Desenvolvimento Nacional
Desenvolvimento Nacional
Desenvolvimento Nacional
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pelo art. 184 do Código Penal.
DESENVOLVIMENTO
NACIONAL
por uma agenda
propositiva e inclusiva
Fabrício Motta
Emerson Gabardo
Coords.
EDITORA ÍTHALA
CURITIBA – 2020
SUMÁRIO
Apresentação...................................................................................................................15
Fabrício Motta
PARTE I
PARTE II
TEXTOS VENCEDORES DO CONCURSO DE ARTIGOS JURÍDICOS
Primeiro Lugar
A utilização de inteligência artificial na atividade regulatória: uma proposição de
regulação inteligente em favor do desenvolvimento nacional..........................................341
William Ivan Gallo Aponte | Rafaella Nátaly Fácio
Segundo Lugar
Hércules, o gestor.........................................................................................................361
Francisco Arlem de Queiroz Sousa
Segundo Lugar
O lobby como facilitador da decisão pública satisfatória................................................381
Gustavo Martinelli
Terceiro Lugar
O marco regulatório do saneamento no Brasil e o impacto nas políticas de saneamento
dos municípios da região norte de Santa Catarina..........................................................399
Daniel Wagner Heinig | Ana Paula Myszczuk
PARTE III
RESUMOS DE EXPERIÊNCIAS INOVADORAS EM GESTÃO PÚBLICA
O uso das novas tecnologias nos serviços públicos: a experiência do município de Pato
Branco (PR) no ranking das cinco principais smart cities de médio porte do Brasil........425
Bárbara Dayana Brasil
PARTE IV
RESUMOS DE COMUNICADOS CIENTÍFICOS
A Lei de Improbidade Administrativa: a busca por uma maior intensidade nas penas......475
Guilherme Gabriel Tiago Gomes Gonçalves
Governança corporativa nas sociedades de economia mista: o que faltou à Petrobras?.. 500
Ludmyla Rocha Lavinsky
Hércules, o gestor.........................................................................................................556
Francisco Arlem de Queiroz Sousa
Fabrício Motta
Presidente do Instituto Brasileiro de Direito Administrativo (2017-2019)
Conselheiro do Tribunal de Contas dos Municípios do Estado de Goiás
Doutor em Direito do Estado (USP) e mestre em Direito Administrativo (UFMG)
Professor permanente do Programa de Pós-Graduação em Direito e
Políticas Públicas (Faculdade de Direito da Universidade Federal de Goiás)
PARTE I
TEXTOS DOS
PROFESSORES
PARTICIPANTES
O dever de erradicar a pobreza e o direito ao
desenvolvimento como parâmetro de avaliação
dos Tribunais de Contas: acórdão de parecer
prévio n. 287/18 – TCE-PR
1 INTRODUÇÃO
1
No exercício de sua competência constitucional o TCE elaborou a peça ‘Acórdão de Parecer Prévio’, que corres-
ponde à elaboração técnica das atribuições administrativas atribuídas ao Chefe do Poder Executivo, na avaliação
quanto às despesas obrigatórias, índices constitucionais, obrigações legais e planejamento. Na oportunidade de
apreciação das contas do exercício de 2017 a Relatoria do TCE aprovou, mediante Acórdão de Parecer Prévio,
anexar à decisão o Caderno Temático referente aos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável – ODS. PARANÁ.
TCE-PR. Contas do governador: exercício 2017. Acordão de parecer prévio n. 187/18. Curitiba: TCE-PR, 2018.
Disponível em: https://www3.tce.pr.gov.br/contasdogoverno/2017/pdfs/parecerprevio.pdf. Acesso em: 2 dez. 2019.
20 Adriana da Costa Ricardo Schier | Saúl Hercán Kritski Báez
2
ONU. Resolução n. 41/128, de 1986. Decide aprobar la Declaración sobre el derecho al desarrollo. 97ª sesión
plenaria, 4 dic. 1986. Disponível em: https://undocs.org/es/A/RES/41/128. Acesso em: 2 dez. 2019. Para Melina
Girardi Fachin, o direito ao desenvolvimento necessita ser observado à luz dos princípios da Constituição e dos
tratados internacionais sobre direitos humanos, atribuindo-lhe natureza de direito fundamental. FACHIN, Melina
Girardi. Direito fundamental ao desenvolvimento: uma possível ressignificação entre a Constituição Brasileira e
o Sistema Internacional de Proteção dos Direitos Humanos. In: PIOVESAN Flávia; SOARES, Inês Virgínia Prado
(Coord.). Direito ao desenvolvimento. Belo Horizonto: Fórum, 2010. p. 180.
3
PNUD. Relatório do Desenvolvimento Humano 2018. New York: PNUD, 2018. Disponível em: https://www.br.un-
dp.org/content/brazil/pt/home/library/idh/relatorios-de-desenvolvimento-humano/relatorio-do-desenvolvimento-
-humano-2018.html Acesso em: 9 dez. 2019. Milena Girardi Fachin assevera que se vive no Brasil uma aporia, já
que, “do ponto de vista do crescimento econômico, o País ocupa os primeiros lugares do ranking, mas do ponto
de vista do desenvolvimento possui níveis muito baixos, em comparação com os países latino-americanos.”
FACHIN, Milena Girardi. Direitos humanos e desenvolvimento. Rio de Janeiro: Renovar, 2015. p. 172.
4
PNUD. Relatório do Desenvolvimento Humano 2019. New York: PNUD, 2019. Disponível em: http://hdr.undp.org/
sites/default/files/hdr2019.pdf. Acesso em: 9 dez. 2019.
5
Os relatórios apresentados pelo PNUD demonstram os índices de desenvolvimento humano de cada país, sendo
apresentados dados referentes desde a expectativa de vida, o acesso à água potável, à educação, alimentação,
renda etc.
O dever de erradicar a pobreza e o direito ao desenvolvimento... 21
6
Como se sabe, os fundos visam a repartição específica ou vinculada de recursos para o objetivo determinado e,
ainda, a gestão desses recursos pelo ente da federação mediante a participação da sociedade civil.
7
Vários outros Estados já criaram seus Fundos específicos, com dados disponíveis on-line. DOOTAX. FECP, FCP OU
FECOEP – Fundo Estadual de Combate à Pobreza. S.d. Disponível em: https://www.dootax.com.br/fecp-fcp-ou-fe-
coep-fundo-estadual-de-combate-a-pobreza/. Acesso em: 10 dez. 2019. Acesso em: 9 dez. 2019.
22 Adriana da Costa Ricardo Schier | Saúl Hercán Kritski Báez
8
FOLLONI, André. A complexidade ideológica, jurídica e política do desenvolvimento sustentável e a necessidade
de compreensão interdisciplinar do problema. Revista Direitos Humanos Fundamentais, Osasco, n. 1, p. 63-91,
jan./jun. 2014. p. 75.
9
Uma das primeiras tentativas de superação do PIB como índice capaz de identificar o grau de desenvolvimento
de um país, segundo José Eli da Veiga, deu-se em 1972, no Butão, país da região do Himalaia. Tal experiência
embasava-se no conceito de Felicidade Interna Bruta (FIB), índice medido a partir de quatro referenciais: a promo-
ção do desenvolvimento social e igualitário; o alcance dos valores culturais; a conservação do meio ambiente e o
estabelecimento da governança. VEIGA, José Eli da. Desenvolvimento sustentável: o desafio do século XXI. 3. ed.
Rio de Janeiro: Garamond, 2008. p. 18-19.
10
SEN, Amartya. Desenvolvimento como liberdade. São Paulo: Companhia das Letras, 2010. p. 24-25. Há quem
sustente, de forma ainda mais crítica, que não haveria jamais possiblidade de que os países não desenvolvidos,
segundo este referencial econômico, alcançassem os países desenvolvidos. Isso porque, o crescimento econô-
mico de tais países teria sido alcançado pelo colonialismo e pelo imperialismo. Assim, sem tais condições, sem
uma periferia dominada, seria impossível chegar aos mesmos índices. FOLLONI, André. A complexidade ideológi-
ca, jurídica e política [...]. Op. cit.
11
Sem embargo, no âmbito da Organização dos Estados Americanos, a Carta da Organização dos Estados, lan-
çada em 1948, na Cidade do México, já previa a promoção do desenvolvimento econômico, social e cultural, a
O dever de erradicar a pobreza e o direito ao desenvolvimento... 23
só foram incluídas em 2010, passando a considerar dados acerca da saúde – referências a uma vida longa e
saudável – e o acesso que os indivíduos possuem à educação. Os índices tratados anteriormente (média de anos
de educação para adultos e expectativa de anos de escolaridade para crianças) e o padrão de vida (renda), são
avaliados a partir da análise da Renda Nacional Bruta per capita, mais a análise do poder de paridade de compra.
IBGE. Contas nacionais. Renda nacional bruta – Brasil 2011-2016. Disponível em: https://brasilemsintese.ibge.
gov.br/contas-nacionais/renda-nacional-bruta.html. Acesso em: 10 dez. 2019.
A renda nacional bruta é o valor dos pagamentos feitos aos indivíduos detentores dos fatores de produção, cujos
serviços foram utilizados na elaboração do Produto Nacional Bruto. Isto é, RNB = PNB (o PNB seria o PIB + as
rendas enviadas e recebidas do exterior). O poder de paridade de compra é medido em dólares.
PNUD. O que é o IDH. S.d. Disponível em: http://www.br.undp.org/content/brazil/pt/home/idh0/conceitos/o-que-e-
-o-idh.html. Acesso em: 10 dez. 2019.
24 Adriana da Costa Ricardo Schier | Saúl Hercán Kritski Báez
17
Ver, sobre tais índices, o documento da ONU: “A verdadeira riqueza das nações: vias para o desenvolvimento
humano”, lançado em Nova York, em novembro de 2010. PNUD. Relatório de Desenvolvimento Humano 2010.
New York: PNUD, 2010. Disponível em: https://www.undp.org/content/dam/brazil/docs/RelatoriosDesenvolvimen-
to/undp-br-PNUD_HDR_2010.pdf. Acesso em: 8 set. 2017.
18
HACHEM, Daniel Wunder. A noção constitucional de desenvolvimento para além do viés econômico: reflexos
sobre algumas tendências do direito público brasileiro. Revista de Direito Administrativo & Constitucional, Fórum,
Belo Horizonte, n. 53, p. 152-153, jul./set. 2013.
O dever de erradicar a pobreza e o direito ao desenvolvimento... 25
19
FREITAS, Juarez. Sustentabilidade: direito ao futuro. Belo Horizonte: Fórum, 2016. p. 41. No mesmo sentido:
SACHS, Ignacy. Desenvolvimento: includente, sustentável, sustentado. Rio de Janeiro: Garamond, 2008. p. 15-16;
GOMES, Eduardo Biacchi; MASSUCHIN, Barbara Andrzejewski. Direitos fundamentais e direito ao desenvolvimen-
to. A Conferência de Copenhague: uma nova tentativa de cooperação internacional para uma política climática
eficiente. A&C Revista de Direito Administrativo & Constitucional, Belo Horizonte, n. 41, p. 95-121, jul./set. 2010.
20
SARLET, Ingo Wolfgang. A eficácia dos direitos fundamentais: uma teoria geral dos direitos fundamentais na
perspectiva constitucional. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2018. p. 92-93. No mesmo sentido: OLIVEIRA,
Gustavo Justino de. O contrato de gestão na Administração Pública brasileira. 2005. 522 f. Tese (Doutorado em
direito) – Faculdade de Direito, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2005. p. 110. No mesmo sentido: GABAR-
DO, Emerson. Interesse público e subsidiariedade: o Estado e a sociedade civil para além do bem e do mal. Belo
Horizonte: Fórum, 2009. p. 246; HACHEM, Daniel Wunder. A noção constitucional de desenvolvimento para além
do viés econômico: Op. cit., p. 154.
21
SCHIER, Adriana da Costa Ricardo. Fomento: Administração Pública, direitos fundamentais e desenvolvimento.
Curitiba: Íthala, 2019. p. 83.
22
São eles: 1) acabar com a fome e a miséria; 2) oferecer educação básica de qualidade para todos; 3) promover
a igualdade entre os sexos e a autonomia das mulheres; 4) reduzir a mortalidade infantil; 5) melhorar a saúde
das gestantes; 6) combater a AIDS, a malária e outras doenças; 7) garantir qualidade de vida e respeito ao meio
ambiente e 8) estabelecer parcerias para o desenvolvimento. ODM BRASIL. Os objetivos do desenvolvimento do
milênio. S.d. Disponível em: http://www.odmbrasil.gov.br/os-objetivos-de-desenvolvimento-do-milenio. Acesso
em: 10 dez. 2019.
26 Adriana da Costa Ricardo Schier | Saúl Hercán Kritski Báez
23
AZEVEDO, Márcia R. Objetivos do desenvolvimento sustentável: desafios à participação do Brasil na governança
global. S.d. Disponível em: https://www.cnj.jus.br/wp-content/uploads/2019/05/95b77016c8e9c025ead845cc-
633f3da5.pdf. Acesso em: 10 dez. 2019.
24
GARCIA, Denise Schimitt Siqueira; GARCIA, Heloise Siqueira. Objetivos de Desenvolvimento do Milênio e as novas
perspectivas do desenvolvimento sustentável pela Organização das Nações Unidas. Revista da Faculdade de
Direito da UFRGS, Porto Alegre, v. esp., n. 35, p. 192-206, dez. 2016.
25
Tais objetivos tratam de temas como segurança alimentar e agricultura, saúde, educação, igualdade de gênero,
redução das desigualdades, energia, água e saneamento, padrões sustentáveis de produção e de consumo, mu-
dança do clima, cidades sustentáveis, proteção e uso sustentável dos oceanos e dos ecossistemas terrestres,
crescimento econômico inclusivo, infraestrutura e industrialização, governança, e meios para de implementação
de ações para o seu alcance, notadamente através de parcerias. BRASIL. Itamaraty. Ministério das Relações Exte-
riores. Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS). S.d. Disponível em: http://www.itamaraty.gov.br/pt-BR/
politica-externa/desenvolvimento-sustentavel-e-meio-ambiente/134-objetivos-de-desenvolvimento-sustentavel-
-ods. Acesso: 2 dez. 2019.
26
DEATON, Angus. A grande saída: saúde, riqueza e as origens das desigualdades. 1. ed. Rio de Janeiro: Intrínseca,
2017. p. 225.
27
A noção de pobreza tem sido objeto de inúmeros debates na história recente e sua compreensão se faz importante
para tornar possível promover medidas e políticas para sua erradicação. Carla Abrantkoski Rister destaca que o
conceito de pobreza e os métodos de sua aferição podem ser compreendidos em dois sentidos: a pobreza objetiva
e a pobreza subjetiva. O método para aferição da pobreza objetiva seria aquela que diz respeito ao levantamento
de dados com critério científico, sem levar em consideração a opinião ou o sentimento dos envolvidos. Por sua
vez, o método para aferição da pobreza no sentido subjetivo estaria relacionado com a valoração do sentimento
daqueles que se encontram em situação de vulnerabilidade. RISTER, Carla Abrantkoski. Direito ao desenvolvimen-
to: antecedentes, significados e consequências. Rio de Janeiro: Renovar, 2007. p. 339.
O dever de erradicar a pobreza e o direito ao desenvolvimento... 27
a falta de acesso a serviços públicos essenciais, tais como educação e saúde.”.28 Tal con-
ceituação contrasta com a definição do que viria a ser conhecido como pobreza relativa, que
diz respeito à análise subjetiva da pobreza considerada a correlação da renda auferida em
comparação com o padrão razoável de determinada sociedade.29
Tais noções derivaram do critério utilizado pelo Banco Mundial para medição da po-
breza. Já no ano de 1990 tal instituição passou a considerar como linha de pobreza mundial
internacional a aferição de renda de até US$ 1,00 por dia ou US$ 370,00 por ano. O uso
desse padrão vem a ser conhecido como método monetário.
Jeffrey D. Sachs30 pondera as deficiências de tal método, seja porque não estabelece
uma real noção a respeito da pobreza, seja porque desconsidera uma definição específica
para analisar a satisfação das necessidades básicas, sejam elas as de alimentação, acesso
à água potável, ao saneamento básico, a moradia, a serviços de saúde pública, ao ensino
etc. Ademais, acentua o autor que tal critério deixa de considerar as diferentes realidades
vivenciadas em países com culturas e histórico de desenvolvimento distintos vez que a base
da análise estaria centrada na renda per capita31. Soma-se a isso as mudanças nos padrões
utilizados pelo Banco Mundial que, segundo Angus Deaton32, resultam em certo questiona-
mento quanto ao fato do próprio banco ser o principal agenciador de dados que tratam da
pobreza.
Amartya Sen, por outro lado, entende a pobreza como a privação do indivíduo em
exercer suas capacidades básicas. Ele destaca que a pobreza não se refere apenas à carên-
cia de renda ou a uma renda baixa, mas sim à ausência de possibildidades do sujeito em
lograr exercer livremente suas capacidades.33
Com base em tais referenciais foi lançado, em 1997, o Índice de Pobreza Huma-
na – IPH, que estabelece como critério de medição da pobreza as privações calculadas
mediante variáveis, tais como: a expectativa de vida inferior a quarenta anos; percentual de
alfabetização de adultos; acesso ao serviço de saúde e ao percentual de crianças menores
de cinco anos com peso abaixo do recomendado. Assim, conforme leciona Adriana Serra, o
Índice de Pobreza Humana (IPH), considerando os dados relativos ao impacto da pobreza na
28
SERRA, Adriana Stankiewicz. Pobreza multidimensional no Brasil rural e urbano. 2017. 161p. Tese (Doutorado) –
Instituto de Economia, Universidade Estadual de Campinas, Campinas, São Paulo, 2017. p. 20.
29
SERRA, Adriana Stankiewicz. Pobreza multidimensional no Brasil rural e urbano. Op. cit.
30
SACHS, Jeffrey D. O fim da pobreza: como acabar com a miséria mundial nos próximos vinte anos. São Paulo:
Companhia das Letras, 2005. p. 46.
31
Jeffrey D. Sachs irá destacar que a compreensão da desigualdade existente no mundo necessita observar os
mecanismos de medição dessas desigualdades: “Há muitas definições, bem como debates intensos sobre o
número exato de pobres, onde eles vivem e como sua quantidade e suas condições econômicas mudam ao longo
do tempo. É útil começar com o que todos estão de acordo e depois distinguir três graus de pobreza: pobreza
extrema (ou absoluta), pobreza moderada e pobreza relativa” SACHS, Jeffrey D. O fim da pobreza: Op. cit., p. 46.
32
SACHS, Jeffrey D. O fim da pobreza: Op. cit., p. 230
33
SEN, Amartya. Desenvolvimento como liberdade. Op. cit., p. 36.
28 Adriana da Costa Ricardo Schier | Saúl Hercán Kritski Báez
34
SERRA, Adriana Stankiewicz. Pobreza multidimensional no Brasil rural e urbano. Op. cit., p. 23.
35
SERRA, Adriana Stankiewicz. Pobreza multidimensional no Brasil rural e urbano. Op. cit.
36
PNUD. ¿Qué es el Índice de Pobreza Multidimensional? S.d. Disponível em: http://hdr.undp.org/en/node/2515.
Acesso em: 10 jun. 2019.
37
WORLD BANK. Brasil. S.d. Disponível em: https://data.worldbank.org/country/brazil?locale=pt. Acesso em: 10
dez. 2019.
38
“No Brasil, em relação à medida de US$ 5,50 PPC diários, 26,5% da população, ou quase 55 milhões de pessoas,
viviam com rendimento inferior a esta linha em 2017 (cerca de R$ 406,00 mensais), diante de 25,7% da popula-
ção em 2016. A maior parte dessas pessoas (mais de 25 milhões) estava na Região Nordeste, enquanto na Re-
gião Centro-Oeste havia menos de 3 milhões de pessoas. O Nordeste era também a região com maior percentual
de sua população com renda inferior a esta linha, 44,8%, ao passo que esta proporção era de 12,8% no Sul. Na
Região Sudeste, por sua vez, houve aumento de 1,3 pontos percentuais, passando de 16,1% para 17,4% da po-
pulação”. IBGE. Síntese de indicadores sociais: uma análise das condições de vida da população brasileira: 2018.
Rio de Janeiro: IBGE, 2018. p. 57. Disponível em: https://biblioteca.ibge.gov.br/visualizacao/livros/liv101629.pdf
Acesso em: 10 dez. 2019.
O dever de erradicar a pobreza e o direito ao desenvolvimento... 29
39
IBGE. Síntese de indicadores sociais: Op. cit.
40
IPEA – Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada. Erradicando a pobreza e promovendo a prosperidade em um
mundo em mudança – subsídios ao acompanhamento dos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável. Brasí-
lia: Ipea, 2018. Disponível em: http://www.ipea.gov.br/portal/index.php?option=com_content&view=article&i-
d=32558&Itemid=432. Acesso em: 10 jun. 2019.
41
GTSC A2030. III Relatório luz da sociedade civil da Agenda 2030 de desenvolvimento sustentável: Brasil. 2019.
Disponível em: https://brasilnaagenda2030.files.wordpress.com/2019/09/relatorio_luz_portugues_19_final_v2_
download.pdf. Acesso em: 10 dez. 2019.
42
SENGUPTA, Arjun. O direito ao desenvolvimento como um direito humano. Revista Social Democracia Brasileira,
n. 68, p. 64-84, mar. 2002. p. 72. No mesmo sentido, SEN, Amartya sustenta um papel vital para o Estado no pro-
cesso de desenvolvimento, já que “a expansão dos serviços de saúde, educação, seguridade social, etc. contribui
diretamente para a qualidade de vida e seu florescimento”. SEN, Amartya. Desenvolvimento como liberdade. Op.
cit., p. 191.
30 Adriana da Costa Ricardo Schier | Saúl Hercán Kritski Báez
43
LIMA, Luiz Henrique. Controle externo: teoria e jurisprudência para os Tribunais de Contas. 6. ed. Rio de Janeiro:
Forense, 2015. p. 307.
44
Luiz Henrique Lima destaca que essa evolução da fiscalização dos tribunais de contas convergiu para uma maior
relevância do órgão, de modo a exercer inúmeras atividades vinculadas à sua competência, tais como: levanta-
mento, auditoria, inspeção, acompanhamento e monitoramento. Assim, esclarece que “[...] antes da Constituição
de 1988, as fiscalizações dos Tribunais de Contas restringiam-se a auditorias financeiras e orçamentárias. A partir
da nova Carta, ampliaram-se as dimensões da fiscalização exercida pelo controle externo, cabendo-lhe examinar
os aspectos de natureza contábil, financeira, orçamentária, patrimonial e operacional da gestão pública, sob os
critérios da legalidade, legitimidade, economicidade, eficiência, eficácia e efetividade”. LIMA, Luiz Henrique. Con-
trole externo: Op. cit., p. 308.
45
DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Direito administrativo. 29. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2016. p. 898-899.
O dever de erradicar a pobreza e o direito ao desenvolvimento... 31
[...] visando abandonar a abordagem predominante dos indicadores oficiais, que ten-
dem a ser genéricos e referidos mais a esforço que a resultados, e a incrementar
sua relevância, confiabilidade, operacionalidade e aderência ao quadro de indicadores
globais ou nacionais para acompanhamento da Agenda 2030, sugeriu-se revisão ba-
seada em 8 critérios que poderá ser aprimorada e de alguma forma aproveitada na
elaboração do PPA 2020-2023 do Estado.
46
Importante citar que o Tribunal de Contas da União implantou auditoria coordenada cujo objetivo foi “avaliar
a presença de estruturas de governança no Governo Federal para implementar a Agenda 2030 e a meta 2.4
dos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS) no Brasil e consolidar os resultados com os de outras
onze Entidades Fiscalizadoras Superiores da América Latina e Caribe sobre o mesmo tema.”. Dividido em duas
fases, a fase latino-americana foi coordenada pelo TCU. Tem-se que “Os principais dados e análises dos paí-
ses participantes, quando cabível, foram utilizados em comparação aos resultados nacionais. Um sumário
executivo consolidará os resultados, com vistas a oferecer um panorama regional do nível de preparação dos
governos da América Latina para implementação da Agenda 2030.”. TCU. Acórdão 709/2018/TCU. Processo
n. TC 029.427/2017-7. Data da Sessão: 4/4/2018. Disponível em: https://contas.tcu.gov.br/juris/SvlHighLight?-
key=41434f5244414f2d434f4d504c45544f2d32333032353639&sort=RELEVANCIA&ordem=DESC&ba-
ses=ACORDAO-COMPLETO;&highlight=&posicaoDocumento=0&numDocumento=1&totalDocumentos=1.
Acesso em: 2 dez. 2019.
47
PARANÁ. TCE-PR. Contas do governador: exercício 2017. Objetivos do desenvolvimento sustentável. Curitiba:
TCE-PR, 2018. Disponível em: https://www3.tce.pr.gov.br/contasdogoverno/2017/pdfs/ods.pdf. Acesso em: 14
nov. 2018.
48
ONU. Mainstreaming the 2030 Agenda for Sustainable Development – Reference Guide for UN Country Teams.
2017. Disponível em: https://unsdg.un.org/sites/default/files/UNDG-Mainstreaming-the-2030-Agenda-Reference-
-Guide-2017.pdf. Acesso em: 10 dez. 2019.
49
No caderno temático o Conselheiro relator destaca que “A condução cuidadosa do processo de internalização
pode ser considerada a primeira determinante do sucesso na construção do desenvolvimento sustentável propos-
to pela Agenda 2030; a adaptação dos objetivos globais às realidades nacionais ou subnacionais exige atenção
ao ambiente de planejamento. O planejamento representa a conexão entre os planos e a realidade. No Brasil, o
planejamento no setor público obedece a mandamentos previstos na Constituição Federal (art. 165); as práticas
de elaboração, a organização do conteúdo, e mesmo o nível de detalhamento dos instrumentos de planejamento
32 Adriana da Costa Ricardo Schier | Saúl Hercán Kritski Báez
Pode-se dizer, com base na adoção destes novos parâmetros, que se busca a fis-
calização da fiscalização, pois além das questões gerenciais e de limites constitucionais, o
Tribunal de Contas buscará avaliar a implementação das políticas públicas e dos recursos
a ela destinados, a eficiência dos programas adotados tomando-se como referência para o
controle o alcance dos Objetivos delineados na Agenda 2030.
Assim, tem-se que tal documento consiste na propositura de que a Corte de Contas
do Estado do Paraná promova Relatório no sentido de mapear as condições de implementa-
ção da Agenda 2030 no âmbito estadual. Além de mapear as práticas existentes, o referido
Relatório promove mecanismos de avaliação das políticas adotadas em consonância com
os ODS, demonstrando-se convergência de interesse na atuação do poder público na con-
secução das ODS.
Especificamente em relação ao ODS n. 01, objeto do presente artigo, constou que
“com base nos dados analisados, é possível afirmar que as políticas públicas vigentes e
orçadas em 2017 deixaram de lado alguns aspectos importantes do desenvolvimento sus-
tentável, revelando a necessidade de políticas setoriais específicas que atinjam as metas da
Agenda. Os Objetivos 1 (Erradicação da Pobreza), com 24 iniciativas diretas [consta dentre]
aqueles que concentram a maior quantidade de ações diretamente vinculadas.”.50
Com isso o trabalho realizado pelo TCE não busca simplesmente promover o apon-
tamento de melhorias ou o alerta para a carência de programas efetivos, mas tecer em
conjunto metodologia de acompanhamento das políticas paranaenses no sentido de lograr
cumprir a longo prazo da Agenda 2030.
Estabelece, portanto, critérios de avaliação das políticas existentes, destacando-se a
avaliação do “(i) o grau de maturidade de componentes de mecanismos de Governança do
Centro de Governo, ou seja, das instâncias estratégicas do Poder Executivo para exercer as
tarefas de planejamento de longo prazo, coordenação sinérgica de políticas para o desenvol-
vimento sustentável e monitoramento dos esforços e resultados das políticas públicas, entre
outros componentes; (ii) a vinculação dos Programas Finalísticos do PPA 2016-2019 com
os ODS e o volume de recursos da LOA 2017 associado a essas ações; e (iii) a qualidade
dos indicadores de monitoramento oficiais.”.51
dos entes federativos, no entanto, podem variar nas circunstâncias específicas. Os instrumentos básicos de
programação, cuja proposta é formulada pelo poder Executivo, estão sujeitos à aprovação e à proposição de
emendas por parte do Poder Legislativo, devendo, ainda, ser objeto de audiências públicas na fase de elaboração
e de prestação de contas. O PPA deve conter as diretrizes responsáveis por delimitar as ações a serem propostas
anualmente na LDO e na LOA, e sua vigência desencontrada do mandato do Chefe do Poder Executivo consiste
no principal dispositivo contra a solução de continuidade das políticas públicas” PARANÁ. TCE-PR. Contas do
governador: exercício 2017. Objetivos [...]. Op. cit.
50
PARANÁ. TCE-PR. Contas do governador: exercício 2017. Objetivos [...]. Op. cit., p. 54.
51
PARANÁ. TCE-PR. Contas do governador: exercício 2017. Objetivos [...]. Op. cit., p. 69.
O dever de erradicar a pobreza e o direito ao desenvolvimento... 33
4 CONSIDERAÇÕES FINAIS
REFERÊNCIAS
52
Os cadernos que tratam a respeito do desenvolvimento sustentável e a aplicação das ODS para a Agenda 2030
da ONU, podem ser resumidos com o seguinte texto: “As recomendações do Relatório ODS Paraná são dirigidas
ao Governo Estadual e abordam o estabelecimento de ações estratégicas para a elaboração do Plano de Desen-
volvimento Sustentável do Estado, o fortalecimento da função planejamento e coordenação geral, assim como
das atribuições de pesquisa aplicada; a incorporação das metas dos ODS no PPA 2020-2023 e nos Orçamentos;
a aproximação dos indicadores de desempenho dos Programas aos indicadores globais, a alimentação dos sis-
temas de monitoramento e a adoção de ferramentas de acompanhamento; o incremento da participação social
nos processos orçamentários e de monitoramento das políticas públicas, e o apoio às políticas municipais de
desenvolvimento sustentável”
53
Necessário destacar trecho da obra de Amartya Sen: “Os papeis instrumentais da liberdade incluem vários com-
ponentes distintos, porém inter-relacionados, como facilidades econômicas, liberdades políticas, oportunidades
sociais, garantias de transparência e segurança protetora” SEN, Amartya. Desenvolvimento como liberdade. Op.
cit., p. 77.
34 Adriana da Costa Ricardo Schier | Saúl Hercán Kritski Báez
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Benjamin Zymler
Mestre em Direito e Estado (UnB)
Ministro do Tribunal de Contas da União
1
DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Direito administrativo. 10. ed. São Paulo: Atlas, 1998. p. 85.
38 Benjamin Zymler
missionário ou autorizatário do serviço público, à luz de poderes que lhe tenham sido
por lei atribuídos para a busca da adequação daquele serviço, do respeito às regras
fixadoras da política tarifária, da harmonização, do equilíbrio e da composição dos in-
teresses de todos os envolvidos na prestação deste serviço, bem como da aplicação
de penalidades pela inobservância das regras condutoras da sua execução.2
As normas instituidoras de tais agências delimitaram sua natureza jurídica. São con-
sideradas autarquias especiais. Assim, por exemplo, a Lei n. 9.427/1996, que criou a Agên-
cia Nacional de Energia Elétrica (Aneel), estabeleceu, em seu art. 1º, que a referida agência
apresenta regime especial e tem por atribuição regular e fiscalizar a produção, transmissão,
distribuição e comercialização de energia elétrica.
Já a Lei n. 9.472/1997, conhecida como Lei Geral das Telecomunicações, ao criar a
Agência Nacional de Telecomunicações (Anatel), por força do ditame constitucional contido
no art. 21, XI, inseriu-a na Administração Pública federal indireta, vinculada ao então Minis-
tério das Comunicações, com a função de regular as telecomunicações, sob o regime de
autarquia especial (art. 8º). O § 2º do mencionado artigo esclarece que o regime especial
decorre da independência administrativa, da ausência de subordinação hierárquica, do man-
dato fixo com estabilidade de seus dirigentes e da autonomia financeira.
Por seu turno, a Lei n. 9.478/1997, que dispôs sobre a política energética nacional
e criou a Agência Nacional de Petróleo (ANP), estabeleceu, em seu art. 7º, que a referida
agência pertence à Administração Pública federal indireta e está vinculada ao Ministério de
Minas e Energia e submetida ao regime de autarquia especial.
Por fim, a Lei n. 10.233/2001 criou a Agência Nacional de Transportes Terrestres
(ANTT) e a Agência Nacional de Transportes Aquaviários (Antaq), tendo estabelecido que
esses entes devem fiscalizar e regular as respectivas áreas de atuação, quais sejam, trans-
portes terrestres e aquaviários. Nos termos do art. 21 do mencionado Diploma legal, foi
estabelecido que tais entidades integram a Administração Pública federal indireta, sendo
vinculadas ao Ministério dos Transportes e submetidas ao regime autárquico especial.
Percebe-se, por conseguinte, que compete às diversas agências regular e fiscalizar
a prestação de serviços públicos ou o exercício de atividade econômica específica (no caso
do petróleo e do gás natural). Integram, ademais, a Administração Pública federal indireta,
estando vinculadas aos Ministérios respectivos. Submetem-se a regime autárquico espe-
cial, notabilizado pela maior autonomia financeira e funcional, independência administrativa
e mandato fixo de seus dirigentes.
2
FIGUEIREDO, Pedro Henrique Poli de. A regulação do serviço público concedido. Porto Alegre: Síntese, 1999.
p. 40.
40 Benjamin Zymler
10, posteriormente substituída pela de n. 27/1998, que dispôs sobre a fiscalização dos pro-
cessos de desestatizações, concessões, permissões e autorizações de serviços públicos.
Em seguida, o TCU editou a Instrução Normativa TCU n. 46/2004, que regulamentou
a fiscalização, pelo Tribunal de Contas da União, dos processos de concessão para explora-
ção de rodovias federais, inclusive as rodovias ou trechos rodoviários delegados pela União
a estado, ao Distrito Federal, a município, ou a consórcio entre eles.
Tendo em vista a inserção no ordenamento jurídico pátrio das parcerias público-
-privadas, o TCU publicou a Instrução Normativa 52/2007, a qual tratou do controle e da
fiscalização de procedimentos de licitação, contratação e execução contratual de Parcerias
Público-Privadas (PPP), a serem exercidos pelo Tribunal de Contas da União.
Finalmente, no dia 20/6/2018, o TCU editou a Instrução Normativa n. 81/2018, que
dispõe sobre a fiscalização dos processos de desestatização. Essa última norma, além de
revogar as Instruções Normativas 27/1998, 46/2004 e 52/2007, consolidou os comandos
constantes dessas normas e apresentou significativas inovações em relação ao modelo an-
teriormente adotado.
Destaco que a Instrução Normativa n. 27/1998 previa o acompanhamento das con-
cessões, permissões e autorizações de serviços públicos em dois momentos distintos,
quais sejam, a fase do acompanhamento da outorga e a do acompanhamento da execução
contratual.
Na fase de execução contratual, a fiscalização verifica o fiel cumprimento das nor-
mas pertinentes e das cláusulas contidas no contrato e nos respectivos termos aditivos fir-
mados com a concessionária, além de avaliar a ação exercida pelo órgão ou entidade federal
concedente ou pela respectiva agência reguladora.
É importante ressaltar que essa metodologia de controle, porque enfatizava a fis-
calização concomitante da atuação do Estado, permitiu, como será visto adiante, a adoção
de ações preventivas e corretivas de extrema relevância. Contudo, havia necessidade de
aprimorar a dinâmica do acompanhamento das desestatizações e racionalizar a fiscalização
a cargo do Tribunal, priorizando os pontos de maior relevância, materialidade e oportunidade
e que apresentem maior risco para a regularidade e economicidade das desestatizações
conduzidas pelo Poder Público.
Dentre as inovações incorporadas, podem-se citar as seguintes:
i) o fim dos múltiplos estágios de acompanhamento dos processos. A experiência
tem demonstrado que alguns estágios de fiscalização se caracterizam por verificações de
documentos e outras formalidades, que passaram a agregar cada vez menos valor aos pro-
cessos de desestatização, diante da consolidação institucional-legal destes;
42 Benjamin Zymler
ii) o envio, por parte dos órgãos gestores, do extrato de planejamento da desesta-
tização com antecedência mínima de 150 dias da data prevista para a publicação do edital.
Esclareço que o referido documento deverá conter as seguintes informações: descrição do
objeto a ser desestatizado, previsão do valor dos investimentos, relevância e localização do
objeto ou empreendimento e cronograma licitatório. O objetivo desta inovação é gerar um
lapso de tempo suficiente para a revisão do planejamento dos trabalhos nas unidades técni-
cas do TCU, com vistas a mobilizar os recursos humanos necessários ao acompanhamento.
Devo ressaltar que as informações contidas em tais extratos são de caráter genérico e não
devem ser confundidas com as que constam dos estudos de viabilidade. Assim sendo, seu
envio não representa ônus significativo para o Poder Executivo, mas proporcionará ganhos
de eficiência para a Corte de Contas; e
iii) o envio da documentação ao Tribunal com antecedência mínima de 90 dias em
relação à publicação do edital licitatório, ampliando-se o prazo previsto nas normas revoga-
das, que era de 30 dias. São até 75 dias para a análise pelas unidades técnicas e 15 dias
para o julgamento, uma vez finalizado o trabalho daquelas. Esclareço que os referidos prazos
começam a fluir a partir do recebimento de todos os estudos de viabilidade e minutas de
documentos que formalizam a desestatização.
A previsão e a ampliação dos prazos mínimos para o envio de informações ao Tri-
bunal visaram permitir que a Corte de Contas aprofunde as análises das modelagens dos
projetos, para induzir o aperfeiçoamento dos arranjos contratuais e favorecer a regular exe-
cução dos serviços.
Dispõe a Constituição Federal, em seu art. 71, que o controle externo da Adminis-
tração Pública federal compete ao Congresso Nacional, com o auxílio do Tribunal de Contas
da União. Os diversos incisos do referido dispositivo relacionam as atribuições da Corte de
Contas, dentre as quais destacam-se: i) o julgamento das contas dos gestores públicos da
Administração direta e indireta; ii) a apreciação, para fins de registro, da legalidade dos atos
de admissão de pessoal, a qualquer título, bem como das concessões de aposentadoria e
pensão na administração indireta; e iii) a realização de inspeções e auditorias nas entidades
da Administração direta e indireta.
Sendo as agências reguladoras entidades autárquicas, ainda que sob regime espe-
cial, o controle direto sobre os administradores das referidas agências decorre diretamente
do texto constitucional. Cabe ao Tribunal, por conseguinte, apreciar os atos de admissão de
pessoal e de concessão de aposentadoria e de pensão dos servidores das agências. Além
disso, os administradores principais têm o dever político de prestar contas dos recursos
geridos em determinado exercício ao TCU. Por fim, a Corte de Contas pode realizar, por
iniciativa própria ou em atendimento a solicitação do Congresso Nacional, auditorias nas
mencionadas entidades, para verificar a regularidade nas áreas contábil, financeira, patrimo-
nial e orçamentária.
Cumpre salientar que, caso sejam constatadas irregularidades que demandem rá-
pida atuação do TCU, deve o processo correspondente ser encaminhado imediatamente ao
respectivo Ministro-Relator. Nessa hipótese, por decisão monocrática ou colegiada, poderá
44 Benjamin Zymler
ser adotada medida cautelar, com vistas a evitar a ocorrência de dano efetivo ou potencial ao
Erário e, em última análise, aos usuários dos serviços públicos.
Aduzo que qualquer cidadão, partido político, associação ou sindicato pode apre-
sentar denúncia ao Tribunal acerca de possíveis irregularidades ou ilegalidades ocorridas na
atuação das agências reguladoras.
Não há, portanto, maiores dúvidas a respeito da larga extensão da atividade fiscaliza-
dora do TCU, a qual não se restringe aos aspectos jurídico-formais. O Tribunal de Contas da
União vai além, uma vez que procura examinar os resultados alcançados pelas agências no
exercício de sua missão institucional.
Afinal, consoante exposto pelo Ministro Marcos Vinicios Vilaça, “a fiscalização da
legalidade só será relevante e eficaz se estiver integrada à avaliação do desempenho da
Administração Pública e dos responsáveis pela gestão dos recursos públicos”.3
Ademais, deve-se ter em mente que, a partir da promulgação da Emenda Constitu-
cional 19/1998, o princípio da eficiência foi erigido à norma constitucional. Por conseguinte,
compete também ao Tribunal verificar se as entidades sujeitas ao seu poder controlador
atuam de forma eficiente.
Além disso, cabe destacar que o art. 71, IV, da Constituição Federal de 1988 expres-
samente atribuiu ao Tribunal o poder de realizar auditoria de natureza operacional. O objetivo
dessa modalidade de auditoria vai muito além do mero exame da regularidade contábil, orça-
mentária e financeira. Ela intenta verificar se os resultados obtidos estão de acordo com os
objetivos do órgão ou entidade, consoante estabelecidos em lei. Com esse desiderato, é exa-
minada a ação governamental quanto aos aspectos da economicidade, eficiência e eficácia.
Especificamente em relação às agências reguladoras, o TCU, por meio das auditorias
operacionais, verifica se estão sendo atingidas as finalidades estabelecidas para essas enti-
dades por meio das respectivas leis de criação. Isso abrange a avaliação do cumprimento de
sua missão reguladora e fiscalizadora.
Dessa forma, impõe-se ao Tribunal a fiscalização da execução dos contratos de
concessão. Uma análise superficial identificaria uma possível redundância das esferas de
controle, uma vez que uma das atribuições das agências é exatamente fiscalizar os contratos
de concessão e de permissão e os atos de autorização de serviços públicos.
Entretanto, fica claro que o TCU exerce uma atividade fiscalizatória de segundo grau,
que busca identificar se as agências estão bem e fielmente cumprindo seus objetivos insti-
tucionais, dentre os quais, o de fiscalizar a prestação de serviços públicos. Deve a Corte de
Contas, no desempenho de sua competência constitucional, atestar a correção da execução
3
VILAÇA, Marcos Vinicios. Encontro Anual de Dirigentes do Tribunal de Contas da União. Brasília (DF), 1996.
(Informação verbal – palestra).
O Tribunal de Contas da União e o controle das agências reguladoras 45
desses contratos. Ressalte-se, todavia, que essa ação não visa controlar a empresa conces-
sionária em si, mas apenas examinar se as agências estão fiscalizando de forma adequada
os contratos por elas firmados.
Em síntese, o Tribunal não pode pretender substituir as agências reguladoras, mas
zelar pela atuação pronta e efetiva desses entes, com o objetivo primordial de assegurar a
adequada prestação dos serviços públicos para a população.
Deve-se ter em mente, nessa nova concepção de Estado, e por que não dizer de con-
trole, que o objetivo último a ser buscado é a eficiência da prestação de serviços públicos.
A pronta atuação do Tribunal deve contribuir para o atingimento desse nível de excelência.
Ao longo dos últimos anos, o Tribunal tem proposto, por iniciativa própria, uma sé-
rie de atividades na área de regulação. Tem recebido também várias demandas externas,
principalmente das Casas do Congresso Nacional e do Ministério Público Federal. A título
ilustrativo, são apresentados a seguir, de forma sucinta, alguns dos principais trabalhos exe-
cutados pelo TCU.
De início, centrou o Tribunal sua atenção na realização de auditorias nas agências
reguladoras que já estavam em funcionamento (Aneel, Anatel e ANP). Adicionalmente, o TCU
fiscalizou a área de transportes, por intermédio de auditorias realizadas no Departamento
Nacional de Infraestrutura de Transportes (DNIT).
Cabe frisar que as auditorias realizadas no DNIT tiveram o intuito de verificar a qua-
lidade dos serviços prestados nas rodovias concedidas, sendo o desempenho dessa autar-
quia como ente regulador do setor rodoviário avaliado apenas de forma subsidiária. Poste-
riormente, após a criação da Antaq e da ANTT, o enfoque das fiscalizações realizadas pelo
TCU passou a abarcar também o nível de qualidade das atividades regulatórias desenvolvidas
por essas duas entidades.
As auditorias realizadas na Aneel, Anatel e ANP permitiram conhecer a organização e
a forma de atuação de cada uma das agências reguladoras, bem como elaborar e implemen-
tar métodos e procedimentos para as fiscalizações das delegações de serviços públicos nos
setores de eletricidade, telecomunicações e petróleo.
Em momento posterior, as auditorias nas agências passaram a ter objetivos mais
específicos dentro do universo de atribuições das agências. Assim, por exemplo, em um de-
terminado exercício, foi enfocado precipuamente o desempenho das fiscalizações realizadas
pelas agências sobre os concessionários.
46 Benjamin Zymler
Para organizar melhor a exposição, serão enunciados, por área específica, os prin-
cipais resultados alcançados pelo Tribunal em cada um dos setores de serviços públicos.
No setor de telecomunicações, no caso das outorgas das bandas C, D e E, o Tribu-
nal identificou um erro nas fórmulas das planilhas que calculavam o preço mínimo dessas
outorgas. A correção desse erro, realizada pela Anatel tão logo comunicada a detecção da
falha, resultou em um acréscimo de cerca de R$ 1,6 bilhão em relação ao valor inicialmente
estipulado.
Posteriormente, a Anatel realizou licitação visando destinar a faixa de frequência de
700 MHz à ativação de serviço de telecomunicações móvel terrestre (SMP) utilizando tec-
nologia 4G denominada Long Term Evolution (LTE). A faixa de 700 MHz era ocupada por
serviços de radiodifusão. O art. 16 do Regulamento sobre Condições de Uso dessa faixa,
aprovado pela Resolução Anatel 625/2013, que modificou a destinação dessa faixa para o
serviço móvel pessoal, estabeleceu que os vencedores da licitação ressarciriam integral-
mente os custos decorrentes da redistribuição de canais de TV e RTV.
Inicialmente, o TCU apresentou alguns questionamentos, especialmente no que con-
cerne aos compromissos que seriam assumidos pelas licitantes vencedoras em relação ao
ressarcimento dos custos que seriam incorridos pelas emissoras de televisão que sairiam da
faixa de frequência licitada, os quais foram estimados em aproximadamente R$ 3,6 bilhões,
em valores históricos de 2014. Em resposta a esses questionamentos, a Anatel alterou o
edital e eliminou as pendências. Dessa forma, o leilão foi realizado e a atuação do TCU in-
duziu o aperfeiçoamento do processo licitatório. Ressalto que, graças a essas concessões,
foi implementado o processo de substituição da TV aberta analógica pela TV aberta digital.
No setor elétrico, destaco que o critério de fixação do preço mínimo para outorgas de
aproveitamentos hidrelétricos foi objeto de avaliações do Tribunal. Em decorrência da atua-
ção do TCU, a Aneel alterou o método de cálculo do preço mínimo, o que propiciou, apenas
nos leilões ocorridos em 2000, um acréscimo no preço inicial de mais de R$ 200 milhões
em relação ao critério anteriormente utilizado.
Merece destaque a prorrogação das concessões do setor elétrico, possibilitada pelo
art. 7º da Lei 12.783/2013, com o intuito de assegurar a continuidade e a eficiência da pres-
tação do serviço para a sociedade. Ocorre que o referido diploma não estabeleceu diretrizes
para a prorrogação dos contratos de 41 concessionárias de distribuição que venciam até
2017. Em razão disso, por meio do Acórdão 1.836/2013 – Plenário, foram expedidas deter-
minações no sentido de que fosse planejada tempestivamente a solução a ser adotada para
as referidas concessões.
Em um primeiro momento, o Ministério de Minas e Energia informou que pretendia
prorrogar todos os contratos de distribuição, devendo ser definidas metas de melhoria da
O Tribunal de Contas da União e o controle das agências reguladoras 47
prestação do serviço, num prazo de cinco anos. Em 2015, o Poder Executivo publicou o
Decreto 8.461/2015, que regulamentou a prorrogação das referidas concessões de distribui-
ção, tendo optado pela prorrogação de todas as concessões vincendas.
O TCU reconheceu a importância estratégica do serviço de distribuição de energia
elétrica e a gravidade de uma eventual descontinuidade no seu fornecimento, que atingiria 50
milhões de unidades residenciais. Nesse contexto, a Corte de Contas entendeu que, apesar
de algumas concessionárias apresentarem problemas históricos em relação à qualidade do
serviço e à falta de capacidade financeira, não havia condições para vedar a prorrogação dos
contratos em tela.
Cumpre salientar que as concessões problemáticas não foram prorrogadas, em con-
formidade com decisão adotada pela assembleia de acionistas da Eletrobras. Essa decisão
encontrou respaldo na Lei n. 13.360/2016, que facultou à União, quando as concessões de
energia elétrica não forem prorrogadas e quando o prestador do serviço for pessoa jurídica
controlada pela União, promover a licitação da concessão associada à transferência do con-
trole da pessoa prestadora do serviço.
No setor de petróleo, o Tribunal acompanhou as licitações de blocos para exploração
e produção de petróleo e gás natural, tendo sido feitas diversas determinações à ANP com
vistas ao aperfeiçoamento do processo licitatório, notadamente no sentido de dar maior
transparência aos interessados e garantir adequadas condições para a atuação da própria
agência durante a execução contratual.
Recentemente, o Tribunal de Contas da União aprovou os termos da revisão do con-
trato de cessão onerosa firmado pela Petrobras e pela União. O Governo federal pagará à
Petrobras US$ 9 bilhões pela revisão de um contrato firmado em 2010 para a exploração de
áreas do pré-sal. A Petrobras usará esse montante no leilão do excedente de cessão onerosa.
O contrato de cessão onerosa garantia à empresa explorar 5 bilhões de barris de
petróleo em áreas do pré-sal pelo prazo de 40 anos. Em troca, a empresa antecipou o paga-
mento de R$ 74,8 bilhões ao governo. Desde 2013, o governo vem negociando um aditivo
a esse contrato, depois que a Petrobras pediu ajustes por conta da desvalorização do preço
do barril de petróleo no mercado internacional.
Ainda no setor de petróleo e gás natural, o TCU aprovou a realização do leilão dos
excedentes da cessão onerosa da produção de petróleo. O relator do processo, Ministro
Raimundo Carreiro, não fez mudanças no edital, mas citou a ressalva com relação à capaci-
dade da Pré-Sal Petróleo S.A. (PPSA) de gerir o contrato do excedente da cessão onerosa.
Segundo o Tribunal, a estatal sofre com deficiência financeira e falta de pessoal.
O ministro apontou também a demora do Ministério de Minas e Energia em enviar
toda a documentação para a análise da corte de contas. Segundo ele, os referidos docu-
mentos deveriam ter sido entregues 90 dias antes da publicação do edital, mas só foram
enviados um mês antes.
48 Benjamin Zymler
fica patente que a efetiva atuação da agência reguladora é necessária devido à falha
de mercado configurada pela assimetria de informações observada na situação em
O Tribunal de Contas da União e o controle das agências reguladoras 49
5 CONSIDERAÇÕES FINAIS
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Reforma jurídica para o desenvolvimento da
governança da ordenação pública
econômica no Brasil
1 INTRODUÇÃO
São três as tendências que, nesta apresentação, me interessam quanto aos debates
jurídicos e políticos sobre regulação pública.
A primeira tendência, naturalmente forte no dia a dia dos profissionais jurídicos e dos
agentes administrativos, é aceitar a regulação como ela é. Ela é vista como conjunto de fatos
consumados, devendo os burocratas e advogados se ocupar de entendê-la, interpretá-la e
aplicá-la de modo fiel. O regulador, aqui, mesmo quando edita normas gerais, é basicamente
um juiz, que dirige e arbitra disputas caso a caso, sem visão e projeto muito próprios. Tal
postura envolve a aceitação da regulação como produto inevitável dos jogos de forças dos
interesses. Ela pode ser chamada de orientação pró-regulação.
A segunda tendência é inversa. Por princípio, é contrária às regulações, vistas
como incapazes de alcançar os resultados que prometem, e também desconfiada dos
reguladores, potenciais sabotadores da liberdade privada e do funcionamento normal dos
mercados. É uma tendência de economistas e políticos hiper liberais, encampada às vezes
por intérpretes jurídicos para combater a regulação por meio de interpretações restritivas
ou argumentos de inconstitucionalidade. É razoável chamá-la de orientação antirregulação
ou pró-desregulação.
A terceira tendência reconhece o valor potencial das regulações. Em contrapartida,
é bem realista quanto aos inúmeros fatores que as desviam e desatualizam. Assim, em
tentativa de composição, ela põe o foco nos instrumentos de equilíbrio e correção dos pro-
cessos regulatórios. É a orientação por trás do movimento de melhoria regulatória (better
52 Carlos Ari Sundfeld
regulation), adotado por alguns governos para estimular mudanças nas regulações setoriais.
Entre os práticos do Direito, seu efeito mais evidente é a preferência pelo uso de argumentos
de natureza processual (defesa de mais instrução processual para a validade de medidas
regulatórias, por exemplo).
A orientação pró melhoria regulatória foi bem sintetizada pelo Conselho da OCDE
(Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico), em sua Recomendação de
2012 sobre Política Regulatória e Governança, que exortou os governos a assumirem com-
promissos de alto nível com uma política explícita de qualidade regulatória, inclusive por
meio de leis gerais aplicáveis a todas as administrações do país.
A Recomendação é enfática quanto à necessidade dessa política envolver mecanis-
mos de coordenação entre os níveis supranacional, nacional e subnacional do governo, para
promover coerência regulatória, evitando a duplicação ou conflito de normas. Para tanto,
a política tem de ser capaz de identificar questões regulatórias transversais em todos os
níveis do governo, promovendo a coerência entre as abordagens regulatórias setoriais ou
descentralizadas. Além disso, considerando que os níveis subnacionais de governo são nor-
malmente mais frágeis dos pontos de vista técnico e organizacional, a política nacional de
melhoria regulatória tem de ser capaz de desenvolver a capacidade de gestão e desempenho
regulatório desses níveis.
Para a OCDE, a política nacional de melhoria regulatória deve assegurar que os be-
nefícios econômicos, sociais e ambientais justifiquem os custos da regulação, bem como
que seus efeitos distributivos sejam considerados, maximizando os benefícios líquidos. Os
reguladores devem sempre buscar formas alternativas de regulação, para identificar a melhor
entre elas. Para tudo isso, é preciso que a avaliação de impacto regulatório (AIR) se torne
uma obrigação geral dos reguladores.
Ademais, a política nacional deve incluir transparência e participação nos processos
regulatórios, garantindo que a regulação sirva ao interesse público, bem como incorporar
mecanismos e instituições que supervisionem de modo ativo os reguladores, de modo a
promover a desejada qualidade regulatória. Ademais, devem existir sistemas acessíveis e
efetivos de revisão da legalidade das normas, processos, decisões e sanções regulatórias.
A avaliação de riscos, a gestão de riscos e as estratégias de comunicação de risco
para a concepção e implementação das regulações são também importantes para garantir
que a regulação seja direcionada e efetiva.
Por fim, a política nacional de melhoria regulatória deve incluir programas sistemáti-
cos de revisão do estoque regulatório, assegurando que as normas existentes estejam atua-
lizadas, efetivas, consistentes, capazes de atingir seus fins e com custos justificados.
A recente Lei da Liberdade Econômica (Lei Federal n. 13.874, de 2019) veio da
iniciativa de uma ala política e técnica que desconfia em princípio das regulações e das
Reforma jurídica para o desenvolvimento da governança... 53
atuações públicas, acredita de modo radical nas capacidades do setor privado e, por isso,
tende à defesa do estado mínimo. Embora ao final do processo legislativo o texto da lei não
tenha espelhado essa visão por inteiro – seja em virtude dos improvisos jurídicos dos res-
ponsáveis pela iniciativa, seja pelos ajustes que o Congresso Nacional fez no texto – durante
a tramitação foi a visão radical que mais apareceu na retórica dos defensores do texto que
acabou por vingar. Como a história segue, é previsível que novas iniciativas antirregulação
surjam em curto prazo.
Na nova lei, a visão antirregulatória ficou bem evidente nos dispositivos do art. 4º
que, na tentativa de conter ao máximo as mãos dos reguladores, definiu casos de “abuso
do poder regulatório” (palavras são relevantes: “abusos de autoridade” são crimes, hoje
tratados na lei 13.869, de 2019). Tais dispositivos da nova lei são bem abertos, com retórica
ameaçadora contra as autoridades regulatórias. No art. 3º também é expressivo o emprego
de força retórica em favor do espaço privado e contra reguladores ao se enunciar uma curio-
sa – embora confusa e, por isso, talvez pouco útil – Declaração de Direitos da Liberdade
Econômica.
Nesta apresentação, é inevitável chamar atenção para o fato de que a luta da visão
antirregulatória, que gerou a Lei da Liberdade Econômica, não é apenas contra os regulado-
res e seus simpatizantes mais convictos. Em alguma medida, é também contra os defenso-
res das medidas de qualidade regulatória que, na esfera internacional, são defendidas pela
OCDE, embora a nova lei tenha buscado ou simulado alguma solução de compromisso.
É interessante o art. 5º da Lei da Liberdade Econômica que, repetindo um preceito
recém aprovado na Lei das Agências Reguladoras Federais (n. 13.848, de 2019), previu em
seu caput a realização de análises de impacto regulatório, como defendido pela OCDE, mas
no parágrafo único esvaziou totalmente a força jurídica dessa previsão, delegando ao regu-
lamento dispor sobre a “data de início da exigência ... o conteúdo, a metodologia da análise
de impacto regulatório, os quesitos mínimos a serem objeto de exame, as hipóteses em que
será obrigatória sua realização e as hipóteses em que poderá ser dispensada”.
O notável nesse art. 5º é que, ao mesmo tempo, seu caput funciona como argumento
quanto à existência de uma política brasileira (embora apenas federal) de melhoria regulatória
(ao menos quanto às AIR), mas o parágrafo único deixa espaço para as autoridades hiper
liberais – responsáveis diretas pela nova lei – usarem seu atual poder para, sem qualquer
estudo técnico, eliminar com mais facilidade as regulações que julgarem inconvenientes ou
excessivas.
A presente apresentação, cética quanto à orientação antirregulação que determinou
a feição final da Lei de Liberdade Econômica, defende a possibilidade de, sem revogá-la, ser
editada outra lei, agora sob a inspiração da orientação pró melhoria regulatória, na linha da
OCDE.
54 Carlos Ari Sundfeld
1
Ver: SUNDFELD, Carlos Ari et al. Lei Nacional da Liberdade Econômica – para uma reforma nacional em favor da li-
berdade econômica e das finalidades públicas da regulação. Revista de Direito Público da Economia – RDPE, Belo
Horizonte, ano 17, n. 66, p. 239-244, abr./jun. 2019. Além do coordenador, foram responsáveis pela pesquisa e
pelas propostas os profs. Eduardo Jordão (FGV-RJ), Egon Bockmann Moreira (UFPR), Floriano Azevedo Marques
Neto (USP), Gustavo Binenbojm (UERJ), Jacintho Arruda Câmara (PUC-SP), José Vicente Santos de Mendonça
(UERJ) e Marçal Justen Filho (ex-UFPR).
2
Sobre o conceito jurídico da ordenação administrativa: SUNDFELD, Carlos Ari. Direito administrativo ordenador.
São Paulo: Malheiros, 1993.
3
O Tribunal de Contas da União vem realizando trabalho de levantamento das disfunções burocráticas do estado
brasileiro que afetam a competitividade das empresas. O acordão 634/2019 – Plenário, j. 20.03.2019, contém
síntese geral a respeito, além de dados sobre disfunções na expedição de autorizações de registro de produtos e
para o funcionamento de empresas.
Reforma jurídica para o desenvolvimento da governança... 55
a Recomendação da OCDE, além de ter sido elaborado com todos os cuidados técnico-jurídi-
cos, como se deve esperar de acadêmicos experientes, bem ao contrário da referida medida
provisória. Assim, se e quando o governo brasileiro entender chegada a hora de levar a sério
por inteiro a visão da OCDE, será um documento de referência útil ao debate.
O anteprojeto tem por objeto as intervenções feitas com os poderes de autoridade
sobre as atividades que, em função do princípio da liberdade, pertencem ao setor privado.
Mas suas regras também servem, embora supletivamente (isto é, apenas para suprir even-
tuais insuficiências das leis específicas), para proteger empreendimentos privados que, em
função de outorgas estatais (por concessão ou autorização), façam a exploração econômica
de serviços públicos.
O que se propôs foi uma lei que, com breves dispositivos, impeça o exercício des-
controlado da função estatal de ordenar a vida econômica privada, evitando a ineficácia da
regulação e as capturas, além de garantir o ambiente vital para a atuação dos agentes econô-
micos, que são regidos pelo direito privado. Assim, a proposta objetiva também preservar o
espaço normativo das leis de direito civil e comercial, cuja edição é de competência privativa
da União (CF, art. 22, I), impedindo seu esvaziamento. Mas a proposta não vingou.
Logo após a promulgação da Lei da Liberdade Econômica, resgatando parte das
soluções de nossa pesquisa e proposta acadêmica, os deputados Eduardo Cury (PSDB-SP)
e Alessandro Molon (PSB-RJ) – em coerência com o ponto de vista que defenderam durante
o processo legislativo e que acabou não prevalecendo – apresentaram à Câmara dos Deputa-
dos o Projeto de Lei n. 4.888, de 2019, o qual se encontra em tramitação, para dispor sobre
a governança da ordenação pública econômica.
Esse texto alternativo é mais enxuto que nossa proposta acadêmica inicial – para não
se contrapor ao conteúdo da Lei da Liberdade Econômica, recém editada – e tem algumas
normas que, embora não tivessem sido sugeridas antes, fazem sentido no atual contexto e
estão bem alinhadas com as ideias iniciais. Sua preparação envolveu a assessoria técnica
dos deputados, altamente qualificada, além dos acadêmicos que estiveram envolvidos desde
2018 no esforço de, por meio de uma lei com normas gerais de direito econômico, alinhar
os vários níveis de governo do Brasil aos programas internacionais pró melhoria regulatória.
Tanto nosso anteprojeto acadêmico original, mais amplo, como o Projeto de Lei n.
4.888, de 2019, sucinto, inspiram-se na ideia de que a ordenação pública brasileira precisa
ser globalmente ordenada por meio de um programa nacional de melhoria regulatória per-
manente. Para isso, entre outras medidas, eles consideram importante impor e viabilizar a
avaliação e a revisão permanentes da ordenação pela própria administração pública, com
forte participação dos controles internos.
Pelo ângulo dos estímulos jurídicos, essa evolução depende da solução de uma lacu-
na: falta no Brasil uma lei nacional com o marco geral para o programa de ação que garanta
56 Carlos Ari Sundfeld
Além disso, o projeto prevê a inclusão, no artigo 1º da Lei da Ação Civil Pública (Lei
7.347, de 1985), de nova hipótese de cabimento dessa ação, agora para contemplar os da-
nos morais e patrimoniais causados à livre organização ou ao exercício da cidadania, da vida
civil ou de atividade econômica privada, por interferência, oneração ou barreira burocrática
ilegal ou abusiva, bem como por expropriação administrativa ilegal ou abusiva de direitos.
Assim, viabiliza-se o uso das ações civis públicas como meio de obrigar as autoridades de
ordenação a cumprirem o que dispuser a Lei de Governança da Ordenação Pública Econômi-
ca, assegurando a efetividade do programa nacional de melhoria regulatória.
4
Para uma análise a experiência norte-americana com os programas de revisão voltados à melhoria da qualidade
regulatória, ver: HAHN, Robert W.; SUNSTEIN, Cass R. A new executive order for improving federal regulation?
Deeper and wider cost-benefit analysis. John M. Olin Program in Law & Economics Working Paper, n. 150, 2002.
Reforma jurídica para o desenvolvimento da governança... 61
REFERÊNCIAS
HAHN, Robert W.; SUNSTEIN, Cass R. A new executive order for improving federal regulation? Deeper
and wider cost-benefit analysis. John M. Olin Program in Law & Economics Working Paper, n. 150,
2002.
5
SUNDFELD, Carlos Ari. Revisão da desapropriação no Brasil. Revista de Direito Administrativo, Rio de Janeiro, v.
192, p. 38-48, 1993. Disponível em: http://bibliotecadigital.fgv.br/ojs/index.php/rda/issue/view/2425. Acesso em:
7 dez. 2019.
6
SUNDFELD, Carlos Ari. Condicionamentos e sacrifícios de direito. Revista Trimestral de Direito Público, São Paulo,
v. 4, p. 78-83, 1993.
7
Para uma explicação detalhada dessa proposta legislativa sobre as expropriações regulatórias, ver a palestra do
Gustavo Binenbojm: PROPOSTA para a Lei Nacional da Liberdade Econômica, 11.04.2019. [S.l.: S.n], 2019. 1
vídeo (34m50s). Publicado pelo canal SBDP Oficial. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=Cm-
QUUfp4lYE&list=UUAn-BqY-CsYRMA60O9Xx8dg&index=5&t=0s. Acesso em: 30 jun. 2020.
62 Carlos Ari Sundfeld
PROPOSTA para a Lei Nacional da Liberdade Econômica, 11.04.2019. [S.l.: S.n], 2019. 1 vídeo
(34m50s). Publicado pelo canal SBDP Oficial. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=-
CmQUUfp4lYE&list=UUAn-BqY-CsYRMA60O9Xx8dg&index=5&t=0s. Acesso em: 30 jun. 2020.
SUNDFELD, Carlos Ari et al. Lei Nacional da Liberdade Econômica – para uma reforma nacional em
favor da liberdade econômica e das finalidades públicas da regulação. Revista de Direito Público da
Economia – RDPE, Belo Horizonte, ano 17, n. 66, p. 239-244, abr./jun. 2019.
SUNDFELD, Carlos Ari. Revisão da desapropriação no Brasil. Revista de Direito Administrativo, Rio de
Janeiro, v. 192, p. 38-48, 1993. Disponível em: http://bibliotecadigital.fgv.br/ojs/index.php/rda/issue/
view/2425. Acesso em: 7 dez. 2019.
SUNDFELD, Carlos Ari. Direito Administrativo Ordenador. São Paulo: Malheiros, 1993.
SUNDFELD, Carlos Ari. Condicionamentos e sacrifícios de direito. Revista Trimestral de Direito Público,
São Paulo, v. 4, p. 78-83, 1993.
A complexidade do poder regulamentar via
decretos: dos limites normativos ao possível
déficit democrático
Janriê Reck
Doutor em Direito (Unisinos)
Professor do Programa de Pós-Graduação,
Mestrado e Doutorado em Direito (Unisc)
Procurador federal
1 INTRODUÇÃO
A principal questão é: que problema o decreto visa resolver, ou seja, qual a sua
função? Há diferentes funções a depender do tipo de decreto? Esta pergunta não pode ser
respondida a partir de alguma lógica, senão a da evolução do próprio Direito e da política. De
fato, como não poderia deixar de ser, o decreto não é, de longe, uma exigência lógica, mas
sim fruto de uma evolução histórica visando responder certos problemas. Assim como a
palavra “decreto” carrega toda sua tradição histórica, especialmente quanto a sua aplicação
no direito brasileiro.
Assim, o decreto enquanto ato normativo do Poder Público, neste trabalho será ob-
servado a partir da sua atuação pelo Poder Executivo, por tal razão, serão abordados os
chamados decretos regulamentares e também os decretos autônomos. Importante que se
diga, que no âmbito de sua atuação, será imprescindível que se compreenda suas diferentes
formas de controle, a partir também do estabelecimento dos limites de atuação em cada
espécie normativa.
Outro ponto sensível a esse estudo é justamente o debate democrático, afinal, tam-
bém, a tradição revela que é no Poder Legislativo que os cidadãos exercem sua autonomia
de autoconvencimento, transformando programas políticos de vinculação da sociedade na
linguagem do Direito e, procurando, com isto, dar-lhes uma estabilidade momentânea, até
serem substituídos por outro programa.1 O Poder Executivo é lócus de execução da lei e,
como tal, deriva sua legitimação das leis – estas sim legítimas porque fruto da autonomia do
cidadão. Daí a razão pela qual não se legitima a atividade do Executivo, apenas a pessoa de
seu comandante. A legitimação das atividades do Executivo é, deste modo, indireta.
1
Note-se que o decreto regulamentar evidentemente não está nos atos normativos albergados no art. 59 da Consti-
tuição Federal e, por tal razão, não integra as fases do processe legislativo. Sobre as frases do processo legislativo
no Brasil ver em: GONÇALVES, Fernando Bernardo. O processo legislativo na Constituição de 1988. In: CLÈVE,
Clèmerson Merlin (Org.). Direito constitucional brasileiro. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2014. p. 381.
2
É um típico ato normativo primário a Lei ordinária, a qual se submete ao processo legislativo em todas as suas fa-
ses. Como regra geral, edita normas genéricas e abstratas que decorrem da Constituição, como “fruto da decisão
de um órgão do Estado de instaurar direito novo”. FERREIRA FILHO, Manoel Gonçalves. Processo legislativo. 7.
ed. São Paulo: Saraiva, 2012. p. 226.
A complexidade do poder regulamentar via decretos 65
rio.3 Evidente que apesar da abordagem ser jurídica, há que se refletir acerca do papel e de
sua função sob a lógica e observação política também da figura do decreto.
O fundamento de validade do decreto normativo, como não poderia deixar de ser,
encontra respaldo constitucional no art. 84, IV.4
A tradição, no direito brasileiro, sempre fora a de que os decretos normativos só
poderiam ser os decretos executivos, isto é, aqueles referidos na parte final do inciso IV
do art. 84: “para sua fiel execução” [da lei]. A Emenda Constitucional n. 32, cuja intenção
declarada fora desburocratizar a Administração Pública, reviveu os decretos autônomos, isto
é, decretos que podem criar ou extinguir direitos (no caso, organização da Administração
Pública, e extinção de funções e cargos públicos, quando vagos). Tal figura embora muito
interessante, especialmente por ser considerada na jurisprudência do Supremo Tribunal Fe-
deral um ato normativo primário, portanto, passível de ação direta de inconstitucionalidade,
não será objeto de análise nesse trabalho
Se questionado em que consiste a figura do regulamento, a dogmática jurídica res-
ponderia prontamente: “Regulamento é a norma jurídica de caráter geral, editada pela au-
toridade administrativa, em matéria de sua competência, conferida pela lei formal, com o
objetivo de facilitar-lhe a aplicação”.5 Ou seja, note-se que a primeira referência básica, é
justamente observar os limites desse poder regulamentar atrelado a fiel execução da lei,
afinal, o primeiro problema que o decreto terá de enfrentar é o problema da aplicação.
Observado pela perspectiva democrática, observa-se que a margem de atuação po-
lítica, por mais que em tese seja menor, afinal a sua atuação criativa já estaria limitada por
outro ato normativo, no caso, a Lei, também é verdade que o decreto afasta a caracterização
da construção legislativa em sua faceta mais democráticas, aberta a debates e interlocuções
com a esfera pública, haja vista sua caracterização se dar de forma bastante unilateral.6
3
Importa já referir que esses são atos que derivam imediatamente dos atos primários (ex: Lei), de quem dependerá
sua validade jurídica, em uma perspectiva de legalidade. Para Ferreira Filho: “Também neste nível cabe distinção
entre atos gerais – dos quais os regulamentos são o melhor exemplo e particulares (individuais) de que são típi-
cos atos de aplicação de normas gerais, a determinados indivíduos, pessoalmente indicados. FERREIRA FILHO,
Manoel Gonçalves. Processo legislativo. Op. cit., p. 225-226.
4
Art. 84. Compete privativamente ao Presidente da República: IV - sancionar, promulgar e fazer publicar as leis,
bem como expedir decretos e regulamentos para sua fiel execução; a) organização e funcionamento da adminis-
tração federal, quando não implicar aumento de despesa nem criação ou extinção de órgãos públicos; b) extinção
de funções ou cargos públicos, quando vagos.
5
CRETELLA JÚNIOR, José. Curso de direito administrativo. 16. ed. Forense: Rio de Janeiro, 1999. p. 238.
6
[...] opostamente às leis, os regulamentos são elaborados em gabinetes fechados, sem publicidade alguma, liber-
tos de qualquer fiscalização ou controle da sociedade ou mesmo dos segmentos sociais interessados na matéria.
Sua produção se faz apenas em função da vontade, isto é, da diretriz estabelecida por uma pessoa, o Chefe do
Poder Executivo, sendo composto por um ou poucos auxiliares diretos seus ou de seus imediatos. Não necessita
passar, portanto, nem pelo embate de tendências políticas e ideológicas diferentes, nem mesmo pelo crivo técnico
de uma pluralidade de pessoas instrumentadas por formação ou preparo profissional variado ou comprometido
com orientações técnicas ou científicos discrepantes. Sobremais, irrompe da noite para o dia, e assim também
pode ser alterado ou suprimido. MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Curso de direito administrativo. 12. ed. São
Paulo: Malheiros, 2000. p. 321.
66 Caroline Müller Bitencourt | Janriê Reck
7
BINENBOJM, Gustavo. O sentido da vinculação administrativa à juridicidade no Direito brasileiro. In: ARAGÃO,
Alexandre S. de; MARQUES NETO, Floriano de A. (Coords.). Direito administrativo e seus novos paradigmas. Belo
Horizonte: Fórum, 2009.
8
Evidente que aqui o conceito de legalidade não deve ser apenas observado pela sua simples vinculação com a lei,
nas lições de Aragão é necessário se ter presente em que medida acontece essa vinculação. ARAGÃO, Alexandre
S. de. A concepção pós-positivista do princípio da legalidade. Revista de Direito Administrativo, Rio de Janeiro, v.
236, p. 51-64, abr./jun. 2004. Embora o tema da vinculação e discricionariedade seja bastante relevante, não será
objeto central desse trabalho no tocante as possibilidades de controle do abuso do poder de regulamentar.
9
MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Curso de direito administrativo. Op. cit., p. 296.
10
CANOTILHO, Joaquim José Gomes. Direito constitucional e Teoria da Constituição. 4. ed. Coimbra: Almedina,
2000. p. 716.
A complexidade do poder regulamentar via decretos 67
Até aqui, pode-se concluir, rasteiramente, que faz parte da compreensão do atual
Estado Democrático de Direito a ideia de que a criação da norma é um, ou pelo menos, uma
tentativa, de um exercício da autonomia. Mal ou bem, isto é feito dentro do âmbito onde de-
bates são levados a efeito, o Poder Legislativo. Não pode o Poder Executivo criar leis, posto
que não é o foro competente – afinal, dentro do Poder Executivo, pelo menos dentro da atual
organização, não há debates plurais no que toca à elaboração do decreto.
Não é necessário muito dissertar acerca das dificuldades de se criar normas sufi-
cientemente “precisas” no Poder Legislativo. Além de uma empreitada impossível, a vagueza
normativa é parte do jogo político. Além disto, estratégia para prolongar a vida das normas.
Somam-se estes fatores com a necessidade de ação por parte dos poderes públicos e a
consagração da legalidade “genérica”,11 além de um progressivo incremento da atividade
administrativa, e tem-se como resultado um amplo espaço aberto para a “regulamentação”.
Trata-se de uma necessidade histórica e funcional: pelo menos dentro do Direito Adminis-
trativo, é praticamente impossível concretizar políticas públicas e demais programas sem os
procedimentos12 de sua materialização:
11
Isto é, a ideia de que os poderes públicos devem pautar por normas pré-estabelecidas, não necessariamente
“Leis”.
12
Tomados aqui no sentido de sucessão de atos.
13
MIRANDA, Francisco Cavalcanti Pontes de. Comentários à Constituição de 1946. VII. 2. ed. São Paulo: Max
Limonad, 1953. p. 411.
14
DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Direito administrativo. 19. ed. São Paulo: Atlas, 2006. p. 102.
68 Caroline Müller Bitencourt | Janriê Reck
Talvez seja temerário afirmar que houve uma tendência, ou que esta tendência se
mantém, de transferência da atividade de legislar do Poder Legislativo ao Executivo. É visível
que na maior parte dos países, senão na totalidade, há incremento tanto na produção de
“leis” quanto de “regulamentos”, pelo menos do século XIX em diante. De todo modo, é ver-
dade que há uma maior produção normativa executiva e uma crescente realocação das ten-
sões jurídicas em direção ao Poder Executivo, no que talvez adquira alguma proeminência.
É curioso, posto que a autocompreensão do Estado Democrático de Direito imputa ao Poder
Executivo a tarefa de executar materialmente as normas. Contudo, isso não é tão simples.
Daí a existência da atividade de regulamentação e sua incorporação na tradição dogmática,
como essencial a regular atividade jurídica.15
Tanto é assim que o Decreto é prontamente posto no sistema piramidal, adquirindo
validade da norma superior.16
A atividade regulamentar, deste modo, é posta junto a uma atividade legislativa latu
sensu do Poder Executivo, e é justificada no sistema de freios e contrapesos. O Poder Exe-
cutivo assume a tarefa de editar normas gerais. Pode fazê-lo tanto originariamente (o que
a tradição dogmática chama de “regulamentos autônomos”) quanto de maneira derivada,
regulamentar. O Poder Executivo opera, portanto, em uma lógica semelhante à do Poder
Legislativo, o Poder Executivo não faz nada imediatamente;17 põe, de outra banda, programas
que serão seguidos. O Poder Executivo não age motivado também por um “caso” específico:
os fatos relevantes são a edição de uma lei, seu dever normativo de regulamentar e os fatos
que motivaram a referida a lei a regulamentar.
15
CARRAZZA, Roque Antônio. O regulamento no Direito brasileiro. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1981. p. 115:
“A faculdade de regulamentar provém de um poder próprio da Administração Pública”
16
CRETELLA JÚNIOR, José. Curso de direito administrativo. Op. cit., p. 239: “Na hierarquia das normas, represen-
tam os regulamentos o grau mais alto na esfera administrativa, logo abaixo das normas legais, sendo a comple-
mentação destas. Pelo nosso sistema constitucional, são os regulamentos aprovados por decreto executivo e a
sua amplitude só encontra limites nos textos legais regulamentados”.
17
Uma abordagem simplista e não complexa da atividade de regulamentar pode conduzir a sua real dimensão de
interpretação e aplicação do direito: “Nesse sentido, a Administração seria mera executora de decisões tomadas
de modo completo pelo legislador, restando-lhe pouco ou nada a acrescentar, na medida em que a inovação
por regulamento lhe é vedada. Esse posicionamento parece-nos, se não inteiramente equivocado, ao menos
insuficiente. Seja porque nem o art. 5º, II, CF traduz o princípio da legalidade em sua completude, nem o poder
regulamentar se encerra na dicção do inciso IV, art. 84, CF; seja por não levar em conta as modificações sociais e
técnicas que vêm produzindo uma sociedade cada vez mais plural e complexa, insuscetível de ser normatizada de
forma ampla e exclusiva pela lei formal aprovada pelo Parlamento”. DEÁK, Renato Albuquerque; NOBRE JUNIOR,
Edilson Pereira. O princípio da legalidade e os limites do poder regulamentar. Revista acadêmica da Faculdade de
Direito do Recife, v. 89, n. 1, p. 144-166, jan./jun. 2017. Disponível em: bibliotecadigital.fgv.br › ojs › index.php ›
rda › article › viewFile. Acesso em: 30 nov. 2019.
A complexidade do poder regulamentar via decretos 69
Materialmente, o regulamento se assemelha à lei, pois, como ela, está voltado a uma
série indeterminada de situações ou pessoas. Dela, entretanto, se afasta pelo regime
jurídico que o rege, já que, como repetidas vezes acentuaremos, está hierarquicamen-
te submetido à lei18.
Todas as perplexidades que envolvem o Poder Legislativo (como é possível leis “ge-
rais”?) acorrem também ao Poder Executivo. Não se pode, idealisticamente, fechar os olhos
para a realidade: a despeito das dificuldades, o Poder Executivo entende a lei, regulamenta-a,
os servidores compreendem a lei e o decreto, e agem conforme estes. Fechar os olhos a
esta realidade é fechar-se em um mundo que se pretende crítico, mas que na realidade é
meramente uma manifestação de chauvinismo intelectual, tantas vezes inspirador de um
ceticismo artificial, noves fora o seu terrível ônus de prova: teriam de provar que as pessoas
“imaginam” que compreendem o decreto e a lei.
A atividade legislativa19 do Executivo, no Brasil, manifesta-se através de Medidas
Provisórias, Leis Delegadas e Decretos Regulamentares, mas também desde a edição. Os
dois primeiros veículos estão inseridos dentro da Constituição como espécies legislativas, e,
salvo restrições constitucionais, podem criar direitos e obrigações livremente. Para os fins
deste trabalho, contudo, essa temática não interessa. Interessa, isto sim, a figura “decreto”.
O decreto é um tipo de ato, formal, advindo do Poder Executivo.20 Geralmente é
observado mais da perspectiva do Direito Administrativo que do Direito Constitucional.
Assim, os juristas, se instados a responder qual a “natureza jurídica” do decreto, prova-
velmente a maior parte responderá que se trata de um ato administrativo, e não de uma
espécie legislativa.
Os decretos podem ser “gerais” ou “particulares” (materiais). No caso do decreto
particular, assume uma forma do tipo “Nomeie-se Maria para o Conselho tal” ou “Exonere-se
José”. Trata-se aqui meramente de manifestações do Poder hierárquico ou disciplinar da
Administração Pública. Não é também este o tipo de decreto a preocupação do trabalho.
Interessa a manifestação do Poder Normativo.
Nesta toada, o Direito cria um problema que ele tem de responder. O decreto parece
ser uma categoria fundamental para dar conta das demandas da política e da administração.
Mas esta solução cria uma série de outros problemas. O principal deles é o da vinculação
do decreto executivo à lei21. Isto será deixado para mais adiante. Estas questões serão mera-
mente exploratórias, para deixar clara a dimensão da problemática.
18
CARRAZZA, Roque Antônio. O regulamento no Direito brasileiro. Op. cit., p. 8.
19
“Legislativa” aqui tomada não no sentido técnico-jurídico, mas sim no de oposição aquele de atos concretos.
20
Existe também a figura do “Decreto Legislativo”, que não vem ao caso neste trabalho.
21
Para Meirelles que, “sendo o regulamento, na hierarquia das normas, ato inferior à lei, não a pode contrariar, nem
restringir ou ampliar suas disposições. Só lhe cabe explicitar, a lei, dentro dos limites por ela traçados.”. MEIREL-
LES, Hely Lopes. Direito administrativo brasileiro. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1991. p. 108.
70 Caroline Müller Bitencourt | Janriê Reck
Os regulamentos contêm comandos dirigidos, não aos indivíduos, que só devem obe-
diência à lei (art. 153, §2º da CF), mas aos órgãos do Poder Executivo, subordinados
hierarquicamente ao Chefe da Administração Pública. Não produzem, pois, efeitos
junto aos particulares; endereçam-se, sim, aos funcionários executivos, que produ-
zem as normas individuais.22
Não tão simples. Os decretos apontam, em geral, sim, à Administração Pública. Isto
é bem verdade em ramos do direito tais como o Direito Previdenciário, Tributário e Admi-
nistrativo. Mas o decreto também estabelece a forma como direitos e obrigações, além da
explicitação de significados, advindos da legislação previdenciária, tributária e administrativa
serão exercidos pelos particulares; neste sentido, não há dúvidas que os decretos, mesmo
nestes ramos, estabelecem comportamentos para os particulares. Mas a realidade é ainda
maior: vê-se decretos regulamentando o Estatuto da Terra, a Lei de Duplicatas, cheques,
microempresa, juizados especiais, descanso semanal remunerado, aprendizes, lei de acesso
à informação, lei da migração etc., enfim, parece não haver ramo do Direito que escape à
atividade regulamentar do Poder Executivo, a despeito da opinião doutrinária. Esta pergunta
acima se liga à pergunta de se o decreto cabe em qualquer ramo do direito. Novamente a
resposta é a mesma: a doutrina vincula o decreto às atividades administrativas; na prática,
há uma plêiade de decretos regulamentando as mais diversas atividades, como citado. Um
ingrediente que aumenta a dificuldade é o de que uma série destes decretos foram elabora-
dos nas ordens constitucionais anteriores. Persiste a dúvida se a ordem constitucional inau-
gurada em 1988 recepcionaria decretos regulamentando direitos trabalhistas, por exemplo.
De todo modo, não é fácil alcançar, à primeira vista, uma solução constitucional, posto que a
norma constitucional aponta que o decreto regulará leis, sem dizer quais tipos de leis.
