Desenvolvimento Nacional

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CONSELHO EDITORIAL

Ana Claudia Santano – Professora do programa de do Programa de Mestrado e Doutorado em Sociologia


mestrado em Direitos Fundamentais e Democracia, do e Direito da mesma universidade.
Centro Universitário Autônomo do Brasil – Unibrasil. Ligia Maria Silva Melo de Casimiro – Doutora em Direi-
Pós-doutora em Direito Público Econômico pela Ponti- to Econômico e Social pela PUC/PR; Mestre em Direito
fícia Universidade Católica do Paraná. Doutora e mestre do Estado pela PUC/SP; Professora de Direito Adminis-
em Ciências Jurídicas e Políticas pela Universidad de trativo da UFC/CE. Presidente do Instituto Cearense de
Salamanca, Espanha. Direito Administrativo - ICDA; Diretora do Instituto Bra-
Daniel Wunder Hachem – Professor de Direito Cons- sileiro de Direito Administrativo - IBDA e Coordenadora
titucional e Administrativo da Universidade Federal do Regional do IBDU.
Paraná e da Pontifícia Universidade Católica do Paraná. Luiz Fernando Casagrande Pereira – Doutor e Mestre
Doutor e Mestre em Direito do Estado pela UFPR. Co- em Direito pela Universidade Federal do Paraná. Coor-
ordenador Executivo da Rede Docente Eurolatinoame- denador da pós-graduação em Direito Eleitoral da Uni-
ricana de Derecho Administrativo. versidade Positivo. Autor de livros e artigos de processo
Emerson Gabardo – Professor Titular de Direito Ad- civil e direito eleitoral.
ministrativo da PUCPR; Professor Associado de Direito Rafael Santos de Oliveira – Doutor em Direito pela Uni-
Administrativo da UFPR; Doutor em Direito do Estado versidade Federal de Santa Catarina. Mestre e Gradua-
pela UFPR com Pós-doutorado pela Fordham University do em Direito pela UFSM. Professor na graduação e na
School of Law e pela University of California - UCI (EUA). pós-graduação em Direito da Universidade Federal de
Fernando Gama de Miranda Netto – Doutor em Direi- Santa Maria. Coordenador do Curso de Direito e editor
to pela Universidade Gama Filho, Rio de Janeiro. Pro- da Revista Direitos Emergentes na Sociedade Global e
fessor Adjunto de Direito Processual da Universidade da Revista Eletrônica do Curso de Direito da mesma
Federal Fluminense e membro do corpo permanente universidade.

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)


Bibliotecária: Maria Isabel Schiavon Kinasz, CRB9 / 626

Desenvolvimento nacional: por uma agenda propositiva


D451 e inclusiva [recurso eletrônico] / coordenação de
Fabrício Motta, Emerson Gabardo – Curitiba: Íthala, 2020.
568p.: il.; 22,5cm
Vários colaboradores
ISBN: 978-65-5765-016-5
1. Direito administrativo. 2. Administração pública. I. Motta, Fabrício (coord.).
II. Gabardo, Emerson (coord.). III. Instituto Brasileiro de Direito Administrati-
vo – IBDA.
CDD 342 (22.ed)
CDU 35

Editora Íthala Ltda. Capa: Raro de Oliveira


Rua Pedro Nolasko Pizzatto, 70 Revisão: Karla Leite
Bairro Mercês
80.710-130 – Curitiba – PR
Fone: +55 (41) 3093-5252
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Informamos que é de inteira responsabilidade dos autores a emissão de conceitos publicados na obra. Ne-
nhuma parte desta publicação poderá ser reproduzida por qualquer meio ou forma sem a prévia auto-
rização da Editora Íthala. A violação dos direitos autorais é crime estabelecido na Lei nº 9.610/98 e punido
pelo art. 184 do Código Penal.
DESENVOLVIMENTO
NACIONAL
por uma agenda
propositiva e inclusiva
Fabrício Motta
Emerson Gabardo
Coords.

EDITORA ÍTHALA
CURITIBA – 2020
SUMÁRIO

Apresentação...................................................................................................................15
Fabrício Motta
PARTE I

TEXTOS DOS PROFESSORES PARTICIPANTES

O dever de erradicar a pobreza e o direito ao desenvolvimento como parâmetro de


avaliação dos Tribunais de Contas: acórdão de parecer prévio n. 287/18 – TCE-PR......... 19
Adriana da Costa Ricardo Schier | Saúl Hercán Kritski Báez

O Tribunal de Contas da União e o controle das agências reguladoras.............................. 37


Benjamin Zymler

Reforma jurídica para o desenvolvimento da governança da ordenação pública


econômica no Brasil....................................................................................................... 51
Carlos Ari Sundfeld

A complexidade do poder regulamentar via decretos: dos limites normativos ao possível


déficit democrático......................................................................................................... 63
Caroline Müller Bitencourt | Janriê Reck

Novas tecnologias na Administração Pública, no mercado e na sociedade: instrumentos


para aceleração da marcha ou verdadeiros entraves para a condução do Brasil e dos
brasileiros rumo ao desenvolvimento?............................................................................. 81
Daniel Ferreira

Contratação temporária de professores substitutos: a problemática da “sucessividade”


e o dilema das pequenas unidades administrativas.......................................................... 99
Eduardo dos Santos Dionizio

Estado gerencial, regulação e desenvolvimento: o papel da Administração Pública na


indução dos agentes privados à promoção social..........................................................113
Emerson Affonso da Costa Moura

De Mariana a Brumadinho: o marco regulatório da segurança de barragens sob a ótica


da delegação do exercício do poder de polícia...............................................................131
Flávio Henrique Unes Pereira
6 Fabrício Motta | Emerson Gabardo - Coords.

O controle judicial do processo administrativo disciplinar...............................................149


Florivaldo Dutra de Araújo

Atos normativos infralegais e os parâmetros do controle judicial das políticas públicas


de saúde no tocante ao fornecimento de medicamentos................................................167
Georges Louis Hage Humbert | Natália Libório

Parcerias sociais: dificuldades práticas na implementação da Lei 13.019/2014..............183


Irene Nohara | Daniel Scheiblich Rodrigues

O princípio republicano como princípio constitucional estruturante do regime


jurídico-administrativo...................................................................................................197
José Sérgio da Silva Cristóvam

Direito administrativo e desenvolvimento: visão prospectiva...........................................213


Juarez Freitas

A atualidade do debate sobre políticas urbanas para a promoção do direito à cidade......221


Lígia Maria Silva Melo de Casimiro

A aplicabilidade do Código de Processo Civil no processo administrativo.......................235


Manoel Messias Peixinho

A nova LINDB e o direito administrativo: o que esperar?................................................251


Maria Sylvia Zanella di Pietro

Riscos de improbidade administrativa na gestão de calamidades públicas e as


consectárias responsabilizações jurídicas do agente público..........................................261
Rogério Gesta Leal

Os poderes regrantes do Executivo e de sua administração...........................................279


Sergio de Andréa Ferreira

Acordo de leniência na Lei Anticorrupção: pontos de estrangulamento de


segurança jurídica.........................................................................................................293
Thiago Marrara

Um olhar substancialmente federativo das compras públicas no Brasil..........................311


Victor Aguiar Jardim de Amorim

Conceito jurídico-positivo de ato de improbidade administrativa.....................................323


Vladimir da Rocha França
Desenvolvimento Nacional 7

PARTE II
TEXTOS VENCEDORES DO CONCURSO DE ARTIGOS JURÍDICOS

Primeiro Lugar
A utilização de inteligência artificial na atividade regulatória: uma proposição de
regulação inteligente em favor do desenvolvimento nacional..........................................341
William Ivan Gallo Aponte | Rafaella Nátaly Fácio

Segundo Lugar
Hércules, o gestor.........................................................................................................361
Francisco Arlem de Queiroz Sousa

Segundo Lugar
O lobby como facilitador da decisão pública satisfatória................................................381
Gustavo Martinelli

Terceiro Lugar
O marco regulatório do saneamento no Brasil e o impacto nas políticas de saneamento
dos municípios da região norte de Santa Catarina..........................................................399
Daniel Wagner Heinig | Ana Paula Myszczuk

PARTE III
RESUMOS DE EXPERIÊNCIAS INOVADORAS EM GESTÃO PÚBLICA

Licitações públicas – transparência na era digital na administração municipal................421


José Roberto Tiossi Junior

Gestão de riscos como condição para uma administração sustentável: atuação da


Controladoria Geral da Prefeitura de Santa Maria - RS....................................................423
Carolina Salbego Lisowski

O uso das novas tecnologias nos serviços públicos: a experiência do município de Pato
Branco (PR) no ranking das cinco principais smart cities de médio porte do Brasil........425
Bárbara Dayana Brasil

Ouvidoria 100%: ranking de eficiência dos interlocutores e secretarias ..........................427


Weber Dias Oliveira

Plano Mineiro de Promoção da Integridade – PMPI........................................................429


Nicolle Ferreira Bleme | Juliana Aschar
8 Fabrício Motta | Emerson Gabardo - Coords.

