes nos auditrios improvisados que se formavam nas ruas e
nas praas pblicas. Nem todos se convertiam, mas era bem difcil que
esquecessem esse desconhecido encontrado um dia em seu caminho e
que, em algumas palavras, tinha trazido perturbao e temor l para o
fundo de seus coraes.

14
O nico caminho que liga Celano a Roma, como tambm a toda a Itlia central e setentrional, passava
por Aquila, Rieti, e ia encontrar em Terni as grandes estradas que vinham do norte da Pennsula para Roma.

159
Francisco era verdadeiramente, como diz Celano, a estrela brilhante
da manh. Sua pregao to simples tomava conta das conscincias,
arrancava os ouvintes da lama misturada com sangue em que eles pati-
navam, para lev-los, mesmo sem querer, para o cu aberto, para as
regies serenas em que tudo se cala, menos a voz do Pai celeste: O pas
inteiro vibrava. Os campos baldios cobriam-se de ricas messes, a vinha
ressequida recomeava a florescer 15.

S uma alma profundamente potica e religiosa (no tudo a mesma


coisa) pode compreender os arrebatamentos e as alegrias que inundavam
a alma dos filhos espirituais de So Francisco.
O maior crime de nossa civilizao industrial e comercial deixar-nos
com gosto s para o que se compra caro, fazendo-nos esquecer os jbilos
mais puros, mais verdadeiros, que esto a, ao nosso alcance. O mal vem
de bem longe: Dizia o Deus do velho Isaas: Por que gastais dinheiro
em coisas que no alimentam? Por que trabalhais pelo que no sacia?
Escutai-me, ento, e comereis o que bom, e vossa alma se deleitar
com comidas suculentas 16.
As alegrias compradas com dinheiro, os prazeres que queimam e so
febrentos no so nada em comparao com estas alegrias doces, apra-
zveis, modestas mas profundas, durveis, pacificadoras, que ampliam
o corao em vez de diminu-lo, que repousam o esprito em vez de
fatig-lo, ao lado daquelas pelas quais passamos to frequentemente,
mais ou menos como esses camponeses que vemos extasiar-se com os
foguetes de qualquer festa da aldeia mas no ter a menor considerao
pelos gloriosos esplendores de uma noite de vero.
J falamos acima do lazareto ou leprosrio de Assis, colocado, como
era costume, sob o patrocnio de So Lzaro e de Santa Maria Madalena.
Em suas proximidades, e mesmo em suas dependncias, encontrava-se
uma construo muito exgua onde podiam refugiar-se, se necessrio,
os viajantes surpreendidos pela noite, e que no tinham mais tempo para

15
1Cel 36 e 37; LTC 54; LM 45-48.
16
Is 55, 2.

160
chegar cidade antes que se fechassem as portas. Esse local chamava-
se Rivotorto, por causa dos meandros que ali formava uma torrente que
desapareceu depois de sucessivos ressecamentos que transformaram
nesse lado o solo da frtil mbria verde 17.
L esteve durante alguns meses o ponto de encontro de Francisco
e seus companheiros. Sentiam-se completamente irmos e servidores
dos leprosos, e no estavam longe de dois santurios j bem caros a seu
corao, a Porcincula e So Damio.

Ento foi para l que voltaram naturalmente depois de sua peregri-


nao ad limina.

Durante sua ausncia, sua popularidade s tinha crescido, e sua volta


foi quase um triunfo.

Os ataques interessados que tinham tido que suportar perdiam-se


agora em um concerto de louvores. Pode ser que tenham adivinhado
a m vontade do bispo e estivessem felizes vendo-a questionada pela
aprovao de Inocncio III.

Como quer que seja, produziu-se um vivo movimento de simpatia e de


admirao: no meio do povo. Lembravam-se da indiferena que o filho
de Bernardone tivera alguns meses antes por Oto IV, que ia se fazer
coroar em Roma. O imperador tinha atravessado a Itlia com um squito
numeroso e um fasto destinado a surpreender o esprito das povoaes.
Ora, alm de nem se mexer para ir v-lo, Francisco tinha mandado seus
frades tambm se absterem, limitando-se a delegar um deles para recordar
ao monarca como as glrias da terra so efmeras. Mais tarde disseram
que ele tinha mandado predizer sua excomunho prxima.

17
Ainda existe um abrigo desse tipo no outro lado de Assis, a alguns minutos da Porta San Gicomo,
chamado Fontanella.
Em um tempo relativamente recente deu-se o nome de Rivotorto a uma igreja que est um pouco mais
longe, a um quarto de hora de caminhada de Santa Maria Madalena, na estrada de de SpeIlo e Foligno.

161
Essa atitude corajosa impressionou vivamente as imaginaes 18. Pode
t-lo servido mais na estima popular que tudo que ele fizera at ento.
A multido, que muitas vezes no compreende muito dos sentimentos
delicados, entusiasma-se depressa com os que, com ou sem razo, deixam
de se inclinar diante do poder. Desta vez tinha compreendido que onde
os outros viam pobres, ricos, nobres plebeus, sbios, Francisco s via
almas que para ele eram tanto mais preciosas quanto tinham sido mais
abandonadas ou desprezadas.

Nenhum bigrafo diz quanto durou a estadia dos Penitentes em Rivo-


torto. Mas somos levados a crer que a passaram o fim de 1210 e os pri-
meiros meses de 1211, evangelizando as cidades e aldeias dos arredores.

A, sofreram muito: essa parte da plancie de Assis era inundada por


torrentes quase todo outono, e muitas vezes os pobres frades, bloqueados
no leprosrio, tiveram que se contentar para comer com apenas rbanos
arrancados nos campos.

Seu tugrio era to estreito que, quando estavam todos reunidos,


tinham bastante dificuldade para no se incomodarem uns aos outros.
Para designar o lugar de cada um, Francisco escreveu os nomes na trave
que sustentava a casa.

Mas essas pequenas misrias no perturbavam em nada a sua feli-


cidade. Nenhuma apreenso tinha vindo ainda para perturbar as esperan-
as de Francisco; ele transbordava de alegria e de bondade e Rivotorto
s deixou boas lembranas na Ordem 19.

Uma noite, todos os frades pareciam dormir quando o ouviram ge-


midos. Era uma de suas ovelhas, para falar como o bigrafo franciscano,
que se impusera muitas privaes e agora morria de fome. Ele se levantou
imediatamente, chamou o frade, foi procurar as magras provises em re-

18
1Cel 42 e 43; LTC 55; LM 41.
19
1Cel 42-44.

162
serva, e comeou ele mesmo a comer para lhe dar coragem. E lhe explicou
que se a penitncia boa, mas tem que ser temperada pela discrio 20.

Francisco tinha esse tato do corao que sabe adivinhar os outros e se


adianta a seus desejos. Uma outra vez, ainda em Rivotorto, tomou pela
mo um frade indisposto, levou-o a uma vinha e, apresentando-lhe umas
belas uvas, comeou a com-las. No era nada, mas esse ato to simples
conquistou a tal ponto o corao do doente que, muitos anos depois, o
frade no conseguia cont-lo sem emoo 21.

Mas Francisco estava longe de esquecer sua misso. Cada vez mais
seguro, no de si mesmo, mas de seus deveres para com as pessoas, in-
tervinha nos negcios polticos e sociais de seu pas com essa segurana
dos coraes retos e puros que no conseguem compreender como a
insensatez, a maldade, o orgulho e a preguia podem, juntas, bloquear
os mais belos e justos empreendimentos. Ele tinha a f que transporta
montanhas e no tinha esse fiapo de ceticismo, to frequente em nossos
dias, que para os mais valentes e os mais generosos na hora de entrar na
luta contra as potncias tenebrosas.

Quando souberam em Assis que sua Regra tinha sido aprovada, houve
um movimento irresistvel, quiseram ouvi-lo pregar. O clero teve que
ceder e lhe props falar na igreja de So Jorge, mas ela era manifesta-
mente insuficiente para a onda de ouvintes. Foi preciso ir para a catedral.

Se Francisco no disse nada de novo, tinha, para conquistar os cora-


es, o que vale mais do que todos os artifcios oratrios, uma convico
ardente. Falava forado pelo desejo imperioso de comunicar sua chama
interior. Quando o ouviam lembrar os horrores da guerra, os crimes do
povo, as covardias dos grandes, a rapacidade que desonrava a Igreja, a
viuvez j tantas vezes secular da Pobreza, cada um se sentia renovado
em sua conscincia.

20
EP 27; 2Cel 1, 15; LM 65.
21
EP 28; 2Cel 3. 110.

163
Uma multido atenta ou excitada costuma ser impressionvel, mas
essa sensibilidade particular talvez tenha sido mais forte na Idade Mdia.
O desequilbrio nervoso era endmico e, sobre pessoas assim preparadas,
a vontade de um pregador se impe de uma maneira quase magntica.

Para compreender o que podiam ser as pregaes de Francisco, preci-


samos esquecer nossos costumes contemporneos e transportar-nos um
instante para a catedral de Assis no sculo XIII; ela ainda est em p, mas
os sculos deram a suas pedras uma ptina de bronze polido que lembra
Veneza e os tons de ouro vermelho de Ticiano. Nesse tempo ela era nova
e brilhava de brancura, com a bela tonalidade rosada das pedras do monte
Subsio. Os assisienses tinham encontrado, para construir alguns anos
antes, um desses impulsos de f e de unio que foram quase por todo
lado o preldio do movimento comunal. Ento, quando eles a invadiam
nos dias de solenidades, no tinham apenas esse vago respeito pelo
lugar santo que, passando para os costumes dos outros pases, continua
a ser desconhecido na Itlia, mas se sentiam em casa nesse palcio que
tinham construdo. L, mais do que em qualquer outra igreja, julgavam
o pregador e no tinham receio de provar por murmrios ou por aplausos
o que estavam achando de suas palavras. bom lembrar tambm que as
igrejas da Pennsula no tinham bancos nem cadeiras, que era preciso
escutar em p ou de joelhos um pregador que anda e gesticula sobre uma
tribuna. Ajunte-se a isso a curiosidade de todos, as simpatias ardentes de
muitos, a oposio disfarada de outros, e teremos uma vaga idia das
condies em que Francisco subiu ao plpito de So Rufino.

O sucesso foi brilhante. Os pobres sentiram que tinham encontrado


um amigo, um irmo, um defensor, quase um vingador. As idias que
eles mal ousavam murmurar em voz baixa eram gritadas por Francisco
sem distino de fazer penitncia e de se amar.

Suas palavras eram um grito do corao, um apelo conscincia de


todos os seus concidados, algo que lembrava muito de perto a maneira
apaixonada dos profetas de Israel. Como as testemunhas de Jeov, o
pequeno pobre de Assis tinha assumido o saco e a cinza para denunciar

164
as iniquidades de seu povo. Como eles, tinha a coragem e o herosmo, e
tambm como eles, sentia-se no corao das divinas ternuras.

Parecia que Assis ia reencontrar a conscincia de Israel para chorar


seus pecados. Os resultados desses apelos foram prodigiosos, a populao
inteira tinha sido tomada, subjugada, no queria mais viver a no ser de
acordo com os conselhos de Francisco. Seus prprios companheiros, que
tinham ficado em Rivotorto sabendo de todas essas maravilhas, sentiram
o choque e viram sua vocao se afirmar ainda mais: durante a noite,
parecia-lhes ver seu mestre em um carro de fogo, subindo ao cu como
um novo Elias 22.
Esse entusiasmo quase delirante de toda uma populao talvez no
fosse to difcil de provocar como poderamos imaginar: o poder emo-
cional das massas ainda era to grande em toda a Europa quanto foi em
Paris em alguns dias da Revoluo.
conhecida a trgica e tocante histria dos bandos de crianas que
partiram do norte da Europa e apareceram em 1212 em tropas de vrios
milhares de rapazes e meninas misturados. Nada pde det-los: estavam
dominados pela loucura e acreditavam de boa f que livrariam a Terra
Santa, que o mar secaria para eles passarem. Morreram no se sabe bem
como, talvez vendidos por um comerciante de escravos 23.
Fizeram-nos mrtires 24 e tiveram razo: a devoo popular comparou-
os aos santos Inocentes, mortos por um Deus que eles no conheciam.

22
1Cel 47; LM 43.
23
No h acontecimentos no sculo XIII mais documentados e mais obscuros do que esse. Os cronistas
dos mais diversos pases falam longamente sobre ele. Aqui est uma das notcias mais curtas mas das mais
exatas dada por uma testemunha ocular (Anais de Gnova dos anos 1197 a 1219, apud Mon. Germ. hist.
Seript., t. 18). -1212 in mense Augusti, die Sabbati, octava Kalendarum Septembris, intravit civitatem Janue
quidam puer Teutonicus nomine Nicholaus peregrinationis causa, et cum eo multitudo maxima peregrinorum,
defferentes cruces et bordonos atque scarsellas ultra septem millia arbitratu boni viri inter homines et feminas
et puellos et puellas. Et die dominica sequenti de civitate exierunt. Cf. Tiago de Voragine: Muratori, t. IX,
col. 46: Dicebant quod mare debebat apud Januam siccari et sic ipsi debebant in Hierusalem proficisci.
Multi autem inter eos erant filii Nobilium, quos ipsi etiam cum meretricibus destinarunt (!). A narrativa mais
trgica a de Alberico de Tre Fontane, que conta o que aconteceu com o bando que embarcou em Marselha.
Mon. Ger. hist. Script., t. 23, p. 894.
24
Pertz 88, t. XXIII, p. 893.

165
As crianas da Cruzada tambm pereceram por um ideal desconhecido,
falso sem dvida, mas no melhor morrer por um ideal desconhecido e
mesmo falso que viver por realidades vs de uma vida sem poesia? No
fim dos tempos no vamos ser julgados por filsofos nem por telogos,
e se isso tivesse que acontecer, deveramos esperar que mesmo nesse
caso, o amor cobriria uma multido de pecados e deixaria de lado uma
poro de loucuras.
Certamente, se houve um tempo em que a neurose religiosa foi tre-
menda, foi exatamente aquele em que se produziam movimentos desse
tipo. A Europa inteira parecia delirar: viram-se mulheres aparecendo
completamente nuas no meio das cidades e aldeias, caminhando longo
tempo, silenciosas como fantasmas 25.

Compreendem-se agora as narrativas primeira vista fantsticas que


sobraram sobre certos oradores populares dessa poca: sobre Bertoldo de
Ratisbona, por exemplo, que reunia multides de sessenta mil pessoas,
ou sobre Frei Joo Schio de Vicenza que pacificou em um instante todo
o norte da Itlia e jogou guelfos e gibelinos uns nos braos dos outros 26.

Essa eloquncia popular que em 1233 devia realizar tantas maravilhas


procedia em linha direta do movimento franciscano. Foi So Francisco
que deu exemplo dessas pregaes em lngua vulgar pronunciadas nas
esquinas, nas praas e nos campos.

Para perceber a mudana que aconteceu preciso ler os sermes de


seus contemporneos: declamatrios, escolsticos, sutis, comprazendo-se
em mincias de exegese ou de dogmtica, serviam a seu auditrio com
fome de um alimento simples e sadio dissertaes alambicadas sobre os
textos mais obscuros do Antigo Testamento.

25
O cronista beneditino Alberto de Stade (Mon. Ger. hist. Script., t. XVI, p. 271-379) termina assim sua
notcia sobre a cruzada das crianas: Adhuc quo devenerint ignoratur sed plurimi redierunt, a quibus cum
quaereretur causa cursus dixerunt se nescire. Nudae etiam mulieres circa idem tempus nihil loquentes per
villas et civitates cucurrerunt. Loc. cit., p. 355.
26
Chron. Veronense, an.1238 (Muratori, Scriptores, Rer. Ital., t. VI II, p. 626). Cf. Barbarano de Mironi:
Hist. Eccles. di Vicenza, t. II, p. 79-84.

166
Em Francisco, ao contrrio, tudo incisivo, claro, prtico. Ele ignora
os princpios dos oradores, esquece completamente de si mesmo para
cuidar da finalidade desejada, a converso das almas. E essa converso
no aparece mais como uma coisa vaga, indeterminada, que deve se passar
apenas em Deus e o ouvinte. No. Ele quer provas imediatas e prticas
da converso. preciso devolver os bens mal adquiridos, renunciar aos
dios, reconciliar-se com os adversrios.

A prpria Assis, lanou-se valentemente na batalha das dissenses


civis: o acordo de 1202 entre os partidos que dividiam a cidade tinha
sido efmero. O povo reclamava a toda hora novas liberdades que os
nobres e os burgueses no lhe cediam seno sob presso e medo. Fran-
cisco tomou o partido dos fracos, os minores, e chegou a reconcili-los
com os ricos, os majores.

Sua famlia espiritual ainda no tinha um nome propriamente dito


porque, ao contrrio dos espritos mais apressados, que batizam suas pro-
dues ainda antes de terem brotado, ele esperava a ocasio que haveria
de revelar o nome verdadeiro que deveria dar-lhe 27. Um dia, estavam
lendo a Regra diante dele. Quando chegou passagem: Que os frades,
onde quer que estejam para servir ou trabalhar, jamais tenham cargos
que os coloquem acima dos outros... mas, pelo contraio, estejam sempre
por baixo (sint minores) do que todos que estiverem na mesma casa 28,
esse sint minores da Regra nas circunstncias em que se encontrava a
cidade pareceu-lhe, de repente, uma indicao providencial. Seu instituto
deveria chamar-se Ordem dos Frades Menores.

Imaginamos a impresso produzida por essa determinao o Santo,


pois essa palavra mgica j brilhava sua passagem, o Santo se pro-
nunciara. Era ele que iria pacificar a cidade, servir de rbitro entre os
dois partidos que a dividiam.

27
No comeo os frades se haviam chamado Viri paenitentiales de civitate Assisii (LTC 37); parece que em
algum momento pensaram em se chamar Pauperes de Assisio, mas esse nome sem dvida foi desaconselhado
em Roma por ser muito prximo do Pauperes de Lugduno. Ver Burchardi chronicon, p. 376; Ver Introd., cap. V.
28
Ver Regra de 1221, cap. 7. Cf.1Cel 38 e LM 78.

167
Ainda possumos o documento dessa paz civil, exumado em alguma
espcie de arquivo comunal de Assis pelo sbio e piedoso Antnio Cris-
tofani 29. Estas so as primeiras linhas:

Em nome de Deus.
Que a graa suprema do Esprito Santo nos assista. Em honra de
nosso Senhor Jesus Cristo, da bem-aventurada Virgem Maria, do
imperador Oto e do duque Leopoldo.
Eis o estatuto e o acordo perptuo entre os Majores e os Minores de
Assis.
Sem o consentimento comum eles nunca faro nenhuma espcie
de aliana nem com o papa e seus nncios ou legados, nem com o
imperador ou com o rei, nem com seus nncios ou legados, nem com
alguma cidade ou vila, nem com alguma pessoa importante mas, de
comum acordo, faro tudo que se deve fazer pela honra, a salvao e
a vantagem da comuna de Assis 30.
A continuao digna do comeo. Os senhores, atravs de uma leve
recompensa, renunciavam a todos os seus direitos feudais; as pessoas das
vilas submetidas a Assis eram assimiladas s da cidade, os estrangeiros
eram protegidos, e, afinal a base do imposto era fixada. Na tera feira
nove de novembro de 1210, esse acordo foi jurado e assinado na praa
pblica de Assis: foi to real que os exilados puderam voltar tranqila-
mente e a partir desse dia encontramos nos registros da cidade os nomes
desses emigrados que tinha trado sua cidade em 1202, e provocado a
desastrada guerra com Perusa. Francisco podia ficar feliz. Era o amor
que triunfava, e durante alguns anos no houve em Assis nem vencidos
nem vencedores.

29 1Cel 36.
30
Storia dAssisi, t. I, p. 123-129. O texto foi publicado por A. Brizi, Atti dellAcademia Properziana,
dezembro de 1910, p. 194 ss., e por Mons. Faloci-Pulignani, Miscell., t. XIII, p. 188 ss.

168
Acontece nas npcias msticas que unem aqui e ali um homem a um
povo alguma coisa cuja embriaguez dos sentidos, a loucura do amor
parecem um smbolo. De fato, h um momento em que os santos, como
os homens de gnio, sentem ferver neles esses poderes desconhecidos,
e ento, como possessos, eles vo, eles correm, eles lutam at que,
triunfando sobre todas as resistncias, tenham forado a humanidade
estremecida e pasma a conceber deles.
Esse momento tinha chegado para Francisco.

169
170
8

NA PORCINCULA
(1211)

171
VIII

Parasti in conspectu meo mensam


adversus eos qui tribulant me;
impinguasti in oleo caput meum;
et calix meus inebrians quam praeclarus est 1.
Vox exsultationis et salutis
in tabernaculis justorum 2.
Haec requies mea in saeculum saeculi;
hic habitabo, quoniam elegi eam 3.
In illo tempore dixit Jesus discipulis suis: Ne solliciti sitis animae vestrae
quid manducetis, neque corpori vestro quid induamini.Respicite volatilia
caeli, quoniam non serunt, neque metunt, neque congregant in horrea, et
Pater vester caelestis pascit illa. Nonne vos magis pluris estis illis?
... Et de vestimento quid solliciti estis? Considerate lilia agri quomodo cres-
cunt: non laborant, neque nent. Dico autem vobis, quoniam nec Salomon
in omni gloria sua coopertus est sicut unus ex istis... Quaerite ergo pri-
mum regnum Dei et justitiam ejus et haec omnia adjicientur vobis 4.
In multo experimento tribulationis abundantia gaudii ipsorum fuit, ei altissi-
ma paupertas eorum abundavit in divitias simplicitatis eorum 5.
Et iis omnibus dictis coeperunt omnes [Fratres] simul post sanctum Francis-
cum ambulare. Cumque facillimo gressu properarent ad summa, ecce do-
mina Paupertas in ipsius montis vertice stans, respexit per montis devexa.
Et videns hos viros tam potenter ascendentes, immo volantes, mirata est
vehementer et dixit: Qui sunt isti qui ut nubes volant et quasi columbae
ad fenestras suas 6?

1
Sl. 22,5.
2
Sl. 117,15.
3
Sl 131, 14.
4
Mt 6, 25-33.
5
2Cor 8, 2.
6
SCom 3,13 4,1-3

172
VIII

Preparas a mesa para mim,


vista do inimigo;
Ungiste com leo a minha cabea
a minha taa transbordou 7.
Ouvem-se as vozes de alegria e de vitria
Nas tendas dos justos 8.
Este ser para sempre o meu lugar de repouso,
Aqui habitarei, porque o escolhi 9.
Naquele tempo, Jesus disse a seus discpulos: No vos inquieteis quanto
vossa vida, com o que haveis de comer ou beber, nem quanto ao vosso
corpo, com o que haveis de vestir... Olhai as aves do cu: no semeiam,
nem ceifam, nem recolhem em celeiros; e o vosso Pai celeste alimenta-as.
No valeis vs mais do que elas? Por que vos preocupais com o vestu-
rio? Olhai como crescem os lrios do campo: no trabalham nem fiam!
Pois Eu vos digo: Nem Salomo, em toda a sua magnificncia, se vestiu
como qualquer deles... Procurai primeiro o Reino de Deus e a sua justia,
e tudo o mais se vos dar por acrscimo 10.
No meio das muitas tribulaes com que foram provadas, a sua superabun-
dante alegria e extrema pobreza transbordaram em tesouros de generosi-
dade 11.
Quando foram ditas essas coisas, todos comearam a andar atrs de So
Francisco. Como eles estavam correndo para o cume com um passo muito
fcil, eis que a Senhora Pobreza, em p no pico da montanha, olhou pelas
escarpas do monte. Quando viu aqueles homens subindo com tanta potn-
cia, e at voando, ficou fortemente admirada e disse: Quem so esses que
voam como nuvens e parecem pombas voltando a suas janelas 12?

7
Sl 22 (23), 5.
8
Sl 117 (118), 15.
9 Sl 181 (132),14.
10 Mt 6,25-33.
11
2Cor 8,2.
12
SCom 3,13 4,1-3

173
Foi sem dvida na primavera de 1211 que os frades abandonaram
Rivotorto. Estavam l, um dia, em orao, quando um campons apare-
ceu com um asno que ele tocava barulhentamente para faz-lo entrar no
pobre abrigo: Entra, entra, dizia, aqui ns vamos ficar bem. Parece que
ele temia que, se permitisse que eles prolongassem sua estadia, os frades
acabassem se apropriando desse recanto abandonado 13. Essa grosseria
desagradou muito a Francisco, que se levantou na mesma hora e partiu
com seus companheiros.
Tornando-se mais numerosos, os frades no podiam mais continuar
uma vida errante como no passado; precisavam de um abrigo permanente
e principalmente de uma pequena capela. Dirigiram-se inutilmente ao
bispo para que lhes emprestasse uma, depois aos cnegos de So Rufino,
mas foram mais felizes com o abade dos Beneditinos do monte Subsio,
que lhes concedeu para sempre o uso da capela, j muito querida por
eles, de Nossa Senhora dos Anjos, ou da Porcincula 14.
Francisco ficou feliz. Ele via entre o nome do humilde santurio e o
de sua Ordem uma harmonia misteriosa, preparada pelo prprio Deus.
L construram bem depressa algumas cabanas; uma cerca viva serviu
de muralha e foi que em dois ou trs dias ficou organizado o primeiro
convento franciscano 15.

13
1Cel 44; LTC 55.
14
LTC 56; EP 55; Conform. 217 b 1; Fior Bibl. Angel., ed. Amoni, p. 378. Ver Jacobilli, Vita dei SS., III,
p. 290.
15
As questes arqueolgicas levantadas a respeito das origens de Nossa Senhora dos Anjos no poderiam
ser tratadas aqui; mas, como a maior parte dos autores franciscanos insistiu muito sobre a antiguidade desse

174
Durante dez anos, ficaram contentes com isso. Esses dez anos vo ser
os tempos hericos da Ordem. Em plena posse de seu ideal, So Fran-
cisco buscar inculc-lo em seus discpulos e vai consegui-lo algumas
vezes, mas j a multiplicao muito rpida dos frades provocar alguns
sintomas de relaxamento.
A recordao do comeo desse perodo colocou nos lbios de Celano
uma espcie de cntico em honra da vida monstica. o comentrio
intraduzvel e ardente do grito do salmista: Oh! Como doce, como
agradvel ser irmos e morar juntos.
Seu claustro era a floresta que se estendia ento ao redor da Por-
cincula, ocupando uma grande parte da plancie. Era l que eles se
reu-niam ao redor de seu mestre para receber seus conselhos espirituais,
e onde eles se retiravam para meditar e orar 16.
Mas nos enganaramos grosseiramente se pensssemos que a con-
templao os absorvia completamente durante os dias que no eram
consagrados s sadas missionrias: uma parte de seu tempo era ocupada
por trabalhos manuais 17.
Sobre esse ponto mais do que sobre todos os outros, as intenes de
So Francisco foram desconhecidas, mas podemos dizer que em lugar
nenhum ele mais claro do que quando manda seus frades ganharem a
vida com o trabalho de suas mos. Ele no pensou em criar uma ordem
mendicante; ele criou uma ordem trabalhadora. verdade que ns o
veremos muitas vezes estender a mo e a animar seus discpulos a faze-
rem o mesmo, mas no nos deve iludir: quer dizer que quando um frades

humilde oratrio, bom dizer que seus escritos tm uma base slida. O antigo altar tem caracteres perfeita-
mente determinados, que no permitem ver nele uma obra posterior ao sculo X. Os arquelogos podero
consultar sobre isso o Bulletino di Archeologia Christiana do Comandante G. B. de Rossi, 18840-1885, n
40, p.137, e no peridico Arte e Storia de Florena, t. IV (1885), fascculo 6, um artigo do Pe. Barnab da
Alscia com uma carta do Comandante de Rossi.
16
Essa floresta desapareceu. Alguns dos conselhos de Francisco foram agrupados nas Admoestaes.
Ver 1Cel 37-41.
17
Ver pouco adiante p.162. (?)

175
chegava a uma localidade, se a consagrava longos dias para distribuir
s almas famintas o po espiritual, no devia ter vergonha de receber
em troca o po material.
Trabalhar era a regra, mendigar era a exceo 18; mas essa exceo
no tinha nada de desonroso: Jesus, a Virgem, os discpulos no tinham
vivido de po doado? No prestar aos que tm grandes recursos um
grande servio ensinando-lhes a caridade?
Essa mesa do amor, qual vo sentar-se os pobrezinhos, isso que,
em sua linguagem potica, Francisco chama de mensa Domini, a mesa do
Senhor. O po da esmola o po dos anjos e tambm o dos passarinhos
que no recolhem nem ajuntam nos celeiros.
Ento, estamos bem longe da mendicidade entendida como um meio
de existncia e condio essencial de uma vida de preguia. o oposto
disso, e no somos exatos e justos com So Francisco e os incios das
ordens mendicantes se no separamos a obrigao do trabalho do elogio
da mendicidade 19.
Sem dvida, esse zelo durou pouco, e j Toms de Celano intitula
um de seus captulos: Lamentao a Deus sobre a preguia e a gula
dos frades; mas essa pronta e inevitvel decadncia no nos deve velar
a santa e viril beleza das origens.

18
Isso to verdadeiro que, na Regra de 1221, encontramos uma passagem em contradio com o resto,
resqucio portanto dos primeiros tempos, em que mendigar era tolerado em caso de necessidade manifesta
dos leprosos, VIII. Nullo modo fratres quaerant... pecuniam vel eleemosynam... Fratres tamen in manifesta
necessitate leprosorum possunt pro eis quaerere eleemosynam.
Isso nos faz voltar poca em que as prprias clarissas, no dizer de Jacques de Vitry... nihil accipiunt sed
de labore manuum vivunt. Carta de 1216. Cf. Burchardi chr. Pertz, t. XXIII, p. 376.
EP 55 (Coll., t. I, p. 99, I. 23 ss,), juvabant pauperes homines in agris eorum et postea ipsi dabant eisdem
de pane amore Dei.
Em Poggio Bustone e em Greccio manteve-se uma tradio segundo a qual So Francisco a trabalhava como guardador

de cabras. Quem me contou foi o Sr. Alfonso de Guzzis de Rieti e por ele o padre de Greccio.
19
Ver ngelo Clareno, Tribul., Cod. Laur. 3 b.
20
2Cel 3, 97 et 98. O 97 citado textualmente pelas Conformidades 142 a 1, como vindo da Legenda
Antiqua. EP 75; EP 24; 2Cel. 3, 21, Cf. Conform.171 a 1; Ver principalmente a Regra de 1221, cap. VII;
Regra de 1223, cap. V; o Testamento e LTC 41. A passagem liceat eis habere ferramenta et instrumenta,
suis artibus necessaria prova bem que alguns frades tinha verdadeiros ofcios.

176
Apesar de sua doura, Francisco soube mostrar-se de uma severidade
inflexvel com os preguiosos; at despediu um frade que pretendia no
trabalhar 20.Quanto a isso, nada mostra melhor as intenes do Poverello
do que a vida de Frei Egdio, um de seus mais queridos companheiros, de
quem ele dizia, sorrindo: um dos paladinos da minha Tvola Redonda
Frei Egdio gostava das grandes aventuras, das viagens perigosas, e
para ns um exemplo vivode um Franciscano da primeira hora 21. So-
breviveu vinte e cinco anos a seu mestre e no cessou de obedecer com
franqueza e simplicidade letra e ao esprito da Regra.
Ns o encontramos, um dia, em peregrinao para a Terra Santa.
Chegando a Brindisi, pediu emprestada uma bilha para carregar gua e,
esperando a partida do prximo navio, passou uma parte de seus dias
a gritar pelas ruas da cidade: Alla fresca! alla fresca! Como os outros
carregadores de gua. Mas ele mudava de ofcio de acordo com os pases
e as ocasies; na volta, em Ancona, arranjou vime para fazer cestas que
depois vendia, no pelo dinheiro, mas para se alimentar. Trabalhou at
como coveiro.
Enviado a Roma, fazia cada manh vrias lguas, depois de terminar
seus deveres religiosos, para ir ao mato cortar lenha. Um dia, na volta,
encontrou uma senhora que quis compr-la: puseram-se de acordo sobre
o preo e Egdio levou-a para a casa dela. Mas, na casa, ela percebeu que
ele era um religioso e quis dar mais do que o combinado: Boa senhora,
disse ele, no quero me deixar vencer pela avareza, e foi embora sem
aceitar nada.

20 2Cel 3, 97 et 98. O 97 citado textualmente pelas Conformidades 142 a 1, como vindo da Legenda
Antiqua. EP 75; EP 24; 2Cel. 3, 21, Cf. Conform.171 a 1; Ver principalmente a Regra de 1221, cap. VII;
Regra de 1223, cap. V; o Testamento e LTC 41. A passagem liceat eis habere ferramenta et instrumenta,
suis artibus necessaria prova bem que alguns frades tinha verdadeiros ofcios.
O preceito da Regra sobre o Trabalho das mos foi naturalmente um dos mais discutidos. Vamos encontrar
a indicao dasprincipais fontes sobre esse captulo em Arturus de Munster, Martyrologium, p. 37 e 124 ss.
21
Sobre ssa paixo dos primeiros frades pelas aventuras e as misses, ver o retrato de Frei Geraldo de
Totum mundum circuire volebat. Salimbene p. 37, ed. 1857.

177
No tempo de azeitonas, ele ajudava na colheita; no tempo de uvas,
oferecia-se como vindimador. Um dia, na praa de Roma, estavam re-
crutando diaristas e ele viu um padrone que no conseguia encontrar
nenhum homem para derrubar suas nozes; a rvore era to alta que
ningum tinha coragem de se arriscar: Se me ds uma parte das nozes,
disse Egdio, eu vou derrub-las. Feito o acerto e apanhadas as nozes,
ele viu que ficou com tantas que nem sabia onde coloc-las. Tirou a
tnica, fez um saco e voltou todo alegre para Roma, onde as distribuiu
a todos os pobres que encontrou.
No um jeito interessante, que revela o que havia de frescor, de ju-
ventude, de bondade na alma dos primeiros franciscanos? Se quisssemos
contar cada uma das recordaes da engenhosidade de Frei Egdio, no
acabaramos mais. Para ele, todo trabalho era bom, contando que tivesse
bastante tempo de manh para seus deveres religiosos. Esteve a servio
do despenseiro dos Quatro Coroados em Roma para peneirar a farinha
e carregar a gua do convento que ia buscar em So Sixto. Em Rieti,
ficou na casa do cardeal Nicolau, mas levava para cada refeio o po
que ganhara, apesar das insistncias do senhor, que queria aliment-lo
por sua conta. Um dia, choveu tanto que Frei Egdio nem podia pensar
em sair; o cardeal ficou contente pensando em obrig-lo a comer do
seu po, mas Egdio foi cozinha, viu que estava suja e convenceu o
cozinheiro a deix-lo varr-la. Voltou triunfante com o po que ganhou,
para comer na mesa do cardeal 22.
A vida de Egdio se imps desde o comeo: era ao mesmo tempo to
original, to alegre, to espiritual 23, e to mstica que mesmo nas colees
menos exatas e mais amplificadas sua legenda ficou praticamente pura de
qualquer adio. Depois de So Francisco, ele a mais bela encarnao
do esprito franciscano.

22
A. SS. Aprilis, t. III, p. 220-248; Fior Vida de Egdo; Spec. Vitae, 158 ss.; Conform., 53-60.
23
Vamos ver outros exemplos mais adiante; basta lembrar aqui seu dito: A gloriosa Virgem Me de Deus
teve por pais pecadores e pecadoras, nunca entrou numa ordem religiosa, mas ela o que ! A. SS. loco
cit., p. 234.

178
Esses casos que acabamos de contar so verdadeiras ilustraes da
Regra: nada mais explcito, de fato, que seus preceitos sobre o trabalho.

Depois de sua entrada na Ordem, os frades deviam continuar a exercer


o ofcio que tinham no mundo, e se no tinham nenhum, aprendiam um.
Como pagamento, s aceitava a comida necessria, mas, quando ele era
insuficiente, podia mendigar. De resto, era-lhes naturalmente permitido
possuir os instrumentos necessrios para seu ofcio 24: Frei Junpero, que
vamos conhecer mais adiante, tinha uma sovela e ganhava a vida por
onde passava consertando calados; e veremos Santa Clara trabalhar at
em seu leito de morte.

Essa obrigao do trabalho manual merecia ser destacada porque no


deveria sobreviver a So Francisco e porque d primeira gerao da
Ordem uma parte de sua originalidade.
Mas a verdadeira razo de ser dos Frades Menores no era essa. Sua
misso consistia principalmente em ser esposos da Pobreza.
Assustado pelas desordens eclesisticas, perseguido por tristes lem-
branas de sua vida passada, Francisco via no dinheiro o instrumento
diablico por excelncia: de tanto se exaltar, chegou a execr-lo, como
se no prprio metal houvesse uma espcie de poder mgico e de maldi-
o escondida. Na verdade, o dinheiro foi para ele o sacramento do mal.
No aqui o lugar de perguntar se ele estava errado: autores graves
demonstraram longamente as perturbaes econmicas que ele teria
desencadeado no mundo se o tivessem seguido. Sua loucura, se isso
loucura, ela daquelas cujo contgio no nada perigoso.
Ele sentia que, nesse ponto, a Regra no seria muito precisa e que se,
por infelicidade, se abrisse a porta para interpretaes, no daria mais

24
A passagem do Testamento: firmiter volo quod omnes laborent... tem uma importncia capital, porque
nos mostra Francisco renovando da maneira mais solene as injunes j feitas desde o comeo da Ordem.
Cf. 1Cel 38 e 39; Conform. 219 b 1; Juvabant fratres pauperes homines in agris eorum et ipsi dabant postea
eis de pane amore Dei. EP 56; 82. Ver tambm Archiv, t. II, p. 272 et 299; Eccleston 1 e 15; 2Cel 1,12.

179
para parar. Os acontecimentos e convulses peridicas da Ordem mos-
tram quanto ele tinha razo.
No sei nem quero saber se os telogos chegaram a uma concluso
cientfica sobre a pobreza de Jesus, mas para mim evidente que o tra-
balho manual verdadeiramente um fim ideal indicado pelo Galileu para
os esforos de seus discpulos. De resto, a pobreza franciscana no se
confunde foi preciso perceb-lo nem com o orgulho insensvel do es-
tico, nem com o horror estpido de certos devotos por todas as alegrias:
So Francisco s renunciava a tudo para poder possuir tudo melhor. Na
vida da imensa maioria de nossos contemporneos est presente o erro
fatal de pensar que, quanto mais uma pessoa possui, mais usufrui. Nossas
liberdades exteriores, civis, aumentam sem cessar: mas, no mesmo passo,
nossas liberdades interiores vo desaparecendo. Quantos no existem
que, ao p da letra, so possudos pelo que possuem 25?
A pobreza no s permite aos frades misturar-se com os pobres e falar
com eles com conhecimento, mas, tirando-lhes todo cuidado material,
permite que saboreiem sem limites os tesouros escondidos que a natureza
reserva para os puros idealistas.
A muralha cada vez mais espessa que a vida moderna, com sua busca
doentia do conforto intil, estabelece entre ns e a natureza, no existiam
para esses homens cheios de juventude e de vida, vidos por espao e ar
aberto. Foi da que veio para Francisco e seus companheiros esse senti-
mento to vivo da natureza que os fazia vibrar misteriosamente com ela.
Essa comunho era to ntima, to ardente, que a mbria, com a poesia
harmoniosa de seus horizontes, a ecloso alegre de sua primavera, ainda
o melhor documento para um estudo sobre eles. O lao to indissolvel
que, depois de ter vivido certo tempo em companhia de So Francisco,
quando lemos certas passagens de sua biografia, no podemos deixar de
ver o lugar onde o caso aconteceu, de ouvir o barulho confuso dos seres
e das coisas naquele momento, exatamente como ouvimos o som da voz
do autor quando lemos certas pginas de um autor amado.

25
Nihil volebat proprietatis habere ut omnia plenius posset in Domino possidere. B. de Besse, 102 a. An.
fr. III, p. 675.

180
O culto dos primeiros franciscanos pela pobreza no teve, portanto,
nada de asctico ou selvagem; nada que recorde os estelitas ou os nazirs.
Foi para eles uma noiva e, como verdadeiros amantes, nem sentiam as
fadigas que suportavam para ir encontr-la ou ficar com ela.
La lor concordia elor lieti sembianti,
Amor e maraviglia e dolce sguardo
Facean esser cagion depensier santi 26.

Fazer o retrato de um cavaleiro ideal no comeo do sculo XIII pintar


o retrato do prprio Francisco, com esta diferena: os outros faziam por
sua dama, ele o fazia pela Pobreza. Essa comparao no um capricho;
ele a sentiu profundamente e expressou com uma clareza perfeita, e s
tendo isso sempre presente no pensamento que podemos compreender
o fundo de seu corao.
preciso chegar at Joo de Parma e Jacopone de Todi para reencon-
trar almas da mesma natureza. Escreve-se uma vida de So Francisco
como um trovador, poder-se-ia escrev-la melhor como a de cavaleiro,
porque a explicao de toda a sua vida como o corao de seu corao.
Desde a noite em que, esquecido dos cantos de seus amigos e parado em
uma esquina de Assis, ele viu aparecer sua noiva, a Pobreza. E lhe jurou
f e amor, at essa tarde em que exalou sua vida, nu sobre a terra nua
da Porcincula, podemos dizer que todos os seus pensamentos foram
para a dama dos seus castos amores. Durante vinte anos ele a serviu sem
falhar, s vezes com ingenuidades que pareceriam infantis, se no sei o
que de infinitamente sincero e sublime no matava o sorriso nos lbios
dos mais cticos 27.
A Pobreza convinha maravilhosamente a essa necessidade que ento
os homens tinham, e que talvez tenham perdido menos do que se pensa,
de ter um ideal bem alto, bem puro, misterioso, inacessvel, mas de repre-
sent-lo de uma forma concreta. s vezes, alguns discpulos privilegiados
viram a bela e pura Senhora descer do cu para saudar seu esposo, mais

26
Dante, Paraso, canto XI, verso 76-79.
27
Amator factus... castis eam stringit amplexibus nec ad horam patitur non esse maritus. 2Cel 3, 1; Cf.
1Cel 35; 51; 75; 2Cel 3, 128; LTC 15; 22; 33; 35; 50; LM 87; Fior 13.

181
visvel ou no, ela permaneceu ao lado de seu amante da mbria, como
se mantivera ao lado do Galileu, no estbulo da natividade, no cume do
Glgota e at no tmulo emprestado em que ele repousou seu corpo.
Durante alguns anos, esse ideal no foi apenas de So Francisco, mas
tambm de todos os frades. Na pobreza da gente poverella ela tinha en-
contrado a segurana, o amor, a liberdade, e todos os esforos dos novos
apstolos visavam a conservao desse precioso tesouro.
Seu culto ia s vezes um pouco longe. Eles tinham por esposa essas
buscas, essas subtilidades to frequentes na aurora do noivado, mas que
as pessoas esquecem pouco a pouco e passam a ser incompreensveis 28.
Entretanto, o nmero dos discpulos aumentava sempre e quase cada
semana trazia novos recrutas: o ano de 1211 foi, sem dvida, consagrado
a uma volta pela mbria e pelas provncias vizinhas.
Suas pregaes eram curtos apelos conscincia; seu corao entre-
gava-se a seus ouvintes em tons indizveis, ainda que no fossem capa-
zes de repetir o que tinham ouvido 29. A Regra de 1221 conservou um
resumo desses apelos:
E todos os meus frades podem anunciar esta ou semelhante exortao
e louvor, quando lhes aprouver, entre quaisquer pessoas, com a bno de
Deus: Temei e honrai, louvai e bendizei, dai graas e adorai o Senhor Deus
onipotente na trindade e na unidade, Pai e Filho e Esprito Santo, criador
de tudo. Fazei penitncia, fazei frutos dignos de penitncia, porque logo
morreremos. Dai e vos ser dado. Perdoai e vos ser perdoado. E se no
perdoardes aos homens os seus pecados, o Senhor no perdoar os vossos
pecados; confessai todos os vossos pecados. Bem-aventurados os que
morrem em penitncia, porque estaro no reino dos cus... Guardai-vos e
abstei-vos de todo mal e perseverai at o fim no bem 30.

28
LM 93. - Prohibuit fratrem qui faciebat coquinam ne poneret legumina de sero in aqua calida quae
debebat dare fratribus ad manducandum die sequenti ut observaverint illud verbum Evangelii: Nolite solliciti
esse de crastino. EP 19.
29
2Cel 3, 50.
30
Cap. 21. Cf. Fior I consid.; 18; 30.; Conform. 103 a 2; EP 72; 2Cel 3, 99; 100; 121. Ver Mller, Anfnge,
p.187.

182
Vemos como essa primeira pregao franciscana era simples e toda
moral. Os espinheiros do dogma e da escolstica esto totalmente au-
sentes. Para compreender como isso foi novo e refrescante para as almas,
preciso estudar os discpulos que vieram depois deles. Com Santo
Antnio de Pdua (+13 de junho de 1231, canonizado em 1233 31), que
foi o mais ilustre, a queda imensa; a distncia entre esses dois homens
to grande como a que separa Jesus de So Paulo.
No estou acusando o discpulo: ele era de seu tempo no sabendo
dizer simplesmente o que pensava, querendo sempre chegar quinta
essncia, ou extra-la por esforos to laboriosos quanto pueris das pas-
sagens da Bblia torcidas de seu sentido natural: o que os alquimistas
faziam combinando sem cessar bizarras misturas esperando fazer surgir
o ouro, faziam-no os pregadores com os textos para da tirar a verdade.
A originalidade de So Francisco simplesmente mais brilhante e me-
ritria; com ele, reaparece a simplicidade evanglica 32. Como a cotovia,
a quem ele gostava tanto de se comparar 33, ele s estava vontade no cu
aberto. E assim permaneceu at a morte. A carta a todos os fiis, ditada
nas ltimas semanas de sua vida, repete as mesmas idias nos mesmos
termos, talvez com um pouco mais de ternura e um matiz de tristeza. O
vento da tarde que lhe sopra no rosto e carrega suas palavras, dava-lhes
um misterioso acompanhamento.

31
Ver suas Opera omnia postillis illustrata, pelo Pe. de la Haye, 1739, info para sua vida, Srio e Wadding
arranjaram e truncaram as fontes que tinham diante dos olhos; os bolandistas s tiveram uma legenda do
sculo XV. O manuscrito latino 14363 da Nacional d uma que remonta aos sculo XIII. V. R.Pe. Hilrio
de Paris: Saint Antoine de Padoue, sa lgende primitive. Montreuil-sur-Mer, Imprimerie Notre-Dame-des-
Prs, 1890, 1 vol. in-8. Cf. Legenda seu vita et miracula S. Antonii saeculo XIII concinnata ex cod. memb.
antoninae bibliothecae a P. M. Antonio Maria Josa OFMConv, Bolonha, 1883, 1 vol. in-8.
A Legenda apresentada nessas duas obras de acordo com os manuscritos de Lucerna e de Pdua tambm
vem dos dois cdices de Alcobaa (Extraemadura) em Mon. Portugaliae hist. Script., t. I, Lisboa, 1856,
in-fo, p. 116 ss., e Coll., t. V. Sancti Antonii de Padua Vitae duae... edidit notis et commentario illustravit,
Lon de Kerval, 1904. Ver tambm os slidos estudos do Dr. Lempp, Zeitschr;ft f. Kircheng.: I Quellen (t.
XI, p. 177-211). II. Schriften. (ibid., p. 503-538). III Leben u. Wirken (t. XII, p. 414-451 e t. XIII, p. 1-46).
32
Esse carter evanglico de sua misso sublinhado por todos os seus bigrafos. EP 3; 14; 70; 76; 78;
80; 82; 87; 108; 1Cel 56; 84; 89; LTC 25; 34; 40; 43; 45; 48; 51; 57; 2Cel 3,8; 50; 93.
33
EP 113. 2Cel 3, 128.

183
Eu, frei Francisco, vosso menor servo, vos rogo e conjuro, na caridade
que Deus, e com a vontade de beijar vossos ps, que deveis receber
e pr em prtica e observar estas e as outras palavras de nosso Senhor
Jesus Cristo com humildade e caridade.
Nisso no havia nenhuma frmula mais ou menos oratria. Tambm
as converses se multiplicavam com incrvel rapidez. Muitas vezes,
como acontecera com Jesus, bastava para Francisco uma palavra, um
olhar para atrair homens que o seguiriam at a morte. Mas impossvel
analisar o melhor dessa eloquncia toda feita de amor, de intimidade e
de fogo. A palavra escrita no pode dar uma idia como uma sonata de
Beethoven ou um quadro de Rembrandt. Muitas vezes nos admiramos,
lendo as recordaes dos que foram grandes domadores de almas, por
ficarmos frios, por no encontrar nada de atraente ou original. porque
no d para ter a relquia de uma vida; a alma foi embora, a hstia branca
do sacramento, mas como ela conseguiria fazer saborear as emoes do
discpulo bem-amado, recostado no peito do Senhor na tarde da ltima
Pscoa?
O meio em que Francisco recrutava seus discpulos ainda era mais ou
menos o mesmo: quase todos eram moos de Assis ou dos arredores, uns
de famlias de lavradores, outros de famlias nobres; a Escola e a Igreja
eram bem pouco representadas entre eles 34.
Tudo ainda acontecia numa simplicidade inaudita. Em teoria, a obe-
dincia ao superior era absoluta; na prtica, vemos Francisco dando a

34
Entretanto, o segundo discpulo, Pedro Catani, era cnego da catedral (EP 61; Chron. XXIV Gen. An. fr.
III, p. 4) o que no quer dizer que tenha recebido as ordens, e doutor em leis (CrJJ 11)..
No comeo a Ordem foi essencialmente leiga (atualmente, que eu saiba, a nica em que no h nenhuma
diferena de costumes entre leigos e padres). Ver Ehrle, Archiv, III, p. 563. Foi a influncia dos frades dos
pases do norte que mais contribuiu a transform-lo nesse ponto. O geral Aymon de Faversham (1240-1243)
decidiu que os leigos seriam excludos de todos os cargos: laicos ad officia inhabilitavit, quae usque tunc
ut clerici exercebant (Chron. XXIV gen., An. fr., t. III, p. 251).
Entre os primeiros frades que recusaram a ordenao h certamente os que o fizeram por humildade,
mas esse sentimento no basta para explicar todos os casos. Em alguns deles tambm houve veleidades
revolucionrias, e como uma vaga lembrana das profecias de Joaquim de Fiore sobre a Idade dos Monges
sucedia Idade dos Padres: Fior 27. Fratre Pellegrino non volle mai andare come chierico, ma come laico,
bench fosse molto litterato e grande decretalista. Cf. Conform. 71 a 2. Fr. Thomas Hibernicus sibi pollicem
amputavit ne ad sacerdotium cogeretur. Conform. 124, b. 2.
35
Ver por exemplo a carta a Frei Leo. Cf. Conform. 53 b 2. Fratri Egidio dedit licentiam liberam ut iret
quocumque vellet et staret ubicumque sibi placeret.

184
cada instante a seus companheiros uma completa liberdade de ao 35.
Entrava-se na Ordem sem noviciado de espcie alguma; bastava dizer
a Francisco que se queria levar com ele a vida de perfeio evanglica
e prov-lo, dando tudo que se possua aos pobres. Quando mais simples
eram os nefitos, maior a ternura que tinha por eles. Como seu mestre,
ele tinha predileo pelos descaminhados, por esses homens que a socie-
dade regular rejeita de seus quadros, mas que, apesar de seus crimes
ou escndalos, esto mais perto da santidade do que os medocres e os
hipcritas.
Uma vez, So Francisco foi pelo deserto do Borgo a San Sepolcro e,
passando por um castelo que se chama Monte Casale36; veio a ele um jovem
nobre e delicado, e lhe disse: Pai, eu gostaria de ser um dos vossos frades,
de muito boa vontade. So Francisco respondeu: Filho, tu s jovem,
delicado e nobre; pode ser que no possas suportar a nossa pobreza e aspe-
reza. E ele disse: Pai, vs no sois homens como eu? Ento como vs as
suportais, eu tambm poderei, com a graa de Cristo. So Francisco gostou
muito daquela resposta. Por isso, abenoando-o, recebeu-o imediatamente
na Ordem e lhe deu o nome de Frei ngelo. E esse jovem comportou-se
to graciosamente que, pouco tempo depois, So Francisco o fez guardio
do lugar chamado Monte Casale 37.
Naquele tempo, andavam por aquela regio trs ladres famosos, que
faziam muito mal por ali. Um dia eles foram ao dito lugar dos frades e
pediram ao referido Frei ngelo, guardio, que lhes desse de comer. E o
guardio respondeu-lhes deste modo, repreendendo-os asperamente: Vs,
ladres, cruis e homicidas, no vos envergonhais de roubar as fadigas dos
outros mas at, presunosos e descarados, quereis devorar as esmolas que

36
O eremitrio de Monte Casale, a duas horas de caminho a nordeste de Borgo San-Sepolcro, ainda existe
no estado primitivo. um dos desertos franciscanos mais significativos e mais curiosos. L moram atualmente
os capuchinhos. Podemos ver o oratrio em que So Francisco rezava e, ao lado, o buraco no rochedo em que
ele dormia. Um atalho no bosque leva em um quarto de hora ao Sasso Spicco, imenso hemiciclo de rochedos
em cujo centro reunem-se todas as guas da vizinhana para formar uma queda de sessenta metros de altura.
Sob os blocos gigantescos h abrigos naturais em que os primeiros franciscanos gostavam de se retirar.
37
O cargo de guardio (superior de um mosteiro) data naturalmente do momento em que os frades se
fixaram em pequenos grupos nas aldeias da mbria, isto , muito provavelmente no ano de 1211. Poucos
anos mais tarde, os mosteiros reuniram-se para formar as custdias. Afinal, por volta de 1215, a Itlia central
foi dividida em um certo nmero de provncias dirigidas por ministros provinciais. Tudo isso aconteceu aos
poucos, porque Francisco jamais se deixava levar por regulamentaes do que ainda no existia.

185
so mandadas para os servos de Deus, que no sois dignos nem que a terra
vos sustenha, pois no tendes nenhuma reverncia nem aos homens nem a
Deus que vos criou. Por isso, ide cuidar de vossa vida, e no me apareais
mais aqui.
Por isso eles, perturbados, partiram com muita raiva. E eis que So
Francisco voltou de fora com a bolsa do po e uma garrafinha de vinho que
ele e o companheiro tinham mendigado. Como o guardio lhe contou como
tinha despachado aqueles homens, So Francisco repreendeu-o fortemente,
dizendo que se comportara com muita crueldade... Eu te mando pela santa
obedincia que pegues imediatamente esta bolsa do po que eu mendiguei
e esta garrafinha de vinho, e os busque solicitamente pelas montanhas e
vales at os encontrares, e lhes apresenta todo este po e todo este vinho da
minha parte. Ajoelha-te depois diante deles lhes dize humildemente a culpa
pela tua crueldade, e depois lhes pede, da minha parte, que no faam mais
mal, mas temam a Deus e no ofendam o prximo; e se eles fizerem isso, eu
prometo prove-los em suas necessidades e dar-lhes continuamente de comer
e de beber. E quanto lhes tiveres dito isso, volta para c humildemente.
Enquanto o dito guardio foi cumprir a ordem de So Francisco, que se
ps em orao e rogava a Deus para que amolecesse os coraes daqueles
ladres e os convertesse para a penitncia. Eles voltaram com o frade e,
com a garantia do perdo de Deus dada por So Francisco, mudaram de
vida e entraram na Ordem, onde viveram e morreram muito santamente 38.

O que s vezes se diz do grito do sangue ainda mais verdadeiro do


grito da alma. Quando um homem desperta verdadeiramente em um
homem a vida moral, ele atrai um indizvel reconhecimento. A palavra
Mestre muitas vezes profanada, mas pode expressar o mais belo e o
mais puro lao que existe na terra.
Quem de ns que, nessas horas viris e puras em que fazemos nosso
exame de conscincia, no v levantar-se no passado a figura sempre
amada e viva daquele que, talvez sem o saber, foi nosso iniciador espi-
ritual. Ento, gostaramos de nos arrastar aos ps desse pai e lhe dizer,
com palavras ardentes, nossa admirao e nosso reconhecimento. No

38
Fior 26. Actus 29. Conform. 119 b 1. Cf. Regra de 1221, cap. VII. Quicumque ad eos (fratres) venerint,
amicus vel adversarius, fur vel latro. benigne recipiatur. O trecho original est em EP 66.

186
podemos fazer isso, porque a alma tem o seu pudor, mas quem sabe se
nossa perturbao e nosso embarao no nos traem e descobrem, melhor
do que as palavras, o fundo de nosso corao? O ar que se respirava na
Porcincula estava impregnado por essa alegria e esse reconhecimento.
Para muitos frades, So Francisco era mesmo o salvador; ele os livrara
de correntes mais pesadas que as da cadeia. Por isso, seu maior prazer
era chamar outros para a mesma liberdade.
J vimos Frei Bernardo em misso em Florena alguns meses de-
pois de sua entrada na Ordem. Chegado maturidade, quando recebeu
o hbito, parece um pouco o mais velho desse colgio apostlico. Ele
soube obedecer a So Francisco e se manter fiel at o fim ao ideal dos
primeiros dias; mas no tinha mais do que os jovens, por exemplo Frei
Leo, o privilgio de poder se transformar quase completamente na
imagem daquele a quem admirava. A fisionomia no tem essa ponta de
originalidade juvenil, de fantasia potica que um atrativo to grande
nos outros.
Nessa poca entraram na Ordem dois frades de tal valor que os suces-
sores de So Francisco no receberam mais outros iguais, e cuja histria
lana uma viva luz sobre a simplicidade dos primeiros dias.
Ns nos recordamos do zelo com que Francisco tinha reparado vrias
igrejas. Sua solicitude ia mais longe: ele via uma espcie de profanao
na negligncia com que a maior parte delas era mantida. A sujeira dos
objetos sagrados, mal dissimulada por ouropis, fazia-o sofrer e muitas
vezes aconteceu que, ao pregar em algum lugar, reunia os padres da
localidade para conjur-los a que cuidassem da decncia do culto. Mas
mesmo nisso no se contentava em pregar com palavras: amarrando
umas giestas fazia uma vassoura para limpar as igrejas.
Um dia, perto de Assis, estava fazendo isso quando apareceu um
campons que tinha deixado seu arado com os bois para vir v-lo:
Irmo, d-me a vassoura, pois quero te ajudar. E, recebendo a vassoura
de suas mos, varreu o que faltava. Sentaram-se juntos, e ele disse ao bem-
aventurado Francisco: Irmo, j faz tempo que tenho vontade de servir a
Deus, especialmente depois que ouvi falar de ti e dos teus frades, mas no

187
sabia como chegar a ti. Por isso, agora que agradou ao Senhor que eu te visse,
quero fazer o que te agradar. Considerando o seu fervor, o bem-aventurado
Francisco exultou no Senhor, principalmente porque naquele tempo tinha
poucos frades e lhe parecia que, por sua simplicidade e pureza, deveria ser
um bom religioso39.
Devia ter simplicidade at demais porque, depois que foi recebido
achou que devia imitar at os gestos do mestre e, quando ele tossia, cuspia
ou suspirava, fazia o mesmo. Quando Francisco percebeu, repreendeu-o
docemente. Mais tarde ele veio a ser to perfeito que os frades o admi-
ravam muito e depois de sua morte, que foi pouco tempo depois, So
Francisco gostava de contar sua converso, chamando-o sempre no de
Frei Joo, mas de Frei So Joo 40.
Junpero ainda ficou mais famoso por suas santas doidices: um dia foi
ver um frade doente e lhe ofereceu seus servios. O paciente confessou
que gostaria de comer um p de porco. Junpero foi buscar uma faca,
correu para o bosque mais prximo, encontrou uma vara de porcos,
cortou uma pata de um deles e voltou para o mosteiro todo orgulhoso
com seu trofu.
O dono dos porcos veio logo atrs, gritando como um possesso, mas
Junpero e lhe demonstrou com tanta ingenuidade que lhe tinha prestado
um grande servio, que o homem, depois de t-lo coberto de injrias,
pediu perdo. Matou-o e o comeu em companhia de todos os frades.
Certamente Junpero era menos doido do que a narrativa faz supor: a
humildade franciscana nunca teve um discpulo mais sincero. No supor-
tava os sinais de admirao que prodigavam para com a Ordem nascente
e que, por seus excessos, contriburam tanto para sua decadncia.
Um dia, ele ia entrar em Roma quando a notcia de sua chegada se
espalhou e uma multido foi ao seu encontro. No dava para escapar,

39
EP 57; 2Cel. 3,120; Conform. 53 a 1. Ver pg.517, n.1.
40
Notiano, pequena vila a trs horas de caminho ao NE de Assis (Ver Miscell. fr., t. n, p. 45). O Professor
Fr. Pennacchi, presidente da Sociedade Internacional de Estudos Franciscanos de Assis, me garantiu que
a memria desse fato ainda viva em Notiano. Foi o que lhe contaram os cidados desse lugar. O lugar
preciso da vocao de Frei Joo seria a trs quilmetros ao leste da vila. Mais tarde esse lugar recebeu o
nome de So Joo.

188
mas ele teve uma inspirao: perto da porta da cidade, alguns meninos
estavam se balanando entre duas vigas de madeira; para grande emba-
rao dos romanos, Junpero juntou-se a eles e, sem se importar com as
saudaes que lhe dirigiam, ficou ocupado no seu jogo at que os devotos,
indignados, foram embora 41.
Vemos como a vida na Porcincula era diferente da de um convento
ordinrio.
Toda essa juventude 42, simplicidade, amor atraam vivamente os
olhos. As pessoas ficavam olhando de todos os lados as cabanas onde
havia uma famlia espiritual cujos membros se amavam mais do que se
costuma amar na terra e levavam uma vida de trabalho, de alegria e de
devotamento.
A humilde capela j parecia uma nova Sio destinada a iluminar o
mundo, e em seus sonhos, muitos viam a humanidade cega vir ajoelhar-
se ao redor dela recuperando a viso 43.
Entre os primeiros discpulos que se uniram a So Francisco preciso
mencionar Frei Silvestre, o primeiro padre que entrou na Ordem, o mes-
mo que ns j vimos no dia em que Bernardo de Quintavalle distribuiu
seus bens aos pobres. Depois disso ele no teve mais nenhum instante
de tranquilidade, lamentando amargamente sua avareza. Noite e dia, s
pensava nisso e revia em seus sonhos Francisco exorcizando um monstro
abominvel que infestava toda a regio 44.
Por sua idade e pelo tipo de recordaes que nos deixou, Silvestre se
aproxima de Frei Bernardo. Ele foi o que habitualmente se entende por
um padre santo, mas nada indica que tenha tido o gosto, to franciscano,
pelos grandes empreendimentos, pelas viagens longnquas, pelas misses

41
Fior, Vita di fra Ginepro; Spec. Vitae 174-182. Conform. 62 b. Ver tambm Chron. dos XXIV Gen., An.
fr. III, p. 56.
42
A.SS., p. 600.
43
LTC 56; 2Cel 1, 13; LM 24.
44
LM 30; LTC 30; 31; 2Cel 3, 52. Cf. Actus 1. Fior 2. O drago desse sonho talvez simbolise a heresia.
As Conformidades (49 a 2,50 a 2 ed. 1510) conservaram-nos uma srie de recordaes sobre Frei Leo
mais abundante que a dos XXIV Gen. e que parece provir da mesma fonte.

189
perigosas. Retirado em uma das grutas dos Crceri, absorvido pela vida
contemplativa, dava conselhos espirituais aos outros frades 45.
O tipo do frades franciscano Frei Leo 46. No se sabe exatamente
quando entrou na Ordem, mas no estar longe da verdade quem pensar
que foi em 1211. De uma ingenuidade encantadora, terno, afetuoso,
delicado, ele , com Frei Elias, o que teve papel mais importante nesses
anos obscuros em que o movimento reformador estava sendo elaborado.
Tornando-se confessor e secretrio de Francisco, tratado por ele como
filho predileto, excitou muitas suscetibilidades e foi, at o fim de sua
longa vida, o chefe da estrita observncia 47.
Uma vez, no tempo do inverno, So Francisco vinha com Frei Leo de
Perusa para Santa Maria dos Anjos, e o frio atormentava-o acerbamente.
Chamou Frei Leo, que caminhava um pouco frente dele e disse: Frei
Leo, ainda que os frades menores dem em toda a terra um grande exemplo
de santidade e de boa edificao, transcreve o exemplo, isto , anota que
no est a a perfeita alegria.
Depois de andar um pouquinho, chamou-o de novo, dizendo: Frei
Leo, ainda que o frade menor ilumine os cegos, endireite os encurvados,
expulse os demnios, devolva o ouvido aos surdos, o andar aos coxos e a
palavra aos mudos e, o que ainda maior, ressuscite um morto de quatro
dias, escreve que a no est a perfeita alegria.
Chamando-o de novo, dizia: Frei Leo, se o frade menor soubesse
todas as lnguas dos povos, todas as cincias e escrituras, de maneira que
soubesse at profetizar e revelar no s as coisas futuras, mas at as cons-
cincias dos outros, escreve que a no est a perfeita alegria.
Continuando ainda a caminhar, chamou de novo: Frei Leo, ovelhinha
de Deus, mesmo que o frade menor falasse a lngua dos anjos, e conhecesse

45
LM 83; 172; Actus 1;16. Fior 1, 16; Conform. 49 a 1 et 110 b 1. 2Cel 3,51.
46
Ver Col., t. I, notas biogrficas sobre Frei Leo, p. LXII-t.XXXV. La Chron. XXIV Gn., An. fr.; t. III,
p. 65-72, d uma Vita Fratris Leonis que parece um resumo apressado de uma legenda anterior muito mais
desenvolvida.
47
Bernardo de Bessa, De laudibus, Ms. de Turim, 1o 102 b e 96 a. Ele morreu no dia 15 de novembro de
1271. A. SS. Augusti, t. II, p. 221.

190
o caminho das estrelas e as virtudes das ervas, e lhe fossem revelados todos
os tesouros das terras; e conhecesse as virtudes das aves e dos peixes e dos
animais, dos homens e das rvores, das razes, das pedras e das guas, escre-
ve, escreve bem e anota diligentemente que a no est a perfeita alegria.
E, depois de um pouquinho, clamou: Frei Leo, ainda que o frade
menor soubesse pregar to solenemente que convertesse todos os infiis
para a f, escreve que no est a a perfeita alegria.
Esse modo de falar durou por bem duas milhas. E Frei Leo, muito
admirado com tudo isso, disse: Pai, eu te peo da parte de Deus que me
digas onde est a perfeita alegria.
So Francisco respondeu-lhe: Quando chegarmos a Santa Maria dos
Anjos to molhados de chuva e congelados de frio, sujos de barro e aflitos
de fome, e batermos na porta do lugar, e o porteiro vier irado, dizendo:
Quem sois vs? E ns dissermos: Somos dois dos vossos frades. E
ele, ao invs, disser: Vs sois dois velhacos, que dais voltas pelo mundo
roubando as esmolas dos pobres! E no nos abrir, mas nos fizer ficar na
neve e na gua, no frio e na fome at de noite.
Ento, se suportarmos pacientemente as injrias e repulsas, sem nos
perturbar e sem murmurar, e pensarmos humilde e caridosamente que o
porteiro nos conhece de verdade, e que Deus que est excitando a lngua
dele contra ns, Frei Leo, escreve que a est a perfeita alegria Entre
todos os carismas do Esprito Santo, que Cristo concedeu e concede aos seus
amigos, est o de vencer a si mesmo e suportar de boa vontade os oprbrios
por Cristo e pelo amor de Deus48.

Apesar de, pelo tom gracioso e um tanto afetado, esta narrativa lembrar
as esttuas esbeltas do sculo XIV, ficou clebre, com razo: a inspirao
bem franciscana. Esse idealismo transcendente, que faz de perfeio
e alegria dois termos equivalentes e mostra a alegria perfeita na pura e
serena regio do aperfeioamento de si mesmo; essa sublime simplicidade
coloca to bem em seu verdadeiro lugar o taumaturgo e o sbio, tudo
isso talvez no fosse absolutamente novo 49; mas So Francisco deve ter

48
Actus 7; Fior 8.; Conform. 30 b 2 e 140 a 2.

191
tido uma singular fora moral para impor assim a seus contemporneos
idias que estavam em contradio to absoluta com seus hbitos e suas
aspiraes, porque a aristocracia intelectual do sculo XIII inteiro colocou
a perfeita alegria na cincia, enquanto o povo colocava-a nos milagres.
claro que no podemos esquecer as grandes famlias msticas que,
atravs da Idade Mdia, foram o refgio das mais belas almas, mas elas
nunca tiveram essa bela simplicidade. A Escola sempre mais ou menos
o prtico desse misticismo; s possvel para uma elite de refinados; um
campons piedoso no entende nada da Imitao.
Poderamos dizer que toda a filosofia de So Francisco est contida
neste captulo dos Fioretti 50. Faz-nos prever qual ser sua atitude diante
da cincia e nos ajuda a compreender como este santo famoso foi um
taumaturgo to pobre.
Doze sculos antes, Jesus tinha dito: Felizes os pobres em esprito.
Felizes os que sofrem. As palavras de So Francisco no passam de um
comentrio disso, mas um comentrio digno do texto.
Falta dizer uma palavra sobre dois discpulos sempre estreitamente
unidos a Frei Leo nas lembranas franciscanas: Rufino e Masseu.
Nascido de uma famlia nobre aparentada com a de Santa Clara, o

49
No preciso chamar a ateno para a analogia entre este captulo e o clebre cntico de So Paulo
sobre o amor. 1Cor 13.
50
Encontramos as mesmas idias, com termos quase semelhantes no Cap. V dos Verba sacrae admonitionis.
Aqui est o captulo inteiro de acordo com o ms. 338 de Assis, fo 8 b: Ut nemo superbiat, sed glorietur in
cruce domini. Actende, o homo, in quanta excellentia posuerit te dominus Deus; quia creavit et formavit te
ad ymaginem dilecti filii sui secundum corpus, et similitudinem suam secundum spiritum. Et omnes creatu-
re, que sub celo sunt secundum se serviunt cognoscnnt, et obediunt creatori suo melius quam tu: et etiam
demones non crucifixerunt eum, sed tu cum ipsis crucifixisti eum, et adhuc crucifigis delectando in vitiis et
peccatis. Unde ergo potes gloriari? Nam si tantum esses subtilis et sapiens, quod omnem scientiam haberes
et scires interpretari omnia genera linguarum, at subtiliter de celestibus rebus perscrutari, in omnibus hiis
non potes gloriari: quia unus demon scivit de celestibus et modo scit de terrenis plus quam omnes homines,
licet aliquis fuerit, qui summe sapientie cognitionem a domino receperit spetialem. Similiter si esses pulcrior
et ditior omnibus, et etiam si faceres mirabilia ut demones fugares; omnia ista tibi sunt contraria, et nichil
ad te pertinet et in hiis nil potes gloriari: sed in hoc possurnus gloriari, in infirmatibus nostris, et baiulare
cotidie sanctam crucem domini nostri Ihesu Christi.

192
primeiro foi logo conhecido na Ordem como visionrio e exttico, mas
era de uma grande timidez, que o tolhia sempre que queria pregar.
assim que o encontramos sempre nos eremitrios mais isolados: Crceri,
Alverne, e Greccio 51.
Masseu, de Marignano, pequena aldeia da regio de Assis, era o
extremo oposto: bonito, bem feito, espiritual, atraa os olhares por sua
bela apresentao e tinha uma grande facilidade de palavra: por isso
ocupa um lugar parte na tradio franciscana popular. Ele a merece:
So Francisco, para provar sua humildade, f-lo porteiro e cozinheiro do
eremitrio 52, mas em suas funes Masseu soube mostrar-se um Menor
to perfeito que desde o comeo o Mestre gostava especialmente de t-lo
como companheiro em suas viagens missionrias 53.
Em um dia em que caminhavam juntos, Frei Masseu foi durante algum
tempo frente de So Francisco. Mas, quando chegaram a uma encruzilhada
onde se podia ir para Sena, para Florena ou para Arezzo, Frei Masseu disse:
Pai, que caminho devemos tomar?. O santo respondeu: Vamos tomar
o caminho que Deus quiser. Frei Masseu retrucou: E como poderemos
saber a vontade do Senhor?. O santo respondeu: Com um sinal que eu
vou te mostrar. Por isso eu te mando, pelo mrito da santa obedincia, que
nesta encruzilhada, no lugar em que tens os ps, ds voltas girando, como
fazem os meninos, e no pares de te virar enquanto eu no mandar. Ele,
como um verdadeiro obediente, girou at que, tendo uma dessas vertigens
que a gente tem quando d voltas, caiu muitas vezes. Mas como o santo
no mandava parar, levantou-se e continuou a girar. E quando Frei Masseu
estava girando bem depressa, So Francisco disse: Pra com fora; no te
movas!. Ele parou imediatamente. E So Francisco disse: Para onde tens
virado o rosto?. Frei Masseu respondeu: Para Sena. Ento So Francisco

51
Ele o segundo dos Trs Companheiros, LTC 1; Cf. 1Cel 95; Actus 31; 32; 33; 34; 35; Fior 1; 29; 30;
31; CrEc 13; Contorm. 51 b ss.; Cf. 2Cel 2, 4.
52
Muito provavelmente o dos Crceri, embora o nome no esteja indicado. Ver LTC 1; Actus 10; 11; 12;
13; 16; 37; 41; Fior 4; 10; 11; 12; 13; 16; 27; 32; Conform. 51 b 1. ss.; Tribul. Archiv., t. II, p. 263.
53
Chron. XXIV Gen. fo 35 a. An. fr. p. 115.

193
disse: esse o caminho que Deus quer que faamos 54.

Mas, no nos devemos iludir com essa pitoresca anedota. s vezes


poderemos ver que Francisco, para decises importantes, usava meios
anlogos, se no na forma pelo menos no contedo. Mas ele no foi
simplesmente um impulsivo, obedecendo inspirao do momento. Sua
vida toda feita de coerncia, de progresso, de reflexo: ela contnua.

At aqui, vimos os frades reunidos em seus eremitrios, ou percor-


rendo as estradas para pregar o arrependimento.

Mas seria errado imaginar que toda a sua existncia foi assim. Para
compreender os primeiros franciscanos preciso, absolutamente, es-
quecer o que eles podem ter feito desde aquele tempo e o que so os
monges em geral: se a Porcincula era um mosteiro, tambm era uma
oficina em que cada frade continuava o ofcio que tinha antes de entrar
na Ordem. Mas o mais estranho para nossos costumes que os frades
se empregavam muitas vezes como domsticos 55.

O caso de Frei Egdio no foi exceo, era a regra. Isso durou pouco,
porque logo os frades que entravam nas casas como domsticos co-
mearam a ser tratados como hspedes de distino. Mas, no comeo,
eles foram servidores de verdade, encarregando-se dos servios mais vis.
Entre todos os trabalhos que podiam fazer, Francisco recomendou
principalmente o cuidado dos leprosos. Vimos o papel importante que
esses infelizes tiveram em sua vida na hora da converso, e ele manteve
pelos leprosos uma piedade particular, que procurou partilhar com seus
discpulos.
Durante alguns anos, os Frades Menores viajaram, de certa manei-

54
V. Actus 11; Fior 11; Conform. 50 b 2.
55
Regra de 1221 cap. 7: Omnes fratres, in quibuscumque locis fuerint apud aliquos ad serviendum, vel
ad laborandum, non sint camerarii, nec cellarii, nec praesint in domibus eorum quibus serviunt. Cf. 1Cel
38 e 40. A. SS.,p. 606.

194
ra, de leprosrio em leprosrio, pregando de dia nas cidades e aldeias,
retirando-se de tarde nessas espcies de hospitais, onde prestavam aos
doentes do bom Deus os servios mais repugnantes.
Acontecia at que um frade fosse especialmente encarregado de um
s leproso, de quem ficava companheiro e servidor, s vezes por muito
tempo 56.
A seguinte narrativa vai falar do amor e de como Francisco tratava
esses infelizes 57.
Uma vez, aconteceu que, perto do lugar em que estava So Francisco,
os frades serviam os leprosos e doentes de um hospital. No meio deles
estava um leproso to impaciente, to insuportvel, to mau, que todos
achavam que ele estava possudo pelo demnio, e com razo, porque ele
cobria de injrias e de pancadas os que o serviam e, o que pior, ultrajava
e blasfemava sem parar o Cristo bendito e sua santa me a Virgem Maria,
tanto que no se encontrava ningum que pudesse ou quisesse servi-lo. Os
frades teriam suportado de boa vontade as injrias e vilanias com que os
tratava, mas sua alma no podia ouvir as que ele proferia contra Cristo e
sua Me. Ento, resolveram abandonar o leproso, mas no sem ter contado
antes direito a So Francisco, que morava no longe dali.
Quando lhe contaram isso, So Francisco veio encontrar esse leproso
mau: Que Deus te d a paz, meu irmo muito querido, disse quando
chegou perto dele.
- Que paz posso receber de Deus, que me tirou a paz e todo bem e que
fez de todo o meu corpo uma massa purulenta e corrompida?, disse ele.
So Francisco respondeu: Meu filho, tem pacincia, porque as doenas
nos so dadas por Deus neste mundo para a salvao de nossa alma, e so a
fonte de mritos muito grandes quando suportadas com pacincia.
Como posso suportar pacientemente essas dores contnuas que me

56
V. Actus 3; Fior 4.
57
Todos os detalhes dessa narrativa levam-me a crer que se trata da Porcincula e do leprosrio de Assis.
Essa narrativa apresentada pelas Conform. 174 b 2 como tirada da Legenda Antiqua. Cf. Actus 28; Fior
25. Ver AFH t. XII (1919), p. 338, texto 367, um estado bem diferente e interessante que localiza o fato
entre Assis e Perusa.

195
martirizam dia e noite? E no s a doena me faz sofrer, porque os
frades que me deste para me servir so insuportveis e no cuidam de mim
como deviam.
Ento So Francisco compreendeu que o leproso estava possudo pelo
esprito do mal e foi se pr em orao para rogar por ele.
Depois voltou e disse: Meu filho, como no ests contente com os
outros, eu vou te servir.
Est bem, mas o que poders fazer mais do que eles?
Farei tudo que quiseres.
Est bem! Quero que me laves inteiro, porque estou fedendo tanto,
que nem eu agento.
Ento So Francisco esquentou depressa gua com ervas odorferas,
arregaou suas roupas e comeou a lav-lo enquanto um frade derramava a
gua. E, por um milagre divino, por toda parte onde So Francisco tocava
suas santas mos, a lepra desaparecia e a carne ficava perfeitamente s. Na
medida em que a carne sarava, curava-se tambm a alma do infeliz, e ele
comeou a sentir uma viva dor de seus pecados e a chorar amargamente...
Completamente curado de corpo e alma, gritava com toda fora: Ai de mim,
porque mereo o inferno pelas maldades e injrias que disse aos frades, por
minha impacincia e minhas blasfmias.

Um dia, Frei Joo, cuja simplicidade j consideramos acima e que tinha


sido encarregado de um leproso, levou-o para passear na Porcincula,
como se no tivesse uma doena contagiosa.
No lhe pouparam reprimendas; o leproso ouviu-as e no pde es-
conder sua perturbao e tristeza; parecia-lhe que estava sendo banido
do mundo uma segunda vez. Francisco observou tudo isso e ficou com
remorsos. Para ele, pensar que tinha contristado um doente do bom
Deus era insuportvel. Pediu-lhe perdo e mandou que lhe dessem de
comer. Sentou-se ao seu lado e, servindo-se do mesmo prato, partilhou
sua refeio 58. Vemos com que perseverana ele buscava em todas as
direes a realizao de seu ideal.
Acho que os detalhes que acabamos de indicar fazem do movimento
umbro uma das tentativas mais humildes para realizar o reino de Deus na

196
terra, e tambm a mais prtica e a mais sincera. Como estamos longe das
vulgaridades supersticiosas da devoo mecnica, da taumaturgia menti-
rosa de certos catlicos; como estamos longe, tambm, desse cristianismo
burgus, satisfeito, chicaneiro, doutrinrio de certos protestantes!
Francisco da raa dos msticos, porque entre Deus e ele no h
nenhum intermedirio, mas o seu misticismo o de Jesus, levando seus
discpulos ao Tabor da contemplao. E dizendo, quando eles, inundados
de alegria, quiseram levantar tendas para ficar l em cima saboreando at
a saciedade as delcias do xtase: Insensatos, no sabeis o que estais pe-
dindo. E mostrando-lhes as multides errantes como ovelhas sem pastor,
levou-os para a plancie no meio dos que gemem, sofrem e blasfemam.
Quanto mais alta a estatura moral de Francisco, mais ele estava exposto
a no ser compreendido a no ser por uma minoria nfima e trado pelos
que o cercavam. A cada instante, lendo os autores franciscanos, sentimos
que a radiosa beleza do modelo foi estragada pelas impercias dos dis-
cpulos. Nem podia ser de outro jeito, e essa distncia entre o mestre e
seus companheiros revela-se desde as origens da Ordem. A maior parte
dos bigrafos jogou o vu do esquecimento por cima das dificuldades
suscitadas por alguns frades, como tambm sobre as que vieram da hie-
rarquia eclesistica, mas bom que esse silncio quase geral nos iluda.
Encontramos aqui e ali indicaes tanto mais preciosas quanto so,
por assim dizer, involuntrias. Frei Rufino, por exemplo, o mesmo que
deveria ser um dos seus ntimos nos ltimos dias, teve uma atitude de
revoltado pouco depois de sua entrada na Ordem. Achava insensata a
atitude de Francisco que, em vez de deixar os frades totalmente entre-
gues orao, dispersava-os por todos os lados para servir os leprosos.
Seu ideal era a vida dos anacoretas da Tebaida como era apresentada,
naquele tempo, nas legendas to populares de Santo Anto, So Paulo,
So Pacmio e outros vinte. Uma vez, passou a quaresma em uma das

58
No Speculum (EP 58), essa narrativa termina assim: Qui vidit haec scripsit et testimonium perhibet de
hiis. O frade chamado de Frei Tiago, o simples. Cf. Conform. 174 b 1.

197
grutas dos Crceri 59; quando chegou a quinta-feira santa, mandou chamar
todos os frades dispersos pelas redondezas em grutas ou choas, para
celebrar com eles a recordao desse dia. Rufino no quis ir, dizendo:
No quero mais seguir os outros; vou ficar aqui e viver solitrio, porque
assim serei salvo mais seguramente que me submetendo a esse homem
e a suas bizarrices 60.
Jovens e entusiastas em sua maioria, nem sempre os frades se ha-
bituavam sem dificuldade a trabalhar modestamente. De acordo com
seu mestre, no fundo, alguns gostariam de fazer mais rudo, impor-se
ateno do povo por uma devoo mais visvel. Numa palavra, para
alguns no bastava ser santos; tambm queriam parecer santos.

59
esse o nome que do a algumas grutas naturais muito exguas que se abrem a meia encosta, dentro
dos bosques do monte Subsio. Do hospital dos leprosos de Santa Maria Madalena chega-se l em duas
horas por atalhos escarpados e escorregosos, onde nem as cabras gostam de se arriscar. Quando chegamos
l, podemos pensar que estamos a mil lguas dos humanos, to numerosos so os pssaros que l vivem
em toda tranqilidade.
Francisco gostava dessa solido e l se retirava freqentemente com alguns companheiros. Encarregavam
um deles de todas as preocupaes materiais e depois, isolados cada um em um antro da montanha, podiam
estar atentos unicamente voz interior, durante alguns dias.
Esses pequenos eremitrios, bastante longe das cidades para que no fossem distrados, mas bastante perto
delas para poder ir pregar, esto por toda parte onde Francisaco passou. Eles tambm formam como que uma
seqncia de sua vida, tanto importantes quando os testemunhos escritos. Alguma coisa de sua alma ainda
se encontra nessas cavernas no meio das florestas dos Apeninos. Ele jamais separou sua vida contemplativa
da vida ativa. Temos uma preciosa lembrana na Regra para os Eremitrios: Illi qui religiose volunt stare
in eremis sint tres aut quatuor ad plus. Duo ex ipsis sint matres, et habeant duos fiIios, vel unum ad minus.
Illi duo teneant vitam Marthae et alii duo vitam Mariae Magdalenae. Ver p. 395 n.2 e pg. 483.
Segundo Jacobilli, os Crceri teriam sido dados a So Francisco em 1215. Vita dei Santi III, p. 291. V.
Statuto dAssisi lib. III rubrica 33, ed. Perugia 1543.
60
Conform. 51 b. 1; Cf. 2Cel 2, 4; Actus 31; Fior 29; Chron. XXIV Gen. An. fr., t. III, p. 48 s.

198
9

SANTA CLARA

199
IX

Audi, filia, et vide, et inclina aurem tuam;


et obliviscere populum tuum, et domum patris tui.
Et concupiscet rex decorem tuum,
quoniam ipse est Dominus Deus tuus, et adorabunt eum 1.
Desponsari, dilecta, veni, hiems transiit, turtur canit, vineae florentes redolent.
Etiam hoc donum, Domine, in quasdam mentes de largitatis tuae fonte defluxit,
ut cum honorem nuptiarum nulla interdicta minuissent, ac super sanctum
conjugium nuptialis benedictio permaneret, existerent tamen sublimiores
animae quae in viri ac mulieris copula fastidirent connubium, concupisce-
rent Sacramentum, nec imitarentur quod nuptiis agitur, sed diligerent quod
nuptiis praenotatur 2.
Beata Agnes in medio flammarum expansis manibus orabat: Te deprecor, om-
nipotens, adorande, colende, Pater metuende, quia per sanctum Filium tuum
evasi minas sacrilegi tyranni, et carnis spurcitias immaculato calle transivi;
et ecce venio ad te, quem amavi, quem quaesivi, quem semper optavi.
Dexteram meam et collum meum cinxit lapidibus pretiosis, tradidit auribus
meis inaestimabiles margaritas. Et circumdedit me vernantibus atque co-
ruscantibus gemmis. Posuit signum in faciem meam ut nullum praeter eum
amatorem admittam.
Amo Christum in cujus thalamum introibo, cujus mater virgo est, cujus pater
feminam nescit, cujus mihi organa modulatis vocibus cantant. Quem cum
amavero casta sum; cum tetigero, munda sum, cum accepero, virgo sum.
Annulo fidei suharrhavit me et immensis monilibus ornavit me.
Ecce quod concupivi jam video; quod speravi jam teneo; ipsi sum juncta in
caelis, quem in terris posita tota devotione dilexi 3.
Plus potuit quin amplius amavit 4.

1
Sl 44, 11-12.
2 Fragmento da liturgia solene na liturgia da tomada de vu das religiosas no Pontifical romano.
3
Ofcio de Santa Ins (21 de janeiro).
4
Legenda de Santa Escolstica.

200
IX

Filha, escuta, v e presta ateno;


Esquece o teu povo e a casa de teu pai,
Porque o rei deixou-se prender por tua beleza:
Ele agora o teu senhor, presta-lhe homenagem 5.
Vem, minha querida, celebrar nosso noivado. O inverno acabou; a rola canta e
as vinhas em flor exalam seu perfume.
Um outro dom, Senhor, foi concedido a alguns espritos por vossa bondade
superabundante: nada lhes impedia um honroso casamento, e a bno
nupcial teria repousado sobre essa santa unio, mas estas almas, atradas por
uma vida ainda mais sublime, querem mais do que o casamento que une o
homem e a mulher; elas suspiram pela realidade do mistrio contido neste
sacramento, e no se satisfazem com o que se fez no casamento, sonham
com a realidade daquilo que ele anuncia e prefigura 6.
A bem-aventurada Ins, em p no meio das chamas, com as mos estendidas,
assim orava: Eu vos bendigo, Deus todo poderoso, para quem sobem o
nosso culto e a nossa adorao, Pai temvel, porque graas a vosso Santo
Filho eu no cedi diante das ameaas do tirano sacrlego, e porque encontrei
um atalho estreito, mas imaculado atravs imundcie da carne. E eis que,
agora, eu vou para vs, para vs que eu amo, para vs que eu busco, para
vs por quem eu sempre suspirei.
Ele colocou em minha destra um bracelete e cingiu meu pescoo de pedras
preciosas. Ele me ornou as orelhas com prolas sem preo e me deu um
cinto de jias cintilantes. Colocou um sinal em minha fronte para que eu
no acolha nenhum outro amante a no ser ele.
Eu amo o Cristo sobre o leito nupcial a que vou subir, cuja me virgem, cujo
pai no conhece mulher, e eis que seus rgos fazem soar meus ouvidos
com seus cantos melodiosos. Eu o amarei, permanecendo casta, eu o tocarei
continuando virgem. Ele me deu sua f e me colocou no dedo a anel que
seu penhor. Ele me ornou com imensos colares.
Estou vendo o que eu desejei to ardentemente; j tenho o que eu esperava;
estou unida no cu quele que amei na terra com todo o meu corao 7.
Ela conseguiu mais porque amou muito mais 8.

5
Sl 44, 11-12.
6
Fragmento da liturgia solene na liturgia da tomada de vu das religiosas no Pontifical romano.
7 Ofcio de Santa Ins (21 de janeiro).
8
Legenda de Santa Escolstica.

201
Na mbria, a piedade popular nunca separa a recordao de So
Francisco da de Santa Clara. E tem razo.
Clara 9 nasceu em Assis em 1194, e era cerca de doze anos mais moa
do que Francisco. Pertencia nobreza e era, dizem, da famlia Sciffi 10.
Na idade em que a imaginao de uma menina desperta e se levanta,
ela ouviu contar longamente as doidices do filho de Bernardone. Tinha
dezesseis anos quando foram feitas as primeiras pregaes do santo na
catedral e quando ele apareceu de repente como o anjo da paz nessa ci-
dade dilacerada pelas dissenses intestinas. Para ela, seus apelos foram

9
Tanto quanto as grandes linhas de sua vida so facilmente captadas, mais difcil torna-se para quem quer
fazer um estudo documentado e detalhado sobre elas: Isso no surpreende, porque as Clarissas sofreram as
conseqncias das lutas que dividiam e transformavam rapidamente a Ordem dos Frades Menores. A maior
parte dos documentos desapareceu: aqui est uma indicao sumria dos que vo ser mais freqentemente
citados aqui: 1 Vida de Santa Clara por um autor annimo, A.SS. Aug., t. 11, p. 739-768. Edio de F.
Pennacchi de acordo com o manuscrito 338 de Assis, Assis 1910. - 2 Seu testamento, dado por Wadding,
Annales 1253, n 5 (Cf. Seraficae Legislationis Textus originales, Quaracchi, 1897, p. 273-284), mas que
no parece limpo de alteraes: comparar, por exemplo, o comeo desse testamento com o cap. VI da Regra
das Damianitas, cuja autora a prpria Clara, aprovado por Inocncio IV, aos 9 de agosto de 1253. 3 A bula
de canonizao, dada aos 26 de setembro de 1225, isto , dois anos depois da morte de Clara; bem mais
longa do que costumam ser esses documentos, e conta os principais pontos de sua vida. A. SS. loco cit., p.
749, Potthast 16025, Pennacchi, p. 108 ss. Cf. o texto encontrado e editado pelo Pe. Zeffirino Lazzeri, do
Processo de canonizao, Quaracchi 1920: no o original latino, mas uma traduo umbro-italiana do fim
do sculo XV. 4 Sua correspondncia. Infelizmente no temos mais do que fragmentos: os bolandistas, sem
dizer de onde as tiraram, inseriram quatro de suas cartas nos Acta da B. Ins da Bomia, qual tinham sido
endereadas (A. SS., Martii, t. I, p.506-508). Ver a carta a Ermentrudes em Melissano, Annalium Ordinis
Minorum Supplementa, Turim, 1710; ann. 1257, n 20.
10
Isso muito contestado atualmente. Ver Beaufreton, Sainte Claire dAssise, Paris, 1916, p. 192 e Fortini.
Nova vita di San Francesco. Milo, 1926, p. 229 ss.

202
uma revelao. Parecia que Francisco estava falando para ela, que ele
adivinhava suas tristezas secretas, suas preocupaes mais ntimas, e tudo
que havia de ardor e entusiasmo no corao da jovem precipitou-se como
uma torrente que encontra de repente a sua sada no caminho indicado
por ele. Para os santos, como para os heris, o cordial por excelncia
a admirao da mulher.
Mas aqui, mais do que nunca, preciso renunciar aos julgamentos
do vulgo que no consegue entender nenhuma unio entre o homem e a
mulher em que o instinto sexual no tenha sua parte.
O que constitui a unio dos sexos como algo divino que ela a prefi-
gurao, o smbolo da unio das almas. O amor fsico no mais do que
uma centelha efmera, destinada a iluminar nos coraes a chama de um
amor mais durvel; o trio do templo, ainda no o lugar mais santo;
seu inaprecivel valor justamente o de nos abandonar bruscamente
diante da porta da iconostase, como que nos convidando a nela entrar.
pela unio das almas que suspira misteriosamente a natureza. a
que est o Deus desconhecido ao qual sacrificam os debochados, esses
pagos do amor, e essa marca sagrada, mesmo embaada, mesmo man-
chada por todas as impurezas, faz que o homem de prazer inspire sempre
tanto desgosto quanto o bbado e o criminoso.
Mas ele se encontra nas almas mais frequentemente do que pensa-
mos to puras, to pouco terrestres que entram de uma vez no lugar
muito santo e, uma vez que l esto, o pensamento de uma outra unio
no vai ser apenas uma queda, mas uma impossibilidade.
Foram esses os amores de So Francisco e de Santa Clara.
Mas so excees. Essa suprema pureza tem algo de misterioso; to
elevada que, propondo-a s pessoas, correramos o risco de falar uma
linguagem incompreensvel, ou at pior.
Os bigrafos de So Francisco sentiram perfeitamente o perigo de
apresentar a todos o espetculo de algumas belezas que os ultrapassam
de muito, e a est, para ns, o defeito de suas obras. Eles procuram

203
apresentar-nos no tanto a verdadeira fisionomia de Francisco quanto
a do perfeito ministro geral da Ordem, do jeito quer eles imaginavam,
como ele devia ser para servir de modelo a seus discpulos; e eles tam-
bm fizeram esse modelo um pouco na medida daqueles a quem devia
servir, omitindo aqui e ali muitos traos que, mal interpretados, poderiam
fornecer elementos m vontade de adversrios pouco escrupulosos, ou
sobre os quais no deixariam de se basear discpulos pouco informados
das coisas espirituais, para se permitir frequentaes perigosas.
O relacionamento de So Francisco com as mulheres em geral e
santa Clara em particular, foram completamente enfeitados por Toms
de Celano. Nem podia ser de outra forma, e nem devemos exigir isso
dele. A vida de um fundador de Ordem, quando escrita por religiosos,
torna-se sempre, pela prpria fora das coisas, uma espcie de apndice
ou ilustrao da regra. Ora, esta, principalmente quando a Ordem tem
milhares de membros, foi forosamente feita no para uma elite mas para
a mdia, para o grosso do rebanho 11.
Da vem esse retrato em que So Francisco representado como um
asceta estranho para quem a mulher teria sido uma espcie de diabo
encarnado! Chegam at a nos dizer que ele no conhecia mais do que
duas pelo rosto! So exageros manifestos, ou melhor, o contrrio da
realidade 12.

11
Lendo a Crnica de Frei Salimbene, que representa por volta de 1250 a mdia dos caracteres francisca-
nos, veremos como a Regra teve razo ao multiplicar midas precaues para evitar que os frades tivessem
qualquer relacionamento feminino.
A preocupao de Celano ao apresentar as narrativas da vida de Francisco como a norma das aes dos
frades encontrada ainda mais nos captulos que dizem respeito a santa Clara do que no outros. Ver 2Cel 3
132: Non credatis, charissimi (dixit Franciscus) quod eas perfecte non diligam... Sed exemplum do vobis,
ut quemadmodum ego facio, ita et vos faciatis. Cf. ibid., 134.
12
2Cel 3, 55: Fateor veritatem... nullam me si aspicerem recogniturum in facie nisi duas. Esse captulo
e os dois seguintes do-nos uma espcie de caricatura, onde Francisco representado como se fosse to
pouco seguro de si mesmo que abaixava os olhos com medo de sucumbir tentao. As narrativas sobre
Francisco e Jacoba de Settesoli apresentam um quadro do relacionamento entre os frades e as mulheres na
origem da Ordem bem diferente do que fizeram mais tarde. .
O Espelho de Perfeio, os Milagres de Celano 37-39, Bernardo de Bessa, c. VIII (An. fr., t. III, p. 687)
contam extensamente a vinda de Jacoba Porcincula para assistir os ltimos momentos de So Francisco.
Sobre Jacoba, ver tambm LM 112. Tambm a refeio de Clara na Porcincula, Actus15, Fior. 15 Spec.
Vitae 139 b.; A. SS. Aug. Vita Clar. n 39 ss, ed. Pennacchi, p. 98 ss.

204
Temos mais do que suposies para descobrir a verdadeira atitude do
profeta da mbria nesse caso. Sem perceber, Celano apresenta detalhes
suficientes para corrigir seus erros 13; alm disso, h uma poro de outros
documentos cujas indicaes esparsas se correspondem e concordam de
maneira tanto mais maravilhosa porque no tem nada de intencionado
e nos do, em conjunto, quase tudo que possamos desejar saber sobre o
relacionamento dessas duas belas almas.
Depois das pregaes de Francisco em So Rufino, a deciso de
Clara foi rapidamente tomada: ela deixaria as vulgaridades de uma vida
preguiosa e fcil para prestar servio aos pobres; todos os seus esforos
tenderiam cada dia a fazer um progresso novo no caminho real do amor
e da pobreza, e para isso ela teria que obedecer quele que lhe tivera
mostrado esse caminho de uma s vez.
Ela foi encontr-lo e lhe abriu o corao. Com a exaltao toda feita
de candura e de delicadeza que o belo dom das mulheres, um dom que
elas liberariam mais facilmente se no houvesse vezes sem conta em
que se do conta das dobras do ceticismo e das baixas paixes, Clara se
ofereceu a Francisco.
Um dos privilgios dos santos o de sofrer mais do que as outras
pessoas, porque sentem em seu corao mais amoroso o eco de todas
as dores da terra, mas eles tambm conhecem alegrias e delcias que
uma pessoa comum jamais prova. Que indizvel canto de alegria deve
ter rompido no corao de Francisco quando viu Clara de joelhos a seus
ps, esperando com sua bno a palavra que consagraria sua vida ao
ideal evanglico!
Quem sabe se no foi essa entrevista que inspirou a um outro santo,
Fra Anglico, a apresentao em sua obra prima desses dois eleitos que,
j todo iluminados pela claridade que sai da Jerusalm celeste, beijam-se
antes de passar a sua soleira?

13
Por exemplo o ut soles quas nunquam ut soles, disponis ulterius visitare.1Cel. 117, 2. Cf. 1Cel. 78, a
alegria de So Francisco recebendo das Irms de San Severino a tnica tecida com a l do cordeiro que ele
lhes tinha dado.

205
Como as flores, as almas tm um perfume que nunca engana. Um
olhar tinha bastado para Francisco mergulhar at o fundo desse corao;
ele era bom demais para submeter Clara a provas inteis; era idealista
demais para ser prudente e se submeter aos costumes ou a pretensos bons
procedimentos: como para a fundao dos Frades, ele s pediria o conse-
lho de si mesmo e de Deus. Essa foi a sua fora: se tivesse hesitado, ou
mesmo se fosse simplesmente submisso s regras eclesisticas, ele teria
parado vinte vezes antes de fazer coisa alguma. O acontecimento foi algo
to poderoso que os bigrafos parecem no perceber como Francisco
ignorou as leis cannicas. Ele, simples dicono, arrogou-se o direito de
receber os votos de Clara e de tonsur-la sem nenhum noviciado.
Ele tinha decidido que, na noite do domingo de Ramos para a segunda-
feira santa (18-19 de maro de 1212), Clara sairia escondida do palcio
paterno e, seguida por duas companheiras, viria para a Porcincula, onde
ele a esperaria e a faria tomar o vu.
De fato, ela apareceu l quando os frades cantavam matinas. Dizem
que eles saram com velas nas mos para ir ao encontro da esposa, en-
quanto os bosques vizinhos ecoavam os cnticos de alegria dessas novas
npcias.
Depois, comeou a missa, celebrada nesse mesmo altar em que trs
anos antes Francisco tinha escutado o apelo decisivo de Jesus. Ele estava
ajoelhado no mesmo lugar, mas cercado por toda uma famlia espiritual.
fcil imaginar a emoo de Clara. O que ela acabara de fazer era
simplesmente herico, porque ela sabia a que perseguies da famlia
estava se expondo, e o que ela tinha visto da vida dos Frades Menores
presagiava-lhe muito bem ao que se expunha desposando a pobreza.
No h dvida de que ela interpretou as palavras do ofcio no sentido
de suas preocupaes.
Judica, Domine, nocentes me;
expugna impugnantes me.
Apprehende arma et scutum
et exsurge in adjutorium mihi.

(Sl 31, [35], 1-2, Intrito da Missa da segunda-feira santa.)

206
Dominus Deus aperuit mihi aurem,
Ego autem non contradico;
Retrorsum non abii...
Dominus Deus auxiliator meus,
Ideo non sum confusus.
Ideo posui faciem meam ut petram durissimam,
Et scio quoniam non confundar.
(Comeo da epstola desse mesmo dia) 14.

Depois, Francisco ainda releu as palavras de Jesus a seus discpulos e


ela jurou que a isso conformaria sua vida. Seus cabelos tombaram; tudo
estava consumado.
Pouco depois, Francisco levou-a a uma hora de l, a So Paulo 15,
mosteiro de beneditinas, onde ela devia ficar provisoriamente esperando
os acontecimentos.
Na manh seguinte, seu pai Favorino correu para l com alguns ami-
gos, chorando, suplicando e injuriando todo mundo. Ela no se deixou
dobrar e mostrou tanta coragem que eles acabaram desistindo de lev-la
fora.
Mas as tribulaes no tinham acabado. Ser que a cena no ame-
drontou as beneditinas? No sabemos, mas menos de quinze dias depois
ns a reencontramos em um outro convento de beneditinas, o de Santo
ngelo de Pano, nas encostas do Monte Subsio.