A doutrina é pouco aprofundada na discussão se existe ou não um dever de regula-
mentar. Se, de um lado, o Poder Executivo é independente, de outro, ele não pode ter o poder
de deixar ineficaz uma dada norma, pois aí seria invadir as atribuições do Poder Legislativo.
Interessante é o lado contrário deste debate: quais os limites de autonomia da própria Admi-
nistração, isto é, até onde ela pode resistir à legislação? Este debate liga-se aos limites da
divisão de poderes, onde ao Legislativo é vedado criar leis individuais e levar a efeito atos
materiais, competências que são reservadas ao executivo. São decorrências destes limites o
direito do Poder Executivo de auto-organizar-se, elaborando sua estrutura interna e planeja-
mento governamental. Exemplo disto são as reservas de iniciativa de lei ao Poder Executivo
presentes na Constituição. Mas casos há onde a Lei não interfere com a estrutura do Poder
Executivo, sendo saliente que a falta de um decreto regulamentar prejudica a própria lei.
22
CARRAZZA, Roque Antônio. O regulamento no Direito brasileiro. Op. cit., p. 8.
A complexidade do poder regulamentar via decretos 71
Daí porque a maioria dos doutrinadores preferir dizer que o decreto é apontado para
o Administrador público, e não para o público em geral. Afinal, é o Administrador público que
deverá materializar a lei. Difícil para a doutrina admitir dois fenômenos conjuntos: a supre-
macia da lei e a possibilidade de o decreto obrigar particulares. Como se opera em um nível
lógico de observação única, não é possível, para a doutrina, admitir a lei valer mais do que o
decreto, e, ao mesmo tempo, o cidadão ser obrigado a ambos. Ou um, ou outro. Obviamente
que tal descrição destoa da prática jurídica, motivo pelo qual é necessário encontrar obser-
vações mais complexas.
Interessante questão é a de que se é possível encontrar uma solução modalizada
em sim/não para a questão de se a atividade regulamentar é discricionária. Significa refletir
23
O conceito de dever poder é no sentido extraído da obra de: MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Curso de direito
administrativo. Op. cit.
24
CARRAZZA, Roque Antônio. O regulamento no Direito brasileiro. Op. cit., p. 14.
25
MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Curso de direito administrativo. Op. cit., p. 303.
72 Caroline Müller Bitencourt | Janriê Reck
26
Essa parece ser a posição mais comum. Ver, por exemplo: MORAIS, Alexandre de. Direito constitucional. 19. ed.
São Paulo: Atlas, 2006. p. 437: “Essa vedação não significa que o regulamento deva reproduzir literalmente o texto
da lei, pois seria de flagrante inutilidade. O poder regulamentar somente será exercido quando alguns aspectos da
aplicabilidade da lei são conferidos ao Poder Executivo, que deverá evidenciar e explicitar todas as previsões le-
gais, decidindo a melhor forma de executá-la e, eventualmente, inclusive, suprindo suas lacunas de ordem prática
ou técnica”.
27
Trata-se, portanto, de uma fonte administrativa que detalha uma lei ordinária ou complementar, tornando-a apli-
cável na prática. A função desse regulamento em relação à Lei é semelhante à da Lei frente à Constituição. Há
casos e m que o detalhamento necessário para a aplicação da lei pelo Legislativo seria impossível ou, ao menos,
indesejada, sobretudo por motivos de eficiência e de celeridade na expedição dessas normas. Em outros casos,
mesmo que possível, mais adequado pode-se mostrar o detalhamento das regras legais feito por aqueles que co-
nhecem, mais de perto, a rotina das tarefas executivas. Aqui, a utilidade do poder regulamentar consiste em evitar
que o Legislativo, sem conhecer bem a tarefa de execução da lei, crie regras que impliquem em graves problemas
práticos. MARRARA, Thiago. As fontes do direito administrativo e o princípio da legalidade. Revista Digital de
Direito Administrativo, Ribeirão Preto. v. 1, n. 1, p. 23-51, 2014. Disponível em: http://www.revistas.usp.br/rdda/
article/view/73561/77253. Acesso em: 3 dez. 2019.
28
MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Curso de direito administrativo. Op. cit., p. 305.
A complexidade do poder regulamentar via decretos 73
Quando a lei expressamente define algum instituto, o decreto deve se ater aquele
significado. Quando a lei é vaga e permite definições, outras normas, inclusive o decreto,
poderão definir os termos. Algumas vezes, parece que a norma necessariamente remete ao
decreto, para que ganhe concretude.
Pontes de Miranda dá uma solução completamente diferente: quando a lei é tão vaga
que deixa dúvidas, o Executivo tem de encolher-se, posto que não é sua função fazer cessar
qualquer tipo de dúvida: “Onde a lei oferece dúvida, não é ao Poder Executivo que toca var-
rê-la”.31 Para Pontes de Miranda,32 o decreto tem mera função redundante-procedimental. De
todo modo, a doutrina é unânime no sentido de que o decreto executivo não pode ir além das
obrigações geradas na norma legal33:
29
Eros Roberto Grau tenta responder ao problema estabelecendo algumas distinções. “Ora, há visível distinção entre
as seguintes situações: i) vinculação da Administração às definições da lei; ii) vinculação da Administração às
definições decorrentes – isto é, fixadas em virtude dela – de lei. No primeiro caso estamos diante da reserva da lei;
no segundo, em face da reserva da norma (norma que pode ser tanto legal quanto regulamentar; ou regimental)”.
GRAU, Eros Roberto. O direito posto e o direito pressuposto. 3. ed. São Paulo: Malheiros, 2000. p. 183.
30
CARRAZZA, Roque Antônio. O regulamento no Direito brasileiro. Op. cit., p. 138.
31
MIRANDA, Francisco Cavalcanti Pontes de. Comentários à Constituição de 1946. Op. cit., p. 411.
32
Aliás, uns dos autores que mais profundamente comentou o tema.
33
MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Curso de direito administrativo. Op. cit., p. 321: “São visíveis, pois, a natural
inadequação e os imensos riscos que adviriam para os objetivos essenciais do Estado de Direito – sobreposse,
repita-se, em um país ainda pouco afeito a costumes políticos mais evoluídos – de um poder regulamentar que
pudesse definir, por força própria, direitos ou obrigações de fazer ou não fazer imponíveis aos administrados”.
34
MIRANDA, Francisco Cavalcanti Pontes de. Comentários à Constituição de 1946. Op. cit., p. 412.
74 Caroline Müller Bitencourt | Janriê Reck
Enfim, o ciclo inicial está completo. Dado o estado atual do Estado Democrático de
Direito, entende-se que só a lei é produzida a partir da autonomia do sujeito. Regulamentar,
contudo, é necessário. Esta regulamentação, todavia, não poderá ir além do que posto na lei,
senão há, aí, um ataque ao próprio Estado Democrático de Direito e à liberdade, igualdade e
justiça que visa proteger. Surge, então, finalmente, a difícil questão de se saber se o decreto
regulamentou adequadamente uma norma legal. Antes, contudo, outra discussão, que tam-
bém ajuda a jogar luzes sobre o problema.
A discussão que emerge dos defeitos do decreto é interessantíssima. Trata-se de
perguntar em quais categorias de reciclagem normativa – existentes para a autopreservação
do Direito – que se encaixam os defeitos do decreto, isto é, na ilegalidade ou na inconstitu-
cionalidade. As dificuldades são várias, principalmente a começar pela divisão mesma, visto
que qualquer ilegalidade é, no final das contas, uma inconstitucionalidade. O ordenamento
criou, para dar conta disto, a tese da inconstitucionalidade reflexa, que gera inúmeras dificul-
dades, mas é isto que se tem para trabalhar.
Algumas proposições iniciais mais fáceis, para então se alcançar maior dificuldade.
É ponto pacífico na doutrina que ele não está sujeito, em princípio, ao controle concentrado
de constitucionalidade, via ação direta de inconstitucionalidade. A doutrina tem então admi-
tido, que por ser um ato do Poder Público, independente de normativo ou concreto, cabe-
ria se violar preceito fundamental, a arguição de descumprimento de preceito fundamental,
prevista no art. 102, parágrafo 1º e Lei 9.882/99. Mas porque não refletir o debate sobre a
possibilidade de controle difuso de constitucionalidade. Explica-se: se o decreto contraria
a lei, há uma ilegalidade, e a inconstitucionalidade é apenas reflexa. Não caberão ações de
controle concentrado, e tampouco jurisdição no STF; mas ações coletivas poderão dar conta
do problema, além da solução individual
Se um decreto regulamenta lei que não existe, há, aí, inconstitucionalidade, pos-
to que não há lei para contrastar. O decreto invadiu a competência do poder legislativo. O
curioso é que, neste caso, há aptidão para subida de recurso extraordinário, tendo em vista a
ofensa à competência prevista em norma Constitucional. Se se interpretar de maneira ainda
mais radical, o decreto sem lei sujeitar-se-á a controle concentrado, posto que o art. 102, a,
da Constituição Federal, utiliza os termos “ato normativo federal”.
Na atual conjuntura brasileira, tem-se o interessante debate estabelecido, por exem-
plo, no que se refere ao decreto das armas que já sofreu sete alterações legislativas pelo
próprio presidente, e sobre tais decretos já tramitam no Supremo Tribunal Federal ações
diretas de inconstitucionalidade e arguições de descumprimento de preceito fundamental.
Quando utilizada a ADPF é justamente por compreender que se trata de um ato normativo
secundário, no qual havia extrapolado seus limites regulamentares, já a preferência pela
Ação direta de inconstitucionalidade atacava a Lei 10.826/2003, pedindo o arrastamento
dos feitos para o Decreto que deveria regulamenta-la. Uma outra complexidade é adicionada
A complexidade do poder regulamentar via decretos 75
à discussão. É intuitivo que, nos termos acima, o Judiciário tem poder para invalidar, pelos
motivos constitucionais, os decretos. Agora, teria o Poder Legislativo tal poder? É claro que
interessa ao Legislativo, enquanto organização, que as leis sejam bem interpretadas, em uma
visão otimista das instituições. Isto significa que o Legislativo poder fazer este controle por si
só. A Constituição Federal responde que “art. 49. É da competência exclusiva do Congresso
Nacional: [...] V - sustar os atos normativos do Poder Executivo que exorbitem do poder
regulamentar ou dos limites de delegação legislativa”.
Note-se que a Constituição, deste modo, autoriza ao Poder Legislativo que proceda
ao controle da legalidade/constitucionalidade dos decretos. O Poder Legislativo utilizará do
instrumento normativo idôneo às questões relativas à sua competência exclusiva, que é o
Decreto Legislativo. Para tanto, os legisladores terão de interpretar se o decreto bem ou mal
regulamentou uma lei, e são necessário instrumentos para tanto.
Forma-se uma tensão delicada entre um Executivo que tem um poder autônomo de
regulamentar, e um Legislativo que tem instrumentos para fiscalizar e neutralizar este poder.
Isso vai fazer com que novamente o argumento da incompetência e invasão de poderes
venha à tona, e, deste modo, haveria sempre ofensa direta à Constituição. Enfim, sempre
que o Poder Legislativo sustar um ato do Poder Executivo, poderá estar sustando de maneira
incorreta. Como é uma ofensa direta à Constituição, e não uma indireta, e se trata de um ato
normativo, abrir-se-iam tanto as portas do Recurso Extraordinário quanto do controle con-
centrado. A complexidade das cadeias de observações/interpretações: o Executivo interpreta
a lei, editando um decreto; operação que por sua vez será observada a partir do Legislativo,
que deverá interpretar as duas normas com a edição de uma terceira (decreto legislativo) e,
finalmente, a do Judiciário, que terá de fazer a leitura de tudo isto junto, além de, por óbvio,
ter de realizar as outras operações inerentes à interpretação contemporânea, como levar em
conta o paradigma do Estado Democrático de Direito, a supremacia da Constituição, etc.
Observando novamente o primeiro problema, qual seja, o da vinculação do decreto à
lei. Pela compreensão ordinária do problema, não pode o decreto criar direitos e obrigações.
Isto não pode ser levado muito a sério, posto que, assim fosse, não haveria decreto (se o
decreto diz qual é a droga ilícita, gera o direito de perseguição e punir do Estado, e obrigação
de não consumir a droga; se o decreto diz quais são os documentos necessários, gera ao
cidadão a obrigação de trazê-los para efetivar seu direito35). Talvez fosse menos temerário
dizer que não é possível criar direitos e obrigações que não sejam instrumentais aos direi-
tos postos na lei. Mas isto gera uma série de outros problemas conceituais, que não serão
analisados agora.
Para que o decreto “regulamente” a lei, é necessário compreendê-la. Eis aí a delica-
deza da situação. Vai-se compreender normas gerais para criar normas gerais; trocar-se-ão
35
Muito embora, nesse caso, seria possível recorrer a outras categorias, como a de ônus e faculdade. Isso não
evitaria o problema, de todo modo.
76 Caroline Müller Bitencourt | Janriê Reck
universais por universais – se tais categorias ainda forem de algum uso. O fato é: o decreto
não resolve caso concreto algum, até porque ele não existe. O decreto não tem, contudo,
aquela liberdade significativa que a lei tem em face da Constituição36. Os fatos são os de
conhecimento geral (usam-se drogas tais), científicos (drogas tais costumam provocar os
danos x no corpo humano) e prospectivo (usualmente, os documentos “n” são aptos a gerar
a prova de tal situação); não há nenhum específico. A pergunta é se é um processo de dois
estágios, ou um estágio, e em que sentidos isto pode ser dito. A doutrina aponta para esta
necessidade de interpretação: “Regulamentar é mais difícil do que fazer a própria lei; exige
pleno conhecimento do alcance das regras jurídicas legais (o de que nem sempre tem noção
clara os legisladores) e do ramo do direito em que a lei mergulha”.37
Compara-se a atividade regulamentar com a do intérprete doutrinário:
Para a doutrina, deste modo, o feitor do decreto terá de interpretá-lo não como um
juiz, mas sim como um intérprete doutrinário, sem a pressão do caso. Parece estranho,
posto que é a mesma doutrina a dizer, com exceção de Pontes, que a Administração Pública
tem discricionariedade para regulamentar. De todo modo, a intuição principal parece justa: a
de que Executivo é um intérprete do texto. Nem poderia deixar de ser, visto ser irrespondível
a pergunta de quando não há interpretação. De todo modo, com certeza, e a doutrina aponta
isto com certa razão, muito embora com muita ingenuidade, os legisladores trabalhem com
uma plêiade muito maior de textos possíveis e de convencimento recíprocos; o legislador
responde à pergunta, enfim, da razão prática: “que devemos fazer?” Tudo indica que o ma-
terial com o qual o Executivo está autorizado a trabalhar é muito menor, mas isto é uma
hipótese a ser confirmada ou refutada mais adiante.
De toda forma, o regulamento possibilita os enlaces comunicativos, que outro modo
seriam possíveis, mas caóticos. Reduz, assim, as possibilidades significativas possíveis, na
missão constitucional de permitir a execução da lei mesma. “Regulamentar é editar normas
que se limitem a adaptar a atividade humana ao texto, e não o texto à atividade humana, cria
meios que sirvam à atividade humana para melhor se entender o texto”.40 O decreto é, enfim,
36
Que é outro processo delicado de compreensão.
37
MIRANDA, Francisco Cavalcanti Pontes de. Comentários à Constituição de 1946. Op. cit., p. 411.
38
MIRANDA, Francisco Cavalcanti Pontes de. Comentários à Constituição de 1946. Op. cit., p. 412.
39
CARRAZZA, Roque Antônio. O regulamento no Direito brasileiro. Op. cit., p. 165.
40
MIRANDA, Francisco Cavalcanti Pontes de. Comentários à Constituição de 1946. Op. cit., p. 411.
A complexidade do poder regulamentar via decretos 77
Comportamentos violadores das regras do jogo político muitas vezes não são perce-
bidos como desviantes pela sociedade, ou são tolerados em nome do apelo a formas
de legitimação vinculadas a argumentos irracionais (tradicional ou carismática). Invo-
cam-se as razões do Estado, os imperativos econômicos, governabilidade ou outros
conceitos indeterminados.45
Quem perde com tudo isso é a democracia e o esvaziamento dos espaços de delibe-
ração e representatividade popular, ou seja, todos nós.
41
MIRANDA, Francisco Cavalcanti Pontes de. Comentários à Constituição de 1946. Op. cit., p. 411.
42
FERREIRA FILHO, Manoel Gonçalves. Processo legislativo. Op. cit., p. 35.
43
Publicada a seguinte declaração do presidente pelo Jornal Zero Hora: “Com a caneta, eu tenho muito mais poder do
que você”, diz Bolsonaro a Maia. FERNANDES, Talita. “Com a caneta, eu tenho muito mais poder do que você”, diz Bolso-
naro a Maia. Jornal Zero Hora, maio 2019. Disponível em: https://gauchazh.clicrbs.com.br/politica/noticia/2019/05/
com-a-caneta-eu-tenho-muito-mais-poder-do-que-voce-diz-bolsonaro-a-maia-cjw8kzsb900j001lxxv8f2ecw.
html. Acesso em: 1º dez. 2019.
44
Matéria publicada na Revista Exame. BOLSONARO edita recorde de decretos desde Collor. Exame, jun. 2019.
Disponível em: https://exame.abril.com.br/brasil/bolsonaro-edita-recorde-de-decretos-desde-collor/. Acesso em:
1º dez. 2019.
45
NASCIMENTO, Rogério José Bento Soares do. Abuso do poder de legislar. Controle judicial da legislação de
urgência no Brasil e na Itália. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2004. p. 129.
78 Caroline Müller Bitencourt | Janriê Reck
4 CONSIDERAÇÕES FINAIS
REFERÊNCIAS
BOLSONARO edita recorde de decretos desde Collor. Exame, jun. 2019. Disponível em: https://exame.
abril.com.br/brasil/bolsonaro-edita-recorde-de-decretos-desde-collor/. Acesso em: 1º dez. 2019.
CANOTILHO, Joaquim José Gomes. Direito constitucional e Teoria da Constituição. 4. ed. Coimbra:
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CARRAZZA, Roque Antônio. O regulamento no Direito brasileiro. São Paulo: Revista dos Tribunais,
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CRETELLA JÚNIOR, José. Curso de direito administrativo. 16. ed. Forense: Rio de Janeiro, 1999.
DEÁK, Renato Albuquerque; NOBRE JUNIOR, Edilson Pereira. O princípio da legalidade e os limites do
poder regulamentar. Revista acadêmica da Faculdade de Direito do Recife, v. 89, n. 1, p. 144-166, jan./
jun. 2017. Disponível em: bibliotecadigital.fgv.br › ojs › index.php › rda › article › viewFile. Acesso em:
30 nov. 2019.
DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Direito administrativo. 19. ed. São Paulo: Atlas, 2006.
FERNANDES, Talita. “Com a caneta, eu tenho muito mais poder do que você”, diz Bolsonaro a Maia.
Jornal Zero Hora, maio 2019. Disponível em: https://gauchazh.clicrbs.com.br/politica/noticia/2019/05/
com-a-caneta-eu-tenho-muito-mais-poder-do-que-voce-diz-bolsonaro-a-maia-cjw8kzsb900j001lxxv-
8f2ecw.html. Acesso em: 1º dez. 2019.
FERREIRA FILHO, Manoel Gonçalves. Processo legislativo. 7. ed. São Paulo: Saraiva, 2012.
GONÇALVES, Fernando Bernardo. O Processo Legislativo na Constituição de 1988. In: CLÈVE, Clèmer-
son Merlin (Org.). Direito constitucional brasileiro. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2014.
GRAU, Eros Roberto. O direito posto e o direito pressuposto. 3. ed. São Paulo: Malheiros, 2000.
MEIRELLES, Hely Lopes. Direito administrativo brasileiro. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1991.
MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Curso de direito administrativo. 12. ed. São Paulo: Malheiros, 2000.
MIRANDA, Francisco Cavalcanti Pontes de. Comentários à Constituição de 1946. VII. 2. ed. São Paulo:
Max Limonad, 1953.
MORAIS, Alexandre de. Direito constitucional. 19. ed. São Paulo: Atlas, 2006.
NASCIMENTO, Rogério José Bento Soares do. Abuso do poder de legislar. Controle judicial da legisla-
ção de urgência no Brasil e na Itália. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2004.
Novas tecnologias na Administração Pública, no
mercado e na sociedade: instrumentos para
aceleração da marcha ou verdadeiros entraves
para a condução do Brasil e dos brasileiros
rumo ao desenvolvimento?
Daniel Ferreira
Pós-doutor em Direito (IGC)
Doutor em Direito do Estado e Direito Administrativo (PUC-SP)
Professor e atual coordenador do Programa de
Mestrado em Direito (Uninter)
1 INTRODUÇÃO
1
FERREIRA, Daniel. A licitação pública no Brasil e sua nova finalidade legal: a promoção do desenvolvimento
nacional sustentável. Belo Horizonte: Fórum, 2012. p. 48.
2
SACHS, Ignacy. Rumo à ecossocioeconomia: teoria e prática do desenvolvimento. São Paulo: Cortez, 2007. p. 97.
Novas tecnologias na Administração Pública, no mercado e na sociedade 83
Isto é, aumento do PIB pari passu com melhor distribuição de renda, repercutindo (em tese)
na melhoria da qualidade de vida das pessoas, concretizada mediante verdadeira mobilidade
social.3
Mesmo assim o resultado do aumento do PIB e do PPC, juntos, pode não ser com-
patível com o desenvolvimento, bastando haver, por exemplo, diminuição considerável do
número de empregos a partir da adoção de novas tecnologias, como a automação. Como
por meio dela se otimizam recursos de diversas ordens, um processo fabril automatizado
ou modernizado, para usar o termo empregado por Gilberto Bercovicci, pode redundar em
aumento de lucratividade e diminuição dos preços finais dos produtos, satisfazendo a um só
tempo o empresário e uma boa parcela da população, sobretudo de menor renda,4 porém
com evidente prejuízo aos postos de trabalho.
Logo, para se garantir o crescimento econômico socialmente justo faz-se mister
melhorar a distribuição de renda e riqueza, sem sacrificar a busca diuturna pelo pleno empre-
go. Destarte, o único desenvolvimento admissível – como tal – é o includente, que “requer,
acima de tudo, a garantia do exercício dos direitos civis, cívicos e políticos”,5 de modo a
promover verdadeira e completa emancipação da pessoa humana, no sentido de libertação
de quaisquer amarras e assunção de responsabilidades, inclusive de transformação da rea-
lidade em benefício próprio e dos demais, o que exige a prestação-fruição de um trabalho
remunerado e em condições tais que se mostre apto a subsidiar uma vida decente, plena e
gratificante.6
Com efeito, esse crescimento econômico, ainda quando socialmente justo, não pode
se mostrar selvagem do ponto de vista ambiental, como ocorre na China, por exemplo. É
dizer, o crescimento econômico também precisa ser ordenado e autossustentável, no sentido
de garantir transmissão da capacidade produtiva sempre que necessário, inclusive de uma
geração para outra,7 o que pressupõe manutenção de padrões de degradação “aceitáveis”,
de modo a se “minimizar as mudanças irreversíveis e, sobretudo, os danos irreversí-
3
Eros Grau defende, desde 1980, que o desenvolvimento pressupõe crescimento econômico acompanhado de um
processo contínuo e intermitente de mobilidade social, que faz com que as pessoas ascendam de uma condição
para outra. (GRAU, Eros. Elementos de direito econômico. São Paulo: RT, 1981. p. 7-14).
4
“Desenvolvimento é um fenômeno com dimensão histórica: cada economia enfrenta problemas que lhe são es-
pecíficos. Não existem fases de desenvolvimento pelas quais, necessariamente, passam todas as sociedades
seguindo os moldes da industrialização européia. [...] Quando não ocorre nenhuma transformação, seja social,
seja no sistema produtivo, não se está diante de um processo de desenvolvimento, mas simples modernização”.
(BERCOVICI, Gilberto. Constituição econômica e desenvolvimento: uma leitura a partir da Constituição de 1988.
São Paulo: Malheiros, 2005. p. 52-53).
5
SACHS, Ignacy. Rumo à ecossocioeconomia: Op. cit., p. 39.
6
SACHS, Ignacy. Rumo à ecossocioeconomia: Op. cit., p. 293.
7
SILVA, Solange Teles. Desenvolvimento sustentável e florestas: reflexões iniciais. In: PIOVESAN, Flavia; SOARES,
Inês Virginia Prado (Orgs.). Direito ao desenvolvimento. Belo Horizonte: Fórum, 2010. p. 395-422.
84 Daniel Ferreira
veis”8 ao ecossistema – o que pode e deve ser alterado sempre que inovações tecnológicas
permitirem a obtenção dos mesmos resultados por alternativas menos poluentes e degra-
dantes do meio ambiente ecologicamente equilibrado.
Por isso, insiste-se: “de conseguinte, a sustentabilidade ambiental deve ser assumi-
da como um freio, não no sentido de atrasar o avanço na direção do desenvolvimento, mas
de dar a temperança necessária à escolha da velocidade e dos caminhos eleitos no rumo à
ecossocioeconomia do amanhã”.9 De todo modo, desenvolvimento não se resume a isso.
Como afirmado por Ignacy Sachs,
8
SACHS, Ignacy. Rumo à ecossocioeconomia: Op. cit., p. 99.
9
FERREIRA, Daniel. A licitação pública no Brasil e sua nova finalidade legal: Op. cit., p. 55.
10
SACHS, Ignacy. Rumo à ecossocioeconomia: Op. cit., p. 351-352.
Novas tecnologias na Administração Pública, no mercado e na sociedade 85
seu pessoal, particularizado e voluntário destino.11 E para ser livre é preciso, evidentemente
e pelo menos, ter-se oportunidade de acesso a trabalho digno, de modo a permitir autossub-
sistência e provisão singular ou associada das necessidades familiares.12
Mas há como ser verdadeiramente livre na sociedade (brasileira) do século XXI?
Tecnologia, como qualquer outra palavra, pode ser empregada em vários sentidos.
Para fins deste estudo, aproveitamos as mesmas considerações feitas por Patrícia Baptista
e Clara Iglesias Keller para o fim de fixar conteúdo semântico do termo, em sentido amplo,
como sendo “qualquer processo com capacidade de transformação da realidade, física ou
virtual”.13
Dessa feita, o fogo e sua utilização – ou dominação, se se preferir – exprimem tec-
nologia que vem sendo utilizada pela humanidade há milhares de anos. Por outra, é possível
referir ao isqueiro como um produto representativo de inovação tecnológica, e disruptiva,
no sentido de ter sido ele “capaz de enfraquecer ou, eventualmente, de substituir indústrias,
empresas ou produtos estabelecidos no mercado”,14 como o palito de fósforo.
Sendo assim, são as inovações tecnológicas disruptivas que devem mais “preocu-
par” as pessoas, físicas e jurídicas, bem como o próprio Estado, no sentido de compreen-
são, exame e eventual correção de rumo dos impactos (ocorridos ou ainda antevistos como
passíveis de ocorrer) nos âmbitos econômico, social, ambiental, político, institucional ou até
mesmo psicológico delas decorrentes.
11
SEN, Amartya. Desenvolvimento como liberdade. Trad. Laura Teixeira Motta. São Paulo: Companhia das Letras,
2010. p. 76-77.
12
“O trabalho dignifica não só por conta da possibilidade que dá ao indivíduo de alimentar a sua família, mas, tam-
bém, pelo desenvolvimento pessoal que fomenta. O exercício da atividade laborativa requer, no mais das vezes,
qualificação, profissionalização, técnica, ou seja, requer do trabalhador dedicação ao aprendizado de um ofício,
ao conhecimento em determinado setor, e o conhecimento é instrumento a serviço da liberdade, da autonomia.
É através do conhecimento que se exercita a razão”. (POPP, Carlyle; SETTI, Maria Estela Gomes. A pessoa com
deficiência e seu direito ao trabalho: estrutura e efetividade. In: GUNTHER, Luiz Eduardo; SANTOS, Willians Franklin
Lira dos; GUNTHER, Noeli Gonçalves da Silva. Tutela dos direitos da personalidade na atividade empresarial. v. III.
Curitiba: Juruá, 2010. p. 353).
13
BAPTISTA, Patrícia; KELLER, Clara Iglesias. Por que, quando e como regular as novas tecnologias? Os desafios
trazidos pelas inovações disruptivas. RDA – Revista de Direito Administrativo, Rio de Janeiro, v. 273, p. 123-163,
set./dez. 2016. p. 129.
14
BAPTISTA, Patrícia; KELLER, Clara Iglesias. Por que, quando e como regular as novas tecnologias? Op. cit., p.
130.
86 Daniel Ferreira
[...] à medida que os cidadãos são informados, tornam-se capazes de ações com
um retorno mais confiável, lucrativo e prático. Costa (1995) afirma que: “o indivíduo
em condições de adquirir novas tecnologias de informação apresenta, via de regra,
maiores possibilidades de sucesso, do ponto de vista de competitividade, de qualida-
de e de produtividade na maioria das situações da vida”. Este ambiente informacional
satura-nos com mensagens de natureza distintas; esta extraordinária expansão do
conteúdo informacional da vida moderna é uma forte característica da Sociedade da
Informação.16
15
FERREIRA, Daniel. A licitação pública no Brasil e sua nova finalidade legal: Op. cit., p. 51.
16
OLIVEIRA, Antonio Francisco Maia; BAZI, Rogério Eduardo Rodrigues. Sociedade da informação, transformação e
inclusão social: a questão da produção de conteúdos. Revista Digital de Biblioteconomia e Ciência da Informação,
Campinas, v. 5, n. 2, p. 115-131, jan./jun. 2008. p. 122-123.
Novas tecnologias na Administração Pública, no mercado e na sociedade 87
para cargo de nível médio, do que um morador de uma pequena cidade no interior nordestino
que não tem acesso a qualquer curso superior em seu domicílio.
Mutatis mutandis, o mesmo raciocínio-conclusão, dentre outros, permitiu a Ariane
Fernandes da Conceição titular-se doutora em desenvolvimento rural, junto à UFRS em 2016,
após defender a tese intitulada “Internet pra quê? – a construção de capacidades e as TIC no
processo de desenvolvimento rural”. Em suas conclusões, a olhos vistos também fortemen-
te influenciada por Amartya Sen, a autora deixou assim consignado:
17
CONCEIÇÃO, Ariane Fernandes da. Internet pra quê? – a construção de capacidades e as TIC no processo de
desenvolvimento rural. 2016. 208p. Tese (Doutorado em Desenvolvimento Rural) – UFRS, Porto Alegre, 2016. p.
191. Disponível em: https://lume.ufrgs.br/bitstream/handle/10183/150533/001009433.pdf?sequence=1&isAllo-
wed=y. Acesso em: 10 dez. 2019.
18
BAUMAN, Zygmunt. Modernidade líquida. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2001.
88 Daniel Ferreira
19
“Numa sociedade de consumidores, tornar-se uma mercadoria desejável e desejada é a matéria de que são feitos
os sonhos e os contos de fadas”. (BAUMAN, Zygmunt. Vida para consumo: a transformação das pessoas em
mercadoria. Trad. Carlos Alberto Medeiros. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2008. p. 22).
Novas tecnologias na Administração Pública, no mercado e na sociedade 89
Por fim, cita-se o problema decorrente fake news na seara política, apenas a título de
ilustração, tomando por base os seus efeitos em relação à eleição americana de 2016, por
conta da atuação da empresa de consultoria política Cambridge Analytica, que coletou dados
de quase cem milhões de usuários do Facebook – como confessado por ele mesmo – para,
a partir disso, dirigir mensagens de publicidade política adaptada, com vistas a deliberada-
mente influenciar potenciais eleitores a votarem em Donald Trump.
Nesses referidos contextos, o acesso à internet pode facilmente se transmudar de
ferramenta para o desenvolvimento das pessoas, das instituições e até mesmo de uma nação
para instrumento de opressão, de precarização da saúde (física e mental) e desnaturação
de instituições (como a família, a empresa, círculo de amizades etc.), além de repercutir em
problemas econômicos e sociais que transcendem o espaço doméstico ou laboral, trazendo
prejuízo para a coletividade, de modo que o menor acesso a ela pode funcionar como fator de
evitação de desenvolvimento nas suas dimensões econômica, social, ambiental (do traba-
lho), cultural, política e humana, propriamente dita, dentre outras, de forma direta ou indireta.
Em suma, o acesso à internet – como ferramenta tecnológica de informação e co-
municação que é faz décadas – pode ser uma benção ou uma catástrofe para o desenvol-
vimento, o que exige dos órgãos de Estado (Executivo, Legislativo e Judiciário) e da própria
Administração Pública redobrada atenção e tomada de providências, conforme cada caso,
consoante o direito vigente.
20
ABREU, Cristiano Nabuco de et al. Dependência de internet e de jogos eletrônicos: uma revisão. Revista Brasileira
de Psiquiatria, v. 30, n. 2, p. 156-167, 2008. p. 164-165.
90 Daniel Ferreira
21
FERREIRA, Daniel. A licitação pública no Brasil e sua nova finalidade legal: Op. cit., p. 59.
22
Art. 5º [...] - a lei assegurará aos autores de inventos industriais privilégio temporário para sua utilização, bem
como proteção às criações industriais, à propriedade das marcas, aos nomes de empresas e a outros signos
distintivos, tendo em vista o interesse social e o desenvolvimento tecnológico e econômico do País.
23
OLIVEIRA, Gustavo Henrique Justino de. Direito ao desenvolvimento na Constituição Brasileira de 1988. Revista
Eletrônica de Direito Administrativo Econômico (REDAE), Salvador, Instituto Brasileiro de Direito Público, n. 16,
nov./dez./jan. 2009. Disponível em: http://www.direitodoestado.com.br/redae.asp. Acesso em: 27 nov. 2019.
Novas tecnologias na Administração Pública, no mercado e na sociedade 91
24
“Empresa de Tecnologia da Informação e Comunicação do Estado do Pará, está vinculada à Secretaria de Esta-
do de Ciência, Tecnologia e Educação Técnica e Tecnológica (SECTET), faz parte do Conselho de Sistemas de
Informação e Telecomunicações (COSIT), por meio do Decreto de no. 1.489/2016, é a Empresa responsável
pela gestão e manutenção das Redes de Comunicação de Dados do Estado do Pará, por meio do Decreto de no.
796/2013, e ainda, é a Empresa que designada por propor, avaliar e recomendar as políticas e melhores práticas
de TIC para o Estado, por meio do Decreto de no. 1513/2016, visando a economicidade, eficiência e eficácia dos
gastos governamentais com TIC.” (PRODEPA. Quem somos. S.d. Disponível em: http://www.prodepa.pa.gov.br/
quem-somos. Acesso em: 5 dez. 2019).
25
PRODEPA. Regimento geral. S.d. Disponível em: http://www.prodepa.pa.gov.br/sites/default/files/REGIMENTO_
COMPLETO-V17_20_02_12_Por_Diretoria1_0.pdf. Acesso em: 5 dez. 2019.
92 Daniel Ferreira
mico-financeira para oferta. De todo modo, sabe-se que é necessária autorização legislativa
para tanto, de modo que esse tipo de “solução interventiva” não pode ser materializado pelo
Poder Executivo a seu exclusivo talante.
O mesmo se pode afirmar em relação à potencial disponibilização de acesso/cone-
xão à internet sob o manto do regime jurídico próprio dos serviços públicos. A atuação esta-
tal assim capitulada tem sido assumida como subsidiária em face de serviços não previstos
explicitamente na Constituição da República com essa feição. Logo, apenas quando induvi-
dosamente necessário e em relação a serviços que revelem interesse coletivo sobranceiro.
No caso do acesso à internet isso não se discute, ainda que os serviços de teleco-
municações sejam de competência material da União, consoante assim previsto no inc. XI
do art. 21: “XI - explorar, diretamente ou mediante autorização, concessão ou permissão, os
serviços de telecomunicações, nos termos da lei, que disporá sobre a organização dos ser-
viços, a criação de um órgão regulador e outros aspectos institucionais”. É que os serviços
de telecomunicações não se confundem com os serviços de acesso à internet, postos que
estes são assumidos por lei (não declarada inconstitucional) como uma “utilidade conexa”,
um serviço de valor adicionado.26
De conseguinte, mesmo quando prestado o serviço de telecomunicações de telefo-
nia fixa mediante concessão de serviço público, o concomitante oferecimento de acesso à
internet (estranhamente) não resta albergado pelo regime jurídico-administrativo, ainda que
sua essencialidade na sociedade contemporânea seja inconteste e, pois, sua universalização
se revelasse como de indiscutível interesse público há décadas.
Sendo assim, é preciso compreender como e em que medida o Marco Civil da Inter-
net – a Lei n. 12.965/2014 resolveu (ou não) o problema de universalização do acesso, que
se confirmou em seu bojo como condição de dignidade da pessoa humana na atualidade
e instrumento apto a auxiliar na promoção do desenvolvimento pleno dos indivíduos e das
instituições.
Dito marco legal trouxe novidades e previu, dentre tantas normas, algumas regras e
princípios de particular interesse para os fins deste estudo, basicamente os constantes dos
arts. 1º ao 4º, 6º ao 8º, aqui transcritos em partes, porém com os devidos destaques:
Art. 61. Serviço de valor adicionado é a atividade que acrescenta, a um serviço de telecomunicações que lhe dá
suporte e com o qual não se confunde, novas utilidades relacionadas ao acesso, armazenamento, apresentação,
movimentação ou recuperação de informações.
§ 1º Serviço de valor adicionado não constitui serviço de telecomunicações, classificando-se seu provedor como
usuário do serviço de telecomunicações que lhe dá suporte, com os direitos e deveres inerentes a essa condição.
§ 2° É assegurado aos interessados o uso das redes de serviços de telecomunicações para prestação de serviços
de valor adicionado, cabendo à Agência, para assegurar esse direito, regular os condicionamentos, assim como
o relacionamento entre aqueles e as prestadoras de serviço de telecomunicações.
Novas tecnologias na Administração Pública, no mercado e na sociedade 93
Art. 1º Esta Lei estabelece princípios, garantias, direitos e deveres para o uso da inter-
net no Brasil e determina as diretrizes para atuação da União, dos Estados, do Distrito
Federal e dos Municípios em relação à matéria.
Art. 2º A disciplina do uso da internet no Brasil tem como fundamento o respeito à
liberdade de expressão, bem como: [...]
II - os direitos humanos, o desenvolvimento da personalidade e o exercício da cidada-
nia em meios digitais; [...]
VI - a finalidade social da rede.
Art. 3º A disciplina do uso da internet no Brasil tem os seguintes princípios: [...]
IV - preservação e garantia da neutralidade de rede;
V - preservação da estabilidade, segurança e funcionalidade da rede, por meio de
medidas técnicas compatíveis com os padrões internacionais [...]
Art. 4º A disciplina do uso da internet no Brasil tem por objetivo a promoção:
I - do direito de acesso à internet a todos;
II - do acesso à informação, ao conhecimento e à participação na vida cultural e na
condução dos assuntos públicos;
III - da inovação e do fomento à ampla difusão de novas tecnologias e modelos de
uso e acesso; [...]
Art. 6º Na interpretação desta Lei serão levados em conta, além dos fundamentos,
princípios e objetivos previstos, a natureza da internet, seus usos e costumes particu-
lares e sua importância para a promoção do desenvolvimento humano, econômico,
social e cultural.
Art. 7º O acesso à internet é essencial ao exercício da cidadania, e ao usuário são
assegurados os seguintes direitos: [...]
IV - não suspensão da conexão à internet, salvo por débito diretamente decorrente de
sua utilização;
V - manutenção da qualidade contratada da conexão à internet; [...]
XII - acessibilidade, consideradas as características físico-motoras, perceptivas, sen-
soriais, intelectuais e mentais do usuário, nos termos da lei; e
XIII - aplicação das normas de proteção e defesa do consumidor nas relações de
consumo realizadas na internet.
Art. 8º A garantia do direito à privacidade e à liberdade de expressão nas comunica-
ções é condição para o pleno exercício do direito de acesso à internet.
Pouco existe a discutir acerca do conteúdo de tais comandos, eloquentes por si, os
quais, entretanto, muito mais apresentam intenções do que fornecem ferramentas jurídicas
operacionalizáveis para cumprimento dos fins legais mediante intervenção administrativa
ou mesmo judicial. Nada obstante, a literalidade de tais disposições normativas atende aos
reclamos deste artigo e confirma que o acesso à internet pode e deve contar com a fiscali-
zação dos poderes públicos e exigir deles intervenções criativas.
94 Daniel Ferreira
27
BRASIL. Ministério da Ciência, Tecnologia, Inovações e Comunicações. Internet para todos. O que é o programa:
S.d. Disponível em: https://internetparatodos.mctic.gov.br/portal_ipt/opencms. Acesso em: 3 jan. 2020.
Novas tecnologias na Administração Pública, no mercado e na sociedade 95
A ideia parece conveniente e útil, converge para a construção de uma sociedade livre,
justa e solidária, mas só o tempo dirá se ela será suficiente para atender os direitos previstos
no Marco Civil da Internet ou se ainda será preciso intervir, indiretamente, mediante outros
mecanismos de fomento. Na insuficiência, pela importância de tal serviço e pelo seu induvi-
doso caráter de essencialidade, vê-se como plausível intervenção indireta regulatória, quem
sabe impondo, em caráter extraordinário e em certas regiões ou para certas pessoas, com
necessidades especiais provisórias ou permanentes, a prestação desse serviço agregado
(de valor adicionado) como conditio sine qua non de funcionamento da empresa privada
exploradora de atividade econômica ou de manutenção da outorga do serviço público conce-
dido/permitido, sem prejuízo de se abrir a discussão relativamente a quem será responsável
por custear o serviço, conforme disposto no §2º, do art. 61, da LGT. Crê-se que o encargo
econômico deva ser dos governos e que o encargo tecnológico seja assumido pelo em-
presariado atuante na localidade ou região, ainda que também subsidiado pelo governo por
conta da eventual necessidade de aumento da infraestrutura porventura existente. Portanto, a
necessidade de acesso à internet, e como condição de desenvolvimento que é, pode ensejar
intervenção estatal, direta ou indireta, que se robustece extraordinária, porém paulatinamen-
te, em qualidade e em quantidade, conforme a concreta necessidade.
Há que se tratar, também, da situação das pessoas que não tem condições econômi-
co-financeiras de custear o serviço, seja ele prestado pela iniciativa privada, seja ele dispo-
nibilizado até mesmo por empresas públicas. Por apenas um motivo, sem prejuízo de tantos
outros, entende-se que o pagamento por tais serviços seja de responsabilidade dos poderes
públicos, mais precisamente da Administração Pública. Afinal, como se exige, no Brasil,
transparência administrativa como exercício da cidadania ativa e como os serviços adminis-
trativos públicos estão sendo concretizados em atos e processos digitais visando conferir
maior transparência e obter economia de tempo e de recursos públicos (eficiência adminis-
trativa), então deve ser da alçada administrativa garantir os meios e as condições para que
tal “modernização” não afete negativamente a fruição de direitos e garantias fundamentais.
Como apontado por Thiago Marrara, o uso de “novas tecnologias voltadas à democratização
de informações e serviços públicos sem a devida observância de aspectos sociais, culturais
e econômicos corre o risco, já apontado, de restringir a cidadania e não ampliá-la”.28 E isso é
inconcebível, por evidente, relativamente à necessidade-utilidade de acesso à internet.
E enquanto isso não se concretizar, cogita-se de uma solução paliativa, qual seja
a de se garantir que toda e qualquer repartição pública disponibilize acesso à internet de
banda larga por meio de rede wi-fi de acesso ao público em geral, sem prejuízo de o mesmo
ocorrer em espaços públicos abertos, como parques. Tem-se notícia de que no Município de
28
MARRARA, Thiago. Direito administrativo e novas tecnologias. RDA – Revista de Direito Administrativo, Rio de
Janeiro, v. 256, p. 225-251, jan./abr. 2011. p. 240.
96 Daniel Ferreira
São Paulo já há centenas de pontos em que o acesso à internet, provido pelo Poder Público,
se universaliza, ainda que apernas perante a “coletividade” alcançada geograficamente pela
rede.
Derradeiramente, em relação ao dever estatal de evitar ou responder aos malefícios
derivados, direta ou indiretamente, do acesso à internet viabilizada por meio de serviços pri-
vados, vislumbra-se a regulação e a fiscalização (bem como seu desdobramento sanciona-
tório, se for o caso) como ferramentas legítimas e necessárias, não podendo haver omissão
injustificada nesse nicho, pelas razões fático-jurídica esmiuçadas. Entretanto, esse papel
aqui importa menos, e dispensa maior aprofundamento, por não se tratar de intervenção
inclusiva, voltada à ampliação do acesso.
5 CONSIDERAÇÕES FINAIS
REFERÊNCIAS
ABREU, Cristiano Nabuco de et al. Dependência de internet e de jogos eletrônicos: uma revisão. Revista
Brasileira de Psiquiatria, v. 30, n. 2, p. 156-167, 2008.
BAPTISTA, Patrícia; KELLER, Clara Iglesias. Por que, quando e como regular as novas tecnologias? Os
desafios trazidos pelas inovações disruptivas. RDA – Revista de Direito Administrativo, Rio de Janeiro,
v. 273, p. 123-163, set./dez. 2016.
BAUMAN, Zygmunt. Vida para consumo: a transformação das pessoas em mercadoria. Trad. Carlos
Alberto Medeiros. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2008.
BRASIL. Ministério da Ciência, Tecnologia, Inovações e Comunicações. Internet para todos. O que é o
programa: S.d. Disponível em: https://internetparatodos.mctic.gov.br/portal_ipt/opencms. Acesso em:
3 jan. 2020.
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Porto Alegre, 2016. Disponível em: https://lume.ufrgs.br/bitstream/handle/10183/150533/001009433.
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FERREIRA, Daniel. A licitação pública no Brasil e sua nova finalidade legal: a promoção do desenvolvi-
mento nacional sustentável. Belo Horizonte: Fórum, 2012.
MARRARA, Thiago. Direito administrativo e novas tecnologias. RDA – Revista de Direito Administrativo,
Rio de Janeiro, v. 256, p. 225-251, jan./abr. 2011.
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formação e inclusão social: a questão da produção de conteúdos. Revista Digital de Biblioteconomia e
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OLIVEIRA, Gustavo Henrique Justino de. Direito ao desenvolvimento na Constituição Brasileira de 1988.
Revista Eletrônica de Direito Administrativo Econômico (REDAE), Salvador, Instituto Brasileiro de Direito
Público, n. 16, nov./dez./jan. 2009. Disponível em: http://www.direitodoestado.com.br/redae.asp. Aces-
so em: 27 nov. 2019.
98 Daniel Ferreira
POPP, Carlyle; SETTI, Maria Estela Gomes. A pessoa com deficiência e seu direito ao trabalho: estrutura
e efetividade. In: GUNTHER, Luiz Eduardo; SANTOS, Willians Franklin Lira dos; GUNTHER, Noeli Gonçal-
ves da Silva. Tutela dos direitos da personalidade na atividade empresarial. v. III. Curitiba: Juruá, 2010.
SACHS, Ignacy. Rumo à ecossocioeconomia: teoria e prática do desenvolvimento. São Paulo: Cortez,
2007.
SEN, Amartya. Desenvolvimento como liberdade. Trad. Laura Teixeira Motta. São Paulo: Companhia
das Letras, 2010.
SILVA, Solange Teles. Desenvolvimento sustentável e florestas: reflexões iniciais. In: PIOVESAN, Flavia;
SOARES, Inês Virginia Prado (Orgs.). Direito ao desenvolvimento. Belo Horizonte: Fórum, 2010.
Contratação temporária de professores substitu-
tos: a problemática da “sucessividade” e o dile-
ma das pequenas unidades administrativas
1 INTRODUÇÃO
É sabido por todos que o acesso a cargos e empregos públicos1 é em regra, a via do
concurso público. Tal mandamento constitucional que guarda lugar no inciso II do artigo 37
da vigente Constituição Federal2 não deixa margem para interpretações diversas, haja vista
que corolário com os princípios insculpidos no caput do mesmo dispositivo e com a intenção
do constituinte em assegurar a universalização do acesso a cargos públicos.
Exceção à regra guarda previsão no mesmo artigo 37, cujo inciso IX preconiza que “a
lei estabelecerá os casos de contratação por tempo determinado para atender a necessidade
temporária de excepcional interesse público”. Fato é que, tornou-se rotina em áreas estraté-
gicas da administração pública, nas três esferas de governo, contratações desta natureza em
especial na área da educação a que se destina o presente estudo.
1
Nas palavras de Odete Medauar, em seu livro Direito Administrativo Moderno, “Cargo público é o conjunto de atri-
buições e responsabilidades cometidas a um servidor, criado por lei, em número certo, com denominação própria,
remunerado pelos cofres públicos”. (MEDAUAR, Odete. Direito administrativo moderno. 21. ed. Belo Horizonte:
Fórum, 2018. p. 270).
2
II - a investidura em cargo ou emprego público depende de aprovação prévia em concurso público de provas ou
de provas e títulos, de acordo com a natureza e a complexidade do cargo ou emprego, na forma prevista em lei,
ressalvadas as nomeações para cargo em comissão declarado em lei de livre nomeação e exoneração;
100 Eduardo dos Santos Dionizio
É indiscutível que educação e saúde são setores da administração que mais deman-
dam por mão de obra, inclusive especializada, seja pelo seu caráter de política pública essen-
cial, cuja providência é em primeiro plano do ente estatal, seja porque, dada sua abrangência,
exige-se número significativo de colaboradores. Nesse contexto, nem sempre o quantitativo
de servidores que compõe os quadros efetivos do órgão atende a contento a prestação do
serviço público, mormente se ocorrerem situações inesperadas.
A oferta de tais serviços públicos, por se tratarem de áreas fins da administração, o
provimento3 de seus cargos devem ocorrer pela via regular do concurso público. Ocorre que,
há situações em que não é possível prover cargos, e isso ocorre quando seus ocupantes
os deixam temporariamente para desempenhar outras funções, surge daí a necessidade da
contratação temporária a fim de manter a oferta do serviço.
No âmbito da educação, inúmeros são os professores do quadro efetivo que se
encontram lotados em outras funções de magistério4, administrativas ou até mesmo ocu-
pando cargos eletivos. São essas vagas, somadas a outras decorrentes de afastamentos ou
licenças que são cotidianamente supridas por profissionais contratados temporariamente.
Hodiernamente, órgãos de controle, especialmente os Tribunais de Contas e o Poder
Judiciário vem decidindo no sentido de obstar que os entes federados mantenham sucessi-
vas contratações da mesma pessoa, sob o fundamento de que, ao agir desta forma, está a
administração a ferir o princípio do concurso público.
Tal entendimento tem sido motivo de preocupações de Prefeitos e gestores da edu-
cação de pequenos Municípios, tendo em vista que, nestas unidades a oferta desta mão
de obra é um tanto quanto escassa, diferentemente das grandes e médias cidades que, ao
deflagrar uma seleção simplificada conta com farto quantitativo de candidatos inscritos.
No presente trabalho, muito longe de querer esgotar o tema, pretende-se demonstrar
que, independentemente de quem seja a pessoa a ser contratada temporariamente, oriunda
ou não de vínculos anteriores, a realização periódica de processo seletivo simplificado afasta
a pessoalidade, contempla a moralidade e corrobora para a escolha de profissionais melhor
preparados para o desempenho da docência.
3
Para Marçal Justen Filho, “O provimento consiste em ato administrativo unilateral, por meio do qual o Estado
atribui a determinado particular a condição de titular de um cargo” (JUSTEN FILHO, Marçal. Curso de direito
administrativo. 8. ed. rev. ampl. e atual. Belo Horizonte: Fórum, 2012. p. 891).
4
São profissionais que oferecem “suporte pedagógico” direto ao exercício da docência: direção ou administração
escolar, planejamento, inspeção, supervisão, orientação educacional e coordenação pedagógica. (art. 22, II da Lei
11.494/2007).
Contratação temporária de professores substitutos 101
Para fins do presente estudo, necessário se faz entender o que determina o inciso IX
do artigo 37, já alhures transcrito.
É de se ver que, logo de início, referido dispositivo se apresenta como norma cons-
titucional de eficácia limitada, pendente, portanto, de regulamentação. Nesse sentido,os
casos de contratação para atender a necessidade temporária, hão que estar previstos em
lei, inclusive quanto à excepcionalidade. Não está autorizada a administração a promover
contratações temporárias de forma deliberada senão por expressa autorização legal, haja
vista a precariedade da disciplina tratada no citado inciso IX.
Ao julgar a ADI n. 3662/MT5 o Supremo Tribunal Federal entendeu que a Constituição
Federal “é intransigente em relação ao princípio do concurso público como requisito para o
provimento de cargos públicos” e ainda que “a exceção prevista no inciso IX do art. 37 da CF
deve ser interpretada restritivamente, cabendo ao legislador infraconstitucional a observância
dos requisitos da reserva legal”. Nesse sentido, vale ressaltar que, é a lei quem vai estabele-
cer a excepcionalidade, a necessidade temporária, os casos e o período em que ocorrerá a
contratação por tempo determinado.
Contratações temporárias realizadas de forma genérica, sem que haja a exata
quantificação dos cargos, o período em que estas se darão e a clara demonstração do
interesse público envolvido fere de morte o mandamento constitucional previsto no inciso
IX do art. 37.
Fabricio Motta6 ao discorrer sobre a Lei autorizadora assevera que, “Não atende aos
requisitos constitucionais a lei que meramente autoriza contratações, estabelecendo o quan-
titativo ou o nome dos contratados, sem a necessária caracterização do interesse (público)
a ser atendido”.
Em resposta à consulta formulada pelo município de Costa Rica-MS, o Tribunal de
Contas do Estado de Mato Grosso do Sul em percuciente Parecer-Consulta7 da Relatoria
do Conselheiro Iran Coelho das Neves entendeu que “é possível a contratação temporária
de professores, desde que preenchidos os seguintes requisitos: (i) excepcional interesse
público; (ii) temporalidade da contratação; e, (iii) hipótese expressamente previstas em lei.
Todavia, a regra para a investidura nos cargos de professores é mediante a realização de
concurso público (art. 37, II; e, art. 206, V: CF)”.
5
ADI 3662/MT - Relator: Min. Marco Aurélio, Redator: Min. Alexandre de Moraes. Julgado em: 23/03/2017.
6
DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella; MOTTA, Fabrício; FERRAZ, Luciano de Araújo. Servidores públicos na Constitui-
ção Federal. 3. ed. São Paulo: Atlas, 2015. p. 87.
7
Parecer Consulta n. 00-10/2018. Tribunal Pleno. Relator: Cons. Iran Coelho das Neves. Julgado em 31/10/2018.
Publicado no DOE-TCE/MS n. 1905 de 26/11/2018.
102 Eduardo dos Santos Dionizio
3 CONTRATAÇÃO/CONVOCAÇÃO TEMPORÁRIA DE
PROFESSOR SUBSTITUTO
8
MAGALHÃES, Gustavo Alexandre. Contratação temporária por excepcional interesse público: aspectos polêmi-
cos. 2. ed. São Paulo: Atlas, 2012. p. 134.
9
Art. 205. A educação, direito de todos e dever do Estado e da família, será promovida e incentivada com a cola-
boração da sociedade, visando ao pleno desenvolvimento da pessoa, seu preparo para o exercício da cidadania e
sua qualificação para o trabalho.
10
Provimento é o ato pelo qual o poder público designa para ocupar cargo, emprego ou função a pessoa física que
preencha os requisitos legais (DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella; MOTTA, Fabrício; FERRAZ, Luciano de Araújo.
Servidores públicos na Constituição Federal. Op. cit., p. 75).
Contratação temporária de professores substitutos 103
11
São inúmeros os professores que são convidados a ocupar cargos de direção superior, como é o caso de ser
nomeado Secretário de Educação.
12
Nos termos do inciso II do artigo 22 da Lei 11.494/2007, são “profissionais do magistério da educação: docentes,
profissionais que oferecem suporte pedagógico direto ao exercício da docência: direção ou administração escolar,
planejamento, inspeção, supervisão, orientação educacional e coordenação pedagógica;”
13
Como é o caso de alguns cargos eletivos.
104 Eduardo dos Santos Dionizio
Todas as vezes que o professor é alçado a outros cargos ou funções que não a da
docência sua vaga deve ser suprida sob pena de comprometer o interesse público envolvido,
neste caso, a continuidade das aulas aos estudantes.
Ainda sobre o tema, o Supremo Tribunal Federal14 entendeu pela constitucionalidade
de lei autorizativa para contratação temporária de professores ainda que os cargos este-
jam vagos, para atender a determinadas situações transitórias, como já dito, os eventuais
afastamentos. Assim, entendeu a Suprema Corte que: “O artigo 37, IX, da Constituição exi-
ge complementação normativa criteriosa quanto aos casos de ‘necessidade temporária de
excepcional interesse público’ que ensejam contratações sem concurso. Embora recruta-
mentos dessa espécie sejam admissíveis, em tese, mesmo para atividades permanentes da
Administração, fica o legislador sujeito ao ônus de especificar, em cada caso, os traços de
emergencialidade que justificam a medida atípica.”.
O objeto da referida ADI foi a Lei Complementar n. 22/2000 do Estado do Ceará que
autoriza a contratação temporária de professores em situações como: licença para tratamen-
to de saúde, licença gestante, licença por motivo de doença de pessoa da família, licença
para trato de interesses particulares e cursos de capacitação.
Em situações como essas, não há que se falar na realização de concurso público
para provimento do cargo, pois conforme já dito, não ocorrera sua vacância definitiva, mas
sim, uma espécie de vacância provisória, ou seja, a qualquer momento o titular do cargo
pode retornar a desempenhar suas atribuições, daí sua natureza transitória. Evidentemente
que tal situação não prescinde da realização de regular processo seletivo simplificado con-
forme será abordado no presente estudo.
14
ADI 3721, Relator: Min. Teori Zavascki, Tribunal Pleno, julgado em 09/06/2016, Acórdão Eletrônico DJe-170
Divulg. 12-08-2016. Publicado em 15-08-2016.
15
Referida Lei regulamenta os casos de contratação por tempo determinado no âmbito da União.
16
Aprova o Plano Único de Classificação e Retribuição de Cargos e Empregos de que trata a Lei n. 7.596 de 10 de
abril de 1987.
Contratação temporária de professores substitutos 105
17
Considera-se “vaga pura” aquela decorrente da vacância do “cargo” que somente pode ser ocupada por servidor
aprovado em concurso público.
106 Eduardo dos Santos Dionizio
Data máxima vênia, não nos parece adequado se aplicar tal entendimento de forma
genérica, porquanto não se observar a realidade enfrentada por inúmeros municípios Brasil
afora.
Existem diferenças gritantes na oferta de mão de obra de professor entre as grandes
cidades brasileiras e as pequenas unidades administrativas que, diga-se de passagem, são
inúmeras. No primeiro caso, ao se deflagrar um edital para seleção temporária de professo-
res, milhares de profissionais concorrerão, haja vista a farta oferta. Tal realidade não ocorre
nos pequenos Municípios. No mais das vezes, são os mesmos profissionais que concorrem
ao certame, configurando desta feita as sucessivas contratações da mesma pessoa.
Em recente decisão, o Tribunal de Contas do Estado de Mato Grosso do Sul entendeu
pelo não registro do ato de contratação temporária por violação à norma constitucional, haja
vista que em sede de controle externo verificou-se “contratações sucessivas do mesmo
agente para exercer a mesma função, que evidencia ausência de determinabilidade do prazo
de contratação, de temporariedade e de excepcionalidade de situação de interesse público,
em detrimento à obrigatoriedade do concurso público”.18 Aliás, é este o entendimento que
vem se consolidando no âmbito daquela Corte de Contas.
Acertada foi a balizada decisão do TCE-MS quando se constatou no ato de contra-
tação temporária a ausência de requisitos essenciais à sua validade, quais sejam, o prazo e
a excepcionalidade para a admissão do profissional, além, das “sucessivas contratações”.
Não obstante os acertos do referido acórdão, chama-se à atenção a aspectos voltados aos
termos “mesmo agente para exercer a mesma função”, o que se verá mais adiante.
Não é incomum que, muitos municípios brasileiros por repetidas vezes, se descuram
dos mais comezinhos deveres na formalização do ato administrativo, dentre eles a observân-
cia do princípio da motivação, como se verá no presente estudo. No caso do citado julgado,
não poderia ser diferente, a decisão do relator em que se constatou a presença de elementos
que descaracterizam a necessidade da contratação por tempo determinado.
Na mesma linha, Cármen Lúcia Antunes Rocha ao discorrer sobre contratações su-
cessivas nos leciona que, “Não configura ofensa à isonomia a previsão legal de proibição,
por prazo determinado, de nova contratação de candidato já anteriormente admitido em pro-
cesso seletivo simplificado para atender a necessidade temporária de excepcional interesse
público, sob pena de transformar-se ‘em ordinário o que é, pela sua natureza, extraordinário
e transitório”.19
18
Acórdão 02-500/2019. Processo TC/MS-31625/2016. Relator Cons. Ronaldo Chadid. Publicado em: 07/08/2019.
19
ROCHA, Cármen Lúcia Antunes. Princípios constitucionais dos servidores públicos. São Paulo: Saraiva, 1999.
p. 244.
Contratação temporária de professores substitutos 107
20
“Art. 3º O recrutamento do pessoal a ser contratado, nos termos desta Lei, será feito mediante processo seletivo
simplificado sujeito a ampla divulgação, inclusive através do Diário Oficial da União, prescindindo de concurso
público”.
108 Eduardo dos Santos Dionizio
De outro norte, não se pode confundir processo seletivo simplificado com concurso
público, haja vista que aquele visa precipuamente selecionar pessoas em caráter precário
e transitório, enquanto perdure o excepcional interesse público, de outra banda, este visa
prover, em caráter definitivo, cargos ou empregos públicos. “Essa seleção não substitui nem
elimina a obrigatoriedade de posterior concurso, no caso de necessidade permanente dos
serviços e da mão de obra, nem pode ser fonte de direito à permanência do contratado na
função”.21
Sobre o assunto, em recente julgado o Supremo Tribunal Federal22 decidiu que: “em-
bora não se aplique integralmente as regras do concurso público para as contratações por
necessidade temporária, deve a seleção simplificada observar os princípios da impessoali-
dade e da moralidade, inscritos no art. 37, caput, da CRFB”.
Pode se afirmar que a escolha das pessoas que irão atuar como contratados tempo-
rariamente se precedida de regular processo seletivo simplificado é capaz de assegurar não
somente a obediência a esses princípios, mas como também possibilitar a escolha da mão
de obra melhor qualificada para o exercício da função pública.
Vale ressaltar que, são condições inarredáveis para o suprimento temporário de
vagas de professores: i) a Lei autorizadora em que se descreva expressamente os casos
de contratação por tempo determinado, ii) a necessidade temporária e iii) o excepcional
interesse público envolvido, além evidentemente, da motivação do ato de nomeação. “O
diploma legislativo estabelecerá critérios objetivos para a identificação das hipóteses em que
o excepcional interesse público justificará a contratação”.23
Conforme já dito, rotineiramente surgem os casos em que o interesse público não
pode restar prejudicado em razão da falta de providências pela administração. No caso do
ensino, não resta facultado ao gestor público ofertá-lo ou não, constitui-se um “dever”.24
Por outro lado, nem sempre as vagas existentes serão providas mediante a realização
do concurso público haja vista que a qualquer momento o seu titular pode reassumi-la. Ainda
existem os casos de vacância do cargo pelos motivos já alhures elencados que, enquanto se
aguarda a realização do certame, devem ser ocupados temporariamente.
21
DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella; MOTTA, Fabrício; FERRAZ, Luciano de Araújo. Servidores públicos na Constitui-
ção Federal. Op. cit., p. 90.
22
RE 635.648, Ceará - Relator Min. Edson Fachin. Julgado em: 14/06/2017.
23
DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella; MOTTA, Fabrício; FERRAZ, Luciano de Araújo. Servidores públicos na Constitui-
ção Federal. Op. cit., p. 87.
24
O Art. 205 da Constituição Federal de 1988 expressamente determina que: “A educação, direito de todos e dever
do Estado e da família, será promovida e incentivada com a colaboração da sociedade, visando ao pleno desen-
volvimento da pessoa, seu preparo para o exercício da cidadania e sua qualificação para o trabalho”.
Contratação temporária de professores substitutos 109
É neste cenário que surge a figura da seleção simplificada como mecanismo eficiente
e capaz de afastar escolhas pessoais que, do ponto de vista principiológico são de um todo
imorais.
7 CONSIDERAÇÕES FINAIS
REFERÊNCIAS
BRASIL. [Constituição (1988)]. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Brasília: Presi-
dência da República, 1988. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constitui-
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buição de Cargos e Empregos de que trata a Lei n. 7.596, de 10 de abril de 1987. Brasília: Presidência
da República, 1987. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto/Antigos/D94664.htm.
Acesso em: 5 set. 2019.
BRASIL. Lei 7.596, de 10 de abril de 1987. Altera dispositivos do Decreto-lei n. 200, de 25 de fevereiro
de 1967, modificado pelo Decreto-lei n. 900, de 29 de setembro de 1969, e pelo Decreto-lei n. 2.299, de
Contratação temporária de professores substitutos 111
BRASIL. Lei 8.745 de 9 de dezembro de 1993. Dispõe sobre a contratação por tempo determinado para
atender a necessidade temporária de excepcional interesse público, nos termos do inciso IX do art. 37
da Constituição Federal, e dá outras providências. Brasília: Presidência da República, 1993. Disponível
em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Leis/L8745cons.htm. Acesso em: 5 set. 2019.
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gado em 09/06/2016, Acórdão Eletrônico DJe-170 Divulg. 12-08-2016. Publicado em 15-08-2016.
Disponível em: https://www.STF.jus.br. Acesso em: 5 set. 2019.
BRASIL. Supremo Tribunal Federal-STF. ADI 3662/MT. Relator: Min. Marco Aurélio, Redator: Min. Ale-
xandre de Moraes. Julgado em: 23/03/2017. Disponível em: https://www.STF.jus.br. Acesso em: 20
ago. 2019.
BRASIL. Supremo Tribunal Federal-STF. RE 635.648/CE. Relator Min. Edson Fachin. Julgado em:
14/06/2017. Disponível em: https://www.STF.jus.br. Acesso em: 5 set. 2019.
BRASIL. Tribunal de Contas do Estado de Mato Grosso do Sul. Parecer Consulta n. 00-10/2018. Tribunal
Pleno. Relator: Cons. Iran Coelho das Neves. Julgado em 31/10/2019. Publicado no DOE n. 1905 de
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ROCHA, Cármen Lúcia Antunes. Princípios constitucionais dos servidores públicos. São Paulo: Sa-
raiva, 1999.
Estado gerencial, regulação e desenvolvimento:
o papel da Administração Pública na indução
dos agentes privados à promoção social
1 INTRODUÇÃO
1
Tanto no Brasil Império quanto no primeiro período da República, enquanto os senhores de Terra e os grandes
comerciantes se ocupavam da economia, ao Estamento burocrático ligado por laços de família ao patriarcado
rural cabia dominar com relativa autonomia o Estado e a Política. BRESSER-PEREIRA, Luiz Carlos. Do Estado
patrimonial ao gerencial. In: PINHEIRO, Paulo S.; WILHEIM, Jorge; SACHS, Ignacy (Orgs.). Brasil: um século de
transformações. São Paulo: Cia. das Letras, 2001. p. 222.
2
Pertinente é a distinção entre Estado autoritário e Estado fascista proposta por Azevedo Amaral, delimitando o
período do Estado Novo como governo, no qual a autoridade estatal obliterou-se de modo acentuado, com a
confusão política e a ataxia dos movimentos de Administração Pública, porém, garantido certo grau de liberdade
do indivíduo e exercício da liberdade de iniciativa no plano econômico, observada as restrições do bem comum
proposto pelo chefe do Executivo. AMARAL, Azevedo. O Estado autoritário e a realidade nacional. Rio de Janeiro:
José Olympio, 1938. p. 6.
Estado gerencial, regulação e desenvolvimento 115
3
Observa-se até atualmente os perniciosos resquícios do patrimonialismo, a corrupção persistente, as políticas
paternalistas e a ineficiência na gestão estatal. Sobre o tema, vide: FAORO, Raymundo. Os donos do poder. 15.
ed. São Paulo: Globo, 2000. FREYRE, Gilberto. Casa-grande e senzala. 39. ed. Rio de Janeiro: Record, 2000; e
NUNES, Edson. A gramática política do Brasil – clientelismo e insulamento burocrático. Rio de Janeiro: Jorge
Zahar, 1997.
4
Não se trata a globalização de fenômeno novo, mas de evento recorrente em períodos de difusão cultural, po-
lítica, econômica ou religiosa, denotado pela expansão da informação e do conhecimento através da revolução
das comunicações. MOREIRA NETO, Diogo de Figueiredo. Globalização, regionalização, reforma do Estado e da
Constituição. Revista de Direito Administrativo, n. 215, p. 1-20, jan./mar. 1998.
5
Corresponde a instrumentos de modernização da administração, que buscam traduzir maior eficiência funcional
e produtividade a gestão pública, em uma nova concepção da relação entre Estado e sociedade, que envolve o
movimento de retorno da sociedade na prestação do serviço público. TÁCITO, Caio. A reforma do Estado e a
modernidade administrativa. Revista de Direito Administrativo, n. 215, jan./mar. 1999. p. 4-5.
6
Isso envolve uma mudança paradigmática também no direito administrativo com a ascensão de novos princípios
que orientam a atividade estatal e a releitura dos seus principais institutos. Sobre o tema, vide: BAPTISTA, Patrícia.
Transformações do direito administrativo. Rio de Janeiro: Renovar, 2003. Para uma análise da reforma adminis-
trativa a partir dos planos apresentados, vide a obra: MOREIRA NETO, Diogo de Figueiredo. Apontamentos sobre
a reforma administrativa. Rio de Janeiro: Renovar, 1999. Em especial Capítulo I.
7
A atuação estatal passa a se concentrar apenas nas demandas que devido sua complexidade e a necessidade de
ação concentrada e imperativa, não podem ser atendidas pela própria comunidade. Neste tocante, a ingerência
das organizações políticas obedecerá ao princípio organizador do poder, de forma que primariamente caberá ao
ente local a satisfação do interesse público, na impossibilidade ao ente regional e apenas diante de nova inviabi-
lidade ao ente nacional. MOREIRA NETO, Diogo de Figueiredo. Mutações do direito administrativo. 2. ed. Rio de
Janeiro: Renovar, 2001. p. 20-21.
8
As insuficiências do processo democrático restrito à prerrogativa popular de eleição, a impossibilidade da lei
alcançar a integralidade do fenômeno administrativo e a multiplicação dos centros de decisão no interior da
116 Emerson Affonso da Costa Moura
Administração, denotam a crise de legitimidade da atividade administrativa que aliada à centralidade do indivíduo
na ordem jurídica impõe a substituição do modelo autoritário de gestão pública para a ordenação dos múltiplos
interesses sociais mediante a participação dos indivíduos influenciando e persuadindo a tomada de decisões.
BAPTISTA, Patrícia. Transformações do direito administrativo. Op. cit., p. 120-142.
9
Observa-se a crescente instituição de modelos de colaboração entre a Administração Pública e a sociedade que
permitem mediante parcerias o melhor desempenho de funções administrativas. Por efeito, observa-se acréscimo
de governabilidade, além de figurar como limites contra os abusos. TÁCITO, Caio. Direito administrativo participa-
tivo. Carta Mensal, CNC, v. 43, ago. 1997. p. 509.
10
Há uma inversão do modelo clássico, onde a fixação da finalidade orbitava na delimitação prévia da competência,
para uma nova concepção baseada na delimitação prévia da finalidade, determinada o âmbito de competência e
o ente ou órgão adequado à persecução daquele fim. MOREIRA NETO, Diogo de Figueiredo. Mutações do direito
administrativo. Op. cit., p. 22-24.
11
Abrange os mecanismos e técnicas estatais exteriorizados precipuamente de normas e regulamentos dispositivos,
que buscam conformar a atividade individual à consecução do interesse econômico e social almejado pela ordem
constitucional. Sobre o tema, vide: GRAU, Eros Roberto. A ordem econômica na Constituição de 1988. São Paulo:
Malheiros, 2003. p. 305-307.
12
Dessa forma, não se limita apenas as funções normativas, porém, compreende as de conciliação, mediação e
arbitragem, bem como, de fiscalização e fomento, desde o planejamento até o controle do setor ou atividade com
fins de propiciar o máximo de eficiência na solução de problemas. MOREIRA NETO, Diogo de Figueiredo. Direito
regulatório. Rio de Janeiro: Renovar, 2003. p 107-109.
13
Insere-se no processo de especialização e segmentação do Direito Administrativo, que torna necessário o surgi-
mento de novas estruturas – entes reguladores autônomos – capazes de promover mediante novas categorias
normas – normas regulatórias – a regulação de subsistemas de normatização e mediação, dotados de conceitos,
Estado gerencial, regulação e desenvolvimento 117
3 REGULAÇÃO ESTATAL
princípios e procedimentos adequados à sua especialidade do setor econômico ou social. MARQUES NETO, Flo-
riano Azevedo. A nova regulação estatal e as agências independentes. In: SUNDFELD, Carlos Ari (Coord.). Direito
administrativo econômico. 1. ed. São Paulo: Malheiros, 2002. p. 82-83. SOUTO, Marcos Juruena Villela. Direito
administrativo regulatório. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2002. p. 20-21.
14
Ademais, uma vez que a intervenção sobre a economia ocorre através do exercício de autênticas expressões
do poder de polícia estatal, como por e.g. fiscalização e aplicação de sanções, tornou-se necessária a forma
de pessoa jurídica de direito público, justificando-se a implementação das agências reguladoras sob a forma de
autarquias com regime especial. BINENBOJM, Gustavo. O sentido da vinculação administrativa à juridicidade no
Direito brasileiro. Op. cit., p. 251.
15
Insere-se na subtração pelos agentes reguladores especializados de decisões cujo fundamento deve obedecer a
regras técnico-científicas da competência direta dos centros de decisão político-administrativa que se pautam por
juízos de oportunidade e conveniência formulados por políticos e burocratas não especializados. MOREIRA NETO,
Diogo de Figueiredo. Mutações do direito administrativo. Op. cit., p. 168-170.
16
Situa-se, por um lado, no movimento de redimensionamento da imperatividade estatal que buscando um ajuste
de equilíbrio entre a coerção e o consenso produz um conceito do público não-estatal em um fenômeno de des-
monopolização do poder. Por outro, engloba a passagem de uma Administração monista e monorganizada para
uma Administração Pública Pluralista e Pluriorganizada em razão da fragmentação e despublicização do interesse
público. Sobre o tema, vide: MOREIRA NETO, Diogo de Figueiredo. Mutações do direito público. Rio de Janeiro:
Renovar, 2006. p. 385-391.
118 Emerson Affonso da Costa Moura
e social inerente ao dever de boa administração exercido antes mediante atuação precipua-
mente fiscalizatória de órgãos subordinados.17
Isto envolveu a redefinição dos papéis dos atores sociais e estatais na gestão do
interesse público, através da dissociação do espaço público da esfera estatal e a coordena-
ção de suas atuações, voltando à sociedade a atividade de promoção dos bens e o Estado à
função de mediador do serviço, da competitividade e dos conflitos.18
Neste tocante, a Constituição da República de 1988 instituiu uma ordem econômica
baseada na livre iniciativa, garantindo a livre concorrência, a proteção da propriedade, bem
como, a exploração direta pela iniciativa privada da atividade produtiva, assumindo o Estado
um papel de agente regulador e executor direto excepcional.19
Na regulação, portanto, o Estado intervirá nas relações dentro de uma opção de
política econômica,20 utilizando instrumentos capazes de conformar o funcionamento das
instituições estatais e não estatais aos objetivos colimados pela ordem constitucional, con-
forme o programa de ação governamental.21
Propõe o modelo, todavia, não apenas a inserção na atividade econômica priva-
da buscando sua adequação à política macroeconômica estatal com fins à realização dos
princípios da ordem econômica, mas a intervenção também nos serviços públicos com a
participação da iniciativa privada no oferecimento de bens e utilidades essenciais.
17
Podemos citar dentre os órgãos estatais e comissões de fiscalização que exerciam funções reguladoras, o Con-
selho Nacional de Telecomunicações e o Conselho Administrativo de Defesa Econômica. Todavia, enquanto que
o Estado era o responsável, direta ou indiretamente, pela execução desta tarefa a função fiscalizatória não era
desempenhada com eficiência, uma vez que inexistia interesse em expor as próprias falhas ou deficiência da
administração. MARQUES NETO, Floriano Azevedo. A nova regulação estatal e as agências independentes. Op.
cit., p. 80-82.
18
Após uma concepção de Administração detentora do interesse público emerge o entendimento que essa atribui-
ção deve ser compartilhada com a sociedade, que passa não apenas executar as atividades necessárias à fruição
desses interesses, mas também a desenvolver e estabelecer a ordem e prioridade. MEDEAUAR, Odete. O direito
administrativo em evolução. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1992. p. 181.
19
Em contraponto, volta-se a ordem econômica à tutela dos direitos fundamentais coletivos, encontrando seu fun-
damento também na valorização do trabalho humano e na garantia da existência digna dos indivíduos, observando
os princípios de proteção da defesa do consumidor e do meio ambiente e orientando o exercício da atividade
econômica aos ditames da justiça social com a busca da redução das desigualdades regionais e sociais, como
forma de permitir a realização plena do desenvolvimento do homem e da sociedade.
20
Trata-se, portanto, de característica de um modelo econômico e não de certa família jurídica, que busca superar
o dirigismo estatal garantindo a livre iniciativa privada com a intervenção enfática no mercado utilizando instru-
mentos de autoridade, capaz de conformá-la aos objetivos eleitos. SUNDFELD, Carlos Ari. Serviços públicos e
regulação estatal. In: SUNDFELD, Carlos Ari (Coord.). Direito administrativo econômico. São Paulo: Malheiros,
2000. p. 23-24.
21
O plano diretor da Reforma do Aparelho do Estado em 1995 alinhou os seguintes princípios básicos: autonomia e
independência decisória; ampla publicidade de normas, procedimentos e ações; celeridade processual e simplifi-
cação as relações entre consumidores e investidores; participação de todas as partes interessadas no processo
de elaboração de normas regulamentares em audiência pública; e, limitação da intervenção estatal na prestação
de serviços públicos, aos níveis indispensáveis à sua execução. MOREIRA NETO, Diogo de Figueiredo. Direito
regulatório. Op. cit., p. 169.
Estado gerencial, regulação e desenvolvimento 119
Nessa faceta, a atividade regulatória abrange uma intervenção com fins a realização
de certos valores de natureza social, de forma que a disciplina da prestação dos serviços
públicos não compreende apenas a regulamentação do mercado, mas a sua adequação aos
interesses da própria coletividade.22
Sua finalidade não se identifica, portanto, apenas com aquelas de ordem econômica
– proteção da competitividade, fortalecimento do mercado e ampliação do investimento da
iniciativa privada –, mas alcança aqueles objetivos de natureza social na garantia de atendi-
mento dos interesses da coletividade.23
Embora o marco regulatório busque propiciar a estabilidade necessária para que os
investidores atuem, também, deve garantir espaços para que os reguladores possam – con-
forme as demandas sociais – fixar diretrizes que melhor atendam o interesse da coletividade,
respeitada às garantias dos agentes privados.24
Isto porque a inserção de atividade pública em um espaço econômico privado, não
importa na ausência total de intervenção sobre essas atividades, mas na atuação estatal em
rede articulando centros autônomos do poder externo – entes e redes locais, nacionais ou
transnacionais – e interno – agências e delegatárias.25
Esse é o tema abordado a seguir.
22
O modelo regulatório não é norteado apenas pela proposta de atenuar ou eliminar os defeitos do mercado, mas
na disciplina de prestação de serviços públicos, onde há relevância dos interesses coletivos envolvidos tem por
finalidade impedir a prevalência da pura e simples busca do lucro privado, em detrimento da sociedade. JUSTEN
FILHO, Marçal. Curso de direito administrativo. São Paulo: Saraiva, 2005. p. 451.
23
Torna-se necessário, portanto, não identificar a regulação enquanto fenômeno jurídico com a regulação da ativida-
de econômica pública e privada, uma vez que orientada também por fins sociais, importa construir um conceito de
regulação como o complexo de normas que regulam a atividade econômica e social com a finalidade de proteger o
interesse público. DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Limites da função reguladora das agências diante do princípio
da realidade. In: DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Direito regulatório: temas polêmicos. Belo Horizonte: Fórum,
2003. p. 30.
24
A flexibilidade e instrumentalidade do Direito Administrativo Econômico não pode significar a pura e simples
liberalidade em favor do concessionário sem os consequentes benefícios para o Estado e para o serviço público
delegado. ARAGÃO, Alexandre Santos de. O marco regulatório dos serviços públicos. Interesse Público, v. 5, n.
27, 2004. p 72-73 e 89.
25
Nesse cenário, é inegável a intervenção da globalização nos serviços públicos, uma vez que grande parte das
sociedades empresárias que assumem as prestações integram redes econômicas transnacionais e há pelo Es-
tado adesão a tratados internacionais como homogeneização e abertura de mercados a empresas com atuação
globais. ARAGÃO, Alexandre Santos de. Direito dos serviços públicos. Rio de Janeiro: Forense, 2008. p 51 e 52.
120 Emerson Affonso da Costa Moura
26
Os valores da dignidade da pessoa humana, da liberdade e da igualdade dos homens encontra suas raízes na
filosofia clássica, em especial, na greco-romana e no pensamento cristão. Embora na antiguidade greco-romana
inexistisse direitos do homem válidos para todos, com os sofistas e, em especial, os estoicos romanos, adveio as
teses da igualdade de todos os homens em dignidade como lei natural. No cristianismo, a partir dos ensinamentos
do homem e sua semelhança à imagem de Deus, adveio a tese da unidade de humanidade, dignidade e liberdade
de todas as pessoas. CARVELLI, Urbano; SCHOOL, Sandra. Evolução histórica dos direitos fundamentais: da anti-
guidade até as primeiras importantes declarações nacionais de direito. Revista de Informação Legislativa, Brasília,
ano 48, n. 191, p. 169-171, jul./set. 2011.
27
A unidade universal dos homens e a igualdade cristã de todos foram as premissas para o desenvolvimento no jus-
naturalismo medieval, da ideia de postulados suprapositivos que orientavam e limitavam, atuando como critério de
legitimidade, o exercício do poder, de tal sorte que o direito natural condicionará à sua conformidade a obediência
do direito positivo. Com as teorias contratualistas as doutrinas jusnaturalistas de direitos fundamentais encontram
sua evolução, abrindo espaço para o reconhecimento normativos de tais direitos. LUÑO, Antonio Enrique Perez.
Los derechos fundamentales. Madrid: Tecnos, 2004. p. 29-33.
28
Embora sempre citada a Magna Charta Libertatum, firmada em 1215 pelo Reuo João Sem-terra e pelos bispos e
barões ingleses, que consagra direitos e liberdades clássicos, como o habeas corpus, o devido processo legal e
a garantia da propriedade, as cartas de franquia e os forais outorgados pelos reis e portugueses e espanhóis no
século XII e XIII, bem como, a Bula de Ouro da Hungria firmada por Afonso IX em 111, o Privilegio General outorga-
do por Pedro III em 1283 e os Privilégios da União Aragonesa em 1286 já veiculavam prerrogativas ou privilégios
aos estamentos sociais (Nobreza, Igreja, Corporações), que não correspondiam a direitos fundamentais, mas
obrigações concretas daqueles reis que o subscreviam. ANDRADE, José Carlos Vieira de. Direitos fundamentais
na Constituição de 1976. Coimbra: Almedina, 2001. p. 25.
29
Com as declarações inglesas de direito – Petition Of Rights de 1628, Habeas Corpus Act de 1679, Bill Of Rights de
1689 – foram reconhecidos direitos e liberdades aos cidadãos ingleses, como a legalidade, a proibição de prisões
arbitrárias e o habeas corpus, que significa a transposição das liberdades estamentais para as liberdades gerais
no plano de direito público. Com a Declaração americana de Direitos do Povo da Virgínia de 1776 e a Declaração
francesa dos Direitos do Homem e do Cidadão de 1789 se marca a transição dos direitos de liberdade legais
ingleses para os direitos fundamentais constitucionais. SARLET, Ingo Wolfgang. Op. cit. p. 42-43.
