® (Riva) Cruzoé 173 20-08-2021

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Ricardo Barros terá seus sigilos revirados pela comissão de inquérito

O dono da Saúde
Agora investigado pela CPI, o líder do governo na Câmara, deputado Ricardo Barros, é o cabeça de uma rede
que negocia e facilita contratos milionários, com especial atuação no Ministério da Saúde – quase sempre, com
suspeitas graves de desvios e superfaturamento
20.08.21

FABIO LEITE

HELENA MADER

Apenas uma parede separa o escritório político de Ricardo Barros em


Maringá, no norte do Paraná, do prédio comercial onde o líder do governo
na Câmara dos Deputados concentra seus negócios mais valiosos. Nove
empresas da família de Barros, a maioria do ramo imobiliário, estão
registradas no endereço vizinho ao QG onde ele se reúne com aliados e
negocia a distribuição de emendas para seus redutos eleitorais. A tênue
barreira física entre os dois imóveis é um símbolo na trajetória do cacique
do Progressistas, marcada por uma complicada mistura de interesses
públicos e privados. Desde que entrou na política, há mais de três
décadas, o deputado, hoje em seu sexto mandato na Câmara, coleciona
acusações envolvendo o uso do cargo para benefício próprio. Os casos
saltaram de patamar depois que Barros galgou mais poder, ao comandar
o Ministério da Saúde por quase dois anos, no governo de Michel Temer.
Foi nesse período que o atual líder de Bolsonaro na Câmara ampliou sua
influência na pasta e acumulou processos por favorecimento a
fornecedores de medicamentos. Nesta semana, ele foi alçado ao rol de
investigados da CPI da Covid no Senado, por suspeita de envolvimento na
negociação de vacinas e viu os senadores aprovarem a quebra de seus
sigilos bancário, fiscal, telefônico e telemático.

As digitais de Ricardo Barros em contratos suspeitos na área da saúde se


multiplicaram na gestão dele à frente do ministério, entre 2016 e 2018.

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Um deles, como mostrou Crusoé em julho, colocou o ex-ministro entre os
alvos de uma ação de improbidade administrativa por causa do
pagamento antecipado de quase 20 milhões de reais para aquisição de
remédios para doenças raras que nunca foram entregues. A empresa
beneficiada pertence a Francisco Maximiano, o sócio da Precisa
Medicamentos, investigado juntamente com o líder do governo na CPI por
ser o intermediário da vacina indiana Covaxin, que custaria 1,6 bilhão de
reais ao ministério. O acerto contou com o poderoso lobby de Barros e só
foi suspenso após as denúncias de irregularidades feitas à comissão pelo
deputado Luis Miranda e por seu irmão, o servidor Luis Ricardo Miranda.
Em depoimento à CPI nesta quinta-feira, 19, Max, como é conhecido,
admitiu conhecer Barros e confirmou que a emenda apresentada pelo
líder do governo no início do ano para permitir a importação da Covaxin
apenas com a aprovação da agência sanitária indiana, sem a necessidade
do aval da Anvisa, era de interesse da Precisa. O empresário, contudo,
negou ter tratado do assunto com o parlamentar e preferiu permanecer
em silêncio ao ser indagado sobre o nível do relacionamento que mantém
com o líder do governo.
Ao mesmo tempo que tenta se desvencilhar das acusações envolvendo a
compra da vacina indiana, Ricardo Barros é alvo de outra investigação
conduzida pela Polícia Federal, que revela um modus operandi muito
semelhante dentro do Ministério da Saúde, para direcionar um contrato
milionário e com forte suspeita de superfaturamento a um instituto do
Paraná no qual ele e a mulher, a ex-governadora Cida Borghetti, tinham
influência política — e, assim, beneficiar também empresários que já
foram presos por corrupção no Rio de Janeiro. Crusoé teve acesso com
exclusividade a relatórios da Controladoria-Geral da União que foram
enviados à PF nos quais os auditores apontam “irregularidades graves” e
“risco de superfaturamento” de até 133,2 milhões de reais em uma PDP,
sigla para Parceria para o Desenvolvimento Produtivo, assinada pela
gestão de Barros em 2017 com o Instituto de Tecnologia do Paraná, o
Tecpar, vinculado ao governo paranaense, e com um laboratório
brasileiro chamado Axis Biotec.

Divulgação/TECPAR

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O Tecpar, no
Paraná: remédio que deveria sair mais em conta ficou 44% mais caro para
o Ministério da Saúde após ação de Barros como ministro
As PDPs são um instrumento criado há mais de dez anos pelo Ministério
da Saúde, para estimular a transferência de tecnologia de empresas
privadas para laboratórios públicos produzirem medicamentos para o
SUS. Pelo acordo, a farmacêutica tem até um ano para passar o registro
sanitário do remédio à instituição estatal e cinco anos para capacitá-la a
produzir o seu produto. Como contrapartida, a empresa ganha
exclusividade de fornecimento do medicamento ao SUS durante todo
esse período, com compromisso de compra pelo ministério por
intermédio do laboratório público parceiro. Até 2019, a pasta já havia
despendido 16,8 bilhões de reais com compra de remédios apenas por
meio das PDPs, que eram mais de 90 na ocasião.
As suspeitas sobre a PDP do Tecpar começaram logo após Ricardo Barros
assumir o ministério, em maio de 2016, ainda no início do governo Temer.
Já havia uma série de propostas de parcerias em tramitação no ministério,
com a especificação da instituição pública, da empresa privada e do
medicamento que seria produzido, mas Barros decidiu fazer uma
redistribuição. Para a missão, ele convocou um funcionário que estava

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lotado no Tecpar — à época, a mulher de Barros, Cida Borghetti, era vice-
governadora e o casal tinha influência política no instituto
paranaense. Documentos mostram que o então ministro se empenhou
pessoalmente para favorecer o Tecpar. Em ofício enviado ao ministério
em outubro de 2016, uma dirigente de outra fundação interessada na
parceria afirma ter recebido um telefonema de Barros dias antes, no qual
ele afirmava que a instituição dela estava fora dos planos do ministério e
que o então secretário da área, Marco Fireman, homem de confiança do
Progressistas, havia dito que o acordo seria fechado com o Tecpar, como
acabou ocorrendo. Ao todo, a gestão de Ricardo Barros fechou seis PDPs
com o instituto do Paraná, mas um deles chamou mais a atenção dos
órgãos de controle, por causa da gravidade das irregularidades
encontradas.

O trastuzumabe é um medicamento eficiente usado para tratar câncer de


mama. O detentor da patente é o laboratório suíço Roche, que foi
procurado pela empresa brasileira Axis Biotec, sediada no Rio, para fazer
uma PDP junto com o Tecpar e produzir o remédio para vender ao
ministério. A Axis é dirigida pelo empresário Luis Eduardo da Cruz, dono
de um conglomerado de empresas do setor. Até 2017, ele esteve à frente
do Instituto de Atenção Básica e Avançada de Saúde, o Iabas, uma
controversa organização social que administra hospitais públicos e foi
pivô do escândalo de corrupção que levou à cassação do mandato do ex-
governador do Rio, Wilson Witzel, já durante a pandemia. Cruz e a mulher
chegaram a ser presos duas vezes, a última delas no ano passado, por
suspeita de desvio de dinheiro nos hospitais de campanha — atualmente,
o casal investe na produção de vinho no interior paulista. Na mesma
operação, a polícia também prendeu o lobista Roberto Bertholdo, que era
advogado do Iabas. Bertholdo é amigo de Ricardo Barros e apontado
como um dos operadores do Progressistas, atuante na área da saúde.
Quando Barros era ministro, por meio dele empresários conseguiam
acesso facilitado ao gabinete — em alguns casos, o próprio Bertholdo,
embora não tivesse qualquer ligação formal com o ministério, participava
das audiências. O lobista foi acusado pelo ex-secretário de Saúde do Rio
Edmar Santos de estruturar um esquema com offshore em Delaware,

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conhecido paraíso fiscal dos Estados Unidos, para autoridades brasileiras
ocultarem dinheiro ilícito. Ele nega.
Quase R$ 5

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milhões foram parar em empresa ligada a lobista amigo de Barros
A proposta de PDP recebeu pareceres contrários das áreas técnicas do
Ministério da Saúde por uma série de inconsistências, como falta de
experiência — o Tecpar era especializado na produção de vacina
antirrábica e outros produtos veterinários, enquanto a Axis atuava com
farmacêuticos dermatológicos e cosméticos — e falta de uma fábrica onde
o instituto paranaense pudesse produzir o medicamento para o câncer de
mama após receber o aval para a transferência de tecnologia. Mesmo
assim, o então ministro Ricardo Barros fechou o acordo com o instituto do
Paraná, liberando 374,7 milhões de reais para comprar o medicamento
apenas no primeiro ano da parceria, e ainda assinou um convênio de 82
milhões de reais para o Tecpar construir um centro tecnológico para
produzir o insumo em Maringá, sua cidade natal.
A trama prosseguiu, acompanhada de suspeitas, depois que Barros
deixou a cadeira de ministro. Em abril de 2018, quando se desligou do
ministério para concorrer à reeleição a deputado, ele foi acompanhado
por um funcionário do próprio Tecpar que havia levado a tiracolo para
Brasília — e que havia trabalhado na costura do acordo. Rodrigo Silvestre
foi realojado no Tecpar, desta vez com status de diretor, e passou a gerir a
verba milionária repassada pelo ministério via PDP. Uma parte do
dinheiro foi destinada à empresa parceira do Rio de Janeiro — aquela
ligada ao Iabas, que por sua vez tinha como “operador” um lobista da
confiança do próprio Ricardo Barros e de seu partido, o Progressistas.
Uma nota fiscal obtida por Crusoé mostra que, em julho de 2018, o Tecpar
pagou 4,9 milhões de reais para a Axis. Quando o pagamento foi feito, o
dono da empresa tinha acabado de ser preso pela primeira vez pelas
suspeitas de corrupção envolvendo a entidade que dirigia. “Como ele
estava preso, nós consultamos o compliance e o pagamento foi feito
porque não havia nada de errado”, diz Silvestre, que nega ter havido
qualquer favorecimento ou superfaturamento na PDP. Segundo ele, o
valor pago a mais se referia à “transferência de tecnologia”.

Esse não foi exatamente o entendimento dos auditores da CGU,

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que apontaram um sobrepreço de 44% no remédio vendido por quase 1,3
mil reais a unidade pelo Tecpar ao Ministério da Saúde, bem acima dos
valores propostos por outros laboratórios oficiais que também tinham
parceria privada, como o Butantan e Biomanguinhos, com preços abaixo
dos 940 reais. No fim de 2018, o TCU suspendeu liminarmente a PDP
assinada por Ricardo Barros com o instituto paranaense e determinou
que o ministério comprasse o remédio diretamente do laboratório suíço
Roche pelo valor de mercado. A providência obedecia a uma lógica
bastante compreensível: a parceria que tinha por objetivo reduzir os
gastos do governo federal com a aquisição do medicamento acabou por
deixar a conta ainda mais salgada. Mesmo com a suspensão da parceria, a
investigação prossegue. Há suspeitas de direcionamento e de desvios em
outros acordos de transferência de tecnologia semelhantes, cujos
beneficiários foram redirecionados na gestão de Ricardo Barros no
Ministério da Saúde. Em 2016, em outra decisão em que também
atropelou a área técnica e só foi revertida por ação do Ministério Público
Federal, Barros decidiu substituir um medicamento para leucemia
produzido por uma empresa japonesa em parceria com um laboratório
alemão. por um produto chinês que não tinha autorização para uso em
humanos nem na China e só havia sido testado em macacos e roedores.
O pagamento pelo medicamento seria feito por meio de uma offshore no
Uruguai, em um esquema semelhante ao apresentado pela Precisa
Medicamentos para a vacina indiana Covaxin — com antecipação de 45
milhões de dólares por meio de uma conta em Singapura.

