O Processo de Reabilitação Psicossocial de Dependentes Químicos
O Processo de Reabilitação Psicossocial de Dependentes Químicos
O Processo de Reabilitação Psicossocial de Dependentes Químicos
São Paulo
2010
Bonadio, Alessandra Nagamine
Reabilitação Psicossocial de dependentes químicos: estudo qualitativo em uma
residência terapêutica / Alessandra Nagamine Bonadio. –-
São Paulo, 2010.
x, 204f.
iii
Alessandra Nagamine Bonadio
BANCA EXAMINADORA
Aprovada em ___/___/___
iv
DEDICATÓRIA
A todos que lutam por retomar a liberdade perdida para a dependência química.
v
AGRADECIMENTOS
Ao mestre e amigo Cássio Silveira, pela disponibilidade com que contribuiu em minha
formação acadêmica, a partir deste trabalho.
A Adriana Marcondes Machado, pelo contágio criativo das supervisões. Com você,
aprendi a trocar o“Absurdo!” pelo “Estranho...”, o “Porque” pelo “E”. Que diferença
fez!
A Paulo Bloise, obrigada pelo apoio atento, cuidadoso e criativo destes últimos meses-
anos. Foi realmente fundamental!
A Fernanda Ramos e Siglia Leão, parceiras de todas as horas, pelas ajudas diversas e
precisas, que só os bons amigos sabem dar.
A Dona Geralda Matta, pela cuidadosa revisão do texto, pelas gostosas horas de tricô e
fuxico e também pelas orações.
A meus pais, Glória e José Roberto, e ao time todo: Tatiana, Fabiano, Rosamélia e
Tiago, pelo presente de pertencer a esta família. Como é bom tê-los por perto!
vi
SUMÁRIO
Dedicatória .................................................................................................................. v
Agradecimentos ........................................................................................................... vi
Lista de siglas ............................................................................................................... ix
Resumo ........................................................................................................................ x
1. APRESENTAÇÃO (o ânimo da pesquisa) .................................................................... 2
1.1 Do projeto original às mudanças do percurso: construindo o olhar da pesquisa ........ 2
1.2 O problema da pesquisa .......................................................................................... 7
1.3 Justificativa: o contexto do problema ...................................................................... 7
1.4 Objetivos de pesquisa ............................................................................................. 9
2. CONTEXTO (cenário nacional e internacional) ........................................................... 11
2.1 Reabilitação psicossocial e recuperação ........................................................................ 12
2.2 Reabilitação vocacional: uma prática corrente em âmbito internacional ...................... 24
2.3 Diretrizes do governo brasileiro para o tratamento da dependência química .............. 30
3. PROCEDIMENTOS (a construção do campo) ........................................................ 39
3.1 A busca por um serviço para sediar a intervenção da pesquisa ............................... 39
3.2 A seleção dos participantes do estudo .................................................................. 42
3.3 Recursos metodológicos utilizados ....................................................................... 43
3.4 Tratamento dos Dados ......................................................................................... 53
3.5 Aspectos Éticos ..................................................................................................... 58
4. O CAMPO (cenário e atores) .................................................................................. 60
4.1 A Casa .................................................................................................................. 60
4.2 A equipe técnica .................................................................................................. 72
4.3 Os participantes do estudo ................................................................................... 76
5. CAMPOS TEÓRICOS E CAMPO EMPÍRICO ................................................... 88
(saberes que embasam este estudo e saberes gerados em campo, em diálogo)
5.1 DEPENDÊNCIA QUÍMICA ........................................................................................ 88
5.1.1 O processo saúde-doença segundo Georges Canguilhem ..................................... 88
5.1.2 Construção histórica do conceito de dependência química ................................ 100
5.1.3 Classificação nosológica: uso, abuso e dependência .......................................... 103
5.1.4 Da classificação nosológica à compreensão dinâmica ......................................... 105
5.1.5 As adições como sintoma social da contemporaneidade .................................... 116
5.2 RECURSOS TERAPÊUTICOS .................................................................................... 123
5.2.1 Princípios gerais do tratamento em dependência química .................................. 123
5.2.2 O programa dos Doze Passos ........................................................................... 125
vii
5.2.3 As residências terapêuticas ............................................................................... 130
5.2.4 Percursos terapêuticos prévios ......................................................................... 132
5.2.5 A centralidade do dispositivo grupal no tratamento das adições ...................... 137
5.2.6 O processo de reabilitação psicossocial e de recuperação na Casa .................... 142
5.3 TRABALHO ......................................................................................................... 148
5.3.1 A crise das identidades por Claude Dubar ........................................................ 148
5.3.2 Trabalho na atualidade: repercussões sobre as identidades estabelecidas .......... 157
5.3.3 A dependência química como fonte de trabalho para quem está em recuperação.... 168
5.4 A finalização da etapa de campo: dificuldades enfrentadas................................... 172
6. PÓS-CAMPO (desfechos conhecidos) .......................................................................... 174
7. DISCUSSÃO (do campo vivenciado ao campo refletido) ......................................... 178
8. CONSIDERAÇÕES FINAIS ................................................................................... 185
9. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ..................................................................... 187
Abstract
viii
LISTA DE SIGLAS
AA – Alcoólicos Anônimos
DQ – Dependência Química
MS – Ministério da Saúde
NA – Narcóticos Anônimos
ix
RESUMO
x
1. APRESENTAÇÃO
1. APRESENTAÇÃO (o ânimo da pesquisa)
Foi desta maneira, inesperada e repentina, que recebi a notícia sobre o fechamento da
residência terapêutica na qual foi desenvolvida a etapa de campo desta pesquisa. É das
relações que se passaram nesta moradia assistida, espaço de residência e tratamento para
dependentes químicos, que tratarei nesta tese. Um ambiente que já não existe mais.
Como é difícil falar de algo que já não existe. Esta foi das primeiras inquietações que me
ocorreram, quando da empreita de iniciar a elaboração escrita desta experiência. Dar
um formato inteligível e acadêmico a uma diversidade de vivências e reflexões advindas
de um lugar que não existe mais. Desafiadora esta tarefa. Seria como falar, em memória
póstuma, de alguém que já se foi, não fosse o caráter de continuidade que permanece, a
despeito do fechamento desta organização em específico. Continuidade de quê?
1 O nome original da residência terapêutica e os nomes dos participantes do estudo foram alterados a fim de
preservar o anonimato.
2
vivências de natureza subjetiva, como as identidades estabelecidas, o senso de auto-
eficácia e a auto estima experimentadas pelo sujeito acometido por esta condição.
A inquietação inicial, motivadora deste estudo, nasceu dos atendimentos que realizei,
como psicóloga clínica, em um ambulatório público para tratamento da dependência
química. Conforme observei, a partir desta experiência, a aquisição da abstinência
frequentemente não repercutia em melhoras em outras áreas da vida do paciente,
visivelmente prejudicadas pela instalação da dependência, evidenciando a necessidade
de se prover ao cliente outros suportes. Assim se iniciou a configuração do interesse
deste estudo: como auxiliar aquelas pessoas em tratamento a retomar satisfatoriamente
suas vidas? O trabalho que não existia ou era nocivo, muitas vezes fonte de
adoecimento; as condições precárias de moradia que atuavam diretamente sobre o
processo terapêutico vivenciado; a rede social que, mudados os hábitos relacionados à
dependência química, tornara-se praticamente inexistente. Foi a partir deste contexto
que o processo de reabilitação psicossocial de pessoas em tratamento para dependência
química passou a figurar como campo de interesse deste estudo, configurando, desde
suas origens, uma pesquisa essencialmente clínica.
O foco deste estudo foi compreender quais elementos atuam sobre o processo de
reabilitação psicossocial e de que maneira se articulam para favorecer a retomada ou
inauguração de condições favoráveis a uma inscrição autônoma na vida, por aqueles
cuja trajetória pessoal foi marcada pelo aprisionamento na dependência química.
Dos muitos eixos que compõem o processo de reabilitação psicossocial, escolhi focalizá-
lo a partir da temática do trabalho, motivada pelo sentido social a ele vinculado:
trabalho enquanto protoforma da atividade humana, historicamente considerado uma
das atividades centrais à constituição da identidade pessoal e ao ingresso no universo
adulto – temáticas caras ao processo de recuperação de pessoas acometidas pela
dependência química.
3
Interessava inicialmente conhecer a trajetória de pessoas em tratamento para
dependência química no mundo do trabalho, a fim de avaliar de que maneira esta
temática poderia ser incluída no tratamento, de modo a favorecer sua recuperação.
Como se dava a entrada e a manutenção destas pessoas no universo do trabalho? Que
dificuldades permeavam a retomada da atividade ocupacional ao longo do processo de
recuperação? Com que recursos contavam para realizar esta empreita? Como avaliavam
o papel dos espaços formais de tratamento, em relação às possibilidades de ajuda
quanto à temática ocupacional?
4
intervenção sugerido, em um ambulatório público da cidade de São Paulo,
acompanhada de avaliações de seguimento, após seis meses e um ano, a partir da
utilização de instrumentos específicos voltados a avaliar qualidade de vida, gravidade da
dependência química e status ocupacional dos pacientes. Os dados seriam analisados por
meio de análise estatística descritiva, comparando-se os dados encontrados
anteriormente à intervenção e os dados encontrados nos dois seguimentos.
O confronto com esta realidade em campo, somado à interlocução com pessoas hábeis
na tarefa de fazer pensar, crítica e refletidamente, tratou de desfazer qualquer equívoco
iminente, ajudando a delinear outro caminho: mais investigativo e menos assertivo;
mais receptivo aos inúmeros estranhamentos emergentes em campo e, assim, menos
taxativo. Um caminho mais enriquecedor ao propósito de ampliar a compreensão
5
sobre o fenômeno de que trata este estudo e, certamente, muito mais honesto e
respeitoso com aqueles que dele fizeram parte, porque em momento algum prometeu
respostas que não podia dar, tratando, antes, de fazer aos participantes do estudo um
convite para percorrermos, juntos, um universo muito mais desconhecido para nós,
pesquisadores, do que para eles, nomeados pacientes. Efetivamente bastante pacientes e
colaboradores ao longo de todo o processo de pesquisa.
Compreender, portanto, foi algo que se instalou como objetivo deste estudo apenas lá
adiante do trabalho de campo, repercutindo na necessária revisão da metodologia
utilizada e consolidando a abordagem qualitativa como o método de escolha para a
observação do fenômeno em questão. Se as perguntas que guiaram o desenho original
desta pesquisa relacionavam-se à busca pelos ‘ingredientes ativos’ de intervenções em
reabilitação profissional consideradas bem sucedidas para favorecer o retorno ao
mercado formal de trabalho, conforme avançou o percurso em campo, as perguntas se
modificaram substancialmente. Já não se tratava mais de investigar o que funcionaria
para auxiliar aquelas pessoas no retorno ao mercado formal de trabalho ou a alguma
atividade ocupacional significativa, mas o que poderia ajudá-las a acessar e encaminhar
seus desejos pessoais, em direção à elaboração e concretização de seus projetos de vida.
O registro deslocou-se da reabilitação profissional para o processo de recuperação em si.
6
reabilitação psicossocial desses indivíduos, a partir de discussões relacionadas ao universo
do trabalho, segundo o ponto de vista de quem está em tratamento.
É sabido, tanto pela descrição da literatura, quanto pela experiência clínica em contextos
diversificados (ambulatorial, internação, consultórios particulares), que uma das etapas
mais complicadas do processo terapêutico de dependentes químicos relaciona-se
7
justamente ao restabelecimento da vida nos diversos eixos que a compõem (casa,
trabalho, rede social, lazer, entre tantos outros), para além da conquista da abstinência
da substância psicoativa. O corpo liberado quimicamente da droga, em geral, constitui
um primeiro passo para favorecer o processo de reabilitação psicossocial, mas a
condição de abstinência, por si, não é suficiente para garantir que o estabelecimento de
outros pactos vitais se faça com sucesso. O corpo liberado da substância não postula,
por si, a respeito de dificuldades relacionais ou motivacionais, frequentemente atuantes
anteriormente à instalação da dependência química, ou mesmo emergentes neste
decurso. Assim como não produz, autonomamente, novas e criativas formas de viver e
enfrentar as dificuldades resultantes da instalação da doença ou relacionadas à vida em
geral. Daí a necessidade de um olhar que se constituísse amplo e aprofundado o
suficiente para capturar as diversas nuances envolvidas neste processo, em nada objetivo
ou quantificável. Falamos aqui do processo de recuperação, que conceituaremos mais
adiante.
8
1.4 Objetivos de pesquisa
9
2. CONTEXTO
2. CONTEXTO (cenário nacional e internacional)
1
Optamos por manter em inglês a terminologia que descreve o movimento emergente no
campo da saúde mental, originário nos Estados Unidos. Utilizaremos a expressão traduzida para
o português (recuperação) quando fizermos referência ao processo pelo qual passa o portador de
transtorno mental e de dependência química.
11
2.1 Reabilitação psicossocial e recuperação
Disto decorre o fato de que ninguém e nenhum dispositivo terapêutico podem incutir,
ao portador do transtorno mental, o espírito da recuperação, pois este não é um
processo forçado, da mesma maneira como não é suficiente que seja um processo
desejado (DEEGAN, 1988). Apesar disto, contudo, é possível afirmar que existem
ambientes mais propiciadores de recuperação do que outros. É importante atentar a este
fato, pois é comum observar entre familiares e profissionais da saúde o estabelecimento
de metas visando à aquisição de certos resultados, que podem não coincidir com os
desejos e propósitos da pessoa em tratamento. Priorizam-se, assim, experiências que
podem não ser relevantes ou significativas para aquele a quem primeiramente diz
respeito o processo de recuperação. Tais diferenças de expectativas refletem-se
diretamente na organização dos serviços em saúde mental, bem como nos tratamentos
12
disponibilizados (JORGE-MONTEIRO & MATIAS, 2007).
Vale destacar, ainda, a diferenciação existente entre recuperação e cura. Esta última
pressupõe a remissão total dos sintomas relacionados à doença mental; a ausência de
doença. Já a recuperação, não significa a remissão total dos sintomas associados à
doença ou o regresso a uma condição anterior, a um estado pré-existente. A
recuperação implica, antes, no desenvolvimento de novos comportamentos e
aprendizados que resultem em uma nova maneira de viver, integrando as restrições
impostas pela doença, mas transpondo-as funcionalmente. Trata-se de uma adaptação,
em que ficam valorizados os potenciais da pessoa, em detrimento das limitações
ocasionadas pela doença. Neste sentido, portanto, a recuperação, como qualquer outro
processo de aprendizado e transformação, pressupõe um movimento ascendente, em
espiral, destacando-se natureza dinâmica deste processo.
13
A transposição destes conceitos para o campo da dependência química requer algumas
ressalvas, pois diferentemente dos prejuízos relacionados ao transtorno mental, a
exemplo da esquizofrenia, os prejuízos observados no campo da dependência química
apresentam especificidades que precisam ser consideradas. Um destes pontos está na
própria organização dos serviços oferecidos. Nos últimos trinta anos, o sistema de saúde
mental tem se reorganizado para oferecer serviços de suporte na comunidade. Contudo,
os programas de tratamento para dependência química avançaram menos nesta direção,
em relação aos serviços de saúde mental, continuando a oferecer, principalmente, um
suporte de curto prazo, focalizado na fase aguda da doença e prestado nos
ambulatórios especializados, com pouco suporte contínuo prestado na comunidade
(GAGNE et al, 2007).
14
É em meados dos anos 70, acompanhando o processo de desinstitucionalização e a
emergência do atendimento prestado na comunidade (community support system), que
as práticas em reabilitação ganham força (ANTHONY, 1993). A desinstitucionalização,
como parte importante da reforma do sistema de saúde mental, levou à implementação
de uma rede alternativa de atendimento na comunidade, já que se tornava necessário
cuidar adequadamente do retorno à sociedade de pessoas reclusas por longo período de
tempo, beneficiando-as a partir dos dispositivos existentes na própria comunidade.
O movimento do recovery começou a emergir em meados dos anos 70, nos Estados
Unidos, a partir da iniciativa de portadores de transtornos mentais, em busca de seus
direitos de cidadão (Anthony, 1993). Contudo, é no início dos anos 90 que este
movimento ganha visibilidade, a partir da divulgação de textos escritos por portadores
de transtornos mentais, sobre suas experiências de enfrentamento e convivência com a
doença. Este gênero de literatura, somado aos primeiros escritos publicados por
profissionais da área de saúde mental, legitimando a importância de tais textos e das
experiências neles contidas, também no início da década de 90, configuraram o
recovery como um movimento na área da saúde mental (RALPH & MUSKIE, 2000;
ANTHONY, 1993).
Embora não exista uma única e consensual definição sobre estes dois processos, faremos
um esforço didático de apresentar uma conceituação que abarque, do nosso ponto de
vista, diferentes e significativos aspectos destes fenômenos.
15
Algumas definições descritas na literatura enfatizam reabilitação psicossocial como um
processo que envolve: indivíduos prejudicados; demandas singulares; reconstrução de
contratualidade em diversos âmbitos (casa, trabalho, comunidade); remoção de
barreiras; estímulo às competências e potenciais individuais; ênfase na rede social; e foco
na equidade e na cidadania. Seguem algumas conceituações possíveis:
16
genérica, auxiliar pessoas afetadas por algum transtorno mental a reduzir o prejuízo e a
incapacidade, direta ou indiretamente relacionados à doença, melhorando sua
qualidade de vida (GAGNE et al, 2007). Conforme enfatizado anteriormente, trata-se
de um processo centrado na pessoa, exigindo, portanto, seu envolvimento pessoal. A
ênfase da recuperação está no crescimento pessoal, traduzido pela capacidade de fazer
escolhas – característica relacionada à contratualidade.
17
momentos em que ela própria vier a perder a confiança em si mesma (ANTHONY,
1993). Daí a importância do apoio familiar e dos pares, ao longo do processo de
recuperação, sobretudo considerando-se seu caráter contínuo e não linear (GAGNE et al,
2007).
18
próprias de cada indivíduo; auxilia a pessoa em tratamento a se integrar em sua
comunidade, de modo a que ela consiga desenvolver atividades que outros membros da
comunidade fazem, em suas vidas diárias; deve funcionar de maneira integrada com
recursos da comunidade, não se bastando em seu próprio universo. Além do tratamento
clínico, portanto, um serviço orientado à recuperação deve focalizar a reabilitação
psicossocial do cliente, favorecendo sua participação em grupos de ajuda-mútua,
estabelecendo parcerias com recursos da comunidade, oferecendo-lhe assistência jurídica
e apoio para encaminhar necessidades primárias (moradia, educação, trabalho, entre
outras), além de disponibilizar apoio e orientação aos familiares (GAGNE et al, 2007).
Além disso, é preciso que o ambiente terapêutico seja propício a práticas de reabilitação
psicossocial; uma característica assegurada somente pelo sentido atribuído pelo serviço
às estratégias de reabilitação. É somente este sentido que garante ao processo o seu
caráter reabilitador, e não as técnicas de reabilitação em si, visto que tais tecnologias são
apenas etapas do processo de reconstrução da contratualidade. Conforme nos alerta
Saraceno (2001), as técnicas reabilitatórias são estratégias, ou seja, pontos de partida,
jamais devendo constituir-se ponto de chegada do processo de reabilitação psicossocial:
(SARACENO, 2001)
O próprio acesso ao tratamento clínico compõe uma estratégia importante para facilitar
o processo de recuperação. No campo da dependência química, fazem parte do
tratamento, além de medicação e psicoterapia, o acompanhamento contínuo do cliente,
após a fase aguda do tratamento, para facilitar uma intervenção clínica imediata, em
caso de risco de reinstalação da dependência química (GAGNE et al, 2007).
19
sentido, é fundamental incluir no processo de recuperação atividades e organizações
fora do âmbito da saúde mental, como atividades esportivas, religiosas, recreacionais,
educacionais (ANTHONY, 1993). O fato de serem atividades realizadas em grupo é de
crucial relevância à recuperação, uma vez que favorece o rompimento do isolamento
social que frequentemente acompanha a doença mental. Conforme enfatiza Anthony
(1993), a recuperação é uma experiência profundamente humana. Portanto, em muito
influenciada pelas respostas humanas de outros significativos. Daí a importância de que
o processo de recuperação favoreça a (re) inscrição do indivíduo na coletividade de que
ele faz, ou deveria fazer, parte.
No âmbito dos programas de tratamentos, diversos recursos podem ser utilizados nas
iniciativas de reabilitação, como elementos mediadores deste processo: grupos
operativos, ateliês terapêuticos, reabilitação vocacional, treino de habilidades,
psicoeducação, suporte social, atendimento familiar (OMS, 2001; PITTA, 2001). Existem
também diversas atividades que podem ser enfatizadas para estimular o processo de
recuperação: discussão de livros, de filmes, discussões em grupos, visitas a lugares fora
do ambiente de tratamento, estímulo a conversa com pessoas diferentes, ou mesmo o
contato com pessoas que tenham conseguido se recuperar ou que estejam mais
adiantadas neste processo. O programa terapêutico oferecido deve ser criativo e
estimulante para os clientes, uma vez que não há saúde sem criação, como nos lembra
Canguilhem (2007).
20
É a partir de uma avaliação inicial minuciosa, que pode ou não ser estruturada sob a
forma de questionários padronizados, que será delineado o plano terapêutico, contendo
as estratégias mais adequadas de serem utilizadas. Independentemente do formato, é
importante que a avaliação psicossocial seja sistemática e abrangente, priorizando os
pontos fortes do cliente (KING, 2007).
21
O plano de reabilitação é um desdobramento natural da avaliação realizada. Este plano
identifica as metas, estratégias e objetivos que serão trabalhados durante o processo de
reabilitação. O plano realizado tem mais chances de se efetivar, quanto mais negociado
e elaborado em conjunto com o cliente tiver sido seu processo, refletindo as prioridades
e o estágio de recuperação em que se encontra o cliente, bem como ancorado em seus
pontos fortes (KING, 2007). É importante identificar o estágio do processo de
recuperação em que o cliente se encontra, pois cada momento é acompanhado de
questões específicas, que precisam ser consideradas para que o processo tenha mais
chances de se efetivar com sucesso. Na tabela 2 apresentamos os principais desafios e
questões pertinentes a cada estágio de recuperação.