Eficiência na gestão educacional municipal: projeto “Situação nas Escolas” e os 100


indicadores para uma escola de qualidade em Ribeirão Preto - SP.................................431
Celso de Almeida Afonso Neto | Fábio Wendel de Souza Silva

Integração na análise automatizada de risco em licitações e contratos...........................433


Henriques Moreira Turíbio | Cézar Augusto Ferreira

O controle interno no Poder Legislativo – um estudo de caso da Câmara Municipal


de Campinas.................................................................................................................435
Bruno Barbosa de Souza Santos | Heloisa Candia Hollnagel

Eixo 3 da ETR-Probidade (PGF/AGU): da repressão à prevenção....................................437


Bruno Félix de Almeida

PARTE IV
RESUMOS DE COMUNICADOS CIENTÍFICOS

Programas de integridade no Projeto de Lei 1292/95 – nova Lei de Licitações e


Contratos Administrativos.............................................................................................441
Philippe Magalhães Bezerra

Repercussão da sustentabilidade nas contratações públicas na manutenção e custeio


de serviços públicos.....................................................................................................443
Antônio Flávio de Oliveira

O dispute boards e a arbitragem como novas perspectivas no procedimento licitatório..445


Henrique Nonato Quaresma dos Santos

Concurso público para Polícia Militar do Estado da Bahia: desdobramentos da anulação


de questões por ação judicial individual.........................................................................447
Adhemar Santos Xavier
PEC 287: os impactos antes de sua aprovação.............................................................448
Ana Luiza da Cunha Menezes Almeida | Lara de Oliveira Osório Ayres

Do compromisso previsto no artigo 26 da LINDB como instrumento de negociação de


dívidas e a ordem cronológica dos pagamentos na Administração Pública: propostas
para a eficiência na gestão dos recursos públicos.........................................................450
Gustavo Silva Gusmão dos Santos

A reforma trabalhista de 2017 como fato do príncipe ensejador de reequilíbrio


econômico-financeiro de contrato administrativo...........................................................452
Bruno Dourado Bertotto Martins | Antônio Zeferino da Silva Júnior
Desenvolvimento Nacional 9

Os programas de integridade como instrumento de combate à corrupção......................454


Dalila Martins Viol | Marcus Vinicius Gonçalves da Cruz

A aplicação da teoria dos precedentes pelo Tribunal de Contas da União e as alterações


da LINDB......................................................................................................................456
Fernanda de Moura Ribeiro Naves

A economia comportamental como mecanismo de aprimoramento da gestão das


empresas estatais.........................................................................................................458
Giovani Ribeiro Rodrigues Alves

O direito administrativo sanitário e os desafios da assistência farmacêutica no Brasil.....459


Jordão Horácio da Silva Lima | Daniel dos Santos Rodrigues

Concepções e esclarecimentos sobre a revogação parcial do artigo 10 da Lei n.


8.429/1992 frente ao artigo 28 da Lei n. 13.655/2018..................................................460
Wellison Muchiutti Hernandes

A inobservância do dever de acessibilidade como ato de improbidade administrativa.....461


Ana Laura de Freitas Rego | Rebeca de Souza Barbalho

Parâmetros para aplicação do controle de convencionalidade dos tratados de direitos


humanos da OIT no Brasil.............................................................................................462
Bruna Nubiato Oliveira | Maucir Pauletti

Contratação temporária de professores substitutos – a problemática da “sucessividade”


e o dilema das pequenas unidades administrativas........................................................463
Eduardo dos Santos Dionizio

Administração Pública e o novo regime fiscal: eficiência ou morte.................................465


Paulo Tadeu Moreira Saldanha

Evolução do planejamento no macroprocesso de contratações públicas........................466


Leandro de Souza Alcântara

O marco regulatório do saneamento no Brasil e o impacto nas políticas de saneamento


dos municípios da região norte de Santa Catarina..........................................................467
Daniel Wagner Heinig | Ana Paula Myszczuk

Ação popular e o controle social exercido pelos Tribunais de Contas..............................468


Luiz Gustavo de Oliveira Vieira
10 Fabrício Motta | Emerson Gabardo - Coords.

O lobby como facilitador da decisão pública satisfatória................................................469


Gustavo Martinelli

O termo de compromisso do art. 26 da LINDB, o licenciamento ambiental e a proteção


do direito ao meio ambiente..........................................................................................471
Luiz Antônio Freitas de Almeida

Sanções e penas: entre a coerência punitiva estatal e a independência das instâncias


administrativa e jurisdicional penal................................................................................473
Antonio Rodrigo Machado

A importância dos cartórios extrajudiciais para o combate à corrupção: realidade e


expectativa....................................................................................................................474
Mariângela de Fatima Ariosi

A Lei de Improbidade Administrativa: a busca por uma maior intensidade nas penas......475
Guilherme Gabriel Tiago Gomes Gonçalves

Competência suplementar dos estados como medida para agilizar a implementação


de arbitragem tributária em âmbito regional: uma análise pela perspectiva da
Administração Pública dialógica....................................................................................476
Érika A. Rosa

Políticas públicas para o alcance do desenvolvimento nacional: a proposição e inclusão


do terceiro setor na educação básica por meio das medidas de fomento.......................477
Carla Regina Bortolaz de Figueiredo

O Código de Defesa do Usuário de Serviço Público: concretizando uma agenda inclusiva


para os cidadãos?........................................................................................................479
Cynthia Gruendling Juruena | Clayton Santos do Couto

A utilização de inteligência artificial na atividade regulatória: uma proposição de regulação


inteligente em favor do desenvolvimento nacional..........................................................481
William Ivan Gallo Aponte | Rafaella Nátaly Fácio

Terceirização na administração pública após a reforma trabalhista.................................482


Luciana da Silva Vilela | Roberta Seben

A necessidade de se pensar as reformas sob a ótica da sustentabilidade.......................484


Guilherme Cortez dos Santos

Comunidades terapêuticas e políticas públicas: um estudo de caso em Campo Grande.. 486


Hudson Marcos Alves Dias
Desenvolvimento Nacional 11

Políticas públicas em relação ao uso de drogas: estudo de caso considerando uma


análise de efetividade administrativa..............................................................................487
Ricardo Luiz Alves | Franciele Silva Cardoso

A eliminação da relativização da propriedade privada como proposta de governo que


prejudica o desenvolvimento nacional...........................................................................489
Maria Luiza Miranda da Costa

Negociação processual atípica nos processos administrativos disciplinares:


desafios e perspectivas ................................................................................................490
Roberta Cruz da Silva | Shayenne Ladislau Silva

Entre pontes e muralhas, o “soberano” cidadão: a interpretação jurídica do investimento


estrangeiro na infraestrutura brasileira na perspectiva do direito administrativo
neoconstitucional..........................................................................................................492
Carolina Reis Jatobá Coêlho

Meios consensuais para solução de conflitos em matéria de improbidade administrativa


e a derrogação do art. 17, §1º, da Lei n. 9.249/1992....................................................494
Mateus Domingues Graner

Análise e possibilidade de implementação do instituto do dispute board em obras de


grande vulto no âmbito nacional....................................................................................495
Henrique Furtado Tavares

A necessidade de um Estado menos engessado e mais tecnológico..............................497


Renata Carvalho Kobus

Autocomposição na administração federal: uma avaliação de eficiência administrativa


e eficácia......................................................................................................................498
Carolina Lemos de Faria

Governança corporativa nas sociedades de economia mista: o que faltou à Petrobras?.. 500
Ludmyla Rocha Lavinsky

Novas matizes do jogo democrático no cenário nacional: reflexões sobre judicialização


da política, ativismo judicial e combate à corrupção......................................................501
Romano Deluque Júnior

O mito da autonomia no modelo brasileiro de agências reguladoras...............................503


Ana Luíza Fernandes Calil | Leonardo Parizotto Gomes
12 Fabrício Motta | Emerson Gabardo - Coords.

O exercício do controle de constitucionalidade pelo Poder Legislativo enquanto


Administração Pública...................................................................................................505
Arthur Gabriel Marcon Vasques | Lamartine Santos Ribeiro

O direito à boa Administração Pública: um direito fundamental?.....................................507


Dafne Reichel Cabral

Administração Pública e a absorção de inovações tecnológicas: violência simbólica


do mercado e autonomia administrativa........................................................................509
Luasses Gonçalves dos Santos

Condições e limites objetivos à celebração de compromissos do art. 26 da LINDB


no exercício de competências vinculadas da Administração Pública...............................511
Murilo Cesar Taborda Ribas

A corrupção como fenômeno político e econômico: uma abordagem teórica e um


estudo de caso no Brasil...............................................................................................513
Fernanda Maria Afonso Carneiro

Política pública de combate a obesidade: o uso de uma tributação seletiva e seu


impacto no orçamento público......................................................................................515
Gabriel Buissa Ribeiro de Freitas | Lucas Bevilacqua

Controle social na elaboração e execução das políticas urbanas: compatibilidade da


legislação federal com a gestão democrática da cidade ................................................517
Carolina Barbosa Rios

O fundo de combate e erradicação da pobreza como mecanismo de alcance do


desenvolvimento nacional e sustentável – da Resolução 41/128 – ONU à Emenda
Constitucional 31/2000.................................................................................................519
Saúl Hercán Kritski Báez

As “orientações gerais da época” do art. 24 da LINDB: (in)segurança jurídica e


desafios à governança pelos precedentes administrativos..............................................520
Fernanda Alves Andrade Guarido | Daniel Castanha de Freitas

Acesso à justiça e seu diálogo com o direito à boa Administração Pública:


uma possibilidade?.......................................................................................................522
Raphaela Rodrigues Costa

A razão pública no liberalismo político de Jhon Rawls: mecanismo de racionalidade


para orientar a tomada de decisão na esfera pública?....................................................524
Clayton Gomes de Medeiros
Desenvolvimento Nacional 13

Levando o combate ao desmatamento à sério: o PPCDAm e o princípio da proibição


de retrocesso ambiental ...............................................................................................525
Diego Emanuel Arruda Sanchez

Políticas regulatórias de mobilidade urbana: reflexões acerca da utilização das


patinetes elétricas.........................................................................................................527
Lucas Bossoni Saikali

A ideia de serviço público como meio essencial de desenvolvimento e da condição


de agente......................................................................................................................528
Amanda Luiza Oliveira Pinto Tomazini

Entre o intervencionismo e a subsidiariedade do Estado: a demonização do Estado no


caso das privatizações..................................................................................................530
Giulia De Rossi Andrade | Tailaine Cristina Costa

A necessidade de comprovação da má-fé para caracterização de um ato ímprobo que


importe em enriquecimento ilícito..................................................................................532
Rodrigo de Oliveira Ferreira

Compreendendo os riscos da Administração Pública.....................................................534


Tiago Beckert Isfer

O reconhecimento de dívidas na Administração Pública: excepcionalidades e


considerações normativas com fulcro em casos concretos...........................................535
Débora Walter dos Reis

A retroatividade na instituição do ato administrativo: atos declaratórios e constitutivos...536


Flávio Garcia Cabral | Jorge Felipe Fernandes dos Santos

Consensualismo e Estado: uma solução ao baixo índice de pagamento de multas


ambientais?..................................................................................................................538
Mirela Miró Ziliotto

Responsabilidade civil do Estado legislador: leis de efeitos concretos............................539


Larissa Pereira Eiras

Sanção administrativa concorrencial: balizas e parâmetros............................................541


Paulo Victor Barbosa Recchia

Os limites da atividade controladora e os novos sistemas de controle


interno municipais ........................................................................................................543
Óthon Castrequini Piccini
14 Fabrício Motta | Emerson Gabardo - Coords.

