O Trabalho de Campo em Pesquisa-Ação Participativa: Reflexões Sobre Uma Experiência em Andamento Com A Comunidade Negra Dos Arturos e A Associação Cultural Arautos Do Gueto em Minas Gerais
O Trabalho de Campo em Pesquisa-Ação Participativa: Reflexões Sobre Uma Experiência em Andamento Com A Comunidade Negra Dos Arturos e A Associação Cultural Arautos Do Gueto em Minas Gerais
O Trabalho de Campo em Pesquisa-Ação Participativa: Reflexões Sobre Uma Experiência em Andamento Com A Comunidade Negra Dos Arturos e A Associação Cultural Arautos Do Gueto em Minas Gerais
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Abstract
This paper aims at discussing ways of developing fieldwork, when the ethnomusicological study
is carried out according to the perspectives of a participatory action research. It focuses on the
human relations, which become more intense and dialogical in this type of research. The
importance of considering occasional misunderstandings throughout the process is highlighted,
especially when there is a greater cultural gap between researcher and the people whose music
is being researched, and forms of reducing them are discussed. The examples approached
emerge from a research in progress, which is being developed together with Comunidade Negra
dos Arturos (Black Community of Arturos), located in Contagem, Minas Gerais, Brazil, and the
Associao Cultural Arautos do Gueto (Arautos do Gueto Cultural Association), which is
situated in Morro das Pedras, in Belo Horizonte, Minas Gerais. The text ends with some
considerations about the consequences, for higher education, of an increasing interest in this
mode of shared research, by students.
Este texto uma ampliao do que foi apresentado no V Encontro Nacional da Associao
Brasileira de Etnomusicologia, no Painel intitulado Modos de fazer etnomusicologia: o que
estamos construindo para o futuro? Agradeo Presidente da ABET, Maria Elizabeth
Lucas, diretoria da ABET e comisso organizadora do VENABET, o convite para
participao nesse Painel. Sou grata tambm a Jos Alberto Salgado e Silva pelo convite
para a publicao deste texto. Meus agradecimentos se estendem aos dois pareceristas
annimos por suas valiosas contribuies ao texto.
LUCAS, Glaura. O Trabalho de Campo em Pesquisa-Ao Participativa: Reflexes sobre uma Experincia em Andamento com a Comunidade Negra
dos Arturos e a Associao Cultural Arautos do Gueto em Minas Gerais. Msica e Cultura, vol. 6, p. 45-56, 2011. Disponvel em
<http://musicaecultura.abetmusica.org.br/MeC06-Glaura-Lucas.pdf>.
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Para o antroplogo Wyatt MacGaffey (1986), dilogo de surdos exprime uma situao de
mtua incompreenso numa interao social marcada por distanciamento cultural entre as
partes. Essa expresso foi usada primeiramente por Albert Doutreloux para se referir s
relaes entre colonizadores e colonizados, marcadas por uma profunda ambiguidade, no
Mayombe (Doutreloux, 1967: 261). Prefiro, no entanto, me referir a esse tipo de
comunicao, em que se destaca a mtua incompreenso dos suportes conceituais e
perceptivos que embasam os discursos e demais interaes, como dilogos de malentendidos.
Samuel Arajo, por exemplo, prope a expresso trabalho acstico, que nos ajuda a
desconstruir os condicionamentos colados ao termo msica no uso dominante, vendo-a assim
como uma prtica que origina-se do processo abstrato de se trabalhar o tempo
acusticamente (Arajo, 1992: 217, traduo minha).
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Ver Vincenzo Cambria (2008) para uma reflexo interessante sobre essas interaes sob a
tica da noo de dilogo.
Ver, por exemplo, Arajo, S. (2004), Arajo, S. et al (2006, 2007), Cambria, V. (2004).
Exemplos de, e reflexes sobre processos compartilhados de pesquisa e ao participativa
encontram-se tambm em Lucas, G. (2006), Marques, F. (2008), e Tugny R. (2009a e
2009b).
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Dentre os resultados, esto tambm um texto final escrito a vrias mos e a construo
coletiva
de
um
blog
contendo
registros
desse
processo
(http://arturosfilhosdezambi.blogspot.com/). O documentrio continua em processo de
produo.
As reflexes em torno dos objetivos da pesquisa mais ampla incluem discusses acerca das
diferentes interpretaes das noes de memria, tradio e histria. Essas discusses, no
entanto, extrapolam os objetivos desta apresentao sobre as aes compartilhadas com os
grupos parceiros da pesquisa.