30
A evolução e as vicissitudes dos direitos fundamentais, seja numa linha de alargamento e aprofundamento, seja
numa linha de obnubilação, acompanham o processo histórico, as lutas sociais e os contrastes de regimes
políticos, bem como o progresso científico, técnico e econômico. Do Estado liberal ao Estado social de Direito, o
desenvolvimento dos direitos fundamentais faz-se no interior das instituições representativas de maneira bastante
variada, buscando harmonizar os direitos de liberdade e direitos econômicos, sociais e culturais. MIRANDA,
Jorge. Os direitos fundamentais... Op. cit. p. 199.
Estado gerencial, regulação e desenvolvimento 121
31
Embora sob a influência da doutrina de Hobbes, Locke, Rousseau e Kant que proclamavam a liberdade do indiví-
duo, proclamavam as cartas os direitos não de todos os homens, uma vez que a maior parte dessas Constitui-
ções estabeleciam o sufrágio censitário, mas do homem burguês, com a tutela da propriedade privada de forma
sagrada e inviolável, razão pelo qual os textos eram considerados como patrimônio do indivíduo em sua condição
pré-social. LUÑO, Antonio Enrique Perez. Los derechos fundamentales. Op. cit., p. 38.
32
Quando o Estado coagido pela pressão das massas ao poder político, confere os direitos do trabalho, da previ-
dência, da educação e outros, coloca a sociedade dependente de sua intervenção no domínio econômico, político
e social, em restrição da iniciativa individual aos interesses sociais, demonstra a passagem de um Estado Liberal
para um Estado Social. BONAVIDES, Paulo. Do Estado liberal ao Estado social. 8. ed. São Paulo: Malheiros, 2007.
p. 186.
33
Embora tanto na concepção liberal quanto social se deparam liberdade e igualdade, na primeira a igualdade é a
titularidade dos direitos que demanda liberdade para todos, ao passo que, na segunda a igualdade é a concreta
igualdade de agir e a liberdade a própria igualdade puxada para ação. MIRANDA, Jorge. Direitos... Op. cit. p. 199-
200.
34
Seu reconhecimento teórico é atribuído a Keba Mbaye que introduziu na obra The Right to Development em 1972
o desenvolvimento como direito, sendo que na conferência proferida por Karel Vasak no Instituto Internacional de
Direitos Humanos em 1979, onde classifica os direitos humanos em gerações, a partir da liberdade (direitos do
indivíduo civis e políticos), da igualdade (direitos da coletividade trabalhistas, culturais e econômicos) e da soli-
dariedade (direitos da humanidade fraternidade, paz, meio ambiente, respeito ao patrimônio histórico e cultural)
que se consagra o direito ao desenvolvimento como um direito de terceira geração. Sobre o tema vide: VASAK,
Karel. For the third generation of human rights: the rights of solidarity. Inaugural lecture. Tenth Study Session, In-
ternational Institute of Human Rights, jul. 1979. BEDJAOUI, Mohammed. The right to development. In: BEDJAOUI,
Mohammed (Org.). International law: achievements and prospects. Paris: Martinus Nijhoff Publisher; Unesco,
1991.
35
Sua consagração pelos organismos internacionais ocorreu pela primeira vez com a Declaração sobre a Con-
cessão de Independência aos Países e Povos Coloniais, adotada pela Assembleia Geral das Nações Unidas na
resolução 1514 de 14 de dezembro de 1960, que reconheceu aqueles países o direito à persecução do seu livre
desenvolvimento económico, social e cultura. Porém, é com a Declaração sobre o Direito ao Desenvolvimento
adotada pela Assembleia Geral das Nações Unidas na resolução n. 41/128, de 4 de dezembro de 1986 que se
garante o direito ao desenvolvimento como direito humano inalienável (art. 1º §1º), o dever dos Estados de
promover as medidas necessárias para a sua realização (Art. 2º §3º) assegurando o acesso aos recursos bá-
sicos, educação, serviços de saúde, alimentação, habitação, emprego e distribuição equitativa da renda (art. 8º
§1º). ONU. Declaração sobre o Direito ao Desenvolvimento. Adotada pela Resolução n. 41/128 da Assembleia
Geral das Nações Unidas, de 4 de dezembro de 1986. Disponível em: http://www.direitoshumanos.usp.br/index.
122 Emerson Affonso da Costa Moura
novo modelo constitucional e de uma ação administrativa voltada a legitimidade, finalidade, eficiência e resultado
na concretização daqueles valores. MOREIRA NETO, Diogo de Figueiredo. Quatro paradigmas do direito adminis-
trativo pós-moderno: legitimidade, finalidade, eficiência, resultados. Belo Horizonte: Fórum, 2008. p. 14-15 e 28.
41
Nesse contexto, o indivíduo passa de súdito submetido à Administração Pública em uma relação hierarquizada
para um cidadão detentor de direitos e garantias, tornando-se a Administração Pública em centro de captação e
ordenação dos interesses envolvidos nos respeitos e concretização dos direitos fundamentais e colaborando no
desenvolvimento de suas potencialidades sociais. BAPTISTA, Patrícia. Transformações de direito administrativo.
Op. cit., p. 129-130.
42
A centralidade assumida pelos direitos fundamentais na ordem jurídica produz uma inversão epistemológica fun-
damental, que torna o ser humano protagonista do direito administrativo e o Estado instrumento para a sua rea-
lização, extraindo a legitimidade de sua atuação na medida da realização destes direitos. JUSTEN FILHO, Marçal.
O direito administrativo de espetáculo. Fórum Administrativo Direito Público, Belo Horizonte, ano 9, n. 100, jun.
2009. p. 150-152.
43
Ocorre através do estímulo e indução de adoção de determinadas condutas pelos agentes econômicos, o que
compreende uma série de medidas de facilitação como a concessão de benefícios fiscais, facilitação em dados
expedientes e afins. MOREIRA, Egon Bockmann. O direito administrativo da economia e a atividade interventiva
do Estado brasileiro. In: OSÓRIO, Fábio Medina; SOUTO, Marcos Juruena Villela (Coords.). Direito administrativo:
estudos em homenagem a Diogo de Figueiredo Moreira Neto. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2006. p 861.
44
Trata-se de uma intervenção promocional do Estado em países subdesenvolvidos com fins a garantir o bem-estar
social e o desenvolvimento. Em um Estado Democrático de Direito o desenvolvimento econômico não pode
ser deixado nas mãos do próprio mercado, diante do dever de administração e de desenvolvimento definido
pela Constituição. A intervenção não gravita mais de forma a garantir um mercado concorrencial perfeito como
ocorrido em momento anterior, mas em respeito à justiça social e ao princípio da dignidade da pessoa humana.
MOREIRA, Egon Bockmann. O direito administrativo da economia [...]. Op. cit., p 856-857 e 868.
45
É necessário pensar na gestão dos serviços públicos a partir da atual realidade de carência social, compreen-
dendo que os problemas sociais vividos guardam íntima relação com a prestação histórica dessas atividades de
forma inadequada e apenas com o justo equilíbrio entre os interesses privados e o público será capaz de modificar
o cenário. VALLE, Vivian Lima López. Serviço público, desenvolvimento econômico e a nova contratualização da
administração pública: o desafio na satisfação dos direitos fundamentais. Fórum Administrativo, v. 12, n. 132,
2012. p. 72.
124 Emerson Affonso da Costa Moura
46
Abrange oferecimento do serviço e a promoção proativa de inclusão de novos usuários a serviços de saneamento
básico, energia, telefonia e gás que nas sociedades contemporâneas são utilidades cuja ausência afeta a dignida-
de da pessoa humana e dificulta a redução do subdesenvolvimento. GROTTI, Dinorá Adelaide Musetti. Redefinição
do papel do Estado na prestação de serviços públicos: realização e regulação diante do princípio da eficiência e
universalidade. Revista Interesse Público, Porto Alegre: Notadez, ano 8, n. 40, nov./dez. 2006. p. 68.
47
Isso não importa, todavia, negar a possibilidade de sua eventual restrição no seu fornecimento, como prevê a Lei
8.987 de 13 de Fevereiro de 1995 que permite a descontinuidade na prestação doe serviço público em situação de
emergência ou após aviso prévio quando motivada por razões de ordem técnica ou de segurança das instalações
e por inadimplemento de usuário considerado o interesse da coletividade (art. 6º §3º).
48
Ressalta-se a importância de o papel das agências intervir na prestação do serviço público pela iniciativa privada,
com qualidade, economicidade, eficiência e regularidade de forma a afastar a possibilidade de desprezo a finali-
dade pública, que caracterizou a o modelo de concessão e resultou no seu fracasso em um primeiro momento.
OLIVEIRA, Jose Carlos Ferreira de. O Estado regulador nas concessões de serviços públicos. Revista de Informa-
ção Legislativa, v. 33, n. 129, 1996. p. 100; 107.
49
Nesse tocante, o modelo de concessão patrocinada de serviços públicos, instituído pela Lei 11.079 de 30 de
dezembro de 2004 se erige como instrumento para a viabilização de uma política tarifa capaz de propiciar o desen-
volvimento, garantindo a compensação na exploração pela iniciativa privada daquela atividade. Sobre o tema, vide:
Estado gerencial, regulação e desenvolvimento 125
5 CONSIDERAÇÕES FINAIS
A atuação da Administração Pública permite garantir uma justa medida entre o fo-
mento à competição e o lucro para a iniciativa privada, com a necessária universalidade
e manutenção dos usuários e continuidade dos serviços públicos prestados a sociedade,
contribuindo com o desenvolvimento econômico e social.
Não se ignora as dificuldades em compatibilizar os interesses legítimos da iniciativa
privada na exploração da atividade exteriorizada no lucro e no crescimento, com as expecta-
tivas sociais na prestação do serviço público denotado no fornecimento dos bens e presta-
ções essenciais à dignidade da pessoa humana e ao desenvolvimento.
Todavia, na tensão entre a persecução do desenvolvimento econômico e a mitigação
das desigualdades sociais a regulação pela Administração Pública quanto a prestação do
serviço público pela iniciativa privada é capaz de se encontrar uma justa medida permitindo
a realização do influxo ideológico liberal e social que marcam nosso constitucionalismo.
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50
Amplia-se, portanto, a importância das agências reguladoras, que passam a garantir ao usuário-consumidor um
complexo de direitos permitindo o equilíbrio na relação jurídica entre ambos, não permitindo o fornecedor do servi-
ço se apropriar do lucro excessivo que detém em razão de sua posição no mercado, mas submete ao princípio de
solidariedade com socialização dos lucros em favor da sociedade. MACEDO JÚNIOR, Ronaldo Porto. A proteção
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De Mariana a Brumadinho: o marco regulatório
da segurança de barragens sob a ótica da delega-
ção do exercício do poder de polícia
1 INTRODUÇÃO
1
BRUMADINHO: partes de corpo são de funcionária terceirizada da Vale. UOL, São Paulo, nov. 2019. Disponível em:
https://noticias.uol.com.br/cotidiano/ultimas-noticias/2019/11/23/vitima-identificada-brumadinho.htm. Acesso
em: 2 jul. 2020.
132 Flávio Henrique Unes Pereira
Vale mencionar, também, que em relatório elaborado em 2017 pela fundação norue-
guesa GRID-Arendal, em parceria com o Programa das Nações Unidas para o Meio Ambiente
(PNUMA), aonde foram catalogados os maiores acidentes envolvendo rupturas de barragens
de rejeitos da mineração ocorridos desde 1985 (Mine Tailings Storage: Safety Is No Acci-
dent3), o Brasil figura como o país com maior número de acidentes deste tipo nos últimos 5
anos: em 2014, o rompimento de uma barragem da Herculano Mineração, em Itabirito-MG;
em 2015, o colapso da barragem do Fundão, em Mariana-MG, que deixou 19 mortos; e, por
fim, a tragédia de Brumadinho-MG.
Em termos de devastação ambiental, todavia, os 600 km percorridos pelos 50 a 60
milhões de metros cúbicos de rejeitos liberados pela ruptura da barragem do Fundão, que
gerou um prejuízo estimado de US$ 5,2 bilhões, colocam o desastre de Mariana-MG como
o maior do mundo nos últimos 100 anos, de acordo com estudo da consultoria de gestão
de riscos norte-americana Bowker Associates.4 Já o desastre de Brumadinho, a seu turno, é
considerado o maior acidente de trabalho da história do país.5
As centenas de mortes e desaparecimentos, bem como os milhares de hectares
devastados e leitos de rios contaminados por rupturas de barragens, são somente a ponta
de um grande “iceberg”. Para ficarmos apenas no exame do exercício do poder de polícia
(que não é o único fator a merecer modificações e aprimoramentos no marco regulatório do
setor), percebe-se que há, de um lado, um evidente déficit fiscalizatório da Agência Nacional
de Mineração (ANM), causada por um subfinanciamento da Agência e graves desfalques em
seus quadros de pessoal; de outro lado, a moldura jurídica fixada pelo quadro regulatório
2
LUINO, F.; GRAFF, J. V. de. The Stava mudflow of 19 july 1985 (Northern Italy): a disaster that effective regulation
might have prevented. Nat. Hazards Earth Syst. Sci., n. 12, p. 1029-1044, 2012. p. 1029. Tradução livre. Gri-
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Acesso em: 2 jul. 2020.
3
ROCHE, Charles; THYGESEN, Kristina; BAKER, Elaine. Mine tailings storage: safety is no accident. S.l.: UN Envi-
ronment; GRID-Arendal, 2017. Disponível em: http://www.grida.no/publications/383. Acesso em: 2 jul. 2020.
4
LUCENA, Eleonora de. Tragédia da Samarco teve triplo recorde mundial, diz consultoria. Folha de São Paulo, São
Paulo, dez. 2015. Disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/cotidiano/2015/12/1718130-tragedia-da-samar-
co-teve-triplo-recorde-mundial-diz-consultoria.shtml. Acesso em: 2 jul. 2020.
5
SOUZA, Felipe; FELLET, João. Brumadinho é maior acidente de trabalho já registrado no Brasil. UOL, São Paulo,
jan. 2019. Disponível em: https://noticias.uol.com.br/ultimas-noticias/bbc/2019/01/28/brumadinho-pode-ser-
-2-maior-desastre-industrial-do-seculo-e-maior-acidente-de-trabalho-do-brasil.htm. Acesso em: 2 jul. 2020.
De Mariana a Brumadinho 133
Para que possamos ter uma visão mais nítida do grave problema envolvendo a segu-
rança das barragens de rejeitos da mineração no Brasil, é necessária uma breve incursão na
Lei n. 12.334, de 20 de setembro de 2010, que estabeleceu a Política Nacional de Segurança
de Barragens – PNSB.6
De acordo com o art. 7º, caput, da Lei, as barragens presentes no território nacional
devem ser classificadas, pelos agentes fiscalizadores, segundo 3 (três) critérios: (i) catego-
ria de risco; (ii) dano potencial associado – DPA –; e (iii) volume. Para que o fiscal da ANM
afirme em que categoria de risco se insere uma determinada barragem, ele deverá levar em
consideração as suas características técnicas, o estado de conservação do empreendimento
e o atendimento ao Plano de Segurança da Barragem – PSB. Já em relação ao DPA (que
poderá ser alto, médio ou baixo), a avaliação levará em conta o potencial de perdas de vidas
humanas e os impactos econômicos, sociais e ambientais decorrentes de uma eventual
ruptura da barragem.
A importância desta classificação reside, precisamente, em aferir se uma determi-
nada barragem deverá se submeter à Lei n. 12.334/2010 (pois, de acordo com o seu art.
1º, IV, ela se aplica apenas a barragens com categoria de DPA médio ou alto), bem como
em determinar a periodicidade, a qualificação da equipe responsável, o conteúdo mínimo e o
nível de detalhamento das inspeções de segurança (art. 9º, caput).
6
Ressalte-se que as disposições constantes da Lei n. 12.334/2010 se aplicam não apenas às barragens de rejeitos
da mineração. Como consta do art. 1º, parágrafo único, da Lei, “Esta Lei aplica-se a barragens destinadas à
acumulação de água para quaisquer usos, à disposição final ou temporária de rejeitos e à acumulação de resíduos
industriais que apresentem pelo menos uma das seguintes características”.
134 Flávio Henrique Unes Pereira
Para que o sistema de fiscalização idealizado pelo legislador funcionasse, foi neces-
sário estabelecer que o órgão fiscalizador (no caso, a ANM) tem, dentre outras, as obriga-
ções de manter cadastro das barragens sob sua jurisdição (art. 16, I), além de exigir dos
empreendedores o cumprimento das recomendações constantes dos relatórios de inspeção
(art. 16, III), bem como o cadastramento e atualização das informações relativas à barragem
em um sistema informatizado destinado a receber o registro das condições de segurança
das barragens em todo o território nacional (art. 16, V): isto é, o Sistema Nacional de Infor-
mações sobre Segurança de Barragens (SNISB), instituído pelo art. 13 da Lei.
Pois bem. De acordo com o Relatório de Segurança de Barragens (RSB) elaborado
pela Agência Nacional de Águas (ANA)7 em 2018, há mais de 24 mil barragens no território
brasileiro, que servem a diversas finalidades. O número, todavia, representa apenas o quanti-
tativo de barragens devidamente cadastradas no SNISB: segundo a própria ANA, deve haver,
no Brasil, ao menos três vezes mais barragens do que os números oficiais apontam.8
No que concerne especificamente à contenção de rejeitos da mineração, há 790
barragens no território nacional. De acordo com o último RSB,9 421 delas (isto é, 53%) se
submetem à Lei n. 12.334/2010. Dentre estas, 204 possuem DPA alto. Por outro lado, há
7 barragens cujo risco é considerado alto: 4 em Minas Gerais, 2 em Santa Catarina e 1 em
Mato Grosso. Nada obstante, é oportuno lembrar que a barragem B1 da Mina “Córrego do
Feijão”, construída em 1976 e desativada desde 2015, tinha grau de risco baixo.10
7
Lei n. 9.984/2000, art. 4o: A atuação da ANA obedecerá aos fundamentos, objetivos, diretrizes e instrumentos
da Política Nacional de Recursos Hídricos e será desenvolvida em articulação com órgãos e entidades públicas e
privadas integrantes do Sistema Nacional de Gerenciamento de Recursos Hídricos, cabendo-lhe: [...] XXII - coor-
denar a elaboração do Relatório de Segurança de Barragens e encaminhá-lo, anualmente, ao Conselho Nacional
de Recursos Hídricos (CNRH), de forma consolidada.
8
45 barragens preocupam órgãos fiscalizadores, aponta Relatório de Segurança de Barragens elaborado pela ANA.
ANA Notícias, nov. 2018. Disponível em: https://www.ana.gov.br/noticias/45-barragens-preocupam-orgaos-fisca-
lizadores-aponta-relatorio-de-seguranca-de-barragens-elaborado-pela-ana. Acesso em: 2 jul. 2020.
9
BRASIL. Ministério do Meio Ambiente. Relatório de segurança de barragens 2017. Brasília: ANA, 2018. Disponível
em: http://www.snisb.gov.br/portal/snisb/relatorio-anual-de-seguranca-de-barragem/2017/rsb-2017-versao-en-
viada-ao-cnrh.pdf. Acesso em: 2 jul. 2020.
10
LEAL, Natália. MG concentra 63% das barragens de minérios do país com ‘alto risco estrutural’. UOL, jan. 2019.
Disponível em: https://piaui.folha.uol.com.br/lupa/2019/01/25/barragens-alto-risco-mg/. Acesso em: 2 jul. 2020.
11
JENSEN, Roberta; GIRARDI, Giovana. País tem apenas 35 fiscais de barragem de mineração. Estadão, jan. 2019.
Disponível em: https://brasil.estadao.com.br/noticias/geral,pais-tem-apenas-35-fiscais-de-barragem-de-minera-
cao,70002699885. Acesso em: 2 jul. 2020.
De Mariana a Brumadinho 135
12
COSTA, Gilberto. De um total de 24 mil barragens, 780 foram fiscalizadas, diz relatório. Agência Brasil, jan. 2019.
Disponível em: http://agenciabrasil.ebc.com.br/geral/noticia/2019-01/de-um-total-de-24-mil-barragens-780-fo-
ram-fiscalizadas-diz-relatorio. Acesso em: 2 jul. 2020.
13
BRASIL. Câmara dos Deputados. Relatório Final Integral – CPI Barragens. Brasília: Câmara dos Deputados, 2019.
Disponível em: https://www.camara.leg.br/internet/comissoes/cpi/cpibruma/Relat%C3%B3rio%20final%20Inte-
gral%20-%20CPI%20-%20Barragens%20-%20Aprovado.pdf. Acesso em: 2 jul. 2020.
136 Flávio Henrique Unes Pereira
Como vimos, de acordo com a lei, é dever do órgão fiscalizador “manter cadastro
das barragens sob sua jurisdição, com identificação dos empreendedores, para fins de in-
corporação ao SNISB” (art. 16, I), além de “exigir do empreendedor o cadastramento e a
atualização das informações relativas à barragem no SNISB” (art. 16, V). Desta forma, em
tese, seria possível que a ANM tivesse maior controle a respeito das barragens que reclamam
maior atenção. Todavia, a informação não chega, e, se chegar, pode estar incorreta. Como
exemplo, mencione-se que, desde 2016, a barragem B1 da Mina “Córrego do Feijão” não
passava por vistoria in loco da Agência14.
Nessas condições, não há atividade fiscalizatória que possa ser exercida a contento.
Os dados fornecidos pelos empreendedores, portanto, são meramente declaratórios, e a
conferência dessas informações pela ANM, na prática, se dá somente durante as vistorias,
quando ocorrem. Para piorar, as constatações não são inéditas: relatório de auditoria reali-
zada pela Controladoria-Geral da União (CGU) em 2003 já apontava, dentre outras susce-
tibilidades, que o antigo DNPM dispunha “apenas de 56 fiscais para atuar junto aos 9 mil
empreendimentos minerais existente no País, aí englobados os que se encontram em fase de
pesquisa e os que já estão em efetiva exploração”.15
Questão crucial, para além da insuficiência de servidores da ANM aptos a irem a
campo realizar as inspeções de segurança, e da ausência de fiscalização adequada das
informações prestadas pelo próprio empreendedor, é a certificação da condição de estabili-
dade das barragens.
No modelo atual, não apenas a atualização das informações referentes à barragem
deve ser realizada e entregue à ANM pela mineradora; também a verificação e a declaração
da segurança da estrutura devem ser feitas pelo próprio empreendedor. Nesse sentido, a lei
estabelece (art. 9º, § 1º) que a inspeção de segurança regular da barragem será realizada
pela própria equipe de segurança da barragem, devendo o relatório final estar disponível ao
órgão fiscalizador e à sociedade civil. Já a inspeção de segurança especial da barragem será
realizada por equipe multidisciplinar de especialistas (art. 9º, § 2º).
No que tange às revisões periódicas de segurança (art. 10, § 1º), incumbe ao órgão
fiscalizador estabelecer, dentre outros critérios, a qualificação técnica da equipe responsá-
vel. Efetivamente, a Portaria DNPM n. 70.389, de 17 de maio de 2017, no que concerne às
inspeções de segurança regular e especial, bem como às revisões periódicas de segurança
da barragem, impõe que os respectivos relatórios sejam elaborados obrigatoriamente por
equipe externa contratada pelo empreendedor (arts. 16, § 1º, 24, III, e 50, § 1º).
14
FERRARI, Hamilton. Fiscais não apareciam na Barragem de Brumadinho desde 2016. Correio Braziliense,
fev. 2019. Disponível em: https://www.correiobraziliense.com.br/app/noticia/brasil/2019/02/02/interna-bra-
sil,734928/fiscais-nao-apareciam-na-barragem-de-brumadinho-desde-2016.shtml. Acesso em: 2 jul. 2020.
15
BRASIL. Controladoria-Geral da União. Controle e fiscalização do setor mineral é ineficaz, constata CGU. 2003.
Disponível em: https://www.cgu.gov.br/noticias/2003/06/controle-e-fiscalizacao-do-setor-mineral-e-ineficaz-
-constata-cgu. Acesso em: 2 jul. 2020.
De Mariana a Brumadinho 137
16
VALE trocou empresa que auditava barragens. O Antagonista, mar. 2019. Disponível em: https://www.oantagonis-
ta.com/brasil/vale-trocou-empresa-que-auditava-barragens/. Acesso em: 2 jul. 2020.
17
JUCÁ, Beatriz. A guerra entre a Vale e a Tüv Süd pela responsabilidade da tragédia de Brumadinho. El País, mar.
2019. Disponível em: https://brasil.elpais.com/brasil/2019/02/21/politica/1550770949_599589.html. Acesso
em: 2 jul. 2020.
18
TAVARES, Bruno; CERANTULA, Robinson. Engenheiros e funcionários da Vale que atestaram segurança de barra-
gem em Brumadinho são presos em MG e SP. G1 São Paulo, jan. 2019. Disponível em: https://g1.globo.com/sp/
sao-paulo/noticia/2019/01/29/engenheiros-que-prestaram-servico-a-vale-sao-presos-em-sp-apos-tragedia-em-
-brumadinho.ghtml. Acesso em: 2 jul. 2020.
19
BARBIÉRI, Luiz Felipe. STJ manda soltar funcionários presos após rompimento de barragem da Vale. G1 Política,
fev. 2019. Disponível em: https://g1.globo.com/politica/noticia/2019/02/05/stj-concede-liberdade-a-funcionarios-
-da-vale-e-engenheiros-presos-por-rompimento-de-barragem.ghtml. Acesso em: 2 jul. 2020.
138 Flávio Henrique Unes Pereira
Impor sanções aos responsáveis pela tragédia, apesar de ser parte importante do
processo de apuração e atribuição de responsabilidades pelas tragédias, não resolve o pro-
blema. A propósito, a Polícia Federal indiciou, no mês passado, 7 funcionários da Vale e 6 da
auditora Tüv Süd por falsidade ideológica e uso de documentos falsos20 – número equivalen-
te à metade de indiciamentos recomendados pela CPI da Assembleia Legislativa do Estado
de Minas Gerais21 e pela CPI do Senado Federal.22
Da mesma forma, organizar moções de apoio23 e de solidariedade24, além de con-
denar a mineradora ao pagamento de indenizações às famílias atingidas (em julho, a Vale e o
Ministério Público do Trabalho celebraram acordo para indenizações de familiares de empre-
gados mortos pelo rompimento da barragem;25 em setembro, a Vale foi condenada a pagar
montante total superior a R$ 11 milhões aos familiares de três vítimas da tragédia,26 na
primeira sentença proferida nos autos de demanda indenizatória individual) e à recuperação
dos ecossistemas arrasados (em julho a Vale foi condenada a reparar os danos causados
pela tragédia de Brumadinho27) são medidas igualmente importantes, mas não impedem
que novos desastres ocorram.
20
PF indicia 7 empregados de Vale por tragédia de Brumadinho. Exame, set. 2019. Disponível em: https://exame.
com/brasil/pf-indicia-7-empregados-de-vale-por-tragedia-de-brumadinho/. Acesso em: 2 jul. 2020.
21
CPI de Brumadinho pede indiciamento de presidente e diretores da Vale. Época Negócios, set. 2019. Disponível
em: https://epocanegocios.globo.com/Brasil/noticia/2019/09/epoca-negocios-cpi-de-brumadinho-pede-indicia-
mento-de-presidente-e-diretores-da-vale.html. Acesso em: 2 jul. 2020.
22
CPI aprova indiciamento de 14 pessoas por homicídio em Brumadinho. Agência Senado, jul. 2019. Disponível
em: https://www12.senado.leg.br/noticias/materias/2019/07/02/cpi-aprova-indiciamento-de-14-pessoas-por-
-homicidio-em-brumadinho. Acesso em: 2 jul. 2020.
23
ALVES, Sara. Fundação SOS Mata Atlântica faz ato de apoio a Brumadinho em BH. Metrópoles, jan. 2019. Disponí-
vel em: https://www.metropoles.com/brasil/fundacao-sos-mata-atlantica-faz-ato-de-apoio-a-brumadinho-em-bh.
Acesso em: 2 jul. 2020.
24
PROJETO ‘A arte abraça Brumadinho’ promove recuperação da cidade através da cultura. O Globo, abr. 2019.
Disponível em: https://oglobo.globo.com/cultura/projeto-arte-abraca-brumadinho-promove-recuperacao-da-ci-
dade-atraves-da-cultura-23624406. Acesso em: 2 jul. 2020.
25
BRUMADINHO: MPT e Vale assinam acordo para indenizar familiares de funcionários mortos na tragédia. G1 Mi-
nas Gerais, Belo Horizonte, jul. 2019. Disponível em: https://g1.globo.com/mg/minas-gerais/noticia/2019/07/15/
brumadinho-mpt-e-vale-assinam-acordo-para-indenizar-familiares-de-funcionarios-mortos-na-tragedia.ghtml.
Acesso em: 2 jul. 2020.
26
VALE pagará R$ 11,8 milhões a familiares de vítimas de Brumadinho. Vale, set. 2019. Disponível em: https://veja.
abril.com.br/brasil/vale-pagara-r-118-milhoes-a-familiares-de-vitimas-de-brumadinho/. Acesso em: 2 jul. 2020.
27
VALE é condenada pela primeira vez na Justiça estadual. Ascom TJMG, jul. 2019. Disponível em: http://www.tjmg.
jus.br/portal-tjmg/noticias/vale-e-condenada-pela-primeira-vez-na-justica-estadual.htm#.XZqdhUZKjIU. Acesso
em: 2 jul. 2020.
De Mariana a Brumadinho 139
Aliás, nestes pouco mais de 8 meses desde a tragédia de Brumadinho, novos rom-
pimentos de barragens foram verificados em Machadinho d’Oeste-RO28 (rompimento de
duas barragens inativas de rejeitos da mineração de cassiterita da Metalmig, em março,
deixando 100 famílias isoladas graças à queda de pontes); em Pedro Alexandre e Coronel
João Sá-BA29 (ruptura da barragem do Quati, em julho, deixando 1.500 desalojados e 400
desabrigados); e em Nossa Senhora do Livramento-MT30 (colapso da barragem TB01, de
contenção de rejeitos da mineração de ouro, da VM Mineração e Construção, em outubro).
Apresentar alternativas para que seja incrementado o marco regulatório da segu-
rança de barragens no Brasil é providência que atinge a “raiz” do problema, essencial à
prevenção de novas catástrofes, suprimindo (ou, quando menos, mitigando) o risco de que
os interesses comerciais atinentes ao empreendimento se sobreponham à segurança.
Nesse sentido, a tese da delegabilidade do exercício do poder de polícia a particula-
res figura como alternativa viável à redução das interferências indevidas apuradas no atual
quadro regulatório.
Apesar da importante evolução no entendimento acerca do assunto, apurada na úl-
tima década, a matéria ainda é tratada com reservas pela doutrina e pela jurisprudência.31
Identifica-se, no cerne da discussão, três principais argumentos em torno da impossibilidade
de que particulares exerçam, mediante delegação, poder de polícia32: (i) ausência de previ-
são constitucional que expressamente o autorize; (ii) inconstitucionalidade do exercício de
poderes de coerção e autoexecutoriedade por particulares; e (iii) necessidade de incidência
do regime jurídico do servidor público para o exercício da atividade de polícia.
Com relação ao item (i), é relevante observar que, além de não haver, no Texto Cons-
titucional, vedação expressa à delegação, há dispositivos que conferem aderência à tese da
delegabilidade. É o caso, por exemplo, do art. 37, XIX, que autoriza a criação de entidade
da Administração Pública, inclusive de direito privado, para desempenho de atividade de
sua competência, sendo lícito afirmar que o conceito de “atividade”, tal como utilizado pelo
constituinte, admite tanto os serviços públicos quanto o poder de polícia. Ademais, os arts.
28
ROMPIMENTO de barragens em Rondônia deixa 100 famílias isoladas. G1 Ariquemes e Vale do Jamari, mar.
2019. Disponível em: https://g1.globo.com/ro/ariquemes-e-vale-do-jamari/noticia/2019/03/30/cerca-de-50-fami-
lias-estao-isoladas-apos-rompimento-de-barragem-em-machadinho-doeste-ro.ghtml. Acesso em: 2 jul. 2020.
29
PITOMBO, João Pedro. Falha em barragem faz 350 famílias serem retiradas de casa na Bahia. Folha de São Paulo,
jul. 2019. Disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/cotidiano/2019/07/barragem-rompe-na-bahia-e-fami-
lias-sao-retiradas-de-suas-casas.shtml. Acesso em: 2 jul. 2020.
30
ESTIGARRIBIA, Juliana. Barragem rompe no MT e evidencia problema estrutural na mineração. Exame, out. 2019.
Disponível em: https://exame.com/negocios/barragem-rompe-no-mt-e-evidencia-problema-estrutural-na-minera-
cao/. Acesso em: 2 jul. 2020.
31
É relevante mencionar, a respeito do entendimento até agora predominante na jurisprudência dos Tribunais
Superiores, a orientação firmada pelo Supremo Tribunal Federal no julgamento da ADI n. 1.717-6/DF.
32
PEREIRA, Flávio Henrique Unes. Regulação, fiscalização e sanção: fundamentos e requisitos da delegação do
poder de polícia administrativa a particulares. Belo Horizonte: Fórum, 2013.
140 Flávio Henrique Unes Pereira
216 e 225 autorizam particulares a exercer atividade de polícia administrativa, o que reafirma
a tese da aderência constitucional à delegação, salvo previsão expressa sobre função estatal
específica.
Quanto ao item (ii), afigura-se-nos plenamente viável que a norma jurídica autorize
determinado sujeito a intervir na esfera jurídica de outrem sem que ele esteja autorizado a
fazer uso da força física para impor determinada conduta. Assim, ainda que se reconheça
que tal prerrogativa é exclusiva do Estado – salvo em caso de urgência que demande atuação
imediata –, é possível o exercício do poder de polícia sem que a autoexecutoriedade seja
transferida ao agente delegado.
Já a coercibilidade, a seu turno, pode ser exercida por particulares. Primeiro, porque
o Estado não deixa de ser o titular da atividade delegada quando transfere apenas a sua exe-
cução – como ocorre, por exemplo, com os serviços públicos –; segundo, porque o regime
jurídico de direito público incidirá sobre toda a execução da atividade, ainda que exercida
por particular; terceiro, porque a exigência de lei específica afasta a afronta ao princípio da
isonomia, já que não se cuida de simples imposição de obrigações entre particulares, mas,
sim, de delegação de função pública mediante lei, a atribuir qualidade jurídica distinta ao
agente delegado em relação ao mero particular.
Por derradeiro, no que concerne ao item (iii), é oportuno salientar que as prerrogati-
vas outorgadas pelo regime jurídico dos servidores públicos não chegam a ponto, ao menos
segundo o ordenamento constitucional vigente, de obstar genericamente a delegação da
atividade de polícia administrativa a particulares. Basta verificar, por exemplo, que as princi-
pais decisões políticas e administrativas, dentre as quais as sancionadoras, são tomadas por
agentes públicos que ocupam cargos de provimento em comissão, que não ingressaram no
serviço público mediante concurso e não possuem estabilidade.
33
BRASIL. Senado Federal. Requerimento n. 21, de 2019. Disponível em: https://legis.senado.leg.br/comissoes/
txtmat?codmat=135192. Acesso em: 2 jul. 2020.
De Mariana a Brumadinho 141
assinar laudos de estabilidade condicionados a correções que nunca foram feitas, por
parte da empresa auditora; conflitos de interesses através de múltiplos contratos, no
caso da empresa TUV SUD.
A propósito, o art. 9º do projeto de lei apresentado pela CPI do Senado Federal (PL
n. 3.913/2019, atualmente aguardando relatório no âmbito da Comissão de Constituição,
Justiça e Cidadania – CCJ35) assim dispôs:
Art. 10. A escolha e contratação dos responsáveis pela realização da revisão periódi-
ca de segurança de barragem e das inspeções de segurança regular e especial, bem
como os responsáveis pela emissão de laudos de estabilidade e de análise de risco de
barragens de rejeitos, cabe à ANM, que deve selecioná-los entre os profissionais e as
empresas credenciados na forma do art. 9º, por sorteio ou outro meio que garanta a
independência dos auditores em relação às mineradoras.
34
CPI da Barragem entrega relatório final à Mesa da Assembleia. Assembleia Legislativa de Minas Gerais Notícias,
set. 2019. Disponível em: https://www.almg.gov.br/acompanhe/noticias/arquivos/2019/09/13_release_entrega_
relatorio_CPI_Mesa.html. Acesso em: 2 jul. 2020.
35
BRASIL. Senado Federal. Projeto de Lei n. 3913, de 2019. Proíbe o licenciamento ambiental de barragens de
rejeitos e de barragens de resíduos industriais novas, estabelece regras de segurança e prazo para o descomissio-
namento das barragens de rejeitos e das barragens de resíduos industriais em construção ou existentes, ativas e
inativas, e institui a Taxa de Fiscalização de Segurança de Barragens de Rejeitos (TFSBR). Brasília: Senado Federal,
2019. Disponível em: https://www25.senado.leg.br/web/atividade/materias/-/materia/137599. Acesso em: 2 jul.
2020.
142 Flávio Henrique Unes Pereira
seria a contratação de servidores (não é possível terceirizar a fiscalização, vez que envolve
o exercício do poder de polícia administrativa e, portanto, é atividade típica de estado)”.
Também o relatório final da CPI da Câmara dos Deputados sobre o rompimento da
barragem de Brumadinho, ao mesmo tempo que sugere a contratação temporária de em-
presas para, emergencialmente, fazer frente à demanda de trabalho, apresenta a realização
de mais concursos públicos como solução definitiva para o aprimoramento da eficiência na
atuação fiscalizatória, nos seguintes termos:
Dessa forma, para uma fiscalização mais eficiente das barragens de mineração, con-
sidera-se imprescindível a realização de concurso público – e o Ministério de Minas
e Energia (MME) deve ser instado a fazê-lo – e o treinamento de técnicos nessa área,
não se abrindo mão, no curto prazo, de soluções alternativas, tais como a realoca-
ção de servidores de outros órgãos (por exemplo, do Serviço Geológico Nacional
– CPRM) e a contratação temporária de empresas especializadas em geotecnia, para
dar vazão à sobrecarga atual de trabalho.
36
O mesmo relatório, entretanto, sugeriu que “[u]ma possível solução para a análise da condição de estabilidade
com maior isenção seria a formação, pela ANM, de listas de consultores selecionados por sorteio. A remuneração
desses consultores caberia à Agência, mediante pagamento de taxa pelo empreendedor. Situação similar ocorre
em processos judiciais, quando se faz necessária a realização de perícia.”.
De Mariana a Brumadinho 143
E, afinal, tanto os relatórios quanto o projeto de lei proposto pela CPI do Senado
Federal admitiram, ainda que por via reflexa – ou seja, sem o dizer expressamente – que par-
ticulares “apoiassem” a ANM em sua função fiscalizatória. No fundo, trata-se de delegação
do exercício do poder de polícia a particulares.
Aliás, também o Estado de Minas Gerais, através da aprovação da Lei n. 23.291, de
25 de fevereiro de 2019 (oriunda do Projeto de Lei n. 3.676/2016, intitulado Mar de lama
nunca mais37), previu que “As auditorias técnicas de segurança e as auditorias técnicas
extraordinárias de segurança serão realizadas por uma equipe técnica de profissionais in-
dependentes, especialistas em segurança de barragens e previamente credenciados peran-
te o órgão ou a entidade competente do Sisema, conforme regulamento” (art. 17, § 3º).
No mesmo sentido, a Resolução n. 13,38 de 8 de agosto de 2019, da Agência Nacional de
Mineração, determinou que o projeto técnico executivo de descaracterização de barragens
alteadas pelo método a montante (ou por método desconhecido) deverá ser feito por equipe
externa independente (art. 8º, § 1º).
Vê-se, portanto, que as conclusões alcançadas pelas diversas Comissões Parla-
mentares de Inquérito, bem como pelos órgãos de investigação (Polícia Federal39, Polícia
Civil, Ministério Público40), reconhecem que houve interferências indevidas e inserção de
informações inverídicas no processo de elaboração da Declaração de Condição de Estabili-
dade – DCE – que, ao fim e ao cabo, acarretou a tragédia de Brumadinho-MG, dentre outras
de menor magnitude (em termos de devastação e vítimas) no território nacional.
Nesse passo, cabe observar, ainda, que a Vale já firmou três Termos de Compromis-
so com o Ministério Público, comprometendo-se a contratar auditoria técnica independente
(i) para analisar a efetividade das medidas adotadas na contenção dos rejeitos e na recu-
peração socioambiental de todas as áreas impactadas pela tragédia de Brumadinho, bem
como a segurança e a estabilidade das estruturas remanescentes do Complexo Paraopeba II,
37
MAR de Lama Nunca Mais: por que a importância de aprimorar a legislação? MPMG Notícias, jan. 2019. Dispo-
nível em: https://www.mpmg.mp.br/comunicacao/noticias/mar-de-lama-nunca-mais-por-que-a-importancia-de-
-aprimorar-a-legislacao.htm. Acesso em: 2 jul. 2020.
38
BRASIL. Resolução n. 13, de 8 de agosto de 2019. Estabelece medidas regulatórias objetivando assegurar a
estabilidade de barragens de mineração, notadamente aquelas construídas ou alteadas pelo método denominado
“a montante” ou por método declarado como desconhecido e dá outras providências. Brasília: Ministério de Minas
e Energia; Agência Nacional de Mineração, 2019. Disponível em: http://www.in.gov.br/web/dou/-/resolucao-n-
-13-de-8-de-agosto-de-2019-210037027. Acesso em: 2 jul. 2020.
39
PF apresenta resultados de investigação sobre o rompimento de barragem em Brumadinho. PF Notícias, set.
2019. Disponível em: http://www.pf.gov.br/imprensa/noticias/2019/09/pf-apresenta-resultados-de-investigacao-
-sobre-o-rompimento-de-barragem-em-brumadinho. Acesso em: 2 jul. 2020.
40
BALANÇO de seis meses de atuação do MPMG no caso Brumadinho. MPMG Notícias, jul. 2019. Disponível em:
https://www.mpmg.mp.br/comunicacao/noticias/balanco-de-seis-meses-de-atuacao-do-mpmg-no-caso-bruma-
dinho.htm. Acesso em: 2 jul. 2020.
144 Flávio Henrique Unes Pereira
da Mina “Córrego do Feijão”;41 (ii) para promover estudos nas áreas geológica-geotécnica
nas barragens Norte Laranjeiras, B3, Dicão, Dique de Contenção da PDE3, Sul (Córrego do
Canal), além daquelas componentes ou integradas;42 e, ainda, (iii) para acompanhamento da
situação da Mina de “Gongo Soco”, especialmente da Barragem Sul Superior, no município
de Barão de Cocais-MG.43
4 CONSIDERAÇÕES FINAIS
41
VALE deve contratar auditoria independente para verificar medidas de recuperação socioambiental das áreas
impactadas pela tragédia de Brumadinho. MPMG Notícias, fev. 2019. Disponível em: https://www.mpmg.mp.br/
comunicacao/noticias/vale-deve-contratar-auditoria-independente-para-verificar-medidas-de-recuperacao-so-
cioambiental-das-areas-impactadas-pela-tragedia-de-brumadinho.htm. Acesso em: 2 jul. 2020.
42
MPMG e Vale assinam acordo para realização de auditoria independente em barragens em São Gonçalo do Rio
Abaixo e Barão de Cocais. MPMG Notícias, jul. 2019. Disponível em: https://www.mpmg.mp.br/comunicacao/
noticias/mpmg-e-vale-assinam-acordo-para-realizacao-de-auditoria-independente-em-barragens-em-sao-gon-
calo-do-rio-abaixo-e-barao-de-cocais.htm. Acesso em: 2 jul. 2020.
43
MPMG e Vale assinam acordo para realização de auditoria independente [...]. Op. cit.
De Mariana a Brumadinho 145
REFERÊNCIAS
ALVES, Sara. Fundação SOS Mata Atlântica faz ato de apoio a Brumadinho em BH. Metrópoles, jan.
2019. Disponível em: https://www.metropoles.com/brasil/fundacao-sos-mata-atlantica-faz-ato-de-
-apoio-a-brumadinho-em-bh. Acesso em: 2 jul. 2020.
BALANÇO de seis meses de atuação do MPMG no caso Brumadinho. MPMG Notícias, jul. 2019. Dispo-
nível em: https://www.mpmg.mp.br/comunicacao/noticias/balanco-de-seis-meses-de-atuacao-do-m-
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www.mpmg.mp.br/comunicacao/noticias/vale-deve-contratar-auditoria-independente-para-verificar-
-medidas-de-recuperacao-socioambiental-das-areas-impactadas-pela-tragedia-de-brumadinho.htm.
Acesso em: 2 jul. 2020.
O controle judicial do processo
administrativo disciplinar
1 INTRODUÇÃO
crítica de pontos de vista em relação aos quais entendemos haver um déficit perante os
princípios do Estado Democrático de Direito, indicando a ampliação do controle jurisdicional
como aspecto relevante para a adequada juridicização do processo disciplinar.
não está regida pelo direito quando as regras a que obedece lhe são puramente interiores,
obrigatórias para os agentes em relação aos seus superiores, mas não em relação aos ad-
ministrados”.1
O caráter ajurídico dessas relações especiais, logicamente, serviu de fundamento à
sua exclusão do controle jurisdicional, uma vez que, conforme a clássica teoria da separação
dos poderes, que se constitui em um dos pilares do Estado de Direito, somente cabe aos
órgãos jurisdicionais o exame da legalidade dos atos da administração pública.
A concepção e sistematização dessas relações como ajurídicas devem-se principal-
mente a Paul Laband e Otto Mayer. Trata-se de concepção que, sobrevivendo à República de
Weimar e à democratização pós Segunda Guerra Mundial, só veio a encontrar o ocaso de
sua formulação original em 1972, quando o Tribunal Constitucional Federal alemão, julgando
lide relativa às relações entre o Estado e o indivíduo, no contexto da execução penal, decidiu
que também nas chamadas relações especiais de poder vigoram os direitos fundamentais e
sua juridicidade pode ser examinada pelo Judiciário.2
Atualmente a classificação dos vínculos entre administração pública e demais su-
jeitos de direito em relações gerais e especiais de sujeição tem repercussões muito mais
restritas, como a de explicar os distintos fundamentos do poder de polícia e do poder disci-
plinar, como acima já referido. O mais importante é que não mais se admite que as relações
especiais de poder sejam subtraídas da regência do princípio da legalidade, tampouco se
possa excluir de seu âmbito a proteção aos direitos fundamentais.
Contudo, na doutrina e na jurisprudência brasileiras ainda subsistem posições muito
restritivas no tocante à extensão do controle judicial do processo administrativo disciplinar. A
principal linha de fundamentação deste posicionamento é a alegação da discricionariedade
que, segundo se defende, prevalece na aplicação das normas disciplinares.
Embora originariamente essa discricionariedade tenha sido associada à isenção ju-
rídica das relações especiais de poder, o ocaso desta noção não foi suficiente para levar a
uma substancial redução da defesa de prerrogativas discricionárias da administração pública
no campo disciplinar.
Para ilustrar a defesa dessa discricionariedade, trazemos a lume a lição de Hely Mei-
relles, um dos mais influentes nomes do Direito Administrativo brasileiro:
1
RIVERO, Jean. Droit administratif. Paris: Dalloz, 1975. p. 14.
2
LABAND, Paul. Le droit public de l’empire allemand. T. II. Paris: V. Giard & E. Brière, 1901. p. 100-107. MAURER,
Hartmut. Allgemeines Verwaltungsrecht. 9. Aufl. München: C. H. Beck, 1994. p. 105-106, 158-161. SILVA, Claris-
sa Sampaio. Direitos fundamentais e relações especiais de sujeição: o caso dos agentes públicos. Belo Horizonte:
Fórum, 2009.
152 Florivaldo Dutra de Araújo
sanção. Não se aplica ao poder disciplinar o princípio da pena específica que domina
inteiramente o Direito Criminal comum, ao afirmar a inexistência da infração penal sem
prévia lei que a defina e apene: “nullum crimen, nulla poena sine lege”. Esse princípio
não vigora em matéria disciplinar. O administrador, no seu prudente critério, tendo em
vista os deveres do infrator em relação ao serviço e verificando a falta, aplicará a san-
ção que julgar cabível, oportuna e conveniente, dentre as que estiverem enumeradas
em lei ou regulamento para a generalidade das infrações administrativas.3
com relação a certas infrações que a lei não define; é o caso do “procedimento ir-
regular” e da “ineficiência no serviço”, puníveis com pena de demissão, e da “falta
grave”, punível com suspensão; são expressões imprecisas, de modo que a lei deixou
à Administração a possibilidade de enquadrar os casos concretos em uma ou outra
dessas infrações.5
3
MEIRELLES, Hely Lopes. Direito administrativo brasileiro. 42. ed. São Paulo: Malheiros, 2016. p. 146.
4
MEIRELLES, Hely Lopes. Direito administrativo brasileiro. Op. cit., p. 147.
5
DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Direito administrativo. 30. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2017. p. 126.
6
MEIRELLES, Hely Lopes. Direito administrativo brasileiro. Op. cit., p. 147.
O controle judicial do processo administrativo disciplinar 153
7
MEIRELLES, Hely Lopes. Direito administrativo brasileiro. Op. cit., p. 148.
8
MEIRELLES, Hely Lopes. Direito administrativo brasileiro. Op. cit., p. 149, grifos no original.
9
Manifestação exemplar dessa concepção encontramos no seguinte trecho de voto vencedor do Ministro Costa
Manso no Supremo Tribunal Federal (STF), proferido em 1938, no qual reitera argumentação já vertida em decisão
anterior: “Quando a lei estabelece garantias para o funcionário, podem os tribunais judiciais verificar se os precei-
tos da lei foram ou não violados. A lei, por exemplo, declara qual o funcionário competente para demitir, enumera
os casos de demissão e estabelece um processo para apurá-los. Se a demissão é decretada por funcionário
diverso do designado na lei, o ato é nulo, pela incompetência de quem o executou. Se a demissão é decretada por
motivo não previsto na lei, o ato é nulo por excesso de poder. Se, finalmente, a demissão é decretada sem obser-
vância das formalidades substanciais do processo estabelecido para a apuração do motivo legal, o ato é nulo, por
cerceamento dos meios de defesa. [...] Desde, porém, que a autoridade seja competente, que a demissão tenha
uma das causas previstas em lei, e que hajam sido observadas as formalidades legais, o ato poderá ser injusto,
mas não é nulo.” (Apelação Cível n. 6.845, Relator ad hoc Ministro Costa Manso.)
154 Florivaldo Dutra de Araújo
10
Nesse sentido, a lição de Celso Agrícola Barbi, contido em obra clássica sobre o mandado de segurança: “Ex-
clui-se, porém, expressamente, do âmbito do mandado de segurança o ato disciplinar, salvo quando praticado
por autoridade incompetente ou com inobservância de formalidade essencial. Esse princípio, aliás, não é peculiar
ao mandado de segurança, pois não se refere à forma processual adotada para o controle da Administração. A
restrição legal é devida à natureza discricionária do ato disciplinar, que não se coaduna com o exame do mérito
da pena, seja qual for a via processual escolhida. A intervenção do Poder Judiciário é, assim, limitada ao exame
apenas da legalidade do ato disciplinar e não de sua justiça.” (Do Mandado de Segurança, 1998, p. 96.) Deve-se,
porém, registrar que a doutrina e a jurisprudência cuidaram de dar interpretação mais garantista a esse dispositivo
da Lei 1.533/1951, de modo a ampliar as hipóteses de cabimento do mandado de segurança em matéria disci-
plinar, tal como registra José Armando da Costa (COSTA, José Armando da. Controle externo do ato disciplinar.
Fórum Administrativo: Direito Público, v. 5, n. 55, p. 6095-6111, set. 2005).
11
O não cabimento do mandado de segurança para controle do processo disciplinar pode decorrer, porém, da im-
propriedade dessa ação em casos nos quais seja necessária dilação probatória para comprovação de alegações,
tendo em vista que o seu rito especial somente admite prova documental, pré-constituída. A respeito, cf.: PEREI-
RA, Flávio Henrique Unes. O controle jurisdicional das sanções disciplinares no mandado de segurança. Interesse
Público, v. 9, n. 45, p. 69-75, set./out. 2007.
O controle judicial do processo administrativo disciplinar 155
rante quando o motivo invocado é falso ou inidôneo, vale dizer, quando ocorre ine-
xistência material ou inexistência jurídica dos motivos. Esses motivos, na expressão
de Jèze, devem ser “materialmente exatos e juridicamente fundados”. Tal teoria tem
inteira aplicação ao ato disciplinar, que é espécie do gênero — ato administrativo.12
Ora, se o controle judicial pode verificar a idoneidade do motivo invocado para a apli-
cação da sanção e se esse controle verifica, por meio da motivação, se os atos infracionais
legitimam a punição aplicada, já se está admitindo que a fiscalização pelo poder judiciário
não é apenas aquela restrita aos aspectos da competência, forma e previsão abstrata, em
lei, da punição aplicada. Esta nova perspectiva, que até a primeira metade do século XX fora
uma posição minoritária,13 tornou-se predominante nas últimas décadas do mesmo século,
culminando com o posicionamento legislativo já referido, que excluiu da regulação do man-
dado de segurança a analisada restrição ao cabimento desta ação em matéria disciplinar.
Com efeito, ainda na vigência das constituições de 1946 e 1967 avolumaram-se
nos tribunais brasileiros decisões em favor do sopesamento dos motivos ensejadores de
sanções disciplinares. Não cabe aqui um levantamento minucioso de todas essas decisões,
mas é importante ilustrar essa evolução com duas decisões emblemáticas.
Em dezembro de 1944, o STF julgou Embargos na Apelação Cível n. 7.307, cujo
Relator foi o Ministro Castro Nunes. Essa decisão foi publicada na Revista de Direito Adminis-
trativo14, comentada por Victor Nunes Leal, que a qualifica como leading case na mudança de
alteração do STF, não apenas no tocante ao controle da aplicação de sanções disciplinares,
mas também em relação ao reexame, pelo Poder Judiciário, dos atos administrativos, tendo
em vista que o conceito de legalidade é definido de maneira mais ampla do que até então
se concebera.
A ementa do acórdão ainda registra que o Judiciário “Deve inclinar-se antes a placitar
a medida disciplinar do que a revogá-la,15 quando encontre razoáveis fundamentos no ato
12
MEIRELLES, Hely Lopes. Direito administrativo brasileiro. Op. cit., p. 148-149, grifos no original.
13
Na referida decisão do STF adotada em 1938, o relator originário do feito, Ministro Laudo de Camargo, concorda
que “Na apreciação (de ato sancionatório disciplinar pelo poder judiciário), o que se deve ter em vista é a legalida-
de ou não do ato incriminado.” Contudo, objeta: “Terá ele (ato punitivo) de ser examinado pela forma com que se
apresentar e pelos motivos que o determinam.” Donde o questionamento então feito à corrente então majoritária,
que sustentava profunda restrição ao controle judicial dos atos disciplinares: “Como saber se o ato foi ou não
lícito sem pesar os motivos que o determinaram, nem apreciar os elementos colhidos?” (Apelação Cível n. 6.845,
Relator ad hoc Ministro Costa Manso).
14
NUNES LEAL, Victor. Atos administrativos – exame da sua validade pelo Poder Judiciário (comentário aos Em-
bargos na Apelação Cível n. 7.307 – STF, contendo a íntegra do acórdão). Revista de Direito Administrativo, v. 3,
1946. p. 69.
15
O termo “revogá-la”, aqui, claramente não é usado no sentido estrito com que atualmente se encontra consagrado
no Direito Administrativo, de retirada de um ato administrativo válido, por razões de conveniência e oportunidade
(Lei Federal n. 9.784, de 20/01/1999, art. 53). Naquela ocasião, o termo foi utilizado como sinônimo de extinção
do ato por motivo de contrariedade ao direito, fenômeno jurídico que hoje se acha consolidado sob as denomina-
ções de anulação e invalidação.
156 Florivaldo Dutra de Araújo
administrativo.” Mas, no caso em análise, o STF afasta a existência desses razoáveis funda-
mentos e, em vista disso, decide-se em sentido bem distinto do que até então predominara
naquela Corte e no Judiciário brasileiro em geral. A síntese dessa nova orientação acha-se
sintetizada nas seguintes afirmações contidas na ementa:
Como observa Victor Nunes Leal em seus comentários, o STF, rompendo a posição
restritiva até então imperante, admitiu “que o Judiciário reexamine a prova do inquérito e
possa contrapor-lhe novas provas produzidas em juízo”.17
Em seu voto, Castro Nunes afirma que o ato de punição de funcionário estável,
condicionado ao processo administrativo, não pode ser considerado discricionário. Quanto a
esse aspecto, Nunes Leal comenta:
A demissão é, pois, no caso de funcionários estáveis, um ato para cuja validade são
pressupostos certos requisitos não só formais como também substanciais. É um
ato que deve ser motivado, que se baseia em determinadas ocorrências de fato, sem
as quais o ato seria uma conclusão aberrante das premissas. Não é, pois, um ato
discricionário, porque a Administração, ao praticá-lo, tem seus poderes balizados por
pressupostos definidos.18
16
NUNES LEAL, Victor. Atos administrativos – Op. cit., p. 69.
17
NUNES LEAL, Victor. Atos administrativos – Op. cit., p. 71.
18
NUNES LEAL, Victor. Atos administrativos – Op. cit., p. 72.
O controle judicial do processo administrativo disciplinar 157
diciário, de sua legalidade, compreende quer os aspectos formais, quer os materiais, nestes
se incluindo os motivos e pressupostos que o determinaram.”.19
O advento da Constituição de 1988 consolidou a tendência de ampliação dos con-
ceitos de legalidade e de vinculação dos atos administrativos, inclusive os disciplinares, o
que se deve, entre outros fatores, à consagração dos princípios da administração pública
como normas jurídicas e à expressa extensão da exigência do devido processo legal aos
procedimentos administrativos, em especial, os contenciosos.
A declaração de direitos fundamentais da Constituição vigente estabelece que “nin-
guém será privado da liberdade ou de seus bens sem o devido processo legal” (art. 5º, LIV)
e que “aos litigantes, em processo judicial ou administrativo, e aos acusados em geral são
assegurados o contraditório e ampla defesa, com os meios e recursos a ela inerentes” (art.
5º, LV).
É nesse novo contexto, fruto da referida ampliação dos parâmetros da atuação ju-
dicial desde meados do século XX e consolidado pelas três décadas de vigência da nova
Constituição, que se deve conceber hoje o controle jurisdicional do processo disciplinar.
19
BRASIL. STF. Embargos no Recurso Extraordinário n. 75.421. Relator: Ministro Xavier de Albuquerque. Embargan-
te: Paulo Santos Silva. Embargada: Prefeitura Municipal de Salvador. Revista Trimestral de Jurisprudência, v. 79,
n. 2, p. 478-491, fev. 1977. Disponível em: http://www.stf.jus.br/arquivo/cms/publicacaoRTJ/anexo/079_2.pdf.
Acesso em: 2 jul. 2020.
158 Florivaldo Dutra de Araújo
elásticos. São exemplos, extraídos do vigente estatuto dos servidores públicos federais (Lei
8.112, de 11/12/1990) as proibições de “promover manifestação de apreço ou desapreço
no recinto da repartição” (art. 117, V) e de “proceder de forma desidiosa” (art. 117, XV); os
deveres de “ser leal às instituições a que servir” (art. 116, II) e de “manter conduta compa-
tível com a moralidade administrativa” (art. 116, IX). Algumas transgressões a normas com
essa textura aberta são até mesmo punidas com a mais grave das sanções disciplinares, ou
seja, a demissão, como determina a Lei 8.112/1990 em relação à citada conduta desidiosa
e à infração consistente em “incontinência pública e conduta escandalosa, na repartição”
(art. 132, V).
Nesse aspecto, cabe inicialmente observar que a expressão conceito jurídico in-
determinado, ou simplesmente conceito indeterminado, considerada em si mesma, não é
expressão correta, pois traz uma contradictio in terminis. Como já tivemos ocasião de expor
com maior detalhamento20, os seres humanos comunicam-se por convenções linguísticas,
nas quais o significante e o significado ligam-se por acordo entre os usuários de uma dada
linguagem. Assim, a determinação convencional dos significantes e seus significados são
conditio sine qua non da comunicação. Por isso, delimitamos os conceitos, associando-os a
determinados objetos, e escolhemos os termos que utilizaremos para nos referir aos concei-
tos. Neste sentido, termos e conceitos são determinados convencionalmente. Todo conceito
é uma delimitação de ideias em relação a determinados objetos aos quais se referem. Se
esses significantes aos quais associamos dados objetos fossem indeterminados, a comu-
nicação seria impossível. Por exemplo, se ao termo cadeira e seu respectivo conceito não
correspondesse um conjunto de ideias delimitadas, que se referem a certos objetos, cada in-
divíduo poderia associar a esse significante qualquer ideia, tornando inviável a comunicação
interpessoal. O mesmo ocorre quando empregamos termos designativos de substantivos
abstratos. Se alguém utiliza o termo “urgência”, suscitar-se-á nos interlocutores um conjunto
de ideias que serão expressas analiticamente por outros termos, tais como “situação que
exige rápida providência”, “qualidade do que é indispensável e iminente”. Repita-se: o termo
(urgência) e o conceito (as ideias abstratas por ele suscitadas) são determinados por acordo
linguístico, ou seja, são fruto de uma delimitação convencional.
Porém, quando a teoria jurídica refere-se a “conceitos indeterminados”, a impreci-
são reside em outro aspecto da comunicação, qual seja: se alguém, numa comunidade de
linguagem, indaga se uma específica situação, real ou fictícia, é, por exemplo, ensejadora de
“urgência”, muito provavelmente encontrar-se-ão pessoas que responderão afirmativamen-
te; outras, negativamente.
20
ARAÚJO, Florivaldo Dutra de. Discricionariedade e motivação do ato administrativo. In: LIMA, Sérgio Mourão
Correa (Coord.). Temas de direito administrativo: estudos em homenagem ao professor Paulo Neves de Carvalho.
Rio de Janeiro: Forense, 2006. p. 107-112.
O controle judicial do processo administrativo disciplinar 159
21
“Es sind eben zwei verschiedene ‘Rechtsfragen’, ob einerseits ein Sachverhalt objektiv unter einen gesetzlichen
Tatbestand zu subsumieren ist, und ob andererseits die Behörde subjektiv einen Sachverhalt bei pflichtmässiger
Beurteilung unter einen Tatbestand subsumieren darf”. (BACHOF, Otto. Beurteilunsspielraum, Ermessen und un-
bestimmter Rechtsbegriff im Verwaltungsrecht. Juristenzeitung, Tübingen: J. C. Mohr, n. 4, p. 97-102, feb. 1955.
p. 99).
160 Florivaldo Dutra de Araújo
Não se põe em dúvida que um juiz pode, a propósito de um litígio entre particulares,
examinar as provas e argumentos contidos nos autos e decidir se houve “boa fé”, “mau
comportamento”, “honestidade” etc. Mas se expressões da mesma natureza surgem numa
regra dirigida à conduta da administração pública, então, como que por um passe de mágica,
o juiz se torna inapto para saber se a condição abstratamente apontada pela norma efetiva-
mente ocorre no caso concreto.
Só isso já seria o suficiente para demonstrar que a tese de que conceitos indetermi-
nados implicam discricionariedade não tem justificação material – que, se houvesse, seria
igualmente aplicável a todos os ramos do direito. Trata-se de um resquício das imunidades
jurisdicionais da administração pública que, originárias dos tempos do Estado Absolutista,
sobreviveram ao advento do Estado de Direito, agora sob outro discurso fundamentador.
Outra objeção, ligada a essa primeira, é a de que os conceitos indeterminados de-
vem, tal como nos demais ramos do direito, ser objeto de interpretação, na busca da sua
melhor aplicabilidade, cujo referencial deve ser a máxima otimização dos princípios e valores
em jogo em cada caso concreto.
Entendemos que a vinculação caracterizará um aspecto do ato administrativo sem-
pre que a norma de direito positivo o regular de modo a indicar que, na consideração do
direito e das circunstâncias em que este se faz aplicável, deve o administrador, ao aplicar
essa norma, fazê-lo da melhor maneira possível. Como a utilização de conceitos indeter-
minados não afasta esse dever de buscar a melhor aplicação possível, a sua presença na
norma jurídica a ser aplicada pelo agente administrativo não caracteriza, por si só, a previsão
de prerrogativa discricionária de atuação.
Por outro lado, a discricionariedade caracterizará um aspecto do ato administrativo
se a norma de direito positivo regulá-lo de modo a indicar que, na apreciação do direito e das
circunstâncias em que este se faz aplicável, está o administrador diante de número determi-
nado ou indeterminado de opções que se caracterizam como indiferentes jurídicos, ou seja,
face ao direito positivo é irrelevante que o administrador adote esta ou aquela alternativa.
No campo do direito administrativo punitivo, inclusive o disciplinar, não pode haver
solução indiferente para o direito.
O fato punível é somente aquele enquadrável nas condutas hipoteticamente descritas
como infrações. A infração ocorre ou não ocorre e por isso a instrução deve ser cuidadosa,
para deixar patente, se for o caso, a existência do ato ilícito. A pena tem de corresponder, le-
galmente, à infração apurada. E a dosimetria da pena deve ser proporcional às circunstâncias
da infração e aos fatores agravantes e atenuantes do caso.
A legalidade, no campo do direito punitivo, implica, portanto, a tipicidade das in-
frações, exigência válida tanto para o direito penal, como para o direito administrativo
sancionador.
O controle judicial do processo administrativo disciplinar 161
A tipicidade não deve ser entendida como a descrição “exata” de condutas infratoras,
capaz de excluir toda subjetividade no seu reconhecimento. Deve-se recordar aqui as clássi-
cas lições de Recaséns Siches que, nas primeiras décadas do século XX, elaborou primorosa
obra para demonstrar que raciocínios exatos, como os matemáticos, não são apropriados
como critérios exclusivos ou mesmo preponderantes da atividade jurídica.
Assim, também os códigos penais são textos legislativos com abundante presença
de conceitos indeterminados, tais como “estado de necessidade”, “sacrifício (que) não era
razoável exigir-se”, “agressão injusta”, “motivo fútil” e “meio insidioso ou cruel”. Nem por
isso supõe-se discricionariedade na subsunção dos fatos às descrições normativas, nem na
aplicação das penas.
Portanto, a tipicidade, no direito penal e nos demais ordenamentos punitivos, não
deve ser entendida como “precisão absoluta”, o que seria quase sempre impossível ao legis-
lador. A tipicidade deve ser entendida em dupla vertente: 1) a vedação de tipos excessiva e
desnecessariamente abertos, sempre que seja possível maior precisão na descrição hipoté-
tica do fato punível; 2) a vedação do emprego da analogia e da interpretação extensiva para
qualificar um fato como infração.23
22
RECASÉNS SICHES, Luis. Algunos criterios y análisis sobre el logos de lo “razonable”. In: RECASÉNS SICHES,
Luis. Antologia (1922-1974). México: Fondo de Cultura Económica, 1976. p. 361-362.
23
Nesse mesmo sentido e com amplas remissões bibliográficas, cf.: BACELAR FILHO, Romeu Felipe. Processo
administrativo disciplinar. 2. ed. São Paulo: Max Limonad, 2003.p. 169-181.
162 Florivaldo Dutra de Araújo
Outra ideia a ser superada no campo do direito disciplinar é de que cabe à autoridade
administrativa a discricionariedade de “escolher” a pena a ser aplicada, quando a lei não
impuser uma sanção exclusiva para dada infração, ou de fixar o quantum da sanção, entre
um valor mínimo e um valor máximo, legalmente estabelecidos, como normalmente ocorre
nos casos de previsão de suspensão e multa.
Essa alegação de discricionariedade é contrária a um princípio geral do direito pu-
nitivo estatal, também aplicável no campo disciplinar, que é o da individualização da pena
(CF, art. 5º, XLVI), cuja observância pressupõe respeito a outro princípio jurídico, que é o da
proporcionalidade.24
Decorrem desses princípios o disposto no caput do art. 128 da Lei 8.112/1990: “Na
aplicação das penalidades serão consideradas a natureza e a gravidade da infração come-
tida, os danos que dela provierem para o serviço público, as circunstâncias agravantes ou
atenuantes e os antecedentes funcionais.”
Portanto, longe de conferir discricionariedade à administração pública, o Estado De-
mocrático de Direito exige-lhe a fixação da pena adequada a cada circunstância e infrator.25
Ademais, essa adequação deve ser demonstrada por meio da motivação do ato
sancionador, que tem de estar lastreada nos elementos colhidos no processo disciplinar e
registrados nos respectivos autos. Neste sentido, o disposto no parágrafo único do citado
art. 128: “O ato de imposição da penalidade mencionará sempre o fundamento legal e a
causa da sanção disciplinar.”.
Consequentemente, a aplicação das sanções no âmbito do direito disciplinar, pela
administração pública, deve estar submetida ao controle jurisdicional, sob pena de os direi-
tos fundamentais tornarem-se mera retórica constitucional, com graves riscos à legalidade
e à segurança jurídica.
24
COSTA, José Armando da. Proporcionalidade da punição disciplinar. Fórum Administrativo (Recurso Eletrônico):
Direito Público, Belo Horizonte, v. 1, n. 9, nov. 2001. Disponível em: http://www.bidforum.com.br/bid/PDI0006.
aspx?pdiCntd=923. Acesso em: 2 jul. 2020.
25
Sobre a adequabilidade normativa na aplicação de sanções disciplinares, cf.: PEREIRA, Flávio Henrique Unes.
Sanções administrativas: o alcance do controle jurisdicional. Belo Horizonte: Fórum, 2007.
O controle judicial do processo administrativo disciplinar 163
26
Para um ótimo panorama relativo a essa temática, cf. CARVALHO, Juliana Brina Corrêa Lima de. Controle jurisdi-
cional do ato que aplica sanção disciplinar. Boletim de Direito Municipal, São Paulo, v. 21, n. 11, p. 831-844, nov.
2005. FORTINI, Cristiana; AVELAR, Mariana Magalhães; FERREIRA, Raquel Bastos. Controle judicial dos conceitos
jurídicos indeterminados utilizados no processo administrativo disciplinar: uma visão da abordagem dos Tribunais
Superiores. Revista da Procuradoria-Geral do Município de Belo Horizonte, Belo Horizonte, v. 5, n. 9, p. 67-89,
jan./jun. 2012.
27
BRASIL. STF. RMS 24.699. Primeira Turma, Relator: Ministro Eros Grau, julgado em 30/11/2004, DJ 01/07/2005.
p. 56.
164 Florivaldo Dutra de Araújo
28
Trecho da ementa: BRASIL. STJ. MS 17.981. Primeira Seção, Relator Ministro Napoleão Nunes Maia Filho, julgado
em 25/02/2016, DJe 03/03/2016.
29
Trecho da ementa: BRASIL. STJ. MS 19.487. Primeira Seção, Relator Ministro Napoleão Nunes Maia Filho, julgado
em 13/09/2017, DJe 17/11/2017.
30
Trecho da ementa: BRASIL. STJ. MS 21.645. Relator Ministro Napoleão Nunes Maia Filho, Primeira Seção, julgado
em 13/09/2017, DJe 17/11/2017.
31
Trecho da ementa: BRASIL. STJ. REsp 1.001.673. Relator Ministro Arnaldo Esteves Lima, Quinta Turma, julgado
em 06/05/2008, DJe 23/06/2008.
32
Trecho da ementa: BRASIL. STJ. MS 12.983/DF. Relator Ministro Felix Fischer, Terceira Seção, julgado em
12/12/2007, DJ 15/02/2008. p. 79.
O controle judicial do processo administrativo disciplinar 165
4 CONSIDERAÇÕES FINAIS
Não obstante subsistirem posições mais restritivas, algumas das quais ainda alinha-
das com pressupostos teóricos da primeira metade do século XX, é nítida a tendência de am-
pliação do alcance do controle jurisdicional do ato sancionatório disciplinar, em consonância
com a evolução do tema no Estado Democrático de Direito.
Tal como já se verificou em outros campos da atuação administrativa, as novas
aberturas para o controle judicial não representam apequenamento da administração pú-
blica. Ao contrário, a existência de efetivo controle pelo poder judiciário apenas demonstra
que os diferentes setores do estado, assumindo os seus respectivos papéis na repartição de
funções estatais, poderão otimizar a contribuição de cada qual no Estado de Direito, melhor
contribuindo para a efetivação dos direitos fundamentais, em ambiente de maior segurança
jurídica.
REFERÊNCIAS
ARAÚJO, Florivaldo Dutra de. Discricionariedade e motivação do ato administrativo. In: LIMA, Sérgio
Mourão Correa (Coord.). Temas de direito administrativo: estudos em homenagem ao professor Paulo
Neves de Carvalho. Rio de Janeiro: Forense, 2006. p. 99-125.
BACELAR FILHO, Romeu Felipe. Processo administrativo disciplinar. 2. ed. São Paulo: Max Limonad,
2003.
BARBI, Celso Agrícola. Do mandado de segurança. 5. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1998.
BRASIL. STF. Embargos no Recurso Extraordinário n. 75.421. Relator: Ministro Xavier de Albuquerque.
Embargante: Paulo Santos Silva. Embargada: Prefeitura Municipal de Salvador. Revista Trimestral de
Jurisprudência, v. 79, n. 2, p. 478-491, fev. 1977. Disponível em: http://www.stf.jus.br/arquivo/cms/
publicacaoRTJ/anexo/079_2.pdf. Acesso em: 2 jul. 2020.
BRASIL. STF. RMS 24.699. Primeira Turma, Relator: Ministro Eros Grau, julgado em 30/11/2004, DJ
01/07/2005.
BRASIL. STJ. MS 17.981. Primeira Seção, Relator Ministro Napoleão Nunes Maia Filho, julgado em
25/02/2016, DJe 03/03/2016.
BRASIL. STJ. MS 19.487. Primeira Seção, Relator Ministro Napoleão Nunes Maia Filho, julgado em
13/09/2017, DJe 17/11/2017.
BRASIL. STJ. MS 21.645. Relator Ministro Napoleão Nunes Maia Filho, Primeira Seção, julgado em
13/09/2017, DJe 17/11/2017.
166 Florivaldo Dutra de Araújo
BRASIL. STJ. REsp 1.001.673. Relator Ministro Arnaldo Esteves Lima, Quinta Turma, julgado em
06/05/2008, DJe 23/06/2008.
BRASIL. STJ. MS 12.983/DF. Relator Ministro Felix Fischer, Terceira Seção, julgado em 12/12/2007,
DJ 15/02/2008.
CARVALHO, Juliana Brina Corrêa Lima de. Controle jurisdicional do ato que aplica sanção disciplinar.
Boletim de Direito Municipal, São Paulo, v. 21, n. 11, p. 831-844, nov. 2005.
COSTA, José Armando da. Controle externo do ato disciplinar. Fórum Administrativo: Direito Público,
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COSTA, José Armando da. Proporcionalidade da punição disciplinar. Fórum Administrativo (Recurso
Eletrônico): Direito Público, Belo Horizonte, v. 1, n. 9, nov. 2001. Disponível em: http://www.bidforum.
com.br/bid/PDI0006.aspx?pdiCntd=923. Acesso em: 2 jul. 2020.
DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Direito administrativo. 30. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2017.
FORTINI, Cristiana; AVELAR, Mariana Magalhães; FERREIRA, Raquel Bastos. Controle judicial dos con-
ceitos jurídicos indeterminados utilizados no processo administrativo disciplinar: uma visão da abor-
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públicos. Belo Horizonte: Fórum, 2009.
Atos normativos infralegais e os parâmetros do
controle judicial das políticas públicas de saúde
no tocante ao fornecimento de medicamentos
Natália Libório
Especialista em Direito Público
Advogada
1 INTRODUÇÃO
O tema das políticas públicas de saúde no Brasil é uma questão muito polêmica, a
qual tem sido constantemente enfrentada pela doutrina e sido alvo de diferentes decisões pe-
los Tribunais brasileiros. A questão fica ainda mais controvertida quando envolve o judiciário,
que tem constantemente sido instado a adentrar no assunto, especialmente em situações
emergenciais em que se pleiteia o fornecimento de medicamentos pelo poder público, tanto
em tutela definitiva, quanto em sede de tutela antecipada.
Primeiramente, como norma fundamental, encontramos o direito à saúde assegu-
rado expressamente na nossa Constituição Federal, em seus arts. 6º, 196 e 197. No artigo
6º da Constituição Federal (CF), encontramos a indicação da saúde como um direito social.
O constitucional artigo 196, por sua vez, dispõe que a saúde é direito de todos e dever do
Estado, garantido mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de
doença e de outros agravos e ao acesso universal e igualitário às ações e serviços para sua
promoção, proteção e recuperação. Por fim, o artigo 197 da CF assegura como relevantes
as ações e serviços de saúde, cabendo ao poder público dispor, nos termos da lei, sobre
sua regulamentação, fiscalização e controle, devendo sua execução ser feita diretamente ou
através de terceiros e, também, por pessoa física ou jurídica de direito privado.
Percebe-se, também, o direito à saúde implicitamente inserto nos arts. 1º, III, e 5º,
da CF. É cristalina a redação do art. 1º que prescreve a dignidade da pessoa humana como
fundamento do Estado Democrático de Direito. Ora, para que haja dignidade, é indispensável
existir saúde, pois sem ela não haverá vida digna. O referido artigo 5º, por sua vez, outorga
a todos a inviolabilidade do direito à vida. Não é novidade alguma o fato de que sem saúde
não há que se falar em direito à vida. Isso porque, aqueles que não têm condições satisfa-
tórias de saúde podem, a qualquer momento, falecer por conta de inúmeras enfermidades.
Ademais, vale registrar as disposições contidas nos arts. 198, 199 e 200 da CF, nas quais se
determinam as formas de prestação da saúde pelo poder público, através do Sistema Único
de Saúde (SUS), e pela iniciativa privada, de forma suplementar.
Além do amplo embasamento constitucional dado ao assunto, há que se ressaltar
a existência de leis infraconstitucionais reguladoras da matéria. Trata-se da Lei Federal no
8.080/1990, a qual tem a função de regular, em todo o território nacional, as ações e os ser-
viços de saúde, executados isolada ou conjuntamente, em caráter permanente ou eventual,
Atos normativos infralegais e os parâmetros do controle judicial... 169
por pessoas naturais ou jurídicas de direito público ou privado,1 conforme se verifica dos
seus artigos 2º e 5º. Some-se a isso a Lei 8.142/902 (Lei de Organização da Regularidade
Social), que dispõe sobre a participação da comunidade na gestão do Sistema Único de
Saúde (SUS) e sobre as transferências intergovernamentais de recursos financeiros na área
da saúde e dá outras providências.
Da leitura das normas constitucionais e infraconstitucionais indicadas, podemos
identificar três características fundamentais do direito à saúde, quais sejam, a universalidade,
a integralidade e a igualdade. Nesse sentido, podemos compreender a saúde como condição
de possibilidade da dignidade da pessoa humana, passando a constituir o que Rogério Leal
chama de “indicador constitucional parametrizante do mínimo existencial”.3
Com base nesse pensamento, podemos então afirmar que o direito à saúde, além de
ser um direito de todos e dever do Estado de garantir uma vida saudável, é um pressuposto
mínimo para a garantia de outros direitos fundamentais, como o próprio direito à vida, e a
uma existência com dignidade. Detém, nestes termos, uma específica proteção jurisdicional,
as quais advém do mais fundamental dos direitos já assegurados pela legislação (do qual,
aliás, decorrem todos os demais): a vida humana. 4
A concretização dos direitos fundamentais, como o direito à saúde, depende, portan-
to, das políticas públicas, sem as quais não teríamos como “tirar os direitos do papel” (posi-
tivação, tanto constitucional como infraconstitucional), e efetiva-los no mundo prático. Para
tanto, ao se falar em direito à saúde e os mecanismos para concretizá-lo – as políticas públi-
cas de saúde – é necessário que seja analisada toda a demanda social e universal existente,
e não apenas os casos que de fato chegam à apreciação administrativa ou jurisdicional.5
As políticas públicas se materializam por um conjunto de ações do governo voltadas
a produzir resultados específicos. São, assim, uma junção entre decisões técnico-adminis-
trativas e políticas. É o Estado que, dessa forma, através das políticas públicas, determina
como os recursos devem ser utilizados para o benefício de seus cidadãos.6
1
LIMA, Lucas Rister de Souza; ZORZETO, Thiago Rebellato. Os limites da atuação do Poder Judiciário na área de
saúde [parte geral – doutrina]. Revista SÍNTESE de Direito Administrativo, ano VI, n. 61, p. 73-83, jan. 2011. p. 75.
2
BRASIL. Lei n. 8.142, de 28 de dezembro de 1990. Dispõe sobre a participação da comunidade na gestão do
Sistema Único de Saúde (SUS) e sobre as transferências intergovernamentais de recursos financeiros na área da
saúde e dá outras providências. Brasília: Presidência da República, 1990. Disponível em: http://www.planalto.gov.
br/ccivil_03/leis/l8142.htm. Acesso em: 31 jul. 2012.
3
LEAL, Rogério. A quem compete o dever de saúde no direito brasileiro? Esgotamento de um modelo institucional
[Doutrina]. Revista de Direito Sanitário, v. 9, p. 50-69, 2008. p. 27.
4
LIMA, Lucas Rister de Souza; ZORZETO, Thiago Rebellato. Os limites da atuação do Poder Judiciário [...]. Op. cit.,
p. 74.
5
LIMA, Lucas Rister de Souza; ZORZETO, Thiago Rebellato. Os limites da atuação do Poder Judiciário [...]. Op. cit.,
p. 28.
6
SOUZA, Celina. Políticas públicas: uma revisão da literatura. Sociologias, Porto Alegre, ano 8, n. 16, p. 20-45, jul./
dez. 2006. p. 06. Disponível em: http://www.scielo.br/pdf/soc/n16/a03n16.pdf. Acesso em: 3 ago. 2012.
170 Georges Louis Hage Humbert | Natália Libório
Sobre o tema, Rogério Leal7 ensina que “[...] qualquer política pública, ou ação pre-
ventiva e curativa, necessitam levar em conta a demanda global que envolve tais interesses,
sob pena de atender uns e desatender muitos.”. Isto é, o aplicador do direito não pode deixar
de fazer uma análise global sobre o direito à saúde, analisando somente um caso posto à
sua apreciação, sem ter em vista todo o sistema sanitário brasileiro, sob pena de ao tentar
beneficiar uma outra pessoa, prejudicar toda uma coletividade.
Dessa forma, as políticas públicas voltadas ao sistema de saúde têm como objetivo
a concretização do direito à saúde insculpido na CF, devendo ser implantadas de acordo com
os ditames constitucionais, possibilitando assim, “a efetivação da CF na plenitude dos seus
efeitos”.8
Nesse contexto, a administração pública está vinculada à prestação da saúde, à
efetivação de suas políticas públicas. Não obstante, de que forma esse direito será garantido,
de que forma essas políticas públicas serão elaboradas e executas, pertencem à discriciona-
riedade da administração pública, a qual leva em consideração para elaboração das referidas
políticas, diversos fatores. Com efeito, a administração pública desenvolve políticas públicas
de saúde voltadas ao atendimento das necessidades mais gritantes da população, de acordo
com o orçamento que lhe é disponível. Daí porque, diferentemente do que muitos afirmam,
que não se trata de falta de esforço da administração no sentido de dar total efetividade ao
direito à saúde, mas sim, da impossibilidade de alcançar a sua efetividade total, diante dos
parcos recursos destinados ao orçamento com as políticas públicas de saúde.
Verifica-se que a administração pública, ao elaborar as políticas públicas de saúde,
leva em consideração diversos aspectos, tais como doenças mais graves, as mais frequen-
tes, as mais curáveis, os remédios mais eficazes, os mais acessíveis, além, é claro, da
questão do orçamento, da verba pública disponível para utilização nas políticas públicas de
saúde. Todas essas questões, naturalmente, fogem ao alcance do juiz quando demandado o
fornecimento de medicamentos.
O Brasil, por ser um país onde através do SUS, o acesso aos serviços de saúde é
universal, sofre, inevitavelmente, com o crescente aumento nos custos com a saúde, so-
bretudo com os medicamentos, uma vez que tem que fornecê-los gratuitamente para toda a
sua população que deles necessitar. Para isso, além do financiamento federal, os Estados e
Municípios tem que alocar recursos próprios para a aquisição de medicamentos.