14
Julgai, Senhor, os que me fazem mal! Vencei os que lutam contra mim!
Tomai vossas armas e vosso escudo e vinde me ajudar.
O Senhor Deus abriu o meu ouvido, e eu no resisti.
No lhe dei as costas, o Senhor Deus meu socorro e no fiquei confundido.
Tornei meu rosto uma pedra durssima, porque serei que no serei confundido.
15
So Paulo margem do Chiascio, perto de Bastia. Francisco fez por Santa Clara o que fazia por seus
frades. Depois que ela fez seus votos, ele a estabeleceu: indicou-lhe o lugar onde devia fazer penitncia,
no por seus pecados mas levando a vida de uma convertida e seguindo a Regra (Ver Reg. de 1221, 12 mais
adiante, na pg. 201 n. 3). Colocou-a em uma casa religiosa, como costumava fazer com seus frades, para
a prestar servio. Depois em outra, sem maior proveito. Esses fatos mostram os cuidados, as dificuldades
sem fim que a entrada das mulheres na Ordem trouxeram para So Francisco. A superviso e o cuidado da
alma dessas novas recrutas ultrapassaram suas foras. Quando o cardeal Hugolino se ofereceu, por volta de
1218, a cuidar delas, ele no pde deixar de aceitar, mesmo percebendo que esse ramo de sua famlia seria
levado a adotar a regra beneditina.

207
Oito dias depois da Pscoa, Ins, sua irm mais nova, foi se juntar
a ela, decidida tambm ela a servir pobreza. Francisco tonsurou-a.
O furor de seu pai foi horrvel, dessa vez. Com um bando de parentes,
invadiu o mosteiro; mas nem as injrias nem as pancadas conseguiram
coisa alguma com essa menina de quatorze anos. Apesar de seus gritos,
eles a arrastaram. Ela desmaiou, e seu pequeno corpo inanimado pareceu-
lhes to abandonado que a deixaram no meio do campo, enquanto os
lavradores olhavam com grande piedade essa triste cena, e Clara, cujo
grito diante de Deus tinha sido ouvido, correu para socorrer sua irm.
Sua permanncia nesse mosteiro foi muito curta. Parace que no lhes
deixou uma boa recordao. Francisco sabia que vrias outras moas de-
sejavam ardentemente unir-se a suas duas amigas; por isso tinha tratado
de encontrar um retiro em que elas pudessem viver sob a sua direo e
praticar a regra evanglica com toda a liberdade.
A procura no foi demorada: desta vez, todas as portas se abriam
para ele. No sabemos os passos que ele teve que dar, mas sabemos o
resultado: recebeu So Damio. Foi nesse eremitrio to bem preparado
para a orao e o recolhimento que Francisco instalou suas filhas espi-
rituais16. Foi nesse santurio reparado por suas prprias mos, ao p do
crucifixo que tinha falado com ele, que Clara foi orar da em diante. Era
a casa de Deus; tambm era bastante a casa de Francisco. Atravessando
sua soleira, Clara deve ter tido esse sentimento to doce e to cruciante
da mulher que entra pela primeira vez em sua morada conjugal, e treme
de emoo pensando no futuro radioso e confuso.
Para compreendermos esses primeiros tempos, precisamos lembrar
com que rapidez as influncias de fora transformaram a idia inicial de
So Francisco.
Nesse momento, ele no estava pensando em fundar uma segunda
ordem, pois nem tinha pensado em fundar uma primeira. Arrebatando
Clara de seus pais ele tinha simplesmente agido como um verdadeiro
cavaleiro que liberta uma mulher oprimida e a toma sob sua proteo.

16
1Cel 18; 21; LTC 44; 2Cel 1, 8.

208
Instalando-a em So Damio, preparou um refgio para as que qui-
sessem imit-la e pr em prtica, fora do mundo, a regra evanglica.
Ele no tinha nenhuma dvida de que essa perfeio de que ele e seus
discpulos eram apstolos, que Clara e suas companheiras haveriam de
realizar no celibato, podia ser posta em prtica tambm em todas as posi-
es sociais; da veio o que erradamente foi chamado de Ordem Terceira,
ou a terceira ordem, e que, em seu pensamento primitivo, no estava
separada da primeira. Essa Terceira Ordem no precisou ser instituda
em 1221, porque existiu desde o momento em que uma s conscincia
quis pr em prtica os seus ensinamentos, mesmo sem poder ir com ele
para a Porcincula17. O inimigo das almas, para ele como para Jesus,
a avareza entendida em seu sentido mais amplo, isto , essa cegueira
que leva o homem a consagrar seu corao a preocupaes materiais,
faz dele o escravo de algumas moedas de ouro ou de alguns alqueires
de terra, torna-o insensvel s belezas da natureza e o priva das alegrias
infinitas que so saboreadas s pelos discpulos da pobreza e do amor.
Quem quer que estivesse interiormente livre de qualquer servido
material, quem quer que estivesse decidido a viver sem entesourar, todo
rico que quisesse trabalhar com as prprias mos e distribuir lealmente
tudo que no tivesse consumido, para constituir assim o capital comum
que So Francisco chamava de a mesa do Senhor, todo pobre que quisesse
trabalhar, disposto a recorrer na medida estrita de suas necessidades a
essa mesa do Senhor, eram ento verdadeiros Franciscanos.
Era uma completa revoluo social.
Por isso, no havia nem uma nem diversas ordens 18: o evangelho das
bem-aventuranas tinha sido redescoberto e, como doze sculos antes,

17
An. Perus., A. SS., p. 600. Cf. LTC 60. As trs ordens so contemporneas, como foi muito bem es-
clarecido por 1Cel 36, 37. Cf. Ceperano, A-SS., p. 593. Deveramos at falar em quatro, abrangendo a que
nasceu entre os padres seculares. Ver adiante.
Em uma carta, Santa Clara fala de sua Ordem como se fosse uma s com a dos frades: Sequaris consilia
Reverendi Patris nostri fratris Eliae Ministri generalis totius ordinis. A. SS., Martii, t. I, p. 507.
18
Esse ponto de vista posto em relevo por um trecho do De laudibus de Bernardo de Bessa, An. fr. t.
III, p. 686 s. Eis como ele termina o captulo VII sobre as trs ordens: Nec Sanctus his contentus ordinibus
satagebat omnium generi salutis et penitentiae viam dare. Unde parochiali cuidam sacerdoti dicenti sibi
quod vellet suus, retenta tamen ecclesia, Frater esse, dato vivendi et induendi modo, dicitur indixisse ut
annuatim, collectis Ecclesite fructibus daret pro Deo, quod de praeteritis superesset.

209
aplicado a todas as situaes.
Ora! A Igreja personificada pelo cardeal Hugolino devia, se no fazer
abortar o movimento franciscano, pelo menos enrol-lo de tal forma que
poucos anos mais tarde ele teria perdido quase todos os seus caracteres
originais.
Como vimos, a palavra pobreza s expressa imperfeitamente o ponto
de vista de Francisco, pois contm uma idia de renncia, de abstinncia,
quando em seu pensamento um voto de liberdade. A propriedade a
gaiola de ouro a que os pobres passarinhos esto s vezes to acostumados
que nem sonham em escapar para voar em pleno azul 19.
So Damio foi, no comeo, o extremo oposto do que hoje um
mosteiro de Clarissas da estrita observncia; ele ainda hoje mais ou
menos o que Francisco viveu. Precisamos ser gratos aos Frades Menores
por terem conservado intacto esse venervel e delicoso eremitrio e por
no o terem ornado com embelezamentos estpidos. Esse cantinho da
terra umbra ser, para nossos descendentes, como o poo de Jac em
que Jesus se sentou por um instante, um dos adros preferidos do culto
em esprito e verdade.
Quando instalou Clara nesse lugar, Francisco entregou-lhe a regra
que tinha preparado para ela 20, sem dvida alguma era semelhante dos
irmos, a no ser pelos preceitos relativos vida missionria. Com ela,
comprometeu-se 21, por si e por seus frades, a sustentar pelo trabalho
ou pela esmola todas as necessidades de Clara e de suas futuras com-
panheiras. Como compensao elas tambm deviam trabalhar e prestar
aos frades todos os servios que pudessem. Vimos o zelo de Francisco

19
Ver a bela narrativa dos Actus 13; Fior 13; Conform. 168 b 1.
20
O texto foi seguramente inserido no captulo VI da Regra outorgada s Clarissas de So Damio no dia
9 de agosto de 1253, pela bula Solet annuere. Potthast 15086. Mas esse captulo foi completamente alterado
em muitas edies. preciso ler o texto do Speculum, Morin, Rouen 1509. Tract. III, 226 b. Cf. Seraph.
Legisl. Textus orig., p. 49-75. O estudo crtico que se deve fazer sobre esse texto comparando-o com as
indicaes dadas pela bula Angelis gaudium de 11 de maio de 1238, Sbaralea I, p. 242, muito longo para o
colocarmos aqui. Ver Pe. Livarius Oliger OFM. De origine Regularum ordinis S. Clarae, Quaracchi, 1912.
21
2Cel 3, 132. Cf. Test. S .Clarae, Seraph. Legisl. Textus orig., p. 275. Reg. S. Clarae, VI, 2. Seraph.
Legisl. Textus orig., p. 62.

210
para que todas as igrejas fossem dignas do culto que nelas se celebrava;
ele no podia suportar que os panos sagrados no fossem bem limpos.
Clara ps-se a fiar para confeccionar toalhas de altar e corporais, que os
frades se encarregavam de distribuir pelas igrejas pobres da regio 22.
Em fim, durante os primeiros anos ela cuidou tambm dos doentes que
Francisco lhe enviava, e So Damio foi, por algum tempo, uma espcie
de hospital 23.
Um ou dois frades, que se chamavam zeladores das Senhoras Pobres,
foram especialmente encarregados do cuidado das Irms, e construram
cabanas ao lado da capela, conforme o modelo das que havia na Por-
cincula 24. O prprio Francisco ficava bem perto; uma espcie de terrao
de quatro passos de comprido domina o eremitrio. Clara arrumou ali
um jardinzinho e quando, no crepsculo, vinha regar as flores, via, a
no mais de meia lgua, a Porcincula aureolada pelo fogo do poente.
Durante vrios anos, o relacionamento entre as duas casas foi cont-
nuo, cheio de encanto e liberdade. Os companheiros de Francisco que
recebiam irmos tambm recebiam irms, e s vezes voltavam de suas
sadas missionrias com uma nefita para So Damio 25.

22
In illa gravi infirmitate... faciebat se erigi... et sedens filabat, A. SS., 760 ed. Pennacchi, p.39. Sic vult
eas [sorores] operare manibus suas. Ib 762 a; Pcnnacchi, p. 49.
23 Cf. Jacques de Vitry: Mulieres vero juxta civitates in diversis hospiciis simul commorantur, nichil
accipiunt, sed de labore manuum vivunt, Zeitschr. f. Kircheng, t. XIV, p.104. Coll., t. I, Appendice, p.
300. - Actus 43. Fior. 33. Chron. XXIV Gn. An. fr. t. III, p. 183 e 275.
24
Cf. Erant enim ibi Fratres prope monasterium Dominarum pauperum commorantes, et juxta consuetu-
dinem divina illis ministrantes. Vita Sancti Antonii, Mon. Portugaliae Script., t. I, p. 121, ed. Pe. Hilaire, p.
27, ed. Lon de Kerval, Coll, t. V, p. 55.
25
Ver a Regra de 1221, cap. XII. Et nulla penitus mulier ab aliquo fratre recipiatur ad obedientiam, sed
dato sibi consilio spirituali, ubi voluerit agat paenitentiam. Cf. adiante p. 343 n 1, o resto desse captulo e
a indicao das fontes. Isso prova 1o que os frades tinham recebido mulheres na Ordem; 2o que no comeo
diziam Ordem no singular e que sob esse nome se compreendia tanto as irms quanto os frades. Podemos ver
como, mesmo no fim de 1221, a situao estava longe de ser o que foi poucos anos depois. Toms de Celano
(2Cel 3, 49) falando da converso de Frei Pacfico mostra So Francisco visitando as Clarissas: Occurrunt sibi
invicem, divina providentia b. Franciscus, et ipse ad quoddam monasterium pauperum inclusarum, venerat
illuc beatus pater ad filias cum sociis suis; venerat ille ad quamdam suam consanguineam cum sodalibus
multis. Cf. LM que coloca essa cena em So Severino.
V. tambm 3Cel Mil. n 181: cura de Praxedes, que So Francisco tinha admitido obedincia e a quem
tinha dado a tnica e a corda.
Devemos notar que em todas as seitas reformadoras do comeo do sculo XIII os dois sexos estavam
estreitamente unidos. Ver Burchardi chronicon, Pertz, t. 23, p. 376. Cf. Potthast 2611, bulas Cum olim de 25
de novembro de 1205; 4504 Dilectus filius, de 26 de maro de 1212; 4567 Ne quis de 23 de julho de 1212.

211
Mas essa situao no podia continuar. A intimidade de Francisco e
Clara, a familiaridade dos primeiros frades e das primeiras irms no
podia servir de modelo para as relaes das duas Ordens quando cada
uma delas passou a ter centenas de membros.
O prprio Francisco depressa se deu conta disso, mas no tanto quanto
sua amiga. Ela sobreviveu quase 27 anos e teve tempo de ver entre os fra-
des o naufrgio do ideal franciscano, to bem quanto na quase totalidade
das casas que tinham seguido inicialmente a Regra de So Damio. Em
fora da situao, ela foi levada a regulamentar seu mosteiro, mas lutou
at o seu leito de morte para defender as verdadeiras idias franciscanas,
com um herosmo, com uma audcia ao mesmo tempo violenta e santa,
que a colocam na primeira fila das testemunhas da conscincia.
No esse um dos mais belos quadros da histria religiosa: uma
mulher que, durante um quarto de sculo, sustenta contra os papas que
se sucedem no trono pontifcio uma luta de todos os instantes; que con-
tinua igualmente respeitosa e inabalvel, e no se permite morrer antes
de ter vencido 26?

Tambm os dominicanos tinham, no comeo, em Prouille, frades e irms, Bula de 8 de outubro de 1215.
Assim tambm os frades de So Marcos. Ver sua regra aprovada por Inocncio III e depois por Honrio
III aos 19 de outubro de 1219.
No dia 7 de junho de 1201 (bula Incumbit nobis), Inocncio III tinha aprovado a regra dos Humilhados.
Era uma associao religiosa cujos membros continuavam a viver em suas casas e que apresenta surpreen-
dentes pontos de contato com a Ordem dos Franciscanos, mas eles no faziam voto de pobreza. Do meio
deles tinha sado uma associao mais restrita que fundou conventos onde se trabalhava com l; ora, esses
conventos recebiam homens e mulheres: Ver Jacques de Vitry, Hist. Occidentalis cap. XXVIII, De religione
et regula Humiliatorum (ed. Douai 1597, p. 334-337). Chegou a hora em que dessas duas ordens saiu uma
terceira, composta unicamente por padres. Esses Humiliati so muito pouco conhecidos, apesar de terem
um historiador cuja obra um dos mais belos trabalhos do sculo XVIII: Tiraboschi, Vetera Humiliatorum
monumenta (Milo, 3 vol., in-4, 1766-1768). Por volta de 1200, eles tinham dominado larte della lana em
toda a alta Itlia at Florena; por isso evidente que o pai de Francisco deve ter tido relacionamentos com
eles. Ver o artigo, alis bastante incompleto, do Dict. des Ordres religienx Helyot-Migne, t. II, col. 477-491.
26
A bula aprovando a Regra de So Damio do dia 9 de agosto de 1253. Clara morreu dois dias depois.
As religiosas que moram hoje em Assis na igreja construda sobre o tmulo da Santa e no convento vizinho
so urbanistas. Conforme me asseguraram, na mbria s sobrou um mosteiro fiel Regra de Santa Clara,
o de Santa Lcia em Foligno.

212
Contar sua vida contar essa luta cujas peripcias podem ser en-
contradas na maior parte nos documentos da cria romana. Pedindo a
aprovao da Igreja, Francisco tinha evitado muitos perigos para o seu
instituto, mas adquiriu tutores pouco dispostos a transigir sobre seus di-
reitos: o cardeal Hugolino em particular, o futuro Gregrio IX, teve um
papel bem difcil de entender. Ns o vemos continuamente ocupado em
prodigalizar a Francisco e Clara testemunhos de amizade e de admirao
que parecem absolutamente sinceros; mas ningum foi pior adversrio do
que ele do ideal franciscano visto como a vida de amor qual se chega
libertando-se de todas as servides materiais.
No ms de maio de, Gregrio IX foi a Assis para a preparao da ca-
nonizao de So Francisco. Antes de entrar na cidade, fez um pequeno
desvio para ir a So Damio ver Clara, que ele conhecia havia tempo, e a
quem tinham dirigido cartas ardentes de admirao e de paterno afeto 27.
Como compreender, ento, que bem na vspera da canonizao (16
de julho de 1228), o pontfice tenha tido a idia de lev-la a ser infiel a
seu voto de pobreza.
Ele disse que a dificuldade dos tempos tornava impossvel a vida de
mulheres que nada possuam, e lhe ofereceu propriedades. Como Clara
olhou-o espantada por to estranha proposta, ele disse: Se o teu voto
que te impede, ns te livraremos dele.
- Santo Padre, respondeu ento a Franciscana, absolvei-me de meus
pecados, mas no tenho nenhum desejo de ser dispensada de seguir o
Cristo 28.
Bela e santa palavra, grito natural de independncia em que a cons-
cincia proclama corajosamente sua autonomia, e onde se retrata inteira
a filha espiritual do Poverello.

27
1Cel 122. Cf. Potthast 8194 ss. Cf. ibid, 709.
28
A.SS. Vita Clarae., p. 758, Pennacchi, p. 22, Cf. Bula de canonizao.

213
Por uma dessas intuies que tm muitas vezes as mulheres muito
entusiasmadas e muito puras, ela tinha penetrado at o fundo do corao
de Francisco, e se sentia abrasada pela mesma paixo que ele; foi fiel a
ele at o fim. Vemos que isso no foi fcil.
No aqui o lugar de pesquisar se Gregrio IX tinha razo de querer
que uma comunidade religiosa fosse proprietria; ele tinha o direito de
ter o seu pensamento a esse respeito; mas h algo de chocante, para
no dizer mais, em v-lo colocar Francisco sobre o altar justamente no
momento em que trai suas idias mais queridas e tenta fazer com que os
que tinham ficado mais fiis a ele tambm as traiam.
Ser que Clara e Francisco tinham previsto as dificuldades que encon-
trariam? Podemos crer que sim, porque j sob o pontificado de Inocncio
III ela tinha pedido o privilgio da Pobreza. O papa ficou to espantado
com esse pedido que quis escrever de prprio punho a minuta desse breve
que ningum tinham solicitado jamais em Roma 29.
Sob o seu sucessor, Honrio III, a personagem mais importante da
cria foi justamente o cardeal Hugolino. Quase setuagenrio em 1216,
ele j se impunha por seu aspecto exterior; tinha essa beleza singular dos
velhos que escaparam do desgaste da vida: piedoso, esclarecido. Enr-
gico, sentia se feito para as grandes necessidades. Algo nele faz lembrar
o cardeal Lavigerie, esses prelados que tm sob a veste roxa mais um
soldado ou um dspota do que um padre 30.
O movimento franciscano era atacado de diversos lados, com violncia
; ele se ps a defend-lo, e muito antes de lhe ser confiado oficialmente
31

o cargo de protetor da Ordem, ele o exerceu com um zelo devorador 32.

29
Vita S. Clarae. A.SS., p. 758; Pennacchi, p. 22. - Ver Paul Sabatier, Le Privilge de la trs haute Pauvret
accord sainte Claire dAssise par Innocent III, sua autenticidade, sua histria 1215-1253. Paris, Revue
dhistoire franciscaine, 1924. Santa Clara alude a esse privilgio em seu Testamento, A.SS. p. 747 Seraph.
Legisl. Textus orig., p. 277.
30
Tinha nascido por volta de 1147, criado cardeal em 1198. Ver Raynald, ann.1217, 88, o elogio que lhe
fez Honrio III, Forma decorus et venustus aspectu... zelator fidei, disciplina virtutis,... castitatis amator et
totius sanctitatis exemplar: Muratori, Scriptores rer. Ital. III, I, 575, Wadding I, p. 268 s.
31
1Cel 74.
32
A bula Litterae tuae de 27 de agosto de 1218 mostra-o j ocupado em favorecer as clarissas. Sbaralea
I, p. 1., ver LTC 61. Offero me ipsum, dixit Hugolinus, vobis, auxilium et consilium. atque protectionem
paratus impendere.

214
Teve por Francisco e Clara uma admirao sem limites, que manifestou
muitas vezes de forma tocante. Se fosse um simples homem, teria podido
am-los e segui-los. Ser que pode ter pensado nisso? 33 Mas ele era um
prncipe da Igreja: no podia sonhar com o que faria se fosse chamado
a dirigir a barca de So Pedro.
Agiu conseqentemente: teria havido clculo por sua parte, ou teria
sido simplesmente um desses estados de conscincia em que o homem,
preocupado com o fim que deve atingir no discute absolutamente sobre
os caminhos e os meios? No sei; mas ns o vemos, desde a morte de
Inocncio III, sob o pretexto de defender as clarissas, tomar em suas mos
a direo delas, dar-lhes uma regra e substituir as idias de Francisco
pelas suas 34.
No privilgio que ele deu como legado no dia 27 de julho de 1219
em favor de Monticelli, nem Clara nem Francisco so nomeados, e as
damianitas tornam-se uma espcie de congregao das beneditinas 35.
Veremos mais adiante como Francisco ficou aborrecido com Frei Fili-
pe, encarregado das Senhoras Pobres, que tinha aceitado esse privilgio
em sua ausncia. Sua atitude foi to firme que os outros documentos do
mesmo tipo, outorgados por Hugolino na mesma poca, s foram visados
pelo papa trs anos mais tarde.
O ardor do cardeal para aproveitar o entusiasmo que excitavam por
toda parte as idias franciscanas foi to grande que encontramos, nos
registros de sua legao de 1221, uma espcie de frmula preparada para
quem quisesse fundar conventos de acordo com as das Irms de So
Damio; mas nem a encontramos os nomes de Francisco ou Clara 36.

33
Nas Conformidades 107 a 2, h uma curiosa narrativa que mostra Hugolino indo aos Crceri para en-
contrar Francisco e perguntar se devia entrar na Ordem. Cf. Spec. Vitae 217.
34
Conseguiu-o to bem que o prprio Toms de Celano parece esquecer que em tudo, pelo menos em So
Damio, as clarissas seguiam a regra dada por So Francisco: Ipsorum vita mirifica et institutio gloriosa a
domino Papa Gregorio, tunc Hostiensi episcopo. 1Cel 20. Cf. Honorii Opera, ed. Horoy, t. III, col. 363; t.
IV, col. 218; Potthast 6179 et 6879 ss.
35
Esse privilgio est inserido na bula Sacrossancta de 9 de dezembro de 1219. Honorii opera, t. III.
col. 363 ss.
36
G. Levi, Registri dei Cardinali, n 125. Ver Intr., p. XCI. Cf. Campi, Hist. eccl. di Piacenza, 11, 390.

215
Entretanto, esse velho tinha pela jovem abadessa uma verdadeira
paixo mstica; escrevia-lhe e se desolava por estar longe dela, em frases
que so gritos de amor, de respeito e de admirao 37.
que havia pelo menos dois homens em Hugolino: o cristo, que se
sentia subjugado diante de Clara e de Francisco; e o prelado, um homem
para quem a glria da Igreja s vezes fazia esquecer a glria de Deus.
Francisco, mesmo resistindo a ele quase sempre, parece ter guardado
sentimentos de profunda gratido para com ele. Clara, pelo contrrio, teve
que lutar muito tempo para conservar iluses sobre atitude de seu protetor.
A partir de 1230, no sabemos de nenhum relacionamento entre eles.
Todos os esforos do papa para mitigar o voto de pobreza de Clara
tinham sido vos. Muitas outras religiosas quiseram praticar estritamente
a Regra de So Francisco, entre outras a filha do rei da Bomia, Ottokar
I, que mantinha um relacionamento seguido com Clara. Mas Gregrio
IX, a quem ela se havia dirigido, foi inflexvel. Mesmo cumulando-a de
elogios, imps que seguisse a regra que ele lhe enviava, isto , a que ele
tinha composto quando era cardeal. A do Poverello tinha passado para
o rol das utopias 38.
Apesar disso, ele jamais conseguiu levar Santa Clara a se submeter
completamente. Um dia, ela at se revoltou contra suas ordens e foi o
papa que teve que ceder: ele tinha querido estabelecer uma separao
maior do que no passado entre os frades e as irms; certa familiaridade
tinha continuado muito tempo depois da morte de Francisco entre So
Damio e a Porcincula; Clara gostava muito dessa relao de vizinhana,
e muitas vezes pedia que um frade viesse pregar. O papa achava isso mau

37
Ver por exemplo a carta dada por Wadding: Annales 11, p. 16 (ed. Roma, 1732). Tanta me amaritudo
cordis, abundantia lacrymarum et immanitas doloris invasit, quod nisi ad pedes Jesu, consolationem solitae
pietatis invenirem, spiritus meus forte deficeret et penitus anima liquefieret. O texto de Wadding deve ser
corrigido pelo manuscrito de Riccardi 279, fo 80 a e b. Cf. Marcos de Lisboa, t. I, p. 185; Sbaralea I, p. 37.
Chron. XXIV Gen. An. fr., t. III, p. 183. preciso comparar com essa carta a bula de 12 de agosto de 1227
Potthast 8007 dirigida s clarissas de Sena.
38
Bula Angelis gaudium de 11 de maio de 1238; encontra-se em Sbaralea I, p. 242. Cf. Palacky, Literarische
Reise nach Italien, Praga, 1838, in-4, n 147. - Potthast 10596. Cf.11175.

216
e proibiu sob severas penas que os religiosos da Porcincula fossem a
So Damio sem uma permisso expressa da Santa S.
Dessa vez, Clara se desgostou. Foi ao encontro de alguns frades encar-
regados de seu mosteiro e, agradecendo os seus servios, disse: Podeis
ir embora, porque se nos privam dos que nos davam o po espiritual,
tambm no queremos mais os que nos buscam o po material.
Aquele que escrevia que reis e prncipes deviam inclinar a cabea
diante dos padres teve que se inclinar diante dessa mulher e retirar suas
proibies 39.
So Damio tinha ressoado tantas vezes com os cantos de amor e de
liberdade de So Francisco que no podia se esquecer dele to depressa e
se tornar um convento comum. Clara continuou cercada pelos primeiros
companheiros do mestre: Egdio, Leo, ngelo, Junpero no deixaram
de ser seus hspedes assduos. L, esses verdadeiros amantes da pobreza
sentiam-se em casa e tomavam liberdades que em outros lugares seriam
supressas. Um dia um frade ingls, telogo famoso, foi pregar em So
Damio por ordem do ministro. De repente, Egdio, que era um simples
irmo leigo, interrompeu-o: Vamos, irmo, deixa-me falar. E o mestre
de teologia, inclinando a cabea colocou o capuz em sinal de obedincia
e se sentou para escutar Egdio.
Clara ficou muito contente com isso; pareceu-lhe estar revivendo os
tempos de So Francisco 40. O pequeno cenculo continuou at a sua
morte: ela expirou nos braos de Leo, ngelo e Junpero. No meio dos
sofrimentos e das vises da agonia, ela teve essa alegria suprema de estar
cercada pelos que tinham consagrado a vida ao mesmo ideal que ela 41.

Em seu testamento, sua vida aparece como ns a vimos, um combate


constante para defender o ideal franciscano. Percebemos como tinha sido
corajosa e arrojada aquela que habitualmente representada como frgil,

39
A.SS. Vit. Clarae, p. 762, Pennacchi, p. 52. Cf. Conform. 84 b 2.
40
A.SS., Aprilis, t. III, p. 239 a; Conform. 54 a 1; 177 a 2. Chron. XXIV Gen. An. fr., t. III, p. 81.
41
A.SS., Vit. Clarae, p. 764 d., Pennacchi, p. 61 ss.

217
emaciada, na annima como uma flor de claustro 42.
Ela no tinha apenas defendido Francisco contra os outros, defen-
dero contra ele mesmo. Nessas horas sombrias de desencorajamento,
que perturbam s vezes to profundamente as mais belas almas e este-
rilizam os maiores esforos, ela ficou ao lado dele para olhe mostrar o
caminho. Quando ele duvidou de sua misso e pensou em voar para as
alturas onde se ora sozinho e onde se repousa, foi ela que lhe mostrou
a messe amadurecendo sem que houvesse trabalhadores para colh-la,
os povos que se perdiam sem pastor que os conduzisse, e o lanou de
novo no seguimento do Galileu, no cortejo dos que doam sua vida para
o resgate de muitos. 43.
Entretanto, esse amor de que Francisco se sentia cercado em So
Damio s vezes o assustava. Ele temia que sua morte criasse um grande
vazio; pusesse em perigo a prpria instituio; por isso tomava o cuidado
de recordar a suas amigas que no estaria sempre com elas. Um dia em
que ele devia pregar l, em vez de subir ao plpito, mandou trazer cin-
za e, depois de t-la espalhado ao seu redor e em sua cabea, entoou o
Miserere, lembrando-as assim que ele no era mais do que p e voltaria
em breve ao p 44.
Mas habitualmente era em So Damio que So Francisco era mais
ele mesmo; foi sombra de suas oliveiras, onde Clara cuidava dele,
que comps a mais bela de suas obras, aquela em que Ernesto Renan
saudou a mais completa expresso do sentimento religioso moderno, o
Cntico do sol.

42 A bula de canonizao no fala dos sarracenos que ela teria posto em fuga. Sua vida nos A.SS. conta o
fato, mas no-la apresenta apenas em orao diante do Santssimo Sacramento. Cf. Conform. 84 b s. Marcos
de Lisboa, t. I, 2a parte, p. 179-181. Nenhuma dessas narrativas fala de Clara indo para diante deles com
um ostensrio ou uma custdia.
43
LM 173; Actus 16; Fior.16; Conform. 84 b 2; 110 b 1; 49 a 1. preciso comparar com Spec. Vitae 220
b: Frater Leo narravit quod Sanctus Franciscus surgens orare (sic) venit ad fratres suos dicens: Ite ad
saeculum et dimittatis habitum. licentio vos.
44
2Cel 3, 134.

218
10

PRIMEIRAS TENTATIVAS
ENTRE OS INFIIS
(Outono de 1212 vero de 1215).

219
X

In omnem terram exivit sonus eorum


et in fines orbis terrae verba eorum 1.
Cantate Domino canticum novum,
cantate Domino omnis terra,
Cantate Domino, et benedicite nomini ejus
annuntiate de die in diem salutare ejus,
Annuntiate inter gentes gloriam ejus,
in omnibus populis mirabilia ejus 2.
Et accedens Jesus locutus est eis dicens: Data est mihi omnis potestas in caelo
et in terra. Euntes ergo, docete omnes gentes, baptizantes eos in nomine
Patris, et Filii, et Spiritus sancti; docentes eos servare omnia quaecumque
mandavi vobis. Et ecce ego vobiscum sum omnibus diebus, usque ad con-
summationem saeculi 3.
Adducam eos in montem sanctum meum et laetificabo eos in domo orationis
meae; holocausta eorum et victimae eorum placebunt mihi super altari meo,
quia domus mea domus orationis vocabitur cunctis populis 4.
Ergo jam non estis hospites et advenae; sed estis cives sanctorum et domestici
Dei; superaedificati super fundamentum apostolorum et prophetarum, ipso
summo angulari lapide, Christo Jesu, in quo omnis aedificatio constructa
crescit in templum sanctum in Domino; in quo et vos coaedificamini in
habitaculum Dei in Spiritu 5.
Et ego [dicit Christus] si exaltatus fuero a terra, omnia traham ad meipsum 6.

1
Sl 18, 5.
2
Sl 95, 1-3.
3
Mt 28, 18-20.
4
Is 56,7.
5
Ef 2, 19-22.
6
Jo 12, 32.

220
X

Sua fama saiu por toda a terra


Chegaram suas palavras aos confins do mundo 7.
Cantai ao Senhor um canto novo,
Cantai ao Senhor, terra inteira .
Cantai ao Senhor, e bendizei seu nome,
Anunciai todos os dias sua salvao;
Anunciai sua glria entre as naes
Suas maravilhas em todos os povos 8.
Aproximando-se, disse-lhe Jesus: todo poder me foi dado no cu e na terra. Ide,
portanto, e fazei discpulas minhas todas as naes, batizando-as em nome
do Pai, do Filho e do Esprito Santo, ensinando-as as observar tudo que
vos mandei. E eis que estarei convosco todos os dias at o fim do mundo 9.
Eu os levarei para minha montanha santa e os alegrarei em minha casa de
orao; seus holocaustos e vtimas sero agradveis para mim quando imo-
larem sobre meu altar, porque minha casa ser chamada a casa de orao
de todos os povos 10.
Por isso j no sois hspedes e peregrinos, sois concidados dos santos e
membros da famlia de Deus; construdos em cima do fundamento dos
apstolos e dos profetas, em que o prprio Jesus a pedra angular, em que
toda edificao construda cresce como um templo santo para o Senhor;
nele que tambm vs sois edificados para ser tenda do Senhor no esprito 11.
E eu [diz Jesus] quando for elevado da terra, atrairei tudo a mim 12.

7
Sl 18, 5.
8
Sl 95 (96), 1-3.
9
Mt 28, 18-20.
10
Is 56, 7.
11 Ef 2, 19-22.
12
Jo 12,32.

221
Os primeiros frades menores devem ter tido muita necessidade dos
encorajamentos e dos exemplos de Francisco para terem, bem cedo,
estabelecido com ele pocas determinadas em que estariam seguros de
encontr-lo na Porcincula 13. Mas parece provvel que essas reunies
no se tornaram verdadeiros captulos gerais a no ser por volta de 1213.
No comeo eram dois por ano, um em Pentecostes e outro em So Miguel
(29 de setembro). Os de Pentecostes foram os mais importantes: todos
os frades vinham se retemperar na companhia de Francisco e renovar
em seus coraes, com conselhos e orientaes, os ardores generosos e
as grandes esperanas.
Os membros da jovem associao punham tudo em comum, suas
alegrias e suas penas; suas incertezas e os resultados de suas experin-
cias. Cuidavam especialmente da Regra, das mudanas que nela deviam
fazer, e principalmente de como poder observ-la cada vez melhor 14;
depois de um acordo comum, dispunham a diviso dos frades entre as
diversas provncias.
Uma das recomendaes mais frequentes de Francisco era sobre o
respeito que deviam ter pelo clero; suplicava aos discpulos que tivessem
uma deferncia toda especial pelos padres, que jamais os encontrassem
sem beijar duas mos.

13
Segundo Frei Joo, companheiro de Frei Egdio, repetindo as recordaes de Egdio, o primeiro captulo
teria sido aquele em que Francisco fez suas recomendaes aos ete primeiros frades. Ver Livarius Oliger.
OFM, Lber exemplorum (Antonianum An II, 1927, fasc. 12), n 10.
14
LTC 57; Cf. An. Perus., A. SS., p. 599.

222
Percebia muito bem que os frades, tendo renunciado a tudo, estavam
expostos a ser injustos ou severos com os ricos e os poderosos da terra:
tambm procurava adverti-los contra essa tendncia, concluindo muitas
vezes suas exortaes com estas belas palavras: H pessoas que hoje
nos parecem membros do diabo mas que um dia sero os discpulos de
Cristo 15.
Nossa vida diante do mundo, dizia, deve ser tal que, ao nos ouvirem
ou nos verem, cada um seja levado a louvar o Pai do cu. Vs anunciais
a paz, tende-a em vossos coraes. No sejais para ningum uma ocasio
de clera ou escndalo mas que, por vossa doura, sejam todos levados
paz, concrdia e a fazer o bem.
Era principalmente quando se tratava de reanimar seus discpulos, de
assegur-los contra as tentaes e delas livr-los que Francisco conseguia
seus melhores triunfos. Por mais perturbada que estivesse uma alma, sua
palavra devolvia-lhe a serenidade. E tinha o mesmo ardor para acalmar as
tristezas e era ainda mais fogoso e terrvel para reprimir as falhas. Mas,
nesses tempos do primeiro fervor, tinha poucas ocasies de mostrar sua
severidade; era mais frequente ter que repreender docemente os frades
cuja piedade exagerava nas maceraes e penitncias.
Quando terminava tudo e cada um tinha tido sua parte nesse banquete
de amor, Francisco os abenoava e os dispersava por toda parte como
peregrinos e forasteiros. No tinham nada, mas j acreditavam que po-
diam ver os sinais de uma nova recriao.

15
Comp. Reineri Annales, Pertz SS. 16, p. 654. 1198. Hoc anno in Francia novus propheta surrexit, ma-
gister Fulco, vir sanctissimus et vita et merito. Huius studium erat, errores hominum per sancte predicationis
doctrinam ad viam salutis convertere, cecos illuminare, mutis loquelam reddere, infirmos sanare, multa
et inaudita nostris temporibus miracula facere. Ipse mulieres multas officio meretricali deditas ab errore
revocavit, quibusdam maritos legitime prebuit, quibusdam ut caste et religiose viverent precepit. Huius fama
et predicatio sanctissima per universas provincias est divulgata. Ipse turbam pauperum innumerabilem ad
vindicandam iniuriam crucifixi in orientali ecclesia praedicatione sua accendit et eis signum crucis impo-
suit: divites vero indignos esse tali beneficio iudicavit. Quantas analogias e contrastes com So Francisco!
1200. Magister Fulco vir sanctissimus Letare Jerusalem Leodium venit, et verbum salutis tam in civitate
quam in vicinis villis praedicans multos ab errore usurarum compescuit multos etiam a ceteris erroribus
revocavit. Id., ibid., p. 655.

223
Como o exilado de Patmos, eles viam descer dos cus, de junto de
Deus, a cidade santa, a nova Jerusalm, vestida como uma esposa pre-
parada para o seu esposo... e o trono em que estava sentado o Desejado
das naes, o Messias dos novos tempos, aquele que devia renovar todas
as coisas 16.
Nesse tempo, todos os olhos estavam voltados para a Sria, onde um
cavaleiro francs, Joo de Brienne, acabava de declarar-se rei de Jerusa-
lm (1210), e para l se lanavam os bandos das Cruzadas das Crianas.
A converso de Francisco, por mais radical que tenha sido, s tinha
conseguido dar uma direo diferente a seus pensamentos e a sua vontade,
mas no mudar o prprio fundo de seu carter. Em um corao grande,
tudo grande. Mesmo que algum mude pela converso, no deixa de
ser ele mesmo. O que muda no o convertido, o seu meio; ele se lan-
ou de repente em um caminho novo, mas correu por ele com o mesmo
ardor. Francisco tinha continuado a ser um cavaleiro, e pode ser que foi
isso que lhe conquistou em grau to alto o culto das mais belas almas da
Idade Mdia. Estava dentro dele essa necessidade do desconhecido, essa
sede de aventuras e de sacrifcios que tornam a histria de seu sculo to
grande e to interessante, apesar de tantos lados sombrios.
Os gnios religiosos costumam ter o privilgio da iluso. Eles no
enxergam como o mundo grande. Quando sua f removeu uma mon-
tanha, saltam de alegria como os antigos lutadores hebreus, a lhes pa-
rece que est nascendo a aurora do dia em que a glria do Eterno vai
aparecer e lobo e ovelha vo pastar juntos. uma iluso que faz bem,
que embriaga como um vinho generoso, e lana os soldados do bem ao
assalto das mais assustadoras fortalezas, acreditando que, quando se
apoderarem delas, a guerra vai acabar.

Francisco tinha encontrado tantas alegrias em sua unio com a Pobre-


za, que estava seguro de que bastava ser homem para aspirar mesma

16
Ap. 21; 1Cel 46; LTC 57-59; AP, A. SS., p. 600.

224
felicidade, e que os sarracenos se converteriam em massa ao Evangelho
de Jesus, anunciado em toda a sua simplicidade. Partiu da Porcincula
para essa cruzada de um outro tipo. No sabemos em que porto foi em-
barcar. Devia ser o outono de 1212; uma tempestade jogou o navio nas
costas da Eslavnia e ele teve que se resignar a ficar vrios meses por
aqueles lados ou a voltar para a Itlia. Resolveu voltar, mas teve muita
dificuldade para ser admitido em um navio que ia para Ancona. Mas no
quis mal aos marinheiros: quando os vveres faltaram, partilhou com eles
as provises que recebera em abundncia.
Mal chegou terra, comeou um turno de pregaes em que as almas
responderam a seus apelos melhor que no passado 17. Podemos crer que
voltou da Eslavnia no inverno entre 1212 e 1213, e que aproveitou a
primavera seguinte para evangelizar a Itlia central. Pode ser que tenha
sido durante essa quaresma que ele se retirou em uma ilha do lago Trasi-
meno, tendo a uma permanncia que depois ficou famosa em sua legenda
18
. Seja como for, um documento seguro mostra-nos que esteve na Ro-
magna em maio de 1213 19. Um dia, Francisco e seu companheiro, talvez
Frei Leo, chegaram ao castelo de Montefeltro 20, entre Macerata e So
Marino. Havia uma grande festa para a recepo de um novo cavaleiro,
mas o barulho e os cantos no os assustaram. Entraram sem hesitar na
corte em que estava reunida toda a nobreza da regio. Francisco tomou
como tema estes dois versos:
Tanto il bene chaspetto
Chogni pena m diletto 21,

E fez um sermo to tocante que muitos dos que assistiam esqueceram


por um instante o torneio para o qual tinham ido. Um deles, Orlando de

17
1Cel 55 et 56; LM 129-132.
18
Actus 6; Fior 7; Conform. 223 a 2. O fato de Francisco ter estado numa ilha desse lago atestado
por 1Cel 60.
19
Ver A. SS., p. 823 s.
20
Actus 9; atualmente Sasso-Feltrio entre o Conca e o Marecchio, ao sul e a duas horas de caminho,
perto de San Marino. Em cima do Montefeltro, territrio cuja capital San Leo, perto de Urbino,
V. Salimbene, ed. Holder-Egger, p. 727 s. v. Montefeltro. V. Golubovich, Biblioteca, t. II, p. 483-506.
Cf. La Verna numero especial do Centenrio (1913).
21
To grande a felicidade que eu espero, que toda pena me parece uma alegria.

225
Cattani, conde de Chiusi no Casentino, ficou to comovido que chamou
Francisco parte e lhe disse: Pai, gostaria de conversar contigo sobre
a salvao da minha alma. Com prazer, respondeu Francisco, mas,
por esta manh, v honrar os amigos que te convidaram, coma com eles
e, depois disso, vamos conversar quanto quiseres.
Assim foi feito. O conde voltou e concluiu o encontro dizendo: Na
Toscana, eu tenho uma montanha especialmente boa para a contempla-
o: est em isolada e seria bem conveniente para quem quiser fazer
penitncia longe dos rumores do mundo. Eu a darei de boa vontade a ti
e a teus frades pela salvao da minha alma.
Francisco aceitou com alegria mas, como devia estar na Porcincula
para o captulo de Pentecostes, adiou para um momento mais favorvel
a visita ao Alverne 22.
Teria sido nessa mesma viagem que passou por mola? Nada se ope.
Sempre corts, foi logo que chegou apresentar-se ao bispo e pedir au-
torizao para pregar: No preciso de ningum para me ajudar no meu
trabalho, foi a resposta seca. Francisco se inclinou e foi embora, ainda
mais educado e mais doce que de costume. Mas voltou menos de uma
hora depois: Que que voc ainda est querendo, frade? Francisco
respondeu: Excelncia, quando um pai manda embora o filho pela porta,
ele volta pela janela.
Desarmado por uma insistncia to piedosa, o bispo lhe deu a auto-
rizao 23.
Mas, nessa ocasio, o desejo de Francisco no era evangelizar a
Pennsula; seus frades j estavam bem espalhados por d e ele preferia
abrir o acesso para novas regies.

22
Todos os documentos do o texto de Francisco em italiano, o que bastaria para provar que
no foi apenas uma lngua de poesias, mas tambm de sermes. Actus 9; Conform.113 a 2; 231 a
1; Fior., Prima consid.
23
2Cel 3, 85; LM 82.

226
Como no pde chegar aos infiis na Sria, resolveu ir encontr-los
em Marrocos: pouco antes, (julho de 1212) as tropas dos Almohadas
tinham sofrido nas plancies de Tolosa uma derrota irreparvel; batido
pela coalizo dos reis de Arago, Navarra e Castela, Mohammed-el-Naser
tinha voltado para morrer em Marrocos. Francisco achava que essa vitria
pelas armas no seria nada se no fosse seguida por uma vitria pacfica
do esprito evanglico.
Estava to dominado por seu projeto, tinha tanta pressa de chegar
ao fim da viagem que, muitas vezes, esquecia o companheiro, apertava
o passo e se adiantava bastante. Infelizmente os bigrafos so muito
lacnicos sobre essa expedio, contando apenas que, chegando Espa-
nha, ele ficou gravemente doente e foi preciso voltar. Alm de algumas
lendas locais, de bem pouca confiana, no possumos nenhuma outra
informao sobre os trabalhos do santo nesse pas nem pelo caminho
que percorreu na ida e na volta 24.
Esse silncio no tem nada de estranho e no nos deve iludir sobre
a importncia dessa misso. A do Egito, seis anos mais tarde, com todo
um cortejo de frades, e em um momento em que a Ordem estava bem
mais desenvolvida, s mencionada me poucas linhas por Celano; sem a
descoberta recente da crnica de Frei Jordo de Jano, e os longos detalhes
dados por Jacques de Vitry, estaramos reduzidos a conjeturas tambm
sobre ela. As legendas espanholas, de que falamos h pouco, podem no
ser completamente sem fundamento, como as que falam da passagem
de So Francisco atravs do Languedoc e do Piemonte, mas no estado
atual das fontes, impossvel fazer uma triagem com qualquer autoridade
entre o fundo histrico e as excrescncias sem valor 25.

24
1Cel 56; LM 132. Ver Cel. Mir. 34.
25
Ver o longo estudo de Wadding e de Antonio Melissano de Macro. Wadding, ed. de Roma, 1731, t. I,
p. 176-224. Cf. Papini, Storia, p. 78-79. Sobre a viagem da Espanha, ver Chron.XXIV. Gn. An.fr. III p. 9.
preciso deixar ao julgamento do leitor o cuidado de decidir se se pode guardar alguma coisa do gracioso
episdio da passagem de So Francisco por Noves e em Orgon. Ibid., p. 189.

227
A misso na Espanha aconteceu sem dvida entre Pentecostes de 1214
e de 1215 26; creio que Francisco tenha passado o ano precedente 27 na
Itlia. Pode ser que tenha ido ver o Alverne. A Marca de Ancona e o vale
de Rieti tambm devem ter atrado sua ateno nessa poca. Finalmente,
o cuidado com os dois ramos de sua Ordem devia tornar necessria sua
presena na Porcincula e em So Damio.
A rapidez e a importncia dessas misses no devem surpreender-nos
nem gerar escrpulos crticos exagerados. Uma pessoa tornava-se mem-
bro da fraternidade em algumas horas e no precisamos pr em dvida
a sinceridade dessas vocaes, porque eram condicionadas ao abandono
imediato de toda propriedade particular em benefcio dos pobres. Logo
que eram recebidos, esses novos frades tambm recebiam outros e muitas
vezes tornavam-se chefes do movimento na prpria localidade em que se
encontravam. O modo como vemos essas coisas acontecerem em 1221
na Alemanha e em 1224 na Inglaterra apresenta-nos um quadro vivo
dessa germinao espiritual.
Para fundar um mosteiro bastava que dois ou trs frades tivessem
disposio um abrigo qualquer de onde se espalhar pela cidade e pelos
campos vizinhos.
Por isso, seria igualmente exagerado fazer de So Francisco um
homem que passava a vida fundando conventos e negar em bloco as
tradies locais que lhe atribuem a ereo de uma centena de mosteiros.
Em muitos casos, basta ou olhar para saber se essas pretenses de anti-
guidade so justificadas: antes de 1220, a Ordem s teve eremitrios, do
tipo do Alverne ou dos Crceri, destinados unicamente aos frades que
iam passar algum tempo em retiro.

26
V. Wadding, ann. 1213-1215, Cf. A. SS., p. 602 e 603, 825-831. Marcos de Lisboa, lib. I, cap. 45,
p. 78-80; Papini, Storia di S. Francesco, I, p. 79 ss. (Foligno, 1825, 2 vol. in-4). Surpreende-nos ver
Suyskens apoiando to pesadamente o argumentum a silentio. Sobre a misso de 1213, ver Jacobilli,
t. I, p. 87 ss.
27
Desde Pentecostes de 1213 ou de 1214. Post non multum vero temporis versus Marochium iter arripuit,
diz Toms de Celano (1Cel 56) depois de mencionar a volta da Eslavnia. Levando em conta o usus loquendi
do autor, essa frase parece estabelecer um tempo de pausa entre as duas misses. A edio de Eduardo de
Alenon tem uma variante singularmente importante 1Cel 56 (I, 20): cum iam ivisset usque in Hispaniam
em vez de versus Hispaniam.

228
Voltando a Assis, Francisco admite na Ordem alguns homens instru-
dos, entre os quais provavelmente Toms de Celano. De fato, Celano diz
que Deus teve a bondade de se lembrar dele nessa ocasio, e acrescenta
mais adiante com uma satisfao singela que parece trai-lo: O bem-
aventurado Francisco era de uma refinada nobreza de corao e cheio de
discernimento e por isso, tinha o maior cuidado de dar a cada um que lhe
era devido, considerando com sabedoria o grau de dignidade em todos.
Isso no combina muito bem com o carter de Francisco que j esbo-
amos: no d para imagin-lo conservando na Ordem as distines to
profundas que se faziam nesse tempo entre as diversas posies sociais,
mas ele tinha essa polidez verdadeira e eterna que tem suas raizes no
corao, e que no passa de uma forma de tacto e de amor. No podia ser
diferente em um homem que via na cortesia uma das qualidades de Deus.
Tocamos um dos perodos mais obscuros de sua vida. Parece que ele
passou, depois do captulo de 1215, por uma dessas crises de desnimo
to frequentes nos que querem realizar o ideal desde aqui em baixo.
Teria pressentido os sinais das provas reservadas a sua famlia? Teria
compreendido que as necessidades da vida iam amolecer e tirar o vio
de seu sonho? Teria visto na falncia de suas misses na Sria e em
Marrocos uma indicao providencial de que devia mudar seu caminho?
No sabemos. Mas nesse tempo ele precisou dirigir-se a Santa Clara e
a Frei Silvestre para lhes pedir conselho sobre as dvidas e hesitaes
que o assaltavam. A resposta deles devolveu-lhe a paz e a alegria: Por
sua boca, Deus mandava que continuasse seu apostolado 28.
Levantou-se depressa e partiu na direo de Bevagna 29, com um ardor
que nunca tinham visto nele.
Convidando-o a perseverar, Clara tinha inoculado nele um novo
entusiasmo. Uma palavra dela bastara para lhe devolver todo valor e,
desde esse momento, encontramos em sua vida mais poesia e mais amor
do que antes.

28
Conform. 110 b 1, Actus 16; Fior. 16; LM 170-174.
29
Aldeia a cerca de duas lguas a sudoeste de Assis. A poca indiretamente determinada pela LM 173
e 1Cel 58.

229
Ia caminhando cheio de alegria quando, ao ver bandos de pssaros,
saiu um pouco do caminho e foi para o meio deles. Em vez de fugir,
apertaram-se ao redor dele como para lhe dar boas vindas. Ento ele lhes
disse: Passarinhos, meus irmos, tendes que louvar e amar muito vosso
criador. Ele vos deu penas para vos vestir, asas para voar, e tudo que vos
necessrio. Fez de vs as mais nobres de suas criaturas; permite que
vivais no ar puro; no tendes que semear nem colher, porque ele cuida
de vs, vos protege e vos dirige. Ento os pssaros comearam a esticar
o pescoo, a soltar as asas, a abrir o bico, a olhar para ele como se lhe
agradecessem, enquanto ele passava e repassava entre eles, acariciando-
os com a barra de sua tnica. Depois, ele os despediu com sua bno 30.
Nessa mesma jornada de evangelizao, tendo passado por Alviano
31
, dirigiu algumas exortaes ao povo, mas as andorinhas enchiam o ar
com seus gritos, impedindo que o ouvissem. Ento ele lhes disse: Agora
minha vez de falar, andorinhas minhas irmzinhas, escutai a palavra de
Deus, ficai em silncio e bem tranquilas at eu terminar 32.
Vemos como o amor de Francisco se estendia a toda a criao, como a
vida difusa espalhada nas outras coisas inspirava-o e o comovia. Desde o
sol at o verme da terra calcado sob os ps, tudo lhe transmitia o suspiro
dos seres que vivem, sofrem e morrem, cumprindo a obra divina tanto
em sua vida como em sua morte:
Louvado sejais, Senhor, com todas as vossas criaturas, especialmente
o senhor frei sol, que nos d o dia e pelo qual mostrais vossa luz. Ele
belo e radiante, com grande esplendor; de Vs, Altssimo, um smbolo.
Ainda sob este ponto de vista, Francisco renova a inspirao hebraica
e a veia to simples e to grandiosa dos profetas de Israel: Louvai o
Eterno! Tinha cantado o salmista real, fogo e granizo, neves e nevoeiros;
ventos impetuosos que executais suas ordens; montanhas e todas as co-

30
1Cel 58; LM 109 e 174; Actus 16; Fior. 16; Conform. 114 b 2.
31 Mais ou menos a meio caminho entre Orvieto e Narni.
32
1Cel 59; LM 175.

230
linas; rvores frutferas e todos os cedros; animais e todos os rebanhos;
rpteis e pssaros alados; reis da terra e todos os povos; prncipes e todos
os juizes da terra; moos e moas, velhos e crianas! Louvai o Eterno!
Louvai o Eterno!
O dia dos passarinhos em Bevagna ficou em sua lembrana como um
dos mais bonitos de toda a sua vida, e ele, habitualmente to reservado,
gostava de cont-lo 33. um dos castos ardores que o lanavam em uma
comunho ntima e deliciosa com todos os seres; era a Clara que ele os
devia; fora ela que o arrancara das tristezas e das hesitaes. E ele tam-
bm tinha no corao uma gratido imensa por aquela que tinha sabido,
na hora certa, retribuir-lhe amor por amor, inspirao por inspirao.
A simpatia de Francisco pelos animais, do jeito que brilha aqui, no
tem nada dessa sensibilidade tantas vezes falsa e exclusiva de qualquer
outro amor, que certas associaes contemporneas despertam baru-
lhentamente; nele, no passa de uma manifestao do sentimento da
natureza, sentimento todo mstico, que at chamaramos de pantesta
se essa palavra no tivesse um sentido filosfico muito determinado e
absolutamente oposto ao pensamento franciscano.
Esse sentimento que, nos poetas do sculo XIII, to frequentemente
falso e amaneirado, nele no apenas verdadeiro mas tambm algo de
vivo, so, robusto 34. Foi essa veia de poesia que deu Itlia a conscincia
de si mesma, levou-a a esquecer em poucos anos o pesadelo das idias
ctaras e a arrancou do pessimismo. Por ela tambm, Francisco tornou-
se o iniciador do movimento artstico que precedeu o Renascimento, o
inspirador dessa nuvem de pr-rafaelistas, desenhistas mal destros, s

33
Ad haec, ut ipse dicebat... 1Cel 58.
34
J se quis comprar nesse ponto Francisco com alguns de seus contemporneos; mas a semelhana das
palavras faz brilhar a diversidade de inspirao: que Honrio III diga: Forma rosae est inferius angusta,
superius ampla et significat quod Christus pauper fuit in mundo, sed est Dominus super omnia et implet
universa. Nam sicut forma rosae, etc. (ed. Horoy, t. I, col. XXIV et 804) e faa todo um sermo sobre o
simbolismo da rosa, essas dissertaes alambicadas no tm nada que ver com o sentimento da natureza.
o arsenal da retrica medieval, usado para dissecar uma palavra. H nisso um esforo intelectual, e no um
cntico de amor. A Imitao diria: Se o vosso corao fosse direito, toda criatura seria para vs um espelho
de vida e uma livro de santa doutrina, lib. II, cap. 2. O sentimento primitivo da beleza da criao ainda est
ausente a; torna-se um pedagogo disfarado.

231
vezes grotescos aos quais voltamos hoje com uma espcie de piedade
descobrindo em seus santos sem graa uma vida ntima, uma expresso
moral que buscamos em vo alhures.
Se a voz do pobrezinho de Assis foi entendida porque, aqui como
em outras partes, ela no tinha nada de combinado, como est longe,
com ele, da piedade espantosa e farisaica desses religiosos que proibiam
o acesso aos conventos at das fmeas dos animais. Sua noo da cas-
tidade no lembra em nada esse excesso de afetao: um dia, em Sena,
ele conseguiu obter umas rolinhas e, abrigando-as em seu hbito, disse:
Rolinhas, minhas irmzinhas, vs sois simples, inocentes e castas, por
que vos deixastes prender? Vou salvar-vos da morte e fazer-vos ninhos
para que possais procriar e multiplicar como mandou nosso Criador.
E fez mesmo ninhos para todas, e as rolinhas puseram ovos, chocaram
e cuidaram de seus filhotes sob o olhar dos frades 35.
Em Rieti, uma famlia de pintarroxos comia com eles no convento, e
os filhotes vinham bicar nas mesas em que os frades estavam almoan-
do 36. No longe de l, em Grcio 37, levaram para Francisco uma lebre
viva que cara na armadilha. Ele disse, Vem c, irm lebre. O pobre
animal refugiou-se junto dele, ele o pegou, acariciou e depois o colocou
no cho para lhe dar a liberdade; mas ela voltou diversas vezes, tanto
que foi preciso lev-la para um bosque vizinho para que se deixasse
retomar a liberdade 38.
Um dia, ele estava atravessando o lago de Rieti. O barqueiro que o
conduzia deu-lhe um peixe de tamanho pouco comum. Francisco aceitou-
o com alegria mas, para grande espanto do pescador, devolveu-o gua,
convidando-o a louvar a Deus 39.

35
Actus 24; Fior. 22.
36
2Cel 2, 16, Conform. 148 a 1, 183 b 2. Cf. a histria da ovelha da Porcincula: LM 111.
37
Aldeia do vale de Rieti, a duas horas de caminho dessa cidade, na estrada para Terni.
38
1Cel 60; LM 113.
39
1Cel 61; LM 114.

232
No acabaramos mais se quisssemos contar todos os fatos semelhan-
tes 40, porque ele tinha um sentimento inato da natureza; era uma comu-
nho perptua que o levava a amara a criao inteira 41; ele se deixava
arrebatar pelo sortilgio dos grandes bosques; ele sofreu os terrores de
uma criana quando estava orando sozinho em uma capela abandonada,
mas saboreou alegrias indizveis s de aspirar o perfume de uma flor ou
de contemplar a gua lmpida de um regato 42.
Amante perfeito da pobreza, ele tolerava um luxo; at mandou que
houvesse um na Porcincula, o das flores: o frade jardineiro no devia
semear s legumes e plantas teis mas devia reservar um canto de terra
boa para nossas irms, as flores do campo. Francisco tambm conver-
sava com elas ou, melhor, respondia-lhes, porque sua misteriosa e doce
linguagem penetrava at no fundo do seu corao 43.

O sculo XIII estava pronto para compreender a voz do poeta da


mbria. O sermo aos pssaros 44 encerrou o reino da arte bizantina
45
e do pensamento de que ela era imagem. Foi o fim do dogmatismo e
da autoridade, foi a chegada do individualismo e da inspirao, acon-
tecimento sem dvida muito precrio, que seria seguido por reaes
cheias de opinies particulares, mas que nem por isso deixou de marcar
uma data na histria da conscincia humana 46. Entre os companheiros

40
2Cel 3, 54; LM 109; 2Cel 3, 103 ss.; LM 116 ss.; LM 110; 1Cel 61; LM 114; 113; 115; 1Cel 79; Actus
13; Fior. 13, etc.
41
EP 116 e 118; 2Cel 3, 101 ss.; LM 123.
42
2Cel 3, 59; 1Cel 80 e 81.
43
EP 118; 2Cel 3,101; 1Cel 81.
44
Foi a cena de sua vida mais freqentemente representada pelos precursores de Giotto. O artis-
ta desconhecido que (antes de 1236) decorou a nave da igreja inferior de Assis, consagrou cinco
afrescos histria de Jesus e cinco vida de So Francisco. Nestes ele representou: 1 A renncia
herana paterna; 2 Francisco sustentando a igreja do Latro; 3 a pregao aos pssaros; 4 os
estigmas; 5 os funerais.
45
H uma palavra preciosa que mostra como essa idia era justa: Sancta simplicitas... graecas glorias non
optimas arbitrans. 2Cel 3, 119.
46
Eu no pretendo, claro, que Francisco tenha sido o nico iniciador desse movimento, e menos ainda seu
criador; ele foi o seu cantor mais inspirado, e isso basta para sua glria. Se a Itlia foi despertada, foi porque
no estava dormindo to pesadamente a no ser no sculo X; os mosaicos da fachada da catedral de Spoleto
(Cristo entre a Virgem e So Joo) j pertencem arte nova. As a vitria ainda era to pouco definitiva que
as pinturas murais de So Loureno fora dos Muros e dos Quatro-Coroados, que so dez anos posteriores,
recaem em um bizantinismo grosseiro. Ver tambm as do batistrio de Florena.

233
de Francisco muitos eram filhos demais de seu sculo, imbudos demais
por sua disciplina teolgica e metafsica para chegar a compreender um
sentimento to espontneo e to profundo 47. Mas todos, em diversos
graus, foram tocados por seu encanto. Neste ponto, as pginas de Toms
de Celano tm um lirismo que no se encontra em nenhuma outra parte
de sua obra 48.

47
Da as explicaes mais ou menos sutis com que ornaram esses traos. Sobre o papel dos
animais nas legendas do sculo XIII, podemos consultar Cesrio de Heisterbach, ed. Strange, t.
II, p. 257 ss.
48
1Cel 80-83.

234
11

O homem interior e o taumaturgo

235
XI

Apprehendi te [dicit Dominus] ab extremis terre et a longinquis ejus vocavi


te... Ne timeas, ego adjuvi te 1.
Vocavi te nomine tuo, meus es tu. Cum transieris per aquas tecum ero, et
flumina non operient te: cum ambulaveris in igne, non combureris, et
flamma non ardebit in te. Quia ego Dominus Deus tuus, Sanctus Israel,
Salvator tuus 2.
Dominus noster Jesus Christus pridie quam pateretur, accepit panem in sanc-
tas ac venerabiles manus suas, et elevatis oculis in caelum, ad te Deum
Patrem suum omnipotentem, tibi gratias agens benedixit, fregit, deditque
discipulis suis, dicens: Accipite et manducate ex hoc omnes: Hoc est enim
Corpus meum.
Simili modo postquam cenatum est, accipiens et hunc praeclarum Calicem in
sanctas ac venerabiles manus suas, item tibi gratias agens, benedixit dedi-
tque discipulis suis, dicens: Accipite et bibite ex eo omnes: Hic est enim
calix sanguinis mei, novi et aeterni testmenti: Mysterium fidei: qui pro
vobis et pro multis effundetur in remissionem peccatorum. Haec quoties-
cumque feceritis, in mei memoriam facietis.
Unde et memores, Domine, nos servi tui, sed et plebs tua sancta, eiusdem
Christi Filii tui Domini nostri tam beatae passionis, necnon et ab inferis
Resurrectionis, sed et in caelos gloriosae Ascensionis, offerimus praecla-
rae Majestati tuae de tuis donis ac datis, Hostiam puram, Hostiam sanc-
tam, Hostiam immaculatam, Panem sanctum vitae aeternae, et Calicem
salutis perpetuae 3.
Qui invenit animam suam, perdet illam; et qui perdiderit animam suam prop-
ter me, inveniet eam 4.
Adimpleo ea quae desunt passionum Christi in carne mea, pro corpore ejus,
quod est Ecclesia 5.

1
Is 41, 9 e 13.
2
Is 43, 1 e 3.
3
Consagrao das santas espcies no Cnon da Missa.
4
Mt 10, 39.
5
Cl 1, 24.

236
XI

Eu te tomei dos confins da terra e te chamei de suas partes mais longnquas


... No temas, eu te ajudei 6.
Eu te chamei por teu nome, tu me pertences. Quando caminhares pela gua,
estarei contigo, e os rios no te cobriro: quando andares no fogo no te
queimars. Porque eu, o Senhor teu Deus, o Santo de Israel, sou o teu
Salvador 7.
Nosso Senhor Jesus Cristo, no dia anterior a sua paixo, tomou po em suas
santas e venerveis mos, e elevando os olhos ao cu, para ti, Deus onipo-
tente, deu-te graas e o abenoou, partiu e deu a seus discpulos, dizendo:
Recebei e comei dele todos: Porque isto o meu Corpo.
Do mesmo modo, depois que cearam, tomando tambm este preclaro clice
em suas mos venerveis, deu-te graas de novo, abenoou-o e o deu a
seus discpulos dizendo: Este o clice do meu sangue, do novo e eter-
no testamento: mistrio da f: que por vs e por muitos ser derramado
para a remisso dos pecados. Todas as vezes que fizerdes isso, em mi-
nha memria que o fareis.
Lembrando-nos disso, Senhor, ns vossos servos, e tambm teu povo santo,
recordando a memria da bem-aventurada Paixo de vosso Filho nosso
Senhor, e tambm de sua Ressurreio dos infernos, mas tambm de sua
gloriosa Ascenso aos cus, oferecemos vossa preclara Majestade dos
vossos prprios dons, que a Ele devemos, uma Hstia pura, uma Hstia
santa, uma Hstia imaculada, Po santo da vida eterna e Clice de nossa
salvao eterna 8.
Quem quiser conservar sua vida, vai perd-la; mas quem quiser oferecer sua
vida por minha causa, vai salva-la 9.
Completo em minha carne o que falta da Paixo de Cristo por seu povo, que
a Igreja 10.

6
Is 41, 9 e 13.
7
Is 43, 1-3.
8
Consagrao das santas espcies no Cnon da Missa.
9
Mt 10, 39.
10
Cl 1, 24.

237
A jornada missionria que foi empreendida pelo encorajamento de
Santa Clara e inaugurada to poeticamente pelo sermo aos pssaros de
Bevagna, parece ter sido um triunfo contnuo para Francisco 11. A legenda
tomou conta dele para sempre: querendo ou no, os milagres brilhavam
sob seus passos; mesmo sem que o soubesse, os objetos que ele usara
tinham efeitos maravilhosos. O povo saa em procisso das cidades ao seu
encontro e, no bigrafo, ouvimos o eco dessas festas religiosas da Itlia,
alegres, populares, barulhentas, ensolaradas, que se parecem to pouco
com as festas meticulosamente organizadas dos povos setentrionais.
De Alviano, Francisco foi sem dvida a Narni, uma das cidadezinhas
mais deliciosas da mbria, na poca construindo uma catedral depois
de ter conseguido suas liberdades comunais. Parece ter tido por ela uma
espcie de predileo, como pelas cidades vizinhas 12.
Da parece que ele foi para o vale de Rieti, onde Grcio, Fonte Co-
lombo, So Fabiano, Santo Eleutrio, Poggio-Bustone conservam suas
marcas ainda melhor que os arredores de Assis.
Toms de Celano d-nos alguns detalhes sobre o caminho que se-
guiu, mas se estende mais sobre os sucessos do apstolo na Marca de
Ancona, e principalmente em scoli. As pessoas desses lugares ainda

11
1Cel 62.
1Cel 66; Cf. LM 180; 1Cel 67; Cf. LM 82; 1Cel 69; LM 183.
12

Depois da morte de So Francisco, os cidados de Narni foram os primeiros a vir orar em seu tmulo.
1Cel 128,135, 136, 138,141; LM 275.

238
se lembravam das exortaes que lhes tinham sido feitas anteriormente
por Francisco e Egdio (1209), ou preciso crer que estavam muito es-
pecialmente preparados para compreender o Evangelho novo? Seja como
for, em nenhum outro lugar tinham demonstrado tamanho entusiasmo;
o efeito das pregaes foi to grande que uns trinta nefitos receberam
imediatamente o hbito.
A Marca de Ancona devia continuar a ser a provncia franciscana por
excelncia. nela que esto Offida, San-Severino, Macerata, Forano,
Cngoli, Fermo, Massa e vinte outros eremitrios em que a pobreza de-
via encontrar durante mais de um sculo seus arautos e mrtires. Dela
saram Joo do Alverne, Tiago de Massa, Conrado de Offida, ngelo
Clareno, e essas legies de revolucionrios annimos, de sonhadores,
de profetas, que depois dos frades extirpados em 1244 pelo geral da
Ordem Crescncio de Iesi, no deixaram de se recrutar e, por sua brava
resistncia, escreveram uma das mais belas pginas da histria religiosa
da Idade Mdia 13.
Esses sucessos, que inundavam de alegria a alma de Francisco, no
provocavam nele o menor movimento de orgulho. Nunca outra pessoa
teve to grande poder sobre os coraes, porque nunca um outro prega-
dor pregou menos a si mesmo. Um dia, Frei Masseu quis pr prova a
sua modstia:
Repetia: Por que a ti? Por que a ti? Por que a ti?. So Francisco per-
guntou: O que Frei Masseu disse?.
- Por que parece que todo mundo vem atrs de ti? todos querem te ver,
te ouvir, obedecer a ti? Tu no s um homem bonito; no tens grande cincia
ou sabedoria; no s nobre! Ento, por que todo mundo vem a ti?.
Ouvindo isso, o bem-aventurado Francisco, todo divertido em esprito,
voltou o rosto para o cu, ficou por muito tempo com a mente dirigida a
Deus. Quando voltou a si, ajoelhando-se, louvando e agradecendo a Deus,
em grande fervor de esprito voltou-se para Frei Masseu e disse:

13
Tambm foi da Marca de Ancona que partiu, em 1528, a reforma dos Capuchinhos, que foram inicial-
mente caados e perseguidos como tinham sido os espirituais trs sculos antes. Esses difceis comeos
foram muito bem resumidos por Hliot em sua Histoire des Ordres monastiques, ed: Migne, t. I, col. 620.

239
Queres saber por que a mim? Queres saber, e saber bem por que a
mim, por que todo mundo vem a mim? Devo isso queles olhos santssi-
mos de Deus, que em toda parte contemplam bons e maus. 6 Pois aqueles
bem-aventurados e santssimos olhos no viram, entre os maus, um grande
pecador mais vil e insensato do que eu 14.
Essa resposta lana um raio de luz sobre o corao de So Francisco:
a mensagem que ele traz ao mundo ainda a boa nova anunciada aos
pobres; seu objetivo retomar essa obra messinica entrevista pela Vir-
gem de Nazar em seu Magnificat, esse cntico de amor e de liberdade,
que suspira na viso de um novo estado social.
Ele vem recordar que a felicidade do homem, a paz de seu corao,
a alegria de sua vida, no esto nem no dinheiro nem na cincia, nem
na fora, mas em uma vontade reta e sincera: Paz aos homens de boa
vontade!
Ele teria tido de boa vontade em toda a Pennsula o papel que tivera
em Assis debatendo com seus concidados, porque pessoa alguma jamais
sonhou com uma renovao social mais completa, mas se o objetivo o
mesmo de muitos revolucionrios que vieram depois dele, os meios so
completamente diferentes: sua nica arma foi o amor.
Os fatos no o apoiaram. Afora os iluminados da Marca de Ancona
e os Fraticelli da Provena, seus discpulos no captaram bem seu pen-
samento 15.

14
Actus 10; Fior 10; Cf. Conform. 50 b 1, 175 a 2.
15
No que diz respeito: 1 fidelidade Pobreza; 2 proibio de modificar a Regra; 3 autoridade igual
do Testamento e da Regra; 4 a pedir privilgios na corte de Roma; 5 promoo dos frades a elevados
cargos eclesisticos; 6 proibio absoluta de se opor ao clero secular; 7 proibio das grandes igrejas
dos conventos ricos. Sobre todos esses pontos e muitos outros, a infidelidade vontade de Francisco foi
completada na Ordem menos de vinte e cinco anos depois de sua morte. Podemos fazer um eplogo disso
tudo: a Santa S, interpretando a Regra teve o direito cannico a seu favor, mas Hubertino de Casale, di-
zendo que ela era perfeitamente clara e no precisava de interpretao tinha o bom senso a seu favor, o que
basta! Et est stupor quare queritur expositio super litteram sic apertam quia nulla est difficultas in regulae
intelligentia (Arbor Vitae crucifixae, Veneza, 1485, Iib. V, cap. III. Sanctus vir Egidius tanto ejulatu clamabat
super regulae destructionem quam videbat quod ignorantibus viam spiritus quasi videbatur insanus. Id. Ibid.

240
Quem sabe se ainda no se levantar algum para retomar sua obra?
Ser que o furor das especulaes viciosas j no fez vtimas demais! No
haver muitos entre ns que no percebem que o luxo um engano? Que,
se a vida um combate, tambm no um matadouro em que animais
ferozes disputam uma presa, mas a luta com o divino, sob qualquer
forma que se apresente, beleza ou amor? Quem sabe se este agonizante
sculo XIX no vai se levantar de sua mortalha para fazer uma honrosa
correo e legar ao seu sucessor uma palavra de f viril?

Sim, o Messias vir. Vai aparecer aquele que foi anunciado por Joa-
quim de Fiore e que deve inaugurar um novo ciclo da histria da huma-
nidade. A esperana no confunde. Para no ser verdade que estamos
na vspera de um nascimento divino, em nossas Babilnias modernas
e nas choupanas de nossas montanhas h muitas almas que suspiram
misteriosamente o hino da grande viglia: Rorate caeli desuper et nubes
pluant Justum 16.
Toda origem misteriosa. Isso verdade a respeito da matria e
mais ainda a respeito de todas as coisas dessa vida superior a todas as
outras que se chama santidade: era na orao que Francisco encontrava
as foras espirituais que lhe eram necessrias; era por isso que ele bus-
cava o silncio e a solido. Se sabia combater no meio dos homens para
ganha-los para a f, ele gostava como diz Celano de voar como um
pssaro, para ir construir um ninho nas montanhas 17.
Para os homens verdadeiramente piedosos, a orao dos lbios, a
orao formulada, no passa de uma forma inferior da verdadeira orao.
Mesmo quando sincera e atenta, e no uma simples repetio maquinal,
ela no passa de um preldio para as almas que o materialismo religioso
no matou.

16
Derramai, o cus, o vosso orvalho, e que as nuvens chovam o Justo. Antfona do tempo do
Advento.
17
In foraminibus petrae nidificabat. 1Cel 71. Sobre as oraes de Francisco, ver Ibid. 71 e 72; 2Cel 3,
38-43; LM 139-148. Cf. 1Cel 6; 91; 103; LTC 8; 12; EP 93; 94; 95, 99; etc.

241
No h nada mais parecido com a piedade do que o amor. Os formu-
lrios das oraes so to incapazes de expressar as emoes da alma
quanto os modelos de cartas de amor para expressar o transbordamento
de um corao apaixonado. Para a piedade verdadeira como para o
amor profundo a prpria frmula j uma espcie de profanao.
Orar conversar com Deus, elevar-nos at Ele, que desce para ns, e
nos entreter com ele. um ato de recolhimento, de reflexo, que supe
o esforo do que h de mais pessoal em ns.

Olhada por esse lado, a orao a me de todas as liberdades e de


todas as libertaes.

Se ela for ou no um solilquio da alma consigo mesma, esse solil-


quio no vai deixar de ser o fundo das individualidades poderosas.

Em So Francisco como em Jesus ela tem esse carter de esforo


que a torna o ato moral por excelncia. Para conhecer de verdade homens
desse tipo, seria preciso poder acompanh-los, seguir Jesus nas alturas
em que ele ia passar a noite: trs privilegiados, Pedro, Tiago e Joo,
seguiram-no um dia, mas para descrever o que tinham visto, tudo que
um viril sursum corda acrescentou irradiao e misteriosa grandeza
daquele que eles adoravam, foram obrigados a recorrer linguagem dos
smbolos.

Com So Francisco aconteceu a mesma coisa. Para ele, como para


seu Mestre, o termo da orao a comunho com o Pai Celeste, o
acordo do divino com o humano, ou melhor, o homem que se esfora
por realizar a obra de Deus, no se limitando a lhe dizer um Fiat passivo,
resignado, impotente, mas que se apresenta com valentia: Aqui estou,
Senhor, pronto para fazer vossa vontade.

H foras insondveis no fundo da alma humana, porque l dentro


quem est o prprio Deus. Se esse Deus transcendente ou imanente,
se o Um, o Criador, o Princpio eterno e imutvel, ou se Ele como
dizem os doutores da Alemanha a objetivao ideal do nosso eu, isso
no importa para os heris da humanidade. No meio da batalha, o sol-

242
dado no fica filosofando para saber o que h de verdade ou de falso no
sentimento patritico; pega suas armas e luta pela vida. Os soldados dos
combates espirituais tambm buscam suas foras na orao, na reflexo,
na contemplao, na inspirao: todos, poetas, artistas, iniciadores, san-
tos, legisladores, profetas, condutores dos povos, sbios, filsofos, vo
beber nessa mesma fonte.

Mas d trabalho para a alma se unir a Deus, ou, se melhor o ama, para
encontrar a si mesma. Uma orao s termina na orao divina se tiver
comeado por ser uma luta. O patriarca de Israel j tinha percebido isso: o
Deus que passa s diz seu nome aos que o detm e so violentos com ele
para ficar sabendo. Ele s abenoa depois de longas horas de combate 18.
O Evangelho encontrou uma palavra intraduzvel para nos expressar
esse carter das oraes de Jesus; compara a luta que precedeu imo-
lao voluntria de Cristo agonia: Factus in agonia 19. Podemos dizer
que sua vida foi uma longa tentao, uma luta, uma orao, porque essas
palavras s expressam os diferentes momentos da atividade espiritual.
Como seu Mestre, os discpulos e os sucessores de Cristo no podem
conquistar sua alma a no ser custa de perseverana 20. Mas essas
palavras, vazias de significao para os grupinhos devotos, tiveram um
sentido trgico para os gnios religiosos.
No h nada mais falso, historicamente, do que os santos que enfeitam
nossas igrejas com sua atitude graciosa, seu ar contristado, esse no sei
que de anmico, emaciado, quase diria emasculado, que h em todo o seu
ser; so piedosos seminaristas educados sob a direo de Santo Afonso
de Ligrio ou de So Lus Gonzaga, no so santos, isto , violentos que
foraram as portas do cu.

18
Gn 32, 22-33.
19
Lc 22, 44.
20
In patientia vestra possidebitis animas vestras. Lc 21, 19. In hiis quae cum multo labore orationis et
meditationis. EP 11.

243
Estamos tocando em um dos lados mais delicados da vida de Fran-
cisco: suas relaes com os poderes diablicos. Os costumes e as idias
mudaram to profundamente no que diz respeito existncia do diabo
e suas relaes com os homens, que quase impossvel imaginar o lu-
gar enorme que os demnios ocupavam outrora nas preocupaes dos
homens.
Os melhores espritos da Idade Mdia acreditaram sem a menor dvida
na existncia do Esprito maligno, em suas transformaes perptuas para
tentar os homens e faz-los cair em suas armadilhas. Em pleno sculo
XVI, Lutero, que tinha minado tantas crenas, no duvidou da existncia
pessoal de Sat, da bruxaria, das conjuraes e das possesses 21.
Encontrando em sua alma todo um fundo de grandeza e de misria,
e ouvindo irradiar s vezes as harmonias longnquas do chamado para
uma vida superior, logo dominados pelos clamores da brutalidade, nossos
ancestrais no podiam deixar de buscar uma explicao para esse duelo;
encontraram-na na luta dos demnios contra Deus.
O diabo o prncipe dos demnios, como Deus o prncipe dos anjos;
capazes de todas as transformaes, eles travam, at o fim dos tempos,
terrveis batalhas que vo terminar pela vitria de Deus. Enquanto isso
no acontece, cada pessoa solicitada durante toda a sua vida por
esses dois adversrios, e as mais belas almas so naturalmente as mais
disputadas.
Foi assim que So Francisco, com todo o seu sculo, explicou as
perturbaes, os terrores, as angstias que s vezes assaltavam o seu
corao, tanto quanto as esperanas, as consolaes e as alegrias de que
era habitualmente inundado. Por todos os lados onde seguimos seus
passos, as tradies locais conservaram a lembrana dos rudes assaltos
que ele teve que suportar por parte do tentador.

21
Flix Kuhn, Luther, sa vie e son oeuvre. Paris, 1883, 3 vol. in-8, t. I, p. 128; t. II, p. 9; t. III, p. 257.
Benvenuto Cellini conta sem hesitar a visita que fez um dia ao Coliseu em companhia de uma mgico
cujas palavras evocaram nuvens de diabos que povoaram todo o ambiente. B. Cellini. La vita scritta da lui
medesimo, ed. Bianchi. Florena, 1890,in-12, p.33.

244
No h dvida de que intil recordar aqui o fato elementar segun-
do o qual, se os costumes mudam com o tempo, o homem tambm se
modifica singularmente. Se, de acordo com a educao e o gnero de
vida, tal ou tal sentido pode passar a ter uma acuidade que confunde os
hbitos correntes o ouvido em um msico, o tacto no cego, etc.
preciso perceber, por isso, como certos sentidos puderam ser mais agu-
ados outrora do que hoje. H alguns sculos, entre os adultos, a iluso
visual foi o que hoje entre as crianas de nossos campos mais afastados.
Uma folha que balana, um nada, um sopro, um barulho no explicado,
cria neles uma imagem que eles vem: e crem absolutamente que esto
vendo. O homem uma pea nica; a hiperestesia da vontade supe a da
sensibilidade; uma condio da outra, e isso que torna os homens das
pocas revolucionrias to maiores que a natureza. Seria uma inpcia da
nossa parte que a pretexto de verdade querer v-los de acordo com
as medidas comuns de nossas sociedades contemporneas, porque eles
foram verdadeiramente semi-deuses tanto para o bem como para o mal.
As legendas no so sempre absurdas. Os homens de 93 ainda esto
muito perto de ns, mas foi com razo que a legenda tomou conta deles
e d pena ver esses homens, que dez vezes por dia precisavam tomar
resolues em que tudo estava em jogo, sua sorte, a de suas idias e s
vezes a de sua ptria, julgados como se tivessem sido bons burgueses que
tinham prazer de discutir longamente cada manh a roupa que iam usar
ou o cardpio de um jantar. Na maior parte do tempo, os historiadores
no viram neles seno uma parte da verdade, porque no havia s dois
homens neles: quase todos eram ao mesmo tempo poetas, demagogos,
profetas, tiranos, heris, mrtires.

Por isso, escrever histria traduzir e transpor quase continuamente.


Os homens do sculo XIII no puderam deixar de ligar a uma causa ex-
terior os movimentos interiores de suas almas. No que para ns parece
resultado de nossas reflexes eles viam o resultado de uma inspirao;
o que ns chamamos de desejos, instintos, paixes, eles chamavam de
tentaes; mas essas diferenas de linguagem no nos devem levar a
negligenciar ou chamar de engano uma parte de sua vida espiritual,
levando-nos a apreciaes de um racionalismo estreito e ignorante.

245
So Francisco achou muitas vezes que estava lutando com o diabo;
os horrveis demnios do inferno etrusco ainda assombravam os bosques
da mbria e da Toscana, mas enquanto para seus contemporneos e al-
guns de seus discpulos as aparies, os prodgios, as possesses eram
fenmenos quotidianos, para ele eram excepcionais e, de fato, ficavam
em um plano posterior. Na iconografia de So Bento, como na da maior
parte dos santos populares, o diabo ocupa um lugar preponderante; na
de So Francisco ele desaparece to frequentemente que na longa srie
de afrescos de Giotto em Assis, no o vemos nenhuma vez 22.

Da mesma maneira, tudo que se refere teurgia ou taumaturgia


ocupa em sua vida um lugar bem secundrio. No Evangelho, Jesus d
a seus apstolos o poder de expulsar espritos impuros e curar qualquer
doena e toda enfermidade 23: Francisco assumiu certamente essas pa-
lavras ao p da letra, e elas esto em sua Regra. Ele achava que tinha
feito e queria fazer milagres; mas seu pensamento religioso era muito
puro para permitir que visse no milagre mais do que um meio bastante
excepcional de diminuir os sofrimentos humanos. Nem uma s vez ns
o vemos recorrer ao milagre para provar seu apostolado ou impor suas
idias. Seu tato avisava-o que as almas so dignas de ser conquistadas
por meios melhores. Essa ausncia quase completa de maravilhoso 24
bem mais notvel porque est em contradio absoluta com as tendncias
de seu sculo 25.

22
Sobre o diabo e Francisco, ver EP 59; 67; 68; 69; 95; 96; 98; 99; 1Cel 68; 72; LTC 12; 2Cel 1, 6; 3, 10;
53; 58-65. LM 59-62. Cf. Eclo 3; 5; 13. Actus 31. Fior 29. Para ter uma idia do papel dos diabos na vida
dos religiosos no comeo do sculo XIII, preciso ler o Dialogus miraculorum de Cesrio de Heisterbach.
23
Mt 10, 1.
24
Os milagres ocupam apenas dez pargrafos (61-70) em 1Cel. Sobre o nmero, h diversos que
no podemos absolutamente contar como milagres de Francisco porque foram feitos por objetos
que a ele pertenciam. Sobre os milagres de So Francisco, ver um slido captulo de Papini, Storia,
lI, p.155 ss, e ibid., p.25, nota, a bela pgina sobre o maravilhoso e os abusos feitos sobre ele.
25
Os hereges aproveitaram-se muitas vezes dessa sede de maravilhoso para enganar os catlicos: Os ctaros
de Moncoul fabricaram um retrato da Virgem em que ela era representada caolha e desdentada, e disseram
que em sua humildade o Cristo escolheu uma mulher muito feia para ser sua me. No tiveram dificuldade
para provocar diversas curas; a imagem tornou-se famosa, foi venerada quase por toda parte, e realizou uma
poro de milagres at o dia em que os hereges divulgaram a mistificao para grande escndalo dos fiis.
Egberto de Schnau, Contra Catharos, serm, I, cap. II (Patrol. lat. Migne, t. CXCV). Cf. Heisterbach, loco
cit., V, 18. Lucas de Tuy, De altera Vita, lib. lI, 9; III, 9, 18 (Patrologia de Migne, 208).

246
Abri a vida de seu discpulo Santo Antnio de Pdua (+1231): um
cansativo catlogo de prodgios, curas, ressurreies. Parece mais o
prospecto de um farmacutico que inventou uma nova droga do que um
apelo converso e a uma vida superior. Isso pode interessar aos doentes
e aos devotos, mas nem o corao nem a conscincia ficam satisfeitos.
Precisamos dizer que o relacionamento de Antnio de Pdua com
Francisco parece ter sido muito pequeno. Entre os discpulos da primeira
hora, que tiveram tempo para penetrar a fundo no pensamento de seu
mestre, encontramos traos desse nobre desprezo pelo maravilhoso; eles
sabiam muito bem que a alegria perfeita no consiste em deixar o mundo
estupefato pelos prodgios, em devolver a vista aos cegos, nem sequer
em ressuscitar mortos de quatro dias, mas consiste nesse amor que chega
at a imolao. Mihi absit gloriari nisi in cruce Domini 26.
Frei Egdio tambm pediu a Deus que lhe concedesse a graa de no
fazer milagres: via neles, como na paixo pela cincia, uma armadilha
em que se deixariam prender os orgulhosos, e que desviaria a Ordem de
sua verdadeira misso 27.
Os milagres de So Francisco so todos atos de amor: na cura de
doenas nervosas, essas perturbaes aparentemente inexplicveis, que
grassam nas pocas de crise. Foi nesses casos que ele fez mais milagres.
Seus olhares to doces, to compassivos e tambm to poderosos, que
pareciam ser mensageiros de seu corao, bastavam muitas vezes para
que os que o viam esquecessem todo sofrimento.
Pode ser que o mau olhado seja uma superstio menos estpida do
que costumamos imaginar. Jesus tinha razo quando disse que bastava
um olhar para ser adltero. Mas tambm h esse outro tipo de olhar, o da
contemplativa Maria, por exemplo, que vale todos os sacrifcios, porque
contm todos eles, porque nos d, nos consagra, nos imola.

26
Longe de mim gloriar-me a no ser na cruz de nosso Senhor Jesus Cristo. Gl 6, 14. Essa at hoje a
divisa dos Frades Menores.
27
Spec. Vitae 182 a; 200 a; 232 a; Cf. 199 a. Clara declarou que o doutor ingls que se matara por ordem
de Frei Egdio aparecera-lhe mais brilhante do que se ela o tivesse visto ressuscitando um morto. Chron.
XXIV Gen. An. fr. III, p. 81.

247
A civilizao diminui esse poder do olhar; uma parte da educao
mundana consiste em fazer os olhos mentirem, em torn-los tonos, em
apagar suas chamas. Mas as naturezas simples e retas no saberiam renun-
ciar a essa linguagem do corao que leva vida e sade em seus raios.
Um irmo padecia frequentemente de uma doena muito grave e horr-
vel de se ver, cujo nome no sei, pois alguns atribuam ao demnio. Muitas
vezes se debatia todo e ficava com um aspecto miservel, revirando-se
e espumando. Seus membros se contraam e se estendiam, dobravam-se
entortados ou ficavam rijos e duros. s vezes ficava estendido e rgido,
juntava os ps e a cabea, elevava-se no alto at a altura de um homem e de
repente caa por terra. Com pena de seu grande sofrimento, So Francisco
foi visit-lo, rezou, fez o sinal da cruz sobre ele e o curou 28.

Mas esses casos so excees. Na maior parte do tempo, o Santo


escapava da insistncia de seus companheiros quando eles lhe pediam
milagres.

Em resumo, se olharmos o conjunto da piedade de Francisco, veremos


que ela procede da unio ntima de sua alma com o divino atravs da
orao: essa viso intuitiva do ideal classifica-o entre os msticos. De
fato, ele experimentou a embriaguez e a liberdade do misticismo, mas
no devemos esquecer todos os lados que o distinguem, principalmente
seu ardor apostlico.

Essa piedade ainda tem alguns caracteres particulares que precisamos


indicar.

Inicialmente, a liberdade diante das observncias: Francisco sente


tudo que h de vazio e de orgulho na maior parte das devoes. V nisso
uma armadilha, porque a pessoa em regra com as mincias do cdigo
religioso arrisca-se a se esquecer da lei suprema do amor; alm disso,
o religioso que se impe certo nmero de jejuns extraordinrios faz-se
admirar pelos simples, mas o prazer que ele tem nessa admirao faz

28
1Cel 67.

248
de sua obra piedosa um verdadeiro pecado. Tambm estranho que, ao
contrrio dos outros fundadores de Ordens, ele voltou s diversas regras
que tinha feito para aliviar suas observncias 29.
No podemos ver nisso um acaso, porque ele teve que lutar com seus
discpulos para fazer prevalecer sua vontade; ora, justamente os que
estavam dispostos a relaxar no voto de pobreza eram os que mais dese-
javam ostentar diante de todos os olhares algumas prticas de devoo.
O pecador pode jejuar, dizia ento Francisco, pode orar, chorar,
macerar-se, mas no pode ser fiel a Deus. Bela palavra, que no ficaria
mal na boca daquele que veio pregar o culto em esprito e verdade, sem
templo, sem sacerdote, onde, melhor, todo lar ser um templo e todo
fiel um sacerdote.
Em qualquer culto, o formalismo religioso sempre tem atitudes afeta-
das e lgubres. Os fariseus de todos os tempos desfiguram o rosto para
que ningum possa ignorar suas devoes; Francisco no s era incapaz
de suportar esses modos afetados da falsa piedade, mas colocava a alegria
e o semblante feliz no nmero de seus deveres religiosos.
Como se pode ser triste quando se tem no corao um tesouro impe-
recvel de vida e de verdade, que s cresce na medida em que apro-
veitado? Como ser triste quando, apesar de muitas quedas, no se deixa
de progredir? Para a alma piedosa que cresce e se desenvolve h uma
alegria parecida com a da criana to feliz por sentir seus pobres pequenos
membros fortificando-se e lhe permitindo cada dia um esforo a mais.
A palavra alegria talvez seja a que mais se repete nos escritos dos
autores franciscanos 30: o mestre chegou a fazer dela um dos preceitos
da Regra 31.Ele era um general muito bom para ignorar que um exrcito
alegre sempre um exrcito vitorioso. Na histria das primeiras misses

29
Secundum primam regulam fratres feria quarta e sexta, e per licentiam beati Francisci feria secunda
e sabbato ieiunabant. CJJ 11. Cf. Reg. 1221, cap. 3 e Reg. 1223, cap. 3, em que a sexta feira era o nico
dia de jejum conservado.
30
SP 25; 93; 95; 96; 104; 1Ce1 10; 22; 27; 31; 42; 80; 2Cel 1, 1; 3, 65-68; Eccl, 5; 6; CJJ 21; Conformitates
143 a 2.
31
Caveant fratres quod non ostendant se tristes extrinsecus nubilosos e hypocritas; sed ostendant se gau-
dentes in Domino, hilares e convenienter gratiosos. RNB cap. VII. Cf. EP 96; 2Cel 3, 68.

249
franciscanas h estouros de riso que soam alto e claramente 32.
De resto, muitas vezes imaginamos a Idade Mdia como bem mais
triste do que foi na verdade. Naquele tempo, eles sofriam muito, mas
como a idia de dor nunca estava separada da de castigo, o sofrimento
era uma expiao ou uma prova e, vista por esse lado, a dor perde seu
aguilho; est penetrada pela luz e pela esperana.
Francisco apoiava uma parte da alegria na comunho. Tinha pelo
sacramento da eucaristia esse culto todo impregnado de efuses indiz-
veis, de lgrimas alegres, que ajudou algumas das mais belas almas da
humanidade a suportar a fadiga e o calor do dia 33. A letra do dogma no
estava atrasada no sculo XIII como hoje 34; mas o que h nele de bonito,
de verdadeiro, de poderoso, de eterno na refeio mstica instituda por
Jesus estava nesse tempo vivo em todos os coraes.
A eucaristia foi verdadeiramente o viatico das almas. Como outrora
os peregrinos de Emas, nas horas em que descem as sombras da tarde,
em que as tristezas vagas invadem a alma, em que os fantasmas da noite
despertam e parecem levantar-se por detrs de cada um de nossos pensa-
mentos, nossos pais viam o divino e misterioso companheiro vir a eles;
bebiam suas palavras, sentiam a fora descendo em seu corao, todo o
seu ser inferior se aquecendo, e murmuravam de novo: Ficai conosco,
Senhor, porque est chegando a tarde e o dia j declina.
Frequentemente foram escutados.

32
CrEc, loco cit.; CrJj loco cit.
33
Ver Test.; EP 65; 2Cel 3, 129.
J vimos que em So Francisco a experincia sempre precede a teoria. assim que o cap. 57 do EP (ver
abaixo p. 172) mostra-nos a gnese dos opsculos: De reverentia altaris, ad omnes sacerdotes e ad custo-
des (Boehmer, Analekten, p. 62 e 63). O acrscimo do Speculum Vitae ao vers. 1. Post reversionem de S.
Jacobo; ajuda-nos a determinar a data. Tinha sido na Frana que Francisco provara o culto da Eucaristia,
atravessando-a quando ela vibrava toda com o entusiasmo provocado pelas catedrais. Da sua predileo
pela Frana (EP 65).
34
A palavra transubstanciao aparece pela primeira vez no 4 conclio de Latro (1215), Hfl, t. VIII,
p. 119 s.

250
12

O PONTIFICADO
DE HONRIO III
E A INDULGNCIA
DA PORCINCULA
(1216)

251
XII

Spiritus Domini super me; propter quod unxit me, evangelizare pauperibus misit
me, sanare contritos corde; praedicare captivis remissionem et caecis visum;
dimittere confractos in remissionem; praedicare annum Domini acceptum
et diem retributionis... Hodie impleta est haec scriptura in auribus vestris 1.
Vidit [Jacob] in somnis scalam stantem super terram, et cacumen illius tangens
caelum; angelos quoque Dei ascendentes et descendentes per eam; et Do-
minum innixum scalae dicentem sibi: Ego sum Dominus Deus Abraham
patris tui, et Deus Isaac; terram in qua dormis tibi dabo et semini tuo. Eritque
semen tuum quasi pulvis terrae; dilataberis ad Occidentem et Orientem, et
Septentrionem et Meridiem; et benedicentur in te, et in semine tuo, cunctae
tribus terrre. Et ero custos tuus quocumque perrexeris et reducam te in terram
hanc; nec dimittam nisi complevero universa quae dixi. Cumque evigilas-
set Jacob de somno, ait: Vere Dominus est in loco isto, et ego nesciebam.
Pavensque: Quam terribilis est locus iste! non est hic aliud nisi domus Dei
et porta caeli 2.
Et vidi caelum novum et terram novam. Primum enim caelum et prima terra
abiit, et mare jam non est. Et ego Johannes vidi sanctam civitatem, Jerusa-
lem novam, descendentem de caelo a Deo, paratam sicut sponsam ornatam
viro suo. Et audivi vocem magnam de throno dicentem: Ecce tabernaculum
Dei cum hominibus, et habitabit cum eis; et ipsi populus ejus erunt, et ipse
Deus cum eis erit eorum Deus, et absterget Deus omnem lacrimam ab ocu-
lis eorum, et mors ultra non erit, neque luctus, neque clamor, neque dolor
erit ultra, quia prima abierunt. Et dixit qui sedebat in throno: Ecce nova
facio omnia. Et dixit mihi: Scribe, quia haec verba fidelissima sunt et vera.
Et dixit mihi: Factum est! Ego sum Alpha et Omega, initium et finis. Ego
sitienti dabo de fonte aquae vitam gratis. Qui vicerit possidebit haec, et ero
illi Deus, et ille erit mihi filius 3.

1
Lc 4, 18-21.
2
Gn 28, 12-17.
3
Ap 21, 1-7.

252
XII

O Esprito do Senhor est sobre mim. Por isso, ele me ungiu, ele me mandou
dar a boa nova aos pobres, curar os arrependidos de corao, pregar aos
cativos a remisso e aos cegos a viso, devolver a liberdade aos oprimidos,
proclamar o ano favorvel do Senhor e o dia da retribuio... Hoje se cumpriu
em vossos ouvidos esta palavra da Escritura 4.
Jac teve um sonho: viu uma escada apoiada na terra com sua extremidade
tocando o cu; e os anjos de Deus subindo e descendo por ela; sobre ela
estava o Senhor, que olhe disse: Eu sou o Senhor, Deus de Abrao, teu pai,
e Deus de Isaac, eu darei a ti e tua posteridade a terra em que dormes. Tua
posteridade ser numerosa como o p da terra; te dilatars para o Ocidente
e o Oriente, para o Norte e para o Sul, e em ti e em tua posteridade sero
abenoadas todas as famlias da terra. Eu te guardarei onde quer que vs e
te trarei de volta a esta terra; e no te abandonarei enquanto no tiver feito
tudo que eu disse. E quando Jac despertou, disse: verdade que o Senhor
est aqui, e eu no sabia. E, assustado: Que lugar terrvel! aqui mesmo a
casa de Deus e a porta do cu 5.
E eu vi um cu novo e uma nova terra; porque o primeiro cu e a primeira terra
tinham desaparecido, e j no havia mar. E eu, Joo, vi a cidade santa, a
nova Jerusalm, descendo do cu de junto de Deus, preparada como uma
noiva para o seu noivo. E ouvi uma grande voz, vinda do trono e dizendo:
Eis a tenda de Deus com os homens. Ele vai morar com eles; eles vo ser
o seu povo e o prprio Deus ser o seu Deus. Vai enxugar toda lgrima de
seus olhos, e no haver morte, nem luto, nem gritos nem dor, porque todas
as coisas antigas tero desaparecido. E o que estava sentado no trono disse:
Eis que eu fao novas todas as coisas! E me disse: Escreve, porque estas
palavras esto cheias de certeza e de verdade. E tambm me disse: Est
pronto! Eu sou o alfa e o mega, o comeo e o fim. Para quem tiver sede
ou vou dar de graa a gua da fonte da vida para beber. Quem vencer vai
possuir isso, e eu serei seu Deus, e ele ser meu filho 6.

4
Lc 4, 18-19.
5
Gn 28, 12-17.
6
Ap 21, 1-7.

253
O PONTIFICADO DE HONRIO III
E A INDULGNCIA DA PORCINCULA 7
At recentemente, o ano de 1216 era um dos mais obscuros da vida de
So Francisco, mas, de repente, ficou todo iluminado pela publicao de
um documento que, apesar de breve, deve ser colocado na primeira linha
das fontes da histria religiosa do sculo XIII. Trata-se de uma carta de
nosso conterrneo Jacques de Vitry, que chegou a Perusa bem no dia da
morte de Inocncio III e viu a eleio de Honrio III. Sua ateno foi
vivamente surpreendida pela iniciativa dos Frades Menores 8. No h
nenhum motivo para duvidar do valor de uma carta, verdadeiro fragmento
de um dirio ntimo, escrita no momento em que as coisas estavam acon-
tecendo, antes que as inevitveis iluses de tica que vo transformando
sem cessar as vises passadas pudessem modificar a primeira impresso.
O que se depreende com nitidez dessa pgina, que vai ser encon-
trada logo adiante, que os crticos mais bem intencionados pecaram
por excesso de prudncia na sua apreciao do movimento franciscano
em seu incio. Quando documentos do tipo dos Fioretti, por exemplo,
falam do prodigioso desenvolvimento que a Ordem teve imediatamente,

7
Nas primeiras edies da Vie de Saint Franois dAssise, eu achei que devia excluir em bloco
tudo que se referia famosa indulgncia da Porcincula. Novos estudos feitos em Florena, em
Assis e em Roma, levaram-me a descobrir certo nmero de documentos novos e, principalmente,
permitiram que eu constatasse que os documentos tradicionais em favor da indulgncia so em
geral autnticos. Se sofreram muito passando pelas mos de copistas ignorantes, ou mesmo pouco
escrupulosos, quase sempre possvel encontrar o texto primitivo. Todos esses documentos foram
publicados e comentados no tomo II da Collection dtudes et de documents: Francisci Bartholi,
Tractatus de Indulgentia, M. Paul Sabatier, Paris, 1900.
8
Ver Critique des sources, V 1.

254
os bolandistas sublinhavam com doura o que essas indicaes tm de
inverossmeis; outros, como o Pe. Papini de maneira especial, faziam o
mesmo, com uma espcie de alegria feroz e a paixo de um iconoclasta.
Gosto de pensar que eles ficariam felizes por reconhecer, hoje, como as
consideraes razoveis podem enganar o historiador 9.
Numa primeira abordagem, parece incrvel que em 1216, seis anos de-
pois que Inocncio III tinha acolhido com tanta reserva os doze peregrinos
de Assis, eles tenham visto suas palavras voarem bem rapidamente de
boca em boca, suas idias germinarem to profundamente nos coraes,
que no momento mais solene e mais significativo do pontificado desse
papa, eles tenham atrado os olhares do mundo religioso e tenham sido
vistos como destinados a ser os salvadores da Igreja. Mas um fato.