A escolha das estratégias mais adequadas para serem utilizadas em dado momento do
processo de reabilitação resulta das melhores negociações entre as necessidades do
cliente e as oportunidades e recursos disponíveis no contexto, considerando: 1) o nível
ótimo de estimulação, a fim de não deixar o cliente aquém, ou solicitá-lo além, de suas
possibilidades; 2) impedimentos específicos, delimitando restrições; 3) expectativas dos
profissionais de saúde mental – que frequentemente podem ser opostas às aspirações do
cliente (KING, 2007; OMS, 2001).
22
Uma vez descritos os processos relacionados à recuperação e à reabilitação psicossocial
de pessoas em tratamento para a dependência química, cabe enfatizarmos algumas
considerações a respeito dos equívocos potencialmente atrelados a esta terminologia.
Encerramos este capítulo atentando para os riscos embutidos nos termos reabilitação e
recuperação. A utilização do prefixo re evoca a expectativa, equivocada, de que é
possível retornar a uma suposta condição original, de dita ´normalidade´. Embora a
aferição da inclusão seja desejável, trata-se de definir, conforme interroga Benetton
(2001), se a aferição se fará “pelo novo ou pelo readquirido”? Como se o retorno à
condição original fosse uma possibilidade efetiva. A autora propõe o afastamento de
todo conceito que implique em restituição do estado anterior, de modo a não mais
haver comparações: “apenas o vivido e o experimentado tornam-se subsídios para o
futuro”. E retornando à terminologia, conclui:
23
2.2 Reabilitação Vocacional: uma prática corrente em âmbito internacional
24
não), o trabalho desempenha papel central na constituição da identidade pessoal, assim
como na conquista de um sentimento de dignidade social, dando às pessoas um senso
de propósito e significado na vida, contribuindo para aumentar a auto-estima e para
estruturar o cotidiano, ao favorecer a participação no contexto social, o contato com os
semelhantes e o engajamento em uma atividade produtiva (BECKER et al, 2005;
COMERFORD, 1998; MOWBRAY et al, 1997).
25
2.2.1 Os serviços de reabilitação vocacional
Surgidos inicialmente no contexto norte americano, em meados dos anos 60, os serviços
vocacionais são geralmente disponibilizados por agências especificamente voltadas a este
fim, governamentais ou não (TIP 38, 2000). Também podem, contudo, integrar os
programas de tratamento, sendo disponibilizados nos próprios settings terapêuticos.
A população alvo dos serviços vocacionais inclui os dependentes químicos, mas não se
restringe a eles. Portadores de transtornos mentais crônicos frequentemente integram o
quadro de usuários dos serviços vocacionais, conjuntamente a pessoas com problemas
relacionados ao abuso de substâncias (MOWBRAY et al, 1997).
26
externas ao cliente estão: oportunidades restritas de trabalho, resultantes, muitas
vezes, do estigma dos empregadores; dificuldades com transporte; suporte social
prejudicado; condições precárias de moradia e subsistência, entre outras.
27
A outra abordagem subjacente aos serviços vocacionais – supported employment –
consolidou-se nos Estados Unidos, a partir dos anos 80, enfatizando a importância de
um retorno imediato ao mercado de trabalho, em oposição à abordagem pautada em
extensos períodos de atividades pré-vocacionais e em empregos transitórios e protegidos
(BECKER et al, 2005; BOND et al, 2001). De acordo com a definição proposta pelo
governo norte-americano (in BOND et al, 2001), esta abordagem visa a auxiliar pessoas
prejudicadas por alguma condição crônica incapacitante a obter emprego no mercado
de trabalho formal, em ambientes integrados à comunidade, conforme suas
potencialidades, recursos, prioridades, preocupações, capacidades, habilidades, interesses
e preferências pessoais. Os clientes destes programas vocacionais são pessoas que, em
função dos prejuízos relacionados ao quadro clínico, jamais pleitearam uma vaga no
mercado de trabalho ou pessoas cuja participação foi interrompida ou intermitente,
como resultado do adoecimento.
28
familiares, problemas de saúde, insatisfação com a aparência pessoal, discriminação
racial ou sexual, fatores ligados à economia, dificuldades com transporte,
responsabilidades ‘concorrentes’ ao trabalho (como cuidados com filhos e outros
familiares) e o estigma relacionado à dependência química (French et al, 1992;
Schottenfield et al, 1992).
29
autor, serviços cruciais à conquista de benefícios duradouros.
Uma política nacional de atenção aos usuários de substâncias psicoativas está ainda em
30
consolidação no Brasil e vincula-se estreitamente à política de saúde mental vigente. No
âmbito do Ministério da Saúde, as políticas e práticas dirigidas aos usuários de
álcool/drogas subordinam-se à Área Técnica de Saúde Mental/Álcool e Drogas. Toda a
política oficial voltada ao campo da dependência química vincula-se, portanto, aos
princípios preconizados pelo Sistema Único de Saúde (SUS) e pela reforma psiquiátrica,
enquanto marco teórico-político.
Instituído por leis federais nos anos 90, o SUS tem base na Constituição Federal de 1988,
que prevê a “saúde como direito de todos e dever do Estado”. Trata-se de um sistema
pautado em um conjunto de ações e serviços de saúde voltados a garantir o acesso
universal da população a uma rede de assistência integral e equitativa, prevendo ainda a
descentralização dos recursos de saúde e um controle social misto (Conselhos
Municipais, Estaduais e Nacional de Saúde, com representantes de diversos setores
sociais: usuários, prestadores de serviço, trabalhadores) (MINISTÉRIO DA SAÚDE,
2004a).
31
Entre estes dispositivos de assistência, preconiza-se a utilização da estratégia de redução
de danos sociais e à saúde e ações de caráter terapêutico, preventivo, educativo e
reabilitador, direcionadas tanto a usuários quanto a familiares, a serem conduzidas na
própria comunidade, evitando-se internações em hospitais psiquiátricos. Em âmbito
legal, são consideradas atividades de reinserção social do usuário ou dependente de
substâncias aquelas voltadas à sua integração em redes sociais, prevendo, portanto, o
investimento em alternativas diversificadas - esportivas, culturais, artísticas, profissionais,
entre outras - como forma de inclusão social e de melhoria da qualidade de vida.
Como parte das mudanças ocasionadas no campo da saúde mental, em julho de 2003,
o governo institui o Auxílio-Reabilitação Psicossocial para pacientes acometidos por
transtornos mentais e egressos de internações psiquiátricas. Trata-se de uma ajuda
financeira, no valor de R$ 320.00, disponibilizada pelo período mínimo de um ano,
para pessoas que tenham passado pelo menos dois anos em hospitais ou unidades
psiquiátricas (MINISTÉRIO DA SAÚDE, 2003). É o principal componente do programa
de ressocialização proposto pelo governo e denominado “De volta para casa”. Tal
programa focaliza a inserção social de pessoas acometidas por transtornos mentais a
partir da organização de uma rede ampla e diversificada de recursos assistenciais e de
cuidados capazes de propiciar o convívio social, incentivando o exercício dos direitos
civis, políticos e de cidadania da pessoa em processo de ressocialização (MINISTÉRIO
DA SAÚDE, 2003). Contudo, este Programa abarca ainda num número pequeno de
beneficiários. Apenas 1/3 do número estimado de pessoas internadas com longa
permanência hospitalar recebe o benefício, totalizando 3.574 beneficiários, conforme
32
dados publicados pelo Ministério da Saúde (2010). De acordo com esta publicação, os
principais obstáculos a serem enfrentados pelo processo de desinstitucionalização são:
problemas relacionados à documentação dos pacientes, crescimento em ritmo
insuficiente das residências terapêuticas e dificuldades para a redução pactuada e
planejada de leitos psiquiátricos e ações judiciais (MINISTÉRIO DA SAÚDE, 2010).
33
Os Centros de Atenção Psicossocial (CAPS)
34
comunidade para promover a reintegração profissional dos usuários; 29,8% não
apresentavam nenhum tipo de parceria com outros recursos da comunidade, voltados à
promoção da reinserção social; 45,2% dos CAPS avaliados não realizavam capacitação
das equipes de atenção básica; 64,3% não disponibilizavam supervisão técnica para os
membros das equipes da atenção básica; 42% não tinham retaguarda para internação
psiquiátrica; e para 37,6% dos CAPS avaliados a relação intersetorial com outros
serviços do território foi apontada como a maior dificuldade enfrentada pelo Serviço,
enquanto para a grande maioria da amostra (69,4%) a maior dificuldade enfrentada
estava na insuficiência do quadro de pessoal (CREMESP, 2010).
35
evidencie o esforço governamental voltado à necessária avaliação e incremento da
assistência prestada nos CAPS, o alcance prático das iniciativas observadas ainda é
incipiente. Tanto mais quando se considera a natureza complexa do Serviço em questão,
conforme destaca Onocko-Campos e Furtado (2006), considerando a proposta de
ruptura como o modelo hospitalocêntrico embutida na concepção dos CAPS:
36
Amparado legalmente por uma legislação específica, o cooperativismo está no Brasil a
cargo da Secretaria Nacional de Economia Solidária (SENAES), criada em 2003,
vinculada ao Ministério do Trabalho e Emprego. É o órgão responsável por difundir e
fomentar a economia solidária pelo Brasil, apoiando as iniciativas neste setor. Ainda que
algumas iniciativas em economia solidária datem de mais de dez anos, o que se observa
em geral – conforme evidenciado pela Oficina de Experiências de Geração de Renda e
Trabalho, promovida pelo Ministério da Saúde e do Trabalho e Emprego em novembro
de 2004 – é a fragilidade das experiências em curso. Esta fragilidade parece decorrer de
uma sustentação legal e incentivos financeiros ainda pouco consistentes para promover
amparo seguro. Desta maneira, ainda que a aplicação dos princípios da economia
solidária ao campo da reabilitação psicossocial pareça constituir alternativa interessante
à problemática da geração de renda para populações excluídas, as experiências em curso
ainda são frágeis e de pequena sustentabilidade institucional, carecendo de maior
acompanhamento e consolidação. Isto se torna ainda mais premente quanto se
considera a população dependente química, já que as iniciativas usualmente em curso
congregam, em sua maioria, egressos de serviços de saúde mental.
37
3. PROCEDIMENTOS
3. PROCEDIMENTOS (a construção do campo)
Compareci, então, ao final de uma das aulas para falar aos alunos sobre o estudo em
questão e convidá-los a participar de algumas conversas sobre o tema. Do total de vinte
e quatro alunos inscritos no curso, dez apresentavam histórico de dependência química.
39
Destes, oito optaram por participar de quatro conversas sobre a pesquisa, ajudando a
refletir sobre o tema da inclusão do trabalho no tratamento da dependência química, a
partir de seus percursos pessoais. Nesta etapa, foram realizados no total quatro
encontros, no formato de grupos focais, em frequência semanal, com duração média de
uma hora e meia cada encontro, a partir de um roteiro previamente estabelecido,
contemplando os seguintes tópicos: levantamento dos históricos ocupacionais;
concepções sobre fatores que favorecem o processo de reabilitação ocupacional para
quem está em tratamento; concepções sobre trabalho. Os dados emergentes nesta etapa
da pesquisa foram analisados em conjunto com os demais dados, relacionados à
residência terapêutica pesquisada.
Foi a partir de um dos alunos deste curso, Daniel, que cheguei, por fim, à residência
terapêutica onde se desenvolveu a etapa de campo desta pesquisa. Para fins deste relato,
nomearei esta organização apenas como a Casa.
“Vai lá visitar a gente”. Foi a partir deste convite, feito recorrentemente por Daniel, que
iniciei o contato com a Casa, em meados de Junho de 2008. Daniel era aluno do Curso
de Acompanhamento Terapêutico da UNIAD e membro da equipe técnica da Casa.
Dirigia este convite a todos que acabava de conhecer, genuinamente interessado em
divulgar a nova organização em que ingressara como monitor e pessoalmente muito
engajado e orgulhoso do projeto terapêutico da Casa. Tratava-se de um “duplamente
novo”: para ele, que havia acabado de ingressar na equipe técnica da entidade, e para a
própria Casa, que havia sido recém-inaugurada como residência terapêutica.
Depois vim a saber que a Casa, para Daniel, além de seu local de trabalho, era também
sua moradia. E as pessoas que compunham aquela organização, em alguma medida,
haviam se tornado de tal modo importantes em sua vida que poderiam facilmente ser
tomadas por familiares. Notava-se em seu entusiasmo que aquele projeto era também
seu. Uma apropriação que se concretizava em espaço de trabalho, de moradia e em sua
rede social.
Foi de uma maneira bastante despojada que falei pela primeira vez ao telefone com
Patrícia, a coordenadora da Casa. Não tinha nem certeza se ela sabia quem eu era
40
quando um dia Daniel me passou, repentinamente, o telefone, na recepção da UNIAD:
“A Alessandra quer falar com você!” Eu queria. Embora não naquele minuto, pega
desavisadamente de surpresa. Apresentei-me brevemente e, após poucas palavras sobre
a pesquisa, ela me abriu a Casa para que eu fosse visitá-los quando eu quisesse, sem mais
perguntas ou checagens sobre a natureza da pesquisa ou sobre quem eu era. Esta seria a
relação da coordenação com a pesquisa e comigo, durante todo o trabalho de campo
realizado: “Se estiver bom para eles, para mim está bom também. Isto daqui existe para
eles.” – era sua fala recorrente, diante de minhas tentativas em lhe explicar sobre os
procedimentos que íamos (os participantes do estudo e eu) combinando em campo. Era
também, como pude perceber mais adiante, o tom com que coordenava a Casa, tanto
administrativa quanto clinicamente. Tratava-se de um misto de liberdade e confiança
que às vezes me gerava um estranhamento grande, pois temia que tal postura pudesse se
confundir com negligência, trazendo, junto com as diversas vantagens de um
posicionamento mais livre, algumas complicações.
No dia combinado, o despojamento foi o mesmo, senão maior. Patrícia foi quem me
abriu a porta, quando cheguei à Casa. Estava na sala, conversando com uma das
moradoras. Logo pediu para que chamassem Daniel, que me mostraria o espaço físico
da Casa e me apresentaria aos pacientes. “Você quer falar com os meninos né?” Sim, eu
queria, embora quisesse antes falar com ela. Desta vez, fui preparada para uma
conversa: esclarecer em detalhes os objetivos da pesquisa, os procedimentos, responder
a perguntas etc. Mas nada me foi perguntado neste dia, pela coordenação; como não
seria em momento algum. Ao contrário, o pouco que acabamos conversando naquele
dia teve a ver com a história de formação da Casa. Esta conversa foi bastante breve. O
tempo de Daniel chegar e me conduzir por um tour pelo espaço físico da casa, seguido
da apresentação para os pacientes-moradores. Uma descrição pormenorizada deste
primeiro contato com a Casa, contendo as impressões suscitadas, será apresentada no
Capítulo 4.
A Casa constituiu, por fim, o campo pesquisado. Difícil de ser encontrado, mas fácil de
ser acessado. Por campo, compreendemos o espaço físico em que estão as pessoas que
podem falar, com autoridade, sobre o tema pesquisado, conforme descreve Turato
(2003); trata-se de um recorte espacial no qual o pesquisador relaciona-se com estas
pessoas, objetivando ouvir o discurso pertinente e observá-las em sua postura.
41
complexidade de natureza relacional, uma vez que o enquadramento do setting engloba
justamente as “relações interpessoais, eminentemente psicológicas” (TURATO, 2003) –
aspecto bastante intensificado no campo pesquisado, conforme se verá mais adiante,
quando da apresentação dos saberes gerados em campo (Capítulo 5).
Alguns fatos parecem ter contribuído para despertar interesse em participar do estudo:
1) o fato de a organização estar iniciando seu funcionamento e contando ainda com
42
poucas atividades terapêuticas; 2) o fato de a temática central relacionar-se a trabalho,
despertando-lhes um interesse especial (“Outros assuntos, além da droga...” – conforme
a fala de um dos participantes); 3) o tom autônomo conferido pela coordenação à
gestão da Casa (“Se estiver bom para eles, para mim está bom também”); e 4) o fato de
se tratar de uma pesquisa de doutorado, desenvolvida na UNIFESP, parecendo conferir
maior credibilidade ao estudo e à pesquisadora.
Assim, minha presença em campo teve, desde o início, uma marca investigativa e clínica,
simultaneamente, sendo o caráter de intervenção clínica notável, sobretudo, nas
entrevistas individuais e nos grupos realizados.
44
O período em que permaneci em campo totalizou seis meses, decorridos entre junho e
dezembro de 2008. De maneira resumida, segue uma descrição cronológica dos
procedimentos realizados em campo ao longo do referido período:
JUNHO
- 1ª visita à residência terapêutica
- Realização dos grupos 0 e 1
JULHO
- Realização dos grupos 2, 3, 4
AGOSTO
- Inicio das entrevistas individuais
- Realização dos grupos 1, 2, 3, da segunda fase
SETEMBRO
- Realização dos grupos 4, 5
- Mudança para a casa nova
- Realização do grupo 6
- Entrevistas individuais
- Participação em uma reunião de equipe técnica
OUTUBRO
- Realização dos grupos 7 e 8
- Entrevistas individuais
NOVEMBRO
- Entrevistas individuais
- Participação em reunião de equipe técnica
DEZEMBRO
- Finalização das entrevistas individuais
- Fechamento da residência terapêutica
a) Observação Participante
45
Valemo-nos da definição proposta por Minayo (2008b) para esclarecer o registro
conceitual norteador das observações realizadas em campo:
A vivência da afetação constante e intensa pelo campo pesquisado foi notável desde o
primeiro contato que estabeleci com a organização, exigindo-me um processo de
reflexão igualmente intenso e permanente – viabilizado, sobremaneira, pela interlocução
com parceiros de pesquisa externos ao campo, conforme descrito anteriormente.
46
A esta gama de afetos – distintos, intensos e mutáveis ao longo da minha permanência
em campo – corresponderam mudanças de atitudes igualmente importantes. Neste
sentido, foi interessante testemunhar, no curso do processo relacionado às observações
participantes, a emergência de algumas atitudes fundamentais para viabilizar minha
aproximação com o campo pesquisado, tal como enfatiza Minayo (2008b), a partir da
obra do sociólogo americano Alfred Schutz: a capacidade de se colocar no lugar dos
entrevistados, procurando compreender os princípios gerais que norteiam suas vidas e
experiências cotidianas, “desvendando-se a lógica subjacente”; e a manutenção de uma
“perspectiva dinâmica” que possibilitasse identificar o que era de fato relevante para os
participantes do estudo – a despeito das hipóteses previamente formuladas ou do nosso
posicionamento pessoal, enquanto pesquisador.
47
b) Grupos Focais
A escolha pelo grupo focal como um dos recursos de coleta de dados foi potencializada
pela própria natureza do tema pesquisado. Entendemos que a investigação relacionada
à temática da reabilitação psicossocial não poderia prescindir da observação da
interação dos participantes em grupo, uma vez que é no contexto grupal que este
processo se estabelece. Optamos, ainda, por privilegiar a observação de diferentes
perspectivas sobre o tema pesquisado, considerando-se aqui, não apenas as opiniões
distintas, provenientes de cada participante, mas sobretudo a sinergia própria do
dispositivo grupal, produzindo novas modulações. Neste sentido, esclarece Gatti (2005):
O potencial ímpar dos grupos focais reside na interação entre os participantes, que pode
ser utilizada para favorecer diversas finalidades (KITZINGER, 2009): ressaltar atitudes,
prioridades, linguagem e estrutura de compreensão dos participantes; estimulá-los a
gerar e a explorar suas próprias questões, desenvolvendo uma análise pessoal das
experiências em comum; favorecer a identificação de normas e valores culturais do
grupo; estimular diversas formas de comunicação entre os participantes, favorecendo a
identificação sobre o modo como o grupo opera determinados processos sociais;
estimular a conversa sobre assuntos embaraçosos, permitindo a expressão de críticas;
48
facilitar a expressão geral de idéias e experiências que poderiam ser pouco desenvolvidas
na entrevista individual.
Em relação ao tom das falas e aos conteúdos expressos, o mesmo autor observa que o
arranjo grupal pode suscitar comentários mais críticos do que aqueles emergentes nas
entrevistas individuais (KITZINGER, 2009). Este foi um fato observado no campo
estudado, ampliando a possibilidade de compreensão dos aspectos envolvidos no
fenômeno pesquisado.
Os grupos focais foram conduzidos em duas etapas distintas. A primeira etapa, ocorrida
entre junho e julho de 2008, correspondeu ao meu ingresso em campo. Nesta fase,
realizei quatro grupos focais, para aculturação ao campo. O número de encontros
realizados foi decidido em conjunto com os participantes, considerando-se, sobretudo, o
tempo de tratamento deles na Casa. Em ambas as etapas, o número médio de
participantes foi de oito a dez pessoas por encontro. Estes grupos correram em
frequência semanal e tiveram duração média de uma hora e meia cada encontro. Nesta
fase inicial da pesquisa, o foco de interesse ainda se centrava sobre o eixo do trabalho.
Portanto, os temas disparadores das discussões realizadas relacionaram-se ao mercado
de trabalho, à relação entre o consumo de substâncias e certos campos de atuação
profissional, à possibilidade de se trabalhar durante o tratamento. Tais discussões,
contudo, logo dispararam a emergência de reflexões mais abrangentes, relacionadas às
identidades pessoais estabelecidas ao longo de suas trajetórias de vida, ao percurso
terapêutico nos grupos de ajuda mútua, às experiências em clínicas de internação. A
partir da temática do trabalho, portanto, emergiram outros aspectos relacionados ao
processo de reabilitação psicossocial, que viriam a ser aprofundados na segunda etapa
do trabalho de campo (os oito encontros seguintes).