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Essa uma etapa tradicional da Festa da Abolio 10, que acontece no adro da igreja,
com a participao de representantes de vrios setores da sociedade, dentre eles o(a)
prefeito(a), vereadores, membros da igreja, reis e rainhas do Reinado, vrias guardas e o
pblico em geral. Sendo realizada em espao de grande visibilidade, essa etapa era alvo
dos mais frequentes de interferncia externa. Membros da Prefeitura, interessados no
potencial turstico do evento, alm de artistas e intelectuais vinham pressionando a
comunidade a modificarem essa encenao, considerada ingnua tanto esteticamente
quanto em seu contedo. Com efeito, o questionamento em torno dos smbolos oficiais,
como a figura da princesa Isabel e o 13 de maio, s mais recentemente vem
repercutindo entre os Arturos, principalmente os das geraes mais jovens, quanto
concepo dos significados da festa. Em seus discursos pblicos, esses jovens realam a
importncia do evento como espao de denncia contra a discriminao racial e de
reivindicao de condies de vida mais dignas para a populao negra, por exemplo.
Por outro lado, para os mais velhos, o mais importante a homenagem que prestam a
seus antepassados que viveram a escravido, e aos fatos mtico-histricos que
conformam, juntamente com a memria dos relatos dos familiares que os antecederam,
o imaginrio de suas origens, daquilo que os leva a serem congadeiros no mundo de
hoje. Importante nesse sentido o entendimento de que houve a ao de Nossa Senhora
do Rosrio e dos antepassados sobre a Princesa Isabel para a assinatura da lei urea.
Portanto, os mais velhos no abrem mo do modelo a que esto habituados: Certo ou
errado, assim que a gente sempre fez, nos revelou o capito regente de Contagem,
Seu Antnio Maria da Silva. Dessa forma, a cada ano, diferentes atores e atrizes
propunham novos dilogos e representaes, mais politicamente corretos e mais
saborosos s exigncias estticas de parte do pblico. Porm, acabavam por entrar no
esquecimento, no sendo mantidos para o ano seguinte, seja por no se apresentarem
significativos e portanto passveis de serem includos no conjunto de etapas do evento
tradicional, seja pelo carter passageiro da atuao desses agentes externos junto
comunidade. At que os prprios Filhos de Zambi criaram uma verso contestando o
papel da Princesa Isabel, em projeto desenvolvido com o Grupo Trama de teatro,
atuante em Belo Horizonte, o que despertou o interesse de muitos na Comunidade, dada
a sua relevncia no movimento da tradio.
Trata-se portanto de uma questo bastante delicada, na medida em que evidencia
tenses relativas s diferenas de sentido e de concepo entre geraes, o que no
entanto algo normalmente verificvel na vivncia de vrias tradies culturais ao
longo de seu tempo histrico. Neste caso especfico, os lderes administrativos da
Comunidade dos Arturos convidaram algumas pessoas da irmandade e outras com longa
vivncia nos processos comunitrios, para juntos avaliarem a incluso da nova proposta
de encenao da escravido e da assinatura da Lei urea, e seu impacto no ritual como
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A Festa da Abolio (ou da Libertao) realizada pelos Arturos h muitos anos, como
forma de rememorao da abolio da escravatura no pas. Antigamente, tratava-se de
celebrao interna, em que os Arturos, reunidos nas guardas, hasteavam mastros em honra
aos antepassados escravizados. Embora os mastros ainda sejam hasteados anualmente no dia
13 de maio, a festa assumiu grandes propores a partir da dcada de 1970, quando passou a
ser patrocinada pela Prefeitura Municipal de Contagem. Em funo da importncia e do
papel do antepassado na experincia espiritual dos congadeiros, essa festa, embora a
princpio de carter cvico, carrega sentidos espirituais profundos para eles. Ver Lucas (2005,
p. 192-195).
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dos Arturos e a Associao Cultural Arautos do Gueto em Minas Gerais. Msica e Cultura, vol. 6, p. 45-56, 2011. Disponvel em
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Num contexto de pesquisa assim, desafios e situaes inditas decorrentes dos dilogos
entre modos distintos de pensar e de fazer no so incomuns. Por vezes, o(a)
pesquisador(a) convidado(a) a aprender a operar com categorias tericas e
metodolgicas nem sempre familiares, sob a tica acadmica, e conter impulsos de
impor mtodos naturalizados pelo condicionamento de sua prpria formao e
concepo.