Reprodução/redes

sociais
®IVA® Barros com
Bolsonaro: apesar do “rolo” da Covaxin, o presidente afaga o líder
Embora só tenha assumido o Ministério da Saúde em 2016, com a
redistribuição de cargos feita por Temer após o impeachment de Dilma
Rousseff, Ricardo Barros tem um longo histórico de influência na pasta,
uma das mais cobiçadas pelos políticos por deter um orçamento
bilionário e lidar com interesses de grandes empresários. As indicações
políticas do atual líder do governo ocorrem desde o primeiro mandato
dele como deputado federal, em 1995, ainda no governo Fernando
Henrique Cardoso. À época, Barros atuava como uma espécie de aprendiz
do então cacique do PP, José Janene, seu conterrâneo. Um dos ícones do
escândalo do mensalão petista e, depois, do petrolão, Janene tinha o
mesmo lobista Roberto Bertholdo como parceiro e advogado. Após a
morte do ex-deputado de Londrina, seu mestre, Barros expandiu seus
tentáculos dentro do latifúndio da Saúde, com a ajuda de Bertholdo. Entre
os nomes apadrinhados por Barros dentro do ministério está Roberto
Dias, o ex-diretor de logística que foi demitido após ser acusado pelo
policial militar Luiz Paulo Dominghetti de cobrar propina em troca da
compra de doses inexistentes da vacina AstraZeneca. Antes de assumir o
cargo no ministério, Dias foi assessor no governo de Cida Borghetti,
mulher de Barros, no Paraná. A influência na área de saúde, que incluía a
Anvisa e a ANS, as agências federais que regulam o setor de
medicamentos e o de planos de saúde, ajudava a atrair interessados em
contribuir financeiramente com as campanhas eleitorais de Ricardo
Barros.
Embora exiba força na área da saúde, o atual líder do governo na Câmara
também tem interesses em outros setores. Barros e sua mulher são
sócios em empresas com atuações em ramos diversos. A lista tem
emissora de rádio, locadora de carros e até uma escola particular.

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Também há negócios imobiliários aos quais estão ligadas outras práticas
heterodoxas de Barros destinadas a viabilizar obras públicas em sua terra
natal. Um dos casos mais escandalosos envolve a construção de uma
milionária obra viária em Maringá. Barros fez lobby pelo empreendimento
nos governos Dilma, Temer e Bolsonaro e, nas três gestões, usou seu
poder político para tentar liberar recursos para o chamado Contorno Sul
Metropolitano. À primeira vista, o esforço pode parecer republicano, com
o objetivo de beneficiar os moradores da cidade. Mas, segundo o
Ministério Público Federal, Ricardo Barros e sua mulher, a ex-governadora
Cida Borghetti, “se aproveitaram imoralmente de seus mandatos
eletivos” para “a obtenção de vantagem patrimonial”. Além de desafogar o
trânsito, a construção do conjunto de viadutos vai trazer uma exponencial
valorização imobiliária de terrenos vizinhos, entre eles uma grande área
onde Barros e outros empresários pretendem implantar um condomínio
residencial de luxo. O loteamento do deputado se tornaria
comercialmente atrativo graças aos recursos federais investidos na obra.
Para viabilizar a empreitada, sustentam os procuradores, o líder do
governo usou de seu “capital e prestígio políticos”. A mobilização não
incluiu apenas a destinação sistemática de emendas federais para a obra,
mas também uma ação sobre autoridades municipais para aprovar o
condomínio. O projeto existe há mais de uma década, mas foi por causa
das pressões de Barros que pôde avançar nos últimos anos. Em
novembro do ano passado, o deputado conseguiu emplacar um aliado no
comando da gerência estadual do Departamento Nacional de
Infraestrutura de Transporte, o DNIT. Dois dias depois, o governo federal
publicou o edital de licitação da obra viária, com custo estimado de 270
milhões de reais. O assunto foi tratado em reuniões de Barros com o
ministro da Infraestrutura, Tarcísio de Freitas, e com o próprio presidente
Jair Bolsonaro. Por causa de problemas no edital, a área técnica do DNIT
recomendou o cancelamento da licitação — ainda não há ainda previsão
para a retomada do processo. Barros segue na pressão para que a obra
comece o quanto antes.

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Congressistas que acompanharam as tratativas contam que, para
conseguir dinheiro para a obra, o líder do governo usou métodos que
incluem um jogo de troca. Barros levou a bancada do Progressistas a
apoiar um controverso projeto de lei, considerado prioritário por
integrantes do governo, de estímulo ao transporte por cabotagem,
conhecido como BR do Mar. A proposta passou pela Câmara no começo
de dezembro, poucos dias após a licitação para a obra do Contorno Sul
em Maringá, que beneficiará o condomínio do qual é sócio. O negócio é
cercado de suspeitas desde a origem. Em 2017, a Folha de S.Paulo revelou
que o deputado comprou metade do terreno do empreendimento por 56
milhões de reais, apesar de ter patrimônio declarado de 1,8 milhão de
reais. Segundo o MPF, o líder de Bolsonaro cedeu recentemente a outras
empresas suas ações relativas ao empreendimento paranaense e sua
participação no lucro do negócio, fixada em 47,5%, mas manteve válido
um acordo para receber 1% do total de lotes.
Jefferson Rudy/Agência

Senado Maximiano
na CPI: ele admitiu que conhece Barros, mas se recusou a ir além
Barros afirma que a participação no negócio imobiliário é “legítima” e que

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há mais de 30 anos exerce atividade empresarial imobiliária. Ele e Cida
Borghetti alegam ainda que “não há qualquer conexão entre a
participação de suas empresas no loteamento e o exercício de mandatos
ou cargos públicos”. O MPF argumenta que o líder do governo atuou
como “promotor do empreendimento” e que a ação de improbidade
indicou de forma detalhada todas as condutas do deputado em defesa do
projeto. A ação dos procuradores contra o casal está sob análise no
Tribunal Regional Federal da 4ª Região. Em primeira instância, a Justiça
Federal não viu conexões entre o lobby em favor da obra e o mandato de
deputado e enviou o caso para a Justiça estadual. Sobre a investigação em
curso acerca da PDP firmada com a suíça Roche e a carioca Axis, Barros
afirmou em nota enviada a Crusoé que “não houve esquema, tampouco
superfaturamento” e que “tudo está sendo esclarecido nos órgãos de
controle”. O deputado disse ainda que o valor pago pelo medicamento
usado para combater câncer de mama tem preço “compatível” com o
praticado no mercado mundial. “Não houve sobrepreço. O medicamento
foi adquirido pelo critério da PDP, incluindo transferência de tecnologia,
absorção do conhecimento, geração de emprego, formação de capital
intelectual, entre outros benefícios. Não é um simples contrato de compra
e venda, sendo o recurso repassado para um laboratório público”,
defende Barros.
Outros empreendimentos privados do deputado federal também
representam conflito com sua atividade pública. Até o ano passado, o
líder do governo era sócio de uma emissora de rádio no Paraná, o que é
vedado pela Constituição, já que o serviço é uma concessão pública e as
outorgas são apreciadas pelo Congresso. No final de 2020, a Justiça
Federal determinou, em segunda instância, que a União cancelasse a
concessão e fizesse uma nova licitação do serviço. Procurado pela
reportagem, o Ministério das Comunicações informou que vai aguardar a
intimação do trânsito em julgado do processo para cumprir a
determinação judicial. Enquanto isso, a rádio continua operando, mas
agora sem a participação formal de Barros, que deixou a sociedade nas

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mãos de sua mulher e de outros empresários.

Mais recentemente, Ricardo Barros passou a atuar também na venda de


água mineral. Ele entrou em uma sociedade para explorar uma fonte no
município de Paiçandu, ao lado de Maringá. A Mineralizadora Fonte de Luz
tem como grande atrativo a água “Life plus”, supostamente rica em
vanádio. No ano passado, Barros e Cida Borghetti abriram mais uma
empresa para atuar distribuir a água envasada. Assim como a maioria das
firmas registradas pela família, o nome traz as iniciais do casal: RC6
Mineração.

O envolvimento de Ricardo Barros no “rolo” das vacinas — expressão


usada pelo próprio presidente Bolsonaro, segundo relatou Luis Miranda à
CPI —, não está restrito ao caso da Covaxin. A CPI também investiga a
participação do líder do governo nas negociações para vender para o
governo doses da vacina do laboratório chinês CanSino. O negócio seria
feito por meio de outra empresa intermediária explicitamente ligada ao
parlamentar. Com sede em Maringá, a Belcher Farmacêutica é
comandada por Daniel Moleirinho Feio Ribeiro, filho de um ex-secretário
de Ricardo Barros quando ele foi prefeito da cidade paranaense, no início
dos anos 1990. Outro elo é o advogado Flávio Pansieri, que defende
Barros em processos judiciais e apareceu como representante da Belcher
em uma reunião na Anvisa para tratar da liberação da vacina chinesa. Em
meio à polêmica, os chineses desistiram da negociação, mas as tratativas
nebulosas entraram na mira da CPI, que já convocou o representante do
laboratório de Maringá para prestar depoimento na semana que vem. O
cerco está se fechando. Barros já até baixou o tom beligerante que exibiu
em seu depoimento da semana passada, quando acusou a CPI de
atrapalhar as compras de vacinas. Os senadores prometem ir a fundo na
investigação sobre ele.

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As correspondências poderiam trazer Bolsonaro à realidade, mas ele parece viver em um universo paralelo

Cartas do Brasil real


Enquanto Brasília gira em torno de crises detonadas por falsas questões, os brasileiros sentem os graves
problemas da vida real. Correspondências enviadas a Jair Bolsonaro formam um retrato dos dramas vividos
longe da bolha do poder
20.08.21

PATRIK CAMPOREZ

Odesempregado Paulo Manoel dos Reis não se preocupa com a


tecnologia das urnas eletrônicas nem acompanha o escarcéu dos políticos
que questionam a segurança das eleições. “Tenho 64 anos, dois filhos e
ganho 720 reais por mês. Pago 400 de aluguel, luz, água, e não sobra
nada”, diz o paranaense, sempre alheio à rotina política de Brasília. O
carpinteiro José Ricardo Nascimento vive em Crato, no sertão cearense, e
enfrenta realidade semelhante: os seus rendimentos desaparecem nos
primeiros dias do mês. Ele não quer saber de crise entre os poderes nem
conhece os ministros do Supremo Tribunal Federal. Tem apenas um
pedido a Jair Bolsonaro: que o presidente tenha “compaixão” com os
aposentados do país. João Ferreira Lopes da Silva começa a arar a terra
bem antes do alvorecer, mas nunca conseguiu comprar casa própria. “Eu
sou lavrador e não tenho onde morar”, conta o maranhense, em meio à
batalha pela sobrevivência na zona rural de Codó. Nas idas e vindas de
pau de arara, João e seus colegas nunca conversaram sobre “ruptura
institucional” – os temas políticos se resumem às reclamações sobre a
inflação alta e a paralisia dos programas habitacionais do governo. Os
infortúnios de Paulo, José e João fazem parte da rotina da maioria dos 210
milhões de brasileiros. Enquanto em Brasília o mundo político gasta
tempo e energia em debates supérfluos, muitas vezes deflagrados por
premissas falsas, como o voto impresso, pelo Brasil afora as pessoas

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enfrentam problemas tangíveis. Crusoé obteve cópia de uma centena de
cartas enviadas ao presidente por cidadãos comuns que, juntas, formam
um retrato do drama de quem vive fora da bolha do poder. Eis algumas
das súplicas.

