Educacao Multi
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Educacao Multi
40 p.
ISBN
CDU 37.015.4
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Edição 2010
Impresso no Brasil - Tiragem 180 exemplares
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Educação e
Multiculturalismo
Prof. Rafael Pires Rocha | 60 horas
Ementa
Introdução ao estudo das temáticas que envolvem
a educação e os processos de construção e de im-
plementação da cidadania dos diferentes grupos
raciais ou étnicos na sociedade brasileira.
Objetivo geral
Compreender o multiculturalismo e suas formas de
expressões nas sociedades globalizadas, visando à
integração das mais diversas formas de expressões
culturais.
Hibridismo, diversidade étnica e racial, novas identidades políticas e culturais: esses são termos di-
retamente relacionados ao rótulo multiculturalismo. Se a diversidade cultural acompanha a histó-
ria da humanidade, o acento político nas diferenças culturais data da intensificação dos processos
de globalização econômica que anunciam, segundo os analistas, uma nova fase do capitalismo,
denominada por autores como Ernest Mandel de “capitalismo tardio” e por outros, como Daniel
Bell, de “sociedade pós-industrial”. A despeito das querelas acerca das origens dessa nova fase, o
fato é que as discussões acerca do multiculturalismo acompanham os debates sobre o pós-moder-
nismo e sobre os efeitos da pós-colonização na cena contemporânea, o que se verifica de forma
mais evidente a partir dos anos 1970, sobretudo nos Estados Unidos. A globalização do capital e
a circulação intensificada de informações, com a ajuda de novas tecnologias, longe de uniformi-
zar o planeta (como propalado por certas interpretações fatalistas), trazem consigo a afirmação
de identidades locais e regionais, assim como a formação de sujeitos políticos que reivindicam,
com base nas garantias igualitárias, o direito à diferença. Mulheres, negros (ou afro-americanos),
homossexuais, populações latino-americanas (“hispanos” ou chicanos) e migrantes em geral se
fazem presentes como atores políticos valendo-se da marcação de diferenças de gênero, culturais
e étnicas. A cultura torna-se instrumento de definição de políticas de inclusão social - as “políticas
compensatórias” ou as “ações afirmativas” - que tomam os mais diversos setores da vida social.
Cotas para as minorias, educação bilingue, programas de apoio aos grupos marginalizados, ações
antirracistas e antidiscriminatórias são experimentadas em toda parte1.
1
http://www.itaucultural.org.br/aplicexternas/enciclopedia_ic/index.cfm?fuseaction=termos_texto&cd_verbete=3186
Introdução ao
Multiculturalismo
INTRODUÇÃO
“A ‘torre de Babel’ não configura apenas a multiplicidade irredutível das línguas, ela exibe um não-acabamento, a
impossibilidade de completar, de totalizar, de saturar, de acabar qualquer coisa que seria da ordem da edificação, da
construção arquitetural, do sistema e da arquitetônica. O que a multiplicidade de idiomas vai limitar não é apenas
uma tradução “verdadeira”, uma entre expressão (entre expression) transparente e adequada, mas também uma
ordem estrutural, uma coerência do constructum.
Jacques Derrida
Muito se tem debatido sobre a natureza precária da noção e do conceito já comuns no vocabu-
lário das ciências humanas, uma vez que esses dependem das mudanças verificadas no mundo,
tanto no âmbito cultural quanto no político e no econômico. Como exemplo dessa transformação
operada nas relações interculturais, o multiculturalismo passou a ser um dos alvos mais atingidos.
Isso se deve, principalmente, ao esgotamento dos modelos de reconciliação e de aceitação de
muitas culturas no interior da nação e à necessidade de substituição do conceito de diferença
pelo de desigualdade, com vista a propiciar um sistema de troca que não fosse unilateral. Com
a globalização tecnológica, quase todo o planeta entrou em interconexão simultânea, criando,
assim, novas modalidades de diferenças e desigualdades.
Diferentes, desiguais e desconectados refazem a trajetória dos estudos culturais, desloca conceitos
e justifica a troca do termo multicultural pelo de intercultural, por admitir que o primeiro se pauta
pela diversidade de culturas, “sublinhando sua diferença e propondo políticas relativas de respei-
to, que frequentemente reforçam a segregação”. O segundo termo, intercultural e globalizado,
“remete à confrontação e ao entrelaçamento, àquilo que sucede quando os grupos entram em
capítulo 1 7
de contradições no seio do povo, entendidas
como valores positivos no lugar de problemas,
tais como falta de educação, cultura da pobre-
za etc. Ainda dentro do pensamento de John
Beverley, “um novo projeto para ‘trocar a vida’
seria a expressão política deste reconhecimen-
to e da heterogeneidade e incomensurabilida-
de do social, sem sentir a necessidade de re-
solver as diferenças em uma lógica unitária e
transculturadora”.
8 capítulo 1
espantados. No âmbito das relações culturais,
o enfoque se torna mais transnacional que na-
cional, não só pelo enfraquecimento da ordem
estatal, como pelo fortalecimento de uma po-
lítica de efeitos. As desigualdades sociais au-
mentam, embora a hegemonia do econômico
se revista do discurso igualitário entre os po-
vos.
capítulo 1 9
passado, com nossos diferentes passados, fazendo
do espaço o lugar de onde se entrecruzam diversos
tempos históricos, e pemitindo-nos, assim, recombi-
nar as memórias e reapropriarmos criativamente de
uma modernindade descentralizada.”
REFERÊNCIAS
“O inacabado projeto da modernidade não pode,
então, separar-se tão nitidamente da razão que ins-
pira a modernização como pretende Habermas (O
Discurso Filosófico). Daí que sua crise leva para a pe-
riferia elementos libertadores. Assim, a possibilidade AGAMBEN, Giorgio. Homo sacer: o poder so-
de afirmar a “não-simultaneidade do simultâneo” berano e a vida nua. Belo Horizonte: Editora
(Rincón) - a existência em descompasso com a mo- UFMG, 2002.
dernidade que não são lixo puro, mas o anacronis-
mo (no sentido essa noção tem para R. Williams em
Marxismo e Literatura 144) não integrados de outra
CANCLINI, Néstor Garcia. Diferentes, desiguais
economia – que, ao perturbar a ordem sequencial do e desconectados. Trad. Luiz Sergio
progresso modernizador, libera nossa ralação com o Henriques. Rio de Janeiro: Editora UFRJ, 2005.
10 capítulo 1
DERRIDA, Jacques. Torres de Babel. Trad. Júnia
Barreto. Belo Horizonte: Editora UFMG,
2002.
Saiba Mais:
LIVROS
OLIVEIRA JUNIOR, José Alcebíades de. Faces Do
Multiculturalismo. São Paulo: Editora: EDIURI,
2008.
