Aula 042 Revisada

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Curso Online de Filosofia

Olavo de Carvalho

Aula 47
17 de julho de 2010

[versão provisória]
Para uso exclusivo dos alunos do Curso Online de Filosofia.
O texto desta transcrição não foi revisto ou corrigido pelo autor.
Por favor não cite nem divulgue este material.

Boa tarde a todos, sejam bem-vindos.

Eu queria começar chamando a atenção para o trabalho excelente que alguns alunos estão fazendo de
indexar as aulas. Segundo me informa o Silvio Grimaldo, a idéia foi do Érico Valente, seguido pelo
Gilson César, Vítor Cotti e Felipe Mendes. Além disso, está no ar, também, uma série de notas tomadas
nas aulas pelo Vítor Cotti. É um material altamente recomendável. Eu não sei já tem um link pra isso
no próprio site do seminário, se não tiver eu vou colocar o link. As notas do Vítor Cotti não estão na
página do seminário, estão www.bioeletrografia.com.br/index_philosophicus/index/philosophicus.pdf.
Mas depois nós vamos colocar os links corretos, não precisa decorar ou anotar nada, depois a gente vê
isso aí. Então, queria parabenizar os alunos por essa iniciativa excelente e lembrar que o nosso fórum,
chat etc., existem para esse tipo de intercâmbio.

Os objetivos deste curso são extremamente ambiciosos a longo prazo. Nós temos realmente uma
missão a cumprir, não podemos perder tempo. O tempo de que nós dispomos já é bastante limitado,
temos apenas algumas horas por semana. Na verdade, um trabalho desses precisaria ter aula todos os
dias, mais seminários, mais trabalhos etc., mas nós vamos trabalhando dentro das condições que aqui
temos.

Muito bem. Eu queria hoje abordar alguns assuntos. Tudo isso que nós estamos fazendo agora são
preliminares, são notas que eu quero que vocês lembrem e tomem como ponto de orientação para
quando nós passarmos à segunda etapa do curso, que vai ser um pouco mais formal e um pouco mais
exigente. Eu creio que, a esta altura, todos já entenderam perfeitamente por que eu adotei esta técnica
de tomar um primeiro ano apenas para a parte formativa e preliminar, analisando uma série de
condições e dificuldades que existem, especialmente no Brasil, para um trabalho como este. E também
com o objetivo de fortalecer a posição psicológica dos alunos em face da sociedade e de todas as
dificuldades que esse trabalho oferece. Houve até aqui uma pergunta que eu acho muito oportuna sobre
isso, e eu vou então adiantar um pouco o expediente; em geral, as perguntas ficam para a segunda
parte, mas como isso aqui é muito pertinente ao que nós estávamos falando na última aula, eu vou
responder agora a essa pergunta do Athos Barbosa:

Aluno: Entendi que o senhor disse para nós não esperarmos aprovação social nem compreensão do
meio, para exigirmos o máximo de nós mesmo moralmente etc., mas sermos compassivos com os
outros, perdoá-los; ajudar as pessoas sem ver a quem ou distinguir entre os dignos e indignos da
nossa atenção, enfim, nos centrarmos numa conduta verdadeiramente cristã e buscarmos o
conhecimento mesmo que não possamos transmiti-lo, o que, provavelmente, não poderemos mesmo -
mudei inclusive o meu necrológio nessa parte. No entanto o isolamento, não intelectual, mas físico
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mesmo, total é impossível. E quanto a essas pessoas com as quais nós temos que nos relacionar no dia-
a-dia e que nos agridem? Eu me sinto agredido com as suas “opiniões” a respeito, por exemplo, da
Igreja Católica, de Nossa Senhora, do senhor mesmo, de Aristóteles - opiniões depreciativas. Pessoas
que são o resultado direito dessa insuportável hegemonia cultural. O senhor entende o que eu estou
dizendo? (...)

Olavo: Claro que entendo.

Aluno:(...) O que a gente faz nesses casos? Ignora? Engole sapos? Se faz de desentendido?

Olavo: Muito bem. Quando eu digo para vocês evitarem discussões, não quer dizer que vocês vão
deixar passar todas essas coisas; eu estou dizendo apenas que vocês devem se preparar para poder
enfrentar essas situações de maneira vitoriosa, em vez de ficar apenas num bate-boca que não vai levar
a nada. Você deve estar capacitado para tapar a boca de pessoas que vêm com esse tipo de palpite, com
duas ou três palavras, para o sujeito nunca mais abrir a boca sobre nada, pra ele ir pra casa estudar.

Agora, ao começar a discutir, você está dando às pessoas um nível que elas não têm, uma importância
que elas não têm. Você tem de se imbuir da sua função de ensino – você não tem de discutir com essas
pessoas, você tem de ensinar a elas. Agora, para ensinar não basta você ter mais conhecimento do que
elas, ou até ser mais inteligente do que elas; você precisa também estar tão bem estruturado, tão bem
equilibrado no seu ponto que você possa fazer, como diz Aristóteles, “numa luta, aquele que mais se
move é o que apanha”, porque o que apanha cai e o outro fica onde estava. Então, é você que tem de
permanecer inabalável e outro que tem de sair abalado. Não é você se recolher, ficar quieto e engolir
sapo, de maneira alguma. Enquanto você está engolindo sapo, você tem é de estar se preparando, como
quem dissesse: “peraí que amanhã eu vou pegar você”. Não entre na discussão enquanto você não
estiver preparado para ter uma participação ali absolutamente arrasadora. Essas pessoas têm que ser
humilhadas para aprender. Se você não quebra a segurança delas, não adianta falar com elas. Elas não
vão se persuadir por simples argumentos racionais; quem se deixa persuadir por argumentos racionais é
porque já está muitíssimo preparado, muitíssimo evoluído e já não está nesse caso que você está
falando. Quem está, também, apto a se deixar persuadir por argumentos racionais não usa palavras
apenas como armas, como instrumentos de agressão. Claro que você pode usar as palavras também
como instrumento de agressão, mas não pode ser esta a função principal das palavras. Por exemplo, no
Brasil, quando se xinga alguém de “fascista”, não quer dizer, por exemplo, que haja alguma
correspondência histórico, sociológico, ideológica entre o acusado e o fascismo, é apenas como quem
xinga a mãe: se você xinga a mãe do sujeito “você é um filho disso, filho daquilo” não quer dizer que
se você procurar a mãe do cidadão num bordel você vai encontrá-la lá; não tem um sentido literal, é
apenas uma ofensa e nada mais. E nós temos que nos acostumar a fazer quando nós usarmos palavras
ofensivas, elas têm de corresponder a uma realidade objetiva. Se você xingar a mãe do sujeito, “olha,
você é um filho disso: está aqui a foto do bordel, tá aqui a sua mãe, tá aqui o cafetão; tá aqui o recibo
do serviço prestado etc.”

Não entre numa discussão apenas para dar empate, nem só para ganhar a discussão; você vai entrar
para ensinar alguma coisa para a pessoa, ou então não faça nada. Isto tudo é uma perda de tempo. Não
estou dizendo para vocês se ausentarem da briga, estou apenas dizendo para se prepararem para ela. E
para entrarem nela numa condição vantajosa. Olha, eu confesso para vocês que, em todos esses anos,
em tantos confrontos polêmicos que eu tive por aí, eu não encontrei um sujeito que estivesse a altura de
discutir comigo nada. Então a minha posição não era debatedor, era de professor: “estou aqui pra lhe
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ensinar a matéria; você não sabe nem os rudimentos do assunto, o que eu vou discutir com você?” O
que eu poderia discutir com aquele Alaor Caffé, na faculdade de Direito? O sujeito é totalmente
despreparado, a mente primária, então eu só posso ensinar pra ele algumas coisas “você não sabe nada
disto aqui, é melhor ficar quieto, você está tentando participar de um debate apenas por vaidade, não
está aqui cumprindo um dever profissional, nem intelectual, nem nada; o seu verdadeiro dever aqui
seria ficar quieto. Então, eu vou lhe dar os elementos faltantes”. Um pouco, tem de fazer como o Mário
Ferreira no famoso debate com o Caio Prado Jr., ele falou “antes de fazer a minha conferência, eu vou
refazer a sua, porque está tudo errado”.

A gente tem de proceder assim, quer dizer, nós temos que ter, perante a sociedade humana, uma
posição que reflita a dignidade da nossa função real. [00:10] Nós estamos aí para ensinar, nós estamos aí
para civilizar, nós não estamos aí para discutir. Não pode aceitar a discussão com o ignorante. Com o
ignorante, ou você fica quieto -- recusando a ele a honra da discussão --, ou então você entra na
discussão com a finalidade de humilhá-lo pedagogicamente, de fazê-lo sentir vergonha do que fez; e
isto vai representar para ele um estímulo a que ele se eduque melhor. Essa a sua função, não debater.
Quando você for obrigado a ficar quieto, perceber que não há condições para uma discussão, não se
sinta frustrado por causa disso, pois você não está recusando propriamente a discussão, mas adiando
um confronto. Eu nem chamaria isso de discussão. Eu acho que não há a menor condição de discutir o
que quer que seja no Brasil de hoje, em parte alguma. Isto não se a pessoal de direita, de esquerda, não
tem perfil ideológico.

O que aconteceu no Brasil nos últimos anos foi uma tragédia intelectual como nunca aconteceu no
mundo - prestem atenção no que estou dizendo. Eu reparo quando, às vezes, acompanho umas
discussões na internet, no Orkut etc., só para tomar a temperatura e pressão da sociedade brasileira e
ver como é que está. Reparo sempre aquelas duas coisas: primeiro, as falhas elementares de percepção,
i.e, o sujeito não sabe qual a sua posição real dentro das circunstâncias, e, portanto, não mede as coisas
com realidade. Neste caso, quando há uma falha de percepção, como você poderia corrigi-la no nível
da linguagem? No nível da linguagem você pode corrigir pensamentos, mas não percepções. As
pessoas não estão precisando de argumentos contrários, mas de uma reeducação. E reeducação não nas
partes superiores da cultura, mas uma reeducação primária. Elas precisam aqueles exercícios do
Feuerstein aos quais eu estava me referindo: para ensinar o sujeito a enxergar, ter um senso das
proporções, conseguir relacionar uma coisa com outra. Não é propriamente de aprender a pensar. Hoje
se usa muito essa expressão “aprender a pensar”, ou “ensinar a pensar”. Na verdade, pensar todo
mundo sabe, é uma espécie de automatismo. O problema não é o pensamento, mas a ligação do
pensamento com a percepção. Isso é que não tem. A hora que o sujeito entra no automatismo lógico,
verbal, ninguém segura mais, ele vai tirando conclusões, crente que está agradando, que está fazendo
uma coisa maravilhosa, mas na verdade não está falando a respeito de nada. Sobretudo, se se trata de
um povo que tem uma certa habilidade verbal – me referi até ao mimetismo brasileiro. Esse
mimetismo pode ser muito bom para aprender línguas estrangeiras, por exemplo, onde você está menos
interessado nas referências das palavras às coisas reais do que na adequação contextual da palavra.
Você dizer a palavra certa quando ela convém à conversa, convém à comunicação do momento. Ter
uma comunicação boa entre pessoas ou até num meio estranho, não quer dizer que o que você está
dizendo tem algo a ver com a realidade. Você pode manter conversar inteiras que não dizem nada a
respeito de nada e, no entanto, são perfeitamente adequadas do ponto de vista social. O que eles
chamam aqui de small talk. No small talk pouco importa o conteúdo do que você está dizendo, importa
apenas que a sua frase esteja adequada àquela circunstância social imediata e pareça se encaixar. Neste
sentido, o brasileiro tem uma habilidade – uma habilidade na função expressiva e na função apelativa
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da linguagem. Ele sabe expressar os seus sentimentos, expressar a sua vontade, expressar os seus
desejos, as suas insatisfações, e sabe afetar o outro, ter uma atuação sobre o interlocutor. Por exemplo,
ele sabe intimidar, ou agradar, ou lisonjear. Agora, quando chega na função denominativa, que é a
relação entre a fala e o mundo, aí o brasileiro não sabe nada; acho que ele nem sabe que existe essa
função. É na ligação entre linguagem e percepção que a coisa falha completamente, e é justamente isso
que mais interessa para nós.

Eu me lembro que em todos esses “debates” dos quais eu participei, nunca tinha ninguém falando a
respeito de nenhum fato, de nenhum dado da realidade. Eu me lembro, por exemplo, quando eu tive um
“debate” com João Pedro Stédile, quando ele disse que havia um estado de violência endêmica no
campo brasileiro, então eu tive que mostrar para ele o livro dele mesmo (o livro se chama O Problema
Agrário no Brasil), onde ele dava as estatísticas de mortes no campo. As mortes no campo brasileiro,
em toda extensão da região rural, era assim de trinta, quarenta pessoas por ano, enquanto que na cidade
estavam morrendo trinta mil, quarenta mil. Era uma diferença de um pra mil e, no entanto, na hora em
que ele dizia “há uma situação de violência endêmica no campo”, dizia aquilo com o sentimento certo,
conseguia expressar os sentimentos dele, conseguia atingir o coração da platéia com aquilo. Só que o
que ele estava dizendo não tinha nada a ver com aquilo que ele mesmo sabia da realidade. Era como se
fossem duas pessoas, uma pessoa de dois andares: tem aqui um embaixo que percebe, sabe os fatos; e
um outro em cima que fala. Esse é um problema endêmico no Brasil; isto sim é endêmico, não a
violência no campo. Essa desconexão de palavra e experiência é endêmica. Quando você entrou na
discussão com uma pessoa assim, você está lidando com um caso extremamente grave, porque, por
mais acertados que sejam os seus argumentos, eles não vão atingir o sujeito, porque o que está faltando
pra ele não é a formulação certa de um pensamento, mas a percepção daquilo que ele mesmo sabe. O
que está faltando é o mínimo de identidade consigo mesmo que um sujeito precisa ter. Não é um
problema de idéia, de ideologia, de cultura; é um problema psicológico grave.

Por exemplo, o desajuste total, não só da pessoa com a sua memória, com aquilo que ela sabe que é
verdadeiro, mas com a própria situação de discurso. Se um sujeito numa discussão de internet se
empolga como se estivesse num debate parlamentar, ele está fugindo da situação do discurso, não está
nem distinguido entre o escrito e o oral. Está inscrevendo um post num site da internet como quem
estivesse fazendo um discurso no parlamento. A coisa é tão desproporcional, tão deslocada do contexto
que você vê que a pessoa como que se transpôs a um outro mundo, se transpôs a uma segunda
realidade, está vivendo um teatrinho mental absolutamente psicótico. Como é que você vai discutir com
um sujeito desses? Ou quando a pessoa começa a fingir que sabe aquilo que não sabe. Quando a pessoa
se entrega a esse esforço de fingimento, significa que o interesse dela pelo assunto do qual está falando
é mínimo. Ela está interessada apenas nela mesma e no seu desempenho social. Então, neste caso, o
que quer que você diga sobre o assunto não atinge o fulano. O que ele está medindo é a qualidade de
seu desempenho, se ele está impressionando ou não. Aqui nos EUA dificilmente você encontra essas
situações. As pessoas aqui são muito mais diretas e muito mais objetivas. Se elas participam de uma
discussão é porque estavam realmente interessadas naquilo. Todo mundo sabe que não vai conseguir
impressionar muito, porque aqui essa arte de discutir o pessoal aprende desde a escola secundária –
mesmo em escola pública, todo mundo teve de fazer discurso, teve que discutir etc., então não há muito
o que [00:20] impressionar os outros pelo desempenho. Eles estão livres dessas preocupações de auto-
afirmação e podem se centrar mais ainda no debate. Por isso que aqui nos EUA freqüentemente adianta
você discutir. Você pode persuadir uma pessoa do seu erro. No Brasil isso se torna impossível, porque
persuasão de erro se dá num nível intelectual, mas e nos níveis de baixo? No nível emocional, social,
até físico. Eu conheci no Brasil um monte de pessoas que, numa simples conversa, falavam com voz
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empostada, como se estivessem no teatro. Quando eu conheci o Márcio Moreira Alves, eu não
conseguia conversar com ele, porque ali estava presente eu – que sou este que vocês conhecem, que é o
mesmo aqui, o mesmo em casa, o mesmo quando está no banheiro --, e de repente estava conversando
com um homem pomposo, que falava com a voz empostada. Eu vou ter que entrar nesse nível de
comunicação dele? Eu não consigo, porque vou dar risada de mim mesmo. E eu tinha que fazer um
esforço desgraçado para não rir dele. Estava lá ele fazendo esforço para impressionar – pela voz, pela
postura etc., etc. – e eu aqui me segurando para não rir. Quanto do nosso cérebro sobrava para a gente
prestar atenção no assunto? Quase nada. O nosso diálogo foi um fracasso total; eu não sei o que ele
falou e ele também não sabe o que eu disse. No próprio debate com João Pedro Stédile, nós estávamos
sentados numa mesa longitudinal, mas era como se fosse uma mesa redonda. E chegou na hora do
sujeito falar, se levanta, pega o microfone na mão e começa a fazer um comício. Como é que se
transforma um comício num debate? Não dá. Você só pode responder com outro comício. Então é uma
coisa totalmente inadequada à situação do discurso; ademais o comício era totalmente desnecessário,
porque 80% da platéia eram militantes do MST. Então, para que ele precisava fazer um comício para
aqueles que já eram seus eleitores?