Contributo das cinco gerações de administrativistas ao tema do controle jurisdicional


da discricionariedade administrativa..............................................................................545
Antonio Rodrigues do Nascimento

O instituto da requisição administrativa aplicada à área da saúde pública: reflexões a


partir da experiência de Palmas - TO.............................................................................547
Aline Sueli de Salles Santos

Judicialização da saúde e a interferência judicial no planejamento orçamentário da


Administração Pública...................................................................................................549
Júlia Maria Tomás dos Santos | Platon Teixeira de Azevedo Neto

Efetividade do poder de polícia ambiental no Estado de Goiás........................................551


Letícia Martins de Araújo Mascarenhas | Cleuler Barbosa das Neves

Proteção de dados: uma nova dimensão de direitos fundamentais e impressões iniciais


acerca do enfrentamento da corrupção pela administração............................................553
Cinthya Hayashida de Carvalho Zortéa

A competência legislativa concorrente estadual da arbitragem na


Administração Pública...................................................................................................554
Guilherme Sampieri Santinho | Tiago Andreotti e Silva

A gestão do Fundo Amazônia na visão da teoria da ação comunicativa de Habermas:


oportunidade de avanço no Estado Democrático de Direito............................................555
Mário Augusto de Araújo Luzzi Júnior

Hércules, o gestor.........................................................................................................556
Francisco Arlem de Queiroz Sousa

Educação previdenciária como ação de inclusão social: instrumento de política pública


da administração..........................................................................................................557
Suzana Toshimi Furuia Tsukagoshi Gallinati Heim | James Gallinati Heim

Coordenação do XXXIII Congresso Brasileiro de Direito Administrativo............................559

Programa do XXXIII Congresso Brasileiro de Direito Administrativo..................................561


APRESENTAÇÃO

Entre os dias 16 e 18 de outubro de 2019 o Instituto Brasileiro de Direito Administra-


tivo – IBDA realizou a 33ª edição do Congresso Brasileiro de Direito Administrativo, um dos
maiores e mais conceituados eventos jurídicos do país. Esta obra é o ato final do evento,
ocorrido na bela cidade de Campo Grande - MS, onde se reuniram juristas renomados, pro-
fissionais de destaque e estudiosos em geral, tendo como cenário principal a discussão dos
fundamentos, das mutações e dos rumos do Direito e da Administração Pública.
Não é exagero dizer que o Direito Administrativo Brasileiro possui as digitais do IBDA
em sua construção, pois incansáveis e dedicados professores e professoras ligados ao Insti-
tuto construíram – e constroem – as bases desse ramo do conhecimento jurídico com o foco
centrado na preeminência do cidadão frente ao Estado e, sobretudo, na existência de deveres
estatais voltados à plena efetividade dos direitos fundamentais e objetivos da República. O
Instituto é centrado na livre circulação de ideias e na importância do debate para a evolução
do Estado, da Administração Pública e do Direito Administrativo, objetivo que é cumprido
também com a realização de eventos acadêmicos.
O evento foi realizado em homenagem ao Professor Celso Antônio Bandeira de Mel-
lo, um dos maiores juristas que nosso país já produziu. Professor Celso Antônio, membro
fundador e Presidente de Honra do IBDA, possui uma personalidade singular, agregadora
de diferentes virtudes: nos conquista não somente por sua sólida formação científica como
também por seu raciocínio complexo e rápido, além de um senso de humor fino e inteligente.
A contribuição do professor Celso Antônio para a construção do Direito Administrativo Brasi-
leiro é imensurável, materializada em obras e estudos que são referências seguras e obriga-
tórias. Por essas razões, o IBDA e o Direito Administrativo têm motivos de sobra para home-
nagear o mestre Celso Antônio, referência segura tanto na calmaria como nas tempestades!
O tema geral do evento, Desenvolvimento nacional: por uma agenda propositiva e
inclusiva, bem resume nossos desafios atuais. O combate à corrupção, câncer que rouba
nosso futuro, permanece uma bandeira importante. Entretanto, sua efetivação deve ser feita
nos limites do devido processo legal, cuja observância não se negocia, nem mesmo para a
persecução de conduta tidas como criminais ou ímprobas. A história demonstra que não se
deve relativizar os mecanismos objetivos típicos da legalidade, pois invariavelmente incorre-
mos no esgarçamento institucional e prejuízo estrutural à sociedade. Nesse mesmo sentido,
convém anotar que o regime de direitos fundamentais estabelecido pela Constituição da
República é o maior bem que uma democracia pode deixar para as futuras gerações. Sem
ele, qualquer ambição de ordem pública ou combate à corrupção torna-se ação autoritária
que é tanto ilegítima quanto ineficiente.
16 Fabrício Motta | Emerson Gabardo - Coords.

A promoção do desenvolvimento nacional passa pelo combate rígido à corrupção,


nos quadrantes do direito, mas não se resume a ele. O reconhecimento e a plena prioridade
aos direitos fundamentais, como o direito à educação, continua sendo o passo inicial que
insistimos em ignorar. Sem educação, cujo regime orçamentário-financeiro deve ser protegi-
do, não temos liberdade de pensamento. Durante o evento, jamais se imaginaria que no ano
seguinte os pressupostos do Estado social ganhariam nova força diante de uma pandemia
que assolou praticamente todo o planeta, impondo um período de medo e de restrições que
não tem data para acabar. Vemos, por ocasião do combate à pandemia, a importância de
que se tenha um Estado garantidor de conquistas sociais e especialmente eficaz na imple-
mentação do direito fundamental à saúde, bem maior que hoje merece toda nossa atenção.
Para além da discussão a respeito do “tamanho” de Estado que queremos, o mínimo que se
apresenta como consenso é composto por políticas públicas e serviços de proteção social,
especialmente dos mais vulneráveis.
Este livro é composto, inicialmente, por artigos elaborados por professores partici-
pantes do Congresso. Trata-se de estudos aprofundados, ligado à temática geral do evento,
que são agora divulgados com o intuito de fomentar debate livre e propositivo. A segunda
parte desta obra é composta pelos textos vencedores do concurso de artigos jurídicos rea-
lizado no evento. A conexão da pesquisa acadêmica com a práxis é o objetivo das experiên-
cias inovadoras em gestão pública apresentadas no congresso, cujos resumos constituem
a terceira parte do livro. Finalmente, a quarta parte contém os resumos dos comunicados
científicos apresentados e defendidos perante bancas de avaliação.
O Congresso marca também o encerramento do mandato da Diretoria eleita para
o triênio 2017-2019. Durante esse período, tive a elevada honra e alegria de conviver com
profissionais excepcionais, fortalecendo sólido vínculo de amizade forjado nas diversas li-
des acadêmicas. Registro meu sincero agradecimento aos professores Emerson Gabardo,
Maurício Zockun, Cristiana Fortini e Rodrigo Valgas; juntos conseguimos promover encon-
tros abertos, pautados pela plena liberdade acadêmica, pluralidade ideológica e busca de
soluções para os desafios que enfrentamos de forma igual, ainda que com propostas de
soluções diferentes. Igual gratidão fica registrada ao instituto de Direito Administrativo de
Mato Grosso do Sul – IDAMS, que acolheu com gentileza, disposição e eficiência um con-
gresso memorável.
Boa leitura a todos e a todas!

Fabrício Motta
Presidente do Instituto Brasileiro de Direito Administrativo (2017-2019)
Conselheiro do Tribunal de Contas dos Municípios do Estado de Goiás
Doutor em Direito do Estado (USP) e mestre em Direito Administrativo (UFMG)
Professor permanente do Programa de Pós-Graduação em Direito e
Políticas Públicas (Faculdade de Direito da Universidade Federal de Goiás)
PARTE I

TEXTOS DOS
PROFESSORES
PARTICIPANTES
O dever de erradicar a pobreza e o direito ao
desenvolvimento como parâmetro de avaliação
dos Tribunais de Contas: acórdão de parecer
prévio n. 287/18 – TCE-PR

Adriana da Costa Ricardo Schier


Pós-doutora em Direito Público (PUCPR)
Doutora em Direito (UFPR)
Professora de Direito Administrativo (UniBrasil)
Vice-Presidente do Instituto Paranaense de Direito Administrativo

Saúl Hercán Kritski Báez


Mestrando em Direitos Fundamentais e Democracia (UniBrasil)
Pós-graduado em Direito Civil e Empresarial (PUCPR)

SUMÁRIO: 1 Introdução; 2 O direito ao desenvolvimento e o combate à pobreza; 3 A atuação do


Tribunal de Contas do Estado do Paraná e a Agenda 2030 – acórdão de parecer n. 287/18 – TCE-PR;
4 Considerações finais; Referências.

1 INTRODUÇÃO

O Tribunal de Contas do Estado do Paraná, durante os trâmites de apreciação das


contas do Chefe do Poder Executivo do exercício de 2017 – realizado em fins de 2018 –,
inaugurou posicionamento referente ao acompanhamento e controle da gestão pública.
Buscando dar efetividade aos ditames estabelecidos na Constituição, no exercício de sua
competência de órgão controlador apresentou o caderno denominado: Objetivos de Desen-
volvimento Sustentável.1 Tal documento promove, na seara da Administração Pública, uma
sensível mudança de paradigma quanto ao acolhimento de programas e metas internacionais
voltados à realização direito ao desenvolvimento.