SITES
http://www.fundaj.gov.br/tpd/107.html
Atividades:
Considerando o que estudamos neste 1º capítulo,
responda:
capítulo 1 11
Multiculturalismo
e seus Dilemas: um
enfrentamento
teórico
INTRODUÇÃO
O que significa o multiculturalismo? Em que medida ele é percebido de forma homogeneizada,
ignorando-se suas abordagens plurais? Como se definem identidade e diferença, universalismo
e relativismo, em suas diversas visões? Existiria alguma abordagem multicultural que superasse
novas formas de universalismos, como aqueles ligados à ‘universalização dos particularismos’?
Seria o multiculturalismo um campo de conhecimento ou apenas uma visão prática e política
sobre formas de se lidar com as diferenças? Que desdobramentos no ensino podem assumir as
visões multiculturais?
O presente artigo, longe de fornecer respostas definitivas às questões acima, pretende levantar
reflexões que possam problematizar mitos e visões essencializadas do multiculturalismo, buscan-
do traçar um breve panorama de seus dilemas, desafios e complexidades, focalizando particu-
larmente suas articulações com a educação. É importante observar que se cobra justamente da
educação a formação de gerações nos valores de tolerância, de cidadania crítica, de valorização
da pluralidade cultural, de flexibilidade e de abertura para novas possibilidades de construção de
conhecimento e de solução de problemas.
O argumento que defendemos é que, se o multiculturalismo pretende contribuir para uma edu-
cação valorizadora da diversidade cultural e questionadora das diferenças, deve superar posturas
dogmáticas, que tendam a congelar as identidades e desconhecer as diferenças no interior das
próprias diferenças. Não procuramos fornecer receitas – mesmo porque o cerne do multicultura-
lismo é o questionamento sobre verdades únicas e absolutas, narrativas mestras – mas, sim, bus-
camos levantar questões e reflexões sobre possíveis olhares teóricos e caminhos de pesquisa para
tentar viabilizar uma educação que questione o modelo único, branco, masculino, heterossexual
e ocidental, que embasa discursos curriculares monoculturais, dominantes, sem, no entanto, cair
em dogmatismos e em radicalismos que continuem a separar eu/outro, normalidade-diferença.
capítulo 2 13
às desigualdades estão, na verdade, sendo
dirigidas a um sentido de multiculturalismo –
folclórico – que, certamente, não é o único. O
multiculturalismo crítico ou perspectiva inter-
cultural crítica busca articular as visões folclóri-
cas a discussões sobre as relações desiguais de
poder entre as culturas diversas, questionando
a construção histórica do preconceito, da dis-
criminação, da hierarquização cultural. Entre-
tanto, o multiculturalismo crítico também tem
sido tensionado por posturas pós-modernas e
1. Pensando pós-coloniais, que apontam para a necessida-
de de se ir além do desafio a preconceitos e
multiculturalmente buscar identificar, na própria linguagem e na
sobre educação: construção dos discursos, a forma como as di-
ferenças são construídas. Isso porque a visão
significados e pós-moderna, grosso modo, focaliza os pro-
abordagens cessos pelos quais os discursos não só repre-
sentam a realidade, mas são constitutivos dela.
O multiculturalismo é um termo que tem sido
empregado com frequência, porém com di- Isso significa que, para além das estratégias e
ferentes significados. Dessa forma, seus críti- visões do multiculturalismo crítico, a perspec-
cos e defensores travam, muitas vezes, lutas e tiva pós-colonial e pós-moderna do multicul-
discussões em torno de um conceito que, na turalismo busca “descolonizar” os discursos,
verdade, pode estar sendo entendido de for- identificando expressões preconceituosas (me-
ma diferente para os envolvidos em tais dis- táforas e imagens discriminatórias), bem como
putas. A começar pelo nome: alguns apontam marcas e construções da linguagem que este-
que o interculturalismo seria um termo mais jam impregnadas por uma perspectiva ociden-
apropriado, na medida em que o prefixo ‘in- tal, colonial, branca, masculina etc.
ter’ daria uma visão de culturas em relação,
ao passo que o termo multiculturalismo estaria É importante assinalar que as diferenças entre
significando o mero fato de uma sociedade ser as abordagens multiculturais acima relaciona-
composta de múltiplas culturas, sem necessa- das remetem, em última análise, a questões de
riamente trazer o dinamismo dos choques, re- fundo quanto: a) à forma como a identidade
lações e conflitos advindos de suas interações. e a diferença são concebidas; b) à relação en-
tre universalismo e relativismo na abordagem
Além dos termos que o definem, as perspec- dada ao real c) à compreensão do multicultu-
tivas que informam o multiculturalismo tam- ralismo como campo de estudos de caráter hí-
bém variam conforme temos apontado, desde brido. Analisaremos, a seguir, essas questões.
uma visão mais folclórica ou liberal (valoriza-
dora da pluralidade cultural, porém reduzindo
as estratégias de trabalho com ela a aspectos 2. Identidade
exóticos, folclóricos e pontuais, como receitas e diferença
típicas, festas, dias especiais – dia do Índio, por
exemplo), até perspectivas mais críticas (tam- Ao lidar com o múltiplo, o diverso e o plural, o
bém chamadas de multiculturalismo crítico multiculturalismo encara as identidades plurais
ou perspectiva intercultural crítica, em que o como a base de constituição das sociedades.
questionamento da construção dos preconcei- Leva em consideração a pluralidade de raças,
tos e das diferenças é o foco do trabalho). gêneros, religiões, saberes, culturas, lingua-
gens e outras características identitárias para
Nesse sentido, críticas que atribuem ao mul- sugerir que a sociedade é múltipla e que tal
ticulturalismo à exaltação da pluralidade cul- multiplicidade deve ser incorporada em currí-
tural, mas o acusam de se omitir com relação culos e em práticas pedagógicas.
14 capítulo 2
No entanto, em uma visão essencializada, a
identidade é vista como essência acabada. Se
a abordagem multicultural é construída so-
bre essa suposição, ainda que valorize a plu-
ralidade de identidades, irá visualizá-las como
entidades estanques: ‘o negro‘, ‘o índio’, ‘a
mulher’, ‘o deficiente’ e assim por diante. É
o caso, por exemplo, das perspectivas multi-
culturais folclóricas e daquelas que se baseiam
em certas vertentes do multiculturalismo críti-
co, que ainda não incorporaram o caráter de
construção das identidades nem se voltaram ral: a construção da identidade implica que as
ao papel dos discursos nessa construção. múltiplas camadas que a perfazem a tornem
híbrida, isto é, formada na multiplicidade de
Nessa perspectiva, ainda que questionem pre- marcas, construídas nos choques e entrecho-
conceitos e que trabalhem em prol de uma ques culturais.
sociedade mais justa e menos discriminatória,
superando o mero ‘exotismo’ que caracteriza Souza Santos (2001) alerta que o multicultu-
o multiculturalismo folclórico, as estratégias ralismo crítico pós-colonial discute as “diferen-
multiculturais críticas ainda estariam traba- ças dentro das diferenças”, recusando a ideia
lhando com a ideia uniforme e acabada das de que as identidades plurais que constituem
identidades, sem considerar o dinamismo, o a sociedade sejam estáticas, unas, indivisíveis.
