A Construção Da Personagem João Redondo

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Revista de Estudos sobre Teatro de Formas Animadas

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A construção da personagem no
João Redondo de Chico Daniel
Ricardo Elias Ieker Canella
Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN)

Revista de Estudos sobre Teatro de Formas Animadas


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Páginas 122 e 123: Chico Daniel com João Redondo e Baltazar em São Paulo. Foto de
Ricardo Elias Ieker Canella.
Página 124: Chico Daniel em Porto Alegro. Foto de Cacá Sena.
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Para além de toda teorização é imprescindível compreender que o


João Redondo de Chico Daniel se impõe como um ato poético e singelo,
na sua forma simples de ser e de se fazer teatro. (Canella, 2004)

O João Redondo é um tipo especial de teatro de bonecos


enraizado de modo profundo na tradição popular do Rio Grande

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do Norte que vem se mantendo vivo e ativo, em plena dinamicidade,
nutrindo-se do imprevisto e da novidade e Chico Daniel é um dos
grandes representantes, no Estado, dessa arte popular.
Chico Daniel nasceu em Açu no dia 05 de setembro de 1941,
seu nome de batismo é Francisco Ângelo da Costa, sendo seu pai,
Daniel Ângelo da Costa e sua mãe, Luísa Águeda Soares Costa. Ele
conta ter tido uma infância boa e que gostava muito de jogar bola,
mas “não vivia brincando assim mais outros meninos não, vivia
trabalhando”.66 Sobre a escola, nunca a freqüentou, pois desde
pequeno o seu negócio era viver tocando pandeiro “a minha vida
começou assim, uma vida sem estudo. A minha mãe nunca chegou a
mandar a gente pra escola, era só pra caçar ou dormir, pra noite

As falas de Chico Daniel que não estiverem referenciadas foram registradas durante o ano
66

de 2003 e 2004 e estão inseridas em Canella (2004).


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poder bater pandeiro e não sentir sono. Mas não tô arrependido


não. Eu aprendi a arte de meu pai.” (DANIEL apud ALMEIDA,
2002:23)
E ao tocar pandeiro nas apresentações de seu pai, Chico foi
aprendendo a arte do teatro de bonecos, “pegava o pinhão esculpia
os bonecos e brincava”. Ele diz que de geração em geração vai
“passando” esse fazer: “eu aprendi com meu pai e meu filho já está
aprendendo”. Já faz 49 anos, desde os 14 anos, que começou a “botar
os bonecos”.

Meu pai armava um pano num canto de parede e brincava. Eu


lembro quando eu comecei no interior, a trabalhar por minha
conta mesmo, eu já estava com 17 anos, trabalhando com o pessoal
assistindo. O pessoal achava eu tão novo que achava que não
prestava o meu trabalho. Mas depois que eles viam eles gostavam.

Nesse início, no afã de aprender, Chico chegava a sonhar com a


brincadeira:

Às vezes, quando eu comecei a trabalhar com esses bonecos, acho


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que era devido àquela vontade demais que eu tinha em aprender,


quando eu ia me deitar eu me lembrava e sonhava com os bonecos
que estava trabalhando num canto, aí tinha muita gente no sonho.
Eu chegava até, e me levantava, e falava com minha mamãe: ‘mãe
eu sonhei brincando num salão, mas tinha tanto da gente, e o
povo gostava muito do meu trabalho’. Aí mãe dizia: ‘meu filho
você sonha isso?’; ‘é eu sonho’;.’é porque você vai dormir
lembrando?’; ‘não, é porque eu sonho mesmo, brincando assim
num salão, eu vou aprender mesmo minha mãe’; ‘tá certo!.

A tradição da brincadeira vem passando de pai para filho e um


dia ele perguntou a seu pai sobre esse aprendizado:

Pai o senhor aprendeu a brincar essa brincadeira com quem? ‘Meu


filho, olha. Quando eu aprendi, eu era muito novo não existia
vocês não. Eu aprendi com Feliciano, andando, batendo cavaquinho
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nos bonecos dele e vendo ele fazer o trabalho. E aprendi com ele.
Daí eu deixei de andar mais ele e fui fazer o meu trabalho. E hoje
vocês já aprenderam comigo e daí pra frente algum dos filhos seus
pode aprender.