Todas essas inadequações entre o fulano e o assunto, entre o fulano e a sua memória, entre o fulano e o
papel real que ele está desempenhando ali, tudo isso cria uma situação psicótica. Na qual a discussão, a
seriedade de seus argumentos vai se tornar cômica. Muitas vezes, o que você tem de fazer é
simplesmente estourar o balão do sujeito, mostrando que ele é um palhaço, que está fazendo uma
palhaçada ali. Se você conseguir fazer isto, não é preciso nem entrar na matéria em discussão. Porque
não se trata disso. Os argumentos pertinentes à matéria em discussão são importantes quando os dois
lados estão prestando atenção nas mesmas coisas e estão desempenhando papéis que são mutuamente
correspondentes. Se eu sou um debatedor numa mesa redonda, espero que o outro se comporte como
um debatedor numa mesa redonda. Em todos esses “debates” brasileiros, existe uma inadequação, um
hiato, um descompasso, um desnível entre os vários papéis que estão sendo representados ali. Quando
isso acontece, os argumentos centrados no assunto, que são objetivamente pertinentes, perdem sua
força, sua função, e se tornam eles próprios elementos de um teatro, totalmente deslocado da situação.
Vocês têm de aprender a lidar com todas estas situações e saber quais são os momentos de argumentar,
e quais são os momentos de simplesmente estourar o balão, desmantelar o teatro.

Eu vou contar uma história para vocês. Um economista conhecido meu chamado Roberto Fendt era um
sujeito que estudou muito, passou anos no exterior estudando; quando ele chegou ao Brasil o
convidaram para um debate com a Maria da Conceição Tavares. Ele não sabia quem era, disseram um
economista, uma colega. Ele foi lá, sentou como se fosse um debate em uma universidade americana.
Tão logo ele começou a falar a Maria da Conceição fez aquelas intermissões: “Bandido”, [00:30] “filho
disso, filho daquilo”. Ele não sabia o que fazer, pagou aquele mico. Passou um tempo, convidaram ele
para outro debate com a Maria da Conceição Tavares. Ele disse “só aceito se eu for o primeiro a falar”.
Concordaram. Chegou no dia, ele sentou lá e disse: “Agradeço muito à Universidade este gentil
convite, só lamento estar sentado aqui no lado dessa vaca, filha disso, filha daquilo”. Aí nivelou a
situação, ficou tudo certo. E ele fez muito bem, porque é assim a única maneira de você discutir com a
Maria da Conceição Tavares. Diga você o que disse, ela vai te xingar de alguma coisa. Então você tem
de começar xingando primeiro, para que as pessoas entendam. Se o sujeito começa a falar muito
seriamente, ele está dando à outra uma dignidade que ela não tem, ele que tá enfeitando a mulher. Se é
pra partir pra esculhambação, vamos partir logo. Quando me chamaram para o debate Alaor Caffé, eu
sabia que não seria um debate, mas uma aula, eu vou lá para dar uma aula para um ignorante teimoso.
Então, o que eu fiz? Juntei toda documentação, os livros etc. etc., de maneira que tudo o que eu dizia,
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eu puxava um livro da mala e dizia: “Está aqui, livro tal, didaticamente você vai pra casa estudar.”. Isto
não é um debate. Um debate supõe um certo equilíbrio. Eu me lembro, por exemplo, de ter havido um
debate interessante entre eu e o Carlos Guilherme Mota, a respeito da obra do Gilberto Freire. Porque
nós dois conhecíamos muito bem a obra do Gilberto Freyre. Eu sei do que estou falando e ele também
sabe do que tá falando. Nós podemos ter idéias opostas, e uma delas pode até estar errada e a gente
talvez consiga demonstrar o erro da idéia, mas são duas pessoas que estão realmente interessadas no
assunto e tem um nível de conhecimento mais ou menos compatível, aí sim há debate. O resto não, o
resto é um circo. Houve também um debate entre eu o Jacob Gorender sobre a questão da escravidão
no Brasil. Um assunto que havia estudado e que ele havia estudado até mais do que eu. Aí é possível
sair alguma coisa. Além disso, ele é um homem velho, de oitenta anos, já não tem mais nada para
provar pra ninguém, então ele não estava desempenhando papel nenhum, estava simplesmente dizendo
as conclusões do que ele tinha estudado. Aí dá pra ter um debate, tivemos um debate sobre isso na
PUC. Embora ele seja um sujeito marxista, comunista, a área de divergência ali foi muito pouca, na
verdade. Na maior parte, confrontos com Emir Sader, Marilena Chauí, Leandro Konder, faça-me o
favor, isto é uma palhaçada! E quando é confronto entre eu e moleque que mal acabou de tirar a frauda,
tipo Rodrigo Constantino. Aí é terrível porque é tudo fingimento da parte do outro. Primeiro porque o
sujeito está entrando num debate de uma coisa que acabou de ouvir falar. Por que você tem de ter
opinião sobre algo que você acabou de ouvir falar e que o outro vem estudando há quarenta anos? Por
quê? Pior ainda, você fica numa desvantagem porque você não vai poder em dez ou vinte minutos
transmitir a ele o que você estudou durante quarenta anos.

Mostrar ao ignorante a sua ignorância não é possível por meios racionais, porque se você puxa de todo
o seu cabedal de conhecimentos, puxa de toda bibliografia, o sujeito vai achar que você está afim
apenas de massacrá-lo, de humilhá-lo; então ele já começa a analisar você psicologicamente, dizer que
você é um sádico. Em suma, é uma confusão dos diabos. Para entrar num confronto desse tipo, você
tem de estar preparado não para debater, mas para lidar com todas essas situações que são tão
complexas quanto à psicoterapia. Onde o paciente se enganou a si mesmo tão bem e está agora
empenhado em enganar o psicoterapeuta para que o psicoterapeuta não descubra qual o problema dele.
O sujeito vem ali numa posição ambígua: por um lado ele veio para se tratar, por outro lado não está
querendo se tratar. Primeiro você tem de colocar o sujeito num acordo consigo mesmo. É uma situação
psicologicamente muito complexa, e praticamente todo debate que eu participei no Brasil foi assim. Por
que com vocês vai ser diferente? O que eu espero é que vocês aguardem um pouco, que tenham
paciência, que se municiem de todo o equipamento necessário para lidar com esta variedade de
situações e não somente com a matéria em discussão. Muitas vezes a coisa depende menos de
conhecimento do assunto, de ter os argumentos certos, do que de você compreender psicologicamente a
situação. Ademais, o brasileiro tem horror de estudar, ninguém quer estudar coisíssima nenhuma, mas
todo mundo quer debater, todo mundo tem opinião. É um dos fenômenos mais esquisitos do mundo.
Você vê as pessoas escrevendo sobre determinados assuntos muito mais do que elas leram a respeito. É
um fenômeno. Eu tive um debate com o Rodrigo Constantino que a cada três minutos ele soltava uma
mensagem nova. Eu não vou poder responder a tudo isto. O sujeito escreveu praticamente um livro ali,
e quando a gente ia ver o que ele conhecia a respeito, ele tinha lido um pedaço do Voltaire e a
Wikipédia; isto era tudo que ele sabia a respeito. E, no entanto, os “argumentos” brotavam ali que era
uma coisa maravilhosa. É claro que é uma situação psicótica, não é algo normal. Mais ainda: tudo vem
carregado com uma emoção incrível, sobretudo de indignação; o sujeito sempre dá a impressão de que
ele é um coração puro que foi ofendido pelo que você está dizendo. Eu me lembro que numa antiga
campanha presidencial eles botaram na rua um cartaz que tinha uma fotografia do Janio Quadros
olhando de cima e, embaixo, estava escrito “dignidade”. As pessoas que entram em discussão no Brasil
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estão sempre afetando dignidade, e isso pode, às vezes, impressionar a platéia, mas para mim sempre
dá o efeito contrário: se o sujeito entra com esta afetação, eu já tenho que me conter para não rir da cara
do fulano, para não fazer duas ou três piadas, e para não mandá-lo para aquele lugar logo de cara.

Como é que vocês vão lidar com todas estas coisas? Essas pessoas são escorregadias. Você precisa ter
uma espécie de prática de psicoterapia. O sujeito neurótico ou doente mental é eminentemente um
fingidor. Ele tem uma multidão de camuflagens, de papéis que ele pode representar e está o tempo todo
representando aquilo para você e para si mesmo. Você tem de passar pelo meio desta linha sinuosa,
entre todos estes fingimentos e se orientar ali no meio. É difícil, é um investimento psicológico muito
grande que, na maior parte dos casos, não vale a pena. Não vale a pena, primeiro, pela má qualidade do
sujeito que está ali discutindo com você. Eu acho que, em certos casos, seria melhor você ir na casa do
sujeito e enche-lo de porrada; é a coisa mais objetiva que você pode fazer. Tem pessoas que mudam de
personalidade antes e depois de apanhar: depois da apanhar o sujeito se torna racional, cordato, e antes
não. Tem certas pessoas que a única coisa a fazer é realmente isto. Não se pode fazer ou porque está à
distância, ou por causa do risco de um processo etc. etc., então é melhor não fazer nada. Tenham
paciência. Eu espero que vocês se tornem capazes de agir socialmente no Brasil com muita eficácia,
fazendo um trabalho que nunca foi feito lá, que é um trabalho de civilizar a Elite.

No Brasil, o que quer que você diga, é tratado como se fosse um argumento. O abuso da palavra
argumento é uma das coisas mais incríveis. Eu chego num lugar e digo: “Eu me chamo Olavo de
Carvalho”, o sujeito diz “Não concordo com o seu argumento”; ou “Nós estamos aqui reunidos para
um debate” e ele diz “Não, não concordo com o seu argumento”. Tudo o que você fala na clave
simplesmente factual, descritiva, é tomado como se fosse um argumento; quer dizer, as pessoas não
sabem o que é um argumento. Um argumento supõe uma tese contrária e supõe um desejo de provar
alguma coisa. [00:40] Eu sei que a maior parte do que eu escrevo, não estou tentando provar nada. Estou
simplesmente descrevendo um estado de coisas. Se fosse para provar, precisaria de dez vezes mais
espaço do que eu tenho num jornal. Como é possível que o indivíduo não saiba distinguir entre o que é
uma descrição do estado de coisas e um argumento? No Brasil de hoje, ninguém sabe.

Mais ainda, em filosofia, praticamente nada é argumento. A parte filosófica que se refere a discussões e
provas é mínima; a maior parte do que se diz em filosofia pertence a um gênero que nós podemos
chamar ‘meditativo’. O que é uma meditação? É você rastrear um dado da realidade, uma idéia, um
símbolo até seu fundamento. Você não está tomando nada como premissa e desenvolvendo
argumentos, e sim fazendo um movimento contrário, indo para trás; buscando o fundamento daquilo na
sua experiência interior, experiência exterior – algum lugar onde esteja o fundamento. Qual é a
estrutura de uma meditação? A meditação procura acompanhar a estrutura do seu próprio objeto,
portanto, a meditação não tem uma estrutura argumentativa identificável. Outro dia, estava
conversando aqui com a professora Margarita Noyes, e ela estava enfatizando a importância de você,
numa exposição, seguir a ordem retórica onde há uma tese e há os pedaços da tese que você vai
desenvolver. Isso é a estrutura de um texto, de uma explicação; mas os grandes expositores filosóficos
jamais seguem essa estrutura, porque seguem a estrutura do objeto que está sendo dado. A ordem
literária ou a ordem retórica pode parecer até confusa, porque você está desmembrando o objeto nos
seus componentes internos e seguindo a ordem que ele mesmo te sugere. Eu me lembro, por exemplo,
que tem uma apostila minha antiga em que eu parto da sentença de Aristóteles de que “todos os
homens, por natureza, desejam conhecer”. Em que sentido Aristóteles disse isso? Qual o fundamento
do que ele está querendo dizer? Ele quer dizer que a curiosidade intelectual está igualmente repartida
entre todos os homens, quando nós obviamente sabemos que não está? E quando ele mesmo diz, num
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outro pedaço, que você não deve discutir com o sujeito que não conhece os princípios da argumentação
e prova, porque você vai só se aviltar a si próprio. Será que aquele indivíduo que desconhece os
princípios da argumentação e da prova tem o desejo de conhecer tanto quanto Aristóteles tem? É óbvio
que não, não pode ser disso que ele está falando. Temos que distinguir entre o desejo de conhecer tal
como uma característica da espécie humana, e o desejo de conhecer tal como ele aparece
individualmente neste ou naquele fulano onde há uma multidão de graus diferenciados, que vão desde
Aristóteles até o sujeito que não tem interesse nenhum em conhecer coisíssima nenhuma. O que estou
fazendo? Argumentando? Não, estou sondando o fundamento de uma coisa que o outro disse, não estou
tentando provar nada. Onde você tem uma tentativa de prova, você tem uma estrutura de prova, uma
estrutura lógica de demonstração.

Eu, vez após vez, tenho feito esta experiência de escrever as coisas na clave descritiva e suscitar uma
discussão contra os meus “argumentos”. Mas eu não argumentei nada, nem comecei a argumentar
ainda. Este escrito sobre a Ordem e a Liberdade. Estou dizendo ali apenas que não existe uma escolha
entre mais ordem ou mais liberdade, porque uma ordem onde exista menos liberdade é um tipo de
ordem, e uma ordem onde exista mais liberdade é outro tipo de ordem. Você está discutindo apenas
entre dois tipos de ordem. Agora, se você usar as palavras “ordem” e “liberdade” não como signos
descritivos de situações reais, mas como slogans, no sentido de que o sujeito que pede ordem está
pedindo um governo autoritário, e aquele que pede liberdade está pedindo mais direitos civis e menos
opressão – se você usar nesse sentido – ah bom, aí vai dar um rolo desgraçado. Mas, no instante em que
você diz que as ordens mais libertárias e menos libertárias são ordens do mesmo modo – e até a ordem
mais libertária é mais complexa que a outra --, então não é evidente que não cabe uma discussão entre a
preferência por ‘ordem’ ou por ‘liberdade’ e, no entanto, foi essa a reação que o meu artigo suscitou
por toda a parte. Pouquíssimas pessoas entenderam que eu estava falando o óbvio. E mais ainda, eu não
estava propondo um governo com mais ordem, o outro com mais liberdade, de maneira alguma. Isto
está completamente fora da discussão.

Por que tudo que o sujeito diz deveria ser entendido como argumento e, mais ainda, como tomada de
posição? Isto é um vício tremendo das discussões brasileiras. A missão que cabe a vocês é tentar
civilizar essa elite falante brasileira e ensinar para ela essas coisas. A começar por estas coisas: nem
tudo é argumento, nem tudo é tomada de posição; às vezes, para você tomar posição, você tem de ter
todo um trabalho preliminar de descrição da situação; que toda discussão séria começa com um certo
acordo quanto aos fatos que estão em discussão. Se um mesmo corpo de fatos não está à disposição dos
dois debatedores não há debate, evidentemente. Como é que eu posso discutir com uma pessoa que
começa a dizer: “O Foro de São Paulo não tem importância nenhuma.”. Um momento, quais são os
fatos que você conhece a respeito do Foro? Você leu as atas, acompanhou os grupos de trabalho? Não.
Então por que você acha isto ou aquilo e por que eu tenho de prestar atenção no que você está dizendo?
Eu que tenho muita experiência nesse negócio, que estudei muito a arte da discussão, vejo-me em
situações extremamente constrangedoras, porque vejo que não é possível a discussão. Se vocês
entrarem nestas mesmas situações vocês são vão estar perdendo seu tempo e suas energias.

Vamos passar ao segundo tópico que eu havia planejado para esta aula: o problema da abstração.
Quando você faz uma abstração, o primeiro tipo de abstração que você faz, o mais constante, o de uso
mais universal, é quando você nomeia um ente, um indivíduo pelo nome de sua espécie; quando você
chama, por exemplo, um gato de ‘gato’, um abacaxi de ‘abacaxi’ e uma minhoca de uma ‘minhoca’.
Note bem, quando você faz isso, você não está chamando o gato pelo nome daquele gato
especificamente, mas pelo nome de sua espécie inteira. Você está fazendo a abstração, separando um
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ente individual da sua posição efetiva no tempo e no espaço; abstraindo a sua unidade física. [00:50]
Porém, é preciso notar que o nome da espécie contém, implicitamente, todas as possibilidades de
desenvolvimento que diferenciam os seus elementos entre si. Por exemplo, se você define um gato
como “gato” -- e acontece de o gato ser preto, ou malhado --, o nome da espécie ‘gato’ já contém
implicitamente todas essas variações possíveis. Também está implícito ali que você ao chamá-lo de
“gato”, só está distinguindo entre a espécie e o indivíduo, mas não se está separando propriamente um
do outro. Por quê? Porque aquele gato contém todos os atributos da espécie sem faltar nenhum, porque
se faltar um ele não é gato, só se parece com gato. De um lado, a espécie contém todos os atributos,
todas as possibilidades de variação que são observáveis nos seus vários componentes individuais; todos
sem faltar nenhum. Se acontecer de aparecer um bicho com características que não se enquadram na
espécie gato, ele não é gato. E por outro lado, o ente individual contém todos os atributos da espécie
sem faltar nenhum, porque se faltar um ele também não é gato. Isso quer dizer que o conceito geral
abrange o ente individual; e o ente individual está perfeitamente enquadrado, harmonicamente, no
conceito geral da sua espécie. Este é o tipo de abstração que não vai separar você do conhecimento do
dado concreto. Ao contrário, se você está consciente daquilo que define a espécie de modo genérico e
está consciente de que você esta diante de um exemplar daquela espécie, então com mais acuidade
ainda você distinguirá os caracteres individuais que singularizam aquele gato, justamente porque você
sabe que aqueles traços sendo possíveis dentro da espécie, estando contidos no conjunto de
possibilidades que define a espécie, não são necessários a espécie. Se existem, por exemplo, gatos de
duas cores e gatos de três cores, então significa que ter uma, duas ou três cores faz parte da espécie gato
– a possibilidade disto faz parte da espécie gato. Porém, o fato especifico deste gato ter duas ou três
cores não faz parte da definição da espécie; a espécie não obriga que ele tenha duas ou três cores. Neste
tipo de abstração você está captando a forma inteligível da espécie por trás da presença física do
individuo. Ora, a forma inteligível da espécie é justamente o conjunto imenso de possibilidades que
está contido nas potencialidades da espécie. Por exemplo, a ‘vaca’ tem a propriedade de dar leite,
porém, se ela não está dando leite, ela está doente, não é que isto faça parte da estrutura dela, é uma
situação anormal, uma privação, como diz Aristóteles. Ela não esta dando leite, mas é por uma privação
que ela está sofrendo e não por uma característica da sua espécie. Mas você sabe que a vaca não dá
vinho tinto, nem branco, nem champanhe, nem whisky, pode puxar o quanto quiser, não vai sair.