hibridismo, as sínteses culturais e o movimento De fato, nessa visão, não haveria tipos identi-
constante que resulta em novas identidades. tários ‘puros’: as sínteses culturais fazem que
todos sejamos constituídos no hibridismo. Por
É o caso, por exemplo, em que se decide de- exemplo, somos mulheres, negras, ocidentais e
senvolver estratégias para desafiar o precon- afrodescendentes. Em certas ocasiões, a mar-
ceito contra o índio, mas não considera a com- ca identitária negra pode prevalecer, mas em
plexidade cultural das nações indígenas, com outras é a de gênero e assim por diante. Gon-
suas linguagens múltiplas, seus significados çalves & Silva (2000), apontam, nessa linha,
plurais etc. Ainda que a intenção seja crítica, a para a necessidade de os movimentos negros
homogeneidade da categoria ‘índio’ assenta- lidarem com a diversidade em seu interior, di-
se em uma visão da identidade como ‘essência versidade esta marcada ora pela presença das
acabada’, o que pode resultar em um congela- mulheres negras em uma situação bastante di-
mento das identidades e das diferenças. ferenciada, ora por jovens que trazem a marca
de seus próprios movimentos, de seus grupos
Por outro lado, o multiculturalismo crítico pós- de estilo e outros.
modernizado ou pós-colonial irá focalizar não
só a diversidade cultural e identitária, mas tam- Bauman (2005, p. 17), por sua vez, é eloquen-
bém os processos discursivos pelos quais as te ao considerar que o “‘pertencimento’ e a
identidades são formadas, em suas múltiplas ‘identidade’ não têm a solidez de uma rocha,
camadas. Dessa maneira, tal visão de multicul- não são garantidos para toda a vida, são bas-
turalismo não se limita a constatar a plurali- tante negociáveis e revogáveis”. O referido au-
dade de identidades e os preconceitos cons- tor ilustra, por meio de sua própria biografia,
truídos nas relações de poder entre elas. Vai, sua identidade híbrida, recordando Agnes Hel-
isso sim, analisar criticamente os discursos que ler quando afirmava que “sendo mulher, hún-
‘fabricam’ essas identidades e essas diferenças, gara, judia, norte-americana e filósofa, estava
buscando interpretar a identidade como uma sobrecarregada de identidades demais para
construção, ela própria múltipla e plural. Des- uma só pessoa” (ibid., p. 19). Tais considera-
sa maneira, a própria identidade é objeto de ções podem ser aplicadas a grupos identitários
análise do multiculturalismo pós-moderno ou diversos, evitando que se caia no erro de con-
pós-colonial. A hibridização, ou hibridismo, é gelar e de homogeneizar identidades e dife-
conceito central dessa perspectiva multicultu- renças. Temos proposto três níveis pelos quais
capítulo 2 15
ma a desafiá-las, rumo à construção de iden-
tidades individuais, coletivas e organizacionais
abertas à diversidade cultural e desafiadoras
de preconceitos e dogmatismos que congelam
aqueles percebidos como ‘os outros’.
3. Universalismo
e relativismo
as identidades podem ser trabalhadas: identi- Uma outra questão que mobiliza as diferen-
dades individuais, coletivas e organizacionais. tes perspectivas multiculturais é a tensão uni-
No primeiro caso, trata-se de se perceber as versalismo x relativismo. Em linhas gerais, o
hibridizações presentes nas formas pelas quais universalismo implica que há um conjunto de
as identidades são produzidas, nos indivíduos. valores que o indivíduo acredita serem univer-
No segundo caso, uma suspensão temporária sais, ou seja: valores independentes das cultu-
da construção identitária é realizada em prol ras que constituem o tecido social, portanto
do reconhecimento de algum marcador mes- universais, compartilhados por toda a huma-
tre que confere o sentimento de pertença das nidade. Por outro lado, no outro extremo do
identidades a grupos coletivos específicos, de espectro, o relativismo remete a uma corren-
modo a garantir seus direitos à representação te do pensamento que não crê na existência
nos espaços sociais e culturais. É o caso de de um real, universalmente apreensível, ou de
identidades negras, homossexuais, indígenas, uma verdade absoluta, que seja independente
de mulheres e assim por diante. O desafio, dos valores culturais e visões de mundo que a
nesse caso, é o de compreender a redução da constroem.
identidade para fins definidos, de modo que
não se dogmatize ou se congele a identidade A perspectiva universalista, afirma que certos
valendo-se de um marcador específico, igno- princípios jurídicos e éticos devem ser válidos
rando sua mobilidade e hibridização, como para toda a sociedade, não importando os
dito anteriormente. valores culturais plurais dos grupos identitá-
rios que a compõem. Em outra perspectiva, é
Finalmente, argumentamos que as identida- assinalada que não há possibilidade de uma
des organizacionais ou institucionais – com- fundamentação universal que possa balizar
preendidas como aquelas que se caracterizam atitudes com relação às identidades diversas:
pela missão específica das organizações e das para ele, tal perspectiva universalizada implica
instituições, em articulação com a pluralidade o silenciamento de certas vozes e culturas, em
cultural, étnica, racial e outras de seus atores, nome de uma ‘pseudo’ universalidade que, na
na busca de um clima institucional positivo, verdade, estaria construindo escalas nas quais
aberto à diversidade cultural e desafiador de se classificam como superiores aqueles valores
pensamentos únicos – é aspecto central no es- correspondentes aos das classes hegemônicas
tudo do multiculturalismo nos diversos espa- na sociedade.
ços sociais, incluindo a escola e a universidade.
No caso do multiculturalismo, alguns auto-
O cerne do multiculturalismo crítico, em sua res, tais como Bourdieu (1999), expressam o
versão pós-colonial é, portanto, o desafio à receio de que, sob o pretexto de defesa de
naturalidade com que normas e diferenças se identidades marginalizadas e, em muitos ca-
apresentam na sociedade. A desconstrução sos, da visão relativista, tal visão poderia estar
dessas normas e diferenças, nos discursos e nas criando novos universalismos e novos essen-
linguagens, implica a necessidade de projetos cialismos identitários. De fato, ao se referir às
que possam ir além de denúncias e que inclu- lutas identitárias, Bourdieu (1999) aponta que,
am estratégias no sentido de colocar ‘a nu’ o para se opor ao que ele denomina de “univer-
caráter de construção dessas noções, de for- salismo hipócrita”, os movimentos de subver-
são simbólica ligados a identidades coletivas
16 capítulo 2
(compreendidos como sendo multiculturais),
podem terminar por construir “guetizações”
e “universalizar os particularismos” (p. 148).