Alguns meses antes, o conclio de Latro tinha dado o espetculo


talvez mais imponente de todo o sculo XIII. Os setenta cnones que ele
tinha acolhido podem ser considerados a carta da reforma religiosa na
Idade Mdia, e, depois de tantos sculos, ainda podemos sentir a vida, o
amor, o esforo para Deus palpitar nesses decretos em que o papa tinha
colocado o melhor de si mesmo.

Afastados de suas dioceses ou de suas abadias, arrancados depois de


longos meses de seus costumes e de todas as influncias que ordinaria-
mente atam a vontade, os Padres do conclio tinham entrado em com-
pleta comunho de idias com o pontfice. Como estavam subjugados,
arrastados ou entusiasmados, pode ter um havido um momento em que
sentiram que estavam recebendo uma nova uno e que, unidos ao chefe
visvel da Igreja, seriam capazes de qualquer reforma.

preciso ler os sermes ordinrios de Inocncio III, e depois o que


ele fez na inaugurao da primeira sesso do conclio, para sentir como,
nessa ocasio, ele superou a si mesmo. Apropriando-se das palavras
de Cristo a seus apstolos: Desiderio desideravi manducare vobiscum
hoc pasca (desejei vivamente comer convosco esta pscoa), bastou que

9
Ver adiante, p. 280, n. 1.

255
ele expressasse o que pensava para atingir uma emoo sublime. Para
compreender melhor esse discurso, preciso desprezar os detalhes,
abstrair de todo o aparato alegrico, que hoje nos espanta e nos refreia,
para penetrar em sua prpria inspirao. Fazendo isso, chega-se rapida-
mente a perceber o trabalho profundo que houvera depois de 1198 no
pensamento do papa. H um interesse dramtico, porque ns o vemos
avaliando com dor e humildade o que tinha feito e indicando a si e a seus
sucessores, a meta ideal.
Aqui desaparece o poder terrestre do papado, o pontfice no est
mais estabelecido para reger e governar. Ele se coloca abaixo dos reis e
dos povos para sofrer com eles e, principalmente, por eles. O pontificado
romano torna-se uma dor.
Mas, oh! No impunemente que algum se eleva a essa altura moral.
A vida que Inocncio III teria desejado para acabar sua obra foi brus-
camente recusada 10. Como Moiss, ele s pde ver de longe a terra da
promisso, mas pelo menos sucumbiu com os olhos voltados para ela.
Fortificado pelo apoio que tinha encontrado nos representantes das
igrejas, ele saiu de Roma em abril de 1216, e chegou a Perusa no fim de
maio. Sua inteno era percorrer a Toscana e a alta Itlia para reconciliar
Gnova e Pisa, e ativar com tudo que pudesse os preparativos da cruzada
decidida pelo conclio.
No muita presuno pensar que Francisco, que tinha um ardente
desejo de evangelizar os infiis, foi logo a Perusa para se colocar s
ordens do soberano pontfice 11.
Mal tinham passado algumas semanas e o papa caiu doente, sendo
levado provavelmente por uma febre maligna.
Ento aconteceu uma cena que mostra um bem triste dia sobre os

10
Quanquam desiderem in carne permanere donec consummetur opus incaeptum, verumtamen non mea,
sed Dei voluntas fiat. Sermo de Inocncio ao Conclio. Opera, ed. Migne., t. I, col. 673.
11
Moris erat beati Francisci, cum aliquam civitatem, vel terram ingrederetur, ad episcopos, vel sacerdo-
tes accedere... 1Cel 75. Com mais razo, mesmo em tempo ordinrio, ele teria ido se apresentar ao papa.

256
personagens que formavam, nesse momento, o que se convencionou cha-
mar de famlia pontifcia. Assim que todos esses prelados que Inocncio
tinha cumulado de honras e presentes 12 ficaram seguros do que tinha
acontecido com ele, correram a cuidar de suas intrigas e abandonaram
o cadver nas mos de uma criadagem desavergonhada 13.
Precisamos ler esses fatos nas palavras de uma testemunha ocular,
para no ser tentados a tom-los com uma narrativa brincalhona de um
sinistro pesadelo.
De Milo, cheguei a uma cidade chamada Perusa, onde o papa Ino-
cncio acabava de morrer, mas ainda no tinha sido sepultado 14. Durante
a noite, uns ladres despojaram-no de suas vestes preciosas e deixaram
seu corpo quase nu e fedendo no meio da igreja. Eu fui l e vi como
curta, v e enganadora a glria deste mundo.
Os cardeais que mais ambicionavam a sucesso de Inocncio III ti-
nham ficado completamente desconcertados por sua morte sbita e no
puderam organizar nada, porque na hora dos funerais os habitantes de
Perusa toma-ram precaues para que a eleio no se arrastasse por
muito tempo 15.

12
Circa familiares suos liberalissimus extitit, conferendo illis beneficia et honores. Depois vem a longa
lista de todos os seus beneficiados: Innocentii III papae gesta, apud, Migne, t. I, col. CCXXII-CCXXVIll
(cap. 147 ss).
13
Honrio III, Gregrio IX e Inocncio IV tambm foram abandonados no ltimo momento por todos
os que os cercavam: In obitu suo [trata-se de Inocncio IV], omnes familiares sui deseruerunt eum praeter
fratres Minores. Et similiter Papam Gregorium et Honorium et Innocentium in cujus obitu fuit praesentialiter
S. Franciscus. Eccleston 15 (An. fr. I, p. 253).
Isto ajuda a compreender a reflexo melanclica desse documento: Dixit etiam dictus frater Man-
suetus quod nullus mendicus, ne dicam nullus homo miserabilius et vilius moritur quam papa quicumque.
Esse mesmo Frei Mansueto (nncio de Alexandre IV), ainda diz que no h mendigo, ou melhor,
no h ningum que tenha uma morte mais miservel e triste do que um papa.
14
Inocncio morreu no sbado, 16 de julho, in hora nona; ou, como se trata de da maneira de
umbra, que contava o comeo do dia ao pr do sol, conseqentemente l pelas oito da noite nessa
poca do ano, seriam as cinco da manh para a morte do pontfice. Foi nesse dia que Jacques de
Vitry chegou a Perusa. As exquias foram celebradas no dia seguinte, domingo, e a eleio de
Honrio foi na segunda feira, 18. Ver Potthast, p. 460 s. e 468.
15
Vacavit sedes per unam tantummodum diem, Perusinis causa electionis Papae strictissime arctantibus
Bern. Chron. Rom. Pontif., apud Raynald, ad a., 1216, 17. Cum in novo Pontifice diligendo nonnihil dissentire
coepissent, ne sedes vacatio in longum protraheretur illico Cardinales in comitio se recluserunt. Ciaconius,
Vitae Pontificum romanorum, t. I, col. 659. Hinc coeptus mos laudabilis fuit inclusionis Cardinalium ut citius
Papam crearent, neque moras necterent, et cibus in dies parcior. Id. ibid.

257
Aconteceu, ento, o que costuma acontecer nesses casos; o cardeal
que, na vspera, parecia ter menos chances, foi justamente o escolhido.
Aos olhos dos seus confrades tinha uma preciosa qualidade que lhes dava
grandes esperanas: era um dos membros mais idosos do Sacro Colgio.
Fraco e enfermio, parecia designado para resolver provisoriamente a
situao 16, tanto mais que ningum poderia esperar que, durante o seu
pontificado, a direo real dos negcios pertenceria a quem soubesse
agarra-la, preparando-se para garantir sua sucesso.
Foi mais ou menos isso que aconteceu. Honrio III reinou um pouco
mais do que tinham esperado, mas teve a seu lado um coadjutor bem
decidido a no perder a sua sucesso: o cardeal Hugolino dei Conti, o
futuro Gregrio IX.
Os historiadores eclesisticos, levados por sua predileo pelos papas
belicosos, esquecem demais que tudo que houve de mais durvel e bom
no pontificado de Inocncio III foi consolidado e completado por seu
sucessor. Sob o ponto de vista religioso, a ctedra de So Pedro jamais
foi ocupada por algum mais digno.
Os cardeais, diz Jacques de Vitry, elegeram Honrio, um velhinho
bom e religioso, muito simples e bondoso, que tinha dado aos pobres
tu-do que possua.
Esse elogio notvel, sobretudo em uma poca em que j era uma
glria quando um prelado no era simonaco. Honrio III teve um mrito

16
Cum esset corpore infirmus ex senio et ultra modum debilis... Burchardi et Cuonradi Urspergensium
chronicon; Pertz, SS. 23, p. 378-379.
Os cardeais de segunda linha ficaram muito embaraados, porque estavam na presena de dois candidatos
igualmente papveis e que podiam contar praticamente com o mesmo nmero de votos. Encontraram um
meio bem engenhoso de no se comprometer nem com um nem com outro; encarregaram-nos de escolher
eles mesmos o futuro papa. Eram Hugolino, cardeal bispo de stia e Guido, cardeal bispo de Palestrina: Cum
autem venerabilibus fratibus nostris Ostiensi et Palestrino episcopis elegendi fuisset potestas ab universitate
concessa, nostris humeris pallium apostolicum imposuerunt. Honorius III, epistola VI Opera, d. Horoy, t.
11, col. 8. Cf. Pressuti, Regesta Honorii papae III, p. 3, n. 8, Winkelmann, Zwelf Papstbriefe (Forschungen
zur deutschen Gesch., t. XV, p. 376). O nmero de cardeais presentes em Perusa era de 19 entre os 27 que
estavam ento no sacro colgio. Clausen, Papst, Honorius III, p. 8. Ct Ciaconius, col. 659-661.

258
especial para tornar-se digno, porque no momento da eleio ele era
camerarius 17, isto , tesoureiro da Santa S.
Hic dies suos in pace disposuit, disse um outro de seus contempor-
neos 18, e essas poucas palavras resumem admiravelmente o pensamen-
to ntimo de seu reino. No foi por fraqueza como algum poderia
pensar que ele buscou a paz Ele a quis com energia e agiu de acordo
com isso 19. Logo que assumiu o leme da Igreja, foi para o alto mar, as
regies serenas onde as redes apostlicas se enchem sem rudo. Mas
muitos historiadores que ficaram na praia com os olhos fixos nessa barca
que no viam se mexer, ficaram lamentando os pontificados em que ela
batalhava bem perto da costa com o risco de se arrebentar nos rochedos
ou de se perder nas algas.
Podemos imaginar a impresso produzida por um homem como
Honrio, quando viu as baixezas que costumavam acompanhar nesse
tempo todas as eleies pontificais. O eleito se via de repente rodeado
por nuvens de cortesos, de demandantes, de criados e de mendigos que,
como vampiros, vinham reclamar sua parte na cria.
No tempo em que estive na corte pontifcia, diz um pouco mais
adiante Jacques de Vitry vi muitas coisas que me deixaram muito triste.
Eles esto to preocupados com negcios seculares e temporais, com
tudo que diz respeito aos reinos e aos reis, a litgios e processos, que
quase impossvel falar de questes religiosas.
Mas encontrei nessa regio um motivo de consolao: que muitas
pessoas, de ambos os sexos, ricas e vivendo no sculo, deixam tudo por
amor de Cristo e renunciam ao mundo. Chamam-nos de frades menores.

17
Habitualmente traduz-se essa palavra por camerlengo, o que certo, mas com a condio de no esquecer
que a funo do cardeal camerlengo hoje muito diferente do que era no sculo XIII. Nesse tempo, o chefe
da cmara apostlica presidia a gesto dos bens da Santa S, era o intendente da casa apostlica e tinha uma
parte dos poderes hoje atribudos ao Secretrio de Estado.
18
Continuatio chronici ex Pantheo. Pertz. 88., t. XXII, p. 370.
19
Eis o comeo de sua primeira carta ao arcebispo de Auch: Illius regis pacifici, licet immeriti, vicarii
constituti, qui, ut reconciliaret servum Domino; univit hominem sibi Deo, libenter iis qui prope et his qui
longe sunt pacis consilia cogitamus ipsam pro posse, modis omnibus procurantes. Carta de 30 de setembro
de 1216, em Horoy, Honorii III Opera, t. II, col. 39. Potthast, 5337.

259
O papa e os cardeais tm muito respeito por eles. Eles mesmos esto
completamente desinteressados das coisas temporais e fazem cada dia
os mais enrgicos esforos para arrancar das vaidades deste mundo as
almas que perecem, levando-as para suas fileiras. Graas a Deus, seu
trabalho j produziu muitos frutos, e eles conquistaram muitas almas,
pois quem os escuta chama outros e um auditrio chama outro auditrio.
Eles vivem segundo a forma da Igreja primitiva, sobre a qual se
escreveu: A multido dos crentes era um s corao e uma s alma.
Durante o dia, eles vo s cidades e aldeias para ganhar almas e trabalhar;
de noite, eles vo para la eremitrios ou lugares afastados para entregar-
se contemplao.
As mulheres moram juntas perto das cidades, em diversos hospcios.
Elas no recebem nada: vivem do trabalho de suas mos. Ficam muito
perturbadas e aborrecidas por se verem mais honradas do que gostariam,
tanto pelos clrigos como pelos leigos 20.
Os homens dessa ordem renem-se com muito proveito uma vez
por ano, em lugar predeterminado, para se alegrar no Senhor e comer
juntos. Depois, com o conselho de homens de bem, adotam e promulgam
instituies santas e aprovadas pelo papa. Depois disso, eles se disper-
sam por todo o resto do ano na Lombardia, na Toscana e at na Aplia e
na Siclia. Frei Nicolau, que da mesma cidade do papa, homem santo
e religioso, saiu recentemente da cria para se unir a eles, mas como
indispensvel ao papa, foi chamado de volta por ele.
Creio que foi para horrorizar os prelados que so como ces incapazes
de ladrar que o Senhor quis, antes do fim do mundo, salvar muitas almas
por esses homens simples e pobres.
Esse esboo da atividade dos primeiros franciscanos no deixa de ser
pitoresco. Que coisa mais graciosa essa linha sobre os captulos anuais,
reunies em que se vai para se alegrar no Senhor e tomar parte em gapes
fraternos? Certamente Jacques de Vitry tinha ouvido falar do captulo das

20
Mulieres vero iuxta civitates in diversis Hospiciis simul commorantur, nihil accipiunt, sed de labore
manuum vivunt.

260
esteiras de uma maneira muito anloga que nos contada nos Fioretti 21.
A caracterstica que apresenta sobre as irms tambm muito interes-
sante e s ela bastaria para nos provar como eram diferentes os primeiros
estabelecimentos fundados maneira de So Damio de um convento
de clarissas de hoje.

Mas o ponto em que devemos insistir principalmente neste momento,


o dos relacionamentos de So Francisco com o papado. Foram mui-
to mais regulares e efetivos do que podamos imaginar at agora. So
Francisco usou uma espcie de tenacidade para provar sem cessar a sua
ortodoxia; para ele no bastava que a Regra fosse aprovada pelo papa,
queria que tambm o fossem as instituies capitulares.

Teria sido para pedir essa aprovao, ou para receber as ordens do


pontfice a respeito da cruzada, que ele estava em Perusa na hora em que
Inocncio III morreu? No sabemos, mas seguro que l estava, e que
o glorioso pontfice, se abriu os olhos na hora da morte pde ver ao seu
lado o pobrezinho de Cristo 22.

Se o corao de Jacques de Vitry foi to dolorosamente tocado pelas


cenas que se seguiram, podemos imaginar como sangrou o de Francisco
quando viu com que oprbrios davam de beber Senhora Santa Pobreza.

Pois ele teve na cria uma dura experincia: que podemos trabalhar
e semear, orar e chorar sobre o trabalho sem que a semente brote. H
portas em que no adianta bater porque nunca vo se abrir. O dono da casa
em que se quer entrar faz mil protestos de amizade, respeito, admirao,
mas nunca est em casa, como poderia deixar que os outros entrassem?

21
Actus 20; Fior 18. Em 1216, Pentecostes foi no dia 30 de maio; por isso bem provvel que
Frei Nicolau tenha sido um dos numerosos espectadores que foram assistir esse captulo e que,
vivamente tocado pelo que viu, deixou a corte pontifcia, para onde Honrio fez que voltasse
depois de sua eleio.
22
...Innocentius, in cujus obitu, fuit praesentialiter S. Franciscus. Toms de Eccleston 15 (Analecta fr., t.
I, p. 253). Ver, abaixo, p. 256 note 2.

261
Que importavam a Francisco as caoadas, as injrias, as perseguies
com que volta e meia o atacavam? Os que insultavam hoje passavam a
ser amanh colaboradores e discpulos, e logo brotaria de sua alma sub-
jugada o grito do arrependimento, do amor e da f. Mas, que no teria
ele dado para que os prelados que lhe prodigalizavam os testemunhos
mais embaraosos de admirao acolhessem melhor suas idias do que
sua pessoa?
A eleio de Honrio deve ter parecido para ele a resposta do prprio
Esprito Santo a sua falta de coragem. No era um ndice de que tinham
exagerado os males da Igreja? Deus assumia nas mos a causa da Pobreza.
O velhinho que ia suceder a So Pedro no era como um frade menor,
ele que soubera conservar seu corao puro de toda avareza?
Devem ter sido esses os sentimentos com que Francisco retomou o
caminho de Perusa poucos dias depois da entrada do novo pontfice. Ca-
minhava alegremente com esse jbilo claro e luminoso que vem depois
das horas de tempestade quando o cu volta bruscamente a ser sereno.
Acompanhado por Frei Masseu, foi tambm ele pedir ao novo papa
um presente pelo feliz acontecimento. O que ele queria obter era um
favor sem precedentes, assim creio, nos anais da Igreja; mas ele tinha
essa fora eternamente vitoriosa: a f.
Durante a noite anterior, enquanto orava na sua querida capela de
Nossa Senhora dos Anjos, o modo de proceder lhe fora ditado de algu-
ma forma pelo prprio Deus. Ele tinha experimentado muitas vezes que
con-verses sinceras so seguidas por bruscos retornos, simplesmente
porque para muitos pecadores o testemunho interior, a certeza pessoal
do perdo de Deus no basta.
Para o criminoso agraciado, no basta ser posto fora da cadeia para
ter a segurana de sua liberdade e ter a coragem de comear uma vida
nova. Ele precisa de um sinal palpvel de seu perdo, um atestado que
ele vai prender febrilmente no corao, pois pede sentir-se desfalecer se
encontrar de repente o carcereiro ou o carrasco 23.

23
Ut non habeant brigam aliam. Palavras de So Francisco no testemunho de Frei Leo.

262
Seria melhor que isso no fosse verdade e que todos os convertidos
fossem parecidos com So Paulo e esses heris da f em que a certeza da
salvao infinita, sem sombras nem graus. Mas, se h algumas almas
eleitas que sabem que esto to bem unidas a Deus que experimentam
uma espcie de alegria amando-o sem v-lo e esperando contra toda
esperana, isso so virtudes poucas vezes feitas para nossa terra. Ora, os
santos e os que convertem no tm que perguntar se seriam puros esp-
ritos, mais do que o so os homens, empurrando-os para Deus que os criou
finitos e imperfeitos, levando em conta suas fraquezas e imper-feies 24.
Era por isso que Francisco estava preocupado havia muito tempo pelo
desejo de dar aos que ele ganhava para o bem algum atestado exterior
do drama que se desenrolara no mais fundo de seus coraes e de que
eles tinham sado vitoriosos.
Ele queria que as pessoas que ele jogava no caminho do bem tivessem
a boa sensao de que uma pgina de sua histria fora arrancada, que a
graa de Deus permitia-lhes recomear a vida, sem que o fantasma do
passado e de suas mculas pudesse levantar-se de novo diante deles.
Ser que Honrio ficou surpreso quando viu dois frades menores
no meio da onda amontoado de solicitadores? Se algum pensamento
de tristeza ou de desiluso se apresentou a seu esprito, no fez mais
do que atravessa-lo. O favor pedido por Francisco era enorme, mas era
todo espiritual, e, escutando o Poverello, o pontfice pde sentir a voz
do amor desses violentos que arrebatam o reino dos cus.
Santo Padre, dizia ele, faz algum tempo que lhe reparei uma igreja
25
em honra da Virgem Me do Cristo. Eu suplico a vossa Santidade que,

24
Jesus no procedeu de outra maneira, e quando curou o leproso quis que ele fosse se apresentar ao
sacerdote para que a cura fosse oficialmente atestada. Mt 8.
25
Reparavi vobis. Costumam pensar que haja aqui uma aluso ao fato de que a Porcincula per-
tencia ao patrimnio de So Pedro. possvel, mas prefiro crer que para So Francisco todas as
igrejas da terra formavam um domnio ideal e sagrado, administrado pelo papa e centralizado em
So Joo de Latro, omnium urbis et orbis ecclesiarum mater et caput.

263
por ocasio de sua dedicao, lhe d uma indulgncia sem oblao 26.
O papa se surpreendeu. Nessa poca, toda indulgncia, por mnima que
fosse, supunha uma oblao, isto , a oferta de uma quantia proporcional
fortuna de quem a obtinha.
Mas essa considerao de jurisprudncia parece que nem passava
pela cabea de Francisco; e o velho papa sentia uma estranha emoo
ganha-lo para o ponto de vista daquele que o estava olhando, como um
filho olha para seu pai, sabendo que vai ser atendido.
E de quantos anos essa indulgncia que tu queres? Disse Hon-
rio, sem perceber que tacitamente j tinha concedido o primeiro ponto.
Santo Padre, respondeu Francisco, no so anos que estou pedindo
a vossa santidade, so almas.
Que queres dizer? Perguntou o papa, pressionado como por uma
fora irresistvel de se reconhecer vencido nessa luta. Santo Padre,
eu gostaria, se Vossa Santidade permitir, que todos os que forem quela
igreja, contritos de seus pecados, depois de se terem confessado e re-

26
As palavras citadas nas pginas seguintes foram tomadas textualmente dos trs documentos mais antigos
referentes indulgncia.
1. O testemunho de Frei Leo, que chegou at ns como atestou, entre 1274 e 1280 Jacques Coppoli, de
Perusa.
2. A atestao notarial dos BB. Bento e Ranieri de Arezzo, datada de 1277.
3. A notificao do bispo de Assis, Teobaldo, nos primeiros anos do sculo XIV.
A apreciao crtica desses documentos e de outros de segunda linha foi dada em Coll., t. II, Bartholi.
Introduo, p.17-103.
La Leggenda 3 Soc. Melchiorri-Marcellino, p. 155, apresenta uma narrativa anloga que, se como eu
penso, esse documento for anterior a 2Cel (1247) (ver crtica das fontes c. II IX), ser ainda mais antigo.
Essa narrativa confirma, sem ser a fonte nem dela depender, aquelas sobre as quais eu me baseei (ver Coll,
t. II, p.127-129.)
Em nenhuma dessas duas narrativas fala-se das duas movimentaes de So Francisco, uma em Perusa e
outra em Roma, para obter a indulgncia. Frei Leo e os outros so perfeitamente claros: foi por ocasio da
dedicao, cuja data j estava determinada ou o foi na hora (Ver a atestao de Bento de Arezzo Coll., t. II,
p. 44 ss.) de que So Francisco a pediu. Alguns autores admitiam a idia de uma viagem de So Francisco a
Roma, dois anos mais tarde, para determinar o dia, sem se dar conta de que improvvel que So Francisco
suplicasse a graa e a deixasse dois anos sem acertar. H nisso principalmente o desejo de aceitar todos os
floreios mais ou menos felizes que vieram a se envolver em torno da histria autntica, a ponto de desfigur-
la ou de mascar-la de uma vez.

264
cebido a absolvio sacerdotal, obtivessem a remisso de todos os seus
pecados, como pena e como culpa, nos cus e na terra, desde o dia de
seu batismo at o dia e a hora de sua entrada naquela igreja.

Ao ouvir essas palavras, o papa sentiu-se invadido por uma nova


perturbao. Alguns dias antes, tinha recebido as chaves misteriosas que
simbolizam o poder de ligar e desligar, de abrir e de fechar, e agora o
mais humilde de seus filhos vinha pedir que abrisse de uma vez a porta
da salvao, que publicasse um perdo inaudito.

Quem sabe se, enquanto sua boca murmurava uma ltima objeo
ainda que em corao brotasse um canto de alegria infinitamente doce,
ele no pode ter sonhado com um outro velho, aquele Simeo que, em p
no limiar do templo de Jerusalm, tinha podido apertar em seus braos
o Desejado das naes, o Redentor do mundo!

Ento disse: Mas a cria romana no tem o costume de fazer isso,


de conceder esse tipo de indulgncia 27.
Senhor, replicou Francisco, no sou eu que estou pedindo isso,
o Senhor Jesus Cristo. Eu venho da parte dele.

Dessa vez, o papa respondeu depressa: Sim, eu te concedo essa


indulgncia.

Esse dilogo foi testemunhado por vrios cardeais que, at ento,


tinham ficado calados. Ficaram consternados quando ouviram as lti-
mas palavras do papa. Correram para acudi-lo como se achassem que o
poder supremo lhe causara uma espcie de vertigem: Mas, senhor, se
concedes a esse homem uma indulgncia dessas, destris a da cruzada,
e a dos santurios apostlicos vai perder todo valor.

27
Ver o cnon 62 do IV conclio de Latro (1215) inserido no Corpus juris can. 14, X de paenitentiis (n.
38). Cf. Hfl, Histoire des Conciles, t. VIII, p. 15 (ed. fr.).

265
Ns j a demos e outorgamos, disse Honrio, no podemos voltar
atrs sobre o que foi feito; mas vamos modifica-lo de modo que s se
estenda por um dia natural 28.
Mandou que ele se aproximasse e disse: De agora em diante, conce-
demos que de agora em diante toda pessoa que for e entrar nessa igreja,
bem arrependida e depois de se ter confessado, seja absolvida de toda
pena e de toda culpa; e queremos que essa indulgncia seja vlida, todos
os anos e para sempre, s durante um dia, a partir das primeiras vsperas
at as vsperas do dia seguinte.

Logo que o pontfice acabou de falar, Francisco, radiante de alegria,


inclinou-se e se preparou para sair da sala.

O simplicione quo vadis? simplrio e sem fraude, aonde vais?


Para onde voc vai sem as cartas testemunhais de um favor to grande?

Essas palavras, to naturais na boca do pontfice, que tinha sentido a


m vontade de seus cardeais, podem ter espantado um pouco Francisco.

O que ele tinha vindo buscar nas mos do sucessor de Pedro era a
indulgncia propriamente dita, no um diploma e pergaminhos.

Ento disse: Se essa indulgncia for obra de Deus, Ele que deve
manifestar sua obra; eu no preciso de documento. Que o papel seja a
Bem-aventurada Virgem Maria, que o escrivo seja o Cristo e os anjos
sejam as testemunhas.

Francisco e Masseu saram logo de Perusa e foram para Nossa Senhora


dos Anjos. Mal tinham caminhado uma hora quando chegaram a Colle
29
, essa bonita aldeia que ainda existe no alto de uma colina arredonda-
da toda plantada com pinheiros guarda-chuva, quando Francisco quis

28
Essas ltimas palavras provam que foi para as festas e a dedicao da Porcincula que Fran-
cisco pediu a indulgncia. Essas festas costumavam durar oito dias, mas a indulgncia foi restrita
ao primeiro dia da oitava.
29
Pela grande estrada atual, passamos ainda a 200 ou 300 metros de Colle ou Collestrada, indo de Perusa
a Assis, alguns minutos depois de ter atravessado o Tibre na Ponte S. Giovanni.

266
descansar no leprosrio local. Dormiu um sono cheio de sonhos em que
lhe foi revelado que Deus, no cu, tinha confirmado a indulgncia dada
na terra por seu ministro.

Poucos dias depois, aos 2 de agosto, foi feita a dedicao solene da


igreja de Nossa Senhora dos Anjos ou da Porcincula. Sete bispos tinham
respondido ao convite de Francisco, que anunciou multido o perdo
concedido perpetuamente para aquele dia em sua querida capela.

No preciso descrever o cerimonial dessas festas que, desde o sculo


XIII, praticamente no variou; mas, enquanto hoje o povo assiste passivo
e indiferente a ritos cuja significao profunda lhe escapa completamen-
te, nessa ocasio assistiu com ardor e paixo, como a uma espcie de
duelo entre Deus e os poderes tenebrosos. Vendo o desenrolar de todo
tipo de bnos, de asperses e unes, sentia a mesma emoo de um
marinheiro que, depois de mil perigos, consegue levantar a bandeira de
seu pas em algum rochedo perdido do Oceano.

Francisco tinha sido encarregado da pregao. bem provvel que


sua qualidade de dicono deu-lhe a honra de fazer uma parte das leituras.
Nas recomendaes que devia dirigir a seus discpulos, no momento de
sua morte, a respeito de sua igreja querida, reencontramos um eco da
liturgia da dedicao, cuja maior parte tinha podido parecer ditada bem
especialmente para a Porcincula.

Eterno, Deus de Israel, no h ningum semelhante a vs nem nos


cus nem na terra: vs guardais a aliana e a misericrdia para com vossos
servidores que caminham em vossa presena de todo corao... Mas o
qu? Deus habitaria mesmo na terra? Os cus dos cus no vos podem
conter, quanto menos esta casa que eu constru! Mas, Senhor, atendei
a prece de vosso servidor e a sua splica: escutai o grito e a orao que
vosso servo hoje vos dirige. Que vossos olhos fiquem abertos noite e dia
para esta casa, para o lugar de que dissestes: L vai estar o meu nome.
Dignai-vos atender a prece que vosso servo faz neste lugar. Dignai-vos
escutar a splica de vosso servo e de vosso povo, quando vierem orar
neste lugar. Escutai em vossa morada l no cu, escutai e perdoai!

267
... Quando o estrangeiro, que no de vosso povo de Israel, vier de
um pas longnquo por causa do vosso nome, porque todos sabero que
vosso nome grande, vossa mo forte e vosso brao est estendido,
quando vier orar nesta casa, ouvi-o l dos cus, do lugar onde morais, e
da a esse estrangeiro tudo que ele vos pedir, para que todos os povos da
terra conheam vosso nome no para ter medo dele, como vosso povo de
Israel, e saibam que vosso nome invocado nesta casa que eu constru 30.

Foi assim que Salomo orou na dedicao do templo de Jerusalm,


e assim podia orar Francisco na dedicao da Porcincula com uma
fora que essas palavras no tinham na boca do rei de Israel, com essa
abundncia de f e de confiana que Jesus infundiu no corao dos seus
diante do Pai Celeste.

30
3Reg. 8. (1Reis VIII, 23-44). Essa admirvel orao ainda lida em Nossa Senhora dos Anjos no primeiro
noturno das Matinas de 2 de agosto. Para a liturgia da dedicao e seu simbolismo podemos encontrar ex-
plicaes informaes mais completas em Tiago de Voragine, Legenda aurea, p. 845-857 da edio Graesse
(Breslau, in-8, 1890) e em Guillaume Durand, Rationale divinorum officiorum, liber primus, cap. VI, fo
13 b-21 a, ed. de Veneza, 1540).

268
13

O CAPTULO GERAL DE 1217

269
XIII

Justus ut palma florebit;


sicut cedrus Libani multiplicabitur 1.
Ne memineritis priorum,
Et antiqua ne intueamini.
Ecce ego facio nova, et nunc orientur,
Utique cognoscetis ea...
Populum istum formavi mihi,
Laudem meam narrabit 2.
Quam pulchri super montes pedes annuntiantis et praedicantis pacem, annun-
tiantis bonum, praedicantis salutem, dicentis Sion: Regnabit Deus tuus!
Vox speculatorum tuorum: levaverunt vocem, simul laudabunt, quia oculo
ad caelum videbunt cum converterit Dominus Sion... Paravit Dominus
brachium sanctum suum in oculis omnium gentium; et videbunt omnes
fines terrae salutare Dei nostri 3.
Egredimini in montem, et afferte frondes olivae..., et frondes ligni nemorosi,
ut fiant tabernacula, sicut scriptum est... Fecit ergo universa ecclesia eo-
rum qui redierant de captivitate tabernacula et habitaverunt in tabernacu-
lis. Non enim fecerant a diebus Josue, filii Nun, taliter filii Israel usque ad
diem illam; et fuit laetitia magna nimis. Legit autem in libro legis Dei per
dies singulos, a die primo usque ad diem novissimum; et fecerunt solem-
nitatem septem diebus, et in die octavo collectam, juxta ritum 4.
Omnes etiam qui credebant erant pariter, et habebant omnia communia.
Possessiones et substantias vendebant, et dividebant illa omnibus, prout
cuique opus erat. Quotidie quoque perdurantes unanimiter in templo, et
frangentes circa domos panem sumebant cibum cum exsultatione et sim-
plicitate cordis, collaudantes Deum, et habentes gratiam ad omnem ple-
bem. Dominus autem augebat qui salvi fierint quotidie in idipsam 5.

1
Sl 91,13
2
Is 43, 18-21.
3
Is 52, 7-10.
4
Ne 8,15-18.
5
At 2, 44-47.

270
XIII

O justo florescer como a palmeira,


E se multiplicar como o cedro do Lbano 6.
No fiqueis recordando o que j passou,
Nem olhando as coisas antigas.
Olhai que eu fao coisas novas: vo nascer agora,
Sim, vs as conheceis...
Formei este povo para mim,
Ele vai contar minha glria 7.
Como so belos, nas montanhas, os ps de quem anuncia e apregoa a paz, do
que anuncia o bem, do que prega a salvao, do que diz: O teu Deus vai
reinar! Esta a voz de tuas sentinelas, eles levantaram a voz e tambm
vo louvar! Porque olhando para o cu vo ver quando o Senhor conver-
ter Sio... O Senhor manifestou seu poder aos olhos de todas as naes;
todos os confins da terra vero como nosso Deus nos salvar 8.
Sa para as montanhas e trazei ramos de oliveira..., e ramos de rvores fron-
dosas, para se fazerem abrigos, como est escrito... Ento, toda a assem-
blia dos que tinham voltado do cativeiro construiu abrigos de folhagens
e neles foi morar. Pois no os faziam desde o tempo de Josu, filho de
Nun, e a alegria foi enorme. Leram no livro da lei de Deus do primeiro ao
ltimo dia. A festa durou sete dias e no oitavo dia houve uma assemblia,
como tinha sido ordenado 9.
Todos os crentes viviam juntos, e tinham tudo em comum. Vendiam suas
propriedades e haveres e as partilhavam com todos, conforme a necessi-
dade de cada um. Todos os dias ficavam muito tempo juntos no templo e,
partilhando o po pelas as casas, comiam com alegria e simplicidade de
corao, louvando a Deus fazendo-se amar por todo o povo. E o Senhor
fazia crescer cada dia o nmero dos que tinham sido salvos 10.

6
Sl 91 (92),13.
7
Is 43,18-21.
8
Is 52,7-10.
9
Ne 18,15-18.
10
At 2,44-47.

271
A partir de Pentecostes de 1217, as indicaes cronolgicas sobre
a vida de Francisco so bastante numerosas, tornando os erros quase
impossveis 11.
Infelizmente, no isso que acontece com os dezoito meses anterio-
res (outono de 1215 Pentecostes de 1217). Para esse perodo estamos
reduzidos a hipteses, ou pouco se pode fazer.

11
Costuma-se fixar em 1217 ou em 1219 o comeo das grandes misses e a instituio dos ministros pro-
vinciais, mas essas duas datas apresentam grandes dificuldades. Confesso que no entendo a violncia com
que os partidrios de uma e de outra data defendem sua opinio. O texto mais importante uma passagem da
LTC 62: Expletis itaque undecim annis ab inceptione religionis, et multiplicatis numero et merito fratribus,
electi fuerunt ministri, et missi cum aliquot fratribus quasi per universas mundi provincias in quibus fides
catholica colitur et servatur. Que quer dizer: inceptio religionis? De incio vemos a sem hesitar a fundao
da Ordem, que foi em 1209, pela recepo dos primeiros frades, mas acrescentando onze anos completos
a essa data camos no vero de 1220. Esta manifestamente muito tardia, porque os Trs Companheiros
dizem que os frades que partiram foram perseguidos na maior parte das regies para l dos Alpes porque no
tinham nenhuma carta pontifcia para confirm-los. Ora, a bula Cum dilecti de 11 de junho de 1219. Por isso
somos levados a pensar que os onze anos no devem ser contados a partir da recepo dos primeiros frades,
mas da converso de Francisco, que os autores puderam chamar de inceptio religionis, usando um pouco
imprpriamente essas palavras. Ora, 1206 +11 = 1217. O uso dessa expresso para designar a converso
tem seus exemplos: Glassberger diz (An. fr., p. 9): Ordinem minorum incepit anno 1206. Os que admitem
1219 so obrigados (como os bolandistas, por exemplo) a atribuir ao texto da LTC uma inexatido, a de ter
contado onze anos passados, onde s se trata de dez. Devemos notar que as duas outras indicaes cronol-
gicas dadas pela LTC (27 e 62), contam a partir da converso, isto 1206, como Toms de Celano: 88, 105,
119, 97, 88, 57, 55, 21. curioso que as Conformidades reproduzem a passagem da LTC (118b 1) mas com
uma mudana: Nono anno ab inceptione religionis. Jordo de Jano abre a porta para muitos escsrpulos:
Anno vero Domini 1219 et anno conversionis ejus decimo frater Franciscus... misit fratres in Franciam, in
Theutoniam, in Hungariam, in Hispaniam (CrJJ 3. Como um pouco mais adiante o mesmo autor faz com
razo que 1219 concorde com o dcimo sexto ano da converso de Francisco, todo mundo reconhece que a
passagem citada precisa de alguma correo; Glassberger, que tinha sem dvida um outro manuscrito diante
dos olhos, substitui 1217, mas ele pode ter tirado essa data de algum outro documento. Devemos notar que
Frei Jordo d como simultnea a partida dos frades para a Alemnha, a Hungria e a Frana. Ora, para este
ltimo pas, foi certamente em 1217. EP 65. Ver Coll., t. I, p. 122, n. 2.

272
Como Francisco no empreendeu nessa epoca nenhuma misso ao
exterior, deve ter passado o tempo evangelizando a Itlia central e con-
solidando as bases de sua instituio. Sua presena em Roma, durante
o Conclio de Latro (11-30 de novembro de 1215), possvel, e at
provvel, mas no deixou nenhum vestgio nas biografias primitivas.
Podemos considerar como um indcio favorvel presena de Francisco
em Roma durante esse tempo as numerosas analogias que podem ser
notadas entre os sermes feitos por Inocncio III para a abertura e o
encerramento do conclio e os opsculos de So Francisco de Assis. Na
verdade, em alguns momentos parece que Francisco se esforou para ser
um eco da voz do pontfice.
O conclio ocupou-se certamente da nova Ordem e foi chamado a
tomar conhecimento da aprovao que Inocncio III lhe dera 12.
Por essa mesma poca, os captulos gerais dos Frades Menores reu-
nidos na Porcincula todos os anos, na festa de Pentecostes, acabaram
de tomar sua fisionomia original e uma importncia para a histria da
Igreja que at agora ningum calculou, mas que no d para ser estudada
em um breve rascunho.
At ento, os captulos tinham sido reunies cada vez mais numero-
sas, cuja finalidade essencial era estabelecer ou fortificar o contato entre
o fundador da Ordem e seus discpulos. O fato de celebr-los com a

A Crnica dos 24 Gerais e Marcos de Lisboa (ed. Diola, t. I, p. 82) tambm tendem para 1217, de maneira
que essa data parece ter que ser aceita at nova ordem, mesmo sem estar definitivamente estabelecida. Par-
tindo de premissas um pouco diferentes, os sbios editores da Analecta chegam mesma concluso (t.II,
p.XXV-XXXVI). Cf. Evers, Analecta ad Fr. Minorum historiam, Leipzig, 1882, in 1,, p. 7 e 11. O que me
parece fazer pender definitivamente a balana em favor de 1217 o fato de que os frades em misso foram
perseguidos porque no tinham nenhum documento para legitim-los. Ora, em 1219 eles teriam, como
dissemos acima, a bula Cum dilecti de 11 de junho desse ano. Os bolandistas que tendem para 1210 perce-
beram to bem a questo que precisaram negar a autencidade da bula (ou pelo menos supor que estava mal
datada). A. 58, p.839. Por e contra a data de 1217, ver Papini, Storia I, p. 91; F. Ehrle, Zeitschrift fr kath.
Theol., t.XI (1887), p. 727; Analecta fr., t.II, p.XXVI ss; K. Mller, Anfange des Minoritenordens, p. 57 ss.;
p. 8, n. 3; Lempp, Zeitschritt fr Kirchengeschichte de Brieger, t. XII, p. 426 ss; Chron. XXIV Gen. An. fr.
III, p. 10. Evers, Analecta ad fr. Min. historiam (Leipzig, 1882), p. 7-11. H. Boehmer Coll. t.VI, p.LXXIV-
LXXX; Goetz, Quellen zr Geschichte... p. 91; Brem, Papst Gregor IX bis zum Beginn seines Pontifikats
(Heidelberg, 1911), p.111-118; Golubovich, Biblioteca, t.II, p.217 ss.; P. Andr Callebaut, AFH, t.X. (1917),
p. 290; Pe.Anastase Vander Wyngaert, France franciscaine, t. V (1922), p. 266 e as notas.
12
Ver A.SS., p. 604. Cf. Angelo Clareno, Tribul. Archiv., I, p. 559. A papa Innocentio fuit omnibus annun-
tiatum in concilio generali..., sicut sanctus vir fr. Leo scribit et fr. Johannes de Celano.

273
presena de numerosos clrigos seculares e, depois, sob a presidncia de
prelados que pertenciam aos mais altos cargos da hierarquia, devia exercer
fatalmente uma grande influncia sobre as deliberaes da assemblia.
Convidando bispos e cardeais para o captulo, So Francisco pensa-
va principalmente em duas coisas. Na esplndida consagrao que sua
presena dava s novas idias e aos esforos da gente poverella, e no
brilhante testemunho de lealdade Igreja Romana, que constitua sua
iniciativa.

Ele no podia prever a influncia profunda, mesmo dificilmente


perceptvel, que a presidncia, ainda que puramente honorria, de um
cardeal, haveria de ter nos destinos da Ordem.

Se Francisco e seus companheiros tinham encontrado protetores


dentro do Sacro Colgio, tambm certo que encontraram oposies
irredutveis, mesmo pouco escrupulosas sobre os meios a empregar para
abafar as novas tendncias.

Mas, ser que os mais calorosos defensores dos Frades Menores ti-
nham captado bem a amplido da reforma pregada por eles?

Podemos duvidar disso. E principalmente no que se refere ao car-


deal Hugolino que podemos hesitar. Desde 1216, ele se tinha consitudo
protetor do movimento franciscano. Ento, das duas uma: ou no tinha
entendido a profundidade do esforo franciscano, ou ento, se tinha
compreendido, passou o resto da vida brandindo a bandeira das idias
franciscanas enquanto as traa. Mas pode haver outra soluo. Hugolino
era desses que no enxergam a diferena entre os interesses religiosos do
mundo e os interesses polticos da Santa S. Para esse velho de indomvel
energia, cuja fora intelectual e moral estava assim orientada, o sucesso
das idias franciscanas s tinha despertado uma idia bem prtica: Como
poderei utilizar essa fora? Joo de So Paulo, cardeal-bispo de Sabina,
que tinha sido o primeiro protetor benvolo dos Frades, tinha morrido

274
em 1214 13. Hugolino ofereceu-se a So Francisco para suced-lo 14.
Naturalmente, essa manobra to extraordinria encheu de alegria a alma
do humilde pobrezinho de Deus.

bem possvel que tenha sido no dia 29 de maio de 1216 o primeiro


captulo em que o cardeal esteve presente. Por um erro muito comum na
histria, a maior parte dos autores franciscanos referiu a uma nica data
todos os vestgios esparsos sobre as primeiras assemblias solenes da
Ordem, dando a essa assemblia tpica o nome de Captulo das Esteiras
15
. Na realidade, durante muitos anos, todos os captulos de Pentecostes
dos Frades Menores mereceriam esse nome.

Reunindo-se no tempo de maior calor, eles dormiam a cu aberto ou


se abrigavam em cabanas de canios; no precisamos ter pena deles: no
h nada igual gloriosa transparncia das noites de vero na mbria.
s vezes podemos saborear uma amostra disso na Provena, mas, se nos
Baux, sobre o rochedo dos Doms ou na Sainte-Baume, o espetculo to
solene e grandioso, falta aquela doura acariciante, faltam os eflvios de
vida que lhe do um encanto enfeitiado l na Itlia.

Os habitantes das aldeias e burgos dos arredores vinham em massa


a esses encontros, tanto para ver as cerimnias, acompanhar parentes e
amigos em sua recepo do hbito, escutar os apelos do Santo, como para
fornecer aos frades todas as provises de que podiam necessitar. No
deixa de haver uma analogia, em tudo isso, com os camp meeting de que

13
A ltima bula no p da qual lemos sua assinatura de 21 de abril de 1214.
14
LTC 61; Cf. An. Perus. A.SS., p. 606 s. Toms de Celano deve ter errado quando disse que Francisco no
conhecia o cardeal Hugolino antes da visita que lhe fez em Florena (vero de 1217): Nondum alter alteri
erat praecipua familiaritate conjunctus (1Cel 74 e 75). O bigrafo franciscano no tinha uma finalidade
histrica; as indicaes cronolgicas foram dadas por acrscimo; o que ele busca a apta junctura. A tra-
dio conservou a lembrana de um Captulo feito na Porcincula, na presena de Hugolino, durante uma
permanncia da Cria em Perusa (Actus 20; Fior 18; Conform. 207 a; LTC 61). Ora, a Cria no voltou mais
a Perusa entre 1216 e a morte de Francisco. Tambm preciso notar que, de acordo com ngelo Clareno,
Hugolino teria estado desde 1210 ao lado de Francisco, para apoi-lo junto a Inocncio III, ver Crtica das
Fontes C. IV IV. Enfim, a bula Sacrosancta, de 9 de dezembro de 1219, testemunha que j durante sua
legao de Florena (1217), Hugolino cuidava ativamente das clarissas.
15
Ver por exemplo a descrio do captulo de 1221 por Frei Jordo de Jano, CrJj 16.

275
os americanos tanto gostam. Quanto ao nmero de alguns milhares de
participantes, apresentados pelas legendas e que deu oportunidade mesmo
a um franciscano, o Pe. Papini, para brincadeiras de gosto duvidoso, no
to espantoso como pode parecer 16.
Essas primeiras reunies, em que tomavam parte todos os frades,
feitas ao ar livre na presena de multides vindas de bem longe 17, no
tinham nada em comum com os captulos gerais posteriores, verdadeiros
conclaves onde comparecia um pequeno nmero de representantes, e em
que a maior parte dos trabalhos, mantidos em segredo, s cuidavam dos
assuntos da Ordem.
Quando So Francisco estava vivo, a finalidade dessas assemblias era
essencialmente religiosa. No iam l para tratar de negcios ou proceder
nomeao do ministro geral, mas para se fortificar na comunho das
alegrias, dos exemplos e das dores dos outros frades 18.
Os quatro anos posteriores a Pentecostes de 1216, constituem uma
etapa na evoluo do movimento umbro: aquela em que Francisco lutou
pela autonomia. H neles alguns matizes passavelmente delicados, que
foram mal conhecidos pelos escritores eclesisticos tanto quanto por seus
adversrios, porque, se Francisco no queria de maneira alguma parecer
um revoltado, tambm no queria comprometer sua independncia e
sentia, como por uma refinada intuio, que todos os privilgios que a
Cria romana podia dar-lhes no valiam a liberdade.

16
A propsito do nmero de 5000 participantes dado por Boaventura (LM 52), o Pe. Papini exclama:
Io non credo sia stato capace alcuno di dare ad intendere al S. Dottore simil fanfaluca, ne capace lui di
crederla... In somma il numero quinque millia et ultra non del Santo, incapace di scrivere una cosa tanto
improbabile e relativamente impossibile. Storia di S. Fr. I, p. 185 e 186. Esses cinco mil tambm so indica-
dos por CrEc 6. Tudo isso se explica e se torna possvel se admitimos a presena dos Irmos da Penitncia,
e parece bem difcil contesta-lo, porque a Ordem dos Humilhados, que se parecia muito com a dos Frades
Menores (composta igualmente por trs ramos, aprovada por trs bulas dadas desde junho de 1201), os
captulos anuais, feitos anualmente, tambm eram freqentados pelos irmos das trs Ordens. Tiraboschi,
t. II, p. 144. Cf. abaixo, p. 181.
17
Omnes (fratres) quolibet anno ibi conveniebant... Quidam autem milites Assisii qui erant ibi ad cus-
todiam loci propter multtudnem forensium qui convenerant ad videndum capitulum fratrum... EP cap. 7.
Cf. CrEccl. 6, 28 ss.
18
Ver 2Cel 3,121; Spec. Vitae, 42 b; 127 b.

276
Ora, bem depressa ele teve que se resignar a esses laos dourados,
contra os quais nunca deixou de protestar at o ltimo momento 19; mas
ns nos condenaramos a nada entender de sua obra se fechssemos os
olhos para a violncia que lhe foi feita nisso pelo papado.
Basta um olhar na coleo de bulas dirigidas aos franciscanos para
mostrar com que ardor ele lutou contra os favores to vidamente pro-
curados pelas ordens monsticas 20.
Muitas passagens da legenda evidenciam plenamente esse desdenho
de Francisco pelos privilgios. Mesmo os seus ntimos nem sempre
compreenderam seus escrpulos:
Pai, no vs que s vezes os bispos no nos permitem pregar e nos
fazem ficar muitos dias ociosos numa terra, antes de podermos anunciar a
palavra do Senhor? Melhor seria se pedisses ao senhor papa um privilgio
sobre isso, pois se trata da salvao das almas. Ele lhes respondeu com
muita dureza, dizendo: Vs, frades menores, no conheceis a vontade de
Deus e no me permitis salvar o mundo inteiro como. Deus quer; pois, pela
santa humildade e reverncia, quero converter primeiramente os prelados.
Estes, quando virem nossa vida santa e humilde reverncia para com eles,
pedir-vos-o que pregueis e convertais o povo e o chamaro pregao,
melhor do que os vossos privilgios 21.
Saber se Francisco estava certo ou errado em sua antipatia pelos privi-
lgios da cria no cabe histria; evidente que essa atitude no podia
prolongar-se: a Igreja s conhece fiis ou revoltados. Mas muitas vezes

19
Praecipio firmiter per obedientiam fratribus universis quod ubicumque sunt, non audeant petere aliquam
litteram in Curia Romana. Test. B. Fr.
20
A comparao com o Bulrio dos Frades pregadores muito instrutiva: no seu primeiro captulo em N.D.
de Prouille em 1216 eles eram quinze, por isso, naquele momento, no havia nada que pudesse ser comparado
ao movimento franciscano que se agitava na Itlia quase inteira. Ora, enquanto a primeira bula em favor dos
franciscanos de 11 de junho de 1219, e a aprovao propriamente dita a de 29 de novembro de 1223, vemos
Honrio III desde o fim de 1216 prodigalizar aos dominicanos os sinais de sua afeio: 22 de dezembro de
1216, Religiosam vitam. Cf. Pressuti, I regesti del Pontefice Onorio III, Roma, 1884, t.I, no 175; na mesma
data: Nos attendentes, ibid., n 176; 21 de janeiro de 1217, Gratiarum omnium, ibid, n 243. Ver 284, 1039,
1156, 1208. intil continuar esta enumerao. Poderamos fazer outras parecidas para as outras ordens,
donde conclumos que se os Frades Menores so os nicos esquecidos nessa chuva de favores, foi porque
eles quiseram. verdade que, pouco depois da morte de Francisco, eles recuperaram o tempo perdido.
21
EP 50.

277
so compromissos desse tipo que freiam os mais nobres coraes; eles
gostariam que o futuro sasse do passado sem sacudidelas nem crises.
O captulo de 1217 foi marcado pela organizao definitiva das mis-
ses franciscanas: a Itlia e os outros pases que deviam ser evangelizados
foram divididos em algumas provncias, cada uma com seu ministro
provincial. Desde os primeiros dias de sua posse (18 de julho de 1216),
Honrio III tinha procurado reanimar o zelo popular pela cruzada. No
se contentava em preg-la, apelava para profecias garantindo que a Terra
Santa seria reconquistada em seu pontificado 22. A renovao do fervor
que da brotou e repercutiu at na Alemanha, teve uma profunda influncia
sobre os frades menores. Desta vez Francisco, talvez por humildade, no
se colocou frente dos frades encarregados da misso na Sria; deu-lhe
como chefe o famoso Frei Elias 23, que estivera antes em Florena, onde
teve oportunidade de demonstrar suas grandes qualidades 24.
Esse frade, que da em diante vai estar em primeiro plano nessa
histria, sau das camadas mais humildes da sociedade. Ignoramos a
data e as circunstncias de sua entrada na Ordem. Na juventude, tinha
se sustentado em Assis fazendo colches e ensinando algumas crianas
a ler; depois tinha passado um tempo em Bolonha como scriptor, e de
repente o encontramos entre os frades menores, encarregado das mais
difceis misses.
Seus adversrios proclamam porfia que ele foi a mais bela intelign-
cia de seu sculo, mas, infelizmente, muito difcil, no estado atual dos
documentos, pronunciar-se sobre seus atos. Instrudo e enrgico, desejoso
de ter o primeiro papel na obra da reforma religiosa, quando impediram
de antemo o seu plano quanto maneira de realiz-lo, foi direto a seu
escopo, meio poltico, meio religioso. Cheio de admirao e de reconhe-

22
Burchardi chronicon ann. 1217, loc. cit., p. 377. Ver tambm as bulas indicadas por Potthast 5575, 5585-92.
23
Ver Coll., t. III, Dr Ed. Lempp, Frre Elie de Cortone, Paris, 1901, p. 38.
24
Antes de 1217 o cargo de ministro j existia virtualmente, ainda que sua instituio definitiva seja de 1217.
Frei Bernardo, em sua misso em Bolonha, (1212?), por exemplo, exerceu uma espcie de cargo de ministro.

278
cimento por Francisco, queria disciplinar e consolidar o movimento de
renovao. No cenculo franciscano em que Leo, Junpero, Egdio e
tantos outros representam o esprito de liberdade, a religio dos simples
e dos humildes, a poesia ensolarada da mbria, Frei Elias representa o
esprito cientfico e eclesistico, a prudncia e a razo.
Teve grandes sucessos na Sria, e recebeu na Ordem um dos disc-
pulos mais queridos por Francisco, Cesrio de Spira, aquele que mais
tarde deveria conquistar em menos de dois anos todo o sul da Alemanha
(1221-1223), e que acabou selando com seu sangue a fidelidade estrita
observncia, que defendia contra os empreendimentos do prprio Frei
Elias 25.

Cesrio de Spira um brilhante exemplo dessas almas sofridas, an-


gustiadas pelo ideal, to numerosas no sculo XIII, que corriam por toda
parte, procurando inicialmente na cincia e depois na vida religiosa com
que matar a sede misteriosa que o atormentava: discpulo do eclatra
Conrado, sentira-se arrastado pelo desejo de reformar a Igreja. Ainda
leigo, tinha pregado suas idias, no sem algum sucesso, pois certo n-
mero de senhoras de Spira comearam a levar uma vida nova; mas, como
seus maridos no gostaram, o pregador teve que se refugiar em Paris
para escapar da vingana. De l, partiu para o Oriente, onde encontrou,
na pregao dos frades menores, suas aspiraes e seus sonhos. Este
exemplo mostra como era geral o estado de espera das almas, quando
explodiu o Evangelho franciscano, e como em toda parte os caminhos
estavam preparados para ele 26.
Mas j est na hora de voltar ao captulo de 1217: os frades que foram
para a Alemanha, conduzidos por Joo de Penna, ficaram longe de obter
o mesmo sucesso que Elias e seus companheiros; desconheciam com-
pletamente a lngua do pas que iam evangelizar. Pode ser que Francisco
no tenha percebido que, se o italiano, a rigor, podia bastar em todos

25
Encarcerado por ordem de Elias, ele morreria depois de uma srie de pancadas que lhe deram em um
dia em que saiu da priso. Tribul. 24 a.
26
CrJJ 5 e 6; LTC 62.

279
os pases banhados pelo Mediterrneo, no podia ser a mesma coisa na
Europa central.
A espcie de grupo que partiu para a Hungria no foi mais feliz. Acon-
teceu muitas vezes que os missionrios, para tentar acalmar os aldees
e os pastores que os maltratavam, tiveram que se despojar de toda sua
roupa para entregar a eles. Mas, incapazes de compreender o que lhes
diziam, e tambm de se fazer entender, logo tiveram que tratar de voltar
para a Itlia. Precisamos saber ser gratos aos autores franciscanos por nos
terem conservado a lembrana dessas derrotas, sem querer mostrar que
seus frades tinham aprendido de repente todas as lnguas por inspirao
divina. Mais tarde, foi isso que contaram 27.
Os que foram enviados Espanha tambm tiveram que sofrer muitas
perseguies. Como o sul da Frana, a Espanha estava sendo varrida pela
heresia; mas l ela foi reprimida com vigor desde o comeo. Suspeitos
de serem falsos catlicos e por isso expulsos, os franciscanos encon-
traram um refgio junto rainha Urraca de Portugal, que lhes permitiu
estabelecer-se em Coimbra, Guimares, Alenquer e Lisboa 28.
O prprio Francisco preparou-se para ir Frana 29. Nosso pas exercia
sobre ele uma especial atrao, por causa de seu fervor pela Eucaristia.
Pode ser que ele tambm estava sendo atrado, sem o saber, por aquela
terra a que devia seu nome, os sonhos cavaleirescos de sua adolescncia,
tudo que na vida era poesia, canto, msica, sonho delicioso.
Um pouco da emoo que o penetrou ao inaugurar essa nova misso
passou para as narrativas de seus bigrafos; a ns sentimos uma emoo
doce e angustiosa, o bater do corao do cavaleiro que sai todo equipado
nos albores da aurora, interroga o horizonte, ansioso pelo desconhecido

27
De Joo de Parma, de Clareno, de Antnio de Pdua, etc.
28
Marcos de Lisboa, t.I, p.82; Cf. p. 79, t.II, p.86; Glassberger, ann. 1217. An. fr. II, p. 9 ss.; Chron. XXIV
Gen. An. fr. III, p.10 s.
29
EP 65; Conform. 119 a 2; 135 a; b 181 b 1; 1Cel 74 e 75. Chron. XXIV Gen. An. ir. III, p. 101.
Parece que So Francisco saiu da Porcincula com sete frades, um dos quais, Frei Juliano, iria morrer
em Lige no dia 31 de maio de 1244. Ver Pe. Andr Callebaut, AFH, t. X (1917), p. 290 e Pe. Golubovich,
Biblioteca, II, p. 360.

280
e, por isso, transbordando de alegria, porque sabe que esse dia vai ser
consagrado justia e ao amor.
O poeta italiano chamou de peregrinaes do amor essas cavalgadas
cavaleirescas, como chamou tambm as viagens empreendidas pelos
sonhadores, os artistas ou os santos a esses esse confins da terra que eles
enxergavam sem cessar diante de sua imaginao e que se tornaram a
sua ptria de eleio 30. Francisco estava partindo justamente para uma
dessas peregrinaes:
Ide, disse aos frades que o acompanhavam, marchando dois a dois, hu-
mildes e doces, guardando silncio depois de tera, orando a Deus em vossos
coraes, evitando cuidadosamente toda palavra v ou intil. Permanecei
assim recolhidos durante essa viagem, como se estivsseis fechados em um
eremitrio ou em vossa cela, porque em todo lugar onde estamos, em todo
lugar aonde vamos, levamos conosco a nossa cela: o irmo corpo a nossa
cela e a alma o eremita que nela mora, para a orar ao Senhor e meditar.

Chegando a Florena, encontrou o cardeal Hugolino, enviado como


legado do Papa Toscana, para pregar a cruzada e tomar as medidas
necessrias para o seu sucesso 31.

Ele estava longe de esperar a acolhida que o prelado lhe fez, sem
dvida. Em vez de encoraja-lo, Hugolino fez que desistisse do projeto:
Eu no quero, irmo, que vs para l dos montes; na corte de Roma
h muitos prelados que s querem te criar dificuldades. Mas eu e os outros
cardeais que amamos a tua Ordem queremos te proteger e ajudar, com a
condio de que no te afastes desta provncia.

30
2Cel 3, 129 Diligebat Franciam... Volebat in ea mori.
31
Ver Bula de 23 de janeiro de 1217, Tempus acceptabile, Potthast no 5430 dada em Horoy, t. II, col. 205
ss.; Cf. Pressuti, I, p. 71. Essa bula e as seguintes fixam de maneira segura a poca da passagem por Florena;
Potthast 5488, 5487, et page 495.
M. Brem Papst Gregor IX, bis zum Beginn seines Pontificats, narra essa entrevista em outubro de 1218
e lhe consagra todo um apndice, p. 111-118. O Pe. Andr Callebaut, AFH, t. XI (1917), p. 290, admite a
data do fim de maio de 1217. Ver tambm sobre a questo da data o Pe. Anastase Van der Wyngaert, France
Franciscaine, t. V (1922), p. 266 s. e as notas.

281
Mas, Monsenhor, eu fico muito envergonhado de mandar meus frades
para longe e ficar aqui preguiosamente, sem tomar parte nas trbulaes
que eles vo sofrer.

E por que enviaste teus frades para to longe, expondo-os assim a morrer
de fome, e a todo tipo de perigo?

Vs pensais, perguntou Francisco com ardor e como que arrebatado por


uma inspirao proftica, que foi para estes pases daqui que Deus suscitou
os frades? Na verdade, eu vos digo, Deus os suscitou para o despertar e a
salvao de todos os homens, e eles ganharam almas no s nos pases dos
crentes, mas at no meio dos infiis 32.

O espanto e a admirao que essas palavras excitaram em Hugolino


no fizeram com que ele mudasse de idia. Ele insistiu tanto, que Francis-
co voltou para a Porcincula: a prpria inspirao de sua obra no estava
em jogo. Quem sabe se a alegria que ele teria tido ao ver a Frana no o
confirmou na idia de que devia renunciar: as almas atormentadas pela
necessidade do sacrifcio tm muitas vezes esses escrpulos; renunciam
s alegrias mais lcitas para oferec-las a Deus.

No sabemos se foi logo depois dessa entrevista ou s no ano seguinte


que Francisco colocou Frei Pacfico frente dos missionrios enviados
Frana 33.

Poeta de talento, antes de sua converso Pacfico tinha sido nomeado


Prncipe da poesia, e coroado no Capitlio pelo Imperador. Um dia em
que ele tinha ido visitar uma de suas parentas, religiosa em San-Severino,
na Marca de Ancona, Francisco foi tambm ao mosteiro e pregou com
uma santa violncia to grande que o poeta se sentiu transpassado pela
espada de que fala a Bblia, que penetra at o interior e julga os sentimen-

32
suprfluo fazer notar o erro do texto dos bolandistas na frase: Monuit (Cardinalis Franciscum) coep-
tum non perficere iter, onde se omite o non, A.SS., p. 704, Cf. p.607 e 835, o que levou Suyskens a diversos
outros erros.
33
EP 65. LM 51. Cf. Glassberger, ann. 1217.

282
tos e os pensamentos do corao 34. No dia seguinte, tomou o hbito e
recebeu seu nome novo 35.

Foi acompanhado na Frana por Frei Agnelo de Pisa, que, em 1224,


devia ser colocado frente da primeira misso na Inglaterra 36.
Quando os enviou, Francisco no podia adivinhar que, desse pas
que exercia sobre ele uma espcie de fascnio, sairia a experincia que
comprometeu seu sonho, que Paris perderia Assis. Mas esses tempos no
demorariam: mais alguns anos, e o Poverello devia ver uma parte de sua
famlia espiritual esquecer a humildade de seu nome, de suas origens e
de seus votos, para correr atrs de dos efmeros louros da cincia.
Lembramos o costume dos franciscanos nessa poca, de se estabele-
cer ao alcance das grandes cidades; Pacfico e seus companheiros esta-
beleceram-se em Saint-Denis 37. No temos nenhum detalhe sobre a sua
atividade; ela foi singularmente fecunda, porque lhes permitiu ir poucos
anos mais tarde para a Inglaterra, com pleno sucesso.
Francisco passou o ano seguinte (1218) em excurses de evangeli-
zao na Pennsula: naturalmente impossvel segui-lo nessas viagens,
cujo itinerrio era determinado pelas inspiraes de cada dia ou em

34
Hb. 4, 12; 2Cel 3, 49; LM 50 e 51.
35 Frei Pacfico interessa-nos particularmente como primeiro ministro da Ordem na Frana; h uma
superabundncia de informaes sobre ele: LM 79; 2Cel 3, 63; EP 59; 60; 65; Conform. 38 a 1; 43 a 1; 71
b; 173 b 1 e 176; 2Cel 3,27; Conform. 181 b; 2Cel 3, 76; Actus 75; Fior. 46; Conform. 70 a. Eu no indico
referncias gerais que podero ser encontradas na bibliografia Chevalier. Os Miscellanea, t.II (1887), p.158,
contm uma coluna muito precisa e interessante sobre ele. Gregrio IX fala dele na bula Magna sicut dicitur
de 12 de agosto de 1227. Sbaralea, Bull. fr., I, p. 33 (Potthast 8007). Toms de Toscana que acompanha
Boaventura (sem dvida Frei Boaventura de Iseo) ao conclio de Lio, conheceu-o e se recorda dele em seus
Gesta Imperatorum (Mon. germ. hist. script., t. XXII, p. 492).
36
CrTE 1; Conform. 113 b. 1.
37
Por volta de 1224, os Frades Menores quiseram se aproximar e construram perto dos muros de Paris
nos terrenos chamados Vauvert ou Valvert (hoje Jardim de Luxemburgo), um vasto convento (CrEc 10 Cf.,
Top. hist. du vieux Paris por Berty et Tisserand, t. IV, p. 70). Em 1230, receberam em Paris, dos beneditinos
de Saint-Germain-des-Prs, certo nmero de casas in parocchia SS. Cosmae et Damiani infra muros domini
regis prope portam de Gibardo, Chartularium Universitatis Parisiensis. n 76. Cf. Topographie historique
du vieux Paris: Rgion occid. de luniv., p. 95; Flibien, Histoire de la ville de Paris, I, p. 115. Enfim, So
Lus instalou-os no clebre convento dos Cordeliers, cujo refeitrio ainda existe, transformado no museu
Dupuytren. Os dominicanos, chegando a Paris aos 12 de setembro de 1217, foram diretamente para o
centro da cidade, na Ilha, perto do palcio episcopal, e aos 6 de agosto de 1218 instalaram-se no convento
de Saint-Jacques.

283
indicaes to fantasiosas quando a que j o tinha feito ir a Sena, Bo-
lonha 38, ao Alverne, ao vale de Rieti, ao Sacro-Speco de So Bento no
Subiaco 39, Gaeta 40, So Miguel no monte Gargano 41 podem ter tido
a oportunidade de receb-lo nessa poca. Mas as indicaes sobre sua
presena so muito esparsas e muito vagas para podermos coloca-las
em um quadro histrico.
bem possvel que, nesse tempo, tenha feito uma estadia em Roma:
seus encontros com Hugolino foram bem mais frequentes do que
costumamos imaginar. No nos devemos iludir com as narrativas dos
hagigrafos a esse respeito: h uma tendncia natural para referir a trs
ou quatro datas particularmente notveis tudo que sabemos a respeito
de um homem. Ns nos esquecemos de anos inteiros da vida dos que
melhor conhecemos e amamos, para agrupar nossas lembranas ao
redor alguns fatos mais importantes, que brilham com tanto esplendor
que a escurido acaba sendo mais completa ao redor deles. As palavras
de Jesus, pronunciadas em centenas de ocasies diferentes, acabaram
juntando-se para formar um nico discurso: o sermo da montanha.
ento que a crtica precisa ser delicada, misturando artilharia pesada
dos argumentos cientficos, um pouco de adivinhao.
Os textos so sagrados, mas no precisamos transform-los em feti-
ches; hoje, apesar de So Mateus, ningum sonha em representar Jesus
pronunciando em um s flego todo o sermo da montanha. Da mesma
maneira, nas narrativas que apresentam o relacionamento de So Fran-
cisco e Hugolino tropeamos com impasses a cada momento devido s
indicaes contraditrias se quisermos faz-las acontecer em dois ou trs
encontros, como somos tentados logo no comeo.
Com uma simples arrumao, essas dificuldades desaparecem e vemos
que cada uma das diversas narrativas contribui com partes que, reunidas,
apresentam um escrito orgnico, vivo, psicologicamente verdadeiro.

38
Actus 36; Fior. 27; Conform. 71a e 113a 2; LM 182.
39
Os vestgios da passagem de Francisco so muito numerosos. Um Frei Eudes pintou seu retrato.
40
LM 177.
41
Ver A.SS., p. 855 e 856. Cf. 2Cel 3,126.

284
A partir deste momento, preciso dar a Hugolino um lugar ainda maior
que no passado: a luta abre-se definitivamente entre o ideal franciscano,
talvez quimrico mas sublime, e a poltica eclesistica, at o dia em que
meio por humildade, meio por desencorajamento, Francisco, com a morte
na alma, resolver abdicar da direo de sua famlia espiritual.

Hugolino voltou a Roma no fim de 1217. Durante o inverno seguinte,


encontramos seu carimbo na parte de baixo da bulas mais importantes
42
; ele consagrou esse tempo para estudar principalmente a questo das
ordens novas, e chamou Francisco para o seu lado. J vimos com que
franqueza ele tinha declarado, em Florena, que muitos prelados fariam
de tudo para prejudic-lo diante do papa 43; evidente que o sucesso da
Ordem, seus modos de pensar, que, apesar de todos os protestos contr-
rios, levavam a pensar em heresia, a independncia de Francisco que, sem
se preocupar em fazer confirmar a autorizao verbal e bem provisria
concedida por Inocncio III, dispersava seus frades pelos quatro cantos
do mundo, tudo isso devia assustar os clrigos.
Hugolino, que conhecia melhor do que ningum a mbria, a Toscana,
a Emlia, a Marca de Ancona, todas essas regies em que a pregao
franciscana tinha tido seus mais belos sucessos, tinha podido perceber
por si mesmo o poder do novo movimento e a imperiosa necessidade de
dirigi-lo. Com a deciso e a obstinao que eram prprias de seu carter,
ele se encarregou dessa tarefa, que mais tarde foi a inspirao de todo
o seu pontificado.
So Domingos estava em Roma na mesma poca, e tinha sido cumula-
do de favores pelo papa. Sabemos que, quando Inocncio III o convidou a
escolher uma das regras j aprovadas pela Igreja, ele foi se encontrar com
seus frades em Notre-Dame de Prouille e, depois de ter conferenciado
com eles, tinha adotado a regra de Santo Agostinho; tambm o sucessor
de Inocncio III no ps dificuldades para dar-lhe privilgios 44.

42
Entre outras as de 5 de dezembro de 1217. Potthast 5629; 8 de fevereiro, 30 de maro, 7 de abril de
1218. Potthast 5695, 5739, 5747.
43
1Cel 74: O quanti maxime in principio cum haec agerentur novellae plantationi ordinis insidiabantur
ut perderent. Cf. 2Cel 1, 16: Videbat Franciscus luporum more sevire quamplures.
44
No dia 28 de fevereiro de 1218, ele tomou posse de Santa Sabina.

285
A Cria percebia bem que no havia em Domingos, cuja ordem s
tinha umas dzias de membros, uma das potncias morais da poca, mas
no tinha as preocupaes que sentia diante de Francisco.
A idia de aproximar o mestre Domingos com o irmo Francisco veio
naturalmente cabea de Hugolino. Ele esperava que o primeiro pudesse
influenciar o segundo. Sonhava at em reunir os dois institutos.
Domingos colocou-se em perfeita submisso ao servio do imperioso
cardeal.
Um dia, fora de uma piedosa insistncia, tinha convencido Fran-
cisco a dar-lhe seu cordo e o tinha cingido imediatamente: Irmo,
acrescentou, eu gostaria muito que tua ordem e a minha se unissem para
formar um s instituto na Igreja 45.
Mas o frade menor queria continuar a ser o que era, e no aceitou a
proposta 46; ele estava to bem inspirado quanto s necessidades de seu
tempo e da Igreja que, menos de trs anos depois, Domingos foi levado
por uma corrente irresistivel a transformar sua ordem de cnegos de Santo
Agostinho em uma ordem de frades mendicantes, cujas constituies
foram calcadas nas dos franciscanos 47.
Alguns anos mais tarde, os dominicanos descontaram obrigando os
frades menores a dar um grande espao cincia em seus trabalhos. Foi
assim que, apenas adolescentes, as duas famlias religiosas rivalizavam,
penetravam-se, influenciavam uma na outra, mas nunca tanto que as le-
vasse a perder todas as caractersticas de sua origem, resumida por uma
na pobreza e na pregao leiga, e pela outra na cincia e na pregao
clerical.

45
2Cel 3,87. Eis o texto: Vellem, frater Francisce, unam fieri religionem tuam et meam et in Ecclesia pari
forma nos vivere; EP 43. Um eco desse fato encontra-se em Thierry dApolda, Vie de saint Dominique (A.SS.
Augusti, t. I, p. 572 d): S. Dominicus in oscula sancta ruens et sinceros amplexus, dixit: Tu es socius meus,
tu curres pariter mecum, stemus simul, nullus adversarius pravalebit.
46
M. Luigi Salvatorelli, Vita di San Francesco dAssisi, Bari, 1926, diz excelentemente: Per una volta
in vita sua, Francesco fu diplomatico. Non risponde nulla, mostrando di prendere la proposta del collega
come un semplice complimento aflettuoso. Laltro comprese che non cera nulla da fare. (p.182.)
47
No captulo realizado em Bolonha em Pentecostes de 1220. A bula Religiosam vitam (Privilgio de N.-
D. de Prouille) de 30 de maro de 1218 enumera as posses dos dominicanos: Ripolli, Bull. Praed., t. I, p. 6.
Horoy, Honorii opera, t. II, col. 684.

286
14

SO DOMINGOS E
SO FRANCISCO
Misso do Egito
(Vero de 1218 outono de 1220.)

287
XIV

Et factum est verbum Domini ad me, dicens:


Priusquam formarem te in utero, novi te;
Et antequam exires de vulva, sanctificavi te,
Et prophetam in gentibus dedi te.
Et dixi:
A, a, a, Domine Deus, ecce nescio loqui, quia puer ego sum.
Et dixit Dominus ad me:
Noli dicere: Puer sum,
Quoniam ad omnia quae mittam te ibis,
Et universa quaecumque mandavero tibi loqueris.
Ne timeas a facie eorum, quia tecum ego sum ut eruam te 1.
Ideo habentes administrationem juxta quod misericordiam consecuti su-
mus, non deficimus; sed abdicamus occulta dedecoris, non ambulantes
in astutia, neque adulterantes verbum Dei, sed in manifestatione veritatis
commendantes nosmetipsos ad omnem conscientiam hominum coram
Deo. Quod si etiam coopertum est evangelium nostrum, in iis qui pereunt
est opertum; in quibus Deus hujus saeculi excaecavit mentes infidelium,
ut non fulgeat illis illuminatio evangelii gloriae Christi, qui est imago
Dei. Non enim nosmetipsos praedicamus, sed Jesum Christum Dominum
nostrum; nos autem servos vestros per Jesum: quoniam Deus, qui dixit
de tenebris lucem splendescere, ipse illuxit in cordibus nostris, ad illumi-
nationem scientiae claritatis Dei, in facie Christi Jesu. Habemus autem
thesaurum istum in vasis fictilibus, ut sublimitas sit virtutis Dei, et non ex
nobis 2.
Si linguis hominum loquar et angelorum, caritatem autem non habeam, fac-
tus sum velut aes sonans, aut cymbalum tinniens. Et si habuero prophe-
tiam, et noverim mysteria omnia, et omnem scientiam; et si habuero om-
nem fidem ita ut montes transferam, caritatem autem non habuero, nihil
sum. Et si distribuero in cibos pauperum omnes facultates meas, et si
tradidero corpus meum ita ut ardeam, caritatem autem non habuero, nihil
mihi prodest... Caritas nunquam excidit, sive prophetiae evacuabuntur,
sive linguae cessabunt, sive scientia destruetur 3.

1
Jr 1, 4-8.
2
2Cor 4, 1-7.
3
1Cor 13, 1-8.

288
XIV

O Senhor me dirigiu sua palavra dizendo:


Antes de te formar no tero eu te conheci,
E antes de sares de tua me eu te santifiquei,
E te coloquei como profeta entre os povos.
E eu disse: Ah! Senhor Deus, eu no sei falar, porque sou uma criana.
E o Senhor me disse:
No digas que s uma criana,
Porque irs para onde eu te enviar.
E falars tudo que eu te mandar
No temas diante deles, porque eu estou contigo e te livrarei 4.
porisso que, tendo sido revestidos desse ministrio por misteriosa dispo-
sio, no desanimamos; mas rejeitamos os procedimentos ocultos e de-
sonrosos, no queremos ser astutos e no adulteramos a palavra de Deus;
mas nos recomendamos a toda conscincia dos homens diante de Deus.
Porque, mesmo que nosso evangelho esteja coberto, para os que se per-
dem que ele est coberto, para aqueles a quem o deus deste sculo cegou
o esprito, para que no brilhe neles a revelao do evangelho da glria de
Cristo, que imagem de Deus. Porque no pregamos ns mesmos, mas
Jesus Cristo nosso Senhor; pois somos vossos servos por causa de Jesus;
porque o Deus, que mandou brilhar das trevas a luz, foi quem iluminou
nossos coraes para que pudssemos dar a conhecer a glria de Deus
no rosto de Jesus Cristo. Mas ns carregamos esse tesouro em vasos de
barro, para que vejam que a sublimidade vem da fora de Deus e no de
ns 5.
Se eu falasse as lnguas dos homens e dos anjos, mas no tivesse caridade,
seria apenas um bronze que soa, ou cmbalo que toca. E se eu tivesse o
dom da profecia, e conhecesse todos os mistrios e toda a cincia; e se eu
tivesse toda f de modo que pudesse transportar montanhas, mas no ti-
vesse a caridade, nada seria. E se eu distribusse todos os meus bens para
alimentar os pobres, e se entregasse meu corpo para ser queimado, mas
no tivesse a caridade, isso de nada me valeria... Mesmo que as profecias
se revelem vazias, mesmo que deixem de existir as lnguas, e se a cincia
for destruda, a caridade

4
Jr 1, 4-8.
5
2Cor 4, 1-7.
6
1Cor 13, 1-8.

289
A arte e a poesia tiveram razo de associar inseparavelmente So
Domingos e So Francisco: a glria do primeiro no seno um reflexo
da glria do segundo, e quando os aproximamos que chegamos a ca-
racterizar melhor o gnio do Poverello.

Se Francisco o homem da inspirao, Domingos o da obedincia


palavra de ordem, e podemos dizer que sua vida se passou nos caminhos
de Roma, aonde ele ia continuamente pedir instrues.

A legenda tambm custou para se formar, ainda que nada a impedis-


se de desabrochar livremente; mas nem o zelo de Gregrio IX por sua
memria, nem a cincia de seus discpulos puderam fazer pelo Martelo
dos hereges, o que o amor dos povos tinha feito pelo Pai dos pobres. Sua
legenda tem os dois defeitos que cansam to rapidamente os leitores dos
escritos biogrficos quando se trata de santos cujo culto foi imposto pela
Igreja 7: est repleta de um sobrenatural de mau gosto, e de traos em-
prestados erradamente atravs das legendas anteriores. O povo italiano,
que tinha saudado em Francisco o anjo de todas as suas esperanas e que
era to vido de suas relquias, nem sonhou em destacar o cadver do

7
Uma prova da escurido em que Domingos ficou, tanto que Roma no fez sua apoteose, que Jacques de
Vitry, que consagra aos Frades Pregadores todo um captulo de sua Historia Occidentalis (27, p.333) nem
nomeia o fundador. Isso mais significativo porque, em pginas no muito distantes, o captulo consagrado
aos Frades Menores est quase todo repleto pela pessoa de So Francisco. Esse silncio sobre So Domingos
tambm foi observado e anotado por Moschus, que no conseguiu explic-lo. Ver Vitam J. de Vitriaco, no
comeo da edio de Douai 1597.

290
fundador da Ordem dos Frades Pregadores, e deixou que ele esperasse
por doze anos as glrias da canonizao 8.

Vimos acima as tentativas do cardeal Hugolino para unir as duas


ordens, e as razes que ele tinha para isso. Ele foi ao captulo geral
de Pentecostes reunido na Porcincula (3 de junho de 1218), ao qual
So Domingos viera assistir com alguns dos seus. O cerimonial dessas
solenidades para ter sido mais ou menos o mesmo desde 1216: os Fra-
des Menores iam processionalmente ao encontro do cardeal, que logo
descia de sua montaria e lhes prodigalizava todos os sinais de seu afeto.
Montava-se um altar ao ar livre, no qual ele cantava a missa, e Francisco
cumpria as funes de dicono 9.

fcil imaginar a emoo que tomava conta dos presentes quando


refulgia no quadro da paisagem umbra esse ofcio de Pentecostes, o mais
comovente, o mais apocalptico da liturgia catlica: a antfona Alleluia,
Alleluia, Emitte Spiritum tuum et creabuntur, et renovabis faciem terrae.
Alleluia 10 no encerrava todo o sonho franciscano?

O que mais maravilhou Domingos foi a ausncia de preocupaes


materiais. Francisco tinha recomendado aos seus irmos que no se
inquietassem com nada para beber ou comer; ele sabia por experincia
que podia confiar sem receio no amor das povoaes vizinhas. Essa
despreocupao tinha surpreendido vivamente a Domingos, que a achou
exagerada; mas ele pde ficar tranquilo, quando chegou a hora da refei-
o e viu os habitantes da regio acorrendo em massa carregando mais
provises do que seria necessrio para alguns milhares de frades, e tendo
a honra de servi-los.

A alegria dos franciscanos, a simpatia do povo para com eles, a po-


breza das choas da Porcincula, tudo o impressinou vivamente; ficou

8
Francisco, morto em 1226 e canonizado em 1228; Antnio de Pdua, 1231 e 1233; Isabel da Turngia,
1231 e 1235; Domingos, 1221 et 1234.
9
LTC 61.
10
Enviai, Senhor, o vosso Esprito, e tudo ser criado, e renovareis a face da terra.

291
to comovido que, num lance de entusiasmo, anunciou sua resoluo de
abraar a pobreza evanglica 11.

Hugolino, mesmo tocado at as lgrimas 12, no esquecia suas preocu-


paes: a Ordem era muito numerosa para no contar com um grupo de
descontentes; alguns frades que, antes de sua converso, tinham estudado
nas universidades, comearam a criticar a extrema simplicidade que
lhes apresentavam como um dever. Para homens que no estavam mais
sustentados pelo entusiasmo, os curtos preceitos da Regra pareciam uma
carta muito insuficiente para uma vasta associao: tambm se voltavam
com inveja para as monumentais abadias dos beneditinos, dos cnegos
regulares, dos cistercienses, e para as antigas legislaes monsticas. No
tiveram dificuldade para encontrar em Hugolino um poderoso aliado e
para contar-lhe suas observaes.
Hugolino achou que tinha chegado o momento oportuno e, numa
conversa particular, sugeriu a Francisco algumas idias: Ser que ele no
deveria dar a seus discpulos, principalmente aos mais instrudos, uma
parte maior nos cargos? Consulta-los, inspirar-se em seus conselhos? No
seria importante aproveitar a experincia das ordens antigas? Ainda que
tudo isso tivesse sido dito como que ocasionalmente e com todo o tato
possvel, Francisco sentiu-se vivamente ferido e, sem responder, arrastou
o cardeal para o meio do Captulo, dizendo, com fogo:
Meus irmos, o Senhor me chamou para o caminho da simplicidade e da hu-
mildade. Nelas ele me mostrou a verdade para mim e para os que querem acreditar
em mim e imitar; por isso, no me venhais falar em Regra de So Bento, de Santo
Agostinho, de So Bernardo, nem de nenhum outro, mas apenas daquela que Deus,
em sua misericrdia, quis me mostrar, dizendo que sobre ela queria fazer um novo

11
EP 43; 2Cel 3, 87; Conform. 207 a, 112 a, Fior. 18. Os historiadores de So Domingos no acolheram bem
esses detalhes, mas um ponto incontestavelmente adquirido pelos documentos diplomticos que em 1218,
Domingos esteve em Roma pedindo privilgios em que as propriedades de sua Ordem estavam indicadas,
e que em 1220 ele levou seus frades a professar a pobreza. Jord. Sax., 64. A.SS., Aug., t. I, p. 551 et 634.
Ver sobre essas questes Dr. H. Fischer, Der hlg. Franziskus whrend der Jahre, 1219-1221, Fribourg
Suisse, 1907, p. 103-108. Entre 1218 e 1220 os dominicanos deixaram o hbito dos cnegos regulares. Ver
tambm sobre a pobreza de So Francisco e a de So Domingos e a evoluo franciscana, uma bela pgina
do Pe. Van Ortroy, An. Boll., t. XXIX (1910), p. 496. Sobre a questo do abandono das propriedades, ver
An. Boll,. t. XXX, p.36.
12
EP 21; 2Cel 3, 9.

292
pacto com o mundo, e ele no quis que tivssemos nenhuma outra. Mas, por vossa
cincia e sabedoria, Deus vos confundir. De resto, eu tenho confiana que Deus
vos castigar. De bom ou mau grado, sereis forados a vos arrepender e nada mais
vos sobrar seno a confuso 13.

Esse ardor para defender e confirmar suas idias espantou profunda-


mente Hugolino, que no disse mais nenhuma palavra. Quanto a Do-
mingos, o que acabara de ver na Porcincula foi uma revelao. Sentiu
que seu zelo pela Igreja no podia crescer, mas tambm percebeu que,
com algumas mudanas em suas armas, poderia servi-la com muito mais
sucesso.
Hugolino, sem dvida, s o encorajou nesse caminho, e Domingos,
obcecado por novas preocupaes, foi para a Espanha alguns meses de-
pois. Ainda no notamos a grandeza da crise que se produziu ento nele.
Os escritores religiosos falam longamente de sua permanncia em uma
gruta de Segvia, mas s percebem as prticas ascticas, as oraes, as
genuflexes, sem nem sonhar em buscar a causa de tudo isso. A partir
dessa poca, poderamos dizer que ele esteve ocupado sem cessar em
imitar So Francisco, se essa palavra no tivesse um sentido um tanto
desagradvel. Chegando a Segvia, fundou como os frades menores um
eremitrio fora da cidade, perdido entre os rochedos que a dominam e de
onde ele descia de vez em quando para pregar ao povo. A transformao
de sua maneira de viver foi to evidente que vrios de seus companheiros
recusaram-se a segui-lo nesse caminho novo.
s vezes, o sentimento popular tem algumas intuies: nasceu uma
lenda a respeito dessa gruta de Segvia, contando que So Domingos
tinha nela recebido os estigmas. No haveria nisso um esforo incons-
ciente para traduzir, por uma imagem ao alcance de todos, o que teria
acontecido de verdade nesse antro da Serra de Guaderrama 14?

13
EP c. 68; Lemmens, Doc. Ant., p. 103, Verba S. Fr. 5; Tribul. Man. Laur. 11 a 12 b; Spec. Vitae 183 a;
Conform.135 b 1.
14
Ver o Cartulrio de So Domingos II, p. 237 s. As fontes principais esto indicadas em A.SS. Aug., t.
I, p. 470 s.

293
Desse modo, tambm So Domingos chegava pobreza evanglica;
mas o caminho feito por ele era bem diferente do que tinha sido feito
por So Francisco: enquanto Francisco a isso se elevara com um bater
de asas, vendo a a libertao definitiva das preocupaes que aviltam a
vida, So Domingos no a considerava como um meio; para ele, ela era
uma arma a mais no arsenal da milcia encarregada de defender a Igreja.
No podemos pensar em um clculo vulgar; sua admirao por aquele
que ele imitava e seguia de longe era sincera e profunda, mas um gnio
no pode ser copiado. Ele no tinha essa doena sagrada; ele transmitiu
a seus filhos espirituais um sangue robusto e sadio, graas ao qual eles
no sentiram esses acessos de febre quente, esses elans sublimes, nem
essas voltas sbitas que fazem da histria dos franciscanos a histria da
sociedade mais atormentada que j houve na terra 15.
No captulo de 1218, Francisco teve muito mais motivos de tristeza do
que um grupo de descontentes; os missionrios enviados um ano antes
Alemanha e Hungria tinham voltado completamente desencorajados.
A narrao dos sofrimentos que tinham suportado produziu um efeito
to grande que, depois disso, muitos frades acresentaram orao esta
frmula: Senhor, preservai-nos da heresia dos lombardos e da ferocidade
dos alemes 16.
Isso nos explica como Hugolino acabou convencendo Francisco do
dever que tinha de tomar as medidas necessrias para no expor mais os
frades a serem expulsos como hereges. Ficou decidido que por ocasio
do prximo captulo os frades se muniriam de um breve papal que lhes
serviria de passaporte eclesistico. Esta a traduo desse documento:
Honrio bispo, servo dos servos de Deus, aos arcebispos, bispos, abades,
decanos, arquidiconos e outros superiores eclesisticos, sade e bno
apostlica. Nossos queridos filhos, Frei Francisco e seus companheiros
da vida e da ordem dos frades menores, tendo renunciado s vaidades des-

15
O que caracteriza a histria dos franciscanos desde a origem at nossos dias , de fato, a necessidade de
reforma que sempre os moveu e que, se foi seu tormento, tambm foi sua honra. Pare, dizia excelentemente
um geral dos Conventuais, che i Franciscani abbiamo nelle midolle lo spirito di separazione, Papini, Storia,
t. II, p. 20. Cf. p. 73.
16
CrJj 18; LTC 62.

294
te mundo, para optar por um tipo de vida que mereceu ser aprovado pela
Igreja romana, e ir, a exemplo dos apstolos, lanando nas diversas regies
a semente da palavra de Deus, ns vos pedimos a todos e os exortamos, por
esta carta apostlica, que recebam como bons catlicos os frades da referida
sociedade, portadores da presente, quando se apresentarem diante de vs,
advertindo-vos que deveis ser favorveis a eles e trata-los com bondade pela
honra de Deus e por considerao para conosco.
Dado (em Rieti) no terceiro dia dos Idos de junho (11 de junho de 1219),
no terceiro ano de nosso pontificado 17.

Vemos que tudo nessa bula foi calculado para evitar que se provocas-
sem as suscetibilidades de Francisco. Para compreender at que ponto ela
diferente das primeiras bulas concedidas de ordinrio s novas ordens,
preciso compar-las: a que tinha institudo os dominicanos tinha sido
co-mo as outras, um verdadeiro privilgio 18; aqui no h nada parecido.

A assemblia que se abriu em Pentecostes de 1219 (26 de maio) foi


de extrema importncia 19. Terminou a sequncia daqueles captulos
primitivos em que a inspirao e a fantasia de Francisco se soltavam. Os
seguintes, presididos pelos vigrios, j no tem mais aquele ar de festa
nem o mesmo charme: a crua claridade do dia espantou as luzes incertas
da aurora e os indizveis ardores da natureza em seu despertar.

17 Sbaralea, Bull. fr., t. I, p. 2, Potthast 6081, Wadding, ann. 1219, no 28, indica as obras onde se encontra
o texto. Cf. A.SS., p. 839. Sobre a importncia sem par dessa encclica ver Paul Sabatier, De lauthenticit
de la Lg. des Trois Comp. Extrato da Revue historique (1901), p. 23 ss. O Pe. Cuthbert, Life of S. Francis,
Londres, 1912, p. 242, teve razo de aproximar essa bula da organizao das Clarissas por Hugolino, mas,
quanto a isso, no posso partilhar completamente a idia do sbio capuchinho. Aqui no se trata de um
privilgio, mas de uma confirmao. As palavras do Testamento no se aplicam bem aqui, nem as do cap.
50 do EP que visam privilgios propriamente ditos.
18
O ttulo indica bem o contedo: Domenico priori S. Romani tolosani ejusque fratribus, eos in protectio-
nem recipit eorumque Ordinem cum bonis et privilegiis confirmat. Religiosam vitam 22 dez. 1216, Pressuti
t. I, 175; texto em Horoy, t. II, col.141-144.
19
V.er A.SS., p. 608 ss., et 838 ss.

295
O vero de 1219 era a poca marcada por Honrio III para tentar um
novo esforo no Oriente e dirigir para o Egito todas as foras das Cru-
zadas20. Francisco achou que era o momento do projeto que no tinha
conseguido realizar em 1212. Estranho, Hugolino que, dois anos antes,
impedira-o de ir Frana, deu-lhe toda liberdade para fazer essa nova
misso 21.
Alguns autores pensaram que Francisco, tendo encontrado nele um
verdadeiro protetor, sentiu-se seguro quanto ao futuro da Ordem. De
fato, ele deve ter pensado nisso, mas a histria das perturbaes que
estouraram logo depois de sua partida, a espantosa narrativa da boa
acolhida dada pela corte de Roma a alguns trapalhes que aproveitaram
sua ausncia para colocar sua obra em perigo, seriam suficientes para
mostrar como a Igreja se sentia embaraada com ele, e com que ardor
ela esperava a transformao de sua obra. Encontraremos adiante uma
narrativa completa desses fatos.
Parece que um romanholo, Frei Cristvo, foi nomeado nesse mesmo
captulo provincial da Gasconha. Ele viveu como franciscano da primeira
hora, trabalhando com as prprias mos, morando numa estreita cela de
galhos e de barro 22.
Egdio partiu para Tunis com diversos frades, mas uma grande decep-
o os esperava: os cristos desse pas, temendo ficar comprometidos
por seu zelo missionrio, jogaram-nos em um navio e os obrigaram a
voltar para a Itlia 23.

20
V. Bula, Multi divinae de 13 de agosto de 1218. Horoy, t. III, col. 11; Potthast 5891.
21
A contradio to evidente que os bolandistas fizeram dela o principal argumento para defender o erro de
seus manuscritos (1Cel 75), pretendendo, contra todos, que Francisco no continuou sua viagem. A.SS., 607.
22
Morreu em Cahors, aos 31 de outubro de 1272. A legenda est na Chron. XXIV Gen. An. fr. III, p. 161-
173. Incipit vita fr. Cristophori quam compilavit fr. Bernardus de Bessa custodiae Cartucensis: Quasi vas
auri solidum. Cf. Marcos de Lisboa, t. II, p. 106-113, t. III, p. 212 e Glassberger, An. fr., t. II, p. 14.
23
A.SS. Aprilis, t. III, p. 224; An. fr. III, apndice, p. 579-596 e Chron. XXIV Gen., p. 17 ss. Conform. 118
b 1; 54 a; Marcos de Lisboa, t. II, p. 1. Devemos a Jacobilli uma notcia bastante completa sobre os mrtires
de Marrocos: ela formiga de indicaes muito preciosas: Vite dei Santi dellUmbria, I, p. 87 ss. Frei Lucas
tinha sido enviado a Constantinopla em 1219 quando muito. Ver Constitutus de 9 de dezembro de 1220:
Sbaralea, Bull. fr., t. I, p. 6; Potthast 6431.

296
Se a data de 1219, para essas duas misses, s se apia em conjeturas,
no acontece o mesmo com a partida dos frades que foram para a Espa-
nha e Marrocos. Cinco deles sofreram o martrio no dia 16 de janeiro de
1220. Foi encontrado recentemente o relato de suas ltimas pregaes e
de seu fim trgico, feito por uma testemunha ocular 24. Esse documento
tanto mais precioso porque confirma as linhas gerais da narrativa mais
longa feita por Marcos de Lisboa. Seria fora de propsito resumi-lo aqui,
pois no diz respeito seno muito indiretamente vida de So Francisco.
Mas preciso notar que esses acta tm, alm de seu valor histrico, um
alcance psicolgico e talvez quase patolgico Notvel: jamais a loucura
do martrio foi mais bem caracterizada do que nessas longas pginas em
que vemos os frades forando os maometanos a persegui-los e a faz-los
ganhar a palma celeste. A longanimidade mostrada inicialmente pelo
Miramolim, como tambm por seus correligionrios, d uma idia de
como eram elevadas a civilizao e as qualidades desses infiis, pois
seriam naturais sentimentos muito diferentes dos vencidos na plancie
de Tolosa 25.
impossvel chamar de pregaes as colees de grosseiras apstrofes
que os missionrios dirigiam aos que queriam converter: nesse paroxismo,
a sede de martrio a loucura do suicida. Estamos querendo dizer que
os frades Bernardo, Pedro, Adjuto, Acrsio e Oto no tiveram direito
admirao e ao culto de que os cercaram? Quem ousaria dize-lo? O
devotamento no sempre cego? Para que um canteiro seja fecundo,
preciso sangue e lgrimas, essas lgrimas que Santo Agostinho chama de
sangue da alma. Ah! um grande engano imolar-se, porque o sangue de
um homem no conseguiria salvar nem o mundo, nem sequer uma nao;
mas um engano maior ainda no se imolar, porque, ento, deixa-se que
os outros se percam e se o primeiro a perder-se.
Recebei minha saudao, Mrtires de Marrocos, tenho certeza de que
no vos arrependeis de vossa loucura e se alguma vez algum pedante,

24
a M. Mller (Anfnge, p. 207) que cabe a honra dessa publicaon feita de acordo com o manuscrito
da Cottoniana.
25
Esse Miramolin parece que se chamava Abujacob, como prova a bula Expedire tibi de 5 de setembro de
1222 enviada pro Honrio III (Potthast 6121).

297
perdido nos bosques do paraso vier demonstrar-vos doutamente que seria
melhor ficar em vosso pas, criar uma famlia honesta de trabalhadores
virtuosos, eu imagino que Miramolim, que se tornou l em cima vosso
melhor amigo, vai ter o cuidado de vos defender.
Vs fostes loucos, mas de uma loucura que eu invejo, porque vs
senteis que o essencial, aqui em baixo, no servir a este ou aquele
ideal, mas servir com toda a alma o ideal que se escolheu.
Quando, meses depois, a notcia desse fim glorioso chegou a Assis,
Francisco surpreendeu em seus companheiros um movimento de orgu-
lho e os repreendeu fortemente. Ele, que teria tanta inveja da sorte dos
mrtires, sentia-se humilhado por no ter sido por Deus julgado digno de
partilhar seu martrio. Como a narrativa estava entrecortada por algumas
frases de elogio ao fundador da Ordem, ele proibiu que continuassem
a ler 26.
Logo depois do captulo, ele mesmo tinha empreendido uma misso
do tipo da que confiara aos frades de Marrocos, mas procedera de modo
muito diferente: no vemos nele aquele zelo cego que corre para a morte
com uma espcie de frenesi, fazendo esquecer todo o resto. Pode ser que
ele j sentia que o esforo contnuo para o melhor, a imolao de todos
os instantes verdade o martrio dos fortes.
Essa expedio, que durou mais de um ano, s recordada em poucas
linhas pelos bigrafos 27. Por felicidade, temos sobre ela uma poro
de outros escritos; mas esse silncio bastaria para provar a sinceridade
dos autores franciscanos primitivos: se eles quisessem fazer uma am-
plificao, que tema mais maravilhoso e mais fcil poderiam encontrar?
Francisco deixou a Porcincula no meio de junho e foi para Ancona, de
onde os cruzados deviam partir para o Egito no dia de So Joo (24 de
junho). Muitos frades se tinham unido a ele, o que no deixava de ser
um inconveniente para uma viagem martima, onde se era obrigado a
confiar na caridade dos comandantes dos navios, ou na dos companheiros
de viagem.

26
CrJJ 8.
27
1Cel 57; LM 133-138; 154 e 155; 2Cel 2, 2; Conform. 113 b 2; 114 a 2; Actus 27; Fior. 24.

298
Compreendemos o embarao de Francisco quando chegou a Ancona
e foi obrigado a abandonar uma parte dos que tanto desejavam ir com
ele. As Conformidades contam a propsito algo que nos levaria a desejar
uma autoridade mais antiga, mas que bem o jeito de Francisco: ele le-
vou todos os seus amigos ao porto e lhes exps suas perplexidades: O
pessoal do navio no quer levar-nos todos, e eu no tenho a coragem de
fazer uma escolha entre vs. Vs podereis pensar que eu no vos amo
igualmente a todos. Ento, vamos procurar descobrir a vontade de Deus
Ento chamou um menino que estava brincando por ali e, como ele se
prestou com alegria ao papel providencial que lhe davam, apontou os
onze frades que deviam partir 28.
Ignoramos o itinerrio que seguiram. S uma lembrana dessa viagem
chegou at ns: a do castigo infligido na ilha de Chipre a Frei Brbaro,
culpado de uma falta que o mestre detestava mais que qualquer outra,
a maledicncia. Ele era implacvel com essas falhas de linguagem to
comum entre as pessoas piedosas e que muitas vezes criam um inferno
nas casas religiosas que parecem as mais pacficas. Dessa vez, a vilania
pareceu-lhe to mais grave porque foi feita diante de um estranho, um
cavaleiro da regio. Francisco repreendeu vivamente o frade culpado.
Este apanhou excremento de asno que estava l e levou-a boca dizendo:
necessrio que a boca que distilou o veneno do dio contra meu irmo
coma esterco. Essa indignao e a penitncia que o infeliz se infligiu
encheram o cavaleiro de estupor e admirao 29.

28
Conform. 113 b 2. Cf. A.SS., p. 611.
29
2Cel 3, 92; SEP 51; Cf. 2Cel 3,115; Conform. 142 b1. Esse episdio tambm poderia ter acontecido em
outro lugar, como foi observado por Golubovich, os textos dizem coram quodam milite de insula Cypri e
no in insula.
O Pe. Papini, Storia, t. I, p. 75, n. 4 et t. II, p. 35, n 3, acha que insula Cipri seria um erro do copista e que
deveramos ler Insula Cipii. Cipi era uma outra forma do nome da famlia Scifi. Esse nome designaria uma
cidade dos arredores de Assis hoje chamada Bastia. De fato, ela foi mencionada no sculo XIII s vezes sob
o nome de Insula romana, s vezes como Insula vetus, mas eu no consegui encontrar nenhum vestgio de
Insula Cipii. O ms. 686 de Assis escreve claramente insula Cipri, mas a edio de Rome 1806 pe Insula Cipii.