Seu pai era conhecido como Daniel das Calungas67 ou Daniel


Calungueiro. Chico e seu irmão Manoel aprenderam a brincar
olhando o pai. Eles tocavam pandeiro e azabumba para o brinquedo.
Chico ficou conhecido como Chico que provém de Francisco, filho
de Daniel, ou seja, Chico de Daniel das Calungas e, depois firmou o
seu nome como Chico Daniel, “o pessoal me chamava ‘Chico de
Daniel’, ‘Chico de Daniel’, aí ficou.” Seu irmão também passou a
ser chamado de Mané de Daniel. A continuidade desse nome pode
ser visto na denominação adotada pelo filho de Chico que, passou a
se chamar Josivam de Chico Daniel. Na época eles se apresentavam
em vários lugarejos próximos a Açu. E para se deslocarem usavam:

(…) jumento e botava as malas naquele jumento e saia. Do mesmo


jeito que o pai fazia comigo eu fazia com os meninos também,

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botava eles assim no meio da carga. Era dois jumentos, um pra
carregar as coisas de fazer comida e os outros era para carregar os
bonecos, rede e tudo. A viagem demorava. Agente indo de um
lugar por outro, assim uma légua, duas léguas, meia légua era
bonzinho da gente tirar. Mas quando aí era prolongado demais, a
gente saía de madrugada de modo chegar mais cedo. Hoje tá
diferente, naquele tempo do meu pai até carro era difícil. Agora
não, pra todo canto que você vai tem carro. Até de avião eu já dei
uns poucos de vôo.

Chico fala que gosta de fazer a brincadeira e que tem prazer


com ela: “meu negócio é arrumar os paninhos e fazer o João Redondo”
e desde criança ganhava alguns tostões brincando para os meninos.

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Boneca de pano, madeira, osso ou metal. Desenho que represente a forma humana ou
animal. No Maracatu Pernambucano são as bonecas levadas no cortejo.
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Depois de brincar por anos a fio pelo interior do nordeste


chegou a Capital do Rio Grande do Norte. Pelo que conta, houve
um momento especial no qual ele se sentiu aceito pelos demais
brincantes, passando a gozar, inclusive, de certa notoriedade. Isto
aconteceu quando ele se apresentou no Festival que houve na
Fundação José Augusto no ano de 1979:

(…) eu cá pensando comigo, andando pelo meio do mundo e me


lembrando tem que ser um cabra bom mesmo, porque os daqui o
que tinha melhor era um tal de Zé Relampo, Miguel e Antônio,
eram os três que falavam... aí um cabra baixinho que tinha lá,
Hércules, falando: “rapaz você brinca bem mesmo?”, “olha eu não
sei não, eu não sei dizer se brinco bem não porque se eu vou dizer
que brinco bem vocês podem assistir e não gostar, só sei que quando
eu brinco o povo gosta”, aí ele disse: “rapaz, aqui tem, [mudando
a voz como se falasse em segredo] olha tem, Zé Relampo, Tonho
Relampo, Miguel Relampo, são os cobra daqui. Não entra mais
ninguém, porque só tem eles mesmos. Aí Dr. Deífilo chegou:
“você vai se apresentar hoje, você não vai ficar não, mas você vai se
apresentar, eu vou lhe dar duzentos reais, você quer?”, eu disse:
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“quero”. Eu fui me apresentar meu amigo, ele colocou o gravador


lá, quando eu comecei me apresentar, aí o pessoal todo aplaudindo.
Tinha gente de Brasília e de mais não sei da onde, bonequeiro e
tudo, vige Maria, aí o caboclo disse: “esse trabalha mesmo”. Eu
pensei que eles estavam mangando de mim, brincando, o povo
tudo rindo, mas rapaz, eu fiquei assim meio desconfiado. Mas
quando eu terminei o Deífilo que era o diretor geral, pegou o
microfone e disse (mudando de tom): “bem agora por hoje vou
dar por encerrado a apresentação do mamulengo e tal e tal. E todo
mundo pau [bate palmas]. Quando eu saí de dentro dos panos
eram aqueles caras de Brasília, me abraçando assim. Zé Relampo,
Antonio e Miguel estavam todos os três lá no canto olhando. Dr.
Deífilo disse: “que tal, Antonio mais, que tal vocês daí, que tal
Chico Daniel, você nunca viram ele, que tal ele?”. Aí, Antonio
Relampo disse [voz de quem está desprezando]: “é, ele é bonzinho
viu”. Aí o cara gritou assim, o Hércules (com voz de espanto):
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bonzinho o que! Ele é bom rapaz, ora bonzinho! Ele é bom. [Agora
muda para um tom mais firme] Pode dizer que é um dos bons
mesmo, esse cara pode dizer que brinca boneco mesmo. Eu fiquei
com vergonha, sabe, dizendo isso na frente de uma ruma de gente.