O registro das discussões realizadas nos grupos focais foi feito em blocos de flip-chart,
durante a realização dos grupos. Além deste registro, realizado in loco, um segundo
registro era feito posteriormente, sob o formato de diário de campo – melhor descrito
mais adiante.
49
meses um tempo adequado para a realização dos grupos, já que a maioria havia
renovado o contrato de tratamento na Casa, resultando na extensão do prazo de
tratamento por mais alguns meses.
Os grupos desta segunda fase ocorreram nos mesmos moldes da primeira etapa:
encontros semanais, com duração média de uma hora e meia a duas horas; também
registrados em folhas de flip-chart e posteriormente originando os diários de campo. Os
temas pesquisados abrangeram: a temática ocupacional, envolvendo tanto discussões
objetivas sobre o mundo do trabalho na atualidade, quanto sua interface com o
tratamento e a condição de dependência química; a regulamentação sobre o
funcionamento do grupo, já propiciando reflexões sobre o sentido dos combinados e
das regras estabelecidas; reflexões sobre ingredientes terapêuticos considerados
relevantes ao processo de recuperação; o processo saúde-doença e as identidades
estabelecidas; e os projetos pessoais de trabalho.
Ao longo dos oito encontros realizados, recorri também a outros recursos didáticos,
como filmes e leitura de trechos de livros, para disparar ou aprofundar as reflexões
50
sobre os temas emergentes nos encontros. Tais recursos foram escolhidos com base nas
reflexões sobre as discussões emergentes. A realização destas atividades ocorreu em
conjunto com os participantes, no próprio horário do grupo, sendo previamente
combinadas. O filme em DVD escolhido para aprofundar a reflexão sobre a temática
ocupacional, o mundo corporativo e as identidades profissional e pessoal, foi O Grande
Chefe, do dinamarquês Lars von Trier. As discussões que se sucederam ao filme
remeteram a alguns conceitos propostos por Hannah Arendt, acerca do discurso e da
ação, presentes em A Condição Humana. Recorri, então, à leitura de alguns trechos
desta obra, durante o grupo, como forma de estimular as discussões emergentes,
potencializando-as a partir de outros pontos de vista.
Para propiciar reflexões sobre o processo saúde-doença, tema também presente nos
encontros realizados, recorri à leitura de alguns trechos do livro O Normal e o
Patológico, de Georges Canguilhem.
Além destas atividades, também lhes propus que realizassem individualmente, fora do
horário do grupo, um mapeamento das identidades e dos estigmas que acreditavam
possuir. Esta atividade visava, além de identificar as identidades predominantes, a
favorecer a troca de experiência entre os participantes e potencializar a identificação de
qualidades pessoais frequentemente esquecidas ao longo do processo de instalação da
dependência química.
c) Entrevistas individuais
52
foi o respeito às possibilidades e aos impedimentos circunstanciais de cada participante
que guiou minha presença em campo, sobrepondo-se, por vezes, ao cumprimento exato
do número de encontros previstos pelo protocolo da pesquisa.
d) Diários de campo
O material obtido a partir das entrevistas individuais, dos grupos focais e da observação
participante foi submetido à análise de conteúdo, buscando-se identificar os principais
temas emergentes das fontes pesquisadas.
53
Como postura subjacente à leitura dos textos produzidos, procuramos manter a atenção
quanto à incerteza das mensagens contidas no material explicitado, visando a ultrapassar
as conclusões que poderiam encerrar a análise em um primeiro olhar, imediato e
ingênuo. Buscou-se, com isto, apreender as estruturas latentes no material manifesto,
atingindo uma compreensão das significações em jogo, sempre inseridas em um
contexto social (MINAYO, 2004). O foco da análise realizada, portanto, esteve na
apreensão de possíveis significados subjacentes aos conteúdos expressos, bem como dos
fatores potencialmente atuantes em sua produção, conforme destaca Minayo (2004):
54
dependência; a fragilidade da dimensão política no campo terapêutico da dependência
química; a grupalidade como recurso primordial de tratamento; a dependência química
como fonte de trabalho para quem está em recuperação.
A natureza distinta e, por vezes, contraditória, dos dados emergentes a partir das três
fontes pesquisadas possibilitou uma apreensão aprofundada sobre o fenômeno
pesquisado, favorecendo um olhar ampliado e flexível, capaz de observar temas que
não haviam sido antecipados no início do estudo. Um olhar atento em não se encerrar
frente à captura dos temas que pretendia encontrar; mas, ao contrário, permeável ao
encontro de outros fenômenos emergentes do campo. Como ocorreu, por exemplo,
com a temática relacionada ao campo da dependência química como fonte de trabalho
para quem estava em recuperação.
Diferenças entre os dados obtidos por meio das entrevistas individuais e dos grupos
focais
55
seria a suposta expectativa do entrevistador, enquanto nos grupos, as falas emergentes
pareciam mais autênticas em relação às perspectivas pessoais.
As reflexões feitas por Minayo (2004), sobre a entrevista como uma situação de
interação, ajudam a compreender a distinção observada, ao considerar que as
informações dadas pelos sujeitos são em muito afetadas pela natureza da relação que
possuem com o entrevistador: uma relação assimétrica, que certamente interfere sobre o
processo de construção de saber:
A compreensão sobre este fenômeno também parece ser favorecida pela recorrência a
outro enfoque teórico, em geral revelado por antropólogos, segundo Minayo (2004). A
partir de tal concepção, evidenciam-se “as dificuldades de penetração no mundo dos
outros”, colocando em discussão a pretensa objetividade envolvida na situação de
pesquisa, bem como a própria precariedade do conceito de verdade embutida no
trabalho investigativo:
56
Neste sentido, portanto, pesquisador e pesquisado seriam ambos “atores e público, na
montagem do espetáculo singular: sua inter-relação mediada por códigos culturais
específicos e de interesses diferenciados que ambos tentam preservar e projetar.”
(MINAYO, 2004), de acordo com a imagem teatral proposta por Erving Goffman.
Goffman (2009) destaca, em todo grupo, a existência de uma “região interior”, na qual
se dariam as representações da vida cotidiana, de maneira sigilosa e protegida do acesso
externo. A tentativa de manter em sigilo a “região interior” do grupo dá origem ao que
Goffman nomeou por “controle das impressões”; um aspecto central da relação entre
pesquisador e pesquisado:
57
Sobre o texto apresentado
As informações geradas em campo – por meio dos registros em bloco flip-chart, das
anotações nos cadernos utilizados durantes as entrevistas individuais e dos registros
contidos nos diários de campo – estão sob minha guarda e serão mantidos pelo período
mínimo de um ano, para que possam ser consultados posteriormente, em caso de
necessidade. Foram também disponibilizadas aos participantes do estudo. Esta pesquisa
foi aprovada pelo Comitê de Ética em Pesquisa da UNIFESP (processo nº 1406/05).
58
4. O CAMPO
4. O CAMPO (cenário e atores)
4.1 A Casa
Primórdios da Casa
Quando iniciei os contatos com a Casa, ela existia como residência terapêutica havia
pouco mais de dois meses. Antes disso, vinha funcionando em regime ambulatorial,
havia aproximadamente oito meses. Como a demanda por moradia foi-se revelando
grande, a coordenadora decidiu transformar o ambulatório em casa. Contava, nesta
época, apenas com um sócio e um monitor-residente, Daniel, que desde o início da
formação do ambulatório, passou a residir lá, atendendo à dupla finalidade de cuidar
do espaço físico da organização e de cuidar do seu próprio tratamento, dificultado pela
moradia em um bairro que lhe remetia à fase ativa do consumo de crack.
Patrícia alternava os dias da semana entre os cuidados com as filhas e sua própria casa, e
a coordenação da Casa, que por diversas vezes incluía dormir na residência terapêutica,
em um contato bastante estreito com o cotidiano da organização e com os próprios
residentes – “internos”, como ela os nomeava. As fronteiras entre o público e o privado,
entre o pessoal e o coletivo, ali naquele contexto terapêutico eram muito tênues, por
vezes de uma proximidade tóxica, como viria a perceber mais tarde, ao longo da
permanência em campo.
60
histórico pessoal na dependência química, a exemplo da coordenadora da Casa e de
Daniel.
A trajetória de vida da Casa foi bastante breve, existindo entre Abril e Dezembro de
2008 – praticamente o mesmo período de tempo da pesquisa de campo. Deste modo,
pude acompanhar as inúmeras fases por que passou a Casa: o início de sua organização
como residência terapêutica; a mudança de endereço em setembro de 2008, para um
espaço físico maior; o ingresso de novos pacientes; a saída de outros; a recaída de
alguns; até o seu fechamento súbito em meados de Dezembro, às vésperas das festas de
final de ano. Fatos objetivos que repercutiram diretamente sobre as vivências e
interações ali existentes, ultrapassando em muito o aspecto clínico do atendimento
oferecido – se é que se pode estabelecer uma diferenciação clara entre clínico e pessoal,
num contexto em que tais âmbitos apresentavam-se tão imbricados.
A casa 1
Esta casa localizava-se na região sul da cidade de São Paulo, em um local considerado
central e de fácil acesso. Este fato revelou-se importante para muitos dos participantes
da pesquisa, em geral moradores de bairros distantes, localizados na periferia da cidade.
A experiência de morar temporariamente em um local central e de fácil acesso
possibilitou-lhes vivenciar uma nova relação com a cidade, tornando-a mais acessível em
seus recursos, menos agressiva para a condução do cotidiano; mais marcada, enfim, por
alguma possibilidade de fruição da cidade, em detrimento apenas do registro da
sobrevivência.
O primeiro contato com esta casa deu-se no dia da visita, quando tive o breve contato
61
pessoal com a coordenadora. O espaço físico desta casa me foi apresentado a partir de
um rápido tour, conduzido por Daniel, seguido da apresentação aos pacientes-
moradores, quando realizamos o Grupo Zero, a partir do qual lhes convidei a participar
da pesquisa.
A casa era pequena. Um sobrado antigo, alugado, que contava com dois quartos e um
banheiro, na parte superior, e duas salas e uma pequena cozinha no andar térreo. Havia
ainda um corredor externo, com uma lavanderia, utilizado para a secagem das roupas.
Não me lembro de ter visto essa área sendo habitada no dia-a-dia. A casa tinha um
cheiro forte de cigarro, já que era permitido fumar em seu interior, o que a maioria dos
residentes fazia, sem grandes preocupações com quem não fumasse – visto que isto
também era uma raridade entre eles. Um cheiro forte de cigarro misturado a um cheiro
não menos forte de incenso, na tentativa autêntica e preocupada de aliviar o ambiente,
para todos.
Chamou-me a atenção, neste primeiro contato com a casa, o clima gostoso que ali
reinava. Uma ´energia boa´, como diriam alguns. Este fato me marcou, pois eu vinha
justamente de uma peregrinação por espaços de tratamento para dependência química,
na tentativa de encontrar um serviço que pudesse sediar a etapa de campo da pesquisa.
E notava com frequência um clima pesado nesses lugares. Em nada convidativo a se ficar
– para um café, quem diria para permanecer por dias a fio, enfrentando a aridez de um
tratamento para dependência química.
Ali fiquei. Tomei café. Dei risada. Ouvi histórias e preocupações. Esclareci e compartilhei
dúvidas sobre a pesquisa, em uma conversa longa e agradável. À exceção de Daniel,
nunca havia visto aquelas pessoas antes; tampouco eles me conheciam. Como seria
possível tamanha descontração entre pessoas desconhecidas? E pessoas que vivenciavam
um momento difícil em suas vidas, marcado pelo afastamento da família, da residência
pessoal, pelo ingresso em um tratamento para dependência química, no formato de
uma moradia nova, convivendo com pessoas estranhas. A impressão inicial, resultante
deste primeiro contato, foi a de uma casa hospitaleira, velha, arrumada, humana. Uma
casa que efetivamente acolhia, a quem quer que fosse, do melhor jeito que
conseguissem, visto que as condições físicas eram restritas. Talvez isso estivesse na base
da ‘energia boa’ que ali senti, logo que entrei.
A impressão deste primeiro momento até poderia levar à suposição errônea de que ali
62
não havia conflitos. O que seria bastante estranho, tendo em vista a gravidade da
situação que os reunia ali. Indubitavelmente, aquele era um espaço de tratamento e,
naturalmente, faziam-se presentes sofrimentos, fragilidades e inseguranças de toda
ordem. Os riscos inerentes aos contatos humanos, ainda mais sob tal estado de
agravamento, somados à boa dose de imprevisibilidade e disrupção, característicos do
campo da dependência química, logo eclodiram, a despeito do ambiente
autenticamente acolhedor revelado neste primeiro contato. Transcorridos alguns meses
de funcionamento da Casa, ocorreu um episódio de quase-morte envolvendo dois
moradores da residência, cujo estranhamento mútuo quase chegou às vias de fato,
resultando no ataque repentino, súbito e descontrolado, com uma faca de cozinha:
Nesta noite, foi necessário recorrer à separação física entre os dois moradores
envolvidos na briga, a fim de lhes preservar a vida. Um hotel foi a solução encontrada
para aquele momento. A coordenadora da Casa estava fora de São Paulo quando este
episódio aconteceu, tendo de gerenciá-lo à distância, por meio da ajuda de Daniel e de
outros moradores-pacientes que também atuavam como monitores da Casa.
Neste momento inicial, contudo, tal dinâmica ainda não havia se revelado em campo e
pareciam vivenciar apenas o frescor de um projeto que se iniciava: para quem o
conduzia na linha de frente e para quem o habitava como público-alvo. Um clima que
exalava a expectativa positiva de que, “desta vez”, seria diferente: para aqueles que já
tinham passado por outros episódios de internação ou tratamento e também para a
coordenação, que após o trabalho árduo em outras clínicas, se lançava à empreita do
negócio próprio, repleta da vontade honesta de oferecer um tratamento diferenciado
aos colegas-pacientes, efetivamente respeitoso e digno. Para aqueles cuja reclusão na
63
casa significava o primeiro episódio de tratamento, a vivência se traduzia em uma nova
experiência de vida, ao terem de confrontar, pela primeira vez, a condição de
dependentes químicos.
A despeito dos momentos pessoais, contudo, uma questão ali enfrentada dizia respeito a
todos: Como seria conviver tão intimamente com pessoas que há pouco sequer
conheciam, com hábitos de vida tão diferentes, e provenientes de culturas por vezes tão
distintas?
Quando me dei conta, neste primeiro dia de visita à Casa, já estávamos fazendo um
grupo; o grupo zero, como o nomearíamos mais tarde. A idéia original para esta visita
era apenas me apresentar, falar sobre a pesquisa e convidar os interessados a participar
do estudo. Mas esta breve apresentação inicial tomou proporções interessantes e,
quando percebemos, já estávamos adentrando as questões da pesquisa: trabalho,
mercado de trabalho, adoecimento, tratamento, perspectivas, desejos. A casa estava
cheia neste dia. Pareciam esperar pela visita da ´pessoa de fora´. Tão logo cheguei,
pararam de ver o filme a que assistiam, desligaram a televisão e todos se ajeitaram na
sala, para a tal apresentação.
“Meu deus!” – foi o que pensei quando vi aquele monte de gente reunida em círculo na
pequena sala, ocupando todos os espaços disponíveis e até um pouco do corredor.
“Como é que vai ser isto aqui?”. Foi tranqüilo. Gostoso. Marcas que viriam a estar
presentes em boa parte deste trabalho de campo, sobretudo no período da casa 1. A
conversa foi longa: quase duas horas de bate papo neste encontro zero. Ao final, todos
quiseram participar do estudo, o que também me chamou a atenção...
A coordenadora não participou desta conversa, como não participaria de nenhum dos
encontros posteriores. Os contatos que tive com ela restringiram-se às reuniões de
equipe e às preciosas ‘conversas de corredor’. Este fato mais tarde se clarificou para
mim, a partir da sua fala recorrente, enfatizando os pacientes:
64
“Se estiver bom para eles, para mim está bom também. Isto
daqui existe para eles.” (Patrícia, coordenadora da Casa)
A casa 2
A casa 2 localizava-se em uma região próxima à primeira casa. Havia sido alugada em
condições facilitadas para a coordenação da Casa, já que se tratava de um imóvel que
pertencia à família de um ex-paciente da organização. Era um sobrado bastante grande,
onde havia funcionado anteriormente uma academia de ginástica. Na parte térrea, havia
um amplo salão, além de duas salas menores e um banheiro. Na parte de cima, ficavam
os dois quartos e a cozinha.
Tão logo ocuparam a casa, deram início a uma série de reformas para adaptar o espaço
físico às necessidades da residência terapêutica. Assim, uma das salas do andar térreo foi
65
dividida, dando origem ao que se tornou uma sala de atendimento individual e uma
recepção. Também foi feita, na parte térrea da casa, uma suíte para a coordenadora da
Casa – seu espaço privativo, onde ficaria nos dias em que pernoitasse na residência
terapêutica.
Esta casa, assim como a anterior, não possuía uma área externa muito grande, de modo
que a maior parte das atividades ocorria dentro da casa. Diferentemente da casa 1,
contudo, a casa 2 gerou-me uma impressão bem diferente, ao primeiro contato. Embora
fosse ampla, era uma casa escura e os espaços estavam distribuídos de maneira estranha.
Talvez apropriado para uma academia de ginástica, mas pouco acolhedor para uma
residência.
Além disso, embora fosse uma região bastante próxima à da casa 1, a nova localização
era cercada por avenidas grandes e movimentadas, configurando um entorno muito
pouco convidativo a se habitar. As saídas frequentes para a padaria ou para os cafés, nas
ruas vizinhas à casa 1, ficaram então bastante mais restritas. Restaram, contudo, as idas
ao parque situado nas proximidades, onde alguns faziam atividades físicas, como
corrida, caminhada, ou a prática chinesa do Falun Dafa. Mantiveram-se, também, a
frequência às reuniões de Narcóticos Anônimos, em um grupo das proximidades.
66
vinha funcionando como um grupo coeso, havendo, entre diversos deles, uma relação
de bastante amizade e companheirismo. Quase como se formassem uma família.
Habitavam, portanto, uma condição em muito diversa daquela vivenciada por quem
acabava de chegar, na casa 2.
67
estive em campo, era comum que a organização entrasse o mês com um déficit de dez
mil reais – prejuízo arcado pela coordenadora, com seus recursos pessoais.
Economicamente, portanto, a Casa não parecia um projeto viável, ao menos não nos
moldes como vinha funcionando à época da pesquisa.
O tom afetivo com que descreveram tal episódio parecia conter um misto de orgulho
pelo trabalho terapêutico ali realizado, com a satisfação pessoal de se terem percebido
alvo da admiração do outro. Haviam sido, enfim, olhados. Alvo de um olhar atento,
cuidadoso e, por fim, afetivo. Um olhar que transcendeu o objetivo burocrático que os
levou até ali, atingindo, por fim, os sujeitos que ali estavam – e sem os quais a existência
da organização não fazia o menor sentido. Um olhar que acabou por se constituir
legitimador da existência constatada; não apenas a existência da organização em si, mas
a própria existência das pessoas que ali estavam, para além do cartão de visitas da
dependência química. Pessoas morando, cozinhando, convivendo; sujeitos
68
legitimamente ocupados em retomar o curso de suas vidas.
Parece muito que uma simples visita de fiscalização pudesse mobilizar sentimentos tão
intensos e distintos do propósito original da visita. No entanto, se considerarmos os
diversos níveis de isolamento que marcam as trajetórias destes sujeitos, refletidas no
próprio isolamento da organização, torna-se mais possível compreender os efeitos
produzidos a partir do encontro vivenciado. Um encontro propiciador da religação
entre estas pessoas e a vida pública, transcendendo a doença, ainda que motivada por
ela. Um encontro que, ao transitar do burocrático ao pessoal, propiciou-lhes a
experiência profícua de inscrição no coletivo.
A rotina da casa
69
Contudo, este misto de moradia e espaço de tratamento, com a prevalência do primeiro
sobre o segundo, se por um lado trazia vantagens, por outro gerava-me a impressão de
contribuir para a indiscriminação já tão evidente no campo da dependência química:
indiscriminação de papéis (as funções de cada um ali, quanto à manutenção da limpeza
e organização da casa; as funções específicas de alguns membros da equipe técnica, que
também eram pacientes-moradores); indiscriminação de horários, de parâmetros de
organização do cotidiano.
No dia-a-dia, tal confusão revelava-se, por exemplo, pela sobrecarga de tarefas que
recaía sobre alguns dos pacientes-moradores, enquanto outros se desresponsabilizavam
pelos cuidados com as tarefas domésticas – que deveriam estar a cargo de todos.
Para além do cuidado com a organização e a limpeza da casa, a falta de uma rotina
mais estruturada e organizadora do cotidiano revelava-se também nas atividades
terapêuticas planejadas, como em efeito dominó. Se residiam no mesmo espaço
terapêutico em que se tratavam, qualquer atraso na rotina de funcionamento da casa
(como o horário das refeições, por exemplo), necessariamente repercutia sobre a grade
horária das atividades terapêuticas propostas, em geral, atrasando o início das
atividades. Este fato, contudo, não parecia constituir fonte de grande preocupação entre
os pacientes-moradores, ou mesmo entre os membros da equipe técnica externos à
Casa, já que o funcionamento da organização era marcado por um alto grau de
flexibilidade – que por vezes me gerava um certo estranhamento, dando-me a impressão
de confusão e indiscriminação, mais do que de flexibilidade apenas.
A rotina ou a não-rotina dos finais de semana assemelhava-se ainda mais a de uma casa,
a exemplo dos churrascos entre amigos e familiares; da roda de violão, e das disputas de
vídeo game. A Casa era aberta constantemente à visita dos familiares, bem como à visita
de outros companheiros da irmandade dos Narcóticos Anônimos e dos Alcoólicos
Anônimos.