299
bem provvel, como pensou Wadding, que os missionrios tenham
desembarcado em So Joo dAcre. Chegaram l pela metade de julho30:
Era sem dvida nos arredores dessa cidade que Frei Elias se estabelecera
dois anos antes. Francisco separou-se de alguns de seus companheiros,
que ele enviou para pregar em diversos lados, e ele mesmo, poucos dias
depois, foi para o Egito, onde todos os esforos dos cruzados estavam
sendo concentrados em Damieta.
Desde o comeo, ele ficou chocado com o estado moral do exrcito
cristo. Apesar da presena de numerosos prelados e do legado apostlico,
estava desorganizado pela indisciplina. Francisco ficou to chocado que,
quando falaram em batalha, ele achou que devia desaconselh-la, anun-
ciando que os cristos seriam infalivelmente derrotados. Riram-se dele
e, no dia 29 de agosto, os cruzados, que tinham atacado os sarrracenos,
sofreram uma terrvel derrota 31.
Suas pregaes tiveram um sucesso maravilhoso. preciso dizer que
o terreno estava mais bem preparado do que qualquer outro para receber
a nova semente; claro que no porque a piedade fosse viva, mas, nesse
amontoado de homens vindos dos quatro cantos da Europa, os inquietos,
os videntes, os iluminados, os sedentos de justia e de verdade estavam
ao lado dos patifes, dos aventureiros, dos sedentos de ouro e de pilhagens.
Capazes de muito bem ou de muito mal, de acordo com os impulsos do
momento, soltos dos laos da famlia, da propriedade, dos hbitos que
enlaam ordinariamente a vontade e no permitem a no ser excepcio-
nalmente uma completa mudana de vida, os que eram sinceros e tinham
ido para l com generosas iluses eram por assim dizer predestinados a
entrar no exrcito pacfico dos frades menores 32.

30 No sistema de navegao dessa poca, a viagem exigia de vinte a trinta dias. Encontramos o diarium
de uma travessia parecida em Huillard-Brholles, Hist. Dipl., t. I, 898-901. Cf. Ibid, Introd., p. 331. De
Gnova a Acre, pelo mau tempo, Jacques de Vitry precisou de cinco semanas (outono de 1216), Zeitschr.
f. Kircheng, XIV, p. 108.
31
2Cel 2,2; LM154 e 155; Spec. Vitae 226 a; Cf. A.SS., p. 612.
32
Para compreender bem a situao dos costumes nas localidades povoadas pelos cruzados absoluta-
mente necessrio ler a carta de Jacques de Vitry dirigida no fim de maro de 1217 Lutgarde de S. Tron e
ao convento Auviria. Zeitschrift, f. Kg., XIV, p. 106 ss.

300
Francisco devia conquistar nessa misso os colaboradores que garan-
tiriam o sucesso de sua obra nos pases do norte da Europa.
Nosso compatriota Jacques de Vitry, em uma carta dirigida alguns
dias depois a seus amigos, conta assim a impresso que teve de Francisco:
Eu vos anuncio que o mestre Reynier, prior de So Miguel, entrou na
Ordem dos Frades Menores, ordem que se multiplica bastante por toda
parte, porque imita a Igreja primitiva e segue em tudo a vida dos apstolos.
O mestre desses irmos chama-se Frei Francisco; to amvel que todos o
veneram. Vindo ao nosso exrcito, no teve receio de ir, por zelo pela f, ao
exrcito de nossos inimigos. Durante longos dias, anunciou aos sarracenos
a palavra de Deus, mas com pouco sucesso. Ento, o sulto, rei do Egito,
pediu-lhe em segredo que suplicasse a Deus que lhe revelasse por algum
prodgio qual era a melhor religio. O ingls Colin, clrigo nosso, entrou
na mesma ordem como outros dois de nossos companheiros, Miguel e Dom
Mateus, ao qual eu tinha confiado o cuidado da Santa Capela. Fizeram o
mesmo tambm Cantor e Henrique, e outros cujo nome eu esqueci 33.
O longo e entusiasmado captulo consagrado aos frades menores em
sua grande obra sobre o Ocidente muito extenso para que o ponhamos
aqui. um quadro vivo e exato dos primeiros tempos da Ordem em que
a pregao de Francisco diante do Sulto contada mais uma vez 34. Foi
escrito em uma poca em que os frades ainda no tinham conventos nem
igrejas, e em que os captulos eram feitos uma ou duas vezes por ano;
isso nos leva a uma data anterior a 1223 e, provavelmente, a 1221. Por
isso temos a uma contraprova das narrativas de Toms de Celano e dos
Trs Companheiros, e eles tm a uma confirmao exata.
Para as entrevistas de Francisco com o Sulto prudente ater-se ao
que foi contado por Jordo de Jano 35, Jacques de Vitry e o continuador
de Guilherme de Tyr 36. Ainda que este tenha escrito em uma poca

33
Jacques de Vitry no fala aqui de Francisco a no ser incidentalmente, no meio das saudaes, o que, do
ponto de vista crtico, aumenta o valor dessas palavras. Ver Critique des sources, c. V I.
34
Jacques de Vitry, Hist. Occid., cap. XXXII.
35
CrJJ 10.
36
Ver Critique des sources, c. V. III. O Pe. Golubovich, Biblioteca, t. I, p. 61 ss. aproxima e condensa
com bom gosto as diversas forntes a respeito desse episdio. Cf. ibid., p. 110.

301
relativamente tardia (entre 1275 e 1295), fez uma obra de historiador,
trabalhando em cima de documentos autnticos: ora, como Jacques de
Vitry, ele desconhece a oferta feita por Francisco de passar atravs do
fogo se os sacerdotes de Maom fizessem o mesmo, e de estabelecer por
esse prodgio a superioridade do cristianismo.
J vimos como esse apelo aos sinais pequeno no carter de Francis-
co. Pode ser que esse conto, feito por Boaventura, tenha nascido de um
mal entendido. Como um novo fara, o sulto pde colocar o estranho
pregador na situao de provar sua misso com milagres. Seja o que for,
Francisco e seu companheiro foram tratados com muitas regalias, fato
to mais notrio porque as hostilidades estavam em seu ponto mais alto.
De volta ao campo dos Cruzados, l ficaram at a conquista de Da-
mieta (5 de novembro de 1219). Desta vez, os cristos eram vitoriosos,
mas o corao do homem evanglico talvez sangrasse at mais por essa
vitria do que pela derrota de 29 de agosto. O espantoso espetculo da
cidade que os vencedores encontraram cheia de pedaos de cadveres,
as querelas para repartir o butim, a venda dos infelizes que no tinham
sucumbido peste 37, todas essas cenas de terror, de crueldade, de cobia,
causaram-lhe um profundo horror. A besta humana estava solta, a voz
do apstolo no conseguia mais fazer-se ouvir no meio desses clamores
de feras mais do que a de um salvador no meio de um oceano agitado 38.
Ele partiu para a Sria 39 e os Lugares Santos 40. Como no gostaramos
de segui-lo nessa peregrinao e acompanha-lo em pensamento na Judia
e na Galilia, em Belm, em Nazar, no Getsmani! Que teria sentido
no lugar onde nasceu o filho de Maria, na oficina onde ele trabalhou,

37
Tudo isso longamente contado na carta de Jacques de Vitry.
38
De Sarracenis... tanta facta est strages quod christianis ipsis displicuit. Ricardo de S.Germano ann.1219,
Pertz SS. t. XIX, p.340.
Cf. Chronica Albrici monarchi trium fontium, Pertz SS., t. XXIII, p.908.
39
Cil hom qui comena lordre des Frres Menors, si ot nom frre Franois... vint en lost de Damiate, e
i fist moult de bien, et demora tant que la ville fut prise. Il vit le mal et le pch qui comena croistre entre
les gens de lost, si li desplot, par quoi il sen parti, e fu une pice en Surie, et puis sen rala en son pas.
Historiens des Croisades, t. II. LEst de Eracles Empereur, liv. XXXII, chap. XV. Cf. Sanuto, Secreta fid.
Cruc., lib. III, p. XI, cap. 8 dans Bongars.
40
Sobre a viagem Palestina ver Pe. Golubovich, Bibliografia, t. II, p. 121 e Biblioteca, t. I, p. 93.

302
diante do madeiro de oliveira em que foi imolado? Oh! De repente, os
documentos nos abandonam de vez. Partindo de Damieta talvez alguns
poucos dias depois do fim do assalto (5 de novembro de 1219), poderia
ter chegado muito bem a Belm para o Natal. Mas no sabemos nada,
absolutamente nada, a no ser que sua estadia demorou mais do que se
esperava.
Alguns frades que tinham assitido ao captulo geral de 1220 na Por-
cincula (Pentescotes, 17 de maio) tiveram tempo de ir Sria e l ainda
encontrar Francisco 41; e no podem ter chegado antes do fim de junho.
Que teria ele feito nesses oito meses? Por que no tinha ido presidir o
captulo? Ser que esteve doente? 42 Ser que se demorou em alguma
misso? As informaes que temos so muito poucas para ousarmos
fazer conjeturas.

ngelo Clareno conta que o Sulto do Egito, tocado por suas pre-
gaes, mandou que ele e todos os seus frades tivessem livre acesso ao
Santo Sepulcro, sem ter que pagar nenhum tributo 43.

Bartolomeu de Pisa, por seu lado, diz incidentalmente que tendo ido
Francisco pregar em Antioquia e nos arredores, os beneditinos da abadia
da Montanha Negra 44, a oito milhas da cidade, quiseram ser todos rece-
bidos na Ordem, entregando ao Patriarca as suas propriedades.
Vemos que essas duas indicaes so muito pobres, muito isoladas.
A segunda nem pode ser aceita a no ser como inveno. Pelo contrrio,
temos informaes detalhadas do que se passou na Itlia durante a ausn-
cia de Francisco. A Crnica de Frei Jordo, recentemente encontrada e

41
CrJJ 11-14.
42
O episdio dos murmrios de Frei Leonardo, contado mais adiante, d alguma probabilidade a essa
hiptese.
43
Trib. Man. Laur. 9 b. Cf. 10 b.: Sepulcro Domini visitato festinat ad Christianorum terram. Cf. Pe.
Golubovich, Biblioteca, t. I, p. 52.
44
Sobre esse mosteiro, ver uma carta ad familiares de Jacques de Vitry, escrita em 1216 et publicada em
1847 pelo baro Jules de S. Genois no t. XIII das Mmoires de lAcadmie royale des sciences et des beaux-
arts de Bruxelles (1849). Conform. 106 b 2; 114 a 2; Spec.Vitae, 184; Chron. XXXIV Gen., An. fr. III, p. 281.

303
publicada, lana toda a luz que se poderia desejar sobre o compl tramado
pelos que ele tinha encarregado de substitu-lo na Porcincula; e isso, se
no com a conivncia de Roma e do cardeal protetor, pelo menos sem a
sua oposio. Essas peripcias foram bem contadas por ngelo Clareno,
mas a emoo no disfarada que todos os seus escritos respiram e sua
falta de preciso seriam suficientes para que os crticos atentos as colo-
cassem de quarentena. Como pensar que, estando Francisco ainda vivo,
os vigrios que ele tinha institudo aproveitariam de sua ausncia para
confundir sua obra? Como o papa, que durante esse perodo permaneceu
em Rieti e depois em Viterbo, com Hugolino, que ainda estava mais perto,
em Perusa, deixariam de impr silncio aos agitadores 45?
Hoje, quando todos esses fatos reaparecem j sem o tom oratrio e
apaixonado, mas datados, breves, precisos, cortantes, com jeito de notas
tomadas dia a dia, temos que nos render evidncia.
Ser que poderamos condenar barulhentamente Hugolino e o papa?
Creio que no: eles tiveram um papel que no os honra, mas suas inten-
es eram evidentemente excelentes. Se o famoso dito segundo o qual o
fim justifica os meios criminoso quando se examina a prpria conduta,
o primeiro dever quando se julga a dos outros: os acontecimentos,
ento, so estes.
Desde 25 de julho, cerca de um ms depois da partida de Francisco
para a Sria, Hugolino, que estava em Perusa, outorgou s clarissas de
Monticelli (Florena), Sena, Perusa Lucca o que seu amigo tinha to
obstinadamente recusado para os frades, a regra beneditina 46.
Ao mesmo tempo, So Domingos, voltando da Espanha cheio de um
novo ardor, depois de seu retiro na gruta de Segvia, e decidindo adotar

45
A.SS., p.619-620, 848, 851, 638.
46
Ver Bula Sacrosancta de 9 de dezembro de 1219, cf. as de 19 de setembro de 1222: Sbaralea I, p. 3; 11
ss.; Potthas.t 6179, 6879 a. b. c.
Sobre o relacionamento de Hugolino com os mosteiros das Clarissas V. em particular Brem, Papst Gregor IX
bis zu seinem Pontificat, Heidelberg, 1911. Pe. Livarius Oliger OFM, De Origine Regularum Ordinis S. Clarae,
Quaracchi, 1912. H. Fischer, Der hlg. Franziskus whrend der Jahre, 1219-1221, Fribourg, Suisse, 1907.

304
para sua Ordem a regra da pobreza, fora vivamente encorajado nesse
caminho e cumulado de favores 47. Honrio III via nele o homem provi-
dencial do momento, o reformador do estado monstico. Tambm teve
para com ele delicadezas jamais ouvidas e, por exemplo, chegou a juntar
a ele um grupo de monges pertencentes a outras ordens, destinados a ser
como seus lugares tenentes nas viagens de pregao que ele achasse que
devia empreender, aprendendo a fazer, sob a sua direo, o aprendizado
da pregao popular 48.

Que Hugolino tenha sido o inspirador de tudo isso, a esto as bulas


para testemunh-lo. Dirigir as duas ordens novas era seu pensamento
to dominante que estabeleceu domiclio para isso: ns o encontramos
continuamente em Perusa, a trs lguas da Porcincula, ou em Bolonha,
a sede dos dominicanos.
Torna-se agora evidente que, se a fraternidade instituda por Francisco
foi verdadeiramente fruto de suas entranhas, carne de sua carne, a Ordem
dos Frades Pregadores emana do papado, e que So Domingos no mais
do que seu pai putativo. Esse carter foi expresso em uma palavra por
um dos analistas contemporneos mais autorizados, Burchard de Ursperg
(+1226). O papa, diz, instituiu e confirmou a Ordem dos Pregadores 49.
Quando partiu para o Oriente, Francisco tinha deixado dois vigrios
para substitu-lo, Frei Mateus de Narni e Frei Gregrio de Npoles. O

47
Ver Potthast 6155, 6177, 6184, 6199, 6214, 6217, 6218, 6220, 6246. Ver tambm Chartularium Uni-
versitatis Praed., t. I, p. 487.
48
Bula Quia qui seminant de 12 de maio de 1220, Ripolli, Bull. Praed., t. I, p. 10 (Potthast 6249).
49
Mon. Germ. hist. Script., t. XXIII, p. 376. Essa passagem de uma importncia extrema porque resume
em algumas linhas a poltica eclesistica da Santa S nessa poca. Depois de ter falado dos perigos dos
Humilhados para a Igreja, Burchard acrescenta: Quae volens corrigere dominus papa ordinem Predicatorum
instituit et confirmavit. Ora, esses Humiliati eram uma ordem aprovada, mas Burchard, colocando-a na lista
das herticas ao lado dos Pobres de Lio, expressava em uma palavra os sentimentos do papado; tinha por
eles uma invencvel repugnncia e, no querendo ataca-los diretamente, procurava criar um derivativo. Em
relao aos Frades Menores seguiu uma ttica semelhante, acrescentando preocupaes inspiradas pela
santidade do fundador e o prodigioso sucesso da Ordem. Tudo isso tornou-se intil desde que, em 1221, Frei
Elias tornou-se vigrio de Francisco, e principalmente quando, depois de sua morte, ele teve toda a liberdade
necessria para dirigir a Ordem de acordo com a viso de Hugolino, agora Papa Gregrio IX.

305
primeiro estava encarregado especialmente de ficar na Porcincula para
admitir os postulantes 50. Gregrio de Npoles, pelo contrrio, devia
percorre a Itlia para consolar os frades 51.
Os dois vigrios logo comearam a perturbar. No se entende como
homens que ainda estavam sob a impresso de seu primeiro fervor por
uma regra que tinham prometido observar na plenitude de sua liberdade,
teriam podido sonhar em inovar, se tinham sido empurrados e mantido
em uma alta posio.
Mitigar o voto de pobreza, multiplicar as observncias, foram esses
os pontos em que empreenderam todos os seus esforos.
Na aparncia, isso era bem pouco, mas na realidade era muito, porque
era uma primeira tentativa do esprito antigo contra o esprito novo. Era
o esforo de homens que faziam da religio, quero crer que inconscien-
temente, uma questo de observncias e de ritos, em vez de ver nela,
como So Francisco, a conquista dessa liberdade que nos solta de tudo
e de todos, e que decide cada alma a obedecer quele no sei que de
divino e misterioso, que as flores do campo adoram, que os pssaros
do cu bendizem, que a sinfonia dos astros louva e que Jesus de Nazar
chamava de: Abba, Pai.
A primeira Regra era excessivamente simples no que diz respeito aos
jejuns. Os frades deviam comer de magro nas quartas e sextas-feiras.
Podiam acrescentar, mas s com autorizao especial de Francisco, o
magro da segunda-feira e do sbado. Os vigrios e os que a eles aderi-
ram complicaram isso de maneira espantosa. Na ausncia de Francisco,
os vigrios reuniram um captulo limitado aos Seniores 52 em que deci-
diram: 1 que em tempo de gordo os frades no tratariam de buscar

50
No sabemos nada mais sobre ele, a no ser o dom dos milagres depois de sua morte. CrJJ 11. Conform.
62 a 1.
51
No era um homem comum: notvel orador e administrador (CrEc 6)., foi ministro da Frana desde antes
de 1224, e ainda era em 1240, graas ao zelo com que tinha adotado as idias de Frei Elias. Foi arrastado pela
desgraa de Elias e condenado priso perptua. Apesar da publicao de numerosos documentos parece
que no se fez luz suficiente sobre o fim de sua vida. Ver principalmente Pe. Ren de Nantes OFMC, tudes
fr., dezembro de 1910, t. XXIV, p. 615 ss.
52
Pode ter sido no outono de 1219, ver Fischer, loc. cit., p. 109 s. O Pe. Golubovich, Biblioteca, t. I, p. 96
s., fixa a data no outono de 1220. Ver tambm Domingos Mandic, De legislatione antiqua, p. 132.

306
carne, mas, se a oferecessem espontaneamente, poderiam comer; 2 que
todos jejuariam na segunda-feira, alm da quarta e do sbado; 3 que na
segunda e no sbado se absteriam de laticnios, a menos que por acaso
os fiis os dessem 53.
Essas tentativas testemunham tambm um esforo para imitar as
ordens antigas, no estranho a uma vaga esperana de substitui-las 54.
Frei Jordo s nos conservou essa deciso do captulo de 1220, mas as
expresses usadas por ele mostram muito bem que ela no foi a nica e
que os descontentes tinham querido, como nos captulos de Cister e do
Monte Cassino, editar verdadeiras constituies.
Mas essas modificaes da Regra no deixaram de provocar a indig-
nao de uma parte do captulo: um irmo leigo 55 se fez mensageiro e
foi para o Oriente suplicar a So Francisco que voltasse quanto antes
para tomar as medidas exigidas pelas circunstncias.
Houve tambm outros motivos de perturbao: Frei Filipe, encar-
regado das Clarissas, precipitara-se para que elas obtivessem de Hugolino
os privilgios de que j tratamos 56.

53
CrJJ 11. Ver Fischer p. 33 ss. Sobre a influncia da organizao que o cardeal tinha dado s Clarissas.
Ver Pe. Cuthbert, Life of S. Fr., p. 245.
O carter de severidade excessiva das constituies dadas pelo cardeal s Clarissas foi mostrado pelo Pe.
Ren de Nantes, Les origines de lordre de Sainte Claire, p. 63.
Pode ser que tenha sido nas observncias editadas por esse captulo dos seniores que Celano pensou
quando falou em novae adinventiones que mostravam o esquecimento da primitiva simplicidade. 1Cel 104.
Cf. Actus 3. Fior 4. Conform. 184 a 1.
54
Ver a Regra dos Frades de So Marcos, que da mesma poca, to precisa, to complicada no que diz
respeito aos jejuns e s roupas. Aprovada posteriormente (j tinha sido aprovada pro Inocncio III aos 19
de outubro de 1210) (Potthast 6134), Horoy, Honorii Opera, t. III, col. 310.
55
H uma tradio que o chama de B. Estevo de Narni. Jacobilli III, p. 256 s.
56
CrJJ 12. Cf. Bula Sacrosancta de 9 de dezembro de 1219.

307
Um certo Frei Joo de Conpello 57 tinha reunido um grande nmero
de leprosos dos dois sexos 58, e escrevera uma regra para fundar com eles
uma nova ordem. Depois, com um cortejo desses infelizes, apresentara-se
ao soberano pontfice para obter sua aprovao.
Manifestaram-se tambm muitos outros tristes sintomas sobre os
quais Frei Jordo no insiste; espalhara-se tanto o boato de que Fran-
cisco morrera, que toda a Ordem ficou perturbada, dividida, e corria os
maiores perigos. Por isso, os sombrios pressentimentos que Francisco
parece ter tido tinha sido ultrapassados pela realidade 59. O mensageiro
que lhe levou essas tristes notcias encontrou-o na Sria, provavelmente
em So Joo dAcre. Ele embarcou imediatamente com Elias, Pedro
Cattani, Cesrio de Espira e alguns outros, para voltar Itlia, em um
barco que partia para Veneza, onde ele pode ter chegado facilmente l
pelo fim de julho.

57
CrJJ 12. Ser que deveramos ler de Campello? A meio caminho entre Foligno e Espoleto h uma
localidade com esse nome. Por outro lado, a LTC 35 anota a entrada na Ordem de um Joo de Capella que,
na legenda, tornou-se o Judas franciscano. Invenit abusum capelle et ab ipsa denominatus est: ab ordine
recedens factus leprosus laqueo ut Judas se suspendit. Conform. 104 a 1. Cf. Bernardo de Bessa, 96 a; Actus
1; Fior 1. Tudo isso est bastante embrulhado. Talvez seja preciso pensar que Joo de Campello morreu logo
depois, e que, mais tarde, quando estavam esquecidos os contos desses tempos perturbados, algum frade
engenhoso explicou a nota de infmia ligada sua lembrana por uma hiptese requentada sobre o seu nome.
58 O Pe. Mandonnet d uma traduo melhor: Havia, alm dos leprosos, homens e mulheres que no eram
leprosos. Les origines de lOrdo de Paenitentia. Actas do congresso cientfico internacional dos catlicos
em Friburgo em 1897. Quinta seo (cincias histricas), p. 213; p. 31, n 2.
59
CrJJ 12, 13 e 14.

308
15

A CRISE DA ORDEM
Outono de 1220

309
XV
Annuntiavi justitiam tuam in ecclesia magna,
ecce labia mea non prohibebo; Domine, tu scisti
Justitiam tuam non abscondi in corde meo;
veritatem tuam et salutare tuum dixi;
non abscondi misericordiam tuam et veritatem tuam a concilio
multo,
Tu autem, Domine, ne longe facias miserationes tuas a me;
misericordia tua et veritas tua semper susceperunt me...
Ego autem mendicus sum et pauper;
Dominus sollicitus est mei.
Adjutor meus et protector meus es tu;
Domine meus, ne tardaveris 1.
In te speraverunt patres nostri;
speraverunt et liberasti eos...
Ego autem sum vermis, et non homo;
opprobrium hominum et abjectio plebis.
Ne discesseris a me
quoniam tribulatio proxima est,
quoniam non est qui adjuvet 2.
In ipsa hora exsultavit Spiritu sancto, et dixit: Confiteor tibi, Pater, Domine
caeli et terrae, quod abscondisti haec a sapientibus et prudentibus et reve-
lasti ea parvulis 3.
Confortamini in Domino et in potentia virtutis ejus. Induite vos armaturam
Dei, ut possitis stare adversus insidias diaboli. Quoniam non est nobis
colluctatio adversus carnem et sanguinem, sed adversus principes et po-
testates, adversus mundi rectores tenebrarum harum, contra spiritualia
nequitiae in caelestibus 4.

1
Sl 39, 10-18.
2
Sl 21 5-12.
3
Lc 10, 21.
4
Ef 6, 10-12.

310
XV
Anunciei vossa justia na grande assemblia,
No vou fechar meus lbios; vs o sabeis, Senhor.
No escondi vossa justia no meu corao,
Publiquei vossa verdade e vossa salvao,
No escondi vossa misericrdia e vossa verdade diante do grande
conselho.
Mas Vs, Senhor, no afasteis de mim vossa compaixo;
Vossa misericrdia e vossa verdade sempre me acolheram...
Eu sou um pobre mendigo,
Mas o Senhor cuida de mim.
Vs sois meu auxlio, sois meu protetor;
Meu Deus, no demoreis 5.
Nossos pais esperaram em Vs,
Esperaram e Vs os libertastes...
Mas eu sou um verme, no sou um homem,
Sou o oprbrio dos homens, sou abjeto para o povo.
No vos afasteis de mim, porque a tribulao est prxima
e no h ningum para me socorrer 6.
Nessa hora, ele exultou no Esprito Santo e disse: Eu vos bendigo, Pai, Se-
nhor do cu e da terra, porque escondestes essas coisas dos sbios e as
revelastes aos pequeninos 7.
Confortai-vos no Senhor e em sua virtude poderosa. Vesti a armadura de
Deus para poder resistir s ciladas do diabo. Porque nossa luta no contra
carne e sangue mas contra os prncipes e os poderosos, contra os senhores
deste mundo tenebroso, contra os espritos malfazejos espalhados pelo ar
.
8

5
Sl 39 (40), 10-18.
6
Sl 21 (22), 5-12.
7
Lc 10, 21.
8
Ef 6, 10-12.

311
A CRISE DA ORDEM 9
Desde que chegou a Veneza, Francisco se informou mais exatamente
sobre tudo que tinha acontecido e convocou o captulo geral na Por-
cincula na comemorao de So Miguel (29 de setembro de 1220) 10.
Seu primeiro cuidado foi sem dvida confortar sua amiga de So
Damio: um pequeno fragmento da carta que nos foi conservada d a
entender as tristes preocupaes que o acabrunhavam:
Eu, Frei Francisco, pequenino, quero seguir a vida e a pobreza do Alts-
simo Senhor nosso Jesus Cristo e de sua santssima Me, e nela perseverar
at o fim; e vos rogo, senhoras minhas, e vos aconselho a que vivais sempre
nessa santssima vida e pobreza. E guardai-vos bastante de vos afastardes
dela de maneira alguma pelo ensinamento de quem quer que seja 11

Houve um longo grito de alegria atravs de toda a Itlia quando se


soube de sua volta; muitos dos frades zelosos j se desesperavam, porque
em muitas provncias j tinham comeado a persegui-los. Quando sou-
beram que seu pai espiritual estava vivo e que iriam rev-lo, tiveram uma

9
CrJJ 14 Tribul., fo 10. Sobre a data da volta do Oriente, ver Studi Francescani, t. I (1914-1915), p. 417.
10
Qualquer outra data impossvel, porque Francisco renunciou em pleno captulo direo da Ordem
nas mos de Pedro Cattani, que morreu aos 10 de maro de 1221.
11
Esse fragmento bem curto est no VI da Regra das Damianitas (9 de agosto de 1253): Speculum Morin,
Tract. III, 226 b.

312
alegria imensa. De Veneza, Francisco foi para Bolonha. Essa viagem foi
marcada por um incidente em que se v mais uma vez sua maliciosa e
fina bondade. Quebrado provavelmente tanto pelas emoes quanto pelas
fadigas, houve um dia em que teve que renunciar a fazer o caminho a p.
Ia montado num asno, seguido por Frei Leonardo de Assis e um olhar
lhe revelou o que se passava no corao do companheiro: Meus pais,
pensava o frade, tomariam todo cuidado para no topar com Bernardone,
e eu, agora, sou obrigado a seguir a p o filho dele.

Deve ter ficado espantado quando ouviu Francisco a lhe dizer, des-
cendo rapidamente da montaria: Fica com o meu lugar. muito incon-
veniente que tenhas que me seguir a p, tu que procedes de uma nobre e
poderosa linhagem. O pobre Leonardo, bem confuso, lanou-se a seus
ps pedindo perdo 12.

Mal chegado a Bolonha, Francisco teve que ser duro com os relaxa-
dos. Lembramos que a Ordem no devia possuir nada, nem direta nem
indiretamente. Os mosteiros dados aos frades no se tornavam proprie-
dade deles: quando o proprietrio desejasse ou alguma outra pessoa
quisesse tom-los, eles deviam ced-los sem a menor resistncia. Ora,
aproximando-se de Bolonha ele soube que tinham construdo uma casa
que j se chamava a casa dos frades. Mandou que ela fosse imediatamente
esvaziada, sem abrir exceo nem para os doentes que l estavam. Ento

12
2Cel 2, 3; LM 162. Na Legenda antiqua de Perusa (no 65 da ed. de Quaracchi, no 30 da ed. France
franciscaine, Paris, 1926), o frade chamado quodam fratre spirituali de Assisio e teria testemunhado
diante do papa e dos cardeais pedindo a canonizao de Francisco. Cf. Conform. 62 b. 1 e 184 b. 2 onde o
encontramos em So Damio com So Francisco, quando ele teve certeza de sua salvao. (Cf. 2Cel 3, 138.
Wadding, Ann., t. II, p. 980, 1224, 27.) Ver sobre ele em Golubovich, Biblioteca, t. I, p. 17, n 5, et p. 77.
M. Della Giovanna (San Francesco giullare, p. 71) assimila Leo e Leonardo referindo-se a Wadding, II,
p. 98-99. Mas Wadding, que fala bem de Leo, e depois de Leonardo, no o faz necessria e explicitamente
por assimilao.
O fato de que no encontramos nenhuma outra meno sobre Frei Leonardo, nem sobre o lugar de sua
morte, seria favorvel a essa hiptese que a facilidade de transformao dos nomes prprios no sculo XIII
torna plausvel. Eles so to pouco fixos de uma maneira absoluta, mesmo para os grandes personagens, que
o bispo de stia chamado em documentos oficiais tanto de Hugo como de Hugolino.
Nesse caso, deveramos colocar o incidente depois da passagem por Bolonha, quando So Francisco teria
reencontrado Frei Leo (EP 6).
Essa identificao, se fosse confirmada, lanaria uma luz curiosa sobre Celano que no fala de Frei Leo,
mas fala de Frei Leonardo nesse caso que pouco o honra.

313
os frades recorreram a Hugolino, que estava na cidade, onde acabara de
consagrar Nossa Senhora do Rheno 13. O cardeal explicou longamente
a Francisco que a casa no pertencia Ordem, porque ele mesmo se
declarara proprietrio por ato pblico, e acabou convencendo-o 14.
A piedade dos bolonheses reservou a Francisco um acolhimento entu-
siasmado, cujo eco chegou at ns:

Eu, Toms de Spalato, arquidicono da catedral de Bolonha, estudava em


Bolonha quando, no ano de 1220 15, no dia da Assuno, vi So Francisco
a pregar diante de quase todas as pessoas da cidade. O tema do discurso foi
este: os anjos, os homens, os demnios. Ele falou com tanta objetividade
e eloqncia que muitas pessoas instrudas que l estavam ficaram cheias
de admirao pelas palavras desse homem to simples. Mas ele no tinha
as maneiras de um pregador, o modo de falar parecia mais uma conversa:
o fundo de sua alocuo tendia essencialmente a abolir as inimizades e a
estabelecer alianas pacficas. Suas roupas eram pobres; sua pessoa no tinha
nada que se impusesse; o rosto no tinha nada de bonito. Mas Deus dava
uma eficcia to grande a suas palavras que ele levou paz e concrdia
muitos nobres, cujo selvagem furor no se detinha nem diante da efuso
de sangue. Houve por ele uma to grande devoo que homens e mulheres
corriam em massa atrs dele, e que os que conseguiam tocar a barra de seu
hbito se julgavam felizes.

Teria sido nessa ocasio que o clebre Acrsio Glossador cabea


da famosa dinastia de jurisconsultos que ilustrou a Universidade de Bo-
lonha durante todo o sculo XIII acolheu os Frades Menores em sua
vila Ricardina, nos arredores da cidade 16? No sabemos.

13
Sigonius: Opera, t. III, col. 220; Cf. Potthast 5516 et 6086.
14
EP 6; 2Cel 3, 4; Tribul.13 a; Conform.169 b 2.
15
Essa cena tem que ser levada para dois anos mais tarde, no dia 15 de agosto de 1222. Ver Golubovich,
Biblioteca, t.I, p. 98; 150 n. 7. Fischer, Der heilige Franziskus whrend der Jahre 1219-1221, p. 61, n. 2;
42; 137s. Boehmer Analekten, p. LXI; 106. P. Bihl AFH t. .XX (1927), p. 197, n. 4.
16
Ver Mon. Germ. hist. Script., t. XXVIII, p. 631 e as notas.
Segundo as Memorie istoriche della Provincia dei Minori osservanti detta di Bologna raccolte dal Padre
Ferdinando di Bologna (um vol. in-4 de 200 p. Bolonha 1717) o primeiro convento dos franciscanos foi
nel luogo dellePugliole, detto presentemente S. Bernardino (p. 3.).

314
Parece que um outro professor, Nicolau dei Pepoli, tambm entrou
na Ordem 17. Naturalmente, os alunos no ficavam atrs, e alguns deles
pediram o hbito. Mas tudo isso constitua um perigo: essa cidade, que
era na Itlia como um altar consagrado cincia do direito, haveria de
exercer na evoluo da Ordem a mesma influncia de Paris; os Frades
Menores no puderam mais escapar disso como ns no podemos deixar
de respirar o ar do ambiente.

Dessa vez, Francisco s ficou pouco tempo em Bolonha. Uma antiga


tradio, no conservada por seus bigrafos, mas que parece verossmil,
conta que Hugolino levou-o para passar um ms entre os camaldulenses
no retiro onde morava ento So Romualdo, no meio dessas florestas do
Casentino que esto entre as mais belas da Europa, a poucas horas do Al-
verne, cujo cimo se eleva como um gigante, dominando todo o horizonte.
Vimos como Francisco tinha necessidade de repouso. No h dvi-
da de que tambm suspirava por um recolhimento, para acertar ante-
cipadamente sua linha de conduta no meio das tristes conjunturas que
tinham provocado sua volta 18.
S que o desejo de lhe proporcionar um bem necessrio repouso era
para Hugolino uma finalidade secundria. Ele achava que o momento de
agir com vigor tinha chegado. fcil imaginar suas respostas s queixas
de Francisco: Ele j no o tinha aconselhado com insistncia a aproveitar
as boas idias do passado, da experincia desses fundadores de Ordens
que foram no s santos, mas tambm hbeis condutores de homens? Ele,
Hugolino, no tinha sido o seu melhor amigo, seu defensor e no tinha
tido que renunciar a essa influncia em que seu amor pelos frades, sua
posio na Igreja e sua idade avanada lhe davam tantas qualificaes?
Mas, no. Ele tivera que deixa-lo expor inutilmente seus discpulos a
misses to perigosas e sem resultados? E tudo isso por qu? Pelo mais
ftil dos pontos de honra, porque os Frades Menores no queriam ter o
menor dos privilgios. Eles no eram hereges, mas perturbavam a Igre-
17
Wadding, ann. 1220, n 9, Cf. A.SS., p. 823.
18
Sobre essa estadia, ver as autoridades indicadas pelos A.SS., p. 823 et 847. Ver tambm, Compendium
Chronicarum, p. 16. AFH II (1909), p. 97. Essa estadia entre os camaldulenses negada por H. Fischer,
Der hl. Fr. 1919-1921, p. 68.

315
ja como os hereges. Quantas vezes no lhe tinham recordado que uma
grande associao precisa de regulamentos precisos e detalhados para
sobreviver? Tudo isso tinha sido intil! claro que ningum duvidava
de sua humildade, mas por que no a devia manifestar no s na roupa
e no modo de viver, mas em todos os seus atos? Ele achava que estava
obedecendo a Deus quando defendia sua inspirao, mas a Igreja tambm
no fala em nome de Deus? As palavras de seus representantes no so
as palavras de Jesus perpetuando-se na terra? Ele queria ser um homem
evanglico, um homem apostlico, mas o melhor meio de chegar a isso
no era obedecendo ao romano pontfice? Ao sucessor de Pedro? Por
um excesso de condescendncia, tinham deixado que fizesse o que
queria, e o resultado tinha sido a mais triste lio. Mas a situao no
era desesperada, ainda havia tempo de remedia-la. Para isso ele s tinha
que ir lanar-se aos ps do pontfice, implorar sua bno, suas luzes e
seus conselhos.
Essas repreenses, misturadas com efuses de amor e de admirao
desse prelado, que teve em grau inaudito o pattico dom das lgrimas,
deviam provocar uma perturbao profunda no delicado corao de
Francisco 19.
Sua conscincia lhe dava um bom testemunho, mas, modesto como
so os espritos superiores, ele no estava longe de pensar que tinha
errado bastante.
Pode ser que seja nesse lugar que tenhamos que buscar o segredo da
amizade entre esses dois homens, que continua a ser to estranha sob
diversos aspectos. Como pode ter durado sem sombras at a morte de
Francisco se sempre encontramos Hugolino como inspirador do grupo
que comprometia o ideal franciscano? No possvel responder a essa
pergunta. o mesmo problema que encontramos com Frei Elias, em que
tambm no temos uma resposta satisfatria. Os homens que tm um
corao cheio de amor no conseguiriam ter uma inteligncia muito clara.

19
Ele chorou vendo a pobreza da Porcincula, EP 27. Que Hugolino tomou em suas mos a direo da
Ordem proclamado por 1Cel 74. Pastoris certe ille (Hugolino) implebat vicem et faciebat opus, sed sancto
viro pastoris reliquerat nomen.

316
Muitas vezes eles ficam fascinados pelos que so mais diferentes de-
les e em cujo peito no sentem essas fraquezas femininas, esses sonhos
bizarros, essa piedade quase doentia dos seres e das coisas, essa sede
mstica da dor, que ao mesmo tempo sua felicidade e seu tormento.
A estadia entre os camaldulenses continuou at a metade de setembro,
e acabou como o cardeal queria. Francisco estava decidido a ir direta-
mente ao encontro do papa, ento em Orvieto, para lhe pedir Hugolino
como protetor oficial destinado a dirigir a Ordem.
Voltava-lhe memria um sonho antigo: tinha visto uma pequena
galinha preta, que apesar de seus esforos no conseguia abrigar embaixo
das asas toda a sua ninhada. A pobre galinha era ele; os pintainhos eram
os frades. Esse sonho era uma indicao providencial mandando que
procurasse uma me para eles com asas para abrig-los todos, e que os
defenderia contra as aves de rapina. Pelo menos, foi o que ele pensou 20.
Foi a Orvieto sem passar por Assis, onde seria obrigado a tomar al-
gumas medidas quanto aos causadores de sua perturbao, uma vez que
tinha que ir pura e simplesmente ao papa.
Sua profunda humildade, unida ao sentimento de culpa que Hugolino
tinha despertado nele seriam suficientes para explicar sua atitude diante do
papa, ou preciso crer que ele teve o vago sentimento de abdicar? Quem
sabe se sua conscincia j no lhe murmurava uma repreenso e no lhe
revelava a inanidade de todos os sofismas em que o tinham enredado.
Estando, portanto, o humilde pai diante da porta do senhor papa, no
ousava bater com barulho no quarto de to grande prncipe, mas esperava
com grande pacincia a sada espontnea dele. Quando ele saiu, o bem-
aventurado Francisco, depois de ter-lhe feito reverncia, disse: Papa, meu
pai, Deus te d a paz! E ele disse: Deus te abenoe, filho! E o bem-
aventurado Francisco: Senhor, como s grande senhor e envolvido por
grandes preocupaes, os pobres muitas vezes no podem ter acesso a ti
nem te falar todas as vezes que tm necessidade. Deste-me muitos papas.

20
2Cel 1. 16; Spec. Vitae 100 a-101 b.

317
D-me um a quem eu possa falar, quando eu tiver necessidade, o qual
em teu lugar escute e resolva as questes de minha Ordem. Disse-lhe
o papa: Quem queres que eu te d, filho? E ele: O senhor de stia.
E ele concedeu. 21.
A narrao que acabamos de ler foi apresentada por Frei Jordo de
Jano, mas se v bem que, reunindo essas recordaes, ele guardou um
episdio, mais do que apresentar uma viso sinttica dos relacionamentos
que houve nessa poca entre a Cria e So Francisco. Os outros bigrafos
falam de uma audincia concedida pelo papa ao fundador da Ordem, e
parece muito natural coloca-la na poca de que estamos tratando. Eles
nos apresentam o Poverello introduzido diante do soberano pontfice
pelo cardeal Hugolino que, por prudncia, tinha preparado um discurso
para ele, aconselhando-o a decor-lo. Quando abriu a boca, Francisco
esqueceu tudo. Ento, pedindo a ajuda de Deus, ele falou com tanto
ardor e com uma inspirao to poderosa que cativou todos os ouvintes.
Toms de Celano mostra o cardeal muito comovido com essa aventura,
por causa do evidente apoio concedido a Francisco. Se seu protegido se
sasse mal ele poderia ser muito prejudicado, mas tudo acabou da melhor
forma. As palavras do Poverello causaram a melhor impresso no papa,
que lhe concedeu tudo que pedia 22.
Ento recomearam as conferncias com Hugolino. Ele deu ime-
diatamente algumas satisfaes a Francisco: o privilgio outorgado s
Clarissas foi retirado; Joo de Conpello foi avisado de que no deveria
esperar nada da cria; e, afinal, deram a Francisco a liberdade de com-
por ele mesmo a Regra de sua Ordem. claro que no lhe pouparam
conselhos quanto a isso, mas havia um ponto em que a cria no podia
esperar e por isso exigiu aplicao imediata: que os postulantes fossem
obrigados a fazer um ano de noviciado.

21
CrJJ 14; Cf. 78; 2 Ce1. 1, 17; Spec. Vitae 102; LTC 63 e 56.
S. Bonaventurae Opera, t. IX, p. 582, ed. Quaracchi. Cf. Estevo de Bourbon citado por Hilarino OFMCap
22

Histoire des tudes... Cunvin, Paris-Rome (1905), p. 50 s. Ver tambm 1Cel 73; 2Cel 1, 17; LTC 64,; LM 78.

318
Ao mesmo tempo, foi publicada uma bula que era destinada no s
a publicar uma ordem, mas principalmente a marcar de maneira solene
uma nova era no relacionamento da Igreja com os franciscanos. A fra-
ternidade dos penitentes umbros tornava-se uma ordem no sentido mais
estrito da palavra.
Honrio, bispo, servo dos servos de Deus, a Frei Francisco e aos outros
priores ou custdios dos Frades Menores, saudao e bno apostlica.
Em quase todas as ordens religiosas foi prudentemente ordenado que os
que se apresentassem para observar a vida regular fariam uma experincia
de um certo tempo, durante o qual eles seriam postos tambm prova, para
no dar nem lugar nem pretexto a aes inconsideradas. Por isso ns vos
ordenamos pela presente que no admitais ningum a fazer profisso antes
de um ano de noviciado; proibimos que depois da profisso um frade possa
sair da Ordem, nem que algum possa reter aquele que sair. Tambm proi-
bimos que algum ande por a usando o vosso hbito sem obedincia, e que
se corrompa a pureza de vossa pobreza. Se alguns frades ousarem fazer isso,
vs tereis que lhes infligir as censuras eclesisticas at que se arrependam 23.

claro que um eufemismo bem caracterizado tratar de privilgio


uma bula dessas. Na verdade, o papado impunha sua mo aos Frades
Menores.

Depois disso, pela prpria fora dos acontecimentos, a manuteno


de Francisco como ministro geral tornava-se impossvel. Ele mesmo
percebeu isso. Com o corao partido e alma doente, ele ainda teria
encontrado, apesar de tudo, no vigor de seu amor, essas palavras, esses
olhares que outrora faziam o papel de regra, de constituies, e davam
a seus primeiros companheiros a intuio do que deviam fazer e a fora
para cumpri-lo. Mas agora, frente dessa famlia que ele encontrava de

23
Cum secundum. O original est em Assis com Datum apud Urbem Veterem X Kal. Oct. Pont. nostri anno
quinto (22 de setembro de 1220). Por isso Sbaralea e Wadding no tm razo quando a datam de Viterbo, o
que se explica ainda menos porque todas as bulas desse tempo so datadas de Orvieto. Wadding, ann. 1220,
57. Sbaralea, t. I, p. 6. Potthast 6361.

319
repente to diferente do que ela tinha sido alguns anos antes, era preci-
so ter um administrador, e ele confessava humildemente que no tinha
capacidade nenhuma para isso 24.
Ah! No seu foro interior ele sentia que o antigo ideal era o verda-
deiro, era o bom; mas espantava esses pensamentos como tentaes de
orgulho. Os ltimos acontecimentos no tinham deixado de abater um
pouco sua personalidade moral: fora de ouvir falar em obedincia,
em submisso, em humildade, algo tinha escurecido dentro dessa alma
to luminosa; a inspirao j no lhe vinha com a mesma certeza de ou-
trora; o profeta ficava tremendo, quase duvidando de si mesmo e de sua
misso. Ele procurava descobrir ansiosamente se em sua iniciativa no
teria havido alguma v complacncia. Antes do captulo que ia ser aberto,
ele imaginava os ataques, as crticas de que seria objeto, e se esforava
por se persuadir de que, se ele no se submetesse a isso com alegria,
no seria um verdadeiro frade menor 25. As mais belas virtudes esto
sujeitas ao escrpulo, a humildade perfeita mais que qualquer outra, e
assim que homens excelentes, para evitar se afirmar, traem santamente
as suas convices 26. Ento resolveu passar a direo da ordem para as
mos de Pedro Cattani.
Ns j o conhecemos 27: discpulo da primeira hora, juntara-se a Fran-
cisco ao mesmo tempo em que Bernardo de Quintavalle, e como ele,
tinha uma situao importante em Assis. Cnego da catedral, formado
em direito, mestre em leis, como se dizia naquele tempo, pertencia
famlia dos senhores de Gualdo Cattaneo, povoado um pouco afastado,
nas montanhas que dominam Bevagna. Tinha por aquele que o tinha
levado pobreza perfeita uma admirao sem limites. Francisco, por
seu lado, inspirava-se muitas vezes em seus conselhos e o tratava com
um afeto carregado de respeito.

24
EP 41; 2Cel 3, 118; Ubertino Arbor. V, 2; Spec. Vitae 26; 50; 130 b; Conform. 136 a 2; 143 a 2.
25
EP 64 ; 2Cel 3, 83; LM 77. preciso ler essa narrativa nas Comformitates. Segundo a Antiqua Legenda
142 a 2; 31 a 1.
26
Temos a confirmao de que So Francisco se arrependeu mais tarde dessa deciso em vrios captulos
do EP 71, 81, 41 Haec verba loquebatur intra se ad quietandum cor suum. EP 81, Coll. t. I, p. 159, I. 25.
27
EP 61. Chron. dos XXIV Gen. (An. fr. III, p. 15). Sobre Pedro Cattani ver p. 98.

320
Como tinha sido seu companheiro durante a viagem ao Oriente, estava
a par no s de toda a vida da Ordem desde o dia de sua fundao e co-
nhecia to bem quanto o mestre todas as peripcias da ltima crise. Em
fim, por seus estudos em Bolonha e por seus ttulos, no podia ser olhado
como incapaz de compreender as aspiraes dos frades que desejavam
estabelecer uma espcie de concordata entre a pobreza e a cincia.
No sabemos se Hugolino assistiu ao captulo de 29 de setembro
de 1220, mas se no esteve pessoalmente presente certo que se fez
representar por algum prelado encarregado de vigiar os debates 28. A
bula dada oito dias antes foi comunicada aos frades, a quem Francisco
tambm anunciou que ia elaborar uma regra nova. Sobre esse ponto
houve conferncias em que parece que s os ministros tiveram voz
deliberativa. Estabeleceram-se em princpio os pontos essenciais da
nova Regra, deixando a Francisco o cuidado de lhe dar como quisesse
a forma conveniente. Nada revela melhor o estado de desmoralizao a
que se tinha chegado do que a deciso de tirar da cabea da Regra uma
das passagens essenciais, um dos trs fragmentos fundamentais da Regra
antiga, aquele que comea com as palavras: Nada leveis convosco 29.
Como ser que conseguiram obter de Francisco essa concesso que,
pouco tempo antes, lhe pareceria como se ele estivesse renegando, como
se estivesse recusando aceitar integralmente a mensagem que Jesus lhe

28
Tribul.: Man. Laur. 12 b; man. Magl. 71 b.
29
Lc 9. 1-6. Tribul, 2b Et fecerunt de regula prima ministri removere... EP 3,
certo que isso aconteceu no captulo de 29 de setembro de 1220 O Nihil tuleritis in via no est presente
na Regra de 1221, mas uma das trs passagens essenciais indicadas pela LTC 29; Actus I, e uma paralela
est na Regra de 1221 c. XIV.
Pode ser que a supresso tenha sido feita em diversas ocasies. Inicialmente, a supresso do captulo das
prohibitionibus evangelii (porque era muito longo?) e o fato de relegar o Nihil tuleritis para o corpo da Regra
e no na Introduo. (Regra de 1221 c. XIV). Desaparecimento completo na Regra de 1223.
O EP 3 mostra-nos como So Francisco achou que ia responder a todas as alteraes sofridas pela Regra
e obrigar os frades a observar o Evangelho: Putant fratres ministri Dominum et me decipere, imo ut sciant
omnes fratres teneri ad observandam perfectionem sancti evangelii, volo quod in principio et in fine regulae
(V. Regra de 1223 c. I e XII) sit scriptum quod fratres teneantur sanctum evangelium Domini nostri Jesu
Christi firmiter observare, e todo o final do captulo.
Sobre a supresso do Nihil tuleritis in via, ver Cuthbert, Life of S. Francis, p. 322; Domingos Mandic, De
Legislatione antiqua OFM p. 108 s.

321
dirigira? um segredo da histria, mas podemos pensar que ele teve
ento em sua vida uma dessas tempestades morais que roubam aos mais
fortes todas as suas faculdades, deixando em seus coraes amortecidos
s um indescritvel sofrimento.
Algo dessas dores foi passado na comovente narrao que os bigrafos
nos deixaram sobre a sua abdicao:

Desde agora, estou morto para vs. Mas aqui est Frei Pedro Cattani,
a quem obedeceremos eu e vs todos. E inclinando-se logo diante dele,
prometeu-lhe obedincia e reverncia. Os frades choraram e deram altos
gemidos de dor, vendo que tinham ficado rfos de semelhante pai. Mas
o bem-aventurado Francisco se levantou, juntou as mos, ergueu os olhos
para o cu e disse: Senhor, eu te recomendo a famlia que at agora tinhas
entregado a meus cuidados. Agora, por causa das enfermidades que conheces,
dulcssimo Senhor, no podendo mais cuidar dela, passo-a aos ministros. Que
eles sejam obrigados a te prestar contas, Senhor, no dia do juzo, se algum
de seus frades tiver perecido por negligncia, mau exemplo, ou mesmo por
excessiva severidade.30

As funes de Pedro Cattani deviam durar pouco tempo; ele morreu


no dia 10 de maro de 1221 31.

Sobre esse perodo de alguns meses h muitas informaes: nada mais


natural, porque Francisco ficou na Porcincula para dar conta da tarefa
que lhe haviam confiado e a viveu cercado de frades que deveriam mais
tarde lembrar-se dos fatos de que foram testemunhas. Alguns revelam
a luta de que sua alma foi teatro. Desejando mostrar-se submisso, ele
percebeu que estava sendo urgido pela necessidade de sacudir todas as
correntes e de voar como outrora para s viver e respirar Deus s. Aqui

30
2Cel 143 2-7; EP 39; Conform. 175 b 1; 52 b 2; LM 76; A.SS., p. 620.
Nas Conformidades, 175 b. 2, ed. 1510. An. fr. V, p. 137, I. 24, encontramos uma linha cuja origem no
indicada mas que parece boa: Officio generalatus abrenunciato et posito de consensu fratrum in manu fratris
Petri Cathanii ipsi humiliter beatus Franciscus obedientiam promisit et reverentiam.
31
O epitfio de seu tmulo, que ainda existe em N. Sra. dos Anjos, d essa data: Ver Portiuncula, von P.
Barnabas aus dem Elsass. Rixheim, 1884, p.111. Cf. A.SS., p. 630. Para mais detalhes ver Coll., t. I, p 70, n.2.

322
est uma recordao bem simples, mas que acho que deveria ser mais
conhecida 32.

Um dia, um novio que sabia ler, mas no sem dificuldade, obteve do


ministro geral a permisso de ter um brevirio. Entretanto, como tinha
aprendido que So Francisco no queria que os frades cobiassem nem
cincia nem livros, no queria ter seu brevirio sem o consentimento dele.
Ora, vindo So Francisco ao lugar onde estava o novio, ele lhe disse:
Pai, seria uma grande consolao para mim ter um saltrio, mas embora
o ministro geral me tenha dado a permisso, no gostaria de t-lo sem que
o soubesses. So Francisco respondeu: O imperador Carlos, Orlando,
Olivrio, e todos os paladinos e homens robustos que foram poderosos na
batalha perseguindo os infiis com muito suor e trabalho at a morte, tiveram
sobre eles uma vitria memorvel; tambm os santos mrtires morreram
pela f em Cristo no combate. Mas agora h muitos que, s de contar o que
eles fizeram j querem receber honra e louvor humano. Do mesmo jeito,
tambm entre ns h muitos que s contando e pregando as obras que os
santos realizaram j querem receber honra e louvor 33!
Como se dissesse: No temos que nos preocupar com livros e cincias,
mas com obras virtuosas, porque a cincia incha e a caridade edifica.
Alguns dias depois, So Francisco estava sentado junto ao fogo e o mesmo
novio falou outra vez sobre o saltrio. E o bem-aventurado Francisco lhe
disse: Depois que tiveres o saltrio, vais desejar e querer ter um brevirio.
Quando tiveres o brevirio, te assentars numa poltrona como um grande
prelado e dirs a teu irmo: Traze o meu brevirio. Dizendo isso com
grande fervor de esprito, o bem-aventurado Francisco pegou um punhado
de cinza, colocou-o sobre a cabea dando a volta, como que est lavando a
cabea e dizia: O meu brevirio! O meu brevirio! E repetiu isso muitas
vezes passando a mo pela cabea.
Vrios meses depois, quando So Francisco estava na Porcincula e
perto da cela, no caminho atrs da casa, o mesmo frade falou de novo com

32
EP 4; Arbor. V, 3; Conform. 170 a 1; 2Cel 3, 124. Cf. Ubertino Archiv III, p. 75 e 177.
Essa narrativa coloca-se certamente antes do captulo de 1221, que parece ter decidido a questo em um
sentido diferente de Francisco: Et laicis etiam, scientibus legere psalterium liceat eis illud habere. Regra
de 1221,3. A ltima cena aconteceu provavelmente na viglia do captulo, para o qual teria ido o novio.
33
Jordo de Jano 8 d-nos a chave dessa passagem, os mrtires a que Francisco se refere so os de Marro-
cos. Cf. Admoestao VI. Unde magna verecundia est nobis servis Dei, quod sancti fecerunt opera, et nos
recitando et praedicando ea volumus inde recipere honorem et gloriam.

323
ele sobre o saltrio. Ento o bem-aventurado Francisco disse: V fazer
sobre isso o que te disser o teu ministro. Ouvindo isso, o frade comeou
a voltar por onde viera. Mas o bem-aventurado Francisco ficou parado no
caminho e comeou a pensar no que dissera ao frade. E logo gritou por ele,
dizendo: Espera, meu irmo, espera!. Foi para junto dele e disse: Volta
comigo, irmo, e me mostra o lugar em que eu te disse para fazeres o que
o teu ministro te dissesse sobre o brevirio. Quando chegaram ao lugar,
o bem-aventurado Francisco se ajoelhou diante do frade e disse: Minha
culpa, irmo, minha culpa! Porque quem quer ser frade menor no deve ter
nada mais seno a roupa. (EP 4,1-19)
Essa longa narrativa preciosa, no s porque nos mostra at nas
coisas pequenas o conflito entre o Francisco dos primeiros anos, que s
seguia a Deus e sua conscincia, e o Francisco de 1220, que se tornara
um religioso submisso, em uma ordem aprovada pela Igreja romana, mas
tambm porque uma dessas raras pginas em que seu estilo fica marcado
por um realismo ingnuo. As aluses aos romances de cavalaria e essa
liberdade de atitudes que constituram uma parte de seu sucesso com as
massas foram eliminadas de sua legenda com incrvel rapidez. Seus filhos
espirituais talvez no tenham tido vergonha de seu pai quanto a isso, mas
eles se esforam de tal maneira a pr em relevo suas outras qualidades
que se esquecem um pouco do poeta, do trovador, do jogral do Senhor.
Por isso mesmo, fragmentos de mais de cem anos depois de Toms de
Celano e que relatam fatos como esse tm por isso mesmo uma garantia
de autenticidade.
muito difcil perceber exatamente o papel que Francisco ainda teve
na direo da Ordem. Pedro Cattani, e mais tarde Frei Elias, so s vezes
chamados de ministros gerais e s vezes de vigrios, e muitas vezes os
dois termos se sucedem, como na narrativa precedente. muito provvel
que essa confuso de palavras corresponda a uma confuso nos fatos.
Pode ser que at tenha sido proposital 34. Depois do captulo de setem-

34
Quamvis a Sancto et multis fratribus vocaretur minister, nullus tamen fuit ipso vivente electus etc. Chron.
XXIV Gen., An. fr., III, p. 31.

324
bro de 1220, os negcios da Ordem passaram para as mos daquele que
Francisco tinha nomeado ministro geral, enquanto os frades e tambm
o papado s lhe davam o ttulo de vigrio. Era urgente para a populari-
dade dos Frades Menores que Francisco conservasse uma aparncia de
autoridade, mas a realidade do governo j lhe tinha escapado 35.

O pensamento que ele levara consigo at 1209, e dado luz agora na


dor, comeava a voar, esquecendo seu bero, como esses filhos de nossas
entranhas que ns vemos afastar-se de repente de ns sem que possamos
nos opor, porque assim a vida, mas no sem que se produza em nosso
corao uma espcie de ruptura. Mater dolorosa! Ah! claro que eles
voltaram para se assentar com piedade no lar paterno, pode ser que at
precisem, em uma hora de desnimo moral, vir se aninhar como outrora
no regao materno, mas essas voltas fugidias, febrentas, s vo avivar
a ferida dos pobres pais, quando virem ir embora apressado aquele que
usa seu nome, mas no lhes pertence mais.

35
O apelo que Francisco havia feito aos seus frades para colaborar com a Regra tinha despertado todas as
fantasias. o que vemos em Jordo de Jano. Mutabant leges, disponebant provincias, diz o S. Commercium 17.

325
326
16

A REGRA DE 1221

327
XVI

Pater, manifestavi nomen tuum hominibus quos dedisti mihi; quia verba quae
dedisti mihi, dedi eis, et ipsi acceperunt et cognoverunt vere quia a te
exivi, et crediderunt quia tu me misisti. Ego pro eis rogo, non pro mundo
rogo, sed pro his quos dedisti mihi, quia tui sunt, et omnia mea tua sunt.
Pater sancte, serva eos in nomine tuo, quos dedisti mihi, ut sint unum si-
cut et nos... Sanctifica eos in veritate. Sermo tuus veritas est. Sicut tu me
misisti in mundum, et ego misi eos in mundum. Et pro eis ego sanctifico
meipsum, ut sint ipsi sanctificati in veritate. Non pro eis rogo tantum, sed
pro eis qui credituri sunt propter verbum eorum in me, ut sint consummati
in unum, et cognoscat mundus quia tu me misisti et dilexisti eos sicut et
me dilexisti 1.

Ut serviamus in novitate spiritus et non in vetustate litterae 2.

Et venit unus de septem angelis... et locutus est mecum, dicens: Veni et os-
tendam tibi sponsam, uxorem Agni. Et sustulit me in spiritu in montem
magnum et altum, et ostendit mihi civitatem sanctam Jerusalem, descen-
dentem de caelo a Deo, habentem claritatem Dei, et lumen ejus simile
lapidi pretioso tamquam lapidi jaspidis, sicut crystallum 3.

Quasi tristes, semper autem gaudentes; sicut egentes, multos autem locuple-
tantes; tanquam nihil habentes, et omnia possidentes 4.

Vos autem genus electum, regale sacerdotium, gens sancta, populus acquisi-
tionis, ut virtutes annuntietis ejus qui de tenebris vos vocavit in admirabi-
le lumen suum: qui aliquando non populus, nunc autem populus Dei 5.

Nolite timere, pusillus grex, quia complacuit Patri vestro


dare vobis regnum 6.

1
Regra de 1221, XXII, Cf. Jo 17.
2
Rm 7, 6.
3
Ap 21, 9-11.
4
2Cor 6, 10.
5
1Pd 2, 9-10.
6
Lc 12, 32.

328
XVI

Pai, eu manifestei teu nome aos homens que me deste; porque dei a eles as
palavras que me deste, e eles aceitaram e conheceram de verdade que eu
sa de ti, e creram que tu me enviaste. Eu rogo por eles, no rogo pelo
mundo mas por aqueles que me deste, porque so teus, e tudo teu. Pai
santo, guarda-os em teu nome, aos que me deste, para que sejam um
como ns... Santifica-os na verdade. Tua palavra verdade. Como tu me
enviaste ao mundo, tambm eu os enviei ao mundo. E por eles eu me san-
tifico, para que sejam santificados na verdade. No rogo s por eles, mas
por aqueles que vo acreditar em mim pela palavra deles, para que sejam
consumados na unidade, e o mundo saiba que tu me enviaste e os amaste
e me amaste 7.

Para que sirvamos com um esprito novo e no antiguidade da letra 8.

E veio um dos sete anjos... e falou comigo, dizendo: Vem, e eu te mostrarei a


noiva, a esposa do Cordeiro. E me carregou em esprito para uma monta-
nha grande e alta, e me mostrou a cidade santa de Jerusalm, descendo do
cu da parte de Deus. Tendo uma claridade de Deus, e sua luz era seme-
lhante a uma pedra preciosa como uma pedra de jaspe, como um cristal 9.

Parecemos tristes, mas estamos sempre alegres, parecemos necessitados, mas


sempre temos de sobra, parece que nada temos, mas possumos tudo 10.

Mas vs sois uma raa escolhida, um sacerdcio real, um povo santo, povo
da aquisio, para que anuncieis as virtudes daquele vos chamou das tre-
vas para sua luz admirvel: que j fostes um no-povo,mas agora sois o
povo de Deus 11.

No tenhais medo, pequenino rebanho, porque aprouve a teu Pai


dar-vos o reino 12.

7
Regra Franciscana de 1221, XXII; Cf. Jo 17.
8
Rm 7, 6.
9
Ap 21, 9-11.
10
2Cor 6, 10.
11
1Pd 2, 9-10.
12
Lc 12, 32.

329
A REGRA DE 1221 13
O inverno de 1220-1221 foi bem utilizado por Francisco para colocar
seu pensamento por escrito. At ento ele tinha sido muito homem de
ao para ter podido pensar em usar outra coisa que no fosse a palavra
viva, mas, da em diante, suas foras esgotadas obrigavam-no a satisfa-
zer de outra forma suas viagens de evangelizao, sua necessidade de
conquistar almas. Vimos que o captulo de 29 de setembro de 1220 por
um lado, e a bula Cum secundum por outro, tinham prefixado alguns
pontos. Quanto ao resto, deram-lhe liberdade completa, no para fazer
uma redao definitiva e imutvel, mas para propor suas idias 14.
Nunca houve algum menos capaz de fazer uma Regra do que Fran-
cisco. Na realidade, a de 1210, e a que foi solenemente aprovada pelo
papa no dia 20 de dezembro de 1223 nada tinham em comum a no ser

13
Texto no Firmamentum, ed. Paris 1512, I, 10 a; ed. Veneza 1513, I parte, f. 14 b s., 18 b., Spec. Vitae,
189; Spec. Morin. Tract. III,2 b. M. Mller (Anfnge) fez um estudo da Regra de 1221, que uma obra prima
de faro exegtico. Entretanto, se ele tivesse comparado meticulosamente os diversos textos, teria chegado
a resultados ainda mais interessantes, graas s variantes que teria podido constatar. Vou dar um exemplo:
Texto Firm.-Wadding adotado por MM.
Omnes fratres ubicunque sunt vel vadunt, caveant sibi a malo visu et frequentia mulierum et nullus cum
eis consilietur solus. Sacerdos honeste loquatur cum eis dando penitentiam vel aliud spirituale consilium.
Texto do Speculum Vitae 189 ss.
Omnes frates ubicunque sunt et vadunt, caveant se a malo visu et frequentia mulierum et nullus cum
eis concilietur aut per viam vadat solus aut ad mensam in una paropside comedat (II) Sacerdos honeste
loquatur cum eis dando... etc
Essa passagem basta para mostrar a superioridade do texto do Speculum que se impe tambm sob outros
pontos de vista, mas aqui no o lugar de entrar em detalhes. evidente que essa frase, em que vemos
os primeiros frades partilhando s vezes a refeio com suas amigas e comendo em seu prato s uma
interpolao posterior.
A importncia do trabalho de MIler consiste principalmente em ter ele provado que essa regra, tal como
se apresenta, foi escrita depois das bulas de 1219 e que ela faz uma aluso a ela. Isso j tinha sido observado
por Papini, Storia, p. 110. Cf., p. 208.
14
EP 2; Tribul. 12 b; Spec. Vitae, 54 b; Arbor V, 3.

330
o nome. Na primeira, tudo vivo, livre, espontneo; ela um ponto de
partida, uma inspirao. Resume-se em duas frases: o chamado de Jesus:
Vem e segue-me; deixou tudo e o seguiu. palavra de amor de Deus
o homem responde pela entrega alegre de si mesmo, e isso com toda
naturalidade, por uma espcie de instinto. Para esse grau de misticismo
qualquer regulamentao no s intil, mas quase uma profanao;
pelo menos o sintoma de uma dvida. Mesmo nos amores terrestres,
quando se ama de verdade, no se promete nem se pede nada.
A Regra de 1223, pelo contrrio, um contrato sinalagmtico. Do lado
divino, o convite tornou-se uma ordem; do lado humano, o entusiasmo
de amor transformou-se em um ato de submisso, pelo qual se merecer
a vida eterna.

No fundo disso tudo est a antinomia entre a lei e o amor. Sob o


regime da lei, ns somos mercenrios de Deus, obrigados a um traba-
lho penoso, mas remunerado pelo cntuplo, com um salrio que um
verdadeiro direito.

Sob o regime do amor, ns somos filhos de Deus e seus colaboradores;


ns nos damos a ele sem clculos, sem esperanas; ns no seguimos
Jesus porque isso um bem, mas porque nem podemos fazer de outro
jeito quando sentimos que ele nos amou e que ns tambm o amamos.
Uma chama interior arrasta-nos irresistivelmente para Ele: Et Spiritus
et Sponsa dicunt: Veni.

Era necessrio insistir um pouco sobre a anttese dessas duas regras: a


de 1210 a nica verdadeiramente franciscana. A de 1223 indiretamente
obra da Igreja, tentando assimilar o movimento novo que ela transforma
e ao mesmo tempo desvia completamente.

A de 1221 marca uma etapa intermediria. o encontro dos dois


princpios, ou melhor, dos dois espritos; eles se aproximam, vo lado a
lado, mas no se confundem; aqui e ali h uma mistura, nunca uma com-
binao, ainda que se pudesse pensar em separar os diversos elementos.
Esse prprio encontro o reflexo exato do que se passava na alma de
Francisco e na rpida evoluo da Ordem.

331
A chamada regra 1221 bem merece esse nome, porque o estado
em que ela foi deixada nesse tempo; mas, quando nos servimos dessa
expresso, no podemos nos esquecer que ela no passa de um conjunto
das leis franciscanas elaboradas na alegria e tambm do esforo e da
discusso de 1210 a 1221, completadas e desenvolvidas sem cessar, s
vezes tambm podadas, modificadas, refundidas.

Para preparar o texto que apresentaria ao captulo, Francisco pediu a


colaborao entre o captulo de 1220 e o de 1221 de Frei Cesrio de
Spira, que era, ao mesmo tempo, muito zeloso na observncia da Regra
e tinha um conhecimento aprofundado da Bblia.
Jordo de Jano, verdade, bem mais preciso 15. Diversos crticos
acharam que deviam basear-se nesse testemunho para deduzir que as
numerosas citaes bblicas que encontramos na regra de 1221 foram a
colocadas por Frei Cesrio.
Ora, basta reportar-se aos outros opsculos de So Francisco para ver
que as citaes bblicas tambm esto presentes em grande nmero. Alis,
mal podemos falar de citaes, a no ser nos casos em que, de propsito,
ele apela para a autoridade desta ou daquela passagem: em geral seu
pensamento bblico, toma por natureza ou instinto uma forma bblica.
Enquanto em muitos de seus contemporneos sentimos continuas lem-
branas escritursticas, com um que de exterior, de mecnico, de querido
e desejado, como os exerccios a que nos habituamos nas carteiras da
escola. Em So Francisco, pelo contrrio, no so palavras que evocam
palavras com as quais se vai atuar diante do ouvinte surpreso por tudo
isso, mas uma emoo que chama outra emoo.
Por isso, no podemos tomar ao p da letra o que Frei Jordo disse.
Cheio de admirao por aquele quer tinha sido seu chefe durante o perodo
herico das origens da Ordem na Alemanha, ele atribui a esse frade, que
talvez tenha sido mrtir de sua fidelidade ao ideal primitivo, um papel
mais brilhante do que o que teve de fato.

15
CrJJ 15: Et videns beatus Francscus fratrem Caesarium sacris litteris eruditum ipsi commisit, ut regulam,
quam ipse simplicibus verbis conceperat verbis evangelii adornaret. Quod et fecit.

332
Assim retificada e esclarecida por todo o contexto histrico, a informa-
o fornecida pelo cronista fica compreensvel e preciosa. Mas isso no
autoriza ningum como j se fez a acreditar que So Francisco teria
composto sozinho a Regra e, depois, tenha chamado seu sbio discpulo
para acrescentar passagens bblicas destinadas a servir ao mesmo tempo
de apresentao e de base. Fazer isso desconhecer o carter essencial
e evidente da inspirao em So Francisco.
O que chama a ateno logo no comeo, quando pousamos os olhos
nessa Regra de 1221, o comprimento extraordinrio: so dez pginas
de infolio, enquanto a de 1223 no teria mais do que trs. Se excluirmos
as passagens que provinham do papado e as que tinham sido bloquea-
das no captulo precedente pelos ministros reunidos em assemblia, d
para reduzi-la a uma coluna. E o que sobra no j no uma regra, mas
uma srie de apelos comovidos em que o corao do pai fala, no para
dar ordens, mas para convencer, para tocar, para despertar no fundo do
corao de seus filhos o instinto do amor.
Tudo isso catico ou mesmo contraditrio,16 sem nenhuma ordem,
entremeado de raios de alegria, soluos dolorosos, esperanas e arre-
pendimentos. H pontos em que a paixo das almas percorre todos os
tons, passa por todas as escalas, desde as mais doces at as mais viris,
desde as que so alegres e penetrantes como um claro at as que so
perturbadoras, abafadas como uma voz do outro mundo.
Na santa caridade, que Deus, rogo todos os frades, tanto aos ministros
como aos outros, que afastado todo impedimento e posposto todo cuidado
e solicitude, no melhor modo que puderem, faam servir, amar, honrar e
adorar o Senhor Deus de corao limpo e mente pura, que ele busca acima
de tudo, e sempre faamos a habitao e morada para aquele que o Senhor
Deus onipotente, Pai e Filho e Esprito Santo, que diz: Vigiai, pois, orando
todo o tempo, para serdes tidos como dignos de escapar de todos os males
que viro e estar diante do Filho do homem.
Mantenhamos, portanto, as palavras, a vida e a doutrina e o santo evan-
gelho daquele que se dignou rogar por ns ao seu Pai e manifestar-nos seu

16
Cf. cap. 17 e 21.

333
nome dizendo: Pai, eu manifestei teu nome queles que me deste, e as pa-
lavras que me deste, dei-as a eles. Eles te aceitaram e conheceram que de ti
sa e creram que tu me enviaste. Eu rogo por eles, no pelo mundo, mas por
aqueles que me deste, para que eles sejam um assim como ns. Falo estas
coisas no mundo, para que tenham a alegria em si mesmos. Eu lhes dei a tua
palavra; e o mundo os odiou, porque no so do mundo, como eu tambm eu
no sou do mundo. No rogo que os tires do mundo, mas que os guardes do
mal. Glorifica-os na verdade. Tua palavra verdade. Como tu me enviaste ao
mundo, tambm eu os enviei ao mundo. E por eles santifico a mim mesmo,
para que eles sejam santificados na verdade. No rogo por eles somente,
mas tambm por aqueles que vo crer em mim por causa da palavra deles
para que sejam consumados na unidade, para que o mundo conhea que tu
me enviaste e os amaste, como me amaste, Eu os farei conhecer teu nome,
para que o amor com que me amaste esteja neles e eu neles.
Orao
Onipotente, santssimo, altssimo e sumo Deus, Pai santo e justo, Senhor
rei do cu e da terra, por ti mesmo te damos graas, porque por tua santa
vontade e por teu nico Filho com o Esprito Santo criaste todas as coisas
espirituais e corporais e ns, feitos tua imagem e semelhana, colocaste
no paraso. E ns camos por nossa culpa. E te damos graas porque, assim
como por teu Filho nos criaste, assim por teu santo amor, com que nos
amaste, fizeste que ele, verdadeiro Deus e verdadeiro homem, nascesse da
gloriosa sempre virgem beatssima Santa Maria, e quiseste que ns, cati-
vos, fssemos redimidos por sua cruz, sangue e morte. E te damos graas
porque o teu prprio Filho vir na glria de sua majestade para colocar no
fogo eterno os malditos que no fizeram penitncia e no te conheceram,
e dizer a todos que te conheceram e adoraram e te serviram na penitncia:
Vinde, benditos de meu Pai, recebei o reino, que est preparado para vs
desde a origem do mundo.
E porque todos ns, miserveis e pecadores, no somos dignos de te
nomear, imploramos suplicantes que nosso Senhor Jesus Cristo, teu Filho
dileto, em quem bem te comprazeste, junto com o Esprito Santo Parclito
te d graas, como agrada a ti e a ele, por todos, ele que sempre te basta
para tudo, por quem tantas coisas nos fizeste. Aleluia.
E a gloriosa me beatssima Maria sempre Virgem, o bem-aventurado
Miguel, Gabriel e Rafael e todos os coros dos bem-aventurados serafins,

334
querubins, tronos, dominaes, principados, potestades, virtudes, anjos,
arcanjos, o bem-aventurado Joo Batista, Joo Evangelista, Pedro, Paulo e
os bem-aventurados patriarcas, profetas, Inocentes, apstolos, evangelistas,
discpulos, mrtires, confessores, virgens, bem-aventurados Elias e Enoc,
e todos os santos, que foram e sero e so, por teu amor humildemente
pedimos, que, como te agrada, por essas coisas te dem graas, sumo Deus
verdadeiro, eterno e vivo, com teu Filho carssimo nosso Senhor Jesus
Cristo e o Esprito Santo Parclito nos sculos dos sculos. Amm. Aleluia.
E a todos os que querem servir ao Senhor Deus dentro da santa Igreja
catlica e apostlica, e a todas as ordens seguintes: sacerdotes, diconos,
subdiconos, aclitos, exorcistas, leitores, ostirios e todos os clrigos; e a
todos os religiosos e religiosas; a todos os conversos e postulantes, pobres
e necessitados, reis e prncipes, trabalhadores e agricultores, servos e se-
nhores; todas as virgens, continentes e casadas; leigos, homens e mulheres,
todas as crianas, adolescentes, jovens e velhos, sos e enfermos, todos
os pequenos e grandes, e todos os povos, gentes, tribos e lnguas, todas
as naes e todos os homens de qualquer lugar da terra, que so e sero,
pedimos humildemente e suplicamos, ns, todos os frades menores, servos
inteis, que todos perseveremos na verdadeira f e penitncia, porque de
outra maneira ningum pode salvar-se.
Amemos todos com todo corao, com toda alma, com toda mente, com
toda fora e fortaleza, com todo entendimento, com todas as foras, todo
esforo, todo afeto, todas as entranhas, todos os desejos e vontades o Senhor
Deus, que nos deu e nos d a ns todos todo o corpo, toda a alma e toda a
vida, que nos criou, remiu e s por sua misericrdia vai salvar, que a ns
miserveis e mseros, ptridos e ftidos, ingratos e maus, fez e faz todo bem.
Portanto, nada mais desejemos, nada mais queiramos, nada mais nos
agrade e deleite a no ser o Criador e Redentor e Salvador nosso, nico
verdadeiro Deus, que o pleno bem, todo bem, o bem inteiro, verdadeiro e
sumo bem, que s ele bom, manso, suave e doce, que s ele santo, justo,
verdadeiro, santo e reto, que s ele benigno, inocente, puro; de quem
e por quem e em quem todo perdo, toda graa, toda glria de todos os
penitentes e justos, de todos os bem-aventurados que gozam juntos no cu.
Portanto, nada impea, nada se interponha; em toda parte ns todos em
todo lugar, em toda hora e em todo tempo, todos os dias e continuamente
creiamos veraz e humildemente e tenhamos no corao e amemos, honremos,

335
adoremos, sirvamos, louvemos e bendigamos, glorifiquemos, exaltemos
acima de tudo, reconheamos sua grandeza e demos graas ao altssimo e
sumo Deus eterno, trindade e unidade, Pai e Filho e Esprito Santo, criador
de tudo e salvador de todos que nele crem e esperam e o amam, que sem
incio e sem fim imutvel, invisvel, inenarrvel, inefvel, incompreensvel,
inescrutvel, bendito, louvvel, glorioso, mais do que exaltado, sublime,
excelso, suave, amvel, deleitvel e todo mais desejvel do que todas as
coisas pelos sculos. Amm.

No verdade que essas repeties ingnuas tm um sabor misterioso


que se insinua deliciosamente at o fundo do corao? No h nelas uma
espcie de sacramento de que as palavras no passam de um veculo
grosseiro? Francisco refugia-se em Deus como uma criana se joga no
colo da me e, na incoerncia de sua fraqueza e de sua alegria, balbucia
todas as palavras que sabe e pelas quais s quer repetir o eterno eu sou
teu do amor e da f.

H tambm alguma coisa que recorda, no s pelas citaes, mas


principalmente pela prpria inspirao do pensamento, o que chamamos
de orao sacerdotal de Cristo. O apstolo da pobreza aparece a como
que elevado entre o cu e a terra pela violncia do seu amor, consagrado
sacrificador de um culto novo pela uno interior e irresistvel do Esprito.
Ele no imola como o sacerdote do passado; ele se imola e leva em seu
corao todas as dores da humanidade.

Tanto quanto so belas do ponto de vista mstico, essas palavras cor-


respondem pouco ao que se espera de uma regra: no tm nem a preciso
nem as formas breves e imperativas. As transformaes que elas deveriam
sofrer para tornar-se o cdigo de 1223 eram fatais, dada a interveno
definitiva da Igreja de Roma para dirigir o movimento franciscano.

provvel que esse projeto de regra, como ns o possumos hoje,


seja aquele que foi distribudo no captulo de Pentecostes de 1221. Se
admitirmos a idia de considerar esse documento como um projeto, somos
rapidamente levados a pensar que ele j tinha passado por uma primeira
reviso rpida, uma espcie de poda, em que a autoridade eclesistica

336
teria feito desaparecer as disposies em contradio flagrante com os
projetos da Ordem.

Se nos perguntarmos quem pode ter feito esses cortes, logo pensamos
em Hugolino. Ele criticou suas propores exageradas, a falta de uni-
dade e de preciso. Mais tarde, contaram que Francisco tinha visto em
sonho uma multido de frades famintos vindo a ele, sem que pudesse
saci-los, porque no encontrava ao redor dele mais do que numerosas
migalhas de po que se perdiam entre seus dedos. Ento uma voz vinda
do cu disse: Francisco, faz com todas essas migalhas uma hstia com
que nutrirs esses famintos 17.
No absurdo pensar que isso um eco imaginrio das conferncias
que houve ento entre Francisco e o cardeal. Por essa comparao, o
cardeal pode ter mostrado as falhas essenciais de seu projeto. Tudo isso
aconteceu sem dvida durante a permanncia de Francisco em Roma,
no comeo de 1221.
Antes de ver isso, preciso dar uma olhada nas analogias de inspirao
e mesmo de estilo que unem a Regra de 1221 a uma outra das obras de
So Francisco, a que conhecemos como Admoestaes 18. uma srie de
conselhos espirituais sobre a vida religiosa, intimamente unidos, quanto
ao fundo e forma, obra que estamos a examinar. O tom de voz to
perfeitamente o mesmo que algumas delas poderiam ser trechos do pro-
jeto original, provavelmente cortadas por serem longas, um pouco fora
do lugar em uma regra.
Aceitemos ou no essa hiptese, encontramos nas Admoestaes
todas as preocupaes que assaltavam a alma de Francisco nessa hora
incerta e perturbada. Alguns desses conselhos parecem fragmentos de
um dirio ntimo. Parece que a o vemos procurar, com a ingenuidade
da humildade perfeita, razes para se submeter, para renunciar a suas

17
2Cel 3, 136.
18
Ver Crtica das Fontes c. I, texto no Firmamentum, ed. Paris, 1512, 19 ss.; ed. Veneza, 1513, f. 23 b. a
25 a 1.; Speculum Morin, tract. III, 214 a ss. ; Cf. Conform. 137 ss. E nas diferentes edies dos opsculos
de So Francisco.

337
idias, sem que tenha conseguido. Ele repete para si mesmo as exortaes
que lhe faziam; d para perceber o esforo para compreender e admirar
o monge ideal que Hugolino e a Igreja lhe propunham como exemplo.
Diz o Senhor no Evangelho: Quem no renunciar a tudo que possui, no pode
ser meu discpulo. E quem quiser salvar sua alma vai perd-la. Deixa tudo que
possui e perde seu egosmo o homem que se entrega inteiro obedincia nas mos
de seu prelado... E quando o sdito v coisas melhores e mais teis para sua alma
do que as mandadas pelo superior, sacrifique voluntariamente a Deus sua vontade.

Poderamos pensar, lendo isso, que Francisco ia se alinhar com aque-


les para quem a submisso autoridade eclesistica a prpria essncia
da religio. Mas no. Mesmo aqui seu verdadeiro sentimento no se
extingue: ele mistura suas palavras entre parnteses e incidentes bem
tmidos, mas que revelam o fundo de seu pensamento e sempre terminam
designando a conscincia individual como juiz em ltima instncia 19.
Tudo isso mostra muito bem como preciso imaginar os instantes em
que sua alma ferida suspira diante da obedincia passiva, cuja frmula
perinde ac cadaver, parece ultrapassar bastante a Companhia de Jesus.
Foram os instantes de dificuldade em que a inspirao se calava.
Uma ocasio, sentado com seus companheiros, So Francisco suspirou: difcil
encontrar no mundo inteiro um religioso que obedea com perfeio a seu prelado.
Tocados, os companheiros disseram: Diz-nos, pai, qual a maior e mais perfeita
obedincia? E ele, fazendo uma comparao com um corpo morto, descreveu o
verdadeiro obediente: Tomai um cadver exnime. Ponde-o onde quiserdes. Vereis
que no se incomodar de ser movimentado, no se queixar do lugar, nem reclamar
por o terem largado. Se for colocado numa ctedra, vai olhar para baixo, no para
cima. Se for vestido de prpura, vai ficar duas vezes mais plido 20.

Esse suspiro pela obedincia cadavrica testemunha as devastaes


que desolavam sua alma. No domnio moral, como o chamado para o
nada nas grandes dores fsicas. Mas uma indicao absolutamente iso-
lada. Em toda parte, a obedincia franciscana a obedincia viva, ativa,

19
Cum facit (subditus) voluntatem (praelati) dummodo benefacit vera obedentia est. Admon. III, Conform.
139 a 2. - Si vero praelatus subdito aliquid contra animam praecipiat licet ei non obediat tamen ipsum
non dimittat. Ibid. - Nullus tenetur ad obedientiam in eo ubi committitur delictum vel peccatum. Epist., II.
20
2Cel 152; EP 48; Conform. 139 a 2; LM 77.

338
alegre 21. Ele ia at o fim desse caminho e considerava santas as revoltas
ditadas pela conscincia. Um dia, nos ltimos anos de sua vida, um frade
da Alemanha veio visit-lo e, depois de se ter entretido longamente com
ele sobre a pura obedincia:
Eu te peo uma graa, disse-lhe. Se os frades vierem a no mais viver segun-
do a Regra, tu me permitas separar-me deles, sozinho ou com alguns outros, para
observ-la em sua plenitude. Ouvindo isso, Francisco teve uma grande alegria:
Saibas, disse, que o Cristo autoriza to bem quanto eu o que ests pedindo. E,
impondo-lhe as mos, disse: Tu s sacerdote para sempre segundo a ordem de
Melquisedec 22!

Temos uma lembrana ainda mais tocante de sua solicitude para salvar
a independncia espiritual de seus discpulos: um bilhete a Frei Leo
23
. Esse frade, alarmado com o novo esprito que reinava na Ordem,
abrira-se a seu mestre, e deve ter pedido mais ou menos a mesma auto-
rizao que o frade da Alemanha. Depois de uma entrevista em que lhe
respondera de viva voz, Francisco, para que no ficasse nenhuma dvida
ou hesitao no esprito daquele frade a quem chamava de ovelhinha de
Deus, pecorella di Dio, escreveu-lhe:
Frei Leo, teu irmo Francisco te deseja paz e sade. Eu te respondo sim, meu
filho, como um me a seu menino. Essa palavra resume tudo que ns conversamos
no caminho, assim como todos os meus conselhos. Se precisares vir a mim para
me pedir conselho, acho que deves vir. Seja como for que pensas que pode agradar
ao Senhor Deus, seguir seus passos e viver na pobreza, que o faas 24, Deus te

21
Per caritatem spiritus voluntarii serviant et obediant invicem. Et haec est vera et sancta obedientia.
Reg. 1221, V.
22
Leg. Vetus, 3, Opusc., t. I, p. 97. Tribul.: Man. Laur., 14 b.; Spec. Vitae 125 a; Conform. 107 b 1; 184 b 1.
23
Wadding apresenta-a (epist. XVI) de acordo com o autgrafo conservado no tesouro dos Conventuais
em Espoleto. A autenticidade desse documento evidente.
O original tinha desaparecido na supresso dos conventos na Itlia. Foi reencontrado com um padre de
Espoleto que o presenteou ao papa Leo XIII. Este, depois de negociaes de notveis da cidade, entregou-
o cidade de Espoleto. Est conservado na catedral de acordo com o desejo expresso pelo pontfice, (Cf.
Oriente serafico, 5 jan.1903). Reprodues fotogrficas, Miscell. fr., t. VI, p. 38; San Francesco dAssisi,
Periodico, t. III (1923), gli autografi di San Francesco pelo Pe. Achille Fusco OFMConv p 226-232; PP.
Kirsch e Roman Plerinages... in 8, Lille, Paris, 1910, p. 183.
24
Esse plural que surpreendeu Wadding mostra bem que Frei Leo tinha falado em nome de um grupo.
Cf. Vita fr. Heliae Opusc., t. II, p. 171, I. 8., fr. Leo ivit cum sociis suis et fregit concham illam totaliter. V.
tambm EP 80 ; sed unum vobis depingam in quo reluceat qualis deberet esse hujus familiae dux et pastor.

339
abenoar e eu te autorizo. E se for necessrio, para tua alma e para tua consolao,
que venhas me ver, ou se o desejares, vem, meu Leo, vem. Para ti, em Cristo 25.

certo que estamos longe do cadver de que falvamos h pouco.


suprfluo nos determos nas outras Admoestaes. Na maior parte,
so reflexes inspiradas pelas circunstncias 26. Os conselhos sobre a
humildade voltam com uma frequncia que explica ao mesmo tempo as
preocupaes pessoais do autor e a necessidade de recordar aos frades
a essncia de sua profisso.
A estadia de So Francisco em Roma, quando a esteve nos primeiros
meses de 1221, para apresentar seu projeto a Hugolino, foi marcada por
mais um esforo do cardeal para aproxim-lo de Domingos 27.
Nessa poca, o cardeal estava no apogeu do sucesso. Conseguira
tudo. Sua voz no era toda poderosa no s nos negcios da Igreja, mas
tambm nos do Imprio. Frederico II, que parecia querer um caminho
prprio, sonhava com a reforma religiosa e desejava colocar seu poder
a servio da verdade, tratava-o como amigo e falava dele com uma ad-
mirao sem limites 28.

25
Parece provvel que essa carta se refira s circunstncias indicadas em EP 106. Cum quadam die am-
bularet ille frater cum b. Fr. recorda omnia verba quae diximus in via.
26
As Admoestaes so, provavelmente o resultado das reflexes de Francisco no inverno de 1221. Nelas
seguimos o trabalho de seu pensamento e de suas preocupaes.
A maneira como a Sexta Admoestao procede da histria do saltrio do novio EP 4 (v.p. 337 n. 1)
uma chave. Tambm no caso da Quinta Admoestao comparada com o De perfecta laetitia (v. p. 178 n. 2).
So morais que procedem dos fatos.
Tambm a Admoestao XIX no mais do que uma mxima geral que Francisco obteve refletindo sobre
seu prprio caso. EP 64 apresenta fatos, e fatos datados.
27
Essa data, para novos relacionamentos entre eles, parece que no pode ser contestada ainda que jamais
tenha sido proposta; trata-se, de fato, de encontrar uma ocasio em que os trs pudessem ter se encontrado
em Roma (2Cel 3, 86; EP 43), entre 22 de dezembro de 1216 (aprovao dos dominicanos), e 6 de agosto
de 1221 (morte de Domingos). No sobram mais que dois perodos possveis: os primeiros meses de 1218
(Potthast 5739 e 5747) e o inverno de 1220-1221. Em qualquer outro momento, um dos trs estava longe de
Roma. Sabemos, pelo contrrio, que Hugolino estava em Roma no inverno de 1220-1221 (Huillard-Brholles,
Hist. dipl., II, p. 48, 123, 142. Cf. Potthast 6589). Para Domingos, ver A.SS. Aug., t. I, p. 503. A data mais
tardia se impe, porque Hugolino no podia oferecer prelaturas aos frades menores antes de sua aprovao
explcita (11 de junho de 1219); e essa oferta no tinha sentido no caso dos dominicanos a no ser depois
do sucesso definitivo de sua Ordem.
28
Ver as cartas imperiais de 10 de fevereiro de 1221: Huillard-Brholles, t. n, p. 122-127.

340
Em suas reflexes sobre os remdios que dar aos males da cristanda-
de, o cardeal chegou a pensar que um dos mais eficazes seria substituir
bispos de dentro das duas ordens novas ao episcopado feudal, recrutado
quase sempre nas famlias em que as dignidades eclesisticas eram, por
assim dizer, hereditrias. Semelhantes bispos no tinham habitualmente
as duas qualidades essenciais de um bom prelado aos olhos de Hugolino:
o zelo religioso e o zelo eclesistico.
Por isso, ele acreditava que os Frades Pregadores e os Frades Meno-
res teriam no s as virtudes que faltavam aos outros, mas seriam, nas
mos do papado, uma hierarquia fortemente centralizada, verdadeira-
mente catlica, inteiramente devotada aos interesses gerais da Igreja.
As dificuldades que teriam do lado dos captulos que elegia os bispos e
do alto clero secular seriam contrabalanadas pelo entusiasmo do povo
por pastores cuja pobreza lembraria a Igreja primitiva.
No final das conversaes que manteve com Francisco e Domingos,
ele lhes comunicou algumas dessas idias e pediu a opinio deles sobre
a elevao dos frades a prelados.
Houve uma piedosa disputa entre os dois santos para saber quem res-
ponderia primeiro. Em fim, Domingos disse simplesmente que preferia
ver seus companheiros manter-se como eram. Quando chegou sua vez,
Francisco mostrou que o prprio nome de seu instituto tornava a proposta
impossvel: Meus frades so chamados menores, para que no sejam
maiores. Se quereis que eles dem frutos na Igreja de Deus, deixai-os;
mantendo-os no estado em que Deus os chamou.
Eu vos peo meu pai: no faais que sua pobreza venha a ser um mo-
tivo de orgulho, e no os eleveis aos cargos de prelados, que os levariam
a ser insolentes uns com os outros. 29
A poltica eclesistica seguida pelos papas haveria de tornar totalmente
inteis essas respostas dos dois fundadores 30.
29
EP 43; 2Cel 3, 86; LM 78.
30
Ver K. Eubel: Die Bischfe, Cardinle und Ppste, aus dem Minotenorden bis 1305. In-8, 1889.
Desde 1228, dois anos depois da morte de Francisco, Hugolino, ento papa Gregrio IX, deu a S episcopal
de Assis a um minorita, Frei Simo Vereducci. Ver Disamina di S. Rufino, p. 256 s. (o exemplar de Assis, fo 7
tem correes de Papini). Wadding, II, p. 54 e 232. Sbaralea, t.I. p.130, 146, 330, 442. Cf. Serie quadruplice
dei vescovi della Citt serafica, Assisi in 8, 1872, 20 p.

341
Francisco e Domingos separaram-se para nunca mais se ver. O Mestre
dos Frades Pregadores foi logo para Bolonha, onde sucumbiu no dia 8
de agosto seguinte, e Francisco voltou para a Porcincula, onde Pedro de
Cattani acabava de morrer (10 de maro de 1221). Substituiu-o frente da
Ordem por Frei Elias. Hugolino no devia estar alheio a essa escolha 31.
Impedido por suas funes de legado, ele no pde ir ao captulo
de Pentecostes (30 de maio de 1221) 32. Foi substitudo pelo cardeal
Reinaldo 33, que foi acompanhado por vrios bispos e por monges de
diversas ordens 34. L estavam cerca de trs mil frades, mas a diligncia
das pessoas dos arredores para levar provises foi to grande, que depois
de sete dias de reunio foi preciso ficar mais dois para consumir tudo
que tinha sido doado. As sesses foram presididas por Frei Elias, aos ps
do qual estava sentado Francisco, que puxava sua tnica quando tinha
alguma coisa para dizer aos frades.
Frei Jordo de Jano, que estava entre os assistentes, guardou-nos a
lembrana de todos esses detalhes e da partida de um grupo de frades
para a Alemanha. Eles foram colocados sob a direo de Cesrio de
Spira, cuja misso superou todas as expectativas. Dezoito meses depois,
quando voltou para a Itlia, devorado pelo desejo de rever So Francisco,
as cidades de Wrzburg, Mogncia, Worms, Spira, Estrasburgo, Colnia,
Salzburg, Ratisbona tinham passado a ser centros franciscanos, cujas
idias novas se irradiavam por toda a Alemanha meridional.
a esse mesmo ano que se liga ordinariamente a fundao da Ordem
Terceira, chamada habitualmente de Fraternidade da Penitncia nos

31
Cf. Brem., Gregor IX..., p. 93, n. 2: Hugolino certamente sugeriu a Francisco a escolha de Elias como
vigrio geral no lugar de Pedro Cattani, quando ele morreu. M. Luigi Salvatorelli, Vita di San Francesco
dAssisi, Bari, 1926, diz muito acertadamente: Se Pietro era stato assai pi vicario che ministro, Elia fu
naturalmente pi ministro che vicario, sempre, con tutto il rispetto e laffetto per Francesco.
32
Ele estava no norte da Itlia. Ver Registri: Doc. 17-28.
33
Reinaldo, cardeal-dicono do ttulo de S.M. in Cosmedin, bispo de Viterbo (cf. Inocncio III, , Opera,
ed. Migne, I, col. CCXIII), 1Cel 125. Ele tinha sido nomeado no dia 3 de agosto de 1220 reitor do ducado
de Espoleto. Potthast 6319.
34
CrJJ 16. Ento a presena de Domingos em um captulo precedente tinha sido bem natural.

342
mais antigos documentos; mas j vimos acima 35 que essa data muito
recente, ou antes, que no se deve fixar uma data, porque o que foi mais
tarde chamado arbitrariamente de Ordem Terceira evidentemente con-
temporneo da primeira 36.
Francisco e seus companheiros quiseram ser os apstolos do seu
tempo, mas, como os apstolos de Jesus, eles no sonhavam que todas
as pessoas entrassem em sua associao, forosamente um pouco res-
trita, e que, de acordo com a palavra evanglica, devia ser um fermento
para o resto da humanidade. Conseqentemente, seu caminho era a vida
apostlica seguida ao p da letra, mas o ideal que eles pregavam era a
vida evanglica, que Jesus tinha anunciado 37.
Como Jesus, So Francisco no condenou a famlia ou a proprieda-
de; ele simplesmente viu nelas laos de que o apstolo, mas o apstolo
sozinho tinha que ser liberado.
Se logo depois espritos doentios acreditaram que estariam interpre-
tando seu pensamento ao fazer da unio dos sexos um mal, e de tudo que
constitui a atividade fsica do homem uma queda; se desequilibrados se
valeram de seu nome para escapar a todos os deveres; se casais se impu-
seram o ridculo martrio da virgindade do leito conjugal, no devemos
responsabiliz-lo por isso.
Esses traos de ascetismo contra a natureza provem da influncia
das idias dualistas dos ctaros e no do poeta inspirado que cantou a
natureza e sua fecundidade, que fazia ninhos para as pombas onde as

35
P. 198.
36
Essa maneira de ver concorda totalmente com o testemunho de 1Cel 36 e 37, que mostra a Orem Terceira
nascendo naturalmente do entusiasmo causado pelas pregaes de Francisco depois de sua volta de Roma
(1210); (Cf. Auctor vit. sec.: A.SS., p. 593 b). Nada o contradiz nos outros documentos, pelo contrrio. Ver
LTC 60. Cf. AP A. 55., p. 600; LM 25; 46 Cf. A.SS., p. 631-634. A primeira bula que diz respeito aos Irmos
da Penitncia (sem os nomear) de 16 de dezembro de 1221, Significatum est. Se ela os visa realmente,
como pensa Sbaralea, e inclusive todos os que trataram disso at Mller, - mas o que parece que poderia
ser contestado que desde 1221, eles no teriam apelado para os papas contra as autoridades de Faenza e
das cidades vizinhas. Isso supe evidentemente uma associao que no nasceu na vspera. Essa idia j
se encontra em Bonghi, San Francesco, Citt di Castello, 1884, p.40. - Sbaralea, Bull. fr., I, p. 8; Horoy, t.
IV, col. 49 Potthast 6736.
37
Essa idia j foi bem desenvolvida em K. Mller, Anfnge, p. 38 ss.

343
convidavam a se multiplicarem sob o olhar de Deus, e que impunha a
seus frades o trabalho manual como um dever sagrado.
As bases da corporao dos Irmos e Irms da Penitncia foram
muito simples: Francisco no estava trazendo uma nova doutrina para o
mundo. A novidade de sua mensagem estava toda no seu amor, no apelo
direto para a vida evanglica, para um ideal de vigor moral, de trabalho
e de amor.
claro que ele encontrou bem depressa pessoas que no compreen-
deram essa verdadeira e simples beleza; caram nas prticas e devoes,
imitaram do lado de fora a vida dos claustros em que, por um motivo ou
por outro, no podiam retirar-se. Mas seria injusto interpretar os Irmos
da Penitncia a partir dessas pessoas.
Teriam os Irmos recebido uma Regra de So Francisco? No sabemos
dizer. A que lhes foi dada 38 em 1289 pelo papa Nicolau IV simplesmente
uma refundio e um amlgama de todas as regras das confrarias leigas
que existiam no fim do sculo XIII. A atribuio desse documento a So
Francisco no passa de um ajustamento a um edifcio novo de algumas
pedras veneradas de uma construo antiga. No passa de uma questo
de fachada e de adorno.
Apesar dessa ausncia de uma regra que tenha emanado do prprio
Francisco, podemos perceber claramente o que devia ser em seu pensa-

38
Bula Supra montem de 17 de agosto de 1289. Potthast 23044. Sobre as origens dessa bula, M. Mller
fez um estudo luminoso, que pode ser considerado, nos pontos essenciais, como definitivo (Anfnge, p. 117-
171). Por essa bula, Nicolau IV, - ministro geral dos frades menores antes de ser papa, - procurou jogar nas
mos de sua Ordem a direo de todas as associaes leigas piedosas (Terceira Ordem de So Domingos,
dos Gaudentes, dos Humilhados, etc.). Tambm quis, assim, dar um impulso maior a essas confrarias que
dependiam diretamente da corte de Roma, e aumentar seu poder unificando-as.
Diferentes estados anteriores da regulamentao dos tercirios foram reencontrados e reconstitudos.
Ver principalmente P. Mandonnet OP, Les Origines de lOrdo de Poenitentia. Actes du quatrime Congrs
scientifique des Catholiques tenu Fribourg (Suisse), 1897, in-8 tiragem parte de 33 p. - Ib.,Les Rgles
et le gouvernement de lOrdo de Poenitentia, Opusc., t. I, fase. IV (1902). p. 144-250. - P. Sabatier, Antiqua
Regula Ordinis Poenitentiae op. t. I, fase. 1 (1901), p. 1-30. - P. Cuthbert OFMCap, Life of S. Francis,
Londres (1912) apndice III, p. 412-416. - P. Lemmens OFM, Regula Antiqua Ordinis Poenitentiae iuxta
novum codicem AFH VI (1913), p. 242-250. - P. Anastasius van der Wyngaert OFM, De tertio Ordine juxta
Marianum Florentinum, AFH, XIII (1920), p. 3-77 (Cf. An. Boll, t. XXIX (1921), p. 404. - P. Benvenuto
Bughetti OFM Prima Regula Tertii Ordinis juxta novum codicem. AFH, t. XIV (1921), p. 109121. - P.
Livarius Oliger. Expositio regulae antiquae III Ordinis, AFH, t. XIV (1921),p.122-129. Walter Seton, A
French Manuseript Version of the rule of the third Order, Revue dHistoire fr., t. III (1926), p. 258-273, etc.