“Não consigo trabalhar”

Valdeci Boina mora em São Paulo e, assim como outros 15 milhões de


brasileiros, está desempregado. Além de percorrer agências em busca de
uma nova oportunidade, ele faz bicos como jardineiro e poda árvores. O
serviço é estafante, mas os ganhos são ínfimos: Boina fatura entre 20 e 50
reais por um dia de trabalho. “E não é sempre que consigo”, escreve. Em
um de seus dias de total desalento, ele decidiu dirigir-se diretamente a Jair
Bolsonaro. “Eu moro sozinho e faço minha comida, mas estou com a luz
cortada, com a água cortada. Eu não estou mentindo, juro por Deus. Não
consigo trabalhar fixado numa firma, me ajuda.” Valdeci usou canetas de
três cores para caprichar na carta e fazer seu desabafo. O jardineiro
desempregado é parte de uma massa de brasileiros que perderam a
carteira assinada ou entraram na informalidade durante a pandemia.
A taxa de desemprego no Brasil beira os 15%. Já a taxa de informalidade
no mercado de trabalho subiu para 40%. Entre as 86,7 milhões de pessoas
ocupadas, 34,7 milhões são trabalhadores sem carteira assinada. É o caso,
também, de Nilda Rebouças de Oliveira, do Rio de Janeiro. Ela tem 64 anos
e vende doces e salgados para pagar as contas. Nilda, cuja filha, Ana
Rebeca, também está desempregada, afirma “orar muito” pela família do
presidente e revela seus pedidos para que Deus dê a ele “sabedoria”. “São
tempos muito difíceis, mas vamos vencer essa Covid e levantar o nosso
país. E que as empresas possam se reerguer e manter seus empregos”,
diz. Paulo Manoel dos Reis, de Maringá, no Paraná, escreveu a Bolsonaro
em 22 de julho de 2020. “Senhor presidente, eu não sei escrever muito
bem, por isso espero que o senhor entenda minha letra. Peço proteção,
sou trabalhador desempregado em situação de risco. Tenho 64 anos,
pago aluguel de 400 reais. Tenho dois filhos. Queria ajuda”. Paulo sonha

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com um empréstimo para montar o próprio negócio. “Quero ajudar a
minha família, ter um teto para morar e ter alimento na mesa.”

“Quando chove, o canal alaga”

A casa própria é o sonho de 5,8 milhões de famílias brasileiras sem


moradia. Essa ambição está patente em boa parte das cartas que chegam
ao presidente. João Ferreira Lopes da Silva vive em Codó, no Maranhão.
“Quem vos escreve é um eleitor seu. Quero fazer um pedido em relação
ao projeto do governo federal ‘Minha Casa, Minha Vida’. Aqui tem muitas
casas fechadas, pessoas que ganharam e não precisavam. Eu sou lavrador
e não tenho onde morar. É preciso uma fiscalização
rigorosa.” Crusoé ligou para o telefone registrado na carta enviada a
Bolsonaro pelo agricultor. O filho de João, Vinícius da Silva, um estudante
de 23 anos, atendeu a chamada. Ele narrou que, desde que escreveu a
carta, seu pai já teve três AVCs e está impossibilitado de trabalhar. “Às
vezes, ele precisa de remédios e a gente não tem condição de comprar.
Meu pai está morando de favor em uma casa na zona rural. É uma
dificuldade vir à cidade, ele tem que pegar um ‘pau de arara’ e, às vezes,
não tem dinheiro”. Vinícius conta que, a pedido do pai, que é analfabeto, o
próprio estudante escreveu a carta e a postou nos Correios. “Ele quis falar

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com o presidente porque está indignado com o fato de precisar de uma
casa e não conseguir. Meu pai continua com esperança. Ele sempre me
pergunta se o presidente respondeu”, diz Vinícius.
Não são só adultos que escrevem ao presidente. Olga Benário Souza da
Silva tem apenas 11 anos e escreve de Blumenau, Santa Catarina. “Sei que
o senhor é um homem muito ocupado e que meus problemas não
passam de simples grãos de areia diante de tantos que vossa excelência
tem que resolver. E não quero lhe ocupar, mas acho necessário, antes de
escrever o propósito desta carta, contar um pouco da minha história”,
inicia ela, caçula de quatro irmãs. Olga nasceu com uma patologia e, nos
primeiros meses de vida, teve que passar por cirurgias que lesionaram
suas vértebras. Uma de suas irmãs enfrentou o mesmo problema e
ambas usam cadeira de rodas. “Já operamos os calcanhares, a bacia, a
bexiga, o intestino, os rins. Moramos em Blumenau e tem sido muito
difícil a vida aqui. O estado negou transporte para hospitais. Negou
também uma prótese e, por fim, o auxílio que recebíamos”, diz. Em
seguida, Olga fala do sonho da família: a casa própria. “No momento em
que escrevo essa carta estamos com aviso de corte de água e energia,
com aluguel atrasado, sem material escolar. O que eu preciso é de sua
ajuda para que, assim como tantas outras crianças, tenhamos acesso a
moradia, escola e saúde, que são meus problemas diante de tantos que o
Brasil enfrenta”.

Ana Maria de Oliveira, professora aposentada de Limoeiro, Pernambuco,


também colocou no papel o sonho de ter a casa própria. Ela escolheu
folhas cor de rosa e ocupou doze páginas ao escrever a carta para o
presidente. A pernambucana mora com o marido em um barraco, em
cima de um canal. “Quando chove, tudo alaga, a água entra pelo quintal e
pelos ralos do banheiro”. Paulo Manoel dos Reis, Maringá, no Paraná, não
está interessado em política. Quer apenas resolver seus dramas reais.
“Ganho 720 reais por mês. Pago aluguel, luz, água e não sobra nada.
Queria pedir ao senhor uma casinha do Minha Casa, Minha Vida.”

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“Estamos abandonados”

“Senhor presidente Jair Bolsonaro, em primeiro lugar, peço perdão pela


ousadia em escrever para vossa excelência. Vou ser breve. Tenho 72 anos
e sou funcionária pública federal aposentada juntamente com meu
esposo. Infelizmente estamos abandonados, não tivemos aumento de
salário”. O apelo é de Célia Ramos Soares Ferreira, de Jacarepaguá, no Rio
de Janeiro. Ela ganha 2,9 mil reais de aposentadoria, mas paga 1,8 mil
reais de plano de saúde. Servidores públicos com baixos salários, como
Célia, estão entre os mais afetados pela escalada de preços dos últimos
meses. A inflação elevou os preços dos itens da cesta básica e corroeu o
poder de compra dos brasileiros. O óleo de soja, por exemplo, subiu 90%
nos últimos doze meses. A carne bovina registrou inflação de 40% e o
arroz teve alta de 61%.
Em 1º de julho do ano passado, Edna Menezes de Oliveira escreveu a
Bolsonaro para relatar as dificuldades financeiras que enfrenta desde que
obteve um empréstimo consignado. Ela se sente “roubada” pelos juros
altos cobrados na transação. “Já escrevi muitas cartas, amassei e joguei na
lata do lixo. Junto com elas, minha dignidade de cidadã honesta
brasileira. Só que esta vou enviar para que o senhor tome conhecimento
do meu drama.” E continua: “O que eu quero? Bloqueio nos

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empréstimos.” Edna recorreu, sem sucesso, a estratagemas contábeis.
“Sempre que o salário mínimo aumentava, eu refinanciava (a dívida), pois
eu conseguia um dinheiro extra. Só que, para minha surpresa, eu já não
conseguia mais essa renda extra porque os bancos desonestos já haviam
me antecipado”, diz. A carta, escrita em letras azuis em uma folha de
caderno, foi acompanhada de comprovantes dos empréstimos feitos.
Edna solicitou um crédito de 10,4 mil reais, a serem pagos em 72 parcelas
de 287 reais – juros de 28,2% ao ano. O valor final, de 20,6 mil, não foi
pago e ela precisou fazer outros financiamentos para tentar finalmente a
quitação. Entrou em uma bola de neve. Edna conclui com o desenho de
três corações e um pedido de desculpas por tomar o tempo do
presidente. “Sei que o senhor tem problemas sérios para resolver e eu, na
minha pequenez, fico te incomodando. Costumo me expressar melhor, é
que eu estou idosa e bem doente.”

“Não sobra para comer”

Entre as cartas mais dolorosas estão as de brasileiros que sofrem com a


fome. Muitos dos remetentes são aposentados que, em crise financeira,
recorrem a empréstimos consignados e ficam sem dinheiro para comprar
remédios ou até para comer. É o caso da técnica de enfermagem
aposentada Vera Lúcia Listado, que escreve de São Paulo. “Após pagar luz,
gás e água, não sobra para comer. Faz muito tempo que não temos
aumento (na aposentadoria)”, relata. Edilson Santos Pereira,
caminhoneiro de 50 anos de Jardim Monte Belo, também em São Paulo,
conta que sofreu um acidente em 2017 e fraturou a coluna. Desde então,
está em tratamento no Hospital das Clínicas, sem poder voltar ao
trabalho, e não tem acesso ao auxílio-doença. “Tenho uma esposa e dois
filhos, estou sem condições de pagar água e luz. Sei que o senhor é uma
pessoa justa e vai compreender quem sempre carregou as riquezas desse
país nas costas. Não temos o que comer.” De Crato, no Ceará, o
carpinteiro José Ricardo Nascimento escreve para relatar um drama
parecido. Ele fez empréstimos que comprometem mais de 60% de sua

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renda. Sobram apenas 400 reais para comprar comida e pagar contas. Em
uma página, ele aproveita para pedir ao presidente “compaixão” com os
aposentados.
“Serei obrigada a parar com minhas atividades”

Uma parcela da população afetada pela pandemia, e que alega estar


abandonada pelo atual governo, é a de micro e pequenos empresários.
Escrevem cartas extensas, em que relatam dificuldades para tocar os
negócios ou mesmo histórias de falência. “Senhor presidente, é muito
grave a situação. O acesso a recursos financeiros para melhoria e
expansão dos negócios são raros e caros”, escrevem Geovani José Vieira e
Diego Christian Damásio, que empregam 48 funcionários.
A dificuldade de acesso ao crédito também aparece nas cartas. “Peço pela
sua fineza em atender minha reivindicação aqui exposta, no sentido de
poder continuar com minhas atividades na área da construção civil,
gerando empregos e contribuindo com o engrandecimento do nosso
Brasil. Atualmente, conto com 20 funcionários diretos e, caso não consiga
vossa ajuda, serei obrigada a parar com minhas atividades. Sou
empresária no ramo da construção civil, estou concluindo o curso de

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arquitetura, tenho 22 anos. Já edifiquei um empreendimento totalmente
com recursos próprios, mas, devido à conjuntura financeira que
atravessamos, sou obrigada a pedir vossa ajuda” , diz Giovana Pereira, que
escreve de São José, Santa Catarina. Ela pede que o presidente interceda
junto aos órgãos competentes para viabilizar crédito para os pequenos
empresários.