Desde cedo Chico Daniel se destacou por seu trabalho. A


brincadeira que ele desenvolve segue os mesmos passos de seu pai,
ou seja, ele brinca só, dentro do biombo, contando com a assistência
de uma pessoa, geralmente um de seus filhos para lhe auxiliar a
“calçar” os bonecos e às vezes botá-los em cena quando há mais de
dois personagens. Hoje em dia não existe a figura do tocador de
triângulo, sanfoneiro, pandeirista, rabequeiro e zabumbeiro, sendo
a música executada por um aparelho que Toca CD: “hoje em dia
está muito difícil encontrar músicos. O som do CD é mais fácil, e o
cachê fica todo pra dentro de casa”.
Os bonecos que ele utiliza na sua grande maioria são de luva.
Geralmente a cabeça é esculpida no mulungu e na imburana,
madeiras macias e leves. Ele não esculpi e confecciona os bonecos e
atualmente quem realiza esse trabalho para os novos personagens

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são seus filhos.
O seu trabalho tem uma certa originalidade, diferindo-se de
outros João Redondo não apenas pelos personagens apresentados,
mas também, pelas estórias que seguem uma linha de inspiração
urbana, utilizando do anedotário popular, piadas de circo, a malícia,
a sátira, a paródia. Uma dramaturgia construída dentro de uma
tradição oral.
Durante todos esses anos ele desenvolveu uma boa técnica,
principalmente a sutileza ao manusear seus bonecos e na voz utilizada
para cada um deles. As nuances das vozes com as composições das
máscaras dos bonecos e suas características impressionam o
espectador, que acredita ter mais de uma pessoa manipulando os
bonecos. Desse modo observa-se um alto grau do desenvolvimento
da técnica de manipulação e da interpretação em sua arte. As
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especificidades da arte teatral encontram-se presentes e ligadas a um


conhecimento que vem passando de forma empírica, através da
oralidade e de uma vivência prática.
Essa aprendizagem cria técnicas exclusivas, que o brincante vem
aprimorando com o passar do tempo.
Nota-se que ele é uma pessoa dedicada ao que faz. Sempre que
pode está arrumando a estrutura do biombo, mandando fazer novas
roupas para os personagens, procurando cumprir com sua agenda
de apresentações, seja ela aonde for. Para ele, um bom brincante:

(…) é um cabra que trabalha bem, que faz graça para o povo, que
faz o povo rir, porque tem um canto que o povo não acha graça
nem nada, que negócio lascado. Ele olha assim: eu vou já embora.
Se é uma brincadeira que o pessoal gosta... rapaz vamos assistir
mais, vamos embora agora não... e demora mais um pouco, aí
fica, até o final. Um bom brincante tem que ser uma coisa muito
boa né. Porque o pessoal dá valor e todo mundo gosta. Tem muita
gente que fica assim que diz que não vai, mas quando vai gosta
mesmo. Por isso que eu digo, todo trabalho é preciso a pessoa se
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interessar. O cara não se interessou não vai pra frente de jeito


nenhum. Eu acho que é assim mesmo.

E ele tem essa habilidade de fazer rir, prender e encantar, com


seus pequenos bonecos, grandes platéias, até mesmo em espaços
abertos, sobretudo, quando há uma boa infra-estrutura para sua
apresentação.
Atualmente, há uma generalização em todos os Estados do
Nordeste em chamar o teatro popular de bonecos de Mamulengo,
todavia podemos encontrar à denominação João Redondo no Ceará,
Paraíba e Rio Grande do Norte. Existem versões, que perpetuam no
imaginário dos brincantes, acerca desse nome, e várias delas falam
de escravos e senhores de fazenda e que os “escravos”, em um dado
momento, reproduzem seus “donos” em forma de bonecos.
Eu escutei meu pai falar que tinha um homem, que morava
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naquelas fazendas, e tinha esse nome, o nome dele era João
Redondo, aí quando ele morreu a turma lá inventaram o negócio
de João Redondo, uma pessoa chamou, saíram brincando pelo
meio do mundo aí inventaram o João Redondo, Baltazar, Inês
que era Mãe de Baltazar e o outro era Benedito, e daí fizeram os
outros bonecos: era Dr. João..., Dr. Pindurassaia e lá vai... fizeram
um bocado de bonecos e saíram brincando e daí o pessoal foram
vendo e outros fazendo também.

Enquanto que estudos apontam para uma influência


europeizante da origem dessa arte popular, diversas teorias e histórias
do imaginário regional parecem querer dar conta do início fundante
da brincadeira, como nos fala Chico:

(…) eu conhecia por João Redondo, no tempo de meu pai, era


um negócio que ... era um negócio que ele já aprendeu com outras
pessoas, mas sendo daqui de nosso território, do Rio Grande do
Norte. Da Europa não. Pode ter vindo da Europa, mas eu não
conheço né... Porque João Redondo é filho legítimo daqui do

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Rio Grande do Norte, Paraíba e Ceará. É tudo João Redondo.