344
mento essa associao. O Evangelho, com seus conselhos e exemplos,
devia ser a verdadeira Regra. A grande novidade visada pela Ordem
Terceira era uma unio de paz e trazia para uma Europa espantada uma
nova trgua de Deus. Que foi um ideal efmero e quimrico a recusa
de portar armas 39 provam-no os documentos, mas j foi uma beleza ter
tido o poder de suscit-lo por alguns anos.
A segunda obrigao essencial dos Irmos da Penitncia parece ter
sido a de reduzir quanto possvel as prprias necessidades, mesmo con-
servando a fortuna, de distribuir aos pobres, em intervalos regulares,
a parte do lucro que ficava disponvel, depois de se contentar com o
estritamente necessrio 40.
Cumprir com alegria os deveres de seu estado; dar uma inspirao s
menores aes; encontrar nas coisas infinitamente pequenas da existn-
cia, aparentemente as mais banais, partculas da obra divina; manter-se
livre de qualquer preocupao aviltante; usar as coisas como se no as
possussem, como os servidores da parbola que logo vo ter que prestar
contas dos talentos que lhes foram confiados; fechar o corao ao dio e
escancar-lo para os pobres, os doentes, para todos os abandonados, esses
eram os outros deveres essenciais dos Irmos e das Irms da Penitncia.
Para lan-los nesse caminho real de liberdade, de amor, de respon-
sabilidade, Francisco apelava s vezes para os terrores do inferno e para
as alegrias do paraso, mas o amor interessado era to pouco de sua
natureza que essas consideraes e outras do mesmo tipo ocupam um
lugar bem secundrio nas pginas que dele nos restaram, assim como
em seus bigrafos.
Para ele, a vida evanglica natural para a alma. Quem a conhecer
vai preferi-la; ela no tem nenhuma necessidade de ser provada, como
no o tm o ar e a luz. Basta levar para ela os prisioneiros para que eles

39
Ver Bula Significatum est de 16 de dezembro de 1221. Cf. Supra montem, cap. VII.
40
Cf. a bula Detestanda de 30 de maro de 1228 (Potthast, 8159). A regra da Ordem Terceira dos Humi-
lhados, que data 1201, contm uma clusula semelhante. Tiraboschi, t. II, p. 132.

345
percam todo desejo de voltar para as cadeias da avareza, do dio ou da
futilidade.
Francisco e seus verdadeiros discpulos fizeram a penosa ascenso
para as mais elevadas alturas nica mas irresistivelmente levados pela
voz interior. O nico socorro externo que aceitaram foi a lembrana de
Jesus chegando primeiro s alturas e revivendo misteriosamente aos seus
olhos pelo sacramento da Eucaristia.
A carta a todos os cristos em que essas idias nos ultrapassam uma
viva recordao das alocues de So Francisco aos Terceiros 41.
Para termos uma idia desses irmos de forma bem concreta podemos
recorrer legenda do Beato Lucchesio, que a tradio apresenta como o
primeiro Irmo da Penitncia 42.
Originrio de uma pequena cidade da Toscana, ele a deixou para
escapar a dios polticos e se estabeleceu em Poggibonsi, no longe de
Sena, onde continuou a comerciar gros. J rico, no teve dificuldade para
armazenar bastante trigo para revend-lo em tempos difceis vindo a ter
grandes lucros. Mas bem depressa, tocado pelas pregaes de Francisco,
caiu em si mesmo. Distribuiu todo o suprfluo aos pobres, mantendo s
a casa, um pequeno jardim e um burro.
Desde esse tempo, viram-no dedicar-se a cultivar esse pequeno canto
de terra e fazer de sua casa uma espcie de penso, para onde acorriam os
pobres e os doentes. Alm de acolh-los, ele ia busc-los at nos brejos

41
O Pe. Livarius Oliger, AFH, VI (1913), p. 342, fixa com razo a data dessa carta nos anos 1220 ou
1221. Mas isso no impede que o Pe. Cuthbert (Life of S. Fr., p. 274) tenha tido razo de ver a uma espcie
de regra da Ordem Terceira. O fato de que desse mesmo ano dataria o Memoriale, no obstculo. Com
efeito, temos o direito de ver nele no a vita et regula dos Penitentes que no era outra seno a de todos os
Franciscanos, mas uma regulamentao anexa.
O Pe. Frdgand Callaey. tudes Fr., t. XXXIV (1922), p. 367, tambm v nessa carta um prembulo e
comeo da Regra da Ordem Terceira.
42
Nos A.SS. Aprilis, t. III, p. 600-616. Orlando de Chiusi tambm recebeu o hbito das mos de Francisco.
A fraternidade franciscana, sob a influncia de outras ordens terceiras, perdeu rapidamente essas caracters-
ticas especficas. Quando ao nome de ordem terceira, certo que teve originalmente um sentido hierrquico,
ao qual se sobreps pouco a pouco um sentido cronolgico. Todas essas questes tornam-se singularmente
mais claras quando as aproximamos do que sabemos sobre os Humilhados.

346
infectados pela malria, e muitas vezes voltava com um doente nas
costas, precedido por seu burro carregado com um fardo semelhante. Os
recursos de seu quintal eram naturalmente muito reduzidos. Como no
podia fazer outra coisa, Lucchesio pegava uma bolsa e ia mendigar de
porta em porta, mas, na maior parte do tempo, nem precisava, porque os
pobres, vendo que ele era trabalhador e bondoso, ficavam mais contentes
com os pobres legumes que ele comia em sua companhia do que com
uma refeio abundante. Diante de um benfeitor no feliz no seu despoja-
mento, esqueciam sua misria, e os murmrios habituais desses infelizes
transformavam-se em palavras de admirao e de reconhecimento.
A converso no tinha matado nele os laos de famlia: Bona Donna,
sua mulher, tornara-se a melhor colaboradora e quando, em 1260, ele
a viu apagar-se pouco a pouco, sua dor foi muito forte para poder ser
suportada: Tu sabes, querida companheira, disse-lhe quando ela acabou
de receber os ltimos sacramentos, como ns nos amamos enquanto
servimos juntos a Deus. Por que no permanecemos unidos para ir ao
encontro das alegrias inefveis? Espera-me. Eu tambm quero receber
os sacramentos e ir contigo para o cu.
Disse isso e chamou o padre de novo para que o sacramentasse.
Depois, segurando as mos da agonizante, e confortando-a com doces
palavras, quando viu que sua alma tinha voado, fez o sinal da cruz e se
deitou, chamando com amor Jesus, Maria e So Francisco, adormecendo
para a eternidade.

347
348
17

OS FRADES MENORES E A
CINCIA
(Outono de 1221 dezembro de 1223)

349
XVII

Salvum me fac, Deus,


quoniam intraverunt aquae ad animam meam.
Infixus sum in limo profundi, et non est substantia.
Veni in altitudinem maris; et tempestas demersit me.
Laboravi clamans, raucae factae sunt fauces meae;
defecerunt oculi mei, dum spero in Deum meum.
Multiplicati sunt super capillos capitis mei.
qui oderunt me gratis...
Extraneus factus sum fratribus meis,
et peregrinus filiis matris meae.
Quoniam zelus domus tuae comedit me,
et opprobria exprobrantium tibi ceciderunt super me.
Et operui in jejunio animam meam;
et factum est in opprobrium mihi.
Et posui vestimentum meum cilicium,
et factus sum illis in parabolam...
Improperium exspectavit cor meum et miseriam;
et sustinui qui simul contristaretur, et non fuit;
et qui consolaretur, et non inveni...
Ego sum pauper et dolens;
salus tua, Deus, suscepit me.
Laudabo nomen Dei cum cantico;
et magnificabo eum in laude...
Videant pauperes, et laetentur;
quaerite Dominum et vivet anima vestra,
quoniam exaudivit paupres Dominus,
et vinctos suos non despexit 1.
Qui me misit verax est: et ego quae audivi ab eo, haec loquor in mundo... A
meipso facio nihil, sed sicut docuit me Pater, haec loquor; et qui me misit
mecum est, et non reliquit me solum, quia ego, quae placita sunt ei facio
semper 2.

1
Sl 68, 2-34.
2
Jo 8, 26-29.

350
XVII

Salvai-me, Deus,
Porque as guas quase me submergem.
Estou afundando em um lamaal profundo,
No tenho ponto de apoio;
Entrei no abismo de guas sem fundo
e a torrente est me arrastando.
Estou rouco de tanto gritar, di-me a garganta;
Cansam-se os meus olhos espera de Deus.
So mais que os cabelos de minha cabea
Aqueles que injustamente me odeiam...
Tornei-me um estranho para meus irmos,
Um desconhecido para os filhos de minha me.
O zelo de tua casa e consome;
Os insultos dos que te ultrajam caram sobre mim.
Mortifico-me com jejuns
E mesmo assim me insultam.
Visto-me de luto
E sou para eles objeto de escrnio.
O insulto despedaou-me o corao at desfalecer
Esperei compaixo, mas foi em vo;
algum que me consolasse, mas no encontrei...
Mas a mim, triste e aflito,
Que a vossa salvao me restabelea.
Louvarei com cnticos o nome de Deus,
Hei de glorific-lo com aes de graas...
Que os humildes vejam, isso e se alegrem.
E os que buscam a Deus se encham de coragem,
Porque o Senhor escuta os necessitados
e no despreza o seu povo cativo 3.
Aquele que me enviou verdadeiro, e eu anunciarei ao mundo o que dele
ouvi... No fao nada por mim mesmo, s digo o que o Pai me ensinou.
Aquele que me enviou est comigo e no me deixou s, porque eu fao
sempre o que lhe agrada 4.

3
Sl 68 (69), 2-34.
4
Jo 8, 26-29.

351
A partir do captulo de 1221, a evoluo da Ordem precipita-se com
uma rapidez a que ningum mais poderia reagir.
A criao dos ministros ocasionou um passo enorme desse lado: pela
prpria fora dos acontecimentos, eles vieram a ter uma residncia:
quando algum comanda, quer ter mo seus subordinados, saber a cada
momento onde eles esto. Por isso, os frades no podiam mais continuar
a passar sem conventos propriamente ditos. Essa mudana deveria pro-
vocar diversas outras: at ento, no tinham tido igrejas. Sem igrejas, os
frades no passavam de pregadores, e sua finalidade no podia ser mais
do que desinteressada; como Francisco desejava, eles eram os auxiliares
benvolos do clero. Com as igrejas, tinham fatalmente que aspirar a pre-
gar primeiro nelas, atraindo a multido, e depois erigir alguma espcie
de contra-parquias 5.
A bula de 22 de maro de 1222 6 mostra-nos o papado usando todas as
suas foras nessas transformaes. O pontfice concede a Frei Francisco e

5
Tudo isso foi feito com uma prodigiosa rapidez. As dimenses da baslica de Assis, cujos planos estavam
feitos desde 1228, no permitem consider-la uma capela conventual, no menos do que Santa Cruz de
Florena, So Francisco de Sena ou a baslica de Santo Antnio em Pdua, monumentos comeados entre
1230 e 1240. Desde antes de 1245, uma parte do episcopado lanou um grito de alarme pedindo para se
fecharem as portas das igrejas seculares que se haviam tornado inteis. Nele choram com incrvel amargura
porque os Frades Menores e os Pregadores tinham suplantado absolutamente o clero paroquial. Encontramos
essa carta, dirigida ao mesmo tempo a Frederico II e ao conclio de Lio, em Pierre de la Vigne: Epistolae,
Ble, 1740, 2 vol. t. I, p. 220-222. Seria bem desejvel que algum publicasse um texto crtico dela. Ver
tambm a stira contra as duas novas ordens, versificado por volta de 1242 por Pierre dela Vigne, na qual,
apesar dos exageros possveis, a maior parte do que dito no foi inventado: E. du Mril: Posies pop. lat.,
p.153-177, Paris, in 8, 1847.
6
E no do dia 29, como quer Sbaralea (Bull. fr., t. I, n. 1; Horoy, t. IV, col. 129; o original ainda nos
arquivos de Assis traz: Datum Anagnie 11 Kalendas Aprilis pontificatus nostri anno sexto.

352
aos outros frades o privilgio de poder celebrar em suas igrejas os santos
mistrios em tempo de interdito, com a condio, naturalmente, de no
tocar os sinos, de fechar as portas, e de fazer sair previamente todas as
pessoas excomungadas.
Por uma espantosa inconsequncia, a prpria bula d testemunho
de sua inutilidade, pelo menos no tempo em que foi dada: Ns vos
concedemos diz ela poder celebrar em tempo de interdito em vossas
igrejas, se vierdes a t-las. A est mais uma prova de que a Ordem
ainda no as tinha em 1222; mas no difcil ver precisamente nesse
documento um convite insistente para mudar de atitude e a no deixar
esse privilgio sem sentido 7.

Um outro documento da mesma poca manifesta preocupaes an-


logas, mas atuando de outro lado bem diferente. Pela bula Ex parte de
29 de maro de 1222, Honrio III encarregava conjuntamente os priores
dos Pregadores e dos Menores de Lisboa de uma misso singularmente
delicada: dava-lhes plenos poderes para agir contra o bispo e o clero da
cidade, que exigiam que os fiis lhes deixassem em testamento um tero
de seus bens, recusando dar sepultura eclesistica aos recalcitrantes 8.

O fato de o papa ter confiado aos frades o cuidado de escolher eles


mesmos as medidas que deviam tomar prova quanto estavam sendo
pressionados em Roma a esquecer a finalidade para a qual tinham sido
criados, transformando-os em encarregados dos negcios da Santa S.

Por isso, no preciso notar que a meno do nome de Francisco


no comeo da primeira dessas bulas no tem nenhum alcance. No po-
demos imaginar o Poverello pedindo um privilgio para circunstncias

7
Indulgemus ut in Ecclesiis si quas vobis habere contigerit, cum generale terrae fuerit interdictum, liceat
vobis... celebrare. Jacques de Vitry tambm diz que os frades no tinham igrejas (Boehmer, Analekten, p.
103, I. 16). Enquanto os frades no tiveram igrejas, eram quase exclusivamente itinerantes: Ire per mundum,
e Jacques de Vitry via neles a realizao da palavra: Dominus amat peregrinus et dat ei victum et vestitum
(Dt. 10, 18). Boehmer, Analekten, p. 104, 1. 20.
8
Potthast 6089; Horoy, t. IV, col. 129. Ver tambm a bula Ecce venit Deus de 14 de julho de 1227: L.
Auvray, Registres de Grgoire IX n. 129. Cf. 153. Potthast 8027 e 8028, 8189.

353
que ainda no existiam! Percebemos aqui a influncia de Hugolino 9 que
tinha encontrado na pessoa de Elias um frade menor de acordo com o
seu corao.

Que estaria fazendo Francisco nesse tempo? No sabemos, mas a


prpria ausncia de orientaes to numerosas no perodo anteceden-
te e no seguinte diz-nos muito bem que ele deixara a Porcincula 10
para ir para a solido viver nesses eremitrios da mbria que sempre o
haviam atrado to poderosamente 11. Quase que no h uma colina da
Itlia central que no tenha conservado uma lembrana de suas passagem.
Entre Florena e Roma, difcil caminhar meio dia nas montanhas sem
encontrar, nos pontos mais altos, cabanas com o seu nome ou de algum
de seus discpulos.

Houve um momento em que elas foram habitadas e em que, em choas


de galhos, Egdio, Masseu, Bernardo. Silvestre, Junpero e muitos outros
cujo nome a histria calou, receberam a visita de seu pai espiritual, que
ia consol-los 12.

Eles lhe retribuam amor por amor e consolao por consolao. Sua
pobre alma tinha muita necessidade disso porque, em suas longas noites
de insnia, ele s vezes ouvia bem no fundo de seu corao vozes muito
estranhas; a fadiga e os arrependimentos tomavam conta dele e, olhando
para trs, comea a duvidar de si mesmo, da Senhora Pobreza, de tudo.

9
Ele tinha terminado sua misso de legado na Lombardia l pelo fim de setembro de 1221 (Ver seu
Registro. Cf. Bhmer, Acta imp. sel. doc. 951). Na primavera de 1222, ns o encontramos sem cessar ao
lado do papa em Anagni, VeroIi, Alatri (Potthast 6807, 6812, 6849). A Santa S ainda tinha nesses tempo
uma predileo notvel pelos Pregadores: o privilgio essencialmente banal de poder celebrar os ofcios em
tempo de interdito tinha sido concedido a eles em 7 de maro de 1222, mas em vez da frmula ordinria num
caso desses, fizeram uma redao expressa para eles, com um belo elogio. Ripolli, Bull. Praed., t. I, p. 15.
10
No necessariamente: 1221-1223 o perodo da grande tentao da accidia, do desencorajamento que
durou ultra duos annos (EP. 99). Est em Nossa Senhora dos Anjos.
11
2Cel. 3, 93. Subtrahebat se a consortio fratrum.
12
No preciso dizer que as tradies locais, nesse caso, no deviam ser aceitas a no ser com a maior
reserva no detalhe, mas no conjunto elas so seguramente verdadeiras. A geografia da vida de So Francisco
ainda est por fazer. Devem ser desse tempo, penso eu, a carta a Frei Elias (Coll., t. II, p. 113 ss) e a conversa
contada no captulo 71 do EP.

354
Entre Chiusi e Radicofani, a uma hora de caminho da aldeia de
Sartiano, alguns frades tinham arranjado um abrigo que lhes servia de
eremitrio, e prepararam para Francisco uma cabaninha um pouco afas-
tada. Foi a que ele passou uma das noites mais dolorosas de sua vida.
Assaltado pelo pensamento de estar exagerando no ascetismo e sem
contar suficientemente com a bondade de Deus, ele comeou de repente
a se arrepender de modo usara a vida. O quadro do que ele poderia ter
sido, da vida de famlia tranquila e feliz que poderia ter tido, apresentou-
se sob cores to vivas que ele se sentiu fraquejar. Usou o cordo para se
disciplinar at se machucar, mas a viso no desaparecia.

Era pleno inverno; uma espessa camada de neve cobria o cho; ele se
jogou l fora sem roupa e, enchendo as mos de neve, comeou a fazer
um cortejo de personagens. Ento disse: Esta tua mulher. Atrs dela
esto dois filhos e duas filhas, seguidos pelo servo e pela domstica, que
carregam tua bagagem.
Essa imagem ingnua da tirania dos cuidados materiais que tinha
banido acabou dissipando a tentao 13.
Ser que devemos ligar a essa mesma poca um outro trecho de le-
genda que se passou em Sartriano? Nada o indica. Um dia, um frade a
quem ele perguntara: De onde vens? respondeu: Venho de tua cela.
Isso foi suficiente para o bravio amante da Pobreza no querer mais
entrar l. As raposas tm tocas gostava de repetir e os passarinhos
seus ninhos, mas o Filho do homem no tem onde repousar a cabea.
Quando o Senhor foi orar e jejuar no deserto durante quarenta dias e
quarenta noites no mandou constuir uma cela, nem casa, mas se abriu
sombra de uma rocha 14.
Por isso, no precisamos acreditar como j aconteceu que nessa
poca Francisco tinha mudado o ponto de vista. Alguns escritores ecle-
sisticos pensaram que ele aceitou a transformao da ordem porque
queria que ela crescesse.

13
2Cel. 3, 59; Bn 60; Conform. 122 b 2.
14
EP 9; 2Cel. 3,5; Conform. 169. b 2.

355
A idia especiosa, mas nesse ponto no estamos reduzidos a conje-
turas: quase tudo que foi feito na Ordem depois de 1221 aconteceu ou
sem que Francisco soubesse ou contra a sua vontade 15. Se tivssemos
a tentao de duvidar disso, bastaria um olhar sobre o manifesto mais
solene e tambm o mais adequado de seu pensamento, o seu Testamento.
Ns o vemos libertado de todas as sugestes que tinham levado a dobrar
a expresso de suas idias, levantando-se corajosamente para relembrar
o ideal primitivo, colocando-o em oposio a todas as concesses arran-
cadas de sua fraqueza..
O Testamento no um apndice da Regra de 1223, quase uma
revogao dela. Mas ns nos enganaramos se quisssemos ver nela a
primeira tentativa de reao. Os cinco ltimos anos de sua vida foram
um s esforo incessante para protestar com seu exemplo e com suas
palavras.
Em 1222, dirigiu aos frades de Bolonha uma carta cheia dos mais
tristes pressentimentos. Nessa cidade em que os dominicanos, cheios
de amabilidades, estavam a ponto de conseguir uma grande situao no
ensino, os frades menores eram mais tentados do que em qualquer outro
lugar a abandonar o caminho da simplicidade e da pobreza 16.
As advertncias de Francisco se haviam revestido de cores to som-
brias e to ameaadoras que, depois do famoso terremoto de 23 de de-
zembro de 1222, um espanto para toda a Itlia setentrional, no se hesitou
para acreditar que ele tinham predito a catstrofe 17. Ele tinha predito
uma, que nem por ser toda moral era menos horrvel, e cuja viso dele
arrancou as mais amargas imprecaes:
Senhor Jesus Cristo, que escolhestes doze apstolos. Um deles caiu, mas
os outros ficaram unidos a vs e pregaram o Evangelho, cheios do mesmo
esprito. Senhor, lembrando-vos nesta ltima hora da antiga misericrdia,
plantastes uma religio de irmos, para apoiar a f e cumprir atravs deles

15
In hoc est dolor meus et afflictio mea..., EP 11. Ver tambm o Ofcio da Paixo.
16
Igitur magister Reginaldus... venit Bononiam XII Kal. Januarii (1219)... Tota nunc fervebat Bononiam
quia novus surrexisse videbatur Elias in diebus illis multos recepit ad Ordinem, et numerus discipulorum
coepit excrescere et plures addiditi sunt ad eos. Jord. Sax., 43. A. SS. Aug., t. I, p.547.
17
Eccl. 6. Ver o texto de Liebermann, Mon. Germ. hist. Script., t. 28, p. 663.

356
o mistrio de vosso Evangelho.
Quem vai poder satisfazer por eles diante de vs, pois no s deixam
de dar a todos os exemplos luminosos daquilo para que foram enviados,
mas esto at apresentando obras das trevas? Que sejam amaldioados por
vs, santssimo Senhor, por toda a corte celestial e tambm por este vosso
pobrezinho, os que por seu mau exemplo confundem e destroem o que por
santos irmos desta Ordem edificastes outrora e de edificar no cessais! 18.
Esta passagem de Toms de Celano o mais moderado dos bigrafos
mostra em que diapaso de veemncia e de indignao pde elevar-se
o doce Francisco.

Apesar dos esforos bem naturais feitos para lanar um discreto vu


sobre essas angstias do fundador a respeito do futuro de sua famlia
espiritual, percebemos sinais a cada passo: Tempo vir, disse ele um
dia, em que nossa Ordem ter perdido a tal ponto o seu bom nome que
seus membros tero vergonha de se mostrar s claras 19.

Ele tinha visto em sonhos uma esttua cuja cabea era de ouro, o peito
e os braos de prata, o ventre de cristal, as pernas de ferro. Pensou que
era um pressgio do futuro reservado a seu instituto 20.

Via seus filhos atacados por duas doenas, infiis ao mesmo tempo
pobreza e humildade; mas pode ser que temia mais que fossem tomados
pelo demnio da cincia do que pela tentao das riquezas.

Que que ele achava da cincia? provvel que jamais tenha exa-
minado a questo de um ponto de vista geral, mas no tinha dificuldade
para ver que haveria sempre muitos alunos nas universidades, e que se
o esforo cientfico um culto prestado a Deus, no havia risco de fal-
tarem adoradores dessa categoria; mas, se olhasse de todos os lados,

18
2Cel 156 4-7; Bon. 104 e 105; Conform. 101 a 2.
19
2Cel. 3,93; E. Vitae 49 b; 182 a; Conform. 182 a 1; Tribul. fo 5 a; 2 Cel. 3, 98; 113; 115; 1 Cel. 28; 50;
96; 103; 104; 108; 111; 118; Leg. Vetus 1; 2; 4, Op., t. I, fasc. III.
20
2Cel. 327; Leg. Vetus 5; E.Vitae 38 b; Conform. 181 b 1; Tribul. 7 b. Cf. E.Vitae b; Conform. 103 b.

357
no encontraria ningum para cumprir a misso de humildade e de amor
reservados a sua Ordem se os frades viessem a ser infiis 21.

Em sua angstia, h tambm algo mais do que a dor de ver suas espe-
ranas confundidas. A derrota de um exrcito no nada em comparao
com a derrota de uma idia; e nele se encarnara uma idia, a da paz e
do bem entregados humanidade pela liberdade reconquistada sobre os
entraves materiais e pelo amor.
Por um inefvel mistrio, ele se sentia o homem de seu sculo, aquele
em cujo seio se resumiam os esforos, os desejos, as aspiraes dos po-
vos; com ele, nele, por ele, a humanidade queria se renovar e, por falar
com o evangelho, nascer de novo.
A mora sua verdadeira beleza. Por a, bem mais do que por vs con-
formidades exteriores e fticas, ele um Cristo.
Ele tambm carrega as dores do mundo e, se quisermos ir at o fundo
de sua alma, preciso, por ele como por Jesus, dar a essa palavra dores
o seu significado mais extenso. Por sua piedade, eles carregaram os
sofrimentos fsicos da humanidade, mas o que os acabrunha so dores
angustiantes por bem outros motivos: as de dar luz o divino. Eles sofrem,
porque neles o Verbo se faz carne, e em Getsmani como embaixo dos
olivais de Grcio, eles agonizam, porque os seus no os receberam.
Sim, So Francisco sentiu o incessante trabalho de transformao
que se realizou dentro da humanidade caminhando para sua destinao
divina, e ele se ofereceu, hstia viva, para que nele acontecesse a mis-
teriosa palingnese.
Compreendemos agora sua dor? Ele treme pelo mistrio do Evange-
lho. Nele h algo que recorda o espasmo da vida quando ela percebe a
morte, espasmo to mais doloroso porque se trata aqui da vida moral.

21
Lemos na Regra finalmente concedida a Clara em 1253: Nescientes litteras non curent litteras discere,
sed attendant quod super omnia debent habere spiritum Dei et sanctam ejus operationem. Isso foi tirado
textualmente da Regra bulada de 1223, mas est em contradio direta com as prescries das regras 1 e 2
dadas s Clarissas por Hugolino, onde se diz (cap. III) que as irms jovens e as que no so dotadas devem
ser instrudas por uma de suas companheiras. Ver Lempp, Die nfnge des Clarissenordens, p. 236 et 190.

358
Isso explica como o homem que corria atrs de bandidos para faz-los
discpulos seus pode ser impiedoso com seus colaboradores, sem dvi-
da bem intencionados, mas que, por um zelo indiscreto, esqueciam sua
vocao e teriam transformado a Ordem em um instituto cientfico.
Sob o pretexto de colocar a cincia a servio de Deus e da religio,
a hierarquia eclesistica de ento excitava o pior dos vcios, o orgulho.
Ser que seria preciso renunciar, dizia, a tirar essa arma dos adversrios
da f? Mas ser que poderamos imaginar Jesus indo meter-se na escola
dos rabinos e, sob o pretexto de aprender a lhes responder, enervando
seu pensamento pelas sutilezas de sua dialtica e das fantasmagorias de
sua exegese? Pode ser que ele se tornasse um grande doutor, mas teria
sido o Salvador do mundo?
A cincia nunca foi objeto de tantas cobias como no sculo XIII. O
Imprio e a Igreja pediam-lhe ansiosamente argumentos para defender
suas pretenses recprocas. Inocncio III envia Universidade de Bolonha
a coleo de seus Decretais e a cumula de favores. Frederico II funda a
de Npoles, e at os patarenos mandam seus filhos para estudar em Paris
e, depois, na Toscana e na Lombardia.
Ns nos lembramos do sucesso das pregaes de Francisco em Bo-
lonha, em agosto de 1220 22; nessa mesma poca ele tinha repreendido
vivamente Pedro Stacia, o ministro provincial que era doutor em leis, no
s por ter instalado os frades em uma casa que parecia pertencer-lhes,
mas se gloriava de a ter organizado uma espcie de colgio.
Parece que o ministro no se importou com essas repreenses. Quando
Francisco soube de seu endurecimento, amaldioou-o com espantosa
veemncia; sua indignao foi to grande que mais tarde, na poca de
sua morte, os numerosos amigos de Pedro Stacia vieram suplicar que
revogasse sua maldio, mas todos os seus esforos foram inteis 23.

22
Os sucessores de Francisco foram quase sem exceo estudantes de Bolonha: Pedro Cattani era doutor
em leis, assim como Joo Parenti (Jord. 51). Elias tinha sido scriptor em Bologne. - Alberto de Pisa l
tinha sido ministro (Eccl. 6). - Aymon tinha sido lente (Eccl. 6). Crescncio escreveu obras de jurispru-
dncia. Conform. 121 b. 1 etc., etc.
23
Esse nome no poderia ser garantido: ele se chama Johannes de Laschaccia em uma passagem das
Conformidades (104 a 1); Pietro Schiacia no manual italiano das Tribulationes (fo 75 a); Petrus Stacia no

359
Mas preciso levar em conta que tudo que diz respeito a esse infeliz
provincial parece ter sido profundamente exagerado por alguns frades
que, sob o pretexto de simplicidade e de pobreza, gostariam de ter feito
da ignorncia, e principalmente da preguia, a primeira de suas virtudes.
Os partidrios dos estudos cientficos entre os frades menores 24 in-
vocam, para apoiar seu pensamento, uma espcie de carta de obedincia
em que Francisco teria autorizado Frei Antnio, o futuro taumaturgo de
Pdua, a tornar-se lente de teologia, como chamavam naquele tempo
os que ensinavam essa cincia. At recentemente no tnhamos desse do-
cumento mais que uns textos suspeitos que os franciscanos de Quaracchi
no quiseram inserir em sua edio dos opsculos do serfico patriarca.

Mas os Opsculos de Crtica Histrica, em 25, apresentaram um


texto novo e melhor, que torna a autenticidade dessas poucas linhas um
pouco menos improvvel.

A Frei Antnio, meu bispo, Frei Francisco [deseja] sade.


Agrada-me que ensines sagrada teologia aos frades, contanto que, nesse
estudo no extingas o esprito de orao e devoo, como est contido na
Regra 26. Adeus.

difcil imaginar a rivalidade que havia, nessa poca, entre domi-


nicanos e franciscanos buscando atrair para suas ordens respectivas os
mestres mais ilustres. Organizavam pequenas intrigas em que os devotos
tinham seu papel, para levar este ou aquele doutor famoso a receber o

manual da Laurentiana (13 b; Cf. Archiv, II, p. 258). Tribul 13 b; S. Vitae 184 b. Essa narrao sofreu em
outros lugares muitas amplificaes: S. Vitae 126 a; Conform.104 b 1; Chron. XXIV Gen., An. fr. III, p. 364,
onde ele chamado Joo de Scotia.
24
Ver especialmente Hilarino de Lucerna OFMCap, Histoire des tudes dans lOrdre franciscain, trad.
francesa, Paris, 1908, p. 144 ss.
25
Op., t. I, fasc. 3, p. 76.
26
...ita quod... orationis et devotionis spiritum non extinguant. Reg. De 1223, 5. - Se o juxta Regulam
fala da Regra de 1223, claro que a carta no pode ser anterior a 29 de novembro de 1223.

360
hbito 27. Se o objetivo de So Francisco tivesse sido o da cincia, os
frades de Bolonha, de Paris e de Oxford no poderiam ter agido melhor 28.

A corrente era to forte que as ordens antigas foram arrastadas que-


rendo ou no querendo: vinte anos mais tarde, os cistercienses tambm
quiseram ser legistas, telogos, decretalistas e tudo mais..

Pode ser que Francisco no tenha percebido logo no comeo a gra-


vidade do perigo, mas a iluso j no era mais possvel e isso logo foi
demonstrado como se viu de uma implacvel firmeza. Se mais tarde
disfararam seu pensamento, foi preciso que os culpados os papas e
a maior parte dos primeiros ministros gerais usassem truques de presti-
digitao exegtica que no os honra: Se fosses to sutil e sbio, dizia
ele, que tivesses toda a cincia e soubesses interpretar toda espcie de
lnguas e investigar sutilmente acerca das coisas celestes, o curso dos
astros e tudo o mais, que h nisso para te orgulhares? Porque um s de-
mnio sabe mais l embaixo do que todos os homens reunidos 29. Mas
h uma coisa de que o demnio incapaz e que a glria do homem:
ser fiel a Deus 30.

No temos indicaes precisas sobre os captulos de 1222 31 e 1223.


As modificaes feitas no projeto de 1221 foram discutidas pelos

27
Ver Eccl. 3; Histoire de lentre dans lOrdre dAdam dOxford. Cf. Chartularium Univ. Par., t. I, n
47 et 49.
28
Toda a crnica de Eccleston testemunha viva disso.
29
Admonitio V, Cf. Conform. 141 a.
Comparar com as Constitutiones antiquae (Speculum, Morin, III, fo 195 b-206) da Regra. Desde os primei-
ros captulos a contradio salta aos olhos; Ordinamus quod nullus recipiatur in ordine nostro nisi sit talis
clericus qui sit competenter instructus in grammatica vel logica; aut nisi sit talis laicus de cujus ingressu
esset valde celebris et edificatio in populo et in clero. Estamos bem longe do esprito daquele que tinha dito:
Et quicumque venerit amicus vel adversarius fur vel latro benigne recipiatur. Regra de 1221, cap. VII. Ver
tambm a Exposio da Regra de So Boaventura. Speculum Morin, III, fo 21-40.
30
Sobre a atitude de Francisco diante da cincia, ver Tribul. Laur. 14 b; S. Vitae 184 a; EP 3; 4; 69; 72; 80;
2 Cel. 3,8; 48; 100; 116; 119; 120-124. O captulo Bon. 152 naturalmente no expressa seno os pontos de
vista de Boaventura. Ver especialmente a Ragra de 1221, cap. XVII; de 1223, cap. X.
31
Pentecostes 22 de maio de 1222. Houve um captulo geral na Porcincula nesse ano. A regra de 1221
tinham declarado obrigatria a presena dos ministros s a cada trs anos para os que estavam no Ultramar,
ou para l dos Alpes, mas a cada ano para os da Itlia. Por isso, os captulos foram anuais at 1224, quando
entrou em vigor a Regra de 1223 (29, 11).

361
ministros 32, e depois confirmadas definitivamente pelo cardeal Hugo-
lino. Este teve longas conferncias com Francisco a respeito disso, mas
nenhuma lembrana foi conservada 33.

Seu resultado foi a Regra de 1223. A respeito da origem desse docu-


mento brotaram bem depressa uma poro de relatos maravilhosos que
no vale a pena examinar em detalhes. importante considerar que eles
recordam as lutas sustentadas por Francisco contra os ministros para
manter seu ideal.
Antes de ir a Roma pedir a aprovao definitiva, ele se retirara por
bastante tempo na solido de Fonte Colombo, perto de Rieti. Logo co-
mearam a representar essa colina como um novo Sinai, e os discpulos
pintaram seu mestre recebendo l em cima, das mos do prprio Jesus,
um outro Declogo 34.
ngelo Clareno, um dos narradores mais complacentes dessas tradi-
es, encarrega-se de indicar seu pouco valor: mostra-nos Honrio III
modificando no ltimo momento uma passagem essencial do projeto 35.
J caracterizei bem exatamente essa Regra e no preciso repeti-lo aqui.
Ela foi aprovada no dia 29 de novembro de 1223 36. Parece que v-
rias recordaes devem ser ligadas a essa ltima viagem de Francisco
a Roma. Um dia, o cardeal Hugolino, que o hospedara, espantou-se
bastante, assim como seus convidados, percebendo que ele estava au-
sente na hora em que foram para a mesa. Mas logo viram que chegava,
carregando uma proviso de pedaos de po preto que distribuiu todo
feliz nobre assistncia. O cardeal, um pouco confuso, tentou fazer-lhe
algumas repreenses depois da refeio, mas Francisco explicou que um

32
Spec. Vitae 7 b; Fecit Franciscus regulam quam papa Honorius confirmavit cum bulla, de qua regula
multa fuerunt extracta ex ministro contra voluntatem b. Francisci. Cf. 2 Cel. 3,136.
33
Bula Quo elongati de 28 de setembro de 1230; Sbaralea, t. I, p. 56. Coll. t. I, p. 314 ss.
34
Spec. Perf. 1 (Interpolao, ver P. Sabatier, dition critique, British Society of Franciscan Studies voI.
XIII, p. XIII-XXII. Bon. 55 et 56; [3 Soc. 62]; Spec. Vitae 76; 124 a; Tribul. Laur. 17 b.-19 b; Ubertino,
Arbor V. 5; Conform. 88 a 2.
35
Tribul., Laur. 19 a; Archiv., t. III, p. 601. Cf. A. SS., p. 638 e.
36
Potthast 7108. A obra dessa bula foi completada pela de 18 de setembro de 1223 (O original do Sacro-
Convento diz: Datum Laterani XV Kal. jan.), Fratrum Minorum: Potthast 7123.

362
suntuoso banquete no devia faz-lo esquecer do po da esmola, porque
a mesa mais rica no vale mais, para os pobres espirituais, do que essa
mesa do Senhor 37.
J vimos que, durante os primeiros anos, os frades menores tinham o
hbito de ganhar a vida empregando-se como domsticos. Alguns tinham
continuado, mas em pequeno nmero. Pouco a pouco, tambm nisso
tudo se transformara. Com a desculpa de servir, os frades entravam nas
casas das grandes personalidades da corte pontifcia e passavam a ser
seus homens de confiana: em vez de serem submissos a todos, como
diz a Regra de 1221, estavam acima de todos.
Perdendo completamente de vista a vida apostlica, eles se tornavam
cortesos de um tipo especial; seu carter, meio eclesistico meio leigo,
tornava-os capazes de efetuar uma poro de misses delicadas e de
ter seu papel nas variadas intrigas para as quais a maioria dos prelados
romanos sempre pareceram viver 38. Para protestar, Francisco s tinha
uma arma: o exemplo.
Uma vez, conta o Espelho da Perfeio o bem-aventurado Francisco
foi a Roma para visitar o senhor de stia. E, permanecendo alguns dias
com ele, visitou tambm o senhor Cardeal Leo, que era muito devoto do
bem-aventurado Francisco. E como era tempo de inverno, absolutamente
inadequado para caminhar por causa do frio, dos ventos e da chuva, pediu-lhe
que ficasse alguns dias com ele e como um pobre recebesse dele o alimento
com os outros pobres que diariamente comiam na sua casa. Mas disse isso
porque sabia que o bem-aventurado Francisco, onde quer que se hospedasse,
sempre queria ser recebido como um pobre, ainda que o senhor papa e os
cardeais o recebessem com a maior devoo e respeito e o venerassem como
santo. E acrescentou: Eu vou te dar uma boa casa afastada, onde poders

37
2Cel. 3, 19; Bon. 95; Spec. Vitae 18 b.; Conform. 171 a 1.
38
2Cel. 3, 61 et 62. Cf. Eccl. 6 a recordao de Hod. de Rosa sobre a brevidade do perodo em que os
frades se colocaram como domsticos. Ver P. Dominicus Mandi, De legislatione antiqua, O.F.M., p. 98.
Pode ser que a concluso do sbio religioso seja um pouco curta. Bem depressa os frades deixaram de ser
domsticos em qualquer casa, mas eles se empregaram durante muito mais tempo nas casas dos nobres e
dos prelados. Essa mudana foi feita gradualmente.
A bula Vobis per de 24 de setembro de 1245 mostra que a ordem se tornara uma espcie de viveiro de
servidores e de agentes para os prelados. Cf. Sbaralea, l, p. 383, n. d.

363
rezar e comer, se quiseres.
Ento, Frei ngelo Tancredi, que era um dos primeiros doze frades e que
tambm morava com o referido cardeal, disse a So Francisco: Irmo, aqui
perto h uma torre bastante espaosa e afastada, onde poders morar como
num eremitrio. Ao v-Ia, So Francisco gostou e, voltando ao senhor car-
deal, disse-lhe: Senhor, creio que permanecerei convosco por alguns dias.

O senhor cardeal ficou muito contente. Ento, Frei ngelo foi e preparou
na torre um lugar para So Francisco e seu companheiro. E que So Francisco
no queria descer de l, enquanto estivesse com o cardeal, nem queria que
algum entrasse at ele, Frei ngelo prometeu e decidiu levar diariamente
o alimento para ele e o companheiro.

Quando o bem-aventurado Francisco foi para l com seu companheiro, na


primeira noite, quando queria dormir, vieram os demnios e o chicotearam
fortemente. Chamando seu companheiro, disse-lhe: Irmo, os demnios
espancaram-me muito fortemente; por isso, quero que permaneas a meu
lado, pois tenho medo de ficar sozinho. Naquela noite, o companheiro ficou
perto dele, pois o bem-aventurado Francisco tremia todo, como uma pessoa
que estivesse com febre; assim, ambos ficaram acordados a noite toda.

Entrementes, So Francisco dizia a seu companheiro: Por que os de-


mnios me bateram e por que o Senhor lhes deu o poder de fazer-me mal?
E acrescentou: Os demnios so os carrascos de nosso Senhor. Ora, como
o podest manda seu carrasco para punir aquele que pecou, assim, por seus
carrascos, isto , pelos demnios que, nesse servio, so seus servos ,
o Senhor corrige e castiga a quem ele ama. Pois tambm o perfeito religioso,
muitas vezes, peca por ignorncia. Assim, no conhecendo seu pecado,
castigado pelo diabo, para que reflita diligentemente e se examine interior e
exteriormente em que ele ofendeu; porque, nesta vida, o Senhor nada deixa
impune naqueles que ele, ama com terno amor. Eu, porm, pela misericrdia
e graa de Deus, no sei de nada em que pudesse ter ofendido que no tenha
reparado pela confisso e pela satisfao; e at, por sua misericrdia, Deus
me deu a graa de, na orao, ter pleno conhecimento de tudo em que posso
agrad-lo ou desagrad-lo.

Mas, pode ser que, agora, me tenha castigado por meio de seus carrascos
porque, embora o senhor cardeal de boa vontade use de misericrdia comigo

364
e seja necessrio que meu corpo receba este alvio, os meus irmos que vo
pelo mundo, suportando a fome e muitas tribulaes, e os outros frades que
moram nos eremitrios e em casas pobrezinhas, ouvindo que permaneo com
o senhor cardeal, podero ter ocasio de murmurar contra mim, dizendo:
Ns suportamos tantas adversidades e ele tem suas consolaes! Mas eu
sou obrigado a dar-lhes sempre o bom exemplo, pois para isso fui dado a
eles. Afinal, os frades edificam-se mais quando permaneo entre eles em
lugares pobres do que em outros; e suportam suas tribulaes com mais
pacincia, quando ouvem que eu tambm suporto a mesma coisa.
Com efeito, o mximo e contnuo esforo de nosso pai foi sempre o de
dar a todos o bom exemplo e no dar aos outros frades ocasio de murmu-
rar contra ele. E por isso, so ou doente, sofreu tantas e to grandes penas
que todos os frades que o souberam, como ns que vivemos com ele at o
dia de sua morte, todas as vezes que leram ou recordaram tais coisas, no
puderam conter as lgrimas; e suportaram com maior pacincia e alegria
todas as tribulaes e necessidades.
Assim, de manh bem cedo, o bem-aventurado Francisco desceu da torre
e dirigiu-se ao senhor cardeal, narrando-lhe tudo o que lhe acontecera e o
que conversara com seu companheiro. E disse-lhe tambm: Os homens
julgam-me um homem santo e eis que os demnios me expulsaram do crce-
re! E o senhor cardeal alegrou-se muito com ele. Todavia, conhecendo-o e
venerando-o como santo, no quis opor-se a ele, depois que no quis ficar l.
E assim, despedindo-se, o bem-aventurado Francisco voltou ao eremit
rio de Fonte Colombo, perto de Rieti 39.

A cotovia no estava morta; apesar do frio e do vento, ela alou vo


alegremente para o vale de Rieti 40.
Era a metade de dezembro. Um ardente desejo de celebrar ao natural
as recordaes do Natal tinha tomado conta de Francisco. Abriu-se com

39
EP 67; 2Cel. 3, 61; Bon. 84 e 85. Toda essa tentao principalmente uma transposio de cuidados
que logo depois da aprovao da Regra apoquentaram a alma de So Francisco.
40
No h dvida de que aqui se situa o fato contado pelo EP 94 (Rd. Lemmens 22) que d a localizao)
e 2Cel. 3, 39: So Francisco, voltando de Roma e molhado pela chuva, desce do cavalo e reza as horas
embaixo da tempestade. Cf. Eccl. 6,31.

365
um de seus amigos, o cavaleiro Joo de Grcio, que se encarregou de
preparar o necessrio.
Imitar Jesus sempre foi o prprio centro da vida crist; mas preciso
ser singularmente espiritualista para poder se contentar com a imitao
interior. Para a maior parte das pessoas ela tem que ser precedida e sus-
tentada pela imitao exterior. verdade que o esprito que vivifica;
mas s no pas dos anjos que se pode dizer que a carne no aproveita
para nada.

Para a Idade Mdia, uma festa religiosa era antes de tudo uma re-
presentao, mais ou menos fiel, do fato que se estava recordando: essa
a razo dos santons da Provena, das procisses do Palmesel, dos
cenculos da Quinta-Feira Santa, das via-sacras da Sexta-Feira Santa,
do drama da Ressurreio no dia de Pscoa e das estopas queimadas no
dia de Pentecostes.

Francisco era muito italiano para no gostar dessas festas em que tudo
que vemos fala de Deus e de seu amor.
Foram, ento, convocados os povoados ao redor de Grcio e tambm
os frades dos lugares vizinhos. Na tarde da viglia de Natal, viram-se em
todos os caminhos fiis que se apressavam para ir ao eremitrio, com
tochas na mo e fazendo ecoar os bosques com seus alegres cnticos.
Todos estavam em festa, e Francisco mais do que ningum. O cavaleiro
tinha preparado um prespio com palha e levado um boi e um asno que
pareciam aquecer com seu hlito o pobre bambino a tremer de frio. Ao
ver isso, o santo sentiu que lgrimas de piedade inundavam seu rosto:
ela no estava mais em Grcio, seu corao estava em Belm.

Afinal, comearam a cantar Matinas. Depois comeou a missa em que


Francisco, como dicono, leu o Evangelho. A simples leitura da legenda
sagrada, feita por uma voz to doce e ardente, j tocava os coraes mas,
quando ele pregou, sua emoo ganhou bem depressa o auditrio;sua
voz tinha uma ternura to indescritvel que os assistentes esqueciam tudo
para reviver os sentimentos dos pastores da Judia que foram outrora

366
adorar o Deus feito homem, nascendo em um estbulo 41.
No final do sculo XIII, o autor do Stabat Mater dolorosa, Jacopone
de Todi, esse franciscano genial que passou no calabouo uma parte de
sua vida, comps, inspirado pela lembrana de Grcio, um outro Stabat, o
da alegria, Stabat Mater speciosa. Esse hino de Maria junto manjedoura
no menos bonito do que o de Maria ao p da cruz. O sentimento
ainda mais ntimo e no podemos explicar como ficou esquecido, a no
ser por um capricho injusto do destino.

Stabat Mater speciosa


Juxta foenum gaudiosa,
Dum jacebat parvulus.
Quae gaudebat et ridebat
Exsultabat cum videbat
Nati partum inclyti.
Fac me vere congaudere,
Jesulino cohaerere
Donec ego vixero 42.

Estava a Me to bonita
Junto ao feno toda feliz,
em que se deitava o menino.
Ela ria e se alegrava
Exultava s de ver
o nascimento do nclito Filho.
Fazei com que eu me alegre de verdade
me junte ao Jesuzinho
Enquanto eu viver.

41
1Cel. 84-87; LM 149.
42
Este pequeno poema foi publicado integralmente por Ozanan no t. V de suas obras, p. 184. M. Annibale
Tenneroni, p. 49 ss, apresenta um texto mais completo em seu belo estudo sobre o Stabat Mater. Todi,1887
in-8, 96 p. p. 49 ss. Ver Thode, Franz v. Assisi, p. 413. M. Arduino Colasanti (Domenica italiana, 27 de
dezembro de 1896) me critica por no saber que l existiria uma falsificao do sculo XV.

367
368
18

OS ESTIGMAS
(1224)

369
XVIII

Timor et tremor venerunt super me,


et contexerunt me tenebrae,
Et dixi: Quis dabit mihi pennas sicut columbae,
et volabo et requiescam?
Ecce elongavi fugiens
et mansi in solitudine,
Exspectabam eum qui salvum me fecit
a pusillanimitate spiritus et tempestate 1.
Jesus dixit discipulis suis: Si quis vult post me venire, abneget semetipsum,
et tollat crucem suam et sequatur me 2.
Ad cognoscendum illum et virtutem resurrectionis ejus, et societatem pas-
sionum illius configuratus morti ejus; si quo modo occurrat ad resurrec-
tionem quae est ex mortuis 3.
Videns autem Andreas a longe crucem, salutavit eam dicens: Salve, crux,
quae in corpore Christi dedicata es et ex membris ejus tamquam margari-
tis ornata. Antequam in te ascenderet Dominus, timorem terrenum habuis-
ti; modo vero amorem caelestem obtinens, pro voto susciperis. Securus
igitur et gaudens venio ad te, ut tu, exsultans, suscipias me discipulum
ejus qui pependit in te; quia amator tuus semper fui et desideravi amplecti
te. O bona crux... accipe me ab hominibus et redde me magistro meo, ut
per te me accipiat, qui per te me redemit 4.
Ego si patibulum crucis expavescerem, crucis gloriam non praedicarem 5.
Christo confixus sum cruci. Vivo autem, jam non ego, vivit vero in me Chris-
tus 6.
Mihi autem absit gloriari nisi in cruce Domini nostri Jesu Christi, per quem
mihi mundus crucifixus est, et ego mundo! In Christo enim Jesu, neque
circumcisio aliquid valet, neque praeputium, sed nova creatura. Et quicu-
mque hanc regulam secuti fuerint, pax super illos et misericordia, et super
Israel Dei. De cetero nemo mihi molestus sit; ego enim stigmata Domini
Jesu in corpore meo porto 7.

1
Sl 54, 6-9.
2
Mt 16, 24. 5
Ibid.
3
Fl 3, 10 s. 6
Gl 2, 19-20.
4
Legenda de Santo Andr. 7
Gl 6, 14-17.

370
XVIII

Temor e tremor caram sobre mim,


E as trevas me envolveram.
Eu disse: Quem me dar asas como as da pomba,
E eu vou voar e descansar?
Eu me afastei fugindo,
E fiquei na solido:
Eu esperava aquele que me salvou
Da minha covardia espiritual e da tempestade 8.
Jesus disse a seus discpulos: Se algum quer ser meu discpulo,
renuncie a si mesmo, tome sua cruz e me siga 9.
Para conhece-lo e conhecer a virtude de sua ressurreio, associado aos
sofrimentos de sua morte, conformando-me com ele em sua morte, para
chegar, se possvel, ressurreio dos mortos 10.
Quando Andr avistou de longe a cruz, saudou-a dizendo: Salve cruz, que
foste consagrada no corpo de Cristo e ornada por seus membros como por
prolas. Antes que o Senhor subisse em ti, pudeste inspirar um temor hu-
mano; mas agora inspiras um amor celeste e fazes com que te desejemos.
Por isso eu chego a ti seguro e alegre, para que tu, exultando, recebas a
mim, discpulo daquele que em ti foi pendurado. Porque eu sempre te
amei te desejei abraar. boa cruz... recebe-me das mos dos homens e
e me entrega a meu mestre, para que por ti me receba Aquele que por mi
me remiu 11.
Se eu tivesse medo do patbulo da cruz, no proclamaria a glria da cruz 12.
Fui pregado na cruz com Cristo: j no sou eu que vivo, Cristo que vive em
mim 13.
Longe de mim gloriar-me a no ser da cruz de Nosso Senhor Jesus Cristo,
que por mim foi crucificado pelo mundo, e eu para o mundo, porque em
Cristo Jesus circunciso e incircunciso so nada; a nica coisa que im-
porta ser uma nova criatura. Paz e misericrdia para todos os que segui-
rem esta regra e para o Israel de Deus. Alm disso, que ningum mais me
crie dificuldades, porque eu carrego em meu corpo os estigmas de Nosso
Senhor Jesus 14.

8
Sl 54 (55), 6-9.
9
Mt 16, 24. 12
Ibid.
10
Fl, 3, 10 s. 13
Gl 2, 19-20.
11
Legenda de Santo Andr. 14
Gl 6,14-17.

371
O vale superior do Arno forma, bem no centro da Itlia, um pas
parte, o Casentino, que durante sculos teve vida prpria, mais ou menos
como uma ilha no meio do Oceano.

O rio sai do sul por um estreito desfiladeiro, e os Apeninoa cercam-no


de todos os lados por um cinturo de montanhas inacessveis 15.

Essa plancie, com umas dez lguas de dimetro, alegrada por


bonitas vilas, bem plantadas sobre pequenos montes a cujos ps corre
o rio: a esto Bibbiena, Poppi, a antiga Romena cantada por Dante, as
Camldulas, e l em cima, sobre uma crista, Chiusi, antiga capital do
pas, com as runas do castelo do conde Orlando.

A populao amvel e educada: as montanhas mantiveram-nas ao


abrigo das guerras, e o que se percebe em toda parte so sintomas de
trabalho, de bem-estar e de uma doce alegria. Parece que a cada instante
estamos sendo transportados para algum vale do Vivarais ou da Pro-
vena. Nas margens do Arno a vegetao toda meridional: a oliveira e
a amoreira casam-se com as videiras. Nas primeiras encostas h campos
de trigo cortados por prados; depois vm as castanheiras e os carvalhos.
Mais acima esto o pinheiro, o abeto, o lario e, finalmente, a rocha nua.

15
As colinas que levam ao Casentino esto todas a uns mil metros de altitude. At os ltimos anos no
havia nenhuma estrada propriamente dita.

372
No meio de todos esses cumes h um que chama especialmente a
ateno; em vez de ter uma cabeceira redonda e como amassada, ergue-
se esbelto, orgulhoso, isolado: o Alverne 16.
Parece uma pedra enorme cada do cu; na realidade um bloco er-
rtico, ancorado ali como uma arca de No petrificada no pico do monte
Ararat. A massa basltica, talhada a pique por todos os lados, tem em
cima uma plataforma plantada com pinhos e faias gigantes, acessvel s
por um caminho 17.
Essa era a solido que Orlando tinha dado a Francisco, onde ele j
viera pedir muitas vezes o repouso e o recolhimento.
Assentado sobre as poucas pedras da Penna 18, ele j no ouvia mais
que o farfalhar do vento nas rvores; mas nos esplendores da aurora e
do poente ele podia enxergar a maior parte das regies sobre as quais
lanara a semente do Evangelho: a Romanha e a Marca de Ancona, que
se perdem no horizonte nas ondas do Adritico, a mbria e mais ao longe
a Toscana, que desaparecem nas do Mediterrneo.
L em cima a impresso no esmagadora como a que se tem nos
Alpes: alguma coisa infinitamente doce e calmante invade a gente;
estamos muito alto para julgar os homens, mas no o suficiente para
esquecer sua existncia.
Alm dos grandes horizontes, Francisco tinha ali outros motivos de
encantamento: nessa floresta, uma das mais belas da Europa, vivem
legions de pssaros que, como nunca foram caados, so de espantosa
familiaridade 19. Suaves aromas sobem do solo, onde no meio de borra-
gens e lquens, desabrocham em nmero fantstico deliciosas e frgeis
ciclamens.

16
Na Frana, o monte Aiguille, uma das sete maravilhas do Delfinado, apresenta o mesmo as-
pecto e a mesma formao geolgica. Sainte-Odile tambm lembra o Alverne, mas bem menor.
17
O pico est a 1269 metres de altitude. Em italiano chama-se la Verna, em latim Alvernus. A
etimologia que que provocou a sagacidade dos sbios parece muito simples: o verbo vernare, usado
por Dante, significa fazer frio, gelar.
18
Nome do ponto mais elevado do massio. A trs quartos de hora do convento.
19
A floresta foi conservada como uma relquia. Alexandre IV fulminou a excomunho contra quem abatesse
os abetos do Alverne. Quanto aos pssaros, basta ter passado um dia no convento para se ter maravilhado
com seus nomes e variedades.

373
Ele quis voltar l depois do captulo de 1224. Essa reunio, feita no
comeo de junho, foi a ltima a que ele assistiu. Nela, a nova Regra foi
entregue aos ministros, e se decidiu abrir a misso da Inglaterra.
Foi nos primeiros dias de agosto que Francisco se encaminhou para
o Alverne. Levava consigo s alguns frades: Masseo, Rufino, ngelo e
Leo. O primeiro tinha sido encarregado de dirigir o pequeno grupo e de
evitar para ele qualquer outra preocupao alm da orao 20.
J estavam caminhando havia dois dias, quando foi preciso arranjar
um jumento para Francisco, muito enfraquecido para continuar o ca-
minho a p..
Quando foram pedir esse servio, os frades no esconderam o nome
de seu mestre, e o campons a quem se haviam dirigido achou que era
seu dever conduzir ele mesmo o animal. Depois de algum tempo de
caminhada, ele disse: verdade que voc o Frei Francisco de As-
sis?. E quando teve uma resposta afirmativa acrescentou: Pois bem!
Trate de ser to bom quanto as pessoas dizem, para que eles no sejam
enganados no que esperam. um conselho que eu lhe dou. Francisco
desceu imediatamente da montaria e, prostrando-se na frente dele, agra-
deceu efusivamente 21.
Chegaram, ento, as horas mais quentes do dia. O campons, exte-
nuado, foi esquecendo pouco a pouco a surpresa e a alegria: no porque
se caminha ao lado de um santo que incomodam menos os ardores da
sede. Ele comeava a lamentar sua obrigao quando Francisco lhe
apontou uma fonte desconhecida at ento, e que posteriormente nin-
gum mais viu 22.

20
1Cel. 91; Bon. 188; Fior. 1 consid.; Spec. Vitae 92 a - 96 a.
Podemos supr que foi para sua ltima quaresma no Alverne que ele escreveu o regulamento
De religiosa habitatione in eremitoriis. Esse regulamento fala ao mesmo tempo de sua necessidade
de solido e de necessidade de afeto.
21
Add. do M. de Marseille 2Cel. 3, 80, An. Boll. XVIII p. 104 n. 4 ; ed. P. Edouard dAlenon, n
103, 142. Ver tambm P. Lemmens, Doc. ant. fr. pars. II, p. 16, n 3.Fior. I consid.; Conform. 176 b. 1.
Aceitei esse romance feito com toda confiana na redao da 1a ed., ainda que ele no no tivesse
nesse tempo o favor de nenhum dos bigrafos cannicos. A publicao do Tratado dos Milagres de
Toms de Celano prova que o faro exegtico no me havia enganado.
22
2Cel. 2, 15; 2Cel. Mil. 15; An. Boll. XVIII p. 121; LM 100; Fior. I consid.

374
Finalmente, chegaram ao p da ltima encosta. Antes de a escalar,
eles pararam para descansar um pouco embaixo de um grande carvalho,
e logo bandos de pssaros acorreram para testemunhar sua alegria com
seus cantos e bater de asas. Voavam ao redor de Francisco, pousavam
em sua cabea, em seus ombros ou em seus braos. Ele disse todo feliz a
seus companheiros: Estou vendo que do agrado de nosso Senhor Jesus
Cristo que ns moremos neste monte solitrio, porque nossos irmos e
irms aves manifestaram tanta alegria pela nossa vinda 23.
Essa montanha foi ao mesmo tempo o seu Tabor e o seu Calvrio; por
isso no devemos estranhar que as legendas tenham florido aqui, ainda
mais numerosas do que por todas as pocas de sua vida; a maior parte
delas tem o encanto especial das florinhas rosadas e odorosas pudicamente
ocultas aos ps dos abetos do Alverne.
L em cima as tardes de vero tm uma beleza sem par; a natureza,
como se estivesse sufocada pelos ardores do sol, parece respirar de novo.
Nas rvores, por trs dos rochedos, sobre a relva, despertam mil vozes
que se harmonizam docemente com o murmrio dos grandes bosques,
mas no meio de todas essas vozes nenhuma se impe ou fora a ateno,
uma melodia, que se goza sem entender. A gente deixa o olhar errar pelo
horizonte que o astro desaparecido ilumina, durante longas horas, com
tintas hierticas, e os picos dos Apeninos, todos irisados de luz, fazem
descer na alma aquilo que o poeta franciscano chamou de saudades das
colinas eternas 24.
Francisco sentia isso mais do que ningum. Desde a tarde de sua
chegada, sentado sobre um outeiro, no meio de seus frades, ele fez suas
recomendaes para a estadia.
O recolhimento da natureza teria bastado para lanar germes de tris-
teza nos coraes, e a voz do mestre estava em harmonia com a emoo
dos ltimos clares do dia: ele lhes falou sobre sua morte prxima, com
aquelas queixas do trabalhador surpeendido pelas sombras da tarde antes

23
LM 118; Actus 9; Fior. 1 consid.
24
1Cel. 100. (Cf. Gon. 40,26.)

375
de acabar seu servio, com aqueles suspiros do pai que teme pelo futuro
de seus filhos 25.
Ele mesmo, o que queria era preparar-se agora para a morte pela orao
e pela contemplao; pediu-lhes ento que o preservassem absolutamente
dos importunos. Orlando 26 que j tinha ido visit-los para lhes dar as
boas-vindas e lhes oferecer seus servios, tinha, a pedido dele, mandado
construir s pressas uma choa de galhos ao p de uma grande faia. Era
l que ele queria ficar, distncia de uma pedrada das celas habitadas
por seus companheiros. Frei Leo tinha sido encarregado de lhe levar
cada dia o que ele precisasse.
Depois dessa conversa memorvel, ele se retirou imediatamente, mas,
alguns dias mais tarde, incomodado certamente pela piedosa curiosidade
dos frades que espiavam todos os seus movimentos, penetrou mais longe
no bosque, e a comeou, no dia da Assuno, a quaresma que queria
celebrar em honra do arcanjo So Miguel e da milcia celeste.
O gnio tem seu pudor, como o amor. O poeta, o artista, o santo, tm
necessidade de estar sozinhos quando o Esprito vem agit-los. Todo
esforo de pensamento, de imaginao ou de vontade uma orao: no
se ora em pblico 27.
Infeliz o homem que no tem, no fundo do corao, alguns desses
segredos que no se contam, porque no d para cont-los e porque, di-
ramos, no d para entend-los. Secretum meum mihi! 28. Jesus tambm
sentiu isso: os arrebatamentos do Tabor foram curtos; no deviam ser
contados.
Diante desses mistrios da alma, os materislistas e os devotos se en-
contram muitas vezes, e concordam em reclamar da preciso nas coisas
que menos podem t-la.

25
Fior. II consid.
26
As ruinas do castelo de Chiusi esto bem perto do Alverne.
27
Semper aliquid objiciebat astantibus ne sponsi tactum cognoscerent. 2Cel. 3, 38.
28
possvel que a Admoestao 27, que parece separar-se das outras, (ver LTC Marcellino, cap. XLVI,
onde se encontram as Admoestaes 14 a 27) seja uma glosa dos sentimentos de Francisco nesse momento.

376
O devoto pergunta em que ponto do Alverne Francisco recebeu os
estigmas; se o serafim que lhe apareceu era Jesus ou um esprito celeste; o
que lhe disse quando os marcou 29, e no compreende absolutamente essa
hora em que Francisco ficou pasmo de dor e de amor, como o materialista
que pede para ver com seus olhos e tocar com suas mos a chaga aberta.
Vamos evitar esses excessos. Escutemos o que os documentos nos do,
e no vamos procurar absolutamente fazer-lhes violncia para arrancar
o que eles no contam, o que no podem contar.
Eles nos mostram Francisco atormentado pelo futuro da Ordem e por
uma imensa necessidade de fazer de novos progressos espirituais.
Ele estava devorado pela febre dos santos, essa necessidade de imo-
lao que arrancou de Santa Teresa o grito apaixonado: ou sofrer, ou
morrer! Ele se censurava amargamente por no ter sido considerado
digno do martrio e no ter podido se dar quele que se deu por ns.
Estamos diante de um dos elementos mais poderosos e mais mis-
teriosos da vida crist. Podemos no o entender, mas no por isso
que vamos neg-lo. Ele a raiz do verdadeiro misticismo 30. A grande
novidade trazida por Jesus ao mundo foi que, sentindo-se em perfeita
unio com o Pai celeste, ele convidou todos os homens a se unirem a
ele, e por ele a Deus: Eu sou o tronco e vs sois os ramos: aquele que
permanece em mim, e eu nele, produz muitos frutos, porque fora de mim
no podeis fazer nada.
Cristo no se limitou a pregar essa unio. Fez com que ela fosse sen-
tida. Na tarde do seu ltimo dia ele a instituiu como sacramento, e talvez
no h nenhuma seita que negue que a comunho ao mesmo tempo o

29
Fior. IV e V consid. Essas duas consideraes parecem o resultado de um remanejamento feito sobre um
documento primitivo. Esse documento compreendia sem dvida as trs primeiras, que o continuador pode
ter interpolado e alongado. Cf. Conform. 231 a I. Spec. Vitae 91 b, 92 a, 97; A. SS., p. 860 ss.
30
Habitualmente entendem-se como misticismo todas as tendncias, s vezes pouco crists, que fazem
predominar na vida religiosa os elementos vagos, poticos, os impulsos do corao. No deveriam ser
chamados de msticos a no ser os cristos para quem as relaes imediatas com Jesus formam o fundo de
sua vida religiosa. Nesse sentido, So Paulo (cujo sistema teolgico-filosfico um dos mais poderosos
esforos do esprito humano para explicar o pecado e a redeno) ao mesmo tempo o prncipe dos msticos.

377
smbolo, o princpio e o fim da vida religiosa. Depois de dezoito sculos,
os cristos, opostos em todo o resto, no podem deixar de olhar todos
para aquele que, na sala de cima, instituiu o rito dos tempos novos: Na
vspera de sua morte, ele tomou o po, partiu-o e o distribuiu dizendo:
Tomai e comei, porque isto o meu corpo..
Jesus, apresentando a unio com ele como o fundamento da vida
nova, 31, teve o cuidado e deixar claro para seus irmos que essa unio
era antes de tudo a participao em seus trabalhos, em suas lutas e em
seus sofrimentos: Quem quiser ser meu discpulo, carregue sua cruz e
me siga.
So Paulo entrou to bem nesse aspecto do pensamento do mestre
que chegou a dar, alguns anos depois, aquele grito de um misticismo
que jamais foi atingido: Eu estou crucificado com Cristo e eu vivo... ou
melhor, no sou eu que vive, Cristo que vive em mim. Essa expresso
no nele uma exclamao isolada, o prprio cerne de sua conscin-
cia religiosa, e ele chegaria a dizer, arriscando-se a escandalizar muitos
cristos: Eu completo em minha carne o que falta nos sofrimentos de
Cristo para seu corpo, que a Igreja.
Creio que no intil entrar nesses detalhes para mostrar at que ponto
Francisco, durante os ltimos anos de sua vida, em que renovou em seu
corpo a paixo de Cristo, se une tradio apostlica.
Na solido do Alverne, como outrora em So Damio, Jesus se apre-
sentou a ele na figura de crucificado, de um homem de dores.32.
No nos deve supreender o fato de essas efuses terem sido apresen-
tadas de uma forma potica e no exata. O contrrio que nos deveria
deixar admirados. No paroxismo do amor divino h coisas inefveis que
no podemos contar ou fazer compreender: com dificuldade podemos
record-las.

31
Ele no quis instituir uma religio porque sentia o vazio das observncias e dos dogmas. (Os
apstolos continuaram a frequentar o templo judeu: Atos 2,46; 3,1; 5 25; 21, 26). Ele queria inocular
no mundo uma vida nova.
32
EP. 37; 91; 92; 93; 2Cel. 3,29. Cf. 1Cel.115; LTC 13 e 14; 2Cel.1, 6; 2Cel. 3,123; 131; Bon. 57; 124;
203; 204; 224; 225; 309; 310 e 311. Conform. 229 b ss.

378
No Alverne, Francisco estava ainda mais absorvido que de costume por
seu ardente desejo de sofrer por Jesus e com ele. Seus dias iam passando,
entre exerccios de piedade no humilde santurio construdo na montanha
e a meditao no meio das florestas. Chegava at a esquecer a igreja,
ficando sozinho vrios dias, em algum buraco dos rochedos, repassando
em seu corao as recordaes do Glgota. Outras vezes, ficava longas
horas ao p do altar, lendo e relendo o Evangelho e suplicando a Deus
que lhe mostrasse o caminho que devia seguir 33.

O livro era aberto quase sempre na narrativa da Paixo, e essa simples


coincidncia alis bem explicvel, bastava para perturb-lo.

A viso do Crucificado se apoderava cada vez melhor de todas as


suas faculdades porque estava prxima a Exaltao da Santa Cruz (14
de setembro), festa atualmente relegada a um segundo plano, mas ce-
lebrada no sculo XIII com um ardor e um zelo bem naturais para uma
solenidade que poderia ser qualificada como festa patronal da cruzada 34.

Francisco redobrava seus jejuns e oraes, todo transformado em


Jesus pelo amor e pela compaixo, diz uma de suas legendas. Na noite
que precedeu a festa, ficou sozinho, em orao, no longe do eremitrio.

Quando chegou a manh, teve uma viso. Nos quentes raios do sol
nascente que, depois do frio da noite, vinha reanimar seu corpo, perce-
beu de repente uma forma estranha. Um serafim, de asas abertas, voava
para ele dos confins do horizonte, inundando-o de um gozo indizvel.
No centro da viso aparecia uma cruz, e o serafim estava pregado nela.

Quando a viso desapareceu, ele as delcias do primeiro momento


misturando-se com dores agudas. Transtornado at o mais profundo de

33
1Cel. 91-94; Bon. 189 e 190.
34
Sobre a festa da Exaltao, ver Beleth, Explicatio divino offic., cap.151 em Durand, Rationale, ed.
Veneza, 1568, fo 369.

379
seu ser, buscava ansiosamente o sentido de tudo aquilo, quando percebeu
sobre seu corpo os estigmas do Crucificado 35.

35
Ver as anotaes de Frei Leo no autgrafo de So Francisco (Crtica das fontes c. I) e 1Cel. 94 e 95;
Bon. 191, 192, 193 (LTC 69, 70). Fior. III consid. Cf. Auct. vit. sec.: A. SS., p. 649. Devemos observar que
Frei Elias (Crtica das fontes c. 11 I), Toms de Celano (1Cel. 95), como tambm todos os documentos
primitivos, descrevem os estigmas como excrescncias carnosas, lembrando pela forma e pela cor, os cra-
vos onde foram furados os membros de Jesus. Ningum fala dessas feridas abertas e sangrentas que foram
imaginadas mais tarde. S a chaga do lado era uma ferida de onde saa um pouco de sangue. Enfim Toms
de Celano diz que depois da viso serfica comearam a aparecer, coeperunt apparere signa clavorum.
Para o testemunho de Frei Leo, ver, alm do autgrafo, Salimbene ad. ann.1244; Eccl. XIII, 55; Spec. Vitae
232a. Hubertino de Casale disse de maneira excelente no Arbor V, IV (217 b 2): Sequitur multum corpus
animam in actionibus suis. Et idcirco continua imaginatio Christi passionis quae a principio fuit in corde
Francisci fuit magna dispositio ut ad hanc realitatem veniret etc.

380
19

O CNTICO DO SOL
(Outono de 1224 outono de 1225)

381
XIX
Angelus autem Domini descendit cum Azaria et sociis ejus in fornacem; et
excussit flammas ignis de fornace, et fecit medium fornacis quasi ventum
roris flantem; et non tetigit eos omnino ignis, neque contristavit, nec quid-
quam molestiae intulit. Tunc hi tres quasi ex uno ore laudabant et glorifi-
cabant et benedicebant Dominum in fornace, dicentes:
Benedictus es, Domine, Deus patrum nostrorum;
et laudabilis, et gloriosus, et superexaltus in saecula...
Benedicite, sol et luna, Domino;
laudate et superexaltate eum in srecula...
Benedicite, ignis et aestus, Domino;
laudate et superexaltate eum in saecula...
Benedicite, universa germinantia in terra, Domino;
laudate et superexaltate eum in saecula...
Benedicite, sancti et humiles corde, Domino...
quia eruit nos de inferno
et salvos fecit de manu mortis,
et liberavit nos de medio ardentis flammae
et de medio ignis eruit nos 1.
Sicut abundant passiones Christi in nobis, ita et per Christum abundat conso-
latio nostra 2.
Exspectatio naturae revelationem filiorum Dei exspectat. Vanitati enim crea-
tura subjecta est non volens, sed propter eum qui subjecit eam in spe;
quia et ipsa creatura liberabitur a servitute corruptionis in libertatem glo-
riae filiorum Dei. Scimus enim quod omnis creatura ingemiscit et parturit
usque adhuc. Non solum autem illa, sed et nos ipsi primitias spiritus ha-
bentes, et ipsi intra nos gemimus, adoptionem filiorum Dei exspectantes,
redemptionem corporis nostri 3.
Et omnem creaturam quae in caelo est, et super terram, et sub terra, et quae
sunt in mari et quae in eo, omnes audivi dicentes: Sedenti in throno et
Agno, benedictio, et honor, et gloria, et potestas in saecula saeculorum 4.

1
Dn 3, 49-88.
2
2Cor 1-5.
3
Rm 8, 19-23.
4
Ap 5,13.

382
XIX
Mas o anjo do Senhor desceu fornalha com Azarias e seus companheiros;
afastou da fornalha as chamas de fogo e fez soprar no meio da fornalha
um vento refrescante. O fogo no os atingiu, no os feriu nem fez mal al-
gum. Ento, todos os trs, a uma s voz, puseram-se a louvar, a glorificar
e a bendizer a Deus na fornalha, dizendo:
Bendito sejais, Senhor, Deus de nossos pais,
Vs sois digno de ser louvado, glorificado, exaltado em todos os scu-
los...
Bendizei ao Senhor, sol e lua,
Louvai-O, exaltai-O em todos os sculos...
Bendizei ao Senhor, fogo e calor,
Louvai-O, exaltai-O em todos os sculos...
Bendizei ao Senhor, vs todas as plantas que brotais sobre a terra,
Louvai-O, exaltai-O em todos os sculos...
Bendizei o Senhor, santos e humildes de corao...
Porque Ele nos tirou do abismo, e nos arrancou das mos da morte,
Ele nos livrou das chamas ardentes
E tirou do meio do fogo 5.
Como so abundantes os sofrimentos de Cristo em ns,
assim, por Cristo, abundante a nossa consolao 6.
Toda a natureza est espera: ela espera a revelao dos filhos de Deus,
porque a criao foi submetida vaidade, no por seu gosto mas pela
vontade daquele que a submeteu, nele deixando esperar que ela tambm
vai ser libertada da servido da corrupo para participar da gloriosa li-
berdade dos filhos de Deus. De fato, ns sabemos que toda a criao no
pra de gemer e de dar luz at hoje. E no apenas ela, mas tambm ns
que recebemos as primcias do Esprito gememos, na certeza de ser ado-
tados como filhos de Deus e na espera da redeno de nosso corpo 7.
E todas as criaturas que esto no cu, sobre a terra e embaixo da terra, no
mar e tudo que nele est eu as ouvi dizer: quele que est assentado no
trono e ao Cordeiro sejam dadas bno, honra, glria e poder pelos scu-
los dos sculos 8.

5
Dn 3, 49-88.
6
2Cor 1, 5.
7
Rm 8, 19-23.
8
Ap 5,13.

383
No dia seguinte a So Miguel (30 de setembro de 1224), Francisco
deixou o Alverne para voltar Porcincula. Estava cansado demais para
pensar em fazer o trajeto a p, e o Conde Orlando tinha posto um cavalo
sua disposio. Imagine-se a emoo do Estigmatizado dizendo adeus
montanha sobre a qual se passara o drama e amor e de dor que havia
consumado a unio de seu ser inteiro ao Crucificado.
Amor, amor, Jesu desideroso,
Amor voglio morir te abracciando,
Amor, amor Jesu dolce mio sposo,
Amor, amor, la morte tadimando,
Amor, amor, Jesu si delettoso
Tu me tarendi in te me transformando,
Pensa che io vo pasmando.
Non so Amor mi sia
Jesu speranza mia
Abissami en amore 9.
Assim cantava Jacopone de Todi na exaltao dos mesmos ardores.
Se devemos acreditar em um documento que acaba de ser publicado,
Frei Masseo, um dos que ficaram no Alverne, teria entregado por escrito
as recordaes daquele dia 10.

9
Trigsima stima e ltima estrofe do cntico Amor di caritate, Edio Tresatti, p. 840.
10
Pelo Padre Amani, em seguida a sua edio dos Fioretti, Roma, 1 vol. in-12, 1889, p. 309-392: No pode-
mos deixar de lamentar, mais uma vez, o silncio desse autor sobre o manuscrito de onde tirou essas pginas
encantadoras. Certas indicaes parecem satisfazer-se com o que o autor tinha escrito antes da segunda metade

384
Puseram-se a caminho bem cedo. Francisco, depois de ter feito suas
recomendaes aos frades, tivera um olhar e uma palavra para tudo e
para todos: para as rochas, as flores, as rvores, para Frei falco, um
privilegiado que sempre teve autorizao para entrar em sua cela e que,
cada manh, tinha vindo, desde os primeiros albores da aurora, lembr-
lo da hora do ofcio 11.
Depois o grupinho tomou o caminho de La Foresta. Chegando ao
alto de onde se pode lanar um ltimo olhar para o Alverne, Francisco
desceu da montaria e, ajoelhando-se no cho, voltado para ele, disse:
Adeus montanha de Deus, montanha santa, mons coagulatus, mons
pinguis, mons in quo bene placitum est Deo habitare; adeus, monte
Alverne, que Deus Pai, Filho e Esprito Santo te abenoe, Fica em paz,
nunca mais nos veremos.
Essa cena, to simples, no tem uma doura deliciosa e pungente?
Essas palavras em que o italiano, de repente, j no serve para Francisco,
e onde ele obrigado a recorrer linguagem mstica do brevirio para
expressar seus sentimentos devem ter sido verdadeiramente pronunciadas
por ele 12.

do sculo XIII. Por outra parte, no vemos nenhuma inteno que pudesse ter sido de um falsrio. Uma
pea apcrifa se descobre sempre por alguma tese interessada, mas aqui a narrativa de uma simplicidade
infantil. Cf. Antonio dOrvieto, Cronologia, p. 40; Compendio storico religioso del s. Monte della Verna, p.
56 s. Coll., t. I, p. 302-308. - Miscellanea fr. t. VIII, p. 75-77. P. Saturnino Mencherini da Caprese OFM. La
benedizione di San Francesco al Monte della Vcrna, e do mesmo, Laddio di San Francesco alla Verna Prato
(1901) e Guida della Verna, 2a ed. Quaracchi (1907), p. 372-37.5. Autenticidade atacada por S. Minocchi,
Studi religiosi, t. I (1901), Laddio di San Francesco alla Verna secundo frate Masseo. Declarado apcrifo
pelo Pe. Saturnino AFH t. 18 (1925), Codice diplomatico della Verna, n 4.
11
2Cel. 3, 104; LM 119: Fior. II consid.
12
Part san Francesco per Monte Acuto prendendo la via di Monte Arcoppe e del Foresto. O nome Monte
Acuto muito frequente na Toscana e na mbria e nessas regies mal deve haver algum recanto que no
tenha um pico com esse nome. Cene, de que se fala aqui, est a trs horas e meia de caminhada a oeste de
Borgo San Sepolcro. Dessa ltima cidade podemos ter uma viso de conjunto do caminho seguido por So
Franncisco ao voltar do Alverne. Enxerga-se todo o fundo do vale do Tibre, ocupado pela sombria massa
do Alverne; esquerda o Monte Arcoppe e La Foresta completamente despidos. Destacando-se l em cima
a capela da Casena sombra de trs ou quatro rvores; depois os Alpes de Catenaja que, com seus grandes
bosques de carvalhos e castanheiras, suas ricas e bonitas vilas, formam com os desertos recentes o mais
pefeiro e mais brusco contraste. Quase todos esses lugarejos conservaram a recordao de So Francisco.
Cenzano, por exemplo, onde ele se afastou um pouco do caminho para subir a um lugar alto e contemplar
longamente todo o panorama do vale superior do Tibre; San Paolo, onde ele ajudou uns pedreiros que no
sabiam como colocar a arquitrave da porta de uma igreja em construo.

385
Alguns minutos depois, o rochedo do xtase tinha desaparecido. A
descida para o vale feita rapidamente. Os frades tinham resolvido pas-
sar a noite em Monte Acuto, tambm chamado Montauto, onde morava
o conde Alberto Borlani, que So Francisco tinha recebido na Ordem
Terceira, e a quem deixou a tnica como lembrana.
No outro dia, puseram-se outra vez a caminho para Monte Casale, o
pequeno eremitrio acima de Borgo San Sepolcro. Todos, mesmo os que
deviam ficar no Alverne, ainda companhavam o mestre. Quanto a ele,
absorto pelo sonho interior, tornara-se estranho ao que se passava, e no
se dava conta nem do entusiasmo barulhento excitado por sua passagem
pelas vilas j numerosas nas cercanias do Tibre.
Em Borgo San Sepolcro, fizeram-lhe uma verdadeira ovao, que
ele voltasse a si; depois, quando estavam bem longe do lugar, como se
tivesse acordado ele perguntou a seu companheiro se iam chegar logo 13.
A primeira tarde passada em Monte Casale foi marcada por um
milagre. Francisco curou um frade possesso 14. Na manh do dia seguinte,
tendo decidido passar alguns dias naquele eremitrio, mandou de volta
os frades do Alverne e o cavalo do conde Orlando.
Em uma das vilas que tinham atravessado na vspera, uma mulher
estava havia vrios dias entre a vida e a morte, porque no conseguia dar
luz o seu menino. Os que a cercavam tinham tomado conhecimento
da passagem do Santo quando j estava bastante longe para correr atrs
dele. Podemos imaginar a alegria daquelss pobres quando correu o boato
de que ele ia passar outra vez. Foram ao seu encontro e e ficaram terri-
velmente decepcionados quando s encontraram os frades. De repente,
tiveram uma idia: pegaram a rdea do cavalo, santificada pelo contacto

Todas essas tradies me parecem autnticas, porque se tivessem sido imaginadas posterior-
mente ns as encontraramos ligadas a localidades do vale, aos lados da grande e antiga estrada
que vai de Borgo San Sepolcro ao Alverne e Bibbiena pela Pieve San Stefano. Ora, desse lado no
absolutamente nenhuma lembrana franciscana.
13
2Cel 3, 41; Bon.141; Fior. IV consid.
14
1Cel 68; Fior. IV consid.

386
das mos de Francisco e a levaram infeliz que, colocando-a sobre seu
corpo, deu luz imediatamente, sem nada sofrer 15.
Esse milagre, estabelecido por relatos seguramente autorizados, mos-
tra bem o grau de entusiasmo a que o povo tinha chegado pela pessoa
de Francisco.
Depois de alguns dias passados em Monte Casale, ele partiu com Frei
Leo para Citt di Castello. Ali curou uma mulher atacada por assusta-
doras perturbaes nervosas, e ficou um ms pregando nessa cidade e
nos seus arredores.
Quando retomou a viagem, quase tinha chegado o inverno. Um cam-
pons lhe emprestou seu jumento, mas os caminhos estavam to dif-
ceis que de tarde foi impossvel chegar a algum alojamento. Os pobres
viajantes tiveram que passar a noite embaixo de um rochedo. O abrigo
era mais do que rudimentar, pois a neve, levada pelo vento, entrava l
dentro e gelava o infeliz campons, que proferia abominveis blasfmias
e amaqldioava Francisco. Mas ele falou to divertidamente que acabou
fazendo-o esquecer o frio e seu mau humor 16.
No dia seguinte, o Santo chegou Porcincula. Parece que ali s fez
uma curta apario e voltou a viajar quase imediatamente para ir evan-
gelizar no sul da mbria.
No h como pensar em segui-lo nessa misso. Frei Elias o acom-
panhava, e no lhe escondia mais suas inquietudes por sua vida, tanto
que o via extenuado 17.
Depois da volta da Sria (agosto de 1220) ele no tinha parado de se
enfraquecer, mas seu ardor redobrava a cada dia. Nada o detinha, nem
seus sofrimentos, nem os pedidos dos frades. Montado em um jumento,
ele percorria s vezes trs ou quatro vilarejos em um dia. Um trabalho

15
1Cel 63; 2Cel Mir. 108; Fior. IV consid.
16
LM 198 e 199. Fior. IV consid.
17
1Cel 109; 69; LM 208. Talvez tenhamos que ligar esse fato passagem em 2Ce. 3, 30. EP 29; Bon.
156 e 157.

387
to excessivo trouse uma enfermidade mais penosa ainda do que as
precedentes: ficou ameaado de perder a viso 18.
Nesse tempo, uma sedio havia obrigado Honrio III a sair de Roma
(fim de abril de 1225). Depois de algumas semanas passadas em Tvoli,
foi fixar-se em Rieti, onde deveria permanecer at o fim de 1226 19.
A chegada do papa tinha levado a essa cidade, com toda a corte pon-
tifcia, vrios mdicos renomados. Tambm o cardeal Hugolino, que
tinha seguido o pontfice, sabendo da doena de Francisco, chamou-o
para Rieti, para l cuidar dele. Mas, apesar da insistncia de Frei Elias,
Francisco hesitou muito em responder a esse convite 20. Achava que um
doente s tem uma coisa a fazer: colocar-se pura e simplesmente nas
mos do Pai celeste. Que significa o sofrimento para uma alma que se
fixou em Deus 21?
Mas Elias acabou convencendo-o, e a partida foi decidida. Mas, antes,
Francisco queria se despedir de Santa Clara e descansar um pouco junto
dela.
Ele ficou em So Damio por muito mais tempo do que tinha proje-
tado 22 (fim de julho comeo de setembro de 1225). Sua chegada ao
querido mosteiro tinha sido marcada por uma terrvel recrudescncia
de seus males. Durante quinze dias, sua cegueira foi to completa que
ele no percebia nem a luz. Os tratamentos que lhe fizeram no deram
nenhum resultado, porque ele passava muitas horas por dia chorando.
Lgrimas de penitncia, dizia ele, mas tambm de arrependimento 23.
Ah! Elas eram diferentes das lghrimas dos instantes de inspirao e de
emoo que corriam por seu rosto todo iluminado de alegria. Tinham-no
visto, nesses momentos, pegar dois pedaos de madeira e, fazendo-se
acompanhar por esse violino rstico improvisar em francs cnticos em
que derramava a plenitude de seu corao 24.
18
1Cel 97 e 98; 2Cel 3, 137; LM 205 e 206.
19
Ricardo de S. Germano, ano 1225. Cf. Potthast 7400 ss.
20
1Cel 98 e 99; EP 91; 2Cel 3,137; Fior. 19.
21
2Cel 3, 110; Regra de 1221, cap.10.
22
Ver, depois do Cntico do Sol, a indicao das fontes.
23
2Cel 3, 138.
24
O fato pareceu to original que os autores o sublinharam com um ut oculis vidimus, 2Cel. 3, 67; EP 93.

388
Mas essa irradiao de gnio e de esperana tinha desaparecido. Ra-
quel chora seus filhos e no quer ser consolada, porque eles no existem
mais. Nas lgrimas de Francisco havia esse mesmo quia non sunt por
seus filhos espirituais.
Entretanto, se h dores irremediveis, no h sofrimento que possa,
ao mesmo tempo, crescer ou se suavizar, quando suportado bem perto
de quem nos ama.
A esse respeito, seus companheiros no lhe podiam ser de grande
ajuda. As consolaes morais no so possveis seno entre iguais, ou
quando dois coraes esto unidos por uma paixo mstica to grande
que eles se compreendem e se confundem.
Ah! Se os frades soubessem tudo que eu sofro, dizia So Francisco
alguns dias antes da impresso dos estigmas, ficariam comovidos de
piedade e de compaixo!
Mas eles, vendo aquele que os tinha levado a ter a alegria como um
dever ficar cada dia mais triste e procurar se afastar, imaginavam que
ele estava atormentado por tentaes diablicas 25.
Clara advinhou o que no se podia expressar. Em So Damio, seu
amigo revia todo o passado: quantas lembranas revividas de uma s vez!
Aqui, a oliveira em que, brilhante cavaleiro, ele amarrava sua montaria;
l, o banco de pedra em que se sentava seu amigo, o padre da pobre
capela; mais adiante, o esconderijo em que se refugiara para escapar da
clera paterna, e principalmente o santurio com o crucifixo misterioso
da hora decisiva.
Ao reviver essas imagens de um longinquo radioso, Francisco exas-
perava mais ainda sua dor. Mas nem tudo falava de morte ou de arre-
pendimento. Clara estava l, to decidida, to ardorosa como nunca.
Transfigurada outrora pela adimirao, agora ela se transfogurava pela
compaixo.

25
Spec. Vitae, 123 a; 2Cel 3, 58.

389
Sentada aos ps daquele que ela amava mais do que possvel na terra,
ela sentia os ferimentos de sua alma e o desmoronamento de seu cora-
o. Depois disso, que importava que os soluos de Francisco tivessem
redobrado a ponto de torn-lo cego durante quinze dias! A pacificao
viria, a virgem consoladora haveria de lhe devolver a serenidade.

Logo de incio, ela o reteve e ps ela mesma mos obra: fez com
galhos uma grande cela no jardim do mosteiro, para que ele tivesse toda
liberdade de movimentos.

Como recusar uma hospitalidade to franciscana? Foi grande demais:


legies de camundongos e de ratos infestavam o lugar. De noite, eles iam
at o leito de Francisco com um ruido infernal, de modo que, no meio
de seus sofrimentos, ele no conseguia repousar nem um pouco. Mas
ele esquecia bem depressa tudo isso na companhia de sua amiga. Mais
uma vez, ela lhe passava f e coragem. Um raio de sol, dizia ele, basta
para dissipar muitas trevas!

Entretanto, o homem dos dias antigos se revelava nele e s vezes as


irms ouviam, misturado ao murmrio das oliveiras, o eco de cnticos
desconhecidos, que pareciam vir da cela de galhos.

Um dia, ele estava sentado mesa do mosteiro depois de uma longa


conversa com Clara. Mal tinham comeado a comer quando, de repente,
ele pareceu arrebatado em xtase.

Laudato sia lo Signore! Ele gritou quando voltou a si. Acabava de


compor o Cntico do sol 26.

26
Combinei a narrativa de Celano com a das Conformidades. Os detalhes dados por esse segundo docu-
mento me parecem absolutamente dignos de f. D para ver muito bem porque Celano os omitiu, e no daria
para explicar como eles teriam sido inventados tardiamente. 2Cel 3, 138; Conform. 42 b 2; 119 b 1 ; 184 b
2; 239 a 2; Spec. V itae 123 a ss ; 136 a b; Actus 21; Fior, 19. Ver tambm Ms. Magliabecchi, Conventoc.
9 287-8. Florence. Cf. EP 100.

390
TEXTO 27
INCIPIUNT LAUDES CREATURARUM
QUAS FECIT BEATUS FRANCISCUS AD LAUDEM ET HONOREM DEI
CUM ESSET INFIRMUS APUD SANCTUM DAMIANUM.

1. Altissimu, omnipotente, bon Signore,


tue sono le laude, la gloria elhonore et onne benedictione
Ad te solo, Altissimo, se konfano.
et nullu homo ene dignu te mentovare.
2. Laudato sie, Misignore, cum tucte le tue creature spetialmente mes-
sor lo frate sole
lo quale iorno et allumini noi per loi.
Et ellu ebellu eradiante cum grande splendore
de te, Altissimo, porta significatione.
3. Laudato si, Misignore, per sora luna ele stelle
in celu lai formate clarite et pretiose et belle.
4. Laudato si, Misignore, per frate vento
et per aere et nubilo et sereno et onne tempo,
per lo quale a le tue creature dai sustentamento.
5. Laudato si, Misignore, per sor aqua,
la quale e multo utile et humile et pretiosa et casta.
6. Laudato si, Misignore, per frate focu,
per loquale ennallumini la nocte
edello ebello et iocundo et robustoso et forte.
7. Laudato si, Misignore, per sora nostra matre terra
la quale ne sustenta et governa
et produce diversi fructi con coloriti flori et herba.

27
De acordo com o manuscrito 338 de Assis, fo 33 a-34 a. Para a transcrio, colocamos as maisculas
e acrescentamos a pontuao; alm disso mudamos para a linha seguinte cada vez que o manuscrito tinha
um ponto e numeramos as estrofes. Para todas as indicaes relativas ao Cntico do Sol, ver Coll., t. I.
tude spciale du chapitre 120, p. 277-291 e EP ed. crtica British Society of Franciscan Studies, vol. XIII
(1926-1927), p. 336.

391
8. Laudato si, Misignore, per quelli ke perdonano per lo tuo amore.
et sostengo infirmitate et tribulatione
beati quelli kel sosterrano in pace
ka da te, Altissimo, sirano incoronati.
9. Laudato si, Misignore, per sora nostra morte corporale
da la quale nullu homo vivente poskappare
guai aoquelli ke morrano ne le peccata mortali.
Beati quelli ke troverane le tue sanctissimi voluntati
ka la morte secunda nol farra male 28.
10. Laudate et benedicete Misignore et rengratiate
et serviateli cum grande humilitate.

TRADUO AO P DA LETRA
CNTICO DAS CRIATURAS 29 COMPOSTO
PARA O LOUVOR E A HONRA DE DEUS
PELO BEM-ABENTURADO FRANCISCO
QUANDO ESTAVA DOENTE EM SO DAMIO.

1. Altssimo, onipotente, bom Senhor,


Vossos so o louvor, a glria, a honra e toda a bno.
S a Vs, Altssimo, so devidos
E homem algum dignode vos mencionar.
2. Louvado sejais, meu Senhor, com todas as vossas criaturas
Especialmente o senhor Frei Sol
que clareia o dia e com sua luz nos alumia.
E ele belo e radiante com grande esplendor,
De Vs, Altssimo, a imagem.
3. Louvado sejais, meu Senhor, pela 30 Irm Lua e as estrelas,
que no cu formastes claras e preciosas e belas.

28
Ap 2, 11: Qui vicerit a morte seconda non laedetur; 20, 6: In his secunda mors non habet postestatem
20, 14: Haec est mors secunda; 21, 8: Quod est mors secunda.
29
A verdadeira traduo francesa de Laudes Creaturarum no seria Hymne de la Cration?
30
O sentido exato de per, isto , que ele quer dizer por e no para, foi fixada por Vat, 4354 28 a e por EP
99. Dito isso, penso que no estamos errados se dermos a essa palavra um sentido muito determinado. O

392
4. Louvado sejais, Senhor, pelo Frei Vento
pelo ar, ou nublado ou sereno, e todo tempo
pelo qual s vossas criaturas dais sustento.
5. Louvado sejais, meu Senhor, pela Irm gua,
que til e humilde, preciosa e casta.
6. Louvado sejais, meu Senhor, pelo Frei Fogo
pelo qual iluminais a noite,
ele belo e alegre, vigoroso e forte.
7. Louvado sejais, meu Senhor, por nossa Irm a Me Terra
que nos sustenta e governa,e produz frutos diversos, e coloridas
flores e ervas.
8. Louvai e bendizei o Senhor e dai-lhe graas,
E servi-o com grande humildade 31.
A alegria de Francisco tinha voltado, to grande como antes. Durante
toda uma semana, ele esqueceu o brevirio e passou os dias a repetir o
Cntico do Sol.
Durante uma noite de insnia, tinha ouvido uma voz que lhe di-
zia:Se tivesses a f grande como uma semente de mostarda, dirias a
esta montanha: sai da, e ela sairia. Essa montanha no era a de seus
so-frimentos, a tentao de murmurar e de se desesperar? Faa-se Sen-
hor, segundo a vossa palavra, ele tinha respondido com toda a alma, e
logo se sentira libertado 32.
Deve ter percebido bem depressa que a montanha no tinha sado do
lugar, mas durante alguns dias deixara de olhar para ela e tinha podido
ignorar sua existncia.

sentido est mais prximo de por que da para, mas pode ser que ele no exclua, como em nossos dias, em
lingua provenal, o per tem um sentido amplo, quase impossvel de traduzir em outras lnguas.
Guido Salvadori, sobre o Cntico do Sol, em que a inspirao potica e religiosa religosa est profunda-
mente captada e apresentada sob o vu do annimo na Ora presente, periodico dellUnione per il bene, t. I,
Rome (1895), p. 267. Cf. Oriente Serafico. Porcincula (1896), t. VIII, p. 547-51,9.
31
V. p. 447 e 450 as duas ltimas estrofes deste cntico.
32
2Cel 3, 58; EP 99.

393
Em um momento, teve a idia de chamar Frei Pacfico, o rei dos versos,
para retocar o cntico. Gostaria de juntar a ele alguns frades que iriam
com ele pregar de cidade em cidade. Depois da pregao, eles cantariam o
Cntico do Sol e terminariam dizendo multido reunida em torno deles
nas praas pblicas: Ns somos os jograis de Deus. Ns desejamos ser
recompensados por nosso sermo e por nossa cano. Nosso pagamento
ser que vs persevereis na penitncia 33.
E acrescentou: Ser que os servos de Deus no so como jograis
destinados a despertar os coraes dos homens e lev-los alegria es-
piritual?
O Francisco dos antigos arrebatamentos tinha voltado, o leigo, o
poeta, o artista.
O Cntico das Criaturas muito bonito, s que ficou faltando uma
estrofe. Mas se ela no chegou aos lbios de So Francisco estava cer-
tamente em seu corao:
Louvado sejais Senhor, pela Irm Clara;
Vs a fizestes silenciosa, ativa e sutil,
e por ela vossa luz brilha em nossos coraes.

33
EP 100. Cf. Miscellanea (1889), IV, p. 88.

394
20

O LTIMO ANO
(Setembro de 1225 fim de setembro de 1226)

395
XX
Heu mihi, quia incolatus meus prolongatus est!
Habitavi cum habitantibus Cedar;
multum incola fuit anima mea.
Cum his qui oderant pacem eram pacificus;
cum loquebar illis, impugnabant me gratis 1.
Licet is qui foris est, noster homo corrumpatur, tamen is qui intus est reno-
vatur de die in diem... Scimus anim quoniam si terrestris domus nostra
hujus habitationis dissolvatur, quod aedificationem ex Deo habemus, do-
mum non manufactam, aeternam in caelis 2.
Non quod jam acceperim, aut jam perfectus sim; sequoror autem, si quo
modo comprehendam in quo et comprehensus sum a Christo Jesu. Fra-
tres, ego non me arbitror comprehendisse. Unum autem, quae quidem
retro sunt obliviscens, ad ea vero quae sunt priora extendens meipsum,
ad destinatum persequor, ad bravium supernum vocationis Dei in Christo
Jesu. Quicumque ergo perfecti sumus, hoc sentiamus, et si quid aliter
sapitis, et hoc vobis Deus revelabit. Verumtamen ad quod pervenimus, ut
idem sapiamus et in eadem permaneamus regula.
Imitatores mei estote, fratres, et observate eos qui ita ambulant sicut habetis
formam nostram. Multi enim ambulant, quos saepe dicebam vobis, nunc
autem et flens dico, inimicos crucis Christi; quorum finis interitus, quo-
rum deus venter est; et gloria in confusione ipsorum, qui terrena sapiunt.
Nostra autem conversatio in caelis est, unde etiam Salvatorem exspecta-
mus Dominum nostrum Jesum Christum, qui reformabit corpus humili-
tatis nostrae, configuratum corpori claritatis suae, secundum operationem
qua etiam possit subjicere sibi omnia 3.
Haec est vita aeterna: ut cognoscant te solum Deum verum, et quem misisti
Jesum Christum. Ego te clarificavi super terram, opus consummavi quod
dedisti mihi ut faciam 4.

1 Sl 119, 5-7.
2
2Cor 4, 16-5, 1.
3
Fl 3, 12-21.
4
Jo 17, 3-4.

396
XX
Ai de mim, que vivo entre brbaros
e tenho que habitar com gente estranha.
J vivi tempo demais entre aqueles que odeiam a paz.
Quando lhes falo de paz,
logo eles falam de guerra! 5.
Mesmo se em ns o homem exterior vai caminhando para a runa, o homem
interior renova-se dia aps dia... sabemos, com efeito, que quando a nossa
morada terrestre for destruda, temos uma habitao no Cu, uma casa
eterna, no construda por mos humanas 6.
No que j o tenha alcanado ou j seja perfeito; mas corro para ver se al-
cano, j que fui alcanado por Cristo Jesus. Irmos, no me julgo como
se j o tivesse alcanado. Mas uma coisa eu fao: esquecendo-me daquilo
que est para trs e lanando-me para o que vem frente, corro em dire-
o meta, para o prmio a que Deus, l do alto, nos chama em Cristo
Jesus. Todos ns, os perfeitos, tenhamos, pois, estes sentimentos. E se por
ventura tiverdes sentimentos diferentes, Deus vos h de esclarecer sobre
esse assunto. De qualquer modo, aquilo a que chegamos, por isso que
nos devemos orientar.
Sede todos meus imitadores, irmos, e olhai atentamente para aqueles que
procedem conforme o modelo que tendes em ns. E que muitos de
quem muitas vezes lhes falei e agora at falo a chorar so, no seu pro-
cedimento, inimigos da cruz de Cristo: o seu fim a perdio, o seu Deus
o ventre, e gloriam-se da sua vergonha esses que esto presos s coi-
sas desta terra. que, para ns, a cidade a que pertencemos est nos cus
, de onde certamente esperamos o Salvador, o Senhor Jesus Cristo. Ele
transfigurar o nosso pobre corpo, conformando-o ao seu corpo glorioso,
com aquela energia que o torna capaz de a si mesmo sujeitar todas as coi-
sas 7.
Esta a vida eterna: que te conheam a ti, nico Deus verdadeiro, e a Jesus
Cristo, a quem Tu enviaste. Eu manifestei a tua glria na terra, levando a
cabo a obra que me deste realizar 8.

5
Sl 119 (120) 5-7.
6
2Cor 4, 16-5,1.
7
Fl 3,12-21.
8
Jo7, 3-4.

397
Que pensou Hugolino quando lhe contaram que Francisco queria
enviar seus frades transformados em Joculatores Domini, para cantar em
toda parte o Cntico de Frei Sol? Pode ser que ele nunca tenha sabido
disso. Seu protegido decidiu finalmente a atender seu convite e deixou
So Damio durante o ms de setembro.

A paisagem que se oferece ao viajante que chega a Assis, quando


entra de repente na plancie de Rieti, uma das mais bonitas da Europa.
A partir de Terni, o caminho segue o curso sinuoso do Velino, passa
longe das famosas cascatas onde se percebem nuvens de espuma, depois
entra nos desfiladeiros onde, no fundo, rola com um fragor espantoso
a torrente, toda embaraada por uma vegetao to luxuriante quanto
a de uma floresta virgem. De todos os lados surgem paredes de rochas
perpendiculares e, em cima delas, algumas centenas de metros acima de
nossas cabeas, fortalezas feudais, entre as quais o castelo de Miranda,
mais vertiginoso, mais fantstico dos que foram sonhados pela imagi-
nao de Gustavo Dor.