Carmen Lúcia Gobatti, de Guarulhos, São Paulo, tem 65 anos e mandou


uma carta escrita à mão com letras arredondadas. “Somos uma empresa
respeitada, muito séria, 100% brasileira. Estamos à beira de fecharmos as
portas, lamentável. Faz 40 anos que trabalhamos muito e queremos
continuar, mas nosso próprio país nos impede de trabalharmos. Somos
uma família e vivemos de nossa metalurgia. Precisamos de ajuda, os
impostos abusivos nos impedem de continuar”. Ana Cristina Noce Fraga,
de 42 anos, mora em Belo Horizonte e é empresária. “Não é preciso dizer
o quanto fiz campanha para a sua eleição. Empreender no Brasil é algo
muito difícil. Muitas leis, muitos impostos, muita burocracia e o pequeno
sempre fica com a pior parte.”
“Meu marido foi assassinado”

Entre as cartas que chegam ao Planalto estão ainda relatos dramáticos de


quem sofreu na pele a criminalidade. Os remetentes reclamam do avanço
do tráfico, da insegurança das favelas e pedem paz. Diana Guimarães
escreveu de João Pessoa para contar que seu marido foi assassinado. Ela
não entra em detalhes sobre a morte, mas diz que o companheiro
sustentava a casa. “Minha situação é esta: sou mãe de quatro filhos. São
casados, não moram comigo. Tenho a guarda de um dos netos e moro em
uma casa cedida pelo meu tio. Trabalho vendendo frutas no Mercado
Central e recebo Bolsa Família no valor mensal de 89 reais” , desabafa.

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“Somos um povo criativo”

A vocação do brasileiro para empreender está registrada em boa parte


das cartas que chegam ao gabinete de Jair Bolsonaro. Rockefeller Silva, de
48 anos, escreve de Perdizes, São Paulo, em tom firme. Diz que a iniciativa
privada e o governo devem trabalhar juntos para o progresso do país,
criando condições favoráveis à inovação. “Como o senhor mesmo disse, o
empreendedor ‘não deve ter medo’ da burocracia, que muitas vezes
atrapalha o desenvolvimento, a criação de empregos e
riquezas.” Professor e inventor, Rockefeller aguarda pelo registro de uma
patente no INPI, o Instituto Nacional da Propriedade Industrial. “Há 10
anos espero, pagando anuidades e taxas requeridas. Investi todas as
minhas economias nesse projeto e ainda precisei pedir dinheiro
emprestado. Somos um povo criativo e nosso potencial não deveria ser
refém da burocracia que emperra o progresso. Registrar uma patente, em
nosso país, ainda é um esforço hercúleo para o cidadão comum, como
eu”, diz.
Com letras garrafais caprichadas, Alexandre Barroso Brilhante escreve de
Fortaleza para falar do sonho de virar empresário e das dificuldades para
empreender. “Excelentíssimo presidente Jair Messias Bolsonaro, é com
muito respeito e alegria que venho através desta carta. Eu creio que Deus
colocou vossa excelência à frente do nosso país com o propósito de
melhoria para os brasileiros que vêm sofrendo por algum tempo, e creio
que Deus vai lhe dar força e vitória nesta missão” , diz o cearense. “Eu
trabalho de motoqueiro em uma construtora, mas tenho muita vontade

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de ter meu próprio negócio. O que eu ganho é para o sustento da minha
casa, não sobra nada para investimento e lazer.” Alexandre revela que seu
sonho é ter uma Kombi para trabalhar por conta própria com vendas e faz
um pedido: “Eu sei que é difícil esse pedido, mas quem sabe Deus toque
no coração? Sei também que estamos vivendo tempos difíceis, nosso país
está com problemas, mas eu creio que Deus está no controle” .

Na vida real, o país grita, como sempre gritou, mas Brasília não consegue
– ou não quer – ouvir.
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Os talibãs assumem o controle do gabinete presidencial do Afeganistão

Por detrás de Cabul


Para além das dramáticas cenas dos últimos dias no Afeganistão, há um xadrez político arriscado que envolve as
grandes potências globais. Entenda como se dá esse jogo e suas possíveis consequências
20.08.21

DUDA TEIXEIRA

Atomada de poder no Afeganistão pelo grupo terrorista Talibã foi


acompanhada de cenas dramáticas que causaram comoção
internacional. No palácio presidencial em Cabul, barbudos armados
vestindo turbantes e calçando sandálias posaram para uma foto com um
fuzil AK-47 sobre a mesa. Em seguida, recitaram versos do Corão. Da
embaixada americana, helicópteros decolavam a todo momento com
diplomatas e seus familiares com destino ao aeroporto, onde milhares de
civis invadiram as pistas. Alguns tentaram desesperadamente se agarrar
ao trem de pouso e às asas de um cargueiro americano para escapar do
pesadelo que se anunciava – o avião C17, com capacidade para 134
pessoas, levantou voo com 640 a bordo. Três caíram, entre eles um
jogador de futebol com passagem pela seleção afegã. Na quarta-feira, 18,
protestos contra o novo regime foram reprimidos com tiros. A despeito
do cenário catastrófico, em momento algum o presidente dos Estados
Unidos, Joe Biden, demonstrou disposição de reconsiderar a decisão de
retirar os soldados americanos do país. Pode apenas estender o prazo
para depois de agosto.

De uma maneira bárbara, o Afeganistão confirmou sua fama de ser um


“cemitério de impérios”. Depois de lutar contra o Império Britânico e
conseguir sua independência, em 1919 (15 mil militares mortos em três
guerras), o país botou os soviéticos para correr em 1989 (outras 15 mil
mortes). Agora, somam-se a eles os americanos e seus aliados da

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Organização do Tratado do Atlântico Norte, a Otan (2,5 mil militares
mortos). É um histórico assombroso, que faz com que nenhuma nação
minimamente sensata hoje esteja disposta a mandar soldados para o
país.

“A retirada americana abriu um vácuo que só será ocupado pelo Talibã ”,


diz o cientista político americano Colin Dueck, especialista em relações
internacionais na Universidade George Mason. “Tudo o que veremos
daqui para frente serão países avaliando suas conexões com o Talibã e
estudando como poderão se ajustar ao grupo. Uma exceção será os
Estados Unidos, onde haverá uma pressão muito grande para não
reconhecer o próximo governo.”
Reprodução/The White

House/YouTube
Biden, ao discursar sobre a queda de Cabul: ele tem certeza de que fez o
certo
A China foi a primeira a se manifestar. O Ministério de Relações Exteriores
do país declarou que “respeita as escolhas do povo afegão”, apesar de

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não ter ocorrido nenhuma eleição, e que pretende estabelecer relações
amistosas e de cooperação. Desde 2014, delegações do Talibã têm
visitado a China para conversar com funcionários do Partido Comunista,
embora haja divergências claras entre as partes. Enquanto o estado
chinês é laico e encarcera uigures muçulmanos em campos de
concentração na província de Xinjiang, o Talibã promete declarar o
Emirado Islâmico do Afeganistão e implementar a sharia, a lei islâmica.
A aproximação entre esses dois opostos se dá em nome do pragmatismo.
Para o Partido Comunista chinês, a questão central é impedir ataques de
terroristas muçulmanos contra o regime. Nos anos 1990, uigures
muçulmanos e radicais mudaram-se para o Afeganistão e criaram o
Movimento Islâmico do Turquestão Oriental. Quando o Talibã controlou o
Afeganistão pela primeira vez, entre 1996 e 2001, em um acordo informal
firmado com os chineses ele se comprometia a impedir que os uigures
planejassem e realizassem atentados na China. Um acordo semelhante
deverá acontecer agora.
Para convencer o Talibã a fazer sua parte, a China oferece investimentos.
“O Afeganistão é uma importante via de acesso aos mercados europeus e
faz parte da Nova Rota da Seda. Desde 2015, há um enorme projeto de
energia e infraestrutura, que inclui a construção de ligações ferroviárias e
rodoviárias”, diz o advogado Marcos Vinícius de Freitas, professor visitante
na Universidade de Relações Exteriores da China, em Pequim. Estatais
chinesas já ganharam concessões para explorar uma mina de cobre em
Aynak, a segunda maior do mundo, e petróleo no norte do Afeganistão. O
país tem reservas avaliadas em mais de um trilhão de dólares em metais
raros, mercado já dominado pela China.

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Reprodução
Afegãos invadem pista do aeroporto e se agarram em aviões: tentativa
desesperada de fuga
A Rússia também tem cortejado o Talibã, apesar de a União Soviética ter
sido expulsa do país no passado. Em 2011, o presidente Vladimir Putin
enviou um representante especial para falar diretamente com o então
líder do Talibã, o mulá Omar. O principal ponto de interesse dos russos na
relação com os extremistas afegão é o tráfico de heroína e opioides — a
Rússia é um dos países que mais sofrem esses dois tipos de narcóticos no
mundo, e o Afeganistão concentra 85% da produção mundial. Também há
muita preocupação com o Estado Islâmico, que tem recrutado cidadãos
russos. Para as autoridades de Moscou, o Talibã combate o Estado
Islâmico, o que explicaria as relações amigáveis com os mulás.
O risco de fazer qualquer acordo com o Talibã é que não há garantias de
que os terroristas respeitarão o combinado. Após negociar um cessar-
fogo com os Estados Unidos no ano passado, eles nada fizeram para
conter a violência e seguiram realizando assassinatos seletivos. Além
disso, seguem tendo laços fortes com a Al Qaeda, o grupo terrorista que,
comandando por Osama bin Laden, morto pelos americanos, realizou os
atentados em Nova York, Washington e Pensilvânia, em setembro de
2001– o que motivou a ocupação americana. Quando se acertaram com a
China, os talibãs de fato não permitiram que os uigures atacassem
Pequim, mas também não os expulsaram. “A China pode até nutrir
esperanças de que os líderes do Talibã cumprirão suas promessas. No
entanto, o grupo é muito descentralizado e é provável que seus líderes
não consigam controlar todas as suas diferentes facções ”, diz Sean
Roberts, professor da Universidade George Washington e autor do livro A

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guerra contra os uigures. Quanto ao movimento dos russos de tentar
conter os radicais no Afeganistão, as chances de sucesso também são
baixas. “Considerando o papel ativo que os russos tiveram em ajudar
Bashar Assad na guerra contra militantes na Síria, hoje há um número
muito grande de jihadistas querendo se vingar da Rússia ”, diz Roberts.

O fato é que a palavra dos talibãs vale muito pouco. Mesmo com o grupo
prometendo manter a ordem, embates entre suas diferentes facções e
aliados são muito prováveis, o que prejudica os investimentos. Nos
últimos anos, incertezas na área de segurança levaram ao fechamento da
mina de cobre. O projeto petrolífero com os chineses também permanece
parado. Outro ponto é que qualquer pedido para conter o tráfico de
drogas seria inócuo, uma vez que a maior parte da renda do grupo vem
daí.
Reprodução/redes

sociais O
presidente chinês Xi Jinping: Pequim faz aceno perigoso aos radicais
Um cenário bem provável é aquele em que vai sobrar para todo mundo.

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Mesmo países que hoje estão estendendo a mão para o Talibã poderão se
tornar vítimas. O Paquistão financiou o Talibã e hospedou seus líderes,
mas um dos bandos extremistas hoje no Afeganistão, o Talibã
Paquistanês, ou TTP, tem como alvo justamente o Paquistão. O Irã, outro
vizinho, festejou a tomada de poder do Talibã, contente com o fracasso
dos americanos, mas facções do sunita Talibã nutrem um forte ódio
contra os xiitas.
Entre as demais organizações terroristas com atuação por lá, está a já
citada Al Qaeda, que tem vários de seus membros casados com mulheres
de famílias de talibãs. A organização festejou a tomada de poder em
Cabul. Desde então, vários de seus integrantes que estavam presos foram
libertados. Por tudo isso, é fácil entender a agonia de afegãos no
aeroporto de Cabul.
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"Parece inevitável que ocorra um choque de trens entre Jair Bolsonaro e Lula nas próximas eleições"

Os cadáveres ideológicos
Referência no debate sobre relações internacionais, o escritor Moisés Naím diz que políticos da América Latina
têm fixação por ideias fracassadas. Para ele, apesar das tentativas de demonstração de poder, presidentes
nunca estiveram tão fracos
20.08.21

DUDA TEIXEIRA

Quando tinha apenas 36 anos, o venezuelano Moisés Naím tornou-se


ministro de Desenvolvimento no governo de Carlos Andrés Pérez. Era
início de 1989. O novo presidente tinha acabado de vencer com folga as
eleições em um período ainda democrático, anterior à ditadura
chavista. Dias depois, o anúncio de medidas econômicas detonou saques
e distúrbios de rua, que ficaram conhecidos como o Caracazo. Desse
episódio, Naím tirou uma lição, que mais tarde seria aprimorada em seu
livro O fim do poder: os governantes contam com um raio limitado de
ação, as pressões contra eles são gigantescas e, como consequência, o
poder é fraco e efêmero. “Nos tempos modernos, ficou mais fácil
conquistar o poder, mais difícil usá-lo e mais fácil perdê-lo”, diz.