Diante disso, não se podem alcançar todas as doenças nem fornecer todo e qual-
quer remédio, devendo a administração pública, como dito, fazer um juízo de conveniência
e oportunidade, avaliando diversos fatores que envolvem o fornecimento de medicamentos.
7
SOUZA, Celina. Políticas públicas: Op. cit., p. 34.
8
GOMES, Marco Aurélio Carvalho. As competências constitucionais relacionadas ao Sistema Único de Saúde e ao
Sistema de Saúde Suplementar [Doutrina]. Revista IOB de Direito Administrativo, ano V, n. 55, p. 89-96, jul. 2010.
p. 90.
Atos normativos infralegais e os parâmetros do controle judicial... 171
Em efeito, pode-se argumentar que os recursos destinados à saúde não são sufi-
cientes e que é preciso aumentar o suporte financeiro para o setor. Esse não é o problema.
O problema é que sempre haverá um limite. Nos dizeres de Fabiola Vieira,9 “aumentar os
recursos para a saúde pode significar ter que gastar menos em outras áreas, como educa-
ção, habitação, políticas de geração de emprego, de redistribuição de renda, dentre outras”.
Evidencia-se, portanto, uma limitação das políticas públicas por conta das restrições orça-
mentárias existentes. E uma das razões disso é o fato de que o direito à saúde, da forma
como previsto no art. 196 da Constituição Federal10, deu margem a dúvidas sobre sua
abrangência. Assim, ele tem sido interpretado como se pudesse ser aplicado em toda e
qualquer situação em que se alega a necessidade de fornecimento de medicamento pelo
Poder Público.
Não são analisados, dessa forma, todos os requisitos já citados, necessários a uma
organização e melhor distribuição dos recursos destinados à saúde pública, desrespeitando
as políticas públicas de fornecimento de medicamentos estabelecidas, e suas listas cuida-
dosamente elaboradas. De tal modo, é dever do poder público rigor, técnica e método na
elaboração das políticas públicas de saúde. A dispensação dos medicamentos, por sua vez,
deve se guiar pelo princípio isonômico, garantindo acesso universal e igualitário. Deve-se
procurar, dessa forma, dentre as limitações orçamentárias existentes, conseguir fornecer o
maior número de medicamentos possíveis, de acordo com as demandas da grande maioria
da população.
O tema do controle judicial dos atos administrativos é assunto que gera polêmica. A
partir de premissas como a Teoria da Separação dos Poderes, difundida por Montesquieu e
adotada em diversas constituições – dentre as quais a brasileira –, tem-se a regra da autono-
mia e independência das funções do Estado, sendo exceção a ingerência do Poder Judiciário
na esfera dos outros poderes, especialmente no que tange ao mérito das decisões do Poder
Executivo e do Legislativo.
Celso Ribeiro Bastos11 afirma que “não se desconhecem, contudo, as críticas ao
denominado ativismo judicial, à força criadora do Direito por parte dos magistrados e, nessa
9
VIEIRA, Fabiola Sulpino. Ações judiciais e direito à saúde: reflexão sobre a observância aos princípios do SUS.
Revista de Saúde Pública [on-line], v. 42, n. 2, p. 365-369, 2008. p. 367. Disponível em: http://www.scielo.br/
scielo.php?script=sci_abstract&pid=S0034-89102008008000200025&lng=en&nrm=iso&tlng=pt. Acesso
em: 17 abr. 2009.
10
BRASIL. [Constituição (1988)]. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Brasília: Presidência da
República, 1988. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm. Acesso em:
31 jul. 2012.
11
BASTOS, Celso Ribeiro. Curso de Teoria do Estado e ciência política. 4. ed. São Paulo: Saraiva, 1999. p. 161.
172 Georges Louis Hage Humbert | Natália Libório
linha, a tão preconizada falácia, que vem de Montesquieu, de que o juiz é a boca pela qual
a lei fala.”. O referido autor indica, portanto, a existência de diversas críticas ao ativismo
judicial, que representa esse papel de supremacia que tem sido atribuído ao Poder Judiciário
com relação aos outros dois Poderes.
Ocorre que, não obstante as diversas críticas apontadas por parte da doutrina, é
inolvidável e mesmo, constitucionalmente inafastável, o controle judicial dos atos adminis-
trativos e legislativos, sendo essa a própria essência do sistema de freios e contrapesos, de-
corrente da própria Tripartição dos Poderes, como uma forma de controle recíproco entre os
Poderes do Estado, concretizando o sistema de checks and balances e, consequentemente,
a tripartição dos Poderes preconizada na Carta Magna.
No entanto, o exercício desse controle não pode levar a uma substituição do admi-
nistrador pelo juiz, havendo limites. Assim, Steckelberg12 afirma que a conveniência e opor-
tunidade da administração não podem ser substituídas pela conveniência e oportunidade do
juiz. Mas é certo que o controle jurisdicional pode e deve incidir sobre os elementos do ato,
à luz dos princípios que regem a atuação da Administração. Segundo a referida autora, o
entendimento doutrinário atual é de que “caberá o controle judicial dos atos administrativos,
acerca da legalidade, da constitucionalidade e, mais, sua conformidade com os princípios
relativos à Administração Pública”.13
Ressalte-se, ademais, que o reconhecimento do direito a prestações materiais ori-
ginárias mínimas em saúde não dispensa o dever do Estado de direcionar esforços para a
consolidação da máxima efetividade possível do direito.14 Assim, o mínimo existencial é
utilizado como argumento favorável ao controle judicial das políticas públicas, posto que,
quando esse mínimo existencial não estiver sendo cumprido pela Administração Pública,
poderá o Judiciário, quando provocado, determinar o seu cumprimento. Nesse sentido, Fon-
seca Pires15 afirma que:
Por mais deficitários que sejam os recursos materiais, por mais parca que seja a
previsão financeira em leis orçamentárias, se a Administração Pública não atende
ao menos o mínimo essencial dos direitos fundamentais o Judiciário deve intervir e
determinar a realização da política pública correspondente.
12
BASTOS, Celso Ribeiro. Curso de Teoria do Estado e ciência política. Op. cit., p. 47.
13
BASTOS, Celso Ribeiro. Curso de Teoria do Estado e ciência política. Op. cit., p. 47.
14
FIGUEIREDO, Mariana Filchtiner. Direito fundamental à saúde: parâmetros para sua eficácia e efetividade. Porto
Alegre: Livraria do Advogado, 2007. p. 209.
15
PIRES, Luis Manuel Fonseca. Controle judicial da discricionariedade administrativa. Dos conceitos jurídicos inde-
terminados às políticas públicas. Rio de Janeiro: Campus Jurídico; Elsevier, 2009. p. 303.
Atos normativos infralegais e os parâmetros do controle judicial... 173
Esse foi também o entendimento do STF na ADPF n. 45,16 em que O Min. Relator
Celso de Mello defendeu a garantia de “condições mínimas necessárias a uma existência
digna”, cuja violação autoriza “a possibilidade de intervenção do Poder Judiciário, em ordem
a viabilizar, a todos, o acesso aos bens cuja fruição lhes haja sido injustamente recusada
pelo Estado”. Igualmente, Ingo Sarlet17 sustenta que:
16
ADPF 45
17
SARLET, Ingo Wolfgang. Algumas considerações em torno do conteúdo, eficácia e efetividade do direito à saúde
na Constituição de 1988. Revista Eletrônica sobre a Reforma do Estado (RERE), Salvador, Instituto Brasileiro
de Direito Público, n. 11, set./out./nov. 2007. p. 13. Disponível em: http://www.direitodoestado.com.br.rere.asp.
Acesso em: 5 abr. 2012.
18
A referida decisão do Min. Celso de Mello encontra-se publicada no Informativo n. 354 do Supremo Tribunal
Federal. BRASIL. STF. Informativo STF n. 345. Brasília, abr. 2004. Disponível em: http://www.stf.jus.br/arquivo/
informativo/documento/informativo345.htm. Acesso em: 1º out. 2012.
19
HOLMES, Stephen; SUSTEIN, Cass R. El costo de los derechos: por qué la libertad depende de los impuestos.1.
ed. Buenos Aires: Siglo Veintiuno, 2011. p. 117. Livre tradução.
174 Georges Louis Hage Humbert | Natália Libório
pelos contribuintes, para monitorar e controlar”.20 Fabiana Kelbert assinala que, “ao contrário
do que já se pensou, todos os direitos têm custos, não apenas os direitos a prestações po-
sitivas, mas mesmo os direitos a prestações negativas envolvem custos”.21
Também Barroso afirma que os recursos públicos seriam insuficientes para atender
às necessidades sociais, impondo ao Estado sempre a tomada de decisões difíceis. Investir
recursos em determinado setor sempre implica deixar de investi-los em outros22.
Quanto à escassez dos recursos, portanto, Gustavo Amaral23 faz os seguintes ques-
tionamentos:
Se os recursos são escassos, como são, é necessário que se façam decisões alo-
cativas: quem atender? Quais os critérios de seleção? Prognósticos de cura? Fila de espera?
Maximização de resultados (número de vidas salva por cada mil reais gasto, p. ex)? Quem
consegue primeiro uma liminar?
Percebe-se, com isso, de acordo com os questionamentos do referido autor, que se
os recursos são escassos, o que é um fato inegável, não se pode dizer que nenhum direito
é absoluto, nem mesmo o direito à saúde, posto que escolhas alocativas24 devem ser feitas
para determinar em que setores e de que forma serão aplicados os escassos recursos.
Desse modo, a prestação de direitos sociais a prestações materiais – como o direito
à saúde – fica na dependência da existência de meios e recursos, principalmente financeiros,
o que se manifesta por meio dos orçamentos públicos, bem como da possibilidade de dispor
desses meios e recursos, aspectos que compõem as dimensões da reserva do possível.25
Quanto à intervenção judicial na efetivação dos direitos sociais a prestações materiais – em
especial o direito à saúde, foco do presente trabalho –, pode-se dizer que a reserva do possí-
vel impõe restrições a esse controle judicial. Isso porque, as decisões exaradas pelos juízes
no tocante às políticas públicas de saúde, especialmente no que tange ao fornecimento de
20
HOLMES, Stephen; SUSTEIN, Cass R. El costo de los derechos: Op. cit., p. 65. Livre tradução.
21
KELBERT, Fabiana Okchstein. Reserva do possível e a efetividade dos direitos sociais no direito brasileiro. Porto
Alegre: Livraria do Advogado, 2011. p. 66.
22
BARROSO, Luís Roberto. Da falta de efetividade à judicialização excessiva: direito à saúde, fornecimento gratuito
de medicamentos e parâmetros para a atuação judicial. S.d. Disponível em: http://www.lrbarroso.com.br/pt/noti-
cias/medicamentos.pdf. Acesso em: 10 mar. 2012.
23
AMARAL, Gustavo. Direito, escassez e escolha. Critérios jurídicos para lidar com a escassez de recursos e as
decisões trágicas. 2. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2010. p. 11.
24
No que tange às decisões alocativas, Gustavo Amaral assevera que “a escassez é inerente às pretensões positivas
e de modo ainda mais acentuado quanto à saúde. Ante a escassez, torna-se imperiosa a adoção de mecanismos
alocativos. A alocação, notadamente no que tange à saúde, tem natureza ética dupla: é a escolha de quem salvar,
mas também a escolha de quem danar. Há uma natural tentação a “decidir não decidir”, a não tornar clara a
adoção de qualquer forma de alocação, tal como se a escolha não existisse. Ocorre que a escolha sempre existirá
e, com ela, sempre haverá as vítimas, sejam elas conhecidas ou não”. AMARAL, Gustavo. Direito, escassez e
escolha. Op. cit., p. 100.
25
KELBERT, Fabiana Okchstein. Reserva do possível e a efetividade [...]. Op. cit., p. 71.
Atos normativos infralegais e os parâmetros do controle judicial... 175
26
Nesse sentido, Fabiola Sulpino Vieira: “Torna-se evidente que os direitos sociais e dentre eles o direito à saúde
existem do ponto de vista da eficácia social, condicionados à reserva do possível. O aumento das sentenças ju-
diciais determinando o fornecimento de medicamentos causa distorções, pois sua concessão não está vinculada
à reserva orçamentária, prevista quando da formulação das políticas e do planejamento dos programas”. No
mesmo diapasão é o entendimento de Holmes e Sustein, para os quais: “Os tribunais não estão em posição de
supervisionar o complexo processo de alocação eficaz dos recursos por parte das agências do poder executivo, e
tampouco podem retificar de maneira simples as alocações erradas do passado. Os juízes não têm a preparação
adequada para desempenhar essas funções, e necessariamente operam com fontes de informação inadequadas e
parciais”. VIEIRA, Fabiola Sulpino. Ações judiciais e direito à saúde: Op. cit., p. 368. HOLMES, Stephen; SUSTEIN,
Cass R. El costo de los derechos: Op. cit., p. 117. Livre tradução.
27
LEAL, Rogério. A quem compete o dever de saúde no direito brasileiro? Op. cit., p. 30.
28
BARROSO, Luís Roberto. Da falta de efetividade à judicialização excessiva: Op. cit., p. 3-4.
176 Georges Louis Hage Humbert | Natália Libório
tal comportamento dos juízes, [...] gera a impressão para certa parcela da população
de que é possível obter qualquer tratamento ou remédio apenas acionando o Judiciá-
rio, ocasião em que, nem sempre, o medicamento solicitado, ou o serviço médico
descrito, é uma exigência clínica imprescindível para a manutenção saúde daquele
indivíduo, havendo, muitas vezes, outras alternativas fornecidas pelo Poder Público
que alcançariam o mesmo resultado, por custos infinitas vezes inferior.
Dessa forma, o direito à saúde, da maneira como concebido pelos Tribunais atual-
mente fere o princípio da isonomia, posto que pessoas com maior poder aquisitivo o aces-
sam com mais facilidade. Ocorre, assim, uma “inevitável transferência de recursos de ser-
viços que deveriam atender a todos em condições de igualdade para garantir integralidade a
apenas alguns”.31
Nesse sentido é o posicionamento do Min. Teori Zavascki,32 para quem “à luz dos
princípios democrático, da isonomia e da reserva do possível, não há dever do Estado de
atender a uma prestação individual se não for viável o seu atendimento em condições de
29
YOSHINAGA, Juliana Yumi. Judicialização do direito à saúde: a experiência do Estado de São Paulo na adoção de
estratégias judiciais e extrajudiciais para lidar com esta realidade. Revista Eletrônica sobre a Reforma do Estado
(RERE), v. 24, 2011. p. 03. Disponível em: http://www.direitodoestado.com/revista/RERE-24-DEZEMBRO-JANEI-
RO-FEVEREIRO-2011-JULIANA-YUMI.PDF. Acesso em: 11 abr. 2012.
30
LIMA, Lucas Rister de Souza; ZORZETO, Thiago Rebellato. Os limites da atuação do Poder Judiciário [...]. Op. cit.,
p. 80.
31
NUNES, António José Avelãs; SCAFF, Fernando Facury. Os tribunais e o direito à saúde. Estado e Constituição. 12.
ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2011.
32
Min. Teori Zavascki RECURSO EM MANDADO DE SEGURANÇA No 24.197 – PR (2007/0112500-5), Rel. Min. Fux,
maioria, vencido o Min. Zavascki, julgamento encerrado em 04.05.2010. BRASIL. STF. Recurso em mandado de
segurança n. 24.197 – PR (2007/0112500-5). Relator: Ministro Luiz Fux. Recorrente: Ministério Público do Esta-
do do Paraná. Recorridos: Estado do Paraná; Município de Curitiba. Data de julgamento: 04/05/2010. T1 Primeira
Turma. Data de publicação DJe 24/08/2010. Disponível em: https://stj.jusbrasil.com.br/jurisprudencia/16825941/
recurso-ordinario-em-mandado-de-seguranca-rms-24197-pr-2007-0112500-5/inteiro-teor-16825942. Acesso
em: 2 jul. 2020.
Atos normativos infralegais e os parâmetros do controle judicial... 177
33
FIGUEIREDO, Mariana Filchtiner. Direito fundamental à saúde: Op. cit., p. 212.
34
BARROSO, Luís Roberto. Da falta de efetividade à judicialização excessiva: Op. cit., p. 25.
35
VIEIRA, Fabiola Sulpino. Ações judiciais e direito à saúde: Op. cit., p. 366.
36
FIGUEIREDO, Mariana Filchtiner. Direito fundamental à saúde: Op. cit., p. 213.
178 Georges Louis Hage Humbert | Natália Libório
Assim, se o Judiciário, numa demanda, verificar grave desvio na avaliação dos Pode-
res Públicos, poderá vir a rever a lista elaborada por determinado ente federativo para deter-
minar a inclusão de determinado medicamento, mas não deve determinar individualmente o
fornecimento deste medicamento, posto que resolveria o problema apenas do demandante.
Até porque, existem diversas outras políticas públicas de saúde, que não somente as
de fornecimento de medicamentos e, no contexto da análise econômica do direito, verifica-
-se que o benefício auferido pela população com a distribuição de medicamentos é significa-
tivamente menor que aquele que seria obtido caso os mesmos recursos fossem investidos
em outras políticas de saúde pública. 37
Deve-se questionar, neste passo, em que medida as interferências do Judiciário em
matéria de políticas públicas de saúde para determinar o fornecimento de medicamentos têm
sido benéficas à população em geral – e não apenas à pessoa beneficiada pela tutela judicial
–, e quais os limites que devem ser impostos a esse controle.38
Diante de tudo quanto demonstrado no presente trabalho, não resta dúvidas quanto à
impropriedade da forma como tem sido exercido o controle judicial das políticas públicas de
saúde, no tocante ao fornecimento de medicamentos. Essa intervenção desarrazoada e sem
qualquer critério do Judiciário tem causado inúmeros prejuízos à organização das políticas
públicas de saúde, prejudicando, ao final, os próprios cidadãos.
Cumpre, nesse contexto, analisar os parâmetros ao exercício desse controle judicial
sugeridos pela doutrina, bem como apresentar uma proposta de parâmetros que delimite e
norteie a atuação desse Poder, de forma a não prejudicar os demais Poderes e, principalmen-
te, o interesse público. E não resta outra saída ao estabelecimento: é necessário, portanto,
criar um sistema administrativo responsável por receber todas as demandas do ente federal
em matéria de medicamentos, para que seja feita uma verificação se este medicamento é
disponibilizado pela rede pública, e se sim, porque o mesmo não foi fornecido àquela pessoa.
Somente se não fosse possível obter o medicamento por via administrativa, aí sim, seria
necessário pleiteá-lo judicialmente.
Por outro turno, os referidos medicamentos, necessariamente, para deferimento em
tutela judicial, devem ter registro na Anvisa. Tal requisito, no entanto, é questionado tanto
na área de saúde como no meio judicial, segundo Ivana Costa,39 a qual informa, ainda, que
caberia à Agência Nacional de Vigilância Sanitária informar sobre a eficácia e a segurança do
37
BARROSO, Luís Roberto. Da falta de efetividade à judicialização excessiva: Op. cit., p. 20; 30; 25.
38
LIMA, Lucas Rister de Souza; ZORZETO, Thiago Rebellato. Os limites da atuação do Poder Judiciário [...]. Op. cit.,
p. 74.
39
COSTA, Ivana Ganem. Aplicação dos Princípios da reserva do possível e do mínimo existencial no fornecimento
de medicamentos [Assunto Especial – Doutrina]. Revista IOB de Direito Administrativo, ano V, n. 54, jun. 2010.
p. 29.
Atos normativos infralegais e os parâmetros do controle judicial... 179
40
BARROSO, Luís Roberto. Da falta de efetividade à judicialização excessiva: Op. cit.
41
YOSHINAGA, Juliana Yumi. Judicialização do Direito à Saúde: Op. cit., p. 12.
180 Georges Louis Hage Humbert | Natália Libório
5 CONSIDERAÇÕES FINAIS
REFERÊNCIAS
AMARAL, Gustavo. Direito, escassez e escolha. Critérios jurídicos para lidar com a escassez de recur-
sos e as decisões trágicas. 2. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2010.
BARROSO, Luís Roberto. Da falta de efetividade à judicialização excessiva: direito à saúde, forneci-
mento gratuito de medicamentos e parâmetros para a atuação judicial. S.d. Disponível em: http://www.
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BASTOS, Celso Ribeiro. Curso de Teoria do Estado e ciência política. 4. ed. São Paulo: Saraiva, 1999.
BRASIL. [Constituição (1988)]. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Brasília: Presi-
dência da República, 1988. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constitui-
cao.htm. Acesso em: 31 jul. 2012.
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COSTA, Ivana Ganem. Aplicação dos princípios da reserva do possível e do mínimo existencial no
fornecimento de medicamentos [Assunto Especial – Doutrina]. Revista IOB de Direito Administrativo,
ano V, n. 54, jun. 2010.
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de. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2007.
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leiro. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2011.
LEAL, Rogério. A quem compete o dever de saúde no direito brasileiro? Esgotamento de um modelo
institucional [Doutrina]. Revista de Direito Sanitário, v. 9, p. 50-69, 2008.
LIMA, Lucas Rister de Souza; ZORZETO, Thiago Rebellato. Os limites da atuação do Poder Judiciário
na área de saúde [parte geral – doutrina]. Revista SÍNTESE de Direito Administrativo, ano VI, n. 61, p.
73-83, jan. 2011.
NUNES, António José Avelãs; SCAFF, Fernando Facury. Os tribunais e o direito à saúde. Estado e Cons-
tituição. 12. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2011.
PIRES, Luis Manuel Fonseca. Controle judicial da discricionariedade administrativa. Dos conceitos jurí-
dicos indeterminados às políticas públicas. Rio de Janeiro: Campus Jurídico; Elsevier, 2009.
SARLET, Ingo Wolfgang. Algumas considerações em torno do conteúdo, eficácia e efetividade do direito
à saúde na Constituição de 1988. Revista Eletrônica sobre a Reforma do Estado (RERE), Salvador, Insti-
tuto Brasileiro de Direito Público, n. 11, set./out./nov. 2007. Disponível em: http://www.direitodoestado.
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SOUZA, Celina. Políticas públicas: uma revisão da literatura. Sociologias, Porto Alegre, ano 8, n. 16,
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ago. 2012.
182 Georges Louis Hage Humbert | Natália Libório
VIEIRA, Fabiola Sulpino. Ações judiciais e direito à saúde: reflexão sobre a observância aos princípios
do SUS. Revista de Saúde Pública [on-line], v. 42, n. 2, p. 365-369, 2008. Disponível em: http://www.
scielo.br/scielo.php?script=sci_abstract&pid=S00349102008008000200025&lng=en&nrm=i-
so&tlng=pt. Acesso em: 17 abr. 2012.
YOSHINAGA, Juliana Yumi. Judicialização do direito à saúde: a experiência do Estado de São Paulo na
adoção de estratégias judiciais e extrajudiciais para lidar com esta realidade. Revista Eletrônica sobre a
Reforma do Estado (RERE), v. 24, 2011. p. 03. Disponível em: http://www.direitodoestado.com/revista/
RERE-24-DEZEMBRO-JANEIRO-FEVEREIRO-2011-JULIANA-YUMI.PDF. Acesso em: 11 abr. 2012.
Parcerias sociais: dificuldades práticas na
implementação da Lei 13.019/2014
Irene Nohara
Doutora em Direito do Estado (USP)
Livre-docente em Direito Administrativo (USP)
Professora pesquisadora em Direito Político e
Econômico (Universidade Presbiteriana Mackenzie)
SUMÁRIO: 1 Introdução; 2 Avanços da Lei de Parcerias Sociais; 3 Pesquisa empírica; 3.1 Objeto da
pesquisa; 3.2 Dificuldades de acesso à informação; 3.3 Resultados da pesquisa empírica; 3.4 Contri-
buições das unidades federadas pesquisadas; 4 Considerações finais; Referências
1 INTRODUÇÃO
1
BECK, Ulrich. Sociedade de risco. São Paulo: Editora 34, 2010. p. 284.
2
NOGUEIRA, Marco Aurélio. Um Estado para a sociedade civil: temas éticos e políticos da gestão democrática. 3.
ed. São Paulo: Cortez, 2011.p. 43.
3
HIRSCH, Joaquim. Teoria materialista do Estado. Rio de Janeiro: Revan, 2010. p. 273.
Parcerias sociais: dificuldades práticas na implementação da Lei 13.019/2014 185
4
HIRSCH, Joaquim. Teoria materialista do Estado. Op. cit. p. 273.
5
HIRSCH, Joaquim. Teoria materialista do Estado. Op. cit. p. 273.
6
GABARDO, Emerson. Papel do Estado e mito da subsidiariedade. In: NOHARA, Irene P. (Coord.). Gestão pública
dos entes federativos: desafios jurídicos para inovação e desenvolvimento. São Paulo: Clássica, 2013. p. 72.
186 Irene Nohara | Daniel Scheiblich Rodrigues
das judiciais, as CPIs das ONGs foram importantes para levantar os desvios e as fraudes
ocorridas no terceiro setor, demonstrando a necessidade de maior fiscalização e controle de
resultados das parcerias celebradas.
Do ponto de vista técnico-normativo, o marco, após alterações ocorridas na Lei
n.13.204/2015, ao regime inicial da Lei de Parcerias,7 contempla atualmente no art. 33, V,
da Lei 13.019/2014, as seguintes exigências para celebração das parcerias: (a) três anos
de existência, no mínimo, para parceria celebrada com a União; dois anos, no mínimo, para
os Estados e um ano de existência para os Municípios; (b) experiência prévia na realização,
com efetividade, do objeto da parceria ou de natureza semelhante; e (c) instalações, condi-
ções materiais e capacidade técnica e operacional para o desenvolvimento das atividades ou
projetos previstos na parceria e o cumprimento de metas estabelecidas.
Quanto à accountability, o Conselho de Política Pública é órgão criado pelo poder
público para atuar como instância consultiva, na respectiva área de atuação, na formação,
implementação, acompanhamento, monitoramento e avaliação de políticas públicas. Há
também o acompanhamento da parceira pela comissão de monitoramento e avaliação, sen-
do um órgão colegiado destinado a monitorar e avaliar as parcerias formadas em que haja
fomento. É obrigatória a participação de pelo menos um servidor ocupante de cargo efetivo
ou de emprego permanente do quadro de pessoal da administração pública.
A prestação de contas será feita pela análise de documentos previstos no plano de
trabalho. Existe, portanto, uma grande margem de discricionariedade para a estruturação
do plano de trabalho, sendo sua execução controlada por dois relatórios: (1) de execução
do objeto, contendo atividades ou projetos desenvolvidos para o cumprimento do objeto e
o comparativo de metas propostas com resultados alcançados; e (2) relatório de execução
financeira do termo de colaboração e termo de fomento, com a descrição de despesas e
receitas realizadas.
É possível que haja também os seguintes relatórios: de visita técnica in loco e rela-
tório técnico de monitoramento e avaliação, homologado pela comissão de monitoramento
e avaliação designada, sobre a conformidade do cumprimento do objeto e os resultados
alcançados durante a execução do termo de colaboração ou de fomento.8 Ressalte-se que
as responsabilidades assumidas variam em função do plano de trabalho firmado com a
Administração, que é estabelecido também no chamamento público.
Em suma, pode-se observar que a lei demanda um maior comprometimento tanto na
celebração da parceria como no seu monitoramento e na prestação de contas. Isso procura
evitar os convênios que simplesmente recebiam passivamente os dados, dado que agora
pode haver visita in loco e existem regras mais padronizadas e claras para a fiscalização e
7
Uma excelente obra é a organizada por: MOTTA, Fabrício; MÂNICA, Fernando Borges; OLIVEIRA, Rafael Arruda
(Orgs.). Parcerias com o terceiro setor: as inovações das Lei n. 13.079/2014. Belo Horizonte: Fórum, 2017.
passim.
8
NOHARA, Irene Patrícia. Direito administrativo. 9. ed. São Paulo: Atlas, 2019. p. 724.
Parcerias sociais: dificuldades práticas na implementação da Lei 13.019/2014 187
3 PESQUISA EMPÍRICA
1 Aracaju Belém
4 Florianópolis Curitiba
7 Macapá Natal
10 Palmas Salvador
14 União Vitória
A despeito da previsão expressa do artigo 9º, inciso I, alínea “c”, da Lei Federal
n. 12.527, de 18 de novembro de 2011, cinco unidades federadas entenderam que seus
Serviços de Informações ao Cidadão não eram canais próprios para a obtenção dos dados
requeridos: Belo Horizonte, Porto Velho, Rio de Janeiro, São Paulo e Teresina.
O prazo legal para a disponibilização das informações requeridas foi descumprido
por quatro unidades federadas, perante as quais os requerimentos de acesso à informação
permaneceram em processamento até a conclusão da presente pesquisa: Belém, Cuiabá,
Natal e Vitória.
Perante três unidades federadas, após a negativa inicial de acesso, os requerimentos
de acesso à informação adentraram morosas fases recursais: Distrito Federal, Goiânia e
São Luís. O requerimento de acesso à informação foi indeferido perante uma das unidades
federadas consultadas: Curitiba. Porém, a maior dificuldade de acesso à informação foi a do
Município de Salvador, cujo Serviço de Informações ao Cidadão esteve indisponível para a
protocolização de requerimentos durante todo o período em que a pesquisa foi realizada e,
mesmo após o envio de correspondências eletrônicas à Chefia de Gabinete da Prefeitura e à
Secretaria Municipal de Promoção Social e Combate à Pobreza, o acesso à informação foi
negligenciado9.
[...] a Secretaria Municipal de Gestão Social – SEMGES não possui parcerias sociais
previstas na Lei n. 13.019/2014 com organizações da Sociedade Civil, seja por cha-
mamento público ou dispensa/inexigibilidade e, por esta razão, não há que se falar
na existência de relatórios de visita, termos de colaboração ou fomento. Diante do
exposto, não alcançamos o campo práticos para abordar acerca das dificuldades da
não aplicação integral dos mecanismos presentes na referida lei de parcerias.
9
A impossibilidade de requerimento de informações ensejou a propositura de uma representação perante o Centro
de Apoio Operacional às Promotorias de Proteção à Moralidade Administrativa, órgão vinculado ao Ministério
Público do Estado da Bahia.
190 Irene Nohara | Daniel Scheiblich Rodrigues
2. Quantos ter-
4. Quantas par-
mos de cola-
cerias sociais
boração ou de
(com entidades
fomento foram
de assistência
1. Quantas par- celebrados, 3. Quantas par-
social) foram
cerias sociais durante o exer- cerias sociais
celebradas sem
(com organiza- cício financeiro ocorreram com
a prévia realiza-
ções da socie- de 2018, com a dispensa ou
ção de chama-
ENTE FEDERADO dade civil/ONGs/ prévia realização inexigibilidade
mento público
entes do Tercei- de chamamento de chamamento
com base em
ro Setor) exis- público, nos ter- público, nas hi-
autorização le-
tem firmadas na mos autorizados póteses da Lei n.
gal com indica-
Pasta? pelo artigo 29 13.019/2014?
ção da entidade
da Lei Federal
beneficiária e/ou
n. 13.019, de
emendas parla-
31 de julho de
mentares?
2014?
Aracaju 11 09 02 02
Florianópolis 40 0 40 0
Fortaleza 31 17 03 01
João Pessoa 37 37 0 50
Macapá 01 0 01 0
Maceió 14 0 0 0
Manaus 0 0 0 0
Palmas 01 01 0 0
Recife 07 01 0 0
Rio Branco 03 0 04 01
União 02 0 02 0
Aracaju 11 0 11 0
Florianópolis 40 40 0 0
Fortaleza 31 02 15 0
João Pessoa 37 37 0 01
Macapá 01 0 0 0
Maceió 14 0 0 02
Manaus 0 0 0 0
Palmas 01 0 0 0
Recife 07 01 0 0
Rio Branco 03 0 04 0
União 02 01 0 01
Aracaju 11 0
Florianópolis 40 0
Fortaleza 31 62
João Pessoa 37 04
Macapá 01 0
Maceió 14 0
Manaus 0 0
Palmas 01 02
Recife 07 01
Rio Branco 03 0
União 02 01
10
A União optou por não se manifestar quanto a esta parte do levantamento, por interpretar que as perguntas “de-
mandam pronunciamento potencialmente subjetivo”.
Parcerias sociais: dificuldades práticas na implementação da Lei 13.019/2014 193
2. Falta de
1. Muitas bre-
vontade dos 3. Falta de co- 4. Não há di-
chas que permi-
agentes políti- brança da apli- ficuldades na
tem a celebra-
ENTE FEDERADO cos em imple- cação da lei por aplicação da lei,
ção de parcerias
mentar a Lei de parte da socie- que já é realida-
sem o chama-
Parcerias (Lei dade civil de no Município
mento público
13.019/2014)
Sim, realmente trouxe grandes avanços e desafios, tanto no que tange ao Monitora-
mento e Avaliação, quanto no formato da prestação de contas, que deve ocorrer por
meio de plataforma eletrônica. Em POA/RS foi instituído, por meio do Decreto Muni-
cipal 20.239/19 o Sistema de Gestão de Parcerias – SGP e o Manual de Prestação de
Contas das Parcerias do Município de Porto Alegre.
Sem dúvidas impactou positivamente, além de oferecer parâmetros legais para a ce-
lebração das parcerias, oferece uma segurança financeira para as OSCs, uma vez que
tendo sido selecionado em Edital de Chamamento Público terá a certeza de contar o
pagamento pelos serviços prestados pelo período de vigência do Edital, sem precisar
ficar todo ano recorrendo aos gabinetes para conseguir financiamento para os proje-
tos, por outro lado, a gestão pública tem também maior liberdade para normatizar os
serviços que compra por meio do Edital.
4 CONSIDERAÇÕES FINAIS
Dos dados empíricos levantados percebe-se que há uma diferença muito grande
quanto ao grau de aplicabilidade e manejo dos instrumentos de parceria por parte dos entes
pesquisados. Há percepções muito diferentes quanto às dificuldades de aplicação da Lei
de Parcerias, vigorando ainda em diversos dos entes uma predominância pela “fuga” dos
chamamentos públicos, o que não significa desrespeito à lei, pois tal inobservância decorre
das próprias brechas legais abertas em 2015.
Fato é que é ainda muito cedo para se dizer que o marco não pegou ou não deu
certo, pois ele ainda é muito recente (cerca de cinco anos apenas), tendo de passar por um
período de amadurecimento do seu uso, o que deve ser implementado a partir de trocas de
experiências entre as gestões, tendo sido ressaltada a dificuldade de algumas Municipalida-
des (Campo Grande, Fortaleza e Recife) em implementar plataformas eletrônicas na área da
assistência social.
Interessante ressaltar que o Município que mais recorreu aos chamamentos foi João
Pessoa, na Paraíba, que também possui uma visão otimista da lei, tendo sido enfatizado que
ao se oferecer parâmetros legais para a celebração das parcerias, se trata de uma segurança
para as organizações da sociedade civil, que certamente contarão com o pagamento dos
serviços na vigência do chamamento, sem que haja que recorrer de expedientes políticos
para manter os projetos relevantes.
No entanto, todos os entes pesquisados que responderam os questionários alega-
ram que aplicam sim a lei. Curiosamente, a União identificou poucas parcerias, sendo ainda
as celebradas sem o chamamento, não tendo havido uma abertura para dialogar sobre as
dificuldades de implementação da lei, tendo sido tal pergunta taxada de muito subjetiva. For-
196 Irene Nohara | Daniel Scheiblich Rodrigues
taleza, por sua vez, foi um Município que apresentou um equilíbrio no número de parcerias,
sendo 31 celebradas em 2018 com 17 chamamentos públicos.
A Lei de Parcerias apresenta muitos pontos avançados, conforme exposto, apesar
das mencionadas brechas, e tem o potencial de transformar a realidade, pois à medida que a
sociedade perceber seu potencial de oferecimento de propostas e mesmo de maior controle
das parcerias, certamente que o manejo adequado e o maior conhecimento têm o potencial
de serem úteis para a transformação e a melhoria das parcerias.
No entanto, ainda há a necessidade de uma ampla transformação cultural de tais
parcerias, para que haja o empoderamento das organizações da sociedade civil que sejam
emancipadas do poder político e que, diante das transformações disruptivas que se anun-
ciam à sociedade, possam oferecer soluções inovadoras para colaborar no equacionamento
de inúmeros problemas sociais, para se transformarem em importantes coadjuvantes do
Estado na implementação das políticas públicas.
REFERÊNCIAS
GABARDO, Emerson. Papel do Estado e mito da subsidiariedade. In: NOHARA, Irene P. (Coord.). Gestão
pública dos entes federativos: desafios jurídicos para inovação e desenvolvimento. São Paulo: Clássica,
2013.
MOTTA, Fabrício; MÂNICA, Fernando Borges; OLIVEIRA, Rafael Arruda (Orgs.). Parcerias com o terceiro
setor: as inovações das Lei n. 13.079/2014. Belo Horizonte: Fórum, 2017.
NOGUEIRA, Marco Aurélio. Um Estado para a sociedade civil: temas éticos e políticos da gestão demo-
crática. 3. ed. São Paulo: Cortez, 2011.
NOHARA, Irene Patrícia. Direito administrativo. 9. ed. São Paulo: Atlas, 2019.
O princípio republicano como princípio
constitucional estruturante do regime
jurídico-administrativo
1 INTRODUÇÃO
1
Sobre o tema, ver: CRISTÓVAM, José Sérgio da Silva. Administração Pública democrática e supremacia do inte-
resse público: novo regime jurídico-administrativo e seus princípios constitucionais estruturantes. Curitiba: Juruá,
2015. p. 121-317.
2
Sobre o tema, ver: CRISTÓVAM, José Sérgio da Silva. A dignidade da pessoa humana como princípio consti-
tucional estruturante do direito administrativo. Revista Jurídica Luso-Brasileira, ano 2, n. 6, p. 745-772, 2016.
Disponível em: http://www.cidp.pt/revistas/rjlb/2016/6/2016_06_0745_0772.pdf. Acesso em: 4 jan. 2020.
3
Sobre o tema, ver: CRISTÓVAM, José Sérgio da Silva. O Estado democrático de direito como princípio constitucio-
nal estruturante do direito administrativo: uma análise a partir do paradigma emergente da Administração Pública
democrática. Revista Jurídica Luso-Brasileira, ano 3, n. 3, p. 575-604, 2017. Disponível em: http://www.cidp.pt/
revistas/rjlb/2017/3/2017_03_0575_0604.pdf. Acesso em: 4 jan. 2020.
4
Sobre o tema, ver: FREITAS, Juarez. Sustentabilidade: direito ao futuro. 3. ed. Belo Horizonte: Fórum, 2016.
5
CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito constitucional e teoria da Constituição. 7. ed. Coimbra: Almedina,
2003. p. 1173-1174.
6
Sobre o tema, ver: CRISTÓVAM, José Sérgio da Silva. Administração Pública democrática e supremacia do inte-
resse público: Op. cit., p. 304-317.
O princípio republicano como princípio constitucional estruturante... 199
Como hipótese do presente ensaio, entende-se que aqueles referidos princípios es-
truturantes não servem como parâmetros normativos que possam isoladamente sustentar
o regime jurídico-administrativo, mas sim como verdadeiro quarteto principiológico estrutu-
rante assecuratório dos padrões de unidade interior e adequação valorativa conformadores
de todo o edifício constitucional administrativo, cabendo aqui o debate voltado ao princípio
republicano.
Com efeito, eis os objetivos centrais do estudo: a partir de uma leitura sistemática
e comprometida com a plena efetividade das normas constitucionais, busca-se oferecer as
bases para um renovado regime jurídico-administrativo, aqui mais voltada à análise teórica
do princípio republicano como princípio constitucional estruturante deste referido regime
normativo.
Não há como definir ao certo as razões, mas o fato é que o estudo jurídico da noção
de República como princípio constitucional não tem recebido quase nenhuma atenção ou de-
monstração de interesse pela doutrina nacional.7 Enquanto algumas temáticas relacionadas à
teoria dos princípios, proporcionalidade, razoabilidade, direitos fundamentais e hermenêutica
constitucional, apenas para exemplificar, recebem uma verdadeira “enxurrada” de estudos
monográficos, ensaios, artigos e trabalhos acadêmicos de mestrado e doutorado, o que é
sempre positivo para o amadurecimento do debate jurídico, outros assuntos ficam quase
esquecidos, como ocorre com o estudo do princípio republicano.8
A afirmação desse quadro pode ser colhida, inclusive, nas reflexões de Luiz Henrique
Urquhart Cademartori e Paulo Márcio Cruz, quando esclarecem que, embora vastamente
7
Na literatura jurídica nacional, vale ressaltar o trabalho do precocemente desaparecido publicista Geraldo Ataliba,
intitulado República e Constituição, um dos precursores debates sobre o tema, após o advento da Constituição
Federal. Sobre o tema, ver: ATALIBA, Geraldo. República e Constituição. 2. ed. atual. por Rosolea Miranda Folgosi.
São Paulo: Malheiros, 1998.
8
Sobre o tema do princípio republicano na literatura jurídica nacional, ver: AMORIM, Carlos Alberto Novelino de.
Princípio republicano, cargos em comissão e clientelismo político nos Municípios do Estado do Rio de Janeiro:
reflexões sobre a profissionalização da função pública no Brasil. 2008. 116 f. Dissertação (Mestrado em Ad-
ministração) – Curso de Mestrado em Administração Pública, Fundação Getúlio Vargas, Rio de Janeiro, 2008;
CADEMARTORI, Luiz Henrique Urquhart; CRUZ, Paulo Márcio. Sobre o princípio republicano: aportes para um
entendimento de bem comum e interesse da maioria. In: CONGRESSO NACIONAL DO CONPEDI, XVII, 2008,
Brasília. Anais [...]. Brasília: Conpedi, 2008. p. 845-860, 2008. Disponível em: http://www.conpedi.org.br/ma-
naus/arquivos/anais/brasilia/14_98.pdf. Acesso em: 4 jan. 2020; CRUZ, Paulo Márcio; SCHMITZ, Sérgio Anto-
nio. Sobre o princípio republicano. Revista Novos Estudos Jurídicos, Itajaí, v. 13, n. 1, p. 43-54, jan./jun. 2008;
LEWANDOWSKI, Enrique Ricardo. Reflexões em torno do princípio republicano. Revista da Faculdade de Direito
da Universidade de São Paulo, São Paulo, v. 100, p. 189-200, jan./dez. 2005; SILVA, Michel Mascarenhas. A de-
mocracia moderna e o princípio republicano: uma imbricação necessária para a proteção do interesse público. Jus
Navigandi, Teresina, ano 16, n. 2950, jul. 2011. Disponível em: http://jus.com.br/artigos/19671. Acesso em: 4 jan.
2020.
200 José Sérgio da Silva Cristóvam
empregados no universo jurídico e nos domínios da ciência política, República e princípio re-
publicano são categorias, no mais das vezes, não adequadamente compreendidas, porquan-
to “normalmente operadas a partir de conceitos modernos insuficientes ou parciais”. Isso
traz, por conseguinte, sérios prejuízos ao próprio entendimento de outras categorias correla-
cionadas, como os direitos fundamentais, a cidadania e a própria democracia. Como “prin-
cípio reitor de todo ordenamento jurídico”, o princípio republicano possui conteúdo jurídico
autônomo, pelo que não pode ser confundido conceitualmente com outros princípios com os
quais guarda constante diálogo, como o Estado democrático de direito, a temporalidade dos
mandatos eletivos, a democracia representativa e a dignidade da pessoa humana.9
Convém, desde já, esclarecer que, embora não diretamente relacionado à concepção
jurídico-normativa do princípio republicano, conforme aqui referido, a discussão em torno da
noção de República vem recebendo, mais recentemente, um importante influxo de estudos
filosóficos e políticos, sobretudo a partir do debate entre as correntes do “liberalismo” e
do “republicanismo” (neorrepublicanismo),10 sendo, para alguns autores, que este último
poderia ser tomado em certa medida como sinônimo de “comunitarismo”.11 Antes da abor-
dagem acerca dos contornos e do conteúdo do princípio jurídico-constitucional republicano,
vale trazer uma breve recuperação dos seus antecedentes históricos e filosóficos, a partir da
noção de República.
9
CADEMARTORI, Luiz Henrique Urquhart; CRUZ, Paulo Márcio. Sobre o princípio republicano: Op. cit.
10
Ultrapassam os limites da presente abordagem a recuperação do complexo e riquíssimo debate entre as diversas
concepções de liberalismo, de republicanismo e de comunitarismo. Sobre o tema, ver: CITTADINO, Gisele. Plu-
ralismo, Direito e justiça distributiva: elementos da filosofia constitucional contemporânea. 3. ed. Rio de Janeiro:
Lumen Juris, 2004; DIAS, André de Vasconcelos. Teorias republicanas da democracia. 2008. 76 f. Monografia da
Disciplina de Direito Constitucional (Mestrado em Direito) – Ciências Jurídico-Políticas, Faculdade de Direito, Uni-
versidade de Lisboa, Lisboa, 2008; PINTO, Ricardo Leite. Liberdade republicana e Estado constitucional. Boletim
da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, Coimbra, v. LXXXVI, p. 429-474, 2010.
11
Sobre o tema, ver: DOBROWOLSKI, Samantha Chantal. A construção social do sentido da Constituição na demo-
cracia contemporânea: entre soberania popular e direitos humanos. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2007. p. 80.
O princípio republicano como princípio constitucional estruturante... 201
12
Nesse sentido, ver: ALVES, Pedro Delgado. O princípio republicano. Revista da Faculdade de Direito da Universi-
dade de Lisboa, Lisboa, v. XLVIII, n. 1 e 2, p. 165-270, 2007. p. 167; PLATÃO. A República. Trad. Edson Bini. 2.
ed. São Paulo: Edipro, 2012. p. 14.
13
PLATÃO. A República. Op. cit., p. 327-364.
14
ARISTÓTELES. A Política. Trad. Nestor Silveira Chaves. 2. ed. São Paulo: Edipro, 2009. p. 119-225.
202 José Sérgio da Silva Cristóvam
período em estudo, mas porque se trata da forma mais avançada de organização política e de
desenvolvimento da ideia de cidadania”, sendo que as concepções de “isonomia, igualdade
perante a lei de todos os cidadãos, acaba por operar como um equivalente de democracia
no sentido moderno do termo, particularmente se associada à ideia de isegoria, ou seja, a
liberdade de expressão associada ao desempenho de direitos políticos”.15
Outra relevante contribuição para a construção do conceito de República pode ser
recuperada da Antiguidade romana, em especial nos escritos de Marco Túlio Cícero, do qual
se pode extrair uma concepção de República enquanto propriedade do povo (res populi) ou
coisa pública (res publica). No pensamento político ciceroniano o conceito de res publica
não está fundado em uma perspectiva formal vinculada a quem exerce o poder (repartição
do poder), mas em uma dimensão substancial e finalística do poder, ou seja, os fins pelos
quais o poder é exercido, se de forma reta, honesta e em favor dos interesses de todos (com-
promisso ético-político). Isto remete à concepção ciceroniana de utilidade comum (utilitas
communis), o que modernamente pode ser entendido como a ideia de interesse público da
comunidade política.16
A noção de República ciceroniana guarda sensíveis relações com a própria concep-
ção de Estado em Roma, um conceito completamente diverso daquele que nos tem legado a
Modernidade. Nesse sentido, José Isaac PILATI adverte que em “Roma, o Estado não é uma
pessoa; é um lugar, uma praça, onde se reúnem os romanos, que partilham bens coletivos
como o ager publicus; coletivos, no sentido de pertencentes aos romanos e não a um Estado
separado deles”, o que permite considerar que, na República romana, “os Romanos são
condôminos dos bens públicos, sem representantes intermediários, com direito a invocar
ações populares à defesa do coletivo, ou seja, daqueles bens dos quais não se dispunha
individualmente, só coletivamente”.17
De fato, a recuperação da dimensão coletiva e da concepção de res publica, que
conformam a genética da República romana, são essenciais para a compreensão dos mo-
delos republicanos que a sucederam, inclusive para as concepções republicanas moderna e
contemporânea. A partir de uma análise da República romana instaurada a partir do ano 509
a.C., após a queda da Monarquia, Alves ressalta que o modelo republicano “vai manter uma
considerável estabilidade interna, permitindo a consolidação das fronteiras, a hegemonia em
Itália e a derrota de Cartago, única potência do Mediterrâneo Ocidental com capacidade para
ameaçar sua supremacia”. Nesse sentido, mesmo envolta em constantes e graves tensões
sociais e políticas internas, “Roma consegue adaptar as suas estruturas institucionais e
15
ALVES, Pedro Delgado. O princípio republicano. Op. cit., p. 181.
16
CÍCERO, Marco Túlio. Da República. Trad. Amador Cisneiros. Bauru: Edipro, 1995. p. 24-30.
17
PILATI, José Isaac. Os interesses coletivos perante a legislação autoral individualista: perspectivas da sua tutela.
Revista Sequência: Estudos Jurídicos e Políticos, Florianópolis, v. 27, n. 52, p. 163-182, jul. 2006. p. 190.
O princípio republicano como princípio constitucional estruturante... 203
18
ALVES, Pedro Delgado. O princípio republicano. Op. cit., p. 182-184.
19
LEWANDOWSKI, Enrique Ricardo. Reflexões em torno do princípio republicano. Op. cit., p. 190-195.
20
MAQUIAVEL, Nicolau. O príncipe. Trad. Maria Júlia Goldwasser. 3. ed. 2. tir. São Paulo: Martins Fontes, 2008.
p. 3.
204 José Sérgio da Silva Cristóvam
21
ROUSSEAU, Jean-Jacques. O contrato social ou princípios de direito público. Trad. Antonio de Pádua Danesi. 3.
ed. 3. tir. São Paulo: Martins Fontes, 1999. p. 71-95.
22
KANT, Immanuel. A paz perpétua: um projecto filosófico. Trad. Artur Morão. Covilhã: LusoSofia – Biblioteca Online
de Filosofia e Cultura, 2008. p. 3-53. Disponível em: http://www.lusosofia.net/textos/kant_immanuel_paz_perpe-
tua.pdf. Acesso em: 4 jan. 2020.
23
KANT, Immanuel. A paz perpétua: Op. cit.
O princípio republicano como princípio constitucional estruturante... 205
24
Para uma análise dos debates em torno do chamado neorrepublicanismo, a partir dos aportes teóricos e filosófi-
cos de autores como J. G. A. Pocock, Quentin Skinner e Philip Pettit, ver: ELIAS, Maria Ligia Granado Rodrigues.
Democracia e participação política no novo republicanismo: um estudo sobre o pensamento de Philip Pettit. 2008.
112 f. Dissertação (Mestrado em Sociologia) – Curso de Pós-Graduação em Sociologia Política, Universidade
Federal de Santa Catarina, Florianópolis, 2008.
206 José Sérgio da Silva Cristóvam
25
COUTINHO, Luís Pedro Pereira. Do que a República é: uma República baseada na dignidade humana. In: MIRAN-
DA, Jorge (Org.). Estudos em homenagem ao Prof. Doutor Martin de Albuquerque. v. II. Coimbra: Coimbra, 2010.
p. 187-211.
26
LEWANDOWSKI, Enrique Ricardo. Reflexões em torno do princípio republicano. Op. cit., p. 197.
O princípio republicano como princípio constitucional estruturante... 207
27
CADEMARTORI, Luiz Henrique Urquhart; CRUZ, Paulo Márcio. Sobre o princípio republicano: Op. cit.
28
CADEMARTORI, Luiz Henrique Urquhart; CRUZ, Paulo Márcio. Sobre o princípio republicano: Op. cit.
29
CRUZ, Paulo Márcio; SCHMITZ, Sérgio Antonio. Sobre o princípio republicano. Op. cit., p. 49-50.
208 José Sérgio da Silva Cristóvam
substantivo, ainda que fortemente limitada ao mundo das normas. Mas este é um processo
social e político que requer uma dimensão histórica, a paulatina criação de uma cultura de
esfera pública na Sociedade. Não há como falar em um conceito normativo de esfera pública,
de coisa pública, de res publica, se não estão dadas as suas bases sociais e políticas.
No mesmo quadrante, do ponto de vista normativo, isso exigiria reconhecer que a
ordem constitucional compactua com um realinhamento normativo mais ao Estado e com o
esvaziamento daquele propalado personalismo constitucional, focado no cidadão e não no
poder estatal. A ideia de um princípio assim forte e com claras vocações de um centralis-
mo absolutista da racionalidade normativa constitucional depõe contra a própria perspectiva
aberta, dinâmica e pluralista do Estado constitucional de direito, que perde em funcionalidade
sistêmica e em efetividade normativa, sobretudo se pensado pela via dos direitos e garantias
fundamentais.
Apenas para um exercício retórico, pode-se dizer que a defesa de uma dimensão
assim totalizante do princípio republicano somente seria legítima, se pensada a partir de um
modelo ideal de Estado republicano, radicalmente fundado sobre as bases de uma sociedade
efetivamente livre e materialmente igualitária, instrumentalizada por uma noção de democra-
cia participativa e pelo primado da dignidade humana. Mas estes modelos de Estado e de
Sociedade assim descritos não existem. E o Brasil, por certo, não serve de parâmetro para
qualquer tentativa de aproximação a um modelo idealista assim estruturado.
Em síntese, o princípio republicano é aqui assumido na sua dimensão axiológica de
princípio constitucional estruturante, que deve ser densificado a partir do diálogo contínuo
e de complexa conformação dialética com os princípios da dignidade humana, do Estado
democrático de direito e da sustentabilidade, com vistas à defesa e promoção dos direitos,
interesses e valores plasmados no seio da Constituição cidadã e na respectiva ordem jurídica
correspondente.
5 CONSIDERAÇÕES FINAIS
Pode-se dizer, tomando por base as reflexões de Carlos Ari Sundfeld, que no diálogo
bipolarizado do Direito Administrativo da atualidade desponta o claro avanço de um modelo
de “Direito Administrativo dos negócios” (mais informal, não infenso à consensualidade e
mais interessado na gestão e eficiência do agir administrativo), em contraste com a posição
decrescente de um conjunto de perspectivas que fundam aquele chamado “Direito Adminis-
trativo dos clipes” (burocrático, autoritário, formalista e pouco preocupado com a gestão de
custos e resultados da atividade administrativa).30
30
SUNDFELD, Carlos Ari. Direito administrativos para céticos. São Paulo: Malheiros, 2012. p. 85-92.
O princípio republicano como princípio constitucional estruturante... 209
REFERÊNCIAS
AMORIM, Carlos Alberto Novelino de. Princípio republicano, cargos em comissão e clientelismo políti-
co nos Municípios do Estado do Rio de Janeiro: reflexões sobre a profissionalização da função pública
no Brasil. 2008. 116 f. Dissertação (Mestrado em Administração) – Curso de Mestrado em Administra-
ção Pública, Fundação Getúlio Vargas, Rio de Janeiro, 2008.
ARISTÓTELES. A Política. Trad. Nestor Silveira Chaves. 2. ed. São Paulo: Edipro, 2009.
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Malheiros, 1998.
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para um entendimento de bem comum e interesse da maioria. In: CONGRESSO NACIONAL DO CONPE-
DI, XVII, 2008, Brasília. Anais [...]. Brasília: Conpedi, 2008. p. 845-860. Disponível em: http://www.
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CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito constitucional e teoria da Constituição. 7. ed. Coimbra:
Almedina, 2003.
CÍCERO, Marco Túlio. Da República. Trad. Amador Cisneiros. Bauru: Edipro, 1995.
210 José Sérgio da Silva Cristóvam
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temporânea. 3. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2004.
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SUNDFELD, Carlos Ari. Direito administrativos para céticos. São Paulo: Malheiros, 2012.
Direito administrativo e desenvolvimento:
visão prospectiva
Juarez Freitas
Doutor em Direito (UFSC)
Professor titular de Direito (UFRGS/PUCRS)
1 INTRODUÇÃO
sopesamento “ex ante” de impactos, que contemple custos e benefícios, diretos e indiretos,
acima de decisionismos tóxicos e arbitrariedades mercuriais.
A partir do prisma adotado (visão prospectiva, plano continuado e integrado de revi-
são categorial e engajamento lúcido), são revistos tópicos cruciais, relocalizando-os qualita-
tivamente, a partir do joeiramento de conceitos que não se revelarem operativos, prestimo-
sos e úteis. Ao mesmo tempo, assimila-se a disruptiva realidade tecnológica, que força, por
exemplo, o reconhecimento da inequívoca produção de atos administrativos pela inteligência
artificial (em contraste com a automação, que produz tão-só fatos administrativos).
Com base nessas premissas, apresentar-se-á a visão prospectiva do Direito Admi-
nistrativo alinhado com o desenvolvimento gerador de bem-estar intergeracional.
(I)
O Direito Administrativo terá que se tornar um sistema de escolhas públicas basea-
das em evidências. Bem por isso, dados de qualidade – compartilhados pelas Carreiras de
Estado, independentemente de prévia autorização judicial – convertem-se no insumo mais
significativo para a gestão pública eficiente e eficaz. Em outras palavras, a decisão admi-
nistrativa não pode ser tomada quase às cegas, sob o influxo de impressões fragmentárias,
soltas e caprichosas, não raro temporalmente míopes e enviesadas. O controle, nessa ótica,
terá que se tornar eminentemente baseado em evidências e predisposto a sindicar “ex ante”
a provável efetividade das escolhas públicas.
Para ilustrar, a priorização do fomento para as energias renováveis haverá de resultar
solarmente clara. Já a transição para os veículos elétricos, em substituição gradual dos
veículos à combustão, será outra prioridade incontornável se a decisão pública for genuina-
mente baseada em evidências e não se deixar eclipsar, distrair ou capturar pelas pressões
conjunturais de grupos especiais e sectários de interesse.
Direito administrativo e desenvolvimento 215
(II)
O Direito Administrativo terá que viabilizar o sistema de prestação precípua de ser-
viços públicos digitais. Quer dizer, a ideia de “governo como plataforma” (ultrapassando a
governança analógica e eletrônica) terá que ser absorvida na plenitude dos efeitos. Todo
serviço público que reunir condições para ser prestado digitalmente deverá sê-lo, numa pla-
taforma única, no intuito de promover a mais radical desburocratização acompanhada de
inédita avaliação continuada das políticas públicas, por meio de aplicativos.
Desse modo, será fortalecida a democracia de aprendizagem permanente, sem pre-
juízo de audiências públicas online e outros instrumentos disponíveis. Não resta dúvida que
a economia do século XXI será preponderantemente de serviços digitalizados, razão pela qual
a transformação digital do Direito Administrativo é cogente e impostergável.
(III)
O Direito Administrativo terá que regular, comedidamente, a inteligência artificial, eis
que esta já regula – mediante recomendação de conteúdos, por exemplo – as preferências
comportamentais da sociedade. Para isso, quadra perceber que a inteligência artificial não
se confunde com a automação. Inteligência artificial é o sistema cognitivo de máquina, com
adaptabilidade e relativa autonomia, emulatório das decisões humanas. Dito de outro jeito,
em face da relativa autonomia (especialmente de “machine learning”), faz-se imprescindível
dilatar o conceito de atos administrativos e exigir transparência das decisões algorítmicas,
sob pena de sério risco ao núcleo dos direitos fundamentais de várias dimensões.
Com efeito, a automação produz fatos administrativos, sem presunção de legitimi-
dade. No entanto, em determinadas circunstâncias, a inteligência artificial suscita manifes-
tações unilaterais, em nome da Administração Pública, com o fito de produzir efeitos no
mundo jurídico. Ora, o nome do fenômeno é ato administrativo. Deve, pois, ser motivado e
explicável, não se permitindo a opacidade de preditores e passos lógicos. A decisão adminis-
trativa algorítmica pode esconder vieses e, mais, aprender a ter vieses, que não constavam
da programação original.
É, de fato, a primeira vez, na história humana, que se inventa um sistema de máqui-
na apto a aprendizagem autônoma (embora baseado em correlações). Portanto, a decisão
administrativa algorítmica não comporta caixa-preta em sentido forte, visto que a rastreabi-
lidade e a explicabilidade se impõem na seara pública, ainda que com eventual redução de
acurácia. Tampouco é suficiente invocar o art. 20 da Lei de Proteção de Dados, pois importa
admitir a cogente processualização da decisão administrativa algorítmica, requerida para a
216 Juarez Freitas
(IV)
O Direito Administrativo terá que sobrepassar o modelo de contraposição polarizada,
rígida e hostil entre a Administração Pública e a sociedade civil, entendendo a solução con-
sensual de conflitos como prioritária. A judicialização passa a ser alternativa última. Tudo que
se revelar passível de ser pacificado no âmbito da Administração Pública, via conciliação,
negociação, mediação e outras técnicas de resolução dos conflitos goza de primazia.
Mais: os agentes públicos, que participarem de autocomposições, só responderão
por dolo ou fraude.2 O Direito Administrativo, noutros termos, deve evoluir para ser, sempre
que possível, não-adversarial, ultrapassando a (i)lógica do inimigo e aprendendo a construir
soluções vantajosas para todos, em autênticos jogos “win-win”, em lugar de onerososos
jogos de soma zero.3
(V)
O Direito Administrativo terá de ser reorientado pela consecução mensurada dos ob-
jetivos do desenvolvimento sustentável. Implica dizer que uma licitação pública que não ob-
servar critérios multidimensionais de sustentabilidade encontrar-se-á no campo da ilicitude,
não suscetível de mera convalidação. Sem exagero, todas as categorias administrativistas
terão que ser ressignificadas sob a coloração do princípio constitucional da sustentabilidade
(CF, arts. 225, 170, VI e 3º),4 de molde a injetar a justiça intergeracional no cerne das
relações de administração.
1
Vide, para aprofundar: FREITAS, Juarez. Direito administrativo e inteligência artificial. Interesse Público, ano 21,
n. 114, 2019. Vide, para deixar nítida a produção de verdadeiros atos administrativos, a decisão italiana proferida
pelo Consiglio di Stato, Sentença n.2270, publicada em 8 de abril de 2019.
2
Vide Lei 13.140/2015, art. 40: Os servidores e empregados públicos que participarem do processo de com-
posição extrajudicial do conflito, somente poderão ser responsabilizados civil, administrativa ou criminalmente
quando, mediante dolo ou fraude, receberem qualquer vantagem patrimonial indevida, permitirem ou facilitarem
sua recepção por terceiro, ou para tal concorrerem.
3
Vide, para aprofundar: FREITAS, Juarez. Direito administrativo não-adversarial: a prioritária solução consensual de
conflitos. Revista de Direito Administrativo, n. 276, 2017.
4
Vide, para aprofundar: FREITAS, Juarez. Sustentabilidade: direito ao futuro. 4. ed. Belo Horizonte: Fórum, 2019.
(Especialmente o Capítulo 9).
Direito administrativo e desenvolvimento 217
(VI)
O Direito Administrativo terá que exigir que a motivação explícita, clara e congruente5
seja acompanhada de avaliação preferencialmente “ex ante” e sistemática dos impactos das
decisões administrativas de repercussões sistêmicas, não apenas de cunho regulatório.6
Não se postula tão-somente a motivação consequencial, por mais importante que seja, mas
o exame integrado, estratégico e ecossistêmico de custos e benefícios, diretos e indiretos7
(sociais, ambientais e econômicos) dos atos, procedimentos e contratos administrativos,
sem o cometimento de estridentes falhas de análise custo-benefício, desvios que têm pro-
vocado danos cumulativos e irreparáveis. Para ilustrar, o custo social do carbono precisa ser
considerado em qualquer análise prévia ou de resultados das decisões administrativas. Tal
motivação, certamente, integra o projeto do Direito Administrativo baseado em evidências.
(VII)
O Direito Administrativo terá que ser magnetizado pela cooperação, que representa a
postura compatível com a eficiência, a eficácia e a produtividade sistêmica. Nesse sentido,
os agentes estatais são chamados a desenvolver “soft skills”, tais como empatia, simpatia
e inteligência coletiva para um exitoso trabalho em rede. Ao mesmo tempo, a avaliação de
desempenho não pode, sob hipótese alguma, ser contaminada pela cultura de ameaça e
terror, porque deve – com o suporte nas ciências comportamentais – primar pelo incentivo
como tônica.
(VIII)
O Direito Administrativo terá que edificar o sistema de confiança regulatória intertem-
poral, apto a se manter hígido após a passagem dos governantes da hora. Essa confiança
engendrará a deferência legítima e atrairá gravitacionalmente os vitais investimentos produ-
tivos de longo prazo, notamente em infraestrutura. O Estado-Administração tem que estar
5
Lei 9.784/99, art. 50.
6
Vide, sobre avaliações de impactos regulatórios, Lei 13.848/2019, art. 6º: A adoção e as propostas de altera-
ção de atos normativos de interesse geral dos agentes econômicos, consumidores ou usuários dos serviços
prestados serão, nos termos de regulamento, precedidas da realização de Análise de Impacto Regulatório (AIR),
que conterá informações e dados sobre os possíveis efeitos do ato normativo. Vide, ainda, Lei 13.874/2019, art.
5º: As propostas de edição e de alteração de atos normativos de interesse geral de agentes econômicos ou de
usuários dos serviços prestados, editadas por órgão ou entidade da administração pública federal, incluídas as
autarquias e as fundações públicas, serão precedidas da realização de análise de impacto regulatório, que conterá
informações e dados sobre os possíveis efeitos do ato normativo para verificar a razoabilidade do seu impacto
econômico.
7
Vide, nessa linha, art. 4º, da Lei 12.462/2011: Nas licitações e contratos de que trata esta Lei serão observadas
as seguintes diretrizes: [...] III - busca da maior vantagem para a administração pública, considerando custos e
benefícios, diretos e indiretos, de natureza econômica, social ou ambiental, inclusive os relativos à manutenção,
ao desfazimento de bens e resíduos, ao índice de depreciação econômica e a outros fatores de igual relevância;
218 Juarez Freitas
(IX)
O Direito Administrativo terá que ser proativo e associado a prestações de qualidade,
em tempo útil. Não se pode, a propósito, acolher, sem modulação, a alternativa temerária de
hipertrofiar o silêncio administrativo com efeitos positivos. Em vez disso, convém homena-
gear o princípio da legalidade: somente atendidos todos os requisitos legais pelo particular
(“apresentados todos os elementos necessários à instrução do processo”), é que correrá
o prazo para a eventual incidência do silêncio administrativo positivo.8 Mais do que nunca,
impõe-se uma exegese ponderada que harmonize direitos e deveres fundamentais, até para
evitar as tragédias decorrentes da ausência de cuidados basilares de precaução e prevenção,
no desempenho de atividades econômicas e regulatórias.
(X)
O Direito Administrativo terá que servir ao desiderato da proporcionalidade como
vedação simultânea de excessos e omissões. A par disso, o administrativista terá que inserir,
mais intensamente, nas suas reflexões e práticas, uma rede de princípios hoje seriamente
deficitários, tais como legitimidade,9 economicidade e eficácia,10 impedindo que o teste de
proporcionalidade sirva para naturalizar a decisão insustentável. Assim, uma tábua principio-
lógica mais robusta11será valiosa para neutralizar os interesses sectários e a discricionarie-
dade que abriga irracionalismos lesivos, por definição.
8
Esta é a melhor intelecção sistemática da Lei 13.874/2019, art. 3º, IX: São direitos de toda pessoa, natural ou
jurídica, essenciais para o desenvolvimento e o crescimento econômicos do País, observado o disposto no pa-
rágrafo único do art. 170 da Constituição Federal:[...] IX - ter a garantia de que, nas solicitações de atos públicos
de liberação da atividade econômica que se sujeitam ao disposto nesta Lei, apresentados todos os elementos
necessários à instrução do processo, o particular será cientificado expressa e imediatamente do prazo máximo
estipulado para a análise de seu pedido e de que, transcorrido o prazo fixado, o silêncio da autoridade competente
importará aprovação tácita para todos os efeitos, ressalvadas as hipóteses expressamente vedadas em lei;
9
CF, art. 70.
10
CF, art. 74.
11
Vide, para aprofundar: FREITAS, Juarez. Direito fundamental à boa administração pública. 3. ed. São Paulo: Ma-
lheiros, 2014. E, ainda: FREITAS, Juarez. O controle dos atos administrativos e os princípios fundamentais. 5.
ed.,= São Paulo: Malheiros, 2013. (Especialmente o Capítulo 1 sobre princípios constitucionais regentes das
relações de administração).
Direito administrativo e desenvolvimento 219
3 CONSIDERAÇÕES FINAIS
Com o suporte dessa mirada prospectiva, no concernente aos possíveis rumos ben-
fazejos do Direito Administrativo, a exposição recomenda tópicos para pesquisas em rede.
Espera-se que a abordagem caia em solo fértil, pois se afigura rigorosamente incontornável
o poder-dever de oferecer o legado de novas e melhores categorias de Direito Administrativo
para atender às justas demandas das presentes e futuras gerações.
REFERÊNCIAS
FREITAS, Juarez. O controle dos atos administrativos e os princípios fundamentais. 5. ed. São Paulo:
Malheiros, 2013.
FREITAS, Juarez. Direito fundamental à boa administração pública. 3. ed. São Paulo: Malheiros, 2014.
FREITAS, Juarez. Direito administrativo e inteligência artificial. Interesse Público, ano 21, n. 114, 2019.
FREITAS, Juarez. Sustentabilidade: direito ao futuro. 4. ed. Belo Horizonte: Fórum, 2019.
A atualidade do debate sobre políticas urbanas
para a promoção do direito à cidade
1 INTRODUÇÃO
A urbanização resulta de uma atividade pública que tem por base um conjunto de
competências variadas em um sistema próprio de decisões, as quais tem o poder de resolver
e gerar diversas situações passíveis de melhorar e(ou) piorar a vida na cidade, concomitan-
temente. Sob a perspectiva delineada no pacto constitucional, a urbanização pode promover
o direito à cidade, devendo ser promovida por meio de um conjunto de ações públicas para
organizar, estruturar e regular os espaços habitáveis, tendo no planejamento urbano social e
participativo a sua principal premissa.
A capacidade de transformar o espaço urbano e seus limites correspondentes de-
pende de intervenção e autorização pública, embasada por legislação geral e específica, o
que nem sempre é de fácil precisão, levando ao entendimento de que não existe um único
método racional de optimização das ações públicas para garantir a promoção do direito à
cidade, promover desenvolvimento urbano, já que toda decisão em matéria de urbanização
traz vantagens e inconvenientes a serem repartidos entre os diversos segmentos sociais,
individual e coletivamente.
Sob tal perspectiva, esse trabalho defende que o núcleo central da agenda para o
desenvolvimento envolva diretamente a promoção do direito à cidade por meio de políticas
públicas e ações desempenhadas pela Administração Pública, representando um novo e
atual paradigma constituído por princípios, ações, metas, indicadores e formas de monitora-
mento destinados a (re) desenhar cidades habitáveis de forma equânime, justa, democrática
e sustentável.
222 Lígia Maria Silva Melo de Casimiro
O Estado social brasileiro tem como um dos pontos de partida para o desenvolvi-
mento, delineado no texto constitucional, a proposta de um urbanismo social e democrático
a ser considerado pelos agentes políticos, sociais e econômicos como referência na con-
dução de políticas públicas. Para um balizamento e controle adequado às características
locais e regionais com a observação de um regime jurídico próprio, deve estar compreendido
que inclusão e integração social e econômica, deveres constitucionais públicos, se opõem
à exclusão social, o que obriga ao planejamento estratégico1 municipal urbano propor e
estruturar a promoção de condições de habitabilidade adequadas, infraestrutura e serviços
públicos compatíveis com a população e demandas existentes.
As políticas públicas são programas de ações públicas e fomento para posturas
privadas, consistindo em decisões formuladas no âmbito da atividade de governo, podendo
ter maior ou menor amplitude e impacto social e econômico a depender da configuração
institucional da Administração Municipal.2 No caso brasileiro, tem-se um rol extenso de de-
veres públicos para promover o desenvolvimento urbano com a definição jurídica de Municí-
pio arquitetada dentro de princípios de Democracia Social e Republicana, substanciada pela
gama de programas e deveres de proteção e promoção dos direitos fundamentais, os quais
devem ser exercidos especialmente em território urbano, dada a relação da cidade com o
desenvolvimento.
O alcance de condições satisfatórias e adequadas ao ser humano, permitindo-lhe
ascender ao bem-estar e à vida digna está vinculado à vida urbana sustentável, já que os
dados sobre a urbanização mundial prospectam que o mundo do futuro é um mundo urba-
nizado.3 Viver em núcleos urbanos já foi incorporado como um direito e parece ser inevitável
afastar-se de um debate coletivo sobre que tipo de cidade atende às necessidades huma-
nas, em especial dos mais vulneráveis. Para tanto, pensar cidades a partir de condições de
habitabilidade adequadas e equânimes, infraestrutura e mobilidade, controle dos recursos
ambientais em estruturas sustentáveis para prestação de serviços públicos deve ser objetivo
dos administradores públicos do século XXI, pois é condição de realização da cidadania.
1
NASCIMENTO NETO, José Osório do. Política pública como estratégia de controle socioambiental no Estado De-
mocrático de Direito. In: MOTTA, Fabrício; GABRADO, Emerson (Coords.). Limites do controle da Administração
Pública no Estado de Direito. Curitiba: Íthala, 2019. p. 182.
2
VALLE, Vanice Regina Lírio do. Políticas públicas, direitos fundamentais e controle judicial. Belo Horizonte: Fórum,
2009. p. 36.
3
UN-HABITAT. Urbanization and development: emerging futures. World cities report 2016. Nairobi: UN-Habitat,
2016. Disponível em: http://cdn.plataformaurbana.cl/wp-content/uploads/2016/06/wcr-full-report-2016.pdf.
Acesso em: 20 jan. 2020. p. 7-8.
A atualidade do debate sobre políticas urbanas... 223
No entanto, grande parte da população brasileira ainda vive, de forma geral, como se
estivesse no século XIX. Em cidades com baixo índice de infraestrutura urbana relacionada
à promoção da saúde, inacessibilidade de moradias adequadas à condição humana digna,
com acesso à circulação cerceado indiretamente pelo alto custo do transporte público, com
grandes distâncias a serem percorridas, alimentação industrializada de má qualidade, parco
abastecimento de água potável, serviços públicos de educação, saúde, iluminação, limpeza
urbana insuficientes, e muitas vezes inexistentes, retroalimentando a precarização da vida
nos centros urbanos.
Todos as atividades, serviços públicos e bens que podem garantir à população me-
lhoria na sua condição de vida estão relacionadas tanto à capacidade do poder público de
ofertá-los quanto à possibilidade da população de acessá-los. De tal forma que a agenda
pública para o desenvolvimento urbano envolve a atividade administrativa de planejar, esta-
belecer planos, elaborar políticas públicas e executar ações vinculadas aos objetivos consti-
tucionais estabelecidos, que não se afastam da proteção e promoção do acesso à vida digna
para o cidadão e a cidadã comuns.4
A (re) construção de cidades funcionais e coerentes no Brasil passa por enfrentar a
relação conflitiva entre quem produz e garante transformações nos espaços urbanos e quem
pode ou não se apropriar deles, definidos pelo poder econômico que domina, inclusive, a
estrutura administrativa estatal. A vida contemporânea se realiza no território urbano, em um
ambiente de comportamentos, condições e necessidades múltiplas, solicitando uma capaci-
dade dialógica de tenso enfrentamento com o capital, exercida constantemente.5
É importante promover o debate sobre a definição da funcionalidade sócio urba-
na coerente afinada com a defesa do direito à cidade sustentável.6 Distingue-se da noção
simples de ordenação territorial e da urbanização, quando tratadas de forma isolada, para
reconhecer que a cidade é um ambiente coletivo que pertence a todos e todas, habitantes e
transeuntes que têm o direito de encontrar nesse espaço as condições para realizarem-se
política, econômica, social e individualmente.7
4
SCHIER, Adriana da Costa Ricardo; FLORES, Pedro Henrique Brunken. Que modelo de Estado brasileiro? Para
além do liberalismo e a busca pela efetividade dos direitos fundamentais sociais. In: SANTANO, Ana Cláudia;
LORENZETTO, Bruno Meneses; GABARDO, Emerson. Direitos fundamentais na Nova Ordem Mundial. Curitiba:
Íthala, 2018. p. 26-30.
5
MOREIRA, Eduardo. Desigualdade & caminhos para uma sociedade mais justa. 3. ed. Rio de Janeiro: Civilização
Brasileira, 2019. p. 77-79.
6
Aqui, uma definição de cidade sustentável que se encontra com a funcionalidade: “[...] cidade sustentável é o
assentamento humano constituído por uma sociedade com consciência de seu papel de agente transformador
dos espaços e cuja relação não se dá pela razão natureza-objeto e sim por uma ação sinérgica entre prudência
ecológica, eficiência energética e equidade socioespacial.” ROMERO, Marta A. B. Urbanismo sustentável no Brasil
e a construção de cidades para o novo milênio. S.d. Disponível em: https://www.usp.br/nutau/sem_nutau_2010/
perspectivas/romero_marta.pdf. Acesso em: 20 jan. 2020.
7
REBOLLO, Luis Martín. El planeamiento municipal: perspectiva general. In: REBOLLO, Luis Martín; BOLADO, Ro-
berto O. Bustillo (Dir.). Fundamentos de derecho urbanístico – Tomo I. Pamplona: Thomson Reuters, 2009. p.
267-268.
224 Lígia Maria Silva Melo de Casimiro
8
LEFBVRE, Henri. O direito à cidade. Trad. Rubens Eduardo Frias. São Paulo: Centauro, 2001. p. 105.
9
BLANCHET, Luiz Alberto. O princípio constitucional da reciprocidade como pressuposto do desenvolvimento sus-
tentável. Constituição, Economia e Desenvolvimento: Revista da Academia Brasileira de Direito Constitucional,
Curitiba, n. 3, p. 32-55, ago./dez. 2010. p. 33-35. Disponível em: http://www.abdconst.com.br/revista4/blanchet.
Acesso em: 10 dez. 2019.
10
MAKRYGIANNI, Vasiliki; TSAVDAROGLOU, Charalampos. El derecho contra la ciudad. In: MATHIVET, Charlotte
(Coord.). Develando el derecho a la ciudad: representaciones, usos e instrumentalización del derecho a la ciudad.
Paris: Ritimo, 2016. p. 63.
A atualidade do debate sobre políticas urbanas... 225
11
HARVEY, David. A liberdade da cidade. In: MARICATO, Ermínia. Cidades rebeldes: passe livre e as manifestações
que tomam as ruas do Brasil. São Paulo: Boitempo, 2013. p. 28.
12
ELIAS, Norbert. A sociedade dos indivíduos. SCHROTER, Michael (Org.). Trad. Vera Ribeiro. Rio de Janeiro: Jorge
Zahar, 1994. p. 72-75.
13
LEFEBVRE, Henri. O direito à cidade. Op. cit., p. 43.
14
Para Lefebvre, tais ciências tem um enorme peso na compreensão da questão urbana, mas nenhuma tem mais
do que a História. Ainda, com a fragmentação da análise para fins de compreensão do tema, a contribuição veio
na forma da criação de uma ciência da cidade. LEFEBVRE, Henri. O direito à cidade. Op. cit., p. 42-44.
226 Lígia Maria Silva Melo de Casimiro
complexidade de um território ocupado por pessoas dos mais variados interesses e necessi-
dades, destinatárias dos mesmos direitos formais, carentes do atendimento que demandam.
Para ser caracterizado, o direito à cidade no ordenamento jurídico brasileiro, é pre-
ciso analisar o conjunto normativo que define direitos e deveres no território urbano, a partir
da delimitação espacial, lugar de concentração da população urbana, produção, circulação,
lugar de consumo de bens e serviços e também de atuação e decisão política. O que Lefeb-
vre defendeu provocativamente na perspectiva filosófica e sociológica sobre o que é o direito
à cidade, no Brasil a Constituição de 1988 substancia com comandos objetivos que indicam
o valor de bem comum e sua configuração com um direito difuso, traduzível em pretensões
coletivas e individuais.15
Se a legislação brasileira prevê textualmente o direito à cidade sustentável como o
direito à terra urbana, à moradia, ao saneamento ambiental, à infraestrutura urbana, ao trans-
porte e aos serviços públicos, ao trabalho e ao lazer para as presentes e futuras gerações,
tem-se para sua realização a definição de competências materiais próprias dos entes admi-
nistrativos.16 As previsões se encontram no texto da lei 10.257/2001, denominada Estatuto
da Cidade, refletindo as diretrizes e comandos constitucionais presentes, em especial, nos
artigos 182 e 183 da Constituição Federal, bem como nas leis sobre Serviços Públicos (Lei
8987/1995), Licitações e Contratos (Lei 8.666/1993 e atualizações), Parcerias Público-Pri-
vadas (Lei 11.079/2004), Regime Diferenciado de Contratações – RDC (12.462/2011), Ser-
viços de Saneamento Básico ( Lei 11.445/2007 e atualizações) dentre outras, posicionado o
Estado brasileiro como agente promotor do desenvolvimento humano.17
15
HACHEM, Daniel Wunder. Princípio constitucional da supremacia do interesse público. Belo Horizonte: Fórum,
2011. p. 378.
16
BRASIL. Lei 10.257, de 10 de julho de 2001. Regulamenta os artigos 182 e 183 da Constituição Federal, es-
tabelece diretrizes gerais da política urbana e dá outras providências. Brasília: Presidência da República, 2001.
Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/leis_2001/l10257.htm. Acesso em: 10 dez. 2019.
17
“Art. 182. A política de desenvolvimento urbano, executada pelo Poder Público municipal, conforme diretrizes
gerais fixadas em lei, tem por objetivo ordenar o pleno desenvolvimento das funções sociais da cidade e garantir
o bem-estar de seus habitantes. § 1º O plano diretor, aprovado pela Câmara Municipal, obrigatório para cidades
com mais de vinte mil habitantes, é o instrumento básico da política de desenvolvimento e de expansão urbana. §
2º A propriedade urbana cumpre sua função social quando atende às exigências fundamentais de ordenação da
cidade expressas no plano diretor. § 3º As desapropriações de imóveis urbanos serão feitas com prévia e justa
indenização em dinheiro. § 4º É facultado ao Poder Público municipal, mediante lei específica para área incluída
no plano diretor, exigir, nos termos da lei federal, do proprietário do solo urbano não edificado, subutilizado ou
não utilizado, que promova seu adequado aproveitamento, sob pena, sucessivamente, de: I - parcelamento ou
edificação compulsórios; II - imposto sobre a propriedade predial e territorial urbana progressivo no tempo; III -
desapropriação com pagamento mediante títulos da dívida pública de emissão previamente aprovada pelo Senado
Federal, com prazo de resgate de até dez anos, em parcelas anuais, iguais e sucessivas, assegurados o valor real
da indenização e os juros legais. Art. 183. Aquele que possuir como sua área urbana de até duzentos e cinqüenta
metros quadrados, por cinco anos, ininterruptamente e sem oposição, utilizando-a para sua moradia ou de sua
família, adquirir-lhe-á o domínio, desde que não seja proprietário de outro imóvel urbano ou rural. § 1º O título
de domínio e a concessão de uso serão conferidos ao homem ou à mulher, ou a ambos, independentemente do
estado civil. § 2º Esse direito não será reconhecido ao mesmo possuidor mais de uma vez. § 3º Os imóveis pú-
blicos não serão adquiridos por usucapião”. BRASIL. [Constituição (1988)]. Constituição da República Federativa
do Brasil de 1988. Brasília: Presidência da República, 1988. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/
constituicao/constituicao.htm. Acesso em: 3 jul. 2020.
A atualidade do debate sobre políticas urbanas... 227
18
LEFBVRE, Henri. O direito à cidade. Op. cit., p. 99.