E, João Redondo, além de designar esse tipo de teatro, também


é um dos personagens principais de sua brincadeira.
Mas afinal, como surgem os personagens do João Redondo de
Chico Daniel?Aqui apresento três hipóteses. Primeiramente, a versão
de que as construções dessas personagens são históricas, ou seja,
construídas no espaço e no tempo de várias tradições espetaculares e
que essas personagens estão ligadas a um teatro de bonecos que
chegou ao Brasil via colonização européia, através de representações
animadas do Presépio, assumindo, posteriormente, um legado
profano e popular. A segunda, pelo que se pode constatar, aponta
estarem ligadas a um forte imaginário que perdura e faz com que,
em vários universos culturais, haja essas formas de manifestação ligadas
a uma espécie de personas transgressoras. E, por fim, a terceira, é
serem elas representações sociais criadas e instituídas pelos brincantes.
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No que diz respeito à primeira e mais conhecida é a de que essas
personagens são sustentadas por uma riqueza de personas herdadas
das tradições medievais, sejam elas européias, africanas ou asiáticas,
que se somaram aos traços e rituais nativos aqui encontrados. Como
máscara essas personagens apresentadas nessa espécie de teatro
representam um tipo, ou seja, são personagens típicas e,
historicamente, provêm de uma geração de personagens que
remontam a séculos atrás.
Borba Filho (1987) identifica a origem das personagens tipo do
teatro de bonecos nordestino em vários países. Partindo da Índia ele
indica o personagem Vidouchaka; no Ceilão Raguin; na Pérsia Pendj
e na Turquia Karagós. Amaral (1993), dando seqüência a essa
linhagem, descreve Maccus e Buccus, personagens de Roma que se
transformaram em Pulcinella, ainda na Itália; já na Inglaterra,
Punchinella passa, posteriormente, a ser chamado Punch. Na França
Polichinelle e depois Guignol. . Na Alemanha. ganha o nome de
Kasper e na Turquia Karagoz..
Para Santos (1979), Pimentel (1971), Borba Filho (1987),
Amaral (1993) e Moreira (2000), o Teatro de Bonecos Popular do
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Nordeste do Brasil, tem um número infindável de personagens, que


são descendentes diretos dessas personas, sendo, na verdade, o
desenvolvimento de algumas máscaras da Commedia dell’Arte.
Já adentrando na segunda hipótese, Balandier (1997) nos diz
que a tradição estaria repleta de personas transgressoras, como
Gargântua de Rabelais, personagem do excesso e dos desregramentos;
Samandari personagem do antigo Burundi que simboliza uma
anticultura, sendo este, provocador de um riso revanchista; Djiha
personagem da literatura oral de Magreb que é um esperto simulando
ingenuidade, um inocente que fala a torto e a direito, desmistifica a
glória dos poderosos e dos ricos; a criança terrível do ciclo africano
dos contos, personagem anti-social, na sua forma mais popular
invertendo e revertendo valores, normas, códigos etc., enfrentando
o poder e vencendo-o para melhor desprezá-lo. Suas ações são todas
marcadas pela contradição, a ponto de colocá-lo em perigo de morte
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quando as realiza; o palhaço cerimonial dos índios americanos faz


com que a sociedade, personificada pela platéia cerimonial, o “puna”
por ser o artesão dessa bagunça escandalosa, condena-o pelo riso
(amarelo), agride-o parodicamente (utilizando as crianças), faz dele
uma espécie de personagem expiatório, mas sempre lhe outorga um
poder mágico que o torna temido.
Maffesoli (2001) também nos fala dos goliards que na Idade
Média, eram chamados de intelectuais não-conformistas, ou seja,
mendigos, lúbricos, errantes. Eles lembravam a força e o aspecto
fecundante da anomia. Indicava também que, integrava, através de
seus ritos específicos, bebedeiras, badernas, devassidão etc., um
desregramento social, que, longe de ser nocivo para o conjunto do
corpo social, permite-lhes encontrar uma espécie de equilíbrio global.
Pode-se citar aqui, também, mais alguns personagens como: João
Grilo de Ariano Suassuna; Sancho Pança de Cervantes; Ferreirinha
de Racine Santos; os Pícaros da literatura espanhola; o Pedro
Malasartes da cultura ibérica; Simão, que se encontra presente em
vários mamulengos da região Nordeste; Macunaíma de Mário de
Andrade; alguns personagens de Goldoni, de Moliére; de

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Shakespeare, de Arthur Azevedo, de Martins Pena entre outros.
Para Barroso:

Nos folguedos, os mateus, caretas, papangus, palhaços e outros


tipos cômicos, fazendo a paródia alegre da vida e do próprio
folguedo, representam a “subversão” de valores e hierarquias
necessárias à saúde psíquica do povo. Toda seriedade pretensiosa,
toda certeza, tudo o que é acabado e definitivo, por eles é
relativizado, rebaixado e recuperado para a vida. Nada escapa ao
seu riso, seja a política, a medicina, os costumes, as hierarquias
sociais e até a religião. (2000: 94)

É assim que, a inversão que essas personagens provocam,


inscrevem-se, tornando-se e permanecendo o principal operador,
rompendo as censuras e as conveniências, revertendo as hierarquias
em favor da máscara, dando lugar à contestação, dissolvendo-se na
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brincadeira coletiva e na zombaria.