Outro conceito apregoado por Naím, que por 14 anos foi editor-chefe da
prestigiosa revista Foreign Policy, é o de necrofilia ideológica, que ele diz
estar presente tanto na esquerda quanto na direita da América
Latina. Doutor em relações internacionais e economista, o venezuelano,
hoje com 69 anos, toma emprestada a definição da atração sexual por
cadáveres para falar do amor que os políticos da região costumam nutrir
por ideias que já se comprovaram um fracasso. Um exemplo disso é o
saudosismo da ditadura militar manifestado por autoridades brasileiras,
como o presidente Jair Bolsonaro. A partir dos Estados Unidos, onde vive,
Naím concedeu a seguinte entrevista a Crusoé:

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Em seu livro O fim do poder, o sr. fala que ficou mais difícil para todos os
governantes se manter no poder. Algum líder da América Latina hoje está
em situação mais confortável?
Todos os governos da América Latina hoje estão em situação precária.
Mesmo quando algum presidente aparece com 70% de aprovação
popular nas pesquisas, sabemos que esse índice é muito volátil e frágil,
podendo despencar a qualquer momento. Até a ditadura de Cuba está
sendo sacudida. Os governos hoje precisam lidar com múltiplos
problemas, como a pandemia, a economia, a fome, a desigualdade e a
pobreza. Ao mesmo tempo, eles têm um poder limitado para lidar com
tudo isso. Então, é muito difícil que algum governo consiga se manter
forte por muito tempo em uma situação como essa. Quem acompanha as
notícias sabe disso. Está bem claro que, nos tempos modernos, ficou mais
fácil conquistar o poder, mais difícil usá-lo e mais fácil perdê-lo. Quem
tiver dúvida disso que pergunte a Donald Trump.
Mas algum presidente latino poderia ao menos servir de inspiração para
os demais?
O peruano Pedro Castillo poderia servir de inspiração, só que ao
contrário. Ele é um símbolo do que não se deve fazer. Castillo é o
representante de um conceito que eu tenho usado bastante, o de
necrofilia ideológica. Necrofilia é a perversão sexual que algumas pessoas
têm por cadáveres. Esse conceito também tem sua versão ideológica, que
é uma atração por ideias ruins. Apesar de já terem demonstrado que
fracassaram no mesmo país ou em outras nações, esses conceitos
continuam tendo um apelo surpreendente entre políticos. Mas essas
histórias sempre terminam mal, de maneira desastrosa. É muito claro que
Castillo é controlado por Vladimir Cerrón, o chefe do partido Peru Livre.
Essa agremiação tem uma base de comunistas radicais que parece
disposta a fazer todo o possível para colocar em prática suas políticas de
necrofilia ideológica.

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Divulgação
“Ninguém tem o monopólio da adoração por ideias fracassadas”
O futuro da esquerda não poderia ser algo parecido com o que estamos
vendo na Assembleia Constituinte do Chile, onde os representantes falam
principalmente em questões de gênero, racismo e representação
indígena?
A questão é que não se pode ir a um restaurante chinês e pedir comida
italiana. Em outras palavras, ninguém faz política escolhendo sobre o que
quer falar, qualquer coisa. Todos esses temas são legítimos, mas não se
pode fugir dos assuntos inerentes à política. A esquerda, para avançar,
precisa dar resposta aos fatos que estão ocorrendo no continente, como
o sofrimento humano, a desigualdade e a corrupção na Nicarágua, em
Cuba e na Venezuela. Todas essas coisas estão sendo feitas pela esquerda
no poder. E não se pode simplesmente ignorá-las porque elas são
incômodas. Então, os jovens de esquerda querem lutar contra a
discriminação racial, mas não querem se pronunciar sobre as torturas na
Venezuela? Querem defender direitos humanos, mas preferem não se
pronunciar sobre os 60 anos de repressão em Cuba? Isso é uma
enganação.
O ex-presidente Lula segue apoiando as ditaduras de Cuba e da

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Venezuela. Como explicar que ele tenha boas chances de vencer a eleição
do ano que vem?
Parece inevitável que ocorra um choque de trens entre Jair
Bolsonaro e Lula nas próximas eleições. Lamento que os brasileiros só
tenham essas duas opções neste momento. Mas ainda falta mais de um
ano para as eleições, o que em política brasileira é uma eternidade. Muita
coisa ainda pode acontecer. Bolsonaro pode se beneficiar de um aumento
dos preços de exportações e de uma dinâmica que gere empregos. Se isso
acontecer, ele chegará às eleições com uma economia favorável. Ou tudo
pode simplesmente entrar em colapso. Não dá para saber. É prematuro
especular sobre os resultados do ano que vem.

Por que Lula resiste a criticar os regimes de Cuba ou da Venezuela?


O ditador venezuelano Nicolás Maduro cometeu crimes contra a
humanidade, que foram analisados por organizações internacionais (em
setembro do ano passado, uma comissão da ONU afirmou que Maduro e
funcionários de seu governo estiveram envolvidos em ações violentas
contra a população, que incluíram assassinatos, torturas,
desaparecimentos e violência sexual). Lula não condena esses crimes
porque isso não lhe convém politicamente. Ele optou por manter a
agenda da esquerda brasileira, que ainda é muito chavista. O ex-
presidente calculou que teria mais a perder caso se tornasse um crítico
dessas ditaduras. Ao mesmo tempo, Lula tem um coraçãozinho socialista.

Como o sr. enxergou o desfile de blindados em frente ao Palácio do


Planalto, em Brasília, na semana passada?
A América Latina teve muitos problemas nas últimas três décadas, mas
uma das vitórias obtidas nesse período foi que a região conseguiu tirar os
militares da política. Isso só não aconteceu em Cuba, na Nicarágua e na
Venezuela. Nesses países, militares ampliaram sua participação na
política. Na Bolívia, os militares chegaram a retomar um pouco do poder,
mas nada que se compare ao período dos anos 1960 e 1970, quando
praticamente todo o continente estava sob o jugo de ditaduras e juntas
militares. Espero que essas cenas que vimos em Brasília não signifiquem
um retrocesso. Os militares têm um papel importante na defesa dos
países, mas eles não devem entrar na política.

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O desfile seria um sintoma da necrofilia ideológica sobre a qual o sr. tem
falado?
A necrofilia ideológica é praticada tanto pela direita como pela esquerda,
por políticos, empresários, professores universitários e jornalistas.
Ninguém tem o monopólio da adoração por ideias fracassadas.
Wikimedia

Commons “A
Venezuela hoje é um país ocupado”
Nos anos 1990, o ex-presidente do Peru, Alberto Fujimori, realizou um

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autogolpe e mandou tanques para o Congresso. O sr. vê alguma
semelhança com a cena brasileira?
Naquela ocasião, Fujimori fechou o Congresso e assumiu o controle do
Judiciário. Ele tomou todas as instituições que eram a base da democracia
peruana. Não parece ser o caso do Brasil, onde o Legislativo e o Judiciário
seguem como poderes independentes. É preciso acompanhar como essas
forças irão se comportar. Provavelmente, será preciso tomar algumas
decisões para frear as diversas iniciativas antidemocráticas, para garantir
que o sistema ofereça os freios e contrapesos necessários para a
democracia.
Se a ditadura de Cuba cair, que impacto isso poderia ter na região?
Depende muito de quem vai substituir o regime. Em muitos países da
antiga Europa Oriental, a ‘nomenklatura’ soviética não foi substituída por
pessoas com princípios democratas, mas sim por cartéis criminosos. Além
disso, há muito tempo se fala que a ditadura cubana vai acabar, mas esse
prognóstico nunca se concretizou.
A tendência é que Cuba siga tendo muita influência em seu país, a
Venezuela?
Além de ser um estado falido e ter um governo criminoso, a Venezuela
hoje é um país ocupado. Há uma potência estrangeira, Cuba, que toma as
decisões de governo. Há vinte anos eles saqueiam a Venezuela. O
resultado é que hoje a Venezuela está mais destruída do que se tivesse
lutado em uma guerra. O colapso foi executado a partir de Caracas, mas
foi desenhado em Havana. A melhor imagem que mostra essa ocupação
foi o navio cheio de comida que o governo venezuelano enviou para os
cubanos após os protestos que ocorreram na ilha no dia 11 de julho. O
governo fez isso em um momento em que a população venezuelana está
morrendo de fome.

Qual é a importância que o presidente dos Estados Unidos, Joe Biden, tem
dado para a América Latina?
Joe Biden, o atual governo americano e o Partido Democrata estão
voltando toda a sua atenção para as eleições legislativas que ocorrerão

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em novembro do ano que vem. Os resultados das urnas determinarão
qual partido terá o controle da Câmara dos Deputados e do Senado. E os
democratas querem garantir que dominarão as duas casas no futuro.
Então, antes de fazer qualquer coisa, eles se perguntam se isso vai ajudá-
los ou não a atingir esse objetivo. Acontece que a América Latina não tem
peso suficiente para contribuir para esse propósito. Repare que, na visita
do conselheiro de Segurança Nacional, Jake Sullivan, ao Brasil, no último
dia 5, praticamente só se falou de China. Embora as autoridades não
admitam isso, esse foi o único tema dos encontros. A América Latina só
ganha importância na questão migratória. Para Biden, a região começa e
termina na fronteira com o México. Cuba é uma questão circunscrita à
política doméstica da Flórida, e Biden não fará nada que possa entrar no
debate eleitoral e dar fôlego aos republicanos.
DIOGOMAINARDINA ILHA DO DESESPERO
‘Perdidinhos’
20.08.21
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OAntagonista reproduz todas as bestialidades que Jair Bolsonaro dispara
nas redes sociais, nas rádios do interior, no cercadinho do Palácio da
Alvorada. Cada uma de suas frases é escrupulosamente transcrita e
estampada no site. Considerando que o sociopata usa a imprensa para
enchiqueirar seus aloprados, há quem pense que talvez fosse melhor
ignorá-lo. Eu penso o contrário. Eu penso que suas aspas asquerosas, por
mais que elas emporcalhem nossas páginas, acabam por isolá-lo ainda
mais. As pesquisas mostram isso: o eleitor, depois de ingurgitar
bolsonarismo por dois anos, aprendeu a excretar sua propaganda
apodrecida. Eu tenho um lado panglossiano. Acredito que, diante de 570
mil cadáveres, nem o mais perfeito imbecil é capaz de ser ludibriado.

Quanto mais a popularidade de Jair Bolsonaro derrete, mais ele apela


para seus aloprados. E quanto mais ele apela para seus aloprados, mais a
sua popularidade derrete. O teorema tostiniano é implacável, e foi bem
resumido por Gilberto Kassab, segundo o qual o sociopata está
“perdidinho”. O que Gilberto Kassab enxerga como uma oportunidade,
porém, eu enxergo como um perigo. O derretimento bolsonarista chegou
a tal ponto, de fato, que o único caminho que lhe resta é o golpe. Foi o
que eu disse nesta semana, assim que a XP divulgou os dados de sua
última pesquisa: “Ou Bolsonaro dá um golpe, ou vai para a cadeia” . Aliás, é
o que venho repetindo todos os dias, a cada bestialidade disparada pelo
bananeiro e estampada em nosso site. Ele se repete, eu me repito. Estou
perdidinho.