1
No exercício de sua competência constitucional o TCE elaborou a peça ‘Acórdão de Parecer Prévio’, que corres-
ponde à elaboração técnica das atribuições administrativas atribuídas ao Chefe do Poder Executivo, na avaliação
quanto às despesas obrigatórias, índices constitucionais, obrigações legais e planejamento. Na oportunidade de
apreciação das contas do exercício de 2017 a Relatoria do TCE aprovou, mediante Acórdão de Parecer Prévio,
anexar à decisão o Caderno Temático referente aos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável – ODS. PARANÁ.
TCE-PR. Contas do governador: exercício 2017. Acordão de parecer prévio n. 187/18. Curitiba: TCE-PR, 2018.
Disponível em: https://www3.tce.pr.gov.br/contasdogoverno/2017/pdfs/parecerprevio.pdf. Acesso em: 2 dez. 2019.
20 Adriana da Costa Ricardo Schier | Saúl Hercán Kritski Báez

Sabe-se que o reconhecimento do direito ao desenvolvimento como direito humano


foi dado pela Resolução n. 41/128, de 1986, pela Organização das Nações Unidas.2
Na seara nacional, o inciso IV, do art. 3º, da Constituição Federal, reconhece o desen-
volvimento como objetivo da República Federativa do Brasil, estabelecendo como dever do
poder público construir uma sociedade livre, justa e solidária, erradicando-se a pobreza e a
marginalização e promovendo-se o bem de todos. Resta nítido, pelo conjunto dos objetivos
plasmados no texto, a missão do Estado brasileiro atuar para a superação da pobreza e da
desigualdade.
As prescrições do constituinte, contudo, não foram suficientes para a construção da
sociedade idealizada. As pesquisas feitas pelo Programa das Nações Unidas para o Desen-
volvimento (PNUD), que promove a avaliação de cerca de 190 países com base em índices
e medições de critérios voltados ao desenvolvimento, indicam que o Brasil caiu no ranking.
Em 21 de março de 2017, o PNUD, ao publicar dados do ano de 2015, a respeito do Índice de
Desenvolvimento Humano (IDH), constatou que o Brasil ocupa atualmente o 79º (septuagé-
simo nono) lugar entre as 189 nações e territórios que tiveram seu IDH avaliado.3 No último
Relatório, lançado pelo PNUD em 9 de dezembro de 2019, constata-se que o Brasil mantém
a mesma colocação no ranking mundial.4
Os índices verificados pelo PNUD permitem compreender as carências existentes na
realidade nacional, traduzindo-se em importante ferramenta de mapeamento de setores onde
as políticas públicas para o desenvolvimento devem ser observadas.5 Os dados indicam,
assim, que dentre diversas áreas a serem priorizadas no Brasil, destaca-se a necessidade de
medidas direcionadas ao combate à pobreza, recorte do presente artigo.

2
ONU. Resolução n. 41/128, de 1986. Decide aprobar la Declaración sobre el derecho al desarrollo. 97ª sesión
plenaria, 4 dic. 1986. Disponível em: https://undocs.org/es/A/RES/41/128. Acesso em: 2 dez. 2019. Para Melina
Girardi Fachin, o direito ao desenvolvimento necessita ser observado à luz dos princípios da Constituição e dos
tratados internacionais sobre direitos humanos, atribuindo-lhe natureza de direito fundamental. FACHIN, Melina
Girardi. Direito fundamental ao desenvolvimento: uma possível ressignificação entre a Constituição Brasileira e
o Sistema Internacional de Proteção dos Direitos Humanos. In: PIOVESAN Flávia; SOARES, Inês Virgínia Prado
(Coord.). Direito ao desenvolvimento. Belo Horizonto: Fórum, 2010. p. 180.
3
PNUD. Relatório do Desenvolvimento Humano 2018. New York: PNUD, 2018. Disponível em: https://www.br.un-
dp.org/content/brazil/pt/home/library/idh/relatorios-de-desenvolvimento-humano/relatorio-do-desenvolvimento-
-humano-2018.html Acesso em: 9 dez. 2019. Milena Girardi Fachin assevera que se vive no Brasil uma aporia, já
que, “do ponto de vista do crescimento econômico, o País ocupa os primeiros lugares do ranking, mas do ponto
de vista do desenvolvimento possui níveis muito baixos, em comparação com os países latino-americanos.”
FACHIN, Milena Girardi. Direitos humanos e desenvolvimento. Rio de Janeiro: Renovar, 2015. p. 172.
4
PNUD. Relatório do Desenvolvimento Humano 2019. New York: PNUD, 2019. Disponível em: http://hdr.undp.org/
sites/default/files/hdr2019.pdf. Acesso em: 9 dez. 2019.
5
Os relatórios apresentados pelo PNUD demonstram os índices de desenvolvimento humano de cada país, sendo
apresentados dados referentes desde a expectativa de vida, o acesso à água potável, à educação, alimentação,
renda etc.
O dever de erradicar a pobreza e o direito ao desenvolvimento... 21

Nesta matéria, sabe-se que o constituinte determinou que compete concorrentemen-


te à União, Estados, Municípios e Distrito Federal, combater as causas da pobreza e os
fatores de marginalização, promovendo a integração social dos desfavorecidos, conforme
previsto no art. 23, X, da Constituição. Buscando-se atingir tal desiderato, editou-se a Emen-
da Constitucional n. 31, de 14 de dezembro de 2000, que alterou os artigos 79, 80 e 81,
do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias, determinando a criação do Fundo de
Combate e Erradicação da Pobreza em nível federal. Essa alteração também propiciou que
Estados, Distrito Federal e Municípios instituíssem fundos da mesma natureza com os recur-
sos provenientes de previsão legislativa.6
Em cumprimento às prescrições constitucionais foi editada a Lei Complementar n.
111, de 6 de julho de 2001, que cria o referido Fundo de Combate e Erradicação da Pobreza.
Nos termos do seu art. 1º, o objetivo do Fundo era viabilizar “a todos os brasileiros o acesso
a níveis dignos de subsistência e seus recursos serão aplicados em ações suplementares
de nutrição, habitação, saúde, educação, reforço de renda familiar e outros programas de
relevante interesse social, voltados para a melhoria da qualidade de vida.” Nos termos do
referido dispositivo, ainda, a vigência do Fundo encerraria em 2010, como de fato ocorreu.
Infelizmente, as ações do fundo não foram suficientes para combater a miséria que ainda
assola milhares de brasileiros. Por isso, resta aos Estados, Municípios e Distrito Federal a
competência para estabelecer fundos da mesma natureza, vinculados a receitas do ICMS e
do ISS.
No Estado do Paraná foi criado o Fundo Estadual de Combate à Pobreza pela Lei n.
18.573, de 30 de setembro de 2015, “com a finalidade de promover, coordenar, acompanhar
e integrar as ações governamentais destinadas a reduzir a pobreza e a desigualdade social e
as suas respectivas causas e efeitos.”, nos termos do seu art. 1º.7
Por certo, a criação de fundos específicos voltados ao combate à pobreza não é a
única medida que deve ser adotada pelos entes federativos para erradicar tal mazela. Por isso
mesmo, desenha-se como objeto do presente estudo a interessante iniciativa do Tribunal de
Contas do Estado do Paraná que, no uso de suas competências constitucionais, estabeleceu
como parâmetro de controle a análise da atuação do poder público em face do seu dever
constitucional de combater a pobreza e reduzir as desigualdades.
O texto, então, foi desenvolvido em duas partes. Na primeira, revisita-se o tema do
desenvolvimento e a Agenda 2030, especificamente no que concerne ao objetivo de desen-
volvimento sustentável n. 01, que determina a erradicação da pobreza. Na segunda parte

6
Como se sabe, os fundos visam a repartição específica ou vinculada de recursos para o objetivo determinado e,
ainda, a gestão desses recursos pelo ente da federação mediante a participação da sociedade civil.
7
Vários outros Estados já criaram seus Fundos específicos, com dados disponíveis on-line. DOOTAX. FECP, FCP OU
FECOEP – Fundo Estadual de Combate à Pobreza. S.d. Disponível em: https://www.dootax.com.br/fecp-fcp-ou-fe-
coep-fundo-estadual-de-combate-a-pobreza/. Acesso em: 10 dez. 2019. Acesso em: 9 dez. 2019.
22 Adriana da Costa Ricardo Schier | Saúl Hercán Kritski Báez

analisa-se a atuação do Tribunal de Contas do Estado do Paraná e a edição do Caderno:


Objetivos de Desenvolvimento Sustentável, pretendendo-se demonstrar como os cânones
decorrentes do direito ao desenvolvimento deverão ser utilizados como parâmetros para
avaliação da gestão pública.

2 O DIREITO AO DESENVOLVIMENTO E O COMBATE


À POBREZA

Ainda que fundada em componentes ideológicos, a noção de desenvolvimento vem


sendo reconstruída, em âmbito internacional, notadamente a partir dos anos 90. Até então, a
ONU utilizava o PIB, o Produto Interno Bruto, para classificação do grau de desenvolvimento
dos Estados e, como salienta Folloni, não incluía a distribuição da riqueza como referencial
para a métrica do desenvolvimento.8 Entretanto, outros critérios vêm sendo eleitos, os quais
permitem avaliar o acesso dos cidadãos a um núcleo mínimo de direitos, definido a partir de
condições que possam assegurar o gozo de vida uma digna.9
Tal mudança na concepção de desenvolvimento foi fortemente influenciada pelo pen-
samento de Amartya Sen. Para o autor, a perspectiva de desenvolvimento calcada apenas
na matriz da Economia apresenta-se como um processo cruel, pois as benesses somente
poderão ser alcançadas após atingido um certo grau de crescimento econômico. E, por isso
mesmo, assevera que o desenvolvimento “deve ir muito além da acumulação de riqueza, do
crescimento do PIB e de outras variáveis relacionadas à renda”.10
Em termos normativos, na seara internacional, a construção da noção de desenvolvi-
mento de maneira mais ampla vem sendo desenhada desde a Resolução 1.161, aprovada na
12ª Assembleia Geral da Organização das Nações Unidas em 1957, que já fazia referência ao
desenvolvimento econômico e social.11 De forma ainda mais abrangente adveio a Declaração