228 Lígia Maria Silva Melo de Casimiro
exigências de um cenário global de urbanização acelerada.19 Com esse cenário, que não é
recente na dinâmica urbana brasileira, os processos de elaboração de políticas públicas para
o desenvolvimento urbano não podem se furtar a prever a coordenação de meios adequados
à realização de ações interventivas nas cidades, sob uma perspectiva regional, nacional e
até global, definindo comportamentos públicos e privados que contribuam para o desenvol-
vimento humano nas cidades.20
O reflexo das relações sociais no espaço urbano impõe um alto custo para a modifi-
cação da realidade citadina, no entanto, não se pode ignorar a presença do direito à cidade
como um norteador das funções estatais e dos comportamentos pelo uso da propriedade
privada, como se fora somente uma “apropriação normativa-institucional” carente de subs-
trato formal principiológico, definidor de um dever funcional social.21
De acordo com a legislação brasileira atual, os serviços e obras públicas resultam
de contratos firmados pelo poder público e devem seguir, além dos parâmetros de forma, o
conteúdo do planejamento urbano que envolve a identificação das demandas da população,
o número de pessoas a serem atendidas, áreas com densidade demográfica carecedoras de
infraestrutura, investimento e proteção às áreas ambientais, oferta de mobilidade por meio
de diversos modais, dentre outros. O volume de intervenções públicas tem ligação direta
com o número de habitantes, as indicações de demanda, bem como com o orçamento indi-
cado. Tais informações são coletadas e descritas a partir de um processo de planejamento
municipal que se apresenta sob a forma do Plano Diretor, instrumento jurídico que tem como
cerne o levantamento de informações de toda ordem, sobre o Município, com a participação
da população como legitimadora de sua elaboração.
O direito à cidade aponta ainda para a importância do acesso e da participação efeti-
va da população urbana nos processos de decisão sobre a gestão da cidade, feitos mediante
políticas públicas de planejamento, planificações e atos materiais. Nenhum dos elementos
citados consegue promover eficiência isoladamente sem coordenação, transparência e diá-
logo. A participação dos habitantes concede legitimidade, eficácia e possibilidade maior de
efetividade aos modos de intervenção urbana.
Os mecanismos de atuação urbanística variam por seu caráter estruturante e execu-
tório. O protagonismo popular na (re) construção dos espaços, bem como a ocupação do
19
KLINK, Jeroen. A reestruturação produtivo-territorial e a emergência de uma nova agenda metropolitana: o pano-
rama internacional e as perspectivas para o caso brasileiro. In: KLINK, Jeroen (Org.). Governança das metrópoles:
conceitos, experiências e perspectivas. São Paulo: Annablume, 2010. p. 7-13.
20
CASIMIRO, Lígia Maria Silva Melo de. El derecho a la ciudad en el Estado Brasileño: ¿qué nos falta para Garantizar-
lo? In: BRAVO, Alvaro Sanchez; CASIMIRO, Lígia Maria Silva Melo de; GABARDO, Emerson (Eds.). Estado social y
derechos fundamentales en tiempos de retrocesso. Sevilla: Punto Rojo Libros, 2019. p. 162.
21
SCHIAVO, Ester; GELFUSO, Alejandro; VERA, Paula. El derecho a la ciudad. Una mirada desde América La-
tina. Cad. Metrop., São Paulo, v. 19, n. 38, p. 299-312, jan./abr. 2017. p. 300. Disponível em: http://dx.doi.
org/10.1590/2236-9996.2017-3812. Acesso em: 10 dez. 2019.
A atualidade do debate sobre políticas urbanas... 229
Para ser precisa na indicação dos aspectos mais significativos que fundamentam o
direito à cidade se impõem a necessidade de modificação da desigualdade social e econô-
mica. Trata-se, em específico, de debruçar-se sobre os direitos urbanos com um compor-
tamento público promotor de um conjunto de possibilidades de circulação livre e equânime,
de pessoas e bens, acesso à habitação, serviços de educação, à cultura, lazer, serviços de
abastecimento de água potável, limpeza urbana, gerenciamento de resíduos, todos, opor-
tunidades de capacitação, trabalho e renda, para além de serviços públicos fundamentais,
pois os mesmos só se configuram em condições de desenvolvimento real dialogando com
a noção de direito à cidade.25
De acordo com a global plataform for the right to the city, rede composta por diver-
sas entidades nacionais e internacionais comprometidas globalmente com as mudanças
22
BRAGA, Andréa Luiza Curralinho; PESSALI, Huáscar Fialho. Direito à cidade, participação social e a política urbana
no contexto brasileiro. Guaju, Matinhos, v. 1, n. 2, p. 3-22, jul./dez. 2015. p. 6. Disponível em: http://revistas.ufpr.
br/guaju/article/view/45033. Acesso em: 15 maio 2017.
23
CARVALHO, Carlos Henrique Ribeiro de. Desafios da mobilidade urbana no Brasil. Texto para discussão n. 2198.
Brasília: Rio de Janeiro: Ipea, 2016. p. 8.
24
PEREIRA, Silvia Regina. Percursos urbanos: mobilidade espacial, acessibilidade e o direito à cidade. 2006. 323
f. Tese (Doutorado) – Faculdade de Ciências e Tecnologia, Universidade Estadual Paulista, Presidente Prudente,
2006. p. 60-75. Disponível em: http://hdl.handle.net/11449/105070. Acesso em: 15 maio 2017.
25
Art. 2º A política urbana tem por objetivo ordenar o pleno desenvolvimento das funções sociais da cidade e da
propriedade urbana, mediante as seguintes diretrizes gerais: I – garantia do direito a cidades sustentáveis, enten-
dido como o direito à terra urbana, à moradia, ao saneamento ambiental, à infraestrutura urbana, ao transporte e
aos serviços públicos, ao trabalho e ao lazer, para as presentes e futuras gerações. BRASIL. Lei 10.257, de 10 de
julho de 2001. Op. cit.
230 Lígia Maria Silva Melo de Casimiro
26
A Plataforma Global é uma iniciativa de um grupo de organizações nacionais e internacionais que visam contribuir
para a adoção de compromissos, políticas públicas, projetos e ações voltadas ao desenvolvimento de cidades
justas, democráticas, sustentáveis e inclusivas pelas instâncias das Nações Unidas e pelos governos nacionais
e locais. GLOBAL Platform for the Right to the City. S.d. Disponível em: http://www.righttothecityplatform.org.
br/?lang=pt. Acesso em: 10 abr. 2017.
27
CAMARGO, Juliana Werneck de. O IPTU como instrumento de atuação urbanística. Belo Horizonte: Fórum, 2008.
p. 94.
A atualidade do debate sobre políticas urbanas... 231
28
GRAU, Eros Roberto. A ordem econômica na Constituição de 1988. São Paulo: Malheiros, 2010. p. 217-229.
29
De acordo com o relatório da ONU, Cidades do Mundo, a perspectiva de que em meados desse século 66% da
população mundial viva em cidades. Ainda, se avalia que a população rural tem crescido lentamente, esperando-
-se uma redução da mesma. Apontou-se ainda um fator de urbanização que envolve as megacidades, que em sua
maior parte está localizada em países em desenvolvimento, tendência que deve continuar já que muitas cidades
de Ásia, América Latina e África devem se tornar megacidades até 2030, segundo o relatório. Atualmente, as
600 principais cidades do mundo têm 1/5 da população mundial e geram 60% do PIB global. As mesmas estão
localizadas principalmente em países desenvolvidos. O relatório apresenta um capítulo sobre a urbanização como
uma força transformativa, no entanto indica que o modelo atual de urbanização é insustentável, sendo necessário
pensar e efetivar “novas formas de colaboração, cooperação, planejamento, governança, financiamento”. ATUAL
modelo de urbanização é insustentável, diz ONU-Habitat em relatório. ONU, maio 2016. Disponível em: https://
nacoesunidas.org/atual-modelo-de-urbanizacao-e-insustentavel-onu-habitat-relatorio/. Acesso em: 10 dez. 2019.
30
CORBUSIER, Le. Planejamento urbano. São Paulo: Perspectiva, 1984.
232 Lígia Maria Silva Melo de Casimiro
REFERÊNCIAS
ATUAL modelo de urbanização é insustentável, diz ONU-Habitat em relatório. ONU, maio 2016. Dispo-
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A aplicabilidade do Código de Processo Civil
no processo administrativo
SUMÁRIO: 1 Introdução; 2 Notas propedêuticas; 2.1 O devido processo legal; 2.2 Forma federativa
de estado e distinção entre leis nacionais e leis federais; 2.3 Aplicação da Lei n. 9784/1999 aos estados
e municípios; 2.4 Integração das lacunas de leis processuais administrativas estaduais e municipais
pela Lei n. 9784/1999; 3 Aplicação suplementar e subsidiária do código de processo civil ao pro-
cesso administrativo; 3.1 Exemplos e comentários acerca da aplicação suplementar e subsidiária do
CPC/2015 no processo administrativo; 3.1.1 Da suspeição e do impedimento; 3.1.2 Das prerrogativas
dos advogados; 3.1.3 Da intimação na forma eletrônica; 4 Considerações finais; Referências.
1 INTRODUÇÃO
1
Um estudo mais completo que coteja a aplicação do NCPC às normas processuais administrativas previstas na
Lei n. 9784/1999 está em fase de conclusão.
2
A expressão “processos administrativos” é utilizada porque existem os processos administrativos federal, esta-
dual, municipal e distrital. O processo administrativo federal se desdobra no processo administrativo geral, regido
pela Lei n. 9784/1999 e nos processos administrativos especiais, regulados por leis específicas, como, por
exemplo, o processo administrativo disciplinar dos servidores públicos federais positivado pela Lei n. 8112/1990.
O NCPC se aplica, como se verá neste trabalho, com as adequações metodológicas específicas, supletiva e
subsidiariamente a todas as espécies de processo administrativa.
236 Manoel Messias Peixinho
pelas leis estaduais e municipais. Assim, são incontáveis os entes federativos que utilizam
legislações federais em matéria de direito administrativo, não obstante tenham leis especifi-
cas sobre a matéria.
A despeito do tema principal exigir uma análise especifica da aplicação do NCPC
aos processos administrativos, entendemos oportuno, metodologicamente, abordar outros
subtemas, quais sejam: (1) a aplicação da Lei n. 9784/1999 aos processos administrativos
dos entes federativos, (2) as diferenças entre leis federais e leis nacionais e (3) as similitudes
e diferenciações entre a aplicação supletiva e a aplicação subsidiária.
Por fim, foi feita uma análise de alguns exemplos de artigos do Código de Processo
Civil que podem ser aplicados supletiva e subsidiariamente ao processo administrativo, sen-
do certo que os paradigmas escolhidos dão uma pequena amostra que há uma premente
necessidade de um estudo mais aprofundado e aproximado do processo civil e do processo
administrativo.
Não foram enfrentados nesta breve reflexão, ainda que reputemos fundamentais, os
entendimentos dos processualistas civis sobre o diálogo entre os dois sistemas processuais.
As limitações temporal e espacial deste trabalho impuseram essa renúncia metodológica. A
escolha da metodologia, destarte, reconhece com honestidade a carência do trabalho, mas
aponta desafios interessantíssimos para os pesquisadores que desejem aprofundar esse
cotejo entre os dois sistemas processuais.
A bibliografia foi utilizada de forma pontual e necessária para descortinar o objeto
deste ensaio.
2 NOTAS PROPEDÊUTICAS
3
Refiro-me a aplicação do NCPC ao processo administrativo federal regido pela Lei n. 9784/1999, às diversas leis
processuais especiais federais e às leis de processo administrativo estaduais, municipais e distrital.
4
Sobre a incompletude num ordenamento jurídico, cf. PEIXINHO, Manoel Messias. A interpretação da Constituição
e os princípios fundamentais. 4. ed. São Paulo: Atlas, 2015. p. 45-49.
A aplicabilidade do Código de Processo Civil no processo administrativo 237
Consagrado pelo artigo 5º, inciso LIV, da Constituição Federal de 1988, o devido
processo legal é uma garantia civilizatória tanto no direito estrangeiro quanto no direito brasi-
leiro. Esse caráter iluminista do devido processo legal se verifica, por exemplo, no artigo 6º,
inciso I, da Convenção Europeia dos Direitos do Homem que estatui o direito a um processo
equitativo, sobretudo, o direito a um processo fundado na celeridade e que seja examinado,
publicamente, por um tribunal independente e imparcial.
Destaque-se que o devido processo legal se estende a todos os processos instau-
rados, independentemente da matéria ou do tribunal pelo qual será processado e julgado.
Nas lições de Paulo Jansen “é preciso que se diga que o princípio do devido processo legal
inicialmente tutelava especialmente o direito processual penal, mas já se expandiu para pro-
cessual civil e até para o administrativo.”.5 A relevância do devido processo legal no direito
constitucional se estende, pragmaticamente, ao direito administrativo em geral e ao processo
administrativo em particular. 6 Neste sentido, a Lei n. 9.784/1999 estabeleceu normas funda-
mentais sobre o processo administrativo no âmbito da Administração Federal direta e indireta
a visar, em especial, à proteção dos direitos dos administrados e ao melhor cumprimento dos
fins da Administração.7
Dentre essas normas de garantias processuais, a aludida Lei Federal consagrou,
além de normas processuais, uma série de princípios e postulados norteadores do processo
administrativo, tais quais a legalidade, a finalidade, a motivação, a razoabilidade, a propor-
cionalidade, a moralidade, a ampla defesa, o contraditório, a segurança jurídica, o interesse
público e a eficiência, bem como a atuação conforme a lei e o Direito, o atendimento aos
fins de interesse geral, a adequação entre meios e fins, a observância das formalidades
essenciais à garantia dos direitos dos administrados, dentre tantos outros.8 Esses princípios
não são suficientes por si sós porque reclamam metodologicamente por leis substanciais
e processuais gerais e especiais que possam regulamentar as diversas materiais que pro-
manam das céleres e cruciais transformações sociais, econômicas e políticas. O discurso
da autossuficiência das teorias principiológicas pode acarretar em insegurança jurídica e
em arbitrárias discricionariedades tanto administrativas quanto jurisdicionais, como bem de-
mostram as patologias principiológicas bem descritas por Lênio Luiz Streck.9
5
JANSEN, Euler Paulo de Moura. O devido processo legal. Jus Navigandi, jan. 2004. Disponível em: https://jus.
com.br/artigos/4749/o-devido-processo-legal. Acesso em: 8 jan. 2020.
6
O devido processo legal, aplicado ao direito administrativo, é um verdadeiro direito de defesa impõe ao Estado a
observação de garantias constitucionais a um processo justo e equilibrado. Sobre o direito de defesa no direito
francês, cf. STIRN, Bernand. Les sources constitutionnelles du droi administratif. 10. ed. Paris: LGDJ, 2019. p.
103-115.
7
Cf. Artigo 1º da Lei n. 9.784/1999.
8
Cf. Artigo 2º da Lei n. 9.784/1999.
9
STRECK, Lenio Luiz. Compreendendo direito. Como o senso comum pode nos enganar. São Paulo: RT, 2014.
p.100-111.
238 Manoel Messias Peixinho
Art. 1º A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados
e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito e
tem como fundamentos:
10
HORTA, Raul Machado. Reconstrução do federalismo brasileiro. Revista de Informação Legislativa, ano 18, n. 72,
out./dez. 1981. p. 13.
11
HORTA, Raul Machado. Reconstrução do federalismo brasileiro. Op. cit., p. 13.
12
HORTA, Raul Machado. Reconstrução do federalismo brasileiro. Op. cit., p. 19
13
BRASIL. [Constituição (1988)]. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Brasília: Presidência da
República, 1988. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm. Acesso em:
13 jan. 2020.
A aplicabilidade do Código de Processo Civil no processo administrativo 239
Portanto, em que pese o Estado Brasileiro ser indivisível houve por bem reparti-lo
em várias pessoas jurídicas de direito público interno com o fito de distribuir-lhes as diversas
atividades inerentes ao funcionamento da Administração Pública, dentre as quais se destaca
a competência legislativa.14
A partir dessa descentralização política pretendeu-se criar entes com personalidade
jurídica própria para que fossem capazes de promulgar suas próprias leis, válidas no âmbito
territorial em estrita conformidade com os dispositivos constitucionais. Sobre o tema, é o
que ensina Hans Kelsen que “algumas das normas serão válidas para o território inteiro – do
contrário, este não seria o território de uma única ordem –, enquanto outras serão válidas
apenas para diferentes partes dele”.15
Assim sendo, a União produz normas gerais, válidas para todos os entes que com-
põem o Estado Federal (União, Estados, Distrito Federal e Municípios), denominadas leis
nacionais, mas também produz normas parciais, denominadas leis federais, válidas apenas
para a pessoa jurídica de direito público que a instituiu. Exemplo de legislação nacional é a
Lei Complementar n. 101/2000 (Lei de Responsabilidade Fiscal), que é aplicável a todos os
entes federativos. Exemplo de legislação federal é a Lei 9784/1999 (Lei de Processo Admi-
nistrativo Federal), que se aplica a administração pública federal direta e as suas autarquias
e fundações públicas.
Desta feita, para distinguir as leis federais das leis nacionais, trazemos à baila os
ensinamentos de Hélio do Valle Pereira:
[...] a distinção entre leis nacionais e leis federais. Aquelas são relativas à atribuição
legislativa da União como ente que congrega todas as pessoas políticas, estabele-
cendo normas a eles comuns (p. ex., direito penal, normas gerais tributárias). As leis
federais referem-se à regulamentação de situações que envolvem exclusivamente a
União, como pessoa pública equiparada às demais (v.g., estatuto de seus servidores,
criação de imposto federal)16.
14
Sobre a distinção entre estado unitário e estado federal, cf.: OLIVA, Éric; GIUMMARRA, Sandrine. Droit constitu-
tionnel. 9. ed. Paris: Sirley, 2017. (Especialmente nas páginas 18-20). Nessa obra os autores fazem a distinção
entre as diversas formas de estado, quais seja: (1) estado unitário, cuja as subespécies são estado unitário
centralizado e estado unitário descentralizado; (2) estado regional e (3) estado federal.
15
KELSEN, Hans. Teoria geral do direito e do Estado. Trad. Luis Carlos Borges. 3. ed. São Paulo: Martins Fontes,
1988. p. 434.
16
PEREIRA, Hélio do Valle. Manual da fazenda pública em juízo. 3. ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2008. p. 7, nota de
rodapé.
240 Manoel Messias Peixinho
Vislumbra-se, assim, a dupla função do Congresso Nacional: (i) produzir leis nacio-
nais que detém força vinculante em todo o território nacional e cuja aplicabilidade é total, já
que indistinta perante todos os entes federativos, e (ii) produzir leis federais válidas apenas
para a pessoa jurídica de direito público interno que a produziu, qual a seja a União, cuja
aplicabilidade é parcial, e a finalidade é a sua própria auto-organização. Logo, as leis federais
têm simetria em relação às leis estaduais, distritais ou municipais no sentido de todas for-
marem ordens jurídicas parciais que, juntamente com a as leis nacionais, compõem a ordem
jurídica total ou nacional.
Em suma, a fonte primária do processo administrativo é a lei formal emanada pelo
Poder Legislativo que, no caso concreto, é Lei n. 9.784/1999 e as leis processuais locais que
são editadas pelos outros entes federativos. A Lei n. 9784/1999 aplica-se à Administração
Federal da União, às suas autarquias, às fundações públicas, à administração pública dos
Poderes Legislativo e Judiciário. Estão excluídas da incidência do referido diploma legal as
empresas públicas e as sociedades de economia mista federais e, ainda, os Estados, os
Municípios e o Distrito Federal, devido ao regime federativo e a sua já exposta característica
essencial da autonomia dos entes federativos, que possuem competência privativa para le-
gislar acerca de seus processos administrativos.17
o objetivo da Lei não foi apenas estabelecer normas sobre o processo. Se fosse o
caso, a Lei poderia ser considerada de âmbito federal apenas. Ocorre que ela não se li-
mitou a isso. Ela foi além. O seu principal objetivo foi o de dar aplicação aos princípios
constitucionais pertinentes aos direitos do cidadão perante a Administração Pública.
Ora, quando se fala em princípios constitucionais e em direitos do cidadão, entra-se
na esfera de temas de interesse nacional e, portanto, de competência nacional.18
17
CARVALHO FILHO, José dos Santos. Manual de direito administrativo. 31. ed. rev., atual. e ampl. São Paulo: Atlas,
2017. p. 1044.
18
NOHARA, Irene Patrícia; MORAES FILHO, Marco Antônio Praxedes de. Processo administrativo: temas polêmicos
da Lei n. 9784/99. São Paulo: Atlas, 2011. p.190.
A aplicabilidade do Código de Processo Civil no processo administrativo 241
Se a Lei n. 9784/1999 pode ser, por um lado, “completada” pelo NCPC, por outro
lado, o Estatuto Processual Administrativo tem uma função integrativa e deve ser aplicado
nas hipóteses de lacunas existentes nas legislações de Estados e Municípios e nos casos
de vazio normativo existente nas legislações de processo administrativo federais especiais.
No que se refere aos processos administrativos específicos não há, no entanto, exclusão de
incidência, ou seja, quando houver lacuna é possível a aplicação do princípio da subsidia-
riedade com a aplicação das normas da Lei n. 9.784/99 aos diversos diplomas regedores
de processos administrativos especiais federais, estaduais e municipais, tanto nos casos
omissos das leis especiais como naqueles que possam reclamar aplicação suplementar.19
19
FERRAZ, Sérgio; DALLARI, Adilson Abreu. Processo administrativo. 3. ed. São Paulo: Malheiros, 2012. p. 59.
242 Manoel Messias Peixinho
20
WAMBIER, Teresa Arruda; CONCEIÇÃO, Maria Lúcia Lins; RIBEIRO, Leonardo Ferres; DE MELLO, Rogério Licastro.
Primeiros comentários ao Novo Código de Processo Civil: artigo por artigo. São Paulo: RT, 2015. p. 75.
A aplicabilidade do Código de Processo Civil no processo administrativo 243
Art. 19. A autoridade ou servidor que incorrer em impedimento deve comunicar o fato
à autoridade competente, abstendo-se de atuar.
Parágrafo único. A omissão do dever de comunicar o impedimento constitui falta gra-
ve, para efeitos disciplinares.
244 Manoel Messias Peixinho
Art. 20. Pode ser arguida a suspeição de autoridade ou servidor que tenha amizade
íntima ou inimizade notória com algum dos interessados ou com os respectivos côn-
juges, companheiros, parentes e afins até o terceiro grau.
Art. 21. O indeferimento de alegação de suspeição poderá ser objeto de recurso, sem
efeito suspensivo.
Art. 144. Há impedimento do juiz, sendo-lhe vedado exercer suas funções no pro-
cesso:
I - em que interveio como mandatário da parte, oficiou como perito, funcionou como
membro do Ministério Público ou prestou depoimento como testemunha;
II - de que conheceu em outro grau de jurisdição, tendo proferido decisão;
III - quando nele estiver postulando, como defensor público, advogado ou membro do
Ministério Público, seu cônjuge ou companheiro, ou qualquer parente, consanguíneo
ou afim, em linha reta ou colateral, até o terceiro grau, inclusive;
IV - quando for parte no processo ele próprio, seu cônjuge ou companheiro, ou pa-
rente, consanguíneo ou afim, em linha reta ou colateral, até o terceiro grau, inclusive;
V - quando for sócio ou membro de direção ou de administração de pessoa jurídica
parte no processo;
VI - quando for herdeiro presuntivo, donatário ou empregador de qualquer das partes;
VII - em que figure como parte instituição de ensino com a qual tenha relação de
emprego ou decorrente de contrato de prestação de serviços;
VIII - em que figure como parte cliente do escritório de advocacia de seu cônjuge,
companheiro ou parente, consanguíneo ou afim, em linha reta ou colateral, até o ter-
ceiro grau, inclusive, mesmo que patrocinado por advogado de outro escritório;
IX - quando promover ação contra a parte ou seu advogado.
§ 1º Na hipótese do inciso III, o impedimento só se verifica quando o defensor público,
o advogado ou o membro do Ministério Público já integrava o processo antes do início
da atividade judicante do juiz.
§ 2º É vedada a criação de fato superveniente a fim de caracterizar impedimento do
juiz.
§ 3º O impedimento previsto no inciso III também se verifica no caso de mandato
conferido a membro de escritório de advocacia que tenha em seus quadros advogado
que individualmente ostente a condição nele prevista, mesmo que não intervenha
diretamente no processo.
II - que receber presentes de pessoas que tiverem interesse na causa antes ou depois
de iniciado o processo, que aconselhar alguma das partes acerca do objeto da causa
ou que subministrar meios para atender às despesas do litígio;
III - quando qualquer das partes for sua credora ou devedora, de seu cônjuge ou com-
panheiro ou de parentes destes, em linha reta até o terceiro grau, inclusive;
IV - interessado no julgamento do processo em favor de qualquer das partes.
Observa-se que o Código de Processo Civil é mais expansivo e positiva um rol maior
com hipóteses não previstas na Lei de Processo Administrativo. Todavia, esta deficiência da
Lei Federal Processual Administrativa não poderá causar óbices à necessidade de se asse-
gurar a imparcialidade da autoridade julgadora do processo administrativo.
Logo, nos casos em que, porventura, determinada autoridade encontre-se em situa-
ção de impedimento ou suspeição não prevista pela Lei n. 9.784/1999, mas sim naquelas
previstas pelo CPC/2015, poderá este ser invocado em prol do seu afastamento. Assim,
segundo a lição de Egon Bockmann Moreira:
as previsões relativas ao impedimento e à suspeição não podem ser tidas por exaus-
tivas. A Lei n. 9.784/1999 enumera exemplificativamente casos-limite e torna viá-
vel a aplicação subsidiária especialmente do Código de Processo Civil. As regras
processuais devem ser compreendidas à luz da máxima efetividade dos princípios
constitucionais da imparcialidade e da impessoalidade (moralidade administrativa).21
21
MOREIRA, Egon Bockmann. Processo administrativo. Princípios constitucionais e a Lei 9.784/1999. 3. ed. São
Paulo: Malheiros, 2007. p. 335-336.
246 Manoel Messias Peixinho
presentação por força de lei.22 Todavia, nenhuma disposição sobre o modo de atuação dos
advogados é vislumbrada no âmbito desta Lei.
Sobre o tema, é cediço que, para que um advogado exerça a defesa de qualquer
cidadão de forma plena e autônoma, faz-se necessária a observância de uma série de prer-
rogativas. Estas estão asseguradas pelo Estatuto da Advocacia (Lei n. 8.906/1994), especi-
ficamente em seus artigos 6º e 7º. Com o intuito de reforçar a necessidade de observância
de tais prerrogativas, o Código de Processo Civil de 2015 reservou um artigo para destacar
os direitos dos advogados, consoante se infere do dispositivo que trazemos à baila:
Observa-se que a Lei 9.784/99 prevê acerca dos advogados apenas em relação ao
direito dos administrados de se fazerem assistir por eles. No que se refere às suas prerro-
gativas, no entanto, nada dispôs o referido estatuto legal. Desse modo, observa-se a clara
necessidade de aplicação do CPC/2015 que, por sua vez, regulamenta o tema em âmbito
processual. Desse modo, diante da inexistência de um paralelo sobre o assunto na Lei n.
9.784/1999, deverá ser o CPC/2015 aplicado supletivamente quando se estiver diante de
qualquer afronta aos direitos e prerrogativas dos advogados no exercício de defesa de seus
jurisdicionados na esfera processual administrativa.
22
Art. 3o O administrado tem os seguintes direitos perante a Administração, sem prejuízo de outros que lhe sejam
assegurados: IV - fazer-se assistir, facultativamente, por advogado, salvo quando obrigatória a representação, por
força de lei.
A aplicabilidade do Código de Processo Civil no processo administrativo 247
Mister ressaltar, ainda, que nos termos do artigo 270 do CPC/2015, as intimações
“realizam-se, sempre que possível, por meio eletrônico, na forma da lei”. Novamente, obser-
va-se caso de lacuna normativa da Lei 9.784/99, que não contemplou expressamente hipó-
Art. 26. O órgão competente perante o qual tramita o processo administrativo determinará a intimação do inte-
23
ressado para ciência de decisão ou a efetivação de diligências. § 1o A intimação deverá conter: I - identificação
do intimado e nome do órgão ou entidade administrativa; II - finalidade da intimação; III - data, hora e local
em que deve comparecer; IV - se o intimado deve comparecer pessoalmente, ou fazer-se representar; V -
informação da continuidade do processo independentemente do seu comparecimento; VI - indicação dos fatos
e fundamentos legais pertinentes. § 2o A intimação observará a antecedência mínima de três dias úteis quanto à
data de comparecimento. § 3o A intimação pode ser efetuada por ciência no processo, por via postal com aviso
de recebimento, por telegrama ou outro meio que assegure a certeza da ciência do interessado. § 4o No caso de
interessados indeterminados, desconhecidos ou com domicílio indefinido, a intimação deve ser efetuada por meio
de publicação oficial. § 5o As intimações serão nulas quando feitas sem observância das prescrições legais, mas
o comparecimento do administrado supre sua falta ou irregularidade.
Art. 27. O desatendimento da intimação não importa o reconhecimento da verdade dos fatos, nem a renúncia
a direito pelo administrado. Parágrafo único. No prosseguimento do processo, será garantido direito de ampla
defesa ao interessado.
Art. 28. Devem ser objeto de intimação os atos do processo que resultem para o interessado em imposição de
deveres, ônus, sanções ou restrição ao exercício de direitos e atividades e os atos de outra natureza, de seu
interesse.
24
GOMES, Milton Carvalho. Repercussões do novo CPC no processo administrativo: a intimação eletrônica e a
sua implementação normativa. Jota, jun. 2016. Disponível em: https://www.jota.info/opiniao-e-analise/artigos/
repercussoes-novo-cpc-no-processo-administrativo-intimacao-eletronica-e-sua-implementacao-normati-
va-29062016. Acesso em: 13 jan. 2020.
248 Manoel Messias Peixinho
tese de intimação por via eletrônica, ao passo que o CPC/2015 trouxe tal previsão de forma
clara. Na presente situação, destaca-se que a Lei Federal, ao elencar os meios de realização
da intimação, admite estabelecer um rol exemplificativo, posto que prevê, além dos meios
expostos, a possibilidade de “outro meio que assegure a certeza da ciência do interessado”.
Desta feita, as normas do Código de Processo Civil são perfeitamente aplicáveis, de
forma subsidiária, à Lei 9.784/1999 para regular a citação e a intimação na forma eletrônica,
temas lacunosos na Lei de Processo Administrativo Federal. Logo, conforme bem expõe Mil-
ton Carvalho Gomes, “a intimação eletrônica, prevista pelo novo CPC, é plenamente aplicá-
vel ao processo administrativo, devendo ser considerada, inclusive, a forma preferencial de
comunicação dos atos processuais, dada a sua economia e celeridade, evidenciando-se,
novamente, suas funções de atualizar e expandir as normas administrativas”.25
4 CONSIDERAÇÕES FINAIS
É possível reconhecer, após a análise dos temas propostos que, em muitas situa-
ções, as leis de processo administrativo são insuficientes para regular as constantes e sen-
síveis demandas que nascem da relação conflituosa entre a Administração Pública e os
cidadãos administrados e bem como resguardar o interesse público e tutelar os direitos dos
administrados por uma razão muito singela: o Código de Processo Civil, ainda que conte-
nha muitos dispositivos de interesse público, é um estatuto primordialmente direcionado à
tutela dos interesses privados individuais e coletivos, mesmo que hodiernamente na doutrina
haja um consenso de que o direito processual civil se constitucionalizou à semelhança do
que ocorreu com o direito civil. Porém, ainda que oxigenado pela Constituição de 1988 e
com todos os avanços civilizatórios, os objetivos das leis processuais civis e das leis de
processos administrativos se diferenciam. O direito administrativo ainda é, como bem diz
Carlos Ari Sundfeld, “um direito administrativo especial, oposto ao privado”, não obstante
o próprio autor reconheça que este ramo especializado passou e tem passado por muitas
transformações.26
Porém, nos estreitos limites metodológicos propostos neste artigo e sem aprofundar
as limitações históricas e culturais do direito administrativo de modo geral e do processo ad-
ministrativo de modo especial há de concluir que as lacunas de regulamentação se não fos-
sem enfrentadas e sanadas acabariam por violar frontalmente o devido processo legal, uma
garantia indispensável de acesso às instâncias administrativas previstas pela Constituição
Federal de 1988, como direitos fundamentais do cidadão administrado. Assim, a aplicação
do NCPC, com a nova orientação positivada do artigo 15, permite fazer uma aproximação
metodológica entre a processualística civil e a processualística administrativa com significa-
tivos proveitos para a cidadania.
25
GOMES, Milton Carvalho. Repercussões do novo CPC no processo administrativo: Op. cit.
26
SUNDFELD, Carlos Ari. Direito administrativo para céticos. São Paulo, Malheiros, 2012. p. 28-30.
A aplicabilidade do Código de Processo Civil no processo administrativo 249
REFERÊNCIAS
BRASIL. [Constituição (1988)]. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Brasília: Presi-
dência da República, 1988. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constitui-
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nica e a sua implementação normativa. Jota, jun. 2016. Disponível em: https://www.jota.info/opiniao-
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gério Licastro. Primeiros comentários ao Novo Código de Processo Civil: artigo por artigo. São Paulo:
RT, 2015.
A nova LINDB e o direito administrativo:
o que esperar?
1 INTRODUÇÃO
Um dos principais dispositivos que protege a segurança jurídica é o artigo 24, que
veda a retroação de nova orientação geral. Determina esse dispositivo “que a revisão, nas
esferas administrativa, controladora ou judicial, quanto à validade de ato, contrato, ajuste,
processo ou norma administrativa cuja produção já se houver completado levará em conta
as orientações gerais da época, sendo vedado que, com base em mudança posterior de
orientação geral, se declarem inválidas situações plenamente constituídas”. E o parágrafo
único define “orientações gerais como “as interpretações e especificações contidas em atos
A nova LINDB e o direito administrativo: o que esperar? 253
trado ficar à mercê das mudanças de interpretação passíveis de afetar situações jurídicas já
definitivamente constituídas. Essas mudanças só podem produzir efeitos futuros.
Conforme realçado no texto publicado na RBA,
A norma do artigo 24 se reforça com o preceito contido no artigo 23, pelo qual,
em caso de mudança de interpretação ou orientação nova, impondo novo dever ou novo
condicionamento de direito, deverá ser previsto regime de transição de modo que o novo
dever ou condicionamento seja cumprido de modo proporcional, equânime e sem prejuízo
aos interesses gerais.
O Decreto n. 9.830, de 10 de junho de 2019, que regulamenta o disposto nos artigos
20 a 30 do Decreto-Lei n. 4.657, de 4 de setembro de 1942, repete, no artigo 5º, caput e §
1º, o preceito já contido no artigo 24 da LINDB. No § 1º determina que “é vedado declarar
inválida situação plenamente constituída devido à mudança de orientação geral”. E no § 2º
estabelece que “o disposto no § 1º não exclui a possibilidade de suspensão de efeitos futu-
ros de relação em curso”.
A nova LINDB e o direito administrativo: o que esperar? 255
3 DO PRINCÍPIO DA MOTIVAÇÃO
1
DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Direito administrativo. 32. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2019. p. 89.
256 Maria Sylvia Zanella di Pietro
resultar prejuízo maior para o interesse público. Desde longa data a doutrina e a jurisprudên-
cia defendem a possibilidade de manutenção de atos ou contratos ilegais, se da invalida-
ção resultar prejuízo maior para o interesse público. Isto não significa que o agente público
responsável pela ilegalidade não deva responder pelas consequências danosas de seu ato.
Uma coisa é manter o ato ilegal. Outra coisa é isentar de responsabilidade o servidor que
agiu ilegalmente.
O Regulamento da Lei (Decreto n. 9.830, de 10 de junho de 2019) permite que a
autoridade module os efeitos de sua decisão de invalidação e permite que sua eficácia se
inicie em momento futuro. A modulação também não constitui novidade no direito brasileiro,
porque já prevista no artigo 27 da Lei n. 9.868, de 10 de novembro de 1999, e no artigo 11
da Lei n. 9.882, de 3 de dezembro de 1998, que regulam, respectivamente a ADIN e a ADPF.
Essa modulação constitui aplicação do princípio da segurança jurídica, como está expresso
nos dispositivos legais citados.
Outra circunstância que deve ser levada em consideração na motivação são os obs-
táculos e as dificuldades que o gestor enfrente na gestão pública e no cumprimento de
políticas públicas. É o que determina o artigo 22, caput, da LINDB, em cujos termos “na
interpretação de normas sobre gestão pública, serão considerados os obstáculos e as difi-
culdades reais do gestor e as exigências de políticas públicas a seu cargo, sem prejuízo dos
direitos dos administrados”.
Por exemplo, devem ser levadas em consideração as limitações financeiras e orça-
mentárias, inclusive as normas da Lei de Responsabilidade Fiscal (Lei Complementar n. 101,
de 4-5-00), a necessidade de adotar medida urgente diante das circunstâncias concretas
enfrentadas pelo administrador, a imposição de medidas necessárias para dar cumprimento
a políticas públicas.
A respeito do artigo 22 da LINDB (que corresponde ao artigo 21 do Projeto de Lei
349/15, do Senado), Alexandre Santos de Aragão2 observa que “no Direito Administrativo,
muitas vezes as previsões abstratas das normas, e a interpretação que delas fazem alguns
órgãos de controle, não possuem maleabilidade suficiente para dar conta de todos os casos
concretos com os quais o administrador público se depara em seu dia a dia, colocando-o
diante de um difícil dilema: cumprir cegamente a letra da lei e deixar perecer alguma neces-
sidade pública premente ou a implementação eficiente da política pública a seu encargo; ou
interpretá-la inteligentemente, à luz dos seus fins sociais, atendendo aos objetivos públicos
que estão ao seu encargo, mas não a sua letra fria e isolada, sujeitando-se, por essa razão, a
sanções. Sua grande falta teria sido realizar materialmente os objetivos da norma e do direito,
mas não cumprido a sua regra abstrata e isolada tal como interpretada, mais ortodoxamente,
por alguns órgãos de controle”. O autor cita alguns exemplos concretos para ilustrar o dilema
que enfrenta o administrador público e depois acrescenta que:
2
ARAGÃO, Alexandre Santos. Artigo 21. In: PEREIRA, Flávio Henrique Unes (Coord.). Segurança jurídica e qualida-
de das decisões públicas. Desafios de uma sociedade democrática. Brasília: Senado Federal, 2015. p. 20.
A nova LINDB e o direito administrativo: o que esperar? 257
diante da renitência de alguns órgãos de controle em seguir essa visão de uma lega-
lidade mais ampla ou de juridicidade, parece necessário se explicitar para o Direito
Administrativo como um todo – já que o problema não é restrito a determinados
setores da Administração Pública ou entes federativos – a necessidade de que a sua
interpretação deve levar em consideração as exigências práticas com as quais o ad-
ministrador tem que lidar em cada caso concreto, pois a Administração Pública não se
destina apenas a fazer belas subsunções formais, mas a transformar concretamente a
realidade de acordo com o programa constitucional.
4 DO PRINCÍPIO DA PROPORCIONALIDADE
O Supremo Tribunal Federal já decidiu que o Tribunal de Contas da União não pode
aplicar sanções que já foram levantadas em acordo de leniência.3
Por sua vez, o Tribunal de Contas da União4 realçou o aspecto da unicidade do
sistema de controle. Ele reconheceu que o acordo de leniência, tendo natureza contratual,
só produz efeitos entre as partes. Como o Tribunal não participou do acordo de leniência, ele
não poderia ser alcançado pelos seus efeitos. No entanto, entendeu que:
5 CONSIDERAÇÕES FINAIS
Diante dos aspectos da LINDB, apontados nos itens anteriores, ficam algumas inda-
gações: O que esperar? O que exigir?
A lei não é muito fácil de ser entendida e aplicada no dia a dia pelo servidor público,
dependendo da categoria em que se insere e do nível de preparo exigido para o cargo ou
emprego que ocupa.
A sua compreensão depende, em grande parte, das lições e experiências que o servi-
dor vai vivenciando no exercício de suas funções. Ele pode e deve ser orientado pelos órgãos
jurídicos que existem em todos os níveis da Administração Pública. A efetiva aplicação da
lei depende em grande parte de sua aceitação pelos órgãos de controle, especialmente do
Poder Judiciário.
Embora, aparentemente, a lei apresente, a uma primeira leitura, alguma dificuldade
de entendimento, o fato é que ela não contém tantas inovações como pode parecer. Muitos
dos preceitos por ela adotados já são aplicados pela jurisprudência dos tribunais, inclusive
dos Tribunais de Contas.
O seu descumprimento pela Administração Pública pode ser corrigido nas vias de
controle e judiciais.
Além dos textos já citados, contendo comentários sobre a lei, é importante lembrar
que, em 14 de junho de 2019, foi realizado um seminário pelo Instituto Brasileiro de Direito
3
Medida Cautelar no MS-35.435-DF, Rel. Min. Gilmar Mendes, j. 13-04-2018.
4
Acórdão 1214/2018, relatado pelo Ministro Benjamin Zymller, em 30-05-2018.
260 Maria Sylvia Zanella di Pietro
REFERÊNCIAS
ARAGÃO, Alexandre Santos. Artigo 21. In: PEREIRA, Flávio Henrique Unes (Coord.). Segurança jurídica
e qualidade das decisões públicas. Desafios de uma sociedade democrática. Brasília: Senado Federal,
2015.
DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Direito administrativo. 32. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2019.
MARQUES NETO, Floriano de Azevedo; SUNDFELD, Carlos Ari; e outros. Resposta aos comentários
tecidos pela Consultoria Jurídica do TCU ao PL 7.448/2017. Revista Brasileira da Advocacia. São Paulo:
AASP – Associação dos Advogados de São Paulo; Revista dos Tribunais, ano 3, n. 9, p. 289-312, abr./
jun. 2018.
MOTTA, Fabrício. Pela segurança jurídica, precisamos tratar da interpretação da LINDB. Consultor Ju-
rídico, 11 jul. 2019.
PEREIRA, Flávio Henrique Unes (Coord.). Segurança jurídica e qualidade das decisões públicas. Desa-
fios de uma sociedade democrática. Brasília: Senado Federal, 2015.
Riscos de improbidade administrativa na gestão
de calamidades públicas e as consectárias res-
ponsabilizações jurídicas do agente público1
1 INTRODUÇÃO
A Administração Pública em geral tem sido chamada a responder, cada vez mais,
por demandas diversas e complexas do Mercado e da Sociedade, muitas vezes tensas e
justapostas, levando a escolhas disjuntivas, eis que implicam eleger algumas prioridades em
detrimento de outras. Por certo que estas escolhas (em alguns casos trágicas) reclamam
razões de justificação e fundamentação amplas, legitimas e democráticas, submetidas a
todo o tipo de controle, preventivos e curativos.
Pretendemos no presente texto avaliar os riscos de configuração de improbidade
administrativa no âmbito da gestão de calamidades públicas e as respectivas responsabili-
zações dos agentes públicos, notadamente no caso da dispensa de licitação para o atendi-
mento destas demandas.
1
Artigo elaborado para publicação no livro do XXXIII Congresso Brasileiro de Direito Administrativo, em Campo
Grande, Mato Grosso do Sul, nos dias 16 a 18 de outubro de 2019.
262 Rogério Gesta Leal
mecanismos de efetivação e proteção estão em baixa; sutilezas legais podem ser deixadas
de lado para serem apreciadas somente em tempos de paz e tranquilidade.2
Em meio a tais turbulências garantias constitucionais são colocadas a prova, razão
pela qual os compromissos permanentes em preservar e manter direitos e liberdades de-
vem estar constantemente equalizados/convergentes com os cuidados de não transmutar a
Constituição em um pacto suicida, na expressão do Juiz da Suprema Corte Norte-americana
Robert H. Jackson. O Juiz Jackson, em 1949, no caso Terminiello v. Chicago, no qual a maio-
ria dos magistrados decidiu que lei municipal de Chicago que proibia o discurso de provocar
a ira do público, convidar a disputas, provocar situação de inquietação ou criar distúrbios,
estaria violando as Primeira e Décima Quarta Emendas à Constituição Norte-americana, dis-
sentiu sob o argumento de que:
This Court has gone far toward accepting the doctrine that civil liberty means the
removal of all restraints from these crowds and that all local attempts to maintain
order are impairments of the liberty of the citizen. The choice is not between order and
liberty. It is between liberty with order and anarchy without either. There is danger that,
if the Court does not temper its doctrinaire logic with a little practical wisdom, it will
convert the constitutional Bill of Rights into a suicide pact.3
2
Ver o texto de: GROOM, Brian. Detaining suspects not abuse of Human Rights. Financial Times, London, 12 nov.
2001.
3
US SUPREME COURT. Terminiello v. City of Chicago, 337 U.S. 1. 1949. p. 24. Ver na mesma linha o texto de:
BELLESILES, Michael A. Suicide pact: new readings of the second amendment. Constitutional Commentary 764,
v. 16, 1999. Disponível em: https://scholarship.law.umn.edu/concomm/764. Acesso em: 21 jan. 2019.
4
Ver o texto de: ARREGUIN-TOFT, Ivan. How the weak win wars: a theory of asymmetric conflict. New York: Cam-
bridge University Press, 2005. Também ver o texto de: WOLIN, Sheldon S. Democracy incorporated: managed
democracy and the specter of inverted totalitarianism. New Jersey: Princeton University Press, 2008.
Riscos de improbidade administrativa na gestão de calamidades públicas... 263
em que medida governos republicanos e democráticos podem justificar ações nestas dire-
ções sem se transformar em regimes autoritários?
Quando exigências extremas surgem, de forma quase invariável, as forças políticas e
econômicas, institucionais e sociais, deixam às mãos do Poder Executivo a responsabilidade
imediata de seus enfrentamentos, levando ao seu fortalecimento enquanto poder de Estado,
e isto não somente em face dos demais poderes estatais, mas também diante de direitos
individuais e liberdades públicas.5
Por outro lado, se o Poder Executivo tem assumido protagonismo diferenciando no
confronto de cenários de crises sociais envolvendo, principalmente, riscos e perigos trágicos
e iminentes, a despeito da vontade ou mesmo reação dos outros poderes de Estado, isto
também ocorre justamente porque o tempo e a forma tradicionais de tomada de decisões na
Democracia representativa ordinária, por vezes, não atende minimamente – por serem mais
morosos – as expectativas e necessidades de determinadas demandas comunitárias mar-
cadas por níveis de complexidade e emergências imediatas. Como nos diz Daron Acemoglu
e James Robinson:
While such expansions and concentrations of powers are not unique to times of cri-
sis, but rather are part of the modernization of society and the need for governmental
involvement in an ever-growing number of areas of human activity, it can hardly be de-
nied that such phenomena have been accelerated tremendously (and, at times, initia-
ted) during emergencies. Our acceptance of the growing role of the executive branch
as natural may be attributed, in part, to our conditioning during times of emergency.6
5
Ver o texto de: ROSENTHAL, Peter. The new emergencies act: four times the war measures act. Manitoba Law
Journal, n. 563, p. 576-80, 1991. Disponível em: https://heinonline.org/HOL/LandingPage?handle=hein.journals/
manitob20&div=44&id=&page=. Acesso em: 11 fev. 2019.
6
ACEMOGLU, Daron; ROBINSON, James. The role of institutions in growth and development. Review of Economics
and Institutions, v. 2.1, 2010. p. 16. ISSN 2038-1379. DOI 10.5202. Disponível em: http://www.rei.unipg.it/rei/
article/view/14. Acesso em: 18 fev. 2019.
264 Rogério Gesta Leal
zes, a partir de premissas não raro apressadas e divorciadas das conquistas civilizatórias
de direitos e garantias, colocando à disposição das autoridades públicas maiores poderes
abrangentes para resolver problemas urgentes.
É fácil compreendermos isto na medida em que se afigura mais confortável fazer
aprovar medidas de exceção do que questionar porque elas são necessárias, além do que ao
poder instituído garante protagonismo de ação e reação, o que sem dúvidas não é suficiente,
pois tão somente mostra o que autoridades públicas podem fazer (atacando as consequên-
cias e deixando de lado as causas) em vez de estarem inertes.
Assim, em cenários democráticos, é preciso reconhecer, o conceito de poderes de
emergência remete a situações de fôlego curto e medidas transitórias que são constituídas
para responder a situações particulares, para, então, serem removidos o mais rápido possí-
vel, tanto quanto bastem para dar cabo exitoso das razões pelas quais foram instituídos. Em
outras palavras, a sensação de que medidas de emergência, as quais podem se desviar do
que é aceitável normalmente no âmbito e confins do sistema legal em tempos ordinários, não
podem afetar campos legais e políticos durante muito tempo, sob pena de fazer com que a
natureza draconiana das ações perpetradas seja aceita mais facilmente.
É muito fácil dizer que em certas situações, quando o pânico, o medo, o ódio, e
emoções similares prevalecem, discursos e análises racionais são colocadas de lado na
formulação de respostas a demandas públicas decorrentes. O problema é que, quando de-
parados com sérias ameaças ou com emergências extremas, o público em geral – e seus
líderes – costumam ter dificuldades de avaliar com precisão racional os riscos e perigos
efetivos que se postam a Sociedade, até porque discursos, práticas e estratégias ideológicas
ganham folego em busca de hegemonias conjunturais.7
Qualquer ato de balanceamento/ponderação levando em conta as ameaças – reais e
fictícias – que precisam ser atendidas, e os custos para a Sociedade e seus membros, para
os fins de enfrentar tudo isto de diferentes maneiras, precisa sempre ser muito bem funda-
mentado e controlado, mesmo quando aplicado com a melhor das atenções.
Para alguns teóricos desta problemática, as pessoas se comportam a partir de con-
juntos de limitações cognitivas e preconceitos que podem preveni-las diante da captura das
reais probabilidades de ocorrência de certos tipos de riscos e incertezas. As avaliações
precisas destas reclamam informações relacionadas e confiáveis da magnitude do que está
envolvido, e das possibilidades de que se materializem.8
7
Ver o excelente texto de: FENTON, Natalie. The internet and radical politics. In: CURRAN, J.; FENTON, N.; FREED-
MAN, D. Misundestanding the internet. New York: Routledge, 2012.
8
Ver os textos de: CASTELLS, Manuel. Redes de indignação e esperança: movimentos sociais na era da internet.
Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2013; CASTELLS, Manuel. A sociedade em rede – a era da informação. São Paulo:
Paz e Terra, 2012; CASTELLS, Manuel. Comunicació i poder. Barcelona: UOC, 2009; CASTELLS, Manuel. Comuni-
cação, poder e contra-poder na sociedade em rede. Jornal Internacional de Comunicação, v. 1, n. 1, p. 29, 2007.
Riscos de improbidade administrativa na gestão de calamidades públicas... 265
9
Conforme: LUECKE, Richard. Gerenciando a crise. Rio de Janeiro: Record, 2010; e o texto de: ADELANTADO,
José. Desigualdad, democracia y políticas sociales focalizadas. Barcelona: Universidad de Barcelona, 2005.
10
Ver o texto de: KAPLAN, F.; SCHWARTZ, S. (Eds.). Human judgment and decision processes. New York: Acadenzic
Pres, 2005. Ver também o texto de: FRANZONI, Juliana M. Domesticar la incertidumbre en América Latina. Costa
Rica: Universidad de Costa Rica, 2008.
11
SUNSTEIN, Cass R. Probability neglect: emotions, worst cases, and law. John M. Olin Program in Law and Eco-
nomics Working Paper n. 138, 2001. p. 3. Disponível em: http://www.law.uchicago.edu/Lawecon/index.html.
Acesso em: 1º abr. 2019. Refere expressamente o autor que: For those who study the topic of risk regulation,
there are many things to say about this state of affairs. First, safety is a matter of degree; it is foolish to worry, as
people seemed to be doing, about whether they are “safe” or “not safe.” As a statistical matter, most people, in
266 Rogério Gesta Leal
O autor foca no que chama de probabilidades negligentes, no sentido de, muitas vezes, as
teorias das probabilidades não levarem em conta, porque deixam de acessar/avaliar todos
os fatores e variáveis que compõem os ambientes nos quais as probabilidades são demar-
cadas, elegendo tão somente os piores resultados possíveis, os quais invocam emoções
e sentimentos demasiadamente fundamentalistas como o medo, reclamando respostas (a
demandas equivocadas) igualmente radicais.12
É interessante o argumento de Sunstein no sentido de que as pessoas desenvolvem
perspectivas míopes sobre o futuro no qual elas tendem a subvalorizar benefícios e custos
quando os comparam com os atuais. Quando duras medidas/respostas governamentais,
em face de situações delicadas e representativas de perigos, são percebidas pela Sociedade
como socialmente benéficas, os custos de longo prazo para o Estado de Direito e mesmo
para os direitos fundamentais individuais tendem a ser tolerados.
O fato de que os custos do futuro sejam vistos de forma muito intangível e abstrata
em quadros de emergência, especialmente quando comparados com aqueles sentimentos
tangíveis de medos expressivos, associados com o aumento da segurança como resultado
de ações governamentais – sejam quais forem –, somente amplificam os equívocos das
avaliações de emergências reais e políticas públicas consectárias. Ou seja, os ciclos de
radicalização ideológica ou retórica dos discursos do medo (junto com as percepções equi-
vocadas por conta de percepções negligentes e imperitas) em face daquilo que os gestores
públicos não conhecem muito bem (e tampouco desejam conhecer), geram sentimentos
trágicos de pavor horripilante, imediato e violento, da possibilidade de eventos e fenôme-
nos que coloquem em xeque a normalidade de espaços públicos e privados, fomentando a
institucionalização de medidas de força e violência em nome de determinada ordem social.
Temos, todavia, que no Estado Democrático de Direito atual as emergências políticas
e sociais devem ser enfrentadas a partir de ações e reações pautadas por prudência e razoa-
bilidade adequadas as urgências apresentadas, razões pelas quais governantes devem ter
ampla responsabilidade ao determinar quais medidas são necessárias e devem ser tomadas
para lidar com crises de maneira efetiva e eficaz.
Máximas como necessidades não conhecem a lei (salus popula suprema lex ext; in-
ter arma silente leges), ou razões de Estado, estão mais associadas com formas autoritárias
de tratamento daqueles cenários do que democráticas.
most places (not excluding airports), were not at significantly more risk after the attacks than they were before.
(Grifos nossos). Ver também o texto de: SCHREUER, Christoph. Derogation of human rights in situations of public
emergency: the experience of the European Convention on Human Rights. Yale Journal, v. 9, p. 113-132, 1982.
Disponível em: http://digitalcommons.law.yale.edu/yjil/vol9/iss1/6. Acesso em: 20 maio 2019.
12
Lembra Sunstein que: “When a bad outcome is highly salient and triggers strong emotions, government will be
asked to do something about it, even if the probability that the bad outcome will occur is low”. SUNSTEIN, Cass
R. Probability neglect: Op. cit., p. 5.
Riscos de improbidade administrativa na gestão de calamidades públicas... 267
Sob essa marca de realismo político, democracias não representam enigmas reais
em face de emergências, isto porque há restrições que limitam governos no tratamento des-
tas, oriundas tanto de marcos institucionais e orçamentários limitados, como também por
processos e procedimentos democráticos a serem adotados e pautados pelos termos da lei,
porque justamente estes tendem a evitar (ou diminuir) os níveis de ilegitimidade democrática,
abusos de poder e desvios de finalidades.13
Em posição diametralmente oposta à do realismo político de que estamos falando
há o reclame no sentido de que o sistema jurídico não deve, sob qualquer condição e inde-
pendentemente de circunstâncias, reconhecer emergências como merecedoras de especial
tratamento divorciadas dos princípios e regras constitucionais e infraconstitucionais assegu-
radores do regime democrático. Na medida em que o realismo abandona estas premissas, a
Democracia se expõe a instabilidades as mais diversas.14
A despeito dessas posições, entendemos que são as disposições jurídicas vigentes
que devem pautar as respostas governamentais às emergências sociais, e a premissa neural
que está subjacente a tais argumentos é o primado da norma fundamental, determinando que
qualquer que sejam as respostas dadas aos desafios de demandas públicas urgentes, elas
devem estar sustentadas nos confins dos comandos constitucionais.15
Em outras palavras, somente sob o argumento do gerencialismo como paradigma
e modelo de poderes emergenciais, o Estado de Emergência não justifica os desvios even-
tualmente cometidos em face dos sistemas jurídicos ordinários. Nenhum poder especial de
emergência é introduzido em bases permanentes, isto porque estes sistemas costumam
providenciar respostas necessárias para situações de crises eventuais sem depender, dema-
siadamente, de formulações assertóricas legislativas ou executivas inéditas, ou aditivas de
ocasião, razão pela qual a ocorrência de qualquer particular emergência não pode justificar
ou explicar a suspensão, por todo ou em parte, dos padrões normativos vigentes.16
O firme argumento sobre a aplicabilidade de normas ordinárias em cenários de emer-
gência institucional e social reforçam a tese de que quaisquer operações de governo somente
13
Ver o texto de: BALDWIN, David A. Neoliberalism, neorealism, and world politics. In: ELMAN, Colin; JENSEN,
Michael A (eds.) Realism reader. New York: Routledge, 2014.
14
Conforme o texto de: MURRAY, Alastair. Reconstructing realism: between power politics and cosmopolitan ethics.
Edinburgh: Keele University Press, 2007.
15
Como lembra VASQUEZ, John A. The power of power politics: a critique. New Brunswick: Rutgers University
Press, 2009. p. 61: “While terrorists are lawless and operate outside the sphere of legal principles, democratic
governments must be careful not to fight terrorism with lawless means. Otherwise, these governments may
succeed in defeating terrorism at the expense of losing the democratic nature of the society they are defending.
The assumption is, therefore, that the exception is governed and controlled by legal norms”.
16
Neste sentido ver o texto de: DERSHOWITZ, Alan M. Is it necessary to apply “physical pressure” to terrorists—and
to lie about it? Israel Law Review, v. 23, n. 192, 1989. Ver também o texto de: KITTRIE, Nicholas N. Patriots and
terrorists: reconciling human rights with world order. Case Western Reserve Journal of International Law, v.13, iss.
21981. Disponível em: https://scholarlycommons.law.case.edu/jil/vol13/iss2/3. Acesso em: 6 maio 2019.
268 Rogério Gesta Leal
devem se dar dentro dos limites da lei, colocando os agentes públicos em alerta para serem
mais responsáveis em suas gestões, evitando a defraudação dos sistemas normativos a que
estão vinculados. Em face desta perspectiva, a necessidade permanente de prestação de
contas e transparência de tais atos justifica a exposição pública como ferramenta de controle
e responsabilização maior de suas ações.
Lembremos que, se o poder já está instalado em instâncias governamentais e com
protagonistas com escopos e projetos mais privados do que públicos, isto torna mais fá-
ceis ações ilícitas em face daquelas situações políticas nas quais relações ainda não estão
consolidadas. Por isto a inexistência de limites normativos a governabilidade – inclusive
em cenários de emergências – pode encorajar inescrupulosos líderes políticos a fomentar
atmosferas de medo, invocando poderes extraordinários de gestão.
No caso da Administração Pública brasileira é possível que o gestor lance mão de
medidas de urgência para lidar com situações calamitosas ou trágicas que, de inopino, sur-
gem em seu quotidiano, como os casos de calamidade pública, e isto está minimamente re-
gulamentado, mas, mesmo assim, tem dado ensejo para o cometimento de muitas irregula-
ridades e ilícitos de diversas ordens, e aqui queremos destacar a improbidade administrativa
como possibilidade comportamental, matéria que vamos abordar na sequência.
17
Inciso II, do art. 2º, do Decreto Federal n. 7.527/2010.
18
Inciso III, do art. 2º, do Decreto Federal n. 7.527/2010.
270 Rogério Gesta Leal
19
Destacamos o item prevenção aqui porque ele vai ser fundamental como imposição ao gestor público no desen-
volver políticas públicas de evitação notadamente de ocorrências que, a despeito de trágicas e sazonais, tem se
repetido no tempo, descaracterizando – eventualmente – emergência inédita que autorize medidas de exceção,
basta lembrarmos de enchentes periódicas que arrasam núcleos habitacionais todos os anos, e que estão em
situação de clandestinidade no âmbito da ocupação do solo urbano.
20
Por tais razões, o Tribunal de Contas da União brasileiro já teve oportunidade de editar um enunciado dizendo
o seguinte: É pressuposto da aplicação de dispensa de licitação por emergência ou calamidade pública que a
situação adversa não possa, em alguma medida, ser atribuída à culpa ou dolo do agente público que tinha o dever
de agir para prevenir a ocorrência de tal situação. BRASIL. TCU. Autos do Acórdão 224/2007. Plenário. Relator
Min. Marcos Vinicius Vilaça. data da sessão em: 28 fev. 2007. Disponível em: https://pesquisa.apps.tcu.gov.br/.
Acesso em: 19 jul. 2019. Por outro lado, há procedimentos próprios exigidos pelo marco normativo sob comento
para o regular reconhecimento/declaração de situação de emergência e estado de calamidade pública para os
efeitos jurídicos de que estamos falando. Ver também a Instrução Normativa 001, de agosto de 2012, emitida pelo
Ministério da Integração Nacional, regulamentando ainda mais esses requisitos.
21
Claro que, por vezes, em face da gravidade das calamidades que estão a ocorrer, pois não concluíram seus ciclos
de efetivação e danos, resta difícil demarcar com precisão matemática quais são estes elementos, mas ao menos
informações relacionados as ocorrências já consolidadas e as medidas que se exigem diante delas é possível
e necessário constituir. Registre-se que os Estados brasileiros costumam legislar supletivamente sobre estas
matérias.
Riscos de improbidade administrativa na gestão de calamidades públicas... 271
futuro, certamente estarão mais expostos a surpresas e eventos inesperados por conta da
incapacidade/incompetência de tê-los previstos, a despeito dos seus indicadores estarem
presentes no quotidiano da Comunidade.
Se de um lado a legislação nacional criou estas possibilidades de gestão de crises
envolvendo o administrador público, por outro trouxe dever correlato por parte destes em
justificar e fundamentar seus atos a este título de forma muito bem articulada e convincen-
te, sempre vinculado as hipóteses normativas especiais (infraconstitucionais), e as gerais
(constitucionais), em termos de princípios e regras jurídicas, sob pena de correr o risco de
cometer ilícitos cíveis, administrativos e penais. Dentre esses, para os fins deste trabalho,
queremos dar destaque a dispensa de licitação como espécie de improbidade administrativa
descrita no inciso VIII, do art. 10º, da Lei n. 8.429/1992, em face das chamadas situações
de calamidade pública, prática muito corrente em vários Municípios brasileiros.
Como vimos até aqui são muitas as hipóteses de enquadramento de riscos e peri-
gos – iminentes e consolidados – como calamidades públicas que estejam a exigir políticas
de prevenção ou gerenciamento de danos sociais por parte dos administradores públicos
brasileiros.
As normativas acima referidas, propositadamente, tratam da matéria sob comento
ora de forma conceitualmente precisa, identificando quais os elementos objetivos que ca-
racterizam situações de calamidades públicas; ora o fazem de modo mais genérico, com
categorias mais abertas em termos de sentidos, evidenciando significações plurais diante,
até, da natureza de eventos de força maior ou casos fortuitos de difícil delimitação imediata
e definitiva.
O problema é que o sistema jurídico nacional atual conta com marcos normativos
diversos que se ocupam da regulação e responsabilização dos administradores públicos
quando se desviam de finalidades lícitas (por meios e resultados), prevendo sanções dis-
tintas – e cumulativas – a eles, desde: (a) suspensão de direitos políticos, perda de cargo
e função pública, nos termos do art. 37, parágrafo 4º, da Constituição Federal de 1988, e
art. 12, I, da Lei de Improbidade Administrativa (n. 8.429/92); (b) ressarcimento de dano e
multa civil, art. 12, I, da Lei de Improbidade Administrativa (n. 8.429/92); (c) multa aplicável
pelo Tribunal de Contas aos chefes de Poderes e ocupantes de cargos de direção de órgãos
públicos, nos termos do art. 5º, da Lei Federal n. 10.028/2000; (d) prisão, multa e penas
restritivas de direitos, nos termos da mesma Lei Federal n. 10.028/2000, que criou capitulo
272 Rogério Gesta Leal
especifico no Código Penal para crimes contra as finanças públicas22; (e) as penas dos cri-
mes praticados por Prefeitos nos termos do Decreto n. 201/67.
Nas situações de calamidade pública sob comento, o ordenador da despesa pode,
mediante os termos da lei (todas as normas aqui referidas, portanto), dentre outras medidas,
fazer uso, se for o caso, de contratações diretas de serviços, obras e produtos para realizar
o enfrentamento das demandas que se apresentam por decorrência das situações calamito-
sas indicadas, e o faz, em tese, ao abrigo do disposto no art.24, IV, da Lei de Licitações (n.
8.666/93), que disciplina:
22
Estamos falando dos arts. 359-A, 359-B, 359-C, 359-D, 359-E, 359-F, 359-G e 359-H, do Código Penal brasi-
leiro, quase todos com disposições que podem ser consideradas norma penal em branco, ou seja, de conteúdo
incompleto, com certa vagueza, o que pode criar dificuldades de imputação mas também de defesa.
23
JUSTEN FILHO, Marçal. Comentários a Lei de Licitações e contratos administrativos. São Paulo: Dialética, 2002.
p. 240. Grifos nossos. Ver também: FIGUEIREDO, Lúcia Valle. Curso de direito administrativo. São Paulo: Malhei-
ros, 2015. p. 307.
Riscos de improbidade administrativa na gestão de calamidades públicas... 273
dispensa de licitação e contratação direta. Então, se houver má-fé no sentido de não se tomar
nenhuma providência anterior para que os fatos danosos não viessem a ocorrer, e somente
quando estes estiverem na iminência de ocorrer é que o agente público vem a contratar,
trata-se, aí, de uma emergência “fabricada” ou “fictícia”, que, apesar de haver a necessidade
da contratação, levará à responsabilidade do agente público.24
E temos muitas ocorrências fabricadas ou fictícias de calamidades públicas decre-
tadas por gestores irresponsáveis – agindo com culpa e dolo –, pois não se revelam reais
aquelas que deveriam ter sido resolvidas de imediato, quando já se tinha conhecimento muito
tempo antes dos seus riscos e iminência, até, por vezes, em face de suas recorrências no
tempo e espaço. Nesta hipótese, como nos diz Gasparin, estamos diante de situação ficta
ou fabricada. Em tais casos, há negligência, não urgência. Apesar disso, contrata-se, e, pela
negligência, responderá a autoridade omissiva.25
Essa é a mesma linha de posicionamento do Tribunal de Contas da União, sob o
argumento de que a situação adversa, dada como de emergência ou de calamidade pública,
não pode se originar, total ou parcialmente, da falta de planejamento, da desídia adminis-
trativa ou da má gestão dos recursos disponíveis, pois se isto ocorrer, em alguma medida,
deve ser atribuída à culpa ou dolo do agente público que tinha o dever de agir para prevenir
a ocorrência de tal situação, razão pela qual o Tribunal tem punido os gestores que invocam
a dispensa de licitação para situações emergenciais fabricadas pela própria inoperância ge-
rencial.26
Mesmo que ocorram efetivamente tais cenários de calamidade pública por conta da
incompetência, imprudência, negligencia ou imperícia do Administrador, e eles representem
riscos e perigos a comunidade, sem dúvidas que medidas precisam ser tomadas dando
respostas adequadas a tais demandas, mas deverá também o agente público responder por
sua inércia causadora – em parte ou totalmente – das consequências trágicas.27
24
Ver o texto de: PEREIRA, Jessé Torres. Comentários à Lei das Licitações e contratações da administração pública.
Rio de Janeiro: Renovar, 2002. p.118. Alerta o autor ainda que há requisitos materiais da calamidade pública que
precisam ser observados nestas circunstâncias, a saber: (i) que exista urgência concreta e efetiva do atendimento
a situação decorrente do estado emergencial ou calamitoso, visando afastar risco de danos a bens ou à saúde ou
à vida das pessoas; (ii) que o risco, além de concreto e efetivamente provável, se mostre iminente e especialmente
gravoso; (iii) que a imediata efetivação, por meio de contratação com terceiro, de determinadas obras, serviços
ou compras, segundo as especificações e quantitativos tecnicamente apurados, seja o meio adequado, efetivo e
eficiente de afastar o risco iminente detectado.
25
GASPARIN, Diógenes. Direito administrativo. São Paulo: Saraiva, 2015. p. 214.
26
Ver as Decisões 347/1994 e 738/2006, do Plenário do Tribunal de Contas da União do Brasil. BRASIL. TCU.
Decisão 347/1994. Plenário. Relator: Ministro Carlos Átila Álvares da Silva. Data da sessão em: 1º jun. 1994.
Disponível em: https://pesquisa.apps.tcu.gov.br/. Acesso em: 19 jul. 2019; BRASIL. TCU. Acordão 738/2006.
Plenário. Relator: Ministro Marcos Bemquerer. Data da sessão em: 17 maio 2006. Disponível em: https://pesquisa.
apps.tcu.gov.br/. Acesso em: 19 jul. 2019.
27
Daí porque a 2ª Turma do STJ tem afirmado há mais tempo que a configuração da improbidade administrativa se
basta na comprovação da culpa (simples), consoante os termos do Agravo Regimental no AREsp 654.406/SE,
Rel. Ministro Herman Benjamim, Segunda Turma, julgado em 17/11/2015, DJe 04/02/2016. Temos consciência
274 Rogério Gesta Leal
É digno de registro que o STJ tem se valido, para estes casos, do conceito de dano in
re ipsa, hipótese de dano presumido, que termina por amoldar a tipificação do ato de impro-
bidade descrito no artigo 10, da Lei 8.429/92, em especial nos casos de indevida dispensa
de licitação (inciso VIII), evidenciando que o conceito de culpa usado pela Lei de Improbidade
é amplo para os efeitos de responsabilizar os atos que a ela se relacionam.29
de que parte da doutrina defende a tese de que o artigo 28, da Lei 13.655/18, ao dizer que “o agente público res-
ponderá pessoalmente por suas decisões ou opiniões técnicas em caso de dolo ou erro grosseiro”, afeta a regra
do artigo 10, da Lei 8.429/92, na medida em que transforma em pressuposto da responsabilização do agente
público (que decide ou emite opinião técnica) exclusivamente o dolo e o erro grosseiro, afastando a responsabili-
zação por culpa stricto sensu. Dentre estes o Dr. Luciano Ferraz, em artigo publicado no Conjur na data de 10 de
maio de 2018. Não podemos concordar com isto porque tal intento fragiliza por demais a proteção do bem jurídico
tutelado pela norma constitucional e infraconstitucional aplicada a espécie.
28
BRASIL. STJ. Recurso Especial n. 1.760.128-SP. Relator Ministro Herman Benjamin. Segunda Turma. Julgado
em 11/12/2018. Data da publicação 08/02/2019. Disponível em: https://ww2.stj.jus.br/processo/revista/inteiro-
teor/?num_registro=201801851749&dt_publicacao=08/02/2019 Acesso em: 19 jul. 2019. No mesmo sentido
ver: BRASIL. STJ. Agravo Interno no Agravo em Recurso Especial n. 784.438 – RN (2015/0243380-3). Rela-
tora: Min. Assusete Magalhães. Segunda Turma. julgado em 06/09/2018. Data de publicação DJe 19/12/2018.
Disponível em: https://ww2.stj.jus.br/processo/revista/inteiroteor/?num_registro=201801851749&dt_publica-
cao=08/02/2019. Acesso em: 19 jul. 2019.
29
Ver: BRASIL. STJ. Embargos de Declaração no AREsp 419.769/SC. Rel. min. Herman Benjamin. 2ª Turma. Julga-
do em 18/10/2016. Data de publicação DJe 25/10/2016. Disponível em: https://ww2.stj.jus.br/processo/revista/
inteiroteor/. Acesso em: 19 jul. 2019.
Riscos de improbidade administrativa na gestão de calamidades públicas... 275
Por fim, os fundamentos das decisões do STJ que levaram a edição do tema Re-
petitivo n. 701, em especial do Recurso Especial n. 1.366.721 - BA (2013/0029548-3),
aprofundaram aqueles fundamentos:
É disso que estamos falando, para tornar mais eficaz o combate aos abusos de poder
e desvios de finalidade cometidos pelos gestores públicos em nome de calamidades públi-
cas declaradas – e as vezes fictas –, é preciso e urgente termos esta compreensão ampliada
da responsabilidade por improbidade administrativa e, quando for o caso, aplicar todas as
sanções que ela indica, notadamente ressarcitórias e de suspensão dos direitos políticos,
caso contrário estaremos esvaziando os interesses e patrimônios públicos protegidos pelo
sistema jurídico vigente.
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Os poderes regrantes do Executivo e de
sua administração
SUMÁRIO: 1 Introdução: Poder, órgão, função; 2 Poder normativo legiferante e poder de execução;
3 Poder regulamentar e poder instrutório; 4 Poder regulatório; Referências.
1
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2
PONTES DE MIRANDA, Francisco C. Comentários à Constituição de 1967, com a Emenda de 1969. Tomo III. 2.
ed. São Paulo: RT, 1970. p. 371.
Os poderes regrantes do Executivo e de sua administração 283
3
“IX - organização administrativa, judiciária, do Ministério Público e da Defensoria Pública da União e dos Territórios
e organização judiciária e do Ministério Público do Distrito Federal; (Redação dada pela Emenda Constitucional n.
69, de 2012) (Produção de efeito); X - criação, transformação e extinção de cargos, empregos e funções públicas,
observado o que estabelece o art. 84, VI, b ; (Redação dada pela Emenda Constitucional n. 32, de 2001); XI -
criação e extinção de Ministérios e órgãos da administração pública;(Redação dada pela Emenda Constitucional
n. 32, de 2001)”
4
“Se a interpretação administrativa da lei, que vier a consubstanciar-se em decreto executivo, divergir do sentido e
do conteúdo da norma legal que o ato secundário pretendeu regulamentar, quer porque tenha este se projetado ul-
tra legem, quer porque tenha permanecido citra legem, quer, ainda, porque tenha investido contra legem, a questão
284 Sergio de Andréa Ferreira
7
PONTES DE MIRANDA, Francisco C. Comentários à Constituição de 1967, [...]. Op. cit., p. 314; 316: “Regulamen-
tar é editar regras que se limitam a adaptar a atividade humana ao texto, e não, o texto à atividade humana. Assim,
quando o poder executivo, para tornar mais inteligível a regra jurídica [...] nenhum princípio novo, ou diferente, de
direito material se lhe pode introduzir”.
8
“Art. 29. Em qualquer órgão ou Poder, a edição de atos normativos por autoridade administrativa, salvo os
de mera organização interna, poderá ser precedida de consulta pública para manifestação de interessados,
preferencialmente por meio eletrônico, a qual será considerada na decisão. (Incluído pela Lei n. 13.655, de
2018) (Vigência) (Regulamento). § 1º A convocação conterá a minuta do ato normativo e fixará o prazo e de-
mais condições da consulta pública, observadas as normas legais e regulamentares específicas, se houver. (In-
cluído pela Lei n. 13.655, de 2018) (Vigência) [...] Art. 30. As autoridades públicas devem atuar para aumentar
a segurança jurídica na aplicação das normas, inclusive por meio de regulamentos, súmulas administrativas e
respostas a consultas. (Incluído pela Lei n. 13.655, de 2018) (Regulamento). Parágrafo único. Os instrumentos
previstos no caput deste artigo terão caráter vinculante em relação ao órgão ou entidade a que se destinam,
até ulterior revisão.”. Ver: MARQUES NETO, Floriano de Azevedo; FREITAS, Rafael Véras de. Comentários à
Lei 13.655/18. Belo Horizonte: Fórum. 2019. p. 139 e ss. BEZNOS, Clóvis. A LINDB – alterações. In: MOTTA,
Fabiano; GABARDO, Emerson (Coord.). Limites do controle na Administração Pública no Estado de Direito.
Curitiba: Íthala, 2019. p. 79 e ss.
Os poderes regrantes do Executivo e de sua administração 287
4 PODER REGULATÓRIO
9
FERREIRA, Sergio de Andréa. O direito de propriedade e as limitações e ingerências administrativas. São Paulo:
RT, 1982.
10
Art. 187 do Código Civil de 2002: “Também comete ato ilícito o titular de um direito que, ao exercê-lo, excede
manifestamente os limites impostos pelo seu fim econômico ou social, pela boa-fé ou pelos bons costumes”.
Os poderes regrantes do Executivo e de sua administração 289
O sentido normativo da regulação brasileira está claro, por exemplo, na Lei Comple-
mentar n. 109, de 29.05.01, que dispõe sobre o regime de previdência privada, e cujo art. 5º
explicita que a normatização das atividades do setor será realizada por órgão regulador.
Giza Alberto Venancio Filho,11 em clássica obra, que, segundo Bernard Chenot,12 a
regulação se desenvolveu pelo alargamento da noção de poder de polícia; e que, também no
Brasil, foi, originariamente, essa noção, a justificativa doutrinária para a chamada interven-
ção do Estado no domínio econômico (art. 149 e § 2º, da CF); considerado tal poder, já pelo
grande Ruy Barbosa, como “poder orgânico elementar, fundamental, a que estão ligadas as
exigências capitais de conservação da sociedade”.13
Peculiaridade da regulação, é que as normas produzidas têm, como destinatários
imediatos, os administrados, eis que interferem em relações entre eles; assim como a AP,
porquanto essa é protagonista necessária do Direito Público Social, na condição de agente
harmonizador e equilibrante desses relacionamentos, num papel protetivo da parte mais
vulnerável.
Cai-se, então, numa figura diferente; em um outro tipo de poder normativo da Admi-
nistração, que não é o poder regulamentar, mas o poder regulador. Ele não é regulamentar,
porque não diz respeito à execução de leis. Quem executa leis é a Administração Pública,
assim como quem as aplica é o juiz. O que faz o particular? O particular cumpre o Direito.
A inovação na participação social do Estado, como parcela individualizável da atua-
ção governamental, radica-se em que, estando os interesses juridicamente protegidos titu-
larizados em membros da comunidade, ou por parcelas da mesma, com referência a outros
sujeitos jurídicos desses relacionamentos, é que o Estado participa, regulando normativa-
mente, e, depois, atuando in concreto.
Essa coparticipação estatal nas situações e relações jurídicas de terceiros – e, daí,
a noção de intervenção – é que identifica a regulação, seja normativamente, num primeiro
momento; seja concretamente, in casu, como exaurimento da atuação social do Estado.
A regulação normatizante tem função de complementariedade, em relação às nor-
mas constitucionais e legais.
Complementar não é completar: é aditar algo que mantém um conjunto interseção,
uma conexão ou homogeneidade com o aditado, mas tem identidade própria. Assim, a Lei
Complementar complementa a CF, mas não a completa, o que só é possível, por meio de
Emenda Constitucional.
11
VENANCIO FILHO, Alberto. A intervenção do Estado no domínio econômico. Rio: Editora FGV, 1968. p. 75.
12
DROIT Public Économique. In: CHENOT, Bernard. Dictionnaire des Sciences Économiques. v. I. Paris: Presses
universitaires de France, 1956. p. 422.
13
BARBOSA, Ruy. Comentários à Constituição federal brasileira. Coligidos por Homero Pires. São Paulo: Saraiva,
1934. p. 315.
290 Sergio de Andréa Ferreira
14
O art. 4º estatui que “a agência reguladora deverá observar, em suas atividades, a devida adequação entre meios
e fins, vedada a imposição de obrigações, restrições e sanções em medida superior àquela necessária ao atendi-
mento do interesse público”. O art. 5º impõe a indicação dos pressupostos de fato e de direito, inclusive a respeito
da edição, ou não, de atos normativos. E o art. 9º prevê a obrigatoriedade de consulta pública prévia, em relação
a atos normativos de interesse geral. Ver: FERREIRA, Sergio de Andréa. Direito da regulação econômica – a expe-
riência brasileira. Revista Brasileira de Direito Comparado, n. 22, 2002.
15
GRAU, Eros Roberto. O direito posto e o direito pressuposto. São Paulo: Malheiros, 2000. p. 94 e ss.
16
“Literalmente, ‘desregular’ significa, no caso, deixar de fazê-lo através de preceitos de autoridade, ou seja, jurí-
dicos. [...]. O mercado não seria possível sem uma legislação que o protegesse e uma racional intervenção, que
assegurasse a sua existência e preservação”.
Os poderes regrantes do Executivo e de sua administração 291
econômica’, bem como ‘disposições sobre a atuação do Estado como agente normativo e
regulador” (art. 1º).17
Fixa, como dever da Administração Pública e das demais entidades destinatárias da
Lei, evitar o abuso do poder regulatório.
O controle legislativo e o jurisdicional são básicos no balizamento da atuação regu-
ladora. Estamos no campo do “sistema de freios e contrapesos”, dos checks and balances.
Assim, o art. 49 da CF, além de atribuir ao Congresso Nacional competência exclusiva
para “sustar os atos normativos do Poder Executivo que exorbitem do poder regulamentar ou
dos limites da delegação legislativa”, outorga-lhe a incumbência de “zelar pela preservação
de sua competência legislativa em face da atribuição normativa de outros Poderes” (n. XI).
É mister sublinhar que o art. 25, I, do Ato das Disposições Constitucionais Transitó-
rias, revogou, a partir de 180 dias da promulgação da Constituição de 88, salvo prorrogação
por lei, todos os dispositivos legais que atribuíam ou delegavam “a órgão do Poder Executivo
competência assinalada pela Constituição ao Congresso Nacional, especialmente no que
tange à ação normativa”.
A distinção entre regular e regulamentar é importante na fixação de limites do con-
trole jurisdicional, segundo inteligência do Supremo Tribunal Federal.
Entende este que “não cabe ação direta contra norma que regulamenta lei, porquan-
to se está diante de questão de ilegalidade e não de inconstitucionalidade”.18
Mas, em verdade, pode ocorrer que, ao invés de a incompatibilidade ser entre o regu-
lamento e a lei, aquele próprio ferir diretamente a Constituição; hipótese em que se alargam
os lindes do controle jurisdicional (CF, arts. 102, I, a, e 103, § 5º: cabe a Ação Direta de
Inconstitucionalidade em face de lei ou ato normativo).
Com maior razão, se regular não é regulamentar, constituindo segmento próprio do
poder normativo estatal, e tendo, por destinatários, terceiros, vinculados ao cumprimento da
norma reguladora, pode haver vício direto de inconstitucionalidade.
Aliás, Pontes de Miranda19 sustentava que, “se o regulamento se afasta da lei, é
inconstitucional”.
17
Determina que seus preceitos serão observados “na aplicação e na interpretação do direito civil, empresarial,
econômico, urbanístico e do trabalho, que se encontra no seu âmbito de aplicação e na ordenação pública”
(§ 1º). Aduz que se interpretam ‘em favor da liberdade econômica, da boa-fé e do respeito aos contratos, aos
investimentos e à propriedade, todas as normas de ordenação pública sobre atividades econômicas privadas’(§
2º). Trata, também, do que será mais desregulamentação do que desregulação, ao cuidar dos atos públicos de
liberação da atividade econômica (§ 5º, I).
18
Foi sob esse fundamento que o STF, por maioria, não conheceu da Ação Direta de Inconstitucionalidade n. 2.387
– DF, aforada pelo Partido Socialista Brasileiro – PSB contra o Decreto n. 3.721/2001, que fixou o limite mínimo
de idade para o início do recebimento da complementação da aposentadoria, alterando o Decreto n. 81.240/78,
regulamentador do art. 3º da Lei n. 6.435/77 (Inf. STF 218:1. Relatora p/acórdão, Ministra Ellen Gracie; julg. em
21.02.2001).
19
PONTES DE MIRANDA, Francisco C. Comentários à Constituição de 1967, [...]. Op. cit., p. 318.
292 Sergio de Andréa Ferreira
Há leis que determinam sua regulamentação, inclusive fixando prazo para tal.
A questão não é de vigência (não se caracteriza uma vacatio legis), pois que a regra
incide; mas sim, de exequibilidade, sempre, aliás, relativa, porquanto, na medida do possível,
seu cumprimento é exigível. É o mesmo que ocorre, quando a Constituição assegura um
direito, mas emprega a cláusula, na forma da lei.
É, na hipótese de regulação, que, mais comumente, poderá ocorrer a inexequibilida-
de de dispositivo do ato legal.
Em qualquer dos casos, porém, tem o regulamentador ou o regulador a obrigação de,
no prazo que lhe foi assinado, editar o ato-regra administrativo. Se não o fizer, caberá o em-
prego do mandado de injunção, a par da possibilidade da propositura de outras ações, que
viabilizem o exercício, pelo administrado, do seu direito, ou o cumprimento de sua obrigação.
REFERÊNCIAS
BANDEIRA DE MELLO, Oswaldo Aranha. Princípios gerais de direito administrativo. v. I. 3. ed. São
Paulo: Malheiros, 2010.
BARBOSA, Ruy. Comentários à Constituição federal brasileira. Coligidos por Homero Pires. São Paulo:
Saraiva, 1934.