De modo a superar esse perigo, o referido au-
tor propõe que o potencial subversivo do que
ele denomina de “movimentos particularistas”
(referindo-se, como exemplo, aos movimentos
homossexual e feminista), coloquem “a serviço
do universal, as vantagens particulares que [os]
distinguem dos outros grupos estigmatizados” comum. O referido autor aponta que, ao falar
(p. 149). em nome da humanidade e de um direito uni-
versal à diferença, tal perspectiva universalista
Acreditamos que a proposta do referido au- antirracista reivindica, na verdade, o direito à
tor, ainda que não solucione o artificialismo semelhança, apagando as identidades coleti-
de denominar os ‘universal’ conjuntos de va- vas que são vítimas específicas do racismo. Já
lores que são, necessariamente, contingentes em outro extremo, o antirracismo particula-
e referenciados a grupos de poder, tem o po- rista absolutizaria “a diferenciação, a separa-
tencial de reforçar a tese do multiculturalismo ção, a expulsão, até mesmo a eliminação dos
pós-colonial e da hibridização identitária que grupos diferentes, estranhos, que ameaçam a
defendemos anteriormente. De fato, o cerne identidade comunitária própria”(ibid., 26).
da questão da crítica ao multiculturalismo é o
de que ele é percebido muitas vezes de forma Em nossa visão multicultural, acreditamos que,
unívoca, quando, na verdade, como demons- mais do que pólos opostos, o que existe é uma
tramos, trata-se de conceito polissêmico e po- relação tensa, dialética, que expressa, na ver-
lifônico por excelência. Assim, o conceito mais dade, um continuum entre o que se conven-
alargado de identidade que propomos, bem cionou denominar de universalismo e relativis-
como sua visualização no contexto multicul- mo. Tal visão avança no sentido de se perceber
tural pós-colonial, traz, acreditamos, novo fô- o caráter de construção da universalidade, que
lego a visões multiculturais, superando limites é, na verdade, sempre produzida por determi-
essencializantes em que o multiculturalismo nados grupos e, ao mesmo tempo, permite um
pode recair. Isso porque tais visões justa- instrumental que possa combater o relativismo
mente questionam a essencialização das dife- exacerbado – que impede, no limite, que se
renças, propondo formas pelas quais as lutas estabeleçam padrões pelos quais se avança na
de grupos identitários possam ser articuladas produção do conhecimento multicultural.
à busca de desafio a preconceitos e a congela-
mento identitário, de forma ampla. Concordamos com a teoria que, quando
aponta para superar a dicotomia universalis-
Do mesmo modo, perceber que o relativismo mo - relativismo, devemos trabalhar com a
total e a essencialização das diferenças não são tensão entre ambas as perspectivas, por meio
traços de todas as visões multiculturalistas é de diálogos que busquem caminhos que tra-
importante, como temos procurado demons- duzam estratégias viabilizadoras de lógicas de
trar. No caso da tensão entre universalismo e negociação, de diálogo e de argumentação
relativismo, ou entre universalismo e particula- entre culturas, de modo a superar extremis-
rismo/diferencialismo, como alguns preferem, mos e enfrentar o racismo de forma efetiva e
é também abordada por fundamentos de pro- consistente. Acima de tudo, defendemos que
postas anti-racistas. as lutas das identidades individuais, coletivas
e institucionais, em seus particularismos, se-
No caso do antirracismo que é proposto em jam, acima de tudo, ‘portas de entrada’ para
uma perspectiva universalista, trata-se de pro- a compreensão das formas reais e simbólicas
mover ‘respeito incondicional pelo direito à di- pelas quais são construídas diferenças, invisibi-
ferença’, como um postulado universal. Assim, lidades identitárias e preconceitos, de modo a
esse tipo de postura antirracista compreende o confrontá-los e superá-los.
antirracismo como exigência da humanidade
capítulo 2 17
fecham em campos disciplinares de fronteiras
rígidas, mas, ao contrário, exigem respostas
elas próprias complexas, mestiças, híbridas,
que atravessam tais fronteiras, construindo
redes que desafiam noções essencialistas de
cientificidade. No caso do multiculturalismo,
em que o objeto por excelência é o desafio a
preconceitos, a visões essencializadas e homo-
geneizadas das identidades e das diferenças e
a discursos que as constroem, no âmbito das
relações sociais e educacionais, certamente
sínteses criativas com base em olhares plurais
4. Multiculturalis- só têm a contribuir no caminho da constru-
ção de alternativas educacionais propiciadoras
mo: prática, da formação de gerações abertas à diversida-
política ou teoria? de cultural, e desafiadoras de congelamentos
identitários e preconceitos.
A polissemia, as visões epistemológicas dife-
renciadas e as interpretações plurais no que
tange ao universalismo e relativismo e às ca- 5. Implicações
tegorias identidade e diferença, conforme ex- multiculturais no
posto anteriormente, permitem vislumbrar a
complexidade do termo multiculturalismo. A ensino e na
tais dilemas acrescenta-se o questionamento pesquisa
sobre o que seria o multiculturalismo – prática,
política, ou enfoque teórico? Embora a questão abordada seja complexa e
extrapole os limites do presente texto, é im-
Mais uma vez, não se trata de produzir, no portante ter em mente que os desafios do
escopo dessa seção, resposta que se pretenda multiculturalismo, tanto em termos da sua
definitiva à questão. Reportamo-nos a Char- compreensão como no campo teórico híbrido,
lot (2006), que defende o caráter “mestiço” como, também, com relação à construção das
da educação como teoria, para argumentar- identidades e das diferenças e às formas pelas
mos que o multiculturalismo constitui-se, para quais a tensão universalismo e particularismo
além de suas facetas práticas e políticas, tam- é enfrentada, podem ter implicações diversas
bém em campo teórico híbrido ou ‘mestiço’, sobre currículos e posturas multiculturais em
definido por Charlot (2006) como “um campo educação.
de saber... em que se cruzam, se interpelam
e, por vezes, se fecundam, de um lado, co- Evidentemente, não se pode falar em perspec-
nhecimentos, conceitos e métodos originários tivas ‘puras’: as abordagens discutidas ante-
de campos disciplinares múltiplos e, de outro riormente vêm, geralmente, imbricadas e são,
lado, saberes, práticas, fins éticos e políticos. elas próprias, hibridizadas. O importante, no
O que [o] define... é essa mestiçagem, essa entanto, é que se tenha consciência dos tipos
circulação” (p. 9). Tal visão, como argumenta de perspectivas pelas quais o multiculturalismo
o referido autor, certamente vai de encontro pode ser compreendido, bem como os objeti-
ao que ele denomina de “panelinhas teóricas”, vos multiculturais que se deseja alcançar. Ao
mais interessadas em assegurar posições de mesmo tempo, nada impede que o professor
poder institucionais travestidas como defesa multiculturalmente comprometido faça uso
de cânones científicos. de estratégias plurais em suas práticas, desde
aquelas vinculadas a perspectivas mais folcló-
Defendemos, assim, que os problemas que ricas àquelas associadas a perspectivas mais
se apresentam, particularmente na área edu- críticas do multiculturalismo.
cacional, no mundo complexo e contemporâ-
neo, não podem reduzir-se a olhares que se
18 capítulo 2
Argumenta-se que, informando tais opções,
deve haver um projeto mais amplo de multi-
culturalismo, no qual o professor perceba os
pressupostos e implicações desse tipo de tra-
balho e as finalidades mais amplas que deseja
alcançar: trata-se apenas de conhecer trajes,
comidas e festas típicas? Ou esse tipo de ativi-
dade será um meio para se atingir outros níveis
de multiculturalismo, questionadores das dife-
renças, dos preconceitos e dos racismos? Se
essa última é a opção, o professor estará utili- sideravam centrais para a construção de suas
zando estratégias e caminhos plurais, cônscio identidades. Tal atividade era compartilhada
de que tais caminhos fazem parte de uma pro- no grupo, discutindo-se as camadas múltiplas
posta de cidadania crítica, democrática e não que perfazem as identidades e sensibilizando-
apenas de apreciação da riqueza cultural. se os alunos, dessa forma, para a hibridização
nas suas próprias construções identitárias.