8
FOLLONI, André. A complexidade ideológica, jurídica e política do desenvolvimento sustentável e a necessidade
de compreensão interdisciplinar do problema. Revista Direitos Humanos Fundamentais, Osasco, n. 1, p. 63-91,
jan./jun. 2014. p. 75.
9
Uma das primeiras tentativas de superação do PIB como índice capaz de identificar o grau de desenvolvimento
de um país, segundo José Eli da Veiga, deu-se em 1972, no Butão, país da região do Himalaia. Tal experiência
embasava-se no conceito de Felicidade Interna Bruta (FIB), índice medido a partir de quatro referenciais: a promo-
ção do desenvolvimento social e igualitário; o alcance dos valores culturais; a conservação do meio ambiente e o
estabelecimento da governança. VEIGA, José Eli da. Desenvolvimento sustentável: o desafio do século XXI. 3. ed.
Rio de Janeiro: Garamond, 2008. p. 18-19.
10
SEN, Amartya. Desenvolvimento como liberdade. São Paulo: Companhia das Letras, 2010. p. 24-25. Há quem
sustente, de forma ainda mais crítica, que não haveria jamais possiblidade de que os países não desenvolvidos,
segundo este referencial econômico, alcançassem os países desenvolvidos. Isso porque, o crescimento econô-
mico de tais países teria sido alcançado pelo colonialismo e pelo imperialismo. Assim, sem tais condições, sem
uma periferia dominada, seria impossível chegar aos mesmos índices. FOLLONI, André. A complexidade ideológi-
ca, jurídica e política [...]. Op. cit.
11
Sem embargo, no âmbito da Organização dos Estados Americanos, a Carta da Organização dos Estados, lan-
çada em 1948, na Cidade do México, já previa a promoção do desenvolvimento econômico, social e cultural, a
O dever de erradicar a pobreza e o direito ao desenvolvimento... 23

Internacional sobre o Direito ao Desenvolvimento de 1986, por meio da Resolução 41/128


da Assembleia Geral das Nações Unidas. Tal documento, segundo Arjun Sengupta, trata ex-
plicitamente do desenvolvimento como um direito humano e universal, e o reconhece como
um processo econômico, social, cultural e político que objetiva a busca pelo bem-estar da
sociedade.12
Pautado no pensamento de Amartya Sen,13 tem-se que o direito ao desenvolvimento
abrange o acesso aos direitos humanos em todas as suas perspectivas, permitindo o alcan-
ce universal das liberdades políticas, das liberdades econômicas, dos direitos sociais, da
transparência e da participação na gestão pública.14 Essa dimensão ampla é, afinal, a que
consta na Declaração sobre o Direito ao Desenvolvimento, da ONU, de 1986, que estabelece,
em suas considerações, que “o desenvolvimento é um processo econômico, social, cultural
e político abrangente, que visa ao constante incremento do bem-estar de toda a população e
de todos os indivíduos com base em sua participação ativa, livre e significativa no desenvol-
vimento e na distribuição justa dos benefícios daí resultantes”.15
Com base nessas premissas, Amartya Sen, juntamente com conjunto com Mahbub
ul Haq, desenvolveu o Índice de Desenvolvimento Humano (IDH). Tal índice considera os
aspectos relacionados à renda do país em conexão com a expectativa de vida e o acesso à
educação, por exemplo.16 Na avaliação da renda, passou-se a utilizar a referência da Renda
Nacional Bruta (RNB) per capita, em substituição ao PIB per capita. Na área da educação,

erradicação da pobreza e disponibilização de um maior volume de recursos financeiros decorrente do desarma-


mento das nações. MARQUES, Verônica Teixeira; OLIVEIRA, Liziane Paixão Silva; SÁTIRO, Guadalupe Souza. O
reconhecimento jurídico do direito ao desenvolvimento como um direito humano e sua proteção internacional e
constitucional. Arquivo Jurídico, Teresina, v. 2, n. 2, p. 2-22, jul./dez. 2015. p. 11. Para uma retomada histórica
dos instrumentos normativos tratando do tema ver o estudo de FACHIN, Milena Girardi. Direitos humanos e
desenvolvimento. Op. cit.
12
ONU. Resolução n. 41/128, de 1986. Op. cit.
13
SEN, Amartya. Desenvolvimento como liberdade. Op. cit., p. 28.
14
SEN, Amartya. Desenvolvimento como liberdade. Op. cit., p. 25
15
ONU. Resolução n. 41/128, de 1986. Op. cit.
O índice foi desenvolvido em 1990 pelos economistas Amartya Sen e Mahbub ul Haq, no entanto, as variáveis
16

só foram incluídas em 2010, passando a considerar dados acerca da saúde – referências a uma vida longa e
saudável – e o acesso que os indivíduos possuem à educação. Os índices tratados anteriormente (média de anos
de educação para adultos e expectativa de anos de escolaridade para crianças) e o padrão de vida (renda), são
avaliados a partir da análise da Renda Nacional Bruta per capita, mais a análise do poder de paridade de compra.
IBGE. Contas nacionais. Renda nacional bruta – Brasil 2011-2016. Disponível em: https://brasilemsintese.ibge.
gov.br/contas-nacionais/renda-nacional-bruta.html. Acesso em: 10 dez. 2019.
A renda nacional bruta é o valor dos pagamentos feitos aos indivíduos detentores dos fatores de produção, cujos
serviços foram utilizados na elaboração do Produto Nacional Bruto. Isto é, RNB = PNB (o PNB seria o PIB + as
rendas enviadas e recebidas do exterior). O poder de paridade de compra é medido em dólares.
PNUD. O que é o IDH. S.d. Disponível em: http://www.br.undp.org/content/brazil/pt/home/idh0/conceitos/o-que-e-
-o-idh.html. Acesso em: 10 dez. 2019.
24 Adriana da Costa Ricardo Schier | Saúl Hercán Kritski Báez

considera-se, atualmente, o número estimado de anos de estudos. E a medição da taxa de


analfabetismo leva em conta a média de estudos da população adulta exemplificativamente.17
Na esfera nacional tais ideário pode ser identificado na Constituição de 1988, que,
ao adotar novos referenciais, especialmente no campo socioambiental, propõe uma noção
holística de desenvolvimento, afastando-se da tradição economicista adotada nas Cartas an-
teriores. Desde o preâmbulo, tem-se que o Estado Democrático instituído deverá assegurar
o desenvolvimento. Já o art. 3º estabelece que a República Federativa do Brasil tem como
objetivos fundamentais construir uma sociedade livre, justa e solidária (art. 3º, I); erradicar
a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais (art. 3º, III);
promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer
outras formas de discriminação (art. 3º, IV). Tais objetivos traduzem as opções políticas
do Poder Constituinte Originário que orientam o Estado Brasileiro em direção à construção
de um País em que seja assegurado o desenvolvimento nacional (art. 3º, II). Importante
observar, ainda, as prescrições do artigo 151, I, da Constituição, que estabelece a igualdade
como um valor que visa “[...] promover o equilíbrio do desenvolvimento socioeconômico
entre as diferentes regiões do País”, também cita-se o desenvolvimento no artigo 239, §1º,
artigo 218, §2º e art. 5º, XXIX. Daniel Wunder Hachem em comentários aos dispositivos
citados ressalta que há desenvolvimento no âmbito da promoção de igualdades, inclusive
em termos regionais, na estruturação da aceleração do crescimento econômico, no plano
do avanço tecnológico e claramente no sentido de elevação na qualidade social. Tem-se,
assim, reconhecido o papel do Estado com o intuito de se lograr mudanças qualitativas na
sociedade, prestigiando o bem-estar social da população com o desiderato de diminuir as
desigualdades.18
A atual noção de desenvolvimento, portanto, tem como pressuposto a interdepen-
dência do aspecto econômico com outros elementos, tais como o social e o político, e a
ocorrência de transformações estruturais que permitam, para além das mudanças qualitati-
vas, a sua manutenção de forma sustentável. Conforme Juarez Freitas, deve-se buscar um
modelo de Estado que privilegia a sustentabilidade como um direito ao futuro que implica no
alcance do desenvolvimento “socialmente inclusivo, durável e equânime, ambientalmente
limpo, inovador, ético e eficiente”, de modo a assegurar, para a geração atual e para as

17
Ver, sobre tais índices, o documento da ONU: “A verdadeira riqueza das nações: vias para o desenvolvimento
humano”, lançado em Nova York, em novembro de 2010. PNUD. Relatório de Desenvolvimento Humano 2010.
New York: PNUD, 2010. Disponível em: https://www.undp.org/content/dam/brazil/docs/RelatoriosDesenvolvimen-
to/undp-br-PNUD_HDR_2010.pdf. Acesso em: 8 set. 2017.
18
HACHEM, Daniel Wunder. A noção constitucional de desenvolvimento para além do viés econômico: reflexos
sobre algumas tendências do direito público brasileiro. Revista de Direito Administrativo & Constitucional, Fórum,
Belo Horizonte, n. 53, p. 152-153, jul./set. 2013.
O dever de erradicar a pobreza e o direito ao desenvolvimento... 25

gerações do futuro, “o direito ao bem-estar físico, psíquico e espiritual, em consonância


homeostática com o bem de todos”.19
Para Ingo W. Sarlet, o desenvolvimento está entre os chamados direitos de solidarie-
dade e fraternidade de terceira dimensão, definindo-se como direito fundamental implícito,
assim designado em face da cláusula de abertura material do§2º, do art. 5º, da Constitui-
ção.20 Entende-se, assim, que:

ao ser consagrado no texto constitucional, garante a cada cidadão o direito de esco-


lher a vida que gostaria de ter, confere a cada indivíduo a liberdade de definir como
irá viver, impondo ao Estado, e à sociedade, o dever de permitir a todas as pessoas,
desta e das próximas gerações, a expansão de suas capacidades, em um ambiente
de plena participação política.21

Percebe-se, portanto, que o direito ao desenvolvimento está em conexão com os de-


mais direitos fundamentais do catálogo, vinculando-se, diretamente, aos deveres impostos
ao Estado e à sociedade para a construção da sociedade almejada. Nesse contexto emana
o recorte do presente artigo: o dever de erradicar a pobreza, imposição de um estado que
busca alcançar os patamares mais altos de desenvolvimento.
No plano da tratativa internacional a busca pela eliminação da pobreza foi elevada a
um dos objetivos do Milênio. Com efeito, a Organização das Nações Unidas, em 2000, com
o apoio de 191 nações, elencou as metas do milênio, conhecidas como Objetivos de Desen-
volvimento do Milênio (ODM).22 Pretendia-se, com tais ODMs, assegurar melhor qualidade
de vida à população do globo, criando-se uma rede de segurança humana, que “não mais se