Ainda que mantivessem contato constante, por meio do rádio nextel, durante as viagens
que a coordenadora fazia, sua presença virtual não exercia o mesmo efeito organizador
de sua presença física, sobretudo em relação à organização pessoal dos pacientes-
moradores, que pareciam ficar muito perdidos em sua ausência. Este fato tem uma
correspondência objetiva, já que era ela a pessoa responsável por estabelecer os projetos
terapêuticos de cada paciente. Contudo, dava-me também a impressão de haver um
forte componente subjetivo envolvido na desorganização que tomava conta da Casa,
nos períodos de ausência da coordenadora: como se a sua ausência os expusesse a um
estado de desamparo e abandono, próprios de outras épocas ou experiências de vida.
Como a família de Patrícia morava em outro Estado e, à época da pesquisa, seu pai teve
um importante problema de saúde, vindo a falecer, suas ausências da Casa foram
relativamente frequentes no período em que estive em campo, chegando a perfazer
algumas semanas consecutivas. Nestes períodos, era notável o aumento de tensão entre
os residentes, conforme se prolongava sua ausência. A tensão revelava-se pelo aumento
71
da agressividade entre os moradores da casa, tanto verbal, quanto física, em alguns
momentos.
A equipe técnica da Casa era composta no total por nove pessoas: 03 residentes-
monitores, 03 profissionais da área da saúde (sendo duas psicólogas e um médico
psiquiatra), um estudante de psicologia, além da coordenadora e, posteriormente, um
terapeuta, chamado para ajudar na organização geral da instituição.
Michele também atuava como residente-monitora, embora sua principal função fosse na
72
área administrativa da organização e não junto aos pacientes. Preparava-se para atuar
futuramente mais diretamente com os pacientes-moradores, como acompanhante
terapêutica.
Já a outra psicóloga chegou à Casa por um caminho bastante inusual: foi convidada a
conhecer a organização por um residente da Casa, que a conhecera em um parque da
cidade de São Paulo, enquanto ela praticava o Falun Dafa, uma arte oriental. Acertada a
sua entrada na organização, passou a conduzir na Casa um grupo de Falun Dafa e
também a coordenar outro grupo voltado à discussão das questões cotidianas do
funcionamento da organização.
73
O psiquiatra também chegou à Casa por intermédio de um dos pacientes-moradores. E
assim como as psicólogas, também não possuía experiência prévia no atendimento a
dependentes químicos. Sua parceria com a organização constituía-se no
acompanhamento psiquiátrico dos pacientes da Casa, prestado em seu consultório
particular.
74
prejuízos decorrentes da dificuldade de discriminar papéis e funções – característica tão
evidente no campo da dependência química. Este último caso é o que parece dar origem
à situação observada na residência terapêutica pesquisada.
Embora o trabalho terapêutico desenvolvido na Casa contasse com uma equipe que
incluía estes três profissionais da saúde, o direcionamento do atendimento prestado
ficava bastante centrado na figura da coordenadora. Esta configuração era viável
enquanto a Casa estava recém-inaugurada e contava ainda com poucos pacientes.
Conforme a organização cresceu, aumentando o número de pacientes-moradores e a
complexidade envolvida na administração, tornou-se clara a impossibilidade de que
Patrícia continuasse a exercer a função de referência central aos pacientes, sobretudo em
relação ao planejamento de seus percursos clínicos. Esta impossibilidade evidenciava-se
claramente em seus períodos prolongados de afastamento da Casa. Nestes períodos,
conforme descrito anteriormente, era notável a desorganização que gradualmente se
instalava no cotidiano da organização, sobretudo entre os residentes monitores, que se
viam responsáveis por cuidar dos demais pacientes-moradores, embora ficassem, eles
próprios, muito desamparados e fragilizados com a ausência prolongada de Patrícia da
Casa.
Foi neste contexto que entrou em cena Milton, para auxiliar na organização geral da
Casa. Milton era empresário, ex-marido de Patrícia e possuía bastante experiência no
tratamento da dependência química, ele próprio em abstinência havia muitos anos. A
entrada de Milton deu-se já no final de existência da Casa, dois meses antes do seu
fechamento, em dezembro de 2008. Embora tenha sido um período de tempo bastante
restrito, foi suficiente para gerar modificações importantes no funcionamento da
organização, em direção a uma maior discriminação de papéis, funções e também em
relação ao funcionamento cotidiano da Casa.
75
residentes, justamente por serem pares, uma vez que todos ali eram pacientes-
moradores da organização. Esta confusão de papéis e funções, presente ao longo de
todo o trabalho de campo, evidenciava-se sobremaneira nos momentos de reunião
clínica da equipe técnica. E o estranhamento que me tomava nestas ocasiões
relacionava-se, não à função de pesquisadora que ali me caracterizava, mas à minha
experiência como psicóloga clínica, acostumada a atuar em equipes interdisciplinares
compostas exclusivamente por profissionais da saúde. Foi interessante confrontar-me
com aquele arranjo novo de trabalho, não apenas possível, como efetivamente
existente, em diversos contextos terapêuticos.
76
dependência química, que pudesse acompanhá-lo de maneira intensificada neste
período, dada a gravidade de seu quadro clínico. Esta indicação foi discutida com Lídio
e com Patrícia, mas não chegou a ser efetivada, já que Lídio optou por voltar à sua
cidade natal, onde residia sua família. Meses depois, em meados de maio de 2009, vim
a saber, por intermédio de outro participante da pesquisa, de seu falecimento, em
decorrência de suicídio.
77
abstinência do álcool. Outra sugestão feita pelo grupo, na ocasião deste encontro, foi de
que ampliasse suas atividades de lazer, já que sua vida estava centrada basicamente no
trabalho e na academia, o que parecia um tanto restrito, na percepção do grupo.
78
contribuindo para iniciar seu esclarecimento sobre o quadro da dependência química.
Foi a partir do tratamento na Casa que passou a frequentar com regularidade as salas de
narcóticos anônimos, junto com os demais moradores da residência terapêutica.
Jeferson participou de todas as etapas da pesquisa, estabelecendo, como projeto de vida
futuro, tornar-se empreiteiro. Para isto, pretendia fazer cursos técnicos no SENAI. Como
passo intermediário, para viabilizar a realização de tais cursos, compraria uma moto,
com a ajuda da esposa, logo que concluísse seu tratamento na Casa. O trabalho como
motoboy o ajudaria a “levantar um dinheiro” para a realização dos cursos.
79
estressante, que se tornara incogitável. Cristina falava sobre a necessidade e importância
de exercer uma atividade de trabalho:“Primeiro porque não dá para viver com esse
benefício. E outra: a minha cabeça não consegue ficar na ociosidade. Preciso ter uma
atividade.” Como perspectiva futura, Cristina planejava abrir um negócio próprio, que
lhe proporcionasse mais prazer e tranquilidade. O gosto pela leitura atraiu-a para a idéia
de abrir um sebo. Tal projeto vinha sendo elaborado também em conjunto com seu
psiquiatra. Previa, contudo, a realização deste projeto em conjunto com algum sócio,
considerando as intensas oscilações de humor que possuía, em decorrência da
bipolaridade, e que a impediam de exercer com regularidade e constância uma atividade
profissional.
GUERREIRO: 39 anos, solteiro, sem filhos, estudou até a quarta série do ensino
fundamental. Ao longo de sua trajetória de vida, exerceu diversos tipos de atividades
ocupacionais. Começou a trabalhar cedo, aos 6 anos, ajudando o pai na feira; atividade
que exerceu por oito anos. Também trabalhou como office boy, encarregado de
faturamento e ajudante geral. Guerreiro orgulhava-se do fato de jamais ter tido
problemas relacionados a trabalho: “Eu nunca fico sem trabalhar. Querendo, logo
arrumo alguma coisa. Não tenho preguiça de fazer nada.” Quando finalizasse o
tratamento na Casa, planejava trabalhar no açougue que o pai montaria para ele. Na
fase ativa do consumo de crack, chegou a trabalhar vendendo drogas na favela, em
troca do que consumia. Nesta época, foi preso por tentativa de assalto, no auge da
dependência de crack. A experiência na Casa constituiu seu primeiro episódio de
tratamento, em quase vinte anos de dependência química. A moradia na Casa, ao
mesmo tempo em que manteve Guerreiro livre do consumo de crack, assegurando-lhe
um ambiente protegido e suficientemente distante do bairro em que morava, e onde
usava o crack, proporcionou-lhe a importante vivência relacionada ao estabelecimento
de uma nova rede social, na qual se viu desempenhando funções e atividades que jamais
imaginara fazer. Guerreiro era o tipo de pessoa, segundo ele mesmo, que não se
comunicava por meio das palavras, mas de ações. Na realidade, reações; em geral
pautadas pela violência, quando algo lhe desagradava. Não sabendo o que dizer, ou
como conter sua raiva, em momentos de conflito, Guerreiro batia, inclusive porque
estava constantemente sob efeito do crack, já que metade de sua vida foi imersa na
dependência desta substância. Foi a partir da experiência de moradia na Casa, que
Guerreiro passou a desenvolver outro repertório de ações, que prescindisse da agressão
física. Assim, quando se via contrariado na Casa, por qualquer motivo que fosse,
80
recorria ao isolamento em sua cama, até que a raiva passasse. Aprendeu também que
escrever ajudava-o muito a lidar com a raiva nos momentos difíceis, de modo que a
escrita passou a fazer parte de sua rotina diária na Casa. A permanência naquele espaço
terapêutico tornou-se de tal modo importante para Guerreiro, que ele renovou o
contrato de tratamento por duas vezes consecutivas, passando a recear muito afastar-se
da moradia na residência terapêutica – o que também constituía um fator a ser
trabalhado, já que aquele deveria ser um espaço de passagem, de transição apenas. Em
uma destas renovações, foi-lhe atribuída uma função diferenciada na Casa: Guerreiro
tornou-se uma espécie de zelador da residência terapêutica, “para ajudar os que estavam
chegando”. Esta nova função constituiu parte do planejamento de seu tratamento,
elaborado por Patrícia. Em relação à pesquisa, Guerreiro participou assiduamente de
todas as etapas previstas, ainda que inicialmente de maneira bastante particular, a seu
modo. Nos primeiros grupos, topou participar, mas sentado praticamente fora da sala,
no corredor. Nesta fase inicial, quando alguém lhe dizia algo que o incomodasse,
Guerreiro saía da sala, embora continuasse ligado às discussões do grupo, gritando, lá do
quarto, suas opiniões: “Não é nada disso!”; “Não foi isso que eu disse, foi aquilo...” Sua
resposta, diante do primeiro convite que lhe fiz para participar da entrevista individual,
foi estender-me o caderno no qual vinha registrando seus pensamentos e aprendizados,
desde que ingressara na Casa: “Está tudo aqui. Tudo o que você quer saber está aqui”.
Um pouco confusa quanto àquela situação, resolvi topar sua condição, insistindo,
contudo, em sua presença, mesmo que não quisesse falar nada. Aí quem topou foi
Guerreiro. E assim teve início sua participação na pesquisa. Ao longo da permanência na
Casa, foi notável a mudança de Guerreiro quanto à maneira de conviver em grupo e se
comunicar, com os demais moradores da Casa, com a equipe técnica, comigo. A escrita,
que lhe era muito pouco familiar quando ingressara na residência terapêutica, tornou-se
um recurso central em seu processo de recuperação, de maneira que, no final da
pesquisa, aceitou minha sugestão de que lesse para todos, no último grupo, um texto
que havia escrito, ao longo de seu tratamento na Casa, sobre seu percurso de vida e os
aprendizados obtidos naqueles meses de convivência em grupo. Um texto que, embora
tratasse de sua vida particular, pareceu-me carregado de sentidos coletivos, ao
tangenciar temas tão humanos, como perdas, desejos, expectativas, aprendizados,
medos, sonhos, contradições e a, sempre presente, possibilidade de transformação.
BRENO: 23 anos, solteiro, sem filhos, ensino médio completo. Estava se preparando
para o vestibular, à época da pesquisa. Havia trabalhado como vendedor em lojas de
81
shopping, consultor de negócios de uma empresa e como garçom, durante um dos
períodos em que estivera internado. Considerava-se bastante bem sucedido nos
trabalhos realizados, embora não cogitasse voltar a trabalhar em loja de shopping, ao
menos não no ramo de surfe, no qual, segundo sua experiência, “a droga rolava solta”:
“Todos fumavam maconha e tomavam ácido e álcool. Eu sempre tomava ¼ de ácido
para trabalhar... Acreditava que assim vendia mais.” Breno fora criado pelos avós
maternos e considerava-se privilegiado por isto: “Ser criado pelos avôs é um brinde.
Não tenho do que reclamar de nada da minha infância”. Ao mesmo tempo em que
sentia a pressão por ter sido o primeiro neto: “Ele me cobra bastante. O primeiro neto
costuma carregar o nome da família” – dizia, referindo-se ao avô. Diferentemente da
vivência da mãe e das tias, Breno relatava ter recebido dos avôs tudo o que quis,
materialmente, além de liberdade para sair, desde cedo, com os amigos. Passou a
frequentar, ainda novo, matinês em danceterias. Foi também com os amigos que fez as
primeiras experimentações de drogas, na adolescência, passando a usá-las de maneira
abusiva (cola, maconha, álcool, LSD, lança perfume, anfetamina, êxtase), até
desenvolver a dependência de crack, aos 20 anos. Breno era um dos moradores mais
jovens da casa; remetendo, por vezes, ao período da adolescência. Esta característica
parecia compor com uma de suas preocupações centrais, relacionada à necessidade de
alterar o que considerava um de seus maiores defeitos: “o apego ao material”. Breno
temia voltar a sentir a preocupação excessiva que já tivera com a aparência, e que o
levara a consumir, sem crítica e sem limites, tudo o que melhor compusesse sua imagem
ao mundo. Inclusive as drogas, já que nas ‘baladas’ que frequentava o consumo de
drogas era mais do que banalizado: “Eu hoje lembro de quando usava droga, e não
consigo entender porque eu usava. Parecia que era uma outra pessoa... Não faz sentido
nenhum.” Durante a permanência na Casa, Breno parecia desafiado pela tarefa de
‘encontrar-se a si mesmo’. Foi o único residente a participar assiduamente do grupo de
Falun Dafa, a prática oriental voltada ao desenvolvimento espiritual. Frequentava
também o subcomitê do grupo de Narcóticos Anônimos voltado ao trabalho voluntário
em hospitais e instituições, divulgando sobre a dependência química e sobre a ajuda
prestada pela irmandade dos Narcóticos Anônimos. Em relação à faculdade que
pretendia prestar, Breno estava ainda em dúvida. A única certeza que possuía era a de
que queria cursar algo que tivesse a ver com o seu interesse pessoal, e não com o
interesse de seu avô para ele, como já ocorrera anteriormente, quando tentara ingressar
no curso de Direito. Na empreita do tratamento na Casa, Breno parecia estar
genuinamente em busca de si mesmo, ou ao menos de um si mesmo diferente daquele
82
que conhecera até então.
MICHELE: 25 anos, solteira, sem filhos, terceiro grau completo. Começou a trabalhar
cedo, motivada pelo desejo de ter seu próprio dinheiro. Contando com a ajuda da mãe,
que possuía diversos contatos profissionais, obteve algumas das vagas conquistadas,
exercendo diversas atividades de trabalho ao longo de sua trajetória: balconista de loja,
bicos em campanha eleitoral, produtora de shows, promoção de eventos, assistente
comercial. Seu jeito extrovertido e organizado sempre lhe rendera destaque nos
trabalhos realizados. Anteriormente ao ingresso na Casa, pedira demissão do emprego
em que estava, a fim de se dedicar exclusivamente ao tratamento para a dependência de
álcool e cocaína. Após ingressar na Casa, não tardou muito para integrar a equipe
técnica da organização, atuando na área administrativa e financeira. Embora não
gostasse muito da atividade realizada, desempenhava-a com competência, de modo
que, no momento de renovação do contrato social da Casa, Michele fora convidada
por Patrícia para ingressar como uma das sócias no contrato social da empresa. Aceitou
o convite. E este constituiu, naquele momento, um gancho para permanecer
trabalhando no campo da dependência química. A sociedade na Casa proporcionou-lhe
um porto seguro, mantendo-a responsável por cuidar da parte administrativa e
financeira da organização. Entretanto, como membro da equipe técnica, aproximou-se
das atividades clínicas desenvolvidas na Casa, passando a se interessar pelo trabalho de
acompanhamento terapêutico. Em relação a projetos futuros, Michele ainda não tinha
clareza sobre seu desejo em permanecer trabalhando no campo da dependência
química. Apesar disto, contudo, seu projeto em curto prazo incluiu o aperfeiçoamento
nesta área, a partir da realização de um curso rápido sobre dependência química,
oferecido pela Federação Brasileira de Comunidades Terapêuticas (FEBRACT). Custeado
pela Casa, Michele realizou este curso em Novembro de 2008.
CARLOS: 36 anos, separado, uma filha, segundo grau completo. Começou a trabalhar
cedo, aos sete anos, ajudando o pai, que atuava como chaveiro. Carlos exerceu diversas
atividades profissionais, sendo a maioria delas na área de vendas. Atuou também em seu
próprio comércio, tendo contado com o auxílio do avô para viabilizar o início deste
empreendimento. Segundo seu relato, sempre se destacou nas atividades de trabalho
que exerceu: “Todos os lugares por onde passei sempre tive essa tendência a cargos de
gerência, à liderança”. Porém, sua trajetória profissional foi diretamente prejudicada
pelo consumo de cocaína, já que a cada fase de sucesso no trabalho seguiam recaídas no
83
consumo da droga. À época da pesquisa, estava afastado pelo INSS havia quatro meses.
O início de seu consumo de álcool deu-se em casa, com os familiares: aos sete anos
experimentou guaraná com vinho em uma festa de família; aos doze, as
experimentações passaram a incluir ‘bicadas’ em caipirinhas, também junto à família, em
situações de festa ou na praia. O consumo de cocaína iniciou-se aos dezessete anos,
instalando-se a dependência química por volta dos dezenove anos. Anteriormente ao
ingresso na Casa, Carlos já havia passado por outras internações. Como recurso
terapêutico, frequentava as reuniões de Narcóticos Anônimos. Participou da pesquisa
desde o início, de maneira bastante assídua e interessada. Durante a permanência na
Casa, Carlos descobriu na atividade culinária uma fonte de prazer que não conhecia,
chegando a cogitar especializar-se neste ramo de atuação. Passou a integrar a equipe
técnica da Casa, responsabilizando-se pela realização das refeições. Como projeto
futuro, Carlos desejava realizar algum curso de graduação, chegando a cogitar a área de
gastronomia.
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"saído da prisão mais conceituado no crime". Fizera contatos com pessoas-chave,
aprendera sobre o funcionamento do crime organizado. Escolheu, contudo, “orientado
pelos bandidos mais velhos", não entrar para nenhuma organização específica: "Eu não
tenho tatuagem, pode ver. Não quis entrar para nenhuma facção. Poderia. Mas este é
um caminho de uma mão só. E eu sempre tive na cabeça que eu ia sair. Não queria
aquilo para mim". Daniel atuou no tráfico por três anos, vindo a se afastar desta
atividade "por medo de matar algum conhecido: um amigo, alguém da família; as
pessoas iam lá buscar droga, era perto de casa". Assustou-se muito no dia em que,
tomando conta da ‘boca’, viu-se apontando uma arma para a cabeça do próprio irmão,
também dependente químico, que fora comprar drogas. Sua saída do tráfico também
ocorreu porque voltara a consumir o crack, neste período. Daniel era um dos
profissionais centrais ao funcionamento da Casa, braço direito de Patrícia.
Desempenhava um importante papel clínico junto aos pacientes-moradores e seus
familiares. Na Casa, conduzia grupos informativos sobre a dependência química,
pautados na filosofia dos 12 passos; além de orientar os familiares dos pacientes-
moradores. Como projeto de curto prazo, Daniel pretendia voltar a estudar para
concluir o ensino médio. Contudo, este projeto, bastante factível do ponto de vista
operacional, não chegou a ser iniciado, em função da dificuldade de conseguir conciliá-
lo com o seu trabalho na Casa, visto que não possuía finais de semana ou dias livres, a
partir dos quais pudesse organizar suas atividades e projetos pessoais.
ESPANHOL: 32 anos, separado, uma filha de 8 anos, segundo grau completo. Havia
feito colegial técnico em informática (processamento de dados, programação) e
trabalhado na área de assistência técnica de informática e manutenção de rede.
Posteriormente, formou-se como técnico em enfermagem, passando a trabalhar como
auxiliar de enfermagem em hospitais gerais. Relatou sempre ter se destacado nos
empregos porque passou, conseguindo ótimas colocações nos processos seletivos de que
participou. Em relação ao consumo de substâncias, apresentava problemas relacionados
ao consumo de álcool e de medicamentos controlados, aos quais tinha acesso no
hospital em que trabalhava. À época da pesquisa, estava afastado do trabalho, por
licença médica, para se tratar da dependência química. Chegou a ser processado pelo
Conselho Nacional de Enfermagem, por ética. Após uma audiência com conselheiros da
entidade, contudo, teve seu processo arquivado. Quando voltou a trabalhar no
hospital, foi remanejado da área de endoscopia para a área de esterilização de materiais.
Insatisfeito, voltou a fazer uso de álcool e benzodiazepínicos. O início do seu
85
tratamento na Casa é marcado por um episódio de furto de medicação. Em relação a
projetos futuros, Espanhol pretendia fazer algum curso superior, embora não cogitasse
graduar-se em Enfermagem. Pensava em cursar Engenharia Florestal, a partir de
conversas que tivera com o pai. Mas no final acabou optando por cursar Psicologia, a
fim de trabalhar no campo da dependência química. Iniciou esta graduação em 2009.
Já motivado pelo desejo de atuar nesta área fez, em Outubro de 2008, o curso breve
sobre dependência química, oferecido pela Federação Brasileira de Comunidades
Terapêuticas (FEBRACT). Ao fazermos um balanço da sua trajetória pessoal e
profissional, Espanhol surpreendeu-se com a trajetória realizada: “É um balanço
positivo, de que eu tenho condições.”