Podemos exemplificar o caso de um profes- Em outra perspectiva, situações envolvendo
sor que deseja trabalhar em uma perspectiva racismos e outras discriminações podem ser
multicultural crítica pós-modernizada ou pós- apresentadas para discussões, levantando-se
colonial. Nesse caso, uma ideia de atividade questões que desafiem qualquer congelamen-
seria, por exemplo, propor tarefas que exijam to identitário tanto das identidades oprimidas
crítica cultural, em que os alunos tentem iden- quanto das próprias identidades opressoras.
tificar vozes silenciadas e/ou estereotipadas, Assim, por exemplo, questionar ondas de
em livros didáticos e outros materiais. Outras anti-islamismo, bem como de antissemitismo
atividades são propostas por autores incluídos e antiamericanismo, pode ser um importante
em estudo organizado por Trindade & Santos caminho, particularmente em aulas de história
(1999). Alguns autores sugerem atividades tais e outras em que os assuntos que têm assolado
como: pedir que meninos e meninas busquem o mundo sejam trazidos à tona.
a definição de mulher, de negro, de judeu e de
outras identidades marginalizadas, no dicioná- O multiculturalismo crítico pós-modernizado
rio, vendo estereótipos e/ou possibilidades de ou pós-colonial traz, como mote, o compro-
valorização dessas identidades aí presentes. misso com a desconstrução dos discursos que,
embora comprometidos com a justiça e o de-
Após (ou concomitantemente a) essas ativida- safio a preconceitos, ainda permanecem con-
des de cunho multicultural crítico – que enfa- gelando identidades e demonizando o ‘outro’.
tizam as identidades coletivas de raça, gênero, Ideias referentes à avaliação da aprendizagem
etnia e outras silenciadas e marginalizadas – e à avaliação institucional multiculturalmente
esse mesmo professor deseja ir além, de for- orientada, podem servir de inspiração para ati-
ma a sensibilizar os alunos para a hibridiza- vidades avaliativas, levando em conta a diversi-
ção identitária, para as diferenças dentro das dade cultural e o desafio a preconceitos.
diferenças, de forma a não dar uma ideia de
homogeneidade e congelamento identitário Da mesma forma, sensibilizar alunos para for-
em torno do ‘negro’, do ‘índio’, da ‘mulher’ e mas plurais de dar significado ao mundo, se-
outras identidades. Nesse caso, dentro de sua gundo percepções culturais diversificadas, não
perspectiva multicultural crítica pós-colonial, significa cair em um vale-tudo, um relativismo
poderia buscar outras atividades, que dirijam a total em que quaisquer valores sejam aceitos
atenção dos alunos a aspectos que fazem par- de forma a-crítica. Conforme argumentamos,
te da construção de suas próprias identidades. a perspectiva multicultural que abraçamos
Dentre algumas estratégias, uma, por exem- implica que um diálogo seja estabelecido en-
plo, foi desenvolvida por um professor que tre valores éticos, humanos de preservação
requisitava que os alunos construíssem uma da vida e de respeito à existência do ‘outro’ e
‘pizza’ de papel, colocando, nas fatias, influ- aqueles valores plurais que são particulares a
ências, fatores e marcas identitárias que con- grupos e identidades específicas.
capítulo 2 19
Evidentemente, as ideias acima apresentadas,
com relação ao multiculturalismo, são abertas
a críticas, não sendo imunes a questionamen-
tos e desafios. Na medida em que professo-
res e alunos embarcam em caminhos de va-
lorização da pluralidade cultural e desafio a
preconceitos, certamente serão confrontados
com dilemas e perplexidades referentes a essas
questões. O importante é não nos atermos a
fórmulas acabadas ou receitas pré-fabricadas.
A conscientização acerca das abordagens que
A partir do momento em que tais valores im- informam diferentes estratégias multiculturais,
plicam a eliminação do outro, real ou sim- bem como sobre tensões a elas inerentes, de-
bólica, não podem ser aceitos. O professor vem servir de estímulo para que se continuem
poderia trabalhar essas questões de forma a as discussões, de forma a desafiar verdades
conseguir um consenso a-posteriori, isto é: por únicas e posturas que homogeneízam as iden-
intermédio do diálogo, das discussões, levar tidades e congelam as diferenças.
à compreensão de um vocabulário ético que
possa impregnar a apreciação de valores de
povos e grupos identitários plurais, sem que Resumo
se incentive a aceitação de práticas cruéis, vol-
tadas à eliminação da vida. Significa, também, O multiculturalismo como horizonte de traba-
que as estratégias multiculturais devem ser lho docente não é um “adendo” ao currícu-
voltadas para a pluralidade cultural dentro da lo: deve, ao contrário, impregnar estratégias,
própria sala de aula, valorizando as culturas e conteúdos e práticas normalmente trabalha-
significados plurais pelos quais se constroem dos em aula pelo professor, como brevemente
as percepções dos alunos, bem como traba- ilustrado anteriormente. Nesse sentido, mais
lhando de forma a desafiar posturas racistas, uma vez, reforça-se o papel do professor como
antidiscriminatórias e homogeneizadoras das pesquisador constante de sua prática, cons-
diferenças que circulam nos discursos presen- truindo, no seu cotidiano, perspectivas mul-
tes entre discentes e docentes. ticulturais que resultem em discursos alterna-
tivos, que valorizem as identidades, desafiem
a construção dos estereótipos e recusem-se a
conclusões congelar o “outro”.
20 capítulo 2
GONÇALVES, L. A. de O. & SILVA, P. B. G. “Mo-
vimento negro e educação”, in: Revista Brasi-
leira de Educação, nº. 15, pp. 134-158, 2000.
SOUZA SANTOS, B. “Dilemas do nosso tempo:
globalização, multiculturalismo e conhecimen-
to”, Educação e Realidade, v. 26, nº.1, pp. 13-
32, 2001.
Saiba Mais:
LIVROS
HALL, S. Da diáspora: identidades e mediações
culturais. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2003.