19
FREITAS, Juarez. Sustentabilidade: direito ao futuro. Belo Horizonte: Fórum, 2016. p. 41. No mesmo sentido:
SACHS, Ignacy. Desenvolvimento: includente, sustentável, sustentado. Rio de Janeiro: Garamond, 2008. p. 15-16;
GOMES, Eduardo Biacchi; MASSUCHIN, Barbara Andrzejewski. Direitos fundamentais e direito ao desenvolvimen-
to. A Conferência de Copenhague: uma nova tentativa de cooperação internacional para uma política climática
eficiente. A&C Revista de Direito Administrativo & Constitucional, Belo Horizonte, n. 41, p. 95-121, jul./set. 2010.
20
SARLET, Ingo Wolfgang. A eficácia dos direitos fundamentais: uma teoria geral dos direitos fundamentais na
perspectiva constitucional. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2018. p. 92-93. No mesmo sentido: OLIVEIRA,
Gustavo Justino de. O contrato de gestão na Administração Pública brasileira. 2005. 522 f. Tese (Doutorado em
direito) – Faculdade de Direito, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2005. p. 110. No mesmo sentido: GABAR-
DO, Emerson. Interesse público e subsidiariedade: o Estado e a sociedade civil para além do bem e do mal. Belo
Horizonte: Fórum, 2009. p. 246; HACHEM, Daniel Wunder. A noção constitucional de desenvolvimento para além
do viés econômico: Op. cit., p. 154.
21
SCHIER, Adriana da Costa Ricardo. Fomento: Administração Pública, direitos fundamentais e desenvolvimento.
Curitiba: Íthala, 2019. p. 83.
22
São eles: 1) acabar com a fome e a miséria; 2) oferecer educação básica de qualidade para todos; 3) promover
a igualdade entre os sexos e a autonomia das mulheres; 4) reduzir a mortalidade infantil; 5) melhorar a saúde
das gestantes; 6) combater a AIDS, a malária e outras doenças; 7) garantir qualidade de vida e respeito ao meio
ambiente e 8) estabelecer parcerias para o desenvolvimento. ODM BRASIL. Os objetivos do desenvolvimento do
milênio. S.d. Disponível em: http://www.odmbrasil.gov.br/os-objetivos-de-desenvolvimento-do-milenio. Acesso
em: 10 dez. 2019.
26 Adriana da Costa Ricardo Schier | Saúl Hercán Kritski Báez

resume à ausência de guerra e de conflitos, mas consiste em um conjunto estrutural e está-


vel de garantias jurídico-políticas e de conquistas socioeconômicas capazes de reduzir a vul-
nerabilidade humana.”.23 Erradicar a pobreza foi fixado como o primeiro Objetivo do Milênio.
Apesar dos avanços em escala mundial no atendimento aos objetivos traçados na
virada do milênio, há ainda uma longa trajetória a ser percorrida para assegurar a todas e a
todos as benesses que poderão garantir uma vida digna.24 Por isso, em setembro de 2015,
diante em uma nova rodada de discussão, foi lançada a Agenda 2030, assinada por 193
Estados-membros da ONU, sendo estabelecidos 17 Objetivos do Desenvolvimento Sustentá-
vel.25 Importa, para o presente estudo, o Objetivo n. 01, que consiste, novamente, no dever
de erradicar a pobreza, em todas as suas formas, em todos os lugares.
Por certo, em escala global há indicadores que demonstram melhora na condição
de renda média propiciando uma considerável redução da pobreza, conforme assevera An-
gus Deaton. Entretanto, conforme indica o autor, a pobreza ainda é um fenômeno existente
na realidade de milhões de pessoas, mesmo daquelas que vivem em países considerados
desenvolvidos. 26
O debate sobre a definição da pobreza é bastante acirrado.27 Alguns conceitos va-
riam em torno da ideia de pobreza absoluta e relativa. Segundo Adriana S. Serra, a noção de
pobreza absoluta refere-se à “insuficiência de renda para garantir uma nutrição adequada e

23
AZEVEDO, Márcia R. Objetivos do desenvolvimento sustentável: desafios à participação do Brasil na governança
global. S.d. Disponível em: https://www.cnj.jus.br/wp-content/uploads/2019/05/95b77016c8e9c025ead845cc-
633f3da5.pdf. Acesso em: 10 dez. 2019.
24
GARCIA, Denise Schimitt Siqueira; GARCIA, Heloise Siqueira. Objetivos de Desenvolvimento do Milênio e as novas
perspectivas do desenvolvimento sustentável pela Organização das Nações Unidas. Revista da Faculdade de
Direito da UFRGS, Porto Alegre, v. esp., n. 35, p. 192-206, dez. 2016.
25
Tais objetivos tratam de temas como segurança alimentar e agricultura, saúde, educação, igualdade de gênero,
redução das desigualdades, energia, água e saneamento, padrões sustentáveis de produção e de consumo, mu-
dança do clima, cidades sustentáveis, proteção e uso sustentável dos oceanos e dos ecossistemas terrestres,
crescimento econômico inclusivo, infraestrutura e industrialização, governança, e meios para de implementação
de ações para o seu alcance, notadamente através de parcerias. BRASIL. Itamaraty. Ministério das Relações Exte-
riores. Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS). S.d. Disponível em: http://www.itamaraty.gov.br/pt-BR/
politica-externa/desenvolvimento-sustentavel-e-meio-ambiente/134-objetivos-de-desenvolvimento-sustentavel-
-ods. Acesso: 2 dez. 2019.
26
DEATON, Angus. A grande saída: saúde, riqueza e as origens das desigualdades. 1. ed. Rio de Janeiro: Intrínseca,
2017. p. 225.
27
A noção de pobreza tem sido objeto de inúmeros debates na história recente e sua compreensão se faz importante
para tornar possível promover medidas e políticas para sua erradicação. Carla Abrantkoski Rister destaca que o
conceito de pobreza e os métodos de sua aferição podem ser compreendidos em dois sentidos: a pobreza objetiva
e a pobreza subjetiva. O método para aferição da pobreza objetiva seria aquela que diz respeito ao levantamento
de dados com critério científico, sem levar em consideração a opinião ou o sentimento dos envolvidos. Por sua
vez, o método para aferição da pobreza no sentido subjetivo estaria relacionado com a valoração do sentimento
daqueles que se encontram em situação de vulnerabilidade. RISTER, Carla Abrantkoski. Direito ao desenvolvimen-
to: antecedentes, significados e consequências. Rio de Janeiro: Renovar, 2007. p. 339.
O dever de erradicar a pobreza e o direito ao desenvolvimento... 27

a falta de acesso a serviços públicos essenciais, tais como educação e saúde.”.28 Tal con-
ceituação contrasta com a definição do que viria a ser conhecido como pobreza relativa, que
diz respeito à análise subjetiva da pobreza considerada a correlação da renda auferida em
comparação com o padrão razoável de determinada sociedade.29
Tais noções derivaram do critério utilizado pelo Banco Mundial para medição da po-
breza. Já no ano de 1990 tal instituição passou a considerar como linha de pobreza mundial
internacional a aferição de renda de até US$ 1,00 por dia ou US$ 370,00 por ano. O uso
desse padrão vem a ser conhecido como método monetário.
Jeffrey D. Sachs30 pondera as deficiências de tal método, seja porque não estabelece
uma real noção a respeito da pobreza, seja porque desconsidera uma definição específica
para analisar a satisfação das necessidades básicas, sejam elas as de alimentação, acesso
à água potável, ao saneamento básico, a moradia, a serviços de saúde pública, ao ensino
etc. Ademais, acentua o autor que tal critério deixa de considerar as diferentes realidades
vivenciadas em países com culturas e histórico de desenvolvimento distintos vez que a base
da análise estaria centrada na renda per capita31. Soma-se a isso as mudanças nos padrões
utilizados pelo Banco Mundial que, segundo Angus Deaton32, resultam em certo questiona-
mento quanto ao fato do próprio banco ser o principal agenciador de dados que tratam da
pobreza.
Amartya Sen, por outro lado, entende a pobreza como a privação do indivíduo em
exercer suas capacidades básicas. Ele destaca que a pobreza não se refere apenas à carên-
cia de renda ou a uma renda baixa, mas sim à ausência de possibildidades do sujeito em
lograr exercer livremente suas capacidades.33
Com base em tais referenciais foi lançado, em 1997, o Índice de Pobreza Huma-
na – IPH, que estabelece como critério de medição da pobreza as privações calculadas
mediante variáveis, tais como: a expectativa de vida inferior a quarenta anos; percentual de
alfabetização de adultos; acesso ao serviço de saúde e ao percentual de crianças menores
de cinco anos com peso abaixo do recomendado. Assim, conforme leciona Adriana Serra, o
Índice de Pobreza Humana (IPH), considerando os dados relativos ao impacto da pobreza na

28
SERRA, Adriana Stankiewicz. Pobreza multidimensional no Brasil rural e urbano. 2017. 161p. Tese (Doutorado) –
Instituto de Economia, Universidade Estadual de Campinas, Campinas, São Paulo, 2017. p. 20.
29
SERRA, Adriana Stankiewicz. Pobreza multidimensional no Brasil rural e urbano. Op. cit.
30
SACHS, Jeffrey D. O fim da pobreza: como acabar com a miséria mundial nos próximos vinte anos. São Paulo:
Companhia das Letras, 2005. p. 46.
31
Jeffrey D. Sachs irá destacar que a compreensão da desigualdade existente no mundo necessita observar os
mecanismos de medição dessas desigualdades: “Há muitas definições, bem como debates intensos sobre o
número exato de pobres, onde eles vivem e como sua quantidade e suas condições econômicas mudam ao longo
do tempo. É útil começar com o que todos estão de acordo e depois distinguir três graus de pobreza: pobreza
extrema (ou absoluta), pobreza moderada e pobreza relativa” SACHS, Jeffrey D. O fim da pobreza: Op. cit., p. 46.
32
SACHS, Jeffrey D. O fim da pobreza: Op. cit., p. 230
33
SEN, Amartya. Desenvolvimento como liberdade. Op. cit., p. 36.
28 Adriana da Costa Ricardo Schier | Saúl Hercán Kritski Báez

realidade social, estabelecerá o nível de privação de oportunidades de determinada realidade,