Depois de quatro horas de caminho, o desfiladiero pra, e nos encon-


tramos sem transio em um grande vale deslumbrante de luz.

Rieti, a nica cidade construda nessa plancie de algumas lguas.


Emerge l em baixo, na outra extremidade, com suas torres e cam-
panrios, dominada por colinas de um aspecto todo meridional, por trs
das quais levantam-se os massios dos Apeninos, quase sempre cobertos
de neve.

398
A estrada vai direto para a cidade, passando no meio de lagos mins-
culos. A cada instante separam-se camihos que levam a pequenas vilas
que vem construdas a meia encosta, abaixo de terrenos cultivados, na
orla das florestas: Stroncone, Grcio, Cantalice, Poggio-Bustone e dez
outros povoados nfimos, que deram Igreja mais santos do que todo
uma provncia da Frana.
Entre os habitantes do pais e seus vizinhos da mbria propriamente
dita, a diferena extrema: todos tm um tipo to declarado de habitantes
da Sabina e continuam at hoje bem estranhos aos novos costumes.
Aqui se nasce capuchinho, como em outros lugares se nasce militar, e o
viajante precisa estar atento para no tratar de reverendo padre todos
os homens que encontrar.
Francisco tinha percorrido muitas vezes essa regio em todos os
sentidos. Como sua vizinha, a montanhosa Marca de Ancona, ela estava
especialmente bem preparada para receber o novo evangelho. Nesses
eremitrios de uma simplicidade inverossmel, empoleirados por todos
os lados na proximidade das vilas, sem nenhuma preocupao de beleza
material, mas nos pontos em que a vista se estende sobre o mais vasto
horizonte, devia perpetuar-se uma raa de Frades Menores apaixonados,
orgulhosos, obstinados, quase selvagens, que no compreenderam tudo
em seu mestre, que no assumiram sua bonomia refinada, sua incapa-
cidade de odiar, seus sonhos de renovao poltica e social, sua poesia
e sua delicadeza, mas que compreenderam o amante da natureza e da
pobreza 9. Eles fortam alm de compreender, eles viveram sua vida, e
desde aquela festa de Natal celebrada nos bosque de Grcio at hoje, e
continuaram a ser representantes simples e populares da estrita obser-
vncia. Foi da que nos veio, com a Legenda dos Trs Companheiros, o
retrato mais vivo e mais verdadeiro do Poverello, e foi a, numa cela de
trs palmos de comprimento, que Joo de Parma foi acabar suas vises

9
Esta a lista dos conventos que, secundo Rodolfo de Tossignano, aceitaram no fim do sculo XIII as idias
de ngelo Clareno: Fermo, Espoleto, Camerino, Ascoli, Rieti, Foligno, Nursia, Aquila, Amelia: Historiarum
seraphicae religionis libri tres. Veneza, 1586.1 Vol. in fo, 155

399
apocalpticas.
A notcia da chegada de Francisco se espalhara rapidamente e, muito
antes de ele chegar a Rieti, a populao saiu ao seu encontro.
Para se livrar dessa acolhida barulhenta, ele foi pedir hospitalidade ao
padre de So Fabiano. Essa pequena igreja, conhecida hoje como Nossa
Senhora da Floresta, est um pouco afastada da estrada, sobre uma colina
verdejante a pouco mais de uma lgua da cidade no meio de uma grande
e bonita floresta de carvalhos e castanheiras. Foi bem acolhido e quis
ficar l algum tempo, ainda que nos dias seguintes prelados e devotos
comeassem a chegar.
Estava no tempo das primeiras uvas. fcil adivinhar a inquietao
do padre quando percebeu as devastaes que os visitantes faziam em
sua vinha, a fonte mais natural de seus rendimentos, mas no h dvida
de que ele exagerava os estragos. Francisco ouviu-o um dia soltando seu
mau humor: Meu Pai, disse-lhe, intil atormentar-se com uma coisa
que no podemos impedir, mas, diga-me, quanto o senhor recolhe de
vinho, em mdia? - Quatorze medidas, disse o padre. - Est bem! Se
o senhor tiver menos de vinte eu me encarrego de conseguir o que faltar.
Essa promessa acalmou o pobre homem e, quando chegou a Vindima,
ele recolheu vinte medidas e no duvidou de que fossse um milagre 10.
Nesse meio tempo Francisco, pela insistncia de Hugolino, tinha
aceitado a hospitalidade do arcebispo de Rieti: Toms de Celano se es-
tende com prazer sobre os sinais de devoo que esse prncipe da Igreja
lhe prodigalizou. Infelizmente, tudo est escrito nesse estilo pomposo
e confuso cujo segredo parece pertencer naturalmente aos diplomatas e
eclesisticos.
Francisco passou ainda vivo ao estado de relquia. Ao redor dele se

10
EP 10 f.; Actus 21; Fior 19. Em algumas das narrativas desse perodo fica bem evidente como
certos fatos foram sendo transformados pouco a pouco em milagres. Comparar por exemplo o
milagre de Santo Urbano em LM 68, et 1Cel. 61. Ver tambm 2Cel. 2,10; LM 158 e 159.
11
1Cel. 87; EP 22; 2Cel. 2, 11; Conform. 148 a 2; LM 99. Sobre a estadia, V. EP 21; 2Cel. 2, 10; LM
158 e 159; EP 22; 33; 2Cel. 2, 11; 2Cel. 3, 36.

400
estabelecia, com todo o seu excesso, a mania dos amuletos. Disputavam
no s as suas roupas mas at os cabelos e as aparas das unhas 11.
Ser que ele tinha repugnncia dessas demonstraes puramente ex-
teriores? Ser que ele pensou alguma vez no contraste entre essas honras
prestadas a seu corpo, que ele tinha pitorescamente apelidado de frei
burro, e a derrota de seu ideal? No sabemos. Se ele teve sentimentos
desse tipo, os que o rodeavam no eram capazes de entende-los e seria
simploriedade esperar que escrevessem sobre isso.
Pouco depois ele teve uma recada e pediu para ser transportado para
Fonte Colombo 12, eremitrio a uma hora da cidade, perdido no meio
das rvores e de um emaranhado de rochedos.
Ele j se havia retirado nesse lugar diversas vezes, principalmente
quando preparava a Regra de 1223.
Os mdicos, depois de ter esgotado o arsenal teraputico da poca,
decidiram recorrer s cauterizaes: tratava-se de passar em sua fronte
uma barra de ferro incandescente.
Quando o pobre paciente viu trazer o fogareiro com os instrumentos,
teve um momento de medo. Mas bem depressa, fazendo o sinal da cruz
sobre o ferro incandescente, disse:
Irmo fogo, tu s belo entre todas as criaturas, s propcio para mim
nesta hora. Tu sabes como eu sempre te amei, por isso, s corts comigo
hoje.
Um instante depois, quando voltaram seus companheiros, que no
tinham tido coragem de permanecer, ele lhes disse sorrindo: medro-
sos, porque fugisteis, eu no senti nenhuma dor. Irmo mdico, se for
necessrio, podes recomear.
Essa tentativa no teve resultado melhor que os outros remdios. Servi-
ram para avivar as chagas da fronte, e ao lhe serem aplicados emplastros,

12
Atual nome italiano do convento que tambm j foi chamado Monte-Rainerio e Fonte-Palumbo.
13
EP 115; 1 Cel. 101; 2 Cel. 3, 102; LM 67.

401
colrios e mesmo fazendo incises, o nico resultado foi aumentar ainda
mais os sofrimentos do doente 13.
Um dia, em Rieti, para onde o haviam levado de novo, Francisco pen-
sou que um pouco de msica aliviaria suas dores. Chamando um frade
outrora hbil tocador de guitarra, pediu que ele tomasse uma emprestada,
mas o frade ficou com medo de dar escndalo e Francisco se resignou.
O bom Deus teve piedade dele. Na noite seguinte, enviou um anjo
invisvel para lhe um concerto que no se pode ouvir na terra 14. Segundo
os Fioretti, Francisco perdera toda sensibilidade corporal e, em um mo-
mento, a melodia se tornou to doce e penetrante que se o anjo desse
mais um toque a alma do doente teria deixado seu corpo 15.
Parece que houve alguma melhora em seu estado quando os mdicos o
abandonaram: durante os meses desse inverno ele esteve nos eremitrios
mais afastados da regio.
Desde que recuperou um pouco de foras, queria voltar a pregar e foi
passar a festa de Natal em Poggio Bustone 16 onde foi uma multido de
todos os cantos para v-lo e ouvi-lo: Vocs correm para c, disse ele,
esperando encontrar um grande santo; que vo pensar quando souberem
que usei comida gorda durante todo o Advento 17? Em Santo Eleutrio
18
, no tempo dos maiores frios, que o faziam sofrer muito, ele tinha cos-
turado sobre sua tnica e sobre a de seu companheiro pedaos de pano,
para deixar essas roupas um pouco mais quentes. Um dia seu companheiro
voltou com uma pele de raposa com a qual ele queria, por sua vez, reforar

14
2Cel. 3, 66; LM 69.
15
Fior. II consid. Cf. Roger Bacon: Opus tertium (ap. Mon. Germ.hist. Script., t. XXVIII, p. 577). B.
Franciscus jussit fratri cythariste ut dulcius personaret, quatenus mens excitaretur ad harmonias caelestes
quas pluries audivit. Mira enim musicae super omnes scientias et spectanda potestas.
16
Vila a trs horas de caminho de Rieti. A cela de Francisco ainda existe na montanha, a trs quartos de
hora da localidade.
17
EP 62; 2 Cel. 3, 71. Cf. Spec. Vitae 43 a.
18
A capela ainda em p a alguns minutos de Rieti. EP 62; 2Cel. 3, 70.

402
a tnica de seu mestre. Francisco ficou bem contente, mas no permitiu
esse excesso de complacncia por seu corpo a no ser com a condio
de que um pedao do forro fosse aplicado ostensivamente no peito.
Todos esses traos, que parecem insignificantes em um primeiro
momento, mostram mostram como ele detestava a hipocrisia, mesmo
nas pequenas coisas.
No seguiremos sua querida Grcio 19, nem ao eremitrio de Santo
Urbano, pendurado num dos picos mais elevados da Sabina 20. As nar-
rativas que possuimos sobre a curta apario que fez nesse tempo no
ensinam nada de novo sobre seu carter ou sobre a histria de sua vida.
Mostram apenas que a imaginao dos que o cercavam era extraor-
dinariamente super-aquecida: os menores incidentes adquiriam cores
milagrosas 21.
Os documentos no dizem como ele resolveu ir para Sena 22. Parece
que nessa cidade estava um mdico muito conhecido como oculista. O
tratamento que ele prescreveu no deu melhor resultado que os outros.
Mas, com a volta da primavera, Francisco tinha feito um novo esforo
para voltar vida ativa. Ns o encontramos descrevendo um convento
franciscano ideal 23 e, num outro dia, explicando a um dominicano uma
passagem da Bblia.
Teria esse frade, doutor em teologia, querido ridicularizar a ordem
rival, mostrando que seu fundador era incapaz de interpretar um versculo
um pouco difcil? Parece muito possvel:

19
2Cel. 2, 14; LM167; 2Cel. 3, 10; LM 58, Spec. Vitae 122b.
20
Wadding, ann. 1213, n. 14, coloca com razo Santo Urbano no condado de Narni. mais conhecido
como LEremo di S. Urbano, Lo Speco di S. Francesco, est a meia hora da vila do mesmo nome, no
Monte So Pancrcio (1026 m.), a trs lguas ao sul de Narni. O panorama um dos mais bonitos da Itlia
central. Os bolandistas se deixaram induzir em erro por uma afirmao interessada quando colocaram Santo
Urbano perto de Iesi (p. 623 f. et 634 a). O mesmo fez Papini, Storia I, p. 25 n. 8 e II p. 9 e 161. 1 Cel. 61;
LM 68 (V. Bula Cum aliqua de 15 de maio de 1218 onde se faz meno de Santo Urbano).
21
Podemos dizer a mesma coisa sobre a apario das trs virgens entre Campilia e et San-Quirico. 2Cel. 3,
37; LM 93. Esse incidente pode ter nascido de um xtase que precedeu a composio da Salutatio virtutum
por So Francisco.
22
1Ce1. 105.
23
EP 10.; Conform. 169 a 1.

403
Meu bom pai, disse, como compreendes esta palavra do profeta
Ezequiel: Se no denunciardes ao mau sua impiedade, eu vos pedirei
contas de sua alma. Conheo muitos homens que eu sei que esto
em estado de pecado mortal, mas nem sempre repreendo seus vcios.
Vou ser responsvel por sua alma?
No comeo, Francisco pediu desculpas por sua ignorncia, mas,
pressionado pelo interlocutor, acabou dizendo: Sim, o verdadeiro ser-
vidor repreende sem cessar o mau, mas ele o faz principalmente por sua
conduta, pela verdade que resplandece em suas palavras, pela luz de seu
exemplo, por toda a irradiao de sua vida 24.

Pouco depois ele teve uma recada to grave que os frades pensaram
que seu fim tinha chegado, Eles tinham ficado assustados principalmente
porque ele vomitava sangue, o que o deixava em um estado de prostrao
extrema. Frei Elias veio s pressas.

Quando ele chegou, o doente teve uma melhora to grande que pu-
deram concordar com seu desejo de voltar para a mbria. Pela metade
de abril, viajaram na direo de Cortona 25. Era o caminho mais fcil,
e o delicioso eremitrio dessa cidade era um dos mais apropriados para
que pudesse repousar um pouco. Deve ter ficado l bem pouco tempo:
tinha pressa de rever o horizonte de sua terra natal, a Porcincula, So
Damio, os Carceri, todos esses caminhos e esses lugares que podem ser
vistos dos terraos de Assis, e que lhe recordavam to suaves lembranas.

Em vez de ir pelo caminho mais curto, fizeram uma grande volta por
Gbio e Nocera, para evitar Perusa, com medo de alguma tentativa dos

24
EP 53. O ms. Little n 222 d um outro estado dessa narrativa. 2Cel. 3, 46; LM 153; Ez 33. 9.
25
Muitas coisas seriam sem dvida explicadas se soubssemos das relaes que havia entre
Cortona e Frei Elias. certo que Francisco por Celle di Cortona. Por que? Mais tarde Eliasa deveria
refugiar-se nesse lugar e vonstruir a Igreja de So Francisco, oferecendo-lhe a famosa relquia da
verdadeira cruz. Que a houve animosidades e desentendimentos entre os frades est mostrado
em 1Cel. 96.
26
Dois anos mais tarde, o rei da Frana e toda a corte beijaram e veneraram o travesseiero usado
por Francisco quando esteve doente: 1Cel. 120.

404
habitantes para se apoderarem do Santo. Uma relquia como o corpo de
Francisco no estava longe de valer um santo cravo ou uma santa lana
26
. Brigava-se por menos do que isso.

Fizeram uma pequena parada perto de Nocera, no eremitrio de Ba-


gnara, encostado no Monte-Pennino 27. A seus companheiros ficaram
inquietos outra vez. O inchao que se manifestara nos membeos inferiores
estava subindo rapidamente. Os assisieneses souberam disso e, querendo
estar preparados para todas as eventualidades, mandaram seus soldados
para proteger e apressar a volta do Santo.
Carregando Francisco, eles pararam no vilarejo de 28 para comer, mas
foi intil pedir aos habitantes que lhes vendessem provises.
Quando contaram aos frades o seu fracasso, Francisco, que conhecia
essa boa gente disse: Se vocs tivessem pedido comida sem se oferecer
para pagar, teriam encontrado tudo que quisessem.
Ele tinha razo: quando seguiram seu conselho receberam de graa
tudo que desejavam 29.
A chegada do cortejo em Assis foi saudada por uma alegria frentica.
Desta vez, os concidados de Francisco estavam seguros de que seu Santo
no iria morrer em outro lugar 30.
Quanto a isso, os costumes mudaram tanto que difcil nos com-
preendermos a felicidade de possuir um corpo santo. Se algum tiver a

27
Bagnara est perto das fontes do Topino, a cerca de uma hora de Nocera. Nesse tempo, as
duas localidades dependiam de Assis.
28
Eu tinha pensado que poderia identificar Sartriano com uma propriedade rural que est na
entrada do territrio de Assis ao p do Sasso Rosso. O prefeito Fortini descobriu outro Sartriano
igualmente na entrada do territrio de Assis, no lado exatamente oposto do Subsio, na estrada
que vai de Assis a Nocera por Postignano e Pian della Pieve. Na ocasio do centenrio construiram
a uma graciosa capela votiva planejada por Gino Venanzi. Ver Frate Francesco, t. II, p. 276-280 e
Arnaldo Fortini, Nova Vita di San Francesco, Milo, 1926, p. 354, s.
29
EP 22; 2Cel. 3, 23; LM 98; Conform. 239 a 2 f.
30
2Cel. 3, 33. 1Cel. 105 ainda mais explcito: A multido esperava que ele morresse logo e era
esse o motivo de sua alegria.

405
infelicidade de falar de Santo Andr na frente de um habitante de Amalfi,
vai v-lo comear a gritar: Evviva S. Andrea! Evviva S. Andrea! Depois,
com uma volubilidade extraordinria ele vai contar a legenda do Grande
Protettore, seus milagres passados e presentes, os que poderia fazer se
quisesse, mas que ele no fazia por caridade, porque So Janurio de
Npoles no poderia fazer a mesma coisa. Ele se agita, se exalta e o sa-
code, mais entusiasta de sua relquia e mais exasperado pela sua frieza
que um soldado da velha guarda diante de um inimigo do Imperador.
No sculo XIII toda a Europa era assim.
Se no fizermos um esforo para entender tudo isso em seu lugar,
vamos encontrar diversos pontos em que seremos tentados a julgar cho-
cantes ou mesmo ignbeis.
Francisco foi instalado na casa do bispado. Teria preferido ser levado
para a Porcincula, mas os frades tiveram que obedecer imposio da
multido. Para cmulo da segurana, foram colocados guardas ao redor
do palcio 31.
A permanncia do Santo nesse lugar foi bem mais longa do que se
tinha pensado. Pode ser que tenha durado vrios meses (julho a setem-
bro). Esse agonizante no se resolvia a morrer. Ele se rebelava contra a
morte: no centro estavam suas preocupaes com o futuro da Ordem,
que tinham sido afastadas alguns dias antes mas tinham voltado mais
angustiantes e mais terrveis.
preciso comear tudo de novo, pensava ele. Criar uma nova famlia
que no vai esquecer sua humildade, voltar a servir os leprosos e, como
outrora, pr-se sempre abaixo de todas as pessoas, no s em palavras
mas na realidade 32.
Sentia que estava se cumprindo o implacvel trabalho da destrio,
contra o qual os mais submissos no podem deixar de protestar: Meu

31
Os assisienses tinham mais motivo de velar pelo precioso tesouro porque nesse mesmo ano (1226) os
habitantes de Bettona lhes haviam roubado o corpo de So Crispolto. Ver Archivio per la storia dellUmbria,
t. V, p. 382.
32
1Cel. 103 et 104.

406
Deus, meu Deus, por que? Por que me abandonaste? Tinha que con-
templar a decomposio mais temida ainda: a de sua Ordem.
Ele, a cotovia, precisava ser guardado por soldados velando por seu
cadver; havia motivos demais para ele se sentrir mortalmente triste.
Quatro frades tinham sido especialmente encarregados de lhe prestar
servio. Durante essas ltimas semanas, todos os suspiros foram anotados.
O desaparecimento de grande parte da Legenda dos Trs Companheiros
nos priva certamente de algumas narrativas tocantes, mas a maior parte
delas foi conservada em documentos de segunda mo 33.seus cuidados:
Leo, ngelo, Rufino e Masseo. Ns j os conhecemos: eram ntimos
da primeira hora, que tinham olhado o evangelho franciscano como um
apelo para o amor e a liberdade. Eles tambm comearam a se queixar
de tudo e de todos 34.
Um dia, um deles disse ao doente: Pai, o senhor vai partir e nos
deixar. Indique-nos, se o conhece, aquele a quem se poder confiar o
fardo do generalato com toda segurana.
Ora! Francisco no conhecia o frade ideal capaz de assumir tamanha
tarefa; mas aproveitou a pergunta para esboar o retrato de um ministro
geral acabado 35.
Temos duas provas desse retrato, a que foi retocada por Celano e a
original, bem mais curta e mais vaga, mas que nos mostra Francisco s
queria para seu sucessor uma nica arma: um inaltervel amor.

33
Depois do aparecimento destas linhas, foram descobertos numerosos escritos provenientes
de Frei Leo. Quase todas essas narrativas coincidem e trouxeram relativamente pouca novidade:
EP ed. Paul Sabatier, Coll. t. I (1898); Reconstituio da LTC por Marcellino da Civezza et Teofilo
Dominichelli (1899); Scripta Leonis, EP e Extractiones de Leg. Ant., ed. Lemmens (1901 et 1902);
Fragments de la Leg. Vetus, ed. Paul Sabatier; Rcits du Ms, Little, estudo e descrio por A. G. Lit-
tle; Leg. Ant. Perus. de Ferdinand Delorme. V. Critique des sources C. II lI, IX, X, XI, XII e XIII.
34
1 Cel. 102. Spec. Vitae 83 b.
35
EP 80; 2Cel. 3,116; Conform.143 b 1 e 225 b 2; 2Cel. 3, 117; Spec. Vitae 130 a.
36
Para o texto ver Conform. 136 b 2; 138 b 2; 142 b 1.
Para as cartas a Frei Elias e sua data presumvel durante a preparao da Regra, antes do cap-
tulo de 1223, Ver Coll. t. II, Appendice, p. 114-131. Sobre os acontecimentos durante o inverno de
1223-1224, ver Op., t. I, fasc. IlI. Leg. Vetus C. 2, e nota p. 90 ss.

407
Deve ter sido essa questo que lhe sugeriu a idia de deixar para seus
sucessores, os gerais da Ordem, uma carta que eles passariam um ao
outro, e onde encontrariam no direcionamentos para casos particulares
mas a prpria inspirao de sua atividade 36.
Ao reverendo Pai em Cristo, N... Ministro Geral de toda a Ordem dos Frades
Menores. Que Deus te guarde e te mantenha em seu santo amor.
A pacincia em tudo e por tudo, eis, meu irmo, o que eu te recomendo
essencialmente. Mesmo que te faam oposio, mesmo que te batam, tu
deves ser agradecido e desejar que seja assim e no de outra forma.
... Nisto se manifestar teu amor a Deus e a mim, seu servo e teu, se no
houver um s frade no mundo que, tendo pecado, por mais que possa pecar,
e tendo vindo diante de ti, possa ir embora sem ter recebido o teu perdo.
E se ele no o implorar, pergunta tu se ele no o quer.
E se voltar mil vezes diante de ti, ama-o mais do que a ti mesmo, para
lev-lo ao bem. Tem sempre compaixo desses frades.
Essas palavras indicam bastante como Francisco tinha dirigido ou-
trora a Ordem: esse papel de puro afeto, de terno devotamento que ele
sonhava para os ministros gerais seria possvel diante de uma famlia que
estendera seus ramos pelo mundo inteiro? Seria temerrio dizer alguma
coisa, porque entre seus sucessores no faltaram espritos distinguidos
e coraes de elite. Mas, salvo por Joo de Parma ou outros dois ou
trs, esse ideal contrasta violentamente com a realidade: o prprio so
Boaventura arrastaria seu mestre e amigo, esse mesmo Joo de Parma,
para um tribunal eclesistico onde fez com que fosse condenado priso
perptua, e seria necessria a interveno de um cardeal estranho Ordem
para que a pena fosse comutada 37.

Os gritos de dores lanados por Franciso moribundo sobre a queda


Ordem seriam seria menos pungentes se no incluissem a acusao de
relaxamento que ele fazia a si mesmo. Por que tinha ele desertado de
seu posto, abandonado a direo de sua famlia, se no por preguia e

37
Tribul Archiv., t. II, p. 285 ss.
38
EP 41. Trata-se naturalmente do captulo de 1227. Quando ele percebeu que no viveria mais
at o captulo, ditou a Carta ao captulo geral. Ver p. 439 s.

408
por egoismo? Agora era muito tarde para reagir e nas horas de terrivel
angstia ele perguntava se Deus no o responsibilizaria por essa derrota.
Ah! Se eu pudesse ir ainda ao captulo geral, suspirava ele, eu lhes
mostraria qual minha vontade 38.
Chegaram a v-lo, abatido pela febre, levantar-se de repente em sua
cama, gritando com uma violncia desesperada: Onde esto os que me
roubaram os frades? Onde esto os que roubaram minha famlia?
Ora, os verdadeiros culpados estavam bem mais prximos do que
ele pensava. Os ministros provinciais, nos quais ele teve ter pensado
especialmente com estas palavras, no passavam de instrumentos nas
mos do hbil Frei Elias. E ele, que estava fazendo a no ser colocar sua
inteligncia e sua habilidade a servio do cardeal Hugolino?
Longe de encontrar algumas satisfaes ao seu redor, Francisco estava
sendo atormentado sem cessar pelas confidncias de seus companheiros,
que, levados por um zelo mal orientado, avivavam sua dor em vez de a
acalmar 39.
Perdoai-me, Pai disse-lhe um dia um deles mas o que eu quero vos
dizer j foi pensado por muitos: vs sabeis como outrora pela graa de Deus,
a Ordem inteira seguia pelo caminho da perfeio, no que diz respeito
pobreza e ao amor, como, em todo o resto, os frades tinham um s corao e
uma s alma. Mas j faz algum tempo que tudo isso mudou muito: verdade
que muitas vezes os frades so desculpados dizendo que a ordem cresceu
demais para manter as antigas observncias; chega-se a pretender que as
infidelidades Regra, como a construo dos grandes mosteiros, so uma
fonte de edificao para o povo, pois a simplicidade e a pobreza primitivas
j no so valorizadas. Evidentemente todos esses abusos lhe desagradam;
mas, ento, pergunta-se porque os tolera?
- Que Deus o perdoe, meu irmo, respondeu So Francisco. Porque me
acusar assim por coisas sobre as quais no tenho nenhum poder? Enquanto
eu mantive a direo da Ordem e os frades perseveraram em sua voao,
eu consegui fazer o necessrio, apesar de minha fraqueza; mas agora que

39
EP 41; 2Cel. 3, 118.

409
eles marcham pelo caminho que voc disse sem se importar com minhas
exortaes e meus exemplos, eu os confiei ao Senhor e aos ministros.
verdade que quando eu renunciei sua direo, alegando minha incapaci-
dade, eles tinham caimhado de acordo com os meus desejos, e no poderia
dar-lhes outro ministro no meu lugar antes de minha morte: doente, e mesmo
cansado eu teria encontrado a fora para cumprir os deveres de meu cargo.
Mas este cargo todo espiritual, eu no quero ser um carrasco para bater e
punir como os governantes polticos 40.

As lamentaes de Francisco tornavam-se to vivas e amargas que,


para evitrar o escndalo, no deixavam ningum entrar at perto dele a
no ser com a maior prudncia 41.
A desordem estava por todo ladoe cada dia trazia trazia seu contingente
de motivos de tristeza. A perturbao lanada sobre as idias a respeito
da prtica da Regra era extrema; as influncias ocultas, que j estavam
presentes havia alguns anos, tinham chegado a velar o ideal franciscano,
no s para frades afastados ou novos, mas at para os que viviam na
companhia de seu fundador 42.

Foi nessas circunstncias que Francisco ditou a carta a todos os mem-


bros da Ordem, que, em seu pensamento, deveria ser lida na abertura dos
captulos para neles perpetuar sua presena espiritual 43.

40
Essas palavras foram tiradas de um longo fragmento citado por Hubertino de Casale como
provenientes de Frei Leo: Arbor vit. cruc. lib. V. Cap. III. seguramente um pedao da Legenda dos
Trs Companheiros: Ns o encontramos textualmente nas Tribulaes. Laur. fo 16 b com algumas
frases mais para o fim,. Cf. Conform. 136 a 2; EP 71; Spec. Vitae. 8 b; 26 b; 50 a; 130 b; 2Cel. 3, 118.
41
Tribul. Laur. 17 b.
42
Ver, por exemplo, a questo de Frei Ricrio nos livros: Hubertino, Loc. Cit. Cf. Archiv. III, p. 75
e 177; Spec. Vitae 8 a; Conform. 71 b 2. Ver tambm: Hubertino, Archiv. III, p. 75 e 177; Tribul. 13 a;
Spec. Vitae 9 a; Conform. 170 a 1. EP 2. curioso comparar a narrativa como est nesses documentos
com a verso dada por 2Cel. 3, 8.
43
Ms 338 de Assis, fo 28 a-31 b com a rubrica: De littera et ammonitione beatissimi patris nostri Francisci
quam misit fratribus ad capitulum quando erat infirmus. Essa carta foi erradamente separada em trs
por Rodolfo de Tossignano (fo 237), que foi seguido por Wadding (Epistolae X, XI, XII). O texto se
encontra, sem essa descabida subdiviso, no manuscrito citado em: Firmamentum, ed. Paris, 1512,
fo 21; Firmamentum de Veneza, 1513, I, pars, fo 25 b 26 a; Spec. Morin III, 217 a; Hubertino, Arbor
vit. cruc. V. 7. Opuscula Quaracchi, 1904, p. 99-107. Boehmer, Analekten, p. 57-62.

410
Ele continua perfeitamente fiel a si mesmo; como no passado. Quer
arrastar os frades, no por reprimendas mas dirigindo seu olhar para a
santidade perfeita.

A todos os venerados e muito amados Frades Menores, a Frei * * * 44


ministro geral, seu Senhor, e aos ministros gerais que viro depois dele, e a
todos os ministros, custdios e padres desta fraternidade, humildes em Cristo,
e a todos os frades simples e obedientes, os mais antigos e os mais recentes,
Frei Francisco, homem vil e caduco, vosso pequeno servo, saudao!
Escutai, meus senhores, vs que sois meus filhos e meus irmos, prestai
ateno a minhas palavras. Abri vossos coraes e obedecei voz do Filho
de Deus. Guardai com todo o vosso corao os seus mandamentos e observai
perfeitamente os seus conselhos. Louvai-o porque ele bom, e glorificai-o
por vossas obras.
Deus os enviou por todo o mundo para que, pela palavra e pelo exemplo,
deis testemunho dele, e que ensineis a todos que ele o nico todo poderoso.
Perseverai na disciplina e na obedincia, e mantende o que prometestes com
uma vontade boa e firme.

Depois de assim ter entrado no assunto, Francisco passa logo para a


recomendao essencial de sua carta, a do amor e do respeito devidos
ao Sacramento do Altar 45; a fez nesse mistrio de amor parecia-lhe, de
fato, a salvao da Ordem.

44
Essa inicial no deixa de provocar admirao. Parece que deveria haver um simples N***. Essa letra
poderia, ento, ser substituda por um copista que teria empregado a inicial do ministro geral em excerccio
no momento em que ele estava escrevendo. Se essa hiptese tem algum valor, ajudaria a fixar a data exata
do manuscrito (Alberto de Pisa, ministro de 1239-1240; Aimon de Faversham de 1240-1244).
Isso tanto mais notvel porque no corpo da carta encontramos a inicial H (Heliae).
45
Nessa ocasio Francisco j tinha perdido toda esperana de viver at o prximo captulo.
Poderia fazer esperar tanto os que estavam espera de suas relquias? Portanto, ele quis deixar
por escrito o que no poderia fazer pessoalmente: impor sua ordem todas as prescries que
ele no tinha podido fazer antes por causa da resistncia dos frades: introduzir na Regra o culto
do Santo Sacramento.
Da a Carta o captulo geral, a Carta aos custdios e o De reverentia corporis Domini. O captulo de
1227 escutou a voz do fundador da ordem e tomou as disposies para se conformar.

411
- Estaria errado? Um homem que acredita verdadeiramente na pre-
sena real do Homem-Deus entre os dedos do padre que eleva a hstia
teria capacidade de deixar de consagrar sua vida a esse Deus e sua
santidade? No fcil pensar nisso.

verdade que legies de devotos professam a f mais absoluta nesse


dogma, e no se percebe que eles sejam maus, mas a f, para eles, de
ordem intelectual, a abdicao do raciocnio. Imolando a Deus sua
inteligncial eles so muito felizes de oferecer um instrumento que eles
preferem no usar.
Para Francisco, a questo se apresentava de maneira bem diferente.
O pensamento que aqui se poderia apresentar como mrito de crer, no
poderia nem se apresentar ao seu esprito: o fato da presena real era para
ele uma certeza viva, absoluta. Por isso a sua f nesse divino mistrio
transformava-se logo em um esforo de seu corao para que a vida de
Deus, misteriosamente presente no altar, fosse a seiva de todas as suas
aes.
transubtanciao eucarstica operada pelas palavras do padre, ele
acrescentava uma outra, a do seu corao.
Deus se oferece a ns como a seus filhos. por isso que eu vos peo,
a vocs todos meus irmos, beijando os seus ps, e com todo amor de que
sou capaz, que tenham pelo corpo e o sangue de nosso Senhor Jesus Cristo
todo respeito e toda honra que puderem.

Mais adiante, dirigindo-se aos padres em particular:


Escutai, meus irmos, se a bem-aventurada Virgem Maria honrada,
com justa razo, por ter carregado Jesus em seu seio, se Joo Batista tre-
meu porque no ousava tocar a cabea do Senhor, se o sepulcro em que ele
repousou um pouco foi envolvido por to grande culto, oh! Como deve ser
santo, puro e digno o sacerdote que toca com suas mos, que recebe na boa
e no corao, e que distribui aos outros Jesus Cristo vivo glorificado, aquele
que vida enche oa anjos de jbilo! Compreendei vossa dignidade, irmos
padres, e sejais santos, porque ele santo. Oh! Que grande misria e que
lamentvel fraqueza se o tendes presente diante de vs e ficais cuidando de
qualquer outra coisa. Que todo homem pasme, me o mundo inteiro trema,

412
que o cu exulte de alegria quando, sobre o altar, nas mos do padre, desce
o Cristo, o Filho de Deus vivo. profundidade admirvel, espantoso
favor! triunfo da humildade! Eis que o mestre de todas as coisas, Deus,
e o Filho de Deus, humilha-se por nossa salvao a ponto de se esconder
sob a aparncia de po.

Vede, irmos, essa humildade de Deus, e expandi vossos coraes diante


dele; humilhai-vos, vs tambm para que tambm vs sejais sejais elevados
por ele. No guardeis para vs nada de vs, para que vos receba inteiros
aquele que por vs se deu inteiro.

Percebe-se com que fora de amor o corao de Francisco tinha cap-


tado a idia da comunho.

Ele termina com longos conselhos dados aos frades, e depois de os


ter conjurado a guardar fielmente suas promessas, todo seu misticismo
se exala e se resume numa orao de uma admirvel simplicidade.

Onipotente, eterno, justo e misericordioso Deus, dai a ns miserveis


fazer por vs mesmo o que sabemos que Vs quereis, e sempre querer o que
vos apraz, para que, interiormente purificados, interiormente iluminados e
acesos no fogo do Esprito Santo, possamos seguir os vestgios do vosso
dileto Filho, nosso Senhor Jesus Cristo.

O que separa essa orao do esforo feito, fora de qualquer religio


revelada, pelas almas de elite para descobrir o dever? Muito pouco, na
verdade: as palavras so diferentes, a ao a mesma.

Entretanto, a solicitude de Francisco estendia-se muito alm dos


limites da Ordem. Sua carta mais longa dirige-se a todos os cristos:
as palavras tm nela algo to vivo que parece que estamos escutando o
ruido de uma voz por trs delas; e essa voz, habitualmente serena como
a que proclamou na montanha da Galilia e lei dos nos tempos, torna-se
aqui e ali de uma doura indizvel, como a que ressoou no cenculo na
tarde da primeira eucaristia.

Como Jesus esquecendo a cruz que se levanta na sombra, Francisco


esquece seus sofrimentos e, invadido por uma divina tristeza, sonha com

413
essa humanidade em que ele desejava dar a vida por cada um; sonha
com seus filhos espirituais, os Frades da Penitncia, que ele vai deixar
sem ter podido faze-los sentir, como desejaria, o amor que o queimava
por eles: Pai, eu lhes dei as palavras que me haves dado... por eles
que eu vos peo!

Todo o Evangelho franciscano est nessas poucas pginas, mas, para


compreender o fascnio que ele exerceu seria preciso passar primeiro
pela escola da Idade Mdia e ouvir nela os interminveis torneios dia-
lticos pelos quais se desvaneciam as inteligncias; seria preciso ver a
Igreja do sculo XIII, corroda pela simonia e a luxria, fazendo apenas
alguns inteis esforos para desenraizar o mal sob a presso da heresia
ou da revolta.

A todos os cristos religiosos, clrigos e leigos, homens e mulheres, a


todos os que moram no mundo inteiro, Frei Francisco, seu servo e sdito:
promete submisso com reverncia, paz verdadeira do cu e sincera cari-
dade no Senhor.

Como sou servo de todos, a todos estou obrigado a servir e a prestar-lhes


em servio as odorosas palavras de meu Senhor. Por isso, considerando na
mente, que, em pessoa, pela enfermidade e debilidade do meu corpo, no
poderia visitar a cada um, me propus, por meio desta carta e de mensageiros,
anunciar-lhes as palavras de Nosso Senhor Jesus Cristo, que Palavra do
Pai, e as palavras do Esprito Santo, que so esprito e vida.

Seria pueril esperar aqui idias novas, pelo fundo ou forma. Os apelos
de Francisco s tm valor pelo sopro que os anima.

Depois de ter recordado brevemente os grandes traos do Evangelho


e recomendado com insistncia a comunho, Francisco dirige-se em par-
ticular a alguns categorias de ouvintes para lhes dar conselhos especiais.
Que os podests, os governantes, e os que esto constitudos em autori-
dade exeram suas funes com misericrdia, como gostriam de ser julgados
por Deus com misericrdia...

Especialmente os religiosos, que renunciaram ao mundo, so obrigados


a fazer mais e melhor que os simples cristos, a renunciar ao que no

414
necessrio para eles e a odiar os pecados do corpo... Devem amar seus ini-
migos, fazer o bem aos que os odeiam, observar os preceitos e os conselhos
de nosso Redentor, renunciar a si mesmos e subjugar seus corpos. E nenhum
religioso obrigado obedincia e, para obedecer, devesse cometer uma
falta ou um pecado.

No sejamos espertos e sbios segundo a carne, mas simples, humildes


e puros... Jamais devemos desejar estar acima dos outros, mas antes estar
abaixo, e obedecer a todos os homens.

Termina mostrando a estupidez dos que do o corao pela posse dos


bens terrestres, e conclui com um quadro bem realista da morte do mau:
E todos os talentos e poder e cincia, que pensava ter ser-lhe-o
tirados. E deixa-os para os parentes e amigos, e eles tomaro e di-
vidiro sua riqueza e diro depois: Maldita seja sua alma, porque
podia dar-nos e conseguir mais do que conseguiu,. Os vermes comem
o corpo; e assim perde corpo e alma neste breve sculo e ir para o
inferno, onde ser atormentado sem fim. Em nome do Pai e do Filho
e do Esprito Santo. Amm.
Eu, frei Francisco, vosso menor servo, vos rogo e conjuro, na ca-
ridade que Deus, e com a vontade de beijar vossos ps, que deveis
receber e pr em prtica e observar estas e as outras palavras de nosso
Senhor Jesus Cristo com humildade e caridade. E todos aqueles e
aquelas que benignamente as receberem, entenderem e enviarem a
outros para exemplo, e se nelas perseverarem at o fim, bendiga-os o
Pai e o Filho e o Esprito Santo. Amm.46.
Se alguma vez Francisco fez uma regra para a Ordem Terceira, ela
deve ser muito parecida a esta carta, e, esperando que se encontre esse
problemtico documento, a carta mostra o que foram, na origem, as as-
sociaes dos Irmos da Penitncia. Nessas longas pginas tudo visa o
desenvolvimento da vida religiosa e mstica no corao de cada cristo.
Entretanto, mesmo no tempo em que Francisco a estava ditando, essa

46
Esta carta tambm foi erradamente dividida em duas cartas diferentes por Rodolfo de Tossignano,fo 174
a, que foi seguido por Wadding. Ver ms. dAssis 338, 23 b - 28 a; Conform. 137 a 1ss. Opuscula. Quaracchi,
p. 81-98. Brehmer, Analekten, p. 49-57.

415
altura de vida era uma utopia, e a Ordem Terceira apenas um batalho a
mais no exercito do papado.
Percebemos agora como as cartas que acabamos de examinar pro-
cedem definitivamente de uma s e a mesma inspirao. Que ele deixa
instrues para seus sucessores, os ministros gerais, a quem ele escreve
para todos os membros presentes e futuros de sua Ordem, para todos os
cristos, e at para o clero 47. Francisco tinha um nico objetivo: conti-
nuar a pregar mesmo depois de sua morte e talvez tambm colocando
por escrito sua mensagem de paz e de amor, impedindo que fosse com-
pletamente modificada ou desconhecida.
Ligadas a essas horas dolorosas que as viram nascer, elas formam um
conjunto cujo alcance e significao acentuam-se de maneira singular.
a que, como na Regra de 1221 e no Testamento, precisamos ir procurar
o esprito franciscano.
A negligncia, e principalmente as tormentas que sacudiram mais tarde
a Ordem, explicam o desaparecimento de alguns outros documentos que
viriam lanar um raio de poesia e de alegria sobre esses tristes dias 48:
Francisco no se esquecia de sua amiga de So Damio. Sabendo como
ela estava inquieta pela notcia de sua doena, quis acalm-la: ele ainda
tinha iluses sobre seu estado, e lhe escreveu para prometer que logo

47
A Carta aos Clrigos apenas repete as idias j expressadas sobre o culto do Santo Sacramento.
Lembramo-nos de Francisco varrendo as igrejas e pedindo aos padres que as mantivessem limpas;
esta carta tem a mesma finalidade: est no Ms 338 de Assis, fo 31 b-32 b, com a rubrica: De reverentia
corporis Domini et de munditia altaris ad omnes clericos. Incipit: Attendamus omnes Explicit: fecerint
exemplari. , ento, a carta apresentada por Wadding, XIII, mas sem o endereo e a saudao. O
AFH (1913), t. VI, p. 3-12, apresenta um texto muito antigo. Brehmer, Analekten, p.62 s.
48
No devemos perder a esperana de reencontr-los. Os arquives dos mosteiros das Clarissas
so habittualmente muito rudimentares, mas conservados com piedoso cuidado. Ver a propsito
desses louvores, Wadding, Opuscula, ed.1623, p. 60, de onde parece resultar que Mariano conheceu
entre as obras de So Francisco quaedam laudes in vulgare ad sorores sanctae Clarae.
49
EP 108.
50
Spec. Vitae 117 b; Conform.185 a 1, 135 b 1. Cf. Test. B. Clarae, A. SS. Aug., t. II, p. 747. EP 90.
Quanto ao captulo 90 do EP, que eu inicialmente tinha colocado aqui, EP, acolho a opinio do P.
Cuthbert. O envio das sancta verba cum cantu que o texto aproxima do Cntico das Criaturas,
deve ter sido feito em Fonte Colombo no inverno de 1225-1226. Como reparou muito bem o P.
Cuthbert. p. 361-362, a lembrana de Clara acompanhava e sustentava Francisco nesse tempo. Por
isso, possvel seprar as duas mensagens.

416
iria v-la 49.
Acrescentou a essa garantia alguns conselhos afetuosos, convidan-
do-a, a ela e a suas companheiras, a no exagerar nas maceraes. Para
lhes dar o exemplo da alegria, acrescentou carta uma lauda em lingua
vulgar, que ele mesmo tinha musicado50.
L nesse quarto do palcio episcopal onde estava como preso, ele
tinha obtido um novo triunfo e fora isso certamente que inspirara sua
alegria. O bispo de Assis, o irritadio Guido, sempre em guerra contra
algum, desta vez estava brigando com o podest da cidade: pouco faltava
para jogar uma perturbao profunda na vida da pequena cidade. Guido
tinha excomungado o podest, e este tinha proclamado uma proibio
de vender ou comprar alguma coisa dos eclesisticos nem de fazer com
eles contrato algum.
A contenda estava piorando e ningum parecia pensar em se meter
entre eles para tentar uma aproximao. Compreende-se melhor ainda
a dor de Francisco vendo tudo isso, que seu primeiro esforo tinha sido
para restituir a paz em sua cidade natal, e que ele considerava a volta da
Itlia unio e concrdia como o resultado final de seu apostolado.

A guerra em Assis seria o desmoronamento definidito de seu sonho, e a


voz dos acontecimentos gritava-he brutalmente: Voc perdeu sua vida!

Essa borra do clice foi-lhe poupada graas a uma inspirao onde


brilha mais uma vez a fantasia de seu carter. Acrescentou uma nova
estrofe ao Cntico do Sol:

Louvado sejais, meu Senhor, pelos que perdoam pelo vosso amor
e suportam enfermidades e tribulaes;

Felizes os que as suportarem em paz,


porque por Vs, Altssimo, sero coroados.

Depois, chamando um frade, encarregou-o de pedir ao governante que


fosse para a praa na frente do palcio do bispo com todos os notveis
que pudesse renir. Esse magistrado, a quem a legenda reserva um papel

417
bonito em toda a questo, logo se conformou com o desejo do Santo.

Quando ele chegou e o bispo saiu do palcio, dois frades se adiantaram


e disseram:Frei Francisco fez para o louvor de Deus um cntico que ele
pede que escuteis piedosamente. E logo comearam a cantar o hino de Frei
Sol, com sua nova estrofe.

O governante os escutou de p, na atitude mais recolhida, chorando


muito, porque ele amava muito o bem-aventurado Francisco.

Quando o cntico acabou, ele disse: Saibam que, na verdade, eu desejo


perdoar o Senhor Bispo, que vejo e devo olhar como meu senhor, porque
mesmo que tivessem assassinado meu irmo eu estaria pronto a perdoar
o assassino. Depois dessas palavras, ele se lanou aos ps do bispo e lhe
disse: Estou pronto para tudo que quiser, por amor a nosso Senhor Jesus
Cristo e por seu servidor Francisco.
Ento o bispo tomou-o pela mo e se levantou, dizendo: Em meu
cargo, conviria que eu fosse humilde, mas, como sou naturalmente propenso
clera, preciso que me perdoes 51.

Essa inesperada reconciliao logo foi tida como milagrosa e aumen-


tou ainda mais o culto dos assisienses por seu concidado.

O vero estava no fim. Depois de alguns dias de relativo alvio, os


sofrimentos de Francisco ficaram mais fortes do que nunca: incapaz de
fazer um movimento, ele at pensou que devia renunciar a seu desejo
ardente de ainda rever So Damio e a Porcincula e fez aos frades todas
as suas recomendaes para este ltimo santurio: No o abandonem
nunca, repetia-lhes, porque este lugar verdadeiramente sagrado, a
casa de Deus 52.

Parecia-lhe que, se os frades ficassem ligados quele canto de terra,

51
EP10.1; Cf. Conform. 184 b 1; 203 a 1.
52
EP 55; 1Cel. 106: As recomendaes sobre a Porcincula foram ampliadas pelos Zelantes,
quando, sob o generalato de Crescncio (Bula Is qui ecclesiam, 6 mars 1245), a baslica de Assis foi
substituda por Nossa Senhora dos Anjos como mater et caput da Ordem. Ver Spec. Vitae 32 b; 69
b-71 a; Conform. 144 a 2; 218 a 1; LTC. 56; 2Cel. 1, 12 et 13; LM 24 ,25.

418
quela capela de dez passos de comprimento, a essas cabanas cobertas
de palha, eles encontrariam a a lembrana viva da pobreza dos primeiros
tempos, e no poderiam se afastar muito.

Uma tarde, seu estado piorou com espantosa rapidez; toda a noite
seguinte ele teve vmitos de sangue que no deixavam nenhuma espe-
rana. Quando os frades acorreram, ele ditou algumas linhas em forma de
testamento, depois lhes deu a bno: Adeus, meus filhos, permaneam
o temor de Deus, continuem sempre unidos a Cristo; grandes provas lhes
esto reservadas, e a tribulao se aproxima. Felizes os que persevera-
rem como tiverem comeado; porque haver escndalos e divises entre
vocs. Eu vou para o meu Senhor e meu Deus. Sim, estou certo de que
vou para Aquele a quem servi 53.
Nos dias seguintes, para grande espanto dos presentes, ele melhorou
de novo. Ningum podia compreender a resistncia que aquele corpo
contrapunha morte depois de to longamente ferido pelo sofrimento 54.
Ele mesmo recuperava alguma esperana. Um mdico de Arezzo, que
ele conhecia bem, foi visit-lo e ele disse:
Meu amigo, quanto voc acha que eu ainda tenho de vida 55?
- Meu pai, respondeu seu interlocutor para acalm-lo, tudo isso vai
passar, se for vontade de Deus.
- No sou um bobo para ter medo da morte, respondeu Francisco
sorrindo. Pela graa do Esprito Santo, estou to intimamente unido a
Deus que estou igualmente contente de viver ou de morrer.
- Nesse caso, meu pai, do ponto de vista mdico seu mal incurvel,
e eu no creio que voc possa ir mais longe que at os primeiros dias

53
EP. 107; 1Cel. 108. Como eu disse (V. Critique des Sources, c. lI, IV) o resto da narrativa de
Celano parece merecer algumas reservas. Cf. Spec. Vitae 115 b; Conform. 225 a 2; LM 211.
54
Stupebant medici, mirabantur fratres, quomodo spiritus vivere, posset in carne sic mortua. 1Cel. 187.
55
Tremolavo nella domanda (di Fr.) lancora desto umano desiderio della vita. L. Salvatorelli,
Vita di San Francesco, p. 244.

419
do outono.
A essas palavras, o pobre doente estendeu as mos como para apelar
a Deus, e gritou com uma indizvel expresso de alegria: Irm Morte,
seja bem vinda!

Depois comeou a cantar e mandou buscar Frei ngelo e Frei Leo.

Quando eles chegaram, tiveram que cantar o Cntico do Sol, apesar de


sua emoo. Estavam na doxologia final quando Francisco os fez parar
e improvisou sua saudao morte:
Louvado sejais, meu Senhor, por nossa irm a morte corporal, da qual
homem nenhum pode escapar. Ai dos que morrerem em pecado mortal.
Felizes os que ela achar conformes a vossa santssima vontade, porque a
morte segunda no lhes far mal 56.
A partir desse dia, o palcio do bispo no parou de ressoar com os seus
cantos. A cada instante, mesmo durante a noite, ele recomeava o Cntico
de Sol ou qualquer outra de suas composies preferidas. Depois, quando
estava cansado, pedia a Frei ngelo e Frei Leo que continuassem. 57
Um dia, Frei Elias julgou que devia fazer algumas observaes quanto
questo. Temia que os guardas e os vizinhos viessem a se escandalizar:
Um Santo deveria recolher-se diante da morte, esper-la com temor e
tremor, em vez de se deixar levar por uma alegria que podia ser mal inter-
pretada. Pode ser que o bispo Guido no tinha sido totalmente estranho a
essa reprimenda; no parece improvvel que o transtorno de seu palcio
durante longas semamas tenha acabado por lhe dar um pouco de humor.
Mas Francisco no quis ceder, sua unio com Deus era muito doce para

56
EP 122 e 123.
57
EP 121; Actus 18; Fior. IV consid. Devemos observar que Guido, em vez de esperar em Assis o
acontecimento previsto da morte de Francisco, foi para o Monte Gargano, 2Cel. 3, 142.
58
A razo da sada de Assis (So Francisco no queria morrer em um palcio) foi muito bem
indicada pelo Pe. Cuthbert, Life of. S. Francis, p. 375. Pode ser que ele tambm tenha tornado a
Porcincula mais preciosa para seus discpulos. O cortejo foi seguido por homens que deviam
manter uma boa guarda em volta do moribundo 2Cel Mil. 32.

420
que ele pudesse deixar de cantar.
No fim, acabaram decidindo transport-lo para a Porcincula. Seu
desejo de expirar perto de humilde capela, onde ele tinha ouvido a voz
de Deus consgrando-o como apstolo, iria ser cumprido 58.
Seus companheiros, carregados com o precioso fardo, tomaram o
caminho da plancie atravs das oliveiras. De vez em quando, o doente,
incapaz de distinguir coisa alguma, perguntava onde estavam. Quando
chegaram metade do caminho, no hospital dos Crucgeros 59 de onde
se podiam ver todas as casas da cidade em um s olhar, ele pediu que o
colocassem no cho virado para a cidade e, elevando a mo, disse adeus
terra natal e a abenoou.

59
Ainda h alguns restos desse convento inseridos nos muros da Casa Gualdi.

421
422
21

Testamento e Morte de
So Francisco
Fim de setembro - 2 de outubro de 1226

423
XXI

Iste pauper clamavit, et Dominus exaudivit eum, et de omnibus tribulationi-


bus salvavit eum 1.
Auditui meo dabis gaudium et laetitiam,
et exsultabunt ossa humiliata 2.
De manu mortis liberabo eos, de morte redimam eos. Ero mors tua, o mors
morsus tuus ero, inferne 3!
Haec recordatus sum, et effudi in me animam meam,
quoniam transibo in locum tabernaculi admirabilis usque ad domum Dei
In voce exsultationis et confessionis, sonus epulantis 4.
Jesus autem respondit eis, dicens: Venit hora ut clarificetur Filius hominis.
Amen, amen dico vobis, nisi granum frumenti cadens in terram mortuum
fuerit, ipsum solum manet; si autem mortuum fuerit, multum fructum af-
fert. Qui amat animam suam perdet eam; et qui odit animam suam in hoc
mundo, in vitam aeternam custodit eam. Si quis mihi ministrat, me sequa-
tur; et ubi sum ego, illic et minister meus erit. Si quis mihi ministraverit,
honorificabit eum Pater meus 5.
Ecce sto ad ostium et pulso: si quis audierit vocem meam, et aperuerit mihi
januam, intrabo ad illum, et cenabo cum illo et ipse mecum. Qui vicerit,
dabo ei sedere mecum in throno meo; sicut et ego vici et sedi cum Patre
meo in throno ejus 6.
Aperite mihi portas justitiae, ingressus in eas, confitebor Domino 7.
Et Spiritus et Sponsa dicunt: Veni 8.

1
Sl 33,7.
2
Sl 50, 10.
3
Os 13,14.
4
Sl 41, 5.
5
Jo 12, 23-26.
6
Ap 3, 20-21.
7
Sl 117, 19.
8
Ap 22. 17.

424
XXI

Este pobre gritou e o Senhor o ouviu,


E o salvou de todos os perigos 9.
Faze-me sentir gozo e alegria,
e exultem os ossos que quebrantaste 10.
Eu o livrarei da mo da morte, eu os arrancarei da morte.
Eu serei tua morte, morte! eu te matarei, inferno! 11.
Recordo outros tempos para desabafo de minha alma
Quando andava entre as turbas, peregrinando ao templo de Deus
entre grados de alegria e de louvor da multido em festa 12.
Jesus respondeu-lhes dizendo: chega a hora em que o Filho do Homem
ser glorificado. Em verdade, em verdade vos digo: se o gro de trigo,
caindo na terra, no morrer, fica s, mas se morrer, produz muito fruto.
Quem ama sua vida, acabar perdendo-a; mas quem odiar sua vida neste
mundo, vai guard-la para a vida eterna. Se algum me quiser servir, si-
ga-me. Onde eu estiver, estar tambm meu servo. Se algum me quiser
servir, meu Pai o honrar 13.
Eis que estou porta e bato. Se algum ouvir a minha voz e abrir a porta,
entrarei em sua casa e cearemos juntos. Ao vencedor concederei sentar-se
comigo em meu trono, assim como eu venci e me sentei com meu Pai em
seu trono 14.
Abri para mim as portas da justia,
e entrarei para dar graas aos Senhor 15.
O Esprito e a Esposa dizem: Vem! 16.

9
Sl 33 (34), 7.
10
Sl 50 (51), 10.
11
Os 13, 14.
12
Sl 41 (42), 5.
13
Jo 12,23-26.
14
Ap 3,20-21.
15
Sl 117 (118),19.
16
Ap 22, 17.

425
Os ltimos dias da vida de Francisco so de uma beleza radiante. Ele
foi ao encontro da morte cantando 17, diz Toms de Celano para resumir
a impresso dos que o viram nessa ocasio.
Estar na Porcincula, depois da longa deteno no palcio do bispo,
no foi apenas uma verdadeira alegria para seu corao: o ar livre no
meio da floresta deve ter-lhe causado um real bem-estar fsico: O Cntico
das criaturas no parece feito para ser cantado numa tarde desses dias
de outono to luminosos e to doces da mbria, onde toda a natureza
se recolhe para murmurar, tambm ela, seu hino de amor ao irmo sol?
D para perceber, em Francisco, esse desaparecimento quase abso-
luto da dor, essa renovao da vida, que to frequentemente anuncia a
aproximao da catstrofe final.
Ele proveitou para ditar seu Testamento 18.

17
Mortem cantando suscepit. 2Cel. 3, 139. Mortem laetus aspexit, diz Santo Atansio falando de Santo
Anto. Vitae Patrum, ed. Roswey, p. 59, cap. LIX.
18
Tomamos como base aqui o texto do manuscrito 338 de Assis (fo 16 a18a). Ns o encontramos tambm
em Firmamentum, ed. de Paris, 1512, fo 19, col. 4. Firmamentum ed. de Veneza, 1513, I pars, 21 a 1-21 b
2. Speculum Morin. tract. III, 8 a; Seraph, Legisl. Te:xtus originales, p. 265. - Wadding, ann. 1226, 35. - A.
SS., p. 663. - Amoni, Legenda Trium Sociorum. Apendice, p. 110. Tudo nesse documento revela sua auten-
ticidade, mas estamos reduzidos s provas internas. Est expressamente citado em 1Cel. 17 (antes de 1230);
pelos Trs Companheiros (1246), LTC. 11; 26; 29; por 2Cel. 3, 99 (1247). Essas provas seriam mais do que
suficientes, mas a outra de valor maior: a bula Quo elongati de 28 de setembro de 1230 em que Gregrio
IX cita-o textualmente et declara que os frades no esto obrigados a observ-lo. Opuscula, Quaracchi. p.
77-82, Boehmer, Analekten, p. 36-49; Coll., t. I, p. 309-313.

426
nessas pginas que precisamos ir buscar a nota justa para esboar
a vida de seu autor e fazer uma idia da reforma que ele tinha sonhado.
Nesse monumento de uma incontestvel autenticidade, e que a ma-
nifestao mais solene do seu pensamento, o Poverello se revela inteiro
com uma candura virginal.
Sua humildade tem uma sinceridade que se impe; ela absoluta,
mas nem sonhamos em ach-la exagerada. Entretanto, quando se trata
de sua misso, ele fala com uma tranquila em serena segurana. No
ele um embaixador de Deus? No foi do prprio Cristo que ele recebeu
a mensagem?
A gnese de seu pensamento mostra-se ao mesmo tempo toda divina e
toda pessoal. A conscincia individual proclama no testamento ao mesmo
tempo sua soberana autoridade e sua responsabilidade: Ningum me
mostrou o que eu devia fazer, mas o Altssimo me revelou que eu devia
viver segundo a regra do santo Evangelho.
Quando se fez essa experincia, a submisso Igreja perde alguns
caracteres que as almas preguiosas ou servis tm at disposio demais
para lhe atribuir: ela se torna ativa e viva.
No mais a aceitao automtica tanto mais meritria quanto seria
cega de ordens que a pessoa se proibe de sondar ou mesmo de com-
preender, ela a adeso franca e alegre, em plena luz, em plena posse
de si mesmo, a uma autoridade visvel e que, como todas as autoridades
visveis, no conseguiria ser absoluta.
Essa autoridade est abaixo da conscincia individual, mas lhe d
relevo, e s pode fazer-se entender eficazmente depois de ser reconhecida
e aceita por ela.
Desse modo, a submisso Igreja torna-se assim obedincia filial.
Itaque jam non est servus sed filius 19. O amor de um filho por seus pais
no se parece em nada ao do escravo, e a f que tem neles no o impede
de constatar que eles esto envelhecendo e suas faculdades podem ter
eclipses.

19
Carta de So Paulo aos Glatas 4, 7: Agora ele no mais escravo, mas filho.

427
Pois bem! Grita o bem-aventurado ngelo Clareno, So Francisco
prometeu obedecer ao papa e a seus sucessores, mas eles no podem nem
devem mandar nada que seja contra a alma ou a Regra 20.
Para Clareno, como para todos os franciscanos Espirituais, quando h
um conflito entre o que manda a voz interior de Deus e o que ordenaria
o soberano pontfice, s se pode obedecer primeira 21.
Se lhe disserem que a Igreja e a Ordem existem para definir o signifi-
cado verdadeiro de Regra. Ela apela para o bom senso e para essa certeza
interior que dada pela viso clara da verdade. A Regra, como tambm
o Evangelho que ela resume, est acima de todo poder eclesistico.
consolador pensar que o fervoroso franciscano que exps essas idias
to ousadas est hoje no altar 22.
Tambm o Testamento no demorou a ser para os Franciscanos
que ficaram fiis ao ideal primitivo uma autoridade moral superior
da prpria Regra. Joo de Parma, para explicar sua predileo por
esse documento, observava que, depois da impresso dos estigmas, o
Esprito Santo tinha estado em Francisco com plenitude ainda maior do
que antes 23.
Ser preciso dizer que a finalidade essencial buscada por Francisco
quando ditou o seu Testamento no foi alcanada?
fora de simplicidade na expresso de seu pensamento, ele tinha
esperado torn-la de uma perfeita limpidez; fazia um apeo to comovido,
to direto lealdade de seus filhos presentes e futuros, que ningum no
mundo, persuadiu-se ele, vai ousar jamais proclamar-se discpulo seu
sem fazer de suas recomendaes supremas o programa de sua vida...
Mas, apenas quatro anos depois, o cardeal Hugolino, agora papa Gregrio
IX, declarou solenemente que o Testamento do fundador da Ordem no

20
Promittit Franciscus obdientiam... papae... et successoribus... qui non possunt nec debent eis praecipere
aliquid quod sit contra animam et regulam. Archiv., I, p. 563.
21
Quod si quando a quocumque... pontifice aliquid... mandaretur quod esset contra fidem... et caritatem
et fructus ejus tunc obediet Deo magis quam hominibus. Id., ibid., p. 561.
22
Est [Regula] et stat et intelligitur super eos... Cum spei fiducia pace fruemur cum conscientiae et Christi
spiritus testimonio certo. Ibid, 563 et 565.
23
Archiv., t. II, p. 274.

428
obrigava os Frades menores: fazia uma Declaratio da regra, isto , uma
interpretao que fixava o seu sentido legal. Ora, o sentido cannico de
uma Regra no se confunde, para os telogos, com seu sentido verdadeiro
ou histrico. Aqui, como em outros lugares, Gregrio IX se mostrou muito
pouco preocupado com o que So Franscisco tinha dito. Com essa bula
Quo elongati de 30 de setembro de 1230 24, ele abriu o longo cortejo
dos pontfices que decretaram no o que se l na Regra, mas o que deve
ser lido. O resultado natural que aquilo que um decreto faz pode ser
desfeito por outro decreto, e foi assim que bem depressa Inocncio IV
deu a um pargrafo um sentido diferente do que lhe tinha sido dado por
seu predecessor quinze anos antes.
Sentindo-se assim apoiados pelo pontfice reinante, os frades que
aspiravam a um importante papel cientfico e a tomar posse dos bens das
Ordens antigas agora em decadncia, fizeram os defensores da pobreza
perfeita pagar caro por seu apego s ltimas contades de Francisco:
Cesrio de Spira morreu por causa das violncias do frade encerragado de
guard-lo 25; o primeiro discpulo, Bernardo de Quintavalle, perseguido
como um animal feroz, passou dois anos nas florestas de Monte Sefro,
escondido por um lenhador 26; os outros primeiros companheiros, que
no conseguiram fugir, tiveram que suportar os mais duros tratamentos.
Na Marca de Ancona, bero dos Espirituais, o partido vencedor agiu com
terrvel violncia. O Testamento foi confiscado e destrudo. Chegaram
a queim-lo em cima da cabea de um frade que se obstinava a querer
observ-lo 27.

24
Bula Quo elongati (Potthast 8520); Coll. t. I, p. 314-322. Ad mandatum illud vos dicimus non teneri; quod
sine consensu Fratrum maxime ministrorum, quos universos tangebat obligare nequivit nec successorem
suum quomodolibet obligavit; cum non habeat imperium par in parem. O sofisma rebuscado: Francisco
no era igual a seus sucessores, ele no tinha agido como ministro geral, mas como fundador. A idia a
expressa parece ter sido tirada de Vl. Kybal em seu trabalho sobre o Testamento: para me servir dos termos
da Revue dHist. Eccl. de Louvain (t. XVIII, 1922, p. 596 ltima linha) prova que Francisco deu sua ltima
regra no como simples frades, mas como fundador da Ordem, e que ele manteve at a morte o officium
praedestinationis espiritual.
25
Tribul. Laur. 25 h., Archiv., t. I, p. 532.
26
No alto dos Apeninos, quase na metade do caminho entre Camerino e Nocera (mbria), Tribul.,
Laur. 26 b. Magl. 135 b.
27 Esse fato parace bem garantido, porque alegado por Hubertino de Casale em um escrito enviado ao papa,
em resposta aos frades relaxados, aos quais ele devia ser comunicado. Declaratio Ubertini, Archiv., III, p. 168.

429
TESTAMENTO (TRADUO LITERAL).

O Senhor assim deu a mim, Frei Francisco, comear a fazer penitncia:


porque, como estava em pecados, parecia-me por demais amargo ver os
leprosos. E o prprio Senhor me levou para o meio deles, e fiz misericrdia
com eles. Afastando-me deles, aquilo que me parecia amargo converteu-se
para mim em doura da alma e do corpo; e, depois, parei um pouco e sa
do sculo. E o Senhor me deu tal f nas igrejas, que assim simplesmente
orava e dizia: Adoramos-te, Senhor Jesus Cristo, tambm em todas as tuas
igrejas, que esto em todo o mundo, e te bendizemos porque por tua santa
cruz remiste o mundo
Depois o Senhor me deu e me d tanta f nos sacerdotes 28 que vivem
segundo a forma da santa Igreja Romana, por causa de sua ordem, que, se
me fizerem perseguio quero recorrer a eles mesmos. E se tivesse tanta
sabedoria quanta teve Salomo, e se encontrasse sacerdotes pobrezinhos
deste sculo, nas parquias onde moram no quero pregar alm da sua
vontade. E a eles e a todos os outros quero temer, amar e honrar como a
meus senhores. E no quero considerar pecado neles, porque enxergo neles
o Filho de Deus, e so meus senhores. E o fao por isto: porque nada vejo
corporalmente neste sculo do mesmo Filho de Deus, seno o seu santssimo
Corpo e o seu santssimo Sangue, que eles recebem e s eles administram
aos outros. E esses santssimos mistrios sobre todas as coisas quero que
sejam honrados, venerados e colocados em lugares preciosos.
Os santssimos nomes e suas palavras escritas, onde quer que os encontre
em lugares ilcitos, quero recolher e rogo que sejam recolhidos e colocados
em lugar honroso.
Tambm a todos os telogos e aos que nos administram as santssimas
palavras divinas devemos honrar e venerar como a quem nos administra
esprito e vida.
E depois que o Senhor me deu frades, ningum me ensinava o que deveria
fazer, mas o prprio Altssimo me revelou que deveria viver segundo a forma
do santo Evangelho. E eu o fiz escrever em poucas palavras e simplesmente,
e o senhor papa confirmou para mim.

28
Cf., EP 10.

430
E os que vinham tomar esta vida davam aos pobres tudo que podiam
ter, e estavam contentes com uma nica tnica, remendada por dentro e por
fora, com o cngulo e as bragas e no queramos ter mais.
Os clrigos diziam o Ofcio segundo os outros clrigos, os leigos diziam:
Pai nosso; e ficvamos nas igrejas muito de boa vontade. E ramos iletrados
e sditos de todos.
E eu trabalhava com minhas mos, e quero firmemente que todos os
outros frades trabalhem em trabalho que convm decncia. Os que no
sabem, aprendam, no pela cobia de receber o preo do trabalho mas pelo
bom exemplo e para repelir a ociosidade. E quando no nos derem o preo do
trabalho, recorramos mesa do Senhor, pedindo esmola de porta em porta.
Uma saudao me revelou o Senhor, que dissssemos O Senhor te d
a paz!
Cuidem os frades que de nenhum modo recebam as igrejas, habitaes
pobrezinhas e tudo que para eles se constri 29, se no forem como convm
santa pobreza, que na Regra prometemos, sempre a se hospedando como
forasteiros e peregrinos.
Mando firmemente por obedincia a todos os frades que, onde quer que
estejam, no se atrevam a pedir letra alguma na Cria Romana, por si ou
por pessoa intermediria, nem para alguma igreja ou algum outro lugar, nem
por pretexto de pregao, nem por perseguio de seus corpos, mas onde
no forem recebidos, fujam para outra terra, para fazer penitncia com a
bno de Deus.
E firmemente quero obedecer ao ministro geral desta fraternidade e ao
outro guardio que lhe aprouver dar-me. E de tal modo quero estar preso
em suas mos que no possa ir ou fazer mais do que a obedincia e a sua
vontade, porque meu senhor.
E embora seja simples e enfermo, contudo sempre quero ter um clrigo
que me faa o ofcio como est contido na Regra. E todos os outros frades
tenham que obedecer assim aos seus guardies e a fazer o ofcio segundo
a Regra.

29
Cit. EP 11. Cf. 9 e 10.

431
E os que se descobrisse que no fazem o ofcio segundo a Regra, e
quisessem variar de outro modo, ou no fossem catlicos, todos os frades,
onde quer que estejam, sejam por obedincia obrigados a, onde quer que
encontrem algum desses, a apresent-lo ao custdio mais prximo desse
lugar onde o tiverem encontrado.
E o custdio seja firmemente obrigado por obedincia a guard-lo for-
temente, como um homem em priso, de dia e de noite, de modo que no
possa ser arrancado de suas mos, at que em sua prpria pessoa o apresente
nas mos de seu ministro. E o ministro esteja obrigado, por obedincia,
a envi-lo por meio de tais frades que o guardem de dia e de noite como
homem em priso, at que o apresentem diante do senhor de stia, que o
senhor, protetor e corretor de toda a fraternidade 30.
E no digam os frades:Esta outra Regra porque esta uma recor-
dao, admoestao, exortao e meu testemento, que eu, Frei Francisco,
pequenino, fao a vs, meus irmos benditos, para isto: para que mais ca-
tolicamente observemos e Regra que prometemos ao Senhor.
E o ministro geral e todos os outros ministros sejam obrigados por obe-
dincia a no acrescentar ou diminuir nestas palavras. E tenham sempre este
escrito consigo junto da Regra. E em todos os captulos que fazem, quando
lem a Regra, leiam tambm estas palavras.
E a todos os meus frades, clrigos e leigos, mando firmemente por obe-
dincia, que no ponham glosas na Regra nem nestas palavras, dizendo:
Assim devem entender-se. Mas assim como o Senhor me deu de dizer e
escrever simples e puramente a Regra e estas palavras, assim simplesmente
e sem glosa as entendais e com santas obras as guardeis at o fim.
E todo aquele que observar estas coisas, no cu seja repleto da bno
do altssimo Pai e na terra seja repleto seja repleto da bno do seu dileto
Filho com o santssimo Esprito Parclito e todas as vritudes do cu e todos
os santos. E eu, Frei Francisco, pequenino servo vosso, tanto quanto posso
vos confirmo por dentro e por fora esta santssima bno.

Aps ter-se ocupado de seus frades, Francisco pensou em suas queridas


Irms de So Damio, e fez um testamento tambm para elas. Ele no

30
V-se que heresia. Os frades acusados deviam ser entregues Igreja.

432
chegou at ns e no para admirarmos: os frades Espirituais puderam
fugir e protestar no fundo de seus retiros, mas as Irms estavam com-
pletamente desarmadas contra as investidas da comum Observncia 31.
Nas ltimas palavras que dirigiu s Clarissas, depois depois de lem-
br-las de que deveriam perseverar na pobreza e na unio, deu-lhes sua
bno 32. Depois recomendou-as aos frades, suplicando-lhes que nunca
se esquecessem de que eram membros de s e a mesma famlia religiosa
33
. Assim, tendo feito o possvel por todos que ia deixar, pensou um
instante em si mesmo.

Ele tinha conhecido em Roma uma piedosa senhora chamada Jacoba


de Settesoli. Embora rica, era ela simples e boa, toda devotada s novas
idias; gostava mesmo do lado um pouco estranho do carter de Fran-
cisco. Ele lhe dera um cordeiro que se havia tornado um companheiro
inseparvel para ela 34. Infelizmente, tudo que lhe diz respeito foi rema-
nejado posteriormente pela lenda. A conduta to natural do Santo com as
mulheres perturbou muito seus bigrafos; da os comentrios pesados e
retorcidos, unidos a episdios de uma deliciosa simplicidade.

Antes de morrer, Francisco desejou rever essa amiga que, sorrindo,


ele chamava de Frei Jacoba. Fez que escrevessem para ela vir Porcin-
cula: e d para adivinhar o assombro dos narradores diante desse convite
pouco monstico.

Mas a boa senhora adiantou-se ao chamado; quando o mensageiro


encarregado da carta ia partir para Roma, ela chegou Porcincula, onde

31
Urbano IV publicou aos 18 de outubro de 1263 (Potthast 18680) uma Regra para as Clarissas que
mudava completamente o carter da Ordem. Seu autor tinha sido o cardeal protetor Joo Ursini (o
futuro Nicolau III) quie por precauo probiu, sob as penas mais severas, que os Frades Menores
dissuadissem as Irms de aceit-la. Ela to diferente da primeira Regra, diz Hubertino de Casale,
quanto o branco do preto, o saboroso do inspido! Arbor vit. cruc. lib., V, cap. 6.
32
Ver Test. B. Clarae; Conform. 185 a 1; Spec. Vitae 117 b. Opuscula, ed. Quaracchi, p. 75 s.
33
Spec. Perf. 100; 2 Cel. 3, 132.
34
LM 112.s

433
ficou at o ltimo suspiro do Santo 35. Em certo momento ela teve a idia
de mandar de volta seu squito: o doente estava to calmo e alegre que
ela no podia acreditar que estivesse morrendo. Mas ele mesmo pediu que
ela mantivesse seu pessoal junto dela. Desta vez ele sentia sem nenhuma
dvida que seu cativeiro ia acabar.
Estava pronto, tinha acabado sua obra.
Lembrou-se ento do dia em que, amaldioado por seu pai, ele tinha
renunciado a todos os bens terrestres e gritado a Deus com inefvel
confiana: Pai nosso, que estais no cu!
No podemos afirmar, mas ele quis terminar a vida por um ato sim-
blico que recorda bastante a cena do palcio do bispo.
Fez-se despojar de suas roupas e pediu que o estendessem no cho,
porque queria morrer nos braos de sua senhora Pobreza. Reviu os vinte
anos que tinham passado depois de sua unio: Cumpri meu dever, disse
aos frades, que Cristo lhes ensine agora o seu 36!
Isso aconteceu na quinta-feira, 1o de outubro 37.
Puseram-no outra vez na cama e, para cumprir seu desejo, cantaram
de novo o Cntico do Sol para ele!

35
Os Bolandistas negaram toda essa histria, que eles achavam opostas s prprias prescries de Francisco.
A. SS., p .664 ss. Mas difcil entender qual a finalidade de seus inventores, que tiveram muito trabalho para
se explicar: Spec. Vitae 133 a; 137 a; Fior IV consid.; Conform. 240 a. Eu tirei a minha narrativa todinha
de Bernard de Besse: De laudibus, fo 113 b. Parece que Jacoba se instalou pelo resto da vida em Assis, para
ir se edificar junto aos primeiros companheiros de Francisco. Spec. Vitae 107 b. (que bonita cena, com um
sabor to franciscano!) Ignora-se a data exata de sua morte. Ela foi sepultada na Igreja inferior da baslica
de Assis, e em sua tumba foi gravado: Hic jacet Jacoba sancta nobilisque romana. Ver Fratini, Storia della
basilica, p. 48. .Cf. Jacobilli, Vite dei Santi e Beati dell Umbria, FoIigno, 3 vol. in. 40, 1647; t. I, p. 214.
A visita de Jacoba Porcincula foi confirmada depois por documentos antigos: EP 112; Red.
Lemmens 11; Leg. Ant. Perus 7; 2Cel. Mil., 37-39; Livarius Oliger, Liber exemplorum (Antonianum,
n, 1927; 67, p. 238. Ver tambm douard dAlenon, Frre Jacqueline 1899 e nova edio em 1927.
Paul Sabatier, Examen critique des rcits concernant la visite de Jacqueline de Settesoli saint Franois.
Op., t. II, fasc. XV (1910).
36
2Cel. 3,139; LM 209,210; Conform. 171 b 2.
37
2Cel. 3, 139. Cum me videritis... sicut me nudius tertius nudum videtis.

434
As visitas da morte so sempre solenes, mas o fim dos justos o mais
comovente sursum corda que algum possa ouvir nesta terra. As horas
passavam e os frades no o deixavam:
pai bondoso, disse um deles j incapaz de se conter, seus filhos vo
perde-lo e ficar privados da verdadeira luz que os iluminava: lembre-se dos
rfos que est deixando, perdoe todas as suas faltas e e d a todos, tanto
aos presentes como aos ausentes a alegria de sua santa bno.
O moribundo disse: Eis que Deus me chama. Eu perdoo a todos os
meus frades, presentes e ausentes, suas ofensas e suas faltas, e os absolvo
quanto posso. Diga isso para eles e abenoa-os todos da minha parte 38.
Depois, cruzando os braos, colocou as mos sobre os que o rodea-
vam. Fez isso com uma efuso especial por Bernardo de Quintavalle,
dizendo 39: Eu quero e recomendo quanto posso, a quem quer que seja
o ministro geral da Ordem que o ame e honre como a mim mesmo; que
os provinciais e todos os frades comportem-se com ele como comigo.
Pensou no s nos frades presentes mas tambm nos futuros: o amor
transbordava de tal forma nele que lhe arrancou uma queixa: a pena de
no ver todos os que entrariam na Ordem at o fim dos sculos, para
colocar sua mo na cabea deles fazendo-os sentir essas coisas que s
podem ser ditas pelo olhar daquele que ama a Deus 40.
Tinha perdido a noo do tempo: crendo que ainda era quinta-feira,
quis tomar uma ltima refeio com seus discpulos. Trouxeram po,
ele o partiu e lhes deu, e na pobre cabana da Porcincula foi celebrada,
sem altar nem padre, a Ceia do Senhor 41.
Um frade leu o Evangelho da Quinta-feira Santa: Ante diem festum
Paschae: Antes da festa da Pscoa, Jesus, sabendo que tinha chegado

38 1Cel. 109: Cf. Epist. Eliae. Boehmer, Analekten, p. 91.


39
EP 107, Tribul. Laur. 22 b. Nada mostra melhor o valor histrico da Crnica das Tribulaes
do que comparar a narrativa que ela apresenta desses instantes com o dos documentos seguintes:
Conform. 48 b 1; 185 a 2; Fior. 6; Spec. Vitae 86 a.
40
2Cel. 3, 139; Spec. Vitae 116 b; Conform. 224 b 1.
41
2Cel. 3, 130. Uma simples comparao entre essa narrativa no Speculum Vitae (116 b) e nas les
Conformitates (224 b 1) basta para mostrar como, em algumas de suaspartes, o Speculum representa um
estado da legenda anterior a 1385. EP 88.

435
sua hora de passar deste mundo para o Pai, como tinha amado os seus
que estavam no mundo, amou-os tambm at o fim.
O sol acabava de dourar com seus ltimos raios o alto das montanhas,
fez-se silncio ao redor do moribundo. Tudo ia ser consumado. O anjo
da libertao podia aproximar-se.
Ento ele pediu aos frades que entoassem a orao de Dav refugiado
na caverna: Sl 141 (142) 42.
Voce mea ad Dominum clamavi;
voce mea ad Dominum deprecatus sum.
Effundo in conspectu ejus orationem meam;
et tribulationem meam ante ipsum pronuntio.
In deficiendo ex me spiritum meum,
et tu cognovisti semitas meas.
In via hac qua ambulabam
absconderunt laqueum mihi.
Considerabam ad dexteram et videbam;
et non erat qui cognosceret me.
Periit fuga a me;
et non est qui requirat animam meam.
Clamavi ad te, Domine;
dixi: Tu es spes mea,
portio mea in terra viventium.
Intende ad deprecationem meam,
quia humiliatus sum nimis.
Libera me a persequentibus me,
quia confortati sunt super me.
Educ de custodia animam meam
ad confitendum nomini tuo;
me exspectant justi donec retribuas mihi.

42
Em alta voz clamo ao Senhor, /Em alta voz suplico ao Senhor. / Desafogo diante dele o meu lamento,
/ Diante dele exponho minha angstia. /Mesmo que me falte o alento, / Tu conheces meu caminho. / Na
senda que venho seguindo, / Esconderam-me uma armadilha. / Olha para a direita e v / Como ningum se
importa comigo! / No h refgio para mim; / Ningum se interessa por minha vida. / Eu clamo a ti, Senhor,
/ E digo: Tu s meu refgio, / Meu quinho na terra dos viventes. / Atende aos meus brados, / Porque estou
muito exausto. / Livra-me dos meus perseguidores, / Porque so mais fortes do que eu. / Tira-me desta priso,
/ Para que eu d graas ao teu nome; / Ao meu redor esto os justos; / Quan do me devolveres teu favor.

436
Durante o cntico tinham percebido o murmrio de sua voz unindo-se
de seus frades, seus filhos. Atravs das estrofes do poema sagrado ele
tinha repassado sua vida, suas angstias, e por ela tambm recordava ao
Pai as eternas promessas de seu divino amor.
Me exspectant justi!

Os justos, os santos de todos os tempos esto l me esperando, para


que com eles eu v dar glria ao vosso nome!

Ele ainda abriu os olhos para enxergar as coisas invisveis... e um


longo suspiro veio anunciar que sua prece tinha sido atendida: o mistrio
supremo estava cumprido.

Era sbado, 3 de outubro de 1226, ao cair da noite.

Os frades ainda contemplavam seu rosto, esperando surpreender algum


sinal de vida, quando numrosas cotovias vieram pousar cantando sobre
o teto de sua cela 43, como que para saudar a alma que acabara de voar,
e fazer para o Pobrezinho a canonizao que ele merecia, aquela com
que nunca tinha sonhado.

Na aurora do dia seguinte, os assisienses desceram para procurar seu


corpo e lhe fazer triunfantes funerais.

Por um piedoso pensamento, em vez de ir direto para a cidade, deram


uma volta para passar em So Damio, e assim se realizou a promessa
feita por Francisco s Irms, algumas semanas antes, de que ainda iria
v-las uma vez 44.

Sua dor foi dilacerante.

43
EP 112; 2Cel. Mil. 32; LM 214. Essa cela foi transformada em capela e est a alguns metros da
igrejinha da Porcincula. As duas esto abrigadas hoje pela baslica de Nossa Senhora dos Anjos.
44
EP 108; 1Cel. 116 e 117; LM 219; Conform. 185 a 1.

437
Esses coraes de mulheres se revoltavam contra o absurdo da morte,
mas, nesse dia, no houve s lgrimas em So Damio. Os frades esque-
ciam sua tristeza ao verem os estigmas. Quanto aos habitantes de Assis,
manifestavam uma indescsritvel alegria por ter em fim sua relquia.
Depositaram-na na igreja de So Jorge 45.

Menos de dois anos depois, no domingo 26 de julho, de 1228, Gregrio


IX foi a Assis para presidir em pessoa as cerimnias da canonizao,
e lanou, no dia seguinte, a primeira pedra da nova igreja dedicada ao
Estigmatizado.

Construda sob a inspirao de Gtregrio IX e sob a direo de Frei


Elias, essa maravilhosa baslica tambm um dos documentos dessa
histria, e talvez eu esteja errado se a negligencio.

Vo contempl-la, orgulhosa, rica, brilhante, escutem seu bordo,


o concerto de seus sinos nos dias de solenidades, olhem seus alicerces
que h sculos desafiam todos os terremotos, que se afundam no cho
com uma espcie de voluptuosidade imperiosa, com uma vontade de
dominao e de propriedade que no se encontra em nenhum outro
monumento, e vocs vo sentir sem dvida uma indizvel melancolia
penetrando-os, apertando suas gargantas quando pensarem que menos
de cinco anos antes a regra que a Santa S tinha feito carta eterna dos
Franciscanos dizia: Que os frades no se apropriem de nada, nem casa,
nem convento, nenhuma outra coisa, mas que sejam peregrinos e foras-
teiros na terra. Depois desam Porcincula, passem por So Damio,
corram aos Crceres, e vocs vo compreender o abismo que separava
o ideal de Francisco e o do pontfice que o canonizou.

45
Essa igreja existe at hoje, juxtaposta igreja de Santa Clara e serve de coro para as religiosas (Claris
nsas-Urbanistas) desse mosteiro.
Ver Miscell. fr. I, p. 44-48 um estudo muito interessante do prof. Carattoli sobre a cerveja de So Francisco.
Cf. Lb. p. 190.41 2Cel. 3, 130. Uma simples comparao entre essa narrativa no Speculum Vitae (116 b) e
nas les Conformitates (224 b 1) basta para mostrar como, em algumas de suaspartes, o Speculum representa
um estado da legenda anterior a 1385. EP 88.

438
Paul Sabatier

ESTUDO CRTICO
DAS FONTES
(1894)

Traduo e comentrios organizados


por Frei Jos Carlos Corra Pedroso

Centro Franciscano de Espiritualidade


Piracicaba - 2011

439
Pro patribus tuis nati sunt tibi filii;
constitues eos principes super omnem terram,
Memores erunt nominis tui in omni generatione et generationem.
Propterea populi confitebuntur tibi in aeternum et in saeculum sae-
culi 1.
Mane nobiscum, quoniam advesperascit, et inclinata est jam dies.
Et intravit cum illis. Et factum est, dum recumberet cum eis, acce-
pit panem et benedixit, ac fregit, et porrigebat illis. Et aperti sunt
oculi eorum, et cognoverunt eum; et ipse evanuit ex oculis eorum 2.
Beati sunt qui te viderunt,
et in amicitia tua decorati sunt 3.
Qui timent te videbunt me, et laetabuntur,
quia in verba tua supersperavi 4.

1
Sl 44, 17-18.
2
Lc 24, 29-31.
3
Sir 48, 11.
4
Sl 118, 74.

440
No lugar de teus pais viro teus filhos,
que nomears prncipes por toda a terra.
Lembrarei teu nome por todas as geraes.
e assim os povos te celebraro para sempre 5.
Fica conosco, pois tarde e o dia j declina:
E ele entrou para ficar com eles. E aconteceu que, estando com
eles mesa, tomou o po, rezou a bno, partiu e lhes deu. Ento,
abriram-se os olhos deles e o reconheceram, mas ele desapareceu 6.
Felizes os que te viram,
e os que adormeceram no amor 7.
Ao ver-me, alegram-se os que te reverenciam
porque espero em tua palavra 8.

5
Sir 44 (45), 17-18.
6
Lc 24, 29-31.
7
Sir 48, 11.
8
Sl 118 (119), 74.

441
H poucas vidas na histria to bem documentadas como a de
So Francisco. Isso admirar certamente mais de um leitor, mas para
convencer-se basta percorrer a lista aqui adiante, que deixamos o mais
sucinta possvel.
Admite-se nos meios estudiosos que os elementos essenciais desta
biografia desapareceram ou foram completamente alterados. O exagero
de alguns autores religiosos, que aceitam tudo, e, entre diversas narrativas
de um mesmo fato, escolhem sempre a mais longa e a mais maravilhosa,
levou a um exagero semelhante no sentido contrrio.
Se fosse preciso indicar passo a passo os acontecimentos os resul-
tados desses excessos, este volume teria que ser duplicado ou mesmo
quadruplicado. Quem gosta dessas questes vai encontrar nas notas a
breve indicao dos documentos originais de onde provm cada narrativa.
Para no voltar aos erros que se cometeram sobre os documentos francis-
canos, e para mostrar em algumas linhas sua extrema importncia, darei dois
exemplos: nenhum contemporneo nosso falou to bem de So Francisco
como Ernesto Renan; ele voltou a esse tema em todas as suas obras com uma
piedade emudecida, e ele era o melhor conhecedor das fontes desta histria.
Entretanto, ele no hesitou ao dizer, nas pginas que consagrou ao Cntico
do Sol, a obra mais conhecida de So Francisco: A autenticidade deste texto
parece certa, mas preciso observar que no temos o original italiano. O texto
que possumos uma traduo de uma verso portuguesa que, por sua vez,
tinha sido traduzida do espanhol 9.

Ora, o texto italiano primitivo existe 10, no s em numerosos manus-


critos na Itlia e na Frana especialmente na Mazarina 11 mas tambm
no livro bem conhecido das Conformidades 12.

9
E. Renan, Nouvelles tudes dhistoire religieuse, Paris, 1884, p. 331.
10
Ver p. 415.
11
Bibliothque Mazarine, Ms. 8531: Speculum perfectionis S. Francisci; o cntico est no f 51. Cf. Ms.
1350 (datado de 1459). Este texto est publicado nos Romanische Studien, Halle, 1871, p. 118-122. Der
Sonnengesung v. Fr. dA.
12
Conform. (Milo 1510), 202 b. 2 s. De resto, certo que Diola, nas Croniche degli ordini instituti da S.
Francesco (Veneza, 1606, 3 vol. in-4), traduzidas sobre a verso castelhana da obra composta em portugus
por Marcos de Lisboa, teve a idiotice de colocar em italiano essa traduo de uma traduo.

442
Um erro de um alcance tambm bastante grave o cometido pelo
mesmo autor ao negar a autenticidade do Testamento de So Francisco:
essa pea no apenas a mais bonita expresso do sentimento religioso
de seu autor, mas consitui uma espcie de auto-biografia e contm a re-
vocao solene e mal disfarada de todas as concesses que lhe tinham
sido arrancadas. Veremos adiante que sua autenticidade perfeitamente
inatacvel 13. Esses dois exemplos bastaro, espero, para mostrar a neces-
sidade de abordar este estudo por um exame de conscincia das fontes.
Se o eminente historiador de que falamos ainda estivesse no mundo,
ele daria seu amplo e brilhante sorriso diante desta pgina, esse simples
sim que antigamente fazia seus alunos tremerem de emoo na pequena
sala do Collge de France.

No sei o que ele pensaria deste livro, mas sei muito bem que ele
amaria o esprito com que ele foi empreendido, e me perdoaria facilmen-
te por t-lo escolhido para bode expiatrio de minhas cleras contra os
sbios e os hagigrafos.

13
Ver pg. 455 n.2.

443
NOTA DO EDITOR

O progresso dos estudos franciscanos, depois de trinta e seis anos que


este livro foi escrito, foi to considervel e as publicaes de textos to
numerosas que o estudo crtico das fontes no poderia ser republicado
como apareceu naquele tempo.

Em todas essas questes, precisamos remeter s obras e publicaes


especiais, hoje muito numerosas, e, no que diz respeito aos trabalhos
de Paul Sabatier, aos diversos volumes da Collection dtudes e de
Documents sur lhistoire religieuse e littraire du moyen ge que ele
publicou mais tarde, principalmente ao tomo I da Collection Speculum
Perfectionis como tambm aos Opuscules de critique historique, e enfim
ao volume em que o Sr. Arnold Goffin vai reunir, muito em breve, ex-
tratos das notas destinadas Nouvelle Vie de Saint Franois que Paul
Sabatier preparou 14.

Mas ns acreditamos que devamos conservar da antiga crtica das


fontes as vises de conjunto que marcam o encadeamento histrico das
principais fontes. Acrescentamos entre colchetes a meno aos docu-
mentos atualizados depois. Tiramos essas indicaes tanto dos volumes
da Collection e dos Opuscules, como das notas deixadas por Paul Sa-
batier. Isso pensando nos leitores que no so especialistas e no tem
possibilidade de recorrer s obras de erudio.

Quanto s notas do corpo da obra, acrescentamos as que estavam


no exemplar de trabalho do autor, e suprimimos os que nos pareceu
ultrapassado.

14
Etudes indites sur Saint Franois dAssise, por Paul Sabatier, editados por Arnold Goffin. Paris, Fis-
chbacher.

444
SUMRIO

I. OBRAS DE SO FRANCISCO.
II. - PRINCIPAIS BIOGRAFIAS PRIMITIVAS.
I. Nota preliminar. Carta encclica de Frei Elias.
[II. SpecuIum Perfectionis.]
[III. Sacrum Commercium.]
IV. Primeira Vida por Toms de Celano.
V. Um olhar sobre a histria da Ordem de 1230 a 1244.
VI. Legenda dos Trs Companheiros.
VII. Fragmentos da parte surpresa da Legenda Speculum Vitae.
[VIII. Fragmentos da tradio leonina descobertos posteriormente.]
[IX. 3 Soc. Melchiorri-Marcellino.]
[X. Os documentos do R. Pe. Lemmens.]
[XI. Fragmentos da Legenda Vetus.]
[XII. O manuscrito A. G. Little.]
[XIII. Legenda Antiqua do manuscrito de Perusa.]
XIV. Segunda Vida por Toms de Celano. Primeira forma.
[XV. Segunda Vida por Toms de Celano segundo o manuscrito de Marselha
ou 3 Celano.]
XVI. Legenda de So Boaventura.
XVII. De Laudibus de Bernardo de Bessa.
III. FONTES DIPLOMTICAS.
I. Registros do cardeal Hugolino.
II. Bulas.
IV. CRONISTAS DA ORDEM.
I. Crnica de Frei Jordo de Jano.
II. Eccleston: Chegada dos Frades Inglaterra.
III. Crnica de Frei Salimbene.
IV. Crnica das Tribulaes.
V. Os Fioretti e seus apndices.
VI. Crnica dos XXIV gerais.
VII. As Conformidades de Bartolomeu de Pisa.
VIII. Crnica de Glassberger.
IX. Crnica de Marcos de Lisboa.
V. CRONISTAS DE FORA DA ORDEM.
I. Jacques de Vitry.
II. Toms de Spalato.
III. Cronistas diversos.

445
I

OBRAS DE SO FRANCISCO

Os escritos de So Francisco 15 so garantidamente a melhor fonte a


consultar para chegar a conhec-lo, e nos admiramos muito de que eles
tenham sido negligenciados por tanto tempo pela maior parte de seus
bigrafos. verdade que eles do poucas informaes sobre sua vida, e
no fornecem datas nem fatos 16; mas fazem mais do que isso: marcam
as etapas de seu pensamento e de seu desenvolvimento espiritual. As
legendas nos falam de So Francisco como ele foi, e por isso mesmo
sofrendo um pouco as circunstncias, obrigado a se dobrar s exigncias
de sua situao de geral de uma ordem aprovada pela Igreja, de taumatur-
go e de santo. Suas obras, ao contrrio mostram sua prpria alma; cada
frase foi no somente pensada mas vivida, e nos apresenta as emoes
do Poverello ainda palpitantes.
Tambm, enquanto nos escritos dos Franciscanos encontramos uma
palavra de seu Mestre, ela sai de si mesma, ela se separa de repente com
um som puro e doce que vai despertar uma fada adormecida no fundo
de sua alma, e o faz tremer.
Essa flor de amor das palavras de So Francisco vai ser um critrio
muito bom para julgar a autenticidade dos opsculos que lhe so atribu-

15
Reunidos inicialmente por Wadding (Anvers, 1623, in 4) depois foram publicados vrias vezes, espe-
cialmente pelo Pe. de la Haye (Paris, 1641).
Edies recentes: Opuscula sancti Patris Francisci Assisiensis sec. codices Mss. emendata et denuo edita
a PP. Colegii Bonaventurae ad Claras Acquas (Quarachi) prope Florentiam 1904, in.-16 de XVI et 209
pages. Analekten zur Geschichle des Franciscus von Assisi S. Francisci Opuscula, regula paenitentium
antiquissima, de regula Minorum, de stigmalibus s. patris, de Sancto eiusque societate testimonia, mit einer
Einleitung und Regesten Zur Geschichte des Franciscus und der Franciscaner herausgegeben von H. Bo-
ehmer, Professor in Bonn. (Tbingen und Leipzig, 1904), in-8 de LXXII et 146 p. Tambm foi publicada
uma pequena edio sem a introduo nem a regesta (6 fasccujo da 2 srie da Coleo do Dr. G. Krger)
in-8 de XVI e 110 p. Pe. Ubaldo de Alenon, Les Opuscules de Saint Franois dAssise. Nova traduo
francesa, in-12 de 286 p., Paris, Viva Poussielgue, Couvin Maison Saint-Roch, 1905.
16
Die Briefe die unter seinen Namen gehen, mgen theilweise acht sein. Aber sie tragen kaum etwas zur
nheren Kenntniss bei undkonnen daher fast ausser Acht bleiben. K. Mller, Die Anfnge des Minoritenor-
dens, Freiburg i/B, 8, p. 3.

446
dos pela tradio; mas esse trabalho de triagem no nem longo nem
difcil.
Se, mais tarde, foram feitos aqui e ali alguns esforos pouco discretos
para honr-lo com milagres que ele no fez, que ele nem teria pensado
em fazer, nunca se tentou enriquecer sua bagagem literria com peas
falsas ou supostas 17. A melhor prova que foi preciso esperar Wadding,
isto , o sculo XVII, para encontrar o primeiro e nico esforo srio na
tentativa de reunir essas preciosas lembranas. Vrias foram perdidas 18,
mas o que sobrou basta para nos dar de alguma maneira a contra-prova
das legendas 19. Nessas pginas, Francisco se entrega a seus leitores
como ele se dava antigamente a seus companheiros; cada uma delas
a prolongao de um sentimento, um grito do corao ou um salto para
o Invisvel.

17
Foram atribudos a So Francico trechos que no so dele; mas so erros involuntrios e feitos sem
segunda inteno. O cuidado da exatido literria relativamente novo, e era mais fcil para os que ignora-
vam o autor de alguns opsculos franciscanos atribu-los a So Francisco do que reconhecer sua ignorncia
ou fazer longas pesquisas.
18
Os cnticos, uma carta aos frades da Frana, Eccleston. 6; uma carta aos frades de Bolonha: Praedi-
xerat per litteram in qua fuit plurimum latinum, Ibid., cartas a Santa Clara: Scripsit Clarae et sororibus
ad consolationem litteram in qua dabat benedictionem suam et absolvebat, etc. Cont., f 185 a 1. Cf. Test.
B. Clarae. A. SS. Augusti., t. lI, p. 747: Plura scripta tradidit nobis ne post mortem suam declinaremus a
paupertate, cartas do cardeal Hugolino. Ver LTC 67.
No s negligncia que devemos atribuir a perda de vrios opsculos: Quod nephas est cogitare,
in provincia Marchie et in pluribus aliis locis testamentum beati Francisci mandaverunt (prelati ordinis)
districte per obedientiam ab omnibus auferri et comburi. Et uni fratri devoto et sancto, cujus nomen est N
de Rocanato combuxerunt dictum testamentum super caput suum. Et toto conatu fuerunt solliciti, annulare
scripta beati patris nostri Francisci, in quibus sua intentio de observantia regule declaratur. Hubertino de
Casale, apud Archiv. III, p. 168-169.
19
O que eu apresentei de novo em 1893 nos estudos franciscanos, era de uma simplicidade infantil: era a
idia de que para conhecer So Francisco precisamos primeiro nos dirigir a ele. Graas a Deus temos uma
parte de seus escritos, e so escritos carregados de emoo e de originalidade.
Esse o eixo da histria franciscana. Alis, foi adotado por todos os historiadores recentes do santo.
Deste ponto de vista, vemos pouco a pouco todos os documentos se apresentarem organicamente, se ajun-
tarem sobre as circunstncias. Aqui e ali sobram alguns vazios de obras em que faltam folhas.
Podemos contar com o futuro. Ter constatado a ausncia de umdocumento j estar no seu caminho. Um
passado recente promete todas as esperanas. (Op., t. II, fasc. XVI, 1914-1919, p. 408.)
A melhor biografia de So Francisco ser evidentemente a que tiver os pontos de contacto mais numerosos
e mais ntimos com as obras de So Francisco.
Ora, se assim colocamos as biografias, o Speculum Perfectionis ocupa um lugar todo especial: sua lngua,
sua sentimentalidade, sua viso a dos Opsculos.
Depois vm os Trs Companheiros. Depois a 2 de Celano. Depois, passavelmente mais longe, 1Cel., e
mais longe ainda, Boaventura (Nota manuscrita).

447
Os arquivos do Sacro-Convento de Assis possuem um manuscrito
cuja importncia no pode ser exagerada. J foi estudado em muitas
oportunidades 20 e traz o n 338. Parece que no se deram conta de um
detalhe de forma, que no deixa de ter uma grande importncia: que o
no 338 no um manuscrito, mas toda uma coleo de manuscritos de
pocas bem diversas, que foram reunidos porque tinham mais ou menos
o mesmo formato.
Esse carter factcio da coleo mostra que cada uma das peas que
o compem deve ser examinada parte, e que no seria possvel dizer,
no conjunto, que ele do sculo XIII ou XIV. A parte que nos interessa,
perfeitamente homognea, formada por trs cadernos de pergaminho
(fol. 12 a - 44 b) e encerra uma parte das obras de So Francisco.
1 A Regra definitiva aprovada por Honrio III no dia 29 de novembro
de 1223 21 (fol. 12 a -15 b).
2 O Testamento de So Francisco 22 (fol. 16 a -18 a).
3 As Admoestaes 23 (fol. 18 a - 23 a).
4 A carta a todos os cristos 24 (fol. 23 b - 28 a).
5 A carta a todos os membros da Ordem reunidos em um captulo
geral 25 (fol. 28 a - 31 b).
6 Um conselho a todos os clrigos sobre o respeito Eucaristia 26

(fol. 31 b -32 b).


7 Um curto trecho precedido pela rubrica: De virtutibus quibus de-
corata fuit sancta virgo et debet esse sancta anima 27 (fol. 32 b - 33 a).