86
5. CAMPOS TEÓRICOS E CAMPO EMPÍRICO
5. CAMPOS TEÓRICOS E CAMPO EMPÍRICO
(saberes que embasam este estudo e saberes gerados em campo, em diálogo)
88
Exposto, portanto, às intervenções do meio, quer seja o meio orgânico (vital) ou o meio
social.
A ênfase nesta imprecisão nos parece bastante relevante, tendo em vista as definições
estanques e o estigma que frequentemente pautam as reflexões sobre o universo da
dependência química e do consumo de substâncias psicoativas. Tais considerações em
geral estabelecem como categoria hegemônica (‘os dependentes químicos’) indivíduos
com histórias de vida, recursos e percursos singulares e distintos, conforme enfatiza
Olievenstein (1991):
89
(...) há toxicômanos e toxicômanos e, atrás deles, mulheres e
homens de histórias e de passados diferentes, de estrutura
psíquica diferente, de relações com produtos diferentes e,
portanto, de diferentes relações com a morte. (OLIEVENSTEIN,
1991)
“Eu sou um cara egoísta. Não vou poupar água agora, porque
daqui 50 anos vai faltar... Eu não quero saber sobre daqui a 20
anos... meus netos... Eu quero saber do aqui e agora! Do que é
meu! Já lixo na rua, eu não jogo porque enchente eu vejo. Eu
vou sofrer as consequências... ” (Paulo, 53 anos)
90
No contexto da falas emergentes, portanto, a dimensão da variabilidade – relacionada
ao próprio indivíduo em momentos distintos de sua trajetória – ficou também anulada,
instalando-se a dimensão da imutabilidade, que Canguilhem vincula aos estados
patológicos. Aos princípios da normatividade e da individualidade, o autor inclui a
variabilidade e a interação, destacando que uma norma pode funcionar muito bem para
determinado indivíduo, em dado contexto, podendo, contudo, tornar-se patológica em
outro contexto, caso permaneça imutável:
“Só que nesses três anos, eu não estava mais usando a droga. Ela
é que estava me usando. Eu fazia pacto todo dia comigo, para
tentar me segurar, tentar parar... Não conseguia.” (Guerreiro,
39 anos)
91
A fala expressa por Daniel (34 anos, dependente de crack, retido por sete anos no
sistema carcerário por roubo e tráfico de drogas), a respeito da época em que saiu da
prisão, também evidencia este aspecto do patológico, relacionado à dificuldade de
instituir normas diferentes em condições diferentes:
“Se nós estamos aqui, nós não somos normais. Se nós fossemos
normais, não estaríamos aqui.” (Jeferson, 28 anos)
92
Nestas condições, a relação que estabelecem com a saúde tende a ficar anulada pela
hegemonia da doença, de alguma maneira um terreno mais conhecido e familiar:
Mas o que é característico do estado de saúde? Circunscritos alguns dos critérios centrais
relacionados à definição de patológico, aproximamo-nos do conceito de saúde
proposto por Canguilhem. O estado saudável, assim como o patológico, também é
regido pela presença de normas e ordenações, porém é caracterizado pela maior
flexibilidade para se adaptar às inevitáveis oscilações do ambiente:
Por infidelidades do meio, Canguilhem refere-se aos acidentes possíveis que compõem o
mundo e que se manifestam sob a forma de acontecimentos; são as ocorrências
fortuitas, inesperadas e inevitáveis que integram a vida: “é nisso que o meio é infiel. Sua
infidelidade é justamente seu devir, sua história” (CANGUILHEM, 2007). Destaca-se,
portanto, o caráter de criação presente em tal concepção de saúde. Não se trata apenas
de possuir determinadas normas que ordenem a relação com o mundo e que sejam
suficientemente flexíveis para se adaptar a novas circunstâncias, mas de conseguir
instituir novas normas e ordenações, sempre que o contexto assim exigir:
Esta mesma concepção de saúde é compartilhada por Dejours (1986). Em sua crítica ao
conceito corrente de saúde proposto pela Organização Mundial da Saúde, o autor
denuncia o caráter de permanência enfatizado na conceituação internacional – como um
93
estado de bem-estar físico, mental e social – reivindicando a importância de que a saúde
seja considerada, não em uma dimensão estática, como produto final, mas em sua
dimensão dinâmica, como processo, em constante mudança. A saúde se traduziria,
então, pela capacidade de se estabelecer compromissos diversos e mutantes com a
realidade, aqui compreendida em sua dimensão material, afetiva e social (Dejours,
1986). Como alternativa, o autor propõe uma redefinição do conceito de saúde,
enfatizando o domínio dos recursos para se atingir tal estado. Neste sentido, a saúde
corresponderia à possibilidade de traçar caminhos pessoais e originais em direção ao
bem-estar físico, psíquico e social.
É neste paradoxo que reside o desafio: ao mesmo tempo em que se faz necessário criar
novas normas, compatíveis com o novo momento de vida – agora sem a mediação da
substância psicoativa – a rigidez e o radicalismo são, por vezes, os únicos recursos de
vida conhecidos para desenvolver esta tarefa. Neste sentido, quando a influência da
substância psicoativa e da instalação da dependência química emerge nos discursos
expressos como parte do entendimento sobre suas situações de vida atual e passada, o
ganho em direção à saúde evidencia-se, já que reconsidera a trajetória de vida e os
comportamentos observados, para além do patológico-inato:
94
novas normas e superação de determinado estado patológico, destacam-se: 1) a
relevância de se estabelecer uma nova constância e ordenação para a viabilização deste
processo; e 2) a impossibilidade de se retomar uma suposta condição original de saúde.
95
Aqui reside um desafio central ao processo de reabilitação psicossocial de dependentes
químicos: o desafio de se estabelecer um ambiente suficientemente contínuo e estável,
capaz de favorecer a criação e a ordenação das novas normas emergentes, a partir das
quais a pessoa em tratamento possa se organizar. Não se trata, conforme destaca o
autor, de intencionar a retomada de uma condição original, já que “a vida não conhece
a reversibilidade e a nova saúde não é a mesma que a antiga” (CANGUILHEM, 2007),
mas de encontrar novas normas para o novo contexto enfrentado. De fato, as
expectativas sobre o futuro, emergentes em campo, representavam, na maioria das
vezes, aspirações novas, ainda não vivenciadas anteriormente.
Ainda que não seja possível retornar a uma suposta condição original, anterior à
instalação da doença, Canguilhem aponta a possibilidade de reparação como um fator
central ao processo de recuperação, por si só propiciador das desejáveis inovações:
96
“Estou fraco para ir para a rua. Quero aprender mais.”
(Guerreiro, 39 anos)
“Uma esfera de clínica, sem ser clínica, como vocês têm aqui,
não vão encontrar em lugar nenhum.” (Daniel, 34 anos, em
conversa com os outros residentes)
97
“Por enquanto está bom para mim aqui. Não sinto falta de ter
um quarto só meu, ou a minha casa, com as minhas coisas...”
(Michele, 25 anos)
Tal concepção nos parece bastante relevante para refletir sobre o fenômeno do
consumo de substâncias no contexto social atual. Ao impor fissuras incômodas sobre a
normalidade esperada, tal consumo desestabiliza uma ordem que naturalmente busca
lacunas e desestabilizações, ainda que sem saber. Nesta perspectiva, o fenômeno da
dependência química, assim como a pessoa que porta esta condição, passa a funcionar
como uma espécie de bode expiatório de outras qualidades humanas e sociais que não
devem emergir, ainda que absolutamente humanas. Aqui nos referimos às condições de
desestabilização e ruptura – características tão evidenciadas no campo da dependência
química – que coexistem com a tão esperada e socialmente aceita estabilidade,
padronização e constância. Ao desafiar padrões estabelecidos, a conduta transgressora
implicada na dependência química acaba por denunciar as próprias fissuras da
sociedade, conforme destaca Silveira (1991):
98
Os toxicômanos ocupam (...) uma posição marginal com relação
ao contexto social. A própria conduta toxicomaníaca questiona
de forma contundente a organização de nossa estrutura social.
Entre os seus múltiplos significados, o ato de drogar-se possui um
sentido de denúncia de uma sociedade hipócrita, patológica e
patogênica, que compromete a individualidade do ser humano,
à semelhança do que acontece no processo toxicomaníaco.
(SILVEIRA, 1991)
Algumas das falas emergentes remetem a esta postura transgressora e marginal, presente
no campo da dependência química:
A ênfase nesta concepção de saúde é fundamental para esclarecer sobre o trabalho aqui
desenvolvido. Tratou-se de uma escolha conceitual questionar pressupostos
estabelecidos, que marcam a dependência química como um fenômeno único e
estanque, compreendido pelo viés da patologia e da marginalidade. A concepção de
saúde aqui proposta possibilitou lançar novos olhares e novas escutas às falas
emergentes em campo. Esta perspectiva de abertura, questionamento e afetação genuína
99
pelos fenômenos emergentes em campo foram fundamentais para viabilizar uma
apreensão mais autêntica das experiências vivenciadas na Casa e dos fenômenos
envolvidos no processo de reabilitação psicossocial dos participantes do estudo, para
além dos conhecidos estigmas de marginalidade e doença que circundam o campo da
dependência química – e que, por vezes, encerram na abstinência do uso de drogas a
discussão sobre este complexo fenômeno. Um fenômeno que repercute diretamente
sobre as identidades pessoais estabelecidas, contribuindo para manter o circuito da
doença.
A fim de melhor circunscrever o campo de que trata este estudo, descreveremos a seguir
a concepção de dependência química adotada neste trabalho. A partir dos diversos
enfoques que compõem a construção deste conceito, enfatizaremos a concepção
biopsicossocial, a partir da qual a dependência é caracterizada como um fenômeno
híbrido, complexo e de origem multifatorial. Partiremos da historicidade envolvida na
compreensão nosológica da dependência química, para desvelar outras influências que
ainda hoje atuam sobre a compreensão deste fenômeno, tanto no senso comum,
quanto nos meios especializados.
100
Os primórdios da construção do conceito de alcoolismo datam do século XVIII, quando
a embriaguez era considerada uma “doença da mente”, um “transtorno da vontade”;
sustentando-se no “paradigma da perda de controle”, a partir do qual o álcool
desempenhava papel de agente causal, ocasionando a perda de controle sobre o
comportamento de beber (TOSCANO Jr, 2001). A concepção do beber excessivo como
um hábito a ser rompido e não como pecado, retira esta discussão da esfera moral,
introduzindo a perspectiva clínica sobre o fenômeno do alcoolismo.
101
Do ponto de vista epistemológico, essa mudança é notável. O
alcoolismo não deixou de ser considerado como uma doença,
mas o fato de constituir uma doença é apenas um dos inúmeros
problemas encontrados, em associação com determinados
padrões de ingestão de bebidas alcoólicas. Nascia aí o conceito
de problemas relacionados com o consumo de álcool, que
ampliou o conceito de alcoolismo, colocando-o numa
perspectiva histórica e social.” (grifos do autor)
Tal contexto, no entanto, é marcado pela tensão de posições, como em todo momento
histórico de mudanças. Em meados da década de 60, apesar dos avanços evidentes,
ainda era forte a prevalência de concepções biológicas sobre o alcoolismo. A forte
influência da proposição feita pelo fisiologista americano, Elvin Jellinek (1960) retrata
com clareza esta tendência, ao vincular o consumo excessivo de álcool a características
biológicas inatas, que predisporiam o indivíduo à doença do alcoolismo. Assim, a
exposição ao álcool, em pessoas biologicamente predispostas, desencadearia uma reação
fisiológica em série, que levaria à ingestão de quantidades cada vez maiores da bebida,
independentemente do controle volitivo do indivíduo. É esta concepção que embasa o
movimento dos Alcoólicos Anônimos, amplamente difundido pelo mundo.
102
5.1.3 Classificação nosológica: uso, abuso e dependência
Ainda que sujeito a controvérsias, já que não é possível estabelecer uma margem de
confiança para um consumo seguro de substâncias psicoativas, uma vez que os efeitos
variam conforme as especificidades de cada organismo, o uso de uma substância
psicoativa pode ser definido como um tipo de consumo que não acarreta problemas ao
indivíduo. Já os padrões de consumo relacionados ao abuso e à dependência química,
necessariamente ocasionam prejuízos ao indivíduo e/ou a terceiros, independentemente
da quantidade de droga consumida ou da frequência do consumo. Em ambos os casos
(abuso e dependência), o consumo é disfuncional.
103
relacionada, para aliviar ou evitar sintomas de abstinência;
104
Em termos clínicos, é importante estabelecer tal diferenciação para apurar o diagnóstico
realizado e, assim, melhor planejar as ações terapêuticas a serem empreendidas, já que é
frequente encontrar, no mesmo indivíduo, um quadro de dependência a determinada
substância psicoativa, conjuntamente a um quadro de abuso de outras substâncias.
105
projeto terapêutico mais adequado àquele indivíduo, em dado momento de sua
trajetória de vida.
A definição proposta por Schoen (2009) caminha nesta mesma direção, sendo bastante
precisa quanto à abordagem que queremos enfatizar. O autor define o fenômeno da
dependência química a partir de dois componentes centrais: 1) o uso da substância
psicoativa assumindo um controle total sobre o indivíduo, ao interferir em seus
pensamentos, emoções, percepções, julgamentos, decisões, ações e comportamentos; 2)
o caráter destrutivo implicado no tipo de controle exercido pela dependência química,
que necessariamente representa uma ameaça à vida. Em resumo, pontua uma definição
simples e clara: “não é dependência, a menos que seja uma sentença de morte”
106
(SCHOEN, 2009). E a morte que está em jogo aqui é uma morte ampla: da mente, das
emoções, do corpo, do espírito, das possibilidades profissionais do indivíduo, de sua
relação com a comunidade, de seu casamento, de sua relação com familiares e amigos,
conforme enfatiza Schoen (2009):
Mas o que torna algumas pessoas vulneráveis ao consumo de álcool e drogas, a ponto
de se instalar a dependência química, enquanto outras, apesar de um consumo excessivo
e disfuncional, não a desenvolvem?
Existem diversas razões para o uso continuado de álcool e drogas, não sendo possível
identificar um padrão motivacional que esclareça, de maneira genérica, sobre as adições.
Entre os participantes do estudo, esta diversidade de motivações relacionada ao início
do consumo de drogas também apareceu. As respostas mais frequentes incluíram:
curiosidade; medo de rejeição; e sensação de poder e bem-estar decorrentes do
consumo da substância, sobretudo nas fases iniciais. Um dos participantes do estudo,
contudo, em abstinência do crack durante o tratamento na Casa, expressou espanto por
não conseguir compreender suas motivações pessoais para iniciar o consumo desta
substância:
107
adição pode servir ao propósito de ajudar o indivíduo a romper a completude instalada
a partir da relação fusional mãe-bebê – um tipo de perfeição que pode ser por demais
opressora ao indivíduo; ou ainda, o uso continuado da droga pode surgir como uma
tentativa de manter a ilusão de onipotência do indivíduo, protegendo-o do confronto
com as limitações impostas pela realidade e com a responsabilização pelas escolhas feitas
(KEHL, 2005). Segundo esta visão, os comportamentos aditivos teriam espaço a partir
de falhas na chamada função simbolizante ou função materna. Minerbo (2009) nomeia
por depleção simbólica um fenômeno bastante evidente na atualidade. Conforme
propõe a psicanalista, dificuldades de simbolização decorrentes de prejuízo no exercício
da função materna acabariam por favorecer a construção de subjetividades esvaziadas
de sentido e significação pessoal. Subjetividades marcadas pelo tédio e pelo
esvaziamento, que passariam a buscar, em estímulos externos, não apenas alguma
condição para suportar tais sentimentos intensos e penosos, mas a possibilidade de
estabelecer um traço identitário, ainda que transitório e reificado:
Ainda que as observações emergentes do campo pesquisado não permitam aferir sobre
tais motivações, a relação entre uso de drogas e a busca pela consolidação de alguma
identidade, ainda que pautada em parâmetros externos e efêmeros, emergiu entre os
participantes do estudo:
“Eu fui otário uma cara de tempo... Eu não conseguia ser, eu
tinha que ter.” (Breno, 23 anos)
108
das adições, a droga deixa de ser um objeto de desejo, relacionado a prazer e
impulsionando buscas vitais, para se tornar um objeto de satisfação, pautado no registro
das necessidades. A droga, enquanto objeto de satisfação, produz um apagamento do
sujeito, como ser desejante, desimplicando-o da tarefa de se haver com as escolhas feitas
(KEHL, 2005). Disto resulta, muitas vezes, a ênfase na escolha pelo rótulo de
dependente químico, para se apresentar perante o mundo, passando a se tornar, este
traço identitário, hegemônico sobre a totalidade do sujeito. O congelamento nesta
posição estanque, ampla e defensivamente ancorada na condição de dependente
químico, é um dos grandes riscos que rondam a pessoa acometida pela adição,
mantendo o aprisionamento evidente. Segundo destaca a psicanalista Maria Rita Kehl, a
resposta hegemônica (“Eu sou um drogado”) livra o sujeito, ainda que por um tempo
restrito, do confronto com a inevitável pergunta, que a todos nós ronda: “Quem sou
eu, o que me falta?” No campo das adições, a resposta a este questionamento é simples
e soberana: trata-se de um corpo em abstinência à procura de um objeto que irá
satisfazer sua necessidade (KEHL, 2005). Lembremos aqui que estamos nos referindo ao
campo da dependência química, e não apenas do consumo de substâncias psicoativas,
em que a droga ainda permanece inscrita como objeto de desejo (passível de escolha,
portanto) e não como objeto de satisfação, como acontece nas adições, conforme
esclarece Silveira (1991):
109
Silveira (1991) destaca o fato de a realidade, objetiva ou subjetiva, vivenciada pelo
dependente químico constituir-se insuportável; uma realidade que ele não consegue
modificar e da qual tampouco consegue esquivar-se, restando-lhe como alternativa
alterar sua percepção desta realidade, por meio do consumo da substância psicoativa.
Esta concepção é compartilhada pelo psicanalista francês Charles Melman (2000),
segundo o qual o consumo disfuncional de drogas pode ser compreendido como uma
forma de auto-medicação, destinada a apaziguar estados afetivos de extrema dor. O
alívio trazido pelo consumo adviria da suspensão temporária da consciência, ocasionada
pelos efeitos da substância no sistema nervoso central. Ao baixar as tensões psíquicas a
um ponto ideal, a droga proporcionaria uma espécie de suspensão transitória da
existência, um momento de anestesia, muito similar à morte.
Esta realidade subjetiva é evidenciada em uma tocante passagem do filme Meu Nome
Não É Johnny (2008), quando o protagonista – um jovem de classe média, dependente
de cocaína – está em um tribunal, sendo julgado por formação de quadrilha de tráfico
de drogas internacional:
110
Neste diálogo, evidencia-se a falta do registro da interdição e as consequências desta
ausência. As ações dão-se como uma sucessão de acontecimentos impensados, não
planejados, pautadas sobretudo pela urgência de adquirir o objeto de necessidade,
satisfazendo instantaneamente a falta vivenciada. A transgressão fica então pautada pela
ausência do registro da lei.
Simbolicamente, a não estruturação desta lei patriarcal, que dará ao indivíduo a noção
de limite, de contorno, acaba por mantê-lo num universo matriarcal, mágico, regido por
uma temporalidade que não é lógico-linear, mas centrada na instantaneidade e muito
próxima à morte, conforme destaca Silveira (1991):
Entre o grupo pesquisado, a relação com a morte apareceu de diferentes maneiras, ora
expressa nas entrelinhas, ora de maneira escancarada:
111
produz. A droga interdita justamente a via de acesso ao fato de que somos, todos, seres
incompletos e desejantes (KEHL, 2005). Desejantes, inclusive, porque incompletos. Se
nada falta, ainda que em ilusão, o acesso aos desejos fica dificultado, comprometendo-
se a possibilidade de constituir identidades diversas e dinâmicas, cambiantes conforme as
mudanças que a vida apresenta em seu decurso.
112
“Eu gosto de mentir. Sempre menti. Tem horas em que eu me
perco nas próprias histórias que invento. Minto tão bem que eu
mesmo acredito.” (Maurício, 35 anos)
“Minha primeira reação era não admitir, negar. (...) Era uma
tendência que eu tinha para me sentir melhor, superior aos
outros. (...) Eu parecia o David Copperfield. Era ilusionista, tinha
sensação de poder.” (Maurício, 35 anos)
Neste contexto, o consumo da substância, seguido dos efeitos psíquicos e por vezes dos
danos materiais e afetivos direta ou indiretamente relacionados às adições, não somente
se torna ineficaz para produzir a anestesia desejada, como intensifica sobremaneira o
mal-estar vivenciado:
“Eu não valho nada. Olha a merda que eu fiz.” (Carlos, 36 anos)
113
Há sede de viver e luta pela sobrevivência que o
toxicodependente teve de articular com a droga, mas há
também uma riqueza preexistente ao fato do tóxico:
curiosidade, desejo, procura de um outro âmbito, não-
codificação rígida, necessidades e buscas. Com certeza estrutura
“caracterial complexa” e, às vezes, diriam, “deficitária-lacunosa-
frágil”, mas estrutura ainda não institucionalizada, ainda não
fechada no interior da pobreza de significados, de perspectivas,
de intencionalidades, de carreiras. Por isso é um campo
particularmente fértil. Não digo que a droga enriqueça, diria que
a droga se encontra “naturalmente” com esta dilatação dos
campos de interesse, dos campos da curiosidade, dos campos do
desejo complexos em muito sujeitos. (ROTELLI, 1991)
Esta dimensão vital, contudo, vinculada a desejo, curiosidade e prazer, que Rotelli
localiza como preexistente à experiência toxicomaníaca e que Deleuze descreve como
experimentação vital, não emergiu nas experiências pessoais descritas pelos participantes
do estudo, permanecendo, sua relação com o consumo de substâncias, no registro dos
empreendimentos mortíferos:
114
“Pesado mesmo. Alguns morreram de overdose. Outro se
enforcou; teve esquizofrenia. Outro, um primo meu, vive
internado. Não consegue ficar sem usar droga nas ruas, nem a
pau!” (Carlos, 36 anos)
“Em relação à bebida, meu pai nunca via problema. Ele não
tinha noção do que era isso. Ele sabia que eu bebia, mas o
grande problema para ele era a cocaína.” (Michele, 25 anos)
Ainda que no campo das adições este fenômeno seja evidente, uma vez que se
apresenta intensificado, a perda da capacidade de estar só, autonomamente, e
estabelecer trocas criativas com o ambiente, parece ser uma característica cada vez mais
presente na atualidade. Neste ponto, torna-se imprescindível refletir sobre o contexto
115
sócio-econômico e cultural que pauta as relações na contemporaneidade, pois aqui
temos o campo fértil para o desenvolvimento das adições como um sintoma social –
adições não apenas químicas, mas quaisquer comportamentos aditivos (sexo, trabalho,
compras, jogos etc.). Vejamos algumas considerações sobre este processo.