Para Balandier, “em todos os universos culturais, o imaginário
coletivo deu uma forma e vida a personagens capazes de se
transformar tanto em deuses ou heróis quanto em bufões, e de agir
ao contrário das normas e dos códigos”. (1997: 142)
Barroso entende que os personagens da cena popular tradicional
retêm arquétipos e são gerados por processo de criação coletivo e
milenar, tendo fragmentos de mitos e matrizes culturais que lhes dão
qualidades universalizantes e representatividade cultural. “Essas
personagens são universais pelo conteúdo e regionais pela forma.
Daí se explica, em parte, a forte empatia que exercem sobre seu
público. São personagens tirados do inconsciente coletivo, fortemente
incrustados no imaginário popular”. (2000: 98)
E Baltazar, personagem tipo mais conhecido do brinquedo de
Chico Daniel não difere muito dessas personas acima citadas. Pode-
se dizer, preliminarmente, que ele tem enraizado em si uma
procedência histórica, de máscaras que chegaram aqui, no Brasil,
através de um teatro religioso, ganhando, posteriormente
características mundanas, ou especificamente ligadas as personagens
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da Commedia dell’Arte. Por outro lado, vê-se que ele também


descende genealogicamente daquelas personas desregradas, criadas
dentro de um acervo de imaginários que perduram em várias
tradições culturais. Suas narrativas e ações contêm um tanto desse
imaginário popular tecido através dos tempos.
É assim que ele se constitui como um matuto, esperto, faceiro,
brincalhão, ingênuo (ou se faz de ingênuo?), ágil, bufão, debochado,
luta contra a ordem estabelecida, é desmistificador da glória dos
poderosos e dos ricos, um desprezador do poder e que gosta de
reverter às hierarquias. Essas são algumas características que lhe
podem ser atribuídas.Baltazar é um boneco de luva, feito da madeira
mulungu, de cabeça pequena com 9 cm de altura por 4 cm de largura
e pesa cerca de 325 gramas. Ele é franzino, aparentando ser baixinho,
com aparência de menino e/ou rapaz. Segundo Chico ele tem em
torno de 25 anos. É negro (pintura preta), cabelo “pichaim” (feito
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de um tecido que dá essa impressão), bem batido. Seus olhos, com os


fundos brancos com os pontinhos preto, têm uma leve expressão de
espanto. O nariz e as orelhas são pequenos, e as sobrancelhas são
exibidas na cor branca (para contrastar ao preto). Sua boca (pintada
de branco) parece estar entreaberta, e seus dentes (pintados) são
serrilhados (tipo caco de vidro) e distanciados um do outro ou porque
estão faltando ou porque são estragados, aparecendo só os de baixo.
Sua vestimenta é cinza, com gola verde água e “gravata” na mesma
cor. Na parte dos braços o tecido é xadrez.
As suas ações sempre pretendem levar ao riso, à graça, seja
dizendo: “vesti a calça com a braguia pra trás”; seja cantando músicas
de sentido dúbio etc. o que é uma das características de sua fala, ou
seja, quase sempre pejorativa: “olho pro céu e vejo uma nuvem preta
de urubu/ Olho pra terra e vejo uma multidão com o dedo no...”.
O sentido dúbio parece ser seu carro chefe bem como os erros de
português: “braguia” para braguilha e “estração” para estação.
Também é uma das suas características desentender o que é dito;
parecendo levar tudo ao pé da letra:

Baltazar: — ... puxa o fumo de quem?

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João Redondo: — Puxa a e(r)va.
Baltazar: — A mulher de Adão?
Ou então:
João Redondo: — É o maconheiro.
Baltazar: — Quem é um mal com ele?

Conforme Barroso, esse tipo de personagem:

Aparenta ser um personagem pobre, pouco desenvolvido, se


comparado ao da moderna dramaturgia. Mas, em cena, ganha uma
clareza, uma concretude, uma vivacidade, uma capacidade de
impactar imediata, poucas vezes obtidas por personagens de maior
detalhamento psicológico. (2000:98)

Apesar de evidências quanto a uma construção histórica e do


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imaginário, e sem querer negá-las, percebe-se, que existe um aspecto


complementar ao processo pelo qual essas personagens, que hoje são
vistas em cena na brincadeira de Chico, estão subordinadas. A sua
construção pode ser olhada, também, quanto a uma soma de aspectos
particulares da vida do brincante que são instituídos em suas
personagens.
Nota-se, traços que se caracterizam por um modo de ver e sentir
próprio do brincante, caracteristicamente incensados nas narrativas
dos bonecos. Segundo Chico Daniel, perguntado sobre a construção
dessas narrativas:

Elas são do meu pai, mas algumas são de outras pessoas. Quando
a gente chegava naquelas fazendas, juntava gente pra debulhar
aquele milho, ficavam contando histórias de antigamente. Eu ficava
imaginando que uma daquelas histórias dava pra colocar nos meus
bonecos e guardava na lembrança. Então eu juntava uma coisa
com outra. Depois eu andava pelos circos e tinha aquelas palhaçadas
que dava pra meus bonecos. (DANIEL apud ALMEIDA, 2002:23)