Este tipo de abstração, no qual você capta através do ente individual a forma inteligível da sua espécie,
torna inteligível, por sua vez, a própria variação individual que aquele individuo manifesta. Você
entende que, se a vaca é preta ou gato malhado, é porque isto esta nas possibilidades contidas na
definição, no conceito geral da espécie. Porém, existe um outro tipo de abstração na qual, por exemplo,
você pega um muro branco ou um gato branco e liga uma lâmpada e a lâmpada reflete a superfície
branca de uma certa maneira. Então não importa se a superfície branca é uma mesa branca, um muro
branco, um papel branco ou um gato branco, ou uma vaca branca. Você está estudando apenas os
efeitos da luz na superfície branca e tentando obter as propriedades gerais da superfície branca.
Acontece o seguinte: gato existe, vaca existe, mas superfície branca não existe. Superfície branca só
existe como parte de alguma coisa, ou ela é parte da mesa, ou do gato, ou da parede. Não existe uma
superfície branca em si, que saia andando por ai para você observá-la. Nos dois casos você operou uma
abstração, porém a primeira abstração é a que capta a essência de uma substância. O que é essência? É
o conjunto de caracteres que faz com que aquela substância individual pertença a uma determinada
espécie. Note bem, você faz este mesmo tipo de abstração quando você chama uma pessoa pelo seu
nome: “Zezinho”, “Roxane’, “Leilah”, “Alessandro”, “Isabela”. Você vê esta pessoa em varias épocas
diferentes de sua existência, às vezes você conhece desde que pequenininha até que cresce; você esta
dando sempre o mesmo nome, não o nome da espécie, mas o nome do individuo. A denominação
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individual também é compatível com todas as mudanças que a pessoa passa e, aliás, como você saberia
que a pessoa mudou se você não sabe que é a mesma pessoa? Se não, você entraria no caso daquele
guia de museu em Lisboa que tinha lá dois esqueletos e disse: “este aqui é o esqueleto de camões” e, do
lado, “este aqui é o esqueleto de camões ao cinco anos de idade”. Nessas piadas de português o
brasileiro projeta sua própria burrice na figura do português, que não é nada burro. Eu conheço mais
brasileiros capazes de fazer esta confusão do que portugueses. Então, como você pode saber que o
sujeito mudou, que ele cresceu se você não sabe que ele é o mesmo. Se você vê um menino e depois vê
um homem feito e não sabe que são o mesmo, você não vai dizer “o fulaninho, como você cresceu!”.
Você não vai encontrar o Zezinho e dizer “Puxa, como você cresceu, o Joãozinho era tão pequeno!”.
Não é assim que você faz.

O mesmo tipo de abstração, você está captando a forma inteligível de um individuo. E esta forma
inteligível representa a persistência da identidade dele ao longo dos tempos e independente dos lugares
e das situações onde ele esteja. Então, este tipo de abstração, que capta a forma inteligível de um ente,
seja um ente tomado como representante da espécie, seja o ente tomado individualmente, este tipo de
abstração distingue, mas não separa você da entidade concreta que você esta nomeando. Ao contrário, é
justamente o fato de você ter o conceito abstrato que permite que você observe aquele ente individual,
com mais acuidade, e você perceba mais claramente não só as diferenças entre ele e outros membros da
mesma espécie, mas entre ele e ele próprio tomado em várias situações. Por exemplo, o gato que está
pulando, o gato que está no teto, o gato que está deitado na poltrona e assim por diante. Agora, e o
outro tipo de abstração? No outro tipo de abstração você separa uma qualidade da sua substância.
Como você não leva em conta a substância, você não pode saber se esta qualidade esta ali presente, não
pode nem sequer saber se esta qualidade está ali presente como uma propriedade ou como um acidente.
Por exemplo, os muros têm todos alguma altura, um muro sem altura não é possível; da definição de
muro você não precisa declarar que ele tem uma altura, [1:00] porque está implícito e, se está implícito, é
uma propriedade: algo que não faz parte da definição, mas que se deduz logicamente dela. Mas que o
muro seja branco, preto, marrom, azul não consta da definição, não consta, não faz parte e não pode ser
deduzido. Se eu te der a definição mais perfeita possível de muro, dela você não vai poder deduzir se
tal ou qual muro é branco ou azul. Nem você pode deduzir a altura dele, você pode dizer que ele tem
alguma altura, mas não qual será precisamente a altura.

Quando eu estudo uma superfície branca e estudo o efeito da iluminação sobre uma superfície branca,
ou seja, a capacidade refletante da superfície branca, eu estou separando uma qualidade de qualquer
substância, estou considerando apenas a qualidade em si. E essa qualidade, considerada em si mesma,
radicalmente não existe. Note bem, qualquer manual de ciência dirá para você que a ciência não estuda
objetos concretos, mas abstrações. E, quando o cientista diz isto, ele diz até com um certo orgulho,
“não somos presa das percepções imediatas, nós lidamos apenas com objetos tomados num nível mais
alto de abstração”. Porém, esquecem de dizer que existem dois tipos de abstração. Um que arraiga você
ainda mais na realidade concreta, porque torna a realidade concreta inteligível; e outro que separa uma
qualidade da sua substancia e passa a estudar a qualidade em si mesma, com vistas a obter certas
constantes que sejam matematizáveis. Por exemplo, o brilho, maior ou menor, dado pela superfície
branca conforme a distancia maior da luz, ou a potencia maior da fonte iluminante. O sujeito observa
isso e faz uma série de cálculos e faz lá uma tabelinha. Esta tabelinha será o resultado do trabalho
cientifico dele. Essas constantes serão em principio independentes de qual seja a substância que está
por baixo da superfície branca. E é assim que se procede uniformemente em todas as ciências físicas.
Isto é a mesma coisa que dizer... Na verdade existem vários tipos de abstração, mas estou aqui
separando apenas dois. Isto quer dizer que as ciências naturais rarissimamente estudam algum objeto
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real. Elas estudam propriedade que são comuns a vários objetos reais, tomados sob certo aspecto. Por
exemplo, todos nós sabemos que um corpo animal possui moléculas de carbono e, também num toco de
carvão, haverá moléculas de carbono lá. O comportamento das moléculas será mais ou menos o
mesmo, neste caso e no outro. São estas coisas que a ciências naturais estudam, elas jamais estudam um
objeto real, jamais. O fato é que essas constantes observadas e medidas realmente existem. E como
sabemos que elas existem? Porque tantas vezes você fará a repetição das mesmas experiências e vai
obter os mesmos resultados. Acontece que existe uma terceira diferença: as ciências também fazem
amplo uso de elementos matemáticos inteiramente construídos, os quais não correspondem nem sequer
a qualidades isoladas de ente nenhum. Abstrações matemáticas que não existem sob hipótese alguma.
Por exemplo, o que é a integral de “–b”, isto não existe de maneira alguma. Isto é uma construção
mental, quer dizer, onde você faz uma proposição hipotética a respeito de uma quantidade imaginária e
vê que os cálculos, deduções que você vai tirar dali não são aleatórios, elas tem de ser coerentes com o
que foi proposto no começo. Como, por exemplo, se você supõe, digamos, um triângulo – uma figura
com três lados retos – você vai obter disto que você mesmo postulou uma série de conseqüências, que
são só validas dentro daquilo que foi postulado. Foi você mesmo que inventou este triângulo, você o
pensou como um triângulo, então se você continuar pesando coerentemente com aquilo postulado no
início, você vai tirar uma série de propriedades do triangulo. Propriedades imaginárias, porém
coerentes com a postulação igualmente imaginária feita no começo.

O conjunto do que as ciências naturais sabem sobre o mundo é constituído de armaduras matemáticas
construídas ou em torno de outras armaduras matemáticas, ou em torno de observações feitas em
qualidades isoladas que não correspondem a nenhum objeto do mundo real. Qual é a possibilidade que,
da soma de todas essas observações feitas em propriedades isoladas, seja obtido um único objeto real?
A possibilidade é nula. Porque para um objeto ser real, ele precisa ser algo mais do que a soma de suas
qualidades. Em primeiro lugar, se você pegar a somas das propriedades, isso não basta para definir um
objeto, porque o objeto, para existir, tem de estar sujeito a uma quantidade de acidentes em número
infinito. Por exemplo, você pega o número de posições que um gato ocupou no espaço ao longo de toda
sua existência. Essas posições são todas acidentais, mas pode existir um gato sem elas? Não. Existe um
gato do qual você possa excluir, em principio, alguma das muitas posições que ele ocupou no espaço ao
longo de toda a sua vida? Não, isto seria um gato hipotético, um gato totalmente irreal.

Para que haja um objeto real, concreto, você tem de supor não somente a sua essência, isto é, a
definição da sua substância, não somente o conjunto das suas propriedades – as propriedades podem ser
deduzidas da sua definição, mas elas são em grande número, então dificilmente deduzimos todas as
propriedades de um objeto. Por exemplo, um gato pode ser transformado em cuíca, mas enquanto não
existiu cuíca, ninguém sabia disto. Então, poder virar couro de cuíca é uma propriedade do gato, não é
um acidente; que ele tenha virado efetivamente é um acidente, mas a capacidade de virar já estava lá
desde o início, e enquanto não se inventou a cuíca ninguém percebeu isto. E, no entanto, se houver um
gato que não tenha a propriedade de virar couro de cuíca, ele não é um gato. Os gatos, bilhões de anos
antes de haver cuíca, já tinham esta propriedade. Nem mesmo as propriedades nós podemos conhecer
todas. E os acidentes? Muito menos. Porém, nós sabemos que, para um ente ser real, ele precisa ter o
conjunto de suas propriedades e precisa estar sujeito a série indefinida, interminável, dos acidentes que
serão compatíveis com sua essência. Se faltar um, então você não esta falando de um ente real, mas de
um ente pensado. O ente pensado é aquele ente limitado, só tem certas propriedades e certos acidentes.
Por exemplo, se você esta escrevendo uma história a respeito de um gato, você não pode dizer tudo o
que um gato pode fazer, você só vai dizer o que aquele gato podia fazer, o que ele efetivamente fez e o
que fizeram para ele. Este é um gato pensado.
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Isto quer dizer que se você somar tudo o que o conjunto das ciências sabe sobre tudo que elas
estudaram desde que existe ciência, você não compõe um único objeto real. Ora, essa é uma das
características das ciências: elas observam propriedades isoladas [01:10], matematizam as observações e
tiram certas conclusões que devem ser constantes onde quer que esta mesma qualidade se reproduza
com as mesmas condições e as mesmas características. É claro que o conjunto disso demarca uma certa
estrutura de possibilidades do mundo externo. Nós, em princípio, sabemos que tais ou quais objetos,
não importando o que eles sejam, não transgredirão na realidade da sua existência esses limites que
estão determinados pela matematização prévia de suas qualidades. Por exemplo, sabemos que um gato
preto não poderá refletir a luz tão bem quanto um gato branco; não tem jeito, faça ele o que fizer. Do
mesmo modo, o muro preto não refletirá a luz tão bem quanto o muro branco.

Este conjunto de limites matemáticos impostos às várias qualidades é tudo o que a ciência sabe a
respeito do que quer que seja. Porém, isto não tem a nada a ver com o mundo real. Não porque a
ciência use de pensamento abstrato, mas porque o tipo de abstração que ela usa é indiferente à
substância; e substância individual é a única coisa que realmente existe. Tudo que conhecemos,
conhecemos como substâncias individuais, ou como alterações sofridas pelas substâncias individuais.
Isso quer dizer que se por um esforço monstruoso de articulação entre os conhecimentos e conclusões
das várias ciências, nós montarmos uma concepção científica do mundo, essa concepção cientifica será
constituída apenas da armadura matemática do mundo possível sem nenhum mundo real dentro. Por
definição, qualquer concepção concebida desta maneira é compatível com um número indefinido de
outras concepções; basta você medir outras coisas e você chegará a conclusões diferentes que não
precisam ser totalmente inarmônicas com essa, mas que são diferentes. A ciência pode conceber várias
estruturas de mundos possíveis sem poder dizer se um deles é real. É por isso mesmo que a cosmologia,
que é a ciência encarregada de criar esta imagem do mundo, dedica-se a criar esquema de mundos
possíveis sem levar em conta se algum dia esses mundos foram levados à prática ou não.

Se sabemos que esta armadura só coincide com a realidade efetiva em certos pontos específicos, mas
que você pode compor uma outra armadura completamente diferente, que coincida com a realidade em
outros pontos, qual a garantia que temos de que isto tem algo a ver com a realidade ou não? Ora, se
você não é capaz de exercer um juízo crítico a partir do conhecimento que efetivamente você tem do
mundo real e articular isto com os conhecimentos científicos, os conhecimentos científicos perdem
todo o sentido. Eles ficam como armaduras matemáticas de possibilidades que estão boiando no ar.
Dito de outro modo, não há nenhuma maneira cientifica de você articular o conhecimento científico
com a realidade. O que faz esta articulação é exatamente a capacidade racional que o ser humano tem
de raciocinar a partir da sua experiência dos seres concretos e perceber quais são os pontos onde isto se
articula com as conclusões cientificas. Isto é o mesmo que dizer que o conjunto das ciências tomado em
si mesmo e separado da capacidade humana de articulá-lo com a realidade concreta não significa nada
e é absoluto nonsense. E como não há nenhuma maneira científica de fazer esta articulação, só restam
duas maneiras: bom senso e o bom senso de segundo grau, que é a filosofia. É isso o que nos diz o
coeficiente de realidade que está contido no universo inteiro das ciências. Porém, acontece ainda uma
outra característica das ciências. As conclusões científicas têm de ser ratificadas pelo consenso dos
cientistas, isto quer dizer que qualquer conclusão cientifica só é tomada como válida se for aceita pela
totalidade da classe científica. Por exemplo, ninguém, seriamente, conseguiu contestar a física
quântica. Então ela é aceita pela comunidade cientifica, há outros dados científicos que não são aceitos
uniformemente; porém a ciência só tem autoridade total quando, no seu próprio campo, a classe
científica entra num consenso a respeito.
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A ciência é um conjunto de observações feitas sobre qualidades isoladas, observações medidas,


mensuradas, que em seguida são aceitas consensualmente. Mas elas não dizem respeito ao mundo real,
dizem respeito apenas às armaduras matemáticas de certos fenômenos que não são sequer fenômenos,
pois não são observados enquanto fenômenos que aparecem no mundo concreto, mas eles são a
abstração operada em cima de um fenômeno que, por sua vez, só existe abstrativamente em relação a
uma substância. Esta armadura tem validade, autoridade pública, embora ela não diga respeito ao
mundo real. Todo esforço educacional feito hoje no mundo inteiro, praticamente no mundo inteiro, é
para adequar as pessoas a esta armadura hipotética obtida pelas ciências e firmada no consenso da
classe científica. Mas nós acabamos de ver que este conjunto, esta armadura não faz o menor sentido se
não houver alguém capaz de articulá-la com o mundo real, que é uma coisa que a própria ciência não
pode fazer. Ora, esta articulação seria possível ser feita da mesma maneira que a ciência obtém o seu
consenso? Ou seja, você desenvolver a concepção da realidade concreta capaz de validar a ciência no
seu conjunto, e que fosse, por sua vez, universalmente válida para todos? Isto, na prática, é impossível.
Esta articulação, este senso altamente crítico e analítico da realidade concreta, que permite articular a
experiência real, concreta e imediata com os conhecimentos científicos, esta é uma capacidade
individual. Somente o indivíduo pode fazer isso e é uma coisa tão complexa e que ele terá de refazer
tantas vezes no curso de inúmeras experiências, que ele só poderá transmitir aos outros uma parte
ínfima disso, como, por exemplo, o que estou fazendo aqui pra vocês neste momento. Não haverá
tempo de construir uma macro concepção que tenha sobre a totalidade dos seres humanos a autoridade
que a ciência tem. A ciência tem uma espécie de autoridade universal sobre uma coisa que não é a
realidade, mas que são determinados limites matemáticos observados em qualidades soltas, separadas
não só de suas substâncias respectivas, mas separadas até mesmo das circunstâncias concretas onde
estes fenômenos se manifestam. Ou seja, os fenômenos não são sequer estudados em si mesmos, mas
apenas na sua estrutura matemática.

Nós temos aí, evidentemente, dois tipos de conhecimento: [1:20] (a) um que é exato e consensual, mas
que não versa sobre a realidade; e (b) outro que não só versa sobre a realidade tal como efetivamente
experimentada pelos seres humanos, mas que é capaz de articular o conhecimento científico com esta
realidade concreta, sendo que este conhecimento, por sua vez, não pode adquirir uma autoridade
consensual como a das ciências. A mim parece claro que somente este último merece com plenitude o
título de ‘conhecimento’. Porque o outro é apenas uma potência de conhecimento. O conjunto do que a
ciência sabe não basta para reconstituir um único objeto real, então é evidente que o conhecimento de
uma imensa estrutura de possibilidades, sem ancoragem na realidade, não é conhecimento, é apenas
pensamento. É um pensamento altamente elaborado, altamente autocrítico, altamente sério, mas sem
ancoragem direta na realidade. Ao passo que o segundo tipo de pensamento de que estou falando não
apenas absorve este, mas capta a sua ancoragem na realidade. Ou seja, é o momento em que a ciência é
validada pela própria razão humana. A validação racional da ciência não é uma atividade científica; não
há nenhuma ciência que possa fazer isso pelos métodos atualmente admitidos.

É um absurdo que somente um desses tipos de conhecimento de ‘ciência’ e o outro seja chamada de
outra coisa; se ciência quer dizer saber, é aí que está a ciência efetivamente. A outra modalidade
deveria ser chamada de empirismo matematizável, de qualquer outra coisa; ser considerada um aspecto
da ciência.