BEZNOS, Clóvis. A LINDB – alterações. In: MOTTA, Fabiano; GABARDO, Emerson (Coord.). Limites do
controle na Administração Pública no Estado de Direito. Curitiba: Íthala, 2019.
DROIT Public Économique. In: CHENOT, Bernard. Dictionnaire des Sciences Économiques. v. I. Paris:
Presses universitaires de France, 1956.
FERREIRA, Sergio de Andréa. Direito da regulação econômica – a experiência brasileira. Revista Brasi-
leira de Direito Comparado, n. 22, 2002.
GRAU, Eros Roberto. O direito posto e o direito pressuposto. São Paulo: Malheiros, 2000.
MARQUES NETO, Floriano de Azevedo; FREITAS, Rafael Véras de. Comentários à Lei 13.655/18. Belo
Horizonte: Fórum. 2019.
PORTO NETO, Benedito. Regulação e o direito das comunicações. In: SUNDFELD, Carlos Ari. Direito
administrativo econômico. São Paulo: Malheiros, 2001.
VENANCIO FILHO, Alberto. A intervenção do Estado no domínio econômico. Rio: Editora FGV, 1968.
Acordo de leniência na Lei Anticorrupção: pon-
tos de estrangulamento de segurança jurídica
Thiago Marrara
Doutor em Direito Administrativo (LMU)
Professor de Direito Administrativo (USP)
Advogado consultor
1 INTRODUÇÃO
1
Cf.: BRASIL. CGU. Acordo de leniência com a Odebrecht prevê ressarcimento de 2,7 bilhões. 2018. Disponível
em: encurtador.com.br/mwxI0. Acesso em: 3 jul. 2020.
294 Thiago Marrara
O acordo de leniência, tal como definido, envolve duas partes. De um lado, posicio-
na-se o infrator, que se dispõe a cooperar com a produção de provas, colaborando com a
instrução e a busca da efetividade processual. Confesso e disposto a colaborar, o infrator age
por conta e risco, assumindo todos os custos, financeiros ou não, da cooperação na produ-
ção de provas, bem como os riscos de exposição social e midiática, de eventual persecução
em outros processos etc. Ele não assume, porém, obrigação de resultado, ou seja, de que
o processo culmine numa decisão administrativa condenatória. Sua obrigação é de reforçar
e robustecer a instrução, com a comprovação da materialidade e da autoria dos ilícitos,
tornando-se perfeitamente concebível que a cooperação se confirme ainda que não advenha
a condenação de todos os acusados.
De outro lado, como contratante, o Estado se propõe a agir de modo leniente, suave,
brando no exercício de seu poder punitivo. O acordo lhe acarreta a obrigação de reduzir ou
extinguir sanções potencialmente aplicáveis ao infrator confesso. Cabe a ele, por conseguin-
te, o verdadeiro papel de leniente – papel que se justifica na medida em que a brandura pu-
nitiva seja compensada pela obtenção de provas que sustentem a persecução e condenação
de outros infratores.
Em síntese, o acordo de leniência:
2
DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella; MARRARA, Thiago (Orgs.). Lei anticorrupção comentada. Belo Horizonte: Fórum,
2017. p. 196.
296 Thiago Marrara
• D) exige que a Administração Pública não detenha condições de, por si só, desen-
volver com sucesso as atividades instrutórias no curso do processo administrativo
sancionador. Pela sua essência e função, a leniência se harmonizará com o princípio
da moralidade administrativa somente quando duas condições básicas forem com-
binadas: o Estado não dispuser de condições de conduzir a instrução de modo sa-
tisfatório por seus próprios meios e o infrator, que busca a leniência, mostrar-se apto
para entregar provas robustas, aptas a contribuir efetiva e significativamente com a
instrução processual. Na falta dessas condições, não deverá ser celebrado o acordo,
sob pena de se utilizá-lo com a finalidade exclusiva de beneficiar um dos acusados em
detrimento de outros – o que, novamente, representaria desvio da finalidade.3
O acordo de leniência, tal como definido, não se confunde com o conceito mais
amplo de programa de leniência. O termo programa equivale à política de cooperação instru-
tória e abrange diversas fases que ultrapassam em grande medida a vida do mero acordo de
leniência. O programa inclui, portanto:
3
DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella; MARRARA, Thiago (Orgs.). Lei anticorrupção comentada. Op. cit., p. 196-198.
Acordo de leniência na Lei Anticorrupção 297
4
DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella; MARRARA, Thiago (Orgs.). Lei anticorrupção comentada. Op. cit., p. 211-212.
298 Thiago Marrara
Em dois dispositivos específicos, referida lei previu a leniência para os ilícitos de corrupção
(art. 16) e a possibilidade de sua extensão para ilícitos licitatórios (art. 17). Em 2015, esses
dispositivos foram regulamentados pelo Decreto Presidencial n. 8.420, bem como pela Por-
taria CGU n. 901. Em 2016, finalmente, editou-se a Portaria CGU/AGU n. 2.278, tratando de
cooperação interorgânica na negociação e celebração do acordo, posteriormente substituída
pela Portaria Conjunta n. 4, datada de 09 de agosto de 2019.
Em breve resumo, a Lei Anticorrupção, após enumerar os atos ilícitos nela tratados
(art. 5º) e da responsabilidade objetiva civil e administrativa por sua prática,5 prevê normas
gerais sobre o acordo de leniência aplicáveis aos três entes da federação brasileira. O art.
16 da Lei Anticorrupção, especificamente, cuida: (i) da autoridade competente para celebrar
o acordo de leniência; (ii) dos sujeitos que dele podem se beneficiar; (iii) das obrigações
principais dos contratantes; (iv) dos requisitos para celebração; (v) dos benefícios do acordo
no processo administrativo em que ele se integra; (vi) da ausência explícita de imunização
contra medidas de reparação civil; (vii) da possibilidade de extensão do acordo ao grupo
econômico de fato e de direito; (viii) da publicidade do acordo; (ix) de alguns efeitos da ne-
gociação frustrada; (x) da vedação de celebração de nova leniência por um triênio em caso
de acordo descumprido e (xi) do efeito da celebração em relação a prazos prescricionais.
5
Se condenada no processo administrativo acusatório por corrupção, a pessoa jurídica poderá sofrer duas san-
ções: (i) multa sancionatória, cuja intensidade variará de 0,1 a 20% de seu faturamento anual, descontados
tributos, e que jamais poderá ser inferior à vantagem auferida quando for possível mensurá-la, nem excluirá a re-
paração civil e/ou (ii) a publicação da decisão condenatória nos meios de comunicação, na entidade e na internet,
medida que persegue de modo evidente o intuito de expor o infrator e submetê-lo a eventuais “sanções indiretas”
por parte de investidores, consumidores, concorrentes e outros agentes sociais e econômicos. Trata-se, pois, da
sanção de admoestação pública.
Acordo de leniência na Lei Anticorrupção 299
• A redução em até dois terços da multa administrativa, a qual, nos termos da Lei
Anticorrupção, varia de 0,1% a 20% do faturamento bruto anual, excluídos os tribu-
tos, do último exercício anterior ao da instauração do processo ou, quando não for
possível identificar o faturamento, de seis mil reais a sessenta milhões de reais (art.
6º, II e §4º). Isso significa que, para conceder o benefício, a Administração terá que
condenar o colaborador e fixar sua multa-base, aplicando em seguida o fator percen-
tual redutor. Como se sustentou alhures,6 da maneira como ficou disciplinado na Lei
Anticorrupção, o benefício de redução da multa se mostra bastante problemático. Em
primeiro lugar, a lei deixou de fazer uma importante distinção entre a leniência prévia
e a leniência concomitante ao processo. Para a leniência prévia, seria ideal que se
garantisse um benefício maior que o da concomitante, já que o infrator confessa algo
desconhecido pelo Estado. Todavia, o legislador ignorou essa distinção e, ao igualar o
benefício, acabou por criar um regime legal que desestimula a cooperação anterior à
abertura do processo administrativo. Em segundo lugar, ao tratar da redução da multa,
a despeito do momento da leniência, a lei somente prevê um teto de redução (2/3),
sem a garantia de qualquer mínimo. Nesse contexto, para que se confira segurança
jurídica ao colaborador e se estimule a boa-fé da Administração,7 é preciso que o
acordo contenha cláusula que: a) ou preveja exatamente o percentual da redução pelo
6
MARRARA, Thiago. Acordos de leniência no processo administrativo brasileiro: modalidades, regime jurídico e
problemas emergentes. Revista Digital de Direito Administrativo, v. 2, n. 2, 2015. p. 521-522.
7
Preleciona Bacellar Filho que “o cidadão, ao dar início às solenidades que antecedem o exercício de uma atividade
lícita e ao empenhar-se moral e financeiramente com o projeto dela decorrente, tem, de acordo com o princípio
da juridicidade, a certeza de um direito. A certeza do direito representa, pois, para o cidadão, uma visão confiante
e antecipada do acolhimento de seu desejo ou de sua pretensão, uma vez cumpridos os requisitos exigidos
[...]” (BACELLAR FILHO, Romeu Felipe; MARTINS, Ricardo Marcondes. Tratado de direito administrativo: ato
administrativo e procedimento administrativo. v. 5. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2014. p. 537.). Em sentido
semelhante, ensina Bandeira de Mello que “a essência do Direito é firmar previamente os efeitos que associará
aos comportamentos tais ou quais [...] a ordem jurídica constitui uma prévia rede de segurança para a conduta
dos indivíduos, afastando liminarmente qualquer imprevisto ou surpresa que poderia lhes advir se não existisse
essa preliminar notícia sobre o alcance de sua atuação futura”. E arremata: “a própria possibilidade de o Direito se
realizar depende, às completas, de que exista a certeza, a segurança de que um prévio comportamento ocorrerá
na hipótese de uma conduta ser tal ou qual” (MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Estado de direito e segurança
300 Thiago Marrara
jurídica. In: VALIM, Rafael; OLIVEIRA, José Roberto Pimenta; DAL POZZO, Augusto Neves (Orgs.). Tratado sobre o
princípio da segurança jurídica no direito administrativo. Belo Horizonte: Fórum, 2013. p. 41).
8
Essa possibilidade de mensuração do benefício no momento de julgamento existe no âmbito do processo con-
correncial. Em relação à Lei Anticorrupção, porém, há autores que descartam essa possibilidade e entendem que
o percentual de 2/3 de redução da pena previsto na lei é fixo. Nesse sentido, Heinen aduz que: “os benefícios
à pessoa jurídica, definidos no §2º do art. 16, são vinculados, ou seja, não podem ser sonegados quando en-
tabulado o acordo e cumpridas as suas cláusulas [...] A lei brasileira não deu margem ao Poder Público poder
negociar os benefícios em caso de colaboração posta a efeito pelo acusado” (HEINEN, Juliano. Comentários à Lei
Anticorrupção: Lei n. 12.846/2013. Belo Horizonte: Fórum, 2015. p. 243).
9
Em detalhes sobre o benefício da menor pena no direito concorrencial, cf. MARRARA, Thiago. Sistema brasileiro
de defesa da concorrência: organização, processos e acordos administrativos. São Paulo: Atlas, 2015. p. 355-
356.
Acordo de leniência na Lei Anticorrupção 301
que se garanta a utilidade da leniência, para que seus benefícios sejam reais e efe-
tivos, é preciso interpretar referidos mandamentos em sentido lógico e teleológico.
Conquanto o art. 16 não o diga, a leniência impõe uma imunidade também contra a
medida prevista no art. 19, inc. III.10 Se não for assim, de nada adiantará o benefício
quanto ao inc. IV. O que a leniência não poderá incluir em hipótese alguma como
benefício civil será a imunidade em relação à reparação de danos causados ao Estado
ou a terceiros. O acordo não se presta ao proibir indenizações civis ao Estado ou a
terceiros por expressa vedação legal (art. 16, §3º), nem pode conter cláusulas sobre
indenizações civis por falta legitimidade ao Estado para representar particulares nesse
âmbito. Ademais, é bastante questionável que se possa fazer arbitramento de danos
civis no momento de celebração da leniência já que o acordo precede a instrução e,
por óbvio, a decisão administrativa final que aponta se há ou não danos e qual sua
extensão.
No regime jurídico em exame, como se viu, notam-se muitas falhas e lacunas que,
em última instância, afetam a previsibilidade, a segurança jurídica e, pior, a atratividade do
programa de leniência.
A uma, a Lei Anticorrupção ignora o papel das pessoas físicas, ou seja, não há pre-
visão de participação dessas pessoas no acordo – lacuna que, em última instância, acaba
por tornar o programa menos atrativo, na medida em que coloca a pessoa física (como o
administrador diretamente responsável pela corrupção praticada pela empresa) em situação
de alta vulnerabilidade, sobretudo no âmbito penal.
A duas, mesmo para a pessoa jurídica infratora que decide colaborar com o Estado,
o regime de leniência não garante uma imunização ampla em relação a todas as sanções
previstas na Lei Anticorrupção. Conquanto celebre o acordo e o cumpra integralmente, ne-
nhuma mitigação atingirá grande parte das sanções civis (previstas no art. 19).11 Além
disso, a Lei não trata de possibilidade de arbitramento de danos no acordo, ainda que, na
prática, alguns acordos tenham previsto cláusulas a respeito do perdimento de bens e do
pagamento de indenizações.
10
MARRARA, Thiago. Acordos de leniência no processo administrativo brasileiro: Op. cit., p. 522.
11
As sanções civis, dependentes de condução de ação civil pública ajuizada pela entidade lesada ou pelo Ministério
Público, consistem em reparação do dano; perdimento de bens e valores; suspensão de atividades econômicas;
dissolução da pessoa jurídica (apenas nos casos listados na lei); proibição de incentivos, doações, empréstimos
públicos etc. No processo judicial, também poderão ser aplicadas as duas sanções administrativas previstas na
Lei, caso a entidade pública competente para punir o infrator não tenha agido.
302 Thiago Marrara
Em certa medida, por conta das várias falhas e lacunas do regime jurídico da leniên-
cia na Lei Anticorrupção – problemas que comprovam a ignorância do legislador em relação
aos avanços e estudos que já existiam na época a respeito da leniência concorrencial – bus-
12
Por um critério temporal, o acordo de leniência pode ser prévio ao processo administrativo, concomitante ou
secundário. A modalidade prévia designa o acordo celebrado antes que o poder público tenha conhecimento da
infração administrativa. Previamente à abertura do processo ou de seus procedimentos preparatórios, um dos
infratores busca a cooperação e celebra a leniência que então dará origem ao processo sancionador. Por gerar
elevado benefício ao Estado e representar uma colaboração “mais” espontânea, esse tipo de leniência resulta,
em muitos ordenamentos, em maiores benefícios ao colaborador. Quando a leniência é firmada ao longo do pro-
cesso, fala-se então de um acordo concomitante. O infrator já se encontra na posição de acusado e, para mitigar
as sanções que lhe podem atingir, recorre à cooperação pela via da leniência. Nesta hipótese, como o Estado já
dispõe de informações básicas de autoria e materialidade, a leniência “vale menos”, gera menores benefícios ao
colaborador. Daí se entende que, ao diferenciar os benefícios da leniência concomitante em relação à modalidade
prévia, o legislador promove uma “corrida pela leniência”, aumenta o clima de desconfiança entre os infratores
e desestabiliza as relações entre eles. Apesar dessa vantagem, a Lei Anticorrupção brasileira ignorou a distinção
e não registrou a obrigatoriedade de se concederem benefícios diferenciados conforme o momento da leniência.
Referida lacuna tenderá a desestimular os acordos prévios, levando o infrator a esperar a abertura do processo
administrativo para avaliar a utilidade da colaboração. Além da leniência prévia e da concomitante, é possível
falar de uma leniência secundária ou tardia. Trata-se de um acordo igualmente concomitante ao processo, mas
que é celebrado após uma primeira leniência no mesmo processo administrativo. Em alguns ordenamentos, a
leniência secundária é vedada por força da regra first come, first serve, a qual foi igualmente consagrada na Lei
Anticorrupção. Por conseguinte, somente o primeiro que se qualificar para colaborar estará autorizado a celebrar
o acordo. Em outros modelos, aceita-se a leniência secundária ou tardia, mas se conferem menores vantagens ao
colaborador, criando-se um sistema de benefícios em cascata pelo qual a quantidade de vantagens ao colaborador
se reduz conforme a quantidade de leniências aumenta. Existe ainda um terceiro modelo, referente à leniência
plus, adotado no âmbito do direito concorrencial brasileiro, mas sem previsão na política de combate à corrup-
ção. Aqui, a leniência secundária poderá ser celebrada em um processo que já conta com um colaborador, mas
desde que o segundo colaborador apoie as atividades de instrução neste primeiro processo e, adicionalmente,
traga informações sobre uma nova infração desconhecida pela Administração Pública. A leniência plus pode ser
chamada de leniência dúplice, uma vez que congrega uma leniência concomitante no processo em curso e uma
leniência prévia para a nova infração confessada.
Acordo de leniência na Lei Anticorrupção 303
cou-se modificar o regime jurídico descrito por meio de uma Medida Provisória, igualmente
mal debatida e preparada. Apesar de ter perdido vigência por falta de conversão em lei no
prazo constitucional, a MP n. 703, de 18 de dezembro de 2015 modificou brevemente inú-
meros dispositivos da Lei Anticorrupção e, para o regime da leniência, de modo especial,
trouxera as significativas mudanças ao art. 16.
Em primeiro lugar, a MP tentou extirpar a regra do first come, first serve (art. 16, §1º,
I), de acordo com a qual somente uma pessoa jurídica está autorizada a celebrar o acordo
em cada processo administrativo. Para garantir a celebração, a pessoa jurídica necessita
ser a primeira a se qualificar perante a Administração. Ao afastar essa regra, a MP buscava
impedir o efeito de bloqueio que uma leniência gerava para outros infratores interessados.
Isso tornaria possível celebrar múltiplas leniências no mesmo processo. Se aprovada, essa
nova sistemática quebraria o estímulo à “corrida pela leniência” e esvaziaria o próprio sentido
do processo punitivo.
Em segundo lugar, ao possibilitar múltiplas leniências, a MP teve que necessariamen-
te alterar o sistema de benefícios e isso ocorrerá pela diferenciação das vantagens dadas ao
primeiro infrator-colaborador (maiores) e aquelas conferidas aos subsequentes (menores).
A diferenciação, hoje revogada, tentava salvar um pouco do efeito da “corrida” pelo acordo,
já que o primeiro receberia mais prêmios que os colaboradores tardios.
Em terceiro lugar, também de modo a facilitar a posição do infrator interessado no
acordo, a MP retirava da lei a necessidade de confissão do ato de corrupção (art. 16, §1º,
II). Isso colocava o colaborador em situação mais confortável e reduzia sua vulnerabilidade,
ou melhor, os riscos de punição e de responsabilização em outras esferas – fator que, em
última instância, tornava o programa de leniência muito mais atrativo. Na prática, porém, a
confissão é essencial e constitui requisito lógico da leniência. Afinal, é o fato de o colabora-
dor ser ele mesmo um dos infratores que lhe dá legitimidade para atuar ao lado do Estado
como um fornecedor confiável de provas.
Em quarto lugar, a MP ampliou de modo extremamente significativo as vantagens
decorrentes do cumprimento do acordo,13 por exemplo, ao beneficiar o infrator-colaborador
contra sanções na esfera licitatória, inclusive as de caráter pecuniário, e por permitir que o
13
Para se constatar essa ampliação, basta verificar a redação que o art. 16, §2º havia assumido por conta da
MP n. 703: “§2º O acordo de leniência celebrado pela autoridade administrativa: (Redação dada pela Medida
provisória n. 703, de 2015): I – isentará a pessoa jurídica das sanções previstas no inciso II do caput do art. 6º
e das sanções restritivas ao direito de licitar e contratar previstas na Lei n. 8.666, de 21 de junho de 1993, e em
outras normas que tratam de licitações e contratos; (Incluído pela Medida provisória n. 703, de 2015); II – poderá
reduzir a multa prevista no inciso I do caput do art. 6º em até dois terços, não sendo aplicável à pessoa jurídica
qualquer outra sanção de natureza pecuniária decorrente das infrações especificadas no acordo; e (Incluído pela
Medida provisória n. 703, de 2015); III – no caso de a pessoa jurídica ser a primeira a firmar o acordo de leniência
sobre os atos e fatos investigados, a redução poderá chegar até a sua completa remissão, não sendo aplicável à
pessoa jurídica qualquer outra sanção de natureza pecuniária decorrente das infrações especificadas no acordo.”
(Incluído pela Medida provisória n. 703, de 2015).
304 Thiago Marrara
14
Isso se vislumbrava na redação modificada do art. 16, §4º: “O acordo de leniência estipulará as condições neces-
sárias para assegurar a efetividade da colaboração e o resultado útil do processo administrativo e quando estipular
a obrigatoriedade de reparação do dano poderá conter cláusulas sobre a forma de amortização, que considerem
a capacidade econômica da pessoa jurídica.” (Redação dada pela Medida provisória n. 703, de 2015, mas não
convertida).
Acordo de leniência na Lei Anticorrupção 305
• A relativização da regra do “first come, first serve”. De acordo com o art. 30 do De-
creto n. 8.420, “a pessoa jurídica que pretenda celebrar acordo de leniência deverá:
I – ser a primeira a manifestar interesse em cooperar para a apuração de ato lesivo
específico, quanto tal circunstância for relevante”. O trecho final dá a entender que,
a critério da autoridade pública, em juízo de conveniência e oportunidade, será lícito
celebrar várias leniências no mesmo processo administrativo. Da forma como posta,
a norma autorizativa viola inequivocamente o texto legal, que permite uma única le-
niência para pessoas jurídicas em cada processo administrativo de responsabilização.
Além de inconstitucional, por exorbitar o poder de regulamentação previsto no art. 84,
IV, da Constituição da República, a norma poderá chancelar violações ao princípio da
impessoalidade e ao princípio da moralidade, uma vez que não prevê critérios transpa-
rentes para a aceitação de leniências adicionais, diferentemente do que se vislumbra
na legislação concorrencial a respeito da leniência plus.15
15
A respeito da leniência plus no direito concorrencial, cf. MARRARA, Thiago. Sistema brasileiro de defesa da
concorrência: Op. cit., p. 373.
306 Thiago Marrara
fatos tenham sido notificados por meio do acordo de leniência”. Essa norma, em
verdade, inova o ordenamento jurídico e parece violar o art. 8º, caput e §2º, bem
como o art. 9 da Lei Anticorrupção. Esses dispositivos respectivamente: (a) preveem
a competência da entidade lesada para condução do PAR; (b) reconhecem competên-
cia concorrente da CGU para instaurar o PAR apenas no âmbito do Poder Executivo
federal ou para avocar os processos instaurados com fundamento nesta lei, somente
para exame de sua regularidade ou para lhes corrigir o andamento e (c) conferem
competência exclusiva à CGU para conduzir processos relativos a ilícitos praticados
contra a administração pública estrangeira. É de duvidosa constitucionalidade a nor-
ma infralegal que, no intuito de regulamentar, retira a competência das entidades le-
sadas para conduzir o PAR, nos termos do art. 8º, caput, da Lei Anticorrupção, ainda
que ele tenha se iniciado em razão de provas ofertadas pelo infrator colaborador no
programa de leniência.
• A extensão dos benefícios. A Portaria Conjunta n. 04, não bastasse ter estendido
indevidamente os requisitos do programa de leniência, também ampliou sem respaldo
na lei os benefícios gerados pelo cumprimento do programa. Nos termos de seu art.
12, “A celebração do acordo de leniência poderá: I - isentar a pessoa jurídica das
sanções previstas no inciso II do art. 6º e no inciso IV do art. 19 da Lei n. 12.846, de
2013; II - reduzir em até dois terços, nos termos do acordo, o valor da multa aplicável,
prevista no inciso I do art. 6º da Lei n. 12.846, de 2013; e III - isentar ou atenuar, nos
termos do acordo, as sanções administrativas ou cíveis aplicáveis ao caso”. Ora,
nesse dispositivo final, a Portaria, sem base na lei, permite que a comissão de nego-
ciação, a seu critério exclusivo, ofereça benefícios para determinados colaboradores
que não tenham qualquer fundamento legal e deixe de ofertá-los a outros. A norma é
exorbitante do poder regulamentar, além de violar os princípios da impessoalidade e
da moralidade.
16
MARRARA, Thiago. Sistema brasileiro de defesa da concorrência: Op. cit., p. 339-341.
310 Thiago Marrara
bem como pela punição precisa diante de descumprimento; e (iii) oferecer benefícios efeti-
vos ao infrator colaborador, de sorte a compensá-lo pelos riscos da cooperação instrutória.17
REFERÊNCIAS
BACELLAR FILHO, Romeu Felipe; MARTINS, Ricardo Marcondes. Tratado de direito administrativo: ato
administrativo e procedimento administrativo. v. 5. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2014.
BRASIL. CGU. Acordo de leniência com a Odebrecht prevê ressarcimento de 2,7 bilhões. 2018. Dispo-
nível em: encurtador.com.br/mwxI0. Acesso em: 3 jul. 2020.
COSTA, Marcos da; MENEZES, Paulo Lucena; MARTINS, Rogério Gandra da Silva (Org.). Direito con-
correncial: aspectos jurídicos e econômicos: comentários à Lei8.884/94 e estudos doutrinários. Rio de
Janeiro: América Jurídica, 2003.
DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella; MARRARA, Thiago (Orgs.). Lei anticorrupção comentada. Belo Hori-
zonte: Fórum, 2017.
HEINEN, Juliano. Comentários à Lei Anticorrupção: Lei 12.846/2013. Belo Horizonte: Fórum, 2015.
MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Estado de direito e segurança jurídica. In: VALIM, Rafael; OLIVEIRA,
José Roberto Pimenta; DAL POZZO, Augusto Neves (Orgs.). Tratado sobre o princípio da segurança
jurídica no direito administrativo. Belo Horizonte: Fórum, 2013.
STETNER, Renato Parreira. Artigos 35-B e 35-C. In: COSTA, Marcos da; MENEZES, Paulo Lucena;
MARTINS, Rogério Gandra da Silva (Orgs.). Direito concorrencial: aspectos jurídicos e econômicos:
comentários à Lei 8.884/94 e estudos doutrinários. Rio de Janeiro: América Jurídica, 2003.
VALIM, Rafael; OLIVEIRA, José Roberto Pimenta; DAL POZZO, Augusto Neves (Orgs.). Tratado sobre o
princípio da segurança jurídica no direito administrativo. Belo Horizonte: Fórum, 2013.
17
Nesse sentido, cf. também: STETNER, Renato Parreira. Artigos 35-B e 35-C. In: COSTA, Marcos da; MENEZES,
Paulo Lucena; MARTINS, Rogério Gandra da Silva (OrgS.). Direito concorrencial: aspectos jurídicos e econômi-
cos: comentários à Lei n. 8.884/94 e estudos doutrinários. Rio de Janeiro: América Jurídica, 2003. p. 313.
Um olhar substancialmente federativo das
compras públicas no Brasil
SUMÁRIO: 1 Introdução: O que sobra para estados e municípios em matéria de normatização de li-
citações e contratos administrativos? 2 A eficácia vinculante da “jurisprudência” dos órgãos de controle
federais; 3 Por um “giro hermenêutico” no direito administrativo dos estados e municípios; Referências.
1
Nesse sentido, vide entendimento do STF sufragado na ADI n. 4.658/PR: “Esta Corte já assentou o entendimento
de que assiste aos Estados competência suplementar para legislar sobre licitação e contratação, desde que
respeitadas as normas gerais estabelecidas pela União” (BRASIL. STF. ADI 4658. Relator(a): Min. Edson Fachin,
Tribunal Pleno, julgado em 25/10/2019, Processo Eletrônico Dje-245 Divulg 08-11-2019 Public 11-11-2019).
312 Victor Aguiar Jardim de Amorim
2
Nesse sentido, vide a previsão constante no §3º do art. 1º do Decreto Federal n. 10.024/2019 referente à obri-
gatoriedade de adoção da forma eletrônica da modalidade pregão por Estados, Municípios e Distrito Federal
para contratações com recursos da União repassados aos referidos entes subnacionais a título de transferências
voluntárias. Indo além da competência conferida pelo art. 52 do mencionado decreto, o Secretário de Gestão da
Secretaria Especial de Desburocratização, Gestão e Governo Digital do Ministério da Economia editou a Instrução
Normativa n. 206, de 18 de outubro de 2019, estabelecendo não apenas os prazos para os entes subnacionais uti-
lizarem o pregão eletrônico, veiculando, ainda, comando de observância estrita das regras procedimentais fixadas
no regulamento federal. Compreende-se que tal postura de imposição das regras do procedimento federal cons-
titui violação à autonomia de gestão dos entes subnacionais. O fato é que na forma federada de Estado, adotada
pela Constituição pátria (art. 1º e 18), é inerente à autonomia de cada um dos entes a competência para legislar
sobre normas relativas à sua administração, ressalvados os casos previstos de forma diversa na Constituição.
Não se diga que se trata de uma regra da União cuja adesão dos demais entes federados é uma opção. É sabido
que diversos Estados e Municípios brasileiros são dependentes dos recursos federais decorrentes de transferên-
cias voluntárias, o que significa dizer que tais entes não terão alternativa. Além disso, o repasse de recursos entre
os entes da federação ocorre dentro de um contexto de uma atuação coordenada voltada para a cooperação nos
exercícios dos respectivos misteres, e não numa espécie de liberalidade do ente federal, o que lhe daria plenos
poderes para fazer exigências aos destinatários dos recursos. Há de se ressaltar, ainda, que a obrigatoriedade
de obediência ao procedimento previsto no Decreto n. 10.024/2019 cria um ambiente de grande complexidade
jurídica nas áreas de licitação e contrato dos entes estaduais, municipais e distritais, que ora se verão obrigados
a obedecer às suas normas e ora estarão submissos ao regulamento federal. Sendo que tal complexidade não
será sentida apenas internamente, pois, no âmbito externo, o mercado também sentirá as dificuldades inerentes à
variação normativa dos certames realizados.
3
HABERMAS, Jürgen. Teoria do agir comunicativo: sobre a crítica da razão funcionalista. v. 2. São Paulo: Martins
Fontes, 2012. p. 675-676.
Um olhar substancialmente federativo das compras públicas no Brasil 313
4
Para tanto, vide o tópico “Sistematização dos entendimentos doutrinários” na obra de: CARMONA, Paulo Afonso
Cavichioli. Das normas gerais: alcance e extensão da competência legislativa concorrente. Belo Horizonte: Fórum,
2010. p. 57-58.
5
A Lei de Licitações do Estado da Bahia (Lei Estadual n. 9.433/2005), em seu art. 78, com originalidade, inverteu a
sequência procedimental das modalidades concorrência, tomada de preços e convite então estabelecida na Lei n.
8.666/1993, preconizando que, inicialmente, proceder-se-ia a abertura dos envelopes contendo as propostas de
preços e, posteriormente, a abertura dos envelopes de habilitação apenas dos “três primeiros lugares”. Entende-
mos que não há qualquer vício em tal previsão, tendo em vista tratar-se de regulamentação específica apenas no
tocante ao procedimento em si, mantendo-se a disciplina afeta às modalidades e tipos de licitação estabelecidos
na Lei n. 8.666/1993.
6
Como destaque, vide a previsão contida no art. 45 da Lei Estadual n. 15.608/2007 que insere na possibilidade
de uso da modalidade pregão as “obras comuns”, compreendendo, como densificação do comando “serviços
314 Victor Aguiar Jardim de Amorim
Não obstante o extrapolamento das raias das normas “federais” tratada no tópico
anterior, a dependência é reforçada pela adoção acrítica da interpretação que se faz das
normas advindas da União. Não raro, a “gestão pública” realizada nos Estados e Municípios
se dá com base na “jurisprudência” do Tribunal de Contas da União e nos entendimentos da
Advocacia-Geral da União e da Controladoria-Geral da União.
Talvez o ponto mais sensível a se discutir no presente tópico seja a intensidade e a
relevância da “jurisprudência” do TCU na formação da vontade e aplicação do Direito por
parte dos agentes públicos, em especial os estaduais e municipais.
É assaz comum verificarmos nas petições de recursos administrativos, nas decisões
de comissões de licitação, de pregoeiros e nos despachos de autoridades argumentos e
motivações que, a rigor, representam a “jurisprudência” do TCU sobre determinada matéria,
como se a citação de um único acórdão ou julgado apenas fosse suficiente para caracterizar
um entendimento apriorístico, uníssono, consolidado e definitivo da corte de contas.
Dessa forma, fica nítido que a resolução da lide administrativa é vencida por aquele
que apresenta o julgado que melhor se “encaixa” ao caso em discussão, ignorando, muitas
vezes, a literalidade da lei, os ensinamentos doutrinários e a indissociabilidade do elemento
interpretativo na aplicação da norma (legal ou administrativa). Aliás, tal prática não se limi-
ta apenas ao âmbito federal, porquanto, salvo reduzidas exceções, os tribunais de contas
estaduais e também os municipais tendem a reproduzir o “entendimento” do TCU. Tem-se,
comuns” constante da Lei n. 10.520/2002, as obras de engenharia que venham a apresentar “padrões de desem-
penho e qualidade possam ser objetivamente definidos no edital com base nas especificações usuais praticadas
no mercado”. Em sentido contrário, no intento de positivar certo entendimento do TCU sobre o tema, o art. 4º,
I, do Decreto Federal n. 10.024/2019 exclui estabelece que o “pregão, na forma eletrônica, não se aplica a con-
tratações de obras”.
7
Art. 29 da Lei Complementar n. 108/2018: “Em licitações para aquisição de produtos para merenda escolar, a
Administração pública estadual deverá utilizar preferencialmente a modalidade do pregão presencial”.
8
Art. 49 da Lei Municipal n. 61/2009: “Art. 49. Em licitações para aquisição de produtos para merenda escolar,
destacadamente aqueles de origem local, a Administração Pública Municipal deverá utilizar preferencialmente a
modalidade do pregão presencial”.
Um olhar substancialmente federativo das compras públicas no Brasil 315
9
Ao emplacar em todos os julgados do TCU um efeito vinculante (inclusive dos próprios motivos determinantes),
estamos, nas palavras de Lenio Streck e Georges Abboud, dando respostas antes mesmo das perguntas. Afinal,
“texto e norma não são a mesma coisa. Somente os fundamentos da decisão possuem força vinculante. O
dictum é apenas uma observação ou uma opinião. Mas o mais importante a dizer é que os precedentes são
“feitos” para decidir casos passados; sua aplicação em casos futuros é incidental. Tudo isso pode ser resumido
no seguinte enunciado: precedentes são formados para resolver casos concretos e eventualmente influenciam
decisões futuras: as súmulas (ou os ementários em geral, coisa muito comum em terrae brasilis), ao contrário,
são enunciados “gerais e abstratos” — características presentes na lei — que são editados visando à “solução
de casos futuros” [...] Quem faz uma ementa e dela se serve de forma atemporal e a-histórica está igualando texto
e norma, lei e direito. Trata-se de uma pretensão com viés anti-hermenêutico. E por que é anti-hermenêutico?
Porque a hermenêutica é exatamente a construção para demonstrar que é impossível ao legislador antever todas
as hipóteses de aplicação” (STRECK, Lenio Luiz; ABBOUD, Georges. O que é isto – o precedente judicial e as
súmulas vinculantes? Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2013. p. 31).
10
Sob o prisma histórico, é salutar registrar a existência de discussão seminal no âmbito do TCU acerca da
abrangência e dos limites da suposta competência normativa da Corte prevista no §2º do art. 79 do Decre-
to-Lei 2.300/1986, a norma geral sobre licitações e contratos administrativo revogada posteriormente pela Lei
8.666/1993. Tal previsão foi discutida pelo Plenário do TCU em sessão no dia 13/8/1987, no bojo do Processo TC
316 Victor Aguiar Jardim de Amorim
2.084/1987, referente a um grupo de trabalho constituído “com a finalidade de proceder a imediatos estudos re-
lativos ao Decreto-lei n. 2.300”. Em seu voto, expôs o ministro Ivan Luz: “[...] Em nenhum momento ao legislador
constitucional ocorreu a hipótese de atribuir ao Tribunal de Contas funções regulamentadoras das leis, ‘instruções
complementares’ a estas. Não lhe compete, desenganadamente, normatizar ‘procedimentos licitatórios’ ou maté-
ria relativa a ‘contratos administrativos’. O que lhe cabe, isso sim, é, no exercício de suas funções jurisdicionais,
interpretar as normas que regulam as atividades da administração federal para realizar o controle de legalidades de
seus atos e o julgamento, conseqüente, da regularidade das contas dos administradores e demais responsáveis
por bens, dinheiros e valores públicos [...] Em conclusão e pelos motivos expostos, não me parece deva o Tribunal
expedir as instruções complementares de que trata o §2º do art. 79 do Decreto-lei n. 2.300, de 21 de novembro de
1986” (disponível em: http://bibliotecadigital.fgv.br/ojs/index.php/rda/article/viewFile/45592/43997).
11
Para maiores aprofundamentos sobre a questão, sugerimos o fundamental artigo de Fernando Vernalha Guima-
rães intitulado “O Direito Administrativo do Medo: a crise da ineficiência pelo controle”, publicado na revista Direito
do Estado, edição 71, ano 2016 (BRASIL. TCU. Estudos sobre o Decreto-lei n. 2.300/86. Processos n. 2.084/87,
6.616/87-9 e 8.574/86-3. R. Dir. Adm., Rio de Janeiro, v. 169, p. 177-186, jul./set. 1987. Disponível em: http://
www.direitodoestado.com.br/colunistas/fernando-vernalha-guimaraes/o-direito-administrativo-do-medo-a-crise-
-da-ineficiencia-pelo-controle. Acesso em: 3 jul. 2020).
12
Acerca dos efeitos deletérios da incorporação apressada e descontextualizada dos julgados do TCU, vide artigo
de minha autoria publicado no Conjur: AMORIM, Victor A. J. de. Julgados do TCU em matéria de licitações
e contratos não são jurisprudência. Consultor Jurídico, abr. 2018. Disponível em: https://www.conjur.com.br/
2018-abr-17/vitor-amorim-julgados-tcu-nao-sao-jurisprudencia. Acesso em: 3 jul. 2020.
Um olhar substancialmente federativo das compras públicas no Brasil 317
E onde estão os Tribunais de Contas Estaduais e Municipais13 14? Será que o enun-
ciado da Súmula n. 222 do TCU15 soterrou completamente a independência criativa de tais
Cortes? Muitos dirão: estão atolados em casos de corrupção e no proselitismo político! Mas,
e aí? Vamos jogar a criança fora junto com a água suja?
13
Registre-se, em caráter alvissareiro, a postura altiva de alguns Tribunais de Contas Estaduais como o TCE-MG e
o TCE-PR, em especial no que tange ao entendimento quanto à possibilidade de realização de licitação exclusiva
para microempresas e empresas de pequeno porte, sediadas em determinado local ou região, em observância
aos objetivos estabelecidos no art. 47 da Lei Complementar n. 123/2006. Para tanto, vide Prejulgado n. 27 do
TCE-PR: “É possível, mediante expressa previsão em lei local ou no instrumento convocatório, realizar licitações
exclusiva à microempresas e empresas de pequeno porte, sediadas em determinado local ou região, em virtude
da peculiaridade do objeto a ser licitado ou para implementação dos objetivos propostos no art. 47, Lei Comple-
mentar n. 123/2006, desde que, devidamente justificado” (PARANÁ. TCE-PR. Prejulgado n. 27. Tribunal Pleno.
Relator: Cons. Artagão de Mattos Leão. Sessão Ordinária do Tribunal Pleno n. 26 de 31/07/2019. Publicação:
DETC n. 2130 de 27/08/2019. Disponível em: https://www1.tce.pr.gov.br/multimidia/2019/8/pdf/00339015.pdf.
Acesso em: 3 jul. 2020). No mesmo sentido, apontou o TCE-MG: “Este Tribunal de Contas já se manifestou no
sentido de que a exclusividade na contratação de microempresa ou empresa de pequeno porte sediada local ou
regionalmente, em licitação em que o valor dos itens é inferior a R$80.000,00 (oitenta mil reais), observados os
requisitos legais, encontra amparo no art. 47 da Lei Complementar n. 123, de 2006” (MINAS GERAIS. TCE-MG.
Denúncia n. 1071325. Rel. Cons. Gilberto Diniz. Sessão do dia 29/08/2019. Publicação DOC do dia 26/09/2019).
14
Há que se mencionar o entendimento do TCE-MG a respeito da utilização de “robôs” por parte dos licitantes em
certames eletrônicos, destoando frontalmente da jurisprudência já consolidada do TCU no sentido de reputar
como prática ilícita e afrontosa à isonomia e moralidade o uso de tais ferramentas tecnológicas. Nesse sentido:
“1. Não há nenhum impedimento legal para utilização de robótica em procedimentos da Administração Pública,
especialmente na realização de lances em Pregão Eletrônico. 2. Tratando a questão de processos licitatórios,
a otimização trazida pelo uso da robótica favorece a celeridade e eficiência, princípios caros à Administração
Pública.2. O uso de robô por si só não determina a vitória do licitante” (MINAS GERAIS. TCE-MG. Denúncia n.
1066880. Rel. Cons. Subst. Adonias Monteiro. Sessão do dia 18/06/2019. Publicação DOC do dia 10/07/2019).
15
“As Decisões do Tribunal de Contas da União, relativas à aplicação de normas gerais de licitação, sobre as quais
cabe privativamente à União legislar, devem ser acatadas pelos administradores dos Poderes da União, dos Esta-
dos, do Distrito Federal e dos Municípios”.
318 Victor Aguiar Jardim de Amorim
16
Trata-se de uma referência aos pressupostos de excecionalidade econômica, social e política observados em
Portugal na década de 2000 que promoveram o desenvolvimento de uma “jurisprudência de crise” por seu Tribu-
nal Constitucional. Para tanto, vide: CANOTILHO, M.; VIOLANTE, T.; LANCEIRO, R. Weak rights, strong principles:
social rights in the Portuguese constitutional jurisprudence during the economic crisis. In: CONGRESSO MUNDIAL
DE DIREITO CONSTITUCIONAL: Constitutional Challenges: Global and Local. Workshop 4: Social rights and the
challenges of economic crisis, Associação Internacional de Direito Constitucional, jun./2014, Oslo. Anais [...].
Oslo: s.n., 2014. Disponível em: https://www.jus.uio.no/english/research/news-and-events/events/conferen-
ces/2014/wccl-cmdc/wccl/papers/workshop4.html. Acesso em: 3 jul. 2020.
Um olhar substancialmente federativo das compras públicas no Brasil 319
E a política possui um papel muito mais intenso e ativo nas administrações estaduais
e municipais e tal fenômeno deve ser considerado. Vide, nesse sentido, todos os fatores
políticos que circundam as discussões atinentes ao uso de ferramentas para a promoção do
mercado local e a “retenção” de receitas nos munícipios ou, ainda, a importante compatibi-
lização entre as atividades formais de gestão do sistema educacional e o protagonismo de
associações da comunidade.
Mas, no âmbito federal, a tecnocracia brasiliense parece crer que a “vida” da Admi-
nistração deve ser conduzida de forma neutra, sem qualquer tipo de interferência política.
E, nesse mundo idealizado, valendo-se da utopia discursiva de Ronald Dworkin,19 o gestor
público é visto como o “gestor hércules”.
Daí se pensar que a lei ou os regulamentos, por si só e a priori, devem fazer a gestão
pública. Ora, cabe às normas dotar o gestor do ferramental necessário para que ele tenha
a autonomia necessária, “dentro da lei”, para contextualizar a ação e, assim, se valer da
ferramenta mais adequada para o atendimento efetivo da necessidade pública em questão.
Daí o equívoco político do legislador federal, com os olhos voltados para a realidade
particular da Esplanada dos Ministérios, impor às administrações de todo o país um modo
específico de atuar e a “melhor” solução para resolver os desafios cotidianos enfrentados
pelo gestor. Para tanto, vide o substitutivo do projeto da “nova Lei de Licitações” (PL n.
17
MOUFFE, Chantal. Por un populismo de izquierda. Buenos Aires: Siglo XXI, 2018. p. 32.
18
INNERARITY, Daniel. A política em tempos de indignação. Rio de Janeiro: LeYa, 2017. p. 38-39.
19
DWORKIN, Ronald. Levando os direitos a sério. São Paulo: Martins Fontes, 2002. p. 164-203.
320 Victor Aguiar Jardim de Amorim
REFERÊNCIAS
AMORIM, Victor A. J. de. Julgados do TCU em matéria de licitações e contratos não são jurisprudência.
Consultor Jurídico, abr. 2018. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2018-abr-17/vitor-amorim-
-julgados-tcu-nao-sao-jurisprudencia. Acesso em: 3 jul. 2020.
BRASIL. STF. ADI 4658. Relator(a): Min. Edson Fachin, Tribunal Pleno, julgado em 25/10/2019, Proces-
so Eletrônico Dje-245 Divulg 08-11-2019 Public 11-11-2019.
BRASIL. TCU. Estudos sobre o Decreto-lei n. 2.300/86. Processos n. 2.084/87, 6.616/87-9 e 8.574/86-
3. R. Dir. Adm., Rio de Janeiro, v. 169, p. 177-186, jul./set. 1987. Disponível em: http://www.direito-
doestado.com.br/colunistas/fernando-vernalha-guimaraes/o-direito-administrativo-do-medo-a-crise-
-da-ineficiencia-pelo-controle. Acesso em: 3 jul. 2020.
BRASIL. Câmara dos Deputados. PLS n. 163/95. Redação final do substitutivo da Câmara dos De-
putados ao Projeto de Lei n. 1.292-f de 1995 do Senado Federal. Brasília: Câmara dos Deputados,
20
O texto aprovado, trata-se da Emenda Substitutiva Global n. 01/2019, de relatoria do Deputado Augusto Couti-
nho (BRASIL. Câmara dos Deputados. PLS n. 163/95. Redação final do substitutivo da Câmara dos Deputados
ao Projeto de Lei n. 1.292-f de 1995 do Senado Federal. Brasília: Câmara dos Deputados, 2019. Disponível
em: https://www.camara.leg.br/proposicoesWeb/prop_mostrarintegra;jsessionid=9805D1520BBAB5B05D3F-
CFE620305E39.proposicoesWebExterno2?codteor=1819390&filename=Tramitacao-PL+1292/1995. Acesso
em: 3 jul. 2020).
21
Como exemplo significativo da perspectiva federal do substitutivo aprovado pela Câmara dos Deputados, desta-
ca-se o teor do art. 172: “Art. 172. Os órgãos de controle deverão orientar-se pelos enunciados das súmulas do
Tribunal de Contas da União relativos à aplicação desta Lei, de modo a garantir uniformidade de entendimentos e
a propiciar segurança jurídica aos interessados. Parágrafo único. A decisão que não acompanhar a orientação a
que se refere o caput deste artigo deverá apresentar motivos relevantes devidamente justificados”.
22
SALAMON, Lester M. The new governance ant the tools of public action: an introduction. In: SALOMON, Lester M.
(Coord.). The tools of government: a guide to the new governance. Nova York: Oxford University Press, 2002. p.
11.
23
Vide a relevante obra de: RIBEIRO, Leonardo Coelho. O direito administrativo como “caixa de ferramentas”: uma
nova abordagem da ação pública. São Paulo: Malheiros, 2016.
Um olhar substancialmente federativo das compras públicas no Brasil 321
CANOTILHO, M.; VIOLANTE, T.; LANCEIRO, R. Weak rights, strong principles: Social rights in the Por-
tuguese constitutional jurisprudence during the economic crisis. In: CONGRESSO MUNDIAL DE DI-
REITO CONSTITUCIONAL: Constitutional Challenges: Global and Local. Workshop 4: Social rights and
the challenges of economic crisis, Associação Internacional de Direito Constitucional, jun./2014, Oslo.
Anais [...]. Oslo: s.n., 2014. Disponível em: https://www.jus.uio.no/english/research/news-and-events/
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CARMONA, Paulo Afonso Cavichioli. Das normas gerais: alcance e extensão da competência legislativa
concorrente. Belo Horizonte: Fórum, 2010.
DWORKIN, Ronald. Levando os direitos a sério. São Paulo: Martins Fontes, 2002.
GUIMARÃES, Fernando Vernalha. O direito administrativo do medo: a crise da ineficiência pelo contro-
le. Direito do Estado, edição 71, 2016. Disponível em: http://www.direitodoestado.com.br/colunistas/
fernando-vernalha-guimaraes/o-direito-administrativo-do-medo-a-crise-da-ineficiencia-pelo-controle.
Acesso em: 3 jul. 2020.
HABERMAS, Jürgen. Teoria do agir comunicativo: sobre a crítica da razão funcionalista. v. 2. São Paulo:
Martins Fontes, 2012.
MINAS GERAIS. TCE-MG. Denúncia n. 1071325. Rel. Cons. Gilberto Diniz. Sessão do dia 29/08/2019.
Publicação DOC do dia 26/09/2019.
MINAS GERAIS. TCE-MG. Denúncia n. 1066880. Rel. Cons. Subst. Adonias Monteiro. Sessão do dia
18/06/2019. Publicação DOC do dia 10/07/2019.
MOUFFE, Chantal. Por un populismo de izquierda. Buenos Aires: Siglo XXI, 2018.
PARANÁ. TCE-PR. Prejulgado n. 27. Tribunal Pleno. Relator: Cons. Artagão de Mattos Leão. Sessão
Ordinária do Tribunal Pleno n. 26 de 31/07/2019. Publicação: DETC n. 2130 de 27/08/2019. Disponível
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RIBEIRO, Leonardo Coelho. O direito administrativo como “caixa de ferramentas”: uma nova aborda-
gem da ação pública. São Paulo: Malheiros, 2016.
SALAMON, Lester M. The new governance ant the tools of public action: an introduction. In: SALOMON,
Lester M. (Coord.). The tools of government: a guide to the new governance. Nova York: Oxford Univer-
sity Press, 2002.
STRECK, Lenio Luiz; ABBOUD, Georges. O que é isto – o precedente judicial e as súmulas vinculantes?
Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2013.
Conceito jurídico-positivo de ato de
improbidade administrativa
1 INTRODUÇÃO
1
Sobre a matéria, consultar: FAORO, Raymundo. Os donos do poder: formação do patronato político brasileiro. 3.
ed. São Paulo: Globo, 2001; LEAL, Victor Nunes. Coronelismo, enxada e voto: o município e o regime represen-
tativo no Brasil. 7. ed. São Paulo: Companhia das Letras, 2012.
2
Entenda-se por sistema do Direito Positivo o sistema de normas postas ou reconhecidas pelo Estado, que com-
partilham um mesmo fundamento último de legitimidade (a Constituição), cuja efetividade é garantida pela coação
estatal ou por aquela autorizada pelo Estado.
Anote-se que a Constituição vigente funda o sistema do Direito Positivo brasileiro, sem prejuízo da recepção das
normas jurídicas produzidas sob a vigência das Constituições anteriores e que com aquela sejam naturalmente
compatíveis.
Sobre a matéria, consultar: BOBBIO, Norberto. Teoria generale del Diritto. Turim: G. Giappichelli, 1993; KELSEN,
Hans. Teoria geral das normas. Trad. José Florentino Duarte. Porto Alegre: Sérgio Antônio Fabris, 1986; KELSEN,
Hans. Teoria pura do Direito. 3. ed. Trad. João Baptista Machado. São Paulo: Martins Fontes, 1991; KELSEN,
Hans. Teoria geral do Direito e do Estado. 2. ed. Trad. Luís Carlos Borges. São Paulo: Martins Fontes, 1992; VILA-
NOVA, Lourival. As estruturas lógicas e o sistema do direito positivo. São Paulo: Max Limonad, 1997; VILANOVA,
Lourival. Causalidade e relação no Direito. 4 ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2000.
3
Instaurado pela Constituição da República Federativa do Brasil, promulgada em 5 de outubro de 1988.
324 Vladimir da Rocha França
4
Vide o art. 133, VI, e o art. 179, XXIX, ambos da Constituição do Império do Brasil, outorgada em 25 de março de
1824.
Vide o art. 54, 6º e 7º, e o art. 82, ambos da Constituição da República dos Estados Unidos do Brasil, promulgada
em 24 de fevereiro de 1891.
Vide o art. 57, “f” e “g”, e o art. 171, ambos da Constituição da República dos Estados Unidos do Brasil, promul-
gada em 16 de julho de 1934.
Vide o art. 85, “d”, e o art. 58, ambos da Constituição dos Estados Unidos do Brasil, outorgada em 10 de novem-
bro de 1937.
Vide o art. 89, V e VII, o art. 141, § 31, e o art. 195, parágrafo único, todos da Constituição dos Estados Unidos
do Brasil, promulgada em 18 de setembro de 1946.
Vide o art. 84, V, o art. 105, parágrafo único, o art. 148, II, e o art. 150, § 11, todos da Constituição do Brasil,
outorgada em 24 de janeiro de 1967.
Vide o art. 82, V, o art. 107, parágrafo único, o art. 151, II, e o art. 153, § 11, todos da Constituição da República
Federativa do Brasil, outorgada em 1º de outubro de 1969.
5
Adota-se aqui a distinção entre princípio jurídico e regra jurídica.
A regra jurídica é uma proposição prescritiva dotada da seguinte estrutura lógica: (i) o antecedente, do qual con-
tém a descrição de um evento futuro ou já ocorrido; e, (ii) o consequente, em que há a prescrição de uma relação
ou situação jurídica.
Caso a regra jurídica se refira a evento futuro, a regra será geral; caso haja a descrição de evento já ocorrido,
tem-se uma regra individual.
Contudo, ao invés da descrição de um evento, há no antecedente a referência a um valor a ser efetivado no siste-
ma do Direito Positivo, identificando-se no consequente o dever de preservá-lo ou implantá-lo, está-se diante de
um princípio jurídico.
Sobre a matéria, consultar: FRANÇA, Vladimir da Rocha. Estrutura e motivação do ato administrativo. São Paulo:
Malheiros, 2007.
6
Sobre o princípio da moralidade administrativa, consultar: CAMMAROSANO, Márcio. O princípio constitucional da
moralidade e o exercício da função administrativa. Belo Horizonte: Fórum, 2006.
7
Vide o art. 14, § 9º, da Constituição Federal.
8
Vide o art. 85, V, da Constituição Federal.
Conceito jurídico-positivo de ato de improbidade administrativa 325
9
Os conceitos jurídicos podem ser: (i) jurídico-positivos, quando prescritos expressa ou implicitamente por normas
jurídicas; e, (ii) científico-jurídicos, destinados à descrição dos fenômenos do sistema do Direito Positivo.
Sobre a matéria, consultar: FERRAZ JÚNIOR, Tércio Sampaio. A ciência do Direito. 2. ed. São Paulo: Atlas, 1980;
KELSEN, Hans. Teoria pura do Direito. Op. cit., p. 77-120; VILANOVA, Lourival. As estruturas lógicas e o sistema
do direito positivo. Op. cit.
O modelo (ou regime jurídico) consiste em subsistema do sistema do Direito Positivo que disciplina determinado
10
fenômeno social ou instituição. Em rigor, trata-se de um conjunto de regras jurídicas que giram em torno de
princípios jurídicos específicos.
Sobre a matéria, consultar: MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Curso de direito administrativo. 31. ed. São Paulo:
Malheiros, 2014. p. 53-59; JUSTEN FILHO, Marçal. Curso de direito administrativo. 8. ed. Belo Horizonte: Fórum,
2012. p. 103-107; REALE, Miguel. Fontes e modelos do Direito: para um novo paradigma hermenêutico. São
Paulo: Saraiva, 1999.
11
Sobre a matéria, consultar: REALE, Miguel. Filosofia do Direito. 17. ed. São Paulo: Saraiva, 1996; VILANOVA,
Lourival. As estruturas lógicas e o sistema do direito positivo. Op. cit.; VILANOVA, Lourival. Causalidade e relação
no Direito. Op. cit.
12
Vide o art. 52, I, da Constituição Federal.
Vide os arts. 24 a 38 da Lei Federal n. 1.079/1950.
13
Vide o art. 51, I, da Constituição Federal.
Vide arts. 14 a 23, e o art. 80, todos da Lei Federal n. 1.079/1950.
326 Vladimir da Rocha França
cargo, com inabilitação, por oito anos, para o exercício de função pública, sem prejuízo das
demais sanções judiciais cabíveis.14
Registre-se que os Ministros de Estado15 e os Governadores dos Estados-membros
e do Distrito Federal16 também podem realizar esses atos ilícitos. Os crimes de responsabi-
lidade dos Prefeitos e Vereadores são por sua vez disciplinados no Decreto-lei n. 201, de 27
de fevereiro de 1967.
No âmbito penal, há vários tipos que têm pertinência à tutela da probidade adminis-
trativa.17 Na esfera administrativa, o servidor público federal titular de cargo efetivo18 é puní-
vel com a demissão caso ele realize improbidade administrativa.19 E, a atuação conforme os
padrões éticos de probidade é instituído como critério a ser observado pela Administração
Pública Federal no processo administrativo.20
Mas não há dúvida que o principal diploma legal sobre a matéria é a Lei Federal n.
8.429, de 2 de junho de 1992, editada para disciplinar o art. 37, § 4º, da Constituição Fede-
ral. Esse diploma legal será analisado mais detidamente em tópico posterior.
Por fim, há a previsão de responsabilidade objetiva civil e administrativa de pessoas
jurídicas em razão da prática de atos lesivos à Administração Pública nacional ou estran-
geira, nos termos da Lei Federal n. 12.846, de 1º de agosto de 2013. Observe-se que de
acordo com o seu art. 30, I, as sanções previstas nesse diploma legal não afastam aquelas
constantes da Lei Federal n. 8.429/1992.
O fato jurídico surge a partir da incidência da regra geral que o prevê abstratamente
em seu antecedente, por meio de sua aplicação por meio de uma regra individual.21 Configu-
14
Vide o art. 52, parágrafo único, da Constituição Federal.
Vide o arts. 24 a 38, e o art. 80, todos da Lei Federal n. 1.079/1950.
15
Vide o art. 13, 1 e 2, da Lei Federal n. 1.079/1950.
16
Vide o art. 74 da Lei Federal n. 1.079/1950.
Nesse caso, as competências para o juízo de admissibilidade e para o julgamento são exercidas pela Assembleia
Legislativa, nos termos do art. 25, caput, e do art. 33, caput, ambos da Constituição Federal, e dos arts. 75 a 79
da Lei Federal n. 1.079/1950.
17
Vide os arts. 312 a 337-D do Código Penal.
Vide os arts. 89 a 99 da Lei Federal n. 8.666, de 21 de junho de 1993.
18
Vide o art. 37, caput, I e II, o art. 40 e o art. 41, todos da Constituição Federal.
Vide o art. 3º, o art. 9º, I, e o art. 10, todos da Lei Federal n. 8.112, de 11 de dezembro de 1990.
19
Vide o art. 132, IV, da Lei Federal n. 8.112/1990.
20
Vide o art. 2º, parágrafo único, IV, da Lei Federal n. 9.784, da Lei Federal n. 9.784, de 29 de janeiro de 1999.
21
Sobre a matéria, consultar: CARVALHO, Paulo de Barros. Direito tributário: fundamentos jurídicos da incidência.
2. ed. São Paulo: Saraiva, 1999; FRANÇA, Vladimir da Rocha. Estrutura e motivação do ato administrativo. Op.
cit.; FERRAZ JÚNIOR, Tércio Sampaio. Introdução ao estudo do Direito: técnica, decisão e dominação. 6. ed. São
Paulo: Altas, 2011. p. 238-251.
Conceito jurídico-positivo de ato de improbidade administrativa 327
rado o fato jurídico, o efeito jurídico que se encontra previsto no consequente da regra geral
surge no sistema do Direito Positivo, se devidamente especificado no consequente da regra
individual que a aplicou.
Em rigor, o fato jurídico e o efeito jurídico são, respectivamente, o antecedente e o
consequente de regra jurídica individual.
Os fatos jurídicos serão considerados ilícitos na medida em que sejam antecedentes
de regras individuais sancionadoras, que se destinam por sua vez a aplicação de regras
gerais sancionadoras. Noutro giro: o fato jurídico ilícito é pressuposto para uma sanção
jurídica.
Os fatos jurídicos ilícitos podem ser: (i) fatos jurídicos em sentido estrito ilícitos,
caso se trate da descrição de evento que não seja uma conduta humana; (ii) ato-fato jurídico
ilícito, se o evento descrito constitui uma conduta humana que não seja uma declaração
prescritiva; e, (iii) o ato jurídico ilícito, que representa em verdade um ato jurídico inválido
cuja expedição enseja a punição de seu emissor.22
As sanções jurídicas são basicamente restrições ou privações de bens jurídicos de
quem as sofre. O bem jurídico não tem natureza necessariamente patrimonial, podendo per-
feitamente se encontrar vinculado à personalidade do indivíduo. De todo modo, a expressão
“bem jurídico” deve ser vista como elíptica, pois o que interessa ao Direito é a conduta
humana, e não aquilo sobre o qual ela se projeta. Nesse contexto, quando se restringe ou se
priva alguém em torno de um bem jurídico, restringe-se ou priva-se alguém no exercício de
uma faculdade em face desse bem jurídico.
No Estado de Direito contemporâneo, não basta que a regra jurídica tenha tipificado
o evento como passível de ser descrito como fato jurídico ilícito. É preciso que o evento
efetivamente represente um atentado contra os princípios constitucionais regentes, ou seja,
que seja contrário aos valores jurídicos.
Outro ponto relevante reside na existência de relação social entre o evento que se
quer verter em fato jurídico ilícito e um sujeito de direito. Em outras palavras, que as sanções
que se quer aplicar em razão desse fato sejam imputáveis a um sujeito de direito.
Nesse contexto, a possibilidade de fato jurídico em sentido estrito ilícito se torna cada
vez mais teórica.
Anote-se que há inspiração aqui na teoria do fato jurídico proposta por Francisco Cavalcanti Pontes de Miranda
22
(PONTES DE MIRANDA, Francisco C. Tratado de direito privado. Atualização de Vilson Rodrigues Alves. v. 53.
Campinas: Bookseller, 2000), aperfeiçoada por Marcos Bernardes de Mello (MELLO, Marcos Bernardes de. Teoria
do fato jurídico: plano da existência. 20. ed. São Paulo: Saraiva, 2014). Contudo, trabalha-se aqui com o conceito
de ato jurídico como veículo introdutor de norma jurídica, como declaração prescritiva.
Sobre a concepção adotada de ato jurídico, consultar: CARVALHO, Paulo de Barros. Direito tributário: Op. cit.;
FRANÇA, Vladimir da Rocha. Estrutura e motivação do ato administrativo. Op. cit.
328 Vladimir da Rocha França
23
Vide o art. 1º, III e IV, o art. 22, I, o art. 5º, caput, II, XXIII, o art. 170, caput, II, e parágrafo único, todos da Cons-
tituição Federal.
24
Vide o art. 5º, XXXV, da Constituição Federal.
Sobre a matéria, consultar: BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de direito penal: parte geral. v. 1. 23. ed. São
25
Paulo: Saraiva, 2017. p. 282-295; NORONHA, Edgard Magalhães. Direito penal: introdução e parte geral. v. 1. 9.
ed. São Paulo: Saraiva, 1973. p. 91-101.
Nesse contexto, merece lembrança o disposto no art. 1º do Decreto-lei n. 3.914, de 9 de dezembro de 1941 (Lei
de Introdução ao Código Penal).
26
Vide o art. 5º, XXXIX, o art. 22, I, e o art. 59, III, o art. 61, o art. 64, e o art. 66, todos da Constituição Federal.
Conceito jurídico-positivo de ato de improbidade administrativa 329
27
Vide o art. 5º, II, o art. 37, caput, e o art. 84, IV e VI, todos da Constituição Federal.
28
Nesse sentido, consultar: FRANÇA, Vladimir da Rocha. Estrutura e motivação do ato administrativo. Op. cit.
29
Vide o art. 1º, caput, o art. 18, e os arts. 20 a 36, todos da Constituição Federal.
Na relação de supremacia especial, o ingresso do administrado na relação jurídica em face da Administração
30
Pública se dá voluntariamente. Nesse caso, há uma maior margem de discricionariedade administrativa e de com-
petência normativa para disciplinar e desenvolver a relação jurídica administrativa. Sem prejuízo, evidentemente,
das garantias fundamentais dos administrados, asseguradas na Constituição Federal.
Já na relação de supremacia geral, o administrado não tem a opção de travar ou não relação jurídica com a Admi-
nistração Pública, salvo se escolher por não realizar a conduta que a ensejará.
31
Ou mediatamente, no que diz respeito aos Estados-membros, Distrito Federal e Municípios.
330 Vladimir da Rocha França
Vide o art. 29-A, §§ 1º e 2º, o art. 50, caput, e § 2º, o art. 52, I e II, parágrafo único, o art. 85, o art. 86, o art. 96,
32
III, o art. 100, § 7º, o art. 102, I, “c”, o art. 105, I, “a”, o art. 108, I, “a”, e o art. 167, § 1º, todos da Constituição
Federal.
Vide o art. 60, IX, do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias.
Ou na Constituição Estadual, na Lei Orgânica do Distrito Federal ou na Lei Orgânica do Município, conforme o
vínculo do infrator.
Se um servidor público federal efetivo destrói dolosamente um bem móvel da União, ele realiza uma conduta que é
33
considerada ilícita pelas normas veiculadas pelos seguintes dispositivos legais: (i) o art. 186 e o art. 927, ambos
do Código Civil; (ii) o art. 163, parágrafo único, III, do Código Penal; e, (iii) o art. 116, VII, e o art. 132, X, todos
da Lei Federal n. 8.112, de 11 de dezembro de 1990.
Ou então, quando um Prefeito autoriza dolosamente o pagamento de empresa contratada pelo Município sem
o cumprimento da prestação ajustada no negócio jurídico administrativo, conduta punível em face das normas
jurídicas veiculadas pelos seguintes dispositivos legais: (i) o art. 186 e o art. 927, ambos do Código Civil; (ii) o
art. 312 do Código Penal; (iii) o art. 1º, I, do Decreto-lei n. 201/1967.
Conceito jurídico-positivo de ato de improbidade administrativa 331
34
Sobre a matéria, consultar: DUARTE JR., Ricardo. Improbidade administrativa: aspectos teóricos e práticos. Rio
de Janeiro: Lumen Juris, 2017. p. 5-51; JUSTEN FILHO, Marçal. Curso de direito administrativo. Op. cit., p. 1010-
1013; OSÓRIO, Fábio Medina. Teoria da improbidade administrativa: má gestão pública – corrupção – ineficiência.
São Paulo: Revista dos Tribunais, 2007; PRADO, Francisco Octavio de Almeida. Improbidade administrativa. São
Paulo: Malheiros, 2001. p. 20-29.
35
Sobre a relação entre moralidade administrativa e improbidade administrativa, consultar: CAMMAROSANO, Már-
cio. O princípio constitucional da moralidade administrativa [...]. Op. cit., p. 95-110; DUARTE JR., Ricardo. Im-
probidade administrativa: Op. cit., p. 59-63.
36
Vide o art. 1º, o art. 18, e o art. 37, caput, XIX, todos da Constituição Federal.
Vide o art. 4º, I, do Decreto-lei n. 200, de 25 de fevereiro de 1967.
Vide o art. 41 do Código Civil.
Vide o art. 1º, § 1º, e art. 6º, I, ambos Lei Federal n. 11.107, de 6 de abril de 2005.
37
Vide o art. 37, caput, XIX a XXI, e o art. 173, ambos da Constituição Federal.
Vide o art. 4º, II, e o art. 5º, ambos do Decreto-lei n. 200/1967.
Vide o art. 1º, § 1º, e o art. 6º, II, ambos da Lei Federal n. 11.107/2005.
Vide a Lei Federal n. 13.303, de 30 de junho de 2016.
38
Sobre a organização administrativa, consultar: MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Curso de direito administrativo.
Op. cit., p. 141-247.
Fato que enseja a inclusão das chamadas entidades do terceiro setor no rol de possíveis vítimas do ato de impro-
39
bidade administrativa.
Vide a Lei Federal n. 9.637, de 15 de maio de 1998.
Vide a Lei Federal n. 9.790, de 23 de março de 1999.
Vide a Lei Federal n. 13.019, de 31 de julho de 2014.
Sobre a matéria, consultar: COSTA, José Marcelo Ferreira. Organizações sociais: comentários à Lei Federal n.
9.637, de 15 de maio de 1998. São Paulo: Atlas, 2015; ROCHA, Sílvio Luís Ferreira da. Terceiro setor. São Paulo:
Malheiros, 2003; ZOCKUN, Carolina Zancaner. Da intervenção do Estado no domínio social. São Paulo: Malheiros,
2009.
332 Vladimir da Rocha França
alguém que esteja no exercício de competência administrativa ao fazê-lo. Logo, tem que ser
ato-fato administrativo ou ato jurídico administrativo.
Com efeito, todos os agentes públicos tem capacidade infracional para a prática
de ato de improbidade administrativa.40 Mas, insista-se, é preciso que se trate de conduta
diretamente relacionada à atividade administrativa.
Portanto, deve-se registrar que somente condutas decorrentes do exercício da fun-
ção administrativa41 são tipificáveis como atos de improbidade administrativa.42
Isso se justifica em razão do laço que o ato de improbidade administrativa tem com
o princípio da moralidade, constante do art. 5º, LXXIII, e do art. 37, caput, da ambos da
Constituição Federal. Princípio este voltado para a atividade administrativa do Estado, e
que serve de base para a invalidação de atos jurídicos administrativos e que funciona como
diretriz constitucional na tipificação de condutas como atos de improbidade administrativa.
Ademais, as diferenças entre os regimes constitucionais da função administrativa, da
função legislativa43 e da função jurisdicional44 seriam completamente ignoradas caso se re-
solvesse pela incidência e aplicabilidade da Lei Federal n. 8.429/1992 para atos-fatos e atos
jurídicos legislativos ou jurisdicionais. Mas não se olvide que as normas veiculadas pelo
referido diploma legal devem ser aplicadas à atividade administrativa do Poder Legislativo, do
Poder Judiciário, e das funções essenciais à Justiça mantidas pelo Estado.45
Consoante o art. 3º da Lei Federal n. 8.429/1992, verifica-se que o administrado
também tem capacidade infracional para a prática do ato de improbidade administrativa,
desde que sua conduta tenha relação direta com a ação ou omissão de agente público.
40
Sobre os agentes públicos, consultar: MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Curso de direito administrativo. Op. cit.,
p. 248-270.
41
Entenda-se por função administrativa a atividade desenvolvida pelo Estado, ou por quem está no exercício de com-
petências públicas, que compreende a expedição de regras jurídicas complementares à lei (ou excepcionalmente à
própria Constituição), voltada à concretização dos interesses públicos e dos direitos fundamentais, e subordinada
ao controle de juridicidade feito pelo Poder Judiciário.
42
Nesse sentido, consultar: DUARTE JR., Ricardo. Improbidade administrativa: Op. cit., p. 47-51.
Em sentido contrário: MARTINS JÚNIOR, Wallace Paiva. Probidade administrativa. 4. ed. São Paulo: Saraiva,
2009. p. 307-309; PRADO, Francisco Octavio de Almeida. Improbidade administrativa. Op. cit., p. 20-29, p. 68-
70; OSÓRIO, Fábio Medina. Teoria da improbidade administrativa: Op. cit., p. 199-202.
43
A função legislativa compreende a atividade desenvolvida por órgãos previstos diretamente pela Constituição
Federal, consubstanciada na expedição de regras complementares às normas constitucionais, destinadas à disci-
plina dos interesses públicos e à harmonização dos direitos fundamentais, sem prejuízo do controle de constitu-
cionalidade.
44
Já na função jurisdicional, tem-se a atividade de expedição de regras subsidiárias à lei (ou à própria Constituição,
conforme o grau de densidade da norma veiculada por ela), desenvolvida por órgãos independentes e imparciais
do Poder Judiciário, destinada à prevenção ou resolução definitiva de conflitos.
45
O Ministério Público (arts. 127 a 130-A da Constituição Federal), a Advocacia Pública (arts. 131 e 132 da Cons-
tituição Federal) e a Defensoria Pública (arts. 134 e 135 da Constituição Federal).
Conceito jurídico-positivo de ato de improbidade administrativa 333
46
Vide os arts. 1º e 2º do Código Civil.
47
Vide os arts. 44 e 45 do Código Civil.
48
Vide o art. 177, § 1º, da Constituição Federal.
Vide a Lei Federal n. 9.478, de 6 de agosto de 1997.
49
Vide o art. 177, § 1º, da Constituição Federal.
Vide a Lei Federal n. 11.909, de 4 de março de 2009.
50
Vide o art. 177, § 1º, da Constituição Federal.
Vide a Lei Federal n. 12.351, de 22 de dezembro de 2010.
51
Vide art. 176 da Constituição Federal.
Vide o Decreto-lei n. 9.760, de 5 de setembro de 1946.
Vide a Lei Federal n. 9.636, de 15 de maio de 1998.
52
Vide o art. 175 da Constituição Federal.
Vide a Lei Federal n. 8.987, de 13 de fevereiro de 1995.
Vide a Lei Federal n. 11.079, de 30 de dezembro de 2004.
53
Vide o art. 9º da Lei Federal n. 8.429/1992.
54
Vide o art. 10 da Lei Federal n. 8.429/1992.
55
Vide o art. 10-A da Lei Federal n. 8.429/1992.
56
Vide o art. 11 da Lei Federal n. 8.429/1992.
334 Vladimir da Rocha França
A configuração do dolo demanda a presença de dois elementos: (i) o elemento cognitivo ou intelectual, ou seja, a
57
consciência da conduta que se realizar, em todos os elementos constantes do tipo infracional; e, o (ii) o elemento
volitivo, por sua vez, a decisão de realizar a conduta, bem como a previsão do nexo de causalidade entre esta e o
resultado, também descrito na regra geral sancionadora.
Sobre a matéria, consultar: BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de direito penal: Op. cit., p. 362-380; NORO-
NHA, Edgard Magalhães. Direito penal: Op. cit., p. 129-133.
58
Vide o art. 18, I, do Código Penal.
Vide o art. 186 do Código Civil.
Vide o art. 4º do Decreto-lei n. 4.657, de 4 de setembro de 1942 (Lei de Introdução às normas do Direito Brasileiro).
59
Vide o art. 18, parágrafo único, do Código Penal.
Vide o art. 4º da Lei de Introdução às normas do Direito Brasileiro.
A identificação da culpa pressupõe: (i) a inobservância do cuidado objetivo devido à luz do princípio da confiança;
60
(ii) a existência de nexo de causalidade entre o descumprimento do dever de cuidado e o resultado constante do
tipo infracional; (iii) a previsibilidade objetiva deste resultado; e, (iv) a efetiva ocorrência do resultado previsto na
regra geral sancionadora.
Sobre a matéria, consultar: BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de direito penal: Op. cit., p. 381-397; NORO-
NHA, Edgard Magalhães. Direito penal: Op. cit., p. 133-142.
61
Vide o art. 18, II, do Código Penal.
Vide o art. 186 do Código Civil.
Vide o art. 4º da Lei de Introdução às normas do Direito Brasileiro.
Vide o Enunciado 19 do Instituto Brasileiro de Direito Administrativo ao interpretar a Lei de Introdução às normas
62
63
Entende-se aqui que os pareceres e laudos emitidos no contexto do processo administrativo são atos-fatos ju-
rídicos administrativos, uma vez que não tem por conteúdo uma declaração prescritiva, mas sim uma opinião
técnico-científica a respeito de um caso ou dúvida levada à apreciação de seus emissores pelas autoridades
administrativas competentes.
64
Vide os arts. 20 e 21 do Código Penal.
Vide os arts. 138 a 144 do Código Civil.
Sobre matéria, consultar: BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de direito penal: Op. cit., p. 513-539; NORONHA,
Edgard Magalhães. Direito penal: Op. cit., p. 143-151.
65
Vide o art. 21, I, da Lei Federal n. 8.429/1992.
66
Vide o art. 5º e o art. 12, I, ambos da Lei Federal n. 8.429/1992.
336 Vladimir da Rocha França
5 CONSIDERAÇÕES FINAIS
REFERÊNCIAS
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2017.
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Saraiva, 1999.
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de 1998. São Paulo: Atlas, 2015.
FAORO, Raymundo. Os donos do poder: formação do patronato político brasileiro. 3. ed. São Paulo:
Globo, 2001.
Conceito jurídico-positivo de ato de improbidade administrativa 337
FERRAZ JÚNIOR, Tércio Sampaio. A ciência do Direito. 2. ed. São Paulo: Atlas, 1980.
FERRAZ JÚNIOR, Tércio Sampaio. Introdução ao estudo do Direito: técnica, decisão e dominação. 6.
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MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Curso de direito administrativo. 31. ed. São Paulo: Malheiros, 2014.
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ROCHA, Sílvio Luís Ferreira da. Terceiro setor. São Paulo: Malheiros, 2003.
VILANOVA, Lourival. As estruturas lógicas e o sistema do direito positivo. São Paulo: Max Limonad,
1997.
VILANOVA, Lourival. Causalidade e relação no Direito. 4. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2000.
ZOCKUN, Carolina Zancaner. Da intervenção do Estado no domínio social. São Paulo: Malheiros, 2009.
PARTE II
TEXTOS VENCEDORES DO
CONCURSO DE
ARTIGOS JURÍDICOS
PRIMEIRO LUGAR
1 INTRODUÇÃO
1
ANVISA. Agência Nacional de Vigilância Sanitária. Análise de Impacto Regulatório – Processo 25351365875200953.
2018. Disponível em: http://portal.anvisa.gov.br/analise-de-impacto-regulatorio?p_p_id=110. Acesso em: 19
set. 2019.
342 William Ivan Gallo Aponte | Rafaella Nátaly Fácio
sobretudo, ser precedida de metodologias específicas que levem em conta todas as infor-
mações pertinentes, tais como a opinião das empresas e usuários, e também quantidades
expressivas de dados que proporcionem ao gestor uma tomada de decisão consciente a
partir de um retrato fidedigno da realidade.
É sensível a esta realidade que o presente trabalho se propõe a discutir a possibilida-
de de aplicação de inteligência artificial no âmbito da atividade regulatória, especificamente
na Análise de Impacto Regulatório que deve preceder a edição das normas. Para tanto, será
adotada metodologia dedutiva, descritiva e comparativa, conjugada com a técnica de pesqui-
sa documentação indireta das referências bibliográficas e normativas.
2
GUERRA, Sérgio. Discricionariedade, regulação e reflexividade: uma nova teoria sobre as escolhas administrati-
vas. 5. ed. Belo Horizonte: Fórum, 2018, p. 60.
3
GUERRA, Sérgio. Discricionariedade, regulação e reflexividade: Op. cit., p. 64.
4
O termo pós-modernidade foi popularizado por Jean-François Lyotard para indicar as novas concepções que sur-
giram após a Segunda Guerra Mundial, bem como as subsequentes transformações nas décadas de 80 e 90 do
século XX. (LYOTARD, Jean-François. Post-modern condition. Minneapolis: University of Minnesota Press, 1985
apud GUERRA, Sérgio. Discricionariedade, regulação e reflexividade: Op. cit., p. 116.
5
Um dos autores que mais se debruçou sobre o tema foi Miguel Carbonell. Segundo o autor, este fenômeno de-
nominado neoconstitucionalismo pode ser analisado em três planos: (i) textos constitucionais, que atualmente
hoje são mais substantivos, mais valores, mais direitos fundamentais, mais princípios;(ii) forma de interpretação
A utilização de inteligência artificial na atividade regulatória 343
A Lei Maior de 1988, como Constituição pós-moderna que é, reflete essa mudança:
reclama um Direito Administrativo segundo o qual o Estado administra os interesses públicos
que constitucionalmente lhe foram atribuídos além da observância das regras legais ema-
nadas dos órgãos legitimados.6 Reclama, enfim, um Direito Administrativo pós-moderno.7
Importa estudar os contornos desse Direito Administrativo pós-moderno especificamente
em relação à regulação independente, pois esta tem contornos especiais em relação aos
demais atos administrativos praticados no exercício de função administrativa. Isto porque
as leis instituidoras de sistemas de regulação têm menor densidade normativa, o que ne-
cessariamente abre espaço para maior discricionariedade da Administração Pública. E, além
disso, esse fator aumenta a complexidade da análise de legalidade dos atos, tendo em vista
que a ausência de subsunção simétrica à lei demanda avaliações mais complexas sobre
proporcionalidade, razoabilidade e imparcialidade.8
O modelo de Estado regulador foi confirmado no Brasil com a promulgação da Cons-
tituição de 1988.9 É oportuno esclarecer que ao reafirmar o modelo regulador não se pre-
tende coadunar com a indefensável ideia de que o Estado pode prescindir da prestação dos
serviços públicos que lhe foram outorgados, substituindo-a pela mera regulação, pois tal
entendimento não tem respaldo constitucional.10 Conforme enuncia o artigo 175 da Consti-
tuição, ao poder público incumbe prestar, e não apenas “garantir” ou “regular” a prestação
serviço público. A este respeito, afirma Odete Medauar que por mais que a noção de serviço
público seja repensada até mesmo com a finalidade de “inserir o dado econômico, a concor-
rência, a gestão privada”, nunca poderá ser abolida a presença do Estado.11
e aplicação das normas constitucionais, considerando a utilização de métodos mais abertos que silogismo e sub-
sunção; (iii) novos modelos teóricos de compreensão da constituição e do direito como um todo (CARBONELL,
Miguel (Org.). Neoconstitucionalismo(s). Madrid: Trotta, 2003).
6
MOREIRA NETO, Diogo de Figueiredo. O direito administrativo do século XXI: um instrumento de realização da
democracia substantiva. A&C Revista de Direito Administrativo & Constitucional, Belo Horizonte, ano 11, n. 45, p.
13-37, jul./set. 2011. p. 19-20.
7
Expressão cunhada por MOREIRA NETO, Diogo de Figueiredo. Quatro paradigmas do direito administrativo pós-
-moderno: legitimidade, finalidade, eficiência, resultados. Belo Horizonte: Fórum, 2008.
8
MOREIRA NETO, Diogo de Figueiredo. Quatro paradigmas do direito administrativo pós-moderno: Op. cit., p. 9.
9
GUERRA, Sérgio. Discricionariedade, regulação e reflexividade: Op. cit., p. 139.
10
Alguns autores se posicionam em sentido contrário, defendendo que as competências de prestação de serviço
público podem ser exercidas apenas mediante “a garantia” de que a atividade seja de alguma forma prestada
(SCHIRATO, Vitor Rhein. Livre iniciativa nos serviços públicos. Belo Horizonte: Fórum, 2012. p. 138-139), ou
que esta atividade seja “de algum modo assegurada pelo Estado” (MOREIRA NETO, Diogo de Figueiredo. Mito e
realidade do serviço público. Revista de Direito da Procuradoria Geral do Estado do Rio de Janeiro – RDPGE, v. 53,
2000. p. 140-141.). Entretanto, o conteúdo jurídico da titularidade estatal dos serviços públicos não comporta en-
tendimentos segundo os quais o Estado desempenha um papel de garantidor, seja através da atividade regulatória
ou de qualquer outro meio. Nesse sentido, cf. MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Serviço público e concessão de
serviço público. São Paulo: Malheiros, 2017; e SCHIER, Adriana. Serviço público: garantia fundamental e cláusula
de proibição de retrocesso social. Curitiba: Íthala, 2016.
11
MEDAUAR, Odete. Serviços públicos e serviços de interesse econômico geral. In: MOREIRA NETO, Diogo de
Figueiredo (Coord.). Uma avaliação das tendências contemporâneas do direito administrativo. Rio de Janeiro:
Renovar, 2003. p. 126.
344 William Ivan Gallo Aponte | Rafaella Nátaly Fácio
12
SCHIRATO, Vitor Rhein. A deterioração do sistema regulatório brasileiro. Revista de Direito Público da Economia
– RDPE, Belo Horizonte, ano 11, n. 44, out./dez. 2013. p. 4-5.
13
HACHEM, Daniel Wunder. A noção constitucional de desenvolvimento para além do viés econômico: reflexos
sobre algumas tendências do Direito Público brasileiro. A&C Revista de Direito Administrativo & Constitucional,
Belo Horizonte, ano 13, n. 53, p. 133-168, jul./set. 2013. p. 150.
14
GABARDO, Emerson. Interesse público e subsidiariedade: o Estado e a sociedade civil para além do bem e do mal.