Para Gomes:
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Todas as figuras componentes emanam do meio ambiente, donde


foram retiradas, para emprestar humanização ao elenco do
tradicional brinquedo de bonecos. Mesmo as saídas do meio
animal, quando relembradas pelo dom de falar, completando o
reino humano, estão vivas dentro da crendice do fabulário
nordestino.(2002:70)

Também para Alcure esse tipo de personagem:

(…) está alicerçado em acervo temático e técnico de longa duração,


transmitido de maneira peculiar de mestre para mestre e de platéia
para platéia, tendo em vista a familiaridade do público local com
os códigos teatrais e os personagens. Nessa concepção de
transmissão estão sendo consideradas, a todo momento, a dinâmica
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criativa da tradição, em que cada mamulengueiro emprestará suas
experiências a esse acervo. (…) Seu processo de construção possui
dois aspectos distintos: “ou é uma transposição fiel de modelos,
ou é uma invenção totalmente imaginária” (ROSENFELD,
1981:33). (2001:133)

Quanto a essa questão o que se tem de característico é que toda


a brincadeira é permeada de aspectos peculiares aos processos sócio-
cultural e econômico inerente ao contexto do brincante.
Entra-se, aqui, desse modo, na terceira conjectura, na medida
em que, a criação dessas personagens podem ser vistas como
Representações Sociais, podendo se fazer uma análise privilegiada
das imagens mentais da realidade das personagens, através dos
discursos, práticas, condutas e opiniões, ou seja, captando as
características das representações dos papéis sociais, propiciado pelo
estudo das estruturas ou das formas da vida social.
As representações, nesse sentido podem ser compreendidas
como a reprodução de uma percepção retida na lembrança ou do
conteúdo do pensamento, ou ainda, a representação dum objeto

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pelo pensamento por meio de suas características gerais – abstração,
idéias, crenças, conceitos, apreciação, opinião, noção, concepção,
julgamento, avaliação etc.
Segundo Jodelet (2001) as representações sociais estão presentes
em múltiplas ocasiões, circulando nos discursos e se fixando em
comportamentos. As mesmas são formas de conhecimento, elaborado
e compartilhado socialmente, com o objetivo de construir uma
realidade comum a todo um conjunto social, expressando-os de
maneira a forjar e dar uma definição específica ao objeto por elas
representado.
Para se inserir no mundo, o ser humano precisa ajustar-se à ele,
apreendendo-o, ordenando-o e assimilando-o e é dentro desse
contexto que se pode dizer que o homem cria representações.
No compartilhar o mundo com o outro, ao depender dessa
relação para a sua sobrevivência, ao se constituir humano, ou seja,
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um ser da e na cultura, diz-se que essas representações são sociais.


Elas são tão importantes que nos guiam na vida cotidiana.
Também para Berger e Luckman (1985), a linguagem do dia-
a-dia é objetivada, ou seja, constituída por uma seqüência de objetos
que são dados ao sujeito antes mesmo de sua entrada em cena e, é
através dela que as coisas da vida cotidiana ganham sentido. O sujeito,
ao viver dentro de uma teia de relações humanas é marcado e
instituído pela linguagem que o preenche de objetos dotados de
significação.
Essa teorização remete ao entendimento de que o
comportamento “social” dos bonecos, suas estórias, suas narrativas,
suas representações, evidenciam e interpretam os significados
inerentes às representações que se materializam na linguagem do
João Redondo, sendo os bonecos um instrumento para a
compreensão e universalização da Cultura.
Quando entra a personagem O Padre que tem a aparência de
um franciscano há duas cenas: numa, a pedido de Baltazar, o Padre
vem rezar a missa; e na outra é feito o casamento entre Baltazar e
Etelvina. Na primeira cria-se toda uma situação em torno de carregar
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um grande adereço em forma de uma igreja, onde Baltazar


transformado em Sacristão se vê as voltas com o peso da mesma,
enquanto o Padre, carrega apenas a parte mais leve desse ornamento.
Num outro momento, enfatiza-se a reza em latim e as graças tiradas
por Baltazar, banalizando a prece do Padre, o que provoca um tanto
de riso.
Na segunda parte, na realização do casamento o Padre, imbuído
de toda sua pureza e castidade, excita-se, com a noiva, desde o
primeiro momento em que a vê. Baltazar que não é bobo percebe
logo a situação.
Essas peculiaridades podem ser encontradas em várias
personagens “Padres”. A forma lenta de falar e de se mover; os
interesses; a libido a flor da pele; um certo interesse pelos seus fiéis,
no caso da cena, em especial, de moças bonitas, solteiras ou não.
O fato de rezar a missa em latim, assim como sua indumentária
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e sua plástica são caracterizadores de representações que perduram