O plano do sociopata, neste momento, é usar a imprensa para


enchiqueirar todos os seus aloprados na Avenida Paulista, em 7 de
setembro, e torcer para que ocorra algum incidente, possivelmente
sangrento, que desencadeie uma patacoada armada. O saldo dessa nova
tentativa de golpe, em termos puramente eleitorais, deve ser igual aos
anteriores: o repúdio a Jair Bolsonaro, que atingiu 61% dos brasileiros,
deve aumentar com a barbárie nas ruas. Mas nada impede que meia
dúzia de agentes provocadores acabem estimulando meia dúzia de

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militares golpistas com meia dúzia de tanques fumacentos. A impostura
sobre o “poder moderador” do Exército, repisada por Augusto Heleno, é a
prova de que o bolsonarismo aposta todas as suas fichas no delírio do
contragolpe. É o maior risco que corremos: diante da certeza de derrota
em 2022, o bolsonarismo pode vandalizar a democracia em 2021. Se ele
conseguir fazer isso, o Brasil estará perdidinho.
MARIOSABINO
A norueguesa de Cabul
20.08.21

A retirada pusilânime dos americanos do Afeganistão me levou


a escrever uma série de artigos indignados para O Antagonista. A
tragédia em curso do outro lado do mundo cancelou, por um momento, o
estado de torpor que o Brasil vem me infligindo. A quantidade de idiotices

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ditas sobre o Afeganistão e o Talibã também contribuiu para a minha
indignação. Como vacina para a idiotice, resolvi ter uma segunda dose de
um livro extraordinário — estou relendo O Livreiro de Cabul, da jornalista
norueguesa Åsne Seierstad (pronuncia-se Ósne Zaiershtad).

Conheci Åsne em 2007, quando ela esteve no Brasil, para lançar o seu
livro aqui. Jantamos juntos no Rio de Janeiro, em mesa da qual o Diogo
Mainardi fazia parte. Ela se mostrou interessada em saber sobre Lula e as
suas bebedeiras, mas tenho certeza de que foi por cortesia. Não poderia
haver nada mais desinteressante do que Lula e as suas bebedeiras para
uma jornalista que chegara a Cabul em novembro de 2001, praticamente
ao lado dos soldados americanos, depois de passar seis semanas com os
comandantes da Aliança do Norte, no deserto próximo à fronteira com
Tadjiquistão, nas montanhas de Hindu Kush, no vale do Pashir e nas
estepes ao norte da capital afegã. Como ela própria relata no seu livro,
Åsne estava na linha de frente dos ataques da Aliança do Norte contra o
Talibã, “dormindo em chão de pedra, em cabanas de barro e viajando na
boleia de caminhões, em veículos militares, a cavalo e a pé” .
Nos primeiros dias em Cabul, depois da queda do Talibã, a jornalista
conheceu um livreiro, Sultan Khan, que lhe foi um oásis. “Após semanas
entre pólvora e cascalho, ouvindo conversas sobre táticas de guerra e
avanços militares, foi renovador folhear livros e conversar sobre literatura
e história”, escreveu. Também deve ter sido renovador para Sultan Khan,
tanto que o afegão aceitou que Åsne, de uma escandinavidade exemplar,
morasse com ele e sua família durante algum tempo. O Livreiro de
Cabul é exatamente isto: o relato da jornalista sobre o período em que
viveu com a família Khan, num conjunto habitacional em ruínas, com as
paredes crivadas de balas da guerra civil, construído sob os auspícios dos
soviéticos.

O livro de Åsne, experimentada em descrever o cotidiano em teatros de


guerra, como Sérvia e Tchetchênia, é um testemunho em registro literário
da mentalidade afegã — mentalidade que, moldada integralmente pela
religião, relega as mulheres a uma condição de absoluta inferioridade e
tem no Talibã a sua exacerbação. Mesmo numa família de classe média

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(para os padrões afegãos) de um homem culto, como Sultan Khan, elas
não são nem mesmo locatárias de si próprias e são vendidas a quem
pagar mais para tê-las como esposas inteiramente submissas — e que
podem ser mortas pelos próprios pais, se infringirem os códigos arcaicos
que lhes regem. “Eu era hóspede, mas não demorei a sentir-me em casa.
Cuidaram de mim de maneira excepcional, a família era generosa e
aberta. Passamos muitos momentos divertidos juntos, mas poucas vezes
na vida fiquei com tanta raiva como da família Khan, poucas vezes briguei
tanto ou tive tanta vontade de bater em alguém. O que me revoltava era
sempre a mesma coisa: a maneira como os homens tratavam as
mulheres. A crença na superioridade masculina era tão impregnada que
raramente era alvo de questão. Em discussões ficava claro que, para a
maioria deles, as mulheres são de fato mais burras que os homens, que o
cérebro delas é menor e que não podem pensar de maneira tão clara
quanto os homens”, escreve Åsne. Por breves intervalos, um deles a
ocupação soviética, o que é ilustração suplementar da desgraça intrínseca
ao Afeganistão, as mulheres tiveram chance de usufruir de alguma
liberdade.
A jornalista experimentou a burca em diversas ocasiões. Somos
informados de que essa prisão de tecido foi criada por ricos, para
esconder as suas lindas mulheres. Um símbolo de status que, com o
tempo, viria a se disseminar pelas classes populares, como concretização
e símbolo da opressão masculina. Com o raio de visão limitado para a
frente, como se fossem cavalos que puxam carroças, as mulheres são
obrigadas a virar a cabeça para olhar para os lados — o que funciona
como instrumento de controle, uma vez que lhes é tolhida a possibilidade
de observar algo ou alguém sem que isso seja imediatamente
percebido. “Também vestia a burca para saber como é ser uma mulher
afegã. Como é espremer-se num dos três bancos traseiros de um ônibus
quando há bancos livres na frente. Como é dobrar-se no porta-malas de
um táxi porque há um homem no banco de trás. Como é ser olhada como
uma burca alta e atraente e, ao passar pela rua, receber o primeiro elogio
‘burca’ de um homem. Com o tempo comecei a odiá-la. A burca aperta e
dá dor de cabeça, enxerga-se mal através da rede bordada. É abafada,

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deixando entrar pouco ar, e logo faz suar. É preciso tomar cuidado o
tempo todo onde pisar, porque não podemos ver nossos pés, e como
junta um monte de lixo, fica suja e atrapalha. Era um alívio tirá-la ao
chegar em casa”.

Por 316 páginas, o leitor convive com Sultan Khan, as suas mulheres
Sharifa e Sonya, as irmãs Shakyla, Leila e Bulbula, o irmão Yunus, a
matriarca Bibi Gul, os filhos do livreiro, Mansur, Eqbal e Aimal, as filhas
Shabnam e Latifa, todos morando juntos num pequeno apartamento
praticamente sem móveis, com eletricidade e água escassos e fragmentos
de privacidade guardados em caixas, muitas caixas, o ambiente envolto
em poeira permanente suspensa no ar e depositada na pele. Mas o
assunto de Åsne não é a pobreza material, e sim a miséria existencial de
um povo que, refletido naquele universo doméstico, só conhece o
imobilismo secular. Vidas secas aprisionadas numa imensa caixa
etiquetada com o nome de Afeganistão — inclusive os homens, eles
também prisioneiros no seu papel de eternos dominadores.
O Talibã, como já dito, aprofundou essa não-existência que o precedia.
Quando a chusma de fanáticos assumiu o poder, em 1996, dezesseis
decretos foram transmitidos pela Rádio Sharia. Faço um resumo da lista
que consta do livro de Åsne:

1. É proibido às mulheres andar descobertas.

2. É proibido ouvir música.

3. É proibido barbear-se.

4. As orações diárias são obrigatórias.

5. É proibido criar pombos e promover rinhas de aves.

6. É proibido vender e usar drogas.

7. É proibido soltar pipas.

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8. É proibido reproduzir imagens.

9. Estão proibidos rigorosamente os jogos de azar.

10. É proibido usar corte de cabelo no estilo americano ou inglês.

11. São proibidos empréstimos a juros, taxas de câmbio e de


transações.

12. É proibido lavar roupa à margem dos rios.

13. Música e dança são proibidas em festas de casamento.

14. É proibido tocar tambor.

15. É proibido a alfaiates costurar roupas femininas ou tirar


medidas de mulheres.

16. É proibida a prática de bruxaria.


Os dezesseis decretos foram acompanhados de um comunicado às
mulheres de Cabul, como conta a jornalista:
“O Islã é uma religião salvadora e determinou que as mulheres devem ter
uma dignidade especial. As mulheres não devem atrair a atenção de
pessoas nocivas que lhes dirijam olhares maliciosos. As mulheres são
responsáveis pela educação e união da família, pela provisão de alimentos
e vestuário. Caso precisem sair de casa, devem se cobrir de acordo com a
lei da Sharia. Se andarem com as roupas da moda, ornamentadas,
apertadas e atraentes para se exibir, serão condenadas pela Sharia e
perderão a esperança de um dia chegar ao paraíso. Serão ameaçadas,
investigadas e duramente punidas pela polícia religiosa, assim como os
membros mais velhos da família. A polícia religiosa tem o dever de
combater esses problemas sociais e continuará com os seus esforços até
o mal ser erradicado.”

Eles voltaram.

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Alá é grande; Joe Biden é pequeno.
CARLOS FERNANDODOS SANTOS LIMA
Aras e a destruição do Ministério Público
de 1988
20.08.21

“Enquanto houver bambu, vai ter flecha!” Assim Rodrigo Janot, então
procurador -geral da República, definiu seus últimos dias de mandado na

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chefia do Ministério Público Federal. Ainda nessa declaração de setembro
de 2017, Janot reiterou os termos de sua denúncia contra o então
presidente Michel Temer, ocorrida meses antes: “Faria tudo de novo”.

Agora, nem ainda completados quatro anos dessas declarações, vemos


um outro PGR, Augusto Aras, envergonhar a instituição ao ser chamado à
responsabilidade por ministros do Supremo Tribunal Federal e ser objeto
de pedido de investigação por senadores diante de sua contínua inação e
pouca disposição a cumprir seu papel constitucional. O que aconteceu
entre o hiperativo Rodrigo Janot, responsável pela constituição da
Operação Lava Jato, o acordo com a JBS e denúncia de um presidente,
dentre tantas coisas, e o achincalhado Augusto Aras, colocado na
imprensa como o “poste-geral da República”?

Para ser justo com o atual “far niente” de Augusto Aras, o seu
comportamento submisso aos interesses políticos é historicamente o
mais comum. É só lembrar de outro procurador-geral famoso por um
epíteto também pejorativo, o “engavetador-geral da República” Geraldo
Brindeiro, que ficou à frente da PGR durante os oito anos do governo
Fernando Henrique Cardoso, sem nunca incomodar seu “patrono”,
mesmo diante de sérias notícias de irregularidades nas privatizações e na
própria tramitação da emenda constitucional da reeleição.

Outros exemplos existem, bastando voltar um pouco no passado, ainda


no final da ditadura militar, quando o então PGR Inocêncio Mártires
Coelho também foi acusado de omissão em sua atuação, chegando a ser
formada comissão no Senado Federal para decidir se aquele PGR deveria
ser julgado por deixar de investigar o escândalo de simulação de concurso
público no Tribunal Superior Eleitoral.