Conforme enfatizado por Kehl (2005), atualmente vivemos em uma cultura que não
produz modos de sofrer, mas, ao contrário, confere aos indivíduos a ilusão de que é
possível viver sem dor. Não apenas possível, como desejável. Alguns aspectos centrais
da cultura atual, como o individualismo, a ênfase no sucesso, no hedonismo e no
consumo produzem um tipo de demanda sobre os indivíduos, na qual o sofrimento fica
destituído de qualquer lugar. O imperativo ao gozo é a tônica das sociedades ocidentais
contemporâneas, repercutindo, inevitavelmente, sobre os modos de subjetivação.
Nesta mesma direção, Rolnik (2006a), em coro com diversos autores da atualidade
(DUBAR, 2006; HALL, 2006; BAUMAN, 2005), aponta para as consequências da
globalização e dos avanços tecnológicos sobre os padrões identitários estabelecidos na
atualidade. Embora os tempos atuais sejam marcados pela velocidade das mudanças, da
comunicação, pela obsolescência programada, pela fluidez identitária, a busca por uma
referência identitária estável faz-se notável, persistindo a crença na possibilidade da
estabilidade que marcava a modernidade. Desta busca e desta impossibilidade resultam a
reificação das identidades estabelecidas, ao se transformarem em modelos-padrão de
identidade, prontos a serem consumidos, como bem descreve Rolnik (2006a):
116
(...) a mesma globalização que intensifica as misturas e pulveriza
as identidades implica também na produção de kits de perfis-
padrão de acordo com cada órbita do mercado, para serem
consumidos pelas subjetividades, independentemente do
contexto geográfico, nacional, cultural etc. Identidades locais
fixas desaparecem para dar lugar a identidades globalizadas
flexíveis, que mudam ao sabor dos movimentos do mercado e
com igual velocidade. (ROLNIK, 2006a)
As falas expressas por alguns dos participantes do estudo sobre a morte e as dificuldades
relacionadas ao viver parecem conter este esvaziamento e despersonalização de que nos
fala Rolnik. Afinal, para qual vida é difícil acordar de manhã? Sob que condições? É a
vivência de que, para si próprio, não restaria alternativa, senão o sono eterno. Mas de
que a morte livraria o sujeito?
Dubar (2006) nos dá pistas desta resposta ao destacar o sofrimento decorrente da busca
hegemônica por uma identidade pessoal; uma identidade vinculada à força e à
imposição do “ser si próprio”. Tomando de empréstimo as considerações de Ehrenberg
(1996) sobre a depressão na contemporaneidade – vinculada a mudanças no modelo
cultural – Dubar destaca as consequências inevitáveis que decorrem desta busca:
117
(...) o indivíduo conforme, que aplica as normas do seu meio, da
sua cultura, da sua classe social, ‘como os outros’, (...), foi
substituído pelo ‘indivíduo-trajetória à conquista da sua
identidade pessoal’. Face a este novo imperativo, muitos de
nossos contemporâneos, num momento ou outro da sua vida,
até mesmo de maneira mais ou menos crônica, sofrem dum
‘sentimento de insuficiência’, duma consciência aguda de ‘não
estar à altura’, duma impressão de falta que se pode traduzir por
sintomas diversos e bem conhecidos: astenia e cansaço crônicos,
insônias, ansiedades e angústias, ataques de pânico. A impressão
dominante é de ‘sofrer de si próprio’: não dum conflito, actual
ou arcaico, mas dum enfraquecimento do Eu, duma diminuição
ou desabamento da estima de si, em primeiro lugar e sobretudo
‘aos seus próprios olhos’. (DUBAR, 2006)
Neste contexto, marcado pela busca por si mesmo e pela sensação constante de
insuficiência, a legitimação pessoal corre o risco de ficar submetida ao olhar do outro,
ou a um despreparo intenso, que exigiria um aprendizado constante:
A este fenômeno relacionado à busca incessante por alguma identidade, Rolnik (2006b)
propõe o termo “toxicomania de identidade”. A busca se dá por qualquer identidade,
ainda que prêt-à-porter, como ela define toda uma infinidade de modelos identitários
difundidos pelo mercado da mídia. Trata-se, segundo a autora, de “miragens de
personagens globalizados, vencedores e invencíveis, envoltos por uma aura de
incansável glamour, que habitam as etéreas ondas sonoras e visuais da mídia” (ROLNIK,
2006b). Personagens que pairam acima do bem e do mal, como que inabaláveis pelas
“turbulências do vivo e da finitude do humano”. Deste processo de mimetização, tão
hegemônico na atualidade, resultam próteses de identidades, capazes de manter a ilusão
de um suposto apaziguamento, mantido à custa de alguma adição:
118
seja, dos efeitos do fora no corpo, ele tem a ilusão de
desacelerar o processo. Mas, como é impossível impedir a
formação de diagramas de força, o estado de estranhamento que
tais diagramas provocam acaba se reinstaurando em sua
subjetividade apesar da anestesia. Esse homem se vê, então,
obrigado a consumir algum tipo de droga se quiser manter a
miragem de uma suposta identidade. (ROLNIK, 2006b)
119
Neste sentido, portanto, o consumo de drogas, estaria a serviço da tentativa de
anestesiar a ameaça sentida pelo sujeito diante da possibilidade de desestruturação da
identidade estabelecida, ainda que se trate de uma identidade reificada e exteriorizada.
Considerando-se a constância desta experiência de ameaça, torna-se possível imaginar a
recorrência com que os comportamentos aditivos ocorrem, ameaçando a potência
criadora da vida, quando transbordam para o terreno das adições.
120
Destaca-se ainda o fato de a experiência de desestabilização ser reiteradamente
vivenciada ao longo da existência humana, já que resulta de um processo que nunca
cessa e que faz da subjetividade “um sempre outro”, como enfatiza Rolnik (2006b: 31).
Por fim, questionando-se sobre a intersecção deste fenômeno com o campo da ética, a
autora afirma:
121
contemporaneidade, distanciando-se do risco de se reificar em padrões engessados de
vida, de identidade, de prazeres e de buscas. Lembremos aqui, novamente, que nos
referimos ao fenômeno das adições, o qual, diferentemente do consumo de substâncias,
é marcado pelo aprisionamento e pela incapacidade de se fazer escolhas que envolvam
o não uso da substância.
Ressaltamos que considerar o fenômeno das adições como um sintoma social não
contradiz a concepção explicitada anteriormente, segundo a qual o consumo de drogas
pode inserir-se no registro de uma construção criativa e autônoma dos sujeitos em busca
de uma trajetória de vida autêntica, mesmo que transgressora das normatizações
estabelecidas. Neste registro, o consumo da substância é fruto de uma escolha, sobre a
qual o sujeito tem plena autonomia. Lembremos, contudo, a dependência química é
fenômeno que difere bastante do consumo de uma substância psicoativa. Quando
falamos em sintoma social, é no campo das adições que estamos – qualquer que seja ela
(sexo compulsivo, compras compulsivas, adição ao trabalho, adição a substâncias
psicoativas) – um campo marcado pelo aprisionamento e pela impossibilidade de
escolha sobre consumir ou não a substância psicoativa da qual se é dependente, ou de se
exercer ou não determinado comportamento aditivo. Entendemos, portanto, que a
compreensão ampliada sobre as dependências, como sintoma social da
contemporaneidade, faz-se necessária na medida em que este estudo versa sobre uma
população notadamente marcada por prejuízos decorrentes da instalação da
dependência química, e não apenas do consumo de drogas.
122
5.2 RECURSOS TERAPÊUTICOS
123
2) Considerando a dinâmica do dependente químico e sua ambivalência em buscar
ajuda, o tratamento precisa ser prontamente acessível ao paciente, quando
procurado;
3) Um tratamento efetivo atende às múltiplas necessidades do indivíduo
(problemas médicos, legais, sociais, ocupacionais, psicológicos), e não somente
ao seu uso de substância;
4) É necessário avaliar constantemente o tratamento planejado para o indivíduo,
modificando-o se necessário, a fim de se garantir que ele acompanhe as
mudanças de necessidade porque passa a pessoa ao longo de seu processo
terapêutico;
5) Permanecer em tratamento por um período adequado de tempo é fundamental
para se conseguir alguma efetividade; o período mínimo relaciona-se em geral a
três meses;
6) Aconselhamento individual ou em grupo e outros enfoques comportamentais
são componentes críticos de qualquer tratamento efetivo para as adições,
focalizando a motivação do paciente, suas habilidades de enfrentamento,
habilidades sociais e prevenção de recaída;
7) A terapia medicamentosa pode ser um importante elemento terapêutico para
muitos pacientes, sobretudo se combinada com outras intervenções, como o
aconselhamento e as terapias comportamentais;
8) Quadros clínicos e/ou psiquiátricos existentes conjuntamente à dependência
química ou ao uso nocivo precisam ser adequadamente avaliados e tratados, de
maneira integrada;
9) A desintoxicação constitui apenas o primeiro passo do tratamento da adição,
raramente sendo suficiente para gerar, por si só, mudanças a longo prazo;
10) Os programas de tratamento para dependência química deveriam prover
também orientação sobre comportamentos de risco, garantindo avaliação para
diagnosticar DST/AIDS e outras doenças infecciosas;
11) Por se tratar de uma condição crônica, o processo de saída da dependência
química pode ser longo e frequentemente exigirá múltiplos episódios de
tratamento, para que a pessoa consiga restabelecer-se satisfatoriamente.
124
rede de tratamento de sua região, a fim de formar, junto aos outros serviços, redes de
apoio mútuo. Este funcionamento é fundamental para viabilizar a continuidade de
tratamento daqueles que já concluíram o programa terapêutico proposto, mas
continuam precisando de outras abordagens (RIBEIRO, 2004).
125
nomeado por alguns autores como auto-ajuda:
Os grupos de ajuda mútua acabam muitas vezes exercendo uma importante função de
socialização, já que, sobretudo no início do tratamento, as pessoas chegam a frequentá-
los por diversos dias na mesma semana, criando um círculo de referência, para além dos
encontros nas reuniões do grupo. Neste sentido, o envolvimento e a participação
pessoal são fatores essenciais para que os grupos de ajuda mútua possam de fato auxiliar
a pessoa que o freqüenta. Segundo Borkman (apud MOTA, 2004), quanto mais
envolvida a pessoa está, com o propósito de partilhar sua experiência e ajudar o outro,
mais ajuda receberá em troca, ao longo do processo vivenciado. Este princípio parece
convergir com diversas falas apresentadas pelos participantes, sobre o trabalho no
campo da dependência química:
“Me sinto realizada quando eu consigo ajudar alguém, dar uma
palavra . (...) Tenho uma necessidade de ajudar o outro. Não sei
se por culpa... Tanto tempo fiz o mal para os outros. Agora
quero fazer o bem. Isto está muito forte em mim. As
identificações; a idéia de que o meu problema é o do outro.”
(Michele, 25 anos)
“Acho que esse trabalho vai ser bom para mim, porque eu não
consigo ficar sozinho.” (Guerreiro, 39 anos)
126
Ainda nesta direção, a solidariedade destaca-se como princípio central, nos grupos de
ajuda mútua, fazendo predominar um tipo de relação, entre os participantes, que tende
a ser horizontal, conforme enfatiza Mota (2004):
Se, por um lado, este princípio pode constituir-se de extrema valia para promover a
coesão entre os membros do grupo, favorecendo possibilidades de mudança, ao
potencializar a experiência de novos papéis sociais, por outro, o tipo de interação
propiciada pode tornar-se um tanto indiscriminada, ao prescindir de uma estrutura que
delimite funções e papéis. Este fato emergiu entre o grupo pesquisado, em falas que
denunciavam um funcionamento, por vezes, confuso – quer fosse na experiência atual
de tratamento, vivenciada na Casa, quer fosse em experiências terapêuticas prévias,
vivenciadas em outras clínicas também embasadas nos Doze Passos:
Originalmente proposto pelo grupo de ajuda mútua dos Alcoólicos Anônimos (AA),
surgido nos Estados Unidos em 1935, o Programa dos Doze Passos visa a promover uma
profunda alteração na visão de mundo do indivíduo, enfatizando um despertar
espiritual que transformaria o indivíduo da condição de vítima para a condição de
agente, auxiliando no processo terapêutico de pessoas em situações similares, conforme
destaca Mota (2004):
Segundo AA, a prática dos Doze Passos propicia aos membros
muito mais que a liberdade da antiga dependência: o indivíduo
emerge da condição de “vítima” a “servidor”, trabalhando
ativamente no auxílio à recuperação de outras pessoas recém-
chegadas ao grupo, impulsionado por um “despertar espiritual”
obtido no decorrer deste processo. (MOTA, 2004)
127
Os Doze Passos podem ser reunidos de acordo com o propósito predominante,
relacionando-se: à decisão (do 1º ao 3º passo); à ação (do 4º ao 9º passo) ou à
manutenção das conquistas obtidas durante o processo (do 10º ao 12º passo). Listamos a
seguir uma breve descrição de cada passo (MOTA, 2004):
128
em mais de 4.700 grupos, por todo o país. Estes dados constituem uma estimativa, já
que os grupos de AA não mantêm um registro dos membros filiados. Os grupos de
Narcóticos Anônimos (NA) funcionam nos mesmos moldes dos grupos de AA, também
seguindo o programa dos Doze Passos.
Tais grupos também apresentam seu funcionamento regido por princípios específicos,
dentre os quais a ênfase no anonimato dos participantes, a filiação voluntária e gratuita
à irmandade e a desvinculação de quaisquer causas, religiosas ou políticas ou de outras
naturezas. Em relação à divulgação, os grupos de ajuda mútua também não utilizam
estratégias específicas para atrair as pessoas, desenvolvendo o trabalho a partir da
promoção dos próprios participantes, conforme destacado na fala de um dos
participantes da pesquisa:
“Não é por promoção, é por atração” (Breno, 23 anos)
129
5.2.3 As residências terapêuticas
No Brasil, as primeiras experiências de moradia assistida datam dos anos 90, inseridas no
contexto da reforma psiquiátrica. A regulamentação das residências terapêuticas no
Brasil ficou a cargo da Portaria nº 106/2000 do Ministério da Saúde, prevendo sua
implantação no âmbito do SUS. De acordo com as diretrizes governamentais, o Serviço
Residencial Terapêutico (SRT) compõe uma das ações voltadas a concretizar a
substituição do modelo de atenção centrado nos hospitais psiquiátricos (MINISTÉRIO
DA SAÚDE, 2004c). Neste documento, o Ministério da Saúde define as residências
terapêuticas como casas situadas no espaço urbano, voltadas a atender as necessidades
de pessoas portadoras de transtornos mentais graves, egressas ou não de internações
psiquiátricas prolongadas.
Além dessa portaria, outras políticas oficiais dão sustentação aos SRTs: a Lei Federal nº
10.216/2001, que dispõe sobre a proteção e os direitos dos portadores de transtornos
mentais; a Lei Federal nº 10.708/2003, que institui o auxílio-reabilitação para pacientes
egressos de internações psiquiátricas (Programa De Volta Para Casa); as Portarias nº 52 e
53/2004, que estabelecem um programa de redução progressiva de leitos psiquiátricos
no País; e a Portaria n.º 1.220/2000, que regulamenta a Portaria 106/2000, para fins de
cadastro e financiamento no SIA/SUS (MINISTÉRIO DA SAÚDE, 2004c).
130
Existem dois tipos de SRTs, voltados a populações distintas. Os SRTs I são o tipo mais
comum de residências. Visam a oferecer suporte para a inserção dos moradores na rede
social existente (trabalho, lazer, educação). Segundo a diretriz oficial, o
acompanhamento na residência é realizado conforme recomendado nos programas
terapêuticos individualizados dos moradores e também pelos Agentes Comunitários de
Saúde do PSF, quando houver (MINISTÉRIO DA SAÚDE, 2004c). Neste tipo de
residência, devem ser desenvolvidas, junto aos moradores, estratégias para obtenção de
moradias definitivas na comunidade. O seu funcionamento exige apenas a ajuda de um
cuidador, que pode ser qualquer pessoa que receba capacitação para oferecer assistência
aos moradores: um trabalhador do CAPS, do PSF, de alguma instituição ou até um
funcionário do SRT, que pode ser um trabalhador doméstico, de carteira assinada, pago
com recursos do Programa De Volta Para Casa. Já os SRTs II têm um caráter mais
definitivo, já que são voltados para uma população institucionalizada, egressos de
internações psiquiátricas de longo prazo, que acabaram por perder o contato com os
familiares. Neste caso, o suporte focaliza-se na reapropriação do espaço residencial
como moradia e também na inserção dos moradores na rede social existente. Dadas as
demandas deste tipo de clientela, carente de cuidados intensivos, os SRTs II contam com
monitoramento técnico diário e pessoal, havendo um auxiliar permanente na residência.
Em função de tais especificidades, estas moradias podem variar em relação ao número
de moradores e ao financiamento recebido, que deve ser compatível com recursos
humanos presentes 24h/dia (MINISTÉRIO DA SAÚDE, 2004c).
131
demanda existente, como a distribuição pelo país, dos SRTs existentes, também é
bastante desigual, concentrando-se, a grande maioria, na região sudeste do país.
Atualmente existem no Brasil, 574 SRTs em funcionamento e 152 unidades em
implantação, segundo dados do Ministério da Saúde (2010). Trata-se de um número
ainda baixo para cobrir a demanda nacional. Entre os fatores que dificultam a expansão
desses serviços, estão os mecanismos insuficientes de financiamento do custeio, as
dificuldades políticas relacionadas à desinstitucionalização, a baixa articulação entre o
programa de SRTs e a política habitacional dos estados e do país, as resistências locais ao
processo de reintegração social e familiar de pacientes psiquiátricos e a fragilidade de
programas de formação continuada de equipes para serviços de moradia (MINISTÉRIO
DA SAÚDE, 2010).
À exceção de dois dos participantes do estudo, que passavam pelo primeiro episódio de
tratamento para a dependência química, todos os demais possuíam histórico de
tratamentos prévios à moradia na Casa, em geral em comunidades terapêuticas. Os
relatos do grupo sobre estes dispositivos de tratamento eram carregados de muita
intensidade, revelando experiências terapêuticas no mínimo conflituosas:
132
“Nossa comida era feita com restos de alimento, alimento
vencido. Quando era o meu dia de cozinhar , eu me recusava:
‘Não vou cozinhar com isso! Não dá para servir isso!’ ”
(Daniel, 34 anos)
Quando lhes pergunto sobre o posicionamento dos familiares, à época das internações,
diante das queixas relatadas, a resposta vem certeira e preocupante:
133
“Este tratamento está sendo diferente de todos os outros. O fato
de eu estar em contato com a realidade... a Patrícia me ajudou
muito. Inventário diário... ela lendo e me dando feedbacks.”
(Carlos, 36 anos)
“Uma esfera de clínica sem ser clínica, como vocês têm aqui, não
vão encontrar em lugar nenhum.” (Daniel, 34 anos, ´braço
direito´ da coordenadora da Casa – dirigindo-se aos demais
moradores)
As reflexões propostas por Hannah Arendt sobre o discurso e ação, em seu clássico A
Condição Humana, de 1958, ajudam a compreender a dimensão envolvida nas falas
expressas, tanto sobre o bem-estar vivenciado na experiência terapêutica da Casa,
quanto sobre o mal-estar enfrentado nas experiências terapêuticas prévias. É a partir do
discurso e da ação, integrados, que nos distinguimos como seres humanos:
134
Contudo, para efetivamente realizar o poder que advém desta condição, é necessário
que ação e discurso estejam integrados, revelando, as palavras, o agente do ato
realizado:
Sem a revelação do agente no ato, a ação perde o seu caráter
específico e torna-se um feito como outro qualquer. (...) Nestas
circunstâncias (...) o discurso transforma-se de fato em mera
‘conversa’, apenas mais um meio de alcançar um fim, quer
iludindo o inimigo, quer ofuscando a todos com propaganda.
(...) O poder só é efetivado enquanto a palavra e o ato não se
divorciam, quando as palavras não são vazias e os atos não são
brutais, quando as palavras não são empregadas para velar
intenções mas para revelar realidades, e os atos não são usados
para violar e destruir, mas para criar relações e novas realidades.
(ARENDT, 2008)
Pois era justamente a integração entre discurso e ação que se encontrava rompida nas
experiências terapêuticas narradas, tornando-as, não apenas estéreis, do ponto de vista
da promoção de saúde, mas nocivas, já que potencializavam uma experiência por
demais conhecida entre aqueles que desenvolveram a problemática da dependência
química: o mal-estar e a impotência relacionados às mentiras manifestas. E o que é a
mentira senão uma importante dissociação entre discurso e ação?