no imaginário do brincante.
Portanto os diferentes papéis vivenciados por cada indivíduo
no contexto social e a sua localização dentro desse contexto não
dependem apenas do homem no social, mas evidenciam o social no
homem e os bonecos traduzem isto no espetáculo, pois se tem nela
uma persona que traz, para o público, palavras e situações que refletem
as relações sociais.
Assim sendo, pode-se inferir que, além de uma descendência
direta das personagens, de traços históricos, via colonização e de uma
constituição do imaginário que perdura, e faz com que, em vários
universos culturais tenha sido criada forma dessas personagens, acha-
se, também, neles, institucionalizados, vivencias do brincante
instituídos na personalidade dos bonecos.
Outro exemplo nos é dado pelo boneco chamado Dr.
Pindurassaia. Como seu próprio nome informa é um Doutor, não
ficando explícito doutor em que, só se sabe que é um “doutor
formado”, recém chegado do Rio de Janeiro e, segundo Chico, “esse
é um apelido que botaram nele”, mas não sabe dizer o porquê.

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Segundo a personagem, em cena, quando vai paquerar Etelvina:
“eu penso que um doutor formado não sobra, né”, mostra se sentir
importante, superior e seguro por ter o título de Doutor. Ele é
galanteador, sua voz é impostada, dessas que lembram um antigo
locutor de rádio, gosta de dançar, sendo o primeiro a entrar serve
como um mestre de cerimônias fazendo a abertura do brinquedo. É
ele quem dá as boas vindas ao público, brincando com pessoas da
platéia.
Um aspecto a ressaltar é o fato dele dizer que vem do Rio de
Janeiro. Isso vai ser visto em vários momentos da brincadeira, na fala
de outros personagens e nas palavras do próprio brincante. Fica
parecendo que a cidade do Rio de Janeiro se constitui a representação
de um lugar importante onde tudo acontece e onde tudo é melhor.
Há muitos anos, o Rio de Janeiro foi a Capital do Brasil. Local
povoado, primeiro de Rei, Rainha, Príncipes e Princesas; depois por
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Presidentes, Senadores e Deputados, sempre o centro das atenções e


das decisões. E, hoje, vê-se ainda, que há toda uma dominância e
perpetuação desse imaginário através da influência dos canais
midiáticos.
No mesmo fio condutor tem-se Mestre Guedes68, um professor,
que segundo o enredo, também vem do Rio de Janeiro, para ensinar
Baltazar a ler e a escrever.
O fato de o brincante lhe conferir essa sua vinda do sul, do Rio
de Janeiro, parece querer dar ao Professor uma certa credibilidade,
um ar de inteligência, um certo status. Esse discurso é um discurso
do colonizado, representação que reflete que o que vem de fora é
melhor. E, se tratando de aspectos regionais, dentro do próprio país,
mostra, ainda, uma perdurância que faz o sulista sobrepujar ao
nordestino.
Portanto as personagens vêm se criando e se refazendo durante
todo o percurso de sua vida. Elas são encenadas de forma que possam
ser transmitidas e lidas dentro de um contexto específico. Essa vontade
de ser entendida cria formas fixas em sua configuração (matéria,
característica escultural, figurinos, etc.) e de se apresentar (texto,
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ações, diálogos etc.), o que fica evidenciado, muitas vezes, como algo
durável e universal, incensado pelo senso comum.
Etelvina, por exemplo, é uma boneca feita de pano, que na região
Nordeste ganha também a denominação de bruxinha ou calunga.
Sua forma é bem simples, toda feita de tecido e enchimento de pano.
Sua voz é bem fina. Ela se mostra ingênua, servil e submissa, mas
como a cena comprova é chegada numa dança e numa “costura”. O
termo “costura”, está relacionado a um certo comportamento social.
“Ela”, bem como suas irmãs Minelvina e Vivalda e sua mãe, segundo
o texto, são moças faladas, moças da vida. Essa personagem quase
não tem ações, em contraponto ao boneco que contracena, Dr.
Pindurassaia, que é quem toma as iniciativas, e quando ela se manifesta

68
Ele é o único boneco (objeto) da brincadeira que pertencia ao pai de Chico Daniel. Chico
diz que a personagem/boneco tem em torno de 40 anos.
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é brecado pelo mesmo “fique lá”, apontando para o lugar da mulher,


ainda mais, sendo mulher falada. Nessa ação, pode-se ver o poder
masculino em querer subjugar a mulher como se ele fosse seu dono,
de modo que ela tenha que obedecer a todas as suas vontades. Essa
tensão pode ser vista socialmente entre uma certa manutenção do
poder do macho nas relações íntimas entre os gêneros.
O boneco “nasce” (forma) e ganha personalidade e seu
comportamento está diretamente ligado ao processo de criação: tudo
que lhe caracteriza como objeto de Representação Social é produto
dos costumes, das normas e das crenças que o seu criador (brincante)
lhe condiciona.
O modo dessa mesma persona (boneco) ver o mundo, dialogar
(contracenar) é determinado pelas apreciações morais e dos diferentes
comportamentos sociais adquiridos pelo manipulador. É ele quem
imprime características díspares, mas, objetivas, tornando-o verossímil
através de suas ações miméticas. Sua leitura particular do mundo
não está desvinculada das representações, do imaginário, do
ideológico, ou seja, dos conceitos adquiridos e registrados no
inconsciente, na memória, na vivência do seu criador sendo, esta,