Mesmo dentro de certas ciências específicas, como a física, o pessoal já desistiu até de obter uma teoria
geral que consiga articular perfeitamente a relatividade com a mecânica quântica. E, dentro da
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mecânica quântica – eu já explique para vocês –, embora os fatos observáveis sejam bem conhecidos e
não haja mais a menor dúvida de que aquelas coisas efetivamente acontecem, você não tem o mais
mínimo princípio de inteligibilidade daquilo; havendo, como eu lembrei, três possibilidades que se
excluem. Primeira: o máximo que se pode fazer é observar certas constantes probabilísticas, quer dizer,
constantes que não são constantes assim, e não se pode ir além disso. Segunda possibilidade: talvez por
baixo de toda essa multidão de constantes probabilísticas exista uma regra ou principio comum que nós
não conhecemos. Terceira: é possível que existam vários princípios incongruentes, ou seja, que nós não
estejamos efetivamente em um universo, mas em vários. Dizer que ter essas três possibilidades é dizer
que você não sabe realmente nada. Você sabe a respeito dos fenômenos, mas eles não têm
inteligibilidade.

Como, para obter todo este conhecimento, a primeira coisa que você fez foi separar as qualidades da
sua substância e passar a considerar as qualidades somente em si mesmas – aí você já rompeu com o
mundo real. E você está dizendo que tudo o que você está estudando são objetos da sua própria
invenção – claro, com uma remota referência a uma realidade, mas sem uma ancoragem firme –, então
é lógico que você só pode exercer esse tipo de atividade, chamada científica, porque fora das suas horas
de exercício profissional científico a sua razão, no sentido comum e corrente, continua funcionando. E
é nela que você confia até para você validar o conhecimento científico. Se, em si mesmo, essa
armadura de conclusões obtidas não tem uma ancoragem efetiva na realidade, mas você continua
acreditando que aquilo é real, é porque você é capaz de fazer esta ancoragem, embora não por meios
científicos. Você faz através da análise da sua experiência, ou por uma aposta que você faz na
racionalidade do conhecimento científico, ou por uma generalização que você faz – generalização que
tem rombos imensos dentro – a partir dos sucessos tecnológicos. Eu já expliquei que, raríssimamente,
um único sucesso tecnológico tem explicação cientifica total. Por exemplo, para você construir
qualquer aparato técnico que seja, você pode juntar ao mesmo tempo elementos que você extraiu de
uma ciência e, portanto, cujo princípio explicativo você detém, com outro do qual você não sabe
absolutamente nada, mas que sabe que funciona na pratica. Vai ter que juntar os dois, e os dois juntos
vão funcionar. Onde quer que aleguem um sucesso tecnológico para fundamentar a ciência, eu digo que
só se você me der um aparato técnico que possa ser inteiramente explicado por um princípio científico,
o que jamais acontece. É sempre explicado ou por vários princípios científicos sem conexão entre si – e
portanto a racionalidade daquele objeto é uma coisa que você só conhece por empirismo prático e não
científico –, ou, ao contrário, você tem até vários elementos ali sem fundamentação cientifica
suficiente, mas com a fundamentação empírica razoável. Por exemplo, quando você vai ao médico e ele
te dá um antibiótico e uma aspirina para baixar sua febre. Por quê? Porque se você for só curar a causa
remota da sua infecção – que é o que o antibiótico está fazendo – isto pode demorar tempo demais, e
enquanto isso a febre mata você, ou queima o seu cérebro. Então, você articula uma coisa
perfeitamente conhecida sem nós sabermos por que os antibióticos funcionam. Nós temos a explicação
científica, mas nós não temos nenhuma explicação científica da aspirina, ninguém sabe porque a
aspirina funciona. O seu tratamento se compõe de um elemento cientifico e de um elemento empírico, e
é a soma dos dois que vai curar você. Se você der só a aspirina, baixa a febre, mas a infecção continua
e você vai morrer. E se der só antibiótico? Depende, com a passagem do tempo, pode ser que a febre
mate você antes do antibiótico poder agir e assim por diante.

Por exemplo, você tem aqui uma imensa usina atômica. Está tudo ali explicadinho de acordo com os
princípios científicos mais arrumadinhos que você possa imaginar. Mas acontece o seguinte: para a
usina funcionar precisa de um treco chamado eletricidade, você a liga e começa tudo a funcionar.
Muito bem, agora me expliquem o que é uma carga elétrica; eles não têm a menor explicação. Então,
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aquele imenso conjunto cientifico funciona graças a um elemento empírico do qual ninguém tem a
explicação cientifica. E tudo em tecnologia é assim. A tecnologia só é possível graças a este elemento
de racionalidade que eu estou falando, que articula a experiência real com elementos científicos, meu
Deus do céu. É isto que produz o progresso tecnológico, e não a ciência em si. Estão entendendo? Ora,
esta capacidade de articular a experiência real, concreta, com a armadura das conclusões científicas é
aquilo que se exerce no senso comum, e é aquilo que se exerce de maneira excelsa e de maneira
aperfeiçoada na filosofia. Porque a filosofia é uma meditação sobre o conhecimento efetivo, e o
conhecimento efetivo nunca é dado só pela ciência, ele sempre precisa de um algo mais, que o valide
no campo da experiência real. Essa articulação não se pode fazer de maneira total e sistemática, não é
possível fazer, como os filósofos do tempo clássico – 1500, 1600 –, um sistema de teses que articule
estas duas coisas de uma vez para sempre e obrigatório para todo mundo. Note bem: no tempo de
Platão e Aristóteles já sabiam que isso era impossível. Mas, alguns cientistas e filósofos, a partir da
Renascença [1:30] acreditaram que era possível criar o que eles chamaram de “o sistema”. O sistema
seria uma série de teses, racionalmente, logicamente fundamentadas, que iriam dar a razão de todas as
coisas e dar razão inclusive dos conhecimentos científicos. Hoje nós sabemos que não dá pra fazer isso.
Você não pode reduzir o universo a uma seqüência de teses, nem científicas, nem filosóficas. Por que
você não pode? Porque qualquer sistema se baseia apenas em afirmações gerais, e muitas vezes esta
articulação a que me refiro não se fundamenta em afirmações gerais, mas no conhecimento de um
objeto concreto, ou de uma situação concreta. Isto é uma coisa que só o individuo pode fazer, o
indivíduo humano real.

É por isto que preparar pessoas para o exercício de uma tarefa de pesquisa científica é uma coisa, e
prepará-las para o exercício da filosofia é completamente outra. Quando se prepara o indivíduo para a
ciência, você o está preparando para participar de uma atividade padronizada na qual todos os critérios
de validação já estão dados. Ou seja, você vai adequar o indivíduo a uma autoridade consensual e
coletiva. Em filosofia não tem como se fazer isso. Se você, durante a sua vida inteira, conseguir
produzir essa articulação que estou mencionando, para um determinado número de casos que estão em
evidência, ou que são importantes durante parte da sua vida, já fez muito. No dia seguinte ao que você
morrer irão surgir outros problemas. Porque esta articulação varia conforme varia a experiência
humana. Quer dizer, a articulação entre o que eles chamam de ciência – eu chamaria de empirismo
matematizável – e o senso da realidade nunca está pronta. Ela tem de ser feita e refeita em cada
geração, porque as descobertas do empirismo matematizável aumentam, e as situações histórico-
sociais, culturais e até naturais mudam. Então, toda hora isso tem de ser costurado novamente. Quando
se perde esta costura e se cai nessa ilusão de que a própria ciência possa fazer uma concepção
universalmente válida de tudo, então você está completamente maluco. Porque isto é o mesmo que
dizer que você, sem levar em consideração nenhuma substância real e apenas medindo abstrações de
propriedades isoladas, você vai chegar a compreender o mundo. Veja, a função da ciência não é
compreender o mundo; ela não pode compreender o mundo de maneira alguma. Quando o cientista diz
para você que ele admite que existem limites ao conhecimento científico, ele está sendo muito
presunçoso. Porque não é que o conhecimento científico tem limites, ele é um conjunto de limites.

Toda investigação científica começa quando você consegue delimitar uma propriedade, separando-a de
tudo o mais. E mais ainda: você não vai nem observar esta qualidade separada sob todos os seus
aspectos, mas só sob um ou dois. E somente levando em conta os elementos matematizáveis. Então
você veja que a separação que se opera entre a realidade concreta e o conhecimento científico é imensa.
O mesmo objeto, a mesma qualidade, o mesmo objeto além de ter milhares de outras qualidades, se
você separa uma única qualidade, esta mesma qualidade pode ser observada sob uma infinidade de
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pontos de vista, dos quais cada ciência pega um. A possibilidade de você recompor um único objeto a
partir dos dados científicos é nula; a possibilidade de compor um universo também é nula. O que se
pode fazer é um modelo matemático de um universo possível, só que você jamais vai saber se esse
modelo matemático se realizou ou não.

Não há nada mais estúpido do que a presunção do empirismo matematizável de constituir a ciência, ou
mais ainda a única ciência possível; ou de poder dispensar outras modalidades de conhecimento. Isto aí
é uma coisa absolutamente intolerável do ponto de vista racional. É a mesma coisa que dizer: “nós não
precisamos do conhecimento de nenhuma substância individual, não precisamos de nenhuma
experiência real. Nós precisamos apenas da mensuração científica de certas qualidades tomadas em
separado”. Isto é, evidentemente, loucura.

Notem que os recentes episódios de fraude científica começaram a se multiplicar, de maneira cada vez
mais assombrosa. E o estranho é que eles não tivessem aparecido antes, porque eles já estão dados na
própria proposta científica inicial. Se se estuda os primeiros que raciocinaram sobre os métodos
científicos, você vê que aquilo ali já vem com tanta encrenca dentro, com tantos pressupostos mal
explicados, com tantas imposições arbitrárias que era inevitável que um bom coeficiente de falsificação
estivesse presente ali desde o início, e estava mesmo. Quando vocês vêem que a própria imagem da
ciência, quer dizer, do empirismo matematizável, como uma atividade puramente racional e
inteiramente idônea, imune a preferências subjetivas e compartilhada por toda uma comunidade,
quando se formou isto aí, já se formou na base da fraude. Já se formou na base da ocultação, porque
esta imagem foi feita sobretudo em cima da pessoa de Isaac Newton e foi feita mediante ocultação
proposital de quase toda carreira intelectual de Newton. Isso quer dizer que o pessoal da Royal Society
que produziu essa imagem sabia que estava mentindo e criando, com isto, a idéia de um sacerdócio, de
um clero infinitamente idôneo, objetivo e capaz de dar uma explicação racional para todos os
fenômenos do mundo. Mas é claro que isto é fraude! E me espanto que pessoas razoáveis tenham
podido agredir nisto por um único minuto que seja. Porque, por mais idônea que seja esta atividade, ela
não tem a conexão com o mundo real, e esta conexão com o mundo real vai ter de ser feita por outros
métodos que não são os dela. Portanto, vamos supor que se todas as ciências sejam absolutamente
idôneas, as conclusões gerais que as pessoas vão tirar dela não são científicas; conclusões que os
próprios cientistas vão tirar não são cientificas e terão de ser validades por outros métodos que não
estão ao alcance da fiscalização científica. Então, no mínimo, eles estão exercendo uma autoridade
integral em nome de uma autoridade muito parcial que eles têm para um campo especificamente
limitado.

A fraude já estava na formulação inicial. A idéia de você separar um determinado método e rejeitar
todas as outras modalidades de conhecimento em nome disso já era fraude no início. Então, que isso
acabasse proliferando a fraude geral, era uma coisa mais ou menos inevitável, e achei quase um milagre
que isto não acontecesse antes. Mas as fraudes sempre acompanharam a história científica e,
curiosamente, a história da ciência não inclui essas fraudes, inclui somente os sucessos da ciência.

Eu vou ler aqui umas observações que tomei, partindo de um parágrafo de Jean Daujat, ele foi um
físico, filósofo francês, ele tinha três funções: físico, filósofo e apologeta cristão. Diz ele:

“Como a física é essencialmente ciência do mundo sensível e ciência dos fatos, e como ela repousa
inteira sobre a observação e a experiência, como ela não estuda senão os fenômenos sensíveis e
observáveis, as pessoas são geralmente levadas a crer que o objeto que ela busca e que ela consegue
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conhecer intelectualmente é o mundo sensível, [1:40] são os corpos, os fatos, os fenômenos sensíveis. Um
pouco de atenção refletida logo mostra que não é nada disso. Que a física, como toda ciência humana,
conhece não um objeto real e sensível, mas um objeto inteligível, que não tem realidade senão no
espírito que conhece. Um objeto que não pertence ao mundo sensível, mas ao mundo das abstrações; um
objeto que não é um ser individual – como todas as coisas sensíveis e reais – mas uma essência
universal. O geômetra nos falará de linhas absolutamente retas, de planos perfeitos, de curvas sem erros;
o físico de corpos absolutamente rígidos, ou absolutamente elásticos, ou ainda de gases perfeitos; o
químico nos falará de corpos perfeitamente puros etc., afirma a Dra. Helene Metzker, no livro Le
Conception Scientifique.”

Outra citação:

“É a abstração que fornece as noções de número, de linha, de superfície, de ângulo, de massa, de força,
de pressão, escreve Pierre Duhem, em La Théorie Physique.”

Continua o Daujat:

“Massa, força, pressão, sólido indeformável, gás perfeito, corpo puro do químico, outros tantos objetos
inteligíveis não são nem coisas nem fatos sensíveis; o físico está sempre a busca de uma noção abstrata.”

Ele tem toda a razão. Mas se fosse só esse o problema, não seria um grande problema. Porque todo o
conhecimento humano é obtido através da abstração; o problema é a separação entre os dois tipos de
abstração. Uma é abstração, repito, que capta a forma inteligível de um ente concreto e o nomeia
segundo a sua espécie. Espécie da qual ele na sua diferenciação individual não é senão uma
manifestação possível inteiramente compatível com a essência geral da espécie. Portanto, aí você tem
uma subida do nível de abstração sem separação do mundo concreto. Mas, quando nós tomamos uma
qualidade, que não existe em si mesma, e além de separarmos a qualidade, só a estudamos sob os
aspectos delas que são matematizáveis – e mesmo assim, não todos os aspectos matematizáveis, mas só
aquele que o cientista quer observar em particular – aí você fugiu completamente do mundo concreto.
E o que você vai obter no fim é um esquema de limites, que descreve o comportamento de certas
propriedades consideradas sob determinados ângulos. E a soma desses ângulos não vai recompor nem o
universo e muito menos um objeto concreto qualquer que seja. Porque no objeto concreto, a primeira
coisa que o primeiro tipo de abstração nos dá é uma diferença que tem de ser pressuposta em todo o
conhecimento científico, e que nenhum conhecimento científico pode justificar, que é a diferença entre
essência e existência.

Quando nós chamamos um gato de “gato”, já estamos entendendo o que é a essência gato. Mas nós
estamos captando esta essência onde? Na existência, no gato efetivamente existente. Isto é uma coisa
que só o ser humano pode fazer, os animais não podem. O ser humano pode captar o universal no
individual concreto. Ora, captar o universal em si mesmo qualquer computador faz. Você coloca um
conceito universal e ele tira um monte de deduções. Agora, nenhum computador pode distinguir entre o
conceito geral de uma espécie e a existência ou não do ente que a manifesta. Isso somente o ser
humano pode fazer. E isto, de fato, é a capacidade intelectual mais alta. As outras capacidades todas
são idealmente mecanizáveis. E o ideal mesmo da ciência é reduzir-se inteiramente a observações
mecanizáveis, sem participação humana. Quanto mais observações e mensurações possam ser feitos
por máquinas, sem a participação direta humana, sem interferência direta humana, tanto mais o
praticante da ciência respectiva diz que ela está evoluída. E essas observações e medições, por mais
exatas que sejam, estão a léguas de distância da distinção fundamental que é de essência e existência.
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Isso quer dizer que somente a razão, a capacidade racional, de um ser humano concreto, existente, de
carne e osso, vivo, pode operar esta junção e validar o conhecimento científico em face do mundo real.
Isto é precisamente a ocupação da filosofia. Validação que implica também a consciência das
limitações recíprocas. Sob que aspecto e em que circunstâncias tal ou qual conhecimento científico é
válido para a situação concreta, e quando ele não é? Não há meios científicos de operar essa
diferenciação. Para cada caso é um caso, e somente a razão do indivíduo concreto vivente pode operar
isto. Ora, formar a pessoa para exercer esta função é completamente diferente de formá-la para exercer
uma ciência.

Para exercer uma ciência, existe uma outra diferença importante. Um cientista não precisa acreditar no
que a ciência dele está dizendo. Ele pode até encarar tudo aquilo como um jogo, que não fará a mais
mínima diferença na prática. E ele não pode acreditar precisamente porque acreditar é dizer que alguma
coisa é real, é verdadeira. A ciência não tem nada a ver com o real e com o verdadeiro, ela tem apenas a
ver com o exato. Aquelas conclusões científicas, a veracidade delas está na sua exatidão e na sua
coincidência com certas observações muito particulares e muito limitadas operadas não só em cima de
qualidades separadas, mas de aspectos dessas qualidades. Em última análise, se trata de uma certeza de
ordem meramente formal, cujo vínculo com a realidade é muito remoto e que, portanto, não pode
implicar uma crença, ou seja, uma crença de que as coisas são realmente assim. O cientista deve dizer :
“Observado sob este aspecto, sob este ângulo, com este critério, com estas limitações etc. etc. tal coisa
parece verdadeira.” Isso é o máximo que a ciência pode dizer. O tipo de responsabilidade intelectual
que se exige de um cientista é o contrário do que se exige de nós, dos filósofos. Ele tem de ser apenas
idônea em suas observações e cálculos e não precisa saber qual o nível de veracidade daquilo que está
dizendo, portanto não precisa saber qual o nível de credibilidade. E todo critério de credibilidade
científica só vem do consenso. O cientista que diz que aquilo que ele está dizendo é verdadeiro não
quer dizer que ele acredite naquilo, que aquilo é real. Quer dizer que o consenso da comunidade
científica aprovou os métodos e critérios que ele usou para aquilo, é só isto que ele está dizendo. Em
geral, os conhecimentos científicos jamais são suficientes para fundamentar uma decisão humana,
porque as decisões humanas são tomadas no campo da realidade, e não no campo do hipotético;
implicam uma responsabilidade efetiva no campo histórico, social, cultural, moral etc. etc.