Num primeiro exemplo, ambas as demandas revelaram uma necessidade dos grupos de
se engajarem com aes e procedimentos mais prximos das atuaes profissionais
formais de transmisso de conhecimento, tais como organizar oficinas e sistematizar a
metodologia de ensino. Entretanto, nos dois casos, o processo de formalizao das
dinmicas de ensino-aprendizagem realou a importncia para eles da manuteno e
reproduo de mtodos e critrios de transmisso mais prprios da oralidade, mais
globais e inter-relacionados. Para os Arturos, por exemplo, no faz sentido uma oficina
de percusso isolada da de dana, ou ensinar separadamente os instrumentos da Folia de
Reis, nos convidando a um exerccio criativo na montagem das oficinas e na preparao
dos professores externos, mais habituados ao hbito da fragmentao nos processos de
ensino-aprendizagem. J em relao aos Arautos do Gueto, o tocar bem depende de um
sentimento de auto-estima e auto-confiana que conscientemente estimulado pelos
professores do projeto atravs de uma atitude de respeito, afeto e interesse por cada
aluno individualmente, se tornando esses, elementos fundamentais no mbito da
metodologia de construo da aprendizagem musical.
Alm dessas questes que evidenciam uma viso holstica dos contextos em que as
msicas se inserem e da relao dessa viso com os processos de transmisso de
conhecimentos prprios da oralidade, um outro fator importante que emerge
constantemente diz respeito especificamente comunidade dos Arturos, em funo da
especificidade dos modos de ser e de pensar provenientes da herana ancestral, que se
projeta nos modos de fazer e assim sobre a pesquisa em geral. Tudo que realizam e
promovem em prol da comunidade est calcado na experincia da conexo com os
antepassados, no papel fundamental do tambor nesse processo, e na compreenso da
interveno dos antepassados e de Nossa Senhora do Rosrio no cotidiano e no futuro
do grupo familiar. Assim, a percepo que tm da prpria presena desta pesquisadora
junto comunidade, se d a partir dessa concepo, metaforicamente traduzida como
mais uma conta do rosrio, uma imagem que tambm remete a relaes coletivas menos
hierarquizadas, e a um conjunto de inter-relaes, das quais os antepassados tambm
participam. A importncia fundamental dessa noo e dessa experincia observa-se no
fato de que todas as reunies para esses e outros projetos, e tambm certos cursos,
acontecem dentro da capela, sob os olhares e auxlio dos antepassados cujos retratos
esto pendurados no altar junto s imagens dos santos. Entremeados s discusses
verificam-se atos individuais de f, como beijar o tero dependurado do altar e fazer o
sinal da cruz, e/ou oraes individuais ou coletivas no incio e no fim dos trabalhos.
Essa concepo portanto permeia todo e qualquer processo de ao e de pesquisa
conjunta, constituindo a principal referncia terica a orientar seus resultados. Reala
ainda a delicadeza das relaes e a grande responsabilidade de todos com as
conseqncias das aes que sero implementadas com sua contribuio.
A partir dessas reflexes, gostaria de finalizar tecendo algumas consideraes sobre o
processo de pesquisa de campo compartilhado, pensando nas implicaes para os cursos
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de graduao e ps-graduao do interesse crescente dos alunos pela pesquisa aoparticipativa, relativamente formao desses futuros etnomusiclogos, no que se refere
ao corpo a corpo no campo, sobretudo quando este envolve um maior distanciamento
cultural.
Para o pesquisador, ou aluno-pesquisador, a experincia compartilhada se apresenta
como potencialmente bem mais rica e complexa em termos de interao social, em se
comparando com modelos mais tradicionais da pesquisa interpretativa. No entanto, esse
dilogo vai ser to mais profundo, quanto mais atento o pesquisador estiver para a
qualidade das habilidades interpessoais nesse relacionamento. Analogamente s
conexes estabelecidas pelos Arautos para o sucesso no processo de ensinoaprendizagem, realo igualmente a importncia de se discutirem intensamente com os
alunos-pesquisadores as questes de tica e de respeito, sempre fundamentais; de se
desenvolverem as habilidades interpessoais e interculturais que partem de uma
ampliao da escuta e do olhar, e de se atentar para que contenham o impulso de um
julgamento ou interpretao imediata e precipitada, baseados nos condicionamentos
culturais naturalizados do pesquisador. Acredito que, dessa forma, estaro mais aptos a
ouvir e a atuar com os grupos com que se constroem conhecimentos, reconhecendo
eventuais diferenas conceituais e perceptivas e identificando os modos de pensar que
se configuram como categorias analticas prprias, para possibilitar enfim trocas e
dilogos de entendimentos mtuos.
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