20
Principalmente para Ehrle: Die historischen Handschriften von S. Francesco in Assisi. Archiv., t. I, p.
484. Sobre a data ver p. 439.
21
Ver pg. 344 ss e 384.
22
Ver pg. 455 e seguintes..
23
Ver pg. 353 e ss..
24
Ver pg. 442 e ss..
25
Voir pg 438 e ss.
26
Ver pg. 445.
27
Sua autenticidade garantida pela citao de : 2Cel. 3,119. Cf. Spec.Vitae, 126 b e 127 a.V. p. 429, n 4.

448
8 As laudes Creaturarum ou Cntico do Sol 28 (fol. 33 a).
9 Incipiunt laudes quas ordinavit B. pater noster Franciscus et di-
cebat ipsas ad omnes horas diei et noctis et ante officium B. V. Mariae
sic incipiens: Sanctissme Pater 29 (fol: 34 a-34 b).
10 O Ofcio da Paixo (34 b - 42 a). Esse ofcio, onde os salmos
so substitudos por sries de versculos bblicos, queria fazer quem o
rezasse acompanhar, hora por hora, as emoes do Crucificado a partir
da tarde da Quinta-feira Santa 30.
11 Um regulamento para os frades em retiro nos eremitrios 31 (fol.
43 a - 43 b).
Um olhar sobre essa lista basta para ver que os opsculos de Fran-
cisco, a reunidos, dirigem-se a todos os frades, ou so uma espcie de
encclicas que eles devem transmitir aos seus destinatrios.
A prpria ordem dos documentos mostra que temos nesse manuscrito
a biblioteca primitiva dos Frades Menores, a coleo de que cada minis-
tro provincial carregava uma cpia. Era verdadeiramente o seu vitico.
Mateus Paris conta como ficou admirado vista desses monges estra-
nhos, vestidos de tnicas remendadas, e carregando seus livros em uma
espcie de sacola pendurada no pescoo 32.
O manuscrito de Assis foi sem dvida destinado a esse uso; se ele no
diz nada sobre as viagens que fez, sobre os frades para quem foi guia e
inspirao, pelo menos faz-nos descer, melhor que todas as legendas, na
intimidade de So Francisco, e vibrar em unssono com aquele corao

28
Ver pg.415 ss.
29
Texto nas Conformidades 138 a 2. A parfrase do Pai-nosso (Conform., 138 a 2, 122 b s, 178 a 2) aqui
est indicada mas no dadas.
30
A autenticidade deste ofcio, ao qual no se faz nenhuma aluso nas biografias de So Francisco dada
como certa pela vida de Santa Clara: Officium crucis prout crucis amator Franciscus instituerat (Clara)
didicit et affectu simili frequentavit. A. SS. Augusti, t. II, p. 761 a.
31
Comea: Illi qui volunt stare in heremis. Este texto est tambm nas Conformidades 143 a 1. Cf. 2Cel.
3; 113. Ver pg. 185 n. 1 e 395 n. 2.
32
Nudis pedibus incedentes, tuniculis cincti, tunicis griseis et talaribus peciatis, insuto capucio utentes...
nihil sibi ultra noctem reservantes... libros continue suos... in forulis a collo dependentes bajulantes. Historia
Anglorum, Pertz: Script., t. XXVIII, p. 397. Cf. EP. 76 e 77; 2Cel. 2, 135; Actus 4; Fior. 5.

449
que nunca se separou da alegria, do amor e da poesia. De que poca
esse manuscrito? Seria precso ser um palegrafo para determinar isso.
Ns arriscamos uma hiptese que, se tiver fundamento, o levaria por
perto de 1240 33.
Seu prprio contedo parece corroborar essa data recuada. Porque h
nele muitos documentos com os quais se formou rapidamente o Manual
do Frade Menor.
Bem depressa ficaram contentes com a Regra para fazer companhia ao
brevirio; s vezes acrescentavam o Testamento. Mas os outros escritos,
se no caram de uma vez no esquecimento, pelo menos deixaram de
ter um uso dirio.
Os Escritos de So Francisco que no tm um interesse geral ou no
dizem respeito aos Frades, naturalmente no tiveram lugar nessa cole-
o. Nessa nova categoria preciso enumerar os seguintes documentos:
1 A Regra de 1221 34.
2 A Regra das Clarissas, que possumos em sua primeira forma 35.
3 Uma espcie de instruo geral para os ministros gerais 36
4 Um bilhete a Santa Clara 37.
5 Um compromisso escrito mandado a Santa Clara 38.
6 Um outro bilhete para Santa Clara 39.
7 Um bilhete a Frei Leo 40.
8 Uma ou mais cartas a Frei Elias 41.

33
Ver pg. 439 n. 1.
34
Ver pg. 343 e sesguinte.
35
Ver pg. 200.
36
Ver pg. 435.
37
Ver pg. 323.
38
Ver pg. 200.
39
Ver pg. 446.
40
Ver pg. 356 ss.
41
Ver pg. 435 ss. - Texto e exame crtico, Coll. t. II. Apndice, p. 113-13.)

450
9 Algumas oraes 42.
10 Uma obedincia dada a Frei Agnelo de Pisa 43.
11o Uma lauda mural no Eremita 44.
12o A bno a Frei Leo. O autgrafo original est conservado no
tesouro do Sacro-Convento.
Sua autenticidade bem estabelecida, ela j tinha sido preciosamente
guardada quando Toms de Celano estava vivo 45. O centro da folha
ocupado pela bno que foi ditada por So Francisco a Frei Leo: Bene-
dicat tibi Dominus e custodiat te, ostendat faciem suam tibi, e misereatur
tui, convertat vultum suum ad te et det tibi pacem.
Embaixo, Francisco acrescentou com sua letra grossa, um pouco
infantil: Dominus benedicat fr. Leo te e juntou o sinal tau T que como
uma assinatura dele 46.
Intil dizer com que cuidado Frei Leo guardou essa lembrana. Em-
baixo das palavras escritas pela prpria mo de Francisco ele escreveu:
Beatus Franciscus scripsit manu sua istam benedictionem mihi fratri
Leoni, e embaixo do tau: Simili modo fecit istud signum thau cum capite
manu sua.

42
a. Sanctus Dominus Deus noster. Cf. S.Vitae, 126 a Firmamentum 18 b 2. Conform. 202 b 1. b. Ave
Domina sancta. Cf. S. Vitae 127 a. Conform. 138 a 2. (Matri Jesu) peculiares persolvebat laudes. 2Cel. 3,
127. c. Sancta Maria Virgo. Cf. S. Vitae 126 b. Conform. 202 b 2. c. Sancta Maria Virgo. Cf. Spec. Vidae
126 b. Conform. 202 b 2.
43
Ver Wadding., t. I, p. 303.
44
Ver Wadding., t. I, p. 156. Salvatore Vitalis, Historia Serafica. p.173.
45
2Cel. 2, 18.
46
Quem sabe se So Francisco no adotou esse sinal manual (ver Giry, Manuel de diplomatique, p. 600
ss.) depois de ter ouvido o sermo com quem Inocncio III inaugurou a primeira sesso do Conclio de La-
tro (11 de novembro de 1215) em que uma grande parte fala justamente sobre o simbolismo do Tau: Hoc
signum gerit in fronte, diz em particular, qui virtutem crucis ostendit in opere: ut juxta quod dicit Apostolus:
Crucifigat carnem suam cum vitiis et concupiscentiis idemque cum Apostolo dicat: Mihi absit gloriari
nisi in cruce Domini nostri Jesu Christi per quem mihi mundus crucifixus est et ego mundo. Innocentii
Opera, ed. Migne, t. IV, col. 677. Essa suposio parece menos inverossmil que o Mihi absit de So Paulo,
que foi, como se sabe, a divisa dos Frades Menores. Actus 7; Fior. 8 ad finem. Cf. 2Cel. 3, 131 s. Adm 5.
O Pe. Cuthbert, Life of S. Francis of Assisi, p. 179, chegou, por sua parte, a essa mesma hiptese. O Pe.
Livarius Oliger AFH, t. V (1913), p. 8 e p. 331, defende a opinio contrria.
Em fim, difcil no se perguntar se esse mesmo sermo apostlico no inspirado a viso de Frei Pacfico:
Aspexit... Magnum signum thau super frontem beati Francisci. Quod diversi coloribus circulis pavonis pul-
chritudinem praefrebat. 2Cel., 3, 49. LM 51. Ver Ezequiel IX, 4, Boaventura cita o versculo. LM. 51 (IV).

451
Enfim, para autenticar o conjunto, escreveu na margem superior: Be-
atus Franciscus duobus annis ante mortem suam fecit quadragesimam
in loco Alverna; ad honorem beatae Virginis Mariae matris Dei e Beati
Michaelis archangeli a festo assumptionis sanctae Mariae Virginis us-
que ad festum sancti Michaelis septembris et facta est super eum manus
Domini. Post visionem et allocutionem seraphym et impressionem stig-
matum Christi, in corpore suo, fecit has Laudes ex alio latere cartulae
scriptas et manu sua scripsit gratias agens Deo de beneficio sibi collato.
A Lauda que est no verso a que comea:
Tu es sanctus Dominus Deus solus qui facis mirabilia 47:
Esse documento no importante s por ser um testemunho de pri-
meiro valor para os estigmas e a estadia no Alverne, mas tambm porque
nos mostra como Frei Leo queria ser to preciso. Isso tambm reve-
lado pelas informaes fornecidas pelo certificado de autenticidade que
ele colocou no Brevirio de So Francisco, quando Frei ngelo e ele o
confiaram a Benedetta, que tinha sucedido a Santa Clara como abadessa
das Senhoras Pobres 48.
Essa paixo pelo detalhe preciso e tocante tambm ficou marcada no

47
estranho que ningum tenha pensado ainda em pedir a essa relquia um testemunho histrico, quando
em 1894 eu chamei a ateno para seu valor documentrio (Vie de Saint Franois, 1 ed., p. XLII n.8 e p.405).
Depois disso eu tomei iniciativas junto aos Padres Conventuais e ao bispo de Assis para obter a abertura do
relicrio que escondia ento o verso para ver a Lauda que, segundo as indicaes de Frei Leo, devia estar
a. Mas me fizeram desistir. Mas consegui na edio alem Leben des hl. Franz, Berlim Reimer, 1895, dar
o texto dessa Lauda (p. 344-346) que eu tinha encontrado no Ms. 344 de Assis, f 78.
A bno j tinha sido reproduzida por heliogravura em Saint Franois, in-4 Paris, 1885 (Plon). Para a
questo paleogrfica ver Coll., t. I, p. 68, n 1.
Diversos trabalhos sobre o autgrafo de Assis apareceram ento: Mons. Faloci Pulignani: Tre Autografi di
S. Francesco, com trs reprodues fotogrficas, 1 a bno; 2 a lauda do verso; 3 a carta de So Fran-
cisco a Frei Leo (v. pg. 356). Santa Maria degli Angeli. Tipografia della Porziuncola. Cf. Miscell, fr. t. II,
p. 33-39 (1895). - Pe. Eduardo de Alenon, Arquivista geral dos FF. MM. Capuchinhos, La Bnediction de
Saint Franois. Histoire et authenticit de la relique dAssise.
Para o texto da lauda v. Opuscula, ed. Quaracchi, p, 124 s. Boehmer, Analekten, p.69. Sobre o
autgrafo ver tambm AFH, t. III (1910), p. 40 ss.
48
Comservado entre as relquias da Baslica de Santa Clara em Assis. Foi dada uma reproduo doada em
So Francisco, in-4o, Plon,1885. O Pe. Eduardo de Alenon OFMC fez uma longa descrio desse breviro
na Analecta Minorum Cappucinorum, no de juin 1898. Traduo italiana, mas sem as notas, em lOriente
Serafico, 15 de julho de 1898.

452
ttulo do Cntico do Sol do manuscrito 338 de Assis. Incipiuntur laudes
creaturarum quas fecit b. F. ad Laudem e honorem Dei cum esset infirmus
apud Sanctum Damianum. Encontramos numerosas precises do mesmo
tipo no Speculum Perfectionis, na Legenda dos Trs Companheiros e em
toda a tradio leonina em geral 49.
Quanto aos dois famosos cnticos Amor de caritade 50 e In foco
lamor mi mise 51, no para atribu-los a So Francisco, pelo menos em
sua forma atual.
Indiquei acima alguns opsculos de que temos indicao certa mas
que foram perdidos. So bem mais numerosos do que se poderia pensar
inicialmente. No zelo missionrio dos primeiros anos, os frades no
podiam pensar em colecionar documentos. Ningum escreve suas me-
mrias na juventude.

II
PRlNCIPAIS BIOGRAFIAS

I. - Nota preliminar. Carta encclica de Frei Elias.


Para apreciar de maneira um pouco exata os documentos de que va-
mos nos ocupar, preciso recoloc-los no meio das circunstncias em
que desabrocharam, estud-los detalhadamente, e determinar o valor
especial de cada um.
Aqui, mais do que em outros lugares, preciso tomar cuidado com
teorias fceis e generalizaes precipitadas. A mesma existncia, contada
por dois contemporneos igualmente verdicos, pode ter tonalidades bem
diferentes. Isso importante principalmente se o homem de quem se trata
provocou entusiasmos e cleras, se o seu pensamento ntimo, se as suas
criaes deram margem a discusses, se as prprias pessoas encarregadas
de realizar suas idias e de continuar sua obra se dividem e se atacam.

49
Segundo CoIl., t. I, p. 68 s. e notas manuscritas.
50
Wadding d o texto de acordo com So Bernardino de Sena, Opera, t. IV, Sermo 16 extraord. et sermo
feria sexta Parasceves. Amoni: Legenda trium Sociorum, p. 166.
51
Wadding colocou o seu texto em S. Bernardino, loc. cit, Sermo IV extraord. Tambm foi reproduzido
por Amoni, loc. cit., p. 165. Encontramos duas verses muito curiosas nas Miscellanea, 1888, p. 96 ot 190..

453
Ora, foi isso que aconteceu com So Francisco. As divergngias se
manifestaram quando ele ainda vivia e embaixo dos seus olhos, primeiro
surdamente, depois abertamente.
brio de amor, ele tinha ido de choupana em choupana, de castelo em
castelo, pregando a pobreza absoluta; mas esse mpeto de entusiasmo,
esse idealismo ilimitado no podiam durar muito. A Ordem dos Frades
Menores, ao crescer, abriu-se no s para algumas almas de elite que
chegaram ao paroxismo dos ardores msticos, mas a todos os homens
que aspiravam por uma reforma religiosa: leigos piedosos, monges de-
siludidos sobre a virtude das ordens antigas, padres assustados com os
vcios do clero secular, todos traziam sem dvida sem querer e mesmo
sem saber muito de seu homem velho que no deixaria de transformar
pouco a pouco a nova instituio.
Vrios anos antes de sua morte, Francisco tinha percebido o perigo e
fizera de tudo para o esconjurar. Ele foi visto j agonizante reunir todas
as suas foras para declarar mais uma vez suas vontades to claramente
quanto possvel, e para conjurar seus frades a jamais tocar na Regra,
mesmo sob pretexto de coment-la ou de explic-la. Ora, nem haviam
passado quatro anos e Gregrio IX inaugurava, a pedido dos prprios
frades, a longa srie dos pontfices que explicaram a Regra 52!
A pobreza, como tinha sido querida por Francisco, virou bem depres-
sa uma lembrana. O sucesso inaudito da Ordem no lhe trazia apenas
novos recrutas; trazia tambm dinheiro, e como recus-lo quando havia
tantas obras para serem fundadas? Muitos frades acharam que seu mestre
tinha exagerada em certas coisas, que havia na Regra matizes a serem
observados, por exemplo entre os conselhos e os preceitos, mas foi s
abrir a porta para as interpretaes que se tornou impossvel fech-la.
A famlia franciscana dividiu-se ento em partidos opostos que muitas
vezes difcil distinguir.
Havia inicialmente alguns homens resistentes, indisciplinados que se
agrupavam em torno dos antigos frades. Esses achavam, em sua qualidade
de primeiros companheiros do Santo, que tinham uma autoridade moral

52
Bula Quo elongati de 28 de setembro de 1230. Ver p. 459 n. 1.

454
muitas vezes maior que a autoridade oficial dos ministros e dos guardi-
es. O povo se voltava instintivamente para eles como os verdadeiros
continuadores da obra de So Francisco. E no era sem razo.
Eles tinham o vigor, a veemncia das convices absolutas; se quises-
sem, no poderiam mais transigir. As pessoas os viam aparecer de repente
nas cidades ou nos povoados para convidar tanto os grandes como o povo
a fazer penitncia. Quando desciam de seus eremitrios nos Apeninos,
com os olhos brilhando de febre, perdidos em sua contemplao, tudo
em sua pessoa falava de suas radiosas vises; e a multido admirada e
subjugada ajoelhava-se para beijar os rastos de seus ps, com o corao
misteriosamente perturbado.

Um grupo mais numeroso era o dos frades que, sem ser menos santos,
condenavam essas atitudes. Nascidos longe da mbria, em regies onde a
natureza parece madrasta, onde a adorao, longe de ser um ato instintivo
da alma feliz desabrochando para bendizer o Pai celeste, ao contr-
rio do grito de angstia do tomo perdido na imensido, eles queriam
principalmente uma reforma religiosa racional e profunda. Sonhavam
em levar a Igreja de volta pureza dos dias antigos, e viam no voto de
pobreza, entendido no sentido mais largo, o melhor meio de lutar contra
os vcios do clero; mas se esqueciam do que tinha havido, na misso de
So Francisco, de frescor, de alegria italiana, de poesia ensolarada.

Cheios de admirao por ele, queriam, entretanto alargar a base de


sua obra e para isso no queriam renunciar a nenhum meio de influn-
cia, principalmente cincia. Essa tendncia dominava na Frana, na
Alemanha e na Inglaterra.

Na Itlia ela era representada por uma poro muito poderosa, se no


em nmero, ao menos pela autoridade de seus representantes. Era a que
o papado favorecia. Foi a de Frei Elias e de todos os ministros gerais da
Ordem no sculo XIII, com exceo de Joo Parenti (1227-1232), Joo
de Parma (1247-1257) e Raimundo Gaufridi (1289-1295).

Na Pennsula, um terceiro grupo, o dos relaxados, era de longe o mais


numeroso: os homens vulgares para quem a vida monstica parecia a

455
mais fcil existncia, os monges errantes felizes de ter algum sucesso
exibindo a Regra nova, e formavam a maioria da famlia franciscana.

No difcil entender que documentos emanados de meios to dife-


rentes tivessem a marca de sua origem.

Os homens que nos vo dar seu testemunho foram os campees de


pontos de vista muitas vezes opostos na luta sobre a questo da pobreza,
luta que perturbou a Igreja durante dois sculos e que, depois de ter ator-
mentado as conscincias, acabou tendo seus carrascos e seus mrtires.

Para determinar o valor desses testemunhos preciso comear bus-


cando sua origem. evidente que uma narrativa de intransigentes de
direita ou de esquerda no ter mais do que um valor relativo quando
se trata de pontos controversos; donde concluimos que a autoridade de
um narrador pode variar de uma pgina para outra, ou mesmo de uma
linha para outra.

Essas idias, to simples que quase precisamos pedir desculpas por


apresent-las, nunca guiaram, at hoje, os que estudaram a vida de So
Francisco. Os mais sbios, como Wadding e Papini, puseram lado a lado
as narrativas dos diversos bigrafos, podando aqui ou ali os que eram
muito contraditrios; mas fizeram isso ao acaso, sem regra nem mtodo,
guiados pela impresso do momento ou por critrios desse semi-raciona-
lismo que os historiadores eclesisticos confundem to frequentemente
com os processos da crtica cientfica.

O longo trabalho do bolandista Suyskens est viciado por um defeito


anlogo devido a seu princpio de que os documentos mais antigos so
sempre os melhores 53, ele se estabeleceu sobre a Primeira Vida por
Toms de Celano como sobre uma rocha inabalvel e julgou todas as
outras legendas atravs dela 54.

53
No preciso dizer que no quero ser contra esse princpio, um dos mais fecundos da crtica, mas ainda
necessrio no o usar isoladamente.
54
Os trabalhos de erudio aparecidos na Alemanha nestes ltimos anos (antes de 1894) tm o mesmo
defeito. Vamos encontrar a sua citao em tempo oportuno no corpo da obra.

456
Quando se ligam os documentos s circunstncias perturbadas de seu
aparecimento, alguns perdem um pouco de sua autoridade, outros, que
tinham sido negligenciados por estar em contradio com os testemunhos
que se tornaram quase oficiais, recuperam de repente a voz, e todos, em
fim, ganham uma vida que redobra seu interesse.

Essa mudana de ponto de vista na apreciao das fontes, essa crtica


que eu seria tentado a chamar de solidria e orgnica, leva a uma trans-
formao profunda na biografia de So Francisco. Por um fenmeno que
pode parecer estranho, chega-se a fazer um retrato dele que se aproxima
bem mais do que existe na imaginao popular na Itlia, do que o feito
pelos sbios historiadores mencionados acima.
Quando Francisco morreu (1226), os partidos que dividiam a Ordem
j tinham entrado em luta, mas esse acontecimento precipitou a crise.
Frei Elias j tinha havia cinco anos as funes de ministro geral. Cabia
a ele o cuidado de anunciar aos frades a morte do fundador. Ele o fez
por uma carta encclica que foi conservada 55. Ela constitui a mais antiga
descrio dos estigmas.
O autoritrio ministro desenvolveu imediatamente uma enorme
atividade. Investido da confiana de Gregrio IX, demitiu os zelanti
dos cargos, fortificou a disciplina at nas provncias mais afastadas, e
preparou com incrvel rapidez a construo da dupla baslica que devia
receber as cinzas do Estigmatizado.
No dava para fazer nada disso sem provocar a indignao dos zelosos
da pobreza. Quando eles viram no lugar onde devia elevar-se o tmu-

55
O texto foi pubicado em 1620 por Sprelberch (no seu Speculum vitae B.Francisci. Anvers, 2 tomos
in-12, t. II, p. 103-106), segundo o exemplar enviado a Frei Gregrio, ministro da Frana, e conservado
ento no convento dos Recoletos de Valenciennes. Foi reproduzido por Wadding (Ann. 1226, n. 44) e os
bolandistas (p. 668 e 669).
Esta reapario tardia de um documento capital poderia ter suscitado escrpulos; eles no tm mais razo
de ser depois da publicao da Crnica de Jordo de Jano que relata o envio dessa carta (Jord. 50). - Amoni
tambm publicou esse texto em seguida sua Legenda trium Sociorum, Roma, 1880, p. 105-109), mas de
acordo com o seu hbito deplorvel, deixa de indicar de onde o tirou. tanto mais lamentvel o fato de ele
dfar uma variante de primeira ordem: Nam diu ante mortem em vez de Non diu como quis o texto de Sprel-
berch. A leitura: Nam diu parece prefervel no ponto de vista filolgico. Publicada na Coll., t. III, Lempp,
Frre Elie de Cortone, p. 70 s e Boehmer, Analekten, Appendice II, p. 90.

457
lo daquele que execrava o dinheiro como o veculo por excelncia do
egosmo humano, um cofre monumental para recolher as esmolas dos fiis,
pareceu-lhes que a profecia de seu pai espiritual anunciando a apostasia
de uma parte da Ordem ia se realizar. Um sopro de revolta passou pelos
eremitrios da mbria. No era necessrio impedir de qualquer jeito essa
abominao no lugar santo?
Sabia-se que Elias era terrvel em sua severidade, mas seus adversrios
tiveram coragem de ir at o fim e de sofrer para defender suas convices.
Um dia encontraram o cofre quebrado por Frei Leo e seus amigos 56.

[II. - O Speculum Perfectionis 57.]


[Frei Leo fez mais e melhor do que isso. Ele, que tinha sido o confes-
sor, o secretrio, o enfermeiro, o amigo do Santo, devia tocar a trombeta
para reunir os verdadeiros Franciscanos para confundir os que iam por
todos os lados sobrecarregando o pensamento to claro de Francisco
com comentrios insidiosos.
Elias todo poderoso manifestava altamente suas intenes que deviam
transformar o prprio esprito da famlia franciscana e espalhava habil-
mente o boato de que o prprio Francisco tinha julgado que o crescimento
da Ordem imporia mudanas.
Leo respondeu a essas tentativas com o Speculum Perfectionis, o
Espelho de Perfeio. Escreveu-o na Porcincula e o terminou no dia
11 de maio de 1227 58.

56
S. Vitae 167 a. Vida de Frei Egdio na Crnica dos XXIV gerais, An fr., t. III, p. 89. Vida de Frei Leo
da mesma recente coleo, p. 73 e Crnica propriamente dita, p. 34. Ver tambm An. fr., t. II, p.
45 e notas.
57
Extratos abreviados do Prefcio e da Introduo de Coll., t. I, Speculum Perfectionis auctore fratre
Leone, nunc primum edidit Paul Sabatier. Paris, Fischbacher, 1898.
58
Esta data dada por dois manuscritos, o Mazarino 1743 e o Ms. 6 F.12 do Seminrio de Liege. Mas isso no
seria suficiente para garanti-la. preciso recorrer crtica interna. A verdadeira prova so os relacionamentos
que h entre as circunstncias de 1227 e esse documento. Para tudo isso temos que remeter ao Prefcio e
Introduo do tomo I da CoIl. Speculurn Perfectionis; e, para as discusses que seguiram, principalmente
a propsito da data de 1318 dadas pelo Ms. de Ognissanti, aos Opuscules de crit. hist. Principalmente t. II,
fase. VII (1902). Nouveaux travaux sur les docurnents franciscains e fasc. XVII. Conclusion au t. II. Em
fim, novas notas vo ser dadas bem proximamente nos Etudes indites sur saint Franois dAssise, por Paul
Sabatier, editados por Arnold Goffin, e no tomo II da edio crtica do Spec. Perf. (ver nota 2). Algumas j

458
Naturalmente no se encontra nesse manifesto a serenidade mais
aparente que real das outras legendas franciscanas.
Foram as circunstncias do momento que inspiraram o ttulo, as gran-
des divises e todos os primeiros captulos 59. Mas elas esto longe de
penetrar a obra inteira. O autor se ps a trabalho para atacar Frei Elias,
mas eis que de repente ele v Francisco, no pode mais desviar o olhar
e faz, apesar de si mesmo, uma obra de historiador.
No h, provavelmente, nenhum documento da Idade Mdia em
que se sinta tal intensidade de emoo. Ele nos faz ouvir os suspiros de
Francisco, seus gemidos, e nos faz ver o homem fsico ao mesmo tempo
em que nos faz penetrar no corao do homem espiritual.
As Cartas e o Testamento de Francisco esto aqui em seu quadro verda-
deiro. A obra do mestre e a do discpulo se completam, se correspondem
e so inseparveis, a de Frei Leo , de algum modo, o prolongamento
dos opsculos de So Francisco: descreve os momentos em que eles
foram compostos.
....................
O Speculum Perfectionis incompleto sem os Opsculos, e os Ops-
culos sem o Speculum.
. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
O que choca primeira vista no Speculum Perfectionis quantidade
de indicaes de tempo e de lugar que do a essas narrativas um aspecto
absolutamente original.
............................
O autor v os lugares onde os fatos se passaram e preciso conhecer
esses lugares para traduzir suas expresses. Aqui Santo Eleutrio, dian-
te de Rieti, l Monte Casale acima de Borgo San Sepolcro; o hospital
dos Crucgeros est a meio caminho entre a Porcincula e Assis, num

foram publicadas nos Studi Medievali, trs anos (1928), fasc. 2, p. 353- 361.
59
Contando a partir do captulo II. O captulo I tem todos os caracteres de uma interpolao. Ver o Speculum
Perfectionis ou Mmoires de frre Lon sur la seconde partie de la vie de saint Francois dAssise. Edio
crtica de Paul Sabatier, t. I, Publicada pela British Society of Franciscan Studies, vol. XIII, 1926-1927

459
outro lugar Egdio que desce da igreja de So Jorge e para perplexo
no cruzamento
..........
das estradas, perguntando-se por qual devia ir. H tudo de Assis no
Speculum Perfectionis: a praa, a catedral, o Subsio com sua abadia,
seus monges, o leprosrio, o bispo, o podest, o conselho e suas decises,
So Rufino e seus cnegos.
Pouco a pouco todas essas particularidades geraro compiladores
que no sabero mais a que elas faziam aluso e as deixaro de lado. A
aurola do taumaturgo resplandecer de novos fogos, mas devagar at o
Subsio vai virar uma montanha qualquer, as oliveiras das encostas e os
carvalhos da plancie vo desparecer; a ltima cotovia vai sair voando e
para ns vai sobrar um santo, um santo muito grande, mas o Poverello
de Assis, o Jogral de Deus, vai desvanecer.
[III. - O Sacrum Commercium 60.]
[O Espelho de Perfeio de Frei Leo conseguiu o que queria. O
captulo geral, reunido algumas semanas mais tarde, no dia 30 de maio
de 1227, na Porcincula, sob superviso de Frei Elias, no o manteve
no cargo e o substituiu por Joo Parenti de Florena.
Este ltimo era, como Frei Leo, zeloso da Regra. Quis ser, em toda a
fora dessa palavra, um continuador do fundador da Ordem e consagrar
seu generalato a realizar at nos detalhes todas as medidas que o Santo
tinha projetado e que, s vezes por falta de tempo, s vezes pela oposio
de alguns frades, tinham sido impedidas.
Ele quis principalmente acabar o esforo tentado pelo Testamento e
pelo Speculum Perfectionis, e fixar para sempre o carter do ideal fran-
ciscano. Ele, que no tinha tido o privilgio, como Frei Leo e muitos
outros companheiros, de viver na intimidade do santo, representava

(Manchester. The University Press., 1928, XXXII e 351 p.), p. 13 ss.


60
Extrado de Saint Franois dAssise et Dante, por Paul Sabatier em Dante. Recueil dtudes publies
pour le VIe centenaire du pote pela Union Intellectuelle Franco-Italienne, Paris, 1921, p. 29 s.

460
menos que eles sua humanidade; mas se entregara a ele com tanta f, um
ardor to austero e to perfeito, que enxergava melhor as grandes linhas
do pensamento de seu pai espiritual, como tambm a magnificncia,
o esplendor divino da renovao com que ele tinha sonhado. Por isso
resolveu criar no mundo inteiro a messinica revelao que tinha encon-
trado na doutrina franciscana e presumir seus frades contra os perigos
temveis que, de todos os lados, j ameaavam fazer desaparecer a viso
que tinha comovido e entusiasmado a Igreja inteira. Comps o Sacrum
Commercium beati Francisci cum Domina Paupertate, que em geral
traduzido em francs por As npcias do Bem-aventurado Francisco
com a Senhora Pobreza.

Alma de poeta e de pensador, Joo Parenti tinha compreendido me-


lhor que ningum a unidade da inspirao franciscana, e que a alma
desse ideal era a pobreza material, para terminar em um enriquecimento
espiritual e numa liberdade que nenhum sistema filosfico ou religioso
jamais conheceu.

Ele escreveria ento uma vida de So Francisco que no seria a narra-


tiva de seus atos e de suas virtudes, mas a histria de sua alma, de esforo
que ele tinha feito para chegar ao despojamento absoluto. Alm disso,
ele advertiria seus filhos e seus irmos na religio: uns, os que tinham
sido desgarrados, para lhes mostrar o reto caminho e traz-los de volta;
outros, os que conscientemente eram infiis a seus votos, para faz-los
entender que seu ministro via sua prevaricao e que eles deviam ou
deixar o hbito, se fossem indignos, ou merecer seu perdo.

Estas pginas, redigidas algumas semanas depois a eleio de Parenti,


sob a emoo intensa que tinha tomado conta de todos os franciscanos no
momento da luta, foram uma verdadeira improvisao. O novo ministro
geral sentia-se pressionado a lanar seu grito de dor e de esperana, seu
apelo ao socorro e bandeira. Esto impregnadas de uma paixo de amor
que s consegue se exprimir emprestando as passagens mais perdidas do
Cntico dos Cnticos, e nelas sentimos tambm uma santa clera contra
os que fazem comrcio do ideal franciscano e o traem.

461
preciso ler essas pginas inflamadas para ter idia do drama religioso
que dominou o sculo XIII 61.]
Furioso por sua queda no captulo, Frei Elias ps-se imediatamente a
trabalhar para ser eleito no captulo seguinte. Parece mesmo que ele nem
tenha tido em conta a nomeao de Joo Parenti, e que tenha continuado
a se comportar como se fosse o ministro 62.
Muito popular entre os assisienses, encantados com o monumento
que surgia na Colina do Inferno, transformada em Colina do Paraso 63,
seguro de que seria apoiado por uma parte considervel da Ordem e pelo
papa, ele levou adiante os trabalhos da baslica, da qual foi o verdadeiro
arquiteto, com uma deciso e uma felicidade raras 64.
Percebemos o grau agudo a que chegou a luta quando apareceu a
primeira legenda oficial.

61
O Sacrum Commercium foi impresso inicialmente aos cuidados de Edoardo Alvisi, sob o ttulo: Nota
al Canto XI del Paradiso. Citt di Castello, in-12 de 58 pginas, 1894 ( o n 12 da Collezione di Opuscoli
Danteschi inediti o rari diretta da G. L. Passerini). Esta edio, muito medocre, seria baseada em trs manus-
critos, que no so nem indicados. Enganado por uma passagem da Crnica dos 24 gerais o Sr. Alvisi atribui
sua composio a Joo de Parma. Em 1900, o R. Pe. Eduardo de Alenon, Arquivista dos frades Menores
Capuchinhos, apresentou uma edio muito boa, precedida por uma discusso crtica muito interessante sobre
o autor e a data da obra. Estabelece que ela data de 1227 e que foi feita por Joo Parenti (Roma, in-4 de XVIII
e 52 pginas. - Trad. francesa, Pe. Ubaldo de Alenon. Les noces mystiques du B. Franois avec Madame
la Pauvret. Paris-Couvin, 1913, in-24o XXII e 84 pginas e Paris, 1922, uma plaqueta in-24, VI e 58 p.
62
Eccleston 13, Voluerunt ipsi, quos ad capitulum concesserat venire frater Helias; nam omnes concessit,
etc. An. fr., t. I, p. 241. Cf. Mon. Germ. hist., Script., t. XXVIII, p. 564. Ed. Little Col. t. VIII, p. 19.
63
Os curiosos que quiserem ver mais claro sobre esses nomes podero ler o qwue foi dito pelo Pe. Papini,
Notizie sicure, p. 184 ss.
64
A morte de Francisco foi aos 3 de outubro de 1226. No dia 29 de maro de 1228, Elias recebeu a loca-
lizao da baslica. O Instrumentum donationis est conservado ainda hoje em Assis: Pea n 1 do segundo
pacotede Instrumenta diversa pertinentia ad Sacrum Conventum. Foi publicado por Thode: Franz von
Assisi, p. 539, 1 ed.
No dia 17 de julho do mesmo ano, no dia seguinte canonizao, Gregrio IX lanou solenemente a
primeira pedra. Menos de dois anos depois, a igreja baixa estava terminada e no dia 25 de maio de 1230
para l foi transportado o corpo do Santo.
Em 1236, a igreja superior tambm estava acabada. J estava decorada por na primeira srie de afrescos,
e Giunta Pisano pintou Elias em tamanho natural, ajoelhado ao p do crucifixo em cima da entrada do coro.
Cf. Papini, Notizie sicure, p. 193.
Em 1239, tudo estava completo e a torre recebeu os famosos sinos cujo carrilho alegra at hoje todo o vale
da mbria. O recibo dos fundadores de sino ainda existe, a pea 7 do Recueil II des Instrumenta diversa
pertinentia ad. S. C. Tem a data de 1 de janeiro de 1243.
Assim, trs meses antes da canonizao, Elias recebeu a localizao da baslica. O processo de canonizao
comeou no fim de maio de 1228 (1Cel. 123 et 124, Cf. Potthast 8194 ss.).

462
IV. Primeira Vida por Toms de Celano 65.

Ao escrever esta legenda, Toms de Celano obedecia a uma ordem


expressa do papa Gregrio IX 66.
Por que o papa no se dirigiu a um dos frades do grupo imediato do
Santo? O talento do autor explica sem dvida essa escolha; mas Frei Leo
e vrios outros tambm sabiam escrever. Se Celano foi encarregado da
biografia oficial, foi porque, igualmente simptico a Gregrio IX e a Frei
Elias, ele tinha sido posto, por sua ausncia, fora das lutas que tinham
marcado os ltimos anos da vida de Francisco. Temperamento pacfico,
ele pertencia categoria dessas almas que se persuadem facilmente de
que a obedincia a primeira das virtudes, que todo superior um santo
e que se, por infelicidade, no for santo, a gente deve agir como se fosse.
Temos algumas informaes sobre sua vida: originrio de Celano
nos Abruzzos, ele lembra de maneira discreta que sua famlia era nobre

65 Os Bolandistas apresentaram o texto (A. SS. Octobris, t. 11, p. 683-723), de acordo com um
manuscrito da abadia cisterciense de Longpont na diocese de Soissons. Foi publicado depois em
Roma em 1806, sem nome do editor (na realidade, pelo Pe. Rinaldi, Conventual) com o ttulo:
Seraphici viri S. Francisci Asisiatis vitae duae auctore B. Thoma de Celano, 8, XVI e 286 p., se acordo
com um manuscrito de Fallerone na Marca de Ancona que, nos arredores de Terni foi roubado
por bandidos ao frade encarregado de lev-lo. O texto de Rinaldi foi reimpresso em Roma em 1880
pelo cnego Amoni: Vita prima S. Francisci auctore B. Thoma de Celano. Roma, tipografia della pace,
1880, in-8, 42 p., mas apenas um fragmento do prefcio de 1806. As citaes sero feitas de acordo
com a diviso introduzida pelos bolandistas, mas em diversas passagens o texto Rinaldi-Amoni
apresenta leituras melhores que a dos bolandistas. Este ltimo foi completamente retocado. Ver
por exemplo 1Cel 24 e 31. - Ed. Pe. Eduardo de Alenon. Roma, 1906 (v. p. 532 n. 2). - Ed. Mons
Faloci-Pulignani. Foligno, 1910, in-8 de 204 p. - Ed. Quaracchi, grd. in-8 de XVI e 126 pginas.
Ibid., in 16, XVI e 180 pginas. - Trad. Francesa do Abade J. M. Fagot, Paris. Librairie Saint-Franois,
1922, in-16 de XII e 310 pginas.
66
Ver 1Cel. Prol., Jubente domino et glorioso Papa Gregorio. Celano escreveu isso depois da canonizao
(16 de julho de 1228) e antes de 25 de fevereiro de 1229, porque nenhuma dificuldade se ope data fornecida
pelo ms. 3817 fundo latino da Biblioteca Nacional de Paris. Esse ms. Traz esta curiosa nota: Apud Perusium
felix domnus papa Gregorius nonus gloriosi secundo pontificatus sui anno quinto Kal. martii (25 de fevereiro
de 1229), legendam hanc recepit confirmavit et censuit fore tenendam. Entretanto, o Sr. Beaufreton, Frate
Francesco, t. I, p.80, diz que a indicao Apud Perusium, etc., foi colocada por mo desconhecida do fim
do sculo XIV. Cf. Beaufreton, Saint Franois dAssise, Paris 5, in-8, 340 pgs, p. 269, n. 3. - Ver tambm
Pe. Eduardo de Alenon, Celano, p. IV e XXVI.

463
e at acrescenta, com uma ponta de simploriedade, que o mestre tinha
um respeito particular pelos frades nobres e letrados. Foi por volta de
1215, quando Francisco voltou da Espanha, que ele entrou na Ordem.
No captulo de 1221, Cesrio de Spira, encarregado da misso da
Alemanha, levou-o com os que deviam acompanh-lo 67. Em 1223, ele
foi nomeado custdio de Mogncia, Worms, Colnia e Spira. No ms
de abril do mesmo ano, quando Cesrio, devorado pelo desejo de rever
So Francisco, voltou para a Itlia, encarregou Celano de cumprir suas
funes at a chegada do novo provincial 68.
Nenhuma informao permite decidir onde ele estava a partir do ca-
ptulo provincial realizado em Spira aos 8 de setembro de 1223. Devia
estar em Assis em 1228, porque sua narrativa da canonizao a de uma
testemunha ocular. Ele ainda estava l em 1230, e sem dvida revestido
de um cargo importante, pois pde mandar para Frei Jordo relquias de
So Francisco 69.
[Para julgar Celano preciso comear por ter uma conscincia clara
da misso de que foi encarregado: no lhe pediram, de maneira alguma,
que fizesse um trabalho de historiador. Ele era um dictator, um redator.
Fez sua primeira legenda contando com os documentos que Frei Elias
lhe forneceu, o que Juliano de Spira e o versificador fizeram com a le-
genda dele, o que ele mesmo haveria de fazer, mais tarde, na sua segunda
legenda, com os documentos muito diferentes que lhe foram fornecidos
por Crescncio e por Joo de Parma.
Escrito em um estilo atraente, muitas vezes potico, seu livro respira
uma admirao comovida por seu heri: uma bela legenda. Mas uma
legenda oficial, que deixa voluntariamente na sombra toda uma srie de
fatos que, para o historiador, esto entre os mais importantes. Celano

67
CrJj 19.
68
CrJj 30 e 31.
69
Cf. Glassberger, ann. 1230. muito provvel que seja o autor do Dies Irae, mas essa questo no pode
ser examinada aqui.

464
tinha certamente assistido ao captulo de 1221 e sem dvida a diversos
outros, porque nesse tempo todos os frades sem distino iam ao cap-
tulo todos os anos. Seu silncio sobre os captulos no fortuito e se
estende a tudo que diz respeito organizao da Ordem. o silncio da
prudncia. Ele isola seu heri e o mostra numa srie de quadros soltos,
que tm sabor de composio literria 70.]
O ponto mais evidentemente tendencioso desta biografia o quadro
que ela nos traa dos relacionamentos de Frei Elias com o fundador da
Ordem: quando relemos os captulos consagrados aos dois ltimos anos,
temos a impresso muito ntida de que Elias teria sido designado por
Francisco para sucede-lo 71.
Ora, se refletirmos que, no momento em que Celano estava escre-
vendo, Joo Parenti era ministro geral 72, perceberemos imediatamente
o alcance dessas indicaes. Todas as ocasies so aproveitadas para
dar um papel preponderante a Frei Elias 73. um verdadeiro manifesto
a seu favor.
possvel acusar Celano? No creio. Basta simplesmente lembrar que
seu trabalho pode com muita justia ser chamado de Legenda de Gregrio
IX. Elias era o homem do papa, e foi em cima de suas informaes que
o bigrafo trabalhou. Por isso natural que ele tenha posto em relevo
especial a intimidade de Francisco e de Elias.
Pelo contrrio, no podemos esperar encontrar a detalhes para apoiar
as pretenses dos adversrios de Elias, desses zelosos indceis que j se

70
Notas Manuscritas
71
Isso se verdade que a maior parte dos historiadores foi levada em dois generalatos de Elias, um de
1227 a 1230, outro de 1236 a 1239. A carta Non ex odio de Frederico II (1239) d a mesma idia: Revera
papa iste quemdam religiosum et timoratum Fratrem Helyam ministrum Ordinis fratrum Minorum ab ipso
beato Francisco patre ordinis migrationis suae tempore constitutum... in odium nostrum... deposuit. Hillard-
Brholles, Hist Dipl. Frd. t. V, pg. 346.
72
Ele no nem nomeado.
73
1Cel 95, 98, 105, 109. A narrativa da bnco muito significativa. Super quem inquit (FRanciscus) teneo
dexteram meam? Super fratrem Heliam, inquiunt. Et ego sic volo sit... 1Cel 108. Essas ltimas palavras
demonstram a intenco de maneira evidente. Cf. 2Cel 3, 139

465
ornavam com orgulho do ttulo de companheiros do Santo e buscavam
constituir dentro da Ordem uma espcie de aristocracia espiritual. Entre
eles estavam quatro que, durante os dois ltimos anos, no tinham aban-
donado Francisco santo, se o pudermos dizer. D para adivinhar como
era difcil no falar deles. Celano cala cuidadosamente seus nomes, sob
pretexto de respeitar sua modstia 74; mas pelos louvores prodigalizados
a Gregrio IX, a Frei Elias 75, a Santa Clara 76, a Frei Filipe 77 ou mesmo
a personagens secundrios, ele mostra que sua discrio estava longe de
ser to evidente.
Tudo isso grave; mas no se deve exagerar. H uma parcialidade
evidente, mas seria injusto ir mais longe e crer, como se fez mais tarde,
que os ltimos tempos da vida de Francisco tenham tido o carter de
uma luta contra a prpria pessoa de Elias. Essa luta existiu, mas contra
tendncias cuja fonte Francisco nem percebeu. Parece que ele levou para
o tmulo suas iluses sobre seu colaborador.
De resto, esse defeito acima de tudo secundrio no que diz respeito
prpria fisionomia de Francisco. Aparece a como nos Trs Companheiros
e nos Fioretti, com um sorriso por todas as alegrias, rios de lgrimas por
todas as dores; sente-se a cada instante a emoo contida, o corao do
escritor subjugado pela beleza moral de seu heri.

V. - Viso geral sobre a histria da Ordem de 1230 a 1244

No estamos no lugar de fazer a histria da Ordem, mas algumas


informaes so necessrias para recolocar os documentos em seu meio.
Eleito ministro geral em 1232, Frei Elias aproveitou para trabalhar
com indomvel firmeza para a realizao de suas idias. Novas coletas

74
1Cel 102. Cf. 91 e 109. Frei Leo no nomeado em toda a obra. Nem ngelo e Masseo.
75
1Cel Prol.; 73-75; 99-101; 121-126. Depois de So Francisco, so Greg[orio IX e Frei Elias (1Cel 69;
95; 98; 105; 108; 109) que ocupam o primeiro plano.
76
1Cel 18 e 19; 116 e 117.
77
1Cel 25. Frei Filipe o mesmo que tinha sido vivamente repreendido por Francisco em sua volta do
Oriente, mas que foi reintegrado no dia 18 de agosto de 1228 pelo cardeal Reinaldo em seu cargo de visitador
das Senhoras Pobres.

466
foram organizadas em todas as provncias para a baslica de Assis cujos
trabalhos eram empurrados com uma atividade que no prejudicou nem
a solido do edifcio, nem a beleza dos detalhes, to bem acabados, to
perfeitos como em nenhum outro monumento da Europa.

D para imaginar as somas enormes que foi preciso drenar para fazer
uma obra dessas em to pouco tempo. Alm disso, Frei Elias tinha exigi-
do de todos os seus subordinados uma obedincia absoluta: nomeando,
destituindo os ministros provinciais de acordo com suas idias pessoais,
deixou de convocar o captulo geral e enviou a todas as provncias os
seus emissrios, com o nome de visitadores, para a assegurar a execuo
de suas ordens.

Os moderados da Alemanha, da Frana e da Inglaterra logo acharam


esse jugo insuportvel. Era duro para eles serem dirigidos por um ministro
italiano residente em Assis, fora dos caminhos da civilizao, completa-
mente estranho ao movimento cientfico concentrado nas universidades
de Oxford, Paris e Bolonha.

Eles encontraram na indignao dos zelantes contra Elias e seu des-


prezo pela Regra um apoio decisivo. Bem depressa o ministro no teve
mais para defende-lo seno sua energia, o favor do papa e raros mode-
rados italianos. Ele reprimiu vrias tentativas de revolta redobrando a
vigilncia e a severidade.

Seus adversrios chegaram, entretanto, a ter a segurana das intelign-


cias na corte de Roma; o confessor do papa chegou a ser conquistado;
apesar de tudo, o sucesso da conspirao era incerto quando se abriu o
captulo de 1239. Gregrio IX, ainda favorvel a Elias 78, era o presidente.
O medo deu coragem aos conjurados; jogaram suas acusaes no rosto
de seu inimigo.

Tomas de Eccleston apresenta-nos uma descrio colorida do que

78
Em 1238, ele tinha mandado Frei Elias a Cremona, encarregado de uma misso junto a Frederico II.
Salimbene, ann. 1229. Ver tambm a acolhida de Gregrio aos que apelaram contra o geral. CrJj 63.

467
aconteceu. Elias corajoso, violento e at ameaador. Dos dois lados ha-
via gritos, vociferaes; j iam chegar s vias de fato, quando algumas
palavras do papa fizeram voltar ao silncio.
Sua resoluo estava tomada: ele abandonaria seu protegido. Fez com
que pedisse demisso.
Elias recusou-se, indignado.
Ento Gregrio IX explicou aos membros do captulo que ele tinha
feito Elias geral por causa de seu relacionamento com o santo, e porque
acreditava que estava correspondendo ao desejo da maioria, mas que no
queria impor-se Ordem, e que, como os frades no o queriam mais, ele
o declarava deposto do generalato.
Eccleston conta que a alegria dos vencedores foi imensa e inefvel.
Escolheram Alberto de Pisa, provincial da Inglaterra, para sucede-lo e
logo puseram mos obra para apresentar Elias como uma criatura de
Frederico II 79. O antigo ministro bem que escreveu ao papa para explicar
sua conduta, mas a carta nunca chegou ao destino. Ela tinha que passar
pelas mos de seu sucessor, que no a enviou: quando Alberto de Pisa
morreu, encontraram-na em sua tnica 80.
Todo o furor do velho pontfice se desencadeou contra Elias. preciso
ler os documentos para ver a que diapaso ele podia subir.
O frade respondeu com uma virulncia menos verbosa, mas ainda
mais pesada 81.

79
Ver a carta de Frederico II a Elias sobre a translao de Santa Isabel, em maio de 1236. Winkelmann,
Acta, t. 1, p. 299. Cf. Huillard-Brholles, Hist. dipl., Introduction p. cc.
80
Os elementos dessa narrativa so; Catalogus Ministrorum de Bernardo de Bessa, ap. Ehrle, Zeitschrijt, t.
VII, 1883, p. 339, Speculum Vitae, 207 b. e principalmente 167 a-170 a. Eccleston 13. CJJ 61-63. Speculum
Morin tract I, f 60 b.
No dia 27 de maio de 1239, Elias foi designado: Frater Helias dominus et custos Ecclesiae sancti
Francisci Asisinatis. Instrumenta diversa pertinentia ad Sacrum Conventum. Pea 3 do II vol. Ver sobre
todos esses acontecimentos Coll., t. III, Lempp, Frre Elie de Cortone, p. 119-132 e 144 e Opusc., t. II,
fasc. XI, Paul Sabatier, Examen de la Vie de frre Elie du Spec. Vitae, p. 198-204.
81
Asserebat etiam ipse praedictus frater Helyas... papam... fraudem facere de pecunia collecta ad suc-
cursum Terrae Sanctae, scripta etiam ad beneplacitum suum in camera sua bullare clam et sine fratrum
assensu et etiam cedulas vacuas, sed bullatas, multas nunciis suis traderet... et alia multa enormia imposuit
domino papae, ponens os suum in celo. Matth., Paris, Chron. Maj. ann., 1239, ap. Mon. Germ. hist., Script.,
t. XXVIII, p. 182. Cf. Fickcr, n. 2685..]

468
Esses acontecimentos tiveram uma repercusso inimaginel atravs
de toda a Europa 82, e jogaram a Ordem em uma perturbao profunda.
Muitos partidrios de Elias deixaram-se persuadir de que tinham sido
enganados por um impostor e se reaproximaram do grupo de zelantes,
que no cessava de reclamar a observncia pura e simples da Regra e
do Testamento.
Estes retomaram a coragem. Pouco acostumados s sutilezas da pol-
tica eclesistica, no compreendiam que o papa, mesmo amaldioando
Frei Elias, no tinha modificado em nada a orientao geral que tinha
dado Ordem. Os ministros gerais Alberto de Pisa (1239-1240), Aimon
de Faversham (1240-1244), Crescncio de Iesi (1244-1244) foram todos,
com diversos matizes, representantes do partido moderado.
A primeira legenda de Toms de Celano tornara-se impossvel. O
papel que ela dava a Frei Elias era quase um escndalo. A necessidade
de a remanejar e completar imps-se claramente no Captulo de Gnova
(1244) 83.
Todos os frades foram convidados a escrever o que pudessem saber
da vida e dos milagres de Francisco e mandar o resultado ao ministro
Crescncio de Iesi 84. Este mandou imediatamente redigir um opsculo
intitulado Dialogus sanctorum fratrum Minorum, que comeava com as
palavras Venerabilium gesta Patrum. J no tempo de Bernardo de Bessa,
dele s restavam fragmentos 85.
Vrios dos trabalhos produzidos em consequncia a deciso desse
captulo foram conservados. Foi a isso que devemos a Legenda dos Trs
Companheiros e a Segunda Vida por Toms de Celano.

82
Ver Ryccardi de S. Germano, chron. ap., Mon. Germ. hist., Script., t. XIX, p. 380, ann. 1239. A
carta de Frederico queixando-se da deposio de Elias (1239); Huillard-Brholles, Hist. Dipl., V, p.
346-349. Cf. a Bula Attendite ad petram, fim de fevereiro de 1240, ibid., p. 777-779. Potthast, 10849.
83
V. Tambm sobre a situao da Ordem em 1244, P. Sabatier, De lauthenticit des 3 Soc., p. 13 (Revue
historique, 1er janvier 1901).
84
Ver o prol. de 2Cel e dos Trs Companheiros. Cf. Glassberger ann. 1244, An. fr., t. II, p. 68. Speculum
Morin, tract. I, 61 b.
85
Este dilogo foi encntrado em 1902 e publicado pelo Pe. Lemmens OFM, Romae Typis Sallustiana M.
C. M. II, gd. in-8 de XXIV e 122 p. uma coletnea de milagres de diversos frades.

469
VI. Legenda dos Trs Companheiros 86.

A vida de So Francisco que chegou a ns sob o ttulo de Legenda dos


Trs Companheiros foi terminada no dia 11 de agosto de 1246, em um
conventinho do vale de Rieti, que encontramos muitas vezes no correr
desta histria, o de Grcio. Esse eremitrio, tinha sido o lugar preferido
por So Francisco especialmente nos ltimos tempos de sua vida. Por
isso era querido pelo corao de seus discpulos 87. Ns tambm o vemos
tornar-se, desde os primeiros tempos da Ordem, o quartel general dos
Observantes 88, e continuar a ser atravs dos sculos um dos lares mais
puros da piedade franciscana.
A legenda tinha por autores homens dignos de contar quem foi So
Francisco, talvez os mais capazes de o fazer: os freis Leo, ngelo
e Rufino. Todos os trs tinham vivido na sua intimidade e o haviam
acompanhado durante os anos mais importantes. Alis, eles tinham tido
o cuidado de recorrer a outros para completar suas recordaes, espe-
cialmente Filipe 89, o visitador das Clarissas, Iluminato de Rieti, Masseo
de Marigano, Joo o confidente de Egdio e Bernardo de Quintavalle.
Tais nomes prometem muito e felizmente no nos enganamos em
nossa espera. O nome dos autores e a poca da composio indicam,

86
O texto nela publicado pela primeira vez pelos bolandistas (A. SS., Octobris, t. II. p. 723-742), de acordo
com um manuscrito do convento dos Frades Menores de Louvain. dessa edio que fazemos nossas citaes.
As edies publicadas na Itlia no correr do sculo XIX tornaram-se no encontrveis, com exceo da
ltima, devida ao Pe. Amoni. Esta infelizmente muio deficiente para servir de base a um estudo cientfico.
Apareceu em Roma em 1880 (in-8 de 184 p.) sob o ttulo: Legenda S. Francisci Assisiensis quae dicitur
Legenda trium sociorum ex cod. Membr. Biblioth. Vat. num. 7339. - Depois ed. Mons. Faloci-Pulignani.
Foligno, 1898. Numerosas tradues francesas, entre outras uma boa traduo popular aparecida sob os
auspcios do Pe.Huvelin. La Vie de S. F. d Assise. raconte par les fr. Lon, Ange et Rufin. Poussielgue,
in-16, 1891 e Lgende des Trois Compagnons. Paris (Artisan du livre in-16, 1926), traduo pelo Pe. Lus
Pichard, Professor no Instituto catlico de Paris.
Para o estudo da Legenda dos Trs Companheiros e dos fragmentos das partes supressas, Speculum Vitae,
ns republicamos quase integralmente o texto de 1894. Elas forsam o ponto de partida dos trabalhos de
Paul Sabatier, e essas vises, em seu conjunto, tinham passado a ser as suas, como provam seus ltimos
escritos (Nota do editor.)
87
EP 98; 2CeI 2,5; 3, 7; 1Cel 60; LM113; 1CeI 84; LM 140; 2Cel 2, 14; 3, 10.
88
Joo de Parma retirou-se para esse lugar em 1276 e a viveu quase at sua mote (1288). Tribul. Archiv.,
t. II (1886), p. 286..
89
Um certo nmero de manuscritos dizem Joo.90 LTC 25-67.

470
antes de qualquer exame, a que tendncia deviam estar ligados. Isso seria
um manifesto dos frades que tinham ficado fiis ao esprito e letra da
Regra. Tudo isso confirmado por uma leitura aternta: pelo menos o livro
tanto um panegrico da Pobreza quanto uma histria de So Francisco.
Tambm esperamos ver os Trs Companheiros contando com com-
placncia toda particular os numerosos pontos da legenda que tm
Grciocomo teatro; corremos para o fim do volume para a encontrar
a narrativa dos ltimos anos, de que eles tinham sido testemunhas, e
ficamos admirados de nada encontrar.
Enquanto a primeira metade da obra 90 conta a juventude de Francisco,
completando aqui e ali a Primeira Vida de Celano, a segunda consagrada
a um quadro dos primeiros tempos da Ordem; quadro de um frescor e
de uma intensidade de vida incomparveis, onde os autores, devido a
sua santa simplicidade chegam muitas vezes ao sublime; mas, estranho,
depois de nos terem falado to longamente da juventude de So Francisco
e dos primeiros tempos da Ordem, a narrao salta bruscamente do ano
1220 morte e canonizao, s quais, alis, no so concedidas mais
do que umas curtas pginas 91.
Isso muito extraordinrio para ser obra do acaso. O que aconteceu?
E evidente que a Legenda dos Trs Companheiros, como a temos hoje,
no mais do que um fragmento do original que sem dvida foi revisto,
corrigido e consideravelmente encurtado pelas autoridades da Ordem
antes de permitirem que ela circulasse 92. Se os autores tivessem sido
interrompidos em seus trabalho e obrigados a chegar logo ao fim, como
se poderia supor, eles o teriam dito na sua carta de apresentao; mas
temos outros argumentos para invocar em favor dessa hiptese.
Como Frei Leo teve o primeiro e principal papel na redao da obra dos
Trs Companheiros, chama-na muitas vezes de Legenda de Frei Leo; ora, a
Legenda de Frei Leo citada muitas vezes textualmente por Hubertino de

91
LTC 68-73.
92
O ministro geral Crescncio de Iesi foi um adversrio declarado e implacvel dos zelantes da Regra.
Para maiores detahes ver Opusc., t. I, fas.. III, p. 109-134.

471
Casale, acusado pelo partido da comum observncia na corte de Avinho.
Hubertino evidentemente teria tomado muito cuidado para no apelar para
um documento apcrifo: uma falsa citao seria suficiente para confundi-lo,
e seus inimigos no teriam deixado de explorar essa imprudncia. Temos em
mos todas as peas do processo 93, respostas, ataques, respostas, mas
no vemos em lugar nenhum os relaxados chamando seu adversrio de
falso. Alis, ele faz suas citaes com uma preciso que no deixa nada
a desejar 94. Apela para escritos que esto no armrio do convento de
Assis, e de que ele tem s vezes uma cpia e s vezes um original 95.
Ento somos autorizados a concluir: temos a fragmentos que sobre-
viveram supresso da ltima e mais importante parte da Legenda dos
Trs Companheiros.
No de estranhar que a obra dos amigos mais queridos de Francisco
tenha sofrido mutilaes to graves. Era o manifesto de um partido que
Crescncio perseguia com todo o seu poder.
Depois da reao passageira do generalato de Joo de Parma, veremos
um homem do valor de So Boaventura provocar a supresso de todas
as legendas primitivas para substitu-las por sua prpria compilao.
Parece verdadeiramente estranho que ningum tenha percebido o
estado fragmentrio da obra dos Trs Companheiros.
S o prlogo j poderia sugerir essa idia. Por que juntarem-se trs
para escrever essas poucas pginas? Por que essa enumerao solene
dos frades cujo testemunho e colaboraao eles pediram? Haveria uma
desproporo notvel entre o esforo e o resultado.

93
Publicadas com todo o aparato cientfico necessrio pelo Pe. Ehrle S.J. Em seus estudos, Zur Vorgeschichte
des Concils von Vienne. Archiv. II p. 353-416; III, p.1-195.
94
Ver por exemplo Archiv. III, p. 53 ss. Cf. 76. Adduxi verba et facto, b. Francisci sicut est aliquando in
legenda et sicut a sociis sancti patris audivi et in cedulis sanctae memoriae fratris Leonis legi manu sua
conscriptis, sicut ab ore beati Francisci audivit. Ib., p. 85.
As peripcias da luta enfrentadapor Hubertino de Casale foram resumidas em algumas pginas
luminosas e notavelmente justas pelo Pe. Hlyot em sua Histoire des ordres monastiques, ed. Migne,
na palavra Narbonna (Des frres Mineurs de la congrgation de).
95
Haec omnia patent per sua [B. Francisci] verba expressa per sanctum fratrem virum Leonem ejus socium
tam de mandato sancti patris quam etiam de devotione praedicti fratris fuerunt solemniter eonscripta, in
libro qui habetur in armario fratrum de Assisio et in rotulis ejus, quos apud me habeo, manu ejusdem fratris

472
Alm disso, os autores dizem que no se limitam a contar os milagres,
mas querem principalmente expor as idias de Francisco e sua vida com
os frades; ora, seria intil procurar narrativas de milagres no que nos
restou 96.
Uma traduo italiana dessa legenda, publicada pelo Pe. Estanislau
Melchiorri 97, trouxe-me de repente uma confirmao indireta deste ponto
de vista. Esse religioso no foi mais do que o editor, e s em 1577 pde
saber que ela tinha sido tirada de um manuscrito muito antigo por um
certo Muzio Achillei de San Severino 98.
Essa traduo italiana no continha os ltimos captulos da legenda,
os que contam a morte, os estigmas e a translao 99. Por isso ela foi feita
numa poca em que ainda no tinham substituido a parte surpresa por
um curto resumo das outras legendas.
Disso tudo, temos duas concluses para a crtica: 1o Esse resumo final
no tem a mesma autoridade que o resto da obra, porque no sabemos
em que poca foi acrescentado; 2o os fragmentos de uma legenda de Frei
Leo ou dos Trs Companheiros, esparsos em compilaes posteriores,
podem perfeitamente ser autnticos.
Em seu estado atual, esta Legenda dos Trs Companheiros o mais
belo monumento franciscano e uma das produes mais deliciosas da
Idade Mdia. Essas pginas tm alguma coisa doce, ntima, casta, uma
seiva de juventude e de virilidade que os Fioretti lembraro sem jamais
atingir. H mais de seiscentos anos de distncia, sentimos que revive o
sonho mais puro que j comoveu a Igreja crist.
Esses frades de Grcio que, espalhados pela montanha, sombra das
oliveiras, passavam dias cantando o hino do sol, so os verdadeiros mo-
delos entrevistos pelos primitivos mestres umbros. So todos parecidos,

Leonis conscriptis. Archiv. III, p. 168. Cf. p. 178 et Arbor. fo 2.


96
3 Soc. prol. Non contenti narrare solum miracula... conversationis insignia et pii beneplaciti voluntatem.
97
Leggenda di S. Francesco, tipografia Morici e Badaloni. Recanati 1856, 1 vol. in-8.
98
Ver o prefcio do Pe. Stanislas..
99
LTC 68-73.100 A. SS. p. 552..

473
esto mal colocados, tudo neles e ao redor deles peca contra as regras mais
elementares da arte; mas sua recordao nos persegue, e quando tivermos
esquecido depois de muito tempo as obras dos mestres impecves, vamos
rever sem esforo as criaes desses operrios desconhecidos, porque
amor chama amor, e esses personagens amesquinhados tm um corao
muito bom e muito puro; um amor mais que humano irradia em todo o
seu ser; eles nos falam e nos tornam melhores.

VII - Fragmentos da parte surpresa da Legenda dos


Trs Companheiros. O Speculum Vitae.

Agora podemos dar mais um passo e tentar agrupar os fragmentos


da Legenda dos Trs Companheiros ou de Frei Leo que se encontram
em escritos posteriores.
Aqui, mais do que nunca, preciso tomar cuidado com teorias abso-
lutas: um dos princpios mais fecundos da crtica consiste em preferir
os documentos contemporneos dos fatos contados, ou, pelo menos, os
que forem mais prximos, mas ainda preciso ter uma certa discrio
ao usa-los.
O raciocnio dos bolandistas, que no querem nem saber das legendas
escritas depois da de So Boaventura (1260) a pretexto de que, vindo
depois de vrios outros bigrafos autorizados, ele estava mais bem
colocado do que ningum para se informar e completar a obra de seus
predecessores, parece inatacvel 100. Na realidade, absurdo, porque
supe que So Boaventura tenha querido fazer um trabalho de histo-
riador. esquecer que ele escrevia no s para edificar, mas tambm
como ministro geral dos frades menores. Por isso seu primeiro dever era
o de guardar silncio sobre uma mutido de fatos e no sobre os menos
interessantes. Que dizer de uma biografia de So Francisco em que o
prprio Testamento no mencionado?
fcil deixar de lado um escrito do sculo XIV a pretexto de que o
autor no viu o que aconteceu cem anos antes, mas no se pode esquecer

100
A. SS. p. 552.

474
de que muitos livros do fim da Idade Mdia parecem essas casas velhas
em que trabalharam quatro ou cinco geraes. Uma inscrio na fachada
muitas vezes s indica a passagem do ltimo demolidor; e os nomes que
se destacam com maior complacncia em sempre indicam os verdadeiros
trabalhadores 101
Assim foram muitos dos livros franciscanos; tentar atribu-los a um
autor seria uma empresa ilusria; mos muito diferentes ai trabalharam e
esse prprio amlgama tem seu sabor e seu interesse.Folheando-os eu
at diria frequentando-os chegamos a enxergar claro nesse emaran-
hado, porque toda obra de um homem traz a marca da mo que a fez;
essa marca pode ser de uma delicadeza quase imperceptvel; mas nem
por isso deixa de existir, pronta a se revelar aos olhos experimentados.
O que h de mas impessoal do que a fotografia de uma paisagem ou de
um quadro e, entretanto, no meio de vrias centenas de provas, o amador
ir direto deste ou daquele operador preferido.
Essas reflexes foram-me sugeridas pelo estudo atento de um livro
muito curioso, muitas vezes impresso desde o sculo XVI, o Speculum
Vitae S. Francisci et sociorum ejus 102. Um trabalho completo sobre essa
obra, suas fontes, suas edies impressas, as diferenas numerosas que
se encontram entre os manuscritos exigiria um volume s para isso, e a
histria abreviada da Ordem; nem posso pensar em dar aqui mais do que
algumas indicaes, tomando por base a edio mais antiga, a de 1504.
A misturana que a reina espantosa. Os traos da vida de So
Francisco e de seus companheiros esto amontoados sem nenhum plano;

101
Na igreja de So Fermo (Gironda), uma arcada anterior ao sculo XIII apresenta sobre a chave as armas
de um abade do sculo XVII .Revue ecclsiastique de Louvain, t. II (1901), p. 846.
102
Venetiis, expensis domini Jordani de Dinslaken per Simonem de Lucere , 30 januarii 1504. - Impressum
Metis per Jasparem Hochffeder. anno Domini 1509. Essas duas edies so quase idnticas, pequeno in-12
de 240 folios mal numerados. Editada com o mesmo ttulo por Sprelberch, Anvers, 1620, 2 tomos em um
volume in-8, 208 e 192 pginas, com uma poro de mudanas.
O manuscrito mais importante parece ser o da Vaticana 4354. H dois na Mazarina 8531 e 1350 datados
de 1459 e 1460, um em Berlim (Man. theol. lat. 4, n 196 saec. 14). Ver Ehrle, Zeitschrift, t. VII (1883), p.
392 s; Analecta fr., t. I, p. XI, Miscellanea, 1888, p. 119, 164. Cf. A. SS., p. 550-552.
Os captulos esto numerados nos 72 primeiros flios apenas, mas esses nmeros formigam
de erros: fo 38 b caput LIX, 40 b. LIX. 41 b. LXI, ibid. LXII, 42 a LX, 43 a LXI. Pois nos fos 46 b e 47
b h dois captulos LXVI. H dois LXXI, dois LXXII, dois LXXIII, etc.

475
vrios esto repetidos a alguams pginas de intervalo de uma maneira
diferente 103 alguns capitulos foram to mal introduzidos que o compilador
se esqueceu de tirar o nmero de ordem que eles tinham na obra de onde
ele os tirou 104; em fim, ficamos espantados de encontrar tantos Incipit 105.
Entretanto, com um pouco de perseverana, logo percebemos algu-
mas claridades nesse labirinto. Para comear, a esto alguns captulos
de Boaventura que parecem ter sido usados na vanguarda como para
proteger o resto do livro. Esqueamo-nos deles, assim como de toda uma
srie de captulos dos Fioretti, e teremos diminuido a obra em perto de
trs quartos.
Cortemos ainda mais dois captulos, tirados de So Bernardo de
Claraval, depois os que contm oraes franciscanas, ou as diversas
atestaes sobre a indulgncia da Porcincula, e chegaremos finalmente
a uma espcie de resduo permitam-me a expresso de uma homo-
geneidade notvel.
O estilo diferente das outras pginas e lembram bem de perto o dos
Trs Companheiros; um s pensamento atravessa essas pginas, o de
que a pedra angular da Ordem o amor pobreza.
Por que no teramos a pedaos da legenda original dos Trs Com-
panheiros? No encontramos nada que no combine com o que sabemos,
nada tambm que lembre os embelezamentos de uma tradio tardia.
O que confirma essa hiptese que diversas passagens que a en-
contramos so citadas por Hubertino de Casale e por ngelo Clareno
como sendo de Frei Leo, e uma comparao atenta dos textos mostra
que esses autores no os podem ter encontrado no Speculum, nem o
Speculum neles 106.

103
Por exemplo a histria dos ladres do Monte Casale, f 46 b e 58 b. As observaes de Frei
Elias a Francisco que canta sem parar 136 b e 137 a. a visite de Jacoba de Settesoli, 133 a e 138 a. A
bno autgrafa dada a Frei Leo 87 a e 188 a.
104
No f 20 b. lemos: Tertium capitulum de charitate et compassione et condescensione ad proximum.
Capitulum XXV 1. Cf. 26 a, 83 a, 117 b, 119 a, 122 a, 128 b, 133 b, 136 b, onde h ndices parecidos.
105
F 5 b. Incipit Speculum vitae b. Francisci et sociorum ejus, f 7 b. Incipit Speculum perfectionis.
106
Diramos, s vezes, que Wadding previu essa idia, ou eneto que ele teve diante dos olhos um texto
da LTC bem mais completo que o de hoje: Noluit cum his nimium contendere sanctus Legislator quem et

476
Alm disso, h uma frase que, sem levar em conta a inspirao ou o estilo,
bastaria logo de incio para marcar a origem comum da mais parte dos trechos
107
: Nos qui cum ipso fuimus. Ns que estivemos com ele! Essas palavras, que
voltam quase que em todas as narrativas 108, no passam, em muitos casos, de
uma homenagem reconhecida dos companheiros ao seu pai espiritual,
mas s vezes elas tambm contm alguma amargura; so as ermidas de
Grcio que, de repente, relembram seus ttulos: no somos ns os nicos,
os verdadeiros intrpretes das instrues do santo, ns que vivemos sem
cessar com ele, ns que, hora aps hora, recolhemos suas palavras, seus
suspiros e seus cnticos?
Compreende-se que essas pretenses no agradavam comum obser-
vncia e que Crescncio, usando de uma autoridade incontestvel, tenha
mandado suprimir quase toda essa legenda 109.
Quanto aos fragmentos que assim nos foram conservados, se nos
fornecem numerosos detalhes sobre os ltimos tempos da vida de So
Francisco, no so aqueles cuja perda mais lastimvel; os autores que
os reproduzem defendiam uma causa; tambm no lhes devemos mais

in aliis multis rebus condescendisse contrariis aliorum opinionibus, turbationis aut scandali vitandi gratia,
monent ad hunc locum Tres ejus Socii, Essas palavras referem-se certamente conversa indicada, pg. 437
s. O mesmo nas pginas citadas A. SS p. 846 b. c. 876 a. d. - P. 285 de ed. de Roma, Wadding, falando da
entrevista entre Francisco e Domingos, diz: Refert ad haec Frater Leo, socius tunc sancti Fr. qui praesens
omnia vidit, multas inter se collocutus sanctissimus Patriarchas ad animarum salutem et christianae Fidei
interum et augmentum... tandemque S. P. N. Dominicum adjecisse Frater carissime... utrosque gauderem
sub una religione militare. Ora, nada disso est na LTC atual.
107
Ns a procuraramos em vo nos outros trechos do Speculum Vitae e ela est nos fragmentos de Frei
Leo citados por Hubertino de Casale e por ngelo, e em 2Cel 3, 38 e 2Cel. 3, 67.106 Diramos, s vezes,
que Wadding previu essa idia, ou ento que ele teve diante dos olhos um texto da LTC bem mais completo
que o de hoje: Noluit cum his nimium contendere sanctus Legislator quem et in aliis multis rebus condes-
cendisse contrariis aliorum opinionibus, turbationis aut scandali vitandi gratia, monent ad hunc locum Tres
ejus Socii, Essas palavras referem-se certamente conversa indicada, pg. 437 s. O mesmo nas pginas
citadas A. SS p. 846 b. c. 876 a. d. - P. 285 de ed. de Roma, Wadding, falando da entrevista entre Francisco
e Domingos, diz: Refert ad haec Frater Leo, socius tunc sancti Fr. qui praesens omnia vidit, multas inter
se collocutus sanctissimus Patriarchas ad animarum salutem et christianae Fidei interum et augmentum...
tandemque S. P. N. Dominicum adjecisse Frater carissime... utrosque gauderem sub una religione militare.
Ora, nada disso est na LTC atual.
107
Ns a procuraramos em vo nos outros trechos do Speculum Vitae e ela est nos fragmentos de Frei
Leo citados por Hubertino de Casale e por ngelo, e em 2Cel 3, 38 e 2Cel. 3, 67.
F 8 b, 11 a, 12 a, 15 a, 18 b, 21 b, 23 b, 26 a, 29 a, 33 b, 43 b, 41 a, 48 b, 118 a, 129 a, 130 a, 134 a,
108 o

135 a, 136 a.
109
Toms de Celano diz no prlogo da Segunda Vida: Oramus ergo, benignissime pater, ut labori hujus non
contemnenda munuscula... vestra benedictione consecrare velitis, corrigendo errata et superflua resecantes.

477
do que alguns traos que por algum lado dizem respeito pobreza; eles
no precisavam dos outros escritos, porque no estavam escrevendo
uma biografia. Mas mesmo dentro desses estreitos limites, esses trechos
tm uma importncia de primeira ordem. E eu tambm no hesitei em
us-los bastante 110.
No preciso dizer que mesmo atribuindo sua origem aos Trs Compa-
nheiros e a Frei Leo em particular, no podemos ter nenhuma iluso sobre a
prpria letra dos trechos que chegaram at ns. Os trechos dados por Hubertino
de Casale e por ngelo Clareno so verdadeiras citaes e, por causa, disso,
merecem confiana plena. Quanto aos que nos foram conservados no Speculum
Vitae podem ter sido frequentemente encurtados; notas explicativas podem ter
acabado dentro do texto, mas no se v em nenhum lugar o sinal de interpola-
es no mau sentido da palavra 111.
Enfim, se compararmos esses fragmentos com as narrativas corres-
pondentes da Segunda Vida por Celano, veremos que este as tomou
emprestadas s vezes literalmente de Frei Leo, mas que na maior parte
do tempo ele as abreviou bastante, ajuntando aqui e ali algumas reflexes
e principalmente remanejou o estilo para torn-lo mais elegante.

110
Desde o sculo XVIII o Pe. Aff tinha chegado, deixando fora a LTC, a concluses anlogas sobre o
Speculum Vitae, e e fora at um pouco adiante identificando a parte mais antiga do Speculum Vitae com o
Speculum Perfectionis do qual ele possuia um exemplar. Infelizmente, como o EP no foi publicado, sua
magnifica hiptese permaneceu inverificvel e infecunda. Ver Cantici volgari, p. 28 ss.
111
A LTC foi conservada no convento de Assis: Omnia... fuerunt conscripta... per Leonem... in libro
qui habetur in armario fratrum de Assisio.Hubertino, Archiv. III, p. 168. Mais tarde, Frei Leo parece ter
conhecido alguns fatos com mais detalhes; ele confiou essews novos manuscritos clarissas: In rotulis ejus
quos apud me habeo, manu ejusdem fratris Leonis conscriptis; ibid.. Cf. p. 178. Quod sequitur a sancto
fratre Conrado predicto et viva voce audivit a sancto fratre Leone qui presens erat et regulam scripsit. Et hoc
ipsum in quibusdam rotulis manu sua conscriptis quos commendavit in monasterio S. Clarae custodiendos...
In illis multa scripsit qure industria fr. Bonaventura omisit et noluit in legenda publice scribere , maxime
quia aliqua erant ibi in quibus ex tunc deviatio regulae publice monstrabatur et nolebat fratres ante tempus
infamare . Arbor. lib. V, cap. v. Cf. Antiquitates, p. 146. Cf. Speculum Vitae, 50 b. Infra scripta verba,
frater Leo socius et Confessor B. Francisci, Conrado de Offida, dicebat se habuisse ex ore Beati Patris nostri
Francisci, quae idem Frater Conradus retulit, apud Sanctum Damianum prope Assisium.
Conrado de Ofida copiou por sua vez o livro de Frei Leo e os seus rotuli: acrescentou algumas informaes
orais (Arbor vit. cruc. lib. V, cap. III) e pode ser que assim tenha composto a compilao to frequentemente
citada pelas Conformidades sob o ttulo de Legenda Antiqua e reproduziu em parte no Speculum Vitae.
bem possvel que depois da interdio de seu livro e de sua confiscao para o Sacro-Convento,
Frei Leo tenha retomado em seus rotuli uma grande parte das narrativas j feitas, ainda que o
mesmo caso, vindo de Frei Leo, pudesse apresentar-se de duas formas diferentes conforme tivesse
sido copiado do livro ou dos rotuli.

478
Essa comparao tambm prova bem depressa que as narrativas de
Frei Leo so o original e que no daria para ver nelas uma amplificao
posterior das de Toms de Celano, como algum poderia ser tentado a
pensar em um primeiro momento 112.

[VIII. - Fragmentos da tradio leonina encontrados posteriormente.]

[Em 1898, Paul Sabatier deu um passo a mais no estudo dos escritos
de Frei Leo, e assim contou sua descoberta 113:
... No domnio da cincia histrica como nas outras, procurar uma
coisa j quase encontr-la.
Muitas vezes encontramos at melhor do que procurvamos, e foi
o que aconteceu esta vez. Eu procurava os trs quartos de uma legenda
composta em 1246, e foi uma legenda inteira, datada de vinte anos mais
cedo, que veio recompensar meus esforos.
Depois, falando dos fragmentos leoninos que ele tinha pensado re-
conhecer no Speculum Vitae:
Esse documento, tal como eu o havia reconstitudo, compreendia
118 captulos que usei como uma das fontes da vida de So Francisco.
Sobre esses 118 captulos, 116 esto no Speculum Perfectionis, que chega
a um total de 124.
Sou obrigado a recordar esses fatos, no s para me desculpar depois
das crticas que me tinham repreendido por colocar na mesma linha o
Speculum Vitae e as biografias primitivas, mas principalmente para mos-
trar a que resultados notveis pode chegar o estudo paciente dos textos
e a comparao dos documentos.
A reconstituio dos 118 captulos no tinha absolutamente nada
de arbitrrio. Na realidade, eu estava tentado a ver a a parte surpresa

112
Comparar por exemplo 2Cel 120: Vocao de Joo, o Simples, e o Speculum Vitae, fo 37 a.
Com a narrativa de Toms de Celano, no d para entender o atrai Joo em Francisco; no Specu-
lum tudo se explica, mas Celano no ousou mostrar Francisco indo pregar com uma vassoura nas
costas para limpar as igrejas sujas.
113
Coll. t. I, Speculum Perfectionis, p. XXII ss.

479
dos Trs Companheiros, mas diversas consideraes me impediram de
formular essa tese como absoluta e definitiva.
. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .

D para adivinhar como eu estava perplexo. Tambm tomei o nico


partido cientifcamente possvel: 1o utilizar um documento que a crtica
externa tanto quanto a crtica interna colocavam em primeiro plano; 2o
esperar novas luzes para se pronunciar sobre sua origem.

Essas novas luzes foram fornecidas pelo Ms. 1743 fixando sua com-
posio em 1227, e a prpria legenda prova muito bem que ela obra
daquele que se declara muito claramente seu autor, Frei Leo de Assis 114.

No d para resumir aqui, mesmo brevemente, as discusses que houve


por causa da publicao do Speculum Perfectionis e da hiptese sobre
o estado fragmentrio da Legenda dos Trs Companheiros. Para isso re-
metem aos tomos I, Il e IV da Collection dEtudes et de documents e aos
Opuscules de critique historique, t. I, fasc. III e t. II, fase. VII, X e XVII.

Mencionamos apenas o famoso estudo do R. Pe. Van Ortroy SJ, bolan-


dista, em que o eminente crtico chegava concluso de que a legenda
tradicional dos Trs Companheiros um hbil pasticho que data mais
ou menos do fim do sculo XIII. (An. Boll., t. XIX (1900), p. 119-197
e a resposta de Paul Sabatier, De lauthenticit de la Lgende des Trois
Compagnons (Revue historique, no de janvier 1901).

Limitar-nos-emos a indicar os novos fragmentos do que Paul Sabatier


chamava de tradio leonina, que foram atualizados depois da apario
do Speculum Perfectionis 115.]

114
Sobre o Speculum Perfectionis, ver pg. 495 ss.
Nota do editor.
115

480
[IX. - 3 Soc. Melchiorri-Marcellino.]
[La Leggenda di san Francesco scritta da tre suoi Compagni (legenda
trium sociorum) pubblicata per la prima volta nella vera sua integrit dai
Padri Marcellino da Civezza e Teofilo Dominichelli dei Minori. Rome,
in-8 de CXXXVI et 270 pages (1899) 116.
Trata-se de uma reconstituio latina da legenda de acordo com a
velha tradio italiana j publicada pelo Pe. Melchiorri 117
No percebemos em nenhuma parte dessa obra o sinal de defor-
maes legendrias tardias. Mas no menos verdade que entre os 18
captulos tradicionalmente conhecidos como Legenda dos Trs Compan-
heiros, e os 61 trechos que lhes acrescenta a nova edio, h um contraste
que se revela uma primeira vista: os primeiros ocupam em geral vrias
pginas, enquanto entre os outros h alguns que s tm algumas linhas.
Essas diferenas foram justamente observadas. Entretanto, a crtica in-
terna no mostra nenhum hiato de inspirao, nem alguma dissonncia
entre as duas sries.
A explicao dessa estranheza pode ser muito simples. Os primeiros
captulos da obra dos Trs Companheiros, contando os incios da obra
franciscana no apresentavam mais do que umas poucas passagens des-
pertando susceptibilidades da larga observncia. Deixaram-nas passar.
Ao contrrio, a narrao dos acontecimentos a partir de 1219 feria a
cada instante as questes mais queimantes. Podemos supor que entre
os superiores da Ordem houvesse divergncias sobre a atitude a tomar
diante da ltima parte. Imagino que alguns quisessem a supresso pura
e simples, mas outros quisessem uma expurgao, como meio termo. A
edio Melchiorri-Marcellino no seria mais do que a obra dos Com-
panheiros revista e cuidadosamente encurtada pela censura 118.

116
Apareceram duas tradues francesas: La lgende de S. Franois dAssise crite par trois de ses
compagnons publie pour la premire fois dans son intgrit par les RR. PP. Marcellino da Civezza et Te-
ofilo Dominichelli. Traduction, introduction et notes dArnold Goffin, BruxeJles, 1902. La Lgende de S.
Franois dAssise crite par trois de ses Compagnons publie dans son intgrit par les RR. PP. Marcellino
da Civezza e Teofilo Dominichelli. Trad. franaise par Lon de Kerval. Rome-Vannes-Paris, 1902.
117
Ver pg. 512.
118
Opusc., t. I, fasc. III, p. 69 s.

481
. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
A Legenda dos Trs Companheiros tal comos Padres Marcelino de
Civezza e Tefilo Dominichelli publicaram parece, em todo caso, anterior
obra de Boaventura e segunda Vida de Toms de Celano 119.]

[X. - Os Documentos do R. Pe. Lemmens.]


Documenta Antiqua Franciscana. Edidit F. Leonardus Lemmens OFM.
Pars I Scripta Fratris Leonis.
(Vita B. Fr. Aegidi Intentio Regulae Verba S. Francisci. Quaracchi, 1901.)
Pars II Speculum Perfectionis Redactio prior. Quaracchi 1901. Pars III Extrac-
tiones de Legenda Antiqua. Quaracchi 1902.

uma pena que o Pe. Lemmens tenha diminuido um pouco o alcance


de seu descobrimento por algumas idias que me parecem apressadas,
mas essa descoberta era digna de atrair mais ateno 120.
............................
Os opsculos de Frei Leo publicados pelo Pe. Lemmens no pode-
riam ser uma cpia de extratos preparados por Hubertino de Casale ou
algum do mesmo tipo 121.
............................
possvel perguntar se a Intentio beati Francisci e a Redactio Prior.
do Speculum Perfectionis no seriam materiais recolhidos por ngelo
Clareno 122.]
[XI. - Legenda Vetus.]
[S. Francisci Legendae Veteris fragmenta quaedam.
Edidit Paul Sabatier (Opusc., t. I, fasc. III, 1902).

Sete captulos da Legenda Antiqua (c. 1322) que parecem provir da


Legenda Vetus (c. 1246).
Esses sete captulos so tomados do manuscrito franciscano de
Liegnitz (Biblioteca da igreja de So Pedro e So Paulo n 12.)

119
Coll., t. II, p. XXI.
120
Opusc., t. II, fasc. XVII, p. 395.
121
Nota manuscrita de Paul Sabatier.
122
Nota manuscrita de Paul Sabatier.

482
Eis a apreciao de Paul Sabatier como a deu em 1919 123:
Ainda que alguns textos apresentados outrora pelo Pe. Van Ortroy
contra minha hiptese tenham confirmado seu valor 124, eu vou evitar me
apoiar neles para dar mais valor ao meu prprio pensamento.
A falta de firmeza das razes opostas s razes crticas no basta para
assegurar seu valor.
Aproximando os sete captulos, j publicados nos Opsculos, da longa
srie dos que vo ser publicados proximamente 125, percebemos entre uns
e outras diferenas de tom e de estilo que no podem ser negligenciadas.
No aqui o lugar de examinar tudo isso em detalhe: basta dizer que esses
captulos remontam a Frei Leo, como diz Clareno, por sua substncia
e, at certo ponto, pela forma, mas eles foram retocados, condensados,
elaborados, e finalmente utilisados para uma finalidade polmica. Dessa
forma, eles perderam aqui e ali um pouco do seu frescor, do abandono
familiar e um pouco difuso estilo de Frei Leo.]
[XII. O Manuscrito A. G. Little 126.]

[No vero passado (1913), o professor A. G. Little me comunicou a


descrio detalhada de um manuscrito franciscano que ele teve a sorte
de adquirir. Trata-se do Philipps 12290.
A traduo francesa dessa descrio est sendo impressa e vai aparecer
em algumas semanas como primeiro fascculo do tomo III dos Opuscules.
Esse novo documento vai permitir aos estudos franciscanos um novo
passo importante.

123
Opusc., t. II, fasc. XVII, p. 390.
124
Livarius Oliger, Expositio Regulae fratrum Minorum, auctore Fr. Angelo Clareno. Quaracchi 1912, p.
44, 1. 26. O sbio franciscano foi levado, durante o seu trabalho, a examinar as afirmaes de Van Ortroy.
Ele o fez com perfeita serernidade. Ver pgina n. 2; 46 n. 1; 204 n. 2; 206 n. 2; 211 n. 4; 22 n. 2.
125 Trata-se de um certo nmero de captulos tomados em diversos manuscritos da Compilation
dAvignon do qual Paul Sabatier preparava ento a publicao e o estudo crtico, mas principalmente
mas principalmente dos que foram fonrcidos pelo ms. Little (v. XII). Os que forsam publicados
mais tarde pelo R. Pe. Ferdinand Delorme de acordo com um ms. de Perusa (v. XIII) pareciam-
lhe ter a mesma origem (nota do editor).
126
Opusc. t. II, fasc. XVII (1914-1919), p. 409 ss.

483
...........................
Sua maior utilidade pelo menos no momento trazer, se no a
luz definitiva nas questes to discutidas do Speculum Perfectionis e da
Legenda dos Trs Companheiros, pelo menos alguns esclarecimentos
inesperados.
Falando assim eu no penso em uns cinquenta captulos do Speculum
Perfectionis (seo 81-133 do manuscrito Little) que constituem uma es-
colha quase idntica que j conhecemos pela Compilao de Avinho 127.
O que completamente novo e que vai permitir assentar as discusses
sobre a Legenda Vetus e todos os escritos de Frei Leo sobre uma base
nova e mais ampla so os 55 captulos (seo 145-199 da descrio) que,
quase todos, contam fatos j conhecidos mas os contam sob uma forma
nova cuja importncia se impe primeira vista.
O que so, ento, essas narrativas, entre as quais mais da metade tra-
zem de novo fatos j contados pelo Speculum Perfectionis, acrescentando
s vezes detalhes e fatos de uma real abrangncia para a vida de So
Francisco, sendo que 12 correspondem mais ou menos perfeitamente a
captulos da 2Cel que no esto no Speculum Perfectionis?
O professor A. G. Little percebeu imediatamente que a maioria dos
trechos dessa parte de seu manuscrito, aparentados com o Speculum
Perfectionis tm uma redao muitas vezes idntica que foi oferecida
pelas publicaes do Pe. Lemmens (Verba, Intentio, Redactio Prior),
com a diferena que o novo manuscrito oferece s vezes o texto original
completo de uma narrativa de que os documentos Lemmens s davam
extratos.

127
Ver por exemplo as sees I-LXI do Ms. de Liegnitz. Opusc., t. I. p. 37-43. A semelhana na escolha
dos textos corresponde de resto a um parentesco evidente entre as leituras do novo manuscrito e as dos
manuscritos da Compilation dAvignon et du Spec. Vitae.
(Chamam-se Compilation dAvignon ou Legenda antiqua das coletneas compostas no convento de
Avinho por volta de 1322. O geral favorvel estrita observncia fazia ler mesa a Legenda antiqua, e, a
julgar pelos trechos que chegaram at ns, preciso entender por isso principalmente os escritos de Frei Leo
e antes e tudo o Speculum Perfectionis. Os frades foram levados a fazer cpias para completar a Legenda
nuova ou Legenda de So Boaventura. Numerosos manuscritos tm essa origem. Nenhum trabalho de
um copista profissional, todos so mais ou menos diferentes uns dos outros. Ver Coll., t. I, p. CLII ss e t. IV,
p. XVIII; Opusc. t. I, fasc. II.Description du manuscrit franciscain de Liegnitz; fasc. III, p. 71 ss. e Revue
dhist. francis., t. I, octobre 1924, o texto do Prefcio da Compilation dAvignon.)

484
Quanto s narrativas comuns Segunda Vida de Celano e ao novo
manuscrito, a vantagem toda em favor deste ltimo: ele apresenta uma
narrao mais simples em que a intensidade de viso bem mais marcada.
O feliz possuidor do novo manuscrito foi assim levado a ver nesses
captulos uma parte dos documentos usados por Toms de Celano para
a Segunda Vida, isto , fragmentos do trabalho de Frei Leo.
A descrio que ele estabeleceu copiosa, e, dos captulos mais
curiosos, ele d os textos integralmente. D para adivinhar como eu lhe
fiquei grato por me ter querido dar para os Opuscules o primor desse
importante trabalho que marcar uma poca na questo das fontes 128.
Seja-me permitido acrescentar que os resultados a que chegou o emi-
nente franciscanista ingls confirmam e completam os que eu tinha feito,
seja estudando as publicaoes do R. Pe. Lemmens, seja confrontando os
diversos estados que chegaram a ns de algumas narrativas.
Agora j possuimos para um nmero realmente suficiente de recor-
daes que se encontram na Segunda Celano; dois estados de narrativas
que tudo tende a demonstrar que so anteriores.
Se uma srie desses dois estados constuiu e no h porque duvidar
uma parte dos materiais usados por Celano, ser que algum vai se
recusar a ver nisso a que podemos dar o nome de Legenda Vetus ou
outro fragmentos da obra dos Trs Companheiros?
E se, enfim, o outro estado se demonstrar, por si mesmo, fonte do outro
que precede, ser que algum vai se recusar a reconhecer que a Legenda
dos Trs Companheiros foi precedida por uma obra muito anloga, e que
teve os mesmos redatores?
Vamos deixar os documentos falarem; vamos nos deixar guiar por
eles, e todas essas questes se esclarecero. No seremos obrigados mais
a imaginar falsrios trabalhando sem que se saiba para qu.

128
Foi editado simultaneamente em ingls nos trabalhos da Sociedade Britnica de Estudos Franciscanos,
t. V, Aberdeen, 1914 e Opusc,. fasc. XVIII (1914-1919). Um novo manuscrito franciscano antigo Philipps
12290. Hoje na biblioteca A. G. Little descrito e estudado por A.G. Little, presidente da Sociedade britnica
de estudos franciscanos. Esse fascculo foi o ltimo que apareceu na srie dos Opsculos de crtica histrica.

485
Um falsrio, autor da Legenda tradicional dos Trs Companheiros,
onde vamos ter que chegar para explicar sua origem, quando a quisermos
arrancar do lugar que lhe cabe na srie das biografias de So Francisco.
Ningum se preocupou em perguntar se j houve falsrios que produzi-
ram obras primas.]
[XIII. - A Legenda Antiqua do manuscrito de Perusa.]
[Finalmente, em 1922 o R. Pe. Ferdinand M. Delorme OFM publicou
no Archivum Franciscanum Historicum, vol. XV (1922), fasc., 1-4 os
artigos intitulados: La Legenda Antiqua S. Francisci du manuscrit
1046 de la Bibliothque communale de Prouse.
Ele a apresenta a descrio do manuscrito e de importantes extratos
estreitamente aparentados com as narrativas do manuscrito Little.
Trata-se de um documento evidentemente anterior Segunda Vida
de Toms de Celano.
Nova edio em 1926 nas edies da France Franciscaine, in-8o de
XXI e 70 pginas 129.]

XIV. Segunda Vida por Toms de Celano 130. Primeira forma

Toms de Celano, que depois da aprovao de sua primeira legenda


por Gregrio IX era de alguma maneira historiador oficial da Ordem 131,
tinha recebido a misso de trabalhar os documentos enviados ao geral
em vista da deciso do captulo de 1244 132.

129
Foi feita uma traduo francesa: Abb J. M. Fagot, S. Franois dAssise racont par ses premiers
compagnons. Traduction franaise de la Legenda antiqua, daprs le manuscrit de Prouse. Paris, Bloud,
1927, in-16, de XVI et 186 pages.
130
Foi publicada pela primeira vez em Roma, em 1806, pelo Pe. Rinaldi em continuao da Primeira Vida
(Ver acima, p. 501, n. 1, e dada outra vez em 1880 pelo Pe. Amoni: Vita Secunda S. Francisci Assisiensis
auctore B. Thoma de Celano ejus discipulo Romae, tipografia della pace, 1880, in-8, 152 p. As citaes
so feitas de acordo com essa ltima edio que eu comparei em Assis com o Ms. 686 dos Arquivos do
Sacro Convento. Ms sobre pergaminho do fim do sculo XIII, se no estou enganado, 130 mm. por 142; 102
pginas numeradas. Alm de o livro estar dividido em duas partes em vez de trs, porque as duas ltimas
formam uma s, eu no encontrei diferena notvel com o texto publicado por Amoni; os captulosno esto
separados por uma alnea ou uma letra vermelha, mas, na tabela que ocupa as sete primeiras pginas do

486
Essa foi a origem da segunda legenda de Toms de Celano. Ela se
apresenta desde o comeo como uma obra coletiva. Celano fala em
nome de companheiros que o ajudam 133. Um exame mais atento mostra
que esta Segunda Vida tem como fonte principal a Legenda dos Trs
Companheiros, que o compilador remaneja, completando s vezes certos
detalhes; mais frequentemente fazendo verdadeiros cortes.
Tudo que no diz respeito a So Francisco impiedosamente pros-
crito; sente-se a vontade bem decidida de deixar para segundo plano os
discpulos que gostavam tanto de estar no primeiro 134.
A Legenda de Frei Leo chegou assim at ns inteiramente remanejada
por Toms de Celano, encurtada e sem frescor, mas ainda de uma impor-
tncia capital na falta da maior parte do original. As caractersticas que
temos para as duas provas permitem-nos medir a extenso de nossa perda.

volume tm os mesmos ttulos que na edio Amoni.


Esta segunda Vida escapou s pesquisas dos bolandistas. No se explica como esses sbios ignora-
ram o valor do manuscrito que o Pe. Tebaldi, arquivista de Assis, lhes havia indicado, oferecendo-
lhes, at, uma cpia (A. SS., oct., t. lI, p. 546). O Pe. Suyskens meteu-se assim em inexplicveis
dificuldades e se exps a no entender as listas das biografias de So Francisco feitas pelos analistas
da Ordem; privou-se ao mesmo tempo de uma das fontes mais abundantes de informaes sobre
os fatos e os gestos do Santo. - O prof. Mller (Die Anfnge, p. 175-184) foi o primeiro a fazer um
estudo crtico dessa legenda. Suas concluses me parecem estreitas e extremas. Cf. Analecta, fr. t.
II, p. XVII-XX. - Ed. Pe. Eduardo de Alenon, Roma, 1906, v. p. 532 n.1.
131
Cf. Beaufreton, Saint Franois dAssise, p. 269, 1. 3. Por volta de 1230 Celano j o historiador oficial
do pobrezinho. Esse epteto de historigrafa da Ordem convm tanto ou melhor a Toms de Celano, que
tambm comps, por ordem de Alexandre IV, a Vida de Santa Clara. Ver Analecta Boll., t. XV (1896), p.
101, a propsito de Cozza Luzzi, Il Codice Magliabecchino della storia di S. Chiara, Bolletino della Societ
Umbra di Storia patria, t. I, p. 417-426.
Como o processo de canonizao de Santa Clara foi publicado (ver p. 189, n. 1) e serviu de base
para a Legenda de Toms de Celano ns praticamente nos fixamos em seu mtodo de trabalho no
que diz respeito reelaborao das fontes.
132
Os Trs Companheiros prevem o caso de sua legenda ser incorporada a outros documentos: quibus
(legendis) haec pauca quae scribemus poteritis facere inseri, si vestra discretio viderit esse justum. LTC prol.
Uma frase do prlogo de 2Cel mostra que o autor recebeu uma misso bem epecial: Placuit... vobis...
parvitati nostrae injungere, enquanto os Trs Companheiros deixam ver que a misso capitular a no ser de
longe: Cum de mandato praeteriti capituli fratres teneantur... visum est nobis... pauca de multis... sanctitati
vestrae intimare. LTC prol.
133
Comparar o prol. de 2Cel ao de 1Cel. Em suma, Celano, dando-se como porta-caneta dos Companhei-
ros ele o foi de fato, remanejando LTC e talvez mesmo EP. no fez seno o que fez Boaventura, quando
por sua instigao o captulo geral de 1266 decretou a destruio de todas as legendas anteriores a pretexto,
entre outros, de que a Legenda de Boaventura era o resultado das conversas do geral com os companheiros
sobreviventes. Ver p. 539.
134
Longum esset de singulis persequi, qualiter bravium supernae vocationis attigerint. 2Cel 1, 10.

487
Na compilao de Celano encontramos tudo que espervamos encon-
trar nos Trs Companheiros: as narrativas se referem principalmente aos
dois ltimos anos da vida de Francisco e muitas tm por teatro Grcio ou
um dos eremitrios do vale de Rieti 135; Frei Leo foi, de acordo com a
tradio, o heroi de uma poro de casos que nos so contados 136 e todas
as citaes feitas por Hubertino de Casale do livro de Frei Leo tm a
suas correspondentes 137. Esta Segunda Vida reflete bem o pensamento
dos Companheiros. A questo da Pobreza domina tudo 138.
[139 Ela est dividida em trs partes. A primeira corresponde exata-
mente Legenda dos Trs Companheiros do jeito que foi autorizada por
Crescncio 140.
Se examinarmos o conteudo da segunda parte 141, perceberemos ime-
diatamente que as narrativas seguem-se a numa ordem suficientemente
cronolgica e chegam at a morte de So Francisco.
Como em geral elas se referem a fatos que se passaram na presena
de Frei Leo, que combinam numa parte com as aspiraes de seu grupo,
e de outra parte com a caracteristica dada pelos trs companheiros de a
sua obra no prlogo, creio que estou autorizado a concluir que haveria
entre a segunda parte de 2Cel e a parte desaparecida dos Trs Compan-
heiros uma relao anloga que existe entre a primeira parte de 2 Cel e
a parte que sobrou desse documento. Falo de relacionamentos anlogos,
porque Toms de Celano mostra-se aqui sem dvida mais circunspecto
do que habitualmente.
Finalmente, como Celano se baseia seja no Speculum Perfectionis,
seja talvez ainda mais nas mesmas narrativas que Frei Leo tinha repe-

135
Grcio, 2 Cel. 2, 5; 14; 3,7; 10; 103. - Rieti, 2Cel 2, 10; 11; 12; 13; 3,36; 37; 66; 103.
136
So Francisco deu-lhe um autgrafo, 2Cel 2, 18. Cf. Fior., 2 consid.; sua tnica 2Cel 2, 19; predisse-lhe
uma fome 2Cel 2, 21; Cf. Conform. 49 b. FRei Leo doente em Bolonha 2Cel 3, 5.
137
O texto pode ser encontrado em Hubertino de Casale no Archiv., t. III, p. 53, 75, 76, 85, 168, 178, onde
o R. Pe. Ehrle indica as passagens correspondentes de 2Cel.
138
Ela o assunto de trinta e sete narrativas! 2Cel 3, 1-37, depois vm exemplos sobre o esprito de orao
2Cel 3, 38, 44, as tentaes 2Cel 3, 58-64, a verdadeira alegria 2Cel. 3, 79-84, a humildade 2Cel 3, 79-87,
a obedincia 2Cel 3, 88; 91, etc., etc.
139
De acordo com a Coll., t. I, p. CXXV.
140
2Cel 1.
141
2Cel 2.