Como nós podemos fazer a conversão dos conhecimentos científicos em afirmações válidas que
sustentem e justifiquem decisões? Será a preferência individual? Mas, se em ultima análise, tudo vai
depender da preferência individual, então ai que a ciência não fará sentido algum. É preciso então haver
um critério de racionalidade para esta conversão. Só que este critério de racionalidade, pelo que nós
vimos, pelo que a experiência dos séculos nos assegura, nunca é definitivo e estável, é sempre parcial, é
sempre limitado. Preparar as pessoas para exercer esta função é prepará-las para exercer a função mais
alta que um ser humano pode exercer. É prepará-las para a responsabilidade intelectual integral. [1:50] E
foi em vista disso que eu comecei a trabalhar, muitos anos atrás, nessa articulação da idéia de certeza
científica hipotética com a responsabilidade intelectual e moral real do indivíduo concreto. Este é que o
grande problema. Se você observar ao longo do século XX, onde houve um aporte imenso das ciências
e da tecnologia à produção de acontecimentos históricos – alguns de natureza auspiciosa, outros de
natureza trágica –, e você for ver os dramas morais em que os cientistas se envolveram, em geral as
discussões a respeito disso foram de um amadorismo terrível. O foco mesmo do problema que é a
articulação de uma certeza hipotética com a decisão real no campo da responsabilidade humana é um
problema terrificante. Em geral, as pessoas apelam a critérios morais que foram obtidos por outros
meios completamente diferentes, por exemplo, a moral religiosa. Mas se a moral religiosa, quando foi
concebida, não havia este problema. Quando Moisés baixou do monte Sinai com os dez mandamentos,
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não existia este problema, ou pelo menos não existia nas dimensões que ele existe hoje. Mesmo que eu
acredite nos dez mandamentos, eles não vão me dar a reposta automática disto. Ou seja, eu vou precisar
desenvolver uma técnica para isso. E foi tentando resolver este problema que concebi o que chamo de
método da confissão. Onde o conjunto dos conhecimentos é filtrado para você obter aquele pequeno
núcleo pelo qual você pode responder integralmente, aceitando toda a responsabilidade cognitiva e
moral pertinente.

Tendo em vista esse parágrafo do Jean Daujat, no livro admirável, que se chama L’ouevre de
l’inteligence em physique (A Ação da Inteligência na Física), onde ele reflete sobre a sua carreira de
físico, como que especificamente a inteligência opera ali. Ele começa por colocar esta observação que
nenhum cientista contestará de que nenhuma ciência lida com objetos reais, mas com objetos abstratos.
Porém, o que o Daujat não disse, e que eu comecei a pensar a partir daí: “sim, abstração, mas qual
delas?”. Há pelo menos dois níveis de abstração: aquela que abstrai de um ente a sua forma inteligível,
a qual não é separada dele, mas está nele e é a própria forma dele; e a outra abstração, que separa uma
qualidade da sua substância e passa a lidar com a qualidade, e não só com ela, mas com certos aspectos
da qualidade, e não só com aspectos da qualidade tomadas da experiência real, mas só com os aspectos
matematizáveis pertinentes aquela ciência em particular. Então eu tomei as seguintes notas:

“Mas há uma diferença radical entre esse tipo de abstração e aquela que fazemos ao apreender a forma
inteligível de gato na presença sensível de um gato individual, ou quando chamamos de árvore a árvore
que vemos. Nesses casos, a forma inteligível que apreendemos é a de substâncias individuais reais,
tomadas naquilo que têm em comum com outras substâncias da mesma espécie, sem confusão entre
espécie e individuo e sem separação efetiva.(...)”

Quando se chama o gato de “gato”, você não está falando da “gaticidade”. Você está falando de um
gato individual e concreto que tem todos atributos da sua espécie, sem faltar nenhum. Mas que ao
mesmo tempo, só os manifesta sob uma forma específica que é aquela que ele manifesta fisicamente.

“(...) A abstração científica é de tipo totalmente diverso, ela não distingui e classifica substâncias reais
(...)”

Se bem que há no começo de toda ciência uma certa atividade classificatória

“(...) ela separa de uma substância tão somente uma qualidade ou acidente e passa a observá-los em si
mesmos sem voltar a referir-se a substância. (...)”

A noção de substância individual não tem correspondente em nenhum conceito científico do universo.

“(...) Ora, as substâncias individuais existem, elas são o próprio mundo real. Também existem as
espécies, como ordem de similaridades estruturais observáveis no mundo real. Mas as qualidades e
acidentes não existem substantivamente: nenhuma substância pode ser recomposta apenas da soma das
suas qualidades e acidentes excluída a forma inteligível. (...)”

Ora, o cientista que estuda, por exemplo, a iluminação de uma superfície branca que ele observou na
parede, no pelo do gato, numa vaca, qualquer coisa assim, ele sabe perfeitamente que existe a forma
inteligível; ele não usa esta noção na sua atividade científica, mas está sentado nela. Tudo o que ele diz
só faz sentido se ele for capaz de apreender forma inteligível. Mas, ao mesmo tempo, forma inteligível
não é um conceito científico, não corresponde a nenhuma ciência em particular e não tem como
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justificá-la nem pela física, nem pela química, nem pela matemática, nem por coisa nenhuma, mas
somente pela razão humana tomada na sua plenitude.

“(...) As qualidades e acidentes também têm suas próprias formas inteligíveis, é claro, se não nada
poderíamos dizer deles. (...)”

Mas é claro, não são formas inteligíveis de substâncias: o branco do muro é inteligível, mas ele só é
inteligível como qualidade de uma substância, não como uma entidade independente. Como entidade
independente ele só existe na cabeça do cientista.

“(...) Mas são as formas de aspectos parciais e não de coisas e só são inteligíveis na medida em que
sabemos que não existem em si mesmo, mas só nas coisas e substancia. (...)”

Claro, o branco do muro, a partir da hora que você começar a pensar que ele existe em si mesmo, você
já não o está inteligindo, você pegou uma simples essência e está tomando a essência como se fosse
uma substância. O que é a essência? É a definição da coisa, mas a essência nunca existe em si mesma,
ela só existe no objeto existente.

“(...) Há aí, portanto, duas modalidades de abstração. (...)”

Então aqui perguntam:

Aluno: Ter alguma cor, assim como alguma altura, é propriedade do muro?(...)

Olavo: Sim.

Aluno: (...) É a cor específica e altura específica são acidentes?

Olavo: Exatamente.

Se o animal tem pêlo, então o pêlo tem de ter alguma coisa, mas que ele tenha esta cor ou aquela cor,
não está definido. Existe uma coisa que é importantíssima, é bom você lembrar disto aqui. Essa é uma
das coisas mais sutis que existe na teoria da percepção. Você sabe, por exemplo, que os animais de uma
determinada espécie podem ter várias combinações de cores. Para se ver um gato, o gato pode ser
branco, pode ser preto, pode ser marrom, pode ser rajada, pode ser malhado, pode ser pintadinho, várias
possibilidades. Como é que você faz para saber isso? Você tem de observar vários gatos e chegar à
conclusão de que existe gato tal, gato tal etc.? Quando você vê uma flor, também sabe que a flor pode
ter várias cores, mas é preciso você ter visto todas as flores, ou um número imenso de flores para saber
que as flores podem ter cores em número praticamente ilimitado e os gatos não? Se fosse isso, nós
jamais chegaríamos a essa conclusão. Isto significa que existe na forma do gato individual algo que
limita a possibilidade de variação cromática do gato, e você percebe isso no primeiro gato. Se o
primeiro gato for branco, você pode imaginar que ele seja preto, ou rajado, ou malhado, mas não azul
com bolinhas. Eu não sei de onde nós tiramos este conhecimento, mas que ele existe eu sei por
empirismo. Por que eu sei? É porque a cor do animal não é uniforme; cada cor tem as outras cores ali
embutidas. Então, se você está vendo gato branco, ao mesmo tempo você está vendo o gato cinzento,
preto etc. está tudo embutido ali de algum modo. Em um gato, você já viu a variação toda daquela
espécie. [2:00] Existe uma harmonia na forma da espécie que você percebe na primeira. Perceber a forma
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individual do ente, percebê-la como forma inteligível já é, de certo modo, antever toda a gama de
possibilidades de variação que aquilo tem. Não quantitativamente, mas digamos que você está aberto
àquelas possibilidades de variação, e não está aberto a outras.

Do mesmo modo, quando você nasce, você começa a ver seres humanos; e esses seres humanos tinham
alguma cor, algum tamanho, uma certa quantidade de cabelos, e dificilmente existam duas pessoas que
sejam exatamente da mesma cor. Então você já começou a ver variação cromática desde a hora em que
nasceu. E, por imaginação, você pode conceber outras variações cromáticas, mas não todas. Por
exemplo, em Curitiba, quase não há negros; quando eu levei lá o meu amigo Ronaldo Alves, tinham
umas crianças que olhavam para ele, pensavam um pouco, até encostavam a mão assim pra saber.
Agora, se eu levasse um homem azul, eles sairiam correndo. Um homem prateado, eles ficariam
aterrorizado. Por mais estranho que seja a diferença de cor, uma diferença de tamanho – podemos supor
até um homem de três metros, mas não um de 45 metros, ou de 2 centímetros. Você sabe que existe
uma variação tolerável. Essa variação está dada harmonicamente na forma mesma da espécie tal como
ela se manifesta no indivíduo singular. Se não fosse isso, nós não teríamos sequer a noção de
estranheza.

Isto é uma coisa que ainda precisa ser bastante estudada, que é uma espécie de senso estético imediato
que nós temos na apreensão das formas, sem o qual não apreenderíamos forma nenhuma. Isso quer
dizer que a apreensão de qualquer forma inteligível num ente individual pressupõe uma capacidade
estética que é comproporcional à forma percebida. Isso foi muito pouco estudado até hoje. E foi por
não ter sido estudado que as pessoas começaram a achar, sobretudo no século XIX, os estudiosos de
psicologia e teoria do conhecimento fizeram uma confusão desgraçada entre a formação lógica dos
conceitos – a fundamentação lógica dos conceitos gerais –, e o modo psicológico pelo qual
efetivamente nós os formamos. E acreditaram piamente que os conceitos gerais são criados pela
observação de vários exemplares similares. Eu observo um cavalo, outro cavalo, daí eu formo o
conceito de cavalo. Mas isto é impossível! Como eu sabia, entre o primeiro cavalo e o segundo, o que
do primeiro eu deveria comparar com o segundo. Quando eu olho o primeiro, já tenho o esquema, e
este esquema que eu comparo com o esquema do segundo; e este esquema já é a forma inteligível da
espécie cavalo. A forma inteligível, o conceito geral, é observado no primeiro exemplar que você pega,
não precisa dois nem três. Ou seja, nós não formamos conceitos gerais por indução, nós formamos por
um senso estético imediato. E, no entanto, ainda tem um monte de manuais de lógica e psicologia que
confundem a estrutura lógica da indução com a estrutura efetiva da percepção das formas inteligíveis
nos entes individuais.

Esta capacidade humana de pegar o universal no individual sem separá-los é a magia do conhecimento
humano. Porque só os universais um computador pega. Pegar só os entes singulares, até uma formiga
pega. Mas perceber que um ente individual, ele que está ali presente, não é só ele, mas uma potência de
desenvolvimento que pode assumir milhares de formas diferentes. Nós sabemos isto na primeira, sem
que ninguém tenha nos ensinado. Isto é um milagre! Basta você perceber que a inteligência humana
tem esta propriedade para você entender que toda tentativa, seja de escravizar a nossa razão à
percepção sensível imediata, ou toda tentativa inversamente de separar uma coisa da outra, não
funciona, está errado. Nós nunca vivemos num mundo sensível do qual nós abstraímos idéias gerais.
Nós já vivemos dentro de um mundo de idéias gerais desde a primeira percepção sensível que nós
temos. Nós vivemos na esfera do universal – o pessoal fala “não existe universal concreto” – nós
vivemos no universal concreto, me Deus do céu! O tempo todo. Se não, não poderíamos ter o universal
abstrato. Se o ente que aparece pra mim é somente um ente singular sem nenhuma forma inteligível
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universal nele, como é que eu poderia criar esta forma universal por mim mesmo? Tudo isto é um
absurdo. Muitas vezes, o pessoal, se baseando em Aristóteles, interpreta Aristóteles de uma maneira
totalmente absurda. Esta história da indução eles tiraram de Aristóteles, mas isto não está em
Aristóteles, eles que botaram lá! Aristóteles não era idiota para pensar uma coisa destas! Quando ele
diz que as formas platônicas existem, mas não separadas, não noutro mundo, e sim neste, ele já está
dizendo “cada ente individual traz em si a sua forma inteligível inteira.” E se eu não perceber essa
forma inteligível no primeiro, eu não poderia obtê-la por comparação com o segundo, com o terceiro,
com o quarto, porque eu não teria o critério da comparação. A seleção de elementos que eu pego no
primeiro indivíduo para comparar com os do segundo, isto já é a forma inteligível que está lá.

“(...) Há, aí, portanto, duas modalidades de abstração, numa delas consideramos o ente individual não
somente em si mesmo, mas naquilo que tem em comum com outros da mesma espécie. (...)”

E tudo isto já está dado no primeiro, não é preciso dois para fazer essa comparação.

“(...) Na outra, consideramos uma qualidade ou acidente separadamente de qualquer substância real. No
primeiro caso, as qualidades e acidentes são abstraídos só nominalmente, porque está implícito na
definição da coisa que ela pode ter todas as qualidades, sofrer todos os acidentes que sejam compatíveis
com a sua essência. Uma parte das qualidades, que denominamos propriedades, pode mesmo ser
deduzida dessa essência por simples análise, estando, portanto, contidas nela. Os acidentes não podem
ser deduzidos a priori, por serem em número ilimitado, mas uma vez descobertos revelam que são
logicamente compatíveis com a essência, caso contrário não poderiam atingi-la. Já na segunda
modalidade de abstração, a qualidade separada é considerada apenas em si mesma. Aí não somente nos
afastamos do mundo sensível imediato, mas de toda idéia de substância, sobram-nos apenas os esquemas
abstratos e uma aparência fenomênica que, separada da substancia, não existe de maneira alguma. Mas
esta aparência não é sequer considerada em si mesma, e sim somente no recorte matematizável que o
cientista opera em cima dela.”

Tomada em seu conjunto, o que é a ciência física? É um conjunto de limites matemáticos observados
em determinadas qualidades sensíveis e focadas sob certo aspecto determinado. E só isto. Não é um
conhecimento da realidade. E só vale se ele for articulado com a realidade, coisa que a própria ciência
não pode fazer. Daí se conclui que a formação das pessoas por uma dessa atividade para outra é
completamente diferente. [2:10] No caso da ciência, nós temos de amoldar a mente do cidadão aos
procedimentos padronizados aceitos pela comunidade; e quanto mais ele se adapta, melhor estará
funcionando. Sendo que, no final, ele não precisa acreditar em nada daquilo; é como um papel social
que ele representa em certas circunstâncias, sendo que na sua vida real ele pode tomar decisões que não
tenham nada a ver com aquilo, ou que sejam até desmentidas por aquilo. Porém, para prepararmos as
pessoas para fazer a articulação de uma coisa com a outra, nós precisamos da responsabilidade
individual e da consciência individual, puxadas até o máximo de suas possibilidades. Porque aqui não
se trata só de representar um papel, mas de efetivamente crer em alguma coisa, ou descrer de alguma
coisa. É por isso que o ensino da filosofia não é um ensino disciplinar, como o de ciência. Nós não
temos que amoldar você a nenhum conjunto de procedimentos padrão aceito por uma coletividade. Nós
temos que qualificar você para que você sozinho consiga, com o máximo senso de responsabilidade
cognitiva, histórica, social e moral, separar do conjunto daquilo que é, que se imagina conhecido no seu
momento histórico, o que é realmente crível do que é apenas pensado. É isto que é a filosofia.
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Aluno: Como é possível manter uma sintonia tão profunda entre aluno e professor ao ponto, mesmo
que o senhor não tenha consciência dos temas e assuntos que me chamam atenção durante a semana,
curiosamente o senhor os expõe na aula.

Olavo: Você é a milésima pessoa que me diz isso: “Eu estava pensando exatamente isso, e você deu na
aula!”. Isto é sinal de que nós estamos formando realmente um contexto social apropriado. Onde existe
uma antecipação das preocupações comuns. À medida que o tempo passa, isso vai até se aperfeiçoar, e
é o que deve acontecer. Também, quando você tem, num país ou numa circunstância qualquer onde
você uma classe letrada suficientemente preparada, existe uma convergência de atenção sobre certos
temas, certos símbolos; e as pessoas se antecipam, isto é o que deve realmente acontecer, isto é o
normal. O meu falecido amigo e mestre, Juan Alfredo César Muller, enfatizava muito o quanto as
funções humanas dependem da capacidade de adivinhação, que se você perder, você entra num quadro
de “despersonalização epilética”, você não percebe as coisas que estão acontecendo. A adivinhação é
um dos processos normal do ser humano, todo mundo tem de ter uma boa quantidade.