SITES
http://www.fundaj.gov.br/tpd/107.html
Atividades:
Considerando o que estudamos neste capítulo,
responda:
capítulo 2 21
Multiculturalismo
e Democracia: uma
reflexão teórica
INTRODUÇÃO
O reconhecimento de grupos minoritários, por meio da efetivação de seus direitos, é um tema
de grande discussão na atualidade. Isso, sem sombra de dúvidas, pelo fato de as denominadas
minorias constituírem, em verdade, maiorias em nossa sociedade. Não há como falar em proteção
de grupos sem abordar aspectos referentes ao multiculturalismo e à democracia, pois tanto um
quanto outro, no mais amplo sentido, são instrumentos em prol dos grupos minoritários.
O multiculturalismo é uma forma de política social que visa ao reconhecimento de grupos infe-
riorizados em nossa sociedade, seja por condições históricas, socioeconômicas, sexuais, raciais,
dentre outras. No entanto, as políticas multiculturais terão mais êxito quando o Estado, por meio
de políticas públicas, intervier nas políticas sociais com o objetivo de alcançar uma maior igualda-
de material entre os cidadãos.
Sob essa ótica, torna-se imprescindível fazer uma abordagem referente à democracia, uma vez
que vivemos num Estado Democrático de Direito, e destarte, todo poder emana do povo, direta
ou indiretamente. A democracia é como se fosse um pilar que dá sustento às políticas multicultu-
rais, pois, por meio das mais diversas formas democráticas, qualquer cidadão poderá buscar seus
direitos e, consequentemente, reivindicações.
capítulo 3 23
O multiculturalismo humanista liberal parte
do pressuposto da igualdade entre os seres
humanos, afirmando que uma cultura não é
superior a outra, mas que todas devem convi-
ver de forma harmoniosa, cada uma podendo
manifestar a sua diferença. Enfim, acreditam
numa humanidade comum, universal e neutra,
em que as pessoas conquistam o seu espaço
em função de seus próprios méritos.
24 capítulo 3
Frise-se que a definição dos grupos minoritá-
rios depende muito da sociedade e da época
histórica em que se contextualiza, pois é um
conceito intimamente ligado à cultura de cada
povo. Andréa Semprini (1999, p. 44), ao falar
sobre uma interpretação de multiculturalismo,
define assim as minorias:
capítulo 3 25
fortável, onde predominam, como nunca, as
regras da democracia em nossas relações so-
ciais e política.
26 capítulo 3
objetivo é alcançar a participação de todos nos
processos de condução de nosso Estado. Por
meio das diversas formas democráticas, pode-
mos buscar o reconhecimento dos direitos de
todos os grupos que, muitas vezes, de per si
só não conseguem alcançar. Isso se viabilizará
por meio de movimentos sociais quando hou-
ver uma efetiva participação de todos, ou seja,
quando preexistir uma forma de democracia
social juntamente com uma democracia repre-
sentativa efetiva. No entanto, muitas vezes, as minorias subordi-
nam-se às imposições da maioria, ou até mes-
2.2. DEMOCRACIA, CIDADANIA mo ocorre dos grupos inferiores serem priva-
E RECONHECIMENTO dos de seus direitos políticos, ou ainda, devido
à falta de efetivação dos direitos humanos a
A democracia corresponde a uma efetiva par- democracia acaba carecendo de efetivação.
ticipação de todos os indivíduos, através do Nos dias de hoje acredita-se que com o avanço
exercício de direitos civis, políticos, sociais, das teorias de cidadania, percebe-se a existên-
econômicos e culturais, além dos direitos de cia de uma tradição política que tem identi-
solidariedade. Na verdade, é um mecanismo ficado uma cidadania homogênea, através de
em prol dos cidadãos, para, no exercício de um processo de exclusão sistemática, em que
seus direitos, participarem das decisões de grupos minoritários são excluídos da definição
nosso Estado.Para preexistir um Estado Demo- de cidadãos na maioria das sociedades.
crático de Direito, é necessário que haja um
maior número possível de atores buscando o O estudo das teorias de democracia, enquan-
reconhecimento de seus direitos e a inclusão to efetiva identificação de princípios de uma
social do outro. Para tanto, é imprescindível democracia de poder, participação e represen-
uma participação igualitária dos direitos de tação numa legítima política de sistema demo-
cidadania. Lafer (1988, p. 22), quanto à igual- crático, tem sido incapaz de evitar o sistema de
dade de participação, afirma que exclusão em grandes segmentos de cidadania.
Assim, uma democracia formal se difere drasti-
[...] a cidadania é o direito a ter direitos, pois a igual- camente do substantivo democrático.
dade em dignidade e direitos dos seres humanos não
é um dado. É um construído da convivência coletiva
que requer o acesso ao espaço público. É este acesso
A democracia formal diz respeito, precisa-
ao espaço público que permite a construção de um mente, à forma de governo, enquanto que a
mundo através de um processo de asserção dos direi- democracia substancial refere-se ao conteúdo
tos humanos. desta forma, ou seja, à participação política
do povo nos negócios públicos. A democracia
Em princípio, perante as democracias indiretas, substancial desenvolve-se segundo uma práti-
asseguradas por nossa Constituição Federal, o ca que objetiva a realização dos fins democrá-
direito à participação é garantido a todos, sem ticos, essencialmente o alcance da igualdade
discriminação de raça, grupo étnico, classe ou jurídica, social e econômica entre os indiví-
sexo, buscando-se, assim, prevenir a exclusão duos, capaz de gerar oportunidades iguais de
das minorias. Diante da democracia epresenta- desenvolvimento para toda a população inde-
tiva, os cidadãos elegem representantes, cuja pendentemente de classe social. Dessa forma,
participação nas diversas instituições governa- poderíamos dizer que a democracia substan-
mentais garante a defesa de seus interesses, cial terá mais ênfase quando precedida pelos
tendo por base principal a soberania popular. movimentos sociais.
Nesse sentido, o Estado desempenha um pa-
pel central na constituição da democracia, so- A forma representativa, no entanto, não é ba-
bretudo, nas sociedades multiculturais. seada em um conceito de igual representação,
equidade e igualdade. A maneira de explicar
capítulo 3 27
apenas um ser humano, perde as suas quali-
dades substanciais, ou seja, a possibilidade de
ser tratado pelos outros como um semelhan-
te, num mundo compartilhado”. A população
vive tempos de insegurança, em virtude da
crise e impotência que passam as instituições
clássicas, a exemplo da fragilidade do sistema
representativo e da ausência de uma cidada-
nia efetiva. Estes fatores impulsionam o cres-
cimento e fazem emergir a necessidade dos
movimentos sociais ou das políticas multicul-
turais, que procuram reordenar a vida societá-
ria e redefinir os rumos políticos da sociedade
como um todo, para fins de alcançar uma so-
ciedade livre, justa e solidária.
este determinado fator pode ser o seguinte:
o capitalismo exige representação diferencia- Assim, a participação dos grupos minoritá-
da em poder e política, bem como favorece a rios e da sociedade civil em todas as formas
iniquidade através de hierarquias e interesses de manifestação e organização societária, nos
competitivos, e a desigualdade, através de um grupos e instituições sociais e públicas, é uma
sistema de busca do lucro. Em suma, as raí- questão central a ser enfrentada pelas políticas
zes da democracia representativa baseiam-se sociais e públicas.