Outro fator que parece ter contribuído em muito para a vivência satisfatória na Casa,
refere-se à experiência de grupalidade ali vivenciada, pois esta é uma condição
fundamental para que se realize o potencial revelador do discurso e da ação, conforme
enfatiza Hannah Arendt:
135
Esta qualidade reveladora do discurso e da ação vem à tona
quando as pessoas estão com outras, isto é, no simples gozo da
convivência humana. (...) Embora ninguém saiba que tipo de
‘quem’ revela ao se expor na ação e na palavra, é necessário que
cada um esteja disposto a correr o risco da revelação. O único
fator material indispensável para a geração do poder é a
convivência entre os homens. Estes só retêm poder quando
vivem tão próximos uns aos outros que as potencialidades da
ação estão sempre presentes. (...) O que mantém unidas as
pessoas depois que passa o momento fugaz da ação (...) e o que
elas, por sua vez, mantêm vivo ao permanecerem unidas é o
poder. Todo aquele que, por algum motivo, se isola e não
participa dessa convivência, renuncia ao poder e se torna
impotente, por maior que seja a sua força e por mais válidas que
sejam suas razões. (ARENDT, 2008)
Retomemos algumas falas que parecem expressar a qualidade das relações vivenciadas
pelo grupo de pacientes-moradores na Casa:
“Uma esfera de clínica sem ser clínica, como vocês têm aqui, não
vão encontrar em lugar nenhum.” (Daniel, 34 anos, ´braço
direito´ da coordenadora da Casa – dirigindo-se aos demais
moradores)
136
5.2.5 A Centralidade do Dispositivo Grupal no Tratamento das Adições
Por mais que a dependência química não tenha uma origem única, alguns elementos
potencialmente terapêuticos podem ser destacados, quando o objetivo é a quebra do
padrão restritivo imposto pela dependência química e a potencialização de recursos de
vida, no indivíduo acometido. Neste sentido, a grupalidade parece exercer um papel
central. Não há meios de se romper o isolamento imposto pela dependência química
mantendo-se o indivíduo isolado do convívio com outras pessoas; protegido dos
desafios que a interpessoalidade impõe. A troca proveniente desta interação e o
estabelecimento de vínculos significativos constituem fatores centrais ao processo de
reabilitação.
“Um sozinho não dá. O outro sozinho também não vai... Mas
dois juntos, já funcionam...” (Daniel, 34 anos)
137
“Eu estou seguro aqui. (...) Morar sozinho é tão ruim... Eu já
morei. Ficar sozinho é ruim. Aqui eu posso me sentir isolado,
mas ao mesmo tempo ter gente junto.” (Guerreiro, 39 anos)
138
Neste ponto, destaco uma passagem do diário de campo em que descrevo as reflexões
suscitadas a partir de uma cena vivenciada no dia. Carlos, um dos participantes do
grupo, compartilha com o grupo a satisfação que vivenciara naquele final de semana,
em uma festa junina, quando se percebeu conversando, “de igual para igual”, de
maneira interessante, com uma pessoa que acabara de conhecer lá, e que nada tinha a
ver com o universo da dependência química. Conversaram, segundo ele, sobre
banalidades do cotidiano e também sobre alguma situação difícil pela qual a pessoa
estava passando no trabalho. Sua satisfação foi imensa ao perceber que conseguia
estabelecer uma conversa com pessoas consideradas por ele como ‘normais’, fora do
circuito dos grupos de ajuda mútua ou das clínicas de tratamento para dependência
química. A partir desta cena, pude dimensionar um pouco mais a extensão das
dificuldades enfrentadas por aqueles que permaneceram anos a fio fechados no circuito
da dependência química. O isolamento em que permanecem, para ser rompido, requer
necessariamente o convívio social com outras pessoas e grupos, para além do circuito
drogas/tratamento, conforme destaco na passagem a seguir, extraída do diário de
campo:
Penso sobre a importância de conseguir transpor os grupos de
pertencimento da DQ; transitar por outros lugares e pessoas, e
perceber pontos de convergência, afinidades outras, para além
da problemática relacionada ao uso das drogas.
Importância da fala de Carlos ao se dar conta, na festa junina, de
que estava compartilhando algo com um ‘companheiro’ que não
era do NA. Como é importante descobrir: 1. que lhes é possível
encontrar, fora do circuito drogas/adictos, pessoas com quem
consigam trocar: experiências, cumplicidades, afetos, dúvidas,
diversões, dores. 2. Descobrir que as ditas pessoas ‘normais’
também têm problemas, e lidam com eles com dificuldades;
porque problema é problema... É difícil para qualquer um.”
(Diário de campo – Agosto de 2008)
Esta simples passagem do cotidiano, vivenciada por Carlos, parece um bom exemplo
sobre a magnitude das dificuldades enfrentadas por aqueles que se propõem a romper o
isolamento produzido pela dependência química. Um dos pontos de ruptura que a
dependência ocasiona é justamente a possibilidade de inscrição no coletivo. Recorro
aqui à idéia preciosa proposta por Simone Weil, em 1943, sobre o enraizamento como
fator primordial à condição humana:
O enraizamento talvez seja a necessidade mais importante e mais
desconhecida da alma humana. É uma das mais difíceis de definir.
O ser humano tem uma raiz por sua participação real, ativa e
natural na existência de uma coletividade que conserva vivos
certos tesouros do passado e certos pressentimentos do futuro.
(Weil, 1979)
139
Ora, se é a partir da “participação real, ativa e natural na existência de uma
coletividade” que o enraizamento humano se dá, então a ruptura gerada pela
dependência química acarreta um preço por demais alto à subjetividade da pessoa
acometida por esta condição, ao lhe apartar justamente de sua inscrição primordial.
Lembremos aqui que a participação na coletividade, de que nos fala Simone Weil,
pressupõe necessariamente aprendizados e trocas, portanto, aberturas. Trata-se de uma
participação em muito diversa daquela observada no circuito da dependência química,
marcada pelo isolamento e pela impossibilidade de se estabelecer trocas criativas, seja
com o ambiente, seja com as pessoas, ainda que se esteja em grupo, como
frequentemente ocorre.
140
implica em abdicar de quaisquer posições pré-estabelecidas acerca do que seja certo ou
errado, esperado ou temido, normal ou patológico, aceitando-se as singularidades
emergentes, com suas múltiplas realidades. A postura, neste caso, é de afirmação diante
da multiplicidade possível, legitimando-a.
1 Machado, A.M. Crianças de Classe Especial. São Paulo: Casa do Psicólogo, 1994.
141
Problematizar seria, então, libertar o desejo de qualquer
categoria, como, por exemplo, da categoria de se esse desejo
deveria ou não existir. É deixá-lo existir em paz, é substituir o
“porquê” pelo “e”. (...)
Problematizar, libertar o desejo de uma relação que aprisiona e
que impede outros acontecimentos. Olhar as diferenças de
natureza, as tendências, os devires. Não é uma atividade
somente racional. Um objeto não problematiza outro objeto
como se algum deles permanecesse parado. Eles se afetam
mutuamente. (MACHADO, 1994)
Tal desafio nos parece ter sido alcançado, em alguma medida, nos meses em que a Casa
esteve em funcionamento. A seguir apresentamos uma síntese dos pontos que nos
pareceram mais relevantes ao favorecimento de tais mudanças.
142
de campo: quando a coordenadora viajou para o seu Estado de origem, para resolver
questões pessoais, permanecendo afastada da Casa por mais de duas semanas; e quando
a Casa mudou de endereço, passando a ocupar um espaço físico muito maior, que lhes
possibilitou receber novos pacientes-moradores. Conjuntamente a estes dois marcos,
outros episódios somaram-se, compondo momentos delicados no cotidiano da
organização, marcados por muita angústia e insegurança, até culminar no momento
mais difícil enfrentado pelos pacientes-moradores: o fechamento súbito da Casa.
A briga de faca
Este episódio ocorreu ainda na primeira casa antiga – aquela que era menor, mais
acolhedora, e onde residia um grupo ainda pequeno de pacientes-moradores. Não
presenciei esta cena. Apenas ouvi a descrição da briga dias depois, em um dos encontros
em grupo.
À época deste fato, Patrícia estava afastada da Casa havia quase duas semanas, em
viagem pessoal para resolver problemas particulares. Embora o cotidiano clínico da
organização estivesse mantido pela presença dos técnicos (tanto os técnicos residentes na
Casa, quanto os profissionais prestadores de serviço), o clima entre os moradores
tornou-se cada vez mais tenso, conforme avançava o período de ausência de Patrícia,
até eclodir nesta briga. As pessoas diretamente envolvidas na briga foram Guerreiro e
Espanhol.
Nesta época, Guerreiro tinha 39 anos, dos quais os últimos vinte passara dependente de
crack. Como ele mesmo se descreve, é um homem de poucas palavras, que não está
acostumado a resolver os problemas conversando:
143
Bem, no dia da briga, estavam todos fazendo a faxina da casa. Segundo o relato de
outros residentes, a maioria deles estava bastante incomodada com a postura pouco
colaboradora de Espanhol, na faxina coletiva, e com seus comentários “sarcásticos”. Só
que ninguém ali conseguiu reunir o grupo para uma conversa, durante este dia. O
incômodo foi caminhando num crescente, até que Guerreiro não suportou mais e, num
impulso, correu até a cozinha, sacou da gaveta a maior faca que encontrou e voou em
direção a Espanhol. Na confusão geral que se armou, alguns pacientes correram para
segurar Guerreiro que, segundo contaram, “estava com uma força descomunal”; outros,
correram para ajudar Espanhol, que só conseguiu fugir da casa porque os outros
mantiveram Guerreiro imobilizado.
Nesta noite, por orientação de Patrícia, via telefone, Espanhol não retornou à Casa,
pernoitando em um hotel da região. Guerreiro, passada a ira, caiu em si, ficando muito
arrependido e assustado com a sua reação. O clima na casa, que já não estava bom,
ficou então ainda mais pesado e tenso:
Daniel, 34 anos, quatro anos em abstinência do crack, era uma das principais referências
terapêuticas da Casa; braço direito de Patrícia. De todos os membros da equipe de
técnicos residentes, ele era o que possuía mais experiência de trabalho com dependência
química, tendo atuado em outras clínicas e moradias assistidas. Na Casa, Daniel
coordenava algumas palestras sobre o Programa dos 12 passos, mantinha contato com
os familiares dos pacientes-moradores e era referência direta para diversos pacientes.
O fechamento da Casa
145
a maioria dos pacientes-moradores já havia sido reencaminhada para suas casas. Neste
dia, estavam presentes na Casa apenas alguns poucos integrantes da equipe técnica,
também pacientes-moradores. O clima era de tensão e muita incompreensão. Estavam
atônitos com o fechamento repentino da Casa, fato que se tornava ainda mais difícil
dado o caráter súbito e a época do ano em que ocorrera, tão próximo às festas de final
de ano – período sabidamente mais complicado para quem está em tratamento para
dependência química. A maioria já havia retornado para a casa dos familiares; e os
poucos que ali estavam naquele dia também teriam de deixar a Casa, embora o desejo
de praticamente todos ali fosse conseguir bancar uma moradia independente da família,
com amigos ou mesmo sozinho. Era nesta direção que a experiência na residência
terapêutica os encaminhava.
A situação real, contudo, era bastante diferente, já que a maioria ali havia interrompido
o trabalho formal para se dedicar exclusivamente ao tratamento. Assim, sem saber para
onde iriam, ou como ficariam organizadas suas rotinas de vida dali por diante, o mais
provável é que voltassem para a casa dos familiares. Fato mais provável, embora não o
mais indicado, já que este retorno, em geral, exige um trabalho terapêutico prévio
bastante intenso, envolvendo familiares e pacientes, que naquelas circunstâncias
simplesmente não havia podido acontecer.
146
A moradia como espaço de trabalho e de tratamento
Além dos episódios relatados, a intensidade e as dificuldades do trabalho com
dependência química também emergiram entre os participantes do estudo, sobretudo
considerando-se que o seu ambiente de trabalho era também sua moradia e espaço de
tratamento:
“Vou correr no parque, lembro que o mundo existe. Aqui, o
tempo pára.” (Breno, 23 anos)
Para melhor refletirmos sobre o campo da dependência química como fonte de trabalho
para quem está em recuperação, vejamos primeiramente algumas características que
cercam o mundo do trabalho na atualidade. As fragmentações e deslocamentos próprios
da contemporaneidade também se fazem notar no contexto do trabalho, em
detrimento da unificação e estabilidade outrora presentes. Como era de se esperar, este
fenômeno também contribui para aumentar o mal-estar vivenciado na atualidade, ao
fazer ruir as identidades profissionais estabelecidas, tão centrais na modernidade;
fenômeno que, direta ou indiretamente, também repercute sobre a população alvo
deste estudo.
147
5.3 TRABALHO
148
sempre contingente. Algumas das falas emergentes, relacionadas aos modelos familiares,
apontam nesta direção, sugerindo a precariedade desta referência institucional, entre o
grupo pesquisado:
“Meu avô era [uma referência importante em sua vida]. Ele era
uma pessoa muito correta. Mas por outro lado, tinha uns
hábitos meio estranhos. Furtava umas ferramentas... Quando fui
tendo meus desvios, pensei: ´Caramba meu! Mas qual é a
diferença?´ Eu tinha um instinto natural de que aquilo não era
certo... Levar vantagem não é legal. (...) A referência que eu
tenho de coisa justa é o meu irmão. Ela acha que tudo tem um
preço. E ele paga.” (Carlos, 36 anos)
“Quem é ela para me dizer o quê? Não quer que eu faça, mas
ela faz?” (Michele, 25 anos, referindo-se à mãe, que embora,
fosse bastante rígida e controladora, segundo ela, nos dias em
que a mãe jogava pocker, ela “bebia muito e virava do avesso;
nesses dias, tudo podia... três litros de refrigerante, dormir fora
de hora...”)
Não pretendemos aqui estabelecer uma relação de causa e efeito entre o funcionamento
familiar e a instalação da dependência química. Seria no mínimo ingênuo e injusto
atribuir à família a responsabilidade pela adição de um de seus membros, sobretudo
considerando-se a complexidade envolvida na gênese da dependência química,
conforme exposto no capítulo anterior. O que as falas emergentes em campo parecem
de alguma maneira evidenciar é o esgarçamento dos valores sociais presentes na
atualidade, fenômeno que acaba por repercutir sobre o processo de constituição das
identidades.
149
Contudo, de que identidade falamos, se a transitoriedade talvez seja, atualmente, a
única constante? Para balizar nossa reflexão sobre esta questão, recorremos novamente
a Dubar. Em sua obra A crise das identidades: a interpretação de uma mutação (DUBAR,
2006), o autor inicia suas considerações refletindo sobre a pertinência de utilizar no
título da obra o termo ‘identidade’, já que sua análise conduz justamente à superação
da proposição de permanência embutida neste conceito. Para refletir sobre as diversas
acepções que marcaram a noção de identidade ao longo da história, Dubar distingue
duas grandes correntes: essencialista e nominalista.
2
Grifo do autor
150
O confronto com tal concepção essencialista, no cotidiano clínico, torna ainda mais
desafiadora a tarefa terapêutica, necessariamente ancorada na perspectiva histórica e
contextual, que pressupõe a possibilidade de mudanças. Tal concepção é própria da
corrente que Dubar nomeia como nominalista, pautada na proposição de que as
categorias que permitem conhecer algo sobre os seres empíricos são, na realidade,
modos de identificação submetidos a determinado contexto, portanto, historicamente
variáveis:
É nesta concepção que Dubar ancora seu ponto de vista, considerando a identidade
como uma construção contingencial. O autor propõe que as configurações identitárias
dão-se justamente a partir das constantes mudanças de cenário que marcam a atualidade
e que necessariamente repercutem sobre as trajetórias individuais, gerando não uma
identidade única, constante e a-histórica, para cada indivíduo, mas identidades
complexas e cambiáveis.
3
Grifos do autor
151
“A família aprende que não pode contrariar o familiar
dependente químico.” (Carlos, 36 anos)
“ ‘Você decidiu até agora. Agora quem vai decidir sou eu, e você
vai ficar.’ ” (Breno, 23 anos, referindo-se à fala de seu avô,
quando o internou na Casa, diante da sua recusa em permanecer
lá.)
A diferenciação entre estes dois processos de identificação nos parece bastante relevante
para considerarmos os processos terapêuticos envolvidos no trabalho com as pessoas em
tratamento para a dependência química, dada a hegemonia das identificações para o
outro. Boa parte do trabalho terapêutico junto a estas pessoas passa necessariamente
por fortalecer, ou inaugurar, as identidades para Si, aquelas reivindicadas por eles
mesmos.
152
percursos biográficos. É no entremeio destas duas formas identitárias que se forjam as
crises existenciais e as crises de identidade pessoal tão evidentes na atualidade, crises que
envolvem a definição de si, tanto quanto o reconhecimento atribuído pelos outros. No
campo da dependência química, esta crise evidencia-se com ainda mais força, dada a
intensidade das experiências e rupturas vivenciadas nas trajetórias biográficas.
As identificações de tipo societário podem produzir tanto identidades para Si, quanto
identidades para o Outro, não necessariamente convergentes. Já na forma comunitária
de identificação, o indivíduo em geral assume para si a identidade gerada a partir do seu
grupo de pertencimento, fazendo convergir as duas identificações.
153
Vale destacar que o foco da atenção está em discriminar categorias de identificação, que
podem ser exclusivamente externas (para o Outro) ou igualmente internas (para Si);
estar circunscritas a um domínio particular de relações sociais ou relacionar-se a todos os
aspectos da vida reconduzidos a uma pertença principal (DUBAR, 2006). Na dimensão
da identificação para Si, está em jogo, sobretudo, formas espaciais de relações sociais,
conforme descreve o autor, originando um eixo relacional. Já nas identificações para o
Outro, observamos formas de temporalidade, pautadas em um eixo biográfico. É da
relação entre estes dois eixos que advém o que Dubar nomeia por formas identitárias,
enquanto “formas sociais de identificação dos indivíduos na relação com os outros e ao
longo duma vida”.
A partir destes dois eixos centrais, Dubar identifica quatro configurações identitárias
possíveis, que são combinadas de diferentes maneiras, conforme o contexto e a época:
as formas identitárias nominais (culturais), as estatutárias (profissionais), as reflexivas
(ideológicas) e as narrativas (singulares). Vale destacar que não existe a predominância
de uma forma identitária sobre as outras, inclusive porque tais configurações variam
conforme o contexto histórico e cultural:
4 Grifos do autor
154
pelo desempenho de papéis” (DUBAR, 2006). Considerando o aprisionamento
decorrente da condição de dependência química, o desempenho de múltiplos papéis
sociais no decurso da trajetória de vida fica por vezes impossibilitado, ocasionando
prejuízos visíveis ao desenvolvimento de um Eu plural, característico da
contemporaneidade e constituído, sobretudo, a partir das identificações de tipo
estatutário.
“Faz tempo que eu não tinha contato com outras coisas. Ver
como está a minha cabeça em relação a trabalho, outros
assuntos.” (Daniel, 34 anos)
5 Grifo do autor
156
“Hoje eu falo o que penso, o que sinto... Porque eu percebi
nesse processo que eu guardava para mim. Vai me fazendo
mal...” (Michele, 25 anos)
“Chega uma hora que eu vou perdendo o fôlego, sou pego por
uma crise de ansiedade.” (Breno, 23 anos)
157
potencial nocivo vinculado ao trabalho associa-se não somente às condições de trabalho
(ambiente físico geral e características antropométricas do posto de trabalho), mas à
organização do trabalho (divisão do trabalho, conteúdo da tarefa, relações
hierárquicas), com repercussões diretas sobre a saúde mental do trabalhador, conforme
enfatiza Dejours (1992):
158
Na discussão sobre a precarização das condições de trabalho na atualidade, todos os
participantes do estudo identificaram, em suas trajetórias profissionais, situações de
trabalho consideradas aviltantes. Os exemplos abrangeram distintas áreas de trabalho,
envolvendo vendas em shopping center, trabalho em instituição particular de ensino,
em órgão público, em fábrica de calçados, na construção civil. As situações relatadas
também eram diversificadas quanto aos direitos infringidos: demissão por participação
em greve; ausência de registro em carteira; desrespeito ao contrato de trabalho (carga
horária, corte na comissão das vendas):
“Eu tinha hora para entrar, mas nunca para sair...” (Michele, 25
anos – referindo-se ao trabalho na área de produção de eventos)
159
somada ao desejo de retorno rápido, à estruturação das organizações em redes – mais
planas e flexíveis – ao invés das antigas hierarquias piramidais – mais estáveis e difíceis se
serem decompostas ou redefinidas – repercutiu diretamente sobre a possibilidade de se
estabelecer confiança, atributo relacionado às relações informais e duradouras, conforme
destaca o autor:
160
Tal contradição parece convergir com a fragilidade e fluidez das experiências na
contemporaneidade, como se o registro deixado por tais experiências satisfatórias não
fosse forte o suficiente para influenciar outras construções, esvaindo-se rapidamente.
Este fato parece convergir com um dado emergente em campo, que nos chamou
atenção, a despeito do panorama relacionado ao desemprego estrutural: boa parte das
dificuldades relatadas pelos participantes não estava em dar o primeiro passo em
161
direção à conquista de um emprego, mas em manter o posto de trabalho conquistado.
Na contramão do cenário atual, tanto do mundo do trabalho, quanto dos programas
de reabilitação vocacional praticados internacionalmente, destacou-se a facilidade com
que referiram conseguir empregos:
Uma hipótese para tentar compreender tal fato relaciona-se ao tipo de atividade
exercida, juntamente ao histórico profissional e à faixa etária de quem fala. Tanto
Michele, como Jefferson, são pessoas jovens. As experiências de trabalho de Michele
sempre haviam sido na área de comunicação e de vendas e a maioria de seus empregos
resultava, direta ou indiretamente, de contatos pessoais relacionados à sua mãe. Carlos
(36 anos), embora já não pertencesse a uma faixa etária considerada jovem para o
mercado de trabalho, possuía em seu histórico profissional atividades de trabalho
relacionadas à área de vendas, em lojas de shopping, em empresa de telefonia celular, e
mesmo em seu próprio comércio, na área de alimentação. Já o histórico de trabalho de
Jeferson, caracterizado por um perfil mais abrangente de atividades, que exigia menor
grau de especialização (motoboy, ajudante geral, ajudante de pedreiro, office boy),
também parece ter contribuído para a sua vivência pessoal sobre a facilidade de arrumar
empregos. Inclusive porque ele sempre esteve disposto a trabalhar “no que aparecesse,
para ganhar dinheiro e ajudar em casa”.