Agora, voltando aqui um pouco à pergunta do Athos Barbosa. O que fazer com pessoas idiotas,
palpiteiras, etc. etc.? Em primeiro lugar, eu queria enfatizar que, ao longo da vida, você tem de escolher
as suas companhias. O Dr. Leopold Szondi dizia que a escolha faz o destino. E as escolhas principais
são as suas escolhas de profissão, a sua escolha do cônjuge, a sua escolha dos seus amigos e a escolha
do tipo de morte. Quanto às outras, nós vamos conversar depois, mas a escolha dos amigos... Veja,
quando Santo Tomás de Aquino diz que a amizade consiste em querer as mesmas coisas e rejeitar as
mesmas coisas, ele está falando evidentemente numa unidade de propósito, unidade da meta da vida.
Ora, qualquer pessoa cuja meta na vida seja de ordem exclusivamente material, econômica ou social,
não serve para vocês, e vocês devem sumariamente se afastar dessas pessoas. Por quê? Existe uma série
de coisas na vida que, embora sejam necessárias para nós, pelo simples fato de serem necessárias, elas
não podem ser metas. Por exemplo, você precisa de uma casa, você precisa comer e beber, você precisa
descansar, você precisa casar e ter filhos, você precisa de um emprego. Tudo isto são coisas necessárias
à subsistência. Ora, aquilo que é necessário à subsistência não pode ser, ao mesmo tempo, o objetivo da
existência. O objetivo tem de estar muito acima de tudo isto. E todas estas coisas – esses outros
elementos – vêm a nós como coisas que ora nos ajudam, ora nos atrapalham; mas, a partir do momento
que o individuo as colocou como meta da existência, ele já cortou toda ligação que possa ter e haver
entre ele e o sentido da existência. O ser humano, nós acabamos de ver, é o bicho que tem a capacidade
de perceber o universal no particular. A missão dele, a função dele está determinada por isto. O homem
é o animal criado para descobrir o que está além dele, o que está além do mundo sensível e para ele
realizar o seu destino nesta esfera. Ninguém tem o direito de não querer isto. Se o sujeito disser “Ah, eu
quero casar e ter filho, quero ter um bom emprego, quero ter isto, ter aquilo”, tudo isso são meios para
a existência. Então, se você nota que o objetivo do indivíduo está colocado nessa esfera, mesmo que ele
diga “eu quero ser um escritor”, “quero ser um poeta”, “quero ser um pintor”; o nome do que ele está
dizendo é uma coisa socialmente relevante, mas, mesmo aí, ele está na esfera puramente material.
Lembrem daquele pedaço da “Túnica e os Dados”, que o menino foge de casa, o Jaiminho foge de
casa, e deixa o recado pra mãe: “Mãe, fugi para o Rio de Janeiro, eu sinto em mim o borbulhar do
gênio”. Se a pessoa não sente em si o borbulhar do gênio – gênio não quer dizer que ela vai ser um
grande pintor – não, quer dizer que ela vai descobrir que está voltada para o mistério da existência; ela
quer saber o que está para lá. Se a pessoa não tem isso, sumariamente afasta-se destas pessoas. E as
trate, evidentemente, com respeito, com deferência, mas com a distância devida. Porque estão abaixo
daquilo que é estruturalmente exigido do ser humano. Esse é que é o princípio da distinção das castas.
Embora, na Índia, a noção das castas tenha se cristalizado numa compartimentalização social, nós
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temos que entender que as castas existem como diferenciações individuais humanas, mescladas em
todas as classes sociais. O sujeito pode ter nascido na maior pindaíba, não ter nada, e estar focado no
objetivo mais alto da existência; e o outro pode ter nascido em berço de ouro e ser um pateta que está
voltado somente para o estômago, para o sexo, para essas besteiras.

Pensa assim: se uma coisa é necessária para a sua subsistência ela é um meio de subsistência; então se
ela é um meio, não pode ser um objetivo. O objetivo tem de ser, necessariamente, aquilo que não é
meio, aquilo que é a justificação, a finalidade e não tem de servir pra nada. Agora no intervalo, a
Roxane me perguntou qual é a relação de isto que você está falando com a idéia da forma humana,
sobretudo na famosa sentença “O Homem é a medida de todas as coisas”. Ora, se o homem é o único
ser capaz de apreender o universal no singular, e não há nenhum outro ser ao qual nós podemos olhar
em torno para que nós possamos nos medir por ele, então significa o seguinte: a percepção humana tem
uma validade universal em si. E ela é, de fato, a medida de todas as coisas. Aí, temos de entender
aquilo que já está no livro do Gênesis, o ser humano é colocado no centro da realidade – o jardim do
Éden está colocado no centro do Mundo. A medida humana, que justamente nisso reflete a imagem
divina é, de fato, o eixo de construção do universo. A percepção que o ser humano tem das coisas não é
nivelável à percepção que os animais têm. A nossa dá a medida da percepção deles; nós podemos
entender como um urso percebe, ou como uma formiga percebe, ou como um coelho percebe, e eles
não podem saber como nós percebemos e não podem sequer se compreender uns aos outros. [2:20] O
conjunto das espécies animais só se unifica coletivamente no ser humano. O ser humano percebe como
ele próprio e consegue recriar os mundos subjetivos percebidos por essas várias criaturas e articular
numa totalidade coerente. A idéia de colocar em dúvida... As famosas objeções da escola cética com
relação à percepção humana são uma besteirinha perto disto. Não são nada, são erros acidentais. Aliás,
cada objeção cética colocada afirma a capacidade de percepção humana infinitamente mais do que ela
nega. Quando o sujeito diz, por exemplo: “Nós sabemos que existem erros de percepção. A percepção
erra muitas vezes”. Como você sabe isto se não por percepção. Você é capaz não apenas de perceber os
objetos, mas é até capaz de perceber erros de percepção. Quando o outro chega e diz para você “O
raciocínio de indução é falho”. Como é que você sabe isso? É por indução.

Aqueles negócios da escola pirrônica, que no Brasil tem meia-dúzia de idiotas que idolatram aquilo, é o
Mobral da filosofia. Se você não é capaz de passar pelas objeções da escola pirrônica e neutralizá-las
todos em dez minutos, você está muito no começo. São apenas jogos de palavras, não quer dizer
absolutamente nada. Mas quando você vai observar as coisas como elas realmente são, então me diga
que outro animal que você conhece, ou outro ser qualquer, é capaz de captar o universal no singular.
Nem mesmos os anjos, meu filho. Por isso que a Bíblia diz que Deus colocou o homem até mais alto
que os anjos sob certos aspectos. Nós temos de ter respeito pela percepção humana, porque ela é, de
fato, a medida do real universo objetivo. O pessoal científico hoje costuma dar a idéia assim: “Todo
mundo vive na ilusão, no mundo sensível etc., só nós cientistas conhecemos a estrutura invisível
interna”. Isto é uma besteira fora do comum! Como Arthur Eddington que chegava e dizia: “Vocês
estão vendo isto aqui? Parece uma mesa, mas na verdade é aglomerado de átomos”. Mas que besteira,
professor! Isto que, visto na escola microscópica, parece um aglomerado de átomos, visto nesta escala,
parece uma mesa, você não acha? E por que o microscópico tem um privilégio gnosiológico que o
macroscópico não tem? Qual é a justificativa? Só porque é menorzinho é mais verdadeiro? Que
estupidez é essa? É um raciocínio pueril feito por um sujeito que é um grande cientista. Arthur
Eddington não tem a menor idéia de como articular a física dele com a realidade. Enquanto estava
falando de física, estava tudo bem; quando começa a falar da realidade só sai besteira. A maior parte
dos porta-vozes da ciência hoje são todos assim. Quer dizer, a ciência é um uso determinado da razão,
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uma especialização da razão para certos fins. Esta especialização não pode legislar sobre a razão como
um todo.

Quando você conhecer pessoas, vê se dentro do sujeito tem aquela chama que o eleva acima do mundo
social vulgar. Se ele tem aquele chamado de Deus para as coisas mais altas; se ele não tem afasta-se
dessa pessoa, é um bocó de mola, não vale nada. Se existe um princípio que justifica uma separação
hierárquica entre os seres humanos é este. Não a separação social, econômica, racial, tudo isto aí é
materialismo. Você vai hierarquizar as pessoas pelo dinheiro que elas têm no bolso quando, em geral, o
dinheiro não foi nem ganho por elas, foi o pai que deu, foi um bisavô; às vezes a família teve um
homem de gênio quatro gerações atrás e deixou dinheiro para um bando de vagabundo e os caras
acham que são alguma coisa porque receberam dinheiro do bisavô. O outro que acha que é melhor que
o outro porque um é preto e o outro é branco, isto tudo é materialismo, isso é coisa de cachorro: não é
um critério humano, é um critério canino. Não aceitem nada disso, mas julguem as pessoas e
hierarquizem por isso: “Ah você não tem a chama do espírito acesa em você, então não quero conversa
com você, pois você que se pôs abaixo; não sou eu que estou te classificando, foi você que não quis,
você não atendeu o apelo de deus, você negou a vocação humano, você a jogou no lixo então você já é
lixo”.

Então, não hesitem em selecionar os seus amigos, porque se não, estas pessoas que só tem interesses
realmente mundanos, vão só atrapalhar a sua vida, vão viver fazendo chantagem: “Ah você não gosta
mais de nós”, você tem de falar “Não gosto mesmo. E daí? Se quiser gostar de mim você que trate de
melhorar, ocupe o posto de dignidade intelectual e espiritual que lhe foi dado pelo próprio Deus, não
despreze o que é superior a você e você não será desprezado também”. Isto é um elemento que falta
muito na cultura brasileira. Pois aí o pessoal só concebe duas coisas: como tudo mundo só pensa com a
barriga, então eles imaginam o seguinte: ou você vai ter uma hierarquia social baseada no dinheiro, ou
você vai ter um igualitarismo também baseado no dinheiro. São duas coisas absolutamente indecentes,
uma tão indecente quanto a outra. E, aliás, nós sabemos como termina todo igualitarismo: você elimina
as diferenças sociais e daí você cria diferenças políticas que, por sua vez, recriam as diferenças sociais
mais separadas ainda. Se você pegar a classe dominante de um país socialista, ela está muito mais
separada e distante do povo do que em um país capitalista. Por quê? Porque se está tentando limpar
coco com excrementos. Se a sua concepção está toda baseada só no negócio material e social, então
quanto mais você mexer aí mais vai piorar. Não hesitem, inclusive, em manifestar claramente a sua
desaprovação à conduta dessas pessoas. Às vezes, quando estamos sozinhos, é difícil fazer isso, se você
é o único então você fica com medo. Não fique com medo, eu quando era muito jovem tinha medo
disso. Depois, a partir dos 20, 30, já fui começando: “Olha, meu filho, da altura que você tá não tem
nada que julgar o que estou fazendo. Para mim o anormal é você, porque o ser humano foi feito para
ser como eu sou, estou seguindo o que Deus mandou. Deus fez de mim uma criatura espiritual, portanto
sou capacitado a fazer as perguntas mais altas e esperar encontrar a resposta. Agora você não, você só
quer saber do seu dinheirinho, do seu maldito prazer sexual, da sua casinha, das suas coisinhas. Você
está agindo como um animal e ainda está querendo me julgar? O que é isto?” [2:30]. Fale isto duas ou
três vezes e as pessoas nunca mais vão te encher o saco. Agora, é verdade o seguinte: aqueles que
atendem ao chamamento de uma coisa superior acabam arriscando mais do que os outros. Mas, de
qualquer modo, eles já têm esse mérito inicial. Porque, quando uma pessoa que atende a vocação
espiritual erra e entra no caminho do mal ela faz muito mal. Não é como um idiota medíocre qualquer
que só consegue fazer o mal em quantidade limitada. Mas este é o risco que nós temos que correr.
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Aluno: O que você diz respeito do liberalismo é válido também para a democracia, ou seja, também
ela não pode ser tomada como princípio?

Olavo: Bom, eu não disse nada a respeito do liberalismo aqui, eu disse num artigo, mas em todo o caso
aceitamos a pergunta.

Não tenha a menor dúvida: a democracia não é um princípio que seja universalizável. Por exemplo,
esse pessoal que fala hoje em “ampliar a democracia”, “estender a democracia” não sabem o que estão
falando, a começar pelo Norbert Bobbio. É um cretino! O sujeito fala em “estender a democracia” não
entende que uma democracia estendida se auto-elimina automaticamente. Por exemplo, lembro aquela
história do educador inglês Alexander Neil, que fez a escola Summerhill, onde as crianças tomavam
todas as decisões, porque ele achava que “a democracia tem de ser estendida, então aqui as crianças de
três anos têm de discutir a administração da escola junto com as pessoas adultas e com todo mundo”.
Bom, o que os alunos fizeram? Terminaram tocando fogo na escola. Se você não entende, por exemplo,
que os seres humanos só podem ter direitos iguais sob certos aspectos e não em tudo, então não dá pra
você saber o que é democracia. Por exemplo, por que em questões de ordem científica a comunidade
científica só aceita que determinadas pessoas com determinados estudos opinem, e não os outros?
Porque ali é uma atividade de natureza estritamente hierárquica. Por que num campeonato não são
todos os times que ganham? Por que a taça não é repartida igualmente entre todos os times. Por que
numa luta um cai e o outro fica de pé? Mas que coisa injusta! Deveria ter aqui “você tem direito a
cinqüenta porradas e você a cinqüenta porradas”. Se você vai levar esse negocio de democracia a ferro
e fogo – tomando o conceito de democracia como se fosse um princípio – você termina nessa coisa
patética. Além disso, os extensores de democracia são assim: quem vai estender a democracia? Bom,
tem de ser a autoridade estatal que vai democratizar a sociedade. Só que, para isso, a autoridade estatal
precisa ter mais poder do que tinha antes, porque ela vai interferir mais. Então toda tentativa de nivelar
provoca uma hierarquização muito pior do que antes. É o livro do Bertrand de Jouvenel, Sobre o poder:
história natural do seu crescimento, onde ele mostra que, haja o que houver, nos últimos quatro ou
cinco séculos, a autoridade estatal sai sempre fortalecida e o cidadão de baixo sai sempre enfraquecido.
E sempre a pretexto de quê? De democratizar, de repartir melhor o poder. Quem pode ter mais
autoridade do que aquele que reparte o poder? O repartidor é o chefão de todos.

Aluna: O mimetismo verbal – que o senhor se referiu a umas aulas atrás – não pode ser positivo na
apreensão estilística. Por exemplo, ao se ler Camões com esse mimetismo, não é fácil apreender o
estilo do poeta?

Olavo: Sem sombra de dúvida! Só que você só está captando o extrato, por assim dizer, fônico. Você
está aprendendo a falar como ele, mas se você não tem o mimetismo intelectual por trás disso não
adianta nada. A imitação, sem dúvida, é a base do aprendizado, mas depende do que você está
imitando. Eu quero imitar só o modo de falar do fulano de tal, ou quero imitar a forma mentis dele?
Quero imitar as percepções dele? Quero imitar o mundo interior dele? Essa é que é toda a diferença.
Agora, no Brasil, o pessoal imita os detalhes externos apenas com a finalidade de reproduzi-los numa
circunstância social onde aquilo fará sucesso ou aumentará o seu poder de ação social. Não está
imitando com finalidade de verdadeiro aprendizado. É a famosa observação do conde Hermann
Keyserling, que esteve no Brasil nos anos 20 e fez essa observação nas elites brasileiras, ele não saiu
conversando com o povão, só conheceu gente da elite. E ele disse: “Todo o lugar em que fui, as
pessoas, quando imitam algo, é porque querem se tornar aquilo. No Brasil não, eles se contentam com a
imitação enquanto tal.” Essas pessoas estão se rebaixando. O negócio não é imitar o modo de falar de
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Camões, é ser Camões, tornar-se Camões. Se você quer isso, talvez você consiga ficar alguma coisa
pouco menor que Camões. Mas se você quer apenas imitar, você vai ser o quê? Apenas uma imitação.
É preciso imitar no sentido de ser, de absorver as qualidades profundas da pessoa que você admira, do
escritor que você admira, do santo que você admira, do sábio que você admira. É preciso imitar aquilo
que está no mais profundo dele, quer dizer, eu quero perceber como ele percebeu, quero ver o que ele
via, quero sentir o que ele sentia para daí eu poder ter essa imitação na minha alma. Eu vou adquirir
para mim mesmo as perfeições dele. Esta imitação é inteiramente justa e deve ser praticada. O
problema não é a imitação, mas a imitação superficial e o objetivo da imitação...

Aluno: Gostaria de sugestões de manuais, instrumentos de aprendizado, como aqueles aos quais o
senhor se referiu na aula ao falar da teoria do Reuve Feurestein.

Olavo: Existe uma publicação coletiva chamada Mediated Learning, ou existem vários manuais com
esse título Mediated Learning. Procure, você vai achar muitas coisas interessantes a respeito. Também,
se quiserem mais informações, há duas amigas minhas que trabalham com isso no Paraná, a Simone e a
Luciane. Elas tinham aplicado esses exercícios em várias pessoas com grande sucesso, com grande
eficácia. Eu pretendo combinar com a Luciane, que vai viajar para os Estados Unidos, parece, nas
próximas semanas, de a gente enxertar aqui alguns exercícios de Feurstein nesse curso mais tarde
quando isto for possível. Pode procurar os manuais, mas nós estamos providenciando alguma coisa
desse tipo. Porque a gente vê que às vezes as deficiências das pessoas não estão no nível de raciocínio,
de linguagem, não, estão mais na coisa elementar. Porque o aprendizado doméstico e até escolar, no
Brasil, priva as pessoas dos instrumentos culturais de aprendizado. Então é por isso que ficam burro,
não é porque são burros. Por natureza, é que ninguém consegue aprender tudo sozinho. Para um sujeito
aprender uma coisa precisa todo o legado da cultura existente. Quando a gente vê hoje, não os alunos,
mas os professores, claro que eles têm um problema de privação cultural terrível. Só num país que tem
muita privação cultural que uma pessoa como o seu Leonardo Boff ou Frei Beto é considerado
intelectual importante. É uma coisa terrível isso!

Olha aqui, o Fernando Antônio me enviou um escrito que está muito interessante, mas não vou poder
comentar porque está muito comprido. No curso da aula não dá pra fazer isso. Eu vou ler depois,
pensar, e depois te digo alguma coisa – ou por e-mail ou numa outra gravação. Talvez eu dê uma aula
inteira sobre isso. [2:40]

Aluno: Fiquei interessadíssimo nos manuais de Jules Payot, aos quais o senhor se referiu na última
aula. São raríssimos ao que parece. Será possível colocar alguns capítulos selecionados no site?