Os males, entretanto, que um procurador-geral da República em


desconformidade com a grandeza de seu cargo pode causar vão bem
além de omissões. Inocêncio Mártires Coelho, por exemplo, foi acusado
pela imprensa de ter-se empenhado em defender na Justiça a fidelidade
partidária no Colégio Eleitoral — o que impediria o apoio de
parlamentares governistas ao candidato oposicionista, Tancredo Neves.

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Além disso, Inocêncio Mártires Coelho, talvez na maior mancha de seu
mandato, em vez de apoiar o procurador da República Pedro Jorge de
Melo e Silva nas investigações de crimes em financiamentos agrícolas do
Banco do Brasil em Pernambuco, conhecido como “escândalo da
mandioca”, determinou o seu afastamento das investigações. Pedro Jorge
foi assassinado por envolvidos nesses crimes um dia após essa
determinação.

Esse covarde homicídio orientou muito da construção de um novo


Ministério Público na Constituição de 1988. O poder do procurador-geral
da República para intervir em investigações e afastar procuradores –
igualmente em relação aos Ministérios Públicos estaduais –
desapareceu. O Ministério Público que emergiu da redemocratização foi
um órgão muito mais independente e dinâmico, mas que novamente
agora está sob ataque.
O que vemos com Augusto Aras, secundado nisso por seus ambiciosos
sequazes, o vice-PGR Humberto Jacques e a subprocuradora Lindôra
Araújo, é uma atuação muito mais próxima daquela PGR do fim da
ditadura do que da singela omissão de Geraldo Brindeiro. Aliás, não
poderia se esperar algo diferente de um advogado que fazia “bico” como
procurador da República, pois Augusto Aras representa justamente o
velho Ministério Público Federal, aquele que, além de poder advogar,
ainda agia e pensava como advogado do governo.

O que acontece hoje é uma mistura de omissão em relação à investigação


dos diversos ataques antidemocráticos e da política genocida em relação
à pandemia, ambos os fatos relacionados direta e indiretamente ao
presidente Jair Bolsonaro, e um ativismo contra prefeitos e governadores,
objeto de ódio dos grupos bolsonaristas, bem como contra a
independência dos procuradores da República, ajudado nisso por um
Conselho Nacional do Ministério Público desfalcado e com membros
escolhidos a dedo pela classe política.

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Será que esse tipo de dualismo oportunista é uma característica da
função do procurador-geral da República, ou é uma deformação da
atuação de alguns deles por suas características pessoais? Certo é que a
concentração de poder ainda existente na função de procurador-geral
acaba por levar a uma excessiva dependência do caráter e personalidade
do escolhido para o cargo. Isso, por si só, já demonstra um problema do
desenho constitucional desse órgão. Diz-se que a melhor maneira de se
descobrir o real caráter de um homem é lhe dar poder, mas, em uma
República, nenhum poder é incontrastável.

Afirma-se também que nenhum outro cargo na República desempenha


tamanha quantidade de funções, e, se isso pode não ser completamente
verdade, é certo que a chefia do Ministério Público da União e do
Conselho Nacional do Ministério Público, a exclusividade da ação penal
pública contra detentores de foro privilegiado, a atribuição de propor
ações constitucionais perante o STF e ainda a necessidade de seu parecer
nas ações diversas que tramitam nesse tribunal já são um trabalho
hercúleo mesmo para o mais capacitado dos mortais.

Infelizmente, nem capacidade, nem grandeza pessoal são características


de Augusto Aras, mas há problemas intrínsecos ao cargo que vão bem
além dele.
É indiscutível que o desenho constitucional do Supremo Tribunal Federal e
da Procuradoria Geral da República foram hipertrofiados, no decorrer na
Nova República, em virtude do foro privilegiado, dos habeas corpus
saltitantes e das ações constitucionais, fazendo que o excessivo poder
sem controle ficasse concentrado nas mãos de poucos. Enquanto a
função do PGR, como já dissemos, ficou dependente em excesso das
virtudes e desvirtudes da pessoa do escolhido para o cargo, a
monocratização das decisões do STF também levou ao mesmo fenômeno.

Esse excesso de poder incontrastável foi logo percebido pela classe


política, especialmente pelo presidente da República, como um fator que

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deveria ser controlado por uma escolha de pessoas com interesses
alinhados com o poder. Assim, podemos ver que FHC escolheu para o STF
o nefasto Gilmar Mendes, seu subserviente advogado-geral da
União. Lula, por sua vez, escolheu “in pectore” os não menos
inapropriados Lewandowski e Toffoli, este último seu advogado
eleitoral. Agora, já neste governo, a escolha recaiu em um apadrinhado do
Centrão, Kássio Marques, enquanto o advogado de interesses autoritários
de Jair Bolsonaro, André Mendonça, aguarda a sabatina para a vaga
decorrente da aposentadoria do Ministro Marco Aurélio.

Se o processo de destruição do conceito de reputação ilibada e notório


conhecimento jurídico vem se exacerbando há muito na escolha de
ministros do STF, com honrosas exceções, a Procuradoria Geral da
República vinha sendo protegida dessa decadência por conta da escolha
de membros da carreira para o cargo e pela aceitação, pelo chefe do
Executivo, da lista tríplice de indicados pela classe. Infelizmente, a quebra
dessa tradição resultou no desqualificado Augusto Aras.
Colocado ali por Jair Bolsonaro, atendeu servilmente o desejo do
presidente de acabar com a Operação Lava Jato. Até aí agiu com os
aplausos de boa parte da classe política, do Centrão, dos caciques que
dominam o Congresso Nacional e da esquerda petista. Entretanto, tão
logo a agenda golpista e antidemocrática do presidente se tornou
evidente, Augusto Aras se recolheu à função que sabe fazer melhor, ou
seja, absolutamente nada em relação aos diversos crimes cometidos
pelos bolsonaristas, delegando o ativismo para os subprocuradores
Humberto Jacques e Lindôra Araújo.

Fica claro, com tudo isso, que temos que repensar diversas questões a
respeito da escolha e do mandato dos ministros do Supremo Tribunal
Federal, bem como da constitucionalização da lista tríplice e do controle
sobre o excessivo poder do procurador-geral da República – para não
dizer também das diversas questões similares de excesso de poder dos
ministros do Tribunal de Contas da União e do presidente da Câmara dos
Deputados.

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É bom que se diga que os paradigmas constitucionais de outros países
para esses cargos não atribuem o poder que seus derivados aqui
possuem. No Brasil, a função de acusar o presidente da República e
parlamentares é entregue com exclusividade a uma pessoa normalmente
escolhida pelo próprio chefe do Executivo e sabatinada pelos senadores.
Nos Estados Unidos, esse tipo de investigação fica tradicionalmente sob
responsabilidade de um promotor independente, escolhido para o caso.
Não fosse só isso, existe ainda a manipulação da ambição de alguns pelo
cargo vitalício no STF. Aí está a receita perfeita para um desastroso
“procrastinador-geral da República”, ou pior.

O Ministério Público que surgiu na esteira da Constituição Cidadã de 1988


é aquele preconizado por Ulysses Guimarães: “Não roubar, não deixar
roubar, colocar na cadeia quem roube”. É uma instituição que deveria
estar na frente de batalha da defesa da democracia e dos princípios
republicano e federativo, e não defendendo os interesses políticos de
quem quer que seja. Esse Ministério Público independente pode ser
acusado – e será sempre acusado pelos defensores dos interesses
ilegítimos e criminosos – de desferir muitas flechadas, mas agir é a
essência do seu trabalho. Assim, jamais se achará justificativa para um
procurador-geral da República que prefere quebrar o arco e apenas
fumar seu cachimbinho da paz com quem transgride a lei e ofende a
Constituição. Esse não é o Ministério Público da redemocratização.

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ALEXANDRESOARES SILVA
Meu Imbecil Pessoal
20.08.21

Um amigo contratou um Imbecil Pessoal. Perguntei o que era isso, e ele


me explicou assim:

“É uma ideia que tive faz tempo, mas só recentemente consegui colocar

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em prática. É ótimo, e aconselho todo mundo a conseguir um.

O princípio é este: quando você ouve as suas opiniões repetidas por um


cretino, do jeito tosco dele, você muda de opinião na hora, ou pelo menos
a atenua para que ela não seja tão cretina. E quando você age mal, mas
não percebe na hora que agiu mal, o apoio de um cretino faz com que
você perceba isso com clareza. Assim, andar o tempo todo na companhia
de um imbecil é muito mais instrutivo que andar na companhia de um
sábio.

Sempre tive um conhecido um pouco burro que, sem querer, fazia isso
comigo. Ele me apoia sempre, só que de um jeito cretino, e isso me faz
muito bem porque acabo percebendo minhas próprias cretinices e me
emendando. Então, na semana passada, tomei uma decisão e fiz uma
oferta para o meu conhecido um pouco burro: ele vai receber um salário
para andar comigo o tempo todo. É o meu Imbecil Pessoal.
Claro que não falei pra ele que o nome da sua nova profissão é Imbecil
Pessoal (isso estou falando só pra você). Para ele, disse que precisava de
uma companhia para estimular o meu intelecto. Ele ficou orgulhoso e
aceitou o emprego. Até agora esse esquema está funcionando muito bem,
e dou a ideia para você caso você queira copiar.

Por exemplo: numa discussão que tive outro dia em uma festa, perdi o
controle e fui mal-educado com alguém. Alguns minutos depois o meu
Imbecil Pessoal se aproximou de mim pedindo um high-five, TOCA AQUI!,
e disse algo do tipo:
— É isso mesmo, fez muito bem! Tem que falar na cara. Polidez é coisa de
viado ou de “intelequitual”.

(Como todos os imbecis, ele gosta de falar “intelectual” desse jeito,


alongando a letra A e fazendo uma careta de desprezo.)

Ao ouvir isso, o que eu poderia fazer? Obviamente refleti, corei, e pedi

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desculpas para a pessoa que havia ofendido.”

Essa foi a explicação do meu amigo.

Achei uma grande ideia, e também contratei um Imbecil Pessoal.. Andar


com um Imbecil Pessoal do meu lado tem sido um belo método de
correção moral para mim. Deixei de acreditar em muitas coisas que
acreditava; e nunca fui tão sensato, tão ponderado.

Claro que até do excesso de ponderação ele me protege. Porque outro dia
deixei escapar um desses “nem tanto à esquerda nem tanto à direita” que
as pessoas que não pensam muito usam quando querem afetar
moderação, e o meu Imbecil Pessoal logo disse: “Claro! A verdade NUNCA
está em nenhum dos extremos!”.

Ao ouvir isso, percebi a tolice do que tinha dito, e perguntei: “Nunca? Entre
duas pessoas com posições em extremos opostos, digamos Fulano que
quer porque quer bater numa velhinha que está andando na rua, e
Sicrano que é veementemente contra bater na velhinha, os dois estão
igualmente errados?”.

Meu Imbecil Pessoal pareceu pensar bastante, e durante um momento


fiquei com medo que ele percebesse também que tinha dito uma
bobagem, e ficasse menos burro, e eu tivesse que despedi-lo na hora. Mas
para o meu alívio ele só repetiu que todos os extremos estão SEMPRE
errados.

De modo que estou muito contente com o meu Imbecil Pessoal.

Enfim: coitado de Alexandre, o Grande, que andava na companhia de


Aristóteles! Teria sido muito mais inteligente andar sempre na companhia
do mais cretino dos seus soldados.

***

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Talvez vocês tenham visto que, segundo o relatório de fevereiro de 2021
do departamento oficial do governo americano para a reconstrução do
Afeganistão (o famigerado SIGUR), os Estados Unidos gastaram quase um
bilhão de dólares tentando ensinar teoria de gênero aos afegãos.