logrando, com isso, promover essencialmente um conceito de pobreza multidimensional.34
A verificação da pobreza deve focar-se no referencial bem-estar, o que significa com-
preender que além do recurso financeiro disponibilizado pelos indivíduos, para suprir suas
necessidades básicas, também deve ser analisada com base na influência desses recursos
– ou de sua ausência – em suas capacidades sociais, suas implicações na participação de
tomada de decisões, o entendimento e compreensão das violências sociais, bem como nas
questões de emprego, saúde básica e planejamento familiar.35
Tais fatores levaram à criação do Índice de Pobreza Multidimensional (IPM). A veri-
ficação, neste caso, faz-se a partir da captação de dados referentes às carências mencio-
nadas e logradas mediante censo familiar. Assim a pobreza será compreendida por um nível
de renda ou consumo previamente estabelecido, sendo este o parâmetro para a aferição do
mínimo de bem-estar ao qual determinada pessoa está sujeita.36
O Brasil, segundo o Banco Mundial,37 é classificado como um país com renda mé-
dia-alta, admitindo-se por referência o dado de que, pelos valores do PIB, cada brasileiro
teria a disponibilidade de US$ 5,50 por dia. Neste sentido, o IBGE destaca em sua Síntese
de Indicadores Sociais (SIS) de 2018 que o país registrou aumento do número de pessoas
que vivem com renda até US$ 5,50 por dia ou US$ 406,00 por mês, destacando que 25,7%
dos pobres registrados no Brasil no ano de 2016, passou a 26,5% no ano seguinte.38 Já o ISI
de 2018 registra dados alarmantes: no período de 2016-2017 a região nordeste acumulou
44,8% da população nacional que vivia na pobreza, considerando os indicadores da linha
monetária US$ 5,50 por dia ou US$ 406,00. Com base nesse referencial, a porcentagem
indica que 25,5 milhões de brasileiros se encontram na linha da pobreza. A região sul re-
gistrou 3,8 milhões de pessoas e a região sudeste 15,2 milhões de pessoas vivendo abaixo
da linha. Tomando-se o indicador de extrema pobreza – pessoas que vivem com US$ 1,90
ou menos ao dia, os dados são ainda mais chocantes. No ano de 2017 o país registrou que

34
SERRA, Adriana Stankiewicz. Pobreza multidimensional no Brasil rural e urbano. Op. cit., p. 23.
35
SERRA, Adriana Stankiewicz. Pobreza multidimensional no Brasil rural e urbano. Op. cit.
36
PNUD. ¿Qué es el Índice de Pobreza Multidimensional? S.d. Disponível em: http://hdr.undp.org/en/node/2515.
Acesso em: 10 jun. 2019.
37
WORLD BANK. Brasil. S.d. Disponível em: https://data.worldbank.org/country/brazil?locale=pt. Acesso em: 10
dez. 2019.
38
“No Brasil, em relação à medida de US$ 5,50 PPC diários, 26,5% da população, ou quase 55 milhões de pessoas,
viviam com rendimento inferior a esta linha em 2017 (cerca de R$ 406,00 mensais), diante de 25,7% da popula-
ção em 2016. A maior parte dessas pessoas (mais de 25 milhões) estava na Região Nordeste, enquanto na Re-
gião Centro-Oeste havia menos de 3 milhões de pessoas. O Nordeste era também a região com maior percentual
de sua população com renda inferior a esta linha, 44,8%, ao passo que esta proporção era de 12,8% no Sul. Na
Região Sudeste, por sua vez, houve aumento de 1,3 pontos percentuais, passando de 16,1% para 17,4% da po-
pulação”. IBGE. Síntese de indicadores sociais: uma análise das condições de vida da população brasileira: 2018.
Rio de Janeiro: IBGE, 2018. p. 57. Disponível em: https://biblioteca.ibge.gov.br/visualizacao/livros/liv101629.pdf
Acesso em: 10 dez. 2019.
O dever de erradicar a pobreza e o direito ao desenvolvimento... 29

6,6% da população total se encontrava nesse patamar. Em números absolutos, as pessoas


que sobreviviam com menos de US$ 1,90 por dia aumentou de 13,5 milhões em 2016,
para 15,2 milhões de pessoas no ano de 2017. Outro resultado preocupante em relação aos
indicadores diz respeito ao número de crianças e adolescentes que vivem abaixo da linha da
pobreza. Segundo dados do IBGE, crianças e adolescentes de 0 a 14 anos que vivem com
menos de US$5,50 PPC por dia correspondeu a 43,4%.39 Ainda assim, o Ipea destaca em
estudo que o período avaliado de 1990 até 2015 o número de brasileiros considerados no
parâmetro de miserabilidade foi reduzido.40
Tais dados indicam, portanto, que a pobreza não pode ser medida apenas por meio
da renda, tomando-se por base o PIB nacional. Segundo o III Relatório Luz da Sociedade Civil
da Agenda 2030, importante documento elaborado por diversos setores voltados ao estudo
da realidade brasileira e o alcance dos ODSs, a pobreza trata-se de um estado de carências,
dentre elas, a falta de acesso aos serviços públicos. Acentua-se, assim, em tal documento,
que “no Brasil, eliminar a pobreza exige enfrentar as desigualdades raciais e étnicas, de gê-
nero, geracionais e regionais, entre outras.” mediante atuação do Estado.41
Por certo, a implementação de condições para a criação de uma sociedade em que
estejam eliminadas as desigualdades, na qual seja assegurado a todos a liberdade de es-
colha do modo de vida, um ambiente em que os objetivos do desenvolvimento sustentável
sejam concretizados, impõe inquestionavelmente deveres ao Estado. Afinal, “se os direitos
à alimentação, educação e saúde são vistos como componentes do direito humano ao
desenvolvimento, o Estado tem que aceitar a responsabilidade primária em oferecer esse
direito [...].”.42
Por isso mesmo, o direito ao desenvolvimento e o alcance das metas previstas na
Agenda 2030 deverão ser considerados como importantes parâmetros de controle e verifica-
ção da legitimidade das políticas públicas adotadas na seara nacional, conforme indicado no
Acórdão de Parecer Prévio n. 287/18, exarado pelo Tribunal de Contas do Estado do Paraná.

39
IBGE. Síntese de indicadores sociais: Op. cit.
40
IPEA – Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada. Erradicando a pobreza e promovendo a prosperidade em um
mundo em mudança – subsídios ao acompanhamento dos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável. Brasí-
lia: Ipea, 2018. Disponível em: http://www.ipea.gov.br/portal/index.php?option=com_content&view=article&i-
d=32558&Itemid=432. Acesso em: 10 jun. 2019.
41
GTSC A2030. III Relatório luz da sociedade civil da Agenda 2030 de desenvolvimento sustentável: Brasil. 2019.
Disponível em: https://brasilnaagenda2030.files.wordpress.com/2019/09/relatorio_luz_portugues_19_final_v2_
download.pdf. Acesso em: 10 dez. 2019.
42
SENGUPTA, Arjun. O direito ao desenvolvimento como um direito humano. Revista Social Democracia Brasileira,
n. 68, p. 64-84, mar. 2002. p. 72. No mesmo sentido, SEN, Amartya sustenta um papel vital para o Estado no pro-
cesso de desenvolvimento, já que “a expansão dos serviços de saúde, educação, seguridade social, etc. contribui
diretamente para a qualidade de vida e seu florescimento”. SEN, Amartya. Desenvolvimento como liberdade. Op.
cit., p. 191.
30 Adriana da Costa Ricardo Schier | Saúl Hercán Kritski Báez

3 A ATUAÇÃO DO TRIBUNAL DE CONTAS DO ESTADO DO


PARANÁ E A AGENDA 2030 – ACÓRDÃO DE PARECER
N. 287/18 – TCE-PR

A instituição das cortes de contas na seara administrativa brasileira, como órgãos


auxiliares do Poder Legislativo, primeiramente visava a auditoria financeira e orçamentária,
admitindo-se como principal objetivo controlar os gastos e as despesas, tomando-se a ar-
recadação como parâmetro. Nesse diapasão, a análise voltava-se ao controle de legalidade
dos atos de gestores públicos, principalmente considerando-se os recursos vinculados, os
parâmetros de responsabilidade fiscal e a adequação dos processos administrativos em
consonância com as normas de regência e a boa prática administrativo-fiscal.43
O constituinte de 88, contudo, foi além e atribuiu aos Tribunais de Contas a compe-
tência para o controle de legitimidade da atuação dos gestores, permitindo-se a avaliação
da gestão pública em consonância com os princípios do regime jurídico administrativo e
com os valores adstritos às boas práticas de governança.44 No ensinamento de Maria Sylvia
Zanella Di Pietro compreende-se que esse controle se expande à seara política, vez que logra
estabelecer mecanismos de avaliação do programa governamental em razão da legislação
pertinente.45
Avançando ainda mais na adoção de parâmetros de controle voltados ao cumpri-
mento dos objetivos da República, o Tribunal de Contas do Estado do Paraná, ao emitir
Acórdão de Parecer Prévio n. 287/18, referente à prestação de contas do Chefe do Executivo
do exercício de 2017, inaugurou em seus cadernos temáticos aquele referente aos Objetivos

43
LIMA, Luiz Henrique. Controle externo: teoria e jurisprudência para os Tribunais de Contas. 6. ed. Rio de Janeiro:
Forense, 2015. p. 307.
44
Luiz Henrique Lima destaca que essa evolução da fiscalização dos tribunais de contas convergiu para uma maior
relevância do órgão, de modo a exercer inúmeras atividades vinculadas à sua competência, tais como: levanta-
mento, auditoria, inspeção, acompanhamento e monitoramento. Assim, esclarece que “[...] antes da Constituição
de 1988, as fiscalizações dos Tribunais de Contas restringiam-se a auditorias financeiras e orçamentárias. A partir
da nova Carta, ampliaram-se as dimensões da fiscalização exercida pelo controle externo, cabendo-lhe examinar
os aspectos de natureza contábil, financeira, orçamentária, patrimonial e operacional da gestão pública, sob os
critérios da legalidade, legitimidade, economicidade, eficiência, eficácia e efetividade”. LIMA, Luiz Henrique. Con-
trole externo: Op. cit., p. 308.
45
DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Direito administrativo. 29. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2016. p. 898-899.
O dever de erradicar a pobreza e o direito ao desenvolvimento... 31

de Desenvolvimento Sustentável – ODS.46 O Conselheiro Relator, Fernando Augusto Mello


Guimarães,47 justificou a empreitada destacando que:

[...] visando abandonar a abordagem predominante dos indicadores oficiais, que ten-
dem a ser genéricos e referidos mais a esforço que a resultados, e a incrementar
sua relevância, confiabilidade, operacionalidade e aderência ao quadro de indicadores
globais ou nacionais para acompanhamento da Agenda 2030, sugeriu-se revisão ba-
seada em 8 critérios que poderá ser aprimorada e de alguma forma aproveitada na
elaboração do PPA 2020-2023 do Estado.