162
Não apenas seu campo de atuação é outro, como também sua faixa etária. Após
desenvolver dependência de álcool, secundária a um quadro de transtorno bipolar,
diagnosticado aos seus trinta e sete anos, Cristina afastou-se do trabalho por licença
saúde e, à época da pesquisa, estava dando entrada na documentação para aposentar-se
por invalidez, pois havia desenvolvido fobia à sala de aula: não conseguia, nem queria
mais lecionar. A despeito de sua condição clínica, sabemos a influência que o fator idade
pode exercer sobre a subjetividade do trabalhador, como decorrência do estigma de
que passa a ser alvo, em uma estrutura que preza a juventude, o imediatismo e uma
suposta flexibilidade vinculada à juventude. A este respeito, esclarece Sennett (1999):
163
“Começaram a perceber pelas faltas, as vendas caíram, o gás
acabou. Pensei: ‘Viche eu to queimado!’ Não suportei. Fui
embora. ‘Não vou mais’. Só queria sair fora de lá. Sabia que ia
ser promovido, porque o supervisor tinha elogiado meu
desempenho: ‘A próxima promoção é sua...’ ‘Caramba! –
pensei: Eu vou pegar uma gerência e vou pisar na bola...’ ”.
(Carlos, 36 anos)
Para nos auxiliar a refletir sobre tal fenômeno, novamente recorreremos às idéias de
Sennett (1999), apresentadas em A Corrosão do Caráter: consequências pessoais do
trabalho no novo capitalismo. Nesta obra, o autor é enfático ao revelar as repercussões
que o novo capitalismo flexível acarreta sobre o desenvolvimento do caráter, na
atualidade, ao interromper a perspectiva de longo prazo:
164
Na ausência de uma narrativa pessoal que auxilie o dependente a organizar as
experiências vivenciadas, temos a afirmação de valores absolutos, tais como revelados
quando se referem a si mesmos ou ao que compreendem como preferências pessoais:
gosto por roubar, por mentir, por não trabalhar. A afirmação que, no livro, a título de
ilustração, Sennett faz sobre Davi – um jovem bem sucedido profissionalmente, mas
confuso e carente de princípios organizadores para a vida pessoal, retrato dos tempos
modernos e flexíveis – auxilia na compreensão sobre a dinâmica observada em campo,
entre os participantes do estudo, ao apontar para a ausência de uma narrativa que torne
compreensível a experiência pessoal:
Neste sentido, o risco de fracassar não está, por vezes, na dificuldade de conquistar um
165
trabalho, ou mesmo de mantê-lo, de estar bem com os familiares e amigos, ou de
conseguir manter-se em abstinência do uso de drogas. O grande risco está na ausência
de objetivos para a vida pessoal. É a ligação com o futuro que, interrompida,
potencializa a sensação de impotência e de fracasso. Neste sentido, Sennett, em
referência ao trabalho de Walter Lippmann, relacionado ao período da Primeira Guerra
Mundial, aponta a importância da noção de carreira para os imigrantes recém- chegados
aos Estados Unidos:
O que devia orientar aquelas pessoas, separadas de sua terra,
que agora tentavam criar uma nova narrativa de vida? Para
Lippmann, era o exercício de uma carreira. Não fazer do próprio
trabalho uma carreira, por mais modesto que fosse o conteúdo
ou salário, era deixar-se cair presa do senso de falta de objetivo
que constitui a mais profunda experiência de incompetência.”
(SENNETT, 1999)
Se tomarmos a idéia de carreira, tal como proposta por Sennett (1999), como uma
“estrada bem feita”, teremos que, abrir essa estrada, era o que constituía, aos imigrantes
do início do século passado, o antídoto ao fracasso pessoal, ao lhes proporcionar um
objetivo no novo e desconhecido contexto de vida.
Entre o grupo pesquisado, auxiliar nesta construção revelou-se um desafio grande, frente
às histórias de vida marcadas por rupturas e perdas, e principalmente pela descrença
quanto às próprias perspectivas de vida e possibilidade de realizarem seus desejos
pessoais.
A cena:
Após meses trabalhando com os pacientes questões relacionadas
ao retorno para o mercado de trabalho (motivação para
retornar ao trabalho, treinamento de habilidades para realizar
entrevista de emprego, revisão do currículo...), a assistente social
consegue uma entrevista de emprego para um dos pacientes do
grupo,
166
Pergunto-lhes então o que achavam que havia acontecido. A resposta vem rápida e
certeira: “Ele não foi!”
Surpresa com a rapidez daquele acerto, pergunto-lhes qual achavam que teria sido o
motivo daquela ausência. A resposta vem novamente rápida: “É que não é isso!”
167
Diante do contexto apresentado, entendemos que se evidenciam algumas limitações do
processo de reabilitação vocacional comumente praticado em âmbito internacional.
Parece-nos necessário ampliar o foco deste processo para além da inclusão no mercado
formal de trabalho, já que o desempenho de uma atividade ocupacional pode não
contribuir, por si, para a emancipação da pessoa em tratamento. Do nosso ponto de
vista, a retomada da atividade profissional apenas se constituirá parte do processo
reabilitatório se estiver integrada à construção de um projeto de vida ampliado.
5.3.3 A dependência química como fonte de trabalho para quem está em recuperação
Para refletir sobre o campo da dependência química como fonte de trabalho para quem
está em recuperação, é necessário ter em mente a filosofia subjacente aos grupos de
ajuda mútua, já que é neste contexto que o trabalho terapêutico de dependentes
químicos com outros companheiros em tratamento para dependência química ocorre.
168
A fronteira tênue entre ajudar o próximo e ajudar a si próprio também se destacou nas
falas emergentes. A expectativa de que o trabalho com dependência química os
mantivesse constantemente em tratamento, já que permaneceriam em contato estreito
com o problema que também enfrentam. Nesta perspectiva, o trabalho com
dependência química é bastante circunstancial e se relaciona ao próprio tratamento:
“Acho que esse trabalho vai ser bom para mim, porque eu não
consigo ficar sozinho.” (Guerreiro, 39 anos)
Para alguns, o trabalho com dependência química revelou-se, não uma escolha, mas
uma obrigação, como se tivessem de se dedicar a ajudar outras pessoas com a mesma
problemática, por já terem passado pela situação:
169
Contudo, nem todos que cogitavam trabalhar neste campo, desejavam exercer funções
terapêuticas. Alguns ali tinham plena noção do tipo de atividade que queriam
desempenhar na Casa, em geral atividades relacionadas aos seus históricos profissionais
(atividades administrativas, de vendas, de marketing):
“O que eu procuro passar para eles é que tem jeito. Tem jeito
sabe?” (Daniel, 34 anos)
Subjacente a este fato parecia estar a crença de que a atividade por eles desempenhada
não se tratava de uma atividade profissional – passível, portanto, de remuneração e
regulamentação trabalhista – mas de uma atividade relacionada ao próprio tratamento.
Neste registro, o crescimento pessoal possibilitado pelo trabalho terapêutico com os
outros pacientes-moradores parecia representar, por si só, o ganho necessário.
Contudo, em diversos momentos este equilíbrio aparente era quebrado pelas queixas e
dificuldades por eles claramente mencionadas e diretamente relacionadas ao exercício
cotidiano desta atividade, sem pausas ou discriminações. As queixas emergentes sobre
este tema referiam-se tanto ao trabalho na Casa, quanto a experiências anteriores de
trabalho, em outras comunidades terapêuticas:
171
– “Como terminou a monitoria lá?” – perguntei a Carlos,
referindo-me ao trabalho que ele exercera em outra clínica,
onde permanecera por quatro meses.
172
6. PÓS-CAMPO
6. PÓS-CAMPO (desfechos conhecidos)
Em início de fevereiro de 2009, Daniel me liga para contar que estava trabalhando em
um ambulatório na zona leste de São Paulo e morando na casa da mãe, junto com seu
filho. Estava feliz. Trabalhando bastante e satisfeito por poder inovar em seu trabalho.
“Vem conhecer o ambulatório!” Foi novamente o seu convite, tal como nos primeiros
contatos estabelecidos com a Casa.
Neste telefonema, Daniel me conta com orgulho sobre o quanto estava satisfeito com o
novo trabalho e com as condições em que o estava desempenhando. Tinha liberdade
para conceber e conduzir os grupos da maneira como desejasse, além de horários de
trabalho e dias de folga estabelecidos. Estava procurando uma casa para alugar,
próximo ao seu trabalho, onde pudesse morar com o filho.
Desde o fechamento da Casa, Daniel manteve contato regular com os antigos pacientes-
moradores. Segundo contou-me neste telefonema, a grande maioria não havia dado
sequência a nenhum tratamento para dependência química. Simplesmente haviam
retornado à casa dos familiares e tentavam levar a vida adiante. Este foi o caso de
Fernando, que continuou trabalhando no açougue da família e permanecia em
abstinência. Já Michele, Breno, Cristina, Noronha, Guerreiro e Jeferson haviam recaído
no uso das drogas. Destes, alguns voltaram a buscar tratamento, com ocorreu com
Michele e Breno, que novamente haviam se internado em uma comunidade terapêutica.
Outros, contudo, haviam “sucumbido ao uso”, chegando a passar dias fora de casa, sem
qualquer contato com familiares e amigos, apenas mergulhado no consumo de crack ou
cocaína. Este processo aconteceu com Guerreiro e, meses depois, viria a acontecer a
Carlos.
174
Vale destacar que a recaída de Carlos, diferentemente do contexto de recaída dos
demais colegas, não aconteceu em condições adversas de vida. Estava, ao contrário, em
uma fase próspera de sua vida: vinha se destacando profissionalmente; estava morando
com a namorada, com quem se relacionava desde o período da Casa; e havia estreitado
o contato com os familiares. Tais conquistas, contudo, em sua trajetória clínica,
representavam justamente situações de risco para recair no consumo de crack.
Sobretudo o sucesso profissional. Diante da demanda e do destaque no trabalho,
deixava de prestar atenção em si mesmo, em suas demandas e necessidades. Embora
tivesse plena consciência deste funcionamento, novamente não conseguiu evitá-lo, ao
manter desassistida a sua condição de dependência química. Aqui me refiro não apenas
aos cuidados especializados, mas à frequência aos grupos de ajuda mútua, qualquer
cuidado que o ajudasse a se manter atento às armadilhas da dependência, diante da
roda viva do cotidiano.
Desde fim de Novembro de 2008, quando terminou o trabalho de campo, recebi por
email contatos de Espanhol, enviando-me textos por ele escritos, ou apenas dando
notícias sobre como estava. Apesar das dificuldades da vida cotidiana, mantinha-se bem,
em abstinência do uso de drogas. Dera sequência ao tratamento para dependência
química, passando a frequentar um ambulatório público. Voltara a trabalhar e estava
procurando também manter uma rotina de lazer. Contava com orgulho sobre filmes
que vira no cinema, shows e consertos a que assistira no período. Estava bem, mas não
era sem uma boa dose de esforço e de trabalho pessoal, como fazia questão de enfatizar
nas mensagens.
Em Maio de 2009, recebo um e-mail em que me conta que todos da Casa, à exceção de
Daniel e ele próprio, haviam recaído. Soube desta notícia cinco meses após o
fechamento da Casa. Não sei precisar em que momento as recaídas aconteceram. Mas
175
certamente haviam aumentado progressivamente: alguns haviam recaído logo em
seqüência ao fechamento da Casa, ainda em Dezembro; outros haviam conseguido se
segurar por um tempo maior. Fato era que, cinco meses depois do fechamento da
organização, praticamente todos haviam recaído, inclusive alguns que, à época do
tratamento, vinham ganhando estabilidade em suas vidas: trabalhando, namorando,
retomando um convívio harmônico com a família.
Na ocasião deste contato, Espanhol comenta sobre o desafio que vinha enfrentando
para manter seu compromisso com o novo estilo de vida escolhido, sem a mediação do
uso de drogas. Para dar conta desta empreita, enfatiza a relevância de vivenciar
sentimentos bons, como o amor:
Dias depois deste email, Espanhol me telefona para contar sobre o suicídio de um dos
colegas da Casa, Lídio, que havia participado do início da pesquisa. Em meados de
Agosto de 2008, após uma recaída no uso de cocaína, seguida de um importante
quadro de depressão, Lídio havia interrompido seu tratamento na Casa e retornado ao
seu Estado de origem. Mais uma vez, nesta rápida conversa por telefone, Espanhol
reitera o seu esforço em se manter no caminho que escolhera, deixando claro o quanto
os desafios que vinha enfrentando fora da Casa ultrapassavam em muito o manter-se em
abstinência. Tratava-se de dar conta de enfrentar os fatos e sentimentos inerentes à vida.
Não à vida de um ‘dependente químico em recuperação’, mas à vida de qualquer
pessoa que se proponha a habitá-la integralmente. Neste contato, Espanhol escancara a
dureza de seu bastidor existencial e, novamente, reitera a importância do amor como
aliado no combate à luta diária:
176
7. DISCUSSÃO
7. DISCUSSÃO (do campo vivenciado ao campo refletido)
Neste contexto, o trabalho apareceu como uma atividade desejada, mas não urgente de
ser retomada, permanecendo a prioridade na realização do tratamento, na manutenção
da abstinência conquistada e no aprendizado/consolidação de novas maneiras de viver:
valorizando o uso da palavra, em detrimento à força física; a verdade, em oposição às
mentiras outrora prevalentes. A preocupação em conseguir viver de outra maneira,
dentro e fora do ambiente da Casa, apareceu entre o grupo pesquisado como uma
questão central; foco de atenção e esforços, vinculando a viabilização do processo de
reabilitação psicossocial quase que exclusivamente ao âmbito do desejo e esforço
pessoal.
178
favorecer o processo de recuperação do grupo pesquisado, ao lhes possibilitar a vivência
de novos papéis sociais, acompanhada de novos aprendizados e responsabilidades. Em
tal ambiente de moradia e tratamento, o estigma que frequentemente acompanha a
dependência química encontrou campo fértil para se transformar em outras forças, mais
favoráveis à transformação de antigos modos de funcionar e reagir, entre aquelas
pessoas que ali buscavam libertar-se do aprisionamento produzido pela dependência
química. Forças propiciadoras de rupturas e aberturas; da inauguração de novos, e por
vezes desconhecidos, desafios nas trajetórias pessoais observadas. Desafios de criação, e
não de repetição.
179
é a compreensão hegemônica de que tudo decorre da, ou relaciona-se à, condição de
dependente químico, perpetuando um círculo vicioso de justificativas e
desresponsabilizações, além de atribuir às drogas, à dependência química ou a um
“desvio de caráter inato” dificuldades que são da ordem do humano.
Neste sentido, o que também se destacou entre o grupo pesquisado foi a reprodução,
por vezes acrítica, de questões que, em alguma medida, são gerais, quer porque digam
respeito à condição humana, quer porque se relacionem ao momento histórico-social
em que vivemos. Mas esta dimensão política dos fatos vivenciados apareceu em muito
alijada das compreensões acerca dos fenômenos por eles experienciados, favorecendo
um tipo de entendimento preconceituoso e condenatório, que pouco auxilia a realizar
as necessárias transformações, em direção à conquista da autonomia desejada,
mantendo-os, antes, nas paralisações conhecidas. Este processo faz lembrar o próprio
estigma que constituiu e ainda constitui a compreensão sobre a dependência química:
como um desvio de caráter, como uma condição inata, como uma imoralidade ou
fraqueza pessoal. Concepções que perpetuam o estigma associado à dependência,
fazendo recair exclusivamente sobre o indivíduo, um fenômeno cuja origem e
desenvolvimento são por demais complexos.
180
expressas, tanto no que se refere à origem desta condição, quanto em relação a seus
desdobramentos e possibilidades de estabilização. Este fato pareceu evidenciar-se
também pelo funcionamento da organização pesquisada, marcado por uma atuação
solitária e um tanto isolada no tempo/espaço, bastante distante da atuação intersetorial
e em rede proposta pelas diretrizes governamentais. Se tal isolamento, por um lado,
servia aos propósitos de manter protegidos os pacientes-moradores, por outro, parece
ter comprometido a própria existência da organização, que não conseguia manter
recursos próprios para subsistir e tampouco mantinha aberto e vivo um diálogo com
outras organizações, fossem privadas, públicas ou do terceiro setor.
O que se destacou ao longo dos seis meses de presença em campo foi o pequeno grupo
de residentes acabando por criar um ambiente favorável ao desenvolvimento de
cumplicidade, amizade e intimidade, tão necessárias para lhes fortalecer pessoalmente,
ao oferecer-lhes condições de segurança e estabilidade mínimas. O fato de o ambiente
constituir-se seguro e protegido, não apenas em relação ao consumo de substâncias
psicoativas, mas em relação aos contatos familiares – em geral bastante turbulentos e
adoecidos, no universo da dependência química – e a outros estímulos estressores
também parece ter contribuído para o processo de recuperação observado. A estada na
181
residência terapêutica revelou-se, para o grupo pesquisado, uma chance de resgatar a
tranqüilidade e a estabilidade fundamentais ao processo de recuperação, principalmente
por lhes oferecer novas possibilidades para enfrentar antigos problemas, incrementando-
lhes o repertório de respostas possíveis – menos viciadas do ponto de vista da repetição
patológica e, portanto, mais flexíveis e saudáveis, conforme a concepção de saúde
proposta por Canguilhem.
Este parece constituir um desafio central aos programas de tratamento para o abuso de
substâncias, pois não é sem esforço e sem um proceder ativo nesta direção, que se
viabilizará, à pessoa em tratamento, sua inscrição na comunidade e na cultura. Tal
registro não está dado a priori, tampouco ocorre de maneira natural, sobretudo em
condições tão intensificadas e generalizadas de adoecimento, como aquelas
frequentemente observadas no campo da dependência química – abrangendo, por
vezes, relações familiares, atividades de trabalho, possibilidades de lazer e diversão,
relações de amizade, condições físicas e psíquicas. Adoecimento, enfim, das
possibilidades de fruição da vida, no que ela tem de criativo e salutar. Portanto,
qualquer programa de tratamento que efetivamente se proponha a ser reabilitatório
deverá confrontar o desafio de favorecer a inscrição da pessoa em tratamento na
comunidade de que ela faz ou deveria fazer parte, com todas as dificuldades e desafios
que este propósito impõe, possibilitando passos efetivos em direção ao enraizamento de
que nos falava Simone Weil. Condição promotora da possibilidade de participarmos, de
maneira ativa, da coletividade de que naturalmente fazemos parte.
182
maior quando consideramos o contexto histórico que nos cerca na atualidade, marcado
pela ênfase na efemeridade, no imediatismo, nos resultados objetivos, tangíveis e
replicáveis; princípios simplesmente alheios ao processo de recuperação no campo da
dependência química. Ou melhor, em qualquer campo de relações que se proponha
efetivamente vivo e humano, pois, a nós, não parece possível haver humanidade sem o
necessário tempo que demanda o estabelecimento de relações de confiança e
cumplicidade; de conquista de respeito mútuo; de tolerância às diferenças; de
aprendizado compartilhado; da possibilidade de cometer erros e repará-los. E não nos
referimos aqui ao tempo cronológico, mas ao tempo vivenciado, fruído. O que
pudemos observar no campo pesquisado, foi um campo de relações propício ao
estabelecimento de tal qualidade de interação humana, o que, a nosso ver, constituiu
uma das principais riquezas da Casa, considerando-se o potencial terapêutico observado
enquanto a organização esteve em funcionamento.
183
8. CONSIDERAÇÕES FINAIS
8. CONSIDERAÇÕES FINAIS
185
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193
ABSTRACT
INTRODUCTION: The chronic course of the addiction turns necessary a long term
therapeutic support concerning the acquisition of the abstinence and the individual
invigoration in some life areas that have been harmed by the installation of the addiction –
work, home, leisure, social networks, family relationships, judiciary system. This process has
been defined as psychosocial rehabilitation. PURPOSE: Understanding, from the perspective
of substance users in treatment, the aspects involved in the process of psychosocial
rehabilitation and how this process goes on, in order to favor the target recovery.
METHODS: Our investigation constitutes a case study research and was driven in a private
therapeutic residence for substance users, located in the city of São Paulo. The qualitative
approach has combined different methodological resources: focal groups, in depth individual
interviews and participant observation, originating field diaries. The discussion of issues
related to the work world was emphasized as a starting point to discharge this investigation.
We carried out the investigation from June to December 2008. The material was submitted
to the content analysis, in order to identify the main emerging themes. This research was
approved by the ethics commitee of the Federal University of São Paulo. RESULTS: The main
emerging themes that stood out were: the presence of tight identity settings, setlled in the
disease; conceptions on the relationship of work and health also marked by the sickness and
disentailed of a critic on the current historical context; the group as a device emerged as an
important therapeutic resource in the addiction treatment; the addiction field emerged as an
important source of work for those who are recovering from substance abuse; the relevance
that treatment contributes to insertion the person in the culture, helping those who are
recovering from addiction to develop new social roles and making possible the construction
of work and life projects. DISCUSSION: In a culture that emphasizes as important values
success, youth, money, physical beauty, happiness, the absence of such registers at a given
moment of the life can potentiate the feeling of inadequacy and the uneasiness experienced
by one, threatening the substance user weak feeling of social belonging. In this context, a
long term therapeutic support has emerged as a fundamental condition to promote trust and
complicity relationships, not just inaugurating new marks in the individual paths, but also
favoring its consolidation. Considering the recuperation purpose, the grupal approach stands
out as a privileged resource to favor the necessary registration in the culture, narrowly linked
to the real possibilities of social reintegration. Concluding our study, we emphasize some
central aspects to be guided by treatment programs in the addiction field.