Isso me fez imaginar como deve ter sido uma aula dessas.

Uma sala cheia de pastores afegãos. Uma professora americana vai na


frente da sala e fala durante quarenta minutos, com um intérprete do
lado traduzindo tudo, sobre o fato de que o gênero é uma construção
social, que algumas mulheres têm pênis, que alguns homens têm vagina,
que você deve chamar mulheres grávidas de “pessoas com útero“, que
existem “cis” e “gender fluid” e “LGBTQIAP+“, e o que cada letrinha significa
etc. etc.

No final dos quarenta minutos, um pastor afegão no fundo da sala parece


um pouco confuso. Depois de algum tempo ganha coragem, levanta o
braço e pergunta:
— Só pra ter certeza se eu entendi… É pra eu estuprar quem?

O intérprete traduz a pergunta. A professora americana pensa um pouco


e logo começa a dar uma aula sobre “Me Too”, assédio no ambiente de
trabalho corporativo, Harvey Weinstein, Woody Allen, o cara da Pixar que
pôs a mão no joelho da filha do Quincy Jones etc.

Depois dos aplausos, quando todo mundo está indo embora e a


professora americana já foi evacuada de helicóptero, um pastor se vira
para outro e diz baixinho:

— Achei bacana, mas… Você entendeu quem é que é pra gente estuprar?

Não é possível que a realidade tenha sido muito diferente disso.

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Mistura perigosa
20.08.21

Além de ter sido autora de requerimentos apresentados à CPI


da Covid por senadores da base governista, a funcionária do Palácio do
Planalto Thaís Amaral Moura tem outras conexões com o Ministério da
Saúde. Registros obtidos por Crusoé mostram que a assessora especial da
Secretaria de Governo da Presidência fez pelo menos duas visitas à sede
da pasta – uma delas, na companhia de um interessado em negócios. Em
22 de julho de 2020, quando ainda trabalhava no Ministério do
Turismo, Thaís Moura foi à Saúde com um representante da Farma
Supply, empresa que havia acabado de fechar dois contratos com o
ministério para a venda de máscaras cirúrgicas. Os contratos, que somam
18,2 milhões de reais, têm indícios de superfaturamento: as máscaras
foram vendidas pela Farma Supply por um valor unitário 67% acima do

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que era pago a outros fornecedores. Thaís e o funcionário da empresa
estiveram na sala do secretário-executivo adjunto do ministério. Ela voltou
ao prédio em 5 de março deste ano, quando já trabalhava no Planalto,
para um encontro com o chefe da assessoria parlamentar. Quando da
descoberta de que era a autora de requerimentos apresentados à CPI por
parlamentares bolsonaristas, Thaís Moura foi apresentada como
namorada de Frederick Wassef, advogado da família presidencial – os dois
negam o relacionamento. Gente do próprio governo diz que ela também é
bastante próxima do senador Flávio Bolsonaro, o filho 01 de Jair
Bolsonaro.
Reprodução Thais
Moura fez visitas suspeitas ao Ministério da Saúde

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A garantia dos generais
20.08.21

Em resposta às constantes insinuações de Jair Bolsonaro de que o país


está sob risco de uma ruptura institucional, integrantes da alta cúpula das
Forças Armadas seguem enviando sinais a ministros do Supremo Tribunal
Federal de que não embarcariam em qualquer aventura golpista liderada
pelo presidente da República. Até pelos sinais vindos dos próprios
quartéis, ministros da corte dizem não acreditar na possibilidade de a
retórica bolsonarista desbordar para alguma ação concreta daqui até o
final do mandato.

Agência
Brasil

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O
QG do Exército: generais sinalizam que não vão embarcar em aventura
golpista
Campanha suprema
20.08.21

Alvo de ataques da soldadesca bolsonarista, o Supremo Tribunal Federal


está preparando uma campanha publicitária para defender a própria
imagem. A ideia é explicar como a corte funciona, esclarecendo, por
exemplo, que seus ministros só agem quando provocados – há exceções,
como o leitor de Crusoé bem sabe, mas essa é outra conversa. As peças
estão em fase final de produção. A campanha será veiculada em diversos
meios, inclusive na televisão.

Adriano
Machado/Crusoé

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O STF vai
investir em publicidade para defender a própria imagem
Os favoritos
20.08.21

Dois nomes despontam como favoritos para assumir a embaixada dos


Estados Unidos no Brasil, no lugar de Todd Chapman, que foi embora de
Brasília recentemente. Um dos cotados é James ‘Jimmy’ Story, nomeado
por Donald Trump, em 2020, embaixador americano na Venezuela. Story
já foi cônsul-geral no Brasil e é conhecido por ter afinidade com a agenda
ambiental, um dos principais focos de interesse do governo de Joe
Biden na relação com Brasília. Outro nome possível é o de Ricardo Zúniga,
funcionário sênior do Departamento de Estado. Embora seja responsável
atualmente por assuntos relacionados a países da América Central, o
diplomata integrou a comitiva de Jake Sullivan, conselheiro de segurança
da Casa Branca, na visita a Jair Bolsonaro, no início deste mês. A presença
de Zúniga no grupo foi entendida como um sinal de que ele pode ser o
favorito de Biden para chefiar a embaixada em Brasília.

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Divulgação Zúniga
é um dos cotados para comandar a embaixada
Candidato de Kassab
20.08.21

Em conversas com aliados, Gilberto Kassab tem dito que Rodrigo Pacheco
já topou disputar o Planalto no ano que vem por seu partido, o PSD. Ex-
ministro de Dilma e Temer, Kassab assegura que o presidente do Senado
deixará o DEM para se apresentar ainda neste ano como candidato da
chamada terceira via. Ele diz também que, para não queimar muito
dinheiro do caixa do PSD, Pacheco está disposto a bancar uma parte da
campanha com recursos próprios. Na terça-feira, 17, o senador participou
de um convescote em Brasília para comemorar o aniversário de Kassab.

Adriano
Machado/Crusoé

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Pacheco
promete bancar parte da própria campanha para não onerar o PSD
O guia do Centrão
20.08.21

OCentrão tem um ghost-writer. O ex-jornalista Mario Rosa, que ganhou


fama e dinheiro como consultor de crise ao tentar salvar a imagem do ex-
presidente da CBF Ricardo Teixeira, foi quem redigiu os discursos de
posse de Arthur Lira como presidente da Câmara e, mais recentemente,
de Ciro Nogueira como chefe da Casa Civil. Investigado pela Polícia
Federal no esquema de corrupção montado em torno do petista
Fernando Pimentel, Rosa é amigo íntimo de Ciro – não faz muito tempo,
chegou até a abrigar o agora ministro em sua casa, em Brasília, por um
período. Além de escrever os discursos mais importantes, ele também
tem ajudado a desenhar as estratégias do Centrão na relação com o
governo Bolsonaro – o que deveria deixar o presidente preocupado, diga-
se.

Foto: Isac
Nóbrega/PR
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A posse
de Ciro: discurso encomendado ao consultor
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RUYGOIABA
Que saudade daquele bar horrível
20.08.21

Como paulistano da Vila Madalena — geralmente assintomático —,


sempre achei que um dos traços distintivos dos meus queridos amigos
cariocas era lamentar o fechamento de bares horríveis, coisa que em
geral acontece uns 20 anos depois de a vigilância sanitária não ter tomado
as providências cabíveis. O lugar X é uma pocilga (literalmente, no caso
dos banheiros), comida e bebida são ruins e caras, os garçons te atendem
mal (isso na hipótese de perceberem a sua presença), o próprio lugar está
meio às moscas há anos graças a todas essas qualidades e, de bônus,
ainda tem um frequentador no papel de voyeur dos clientes que vão ao
mictório — mas basta anunciarem o fechamento para os cariocas virem
com “oooh, meu Deus, que tristeza, é o FIM DE UMA ERA” .

De fato, às vezes interdição da vigilância sanitária é pouco: havia um lugar


no Leblon que servia aos clientes a coisa mais hedionda e incomível já
chamada de “pizza” em todos os tempos. Se os italianos não fossem um
povo muito tolerante, teriam rompido relações ou, no mínimo, chamado
seu embaixador no Brasil “para consultas”. Quando anunciaram o
fechamento, vieram com o mesmo papo de “fim de uma era”,
acrescentando que se tratava de um “reduto da boemia carioca nos anos
80” — o que só comprova que essa tal boemia carioca dos anos 80 estava
entupida demais de pó para ter alguma noção de qualquer coisa.

O fato é que paguei a minha má língua paulistana: bastou anunciarem o


suposto fechamento da Mercearia São Pedro, na supracitada Vila
Madalena, para que minhas timelines nas redes virassem um muro das
lamentações de posts sentimentais e poesia ruim sobre o lugar.

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Escrevi “suposto” porque há controvérsias: um dos sócios disse que vai
fechar, mas o irmão dele, também sócio, negou. Diga-se, aliás, que nunca
achei a Mercearia ruim: só superestimada, graças à turma de escritores
(invariavelmente autocongratulatórios, geralmente medíocres) que
transformou o lugar em point e permitiu aos seus donos vender por 15
reais cerveja meia-boca que você encontra em qualquer mercado por 6.

(A história não confirmada é que o bar e outros cinco sobrados vizinhos


seriam demolidos para a construção de um prédio de luxo no bairro, o
que me parece bastante lamentável: mas juro a vocês que, de tanto ler
comentários na linha “é a força da grana que ergue e destrói coisas belas” ,
fiquei com ganas de pegar eu mesmo uma picareta, derrubar tudo — com
os clientes dentro — e jogar sal nas ruínas, torcendo para que construam
no lugar o arranha-céu de estilo dubaiano mais cafona e ostentatório
possível. Felizmente, passa rápido. Fecha parêntese.)

Sou obrigado a reconhecer, contudo, que nossa relação afetiva com os


bares ruins é mais ou menos igual à relação afetiva com o país: é uma
porcaria, mas é a NOSSA porcaria — o cenário de muitos acontecimentos
importantes nas nossas vidas lamentáveis. Antonio Candido escreveu que
a literatura brasileira era “um galho de segunda ordem no jardim das
musas”, mas acrescentou: “é ela, não outra, que nos exprime”. O que nos
exprime, e muitas vezes nos espreme, não é o Harry’s Bar lá de Veneza: é
a cerveja superfaturada no bar lotado da Vila Madalena, é a chanchada
(com ou sem pornô), é aquele “quando a gente não pode fazer nada, a
gente avacalha” do Bandido da Luz Vermelha no filme.

O Brasil é um pesadelo do qual estamos tentando acordar: nessas


condições, qualquer bar é uma boia atirada ao náufrago. Só peço
gentilmente que não escrevam na minha boia “você praça acho graça,
você prédio acho tédio”: se eu me afogar, vocês hão de carregar essa
culpa para o resto das suas vidas.

***

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A GOIABICE DA SEMANA

Pensei em dar o troféu desta semana para os especialistas em


Afeganistão que brotaram de repente nas redes sociais, principalmente
aqueles que estão acreditando na conversa do “Talibã moderado”, Talibã
paz e amor, Talibã com Carta ao Povo Afegão, Talibã fiscalmente
responsável com câmbio flutuante e metas de inflação. Mas não teve jeito:
o campeão foi, de novo, o glorioso Exército brasileiro e suas manobras ao
som do tema de “Missão Impossível” para derrubar a casinha do Snoopy.
Eu achava que seria difícil superar o ridículo daquele desfile de latas
velhas, mas fico feliz em constatar que as Forças Armadas se empenham
em bater os próprios recordes do modo mais criativo.

Reprodução/TV
Brasil
Exército em ação: ainda bem que Snoopy e Woodstock não ofereceram
resistência

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