Olavo: Sim! Inclusive, no curso que dei há mais de quinze anos eu traduzi alguns desses capítulos e
eles estão em velhas apostilas que estão até datilografadas, é do tempo da máquina de escrever. Vou
ver se reviro lá meus arquivos para achar isso e disponibilizar isso para vocês. Estamos pensando nisso.

Aluno: Tenho 24 anos, sou de São Paulo e curso o décimo semestre de Direito na FMU. Estou
elaborando minha monografia sobre o tema “Repressão e Pedofilia”. Citei o artigo do senhor pro
jornal O Globo, mas venho lhe pedir socorro. Confesso que, fora artigos na internet, tem havido um
pouco de dificuldade para encontrar doutrinas e estudos. Fui à biblioteca da PUC onde fiz uso de um
livro em espanhol de Edgar Plots, que falava sobre a pederastia, mas fazia referência à pedofilia em
alguns momentos. Porém não achei nenhum livro que tratasse diretamente sobre a pedofilia.
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Olavo: Olha, existe. De cara, comece por ler o livro do Michael Rose Goodbye, Good men. Esse dá pra
comprar pela internet. Mas eu vou achar mais coisas pra você e te dou numa aula próxima. Não vou
esquecer disso não, se Deus quiser.

Aluno: Em uma das aulas o senhor tratou das virtualidades e do Unwelt, que compreendi como sendo
o mundo de percepção imediata próprio dos animais. Também entendi que a dessacralização do
mundo tem levado as pessoas a viverem cada vez mais no Unwelt, sem consciência das virtualidades.
(...)

Olavo: Isso é uma coisa terrível! Quer dizer, não é que elas não tenham consciência do Unwelt, elas
tem...não é que elas não tenham mais consciência das virtualidades, do círculo de latência, claro que
tem! Eles têm a percepção imediata disso, mas não têm os instrumentos culturais de verbalização e de
expressão disso. Então é como se não existisse mais. As pessoas sabem do que você está falando, mas
como aquilo não tem correspondência no seu mundo verbal, elas acabam negando a sua própria
percepção e falando somente daquilo que sabem falar, e não somente daquilo que estão percebendo.
Isto é uma coisa terrível! E isso no Brasil se tornou endêmico. Você não pode mais apelar à consciência
das pessoas, porque esta consciência está soterrada sob camada e camadas de dificuldade verbal.
Dificuldades que nem sempre correspondem a uma pobreza verbal, mas às vezes até a uma riqueza
verbal deslocada. Quer dizer, tudo aquilo que o sujeito sabe, percebe, vivencia, está separado do
vocabulário dele. E onde ele tem o vocabulário, não consegue dizer o que ele percebeu realmente,
então ele começa a falar de percepções substitutivas, que ele leu em algum lugar. Leu, ouviu falar,
então fica uma conversa de segundo ou terceiro grau: é a metalinguagem da metalinguagem da
metalinguagem.

Aluno: (...) Isso me faz lembrar dos abortistas que, sem qualquer fundamento razoável, advogam status
jurídico totalmente diversos para o feto e para o recém-nascido. Fiquei pensando na minha
experiência como pai: o grande momento foi ver a minha família pela primeira vez na hora do parto.
Parecia que ela tinha saído dum mundo de virtualidades para a vida real, para o meu unwelt. Aí veio a
minha indagação: a dificuldade ou mesmo impossibilidade que várias pessoas tem hoje em dia para
perceber as virtualidades teria sido o elemento formativo da mentalidade abortista?

Olavo: Mas sem a menor sombra de dúvida! Todas essas pretensas proclamações de direito que tem
surgido vêm, evidentemente, de deficiências de percepção; as pessoas estão percebendo a coisa errada.
Qualquer pessoa é capaz de perceber que a condição de ser humano não é acrescentada no sujeito
durante a sua formação fetal. Mas que ele já é um ser humano até mesmo antes de existir. Porque você
tem aqui o espermatozóide do pai e óvulo da mãe, quando juntá-los vai ser o quê? Um jacaré? Uma
tartaruga? Um ET? Não, vai ser um ser humano. Então já tem um estatuto humano mesmo antes da
fecundação! Quer dizer, o ser humano virtual, possível, já é humano, não é outra coisa! Isso tem de ser
percebido não como um pensamento, mas como uma realidade. Agora, na esfera do pensamento, a
confusão lingüística que se estabelece pode ser tal que a pessoal tem dificuldade em admitir o que está
percebendo. Ela está dando mais importância aos “argumentos” do que às percepções. Ela acredita
naquilo que ela é capaz de defender argumentativamente, e não naquilo que ela está percebendo. É
claro que é um estado de divisão quase psicótica. Quando todo o nosso esforço, sobretudo aqui nesse
curso, vai ser de cada vez a gente aprofundar mais na percepção real e conseguir verbalizar as coisas do
jeito que nós estamos vendo. Claro que, ainda assim, nós podemos errar, mas o erro será sempre
individual. A percepção humana, como tal, é inteiramente normativa. É a única coisa normativa que
existe. A razão não é tão normativa quanto à percepção, porque a razão só funciona quando ancorada
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na percepção correta. No próprio Aristóteles, ele faz questão de perceber as sensações são sempre
exatas, são sempre verdadeiras, não são falsas. Elas são a base na qual nós temos que partir sempre.
Esse treco que as pessoas chamam de educação, que é ensinar as pessoas a montar frases e se apegar
àquela frase, negando às vezes o que ela mesma está percebendo – isto aí é a máquina de endoidar
pessoas. Pouco importa que nós todos tenhamos sofrido o impacto dessa máquina, nós podemos nos
livrar dela e ser coisa melhor do que isso. A qualquer momento de sua vida, é possível retornar à
autenticidade das suas percepções, daquilo que você sempre soube.

É a velha definição de honestidade intelectual. Uma vez os caras me desafiaram: “você vive falando de
honestidade intelectual, mas isso é difícil de definir”, eu perguntei: “Como difícil de definir? É a coisa
mais fácil do mundo: é você não fingir que sabe aquilo que você não sabe e não fingir que você não
sabe aquilo que você sabe perfeitamente bem”. É facílimo de definir! Só é difícil de praticar porque não
tem muito como você exigir honestidade intelectual desde fora. Você pode desmascarar o sujeito
desonesto, mas isto não o tornará honesto – só em alguns casos. Quando você desmascara, envergonha,
humilha o sujeito, depois de uma, duas, três vezes, às vezes ele se toca: “Peraí, preciso mudar de vida.
Parar com esse verbalismo idiota e começar a dizer o que estou vendo”. Mas eu acho que a maioria não
muda por causa disso. Eles simplesmente trocam de erro.

Aluno: Na aula 46, o senhor tratou a correspondência entre a experiência humana e a expressão em
texto. A questão apresentou-se a mim de forma clara ao fazer o exercício de leitura e imitação dos
escritores de ficção. Escolhi iniciar com Machado de Assis e, após ler vários romances e contos, já
conseguia, com seu estilo, imitar a descrição do contumaz comportamento farsesco da classe letrada
brasileira por ele observada. (...)

Olavo: Olha, existem, pelo menos, três escritores brasileiros que fizeram todo o seu aprendizado em
Machado de Assis e que, de fato, o imitam. Quanto mais o imitam, mais ficam originais na verdade.
São eles: Gustavo Corção, Ciro dos Anjos – que escreveu o Amanuense Belmiro – e o Leo Vaz, que
escreveu um único romance adorável – era um sujeito que foi diretor do Estadão – , pequena obra-
prima chamada O Professor Jeremias. São machadianos de estrita observância e todos escrevem com
uma grande perfeição. Aprenderam imitando Machado de Assis e tentando adaptá-lo às suas próprias
necessidades expressivas. Às vezes dá certo, às vezes não dá. Eu sugiro que imite vários, mas, se é para
imitar um só, pega logo o melhor.

Aluno: (...) Decidi então que seria o momento de passar a fazer o exercício com autor estrangeiro,
visto que o senhor já havia assinalado a experiência pobre registrada na nossa literatura. Comecei a
ler as obras completas de William Shakespeare na tradução de Carlos Alberto Nunes e logo notei que
não conseguia imitar a expressão poética das situações descritas, cuja percepção arguta encontra-se
entretecida nas malhas da estrutura literal do texto, resultando numa densidade de significação que eu
não alcançava, mesmo que reproduzisse a forma aparente do texto. [2:50]

Olavo: Por isso que eu disse: imitar não é só a fala. Imitar a fala e o que está por baixo dela. No caso de
Shakespeare, a percepção que ele tem do mundo é tão rica, tão complexa que às vezes você tem a
impressão de que não há nada que esse sujeito não entenda. Não há nenhuma situação humana que para
ele seja opaca; ele acaba enxergando tudo. Não é à toa que Shakespeare é Shakespeare. O Eric
Voegelin, todo ano, relia as obras completas de Shakespeare. Ele aprendeu mais ali do que estudando
ciência política, sociologia. As observações de Shakespeare sobre a política é um negócio monstruoso,
não acaba mais. Então se você quer de fato imitar aquilo, você vai ter que perseverar nisso e ampliar a
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sua consciência das situações humanas muito. Mas está fazendo muito bem – e eu acho que se tem
alguém que você deve imitar é esse mesmo. Agora, a dificuldade de você... Por exemplo, se você o
lesse em inglês – Shakespeare não é um autor difícil em inglês, mas o difícil seria você adaptar isso a
sua própria língua. Acho que você está fazendo a coisa certa, quer dizer, pegando uma boa tradução e
aprendendo meio com Shakespeare, meio com o seu tradutor. Mas o problema com Shakespeare é
exatamente isso que eu te falei, você não vai conseguir imitar a linguagem sem penetrar mais profundo
e imitar a consciência, a forma mentis daquela pessoa. Mas essa forma mentis era a do sujeito que diz
“Bom, nada do que é humano me é estranho”. Ele entende as situações mais deprimentes e as mais
esdrúxulas que pode haver, ele entende. É uma questão de humanização, por assim dizer.

Aluno: Na aula de 22/08/2009, o senhor afirmou que o conhecimento humano se processa em três
níveis: o da razão espontânea, referida na aula sobre o experimento das cartas, o dos símbolos
poéticos literários e o da razão reflexiva. Esta razão reflexiva tem com instrumento a linguagem
direta, que lida de preferência com os significados, tendendo a distanciar a inteligência da experiência
concreta? Enquanto que, presumo, o simbolismo apresentativo, referido por Susanne Langer, isto é, o
simbolismo das imagens, dos ritos, dos mitos e das artes em geral é o veículo privilegiado da
expressão da razão espontânea?

Olavo: Eu creio que sim. Aquela razão que se exerce já ao nível da percepção, sempre que for possível
você permanece nesse nível sem ter de pensar muito em cima, é muito melhor para você. Até eu
comecei uma vez um blog, depois não continuei, mas eu coloquei lá um negócio sobre umas anotações
que fiz sobre o meu modo de apreensão das coisas. Daquilo que eu lia, das situações que observava, eu
sempre dou muito tempo para que a própria coisa acabe dizendo algo sobre si. Eu não forço para obter
conclusão. Claro, eu tenho uma tremenda ânsia de aprender, mas eu sei que tem coisas que, assim, você
não pode forçar uma vaca a dar leite, porque se não ela chuta o balde; ela vai dar leite a hora que ela
quiser. A nossa compreensão é às vezes assim, você deixar que aquilo entre em você, sonhar com
aquilo, até que as coisas comecem a aparecer sozinhas, por assim dizer. E elas não vão aparecer
sozinhas sob a forma de uma explicação doutrinal inteira. Vão aparecer sobre a forma de símbolos, de
evocações, de sentimentos mudos. Na medida em que você consiga repetir isso e memorizar, você já
tem algum domínio. Mais tarde aparecem as palavras. Aí é tudo uma questão de paciência.

Para a sua segunda pergunta, a resposta é exatamente esta. Existe um conhecimento do homem por si
mesmo que é inerente à sua própria existência; por outro lado, um conhecimento fabricado, por
exemplo, com pensamentos e imagens. Eu sugiro que você pensa o seguinte: Olha, eu estou em busca
do conhecimento, eu quero a compreensão das realidades mais sublimes mesmo que eu não consiga
dizê-las para ninguém. Se você aceita isso, os meios de dizer vão acabar aparecendo. Confesso para
vocês que há coisas que explico hoje na aula, mas que entendi vinte ou trinta anos atrás, mas não tinha
como dizer aquilo. O negócio é você fazer com que a expressão que é criada, que é fabricada com
palavras por nós acompanhe o mais possível a experiência interior real. Que ela não se sobreponha e,
sobretudo, que não estrangule. Como eu denominei, o conhecimento do coração e o conhecimento da
cabeça: não deixe a sua cabeça esmagar o seu coração. A cabeça está ali como uma caixa de
ressonância para ela dizer aquilo que foi percebido em nível profundo, agora, se ela começa a falar
muito por si mesma, você se afasta daquilo que você sabe e perde a capacidade da confissão, que é uma
coisa que durante muitos anos você vai poder exercer só para você mesmo. Não há pra quem falar. Mas
é exatamente esse não ter para quem falar, este saber mais do que pode dizer, é isso que vai dar toda a
sua riqueza interior. Porque daí quando você começa a falar, as coisas vêm com densidade; elas vêm
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com riqueza, com experiência. Como diz o Camões, não é um blá-blá-blá qualquer, é um saber de
experiência feito.

Aluno: De que modo aquilo que, na realidade, captamos como necessidade definidora das coisas,
necessidade objetiva e não apenas como uma possibilidade que delas abstraímos, é merecedora de
confiança enquanto necessidade distinta do conjunto das demais possibilidades possíveis? Faço essa
pergunta porque, em meio aos estudos que tenho feito, embora sempre perceba e aceite a continuidade
entre pensamento e realidade, nunca consigo submetê-la à demonstração universal – é sempre dado
intuitivo.

Olavo: Mas se você já tem isso você já tem muito. Ele pergunta: quando você capta que uma coisa é
assim e é assim necessariamente, que não tem como não ser assim, freqüentemente você não tem como
provar isso. Em primeiro lugar, para que provar? Você quer saber ou você quer a prova? O saber é para
você, a prova é para os outros. É preciso acumular muito saber antes de você começar a provar o que
quer que seja, e o conjunto de provas que você criar só não vai fazer mal se você tiver um bom motivo
para provar as coisas. Por exemplo, aqui nessas aulas, freqüentemente eu tenho motivos para provar
coisas, porque é para ajudar outras pessoas a perceberem. Não é só por uma insegurança minha, ou não
é só para satisfazer uma exigência pretensamente cientifica. Quer dizer, é preciso ter uma razão para
fazer isso. Então, eu penso assim, durante anos esqueça a prova; interessa somente saber. Lembre
sempre deste exemplo: você viu um sujeito matando o outro na rua, não há outras testemunhas; a arma
do crime sumiu e só você sabe aquilo. Esse conhecimento é, evidentemente, precioso porque você é o
único vínculo que existe entre as hipóteses que o policial faça na cabeça e a realidade. Imagine-se
sempre nesta posição: sou a testemunha única, só eu vi isso e não posso provar para ninguém.
Acostume-se com isso que quando for realmente necessárias as provas elas aparecerão no momento
certo. Isso aí você vai ter que acreditar em mim, eu também não posso provar que isso é assim. Mas a
acumulação de conhecimento verdadeiro, sincero, produz com o tempo a linguagem necessária a
exteriorizá-lo. E, evidentemente, a dar as satisfações exigidas pelos eventuais objetores se forem
sinceros.

Também naquela modalidade de abstração que eu mencionei no começo — quando você capta a forma
inteligível de um determinado ente —, [3:00] você vai observar mais tarde com a prática uma coisa quase
que miraculosa. Você verá que a análise lógica do conceito que você pode fazer pode ser acompanhada,
pari passu, pela análise real da conduta ou da estrutura do ser considerado. Não vai haver mais aquela
separação de raciocínio lógico e observação. Decompondo as qualidades que estão inerentes ali no
conceito, você vai ver que está acompanhando pari passu a própria estrutura do ser. Isso vai acontecer
muitas vezes. Na hora em que isso acontecer, você vai descobrir “Puxa vida! eu estou na realidade. Não
estou só no mundo dos meus pensamentos!”. Imagina, por exemplo, quando Aristóteles obtém a
definição de uma determinada espécie – ele define uma determinada espécie animal – e, ao mesmo
tempo, ele está observando a conduta dessa espécie, a anatomia, a fisiologia dessa espécie; chega um
momento em que você não sabe mais o que é análise lógica do que é simples descrição factual. Isso é
uma coisa incrível, mas acontece. E vai acontecer muitas vezes com vocês mais tarde. Portanto, só, de
novo, eu tenho que pedir o seguinte: tenha paciência que isso será resolvido com o tempo.

Aluno: Trabalho na redação de uma grande emissora de televisão em São Paulo. Testemunho,
diariamente, o cenário grotesco do jornalismo brasileiro e, indiretamente, o da nossa intelectualidade.
Posso afirmar categoricamente que, atualmente, o tele-jornalismo verde e amarelo só produz ficção.
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As conversas e opiniões que ouço sobre política, religião, ciência, não serviriam nem para ser
comentadas num eventual volume futuro do Imbecil Coletivo. (...)

Olavo: Mas é isso que eu digo, eu tenho saudade do tempo do Imbecil Coletivo! Porque aquilo ainda
era descritível, mas o que está acontecendo hoje está abaixo da linguagem humana.

Aluno: (...) Nessas horas que vejo a importância o voto de abstinência em matéria de opinião, pois nas
vezes em que ensaiei um debate contra a corrente de pensamento dominante, fui vítima das
assembléias dos escarnecedores e da soberba dos ignorantes; o que é sempre uma situação delicada
quando se é jornalista e se depende da credibilidade dos colegas de trabalho para continuar no
emprego. Diante disso, faço duas perguntas: (1) Como o senhor conseguiu passar quarenta anos em
meio a essa gente sem ficar completamente neurótico? (...)