Belo Horizonte: Fórum, 2009. p. 243.
15
SCHIER, Adriana. Fomento: Administração Pública, direitos fundamentais e desenvolvimento. Curitiba: Íthala,
2019. p. 42-43.
16
A observação é feita por Daniel Wunder Hachem, que aponta como que exemplo nacional Luiz Carlos Bresser-
-Pereira, um dos principais pivôs da reforma neoliberal do Estado brasileiro na década de 1990 e também um
dos grandes autores sobre o tema do desenvolvimento (HACHEM, Daniel Wunder. A noção constitucional de
desenvolvimento para além do viés econômico: Op. cit., p. 150).
17
SCHIRATO, Vitor Rhein. A deterioração do sistema regulatório brasileiro. Op. cit., p. 2-3.
A utilização de inteligência artificial na atividade regulatória 345
18
FREITAS, Juarez. Sustentabilidade: direito ao futuro. 1. ed. 1. reimp. Belo Horizonte: Fórum, 2011. p. 278-279.
19
FREITAS, Juarez. Sustentabilidade: Op. cit., p. 254.
20
FREITAS, Juarez. Sustentabilidade: Op. cit., p. 255.
21
SCHIRATO, Vitor Rhein. A deterioração do sistema regulatório brasileiro. Op. cit., p. 4.
22
SCHIRATO, Vitor Rhein. A deterioração do sistema regulatório brasileiro. Op. cit., p.1-2.
23
SCHIRATO, Vitor Rhein. A deterioração do sistema regulatório brasileiro. Op. cit., 2.
24
SCHIRATO, Vitor Rhein. A deterioração do sistema regulatório brasileiro. Op. cit., p. 9.
346 William Ivan Gallo Aponte | Rafaella Nátaly Fácio
25
SILVA, Leandro Novais e. O processo de globalização e a instabilidade dos modelos econômicos de Estado.
Revista de Informação Legislativa, Brasília, ano 41, n. 163, jul./set. 2004. p. 343.
26
ARAGÃO, Alexandre Santos de. O poder normativo das agências reguladoras independentes e o Estado Democrá-
tico de Direito. Revista de Informação Legislativa, Brasília, ano 37, n. 148, out./dez. 2000. p. 276.
27
GUNNINGHAM, Neil; SINCLAIR, Darren. Smart regulation. In: DRAHOS, Peter. Regulatory theory: foundations and
applications. Camberra: Austrália National University, 2017. p. 133-149. Disponível em: https://press-files.anu.
edu.au/downloads/press/n2304/pdf/book.pdf. Acesso em: 10 abr. 2019.
A utilização de inteligência artificial na atividade regulatória 347
28
GUNNINGHAM, Neil; SINCLAIR, Darren. Smart regulation. Op. cit., p. 134.
29
Para leitura específica sobre o tema, cf. TOFFELSON, C. et al. Setting the standard: certification, governance and
the Forest Stewardship Council. Vancouver: UBC Pres, 2008.
30
É o caso da Colômbia, onde o conceito foi incorporado como política pública. Cf. COLOMBIA. Departamento
Nacional De Planeación (DNP). Colombia da los primeros pasos hacia una regulación inteligente basada en la
participación de los ciudadanos. 2018. Disponível em: https://www.dnp.gov.co/Paginas/Colombia-da-los-prime-
ros-pasos-hacia-una-regulaci%C3%B3n-inteligente-basada-en-la-participaci%C3%B3n-de-los-ciudadanos.aspx.
Acesso em: 9 maio 2018.
31
MORAN, Michael. Review article: Understanding the Regulatory State. British Journal of Political Science, [s.l.],
Cambridge University Press (CUP), v. 2, n. 2, p. 391-413, 28 mar. 2002.
32
Para leitura específica sobre o tema: MASSIMINO, Leonardo F. La intervención estatal, la regulación económica y
el poder de policía. Revista de Direito Econômico e Socioambiental, [s.l.], v. 6, n. 677, p. 36-63, 2015. p. 39.
33
GUNNINGHAM, Neil; SINCLAIR, Darren. Smart regulation. Op. cit., p. 134.
348 William Ivan Gallo Aponte | Rafaella Nátaly Fácio
jurídica na medida em que os destinatários da norma não podem tem certeza sobre qual
regra deve ser obedecida. 34
Os instrumentos de melhora regulatória foram desenvolvidos a partir das ordens
executivas (“executives orders”) nos Estados Unidos.35 A prática foi iniciada no referido país
sob o comando do então presidente Ronald Reagan, que editou ordens determinando que
a regulação fosse obrigatoriamente precedida de análises de custo-benefício. Havia certo
ceticismo em relação à proposta, pois se temia que a análise meramente econômica não
fosse compatível com a regulação de temas como meio-ambiente e saúde. Mesmo assim,
os presidentes Bill Clinton e Barack Obama deram continuidade à prática de forma bastante
satisfatória, pois observou-se que a metodologia ajudou a identificar regulações que não
cumpriam seu propósito e acolher outras boas ideias em termos de efetividade.36
Esses instrumentos inicialmente concebidos nos Estados Unidos foram reconhe-
cidos como boas práticas pela ODCE já em 1995, e desde então a entidade internacional
passou a recomendar a sua adoção para os demais países integrantes. Eles consistem,
basicamente, em agenda regulatória, análise de impacto normativo ou regulatório ex ante
ou ex post, advocacia de competência, expedição normativa e consulta pública. O foco do
presente trabalho será a Análise de Impacto Regulatório (AIR). Para tanto, a seguir se dis-
correrá sobre a utilização da ferramenta no Brasil, bem como comparar a experiência pátria
com outros países.
A atividade regulatória ganhou proeminência no Brasil com a reforma administrativa
da década de 90 e a crescente delegação de serviços públicos. A ideologia proposta pelo en-
tão governo era focada na “diminuição do tamanho do Estado”. Nesse contexto, as agências
reguladoras foram concebidas (ou foi esta, pelo menos, a intenção) como instituições autô-
nomas e independentes, cujo objetivo era melhorar o arcabouço regulatório para obtenção de
resultados mais efetivos.37 Essa necessidade inaugura “uma nova fase do debate de melhora
regulatória no Brasil”,38 constituindo um paradigma de implementação de ferramentas com
tendência de sistematização e coordenação para o incremento da qualidade regulatória.
34
KLINGBEIL, Marianne. Smart regulation. S.d. Disponível em: https://www.oecd.org/regreform/policyconferen-
ce/46528683.pdf. Acesso em: 10 abr. 2019. Veja-se também o caso da União Europeia, onde a implantação de
regulação inteligente implica a avaliação de impacto e análise de resultados. CONSEJO EUROPEO. Comunicación
n. 543, de 08 de outubro de 2010. Comunicación de La Comisión al Parlamento Europeo, al Consejo, al Comité
Económico y Social Europeo y al Comité de las Regiones: documento para trabajo 2011. Bruselas: Consejo Euro-
peo, 08 out. 2010.
35
BETANCOR, Andrés. Mejorar la regulación. Una guía de razones y medios. Madrid: Marcial Pons, 2009. p. 107.
36
SUSTEIN, Cass R. Costs, benefits and regulation post-Trump. Bloomerang The Company, 1 ago. 2019. Dispo-
nível em: https://www.bloomberg.com/opinion/articles/2019-08-01/cost-benefit-analysis-regulation-after-trump.
Acesso em: 19 set. 2019.
37
RAGAZZO, Carlos. Coordenação efetiva e sistematização: novas tendências da melhora da qualidade regulatória
no Brasil. Revista Estudos Institucionais, Rio de Janeiro, v. 4, n. 2, p. 513-536, jul./dez. 2018.
38
RAGAZZO, Carlos. Coordenação efetiva e sistematização: Op. cit., p. 516.
A utilização de inteligência artificial na atividade regulatória 349
Neste contexto, já em 2007, pelo Decreto n. 6.062 foi criado o Programa de Forta-
lecimento da Capacidade Institucional para Gestão em Regulação (PRO-REG). Em termos
de iniciativas concretas, é relevante citar que diversas agências (Agência Nacional de Trans-
portes Terrestres – ANTT, Agência Nacional de Saúde Suplementar e Agência Nacional de
Aguas) passaram a realizar (respectivamente em 2009, 2010 e 2015), ainda que pontual-
mente e de forma não obrigatória, Análises de Impacto Regulatório (AIR).39
A Análise de Impacto Regulatório (AIR), conforme a nomenclatura de seu nome já
anuncia, consiste num processo40 de análise dos impactos da norma regulatória, e pode ser
feito tanto antes da sua edição quanto depois, considerando que a decisão regulatória deve
ser continuamente avaliada. O propósito da ferramenta é sobretudo proporcionar o aferimen-
to do custo-benefício da norma a ser editada. A análise, entretanto, não é apenas econômica,
pois abrange também os aspectos social, político e cultural.41
A utilização desta ferramenta de gestão pública para tomada de decisões promove
uma verdadeira transformação da cultura administrativa.42 Além do incremento em relação à
sua finalidade intrínseca, que é o aumento da efetividade da regulação43, a melhora regulató-
ria se também verifica nos seguintes aspectos: (i) no aumento da participação dos interes-
sados, considerando a processualização do empreendimento; (ii) no aumento da tecnicidade
da decisão, delimitando de forma clara a discricionariedade44, evitando-se, assim, o uso
político da função sob o disfarce da conveniência e oportunidade; (iii) e no estabelecimento
de padrões mais claros para o controle do processo decisório.45
39
BRASIL. Casa Civil da Presidência da República. Inventário AIR – Visão Geral da Análise de Impacto Regulatório
nas Agências Reguladoras Federais. Brasília: Presidência da República, 2018.
40
Opta-se pela nomenclatura “processo” ao invés de “procedimento” para demarcar que ao instituto é imprescin-
dível a participação dos interessados e afetados, voltado não apenas à efetividade da regulação, mas também
aos direitos e garantias fundamentais do cidadão. (BACELLAR FILHO, Romeu Felipe; PIVETTA, Saulo Lindorfer.
O regime jurídico do processo administrativo na Lei n. 9.784/99. A&C Revista de Direito Administrativo & Cons-
titucional, Belo Horizonte, ano 14, n. 58, p. 107-135, out./dez. 2014). Para uma leitura aprofundada sobre a
processualização da função administrativa, cf. MEDAUAR, Odete. A processualidade no direito administrativo. 2.
ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2008.
41
FERREIRA, Marco Antônio da Cunha et al. Contribuição do método sistema especialista fuzzy na Análise de Im-
pacto Regulatório. Revista Produção Online, Florianópolis, v. 15, n. 3, p. 859-885, jul./set. 2015. Disponível em:
https://www.producaoonline.org.br/rpo/article/view/1823. Acesso em: 18 out. 2019.
42
CASTRO, Camila Moreira de. Some aspects of implementing Regulatory Impact Analysis in Brazil. Revista de
Administração Pública, [s.l.], v. 48, n. 2, p. 323-342, abr. 2014.
43
MENEGUIN, Fernando Boarato; BIJOS, Paulo Roberto Simão. Avaliação de impacto regulatório: como melhorar a
qualidade das normas. Senado Federal. Consultoria de Orçamentos, Fiscalização e Controle – CONOFOR. Avalia-
ção, 2016. p. 7. Disponível em: https://www2.senado.leg.br/bdsf/bitstream/handle/id/519196/OED0024.pdf?se-
quence=1&isAllowed=y. Acesso em: 19 set. 2019.
44
BLANCHET, Luiz Alberto; BUBNIAK, Priscila Lais Ton. Análise de Impacto Regulatório: uma ferramenta e um
procedimento para a melhoria da regulação. Revista de Ciências Jurídicas, Fortaleza, v. 22, n. 3, p. 1-15, set./dez.
2017.
45
JORDÃO, Eduardo et al. A produção legislativa do Congresso Nacional sobre agências reguladoras. Revista de
Informação Legislativa, Brasília, ano 56, n. 222, p. 75-107, abr./jun. 2019. Nesse sentido também o Projeto de
Lei n. 1.539 de 2015 da Câmara dos Deputados, que estabelece a obrigatoriedade de realização de Análise de
Impacto Regulatório no âmbito da Administração Federal.
350 William Ivan Gallo Aponte | Rafaella Nátaly Fácio
46
BRASIL. Congresso Nacional. Projeto de Lei n. 1.539/2015. Estabelece a obrigatoriedade de realização de
Análise de Impacto Regulatório – AIR pelas Agências Reguladoras no âmbito da Administração Federal. Bra-
sília: Congresso Nacional, 2015. Disponível em: https://www.camara.leg.br/proposicoesWeb/prop_mostrarin-
tegra;jsessionid=0E6A4D328962E24E5E9213B11A5CBC21.proposicoesWeb2?codteor=1334093&filena-
me=PL+1539/2015. Acesso em: 19 set. 2019.
47
BRASIL. Subchefia de Análise e Acompanhamento de Políticas Governamentais et al. Diretrizes gerais e guia
orientativo para elaboração de Análise de Impacto Regulatório – AIR. Brasília: Presidência da República, 2018.
Disponível em: https://www.gov.br/casacivil/pt-br/centrais-de-conteudo/downloads/diretrizes-gerais-e-guia-o-
rientativo_final_27-09-2018.pdf/view. Acesso em: 19 set. 2019.
48
É importante especificar que, diferentemente do Brasil, alguns países adotam outra denominação do AIR. Por
exemplo, na Colômbia, é chamado Análise de Impacto Normativo (AIN); no México, Declaração do Impacto Regu-
latório, no Reino Unido, Regulatory Impact Analysis (RIA).
A utilização de inteligência artificial na atividade regulatória 351
A inteligência artificial (adiante denominada IA) é termo cuja definição não é unívoca,
mas é possível destacar a concordância quanto à ao menos três de suas características: (i)
a intencionalidade, no sentido de que o sistema algorítmico não opera de modo passivo e de
relativa autonomia para exercer tarefas específicas; (ii) a inteligência propriamente dita, uma
vez que o sistema aprende numa sequência assemelhada à humana,; (iii) e adaptabilidade,
pois ostenta a capacidade cognitiva de efetuar ajustes à medida que coleta vastíssimas in-
formações.52 Desse modo, ao mesmo tempo em que a inteligência artificial não se confunde
com a automação, tão pouco pode ser equiparada à inteligência humana, já que é esta aquela
que irá condicionar a programação daquela.
49
MÉXICO. Congreso General de la Unión de los Estados Unidos Mexicanos. La Ley General de Mejora Regulato-
ria. Ciudad de México, 18 maio 2018. Disponível em: http://dof.gob.mx/nota_detalle.php?codigo=5523172&fe-
cha=18/05/2018. Acesso em: 17 set. 2019.
50
JEFATURA DEL ESTADO ESPAÑOL. Lei n. 39, 1 de outubro de 2015. Del Procedimiento Administrativo Común
de Las Administraciones Públicas. Madrid, 1º oct. 2015. Disponível em: https://www.boe.es/buscar/pdf/2015/
BOE-A-2015-10565-consolidado.pdf. Acesso em: 16 out. 2019.
51
CHILE. Ministerio de Economía, Fomento y Turismo. Guía chilena para una buena regulación. Santiago, abr. 2019.
Disponível em: https://open.economia.cl/wp-content/uploads/2019/04/Guia-Chilena-2019_25abril.pdf. Acesso
em: 10 out. 2019.
52
FREITAS, Juarez. Direito administrativo e inteligência artificial. Interesse Público – IP, Belo Horizonte, ano 21, n.
114, p. 15-29, mar./abr. 2019. p. 16.
352 William Ivan Gallo Aponte | Rafaella Nátaly Fácio
53
O termo foi cunhado por FREITAS, Juarez. Direito administrativo e inteligência artificial Op. cit., p. 19.
54
FREITAS, Juarez. Direito administrativo e inteligência artificial. Op. cit., p. 17-18.
55
CORVALÁN, Juan Gustavo. Administración Pública digital e inteligente: transformaciones en la era de la inteligen-
cia artificial. Revista de Direito Econômico e Socioambiental, Curitiba, v. 8, n. 2, p. 26-66, maio/ago. 2017. p. 58.
56
OCDE – Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Económico. Panorama de las Administraciones Pú-
blicas: América Latina y el Caribe 2017. Paris: Éditions OCDE, 2016. p. 122.
57
OCDE – Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Económico. Buildingan institutional framework for
regulatory impact analysis. Version 1.1 Regulatory Policy Division Directorate for Public Governance and territorial
Development. Paris: Éditions OCDE, 2008. Disponível em: http://www. oecd.org/gov/regulatory-policy/40984990.
pdf. Acesso em: 12 dez. 2015.
A utilização de inteligência artificial na atividade regulatória 353
Um bom exemplo prático pode ser dado no âmbito da regulação do transporte pú-
blico urbano. Supondo-se que se observa empiricamente que o sistema de transporte pú-
blico de uma cidade já não é mais efetivo, o ente regulador deve investigar as causas, listar
possíveis soluções e ter critérios claros para optar por uma delas. Para tanto, é necessário
sintetizar uma realidade que pode ser apreendida de inúmeros dados. No caso hipotético, a
IA poderia ser utilizada para identificar vários aspectos do fluxo de passageiros: a quantidade,
o ponto de partida e ponto de chegada, horários de pico, linhas e carros ociosos ou super-
lotados, entre outros. As soluções poderiam ser várias: alteração de rota, inclusão de novas
linhas ou carros, estímulo à locomoção por meios alternativos (como bicicletas e patinetes)
em determinadas localizações, entre outros. Essa tarefa seria deveras tortuosa, custosa e
demorada se feita apenas pelo gestor público, senão impossível. Com o apoio da IA no pro-
cesso de AIR, entretanto, seria rápida e precisa.
Em outros países é possível observar de forma clara a conjugação da inteligência
artificial no processo regulatório. Na Austrália, a adaptação às mudanças tecnológicas faz
parte dos princípios da regulação, cuja aplicação prática é voltada para a identificação de
dados e instrumentos que fortalecem a melhor decisão dos agentes público,58 com a fina-
lidade de melhorar os processos regulatórios em termos de avaliação e revisão de custos
e benefícios.59 A Comissão Europeia, por sua vez, dispõe que a inteligência artificial, com
apoio em big data,60 cria novas possibilidades para a análise de circunstâncias sociais e
econômicas.61 No país Moldavia, o governo elaborou um guia metodológico para avaliação
de impacto da regulação de políticas públicas. No documento, consignou-se que este pro-
cesso pressupõe a utilização de meios tecnológicos que viabilizem a obtenção de referên-
cias e consultorias durante a avaliação de impacto (sugestão de soluções e simulação de
cenários, por exemplo). E isto é possível apenas por intermédio da inteligência artificial. 62
De modo geral, a introdução de ferramentas tecnológicas no processo de identi-
ficação de problemas, alternativas e seus impactos, é uma transformação que demanda
58
AUSTRALIA. Commissioner For Better Regulation. Victorian guide to regulation: a handbook for policy-makers in
Victoria (Australia). 2016. Disponível em: http://www.betterregulation.vic.gov.au/files/98181269-905c-4893-bff-
3-a6bb009df93c/Victorian-Guide-to-Regulation-PDF-final.pdf. Acesso em: 19 set. 2019.
59
AUSTRALIA. Best practice regulation handbook. 2007. Disponível em: http://regulationbodyofknowledge.org/wp-
-content/uploads/2013/03/AustralianGovernment_Best_Practice_Regulation.pdf. Acesso em: 19 set. 2019.
60
Termo que designa grandes conjuntos de dados que podem ser processados e armazenados.
61
EUROPEAN COMMISSION. Better regulation “Toolbox”. 2015. p. 17. Disponível em: https://ec.europa.eu/info/
law/law-making-process/planning-and-proposing-law/better-regulation-why-and-how/better-regulation-guideli-
nes-and-toolbox_en. Acesso em: 19 set. 2019.
62
MOLDOVIA. Methodological guide on ex-ante assessment of the impact of public policies. 2009, p. 57. Disponível
em: https://www.legislationline.org/documents/id/17155. Acesso em: 19 set. 2019.
354 William Ivan Gallo Aponte | Rafaella Nátaly Fácio
63
MENEGUIN, Fernando; SILVA, Rafael Silveira y (Orgs.). Avaliação de impacto legislativo: cenários e perspectivas
para sua aplicação. Brasília: Senado Federal, 2017. Disponível em: https://www2.senado.leg.br/bdsf/bitstream/
handle/id/535244/avaliacao_de_impacto_legislativo_1ed.pdf?sequence=1&isAllowed=y y. Acesso em: 19 set.
2019.
64
BRASIL. Ministério do Planejamento, Desenvolvimento e Gestão. Estratégia de governança digital – EGD. 2019.
Disponível em: https://www.governodigital.gov.br/EGD/documentos/revisao-da-estrategia-de-governanca-digi-
tal-2016-2019.pdf. Acesso em: 19 set. 2019.
65
Como fora muito bem pontuado por André Luiz Freire, o âmbito das atividades públicas é pautado pelo princípio da
competência, segundo o qual o Estado não pode se escusar de prestar algo que lhe foi incumbido (FREIRE, André
Luiz. O regime de direito público na prestação de serviços públicos por pessoas privadas. São Paulo: Malheiros,
2014. p. 246).
66
SANTOFIMIO GAMBOA, Jaime Orlando. Tecnología e inteligencia artificial: incidencias en el derecho aplicable a la
administración pública: dos ideas en torno a su futuro inmediato de frente al cumplimiento eficaz de los propósitos
y finalidades de la función pública administrativa. In: ZEGARA VALDIVIA, Diego. La proyección del Derecho Admi-
nistrativo Peruano: estudios por el Centenario de la Facultad de Derecho de la PUCP. Lima: Palestra, 2019. Cap. 1.
p. 17-42.
67
FREITAS, Juarez. Direito administrativo e inteligência artificial. Op. cit., p. 25-26.
A utilização de inteligência artificial na atividade regulatória 355
água, ela poderia indevidamente criar algoritmos tendenciosos a indicar que regiões mais
habitadas por negros não precisa de melhoras no serviço.
Por fim, há ainda um segundo requisito em relação ao modo da implantação da
inteligência artificial. Como visto, a IA é desenvolvida a partir de quantidade significativa
de dados, pois é apenas a partir destes que se pode identificar padrões e dar sequência a
passos lógicos. Em termos de regulação, os dados serão necessariamente dos particulares:
empresas reguladas, usuários de serviços públicos e consumidores. A situação atrai a in-
cidência das normas da Lei Geral de Proteção de Dados, em especial as disposições sobre
o tratamento de dados pessoais pelo Poder Público. Considerando o escopo e extensão do
presente trabalho, não será feita uma análise esmiuçada de quais são as referidas disposi-
ções e de que modo, na prática, elas deverão ser observadas. Por ora cumpre ressaltar que
a Administração Pública, ao desempenhar a função reguladora com o apoio da IA, não está
isenta de respeitar os direitos inerentes aos dados pessoais que opera.
5 CONSIDERAÇÕES FINAIS
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SEGUNDO LUGAR
Hércules, o gestor
1 INTRODUÇÃO
1
BONAVIDES, Paulo. Curso de direito constitucional. 25. ed. São Paulo: Malheiros, 2009. p. 259-264.
2
BARROSO, Luís Roberto. Curso de direito constitucional contemporâneo. 5. ed. São Paulo: Saraiva, 2015. p. 283.
3
BONAVIDES, Paulo. Curso de direito constitucional. Op. cit., p. 257.
362 Francisco Arlem de Queiroz Sousa
coração das constituições, fazendo vir abaixo tanto a doutrina do Direito Natural como a do
velho positivismo ortodoxo.
Sob os influxos dessas ideias, as constituições passaram a conter, além das re-
gras, princípios com fortes conteúdos axiológicos e fundamentos éticos, abrigando valores
jurídicos suprapositivos como igualdade, solidariedade e moralidade. Eles se tornaram “o
oxigênio das Constituições na época do pós-positivismo. É graças aos princípios que os
sistemas constitucionais granjeiam a unidade de sentido e auferem a valoração de sua ordem
normativa”.4
Nessa senda, observa-se que “com o advento da “era dos princípios constitucionais”
o ambiente jurídico brasileiro foi tomado por uma espécie de transtorno obsessivo-compul-
sivo, muito bem descrito por Streck como pan-principiologismo, no qual ‘“positivam-se os
valores’: assim se costuma anunciar os princípios constitucionais, circunstância que facilita
a ‘criação’, em um segundo momento, de todo tipo de ‘princípio’, como se o paradigma do
Estado Democrático de Direito fosse a ‘pedra filosofal da legitimidade principiológica’, da
qual pudessem ser retirados tantos princípios quantos necessários para solvermos os casos
difíceis ou ‘corrigir’ as incertezas da linguagem [...]”.5
Muito embora o festejado Ronald Dworkin tenha dedicado sua vida e sua obra para
construir uma teoria que combatesse o positivismo jurídico e seu insistente apelo à discricio-
nariedade judicial nos casos difíceis, seu constructo em terras brasileiras teve efeito contrá-
rio, com o Judiciário se utilizando da teoria dos princípios para embasar decisões solipsistas
em prejuízo de outra discricionariedade, a administrativa.
O presente estudo tece considerações acerca das consequências que o enviesamen-
to cognitivo adotado no Brasil acerca da construção doutrinária de Dworkin tem causado
para a administração pública e como a criação metafórica de um juiz sobre-humano foi
incorporada ao imaginário de parte da magistratura brasileira que, ilusoriamente, adquiriu
superpoderes, utilizando-os para aumentar sua influência e restringir a liberdade decisória
de outras autoridades da República, tolhendo-lhes competências vocacionadas à gestão da
coisa pública.
Inicia-se por apresentar o embate de Ronald Dworkin contra uma das ideias centrais
do positivismo jurídico consistente na premissa de que na ausência de regras o juiz utiliza de
discricionariedade em seu sentido forte para decidir o caso concreto; ato contínuo, expõe-se
a metáfora dworkiana do juiz Hércules e a tese da única resposta correta.
4
BONAVIDES, Paulo. Curso de direito constitucional. Op. cit., p. 288.
5
STRECK, Lenio. Verdade e consenso: constituição, hermenêutica e teorias discursivas. 4. ed. São Paulo: Saraiva,
2014. p. 525.
Hércules, o gestor 363
6
DWORKIN, Ronald. Levando os direitos à sério. Trad. Nelson Boeira. São Paulo: Martins Fontes, 2002. p. 27-28.
7
DWORKIN, Ronald. Levando os direitos à sério. Op. cit., p. 36.
8
DWORKIN, Ronald. Levando os direitos à sério. Op. cit., p. 51-53.
364 Francisco Arlem de Queiroz Sousa
Por último, há o sentido forte de poder discricionário, que é aquele no qual a autori-
dade pode decidir sem estar sujeita a padrão algum preestabelecido, como se no exemplo do
tenente que ordenou ao sargento a escolha de cinco homens não houvesse a precondição de
serem os mais experientes, estando o subordinado livre para decidir.
Entende Dworkin que “o conceito de poder discricionário está perfeitamente à von-
tade em apenas um tipo de contexto: quando alguém é em geral encarregado de tomar
decisões de acordo com padrões estabelecidos por uma determinada autoridade”9, seja
ela um órgão superior ou um regulamento, ou seja, somente há poder discricionário (discri-
cionariedade) nos sentidos fracos.
No fundo seu intento era criticar a pregação positivista da discricionariedade judicial
no sentido forte, ou seja, a afirmação de que os juízes, na ausência de uma regra clara e
explícita, decidem segundo seus próprios critérios, alheios a qualquer condicionamento.
Dworkin10 assevera que não se deve admitir que juízes criem direito pós-facto e os
apliquem retroativamente ao caso, pois todos concordam que ninguém deve ser obrigado a
fazer ou deixar de fazer alguma coisa, senão em virtude de lei existente e válida. Ademais,
o direito deve ser criado por pessoas eleitas pelo povo e não por juízes que não são legis-
ladores.
Essa visão, diga-se de passagem, discrepa frontalmente da de Mauro Cappelletti, o
qual entende que os juízes mesmo quando aplicam leis preexistentes criam o direito, pois a
interpretação sempre possui um certo grau de discricionariedade, haja vista que “discricio-
nariedade não quer dizer necessariamente arbitrariedade, e o juiz, inevitavelmente criador do
direito, não é necessariamente um criador completamente livre de vínculos. Na verdade, todo
o sistema jurídico civilizado procurou estabelecer e aplicar certos limites à liberdade judicial,
tanto processuais quanto substanciais.”11
Dworkin12 também não aceita que o Direito seja irremediavelmente subjetivo, moti-
vado por convicções particulares e “apenas uma questão do que cada juiz, individualmente,
acha melhor ou do que ele comeu no café da manhã”. Para resolver tudo isso ele dá vida a
um juiz de capacidade, sabedoria, paciência e sagacidade sobre-humanas, capaz de desen-
volver teorias sobre aquilo que a intenção legislativa e os princípios jurídicos requereriam,
batizando-o de Hércules.13
9
DWORKIN, Ronald. Levando os direitos à sério. Op. cit., p. 51.
10
DWORKIN, Ronald. Levando os direitos à sério. Op. cit., p. 132.
11
CAPPELLETTI, Mauro. Juízes legisladores? Trad. Carlos Alberto Alvaro de Oliveira. Porto Alegre: Sérgio Antonio
Fabris, 1999. p. 23-24.
12
DWORKIN, Ronald. Uma questão de princípio. Trad. Luís Carlos Borges. São Paulo: Martins Fontes, 2001. p. 242.
13
DWORKIN, Ronald. Levando os direitos à sério. Op. cit., p. 165.
Hércules, o gestor 365
Para Dworkin, o juiz Hércules ao lidar com casos difíceis (hard cases) não cria o
direito discricionariamente, mas usa de princípios morais colhidos da história institucional da
comunidade para encontrar uma única resposta correta.
Casos difíceis “são aqueles que, devidos razões diversas, não têm uma solução
abstratamente prevista e pronta no ordenamento, que possa ser retirada de uma prateleira de
produtos jurídicos”.14 Eles podem ter origem na ambiguidade da linguagem, nos desacordos
morais razoáveis existentes nas sociedades modernas e hipercomplexas e nas colisões de
normas constitucionais, sobretudo, principiológicas e de direitos fundamentais.
A única resposta correta consiste na afirmação de que mesmo não havendo uma
regra clara dispondo sobre o caso, pode haver um direito pré-estabelecido, cabendo ao juiz
descobri-lo com base nos princípios jurídicos que, embora muito gerais e abstratos, exigem
que o intérprete os densifique, atentando especialmente para as decisões anteriores, que
espelham à história institucional.
As decisões anteriores exercem sobre Hércules uma força gravitacional que o impele
a levá-las em consideração a cada nova decisão, restringindo desse modo seu juízo subje-
tivo e sua discricionariedade, devendo estar sempre atento para não cair na mera repetição
cega e acrítica do passado.
Na sua empreitada contra a discricionariedade judicial, no sentido forte, Dworkin
abriu caminho para o fim de outra discricionariedade, a administrativa, até mesmo no sentido
fraco por ele mencionado.
3 DISCRICIONARIEDADE ADMINISTRATIVA
Binenbojm15 relata que a discricionariedade tem sua origem no antigo Estado euro-
peu dos séculos XVI e XVIII, quando expressava a soberania decisória do monarca absoluto
(voluntas regis suprema lex). Era a época do Estado policial, onde o monarca era o estado e
o governo se confundia integralmente com a administração pública.
Com o advento do Estado de Direito a ideia original de discricionariedade passou
a ser questionada, pois vista como sinônimo de arbitrariedade monárquica não condizente
com limites jurídicos à atividade estatal que deve se pautar nos estritos limites da lei.
14
BARROSO, Luís Roberto. Curso de direito constitucional contemporâneo. Op. cit., p. 348.
15
BINENBOJM, Gustavo. Uma teoria do direito administrativo. Direitos fundamentais, democracia e constitucionali-
zação. 2. ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2008. p. 195.
366 Francisco Arlem de Queiroz Sousa
tipicamente, os direitos sociais pedem para sua execução a intervenção ativa do esta-
do, frequentemente prolongada no tempo. Diversamente dos direitos tradicionais, para
cuja proteção requer-se apenas que o estado não permita sua violação, os direitos
sociais – como o direito à assistência médica e social, à habitação, ao trabalho – não
podem ser simplesmente ‘atribuídos’.
16
A doutrina francesa nessa época se centrou na análise do Código Civil Francês de 1804 (conhecido como Códi-
go de Napoleão), expressão máxima do racionalismo, criando a Escola da Exegese e tendo como pensamento
filosófico o positivismo exegético, no qual o raciocínio jurídico era reduzido a um esquema silogístico formal de
subsunção que reduzia a atividade judicial a um raciocínio lógico-dedutivo, daí a figura do juiz “boca da lei”.
17
De acordo com Gordilho, “el cambio institucional no se produjo de um día para outro y em todos los aspectos, ni
está todavia terminado: no solamente quedan etapas por cumplir em el lento abandono de los princípios de las
monarquias absolutas u otros autoritarismos, sino que existen frecuentes retrocesos em el mundo em general”
(GORDILHO, Agustín A. Tratado de derecho administrativo. 3. ed. Buenos Aires: Macchi, 1995. p. 2-5).
18
CAPPELLETTI, Mauro. Juízes legisladores? Op. cit., p. 39-41.
Hércules, o gestor 367
rio da administração, a qual teve que desenvolver funções sociais incorporadas pelo estado,
partindo-se, então para a doutrina da vinculação positiva, segundo a qual a administração
pública somente pode fazer o que a lei determinar.
Entretanto, o Estado Social que surgiu para atender, ao menos em tese, as necessi-
dades de uma nova classe social emergente que clamava por prestações materiais, redução
das desigualdades e justiça, não consegue corrigir as injustiças promovidas pelo Estado Li-
beral e ingressa em decadência entre as décadas de 60 e 70, impulsionada pelos sucessivos
colapsos econômicos, pelo custo da máquina estatal e da política assistencialista.
O Estado Democrático de Direito que se funda na soberania popular emerge dessa
crise na tentativa de amoldar o Estado de Direito ao Estado Social, não se restringindo a
uma adaptação melhorada das condições sociais de existência, mas institucionalizando a
participação popular em uma perspectiva voltada à transformação do status quo que consiga
promover uma nova realidade.
Nesse novo paradigma estatal é que se apresenta a discricionariedade administrativa
como um instituto jurídico necessário para “formalizar e adequar a autonomia das escolhas
do administrador público pela supremacia do princípio da legalidade”.19
Para Engisch,20 o “autêntico poder discricionário é atribuído pelo direito e pela lei
quando a decisão última sobre o justo (correcto, conveniente, apropriado) no caso concreto
é confiada à responsabilidade de alguém”, não apenas porque não se possa excluir a inse-
gurança por mais minúcias a que desçam as regras, mas também porque em determinadas
situações o ponto de vista de alguém responsável por suas obrigações pode apresentar a
melhor solução.
Entende-se por discricionariedade, segundo a visão de Meirelles,21 “o Poder dis-
cricionário que o Direito concede à Administração, de modo explícito ou implícito, para a
prática de atos administrativos com liberdade na escolha de sua conveniência, oportunidade
e conteúdo.”.22
19
JUSTEN FILHO, Marçal. Curso de direito administrativo. 9. ed., rev., atual e ampl. São Paulo: Revista dos Tribunais,
2013. p. 241.
20
ENGISCH. Karl. Introdução ao pensamento jurídico. Trad. João Baptista Machado. Lisboa: Fundação Calouste
Gulbekian, 2001. p. 222.
21
MEIRELLES, Hely Lopes. Direito administrativo brasileiro. 42. ed., atual. até a Emenda Constitucional 90, de
15.9.2015. São Paulo: Malheiros, 2016. p. 139.
22
Juarez de Freitas relaciona-a com o direito fundamental à boa administração, propondo uma reconceituação do
termo, no sentido de entendê-la como dever de avaliar e eleger, concretamente as melhores consequências diretas
e indiretas para as políticas públicas, observando as prioridades constitucionais, no uso pertinente e eficaz dos
recursos disponíveis (FREITAS, Juarez. As políticas públicas e o direito fundamental à boa administração. Revista
do Programa de Pós-Graduação em Direito da UFC – NOMOS, v. 35, n. 1, p. 195-217, jan./jun. 2015. Disponível
em: http://www.periodicos.ufc.br/nomos/article/view/2079/1555. Acesso em: 9 ago. 2019).
368 Francisco Arlem de Queiroz Sousa
23
“Discricionariedade é a margem de liberdade de decisão, conferida ao administrador pela norma de textura aberta,
com o fim de que ele possa proceder, mediante a ponderação comparativa dos interesses envolvidos no caso
específico, à concretização do interesse público ali indicado, para, à luz dos parâmetros traçados pelos princípios
constitucionais da Administração Pública e pelos princípios gerais de Direito e dos critérios não positivados de
conveniência e de oportunidade: [...]” (MORAES, Germana de Oliveira. Controle jurisdicional da administração
pública. 2. ed. São Paulo: Dialética, 2004. p. 37-48).
24
MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Discricionariedade e controle jurisdicional. 2. ed. São Paulo: Malheiros, 1993.
p. 48.
25
LOCKE, John. Dois tratados sobre o governo. Trad. Júlio Fischer. São Paulo: Martins Fontes, 2005.
Hércules, o gestor 369
26
MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Discricionariedade e controle jurisdicional. Op. cit., p. 34.
27
Ilustrativo dessa inconveniência e de como a discricionariedade é necessária foi a polêmica em torno do critério
econômico para concessão do benefício de prestação continuada – BPC. A Lei n. 8.742/1993 vinculou a Admi-
nistração de modo que somente concedesse esse benefício ao incapaz de prover a manutenção da pessoa com
deficiência ou idosa, cuja família tivesse renda mensal per capita inferior a 1/4 (um quarto) do salário-mínimo
(§ 3º do art. 20). Ao determinar objetivamente os pressupostos de fato para concessão do BPC, o legislador
ordinário relegou ao desamparo milhões de necessitados que, muito embora, não satisfizessem abstratamente o
critério puramente econômico, eram insofismavelmente miseráveis que necessitavam do auxílio estatal, muitas
vezes mais do que outros que se enquadravam na moldura normativa.
28
KELSEN, Hans. Teoria pura do Direito. Trad. João Baptista Machado. 6. ed. São Paulo: Martins Fontes, 1998.
29
KELSEN, Hans. Teoria pura do Direito. Op. cit., p. 246.
30
KELSEN, Hans. Teoria pura do Direito. Op. cit., p. 246.
31
QUEIRÓ, Afonso Rodrigues. A teoria do “desvio de poder” em direito administrativo. Revista de Direito Administra-
tivo, Rio de Janeiro, v. 6, p. 57, out. 1946. ISSN 2238-5177. DOI: http://dx.doi.org/10.12660/rda.v6.1946.9571.
Disponível em: http://bibliotecadigital.fgv.br/ojs/index.php/rda/article/view/9571. Acesso em: 6 ago. 2019.
370 Francisco Arlem de Queiroz Sousa
para a individualização que não pode ser ultrapassado, sob pena de perderem sua abstração
e o legislador sacrificar sua qualidade com tal.
A primeira norma brasileira a versar sobre discricionariedade foi a Lei n. 221, de 20
de janeiro de 1894, que em seu art. 13, § 9º, alínea “a”, reza que a “autoridade judiciaria
fundar-se-á em razões jurídicas, abstendo-se de apreciar o merecimento de actos adminis-
trativos, sob o ponto de vista de sua conveniência ou oportunidade”.
Assevera-se que discricionariedade não se deve confundir com interpretação, pois
essa precede àquela na atividade de revelar sentido ao texto normativo, algo diferente das
escolhas predeterminadas pelo próprio legislador e que dão ensejo ao uso da discriciona-
riedade. Na interpretação se extrai a norma jurídica contida no enunciado normativo para na
sequência se aferir se há margens de escolha à autoridade pública.
Nessa senda, em face da introdução dos princípios nas constituições e com o reco-
nhecimento de sua força normativa a própria administração pública passou a ser enquadrada
por princípios como o da impessoalidade, moralidade, eficiência, sujeitando-se à nova her-
menêutica que veio para lidar com a imprecisão e indeterminação semântica características
dessa tipologia de normas.
Resultado disso é que hoje o direito público vive um ambiente de “geleia geral”32 em
virtude de tantos excessos e distorções hermenêuticas comprometedoras da governabilida-
de, somada à crítica de grande parte da doutrina administrativa que entende ser retrógrado
ou positivista demais falar em discricionariedade administrativa ou defender a existência de
uma reserva da administração.33
32
SUNDFELD, Carlos Ari. Direito administrativo para céticos. 2. ed. São Paulo: Malheiros, 2012. p. 205.
33
Engraçado que quando se trata do Judiciário invadir a competência do Executivo, o ministro Celso de Mello parece
desconhecer a existência de (mais) um “princípio constitucional”, o da reserva de administração, conforme se
observa no ARE 639337 AgR/SP, comentado na nota de rodapé n. 47, infra. Contudo, ao julgar casos em que não
está em jogo a autopreservação da esfera de poder do Judiciário, o eminente ministro defende eloquentemente
a separação de poderes com base no referido princípio, como se observa no EDRE 427.574-MG: “O princípio
constitucional da reserva de administração impede a ingerência normativa do Poder Legislativo em matérias
sujeitas à exclusiva competência administrativa do Poder Executivo. É que, em tais matérias, o Legislativo não se
qualifica como instância de revisão dos atos administrativos emanados do Poder Executivo. [...] Não cabe, desse
modo, ao Poder Legislativo, sob pena de grave desrespeito ao postulado da separação de poderes, desconstituir,
por lei, atos de caráter administrativo que tenham sido editados pelo Poder Executivo, no estrito desempenho de
suas privativas atribuições institucionais. Essa prática legislativa, quando efetivada, subverte a função primária
da lei, transgride o princípio da divisão funcional do poder, representa comportamento heterodoxo da instituição
parlamentar e importa em atuação ultra vires do Poder Legislativo, que não pode, em sua atuação político-jurídica,
exorbitar dos limites que definem o exercício de suas prerrogativas institucionais” (BRASIL, Supremo Tribunal
Federal. Embargo de Declaração no Recurso Extraordinário n. 427574 – Minas Gerais. 2ª Turma. Embargante:
Câmara Municipal de Belo Horizonte. Embargado: Município de Belo Horizonte. Rel. Min. Celso de Mello, Brasília.
Julgado em 13 de dez. de 2011. Diário da Justiça Eletrônico de 13 de fev. de 2012).
Hércules, o gestor 371
Com o passar dos anos houve uma invasão do mérito administrativo pelo Poder
Judiciário e várias teorias deram suporte a isso, como a teoria do desvio de poder,34 a teoria
dos motivos determinantes,35 a teoria dos conceitos jurídicos indeterminados36 e a constitu-
cionalização dos princípios,37 com o advento do pós-positivismo.
O pós-positivismo pode ser apresentado como um movimento jus-filosófico que
surgiu após a segunda guerra mundial em razão das barbáries cometidas pelos nazistas, os
quais procuraram justificar suas atrocidades com a alegação de que apenas cumpriam leis.
Daí, seguiu-se a necessidade de humanizar essas leis, incorporando nelas valores
que conduzissem à percepção de que a pessoa humana, bem como a sua dignidade, deve
estar no centro das preocupações do ordenamento jurídico.
Nesse sentido, o pós-positivismo38 se apresenta como uma terceira via interme-
diária entre o jusnaturalismo e o positivismo, que buscar reaproximar o direito da moral,
introduzindo os valores na interpretação jurídica; reconhecendo que princípios são normas
34
O desvio de poder ocorre quando o ato praticado não visa a finalidade legal, se desviando do alvo. Nasceu na Fran-
ça com a decisão do Conselho de Estado de 25 de fevereiro de 1864, confirmada em 7 de junho de 1865, no caso
Lesbats, em que se anulou ato do Prefeito de Fontainebleau que, no uso do poder de polícia, negara autorização a
um cidadão para o ingresso de viaturas no pátio da estação da estrada de ferro, pois sua intenção era beneficiar
outro transportador, ao invés de prover o atendimento satisfatório dos usuários, como deveria ser (TÁCITO, Caio.
Teoria e prática do desvio de poder. Revista de Direito Administrativo, Rio de Janeiro, v. 117, p. 5, nov. 1974. ISSN
2238-5177. Disponível em: http://bibliotecadigital.fgv.br/ojs/index.php/rda/article/view/40110. Acesso em: 24 jul.
2019).
35
Essa teoria vincula o administrador ao motivo declarado, ou seja, a validade do ato administrativo depende da
validade dos motivos apresentados. Por ela se predica que se o agente enunciar os motivos para a prática de de-
terminado ato, ainda que não haja obrigação legal expressa para isso, o ato só será válido se a situação declarada
for verídica.
36
A celeuma entorno da relação entre conceitos jurídicos indeterminados e discricionariedade administrativa data
de meados do século XIX, quando Edmund Bernatzik, em 1886, defendeu a Teoria da Multivalência ou Duplicidade
que dizia existir na interpretação e aplicação dos conceitos jurídicos indeterminados a possibilidade de várias
interpretações discricionárias; e, Friedrich Tezner que, em 1888, advogou a Teoria da Unicidade, na qual os con-
ceitos jurídicos indeterminados somente apontam para uma solução correta, a qual deve ser encontrada por meio
da interpretação adequada.
37
DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Direito administrativo. 31. ed., rev., atual e ampl. Rio de Janeiro: Forense, 2018.
p. 297.
38
Importante assinalar que neoconstitucionalismo e pós-positivismo representam realidades distintas, muito em-
bora tenham pontos de contato. O primeiro termo é atribuído a Susanna Pozzolo que o utilizou pioneiramente em
1997 no XVIII Congresso Mundial de Filosofia Jurídica e Social, realizado em Buenos Aires. Segundo Pozzolo: “Si
bien es cierto que la tesis sobre la especificidad de la interpretación constitucional encuentra partidarios en diver-
sas disciplinas, en el ámbito de la filosofía del derecho viene defendida, en particular, por un grupo de iusfilósofos
que comparten un peculiar modo de acercarse ao derecho. He llamado a tal corriente de pensamiento neocons-
titucionalismo. Me refiero, en particular, a autores como Ronald Dworkin, Robert Alexy, Gustavo Zagrebelsky y,
sólo en parte, Carlos S. Nino” (POZZOLO, Susanna. Neoconstitucionalismo y especificidade de la interpretación.
Doxa – Cuadernos de Filosofia del Derecho, Alicante, v. 2, n. 21, 1998. p. 339).
372 Francisco Arlem de Queiroz Sousa
39
BARROSO, Luís Roberto. Curso de direito constitucional contemporâneo. Op. cit., p. 520.
40
MORAES, Germana de Oliveira. Controle jurisdicional da administração pública. Op. cit., p. 37-48, p. 112.
41
DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Direito administrativo. Op. cit., p, 297.
42
DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Direito administrativo. Op. cit., p. 297-298.
Hércules, o gestor 373
Como bem articula Carlos Ari Sundfeld,43 “a ordem jurídica ampliou-se gigantesca-
mente, e passou a distribuir direitos de modo indeterminado e aberto. Ela não se limita, como
em algum passado, a atribuir e proteger direitos específicos; passou a conferir, a grupos e
pessoas, direitos em construção. Parte importante da ordem jurídica atual se dirige ao le-
gislador e ao administrador público e tenta antecipar seu trabalho na construção de direitos
– por meio de normas iniciais, de princípios”.
As arbitrariedades começam logo no batismo, pois todo doutrinador que dá vida a
um princípio, gestado de alguma palavra com mais de uma acepção no vernáculo, se sente
no direito de escolher o nome do recém-nascido. Com isso, mais um membro é registrado
na numerosa família dos princípios e estará apto para solucionar inúmeros casos concretos,
bastando referenciar a sua alcunha.
Marcelo Neves alerta para a panaceia que se criou com a invocação de princípios:
“Por um lado, a invocação aos princípios (morais e jurídicos) apresentava-se como panaceia
para solucionar todos os males da nossa prática jurídica e constitucional. Por outro, a retóri-
ca principialista servia ao afastamento de regras claras e ‘completas’, para encobrir decisões
orientadas à satisfação de interesses particularistas.” 44
O fetichismo pelos princípios é visto como algo bom e respeitar a lei se tornou ul-
trapassado. Com isso o juiz acaba tomando conta de um poder que não lhe foi dado e suas
convicções pessoais findam por prevalecer em detrimento da discricionariedade conferida
pela lei ao gestor.
Os princípios, em função de sua linguagem aberta, têm sido utilizados equivocada-
mente para manipular decisões de acordo com a necessidade ou interesses de cada caso
concreto. A febre principiológica, além de banalizar e vulnerabilizar a força dos princípios
constitucionais, em especial o da dignidade da pessoa humana, tem servido para substituir
o gestor pelo juiz.
Lênio Streck ao tratar da discricionariedade judicial esclarece que “se trata, sim, de
discutir – ou, na verdade, pôr em xeque – o grau de liberdade dado ao intérprete (juiz) em
face da legislação produzida democraticamente, com dependência fundamental da Consti-
tuição”.45
O princípio da dignidade humana, que pode estar em vários lugares ao mesmo tem-
po, ainda que antagônicos, acolhe também os direitos fundamentais de segunda geração,
tais como saúde, educação, moradia, lazer e previdência social, sendo que a aceitação de
43
SUNDFELD, Carlos Ari. Direito administrativo para céticos. op. cit., p. 217.
44
NEVES, Marcelo. Abuso de princípios no Supremo Tribunal Federal. Consultor Jurídico, out. 2012. Disponível em:
https://www.conjur.com.br/2012-out-27/observatorio-constitucional-abuso-principios-supremo-tribunal. Acesso
em: 21 ago. 2019.
45
STRECK, Lenio. Verdade e consenso: Op. cit., p. 49.
374 Francisco Arlem de Queiroz Sousa
que esses direitos previstos constitucionalmente têm eficácia imediata,46 devendo ser ga-
rantido pelos juízes em casos concretos, tem feito com que as escolhas administrativas
sejam tomadas pelo Judiciário.47
Mas competindo ao Poder Executivo, encarregado da função de administrar, a tarefa
de realizar escolhas trágicas, diante da impossibilidade de atender plenamente todas as pres-
tações sociais, não caberia ao Judiciário tomar-lhe o lugar, como se a única decisão correta
somente pudesse ser encontrada pelo juiz, estigmatizando os gestores como incapazes,
incompetentes ou corruptos.
Como grande parte dos princípios tem fundamento na própria Constituição, uma das
consequências de sua introdução nos textos constitucionais foi a ampliação do controle ex-
terno sobre a gestão, fazendo com que os agentes públicos tenham medo de decidir e prefi-
ram soluções cartesianas, diante de tantos riscos e condicionantes aos quais estão sujeitos.
Com o agigantamento do Poder Judiciário, imiscuindo-se sobre searas de compe-
tência dos outros Poderes com esteio na febre principiológica que avançou sobre todos os
46
Gomes Canotilho critica a leitura enviesada feita no § 1º do art. 5º da Constituição brasileira ao proclamar a
aplicabilidade imediata das normas definidoras de direitos e garantias fundamentais: “O problema está não na con-
testação da bondade política e dogmática da vinculatividade imediata, mas sim no alargamento não sustentável
da força normativa directa das normas constitucionais a situações necessariamente carecedoras da interpositio
legislativa. É o que acontece, a nosso ver, com a crítica transferência do princípio da aplicabilidade imediata con-
sagrado no artigo 5º, LXXVII, 1º, da Constituição brasileira, a todos os direitos e garantias fundamentais de forma
a abranger indiscriminadamente os direitos sociais consagrados no Capítulo II.” (CANOTILHO, José Joaquim
Gomes. Constituição dirigente e vinculação do legislador. 2. ed. Coimbra: Coimbra, 2001. p. XVI).
47
Cite-se como exemplo a decisão proferida no ARE 639337 AgR/SP, da lavra do Ministro do Supremo Tribunal
Federal, Celso de Mello: “EMENTA: criança de até cinco anos de idade – atendimento em creche e em pré-escola
– sentença que obriga o município de São Paulo a matricular crianças em unidades de ensino infantil próximas
de sua residência ou do endereço de trabalho de seus responsáveis legais, sob pena de multa diária por criança
não atendida – legitimidade jurídica da utilização das “astreintes” contra o poder público – doutrina – jurispru-
dência – obrigação estatal de respeitar os direitos das crianças – educação infantil – direito assegurado pelo
próprio texto constitucional (cf, art. 208, iv, na redação dada pela EC n. 53/2006) – compreensão global do direito
constitucional à educação – dever jurídico cuja execução se impõe ao poder público, notadamente ao município
(cf, art. 211, § 2º) – legitimidade constitucional da intervenção do poder judiciário em caso de omissão estatal
na implementação de políticas públicas previstas na constituição – inocorrência de transgressão ao postulado da
separação de poderes – proteção judicial de direitos sociais, escassez de recursos e a questão das “escolhas
trágicas” – reserva do possível, mínimo existencial, dignidade da pessoa humana e vedação do retrocesso social
- pretendida exoneração do encargo constitucional por efeito de superveniência de nova realidade fática – questão
que sequer foi suscitada nas razões de recurso extraordinário – princípio “jura novit curia” – invocação em sede
de apelo extremo - impossibilidade – recurso de agravo improvido. Políticas públicas, omissão estatal injustificável
e intervenção concretizadora do poder judiciário em tema de educação infantil: possibilidade constitucional” (BRA-
SIL. Supremo Tribunal Federal. Agravo Regimental no Recurso Extraordinário 436.996-6 – São Paulo. 2ª Turma.
Agravante: Município de Santo André. Agravado: Ministério Público do Estado de São Paulo. Rel. Min. Celso de
Mello. Brasília. Diário da Justiça Eletrônico n. 177. Divulgação em: 14 set. 2011. Publicação: 15 set. 2011).
Hércules, o gestor 375
campos do direito, está havendo uma certa paralisia da máquina administrativa por conta da
retração do gestor público que passou a ter medo de usar da discricionariedade conferida a
ele por lei.
A política do medo finca raízes cada vez mais profundas no solo da administra-
ção pública, transformando os gestores em meros robôs aplicadores da lei, quando não se
omitem para protegerem seu nome e seu patrimônio, perante a possibilidade de tomarem
decisões de boa-fé e mesmo assim virem a ser condenados ao pagamento de multas, dentre
outras sanções.
Cada vez mais acuado o gestor público se vê reduzido a um objeto de direito, tal qual
uma cadeira, pois tolheram-lhe a liberdade criativa. Seu papel é cumprir, ainda que não sejam
a melhor opção, recomendações da controladoria, do ministério público, as decisões do
judiciário e do tribunal de contas, pois a inobservância, ainda que de meras recomendações,
será punida gravemente com processos administrativos disciplinares, sanções de improbi-
dade administrativa e condenações pesadas.
O exercício da competência discricionária então passou a configurar hards cases em
face de tantos fatores que devem ser levados em conta pelo agente público – proporcionali-
dade em suas três vertentes (adequação, necessidade e proporcionalidade em sentido estri-
to), melhor interesse público, reserva do possível, prevaricação, desvio de finalidade, abuso
de poder, improbidade, consequências práticas da decisão48 - estando sempre sujeito a que
um juiz, com base em algum princípio abstrato condene seu agir e lhe impute uma multa a
ser paga com a remuneração auferida pelo exercício do cargo, tirando do próprio sustento
e de sua família.
Com isso, cada vez mais se impõe que a administração pública seja gerida por seres
dotados de poderes sobrenaturais, os quais sejam capazes de encontrar a única solução
correta ou não, pois, como o próprio Dworkin assevera, a tese da única solução correta
também é uma metáfora, mas pelo menos encontrar a decisão que agrade ao juiz e consiga
satisfazer sua discricionariedade. Em suma: é necessário que Hércules peça exoneração do
cargo de juiz e que tome posse como gestor público em algum ministério.
Somente Hércules com sua capacidade, sabedoria, paciência e sagacidade sobre-
-humanas conseguirá desenvolver teorias sobre aquilo que a intenção legislativa e o “carna-
val” de princípios jurídicos requerem, reduzindo a zero a discricionariedade administrativa em
face do seu poder de encontrar a única resposta correta.
48
Conferir o novo art. 20 da Lei de Introdução as Normas do Direito Brasileiro: “Nas esferas administrativa,
controladora e judicial, não se decidirá com base em valores jurídicos abstratos sem que sejam consideradas
as consequências práticas da decisão” (BRASIL. Lei n. 13.655, de 25 de abril de 2018. Inclui no Decreto-Lei n.
4.657, de 4 de setembro de 1942 (Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro), disposições sobre segu-
rança jurídica e eficiência na criação e na aplicação do direito público. Brasília: Presidência da República, 2018.
Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2015-2018/2018/Lei/L13655.htm#art1. Acesso em: 19
jul. 2019.
376 Francisco Arlem de Queiroz Sousa
O gestor Hércules não deixará que sua vontade subjetiva influencie no processo
decisório e adotará soluções válidas somente com base em tudo que se apurou no procedi-
mento, ou seja, suas conclusões levam sempre a um resultado que, ao fim e ao cabo, seria
vinculado, pois não qualquer outra melhor alternativa.
Hércules sabe que os recursos são finitos e as necessidades infinitas, mesmo assim
conseguirá suprir todas as demandas por direitos sociais, pois como ele é dotado de astúcia
e sagacidade divinas terá sabedoria contábil suficiente para elaborar uma peça orçamentária
que atenda a reserva do possível e do impossível.
Ademais, Hércules, diferentemente de seus pares, não tem medo do controle juris-
dicional (nem do Ministério Público, é até bem entrosado com seus procuradores), pois ele
enfrenta os fatos à luz de todos os princípios, gerais do direito e constitucionais, explícitos
ou implícitos, bem como daqueles que porventura vierem a ser criados após sua escolha. Ele
sabe que sua discricionariedade sempre acerta em cheio no alvo.
O multicitado herói desce à fundo em cada questão posta a sua análise, avaliando
previamente as consequências de suas escolhas, com base em uma prognose infalível que
não deixa margem para qualquer questionamento acerca proporcionalidade, razoabilidade,
eficiência, efetividade, eficácia, economicidade, moralidade, enfim, juridicidade de suas de-
cisões, democráticas, diga-se de passagem, pois Hércules sempre está atento ao que dizem
as ruas, ou melhor, aos consensos, aos paradigmas e às compreensões que os membros
da comunidade política partilham.
6 CONSIDERAÇÕES FINAIS
49
CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Constituição dirigente e vinculação do legislador. Op. cit., p. XI.
Hércules, o gestor 377
50
A expressão é de Michel Foucault ao narrar que o poder antes era personificado na figura do soberano, mas com a
modernidade ele se dissemina nas instituições sob a forma de disciplina, docilizando lenta e paulatinamente os se-
res humanos até que tudo pareça estar como sempre esteve: normal. “É dócil um corpo que pode ser submetido,
que pode ser utilizado, que pode ser transformado e aperfeiçoado” (FOUCAULT, Michel. Vigiar e punir: nascimento
da prisão. Trad. Raquel Ramalhete. Petrópolis: Vozes, 1987. p. 163).
51
Notório desse fato são as nomeações de ministros de estado, típico ato político-discricionário do presidente da
República, que têm sido impedidos pelo Supremo Tribunal Federal, como ocorreu com o ex-presidente Luís Inácio
Lula da Silva e de Moreira Franco, que nomeados pelos ex-presidentes Dilma Rousseff e Michel Temer, respecti-
vamente, tiveram suas nomeação obstadas por liminares.
52
Desde Rui Barbosa que se conhece (Habeas Corpus 300, impetrado por Ruy Barbosa em 1892 em defesa do
almirante Eduardo Wandenkolk), entre nós, a political question doctrine do Estados Unidos, a qual compartilha do
mesmo berço do controle de constitucionalidade das normas, proferidas na célebre decisão do Chief de Justiça
Jonh Marshall (Marbury x Madison) de 1803. Por essa doutrina certas matérias são de cunho político e discri-
cionário do Poder Executivo e não pode o Judiciário nelas se imiscuir. Com a judicialização da política, fenômeno
mundial, mas que entre nós tem se destacado com maior vigor) essa doutrina tem sofrido sérios abalos à ponto de
praticamente inexistir seara imune à competência judicial. Na França são denominados atos de governo para fazer
referência a autolimitação que o próprio Conselho de Estado se impôs em apreciar atos do Executivo. A decisão
pioneira ocorreu em 1822, quando o baqueiro Laffitte resolveu cobrar do governo o valor aproximado de 670.000
(seiscentos e setenta mil) francos referente a uma verba não paga pela Princesa Borghese. Na decisão o Conselho
de Estado assentou: “Considérant que la réclamation du sieur B. tient à une question politique, dont la décision
appartient exclusivement au gouvernement”. FRANÇA. Revue générale du droit. Conseil d’Etat, ORD, 1 mai 1822,
Laffitte, requête numéro 5363, Rec. 1821-1825 p. 202. Disponível em: https://www.revuegeneraledudroit.eu/blog/
decisions/conseil-detat-ord-1-mai-1822-laffitte-requete-numero-5363-rec-1821-1825-p-202/. Acesso em: 25
jul. 2019.
53
GABARDO, Emerson. O jardim e a praça para além do bem e do mal. 2009. 409p. Tese (Doutorado em Direito do
Estado) – Setor de Ciências Jurídicas, Universidade Federal do Paraná, Curitiba, 2009. p. 3.
378 Francisco Arlem de Queiroz Sousa
pode sempre deixar afinal de contas um resto teoreticamente ininterpretável tanto para um
como para o outro.54
O próprio Kelsen, citado por Queiró, escreve que “para a construção jurídica não
constitui qualquer diferença relevante saber se o poder discricionário compete a um órgão
jurisdicional ou a um órgão administrativo. Em ambas as formas do executivo o poder discri-
cionário é o mesmo; são possíveis todas as espécies de poder discricionário”.55
Então a afirmação peremptória de Celso Antônio Bandeira de Mello,56 citando Gon-
çalves Pereira, de que “[...] Reduzir a discricionariedade à simples formulação de um juízo é
afinal negar o próprio poder discricionário, reconduzir todo o poder à vinculação e pôr-se em
contradição manifesta com o Direito Positivo” é muito atual.
Acuado, o gestor público se esconde e tem medo de usar o pouco de discricionarie-
dade conferida pela lei que ainda não foi restringida à zero pela miríade de princípios que lhe
cercam. Seu número de CPF57está sob vigilância constante e ele precisa protegê-lo, por isso
os bons profissionais estão fugindo do serviço público com receio de serem responsabiliza-
dos, mesmo agindo de boa-fé.
Urgentemente, Hércules precisa ser empossado para dignificar uma classe de ser-
vidores que está cada vez mais refém do medo e da insegurança jurídica, envoltos em uma
crise de legitimidade democrática.
Em que pese todo o apelo retórico que a metáfora do juiz, e agora do gestor, Hércules
possa ter, é necessário reconhecer que não existem deuses (nem demônios) que possam
auxiliar na escolha da melhor ou da única decisão correta.
Tudo aquilo que deve e precisa ser feito está ao alcance de pessoas comuns, basta
bom senso, humildade, respeito e diálogo constante entre os atores estatais e as instituições
democráticas para que se consiga cumprir a árdua missão de promover a justiça, diminuir
as desigualdades sociais, formar cidadãos e garantir o bem de todos.
REFERÊNCIAS
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2015.
BONAVIDES, Paulo. Curso de direito constitucional. 25. ed. São Paulo: Malheiros, 2009.
54
QUEIRÓ, Afonso Rodrigues. A teoria do “desvio de poder” em direito administrativo. Op. cit.
55
QUEIRÓ, Afonso Rodrigues. A teoria do “desvio de poder” em direito administrativo. Op. cit., p. 47.
56
MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Curso de direito administrativo. 30. ed. São Paulo: Malheiros, 2013. p. 988.
57
Sigla para Cadastro de Pessoa Física.
Hércules, o gestor 379
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titucionalização. 2. ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2008.
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criação e na aplicação do direito público. Brasília: Presidência da República, 2018. Disponível em: http://
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BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Agravo Regimental no Recurso Extraordinário 436.996-6 – São
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380 Francisco Arlem de Queiroz Sousa
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SEGUNDO LUGAR
Gustavo Martinelli
Mestrando em Direito (PUCPR)
Membro do Núcleo de Pesquisa em Políticas Públicas e
Desenvolvimento Humano (PUCPR)
Advogado
1 INTRODUÇÃO
1
Trata-se de lobby privado, ou lobby em sentido estrito. Diversamente, ao trabalhar com a ideia de lobby em sentido
amplo, Andréa Cristina de Oliveira identifica quatro espécies, classificando-os em lobby público, lobby classista,
lobby institucional e, enfim, lobby privado, conforme os agentes ativos envolvidos. Nesse sentido: OLIVEIRA,
Andréa Cristina de Jesus. Lobby e representação de interesses: lobistas e seu impacto sobre a representação
de interesses no Brasil. 2004. 296p. Tese (Doutorado) – Instituto de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade
Estadual de Campinas, Campinas, 2004.
382 Gustavo Martinelli
pela teoria econômica ortodoxa. Defende-se que, sendo impossível ao agente econômico
atingir o comportamento maximizador, espera-se que o decisor se aproxime da escolha sa-
tisfatória conforme recebe informações relevantes.
A segunda seção apresenta a atividade de lobby enquanto um procedimento de co-
lheita e distribuição de informação aos tomadores de decisão, descrevendo-se sucintamente
as principais estratégias adotadas no contexto brasileiro para influenciar as instituições em
favor de determinados segmentos sociais. A moldura conceitual e metodológica desenhada
exclui a consideração de comportamentos ilícitos, bem como se restringe à decisão no
ambiente de defesa do interesse público.
Adiante, o terceiro capítulo estuda os limites e o impacto do lobby sobre a formação
da decisão política. Discorre-se sobre outros fatores capazes de influenciar igualmente na
tomada de decisão, tais como o perfil do decisor, o contexto socioeconômico em que a deci-
são é feita, bem como o tipo da decisão na agenda política. Em complemento, demonstra-se,
através de um modelo estatístico, como o lobby pode servir para notificar o policy maker
acerca da opinião popular sobre determinada decisão, contribuindo para fortalecer o liame
entre o representante político e a base eleitoral.
Por fim, valendo-se de método dedutivo a partir de levantamento bibliográfico, con-
clui-se que a participação de lobbies no contexto da racionalidade limitada dos agentes
econômicos contribui para aprimorar a qualidade das decisões tomadas e para desenhar
alternativas mais satisfatórias para as questões objeto de decisão.
2
STEINGRABER, Ronivaldo; FERNANDEZ, Ramon Garcia. A racionalidade limitada de Herbert Simon na microeco-
nomia. Revista da Sociedade Brasileira de Economia Política, n. 34, p. 123-162, fev. 2013. p. 03.
O lobby como facilitador da decisão pública satisfatória 383
3
STEINGRABER, Ronivaldo; FERNANDEZ, Ramon Garcia. A racionalidade limitada de Herbert Simon na microeco-
nomia. Op. cit., p. 03.
4
Nessa construção ideal, o homem econômico é aquele que pensa e decide infalivelmente bem, optando pela
melhor escolha após ter acessado a completude das informações disponíveis, sopesado todas as alternativas
viáveis e planejado todas as contingências futuras. É, portanto, um retrato de um sujeito capaz de “pensar como
Albert Einstein, armazenar tanta memória quanto o Big Blue da IBM e ter a força de vontade de Mahatma Gandhi”,
cf. THALER, Richard H.; SUSTEIN, Cass R. Nudge: o empurrão para a escolha certa – aprimore suas decisões
sobre saúde, riqueza e felicidade. Rio de Janeiro: Elsevier, 2009. p. 08.
5
BLAUG, Mark. Metodologia e economia ou como os economistas explicam. São Paulo: Edusp, 1999. p. 315.
6
STEINGRABER, Ronivaldo; FERNANDEZ, Ramon Garcia. A racionalidade limitada de Herbert Simon na microeco-
nomia. Op. cit., p. 04.
7
MELO, Tatiana Massoroli; FUCIDJI, José Ricardo. Racionalidade limitada e tomada de decisão em sistemas com-
plexos. Revista de economia política, v. 36, n. 3 (144), p. 622-645, jul./set. 2016. p. 624.
8
THALER, Richard H.; SUSTEIN, Cass R. Nudge: Op. cit., p. 11.
384 Gustavo Martinelli
9
SOUZA, Celina. Políticas públicas: uma revisão de literatura. Sociologias, Porto Alegre, ano 8, n. 16, p. 20-45, jul./
dez. 2016. p. 23-24.
10
MELO, Tatiana Massoroli; FUCIDJI, José Ricardo. Racionalidade limitada e tomada de decisão em sistemas com-
plexos. Op. cit., p. 624.
11
MELO, Tatiana Massoroli; FUCIDJI, José Ricardo. Op. cit., p. 629.
12
OLIVEIRA, Kamila Pagel de Oliveira; DE PAULA, Ana Paula Paes. Herbert Simon e os limites do critério de eficiência
na nova administração pública. Cadernos de gestão pública e cidadania, São Paulo, v. 19, n. 64, jan./jul., 2014.
p. 118.
O lobby como facilitador da decisão pública satisfatória 385
13
SIMON, Herbert A. Comportamento administrativo: estudo dos processos decisórios nas organizações adminis-
trativas. 2. ed. Rio de Janeiro: Fundação Getúlio Vargas, 1970. p. XXIV.
14
SIMON, Herbert A. Comportamento administrativo: Op. cit., p. XXV.
15
Thaler e Sustein criticam esse mecanismo ao apresentarem aquilo que denominam de comportamento dinamica-
mente inconsistente. “Podemos ver a inconsistência dinâmica em várias situações. Nas manhãs de sábado, as
pessoas podem dizer quer preferem fazer exercícios a assistir televisão, mas quando chega a tarde, elas estão no
sofá, em casa, assistindo ao jogo de futebol” cf. THALER, Richard H.; SUSTEIN, Cass R. Nudge: Op. cit., p. 44.
16
MELO, Tatiana Massoroli; FUCIDJI, José Ricardo. Racionalidade limitada e tomada de decisão em sistemas com-
plexos. Op. cit., p. 625.
386 Gustavo Martinelli
17
MELO, Tatiana Massoroli; FUCIDJI, José Ricardo. Racionalidade limitada e tomada de decisão em sistemas com-
plexos. Op. cit., p. 625.
18
OLIVEIRA, Kamila Pagel de Oliveira; DE PAULA, Ana Paula Paes. Herbert Simon e os limites do critério de eficiência
na nova administração pública. Op. cit.
19
COSTA, Pietro. Poucos, muitos, todos: lições de história da democracia. Curitiba: Editora UFPR, 2012. p. 300.
O lobby como facilitador da decisão pública satisfatória 387
20
GOZETTO, Andréa Cristina Oliveira. Movimentos sociais e grupos de pressão: duas formas de ação coletiva.
Cenários da Comunicação, São Paulo, v. 7, n. 1, p. 57-65, 2008. p. 61.
21
GREENWOOD, Justin; THOMAS, Clive S. Regulating lobbying in the western world. Parliamentary affairs: a journal
of representative politics, v. 51, n. 4, p. 487-499, 1998. p. 491. Disponível em: https://dialnet.unirioja.es/ejem-
plar/68152. Acesso em: 30 ago. 2019.
22
BLANCHET, Luiz Alberto; SANTANO, Ana Claudia; NETTO, Fernando Gama de Miranda. O tabu da relação do lobby
e políticas públicas no Brasil. Revista de Direito Econômico e Socioambiental, v. 7, p. 49-72, 2016. p. 51.
23
BERRY, Jeffrey M. The interest group society. Boston: Scott Foresman, 1989. p. 17.
24
BLANCHET, Luiz Alberto; SANTANO, Ana Claudia; NETTO, Fernando Gama de Miranda. O tabu da relação do lobby
e políticas públicas no Brasil. Op. cit., p. 52.
25
GOZETTO, Andréa Cristina Oliveira. Movimentos sociais e grupos de pressão: Op. cit., p. 61.
388 Gustavo Martinelli
Por fim, o que diferencia o lobby das demais formas de influência seria a atividade
de conectar diretamente os interesses organizados e os policy makers. Por mais que grupos
de pressão invistam recursos para alterar políticas públicas, não estão, de fato, dentro do
poder.26 Por outro lado, tem-se um lobby a partir do momento em que a prática coletiva
imprime influência direta na tomada de decisões governamentais. Em outras palavras, lobby
(ou lobbying) é a atividade de grupos ou indivíduos na tentativa de influenciar as decisões
tomadas nas esferas institucionais em prol de interesses específicos.27
Para Eduardo Patri,28 lobby é a atividade direcionada a influenciar a escolha política.
Diferencia-se dos movimentos sociais pela abordagem institucional mais ativa, com o conta-
to direito diante das instituições. Igualmente, separa-se do partido político por não participar,
ele próprio, da tomada de decisão. Assim, vislumbra-se o lobby como forma de ação política
importante na sociedade democrática, na medida em que identifica projetos políticos confli-
tantes e garante a tomada de decisão com maior grau de informação pelos agentes públicos.
Trata-se, portanto, de uma visão inicial da presença de grupos de pressão, especificamente
do lobby, como elemento enriquecedor das disputas políticas.
Departamentos de assuntos corporativos e lobistas não apenas garantem a manu-
tenção permanente da representatividade do grupo no jogo político, como cuidam de seus
interesses, antecipando problemas e detectando oportunidades que não teriam caso não
houvesse uma relação direta com os tomadores de decisão. Em razão disso, lobistas muitas
vezes fornecem auxílios importantes aos governos, apresentando ideias e iniciativas para
problemas que o Estado e o setor interessado estejam enfrentando.29 A colheita e oferta
de informação ao agente político fica bastante clara quando se entende a prática efetiva da
atividade.
Com efeito, o impacto e a influência de determinado lobby envolvem atividades de
informação e comunicação. Em primeiro lugar, para identificar riscos e oportunidades lícitas,
os lobistas costumam ter consigo um atento monitoramento legislativo. Toma-se em con-
sideração todos os projetos e proposições em trâmite no Poder Legislativo, tanto em nível
nacional quando infranacional, destacando-se aqueles cujos interesses sejam convergentes
ao grupo ali representado. A avaliação não se limita ao mérito dos atos normativos, mas se
26
BLANCHET, Luiz Alberto; SANTANO, Ana Claudia; NETTO, Fernando Gama de Miranda. O tabu da relação do lobby
e políticas públicas no Brasil. Op. cit., p. 53.
27
MAICAN, Ovidiu-Horia. Legal regime of lobby activities: a comparative view. Juridical Tribune, v. 4, n. 2, p. 105-
118, dez. 2014. p. 104.
28
PATRI, Eduardo Carlos Ricardo da. Relações governamentais, lobby e advocacy no contexto de public affairs.
Revista brasileira de comunicação organizacional e relações públicas (Organicom), São Paulo, v. 8, n. 14, 2011.
p. 141.
29
OLIVEIRA, Andréa Cristina de Jesus. O lobbying institucional no Brasil: canal de comunicação entre Estado e
sociedade civil? Cenários da comunicação, São Paulo, v. 6, n. 1, p. 57-64, 2007. p. 60.
O lobby como facilitador da decisão pública satisfatória 389
30
OLIVEIRA, Andréa Cristina de Jesus. O lobbying institucional no Brasil: Op. cit., p. 61.
31
MANCUSO, Wagner Pralon; GOZETTO, Andrea Cristina Oliveira. Lobby e políticas públicas. Rio de Janeiro: FGV
Editora, 2018. p. 50-60.
32
MANCUSO, Wagner Pralon; GOZETTO, Andrea Cristina Oliveira. Lobby e políticas públicas. Op. cit., p. 55.
33
OLIVEIRA, Andréa Cristina de Jesus. O lobbying institucional no Brasil: Op. cit., p. 61.
34
CESÁRIO, Pablo Silva. Redes de influência no Congresso Nacional: como se articulam os principais grupos de
interesse. Revista de Sociologia e Política, v. 24, n. 59, p. 109-127, set. 2016. p. 110.
390 Gustavo Martinelli
35
BELO, Manoel Alexandre C. Grupos de pressão e influência política. Verba Juris, ano 2, n. 2, p. 155- 173, jan./dez.
2003. p. 168.
36
OLIVEIRA, Andréa Cristina de Jesus. O lobbying institucional no Brasil: Op. cit., p. 62
37
BLANCHET, Luiz Alberto; SANTANO, Ana Claudia; NETTO, Fernando Gama de Miranda. O tabu da relação do lobby
e políticas públicas no Brasil. Op. cit., p. 55.
38
FUKUYAMA, Francis. Ordem e decadência política: da Revolução Industrial à globalização da democracia. Rio de
Janeiro: Rocco, 2018. p. 476.
39
FUKUYAMA, Francis. Ordem e decadência política: Op. cit., p. 477.
O lobby como facilitador da decisão pública satisfatória 391
40
Em que pese a onda de regramento tenha surgido ao final do século XX, o caso estadunidense inaugura a preo-
cupação de modo específico ainda em 1946, através do Lobbying Act, passando por diversas alterações poste-
riores. A legislação tem como pressuposto jurídico a concretização de direitos fundamentais positivados na 1ª
Emenda da Constituição Estadunidense, particularmente no que diz respeito à liberdade de expressão e ao direito
de petição aos representantes do povo. Cf. THOMAS, Clive S. Interest group regulation across the United States:
rationale, development and consequences. Parliamentary affairs: a journal of representative politics, v. 51, n.
4, p. 500-515, 1998. p. 503. Disponível em: http://www.fgu-nickolaus.narod.ru/3/TGU/Interest_Group_Regula-
tion_Across_the_United_States.pdf. Acesso em: 3 out. 2018.
41
Em agosto de 2019, encontram-se em tramitação no Congresso Nacional os seguintes projetos de lei acerca da
regulamentação do lobby: PL 1202/07, PL 11025/18, PL 6131/90, PRC 176/16, PLS 203/89, PLS 336/15, PEC
47/16.
42
GOZETTO, Andréa Cristina Oliveira. Movimentos sociais e grupos de pressão: Op. cit., p. 62.
43
BLANCHET, Luiz Alberto; SANTANO, Ana Claudia; NETTO, Fernando Gama de Miranda. O tabu da relação do lobby
e políticas públicas no Brasil. Op. cit., p. 60.
44
GABARDO, Emerson; SALGADO, Eneida Desiree. O princípio da publicidade e os abusos de poder político e econô-
mico na democracia contemporânea. In: GABARDO, Emerson; AFFORNALLI, Maria Cecília N. Munhoz (Coords.).
Direito, informação e cultura. Belo Horizonte: Fórum, 2012. p. 149-171.
392 Gustavo Martinelli
casos em que o interesse público motivar o sigilo –, inclusive com ampla divulgação dos
agentes que participaram da tomada de decisão, exercendo influência política.
Expôs-se como, na prática, lobistas podem se revelar como fontes de informação a
fim de oferecer dados confiáveis e de alta credibilidade sobre as consequências das ações
governamentais.45 No entanto, resta demonstrar em termos econômicos e de concorrência
como o lobby eleva naturalmente o comportamento satisfatório do gestor público ao tomar
uma decisão.
Dentre as críticas feitas à atividade de lobby está o seu potencial nocivo de captura
das instituições, também denominado como “fenômeno da repatrimonialização”.46 Por mais
republicana e preocupada com a boa burocracia, essa opinião não possui lastro científico e,
no mais das vezes, acaba por simplesmente reproduzir o mito do lobby como algo prejudicial
ao interesse público per se. Espera-se demonstrar o oposto, desmascarando este estigma e
sustentando a utilidade do lobby enquanto provedor de informação de qualidade ao decisor
público.
Em uma preocupação típica da Nova Economia Institucional (NEI), Francis Fukuya-
ma47 argumenta que o perigo do lobby ao regime democrático consiste no desequilíbrio ou
na assimetria significativa de um grupo de interesse em face aos demais, proporcionando
uma influência desproporcional sobre as instituições políticas, em detrimento de outras vo-
zes. Por mais louvável que seja essa inquietação, ela não deveria se sustentar em face dos
estudos em lobby.
Primeiramente, imaginar que lobistas detém o poder de sozinhos capturar as institui-
ções políticas é superestimar a sua capacidade de impressão sobre a tomada de decisão. Ao
menos quando feito de modo lícito. O lobby deve ser sopesado com ao menos outros três
fatores igualmente relevantes na tomada de decisão do policy maker: o perfil do decisor, o
contexto decisório, e o tipo de decisão que está em pauta48.
A inadequação da crítica parte de um pressuposto onde o decisor é um ator me-
ramente passivo, que apenas responde mecanicamente às pressões recebidas. Salvo ex-
ceções extremas, o perfil do agente político é composto por características subjetivas, tais
como valores, preferências, ideologias, visões de mundo, convicções e crenças. Outra incor-
45
GOZETTO, Andréa Cristina Oliveira. Movimentos sociais e grupos de pressão: Op. cit., p. 62.
46
FUKUYAMA, Francis. Ordem e decadência política: Op. cit., p. 477.
47
FUKUYAMA, Francis. Ordem e decadência política: Op. cit.
48
MANCUSO, Wagner Pralon; GOZETTO, Andrea Cristina Oliveira. Lobby e políticas públicas. Op. cit., p. 74.
O lobby como facilitador da decisão pública satisfatória 393
reção é acreditar que a relação entre lobista e decisor é uma via de mão única; pelo contrário,
o agente administrativo dialoga com o segmento social, expondo ponderações e entra em
contato com os demais decisores, construindo uma opinião dinâmica. A ideia do decisor
tabula rasa, portanto, é admitida apenas como modelo inapropriado de raciocínio.49
Wagner Pralon Mancuso e Andréa Cristina Oliveira Gozetto50 indicam, ainda, que as
circunstâncias que envolvem a tomada de decisão podem influir consideravelmente no resul-
tado. O contexto sociocultural, histórico e econômico impacta diretamente na manifestação
do decisor. Assim, por exemplo, um cenário de crescimento econômico pode favorecer o
pleito de lobbies que visam a conquista de novos benefícios materiais ou tratativas privilegia-
das. Por outro lado, uma recessão econômica implica em corte de gastos e vozes favoráveis
a um déficit zero serão apreciadas mais atentamente. Ao final, por mais incisiva que seja a
participação de lobbies, o decisor estará mais tendente a optar pelo que mais favorece o
contexto.
Por fim, outro fator que acaba tendo igual importância (quando não maior) na for-
mação da escolha do agente é o tipo da decisão na agenda política, na medida em que afeta
a intensidade, o equilíbrio e o conflito dos lobbies. Uma análise mais detida desse fator é
necessária antes se avançar, uma vez que a exposição será colocada à prova na sequência.
O primeiro tipo de decisão é aquele que concentra benefícios em segmentos sociais especí-
ficos e dispersa os custos por segmentos sociais amplos. Nesse caso, há efetivamente um
desequilíbrio nas relações de influência, mas calcado pelo desinteresse por parte do grupo
prejudicado. Uma ilustração é a “concessão de isenções tributárias a um setor específico
do empresariado (por exemplo, fabricante de automóveis) à custa de pequena elevação da
carga tributária do restante da sociedade”.51
O mesmo pode ocorrer com o tipo oposto de decisão. Nesse caso, distribuem-se
benefícios para setores amplos da sociedade à custa de segmentos específicos, desenhando
igualmente um contexto decisório pouco conflituoso e desequilibrado, com mais lobbies dos
setores amplos. Por mais que esse segundo tipo de decisão crie um custo per capta superior
aos pagadores, porque menos compartilhado, ainda assim o dispêndio com a mobilização
para alterá-la permanece superior ao pagamento. Não se pode dizer que o policy maker foi
efetivamente capturado por uma das partes em detrimento das outras, mas que há um de-
sinteresse pelo segmento específico em se mobilizar.
O tipo de decisão mais comum, no entanto, é justamente aquele que se passa num
cenário altamente conflituoso, mas equilibrado, com intensa formação de lobbies entre pa-
gadores e beneficiários. Aqui se tem uma alocação de custos e benefícios somente entre
49
MANCUSO, Wagner Pralon; GOZETTO, Andrea Cristina Oliveira. Lobby e políticas públicas. Op. cit., p. 75.
50
MANCUSO, Wagner Pralon; GOZETTO, Andrea Cristina Oliveira. Lobby e políticas públicas. Op. cit., p. 75.
51
MANCUSO, Wagner Pralon; GOZETTO, Andrea Cristina Oliveira. Lobby e políticas públicas. Op. cit., p. 78.