nos princípios fundamentais que articulam as
sociedades capitalistas. Deste modo, a demo- Nota-se aí a importância da existência de po-
cracia, muitas vezes, gira em torno de lógicas líticas sociais em uma sociedade multicultural
pregadas pelo capitalismo. democrática, pois, por meio da democracia,
poder-se-á buscar a realização do multicultu-
No sistema representativo, os cidadãos enca- ralismo, que se dará com o reconhecimento
minham suas demandas e preocupações atra- das minorias. Este reconhecimento só ocorrerá
vés de sujeitos coletivos e modalidades de ação quando forem efetivadas todas as prerrogati-
não convencionais, que assumem integralmen- vas sem as quais não se possa conviver com
te suas reivindicações e tornam factível sua um mínimo de dignidade humana, ou seja,
participação direta. Isso traz como resultado a quando forem concretizados os Direitos Hu-
redução da política a modos informais e des- manos.
conectados de lutas e decisões, gerando uma
repolitização do social em moldes diversos do Contudo, podemos verificar que a sociedade
modo tradicional de fazer política. Essa praxe é dependente de políticas sociais. Há também
faz com que se fortaleçam as políticas sociais, que se ressaltar a importância da cidadania na
ou as políticas multiculturais, a fim de buscar forma democrática representativa, pois seria
direitos específicos de determinados grupos. difícil a convivência de indivíduos e culturas
Essas políticas sociais são um novo estilo de em um Estado aristocrático, onde teria “meia
democracia radicalmente aberta, indetermina- dúzia” de elite ou classe nobre, governando.
da e incerta, em que, através dessa, se busca Seria, dessa forma, um massacre às culturas,
promover o reconhecimento dos direitos e a principalmente, às minorias. Assim, a conclu-
extensão da cidadania, democratizando rela- são é lógica: é necessário apoiarmos as polí-
ções sociais específicas. ticas sociais e implantarmos políticas públicas
em prol das minorias. E, mesmo que a demo-
Nesse contexto, as minorias, ao serem eiva- cracia indireta não atinja a participação efetiva
das de sua participação democrática passam de todos os membros de uma sociedade, seria
a ser discriminadas, toleradas, ou até mesmo, esta a melhor maneira, para de alguma forma,
tidas como inexistentes. Nesse sentido, para todos participarem das decisões do Estado De-
Lafer (1988, p. 22), “o ser humano, privado mocrático de Direito.
de seu estatuto político, na medida em que é
28 capítulo 3
3. RECONHECIMENTO,
DEMOCRACIA E
MULTICULTURALISMO
A sociedade multicultural deve reconhecer o
valor do diferente enquanto diferente, ou seja,
fazer com que o fato das diferenças existentes
sirva como pressuposto para estabelecer metas
de tratamentos diferenciados a grupos sociais
diferentes, bem como para aceitar a existência nais promulgados imediatamente após as revoluções
do outro enquanto diferente. Charles Taylor do final do século XVIII. Com efeito, foi a partir das
experiências revolucionárias pioneiras dos EUA e da
(1994, p. 58) nos ensina que um indivíduo ou
França que se edificou o conceito de igualdade pe-
um grupo de pessoas podem sofrer um verda- rante a lei, uma construção jurídico-formal segundo
deiro dano, uma autêntica deformação se as a qual a lei, genérica e abstrata, deve ser igual para
pessoas ou a sociedade que os rodeiam lhes todos, sem qualquer distinção ou privilégio, deven-
demonstrarem como reflexo uma imagem li- do o aplicador fazê-la incidir de forma neutra sobre
as situações jurídicas concretas e sobre os conflitos
mitada, degradante ou depreciada sobre eles. interindividuais. Concebida para o fim específico de
abolir os privilégios típicos do ancien régime e para
Assim, de acordo com Taylor (1994 p. 64), dar cabo às distinções e discriminações baseadas na
para aqueles que têm desvantagens ou mais linhagem, no “rang”, na rígida e imutável hierarqui-
zação social por classes (“classement par ordre”), essa
necessidades, é necessário que sejam destina-
clássica concepção de igualdade jurídica, meramente
dos maiores recursos ou direitos do que para formal, firmou-se como idéia-chave do constitucio-
os demais. Não dar um reconhecimento iguali- nalismo que floresceu no século XIX e prosseguiu sua
tário a alguém, pode ser uma forma de opres- trajetória triunfante por boa parte do século XX.
são.
O autor comentou, acima, a respeito da igual-
Nesse sentido, a ideia de reconhecimento, dade formal, que foi e continua sendo fun-
como também a luta pelo reconhecimento de- damental para a construção de um Estado
vem ser um dos elementos fundamentais para constitucional. Todavia, é com o postulado
a consolidação e para a ampliação da demo- substancial da igualdade que iremos concre-
cracia. Isso significa dizer que as lutas por re- tizar uma democracia econômica e social.
conhecimento oriundas de políticas sociais ou Logo, a sua aplicação torna- se fundamental.
públicas não são concernentes a apenas certos Não se pode interpretar o princípio da igual-
indivíduos ou grupos, mas a todo o corpo so- dade como um princípio estático, indiferente
cial, e, principalmente, ao Estado. à eliminação das desigualdades, e o princípio
da democracia econômica como um princípio
A questão do reconhecimento dos direitos e da dinâmico, impositivo de uma igualdade mate-
identidade de grupos minoritários, marcados rial. A igualdade material postulada pelo prin-
por estigmas e desprezo social, é fundamental cípio da igualdade é também a igualdade real
para a realização da democracia e a ampliação veiculada pelo princípio da democracia econô-
da igualdade entre nós. Reconhecer, em sínte- mica e social.
se, é efetivar o princípio da igualdade material
e concretizar a justiça social. O princípio da igualdade material ou substan-
cial tornou-se um dos pilares da democracia
Notamos que igualdade é pressuposto tanto oderna. É evidente que a democracia em nosso
para o reconhecimento quanto para demo- Estado será concretizada na medida em que
cracia. Joaquim B. Barbosa Gomes (2009) nos todos sejam tratados iguais. Destarte, o reco-
ensina que: nhecimento se viabilizará por meio do multi-
culturalismo, enquanto política social, se este
A noção de igualdade, como categoria jurídica de pri- servir de pressuposto para a existência de polí-
meira grandeza, teve sua emergência como princípio
jurídico incontornável nos documentos constitucio-
ticas pública de parte do Estado.
capítulo 3 29
mativas. As políticas afirmativas são resultados
de uma sociedade democrática que almeja
a inclusão social, e, principalmente, a justiça
social, com base em programas apresentados
pelo Estado, cujo objetivo é observar o respei-
to ao princípio da igualdade.
30 capítulo 3
ações afirmativas, embasados numa partici-
pação democrática igualitária e numa política
multicultural de cidadania.