Olavo: Ficando quieto. Eu não queria que eles me entendessem, não estou fazendo questão de que me
entendam. Eu só comecei a publicar mesmo as minhas opiniões depois dos quarenta anos de idade. O
primeiro livro saiu eu tinha quarenta e seis anos. Em primeiro lugar você tem de acumular a certeza e a
clareza dentro de você. O meu objetivo sempre foi a frase do Don Quixote: “Yo sé quien soy”. Quer
dizer, eu sei quem eu sou, sei o que estou vendo, eu sei o que estou sentindo, eu sei que estou querendo.
Então estou me movendo numa esfera onde eu tenho autoridade absoluta. Afinal de contas, estou
falando de mim mesmo, da minha experiência. Na medida em que você se contenta com isso, e o seu
círculo de experiência vai aumentando, ampliando, pela leitura, pela meditação, pelo próprio desenrolar
dos fatos, chega uma hora que você sabe um montão de coisas. E sabe com uma clareza tal que
ninguém pode, certamente, tentar discutir aquilo. Daí é você que vira o escarnecedor, você que passa a
tirar [03:04:17**] da cara desses fulanos. Agora, se você entra na discussão antes disso, eles vão rir; é o
ignorante que vai estar rindo do sujeito que sabe. Porque você já sabe, mas não o bastante para colocar
essas pessoas no seu devido lugar. Às vezes a gente cria um respeito indevido por esses iletrados
escarnecedores, gozadores; cria um medo de ser exposto ao ridículo. Bom, então os exponha você ao
ridículo. Eles vão tentar pelo lado deles e você vai fazer pelo seu. É melhor que você faça melhor.
Muitas vezes também você tem uma espécie de temor reverencial entre essas pessoas, mesmo quando
você sabe que elas são ignorantes. Você teme dar a elas o tratamento que elas merecem. Um dia você
vai aprender o seguinte: esses camaradas, quanto mais você bater neles, mais eles vão te respeitar. Se
você aceitar um tiquinho deles, por exemplo, se você os aceita como interlocutores para um debate
democrático, você está lascado! Você tem de matricular o sujeito no pré-primário. Faça isso uma, duas,
três vezes e o sujeito começa a te chamar de “senhor’. E eu digo isso, já recomendei até para alunos
meus que estavam na universidade, que diziam “Meu professor vive me humilhando, falando besteira e
me impondo...”. Eu digo: “Na próxima vez você o reduz a nada. Os livros essenciais desse assunto
sobre esse assunto são estes. O senhor leu? Não. Então fica quieto. Eu sei isso mais isso e o senhor não
sabe, então fica quieto”. Ele fez isso e o sujeito nunca mais se meteu.

Agora, se você quer um debate, você está lascado. Não se pode ter debate com ignorante. Então você
nem dê sua opinião, simplesmente diga ao sujeito: “Olha você é um ignorante, você não sabe nada a
respeito, nunca leu nada. Fica quieto.” Diga isso e você vai ver como funciona. Não entre no debate,
você não tem de provar nada. Mesmo porque, se o sujeito ignora os princípios do assunto que você está
discutindo, você não vai conseguir provar nada para ele. Você só pode provar para quem tem os
elementos. Aceite a posição deles hierárquica como uma posição de poder. Quer dizer, o sujeito está
momentaneamente no poder e ele pode ter o poder de te prejudicar – você não tem sobre ele. Mas quem
tem autoridade é você, porque você está sabendo muito mais do que ele. Então aceita a sua condição de
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injustiçado, você está vivendo uma situação evidentemente injusta. Mas tenha paciência com ela,
porque, se Deus te colocou nela, é para você aprender alguma coisa. A primeira coisa que você precisa
é ter a certeza interior, antes de querer ensinar as pessoas. É preciso ter ensinado tudo para você. Se
ainda sobrou um pouco de dúvidas, se você ainda está com um pouco de medo dessa gente, é porque
você não tem firmeza do que você sabe ainda. Só quando você chegar no estágio da confissão: estou
dizendo isso não é porque quero que seja assim, não é porque imagino que seja assim, é porque eu não
consigo mais negar isto. Mesmo que eu queira. Então estou confessando que isto é assim. Por exemplo,
quando eu digo para vocês que a percepção humana tem validade universal. Não existe um outro
mundo que a ciência possa nos revelar que seja mais válido que a percepção humana, porque tudo que
os cientistas fazem é baseado na percepção humana também. Eu digo isso como uma confissão, eu não
consigo sair disso, por mais que eu tente. Mesmo que eu não queira que seja assim, lamentavelmente é.
Nós estamos na realidade, não num mundo subjetivo que a ciência tenha que dizer o que existe para
além do mundo subjetivo. Quando eu estava lendo Kant, eu pensava “eu tenho a impressão que esse
sujeito é burro, ele não entende o que está falando”. Mas eu ficava com medo evidentemente, eu falava
“não posso sair dizendo isso, as pessoas vão rir”. Hoje eu digo que Kant é burro e se o sujeito rir, então
digo “E você é mais burro ainda”.

Aluno: (...) Tenho família e preciso ganhar a vida (...)

Olavo: Bom, todo mundo tem isso. Então você vai ter que agüentar. Você já leu o filósofo Epicteto?
Leia Epicteto e você vai ver um sujeito que era um sábio, um filósofo e, no entanto, era escravo. E
escravo de um sujeito ignorante, metido. Epicteto sempre foi para mim uma inspiração. Aceite que
você está vivendo uma situação de verdadeira opressão, isto é importante para todos vocês, ou pelo
menos para a maioria. Você está vivendo numa situação de verdadeira opressão, você vai sair dela, vai
chegar um dia que você vai levantar a cabeça e essas pessoas não vão se meter mais com você, mas não
é agora. Eu que tenho isso na minha vida, não respeito mais ninguém. Só respeito Nosso Senhor Jesus
Cristo. O resto não quero nem saber. E, sobretudo, quando a gente fica velho, então não precisa
respeitar mais ninguém, não precisa mais chamar ninguém de senhor. [3:10] Você vai chegar nisso, mas
leva tempo. Não antes dos quarenta. Quando dizem que a vida começa aos quarenta: olha, de fato, é aos
quarenta que você começa a ter um certo senso de igualdade. Eu digo “ O sujeito não é melhor do que
eu, ele é até muito pior. Então por que eu vou respeitá-lo? Só porque é arcebispo? Arcebispo para as
neguinhas dele, para mim é um excomungado desgraçado”. Você vai ter essa independência, vá com
calma. Não queira resolver todos os problemas numa vez; aceite que a sua condição é de opressão.
Então, toda a vez que você for pro serviço, fale “Lá vou eu, me submeter de novo àqueles caras; eles
me pegaram de jeito. Por enquanto, estou aqui amarrado e levando porrada, mas um dia eu vou pegar
eles”. E vai mesmo.

Aluno: (...) Cada vez me sinto pior por reproduzir reportagens completamente distorcidas em relação
ao que aprende ser realidade, que em tese eu deveria mostrar ao espectador. Como fica a minha
situação do ponto de vista moral dentro dessa (...)

Olavo: Não, não! Pule fora dessa tensão moral, você não tem culpa nenhuma! Você está numa situação
de opressão. Então o que você vai fazer? Você vai observar a realidade da situação que você está
vivendo, anotar tudo sobre ela e um dia publicar um livro contando como é isso. Anote tudo. Você é
testemunha da mentira, anote uma por uma e mostre porque é mentira. Anote, documente, mostre o que
é jornalismo brasileiro; vai anotando, arruma um calhamaço de duas mil páginas, você está lá para isso.
A realidade que você tem de retratar não é a realidade que está nas notícias – essa eles já distorceram e
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não tem mais como voltar atrás – mas e a realidade do que você está vendo na redação todos os dias?
Essa você pode contar melhor do que ninguém. É isso que você tem de fazer: observa, anota, e um dia
você vai pegar todos eles. A vida é assim. Todos vocês têm de ficar muitos fortes, e a gente ficar forte
apanhando. É apanhando, apanhando, apanhando, que chega uma hora que não dói mais. Quando não
doer mais, aí você começa a bater.

Aluno: Você é convidado para uma palestra que permite debate após a exposição. Na platéia, alguém
se apresenta, mas não faz uma pergunta relativa ao tema exposto; ao contrário, entra num delírio e
começa a fazer o que você chamou de comício. O que fazer? Pedir para a pessoa se calar?

Olavo: Não, pedir não. Você manda calar a boca imediatamente. Você diz assim “Cale a sua boca e
saia daqui imediatamente. Aqui é conversa séria, não estamos aqui para palhaçada. Vai embora!” Faz
assim que você vai ver que a pessoa fica boazinha. Não fale com raiva, fale com autoridade. Que nem o
guarda de trânsito: “Está aqui sua multa, o senhor está multado”. Fale daquele jeito que não tem como
voltar atrás. Aquele negócio que a pessoa sabe que você não vai desistir nunca. O mundo é pequeno
demais para vocês dois. Se conseguir mostrar isso... Eu já calei a boca de uma platéia inteira. Num
debate, com um monte de cara do MST, eu mandei calar a boca e calaram a boca. Estou falando por
experiência. Toda pessoa que quer se mostrar é porque não está segura de si. Se a pessoa está falando
um monte de besteira que não tem nada a ver com assunto pertinente, o que ela está querendo? Se
mostrar. Se mostrar para quê? Para os outros aplaudirem. Por quê? Porque ela precisa do aplauso.
Então se você mandar calar a boca essa pessoa não vai resistir. Esse tipo de gente, vocês vão ver por
experiência, você não imagina como esses camaradas são fracos. Tanto são fracos que precisam se
ajuntar num monte para ter alguma segurança. Quando você pega o camarada de jeito, e os outros vêem
que eles tá apanhando, é que nem tubarão: vem um monte em cima de você, mas se você faz um
cortezinho em um, eles vão todos em cima do que está sangrando. Tubarão, leão, é tudo assim: vem
cinqüenta leão, machuca um e pronto, acabou o problema, eles vão todos em cima daquele.

É um prazer sádico que eu tenho em fazer essas coisas. Nem sempre eu faço porque não é necessário.
Também não precisa ficar toda hora mostrando, mas eu sei como faz, e quando preciso – quando a
situação está ficando ruim – eu falo: “ah é? Se eu não bater nele ele vai bater em mim, então é melhor
eu bater nele”. Quando eu era moleque, sempre falava isso, as pessoas diziam “Ah eu vou bater em
você”, eu dizia “Pensando bem, eu acho que é melhor eu bater em você. Que tal?”. Às vezes, só de
falar isso, acabava a briga.

Aluno: Estou lendo o livro relacionado com as aulas do curso e outro citado no True Outspeak,
tentando na leitura por em prática o seu ensinamento que diz o seguinte: Na leitura de um livro, de um
texto, mais que o entendimento das palavras [03:15:49**] temos que imaginar, sentir concomitantemente o
espírito, a opinião e a experiência do autor. Só assim aprenderemos o que ele sabe e não somente o
que ele está ensinando ali. Porém, não estou obtendo isso na prática desse ensinamento, o que não
ocorre quando o aplico na leitura de seus artigos e livros, onde realmente há uma absorção de
conhecimento maior.(...)

Olavo: Muitas vezes isso acontece, Adalberto, porque a mente do fulano é confusa mesmo. Às vezes
até pessoas que estão dizendo coisas importantes podem não ter uma translucidez interna. Então você
não consegue apreender qual é a forma mentis dele, porque ela não está aparecendo realmente. Às
vezes a deficiência não é sua. Ou, por exemplo, às vezes a coisa simplesmente está mal escrita. Às
vezes até autores importantes, por exemplo, lendo Mário Ferreira, às vezes a gente pula como um
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cabrito para saber onde ele está querendo chegar. Porque a coisa está muito mal escrita; foi gravada em
fita e alguém transcreveu mal. Eu vou te dar uma sugestão: quando você não consegue, desista daquele
livro e pegue outro. Mais tarde você volta para esse.

Aluno: (...) Na leitura de um autor que não é da nossa época e dele nada sabemos como, por exemplo,
Aristóteles, como posso ou devo aplicar essa técnica?

Olavo: O caso de Aristóteles é muito peculiar, porque tudo o que nós temos de Aristóteles como obra
escrita são anotações que ele fez para desenvolver em aula. Só tem um jeito de você Aristóteles; esse
jeito, acho que fui eu que descobri: você tem de pensar o resto do que ele poderia ter tido na aula que
não está escrito ali. Você tem de desenvolver aquilo. Mas é claro, se é um compactado, se é um
resumo, então não adianta você querer apreender o sentido só pelo que está escrito. Desenvolva, tente
demonstrar, busque exemplos como ele faria na aula. Daí você vai entender. Foi assim que eu peguei a
teoria dos quatro discursos e muitas outras coisas de Aristóteles que não deu tempo de escrever.

Agora, quando complica, simplesmente mude de livro. Não comece com as coisas mais difíceis para
fazer isso aqui. Coisas mais difíceis, por exemplo, quando eu escolhi o livro para a aula de inglês,
escolhi logo um que é um bicho de sete cabeças, de propósito. Mas lá é para você aprender inglês, não
pra você aprender a fazer isto aqui. Se for pra aprender isso, vamos tentar aqueles que têm uma
inteligibilidade imediata para você. De modo que é fácil você se identificar com aquele autor e saber o
que ele está dizendo. Outro dia eu mencionei, por exemplo, eu li muito Hermann Hesse, como toda a
minha geração lia Hermann Hesse o dia inteiro. Era facílimo de me identificar com aquilo. Ou Henry
Miller. A alma desses camaradas era até transparente. Mais tarde, quando, por exemplo, eu li outro
grande escritor Jacob Wassermann, aí não é assim. O mundo dele é muito mais complexo, sombrio sob
certos aspectos. Leva tempo para você saber onde ele quer chegar.

Aluno: Desde o assunto inicial da aula me ocorre uma questão: como iremos, num futuro breve,
empreender uma tentativa de influenciar a elite brasileira estando desconectados da área acadêmica
forma,a universidade e instituições reconhecidas como válidas por essa classe.[3:20]

Olavo: Item 1: isto só é possível fazer fora da Universidade. Se você aceitar isto aí, você terá de se
amoldar ao que eles estão querendo, e vai dar um trabalho miserável, e eles vão deformar a sua mente
até onde puderem. O que nós temos de fazer são, sobretudo, como você mesmo menciona, as obras
escritas. Eu espero que no fim desse curso, ou um pouco adiante talvez, a gente consiga uma espécie de
muro de livros. Trabalhos extremamente bem feitos, tão sérios que não tenha como ignorar. Elas
podem ter como calar. Mas cala em público e comenta em privado. A partir daí você já ganhou a briga,
porque já furou a barreira. Se eles fazem isso já fica demonstrado a sua fraqueza. A universidade
brasileira é muito poderosa, muito rica, tem muitas e está toda empenhada em baixar o nível da
discussão para não colocar em perigo aqueles fulanos que estão ocupando as cátedras. O que adianta
você se enfiar num meio tão corrupto, tão baixo como esse? Não tem de querer conversa com essa
gente. Nós temos que criar outras estruturas. Você não esqueça que as próprias universidades foram
criadas tal como nós estamos fazendo aqui. Essa é a origem das universidades. Estamos aqui, a longo
prazo, estamos criando um novo modelo de instituição de ensino. Sem pretensão de vê-lo pronto no
prazo da nossa vida, mas é, sem dúvida, por aí que nós temos que começar. Nós temos que, primeiro,
mostrar que é possível fazer um trabalho muitíssimo mais sério fora do que dentro. A partir dessa hora,
não haverá mais nem meio motivo para que as pessoas acreditem que a universidade tenha alguma
autoridade a respeito. Eu tive muitas satisfações nessa área. E vocês também as terão no devido tempo.
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Satisfação assim de mandar o sujeito calar a boca, e o sujeito calar, ficar quieto, não ter mais nada o
que falar. No Brasil isso é muito mais fácil, porque esse caras são todos vigaristas, todos charlatães.
Não vale a pena perder tempo com isso. Eu tenho um aluno muito inteligente no Paraná, mas que é um
sujeito frouxo. Então ele vive querendo puxar saco dos professores na universidade para subir na
hierarquia. O cara está se estragando cada dia mais. E olha, é dos mais inteligentes que eu tive, um
talento extraordinário. O talento sem o caráter não vale nada e lugar para o caráter não tem dentro
desses lugares. Agora, pode entrar assim como um touro na loja de louças. É assim que se tem de
entrar, não há outra maneira. E outra coisa: não pensem em influenciar ninguém por enquanto. Por
enquanto você tem de influenciar a você mesmo. Você está aqui se fortalecendo. Nós ainda temos
quatro anos pela frente, e tem muita coisa para fazer. Vocês nem imaginam o que vem por aí, tem
muita coisa para fazer. Então, você tem de completar a formação, principalmente, do seu caráter; tem
de adquirir o caráter do verdadeiro homem de estudos, o caráter do filósofo ou do escritor, poeta. Para
você ter a força de enfrentar essa gente; você não vai influenciá-los, não é para influenciá-los, é para
destruí-los. Vocês acham que eu fui na Faculdade de Direito para influenciar o seu Alaor Caffé. Não!
Eu fui para tirar ele do caminho! Essas pessoas têm que ser mandadas de volta para casa, a gente tem
de tirá-las do ofício intelectual, porque são usurpadores. Não há como influenciar essas pessoas. Nós
temos que criar um círculo de obras que seja tão melhor do que eles estão fazendo que não haja nem
possibilidade de discussão. E isso vai acontecer, vocês não tenham a menor dúvida. Eu vejo pelo nível
das perguntas, pela seriedade dos alunos, estou muito satisfeito com isso. Estou realmente orgulhoso de
vocês. Vocês têm que continuar assim, não desista, vá até o fim. Tenha confiança, agora não arrume a
briga antes de estar preparado para ela. Mesmo que seja preciso engolir muito sapo, ficar quieto e dizer
“Um dia eu te pego na rua desgraçado. Não vai ser agora, mas no devido tempo”.

Hoje vamos parar por aqui. Tem outras perguntas interessantes, mas vai ter que ficar para depois.
Muito obrigado a todos e até a semana que vem.

Transcrição: Carlos Guilherme Silveira e Silva


Revisão: Caroline Rodrigues De Toni

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