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então uma ponte e um aporte para as suas criações.
Como se procura demonstrar, uma leitura da construção das
personagens do João Redondo de Chico Daniel não pode estar
dissociada do brincante que a produz, pois sua prática é social. O
brincante ao dar vida ao seu boneco, recria o seu mundo, recriando
de um lado o ambiente externo de viver, e de outro os valores, as
idéias, os modelos e as orientações de sua conduta, modelando-o como
ser social (como personagem). E o resultado é um agente cuja
essencialidade é mostrar as diferentes fases de sua ação numa intriga
bem encadeada.
Também é preciso ver que antes do boneco tomar forma e ganhar
vida ele já foi contaminado com Representações Sociais existentes,
pois quem o constrói e quem o anima é um indivíduo, produto de
sua sujeição e o próprio brincante vê essas construções de um modo
muito peculiar, parecendo haver um hiato, principalmente, entre as
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diversas teorias que preconizam uma dada construção histórica. Pois,


podemos ver que Chico Daniel reconhece, essa construção, como
algo daqui, criado em seu meio, em sua região, algo de caráter
regionalista, tendo nascido em uma fazenda a partir da história de
um fazendeiro João Redondo e, por outro lado, também algo que
vem de trás, do tempo de seu pai, que já aprendera com o Sr. Feliciano,
passando de pai para filho e, por ele próprio, através de observações
em fazendas ouvindo as estórias contadas e também “aquelas
palhaçadas do circo”.
As representações sociais estão presentes nessas lembranças, mas
não apenas. Elas vão muito além, enquanto depósitos de um
cotidiano, de um imaginário tanto individual quanto coletivo, secular,
muitas vezes despercebidas pelo brincante. É nesse processo que vem
se efetuando, também, a construção das personagens do João
Redondo de Chico Daniel. O universo dessas personagens do João
Redondo de Chico é rico e vêm se recriando. Além de Baltazar, O
Padre, Dr. Pindurasaia, Mestre Guedes e Etelvina, tem-se também o
João Redondo, O Boi Coração, O Malandro de Coca-Cola, Dr. João
Bondado, Cassimiro Coco, Tenente Bezerra de Melo, Pedro
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Marinheiro, João Guedes e O Cachaceiro, todas esses outros


personagens, de um modo ou outro, também reproduzem o ambiente
social de Chico Daniel bem como o modo como ele se insere nesse
ambiente.

Concluindo

O Teatro do João Redondo de Chico Daniel se constitui numa


realidade que nos é posta a cada dia. Ele está presente e faz parte de
um contexto social específico, no qual o olhar do observador deve
levar em conta as especificidades do que é produzido, de como é
produzido, do porque é produzido, para quem é produzido e de
como se dá a sua circulação.
A matéria boneco, objeto inerte que ganha vida, se anima, e se
constitui como personalidade pode ser vista, entendida e estudada
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através dos enredos apresentados, das suas histórias, conceitos,


crenças, valores, costumes, noções, julgamento e habitus que foram
institucionalizados nos próprios bonecos formando suas personas. Mas
a isto se associa o universo do brincante, o qual é verificado através
de sua expressão lúdica e poética: a própria brincadeira do seu
brinquedo. Esse corpus dá significado à sua prática, a sua vida, ao seu
pensamento, fazendo agir nos bonecos uma síntese da coletividade.
Por isso pode-se encontrar e compreender a pluralidade do social
nesse objeto singular.
Um ponto a se observar é que a própria forma do brincante se
expressar está presente em suas personagens, mostrando que a
linguagem, através da palavra, se constitui num forte mecanismo de
transmissão de representações.
O teatro de João Redondo, além de atuar no sentido de veicular,
manter e reproduzir o pensamento dominante, expressa também a
consciência de seu produtor. Pois a construção cultural popular tem
uma identidade própria, reproduzindo símbolos que consagram a
classe a qual pertencem, pois Chico Daniel brinca porque algo lhe
foi dado, transmitido e que lhe deu e que dá sentido a sua vida e se

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tornou, por sua vez uma forma de sobrevivência material e que
expressa um contexto social vivo e ativo, veiculando pontos de vista e
posições, contrapondo-se, por vezes, a ideologia dominante.
Toda essa complexidade, aumenta o interesse por essa forma de
produção, a brincadeira do João Redondo. Isto fica evidente seja
nas novas edições de livros que tratam do assunto, seja nas dissertações
acadêmicas produzidas sobre a matéria. Entretanto, o assunto está
longe de ser esgotado, permitindo que se continue a pensar e produzir
acerca dessa manifestação popular.

Referências

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