RESUMO
Neste capítulo iremos trabalhar o multicultu-
ralismo e a democracia enquanto instrumento
de proteção e reconhecimento das chamadas
minorias. O multiculturalismo é uma forma de
política social que visa efetivar os direitos fun-
damentais das minorias. A democracia, por sua
vez, é entendida como um regime fundado na
cidadania e soberania popular e que respeita
os direitos e garantias dos grupos sociais. En- PIOVESAN, Flávia. Democracia, Direitos Huma-
fim, o multiculturalismo e a democracia busca- nos e globalização. Disponível em http://www.
rão o reconhecimento, para assegurar a todos Dhnet.org.br/direitos/militantes/flaviapiove-
a liberdade, a dignidade e o valor da pessoa san/ piovesan_libglobal.html>. Acesso em: 8
humana. jul. 2009.
capítulo 3 31
Uma reflexão
para a Educação
Brasileira: a
importância das
minorias negras
na formação da
cultura nacional
INTRODUÇÃO
Trata-se de um capítulo com a intenção de problematizar a relação entre educação e minorias ne-
gras, sem relativizar o assunto, nem sob o prisma daqueles que há séculos controlam a educação,
não permitindo que ela realize o seu intento máximo: formar cidadãos conscientes. Uma reflexão
que tenha como norte a relação África-Brasil e como todos nós carregamos em nosso íntimo os
resquícios dessa relação, que já é tão maculada pelas representações negativas que foram sendo
historicamente construídas.
capítulo 4 33
1. A CONSTITUIÇÃO
DA IDENTIDADE
BRASILEIRA.
Inegavelmente, mesmo os mais ferrenhos ra-
cistas precisam reconhecer que a história da
humanidade tem seu início, na sua inteireza,
na África. Isso nos leva a entender que somos
todos africanos de origem, mesmo os mais or-
gulhosos europeus guardam ou trazem em si
uma essência africana, pois essa é a sua ori-
gem como humanidade.
O texto apresenta-se com uma abordagem so- De acordo com Paulo Botas (1996), foi noti-
bre a constituição da identidade do povo bra- ciado em 1995 um resultado de algumas pes-
sileiro, trazendo à luz a chegada dos negros quisas feitas por cientistas americanos, nas
africanos que foram trazidos para cá na época quais se conclui que o uso de ferramentas e
da escravidão, entrando em contato com as o surgimento das relações sociais entre seres
pessoas que já aqui estavam. Também havia a humanos começaram no continente africano
influência europeia, por ocasião do descobri- e não no europeu como se pensava até agora.
mento e, posteriormente, como exploradores Ficou evidenciado, com essa pesquisa, que os
das riquezas brasileiras; indígenas, que eram humanos africanos inventaram sofisticadas
os habitantes dessa terra e já aqui estavam tecnologias, muito antes que os europeus,
quando chegaram os descobridores; influ- entretanto, são estes que recebem o mérito
ências orientais, asiáticas e americanas, pois como os iniciadores da cultura moderna. Eis
somos um povo hibridizado. Segue-se uma o berço da humanidade, donde saiu Santo
reflexão sobre o Sistema Escolar Brasileiro, na Agostinho, um dos maiores filósofos cristãos
qual foram apontadas algumas características da História, aquele que rompeu com a visão
da educação ao longo dos anos e a sua impor- cíclica do acontecer humano; de onde saiu Ibn
tância em nossos dias. Khaldun, considerado fundador da história
como ciência, aquele que partia das questões
Mostra-se ainda que, mesmo havendo, por da sobrevivência para interpretar a história,
parte de alguns educadores, boa vontade antecipando Marx em muitos séculos.
para se trabalhar com uma educação inclu-
siva, ainda falta preparo. E, por último, mas Para a realidade brasileira, a relação com a
não menos importante, uma reflexão sobre África não foi de forma amistosa, pois começa
o Ensino Religioso nas escolas do Brasil. Fala- com a escravidão, ou o trabalho compulsório.
se da igualdade na educação, entretanto, em Foram milhões e milhões de africanos trazidos
nome dessa igualdade alguns aspectos foram para o Brasil provenientes de várias regiões da
feridos. É necessário que o ensino religioso nas África: da Costa Ocidental, entre o Senegal e
escolas não seja só judaico-cristão, mas um a Gâmbia (um longo trecho), Angola e tam-
ensino pacificador, um ensino multicultural, bém do interior como Zaire, da Costa Orien-
que leve em consideração os que não são cris- tal, Moçambique e Ilha de Madagáscar. Esse
tãos e, portanto, não podem ser classificados passado escravista marcou o negro, em nossa
como iguais. sociedade, com o estigma da inferioridade e
da prestação de serviços brutais sem qualifi-
Como disse, numa bela frase, Boaventura Sou- cação e também com aqueles rótulos relativos
za Santos: “Temos direito a reivindicar a igual- à malandragem e à imoralidade, é assim que
dade sempre que a diferença nos inferioriza e nós retribuímos os que trabalharam mais de
temos direito de reivindicar a diferença sempre três séculos para girar a economia brasileira.
que a igualdade nos descaracteriza.” Os negros africanos escravos são, sem dúvida,
34 capítulo 4
os maiores construtores do Brasil, são os que
mais bem fizeram a essa terra, e, paradoxal-
mente, são os mais estigmatizados. “O estig-
ma que a sociedade imprime ao negro é que
ele é escravo do branco e, por conseguinte, in-
ferior a este. Em vez de estigmatizar o branco,
que foi negreiro, ou seja, traficante de negro,
a sociedade prefere discriminar a vítima.” (BO-
TAS, 1996, p. 18).
capítulo 4 35
para uma educação inclusiva, mas tão somen-
te para a necessidade de, na sala de aula, ho-
mogeneizar as pessoas, como se ali não hou-
vesse ninguém que fosse diferente, pois essa é
a política do neoliberalismo.
36 capítulo 4
as deficiências cognitivas e a privação cultural
que as crianças sofreram no ambiente familiar.
Essa teoria também traz alguns problemas em
sua formulação. Ora, nenhuma criança é pri-
vada de cultura, pois a recebe no seio familiar.
capítulo 4 37
do no Antigo Testamento. O ensino religioso é
um fator importante na negociação da cultu-
ra nas escolas, pois nem todos os alunos são
cristãos-católicos, ou cristãos-protestantes; os
que não são devem perceber que a sua religião
também é valorizada e tem tanta importância
quanto essas religiões históricas.
38 capítulo 4
amo o mundo, que eu brigo para que a justiça
social se implante antes da caridade.” Não faz
sentido continuarmos com um processo cons-
tante de exclusão.
capítulo 4 39
REFERÊNCIAS
BOTAS, Paulo. Carne do Sagrado, Edun Ara.
Rio de Janeiro/Petrópolis: Koinonia Presença
Ecumênica e Serviço/ Vozes, 1996.
Atividades:
1. Qual a influência da tradição judaico-cristã
na formação do imaginário negativo das reli-
giões de origem africanas? Explique.
2. Comente qual o imaginário social do negro
representado nos filmes e novelas.
3. Explique a importância da contribuição afri-
cana na formação da cultura brasileira.
40 capítulo 4