394 Gustavo Martinelli
setores específicos e bem definidos, mas antagônicos; enquanto os segmentos mais amplos
possuem pouca relevância. É o caso, por exemplo, da disputa sobre neutralidade da rede,
que coloca provedores de um lado, e criadores de conteúdo/aplicativos de outro; ou da
competição de regulação entre desenvolvedores de aplicativos de transporte individual e
taxistas.52
Do exposto, percebe-se que o sucesso do lobista consiste na convergência entre o
teor da decisão tomada e a posição defendida. Ainda a vitória seja anunciada na convergên-
cia dos polos, é possível que o cálculo do decisor sequer tenha considerado o fator lobby,
mas apenas o contexto e a afinidade ideológica da posição, por exemplo. Medir o sucesso
do lobby não corresponde a medir a sua influência.
De todo modo, o mérito do lobby consiste em prover ao policy maker uma gama
de informações potencialmente desconhecidas, devidamente tratadas, de modo não one-
roso, usualmente postas em concorrência pela disputa de grupos antagônicos, ainda que a
participação do lobista não tenha sido condicionante para a tomada de decisão. Ou seja, o
decisor político dispôs de mais para tomar a decisão que melhor satisfaz o comportamento
contemporizador de Simon.
David Austen-Smith e John R. Wright53 foram bem-sucedidos em demonstrar a pre-
missa segundo a qual o lobby é fundamentalmente um agregador de informação ao policy
maker. Parte-se do pressuposto que o decisor público com mandato (no caso, um legis-
lador), ainda que possua um perfil tendente a determinada ideologia, tem como interesse
primário a reeleição. Deste modo, sempre irá buscar direcionar a decisão de modo a poten-
cializar a aprovação da base eleitoral. Porém, ainda que o legislador tenha uma percepção
sobre o retorno eleitoral, a opinião pública é um elemento dinâmico e incerto, variável de
acordo com as informações disponíveis.
Por outro lado, segundo os mesmos autores, assume-se que os lobbies (i) tenham o
interesse primário em conseguir o apoio do decisor; (ii) possuam informações indisponíveis
ao legislador, tanto em termos de apoio popular quanto de consequências da política pública
escolhidas; e que (iii) o processo de lobbying é formado por duas etapas, uma voltada à
aquisição de informações, outra direcionada à comunicação com decisores. Por fim, pre-
sume-se que (iv) as informações em posse dos lobbies sejam onerosas, decorrentes da
aplicação de surveys, pesquisas eleitorais e mobilização social, o que afasta o interesse do
legislador em busca-las. Ainda assim, é necessário que o legislador tenha recursos disponí-
veis para verificar a informação, caso assim desejar.
52
MANCUSO, Wagner Pralon; GOZETTO, Andrea Cristina Oliveira. Lobby e políticas públicas. Op. cit., p. 79.
53
AUSTEN-SMITH, David; WRIGHT, John R. Competitive lobbying for a legislator’s vote. Social Choice Welfare, v. 9,
issue 3, p. 229-257, jul. 1992.
O lobby como facilitador da decisão pública satisfatória 395
54
AUSTEN-SMITH, David; WRIGHT, John R. Competitive lobbying for a legislator’s vote. Op. cit., p. 233.
55
AUSTEN-SMITH, David; WRIGHT, John R. Competitive lobbying for a legislator’s vote. Op. cit., p. 233.
56
AUSTEN-SMITH, David; WRIGHT, John R. Competitive lobbying for a legislator’s vote. Op. cit., p. 229–257.
57
AUSTEN-SMITH, David; WRIGHT, John R. Competitive lobbying for a legislator’s vote. Op. cit., p. 236.
396 Gustavo Martinelli
5 CONSIDERAÇÕES FINAIS
Tanto as razões expostas por Wagner Mancuso e Andréa Gozetto quanto o modelo
competitivo proposto por David Austen-Smith e John R. Wright conduzem à compreensão do
lobby como um processo formado pelas etapas de aquisição e transmissão de informações,
a fim de influenciar a tomada de decisão política.
Tais etapas detém uma complexidade própria e podem chegar a ser extremamente
custosas, de modo que nem sempre será interessante ao lobista investir na atividade. Para
Mancuso e Gozetto, esse cenário corresponde a um tipo de decisão que distribui benefícios a
um setor específico à custa de uma baixa taxa per capta para os pagadores, ou seja, o custo
de mobilização social para influir na decisão é superior ao custo suportado pela decisão
originária. Para Austen-Smith e Wright, esse contexto se evidencia quando a incerteza da
opinião popular acerca de determinada decisão é bastante baixa.
Ao contrário, cenários que distribuem altos custos e benefícios a setores antagôni-
cos, ou quando a incerteza a respeito da opinião popular é tão elevada que o decisor não
consegue esboçar uma tendência, são extremamente favoráveis para a formação de lobbies
equilibrados e conflituosos, dispostos a arcar com dispêndios elevados a fim de obter infor-
mações preciosas e de elevada qualidade ao decisor público.
Em ambas as hipóteses, porém, toma-se o policy maker como agente falível, tal qual
o agente administrativo de Herbert Simon, apresentado na segunda seção. Com efeito, no
mundo ideal do agente econômico clássico, dotado da racionalidade substantiva e capaz
de sempre optar pelo comportamento maximizador, a presença de lobby é verdadeiramente
inútil. Lobistas atuam como um canal de comunicação entre a sociedade civil e os poderes
constituídos, apresentando preocupações sociais importantes que usualmente não são apre-
ciadas pelo decisor. Quando este é capaz de conhecer sempre a melhor opção, no entanto,
esta atividade se torna desnecessária.
Por outro lado, no contexto dos agentes econômicos de racionalidade limitada, ex-
postos a uma quantidade restrita de informações incompletas e incorretas, lobbies são bas-
tante bem-vindos como auxiliares da melhor formação de escolhas públicas, capacitando
decisores para que levem em consideração as consequências das decisões tomadas, nem
que seja para um segmento social específico, o que procurou se demonstrar ao longo da
exposição.
REFERÊNCIAS
AUSTEN-SMITH, David; WRIGHT, John R. Competitive lobbying for a legislator’s vote. Social Choice
Welfare, v. 9, issue 3, p. 229-257, jul. 1992.
O lobby como facilitador da decisão pública satisfatória 397
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TERCEIRO LUGAR
1 INTRODUÇÃO
1
BORJA, Patrícia Campos; MORAES, Luiz Roberto Santos. Saneamento como um direito social. Assembleia da
Assemae, v. 35, 2005.
2
MENEZES, Luiz C. C. Saneamento básico, saúde pública e qualidade de vida: considerações. Revista DAE, [S.l.],
v. 44, n.1, mar. 1984. p. 15.
400 Daniel Wagner Heinig | Ana Paula Myszczuk
3
Vide art. 3º da Lei 11.445/2007.
4
BORJA, Patrícia Campos; MORAES, Luiz Roberto Santos. Saneamento como um direito social. Op. cit.
5
MENDONÇA, Mario Jorge Cardoso de; MOTTA, Ronaldo Seroa da. Saúde e saneamento no Brasil. Rio de Janeiro:
Ipea, 2005 (Texto para Discussão, n. 1.081).
6
MOREIRA, Terezinha. Saneamento básico: desafios e oportunidades. Revista do BNDES, Rio de Janeiro, fev. 2002.
O marco regulatório do saneamento no Brasil... 401
7
MELO, Geórgia Karênia Rodrigues Martins Marsicano de; MARACAJ, Kettrin Farias Bem; DANTAS NETO, José.
Histórico evolutivo legal dos recursos hídricos no Brasil: uma análise da legislação sobre a gestão dos recursos
hídricos a partir da história ambiental. Âmbito Jurídico, Rio Grande, XV, n. 100, maio 2012.
402 Daniel Wagner Heinig | Ana Paula Myszczuk
a qual todos os homens estavam ligados por um elo representado pelo agente causador da
doença. Tal percepção desencadeou intensa agitação política em torno da questão sanitária,
que aliada à eminente inserção da economia brasileira no contexto do capitalismo mundial,
motivou transformações na atuação do poder público, ampliando suas intervenções nas
ações coletivas de saneamento, ainda que vinculadas aos interesses das elites, resultando
em atuações pontuais e insuficientes, focadas em áreas de interesse econômico.8
Por esse motivo, constavam nos planos urbanos da época invariavelmente a drena-
gem das águas pluviais, esgotamentos ou aterramentos de mangues, além de terraplena-
gens, relocação e construção de matadouros e cemitérios, arborização e melhorias na limpe-
za pública. A elaboração do Código de Águas em 1934 representeou o primeiro instrumento
de controle de recursos hídricos, diante da necessidade crescente de políticas regulatórias
em um cenário de convergência de fatores como a urbanização acelerada e o impressionante
crescimento populacional, assim como o início do aproveitamento hidrelétrico e o incremen-
to da atividade industrial, que levavam o país a conflitos de natureza econômica e política de
grande monta.9
Após o período conturbado na história política brasileira, que culminou em 1964 com
a ascensão de militares ao governo, surgiu a obrigação de responder ao desafio de intervir
nos serviços de saneamento. Priorizou-se, através do Plano Nacional de Saneamento (Pla-
nasa), o grave problema da água e do esgoto.
O plano apoiou-se na importância de investimentos para melhoria da saúde e quali-
dade de vida da população, bem como na necessidade de intervenção no desenvolvimento
econômico nacional, através da alocação de grande quantidade de recursos do Banco Nacio-
nal da Habitação (BNH) e de investimentos internacionais, captados no sistema financeiro.
Como visto, o Planasa, adotado no início da década de 70 impulsionou os investi-
mentos em saneamento básico por todo o território nacional. Na verdade, até a instituição
do Planasa, não havia um sistema regular de financiamento e auxílio para investimentos em
saneamento nos estados e municípios, ou um planejamento nacional de investimentos.10
Baseado no pilar econômico da autossustentação tarifária, um dos preceitos do plano
era a viabilização da cobertura dos custos de operação e manutenção dos serviços e amor-
tização dos financiamentos através das tarifas cobrados pela disponibilização do serviço.
Nesse contexto, uma das premissas do referido Plano Nacional era a criação de Companhias
8
RUBINGER, Sabrina D. Desvendando o conceito de saneamento no Brasil: uma análise da percepção da popula-
ção e do discurso técnico contemporâneo. 2008. 197f. Dissertação (Mestrado em Saneamento, Meio Ambiente e
Recursos Hídricos) – Faculdade de Engenharia, Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte, 2008.
9
MURTHA, Ney Albert; CASTRO, José Esteban; HELLER, Léo. Uma perspectiva histórica das primeiras políticas
públicas de saneamento e de recursos hídricos no Brasil. Revista Ambiente e Sociedade, São Paulo, v. 18, n. 3, p.
193-210, set. 2015.
10
ARRETCHE, Marta T. S. Política Nacional de Saneamento: a reestruturação das companhias estaduais. In: IPEA.
Temas especiais – Infraestrutura. Perspectivas de reorganização. Brasília: Ipea, 1999.
O marco regulatório do saneamento no Brasil... 403
Estaduais em cada estado da federação, para a viabilização dos seus objetivos através de um
modelo de gestão centralizado, autoritário e marcado pela ausência de participação social.11
A centralização da gestão era necessária para a viabilidade da utilização dos sub-
sídios cruzados. A lógica era de que a instituição de tarifas menores para os usuários de
poder aquisitivo mais baixo, e a compensação dos déficits de um grande conjunto de muni-
cípios menores com o superávit dos maiores. Assim, para que os preceitos do plano fossem
atendidos, a prestação dos serviços deveria ultrapassar as fronteiras municipais, prevendo
pretensas economias de escala ao atribuir abrangência estadual às companhias.
Foi neste período, por exemplo, que a Companhia Catarinense de Águas e Saneamen-
to de Santa Catarina (Casan) foi criada, em 31 de dezembro de 1970, através da Lei Estadual
4547/71, absorvendo inicialmente16 sistemas de abastecimento de água e 02 sistemas de
coleta de esgotos (Florianópolis e Lages) até então geridos pelo Departamento Autônomo
de Engenharia Sanitária (Daes). Quinze anos depois, em 1985, a Companhia Estadual já era
responsável pelo saneamento básico de 167 municípios catarinenses, o que representava
84% de todos os municípios existentes no Estado, incluindo neste rol os municípios da re-
gião norte de Santa Catarina.
Vale lembrar essa adesão maciça dos municípios a um modelo no qual deveriam
abrir mão de sua prerrogativa de prestar serviços de natureza local, como os de saneamento
básico, certamente foi influenciada por intensas pressões por parte de governadores e parla-
mentares estaduais, em um ambiente político autoritário dominante no país.
Porém, o referencial de política representado pelo Planasa esgotou-se com a extin-
ção da sua principal fonte de financiamento, o Banco Nacional de Habitação (BNH) no ano
de 1986, ainda que a inércia de suas rotinas gerenciais tenha se mantido por vários anos
no setor. Destaca-se, por específico, que durante a sua vigência houve uma qualificação do
déficit de atendimento, que se concentraram ainda mais nas populações de mais baixa renda
e nas regiões mais pobres do país.12
Por sua vez, o processo de redemocratização do país, que culminou com a pro-
mulgação da Constituição Federal de 1988, trouxe importantes avanços no que se refere
às garantias de acesso aos serviços de saneamento, e estabeleceu alterações pontuais na
distribuição de competências federativas.
De fato, se por um lado a Constituição Federal de 1988 acabou por estabelecer como
competência comum da União, Estados e Municípios a promoção da melhoria das condições
11
HELLER, L.; OLIVEIRA, A. P. B. V.; REZENDE, S. C. Políticas públicas de saneamento: por onde passam os confli-
tos? In: ZHOURI, Andrea; LASCHEFSKI, Klemens (Orgs.). Desenvolvimento e conflitos ambientais. Belo Horizonte:
Editora UFMG, 2010. p. 302-328.
12
MOREIRA, Renata Maria Pinto. Distribuição de água na região metropolitana de São Paulo: tecnologias da univer-
salização e da produção do espaço. 2008. 210p. Dissertação (Mestrado em Arquitetura e Urbanismo) – Faculdade
de Arquitetura e Urbanismo, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2008.
404 Daniel Wagner Heinig | Ana Paula Myszczuk
de saneamento básico (art. 23), por outro indicou que a titularidade para organizar e prestar
os serviços públicos de interesse local era dos municípios (art. 30). Além disto, a Carta
Magna estabeleceu como dever constitucional do ente público garantir que o serviço fosse
universalizado mesmo que não haja capacidade de pagamento para tanto.
Na década seguinte, foi instituída a Política Nacional de Recursos Hídricos (PNRH),
através da Lei Federal n. 9433/97, estabelecendo seus fundamentos, objetivos, diretrizes e
instrumentos, e principalmente reforçando o fundamento da água como um bem de domí-
nio público, um recurso natural limitado e dotado de valor econômico. No entanto, o termo
domínio público não teve o condão de transformar o poder público em proprietário da água,
mas torná-lo gestor desse bem, no interesse de todos.13
Nesse cenário, o ordenamento jurídico passou a exigir uma gestão dos recursos
hídricos que proporcionasse os usos múltiplos das águas, de forma descentralizada e parti-
cipativa, contando com a participação de todos os agentes envolvidos: Poder Público, usuá-
rios e comunidades. A Política Nacional de Recursos Hídricos, por imposição normativa,
deveria ser formulada, executada e avaliada por meio de gestão democrática, que contasse
com ampla participação social.
Na mesma época outro assunto significativo entrava na pauta de discussões da polí-
tica de saneamento: o conflito entre os municípios e as companhias estaduais na prestação
dos serviços. Isto porque a maior parte das concessões, firmadas logo após a criação do
Planasa, na década de 70, com prazos que variavam entre 20 e 30 anos, alcançavam o
término do prazo de vigência dos contratos, o que passou a ocorrer a partir do ano 2000.
Com o fim dos ajustes, muitos municípios buscaram a assunção dos serviços, in-
clusive através de disputas judiciais. Entretanto, muitas companhias estaduais continuaram
prestando serviço sem nenhum vínculo contratual com diversos municípios, mesmo após a
expiração do contrato de concessão. Exemplos disso foram os municípios de São Paulo e
Santos, onde a Companhia de Saneamento Básico do Estado de São Paulo (Sabesp) conti-
nuou atuando sem contrato.14
Passados quase vinte anos da promulgação da Constituição de 1988, e dentro de
um cenário permeado de conflitos e incertezas, era necessário estabelecer uma espécie
de marco regulatório dos serviços de saneamento. Assim, a publicação da Lei n.11.445,
de cinco de janeiro de 2007, estabeleceu diretrizes nacionais para o saneamento básico,
construiu uma série de conceitos, como o de gestão associada e prestação regionalizada,
e definiu a titularidade dos serviços e sua competência na formulação da respectiva política
13
AITH, Fernando M. A.; ROTHBARTH, Renata. O estatuto jurídico das águas no Brasil. Estudos Avançados, São
Paulo, v. 29, n. 84, p. 163-177, ago. 2015.
14
HELLER, L.; OLIVEIRA, A. P. B. V.; REZENDE, S. C. Políticas públicas de saneamento: Op. cit.
O marco regulatório do saneamento no Brasil... 405
15
MADEIRA, Rodrigo Ferreira. O setor de saneamento básico no Brasil e as implicações do marco regulatório para
a universalização do acesso. Revista do BNDES, n. 33, p. 123-154. jun. 2010.
406 Daniel Wagner Heinig | Ana Paula Myszczuk
16
HELLER, Leo; PITERMAN, Ana; REZENDE, Sonaly Cristina. (A falta de) Controle social das políticas municipais de
saneamento: um estudo em quatro municípios de Minas Gerais. Revista Saúde e Sociedade, São Paulo, v. 22, n.
4, p. 1180-1192, 2013.
O marco regulatório do saneamento no Brasil... 407
17
HELLER, Leo; PITERMAN, Ana; REZENDE, Sonaly Cristina. (A falta de) Controle social das políticas municipais de
saneamento: Op. cit.
408 Daniel Wagner Heinig | Ana Paula Myszczuk
tenham maior qualidade, sejam eficientes e atendam aos interesses da maioria da população,
não ficando à mercê dos grupos clientelistas e privatistas”.18
O marco regulatório do saneamento no Brasil também deixou muito claro a neces-
sidade de participação social na formulação e fiscalização das políticas voltadas ao setor.
A obrigatoriedade de estabelecer mecanismos de controle social restou expressa no rol de
atribuições do titular dos serviços, com o intuito de garantir à sociedade informações, repre-
sentações técnicas e participações nos processos de formulação de políticas, de planeja-
mento e de avaliação.
Neste sentido, o artigo 47 da Lei 11.445/07 estabeleceu que a participação social
poderia se dar através de órgão colegiado de caráter consultivo, assegurada a representação
dos titulares dos serviços, de órgãos governamentais, dos prestadores e usuários dos ser-
viços públicos de saneamento básico e de entidades técnicas, organizações da sociedade
civil e de defesa do consumidor relacionadas ao setor. Assim, dentre as prerrogativas do
referido órgão colegiado, ou conselho municipal, está a aprovação do Plano Municipal de
Saneamento Básico, além da regulação, fiscalização e avaliação da prestação dos serviços
de Saneamento Básico, mediante apoio técnico.
18
CORREIA, Maria Valéria Costa. Que controle social? Os conselhos de saúde como instrumento. Rio de Janeiro:
Fiocruz, 2000.
O marco regulatório do saneamento no Brasil... 409
à coleta e tratamento de esgoto é 18% maior entre os 20% mais ricos da população brasileira
do que entre os 20% mais pobres.19
Neste sentido, a Constituição de 88 estabeleceu como dever do Estado a garantia
da universalização do serviço, mesmo que não haja capacidade de pagamento para tanto.
“Então, a escala ótima seria a de provisão do serviço com a qualidade mínima aceitável
pelos usuários, incorrendo nos menores custos para o prestador. Há casos em que a escala
ótima envolveria a utilização de redes ou componentes de infraestrutura por mais de um
município.”.20
4 METODOLOGIA
5 RESULTADOS E DISCUSSÕES
19
CEPAL – Comisión Económica para América Latina y El Caribe. La ineficiencia de La desigualdad. Síntesis (LC/
SES. 37/4), Santiago, 2018.
20
NADALIN, Vanessa Gapriotti; LIMA NETO, Vicente Correia; KRAUSE, Cleandro. O saneamento básico como ques-
tão metropolitana: há cooperação? In: FURTADO, Bernardo Alves; KRAUSE, Cleandro; FRANÇA, Karla Christina
Batista de (Orgs.). Território metropolitano, políticas municipais: por soluções conjuntas de problemas urbanos
no âmbito metropolitano. 1. ed. v. 1. Brasília: Ipea, 2013. p. 225-258.
410 Daniel Wagner Heinig | Ana Paula Myszczuk
21
LISBOA, Severina Sarah; HELLER, Léo; SILVEIRA, Rogério Braga. Desafios do planejamento municipal de sanea-
mento básico em municípios de pequeno porte: a percepção dos gestores. Eng. Sanit. Ambient. [online], v. 18, n.
4, 2013.
O marco regulatório do saneamento no Brasil... 411
pelo Ministério da Saúde, através do financiamento dos estudos técnicos foi imprescindível
para o alcance de tais resultados.
No que se refere à participação da sociedade na construção das políticas de sanea-
mento e o controle social, importantes princípios inseridos nas políticas e planos municipais
de saneamento básico, o estudo apontou que estes não se efetivaram em sua plenitude em
todos os municípios analisados.
Sobre os conselhos municipais de saneamento, verificou-se que todos os municí-
pios instituíram o órgão colegiado. Neste contexto, as principais atribuições conferidas a eles
foram: formular propostas de revisões de taxas, tarifas e outros preços públicos formuladas
pelo órgão regulador; deliberar a respeito do plano municipal de saneamento básico e suas
revisões; e propor alterações de normas legais e administrativas de regulação dos serviços.
Apesar disso, em três dos nove municípios analisados, os conselhos municipais
de saneamento, apesar de instituídos, nunca foram efetivamente compostos pelos atores
sociais destacados na norma, tendo em vista que inexistem atos de nomeação. Assim, con-
sidera-se como presumível que nesses municípios (Garuva, Campo Alegre, Balneário Barra
do Sul) nunca tenha havido qualquer reunião dos referidos conselhos.
Dessa forma, percebe-se que em alguns municípios as ações de saneamento ainda
não são debatidas em órgãos colegiados, existindo um espaço em branco no que diz res-
peito ao controle social na política pública municipal do setor. Tal situação acaba por deixar
as decisões fundamentais sob uma estrutura vertical e tecnicista, sem qualquer controle
democrático efetivo a respeito das deliberações do poder executivo municipal.22
Nos demais município verificou-se ao menos a nomeação de uma composição do
conselho municipal de saneamento, e muito embora a pesquisa não tenha se estendido à
verificação da efetividade dos conselhos, ao menos se pode inferir que existem conselheiros
designados.
22
HELLER, Leo; PITERMAN, Ana; REZENDE, Sonaly Cristina. (A falta de) Controle social das políticas municipais de
saneamento: Op. cit.
O marco regulatório do saneamento no Brasil... 413
23
SNIS – Sistema Nacional de Informações sobre Saneamento. Consumo de água por habitante. S.d. Disponível em:
http://www.snis.gov.br/index.php. Acesso em: 10 jul. 2019.
414 Daniel Wagner Heinig | Ana Paula Myszczuk
Por outro lado, apesar dos importantes avanços no que se refere ao abastecimento
de água potável, a deficiência no acesso ao serviço ainda é realidade para 30.668 habitantes
da região, o que corresponde a quase 4% de sua população total. Além do mais, os municí-
pios de Garuva e Araquari ainda registram percentuais abaixo da média brasileira, que no ano
de 2017 alcançou 83,5% da população.
Contudo, se no quesito abastecimento de água os números da região foram positi-
vos, nos serviços de coleta e tratamento de esgoto esses resultados não se repetiram. No
ano de 2007, quando da publicação do marco regulatório do saneamento, os índices de
população atendida pelo serviço já apresentavam números alarmantes. Naquele ano, apenas
11,98% da população total da região norte era atendida pelo serviço de coleta e tratamen-
to de esgoto, correspondendo a 83.986 habitantes. Mais preocupante ainda era o fato de
que, dos nove municípios analisados, apenas três (Joinville, Rio Negrinho e São Bento do
Sul) disponibilizavam, ainda que parcialmente, os serviços. Os outros seis municípios não
registravam quaisquer números. Sequer indicavam um metro de rede coletora de esgoto.
Ultrapassados dez anos da publicação da lei, pouco se evoluiu. Os últimos dados disponíveis
24
SNIS – Sistema Nacional de Informações sobre Saneamento. Consumo de água por habitante. Op. cit.
O marco regulatório do saneamento no Brasil... 415
25
SNIS – Sistema Nacional de Informações sobre Saneamento. Consumo de água por habitante. Op. cit.
416 Daniel Wagner Heinig | Ana Paula Myszczuk
6 CONSIDERAÇÕES FINAIS
O presente estudo permitiu a análise de alguns impactos gerados pela Lei Federal
11.445/2007, conhecida como o Marco Regulatório do Saneamento no Brasil, em municí-
pios do norte catarinense. Em especial, buscou verificar se os municípios apontados instituí-
ram suas políticas e planos municipais de saneamento, bem como os órgãos colegiados de
participação e controle social.
Por outro lado, permitiu analisar a evolução da prestação dos serviços de abasteci-
mento de água e coleta e tratamento de esgoto, no período de uma década após a publicação
da norma federal.
O objetivo do trabalho foi alcançado, tendo em vista que a pesquisa permitiu de-
monstrar que os municípios catarinenses analisados constituíram suas políticas municipais
de saneamento no prazo estabelecido. Da mesma forma, os planos municipais foram ins-
tituídos, ainda que alguns municípios tenham necessitado de auxílio técnico e financeiro
promovido pelo Ministério da Saúde, através de convênio com a Universidade do Extremo
Sul Catarinense.
No que se refere à implantação de órgãos colegiados (conselhos municipais), a pes-
quisa apontou que, apesar de legalmente criados, em alguns municípios os referidos conse-
lhos não se mostram atuantes, apontando a necessidade de reflexão acerca da participação
e controle social nas respectivas políticas de saneamento.
Não obstante, quando a análise se refere à universalização dos serviços de sanea-
mento básico, percebe-se que as atenções continuam voltadas à expansão do abastecimen-
to de água a toda a população local, deixando de lado a preocupação com a implantação de
rede de coleta e tratamento de esgoto. Assim, se por um lado a universalização dos serviços
de abastecimento encontra-se muito próxima de se tornar realidade, por outro se verifica um
enorme abismo que persiste em separar a população do efetivo tratamento do esgoto.
Ademais, como limitação do estudo, ressalta-se que a pesquisa envolveu exclusiva-
mente dados obtidos no Sistema Nacional de Informações de Saneamento, referentes a seis
indicadores apenas. Assim, inegável a impossibilidade de generalização dos resultados aqui
apresentados, mormente se considerar que os dados disponíveis na plataforma SNIS são
alimentados pelos próprios entes federados titulares dos serviços.
Torna-se imprescindível, assim, que novos estudos possam aprofundar ainda mais a
análise da implantação das políticas públicas de saneamento. Neste sentido, novas pesqui-
sas poderiam avaliar qual a percepção dos usuários dos sistemas, verificando quais são os
pontos positivos e negativos da política pública, bem como relacioná-los ao controle social
e participação democrática tidos como princípios norteadores das políticas de saneamento.
O marco regulatório do saneamento no Brasil... 417
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PARTE III
RESUMOS DE
EXPERIÊNCIAS
INOVADORAS EM
GESTÃO PÚBLICA
Desenvolvimento Nacional 421
gerais e específicos de cada órgão, havendo somente as atribuições legais, o que acaba por
comprometer a atuação de muitas secretarias em face ou da ausência de atuação ou da
sobreposição de funções legais, qualquer uma dessas possibilidades bastante importante
quando se trata de avaliação de riscos. Trata-se de projeto em desenvolvimento, até então,
foram identificados os objetivos gerais e específicos da Cagem, além de mapear e levantar
riscos de 6 processos. Foram reconhecidos 10 riscos em cada processo que já são balizas
a atuação do setor a fim de reconhecer e priorizar as ações em cada ato, o que já possibilita
após a ação piloto, estender à pratica aos demais setores da Prefeitura.
obtendo notas finais acima 50% do 3º lugar, estarão sujeitos às penalidades estabelecidas no
Estatuto do Servidor, LRF 101/2000, Lei 13.460/2017, Lei 12.527/2011 e Lei 8.429/1992.
Como resultado da implementação do programa, foi auferida maior eficiência das respostas,
com aumento de 10% em demandas respondidas entre 0-20 dias; elevação no número de
demandas respondidas de 85% para 97%, com expectativa de alcançar 100% até o final do
ano; aumento da confiabilidade na ouvidoria, com a elevação do número de demandas rece-
bidas. Com o Reis, a CGM conseguiu favorecer a eficiência e a transparência na execução
das exigências do Código de Defesa do Usuário dos Serviços Públicos - Lei 13.460/2017.
Assim, pretende-se continuar a alcançar melhorias no atendimento ao munícipe, na presta-
ção dos serviços públicos e na transformação do modelo de ouvidoria, resultando em um
formato mais eficiente, ativo e democrático.
Juliana Aschar
Superintendente Central de Integridade e Controle Social na
Controladoria Geral do Estado de Minas Gerais
chegam ao site possuem presunção de veracidade. Contudo, qualquer munícipe pode dis-
cordar dessas respostas e realizar denúncias no site; a partir disso, a equipe do Vereador
supracitado averigua o ocorrido. Oportuno contextualizar que a qualidade do ensino público
municipal em Ribeirão Preto pouco avança nos últimos anos, vide os resultados do Índice de
Desenvolvimento da Educação Básica (IDEB) entre 2011 e 2017 (ano da última medição).
Não obstante, mesmo o IDEB, importante mecanismo de avaliação, não é suficiente em um
cenário de dificuldades também estruturais nas escolas municipais. Diante disso, o Projeto
“Situação nas Escolas” e seus 100 indicadores para uma escola de qualidade surgem como
uma ferramenta que concentra diversas informações em todos os âmbitos da gestão escolar,
simplificando, dessa forma, a fiscalização social dos munícipes. Por fim, cabe informar que
a referida plataforma recebe aprimoramento constante sobre o objeto das perguntas e na
forma como estão dispostos. Desta feita, sugestões e críticas da comunidade escolar são
recebidas e aplicadas para o pleno desenvolvimento de uma ferramenta eficiente, inovadora
e moderna para uma boa prática da administração pública.
são satisfatórios, em vista das estimativas iniciais. Entre os mais de 100 mil envios de dados
recepcionados (licitações, atos de dispensa de licitação e contratos), mais de 1 milhão de
verificações foram realizadas, a partir de 25 pontos de verificação únicos, sendo 163 mil
consultas a serviços externos, possibilitadas pelo modelo de integração. Essas verificações
incluem: verificações junto ao cadastro da pessoa na Receita Federal do Brasil; verificação
de existência de sanção administrativa aplicada por outros órgãos da Administração Pública;
verificação de risco de conflitos de interesse; entre outros. Atualmente, o projeto encontra-
-se em fase de prospecção de serviços externos para serem integrados e consultados no
momento da análise de dados. A Lei de Acesso à Informação, Lei n. 12.527/11, em seu art.
8º, § 3º, III, prevê disponibilização de dados em formatos abertos para serem consultados
por sistemas externos de forma automatizada. Assim, com a ampliação gradual de serviços
disponibilizados, novos pontos de verificação serão incorporados, ampliando a capacidade
da solução identificar o adequado nível de risco presente no objeto sob análise.
interno do Poder Legislativo Campineiro é formado por servidores efetivos com requisitos
para ingresso graduação em ciências contábeis e pós-graduação em auditoria, a área conta
com um plano anual de atividades desenhado de acordo com a força de trabalho disponível,
atividades estas que são desenvolvidas e os relatórios gerados são direcionados conforme
fluxograma normatizado. As recomendações para aprimoramento dos processos contidas
em seus relatórios geram planos de ação para mitigar os riscos identificados, planos esses
que são monitorados pelo órgão central do sistema de controle interno e periodicamente
levados ao conhecimento da alta administração da Casa. Por fim, ao final de cada exercício
é gerado o relatório anual da área para demonstração de todas as atividades desenvolvidas e
conquistas atingidas. Nesse contexto, é possível verificar o atendimento do órgão a norma-
tização vigente e principalmente aos anseios da sociedade, que tem o direito de contar com
entidades públicas com linhas de defesas internas para zelar e contribuir com o emprego dos
recursos públicos de forma transparente e eficiente.
NAS INSTITUIÇÕES FEDERAIS DE ENSINO SUPERIOR. Por meio da criação de cursos EAD,
com confecção de e-books, palestras presenciais e material de divulgação multimídia para
a comunidade das IFES. Tais cursos, multidisciplinares, tem o foco na prevenção dos atos,
como também a identificação e tratamento de casos de assédio no interior dessas ins-
tituições, tanto na perspectiva de proteção das vítimas, como na apuração adequada da
responsabilidade dos agentes públicos envolvidos. Assim, também se subsidia comissões
disciplinares e consultorias jurídicas na condução de apurações disciplinares quando envol-
vam fatos desta natureza. Na segunda fase, será lançado um programa de fomento de tais
práticas antiassédio, por meio da concessão do selo de reconhecimento das entidades que
adotem um conjunto mínimo de medidas contra atos de assédio.
RESUMOS DE
COMUNICADOS
CIENTÍFICOS
Desenvolvimento Nacional 441
oferecer uma resposta definitiva, a fim de que sejam estas sustentáveis, ou seja, do mesmo
modo que as contratações demandam planejamento para sua concretização sustentável, as
obras e serviços delas resultantes necessitam de planejamento em nível mais elevado para
que se apresentem sustentáveis frente às disponibilidades econômicas da Administração e
pela evolução da percepção social quanto ao objetivo pretendido com a ação desenvolvida.
a matéria, o obrado traz uma solução propositiva, para uma evolução jurisprudencial que
entenda pela permissividade da recomposição contratual em casos de mudanças remunera-
tórias advindas de normas convencionais do trabalho, que impactem os preços contratados,
em resguardo da administração pública, bem como do particular.
fluxos de difusão, além da busca pelo cumprimento da legislação, nas organizações privadas
se mostram relacionados com o proveito econômico e nas públicas com a busca por legiti-
midade; derradeiramente, que esses estão em estágio de pré-institucionalização no país, ou
seja, estão em fase de habitualização nas organizações. Conforme a Teoria do Novo Insti-
tucionalismo esse estágio é caracterizado pela a geração de novos arranjos estruturais em
resposta a problemas organizacionais específicos, bem como a conversão de tais arranjos
em formalização de políticas. Conclui-se que para alcançar resultados positivos em relação
à corrupção é necessário que os programas de integridade avancem para além do estágio
atual, superando a formalização por meio da implementação de práticas e mecanismos que
promovam a assimilação da cultura de integridade pelos membros da organização. Os acha-
dos da pesquisa colaboram com a discussão técnica e propositiva relacionada à corrupção
no país. Por fim, sugere-se que novos estudos continuem analisando a institucionalização
dos programas de integridade a fim de verificar a evolução e efetividade do instrumento no
Brasil.
teórica no que tange a um parágrafo. Isso pode ensejar a aplicação de reprimendas que de-
satendam aos princípios da isonomia e da segurança jurídica. Tendo em vista que a jurispru-
dência do TCU ainda encontra-se dispersa, foi feita análise crítico-propositiva no sentido de
que o TCU tenha duas agendas: uma visando à superação de fragilidades históricas, como a
necessidade de consolidação de jurisprudência e aprimoramento e harmonização de proces-
sualística à luz da LINDB (que deve ser típica e autônoma), e, outra focada na incorporação
de novas tecnologias à rotina de trabalho, com possível convênio com o Superior Tribunal de
Justiça (STJ) para o aprimoramento de seu serviço de jurisprudência e indexação de seus
acórdãos, a bem da segurança jurídica.
O presente ensaio tem por objetivo analisar a inclusão feita pelo Estatuto da Pessoa
com Deficiência na Lei de Improbidade Administrativa. Nesse âmbito, especificadamente
sobre a inobservância do dever de acessibilidade como ato de improbidade administrativa.
A Constituição Federal Brasileira preconiza a dignidade da pessoa humana e igualdade, sem
distinção de qualquer natureza, sendo o direito à acessibilidade intrínseco a estes. Diante
desse direito fundamental que deve ser tutelado pelo Estado, será averiguado o instituto da
acessibilidade, sob a ótica dos princípios da dignidade da pessoa humana e da igualdade, no
qual se observará a ausência de efetividade dos direitos fundamentais da pessoa com de-
ficiência; Outrossim, examinará o tratamento jurídico conferido as pessoas com deficiência
e em seguida verificar-se-á o ato de improbidade administrativa e a responsabilidade estatal
pelo não cumprimento dos deveres constitucionais, ensejando à conduta a tipificação como
ato de improbidade administrativa dos agentes públicos que inobservarem dolosamente o
direito à acessibilidade. Portanto, chegou-se à conclusão que apesar dos avanços no arca-
bouço normativo no que tange a pessoa com deficiência, o Brasil ainda precisa evoluir para
alcançar os objetivos dispostos no Estatuto da Pessoa com Deficiência e permitir o exercício
da cidadania em sua máxima efetividade e o novo dispositivo no artigo 11 da L.I.A, é um
instrumento que fortifica o dever de observância do direito à acessibilidade, com punições
expressivas ao praticante. Utilizou-se para a persecução dos objetivos delineados a meto-
dologia qualitativa, com método dedutivo, para a obtenção dos objetivos delineados, análise
bibliográfica, de disposições normativas atinentes ao tema e documental.
Maucir Pauletti
Doutorando e mestre em Desenvolvimento Local (UCDB)
Professor do curso de Direito (UCDB)
O presente artigo tem por objetivo propor um estudo comparativo entre a ação po-
pular e a representação perante os tribunais de contas brasileiros, ambos mecanismos de
controle social da Administração Pública. São apresentadas as principais características dos
institutos, com destaque para o fato de a ação popular ser um procedimento judicial. Diante
do afogamento do Poder Judiciário, mormente em virtude do elevado número de processos
pendentes de julgamento, a representação que pode ser feita perante os tribunais de contas
é uma alternativa viável para que os integrantes da sociedade exerçam o controle do patri-
mônio público. Esta última via de controle se opera no âmbito administrativo que, além de
colaborar no sentido de desafogar a instância judicial, é amplamente acessível. Ademais,
os tribunais de contas são instituições especializadas, com corpo técnico capacitado na
realização de auditorias e que realiza procedimentos específicos para enfrentar as questões
relacionadas à gestão do patrimônio público e dos interesses da coletividade. É diferente do
que ocorre no âmbito do processo judicial, no qual o julgador não é especialista em uma área
do conhecimento específica. Para este estudo, empregaram-se os métodos comparativo e
indutivo. Primeiramente, foram confrontadas as peculiaridades da ação popular e da repre-
sentação junto aos tribunais de contas. Destacadas e delineadas as características de cada
um dos procedimentos, chegou-se à conclusão genérica de que a via dos tribunais de contas
é uma via de ação que deve ser levada em consideração por aqueles que almejam exercer o
controle da Administração. Como resultado da pesquisa, foi possível identificar na atuação
dos tribunais de contas uma via de controle potencialmente mais técnica, barata e adequada
para a fiscalização dos atos do poder público que pode produzir resultados satisfatórios à
coletividade. Além de poder trazer resultados para a gestão pública, pode colaborar para
solucionar a questão do paradigma da eficiência do Poder Judiciário, reduzindo o número de
processos e dando soluções que efetivamente podem modificar uma realidade.
Gustavo Martinelli
Mestrando em Direito (PUC-PR)
Membro do Núcleo de Pesquisa em Políticas Públicas e
Desenvolvimento Humano (PUC-PR)
Advogado
Palavras-chave: Lobby. Gestor público. Escolha pública. Racionalidade limitada. Direito ad-
ministrativo.
Desenvolvimento Nacional 471
Este trabalho defende a tese na qual os cartórios são as únicas entidades capa-
zes de gerar e transmitir dados aos órgãos públicos de forma segura e eficiente e, através
desse compartilhamento, auxiliar a prevenir e combater a corrupção. Atualmente, os cartó-
rios vão além da sua função registral e notarial atuando como alimentadores de dados para
órgãos públicos. Forma-se no Brasil uma rede complexa de sistema informatizado, pelo
desenvolvimento de plataformas institucionais dentro das quais os cartórios atuam como
alimentadores de dados. O compartilhamento de dados entre cartórios e poder público segue
normas rígidas de exigência, principalmente com relação aos prazos de cumprimento para
transmissão dos dados e instalação de ambiente tecnológico sofisticado pelos cartórios.
Apresentam-se os principais portais utilizados pelos cartórios nesse compartilhamento de
dados e sua importância para o combate às fraudes. Porém, mesmo diante de um cenário
de alta interdependência entre Estado e cartórios, surgem fortes críticas defendendo sua
extinção, todas pautadas em argumentos midiáticos risíveis, como fundamentar a sua extin-
ção pelo fato de os cartórios serem muito rentáveis. Nesse contexto, apontam-se algumas
deficiências, já identificadas, no compartilhamento de dados; sugerem-se alternativas para
melhorar o desempenho; e, se conclui que somente por um compartilhamento de dados
eficiente o poder público conseguirá debelar as fraudes e a corrupção e os cartórios se apre-
sentam neste cenário como entidades indispensáveis. Enfim, se questiona os reais motivos
de figuras públicas defenderem a extinção dos cartórios, sendo estes os únicos capazes de
gerar e compartilhar informações necessárias para combater a corrupção.
Érika A. Rosa
Mestranda em Estudos Fronteiriços (UFMS)
O presente trabalho teve como objetivo suscitar o debate sobre a possibilidade da im-
plementação da arbitragem tributária por meio de legislação ordinária editada pelos próprios
estados-membros através da competência suplementar, frente a carência de legislação fede-
ral que autorize tal medida. Em relação ao procedimento metodológico, foi realizada pesquisa
bibliográfica exploratória, tendo a coleta de dados ocorrida por meio de fichamento, após a
escolha de obras consideradas relevantes para a interpretação do tema. Essa reflexão se fez
necessária devido ao fato de as execuções fiscais serem notoriamente as maiores responsá-
veis pelo congestionamento processual que atravanca o judiciário, à vista disso, o instituto
da arbitragem em matéria tributária pode se transformar num instrumento para a administra-
ção judiciária tentar mitigar o referido problema. Todavia, a adoção do citado método hetero-
compositivo de resolução de conflitos em matéria fiscal foi obstado por alguns doutrinadores
mais conservadores do direito administrativo ao principal argumento da indisponibilidade da
receita tributária, contudo os resultados mostraram que os argumentos jurídicos contrários à
efetivação da arbitragem tributária restaram superados, tanto pela doutrina quanto pela juris-
prudência, ambas alinhadas ao novo paradigma da administração pública, mais democrática
e dialógica. Não obstante, o que se observou foi uma grande resistência política por ser um
instrumento nunca utilizado no Brasil e como toda novidade induz sentimento de medo e
desconfiança. Concluiu que a possibilidade de regulamentação desse método alternativo de
resolução de conflitos no âmbito fiscal por meio de legislação suplementar como alternativa
à inércia legislativa federal representaria um avanço para a administração pública, sobretudo
no que tange a gestão judiciária posto que se mostra como uma via alternativa ao congestio-
namento processual fiscal ao mesmo tempo em que vislumbra um alargamento no diálogo e
a promoção da democracia participativa, uma vez que possibilita a densificação do resultado
útil do processo através de um mecanismo mais especializado, além de representar impor-
tante instrumento de notável impacto no sistema de arrecadação tributária.
O estudo sobre a formulação de políticas públicas para o alcance dos direitos cons-
titucionais – principalmente direitos fundamentais sociais – se faz de suma importância para
o avanço social, uma vez que é a partir dessas escolhas públicas que reside a possibilidade
de construção de uma sociedade mais justa, solidária, plural e com atendimento às necessi-
dades básicas dos cidadãos que a integram. Sob esta perspectiva é que o presente resumo
pretende trazer à baila a discussão de como tais políticas interferem no desenvolvimento
nacional, tendo como pano de fundo a avaliação da sua efetividade. O objetivo é colocar em
discussão a possibilidade de prestação do serviço de educação pelo Estado em conjunto
com os particulares, como forma de cooperação, utilizando-se de instrumentos disponíveis
no ordenamento jurídico brasileiro. A partir dessa premissa, sugere-se o debate das ativi-
dades prestadas pelo terceiro setor por meio das medidas alternativas de fomento, na área
da educação, como tentativa de incrementar a qualidade de ensino prestada à sociedade
brasileira. Sob este viés, destaca-se a importância da realização e execução de políticas
públicas, simulando a aplicação da escolha pública educacional através das medidas de
fomento como estímulo ao terceiro setor para a prestação de atividades na área da educa-
ção, em complementariedade ao serviço já prestado pelo Estado, ressaltando os meios de
avaliação dos efeitos desta política pública na sociedade. Assim, tendo as políticas públicas
como ponto de partida para a concretização de direitos fundamentais sociais, juntamente
com as parcerias da administração pública com o particular na cooperação de esforços para
alcance do desenvolvimento nacional, enseja-se a discussão da viabilidade da execução
das atividades de educação por meio das Organizações Sociais, a fim de proporcionar o
aumento da qualidade na prestação de ensino por meio das medidas de fomento, forçando
a sociedade a repensar sobre os atuais modelos praticados e a reflexão sobre a inserção
dos novos modelos para a contribuição de uma sociedade mais plural e democrática que,
por meio da colaboração e união de esforços do Estado com o particular, possam contri-
buir para o desenvolvimento nacional idealizado pelo constituinte originário. Assim, pode-se
478 Fabrício Motta | Emerson Gabardo - Coords.
concluir que se o gestor público unir esforços desde a formulação de uma política pública
educacional, estudando as possíveis vias de ação e eleger a via mais eficaz, eficiente e que
efetivamente possa trazer bons resultados, a educação pública já terá um grande avanço.
Soma-se a isso, a execução desta escolha pública por meio de parcerias firmadas com o
terceiro setor, como já vem ocorrendo na área da saúde, vislumbrando a possibilidade de,
a longo prazo, modificar o cenário educacional atual e colher bons frutos para galgar ao
desenvolvimento nacional.
nos portais da transparência nos mesmos municípios que possuem população superior a
500 mil habitantes, quais sejam, Curitiba e Londrina, além do sítio eletrônico do estado do
Paraná. Os aspectos analisados foram se há publicização de Carta de Serviços ao Usuário,
disponibilização na internet de relatório de gestão, desenvolvimento de mecanismos reativos
para responder as manifestações dos usuários – através das ouvidorias, e publicação de
classificação das entidades com maior incidência de reclamação dos usuários. Verificou-se
que, também no Poder Executivo, a legislação não vem sendo muito observada.
Roberta Seben
Pós-graduanda em Direito Processual
Civil (PUC-SP em parceria com a ESAMS)
Aluna especial do Mestrado em Direito (UFMS)
Servidora pública federal do Tribunal Regional
do Trabalho da 24ª Região
A necessidade de reforma nas legislações das mais diversas áreas que envolvem a
administração pública brasileira tem sido pauta recorrente nos últimos tempos, especialmen-
te desde as últimas eleições presidenciais, em 2018. A tão propagada reforma da previdên-
cia já está em análise pelo Poder Legislativo, além da reforma trabalhista, já aprovada no final
do ano de 2017, e alterações que também configuram como reformistas, como a tributária
e da Lei de Licitações demonstram esse movimento legislativo importante. Nesse contexto,
é comum se perceber uma parcela significativa da sociedade defender a realização dessas
reformas pelo fato de, em tese, elas representarem uma forma quase que única de mudança
e transformação do Brasil, como se a corrupção e a precariedade na prestação dos serviços
públicos fossem melhorar tão somente por consequência da aprovação das referidas legis-
lações. Não há como se negar que a legislação brasileira, em especial no que se refere ao
Direito Público, assim como em qualquer outro país que tenha se desenvolvido nas últimas
duas décadas de forma mais significativa, precisa de avanços e carece de atualização e que
hoje, a administração pública padece em um limbo entre as necessidades de inovações e, de
outro lado, legislações que impedem algumas práticas mais proativas. No entanto, é preciso
que haja um equilíbrio no que se busca debater, especialmente para que o aprimoramento
proposto se dê de forma mais sustentável. Neste sentido, este estudo apresenta a proposta
de leitura dos projetos de lei da Reforma da Previdência (PEC 6/2019) e da Reforma Tribu-
tária, a fim de analisá-los sob a perspectiva da sustentabilidade, compreendida nos aspec-
tos econômicos, sociais, administrativos e éticos. O que se busca compreender é em que
medida esses textos propõem mudanças que possibilitem que o Estado funcione de forma
a cotejar todos estes vieses, assegurando o desenvolvimento que contemple e equilibre
avanços sociais e econômicos. Parte-se do pressuposto que é insuficiente qualquer reforma
que contemple as eventuais metas fiscais, mas não estimule o planejamento que leve em
conta uma análise de resultados advindo de cada medida, para além do que se mostra como
imediatamente posto, aos olhos de alguns, como sendo a desburocratização ou a diminuição
das cargas tributárias. Pelo que se pode analisar dos referidos projetos de alteração, em
muitas propostas é flagrante a ausência de propostas sustentáveis, pela ausência de análise
de riscos das medidas e, de outra parte, pela falta de avaliação de resultados das políticas
Desenvolvimento Nacional 485
que se pretende mudar e/ou estabelecer. Desde já se pode afirmar que há legitimidade ao se
propor reformas, contudo, tais propostas não podem se dar, sob pena de comprometimento
das futuras gerações, inclusive, sem se mobilizar a noção de sustentabilidade.
A temática do uso de drogas envolve áreas como segurança, saúde, educação e eco-
nomia. Estando diretamente relacionada a problemas sociais como a superlotação carcerária
e a criminalidade. No intuito de enfretamento dessa realidade social brasileira, foi editada a
Lei de Drogas 11.343/2006 que instituiu o Sistema Nacional de Políticas Públicas (Sisnad),
o qual “prescreve medidas para prevenção do uso indevido, atenção e reinserção social de
usuários e dependentes de drogas”. A lei possibilita a cooperação entre o Estado e a socieda-
de e entre as entidades civis que atuam na política de drogas estão as Comunidades Terapêu-
ticas apoiando o dependente químico. Além disso, através de entrevistas semiestruturadas e
da pesquisa documental e legislativa, verificar o estado da arte dessas entidades em Campo
Grande. Quantas são, as suas necessidades, a organização do trabalho, a relevância destas
e a relação com o Estado, no que tange a visibilidade e o apoio recebido. Assim são os obje-
tivos dessa pesquisa: analisar a atual política pública de drogas de Campo Grande, como um
estudo de caso, do tipo exploratório e descritivo, das entidades (públicas e privadas) e das
políticas públicas atuais em Campo Grande. Além de subsidiar a elaboração de uma proposta
de nova política pública, integrando as já existentes, com foco na atuação das comunidades
terapêuticas, bem como a elaboração de uma agenda de pesquisa no sentido de desen-
volve-la e acompanha-la. Para tal, foi realizado um estudo bibliográfico na busca de expor
conceitos do campo psicossocial e validar métodos que atuam na redução da demanda por
drogas, como as comunidades terapêuticas. Além disso, para esta pesquisa, foi utilizado o
método benchmarking, a fim de buscar as melhores práticas.
Este estudo compõe uma pesquisa que será apresentada no Programa de Pós-gra-
duação em Direito e Políticas Públicas, Universidade Federal de Goiás. Seu objetivo é analisar
a efetividade da política pública de tratamento e reinserção de pessoas que usam drogas,
considerando o programa implantado no Estado de Goiás, qual seja, o Centro Estadual de
Referência e Excelência em Dependência Química de Aparecida de Goiânia Prof. Jamil Issy
(CREDEQ Prof. Jamil Issy). Considera-se o consumo de drogas um problema que pode advir
de questões sociais, biológicas e psicológicas, conforme o meio social em que o indivíduo
se insere. Além de um fator social, o uso de drogas também é um problema de saúde públi-
ca, que prepondera sobre os problemas de segurança pública. O texto constitucional define a
saúde como um direito fundamental, tornando essa prestação um encargo do Estado, logo,
a disponibilidade de políticas públicas vinculadas às questões de drogas não são discricio-
nárias, o meio pode ser relativizado, mas a prestação de serviços públicos de saúde, não.
Nesse sentido, mostra-se relevante explorar como o Estado de Goiás está implementando
políticas de redução de danos em relação às pessoas dependentes do uso de drogas. Pre-
tende-se com este estudo de caso, verificar se a inserção de uma política pública de saúde
de tratamento diretamente nos casos de pessoas que tem problemas com o uso de drogas
pode ter influência positiva e eficiente na política de redução de riscos e danos do uso de
drogas, bem como, a reinserção de pessoas que usam ou usaram drogas, considerando as
determinações feitas pelo Sistema Nacional de Políticas Públicas sobre drogas. Optou-se
por metodologia dedutiva, haja vista que a política pública deve ser considerada como um
processo que busca a escolha racional e coletiva de prioridades, a fim de se perseguir um
resultado em consonância com o interesse público, fundamento do Estado de Direito. Será
488 Fabrício Motta | Emerson Gabardo - Coords.
descrito um recorte epistemológico sobre o referencial teórico dos critérios adotados para
aferir a efetividade da referida política pública. De início, eficiência relaciona-se à boa gestão
de recursos públicos, na razão de que a atividade seja desempenhada de modo mais adequa-
do e coeso aos fins determinados, considerando também a escolha dos meios e o momento
oportuno para utilizá-los. De outra forma, sua relação está ligada à ideia de ação, ou seja,
preocupa-se com a delimitação temporal na prestação de serviços públicos, contrapondo à
ideia de lentidão e descaso no desenvolvimento de políticas públicas. Contudo, a definição
de efetividade necessita de interpretação axiológica, considerando a adequação entre as
necessidades e resultados esperados, a justa repartição de recursos e, o atendimento das
reivindicações sociais. Outra característica que não poderá ausentar-se da prestação de ser-
viço público é a sua relação entre o princípio da dignidade da pessoa humana e a respectiva
política pública. Conclui-se que a análise de efetividade de políticas públicas deve guardar
relação com valores axiológicos do princípio da eficiência, além da garantia do princípio da
dignidade da pessoa humana no cumprimento de objetivos técnicos, resultados rápidos e
precisos e obediência à boa administração.
rania nacional em conjunto com circunstanciais reformas que convém ser analisadas quanto
sua constitucionalidade. São elas: Emenda Constitucional n. 05/95, que alterou o parágrafo
2º do art. 25 para permitir empresa estrangeira prestar serviço de gás canalizado; Emenda
Constitucional n. 06/95, que revogou o art. 171 e o conceito constitucionalizado de empresa
brasileira; Emenda Constitucional 08/95 alterou o inciso XI do art. 21 para permitir a abertura
de prestação de serviços de telecomunicações aos estrangeiros; Emenda n. 09/95 alterou a
redação do parágrafo 1º do art. 177 para permitir a exploração do monopólio federal do pe-
tróleo e gás natural por empresa estrangeira. Considerar-se-ão, na pesquisa, o marco teórico
de Robert Alexy, quanto à teoria dos princípios, especialmente, diante de sua otimização na
maior medida possível, dadas as possibilidades jurídicas e fáticas dos setores de infraes-
trutura, diante do exame de proporcionalidade que será verificado casuisticamente, em cada
tipo de investimento, delineando-se contornos verificáveis em tese, a partir de segmentos
econômicos e de serviços públicos predeterminados.
O presente trabalho tem como objetivo aplicar a teoria do domínio presidencial frente
ao novo marco legal das agências reguladoras (Lei n. 13.848 de 2019) e à postura política
dos governos Dilma, Temer e Bolsonaro (2015-2019). Foram utilizados como metodologia
de pesquisa a análise doutrinária do tema e a coleta de dados normativos do Poder Executivo
e do Poder Legislativo, no recorte temporal de 2015 a 2019, que trataram de alterações or-
ganizacionais e de competências das agências reguladoras. O modelo brasileiro de agências
reguladoras tem suas bases no modelo norte-americano, com poucas aproximações e mui-
tos distanciamentos. No momento do transplante para o ordenamento nacional, as agências
se desenvolveram de forma diversa do pretendido. De um lado, as agencies americanas
representavam um núcleo de rompimento com a ideia de Estado mínimo e de normatização,
voltada para o legislativo, dotadas de ampla autonomia e independência. De outro, as agên-
cias reguladoras brasileiras, apesar do discurso em prol da autonomia, têm forte submissão
ao governo central e aos ministérios. Isso reflete na chamada teoria do domínio presidencial.
Os graus de aplicação da teoria variam conforme o perfil de governo, conferindo as agências
eixos de poder distintos a depender do cenário político. No Brasil, o presidente possui forte
controle sobre as agências, o que é justificado por meio da teoria do domínio presidencial,
marcada pela ingerência política. A postura atual, apesar da edição do marco das agências,
é de esvaziamento ao perfil técnico da competência das agências. À luz da teoria do domínio
presidencial, a prática política atual tende para centralização político-administrativa, pautada
na redução do comprometimento com o caráter técnico das agências. Conforme se com-
prova pelos dados levantados neste trabalho, há uma progressiva dominação presidencial
no funcionamento das agências, que deve ser reajustada para que o modelo de autonomia
permaneça vigente. O trabalho aponta pelas seguintes conclusões: (i) por meio dos vetos
presidenciais, principalmente dos dispositivos que instituíam a pré-seleção de uma lista trípli-
504 Fabrício Motta | Emerson Gabardo - Coords.
lidade. Por outro lado, focando na perspectiva material, do respeito à dignidade da pessoa
humana, pode-se afirmar que alcançando uma boa administração pública garante-se essa
dignidade, que é o núcleo dos direitos fundamentais sob esta perspectiva, porque sem a
Administração Pública gerindo bem os recursos disponíveis, atendendo devidamente aos
direitos prestacionais dos quais necessitam o administrado, resta inalcançável a dignidade
da pessoa humana.
tempos do período colonial brasileiro, como os alarmantes níveis de pobreza e a alta taxa de
analfabetismo, cuja lógica perversa mantém a população empobrecida e analfabeta, como
garantidor do controle das estruturas de poder. Os estudos apontaram conclusivamente que:
a) não há uma fórmula mágica a ser aplicada no combate à corrupção e cada proposta que
se apresente, pode ser menos ou mais eficiente e sua eficácia dependerá basicamente de
quem a propõe; b) combater a corrupção exige esforços concentrados da sociedade civil
organizada; dos três níveis dos poderes (executivo, legislativo e judiciário) da mídia, como
indutor da investigação e da divulgação dos casos de corrupção.
Lucas Bevilacqua
Doutor e mestre em Direito Econômico,
Financeiro e Tributário (USP)
Professor no Mestrado Profissional em Direito e
Políticas Públicas (UFG)
fundamental à saúde pública hoje se ramifica para a saúde alimentar de uma população,
buscando a contemplação do artigo 6º da Constituição Federal. Como as políticas públicas
são direitos assegurados na Constituição, pode-se afirmar uma política pública para uma
saúde alimentar deve fazer parte de um conjunto de ação do poder público na efetivação dos
direitos. Propõe-se como sugestão, portanto, uma política pública de combate a obesidade
com base em uma indução tributária, com impacto positivo sobre o orçamento público, de
diminuição a longo prazo nos gastos a saúde e aumento de receitas provenientes a entrada
de novas fontes.
projeto, não há resultados parciais ou finais a serem apresentados, assim como também não
se verificam conclusões a serem demonstradas.
Palavras-chave: Controle social. Política urbana. Gestão democrática da cidade. Análise
legislativa. Legislação urbanística federal
Desenvolvimento Nacional 519
através do aprimoramento das estruturas, ritos, processos e ações dos agentes públicos
no espectro administrativo. A partir do panorama apresentado, o escopo da pesquisa, de-
senvolvida pelo método hipotético-dedutivo a partir de revisão bibliográfica e coleta de da-
dos oficiais, busca compreender o alcance e o conteúdo do conceito jurídico indeterminado
“orientações gerais da época” e dos demais termos que compõem o caput do artigo 24 e
seu parágrafo único, além dos seus reflexos para as relações jurídico-administrativas, tudo
para construir a legitimidade da escolha de precedentes administrativos para maior estabili-
dade das decisões administrativas e as implicações na efetivação da segurança jurídica para
os administrados que se encontrem em uma mesma conjuntura fático-jurídica. Entretanto,
dado o arquétipo estatal hodierno, é preciso cautela na utilização despreocupada destes
precedentes. Isso porque a boa governança – pautada nos princípios da eficiência e da pro-
dutividade –, demanda a estruturação de critérios de aferição da qualidade e validade das tais
orientações gerais da época, o que ainda não se tem notícia. Logo, sumarizados os pontos
aventados na pesquisa, pode-se sugerir, a título conclusivo, que este cenário, somado à
falta de técnica jurídica dos quadros de servidores e gestores responsáveis pela construção,
compilação e uso de seus precedentes administrativos, sem olvidar do conhecimento defici-
tário do próprio regime jurídico-administrativo – com suas prerrogativas e sujeições –, tradu-
z-se em óbice ainda não superado, encerrando a possibilidade de se consolidar precedentes
inválidos e, assim, inaplicáveis aos litígios constituídos, prevalecendo a insegurança jurídica.
Informações apuradas pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ) indicam que mais
de 50% das demandas que chegam ao Judiciário envolvem autoridades públicas. Há que se
considerar que essas demandas em geral versam sobre tributos, ou seja, são execuções
fiscais, ou são sobre a (não)aplicação de normas que garantem a concretização de direitos
fundamentais. Desses dados, é possível ponderar que o abarrotamento sofrido pelo Judiciá-
rio conta fortemente com a contribuição de uma gestão de processos débil dentro da própria
Administração Pública. Por óbvio, a cultura litigante associada a gestão processual inade-
quada que incentiva o administrado a buscar resposta no Judiciário, embaraça ainda mais a
já dificultosa fluidez do acesso à justiça. É importante verificar que o fortalecimento do pro-
cesso administrativo, sob a orientação de todos os princípios constitucionais expressos ou
implícitos e a utilização devida da Lei n. 9784/1999, é uma boa ferramenta para a solução de
conflitos na esfera administrativa. Do mesmo modo, servidores públicos que possuam for-
mação jurídica, que gozem de garantias e prerrogativas e que, assim, possam instruir e deci-
dir em procedimentos, garantiriam transparência, confiança legítima e segurança jurídica aos
administrados. Nesse sentir, pode ser invocado o direito a uma boa administração pública,
que foi instituído na União Europeia, por meio da Carta de Nice, em dezembro de 2000. Após
sua consagração no bloco europeu, verificou-se que se trata de um direito fundamental implí-
cito no texto constitucional brasileiro. A boa Administração Pública perfaz-se com o agir do
gestor de modo a materializar a cogência das normas pertinentes a atuação do Estado; ces-
sando a irresponsabilidade e a conduta vacilante, reconhecendo a força principiológica que
reveste as diretrizes sob as quais está o mister público. Para a satisfação do acesso à justiça
no âmbito da justiça administrativa, sob a ótica da boa administração, são imprescindíveis
as orientações orgânicas desse direito. Em outras palavras, é defender uma administração
eficiente, eficaz, que cumpre cabalmente seus deveres, operando de modo transparente e
sustentável, que motiva suas decisões de modo imparcial, ostentando a moralidade, a parti-
cipação social e a responsabilidade por suas condutas, sejam elas omissivas ou comissivas.
Assim, os objetivos aqui avençados são: (I) indicar os últimos dados reunidos pelo CNJ que
se refiram às causas que envolvam o poder público; (II) discutir como os gestores públicos
podem concretizar os direitos fundamentais, por meio dos procedimentos, a fim de viabilizar
Desenvolvimento Nacional 523
o acesso à justiça; (III) verificar a aplicação do direito a uma boa administração pública e sua
relação com o acesso à justiça. A principal metodologia utilizada é a pesquisa bibliográfica
nas fontes doutrinárias, além de fontes documentais. Os resultados obtidos demonstram que
a utilização desse princípio guarda-chuva que é a boa administração pública, favorece uma
melhor instrução processual, atendendo de modo muito mais satisfatório ao administrado,
que, ao ter seu pleito atendido, ou ao menos devidamente conduzido, não precisará recorrer
ao Judiciário. É indubitável a urgência do fortalecimento da esfera administrativa para que,
segundo o que o direito a boa administração inspira, o acesso à justiça goze de maior con-
cretude.
Declaração Rio 92 e no Acordo de Paris. Uma gestão tão danosa que tem levado o atual
governo federal a alcançar o feito inédito de – em menos de nove meses – sofrer duras crí-
ticas conjunta de oito ex-ministros do Meio Ambiente, enfrentar uma grave crise diplomática
internacional, um pedido de impeachment do Ministro de Meio Ambiente e um pedido de CPI
no Senado. Um conjunto de ingerências, portanto, que vem afetando seriamente o objetivo
social do PPCDAm; ameaça o direito de todos – presentes e futuras gerações – ao Meio
Ambiente Ecologicamente Equilibrado; e que, por isto, constitui-se também em um conjunto
de reformas e modelo de gestão que afronta de maneira grave ao princípio do não-retrocesso
em matéria ambiental.
Baseando-se nas compreensões trazidas por Amartya Sen, o estudo busca analisar
uma nova finalidade ao serviço público além da tradicional concepção de promoção da igual-
dade e existência humana digna, qual seja: o fomento ao desenvolvimento da capacidade
de agência dos indivíduos, tornando-os capazes de prosperar e se autopromoverem em
suas vidas. Tal releitura é aplicável atualmente, uma vez que a sociedade desconsidera no
contexto atual o verdadeiro sentido do serviço público: o desenvolvimento social. A metodo-
logia utilizada é a descritiva, utilizando a seleção dos conceitos dos autores para analisar e
correlacionar fatos sociais. Entende-se que o Serviço Público não pode ser encarado apenas
como uma atividade estatal, que oferece aos cidadãos utilidades materiais para atender con-
veniências básicas da sociedade, mas sim como uma atividade que permite ao ser humano
se desenvolver sem a necessidade de depender de qualquer pessoa ou entidade para “so-
breviver” ou ter acesso ao mínimo existencial. Sobre a óptica de Amartya Sen, é por meio do
fortalecimento das liberdades individuais a maneira ideal de se alcançar o desenvolvimen-
to e a melhora da vida dos indivíduos, ideais somente possíveis com a industrialização, o
progresso tecnológico, modernização social e, principalmente, com as disposições sociais
e econômicas, a exemplo dos serviços de educação e saúde, bem como direitos civis (li-
berdade política). Parte-se do pressuposto de que a pobreza é uma imposição artificial nos
seres humanos, ou seja, não é de sua natureza, sendo necessário mudar o pensamento de
cada indivíduo, inclusive daqueles que se intitulam como desfavorecidos, para que saiam
da inércia e busquem nos serviços públicos uma oportunidade de se emanciparem. Sen
constrói a definição de condição de agente dos indivíduos, capaz de propiciar oportunidades
para que desenvolvam e expressem suas capacidades e, assim, fomentar o desenvolvimento
social. No mesmo sentido, Muhammed Yunus compreende que a capacidade de empreen-
dimento é habilidade inata de todos os seres humanos, possibilitando a emancipação do
indivíduo, com o trabalho e independentemente do Estado. A união dos marcos teóricos
permite idealizar o objetivo maior do serviço público: dar condições aos indivíduos para que
se tornem agentes, proporcionando oportunidades de emancipação, trabalho e desenvolvi-
mento, juntamente com a sociedade. Entretanto, há problemas a enfrentar. A universalidade
é princípio basal para que essa releitura do instituto do serviço público se materialize. Não
há aumento de oportunidades, capacidades, liberdade, condição de agente e empreendedo-
Desenvolvimento Nacional 529
rismo sem que todos os cidadãos tenham facilidade de acesso aos serviços básicos como
saneamento básico, água limpa e energia elétrica. Entretanto, universalidade de acesso aos
serviços públicos no Brasil não é realidade e assim, para implementar essa nova noção, será
necessário “reeducar” a mente da maior parte dos brasileiros, demonstrando o caminho da
emancipação, da condição de agente e liberdade individual. Essa “reeducação” deve ser
feita à indivíduos que sequer tem acesso nem ao mínimo para a sua saúde, como ao serviço
público de saneamento básico. Assim, a releitura do instituto do serviço público deve ser
feita juntamente com uma releitura da atuação do poder público.
Este trabalho de pesquisa visa estudar a Lei 8.429/92, Lei de Improbidade Adminis-
trativa, enfocando os atos de improbidade que importem em enriquecimento ilícito, modali-
dade prevista no artigo 9º da lei mencionada. Por meio de um estudo detalhado e pragmáti-
co, pretende-se demonstrar que não raramente as ações de improbidade administrativa não
demonstram a má-fé do agente público em seu agir, ignorando o fato de que a lei aplica-se
somente quando o ato tido como ilícito puder ser rotulado como improbidade qualificada,
como desonestidade perversa e abjeta, e não quando se tratar de mera irregularidade. Tem
como escopo enfatizar que para a caracterização do ato ímprobo que importe em enriqueci-
mento ilícito é necessária a comprovação da má-fé do agente público. O objetivo é demons-
trar que a Lei n. 8.429/92 visa a resguardar os princípios da administração pública sob o
prisma do combate à corrupção, da imoralidade qualificada e da desonestidade funcional
considerada grave, não se coadunando com a punição de meras irregularidades adminis-
trativas ou transgressões disciplinares. É apresentada a má-fé como elemento fundamental
para o delineamento da ilicitude ou do juízo de reprovabilidade de determinada conduta. A
relevância de se fazer menção ao tipo enriquecimento ilícito decorre da necessidade legal de
demonstrar que o agente público concorreu com dolo, isto é, que teve a intenção deliberada
de auferir ou de ajudar alguém a auferir, indevidamente, dinheiro público. A metodologia a ser
utilizada é o método dedutivo, partindo do conceito geral de má-fé e de improbidade adminis-
trativa, ponderando-se e correlacionando-se ambos os institutos à luz da legislação aplicada
ao tema. Além disso, a presente pesquisa tem caráter exploratório, descritivo e bibliográfico,
recorrendo a obras jurídicas, periódicos e doutrinas, além de análise jurisprudencial, tendo
o método indutivo como forma de análise. Como resultado, espera-se demonstrar que o ato
ímprobo que importe em enriquecimento ilícito precisa ser consciente e deliberadamente
praticado pelo agente público com o objetivo evidente de afrontar a norma proibitiva implícita
no tipo sancionador previsto no artigo 9º da Lei 8.429/92, indicando que a má-fé contribuirá
para a aferição da reprovabilidade, ou não, de sua conduta, justificando, ou não, a incidência
Desenvolvimento Nacional 533
do sistema sancionador veiculado pela lei. Concluindo-se, assim, que esta lei apresenta um
caráter subsidiário, somente tendo cabimento quando a irregularidade não puder ser coibida
por outras esferas, como a administrativa.
Compreendendo os riscos da
Administração Pública
Palavras-chave: Risco. Administração Pública. Fato jurídico. Ato administrativo. Erro honesto.
Desenvolvimento Nacional 535
cia extraída de casos paradigmáticos sobre o assunto. Será utilizado, outrossim, o método
dialético, expondo ao longo do trabalho as diversas correntes doutrinárias e teorias sobre a
matéria, desenvolvendo-se proposições teóricas a partir das contradições expostas e dos
contrários internos inerentes ao problema de pesquisa, mas sem perder de vista que estes
se apresentam como uma unidade indissolúvel.
não haja sobreposição. Compreendido o sistema sancionatório antitruste, por meio de seus
limites, parâmetros e demais formas de sanção, se fará a análise em espécie das sanções
aplicadas no âmbito do Sistema Brasileiro de Defesa da Concorrência, seja reprimindo as
condutas anticompetitivas, seja na construção das estruturas de mercado que não permitam
o abuso do poder econômico. Por se tratar de uma pesquisa de cunho essencialmente teóri-
co, a metodologia adequada é a pesquisa bibliográfica.
semelhantes aos ocorridos no controle externo pelo TCU e o travamento de políticas públicas
e obras de infraestrutura. Para futuros trabalhos e teses, sugere-se o estudo das diretrizes
internacionais de controle interno, emitidas pelo COSO e pela INTOSAI, como modelos a
serem incorporados e positivados pelo ordenamento jurídico brasileiro, lacunoso quanto a
critérios e parâmetros gerais de organização do controle interno, e a balizarem a edição de
novos atos normativos pertinentes à matéria.
entanto, não foram levadas a cabo, obstadas por 2 ações judiciais (uma já transitada em
julgada, outra ainda com decisão liminar) que levaram à suspensão dos atos, com especial
ênfase nos argumentos de ausência de perigo iminente, além de menção ao baixo valor dos
procedimentos previstos na Tabela do SUS e o impacto que isso teria no desenvolvimento
das atividades privadas, o que configuraria risco para as partes, justificando, inclusive, as
decisões interlocutórias. Conclui-se que as requisições administrativas podem ser uma alter-
nativa em situações pontuais de judicialização e de problemas nas prestações de saúde pú-
blica que, apesar do Estado agir, persistem, mas seu sucesso parece associado à ausência
de choque de interesses com os requisitados, pois quando este emerge, a difícil ponderação
entre interesse público e liberdade privada ainda impõe severas limitações ao direito à saúde.
A saúde foi elevada pela Constituição Federal à condição de direito social de apli-
cabilidade imediata, a ser assegurado pelo Estado, por intermédio de políticas econômicas
e sociais. Sabe-se, porém, que a previsão constitucional não é suficiente para efetivar a
contento a universalização e a integralidade desse direito, como pretendido pelo constituinte.
Esse cenário de falta de efetividade deu espaço à judicialização da saúde, que consiste no
crescente volume de ações pelas quais se pedem, pela via judicial, tratamentos e medica-
mentos não disponibilizados pela Administração Pública. Nesse contexto, o poder público
enfrenta o desafio de encaixar no Orçamento as políticas públicas de saúde no âmbito do
SUS e o cumprimento de ordens judiciais. Essas decisões, cada vez mais frequentes, im-
põem o custeio de prestações de saúde não abarcadas no planejamento feito previamente
e, muitas das vezes, em caráter de urgência. A maioria dessas ações são individuais, o que
evidencia um paradoxo na judicialização da saúde. Isso porque essa atuação judicial, sob
a pretensão de efetivar esse direito, oferece respostas espasmódicas para um problema
amplo, impactando no orçamento público, ao redirecionar dinheiro que financiaria políticas
públicas direcionadas à coletividade para atender a indivíduos com capacidade econômica
suficiente para pleitear prestações perante o Poder Judiciário. O objetivo da pesquisa é reali-
zar um estudo empírico documental sobre o posicionamento adotado pelo STF e o STJ com
relação ao direito à saúde. Isso se dará com a verticalização em casos paradigmas, julgados
entre 2004 e 2019, a partir dos quais se analisará a correção do uso da técnica de ponde-
ração de princípios – com base em Dworkin e Alexy – no confronto entre o direito à saúde e
a reserva do possível. Além disso, pretende-se verificar se há estabilidade temporal do posi-
cionamento das Cortes referidas. Adotar-se-á o método dialético-argumentativo, juntamente
com o procedimento técnico de revisão documental para analisar os casos paradigmáticos.
550 Fabrício Motta | Emerson Gabardo - Coords.
pessoal e de verba são responsáveis pelo agravamento da lentidão do trâmite dos processos
administrativos ambientais junto ao Ibama e Semad; bem como os métodos de solução con-
sensual de conflitos podem contribuir para uma maior efetividade da garantia constitucional
ao meio ambiente ecologicamente equilibrado. Em sede de resultados preliminares, segundo
recente estudo produzido pelo Ibama, entre os anos de 2000 e 2018, foram lavradas 1.049
autuações por infrações ambientais no Estado de Goiás, totalizando R$ 448,08 milhões em
multas e deste número, apenas R$ 19,2 milhões foram pagos pelos infratores, o que cor-
responde a ínfimos 4,32% de adimplemento. Ainda segundo o referido estudo, por meio de
realização de auditoria, entre os anos de 2013 a 2017, foram detectados 9.076 casos de
reconhecimento formal de prescrição de processos de apuração dos autos de infração. Por
derradeiro, mediante análise de cases de sucesso, conclui-se que a solução consensual de
conflitos tem potencial para dar efetividade ao exercício do Poder de Polícia.
O presente trabalho tem como escopo trazer à discussão o tema afeto a proteção de
dados enquanto nova dimensão de direito fundamental, bem como as primeiras impressões
acerca de um possível novo pacto global. Ao mesmo tempo em que encurtou distâncias, o
fenômeno da globalização provocou descompassos em algumas áreas, na medida em que
não se mostrou hábil em absorver tensões nem administrar o direito à privacidade. Nesse
sentido, considerando o novo regulamento acerca da proteção de dados, revela-se oportuna
a reflexão sobre o acesso e tratamento da informação, com ênfase nas questões jurídicas e
culturais advindas da evolução tecnológica, considerando a escassez de estudos voltados
aos temas. A partir do ano de 2016, com a entrada em vigor do GDPR (Regulamento Geral
de Proteção de Dados) na União Europeia, o caráter transnacional da questão que envolve a
proteção de dados é suscitado, com destaque para o fato de que inexiste uma visão regulató-
ria comum entre grandes atores de peso, sinalizando, contudo, um marco jurídico de grande
relevo no que tange a influência na adoção de padrões comuns, ou seja, a compatibilização
entre regimes nacionais de proteção de dados, com o possível estabelecimento de um pacto
global. O objetivo específico do estudo é promover um recorte de pesquisa na questão da
proteção de dados, enquanto direito fundamental, no que se refere ao Estado brasileiro,
a partir da entrada em vigor, em 2020, da LGPG (Lei Geral de Proteção de Dados), com
destaque para as conexões e repercussões no âmbito do enfrentamento da corrupção pela
Administração Pública.
Este artigo se propõe a analisar a gestão do “Fundo Amazônia”, uma fonte de recur-
sos financeiros disponível em tempos de crise econômica por que passa o nosso país, mas
que se encontra no centro de uma disputa internacional entre o Governo brasileiro e países
da União Europeia, notadamente a França, Dinamarca e Alemanha, face ao crescente des-
matamento e aumento de queimadas na floresta amazônica. Inicialmente, buscou-se realizar
uma pesquisa histórica de análise de vários textos que abordam o atual cenário da região,
com as notícias que circularam na imprensa nacional e internacional, provocando uma gran-
de discussão sobre a finalidade do Fundo criado para receber investimentos estrangeiros,
visando a proteção da biodiversidade e da floresta amazônica, tudo isso em decorrência da
falta de uma política de proteção ambiental do atual Governo para a região. Efetuou-se uma
busca sistematizada abrangendo artigos de periódicos, dissertações, teses, comunicações
em eventos e legislações, como o Decreto n. 6.527, de 1º de agosto de 2008, que dispõe so-
bre o estabelecimento do Fundo Amazônia pelo Banco Nacional de Desenvolvimento Econô-
mico e Social – BNDES. A técnica de análise de conteúdo foi utilizada mediante a organização
da construção de uma ideia de plena operacionalização do assunto, através dos objetivos da
pesquisa, do conhecimento do campo teórico e prático, fundamentada na análise de da es-
trutura administrativa existente para a gestão dos recursos financeiros do Fundo Amazônia.
Com base na sistematização desse conhecimento, objetivou-se estabelecer uma proposta de
um modelo de gestão com base na Teoria da Ação Comunicativa (ou do Agir Comunicativo),
expondo a visão do Prof. Jürgen Habermas que no início do século XX buscava fundamen-
tar, para os interessados no processo, um dos pilares do Estado Democrático de Direito: o
diálogo democrático. Tais benefícios, que derivam da implantação de modelo gerencial mais
adequado, a ser efetivado por iniciativa de projeto de lei, foram analisados no que tange à
sua adequabilidade, praticabilidade e aceitabilidade, sendo que o estado do conhecimento
atingido a partir deste trabalho pode ser plenamente utilizado pela Administração Pública.
Hércules, o gestor
de direito através dos conteúdos ministrados para os alunos do ensino médio durante a
execução do projeto de extensão é dar um conhecimento sobre a origem e futuras perspec-
tivas da previdência social no Brasil. Exatamente neste momento histórico de debates no
Poder Legislativo da proposta da reforma do sistema previdenciário proposta de nosso Poder
Executivo federal apontada como essencial para a sobrevivência de nossa estrutura adminis-
trativa do Estado. Devemos concluir defendendo a ideia que somente através da educação
que iremos impulsionar o desenvolvimento do país e alcançar uma posição marcada pelo
progresso que irá gerar a sustentabilidade social e econômica para a sociedade brasileira.
PRESIDÊNCIA DO CONGRESSO:
• Fabrício Motta (GO)
COMISSÃO ORGANIZADORA:
• Cristiana Fortini (MG)
• Emerson Gabardo (PR)
• Maurício Zockun (SP)
• Rodrigo Valgas dos Santos (SC)
COORDENAÇÃO EXECUTIVA:
• Ana Paula Martins Pereira de Assunção (MS)
• João Paulo Lacerda da Silva (MS)
• Jean Phierre da Silva Vargas (MS)
• José Cláudio Barbosa Silva (MS)
• Isadora Felix Mota (MS)
• Katia Silene Sarturi (MS)
• Robson Souza da Silva (MS)
• Vander José da Silva Jamberci (MS)
PROGRAMA DO XXXIII CONGRESSO BRASILEIRO DE
DIREITO ADMINISTRATIVO
Desenvolvimento nacional:
por uma agenda propositiva e inclusiva
16 a 18 de outubro de 2019
Centro de Convenções de Campo Grande
08h00 – CREDENCIAMENTO
08h30 às 10h00
SALA 1:
Organização e reforma administrativa: a legalidade e os limites dos decretos e
atos normativos
Mediador: Georges Louis Hage Humbert (BA)
Desenvolvimento Nacional 563
Debatedores:
• Carolina Muller Bitencourt (RS)
• Juscimar Pinto Ribeiro (GO)
• Sergio de Andréa Ferreira (RJ)
SALA 2:
Novos dilemas da tutela da probidade
Mediador: Marcelo Harger (SC)
Debatedores:
• Mateus Bertoncini (PR)
• Rogério Gesta Leal (RS)
• Vladimir da Rocha França (RN)
SALA 3:
Licitações: perspectivas do novo marco regulatório
Mediador: Jean Phierre da Silva Vargas (MS)
Debatedores:
• André Luiz Freire (SP)
• Edgar Guimarães (PR)
• Joel de Menezes Niebuhr (SC)
10h00 – Intervalo
10h30 às 12h00
SALA 1:
Terceirização e reforma trabalhista: os impactos na Administração
Mediador: Fernando Borges Mânica (PR)
Debatedores:
• Carolina Zancaner Zockun (SP)
• Clovis Beznos (SP)
• Luciani Carvalho (MS)
SALA 2:
Dilemas do regime jurídico das empresas estatais
Mediador: Bernardo Stroebel Guimarães (PR)
564 Fabrício Motta | Emerson Gabardo - Coords.
Debatedores:
• Luciano de Araújo Ferraz (MG)
• Rodrigo Pironti Aguirre de Castro (PR)
• Maurício Zockun (SP)
SALA 3:
Crise fiscal e eficácia do controle da Administração
Mediadora: Heloísa Monteiro Godinho (GO)
Debatedores:
• Cynara Monteiro Mariano (CE)
• José Sérgio Cristovam (SC)
• Júlio Marcelo Oliveira (DF)
08h30 às 10h00
SALA 1:
Os 20 anos da Lei 9.784/99: os próximos passos do processo administrativo
Mediador: André Saddy (RJ)
Debatedores:
• Eurico Bitencourt Neto (MG)
• Florivaldo Dutra de Araújo (MG)
• Weida Zancaner (SP)
SALA 2:
Prevenção e combate à corrupção: mudanças legislativas e os próximos passos
Mediador: Francisco Taveira Neto (GO)
Debatedores:
• Paulo Cezar dos Passos (MS)
• Paulo Motta (PR)
• Rodrigo Valgas dos Santos (SC)
SALA 3:
O futuro da contratação pública
Mediador: Jader Ferreira Guimarães (ES)
Debatedores:
• Cristiana Fortini (MG)
• Marçal Justen Filho (DF)
• Vera Monteiro (SP)
10h00 – Intervalo
Reforma da Previdência
• Thiago Marrara (SP)
Legalidade, legalismo e legalistas
• Márcio Cammarosano (SP)