488
tido na Legenda dos Trs Companheiros, e apoiando-se talvez em alguns
outros documentos provocados pelo captulo de 1244, comps o que um
escritor de talento, o Pe. Le Monnier 142, chamou com razo de o livro
das virtudes do santo, a terceira parte da Segunda Vida 143.
Essa terceira parte 144 aparece, com efeito, como um verdadeiro
Speculum Perfectionis, quero dizer, como o tipo dessas coletneas em
que, na Idade Mdia, as pessoas iam buscar exemplos de cada virtude.
Nisso, 2Cel 3 superior ao Speculum Perfectionis de Frei Leo, porque
o trabalho de um artista, de um profissional, enquanto em Frei Leo
a emoo e a onda de recordaes vinham a cada instante fazer a pena
desviar-se para narrativas mais pessoais, mais apaixonadas. E essa a
beleza incomparvel da obra de Frei Leo, seu valor histrico. provvel
que, em sua simplicidade, Frei Leo tivesse inveja das belezas de estilo
de seu mulo e bem que teria gostado de ordenar sua prosa em frases
rtmicas e dignas de ser lidas luz das velas nas grandes funzioni.
A Segunda Vida de Toms de Celano foi certamente redigida entre
11 de agosto de 1246, data em que os trs companheiros enviaram sua
obra a Frei Crescncio (porque Celano serve-se dessa obra), e o ms de
julho de 1247, poca em que se reuniu em Lio o captulo que devia levar
Joo de Parma ao generalato. A legenda de Celano , de fato, dirigida
a Crescncio.
Na hora de lhe apresentar o resultado do trabalho de que tinha sido
encarregado, e para cuja execuo ele no tinha tido outros colabora-
dores a no ser os frades zelantes da pobreza, Celano pensou no rigor
com que o geral tinha procedido contra esse partido. No h dvida de
que se sentia em toda a Ordem uma surda fermentao que fazia prever
a queda de Crescncio, mas a prudncia me da segurana e Celano,
no seu prlogo, se faz mais humilde e pequeno do que nunca 145. Ele

142
Histoire de S. Franois, Paris et Lyon, 1889, 2 vol., t. I, p. 14.
143
2Cel 3.
144
Notas manuscritas destinadas parte crtica da nova Vida de So Francisco que Paul Sabatier estava
preparando.
145
O prlogo de 1Cel h frmulas de humildade que eram de rito, mas o contraste chocante com os
protestos que vem logo depois em 2Cel.

489
no s prodigaliza a seu superior os ttulos mais respeitosos e se declara
apenas pronto a ver sua obra corrigida e cortada, mas chega a prever
o caso em que o fruto de longas fadigas possa ser inutilizado, julgado
indigno de ser publicado.]

[XV. - XV. - A Segunda Vida de Toms de Celano


de acordo com o manuscrito de Marselha ou 3 Celano 146.]

A eleio de Joo de Parma (1247-1257) como sucessor de Crescncio foi


uma vitria dos zelantes. Esse homem, em cuja mesa de trabalho os passari-
nhos vinham fazer ninhos, 147 devia comover o mundo por suas virtudes.
Ningum entrou mais dentro no corao de So Francisco do que ele,
ningum foi mais digno de retomar e de continuar sua obra.
[Depois que Celano 148 apresentou a Legenda no captulo de 1247,
em que Crescncio foi deposto, repreenderam-no sem dvida por no
ter includo certas narrativas miraculosas que circulavam desde ento e
pareciam muito teis. Tambm pode ser que ela tivesse contra si mesma,
aos olhos de muitos, o fato de no ter explicitamente abrogado 1 Celano
absorvendo-a.
Provavelmente foi no captulo de Metz, em 1254 que, respondendo a
esses desejos e ressentimentos, Joo de Parma encarregou o historiador
de retomar outra vez sua obra para complet-la 149.

146
Em 1898, quando foi vendida a Biblioteca Buoncompagni em Roma, o R. Pe. Lus de Porentruy OFMCap
adquiriu para o museu franciscano de Marselha um manuscrito que continha a Segunda Vida de Toms de
Celano compreendendo o tratado dos Milagres, perdido fazia muito tempo (ver p. 533, n. 2.)
Ela a se apresenta em um estado muito diferente do Ms. 686 de Assis e das edies anteriores, e foi pu-
blicada pelo R. Pe. Eduardo de Alenon OFMCap S. Francisci Assisiensis Vita et Miracula. Roma, Descle,
1906, LXXXVII e 481 p.
Podemos lamentar que o sbio capuchinho no tenha adotado uma disposio tipogrfica que permitisse ao
leitor perceber mais facilmente algumas diferenas profundas que separam os dois textos. No se trata de
simples variantes, mas de um remanejamento feito por Celano. O Ms. de Marselha constitui uma obra nova
que em sua maior parte reproduz bem 2Cel, mas que acrescenta aqui e ali passagens muito importantes e
corta algumas outras. Esse Ms. est atualmente na Cria Generalca dos RR. PP. Capuchinhos, em Roma,
71, via Buoncompagni.
147
Salimbene, ano 1248.
148
Notas manuscrites destinadas parte crtica da Nova Vida.
149
Chron. XXIV gen. An. fr., t. III, p. 262: Et post frater Thoma de Celano (cod. Ceperano) de mandatu
eiusdem Ministri (Frei Crescncio) et generalis capituli primum tractatum Legendae beati Francisci de vita
scilicet et verbis et intentione eius circa ea quae pertinent ad regulam compilavit quae dicitur Legenda

490
O resultado desse trabalho foi sem dvida o estado da Legenda ofere-
cido pelo manuscrito de Marselha. No possvel contestar seriamente
que o tratado dos milagres, como se encontra no manuscrito de Marselha,
faa parte do remanejamento de 2 Celano, que ele completa como um
todo orgnico 150.
O prudente prlogo da Segunda Vida desaparece. Sobram apenas
algumas linhas, aquelas onde so indicadas as principais subdivises
da obra: com Joo de Parma no generalato, uma obra baseada em docu-
mentos e em que a observao escrupulosa da Regra estava em primeiro
plano recomendava-se por si mesma.
O aspecto desse novo trabalho muito diferente da antiga 2 Celano,
principalmente no que se refere a suas relaes com 1 Celano. Se teve
alguma vez a idia de juntar 1 e 2 Celano para construir um nico mo-
numento, renunciou a isso.
Ele retoma 2 Celano corrigindo-a, aqui e ali, completando-a com
passagens tomadas de 1 Celano, mas frequentemente encurtando-as. O
tratado dos milagres adquire uma importncia toda nova: as narrativas,
em vez de ser uma seca enumerao, tornam-se cenas em cuja descrio
o narrador se aplicou 151.

antiqua. Quae dicto Generali et capitulo dirigitur cum prologo, qui incipit: Placuit sanctae universitati
vestrae, etc... et p. 276: Hic Generalis (Jean de Parme) praecepit multiplicatis litteris fratri Thomae de
Celano (cod. Ceperano) ut vitam beati Francisci, quae antiqua Legenda dicitur, perficeret, quia solum
de eius conversatione et verbis in primo tractatu, de mandato fratris Crescentii Generalis praedicti com-
pilato, omissis miraculis, fecerat mentionem. Et sic secundum tractatum quid de eiusdeni sancti Patri agit
miraculis compilavit, quem cum epistola, quae incipit Religiosa nostra sollicitudo misit eidem Generali.
Esse tratado dos milagres tinha desaparecido, mas sobrava uma pave em um caderno de pergaminho
sem comeo nem fim, incorporado ao ms. 338 de Assis. A crtica interna me havia permitido identific-la
(Miscell. fr. abri1 1895, t. VI, p. 39-43). O ms. de Marselha (v. p. 532, n 2) contm-no inteiro.
150
A crtica externa afirma que essa obra constitui um s manuscrito, onde ns a encontramos. verdade
que, at agora, esse manuscrito nico, mas no poderamos fazer abstrao dessa unidade exterior a no ser
que boas razes de crtica interna tendessem a provar que ela um erro. Ora, justo o contrrio, e a crtica
interna, como a outra, mostra a unidade das duas partes. Foi assim que Celano, remanejando a segunda
Vida, depois de ter copiado a frase: Nituntur proinde creaturae omnes vicem amoris rependere sancto et
gratitudine sua pro meritis respondere blandienti arrident, roganti annuunt obediunt imperanti (2Cel 3,102)
anuncia que ele rejeita no tratado dos milagres um certo nmero de narrativas: sicut inferius in miraculis
annotabitur. Ver TM., 14; 23; 25; 28; 26; 27.
151
Ver por exemplo TM 49; 52; 54; 59; 93.

491
A finalidade principal desses casos continua a ser sempre a glria de
So Francisco, mas completada pelas secundrias, por exemplo mos-
trar o valor da confisso in articulo mortis 152, a generosidade com que
So Francisco recompensa tanto os que tm um culto particular por ele
153
, quanto os que so favorveis sua Ordem 154, os mais zelosos pela
construo de igrejas que a ele devem ser dedicadas 155, ou mesmo os
que lhe prometem embelezar seus santurios 156.
Duas passagens muito vivas dirigidas contra Elias 157 so pura e sim-
plesmente surpresas. Elias tinha morrido no dia 22 de abril de 1253 158.
A segunda Legenda de Celano assim transformada e completada foi,
pelo que podemos supor, preparada para o captulo de 1257, aquele em
que So Boaventura se tornou ministro geral.
Por isso, esta obra teve uma vida bem efmera: alis, ela j muito
anloga que, poucos anos depois, devia compulsar o clebre mstico.]

[XVI. Legenda de So Boaventura].

Sob o generalato de Joo de Parma (1247-1257), os partidos francis-


canos sofreram modificaes, pelas quais sua oposio tornou-se ainda
mais gritante do que antes.
Os zelantes, tendo sua frente o ministro geral, adotaram com entu-
siasmo as idias de Joaquim de Fiore. As predies do abade calabrs cor-

152
TM 40 e 41.
153
TM 42 e 43.
154
TM 54.
155
TM 44 et 59.
156
TM 45 et 65.
157
2Ce. 3, 93 e 2CeI. 3, 139.
158
Frei Elias reaparece, portanto, em um cantinho de 3Cel, isto , no trecho redigido, como foi muito bem
dito, na inteno da Jacoba de Settesoli (An. BoIl., t. XVIII, p.100). verdade que no aparece com seu
nome, mas com o modesto ttulo de vicarius. que a nobre dama, sua amiga, estava muito ligada ao partido do
imperador, e estava longe de ter por Frei Elias os sentimentos que devia inspirar um excomungado vitandus.
Ela lhe mandou o travesseiro do leito de morte de Francisco depois de o ter ornado com um bonito bordado.
Esse trabalho to precioso no era destinado apenas a contar a piedosa lembrana que a nobre dama guardava
do serfico patriarca, queria ser tambm uma garantia de fidelidade ao famoso excomungado. A narrativa
de 3Cel 37-39 no teria dado a Jacoba o mesmo prazer se Frei Elias tivesse sido completamente eliminado.

492
respondiam bem s suas preocupaes ntimas para que no acontecesse
isso; parecia-lhes ver So Francisco como um novo Cristo inaugurando
a terceira era do mundo.
Durante alguns anos esses sonhos emudeceram a Europa; a f dos
joaquimitas era to ardente que se impunha a viva fora; os cticos,
como Salimbene, diziam a si mesmos que, tudo somado, era melhor no
se deixar tomar de surpresa pela grande data final de 1260, e acorriam
em multido cela de Hyres, para serem iniciados por Hugo de Digne
nos mistrios dos novos tempos. Quanto ao povo, esperava tremendo,
dividido entre a esperana e o terror. Entretanto, seus adversrios no se
davam por vencidos, e o partido dos relaxados continuava a ser o mais
numeroso. De uma pureza anglica, Joo de Parma cria na onipotncia
do exemplo: os acontecimentos mostraram como ele estava errado;
quando saiu do cargo os escndalos no eram menos gritantes do que
dez anos antes 159.
Entre esses dois partidos extremos, contra os quais ele iria agir com
igual rigor, estava o dos moderados, ao qual pertencia So Boaventura 160.
Mstico, mas de um misticismo regrado e ortodoxo, ele enxergava
para que revolues estaria correndo a Igreja se o partido do Evangelho
eterno triunfasse; sua vitria no seria a de uma ou outra heresia, mas
seria em pouco tempo a ruina de todo o edifcio eclesistico. Ele era
muito perspicaz para no ver que, em ltima anlise, a luta travada era a
da conscincia individual contra a autoridade. Isso explica, e faz com que
perdoemos at certo ponto suas severidades para com os que o contradi-
ziam; ele estava apoiado pela corte de Roma e por todos os que queriam
fazer da Ordem ao mesmo tempo uma escola de piedade e de cincia 161.

159
Temos como prova disso a carta circular Licet insufficentiam nostram dirigida por Boaventura no dia
23 de abri de 1257, logo depois de sua eleio, aos provinciais e aos custdios sobre a reforma da Ordem.
Texto: Speculum Morin, tract. III, f 213 a.
160
Salimbene, ann.1248, p. 131. A chromica tribulationum apresenta uma longa e dramtica narrativa des-
ses acontecimentos: Archiv, t. II, p. 283 ss. Tunc enim sapientia et sanctitas fratris Bonaventure eclipsata
paluit et obscurata est et ejus mansuetudo (sic) ab agitante spiritu in furorem et iram defecit. lb., p. 283.
161
O que sabemos desses traos exteriores tambm d a impresso de uma vigorosa sade. Foi uma mens
sana in corpore sano.
Fuit B. Bonaventura praestanti forma, statura enim fuit eminens, maiestate corporis eximia, vultu decoro

493
Assim que foi eleito geral ele marchou para suas duas metas com uma
perseverana que nunca conheceu hesitaes e uma vontade cuja firmeza
se fazia sentir em toda parte. Desde o dia seguinte sua nomeao, ele
traou contra o partido dos relaxados o programa das reformas, e ao
mesmo tempo provocou o comparecimento Citt della Pieve dos frades
joaquimitas diante de um tribunal eclesistico, que os condenou priso
perptua. Foi necessria a interveno pessoal do cardeal Ottobonus,
futuro Adriano V, para que Joo de Parma ficasse em liberdade e pudesse
retirar-se para o convento de Grcio.
O primeiro captulo que houve sob a sua presidncia, em cujas longas
decises encontra-se a sua mo por toda parte, reuniu-se em Narbona em
1260. A ele foi encarregado de compor uma nova vida de So Francisco
162
.
Compreende-se facilmente a que preocupaes dos frades correspon-
dia essa deciso. O nmero de legendas tinha crescido muito, porque
alm das que acabamos de estudar ou indicar, havia outras: algumas que
desapareceram inteiramente. E era difcil para os que partiam para as
misses longinquas, fazer uma escolha ou levar tudo.
Por isso o caminho estava todo indicado para o novo historiador: ele
devia realizar uma obra de compilador e de pacificador. Esteve altura.
Seu livro um verdeiro feixe, ou talvez seja uma m em que o infatigavel
autor, mais ou menos ao acaso, reuniu os feixes de seus predecessores.
Na maior parte do tempo ele os coloca pouco a pouco, quase tais quais,
limitando-se a encurt-los ou a lhes tirar o joio.
Tambm, quando chegamos ao fim dessas longas pginas, ficamos com
uma impresso bem vaga de So Francisco; vemos que ele foi um santo,
um santo muito grande, porque fez uma quantidade enorme de milagres,

et gravi, sermone placidus, conservatione benignus, corporis et animi dotibus excellens, valetudine raro pul-
satus adversa... ut suo tempore nullus esset eo pulchrior, sanctior, nec doctior. Ridolfi, Hist. Ser. Rel., f 92 b.
162
LM, 3, 1. Ligamos a esse mesmo captulo as Constituies da Ordem, editadas pelos captulos prece-
dentes; acrescentaram outras novas e coordenaram o conjunto. Na primeira das doze rubricas, o captulo
ordenava que, logo depois da publicao da nova coleo, todas as antigas constituies fossem destrudas.
O texto foi publicado no Firmamentum trium Ordinum, f 7 b, e reapresentado posteriormente pelo Pe.
Ehrle: Archiv., t. VI (1891) em seu belo estudo Die altesten Redactionen der Generalconstitutionen des
Franziskaners ordens. Cf. Speculum Morin, f 195 b, ss. do trat. III.

494
grandes e pequenos; mas o leitor fica mais ou menos com a impresso de
quem percorre as galerias dos comerciantes de objetos de piedade: todas
essas imagens, seja Santo Anto Abade, So Domingos, Santa Teresa ou
So Vicente de Paulo, tm a mesma expresso de humildade adocicada,
de um xtase um pouco ingnuo. So santos, se quiser, so taumaturgos;
mas no so humanos; quem os fez trabalhou por profisso, seguindo
seus processos, e no colocou nada de seu corao nessas cabeas sempre
inclinadas, nessas bocas de sorriso insosso.

Deus me livre de dizer ou de pensar que So Boaventura no tenha


sido digno de escrever uma vida de So Francisco, mas as circunstncias
dirigiram seu trabalho, e bem podemos dizer, sem o ofender, que bom
para Francisco, e sobretudo para ns, o fato de termos sobre o Poverello de
Assis outras biografias alm da do Doutor Serfico 163. Trs anos depois,
em 1263, ele levou seu trabalho terminado para o captulo geral convo-
cado para Pisa sob sua presidncia. E a foi solenemente aprovado 164.

No sabemos dizer se nessa ocasio pensaram que bastaria a presena


da nova legenda para substituir as antigas; mas parece que por essa vez
guardaram silncio sobre isso.

No foi a mesma coisa no captulo seguinte. Reunido em Paris em


1266, tomou uma deciso que devia ter desastrosos resultados para os
documentos franciscanos primitivos. Esse decreto, emanado por uma
assemblia presidida por Boaventura em pessoa, muito importante para
no ser apresentado textualmente: Item, o captulo geral ordena por
obedincia que todas as legendas do B. Francisco feitas outrora sejam
destrudas. Os frades que as encontrarem fora da Ordem devero procurar
faze-las desaparecer, pois a legenda feita pelo Geral foi compilada com
as informaes dos que acompanharam quase sempre o B. Francisco;

163
Quase todos os crticos chegaram atualmente a concluses anlogas s minhas. V. p. ex. Pe. Lemmens,
Documenta antiqua, II pars. p.10 ss. O Pe. Van Ortroy (Anal. Boll., t. XXI, p. 149) fala do sistema de
atenuaes e de rticncias postos principalmente em honra de Boaventura. Cf. Anal. BoIl. XXII, p. 360 ss.
164
A tambm foi aprovada a Legenda Minor de Boaventura que no era mais do que um resumo da Legenda
Major, apropriado ao uso no coro para a festa de So Francico e sua oitava.

495
tudo que eles podiam saber de maneira segura e tudo que est provado
foi cuidadosamente inserido 165. Era difcil ser mais preciso.
Vemos com que perseverana Boaventura prosseguia sua luta contra
os grupos extremos. Essa constituio explica o desaparecimento quase
completo dos manuscritos de Celano e dos Trs Companheiros, enquanto
mal d para contar os da legenda de Boaventura em algumas colees.
Como vemos, Boaventura tinha querido escrever uma espcie de
biografia oficial ou cannica; conseguiu demais. A maior parte das nar-
rativas que conhecemos j passaram para sua coletnea, mas no sem
sofrer s vezes deformaes profundas. No devemos nos admirar de
ve-lo escorregar, com mais discrio que Celano na Primeira Vida, pela
juventude de Francisco, mas lamentamos ve-lo ornamentar e materializar
alguns dos mais bonitos traos das legendas anteriores.
Para ele no foi suficiente que Francisco tivesse ouvido o crucifixo
de So Damio falar; ele se detm para marcar bem o que entendia por
corporeis auribus e que no havia ningum na capela nesse momento!
Frei Monaldo, no captulo de Arles viu So Francisco aparecer corporeis
oculis. Ele muitas vezes resume seus predecessores, mas isso no para
ele uma regra invarivel. Quando vai falar dos estigmas, consagra-lhes
longas pginas 166, conta uma espcie de consulta feita por Francisco
para saber se poderia esconde-los e acrescenta vrios milagres devidos
a essas chagas sagradas. Mais adiante, ele volta para mostrar um certo

165
Item praecipit Generale capitulum per obedientiam quod omnes legendae de B. Francisco olim factae
deleantur et ubi inveniri poterant extra ordinem ipsas fratres studeant amovere, cum illa legenda quae facta
est per Generalem sit compilata prout ipse habuit ab ore illorum qui cum B. Francisco quasi semper fuerunt
et cuncta certitudinaliter sciverint et probata ibi sint posita diligenter. Este precioso texto foi encontrado e
publicado pelo Pe. Rinaldi em seu prefcio ao texto de Celano: Seraphici Viri Francisci vitae duae, p. XI. V.
AFH III (1910), p. 98; 492; 502 e S. Bon. Opera, d. Quaracchi, t. VIII p. 464 col. 2. Wadding parece ter tido
conhecimento, pelo menos indiretamente, porque diz: Utramque Historiam, longiorem et breviorem, obtulit
(Bonaventura) triennio post in comitiis Pisanis patribus Ordini, quas reverenter cum gratiarum actione,
supressis aliis quibusque Legendis, admiserunt. Ad ann. 1260, n 18. Cf. Ehrle, Zeitschrift fr kath. Theol.,
t. VII (1883), p. 396. - Communicaverat sanctus Franciscus plurima sociis suis et fratribus antiquis, que
oblivioni tradita sunt tum quia que scripta erant in legenda prima, nova edita a fratre Bonaventura deleta
et destructa sunt, ipso jubente, tum quia... Chronica tribul. Archiv., t. II, p. 256.
166
LM 188-204.

496
Jernimo, cavaleiro de Assis, querendo tocar com suas mos os cravos
milagrosos 167. Mas ele de uma discrio significativa quando se trata
dos companheiros do Santo. No d o nome de mais do que trs dos onze
primeiros discpulos 168, e no menciona os freis Leo, ngelo, Rufino,
Masseo, como seu adversro Frei Elias. Pelo contrrio, o elogio que faz
de Frei Iluminato parece bem significativo 169.
Quanto s narrativas que encontramos pela primeira vez nessa colet-
nea, no nos fazem lamentar as fontes desconhecidas que teriam estado
a servio do famoso Doutor; parece que a cura de Morico, devolvido
sade por algumas bolinhas de po molhadas no leo da lmpada que
ardia diante do altar da Virgem 170, no tem importncia para a vida de
Francisco, no mais do que a histria daquela ovelha doada a Jacoba de
Settesoli, que despertava sua dona para lhe lembrar a hora de ir missa
171
. Que pensar daquela outra ovelha da Porcincula, que ia ao coro
quando ouvia a salmodia dos frades e se ajoelhava devotamente para a
elevao do Santo Sacramento 172?
Todos esses traos, cuja lista poderamos aumentar 173, revelam o
trabalho da legenda; So Francisco tornava-se um grande taumaturgo,
mas sua fisionomia perdia com isso a sua originalidade.
De fato, o maior defeito dessa obra esse tom vago em que ficamos
quanto ao carter do Santo. Enquanto nas obras de Frei Leo e mesmo,
at certo ponto, de Celano, esto as grandes linhas da histria de uma
alma, o esboo desse drama comovente de um homem que chega a
conquistar a si mesmo, em Boaventura todo esse trabalho interior desa-

167
LM 218.
168
Bernardo, LM 28; Egdio, LM 29 e Silvestre, LM 30.
169
LM 134 e 194. Sobre o jeito de Boaventura suavisar alguns acontecimentos, nada mais instrutivo do
que comparar sua narrativa da translao com a de Grgoire IX, que est na bula Speravimus hactenus de
16 de junho de 1230 (Potthast 8572). LM 222 (XV).
170
LM 49.
171
LM 112.
172
LM 111,
173
Ver LM 115; 99; etc. M. Thode enumerou essas narrativas especiais de Boaventura (Franz von Assisi,
p. 535, 1 M.).

497
parece diante das intervenes divinas; se corao , por assim dizer, o
lugar geomtrico de um certo nmero de vises, ele um instrumento
passivo nas mos de Deus, e no se v verdadeiramente porque foi ele
o escolhido e no outro.
Mas Boaventura era italiano; tinha visto a mbria; ele deve ter se
ajoelhado e celebrado os santos mistrios na pobre capela da Porcin-
cula, bero da mais nobre reforma religiosa; ele tinha conversado com
Frei Egdio e pde ter reencontrado em seus lbios um eco dos primei-
ros ardores franciscanos: mas infelizmente nada desse arrebatamento
passou para o seu livro, e se for preciso dizer, eu o acho bem inferior a
documentos bem posteriores, aos Fioretti por exemplo; porque os Fio-
retti captaram, pelo menos em parte, a alma de Francisco; sentiram bater
esse corao to cheio de sensibilidade, de admirao, de indulgncia,
de amor, de independcia e de despreocupao.
[X. - De laudibus de Bernardo de Bessa 174.]
A obra de Boaventura no desencorajou os bigrafos. O valor his-
trico de seus trabalhos quase nulo, e no vamos nem tentar fazer o
seu catlogo.
Bernardo de Bessa, provavelmente originrio do sul da Frana 175,
e secretrio de Boaventura 176, fez um resumo das legendas anteriores:
essa obra, que no nos d nenhuma indicao histrica importante, s
interessa pelo cuidado com que o autor anotou as localidades onde ficaram
repousando os frades mortos em odor de santidade, e conta uma poro
de vises, todas tendendo a provar a excelncia da Ordem 177.

174
Ed. Hilarino de Lucerna, Romae, 1897, in-12 de XVI e 14 pginas. E Anal., fr. t. III, em seguida
Crnica dos XXIV Gerais. Quaracchi (1897).
175
Ao ler, logo percebemos que ele conhece especialmente bem os conventos da Provncia da Aquitnia,
e nota com cuidado tudo que lhes diz respeito.
176
Wadding, ano 1230, n. 7. Diversas passagens provam pelo menos que ele acompanhou Boaventura
em suas viagens: Hoc enim (a assistncia especial de Frei Egdio) in iis quae ad bonum animae pertinent
devotus Generalis et Cardinalis praedictus... nos docuit. Fo96 a. - Jam dudum ego per Theutoniae partes
et Flandriae cum ministro transiens Generalu. Ibid. fo 106 a.
177
Bernardo de Bessa o autor de vrios outros escritos, notadamente de um importante Catalogus Minis-
trorum generalium publicado pelo R. Pe. Ehrle (Zeitschrift fur kath. Theol., t. VII, p. 338-352), com uma
bem notvel introduo crtica (Ib., p. 323-337). Cf. Archiv fr Litt. u. Kirchg., I, p. 145. Bartolomeu de

498
A publicao desse documento apresenta, entretanto, a grande vanta-
gem de esclarecer um pouco a difcil questo das fontes. Vrias passagens
do De laudibus encontram-se textualmente no Speculum Vitae 178. Ora,
como um olhar basta para mostrar que o Speculum no copiou o De
laudibus, necessrio que Bernardo tenha tido sua frente o Speculum
Vitae, ou pelo menos um documento do mesmo gnero.

III
FONTES DIPLOMTICAS

Colocamos nesta categoria todos os atos com um carter de autenti-


cidade pblica, em particular os que foram redigidos pela chancelaria
pontifcia.
Esta fonte de informaes em que cada documento tem data justa-
mente a que mais foi negligenciada at agora.

I. - Registros do Cardeal Hugolino.


Os documentos da chancelaria pontifcia dirigidos ao Cardeal Hu-
golino, futuro Gregrio IX, e os que saram de sua mo, durante suas
longas viagens como legado apostlico 179, tm uma importncia de
primeira ordem.
Seria muito longo apresentar mesmo uma simples enumerao. Os
que marcam fatos importantes foram indicados com exatido no curso
deste trabalho. Basta dizer que pondo lado a lado essas duas sries de
documentos e fazendo intervir a data das bulas papais assinadas por

Pisa escrevendo suas Conformidades tinha sob os olhos uma parte de suas obras, f 146 b 2; 126 a 1; mas
ele chama do autor vezes de Bernardus de Blesa, s vezes de Johannes de Blesa. Ver tambm Marcos de
Lisboa. t. II, p. 212 e Haurau, Notices et extraits, t. VI, p. 153.
178
Denique primos Francisci XII discipulos... omnes sanctos fuisse audivimus preter unum qui Ordinem
exiens leprosus factus laqueo vel alter Judas interiit, ne Francisco cum Christo vel in discipulis similitudo
deficeret. F 96 a.
179
Ver Registri dei Cardinali Ugolino dOstia e Ottaviano degli Ubaldini pubblicati a cura di Guido Levi
dallIstituto storico italiano. - Fonti per la storia dItalia, Roma, 1890, 1 vol. in 4, XXVIII e 250 pginas.
Esta edio foi feita de acordo com um manuscrito da Nationale de Paris: Antigos fundos Colbert lat. 5152
A. preciso comparar um trabalho bem bonito devido tambm a G. Levi: Documenti ad illustrazione del
Registro del Card. Ugolino, no Archivio della Societ Romana di storia patria, t. XII (1889), p. 241-326.

499
Hugolino, podemos seguir quase que dia a dia esse homem que foi,
talvez, sem excetuar So Francisco, aquele cuja vontade modelou mais
profundamente a instituio franciscana. Tambm vemos a a parte
importante que a Ordem teve desde o comeo nas preocupaes do
soberano pontfice, e chegamos a uma preciso perfeita para a poca de
seus encontros com So Francisco.
II. - Bulas.
As bulas pontifcias que dizem respeito aos franciscanos foram re-
colhidas no ltimo sculo e publicadas pelo conventual Sbaralea 180.
Mas at agora quase no aproveitamos dessas bulas para a histria das
origens da Ordem 181.
Eis uma lista sumria; os detalhes esto no curso desta obra.
N 1. 18 de agosto de 1218. Bula Litterae tuae dirigida a Hugoli-
no. O papa permite que ele aceite doaes de bens fundirios em favor
de mulheres que fogem do mundo (Clarissas) e que declare que esses
mosteiros pertencem S Apostlica.
N 2. 11 de junho de 1219. Cum dilecti filii. Esta bula, dirigida de
maneira geral a todos os prelados, uma espcie de salvo-conduto para
os Frades Menores 182.

180
Bullarium franciscanum seu Rom. Pontificum constitutiones epistolae diplomata ordinibus Minorum,
Clarissarum et Paenitentium concessa, edidit Joh. Hyac. Sbaralea ord. min, conv. 4 vol. in-fol. Roma, t. I
(1759), t.II (1761), t. III (1763), t. IV (1768). - Supplementum ab Annibale de Latera ord. Min. obs. Romae,
1780. - Sbaralea teve um trabalho relativamente fcil, porque antes dele tinham sido feitas numerosas
colees; vou citar s uma delas, que tenho diante dos olhos; ela , comparativamente, muito bem feita e
parece que escapou das pesquisas dos bibligrafos franciscanos: Singularissimum eximiumque opus universis
mortalibus sacratissimi ordinis seraphici patris nostri Francisci a Domino Jesu mirabili modo approbati
necnon a quampluribus nostri Redemptoris sanctissimis vicariis romanis pontificibus multipharie declarati
notitiam habere cupientibus profecto per necessarium - Speculum Minorum... per Martinum Morin... Ruo
1509. um in-8 com folhas numeradas, impresso com um cuidado notvel. Contm, alm das bulas, as
principais dissertaes sobre a regra, elaboradas no sculo XIII, e um Memoriale ordinis (1 parte, f 60-
82), uma espcie de catlogo dos ministros gerais que teria evitado muitos erros dos historiadores, se o
tivessem conhecido.
Sobre uma edio florentina dos Privilegia et indulgentia fr. Minorum desconhecida pelos bibligrafos,
ver Miscell, fr. IV, p. 101. Quem quiser ter idia do nmero enorme de obras em que foram recolhidas as
bulas franciscanas vai precisar ler as 21 pginas em que Petrus de Alva enumere as fontes de seu Indiculus
Bullarum, p. 1-21.
181
Os prprios bolandistas negligenciaram completamente essas fontes de indicaes, crendo, sobre uma
passagem mal interpretada, que a Ordem no tinha obtido nenhuma bula antes da aprovao solene por
Honrio III no dia 29 de novembro de 1223.
182
Ver p. 303.

500
N 3. 19 de dezembro de 1219. Sacrosancta romana. Privilgios
concedidos s Irms (Clarissas) de Monticelli perto de Florena.
N 4. 29 de maio de 1220. Pro dilectis. O papa roga aos prelados
da Frana que dem uma boa acolhida aos frades menores.
N 5. 22 de setembro de 1220. Cum secundum. Honrio III prescreve
um ano de noviciado antes da entrada na Ordem 183.
N 6. 9 de dezembro de 1220. Constitutus in praesentia. Esta bula diz
respeito a um padre de Constantinopla que fez voto de entrar na Ordem.
Como se trata de frater Lucas Magister fratrum Minorum de partibus
Romaniae, temos um testemunho indireto, e tanto mais precioso, sobre
a poca em que a Ordem se estabeleceu no Oriente.
N 7. 13 de fevereiro de 1221. Nova bula para o mesmo padre.
N 8. 16 de dezembro de 1221. Significatum est nobis. Honrio
IIl recomenda ao bispo de Rimini que proteja os Irmos da Penitncia
(Ordem Terceira).
N 9. 22 de maro de 1222 184. Devotionis vestrae. Concede aos
franciscanos que possam celebrar os ofcios em tempos de interdito sob
certas condies.
N 10. 29 de maro de 1222. Ex parte Universitatis. Misso dada
aos dominicanos, aos franciscanos e aos irmos da milcia de So Tiago
em Lisboa.
N 11, 12 e 13. 19 de setembro de 1222. Sacrosancta Romana. Pri-
vilgios para os mosteiros (Clarissas) de Lucca, Sena e Perusa.
N 14. 29 de novembro de 1223. Solet annuere. Aprovao solene
da Regra que est inserida na bula.
N 15. 18 de dezembro. Fratrum Minorum. Fala dos apstatas da
Ordem.

183
Ver p. 332.
184
E no 29 de maro como quer Sbaralea. O original que tenho diante de mim nos Arquivos de Assis, diz:
Datum Anagnie XI.Kal. aprilis pontificatus nostri anno sexto.

501
N 16. 1 de dezembro de 1224. Cum illorum. Autorizao dada aos
Irmos da Penitncia para assistir aos ofcios em tempos de interdito, etc.
N 17. 3 de dezembro de 1224. Quia populares tumultos. Concesso
do altar porttil.
N 18. 28 de agosto de 1225. In hiis. Honrio lembra o bispo de Paris
e o arcebispo de Reims o verdadeiro sentido dos privilgios concedidos
aos frades menores.
N 19. 7 de outubro de 1225. Vineae Domini. Esta bula contm di-
versas autorizaes em favor dos frades que vo evangelizar Marrocos.
Citemos ainda a bula Quo elongati, 28 de setembro de 1230 em que
Gregrio IX conta como Francisco coimps a Regra de um modo bem
diferente de So Boaventura 185.
Esta lista s contm as bulas de Sbaralea que podem direta ou indire-
tamente lanar alguma luz sobre a vida de So Francisco e de sua criao.
IV
Cronistas da Ordem
I. Crnica de Frei Jordo de Jano 186.
Nascido em Jano, na mbria, na regio montanhosa que se forma na
direo sul de Assis, Frei Jordo foi em 1221 um dos 27 frades que, sob
a direo de Cesrio de Spira, partiram para a Alemanha. Parece que
ele ficou ligado a essa provncia at sua morte, enquanto a maior parte
dos frades, principalmente os que exerciam cargos, eram transferidos,

185
Ver pg. 384. Papini j tinha observado isso Storia I, p. 122. A Bulla Quo elongati est reprodu-
zida em Coll. T. I, p. 315-322.
186
Chronica Fratris Jordani a Giano. O texto foi publicado pela primeira vez em 1870 pelo doutor G.
Voigt com o ttulo: Die denkwrdigkeiten des Minoriten Jordanus von Giano, nos Abhandlungen der
philolog. Histor. Cl. Der knigl. Gesellschaft der Wissenschaften, p. 421-545, Leipzig chez Hirzel,
1870. No conhecemos nenhum manuscrito que esteja na Biblioteca real de Berlim (Manuscript,
theolog. Lat. 4, n. 196, saec XIV, foliorum 141). Serviu de base para a segunda edio: Analecta
franciscana sive Chronica aliaque documenta ad historiam minorum spectantia. Ad Claras Aquas
(Quaracchi) ex typographia collegii S. Bonavenurae, 1885, t. I, p. 1-19. Salvo indicao contrria
eu cito sempre esta edio, em que foi conservada a diviso en 63 pargrafos introduzida pelo
doutor Voigt. A ed. do doutor Boehmer, Coll. T. VI, Paris (1908) indica um outro manuscrito, n
307 da Landes bibliothek de Karlsruhe.

502
s vezes depois de alguns meses, de um lado para outro da Europa.
Por isso no de admirar que lhe tenham pedido frequentemente para
escrever suas recordaes. Foi na primavera de 1262 que ele as ditou a
Frei Balduino de Brandenburgo. Deve ter feito isso com alegria, tendo-
se preparado havia muito tempo. Conta com simplicidade como, desde
1221, no captulo da Porcincula, ia de grupo em grupo, interrogando os
frades que partiam para as misses longinquas sobre seu nome, seu pas,
para poder dizer mais tarde, principalmente se eles fossem martirizados:
Eu os conheci bem 187!
Sua crnica mostra suas disposies. O que ele quer contar a in-
troduo e os primeiros passos da Ordem na Alemanha, e ele faz isso
enumerando, com uma complacncia que o diverte, o nome de uma
poro de frades 188, e datando cuidadosamente todos os acontecimentos.
Esses detalhes, cansativos para um leitor comum, so preciosos para o
historiador; ele v a a diversidade dos ambientes em que os frades eram
recrutados e a rapidez com que um punhado de missionrios jogados
em um pas desconhecido souberam irradiar-se, fundar novas estaes
e, em cinco anos, cobrir o Tirol, a Saxnia, a Baviera, a Alscia e as
provncias vizinhas com uma rede de conventos.
No preciso dizer que bom controlar as indicaes cronolgicas
de Jordo, porque ele j comea pedindo ao leitor que perdoe os erros
que lhe puderam escapar nesse ponto; mas um homem que assim anota
na memria o que vai querer contar ou escrever mais tarde no uma
testemunha comum.
Lendo sua crnica, parece que estamos escutando as recordaes
de um velho soldado, em que certos detalhes sem valor so tomados e
apresentados com um poder extraordinrio de relevo, em que o narrador
no consegue resistir tentao de se meter dentro da cena, com o risco
de alguma vez embelezar um pouco a seca realidade 189.

187
CrJj 81.
188
D o nome de mais de oitenta pessoas.
189
No me parece que algum possa ter como rigorosamente exato o relatrio da entrevista de Gregrio
IX e de Jordo, CrJj 63.

503
Esta crnica fervilha de anedotas um pouco pessoais, mas muito sin-
ceras e bem vindas, que, no fim, trazem em si mesmas o testemunho da
autenticidade. J o perfume dos Fioretti que exala dessas pginas cheias
de candura e de virilidade; ns podemos acompanhar os missionrios
etapa por etapa, e depois, quando eles esto instalados, bater porta do
convento e ler no fundo do corao desses homens, muitos deles bravos
como os heris e simples como as pombas.
verdade que esta crnica fala principalmente da Alemanha, mas os
primeiros captulos tm para a histria de So Francisco uma importncia
que supera at a das biografias. Graas a Jordo de Jano, agora estamos
informados sobre as crises por que passou desde 1219 a instituio de
Francisco; ele nos d a base solidamente histrica que parecia fazer falta
nos documentos emanados pelos espirituais, e reabilita o testemunho
deles.

II. - Eccleston: Chegada dos Frades Inglaterra 190.

As informaes que temos sobre a vida de Toms de Eccleston so


muito poucas, porque ele no deixou nenhum vestgio em sua histria
da Ordem, e tambm no o fez Simon de Esseby a quem ele dedica seu
trabalho. Sem dvida originrio do Yorkshire, ele parece nunca ter sado
da Inglaterra. Durante vinte e cinco anos, reuniu os elementos de seu
trabalho, que abraa a sequncia dos acontecimentos desde 1224 at por
volta de 1260. Os ltimos fatos que ele conta referem-se todos aos anos
mais prximos dessa data.
Quase duas vezes mais longo, o trabalho de Eccleston est longe de
ser de leitura to interessante quando o de Jordo. Este ltimo tinha visto
quase tudo que contou, e por isso d um tom na narrativa que no se pode

190
Liber de adventu Minorum in Angliam, publicado sob o ttulo: Monumenta Franciscana (na srie das
Rerum Britannicarum medii Aevi scriptores, Roll series) em dois volumes in-8: O primeiro pelos cuidados
de J. S. Brewer (1858), o segundo pelos de R.. Howlett (1882). Esse texto est reproduzido sem o aparato
cientco nas Analecta franciscana, t. I, p. 217-257 (CI. English historical Review V (1890) 754). Foi publi-
cada uma edio ctica excelente, mas infelizmernte parcial, no tomo XXVIII Scriptorum dos Monumenta
Germaniae Historica, por M. Liebermann. Hanover, 1888, in-f, p. 560-569.
Edio com notas e comentrio por A. G. Little, Coll. t. VII, Paris (1909).

504
encontrar em um narrador que escreve principalmente sobre o testemunho
de outros. Alm disso, enquanto Jordo segue uma ordem cronolgica,
Eccleston repartiu suas narrativas em umas quinze rubricas em que os
mesmos personagens aparecem a cada instante numa confuso que, com
o tempo, no deixa de se tornar cansativa. Em fim, h no documento um
fundo de particularismo espantoso. O autor quer provar no s que os
frades ingleses so santos, mas tambm que a provncia da Inglaterra
ultrapassava todas as outras 191 por sua fidelidade Regra e sua coragem
contra os fautores de novidades, em particular contra Frei Elias.
Mas esses poucos defeitos no devem fazer perder de vista o verda-
deiro valor desse documento. daqueles que preciso ler e reler para
captar todo o seu alcance, para compreender todos os detalhes. Abraa
o que poderamos chamar de perodo herico do movimento franciscano
ingls, e o conta com extrema simplicidade. Alm da questo histrica,
encontramos a o que pode interessar todos os que so cativados pelo
espetculo das conquistas morais. Na tera-feira 10 de setembro de 1224,
os frades menores aportaram em Douvres. Eles eram nove: um padre,
um dicono, dois de ordens menores e cinco leigos. Foram correndo para
Canterbury, Londres, Oxford, Cambridge, Lincoln, York, e, menos de
dez anos depois, todos os que tinham deixado uma marca na histria da
cincia ou da santidade se haviam ajuntado a eles; basta lembrar Ado
de Marisco, Ricardo de Cornualha, o bispo Roberto Grossette, uma das
figuras mais valorosas e mais puras da Idade Mdia, e Rogrio Bacon, o
frade perseguido que, adiantando o tempo em alguns sculos, abordava
e resolvia no fundo de seu calabouo os problemas da autoridade e do
mtodo, com um rigor e uma fora que o sculo XVI vai ter dificuldade
para ultrapassar.
impossvel que, em um movimento como esse, no se revelem aqui
e ali as fraquezas e as paixes humanas, mas precisamos saber reconhecer
a nosso cronista que no as escondeu. Graas a ele, podemos esquecer
por um instante a hora atual, reviver nessa primeira capela de, to pobre

191
CrEc 11; 13; 14; 15; Cf. CrEC 14, em que o autor tem o cuidado de dizer que Frei Alberto de Pisa
morreu em Roma entre os frades ingleses inter Anglicos .

505
que o carpinteiro no gastou mais do quer um dia para constru-la, e ouvir
trs frades cantando matinas durante a noite, e com tanto ardor que um
deles, to aleijado que seus dois companheiros tinham que carreg-lo,
chorava de alegria lgrimas quentes. Era porque na Inglaterra, como na
Itlia, o evangelho franciscano era um evangelho de paz e de alegria.
Entretanto, a feira moral inspirava-lhes uma piedade que no conhe-
cemos mais: h poucos traos histricos mais bonitos que o desse Frei
Godofredo de Salisbury confessando Alexandre de Bissingburn: o nobre
penitente cumpria esse dever sem ateno, como se estivesse contando
uma histria qualquer. De repente o confessor comeou a chorar, fez
que ele enrubescesse de vergonha, e assim o arrancou das lgrimas e o
comoveu tanto que ele pediu para entrar na Ordem.
Desse modo, parece que os trechos mais interessantes so aqueles
em que Toms nos mostra os frades na intimidade: aqui tomando a cer-
veja azeda, l correndo para comprar a crdito, apesar da Regra, para
oferecer a dois confrades que foram maltratados, ou ento se apertando
em torno de Frei Salomo, que acabou de entrar gelado de frio e que
ningum sabe como aquecer, sicut porcis mos est eum comprimendo
foverunt, diz narrador 192. Tudo isso est misturado com sonhos, vises,
aparies sem nmero 193 que nos mostram mais uma vez como as idias
mais familiares aos espritos religiosos do sculo XIII eram diferentes
das que preocupam os crebros e as mentes de hoje.
As informaes dadas por Eccleston no vo intervir neste livro a
no ser de modo indireto, mas se ele fala pouco de Francisco fala bem
longamente de alguns dos homens que mais estiveram dentro de sua vida.
III Crnica de Frei Salimbene 194.
To clebre quanto pouco conhecida, esta crnica de uma utilidade
bem secundria no que diz respeito vida de So Francisco. Seu autor,
nascido aos 9 de outubro de 1221, s entrou na Ordem em 1238 e escreveu

192
CrEc 4; 12.
193
CrEc 4; 5; 6; 7; 10; 12; 13; 14; 15.
194
Foi publicada, mas com muitas supresses, em 1857, em Parma. Reeditada de acordo com a edio
de 1857 com notas de Carlo Crivelli, Parma, 1882, 2 t. in-8 de XVI, 350 e 370 pginas. Edio melhor

506
suas memrias de 1282 a 1287; sua importncia capital para os anos
da metade do sculo XIII. Apesar disso, ficamos admirados com o lugar
pequeno que tem a radiante figura do mestre nessas longas pginas, e
isso mostra, melhor do que longas consideraes, a queda profunda da
idia franciscana.
IV. A Crnica das Tribulaes por ngelo Clareno 195
Esta crnica foi escrita por volta de 1330: por isso poderamos nos
admirar de v-la aparecer no meio das fontes a consultar sobre a vida
de So Francisco,o piedoso, que morreu mais de um sculo antes; mas
o quadro que Clareno nos apresenta dos primeiros tempos da Ordem
importante porque ele o traou apelando sem cessar s testemunhas
oculares, e justamente quelas cujas obras esto hoje desaparecidas.
ngelo Clareno, antes chamado Pietro da Fossombrone 196 pelo nome
de sua cidade natal, e s vezes de Cingoli, sem dvida por causa do con-
ventinho onde fez sua profisso, pertencia j em 1265 ao partido dos
zelantes da Marca de Ancone.
Acuado e perseguido por seus adversrios durante toda a sua vida,
morreu em odor de santidade, no dia 15 de junho de 1339, no pequeno
eremitrio de Santa Maria de Aspro, na diocese de Marsico na Basilicata.
Graas aos documentos publicados, podemos agora seguir quase
dia por dia no s as circunstncias exteriores de sua vida, mas at o

HoIder-Egger, Mon. Germ. Script., t. XXXII, 1905-1913, in-4 XXXII e 756 pginas.
Esta obra existe em manuscrito no Vaticano sob o n 7260. Ver Ehrle, Zeitschritt fr kath. Theol (1883),
t. VII, p. 767 et 768. L-se com interesse o trabalho de M. Cldat. De fratre Salimbene et de eius chronicae
auctoritate. Paris, in-4, 1877, com fac-simile.
195
O R. P. Ehrle publicou-a, mas no integralmente, em Archiv., t. II, p. 125-155: texto do fim da quinta e
das sexta tribulao; p. 256-327: texto da terceira, da quarta e do comeo da quinta. Acrescentou introdues
e notas crticas. Para as partes no publicadas citarei o texto do manuscrito da Laurentiana (Plut. 20,cod. 7)
completado, no caso, pela verso italiana que se encontra na biblioteca nacional de Florena (Magliabecchi,
XXXVII-28 e Riccardi, 1487). Ver tambm um artigo do professor Tocco no Archivio storico italiano, t.
XVII (1886), p. 12-36 e 243-61 e um de M. Richard: Bibliothque de lcole des chartes, 1884, Se livr., p.
525. Cf. Tocco, lEresia nel medio Evo, p. 419 ss. Quanto ao texto publicado por Dollinger nos seus Bei-
trge zur Sektengeschichte des Mittelalters. Munique, 1890, 2 vol. in-8, II. Theil Documente, p. 417-427,
no teria nenhuma utilidade. Tem tantas faltas grosseiras que s pode levar ao erro. Omite pginas inteiras.
O texto das duas primeiras Tribulaes foi publicado depois por Felice Tocco. R. Acc. dei Lincei (1908),
112 pginas.
196
Archiv., t. III, p. 406-409.

507
trabalho interior de sua alma. Com ele, vemos renascer um franciscano
autntico, um desses homens que, mesmo querendo continuar a ser um
filho submisso da Igreja, no podiam resolver-se a deixar-se levar pelo
domnio dos sonhos, o ideal que eles tinham saudado. Muitas vezes eles
passaram perto da heresia; em suas palavras contra os maus padres e os
pontfices indignos h uma amargura que os sectrios do sculo XVI
nunca haveriam de ultrapassar 197. Muitas vezes eles tambm parecem
renunciar a toda autoridade para apelar em ltima instncia ao testemu-
nho interior do Esprito Santo 198, mas o protestantismo estaria errado
se fosse procurar ancestrais no meio deles. No, eles quiseram morrer
como tinham vivido, na comunho dessa Igreja que era para eles uma
madrasta, mas que eles amavam com essa paixo herica que alguns
nobres de hoje demonstraram para amar a Frana, mesmo governada
pelos jacobinos, e derramar seu sangue por ela.
Clareno e seus amigos no acreditavam apenas que So Francisco tinha
sido um grande santo; mas, a essa convico, que era a mesma dos frades
da comum observncia, eles acrescentavam a persuaso de que a obra
do Estigmatizado s poderia ser continuada por homens que atingissem
a sua estatura moral, qual se pode chegar fora de f e de amor. Eles
foram desses violentos que arrebatam os cus; tambm, quando ao sair
das frvolas e senis preocupaes quotidianas, nos encontramos diante
deles, sentimo-nos ao mesmo tempo diminudos e engrandecidos, porque
descobrimos de repente no corao humano foras inesperadas e como
teclados desconhecidos.
H um apstolo de Jesus de que logo nos lembramos lendo a Crnica
das Tribulaes e a correspondncia de ngelo Clareno: So Joo.

197
Ver Archiv. I, p. 557 ... Et hoc totum ex rapacitate et malignitate luporum pastorum qui voluerunt esse
pastores, sed operibus negaverunt deum et seq. Cf. p. 562. Avaritia et symoniaca heresis absque pallio
regnat et fere totum invasit ecclesie corpus.
198
Qui excommunicat et hereticat altissimam evangelii paupertatem, excommunicatus est a Deo et he-
reticus coram Christo, qui est eterna et incommutabilis veritas. Arch. I, p. 509. Non est potestas contra
ChristumDominum et contra evangelium. lb., p. 560.
Termina uma dessas cartas com uma palavra de um misticismo cheio de serenidade e que nos faz descer
ao fundo do corao dos frades Espirituais. Totum igitur studium esse debet quod unum inseparabiliter
simus per Franciscum in Christo. Ib. p.564.

508
Entre os escritos do apstolo do amor e os do Franciscano h confor-
midades de estilo tanto mais gritantes porque foram redigidas em uma
lngua diferente. Nos dois lados ns sentimos uma alma de ancio, em
que tudo amor, perdo, necessidade de santidade, e que, entretanto s
vezes vibra de repente, como outrora a do vidente de Patmos, de indig-
nao, de clera, de piedade, de terror e de alegria, quando o futuro se
descobre e deixa adivinhar o fim da grande tribulao.
Ento as obras de Clareno so, no sentido mais estrito da palavra,
escritos de partido: trata-se de saber se o autor no teria desnaturado
cientemente os fatos ou mutilado os textos. No d para responder a
essa questo ousadamente com um simples no. Ele comete erros 199,
principalmente nas primeiras pginas, mas no so tais que possam
diminuir nossa confiana.
Como um bom joaquimita, ele pensava que a Ordem teria que passar
por sete tribulaes antes do triunfo definitivo. O pontificado de Joo
XXII marcava, era o que ele cria, o comeo da stima: ento ele se reco-
lheu para fazer, a pedido de um amigo, a histria das seis primeiras 200.
Sua narrativa da primeira precedida naturalmente por uma introdu-
o para expor ao leitor tomando como quadro a vida de So Francis-
co a inteno que o santo teve quando comps sua Regra e ditou seu
Testamento.
Nascido entre 1240 e 1250, Clareno pde utilizar o testemunho de
vrios dos primeiros discpulos 201: tinha um relacionamento com ngelo

199
Por exemplo, na lista dos primeiros gerais da Ordem.
200
A primeira (1219-1226) vai da partida de So Francisco para o Egito at sua morte; a segunda compreende
o generalato de Frei Elias (1232-1239); a terceira o de Crescncio (1244-1248); a quarta o de Boaventura
(1257-1274); a quinta comea na poca do Conclio de Lio (1274) e vai at a morte do inquisidor Toms
de Aversa (1304). A sexta vai de 1308 a 1323.
A crnica foi composta por volta de 1314 para as Tribul L-VI 1/2 e por volta de 1323 para o resto. Ehrle,
Archiv., t. II, p. 116 ss.
201
Supererant adhuc multi de sociis b. Francisci... et alii non pauci de quibus ego vidi et ab ipsis audivi
quae narro. Ms. Laur. cod. 7., pl. XX: f 24 A. Qui passi sunt eam [tribulationem tertiam] socii fundato-
ris fratres Aegidius et Angelus qui supererant me audiente referebant. Ms. Laur, f 27 b. Cf. Ms. italiano
XXXVII, 28. Magliab. F 138 b.

509
de Rieti 202, Egdio 203 e com aquele Frei Joo, amigo de Egdio, mencio-
nado no prlogo da Legenda dos Trs Companheiros 204.
Sua crnica forma ento uma espcie de continuao dessa legenda;
so os nomes dos membros do pequeno cenculo de Grcio que vm nos
recomendar a crnica; a inspirao a mesma.
Mas escrevendo muitos anos depois da morte desses frades, Clareno
sentiu a necessidade de se apoiar tambm em testemunhos escritos; recor-
da em vrias oportunidades as quatro legendas de onde toma uma parte
de suas narrativas: so as de Joo de Ceperano, de Toms de Celano, de
Boaventura e de Frei Leo 205.
A obra de Boaventura s mencionada como memria; Clareno no
tira nada dela, enquanto cita longas passagens de Joo de Ceperano 206,
de Toms de Celano 207 e de Frei Leo 208.

202
No sabemos a data de sua morte; no dia 11 de agosto de 1253 ele assistiu os ltimos momentos de
Santa Clara.
203
Morreu no dia 23 de abril de 1261.
204
Quem (fratrem Jacobum de Massa) dirigente me fratre Johanne socio fratris prefati Egidii videre
laboravi. Hic enim frater Johannes... dixit mihi.. Arch. II, p. 279.
205
...Tribulationes preteritas memoravi, ut audivi ab illis qui sustinuerunt eas et aliqua commemoravi
de hiis que didici in quatuor legendis quas vidi et legi. Arch. II, p. 135. - Vitam pauperis et humilis viri
Dei Francisci trium ordinum fundatoris quatuor solemnes personae scripserunt, fratres videlicet scientia
et sanctitate praeclari, Johannes et Thomas de Celano, fratrer Bonaventura unus post Beatum Franciscum
Generalis minister et vir mirae simplicitatis et sanctitatis frater Leo, ejusdem sancti Francisci socius. Has
quatuor descriptiones seu historias qui legerit... Ms. Laurent, pl. XX, c. 7, f 1 a. Ser que o tradutor
italiano acreditou em um erro nessa enumerao? No sei, mas ele a surprimiu. No f 12 a do manuscrito
XXXVII 28 da Magliabecchina, lemos: Incominciano alcume croniche del ordine franciscano, come la vita
del povero e humile servo di Dio Francesco fondatore del minoritico ordine fu scripta da San Bonaventura e
da quatro altri frati. Queste poche scripture ovveramente hystorie quello il quale diligentemente le leggiera,
expeditamente potra cognoscere ... la vocatione la santit di San Francesco.
206
Ms. Laur. F 4 b ss. Por outro lado, lemos em uma carta de Clareno: Ad hanc (paupertatem) perfecte
servandam Christus Franciscum vocavit et elegit in hac hora novissima et precepit ei evangelicam assumere
regulam, et a papa Innocentio fuit omnibus annuntiatum in concilio generali, quod de sua auctoritate et
obedientia sanctus Franciscus evangelicam vitam et regulam assumpserat et Christo inspirante servare
promiserat, sicut sanctus vir fr. Leo scribit et fr. Johannes de Celano, Archiv. I, p. 559.
207
Audiens enim semel quorundam fratrum enormes excessus, ut fr. Thomas de Celano scribit, et malum
exemplum per eos seacularibus datum. Ms. Laur. F 13 b. A passagem que segue refere-se evidentemente
a 2Cel 3. 93 e 112.
208
Et fecerunt de regula prima ministri removeri capitulum istud de prohibitionibus sancti evangelii, sicut
frater Leo scribit. Ms. Laur., f 12 b. Cf. Spec. Perf. 3. Ver p. 335 n.1. Nam cum redisset de partibus ultra-
marinis minister quidam loquebatur cum eo, ut frater Leo refert, de capitulo paupertatis, f 13 a, Cf. Spec.

510
A esses Clareno pediu para a Vida narrativas que continham vrias
indicaes novas, extremamente curiosas 209.
Eu parei especialmente neste documento porque seu valor me parece
no ter sido aproveitado at agora com equidade. Sempre se de algum
partido; os documentos que mais preciso manter em quarentena no
so aqueles em que a tendncia manifesta, so aqueles em que ela se
dissimula habilmente.
A vida de So Francisco e toda uma parte da histria religiosa do sculo
XIII vo ser vistas sem dvida sob uma luz bem diferente quando puder-
mos estudar os documentos feitos pelo partido vencedor, completando-os
finalmente com os do partido vencido. Assim como a primeira legenda de
Toms de Celano dominada pelo desejo de associar estreitamente So
Francisco, Gregrio IX e Frei Elias, a crnica das tribulaes inspira-se de
ponta a ponta pelo pensamento de que as perturbaes da Ordem, e para
dizer a palavra, que a apostasia, comeou desde 1219). Essa tese acabar
de encontrar na Crnica de Jordo de Jano uma brilhante confirmao.
V. - Os Fioretti 210.
Com os Fioretti ns entramos definitivamente no domnio da lenda.
Essa jia literria conta a vida de Francisco, de seus companheiros e de
seus discpulos, do jeito que ela era vista no comeo do sculo XIV pela

Perf. 3, S. Franciscus, teste fr. Leone frequenter et cum multo studio recitabat fabulam... quod oportebat
finaliter ordinem humiliari et ad sue humilitatis principia confitenda et tenenda reduci. Archiv. II, p. 129.
Entre a Legenda dos Trs Companheiros como a conhecemos hoje e essas passagens no h
nenhum ponto de contato; pelo contrrio, encontramos essas narrativas no Speculum e em outras
colees, onde so citadas como vindas de Frei Leo.
209
Clareno, por exemplo, quer que o cardeal Hugolino tenha apoiado So Francisco desde a aprovao
da primeira Regra, em acordo com o cardeal Joo de So Paulo. possvel, porque Hugolino tinha sido
criado cardeal em 1198 (Ver Cardella: Memorie storiche de Cardinali, 9 vol. in-8, Rome, 1792-1793, t.
I, 2 p. 190); alm disso, assim se explicaria melhor o zelo com que protegia as diversas ordens institudas
por So Francisco, desde 1217.
O captulo em que Clareno conta como So Francisco escreveu a Regra, manifesta o trabalho da legenda,
mas bem possvel que o tenha tirado tal e qual do trabalho de Frei Leo. bom notar que nesse documento
no se encontra nenhuma aluso indulgncia da Porcincula.
210
Os manuscritos e as edies so quase sem conta. Luigi Manzoni estudou-os com um cuidado que faz
verdadeiramente desejar que continue esse difcil trabalho. Studi sui Fioretti: Miscellanea, 1888, p. 116-

511
imaginao popular. No precisamos nos deter no valor literrio desse
documento, uma das produes mais refinadas da idade mdia religiosa,
mas podemos dizer que do ponto de vista histrico, ela no merece o
injusto esquecimento em que a deixaram.
Faltou coragem maior parte dos autores para revisar a sentena
pronunciada contra ela, mas com um corao bastante leviano, pelos
sucessores de Bolland. Como deter-se em uma obra que o Pe. Suyskens
no se dignara nem a ler 211!
Mas o que d a essas narrativas um valor inestimvel o que pode-
ramos chamar na falta de melhor sua atmosfera. Elas so lendrias,
transformadas, exageradas, at falsas se algum quiser, mas h alguma
coisa que elas nos do com um colorido de uma vivacidade e de uma
intensidade que buscaramos em vo em outros lugares: o meio em que
Francisco viveu. Melhor que nenhuma outra biografia os Fioretti nos
levam para a mbria, e para o meio das montanhas da Marca de Ancona,
para ns vermos os eremitrios, misturar-nos nessa vida meio pueril e
meio anglica, que era a de seus habitantes.
difcil pronunciar-se sobre seu autor. Seu papel limita-se, alis, a
recolher, na tradio escrita e na tradio oral, as flores do seu buqu.
A questo de saber se ele escreveu em latim ou em italiano foi muito
discutida: o certo que, se sua obra anterior s Conformidades 212,
pouco posterior Crnica das Tribulaes, porque seria estranho que
no fizesse nenhuma meno de ngelo Clareno, se tivesse sido escrita
depois de sua morte.

119, 150152,162-168; 1889, 9-15, 78-84, 132-135. Quando vamos encontrar algum que queira e possa
encarregar-se de fazer uma edio cientfica?
Os Actus Beati Francisci et Sociorum ejus, que so o se original latino foram publicados em Coll., t. IV
(1902) por Paul Sabatier.
No podemos pensar em indicar aqui as diversas tradues francesas. S indicaremos a
Collection Caritas. Paris. Bloud (1926), I Fioretti. Trad. de M. Arnold Goffin, com uma excelente
introduo sobre as fontes da vida de So Francisco.
211
Ver A. SS., p. 865: Floretum non legi, nec curandum putavi. Cf. 553 f. Floretum ad manum non
habeo.
212
Bartolomeu de Pisa redigiu-os em 1385; ora, certos manuscritos dos Fioretti so anteriores. Alm disso,
nas narrativas que as Conformidades tomaram dos Fioretti d para perceber o trabalho de abreviao de
Bartolomeu.

512
Este livro , de fato, uma crnica essencialmente local 213; o autor quis
elevar um monumento glria dos frades menores da Marca de Ancona.
Essa provncia, que evidentemente a dele, no foi comparada a um cu
resplandecente de estrelas? Os santos frades a habitaram tm,, como os
astros do cu, iluminado e adornado a Ordem de So Francisco, enchendo
o mundo com seus exemplos e seus ensinamentos. Ele tambm conhe-
ce as vilas mais pequenas 214, tendo-as todas a alguma distncia de seu
convento, bem isolado, habitualmente perto de alguma torrente, beira
de um bosque, e acima dele, na direo dos picos, algumas celas quase
inacessveis, asilos dos frades ainda mais apaixonados que os outros pela
contemplao e o retiro 215.
Os captulos que falam de So Francisco e dos frades da mbria s
esto no livro como uma espcie de introduo; Egdio, Masseo, Leo,
de um lado, santa Clara do outro, vm testemunhar que o ideal, na Por-
cincula e em So Damio, tinha sido bem aquele ao qual mais tarde
Tiago de Massa, Pedro de Monticulo, Conrado de Ofida, Joo de Penna,
Joo do Alverne se esforavam por atingir.
Enquanto a maior parte das outras legendas nos do a tradio fran-
ciscana dos grandes conventos, os Fioretti so praticamente o nico
documento que no-la mostra como ela se perpetuava nos eremitrios e no
meio do povo. Na falta de uma exatido de detalhe, os traos que a so
contados contm uma verdade superior: o tom justo. H palavras que
nunca foram pronunciadas, fatos que no aconteceram, mas a alma e o
corao dos primeiros franciscanos foram mesmo o que a ficou pintado.
Os Fioretti tm essa verdade viva dada pelo pincel. Falta alguma coisa
na fisionomia do Poverello quando nos esquecemos de sua conversa com
Frei Leo sobre a perfeita alegria, sua viagem a Sena com Masseo, ou

213
No falo aqui dos 53 captulos que formam a verdadeira coletnea dos Fioretti.
214
A Provncia das Marcas de Ancona tinha sete custdias 1 Ascoli, 2 Camerino, 3 Ancne, 4 Jesi, 5 Fermo,
6 Fano, 7 Feletro. Os Fioretti mencionam pelo menos seis dos conventos da cstdia de Fermo: Moliano 51,
53, Fallerone, 32, 51, Bruforte et Soffiano 46, 47, Massa 51, Penna 45, Fermo 41, 49, 51.
215
A cada pgina so lembrados esses bosques que eram to necessrios no incio dos conventos francis-
canos: La selva chera allora allato a S. M. degli AngeIi 3,10,15,16, etc. La selva dun luogo deserto del
val di Spoleto (Carceri?) 4; Selva di Forano 42, di Massa 51, etc.

513
mesmo a converso do lobo de Gbio. Mas bom no exagerar o lado
lendrio dos Fioretti, no h mais do que duas ou trs narrativas cujo cerne
no seja histrico e fcil de ser encontrado. O famoso episdio do lobo
de Gbio, que sem dvida o mais maravilhoso de toda a srie, no ,
para falar como os gravadores, mais do que o terceiro estado da narrativa
dos bandidos de Monte Casale 216, fundido com uma lenda do Alverne.
As narrativas se amontoam nesse livro, como revoadas de lembranas
que chegam misturadas, e em que detalhes insignificantes ocupam bem
mais lugar do que os maiores acontecimentos: de fato, nossa memria
uma criana grande, e o que ela guarda de um homem habitualmente um
trao, uma palavra, um gesto. A histria cientfica se esfora por reagir,
para marcar o valor relativo dos fatos, trazer o que importante para o
primeiro plano, rejeitar o que secundrio na penumbra. Ser que ela no
se engana? Existe importante e secundrio? Ser que d para marc-los?
A imaginao popular tem razo: o que preciso guardar de um ho-
mem o olhar em que ele se colocou inteiro, um grito do corao,
um gesto que expressou sua personalidade. Jesus no est inteiro nas
palavras da ltima ceia? E So Francisco no est inteiro na fala com o
irmo lobo e no seu sermo aos pssaros?
Guardemo-nos de desprezar esses documentos em que os primeiros
fraciscanos se contaram como se viam. Desabrochadas ao cu da mbria,
ao p das oliveiras de So Damio ou dos abetos da Marca de Ancona,
essas florinhas selvagens tm um perfume e uma originalidade que bus-
caramos em vo em flores cercadas de cuidados por um sbio jardineiro.

Apndices dos Fioretti.

No primeiro desses apndices, o compilador repartiu em cinco ca-


ptulos as informaes que pde recolher sobre os estigmas 217. fcil
de compreender o sucesso dos Fioretti. O povo se apaixonou por essas

216
O Specullum Vitae 46 b, 58 b, 155 a, d-nos os trs estados. Cf. Fior. 26 e 21, Conform. 119 b 2.
217
Esse opsculo circulava sem dvida no fim do sc. XIV, porque por volta de 1390 ns o vemos citado
por Bartolomeu de Pisa. O Speculum Vitae f 92-96 d essa histria do descobrimento do Alverne de maneira

514
narrativas em que So Francisco e seus companheiros parecem ao mes-
mo tempo mais humanos e mais divinos do que nas outras legendas;
tambm sentiu depressa a necessidade de complet-los para fazer delas
uma verdadeira biografia 218.
O segundo, intitulado Vida de Frei Junpero, tem relao apenas in-
direta com So Francisco; mas merece ser estudado, porque apresenta o
mesmo gnero de interesse que a coleo principal, qual sem dvida
posterior. Nesses quatorze captulos encontramos os principais traos
da vida desse frade, cujas loucuras e santas bizarrices ainda divertem
as conversas nos conventos da mbria. Essas pginas sem pretenso
mostram-nos uma parte da alma franciscana. As histrias oficiais tinham
acreditado que precisavam guardar silncio sobre esse frade que lhes
parecia mais que tudo um indiscreto, bem incmodo diante dos leigos
para o bom nome da Ordem. Tinham razo do seu ponto de vista, mas
preciso saber agradecer aos Fioretti porque nos conservaram essa fisio-
nomia to alegre, to modesta e de uma bonomia s vezes to maliciosa.
Certamente So Fracisco era mais parecido com Junpero do que com
Frei Elias ou com So Boaventura 219.
O terceiro: a Vida de Frei Egdio, conta a vida do famoso exttico 220.
Lendo os textos to defeituosos que nos do as edies atuais, des-
cobrimos a mo de um anotador cujas indicaes devem ter escapado
para o texto 221; mas, apesar disso, essa vida tem um sabor singular. Esse
frade sempre errante, que tinha como uma das principais preocupaes

ligeiramente diferente, colocando depois esta nota: Hanc historiam habuit fr. Jacobus de Massa ab ore fr.
Leonis, et fr. Ugolinus de Monte s. Mariae ab ore dicti fr. Jacobi et ego qui scripsi ab ore fr. Ugolini viri
fide digni el boni ad laudem D. N. J. C. (sobre Tiago de Massa, ver Conform. 121 b., Actus 16, 73, 76, 57.
Fioretti 16, 41, 48, 51. Tribul. Archiv. II, p. 277-280.
218
Esse desejo era to natural que o manuscrito da biblioteca Anglica contm vrios captulos adicio-
nais, sobre a doao da Porcincula, a indlgncia de 2 de agosto, o nascimento de So Francisco, etc.
(Voir Amoni, Fioretti, Roma, 1889, p. 266, 378-386). Um estudo interessante seria buscar a origem desses
documentos e estabelecer seu parentesco com o Speculum e as Conformidades. Ver Conform. 231 a 1, 121
b. Spec. Vitae 92-96.
219
Junpero tinha sido recebido na Ordem por So Francisco. Em 1253 assistiu morte de santa Clara. A.
SS. Aug., t. II, p. 764 d. - As Conformidades falam dele com detalhes, f 62 b.
220
A Vita fratris Aegidii por Frei Leo no parece ter chegado a ns em sua integridade. O compi-
lador da Crnica dos XXIV Gerais que no-la conservou (An. h. III, p. 7l1-115) lhe infligiu o mesmo
tratamento que s suas outras fontes. Querendo abreviar, conservou s os fatos que lhe pareciam

515
viver do prprio trabalho, uma das figuras mais originais e mais felizes
do grupo de So Francisco, e no seu tipo de vida que precisamos ir
buscar o sentido verdadeiro de algumas passagens da Regra e justamente
daquelas que mais tiveram que sofrer nas mos dos exegetas.
O quarto contm as sentenas favoritas de Frei Egdio. Sua impor-
tncia apenas a de mostrar as tendncias do ensinamento franciscano
primitivo. So conselhos curtos, precisos, prticos, impregnados de
misticismo, e nos quais, entretanto, o bom senso nunca perde seus di-
reitos. Do jeito que est nos Fioretti, a coleo sem dvida um pouco
posterior a Egdio, porque desde 1385 Bartolomeu de Pisa apresentou
uma bem mais longa 222.
VI. - Crnica dos XXIV Gerais 223.
Em seguida vida de So Francisco, encontramos a da maior parte
de seus companheiros, e depois os acontecimentos que houve sobre os
24 primeiros gerais.
VII. As Conformidades de Bartolomeu de Pisa 224.
O Livro das Conformidades, ao qual Frei Bartolomeu de Pisa consa-
grou mais de quinze anos de sua vida 225, parece no ter sido lido a no

mais interessantes, as narrativas maravilhosas, e suprimiu as partes narrativas. Mesmo assim, a


legenda de Egdio por Frei Leo ainda tem um valor de primeira ordem pela compreenso do
carter da primeira gerao franciscana.
Ainda menos podemos ver o original nas poucas pginas plidas e insignificantes que o Pe.
Lemmens publicou de acordo com um manuscrito de Santo Isidoro, com esse ttulo (Doc. Ant.
Franc. pars. I, p. 37 ss.). Alis, parece que a temos um resumo dos dois documentos.
221
Os sete primeiros captlos formam um todo. Os trs seguintes so sem svida uma primeira
tentativa para complement-los.
222
Conformidades, f 55 b 1 - 60 a 1.
223
Cuja redao definitiva deve ser colocada por volta de 1375. Pe. Van Ortroy. An. Boll. t.
XVIII, p. 82. - Ver para todos os detalhes a bela edio dos Franciscanos de Quaracchi. Anal. franc,
t. III (1897).
224
As citaes so sempre feitas pela edio de Milo, 1510, in-4 de 256 folios com 2 colunas. As
edies seguuintes mais conhecidas so as de Milo, 1513 e de Bolonha, 1590. Ed. crtique Anal.
franc., t. IV, XXXVI e 668 pginas e t. V, CXXVIII e 558 pginas. Quaracchi, 1906 et 1912.
225 Comeou-o em 1385, (f 1) e o fez autorizar pelo captulo geral de 2 de agosto de 1399 (f 256
a 1). Em fim, no f 150 a 1 marca a data em que escreveu, em 1390.

516
ser de modo distrado pela maior parte dos autores que falaram dele 226.
justo acrescentar, para desculp-los, que seria difcil encontrar uma
obra de leitura mais penosa: os mesmos fatos voltam at dez ou quinze
vezes e acabam cansando os nervos menos delicados.
a isso que devemos atribuir, sem dvida, o esquecimento em que foi
deixado. Mas eu no hesito em ver a a obra mais importante que tinha
sido feita sobre a vida de So Francisco. Evidentemente o autor no se
coloca no ponto de vistas da crtica histrica como a compreendemos
hoje, mas se preciso renunciar a ver nele um historiador, podemos
ousadamente coloc-lo na primeira fila dos compiladores 227.
Os bolandistas, estudando-o a fundo, teriam enxergado bem mais
claro na difcil questo das Fontes, e teriam poupado aos autores que os
seguiram uma poro de erros e de interminveis pesquisas 228.
Partindo da idia de que a vida de Francisco tinha sido uma imitao
perfeita da vida de Jesus, Bartolomeu quis juntar, sem perder nenhum,
todos os traos da vida do Poverello espalhados pelas diversas legendas
ainda conhecidas em seu tempo.
Ele lamentava que Boaventura, tomando emprestadas as narrativas
de seus predecessores, as tivesse muitas vezes encurtado 229, e queria

226
No vou me ocupar aqui com os ataques de alguns autores protestantes contra este livro.
uma querela de telogos que no interessa histria. Em nenhuma parte Bartolomeu de Pisa fez
de So Francisco um igual de Jesus, e ele at adverte a crtica contra isso. Ver 142 a 2.
Os bolandistas tambm so bem severos: Cum Pisanus fuerit scriptor magis pius et credulus quam
crisi severa usus... A. SS., p. 551. e
227 Ele evitou os erros to latismveis cometidos por Wadding em sua lista dos ministros gerais.
Ver 66 a 2, 104 a 1, 118 b 2. Ele tinha sido lente de teologia em Bolonha, Pdua, Pisa, Sena e Florena.
Pregou durante muitos anos e com grande sucesso nas principais cidades da Pennsula e assim
pde aproveitar as viagens para coletar ibdicaes teis. Marcos de Lisboa conservou-nos uma
notcia sobre sua vida. Ver Croniche dei frati Minori, t. III, p. 6 ss. da edio Diola. Morreu no dia
10 de dezembro de 1401. Para mais detalhes ver Wadding ann. 1399, VII-VIII e principalmente
Sbaralea, Supplementum, p.109. Ele o autor de uma Exposio da Regra pouco conhecida que se
encontra no Speculum Morin, Ruo, 1509, f 66 b-83 a da terceira parte, e Firmamentum de Veneza,
1513, III a pars, f 52 b 2 68 a 1; e de uma Summa de Casibus da qual se encontram dois manuscritos
em Assis: Arquivos do Sacro-Convento, n 624 et 625.
228
Aff j tinha dirigido a Suyskens uma reprimenda parecida. Cantici volgari, p. 24 et 25.
229
Esse sentimento est expresso de maneira discreta. Por exemplo f 207 a 1. Bartolomeu conta o milagre
do captulo das esteiras primeiro segundo So Boaventura, mas depois acrescenta: Et guia non aliter tangit

517
conserv-las na sua flor original. Melhor colocado que ningum para
fazer um trabalho desses, porque tinha disposio dos arquivos do
Sacro-Convento de Assis, podemos dizer que ele no omitiu nada de
importante e que fez entrar em sua obra trechos considerveis de quase
todas as legendas que apareceram nos sculos XIII e XIV; ns no as
encontramos a no ser em fragmentos, verdade, mas com uma perfeita
exatido 230.
Quando suas pesquisas no tm resultado, ele simplesmente o con-
fessa, sem querer completar os testemunhos escritos com suas prprias
suposies 231. Vai mais longe e faz uma verdadeira triagem entre os
documentos que tem diante de si, deixando de lado os que lhe parecem
pouco seguros 232.
Em fim, tem o cuidado de indicar as passagens em que s tem por
autoridade um testemunho oral 233.
Como ele cita quase continuamente as legendas de Celano, dos Trs
Companheiros e de Boaventura, e essas citaes se revelam literalmente
exatas, como tambm as do Testamento, das diversas regras, ou das bu-
las pontifcias, podemos concluir que tm a mesma exatido as citaes
que no podemos controlar e as outras onde encontramos fragmentos de
obras desaparecidas 234.

dicta pars (legendae majoris) hoc insigne miraculum: antiqua legenda hoc refertur in hunc modum. Cf.
225 a 2 m. Et quia fr. Bonaventura succinte multa tangit et in brevi: pro evidentia prelatorum notandum
est... ut dicit antiqua legenda.; 185 a 2 m Fr. Bonaventura componens leg. non declaravit...
230
Mas preciso tomar cuidado: no s entre as edies publicadas que h diferenas considerveis, mas
a primeira (a de Milo, 1510) foi completada e remanejada por seu editor. Os julgamentos apresentados
sobre Raimundo Gaufridi, 101. a 1, e Bonifcio VIII, 103 b 1, tm a marca de retoques posteriores (Cf.
125 a 1. Au f 72 a 2 m. est indicada a data da morte de So Bernardino, que de 1444, etc.). Alm disso,
muito nos admira que, ao lado de pginas em que as fontes so indicadas com clareza, haja outras em que
as narrativas se apresentam sem ficarmos sabendo de onde vieram.
231
F 70 a 1. Cujus nomen non reperi. 1 a 2. Multaque non ex industria sed quia ea noscere non valuit
omittendo .
232
F 78 a 1. Informationes quas non scribo quia imperfectas reperi Cf. 229 b 2. De aliis multis appa-
ritionibus non reperi scripturam, quare hic non pono.
233
F 69 a 1. Hec ut audivi posui quia ejus legendam non vidi. Cf.: 68 b 2 m. Fr. Henricus generalis
minister mihi magistro Bartholomeo dixit ipse oretenus.
234
As citaes de Boaventura so de longe as mais frequentes: no de admirar, porque essa
legenda era a biografia oficial de So Francisco; o captulo de onde Bartolomeu tira as passagens

518
As citaes que ele faz de Celano no encontram nenhuma dificul-
dade; so todas exatas, correspondendo s vezes Primeira e s vezes
Segunda Legenda 235. As da Legenda dos Trs Companheiros so exatas,
mas parece que Bartolomeu as tenha tirado de um texto passavelmente
diferente do que possuimos 236.
A questo se complica e fica delicada com as citaes da Legenda
Antiqua. Existe uma obra com esse nome? Certos autores, e entre eles
o bolandistas Suyskens, parecem pender pela negativa e acreditar que
citar a Antiqua Legenda mais ou menos referir-se de uma maneira vaga
tradio. Outros, entre os contemporneos, acreditaram que depois da
aprovao e adoo definitiva pela Ordem da Legenda Major de Bo-
aventura tinham chamado de Legenda Antiqua as legendas anteriores
e em particular as de Celano. As Conformidades nos permitem fechar

quase sempre indicado, e, no preciso dizer, de acordo com a diviso antiga em quinze partes.
Abrindo o livro ao acaso no folio 136 a encontrei seis remessas Legenda Maior s na primeira coluna.
Para dar uma idia do modo de ser de Bartolomeu de Pisa, vou apresentar uma amostra do
contedo de uma pgina de seu livro. Eis, por exemplo, o f 111 a (Lib. I, conform. X, pars. II,
Franciscus predicator). Desde a terceira linha ele cita Boaventura: Fr. Bonaventura in quarta parte
majoris legende dicit quod b. Franciscus videbatur intuentibus homo alterius seculi. Citao textual de
Boaventura, 115. Trs linhas adiante: Verum qualis esset b. F. quoad personam sic habetur in legenda
antiqua... homo facundissimus, facie hilaris, etc. Segue a citao literal do retrato de Francisco como
apresentado em 1Cel 83 at: inter peccatores quasi unus ex illis, e para marcar bem o fim da citao,
Bartolomeu acrescenta: Hec legenda antiqua. Na coluna seguinte, o pargrafo 4 comea com as
palavras: B. Francisci predicationem reddebat mirabilem et gloriosam ipsius sancti loquutio: etenim legenda
trium Sociorum dicit et Legenda major parte tertia: B. Francisci eloquia erant non inania, nec risu digna,
etc., o que corresponde literalmente a LTC 25 e LM 28. Depois vm dois captulos de Boaventura
quase inteiros, introduzidos por: In duodecima parte legende majoris dicit Fr. Bonaventura. Erat enim
verbum ejus, etc. Citao textual de LM178 e 179. A pgina termina com uma nova citao de
Boaventura: Sic dicebat prout recitat Bonaventura in octava parte Legende majoris: Hoc oflicium patri
misericordiarum. Ver LM 102 fim e 103 integralmente.
Basta isso para demonstrar com que preciso as fontes so citadas nesta obra, com que ateno e
com que confiana devem ser examinadas as partes que ele nos conserva de documentos perdidos
ou extraviados.
235 F 31 b 2; ut dicit fr. Thomas in sua legenda, Cf. 2Cel 3,60. - 140 a 2. Fr. in leg. fr. Thome, Cf. 2Cel
3, 60. -140 a 1, Cf. 2Cel 3, 16. -142 b 1. Fr. in leg. fr. Thome capitulo de charitate, Cf. 2Cel. 3, 115. - 144
b 1. Fr. in leg. fr. Thome capitulo de oratione, Cf. 2Cel 3, 40. - 144 b 1, Cf. 2Cel 3, 65. - 144 b 2. Cf.2 Cel
3, 78. - 176 b 2, Cf. 2Cel 3,79. - 182 b 2, Cf. 2Cel 2, 1. - 244 b 1, Cf. 2Cel 3, 141. - 181 a 2, Cf. 1Cel 27.
No preciso dizer que essas listas de citaes no tm a pretenso de ser completas.
236
F 36 b 2. Ut enim habetur in leg. 3 Soc. Cf. LTC 10. - 46 b 1, Cf. LTC 25-28. - 38 1 2, Cf. LTC 3. -
111 a 2, Cf. LTC 25. - 134 a 2, Cf. LTC 4-142 b 2, Cf. LTC 57 e 58. 167 b 2 Cf. LTC 3 e 8. - 168 a 1,
Cf. LTC 10. -170 b 1, Cf. LTC 39, 4. -175 b 2, Cf. LTC 59. - .180 b 2, Cf. LTC 4. - 181 a 1, Cf. LTC 5, 7,
24, 33 e 67. - 181 a 2, Cf. LTC 36. - 229 b 2, Cf. LTC 14, etc. A Legenda dos Trs Companheiros que
Bartolomeu tinha diante de si era a mesma que temos hoje, porque ele diz 181 a 2, referindo-se

519
a questo um pouco mais perto. De fato, a encontramos passagens da
Legenda Antiqua que reproduzem a Primeira Vida de Celano 237. Outras
apresentam pontos de contato com a Segunda, s vezes de uma exatido
literal 238, mas muitas vezes so as mesmas narrativas apresentadas de
uma maneira muito diferente para nelas vermos emprstimos 239.
Enfim, h muitos desses extratos da Legenda Antiqua cuja fonte no
encontramos em nenhum lugar dos documentos a que nos referimos 240.
Isso seria suficiente para demonstrar que ela no se confunde com eles.
Ela os absorveu introduzindo algumas mudanas ou completando com
outras 241.
Estudando os fragmentos que nos foram conservados por Bartolomeu
de Pisa percebemos logo que essa compilao pertencia tendncia dos
zelantes da pobreza; por isso, poderamos ser tentados a ver a a obra
de Frei Leo.
Felizmente h uma passagem em que Bartolomeu de Pisa cita como
sendo de Conrado de Ofida um fragmento que ele j tinha citado antes
com tirado da Antiqua Legenda 242. No quero exagerar o valor de uma
indicao isolada, mas fazer de Conrado de Ofida o autor dessa compi-
lao parece-me uma hiptese bem plausvel. O que ns sabemos dele,
de suas tendncias, de suas lutas pela estrita observncia, concorda com
o que os fragmentos conhecidos da Antiqua Legenda nos permitem in-
duzir sobre seu autor 243.

a LTC 67: Ut habetur quasi in fine leg. 3 Soc. Cf. Os emprstimos feitos por Bartolomeu de Puisa
Legenda dos Trs Companheiros esto todos no nico texto tradicional dessa legenda. Van
Ortroy. An. Boll., t. XXXIX (1921), p. 396 c. m.
237
(1) F 111 a 1. Sic habetur in leg. ant.: corresponde literalmente a 1Cel 83. - 144 a 2 Franciscus in leg.
ant. Cap. V de zelo ad religionem a 1Cel 106.
238
F 111 b 1. De predicantibus loquens sic dicebat in ant. Leg. Cf. 2Cel 3, 99 e 106. -140 b. 1. Cf. 2Cel
3, 84. -144 b 1. Cf. 2Cel 3, 45. - 144 a 1 Cf. 2Cel 3, 95 e 15. - 225 b 2. Cf. 2Cel 3, 116.
239
F 31 a 1. V. 2Cel 3, 83. - 143 a 2 V. 2Cel. 3, 65 e 116. - 144 a 1. V. 2Cel 3,94. - 170 b 1 V. 2Cel 3, 11.
240
F 14 a 2. - 32 a 1.-101 a 2.-169 b 1. -141 b 2. -142 a 2. 143 b 2. - 168 b 1. - 144 b 1.
241
Os captulos 18 (captulo das esteiras) e 25 (leproso curado) dos Fioretti esto em latim nas
Conf. Como foram tirados da Leg. Ant. V 174 b 1 e 207 a 1. Em fim, segundo o f 168 b 2, foi da
Leg. Ant. que teria tirado a descrio do hbito tal qual encontramos no fim da Crnica das Tribu-
laes. Ver Archiv, t. II, p. 153.
Toda essa questo da Legenda Antiqua foi muito estudada e esclarecida mais tarde. Ver em par-

520
Seja como for, parece que nessa coletnea as narrativas tenham sido
dadas (uma vez que a principal fonte a legenda de Frei Leo ou dos
Trs Companheiros antes de sua mutilao) de uma maneira bem menos
encurtada do que na Segunda Vida de Celano. Esta obra no deve ser
mais do que uma segunda edio da legenda de Frei Leo, completada
aqui e ali por alguns traos novos e principalmente com exortaes
perseverana dirigidas aos zelantes perseguidos 244.
VIII. - Crnica de Glassberger 245.

Esta obra, escrita por volta de 1508 evidentemente no deveria ser


classificada entre as fontes propriamente ditas; mas apresenta-nos, de
maneira cmoda, a histria geral da Ordem, e, graas a suas citaes,
permite verificar certas passagens das legendas primitivas, cujos manus-
critos Glasberger tinha em mos. Isso acontece especialmente no caso da
crnica de Frei Jordo de Jano, que ele inseriu que inteira em seu trabalho.
IX. Crnica de Marcos de Lisboa 246.

Esta obra do mesmo gnero que a de Glassberger; s pode ser utili-


zada por acrscimo. Mas h uma srie de fatos em que ela tem um valor
particular, quando se trata das misses franciscanas na Espanha e em
Marrocos; o autor teve documentos sobre esse assunto que no tinham
chegado aos pases mais afastados.

ticular tudo que diz respeito Compilao de Avinho nos vol. da Coll. dtudes et de Doc. e nos
Opusc. de crit. hist., e nos outros peridicos franciscanos.
242
F 182 a 2, Cf. 51 b 1; 144 a 1.
243
Morreu no dia 12 de dezembro de 1306 em Bastia perto de Assis. Ver sobre ele Chron. Tribul. Archiv.
II, 311 e 312. Conform. 60; 119 et 153.
244
Bartolomeu de Pisa cita ainda outras obras, por exemplo o Speculum Perfectionis de que df extratos
em duas oportunidades 135 a 1 e 135 b 2. Tambm teve em mos pelo menos em parte, o De laudibus (ver
abaixo, p. M2.). Cita o opsculo que tomou lugar depois dos Fioretti 231 a 1: In legenda de inventione Mon-
tis Alvernae dicitur quod... Ad paucos dies Deus tam stupenda mirabilia... Cf. Fioretti, ed. Amoni, p. 220.
245 Publicada com um cuidado extremo pelos Franciscanos da Observncia no t. II das Analecta
Franciscana, ad Claras Aquas (Quaracchi perto de Florena), 1888, 1 voI. gr. in-8 de XXXVI-612
pginas. Esta edio, tanto do ponto de vista da crtica do texto, de sua correo, das variantes
e das notas, quanto do ponto de vista material, perfeita. O comeo, at o ano de 1262 j tinha
sido publicado pelo Dr. Karl Evers, sob o ttulo de Analecta ad Fratrum Minorum historiam. Leipzig
(1882), in-4 de 89 p.
246
S consegui obter a edio italiana publicada por Horcio DioIa com o ttulo Croniche degli

521
V
CRONISTAS DE FORA DA ORDEM

I. - Jacques de Vitry.
Os documentos seguintes, que s podemos indicar brevemente, tm
um valor inaprecivel; procedem de homens particularmente bem co-
locados para nos dizer a impresso que o profeta Umbro produziu em
sua gerao.
Jacques de Vitry 247 deixou longas pginas sobre So Francisco. Como
homem prudente que j tinha visto muitos loucos religiosos, no comeo
ele se reserva; mas logo esse sentimento desaparece e nele s encontramos
uma admirao humilde e emudecida pelo homem apostlico.
A pgina mais pitoresca e talvez a mais precisa escrita por esse prelado
sobre o movimento franciscano, est em uma carta datada de 1216. Ns
a citamos longamente 248.
Ele encontrou Francisco outra vez no Oriente e fala disso em uma
carta que escreveu no dia seguinte queda de Damieta (novembro de
1219) a seus amigos da Lorena para contar-lhes. Bastam-lhe algumas
linhas para descrever So Francisco e falar de sua irresistvel influncia.
No h uma s passagem nos bigrafos franciscanos que d uma idia
mais viva do apostolado do Poverello 249.

Ordini instituti dal P. S. Francesco, 3 voI. in-8, Veneza, 1606.


247
Ele tinha nascido em Vitry-sur-Seine, tornou-se proco de Argenteuil perto de Paris, cnego de Oignies
na diocese de Namur, pregou a cruzada contra os albigenses e acompanhou as Cruzadas na Palestina; feito
bispo de Acre, assistiu em 1219 o cerco e a tomada de Damieta e voltou para a Europa em 1225; criado
cardeal-bispo de Frascati em 1229, morreu em 1244 deixando numerosos escritos. Sobre sua vida, ver o
prefcio de suas Historiae, edio de Douai, 1597.
248
Ver p. 253-262. Esta carta foi dada inicialmente pelo baro de S. Genois nas Nouveaux Mmoires da
Academia de Bruzelas, t. XXIII, p. 29-33, de acordo com o manuscrito da Biblioteca de Gand. Foi apre-
sentada outra vez com um precioso aparato crtico por R. Rhricht na Zeitschrift fr Kirchengeschichte de
Brieger (Gotha, 1893), t. XIV, p. 97 ss. Publicada tambm por Boehmer, Analekten, p. 94 ss. Eu apresentei
em Coll., t. I, p.295 ss. as partes que dizem respeito ao movimento franciscano.
249
Esta carta est em (Bongars), Gesta Dei per Francos, p. 1146-1149 e Zeitschrift fr Kirchengesch., XVI,
p. 72 ss. - Boehmer, Analekten, p. 101, d a passagem que se refere a So Francisco.

522
Volta ao assunto bem mais longamente em sua Historia Occidentalis,
consagrando-lhe o captulo XXXII dessa curiosa obra 250. Essas pginas
vibrantes de entusiasmo foram escritas quando Francisco ainda vivia 251,
no momento em que os membros mais esclarecidos da Igreja que tinham
pensado que estavam no fim do mundo, in vespere mundi tendentis ad
occasum, viram de repente do lado da mbria os clares de uma nova
manh.
II. - Thomas de Spalato.
Um arquidicono da catedral de Spalato que, em 1222, sem dvida,
estava estudando em Bolonha, deixou-nos um retrato bem vivo de So
Francisco, e a recordao da impresso que produziram suas pregaes
nessa culta cidade 252. Por sua narrativa passa um pouco do seu entusias-
mo; sente-se que esse dia 15 de agosto de 1222, em que ele encontrou o
Poverello de Assis, foi um dos melhores de sua vida 253.
III. Cronistas diversos.
O continuador de Guilherme de Tyr 254 faz-nos um outro relato da
tentativa feita por Francisco para converter o Sulto. Essa narrativa, mais
longa do que as outras que temos sobre esse fato, no contm nada de
essencialmente novo, mas fornece um testemunho a mais em favor da
historicidade das legendas franciscanas.
Mencionemos finalmente duas crnicas redigidas quando So Fran-
cisco ainda vivia e que, sem fornecer nenhuma indicao nova, falam de
sua fundao com exatido, e provam como o movimento de renovao

250
Jacobi de Vitriaco Libri duo quorum prior Orientalis, alter Occidentalis Historiae nomine inscribitur.
Studio Fr. Moschi. Duaci ex officina Balthazaris Belleri, 1597, in-16, 480 p. O captulo XXXII ocupa as
pginas 349-353, intitulado De ordine et praedicatione fratrum Minorum. - Boehmer, Analekten, p. 102.
- Voir p. 311 s.
251
Parece que o que temos na passagem: Vidimus primum ordinis fundatorem magistrum cui tanquam
summo Priori suo omnes alii obediunt. Loc. cit., p. 352.
252 Est inserido no tratado de Sigonius sobre os bispos de Bolonha: Caroli Sigonii de episcopis
Bononiensibus libri quinque cum notis L. C. Rabbii, trabalho que ocupa as colunas 353-590 do t. III de
suas Opera omnia, edio de Milo, 1732-1737, 6 voI. in-f. Nosso fragmento est na col. 432.- Mon.
Germ. Hist. Script., t. XXIX, p. 580. - Boehmer, Analekten, p. 106.
253
A passagem pode ser encontrada na p. 325 s.
254
Guillelmi Tyrensis arch. Continuata belli sacri historia em Martne Amplissima Collectio, t. V, p. 584-
752. O pedao que se refere a Francisco est na col. 689-690.

523
religiosa vindo da mbria se espalhara rapidamente at os extremos da
Europa. O cronista annimo de Monte Sereno 255 escreveu, de fato, por
volta de 1225, e nos conta, no sem um amargo sentimento, as brilhantes
conquistas dos Franciscanos.
Burchard 256, abade premonstratense de Ursperg, morto em 1226, que
tinha estado em Roma em 1211, deixa-nos uma bem curiosa apreciao
da Ordem.
Os frades menores pareceram-lhe um pouco como um ramo ortodoxo
dos Pobres de Lio. Ele acreditava que o papa, aprovando os Francisca-
nos, estivesse querendo satisfazer na medida do possvel as aspiraes
manifestadas por essa heresia e pela dos Humilhados.
impossvel atribuir qualquer valor s longas pginas consagradas a
S. Francisco por Mateus Paris 257. Se suas informaes so justas quando
se trata da atividade dos frades, que ele podia ver trabalhando ao seu
redor 258, elas so absolutamente fantasistas quando se trata da vida de
So Francisco, e no podemos nos admirar de ver M. Hase 259 parar na
narrativa dos estigmas do monge ingls.
A notcia que consagra a Francisco contm quase tantos erros quantas
so as frases; ele o faz nascer de uma famlia ilustre por sua nobreza,
estudar teologia desde criana (hoc didicerat in litteris et theologicis
disciplinis quibus ab aetate tenera incubuerat, usque ad notitiam per-
fectam) etc. 260
No seria muito til prolongar esta lista e mencionar os cronistas que
se limitaram a registrar a fundao da Ordem, sua aprovao e a morte

255
Chronicon Montis Sreni (hoje Petersberg perto der Halle), editado por Ehrenfeuchter nos Mon. Germ.
hist. Script., t. XXIII, p. 130-226, p. 220.
256
Burchardi et Cuonradi Urspergensium chronicon ed. A. Otto Abel e L. Weiland apud Mon. Germ. hist., t.
XXIII, p. 333-383. O mosteiro de Ursperg estava a meio caminho entre Ulm e Augsburgo. Ver p. 129 et 317 n. 1.
257
Matthaei Parisiensis, monachi Albanensis, Historia major. Edies Wats, Londres, 1640. Os Frades
Menores so mencionados inicialmente no ano de 1207, p. 222; depois em 1227, p. 339-342.
258
Ver o artigo Minores do quadro de matrias dos Mon. Germ. hist. Script., t. XXVIII.
259
Franz von Assisi, p. 168 ss.
260
Ver p. 125 n. 2, sua narrativa sobre a audincia com Inocncio III.

524
de So Francisco 261, ou daqueles que falaram longamente sobre ele,
mas copiando simplesmente uma legenda franciscana 262.

Basta anotar para a recordao o longo captulo da Legenda dourada,


consagrada a So Francisco. Tiago de Voragine (morto em 1298) resu-
me a com exatido, mas sem ordem, os traos essenciais das primeiras
legendas e em particular da Segunda Vida por Celano 263.

Indicamos ainda a inscrio da bside de Santa Maria Maior, igreja do


episcopado de Assis. Ela diz simplesmente: tempore fratris Francisci et
domini Guidi. bem informe, no uma inscrio oficial. Conhecemos
outras do mesmo tempo, em Assis, que tm um aspecto bem diferente.
Esta obra apressada e mal feita de um operrio que quis colocar ali o
nome daquele que ele amava: Frei Francisco.

Uma outra inscrio interior que desapareceu, mas foi conservada por
um historiador ne de Assis do sculo XVIII 264, dizia: Sanctus Franciscus
hanc tribunam fieri fecit anno Domini MCCXVI. Sancta Maria ora pro
nobis 265.

Essa inscrio tem sua importncia, mostra que a atividade de So


Francisco como reparador de igrejas foi bem mais importante do que
em geral se pensa.]

261
Por exemplo Chronica Albrici trium fontium em Pertz: Script., t. XXIII, ad ann. 1207, 1226, 1228. Ver
Fragmento da cron. de Philippe Mousket (+ antes de 1245). Recueil des historiens, t. XXII, p.71, 30347-
30360. O nmero dos analistas desse sculo espantoso, - e no mais do que um em cada dez que tenha
deixado de indicar a fundao dos frades menores.
262
Por exempIo Vincent de Beauvais (+ 1264) faz entrar em seu Speculum historiale, Iib. 29, cap. 97-
99, lib. 30, cap. 99-111 quase toda a legenda dada pelos bolandistas sob o ttulo Secunda legenda em seu
Commentarium praevium.
263
Legenda aurea, ed. Graesse, Breslau, 1890, p. 662-674.
264
Lipsin, Compendiosa historia vita Seraphici Patris Francisci. Assisi, Sgaraglia MDCCLVI, p. 1 et p.
19. V. Tambm Octavius Spader (+ 1715), Archivium Portiunculae, p. 46, onde declara ter visto a inscrio
e a reproduz.
265
D para encontrar uma boa reproduo da inscrio exterior na Miscellanea francescana, t. II, p. 33-37,
acompanhada por uma sbia dissertao de Mons. Faloci-Pulignani. - V. tambm Pe. L. Lemmens, AFH
(1908), p. 250 s, Testimonia Minora Saec. XIII de S. Francisco. Mas o Pe. Lemmens, comentando a inscrio
conservada por Lipsin, comete um erro sobre o sentido da palavra tribuna. Tribuna significa bside. Por
isso ele se enganou pensando que a tribuna construda por So Francisco tivesse desaparecido. Esse erro foi
repetido por muitos outros: Trata-se da bside, como na inscrio exterior.

525
Renunciei a elaborar uma bibliografia completa das obras que tratam
de So Francisco, uma vez que esse trabalho foi muito bem feito pelo Pe.
Ulysses Chevalier em seu Rpertoire des sources historiques du moyen
ge: Bio-Bibliographie, col. 765-767 e 2588-2590. Paris, 1 vol. in-4,
1876-1888. A ele remeto os leitores.

526
TABELA DOS ASSUNTOS

ADVERTNCIA
DEDICATRIA AOS ESTRABURGENSES
INTRODUO DA PRIMEIRA EDIO
PREFCIO DA EDIO DE 1918
I. Juventude de So Francisco
lI. As etapas de sua converso
III. A Igreja em 1209
IV. Lutas e triunfo
V. Primeiro ano de apostolado
VI. So Francisco e Inocncio III
VII. Rivotorto
VIII. Na Porcincula
IX. Santa Clara
X. Primeiras tentativas entre os infiis
XI. O homem interior e o taumaturgo
XII. O advento de Honrio III a Indulgncia da Porcincula
XIII. Captulo geral de 1217
XIV. So Domingos e So Francisco. Misso do Egito
XV. A crise da Ordem
XVI. A regra de 1221
XVII. Os frades menores e a cincia
XVIII. Os estigmas
XIX. O Cntico do Sol
XX. O ltimo ano
XXI. Testamento e morte de So Francisco

ESTUDO CRTICO DAS FONTES, SUMRIO

527
528

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