O que se observa na referida proposta da Corte de Contas é o intento do órgão


de controle externo em promover, mediante mecanismos de controle, o mapeamento da
realidade paranaense em relação ao cumprimento das metas traçadas na Agenda 2030.
Partiu-se da premissa de adequação das ODS para com a legislação vigente, sendo um dos
tópicos de relevância no citado caderno o Mainstreaming the 2030 Agenda,48 que é um guia
estabelecido pela Agenda 2030 de adaptação das normas internas para com os objetivos
de desenvolvimento sustentável. Outro ponto de relevância é o mecanismo de organização
no estabelecimento das políticas públicas, sendo, primordial o planejamento, a execução e a
verificação de resultados. Como bem salienta o caderno temático, é necessário que a cultura
de promoção de políticas públicas voltadas ao desenvolvimento sustentável esteja em con-
sonância com a visão internacional de desenvolvimento.49

46
Importante citar que o Tribunal de Contas da União implantou auditoria coordenada cujo objetivo foi “avaliar
a presença de estruturas de governança no Governo Federal para implementar a Agenda 2030 e a meta 2.4
dos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS) no Brasil e consolidar os resultados com os de outras
onze Entidades Fiscalizadoras Superiores da América Latina e Caribe sobre o mesmo tema.”. Dividido em duas
fases, a fase latino-americana foi coordenada pelo TCU. Tem-se que “Os principais dados e análises dos paí-
ses participantes, quando cabível, foram utilizados em comparação aos resultados nacionais. Um sumário
executivo consolidará os resultados, com vistas a oferecer um panorama regional do nível de preparação dos
governos da América Latina para implementação da Agenda 2030.”. TCU. Acórdão 709/2018/TCU. Processo
n. TC 029.427/2017-7. Data da Sessão: 4/4/2018. Disponível em: https://contas.tcu.gov.br/juris/SvlHighLight?-
key=41434f5244414f2d434f4d504c45544f2d32333032353639&sort=RELEVANCIA&ordem=DESC&ba-
ses=ACORDAO-COMPLETO;&highlight=&posicaoDocumento=0&numDocumento=1&totalDocumentos=1.
Acesso em: 2 dez. 2019.
47
PARANÁ. TCE-PR. Contas do governador: exercício 2017. Objetivos do desenvolvimento sustentável. Curitiba:
TCE-PR, 2018. Disponível em: https://www3.tce.pr.gov.br/contasdogoverno/2017/pdfs/ods.pdf. Acesso em: 14
nov. 2018.
48
ONU. Mainstreaming the 2030 Agenda for Sustainable Development – Reference Guide for UN Country Teams.
2017. Disponível em: https://unsdg.un.org/sites/default/files/UNDG-Mainstreaming-the-2030-Agenda-Reference-
-Guide-2017.pdf. Acesso em: 10 dez. 2019.
49
No caderno temático o Conselheiro relator destaca que “A condução cuidadosa do processo de internalização
pode ser considerada a primeira determinante do sucesso na construção do desenvolvimento sustentável propos-
to pela Agenda 2030; a adaptação dos objetivos globais às realidades nacionais ou subnacionais exige atenção
ao ambiente de planejamento. O planejamento representa a conexão entre os planos e a realidade. No Brasil, o
planejamento no setor público obedece a mandamentos previstos na Constituição Federal (art. 165); as práticas
de elaboração, a organização do conteúdo, e mesmo o nível de detalhamento dos instrumentos de planejamento
32 Adriana da Costa Ricardo Schier | Saúl Hercán Kritski Báez

Pode-se dizer, com base na adoção destes novos parâmetros, que se busca a fis-
calização da fiscalização, pois além das questões gerenciais e de limites constitucionais, o
Tribunal de Contas buscará avaliar a implementação das políticas públicas e dos recursos
a ela destinados, a eficiência dos programas adotados tomando-se como referência para o
controle o alcance dos Objetivos delineados na Agenda 2030.
Assim, tem-se que tal documento consiste na propositura de que a Corte de Contas
do Estado do Paraná promova Relatório no sentido de mapear as condições de implementa-
ção da Agenda 2030 no âmbito estadual. Além de mapear as práticas existentes, o referido
Relatório promove mecanismos de avaliação das políticas adotadas em consonância com
os ODS, demonstrando-se convergência de interesse na atuação do poder público na con-
secução das ODS.
Especificamente em relação ao ODS n. 01, objeto do presente artigo, constou que
“com base nos dados analisados, é possível afirmar que as políticas públicas vigentes e
orçadas em 2017 deixaram de lado alguns aspectos importantes do desenvolvimento sus-
tentável, revelando a necessidade de políticas setoriais específicas que atinjam as metas da
Agenda. Os Objetivos 1 (Erradicação da Pobreza), com 24 iniciativas diretas [consta dentre]
aqueles que concentram a maior quantidade de ações diretamente vinculadas.”.50
Com isso o trabalho realizado pelo TCE não busca simplesmente promover o apon-
tamento de melhorias ou o alerta para a carência de programas efetivos, mas tecer em
conjunto metodologia de acompanhamento das políticas paranaenses no sentido de lograr
cumprir a longo prazo da Agenda 2030.
Estabelece, portanto, critérios de avaliação das políticas existentes, destacando-se a
avaliação do “(i) o grau de maturidade de componentes de mecanismos de Governança do
Centro de Governo, ou seja, das instâncias estratégicas do Poder Executivo para exercer as
tarefas de planejamento de longo prazo, coordenação sinérgica de políticas para o desenvol-
vimento sustentável e monitoramento dos esforços e resultados das políticas públicas, entre
outros componentes; (ii) a vinculação dos Programas Finalísticos do PPA 2016-2019 com
os ODS e o volume de recursos da LOA 2017 associado a essas ações; e (iii) a qualidade
dos indicadores de monitoramento oficiais.”.51

dos entes federativos, no entanto, podem variar nas circunstâncias específicas. Os instrumentos básicos de
programação, cuja proposta é formulada pelo poder Executivo, estão sujeitos à aprovação e à proposição de
emendas por parte do Poder Legislativo, devendo, ainda, ser objeto de audiências públicas na fase de elaboração
e de prestação de contas. O PPA deve conter as diretrizes responsáveis por delimitar as ações a serem propostas
anualmente na LDO e na LOA, e sua vigência desencontrada do mandato do Chefe do Poder Executivo consiste
no principal dispositivo contra a solução de continuidade das políticas públicas” PARANÁ. TCE-PR. Contas do
governador: exercício 2017. Objetivos [...]. Op. cit.
50
PARANÁ. TCE-PR. Contas do governador: exercício 2017. Objetivos [...]. Op. cit., p. 54.
51
PARANÁ. TCE-PR. Contas do governador: exercício 2017. Objetivos [...]. Op. cit., p. 69.
O dever de erradicar a pobreza e o direito ao desenvolvimento... 33

A Corte de Contas ressalta, com referido documento, que as sociedades, conjun-


tamente com os órgãos competentes, deverão avaliar e adequar as políticas públicas e as
ações do poder público sob a ótica de cumprimento dos objetivos da Agenda 2030 que se
relacionam com os direitos fundamentais plasmados no texto constitucional.52

4 CONSIDERAÇÕES FINAIS

No ambiente de necessária realização dos objetivos da República Federativa do Bra-


sil, notadamente no que se refere ao desenvolvimento sustentável, a recente decisão da
Corte de Contas do Estado do Paraná destaca-se por incentivar a participação mais efetiva
do órgão de controle externo no que concerne aos mecanismos de avalição das políticas
públicas em consonância com a Agenda 2030.
A edição de tal documento pelo TCE, adotando-se como parâmetros de controle
das políticas públicas os ODSs, trata-se de importante mecanismo de implementação dos
cânones previstos por Amartya Sen para realizar o direito ao desenvolvimento. Com tal pos-
tura, o TCE impõe ao Estado o redirecionamento de suas políticas públicas, que deverão
estar voltadas a garantir, aos cidadãos paranaenses, condições que lhes permitam expandir
suas capacidades, gozando dos direitos que lhes assegurem a prerrogativa de escolherem a
maneira como querem viver uma vida boa.53

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52
Os cadernos que tratam a respeito do desenvolvimento sustentável e a aplicação das ODS para a Agenda 2030
da ONU, podem ser resumidos com o seguinte texto: “As recomendações do Relatório ODS Paraná são dirigidas
ao Governo Estadual e abordam o estabelecimento de ações estratégicas para a elaboração do Plano de Desen-
volvimento Sustentável do Estado, o fortalecimento da função planejamento e coordenação geral, assim como
das atribuições de pesquisa aplicada; a incorporação das metas dos ODS no PPA 2020-2023 e nos Orçamentos;
a aproximação dos indicadores de desempenho dos Programas aos indicadores globais, a alimentação dos sis-
temas de monitoramento e a adoção de ferramentas de acompanhamento; o incremento da participação social
nos processos orçamentários e de monitoramento das políticas públicas, e o apoio às políticas municipais de
desenvolvimento sustentável”
53
Necessário destacar trecho da obra de Amartya Sen: “Os papeis instrumentais da liberdade incluem vários com-
ponentes distintos, porém inter-relacionados, como facilidades econômicas, liberdades políticas, oportunidades
sociais, garantias de transparência e segurança protetora” SEN, Amartya. Desenvolvimento como liberdade. Op.
cit., p. 77.
34 Adriana da Costa Ricardo Schier | Saúl Hercán Kritski Báez

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032353639&sort=RELEVANCIA&ordem=DESC&bases=ACORDAO-COMPLETO;&highlight=&posi-
caoDocumento=0&numDocumento=1&totalDocumentos=1. Acesso em: 2 dez. 2019.

VEIGA, José Eli da. Desenvolvimento sustentável: o desafio do século XXI. 3. ed. Rio de Janeiro: Gara-
mond, 2008.

WORLD BANK. Brasil. S.d. Disponível em: https://data.worldbank.org/country/brazil?locale=pt. Acesso


em: 10 dez. 2019.
O Tribunal de Contas da União e o
controle das agências reguladoras

Benjamin Zymler
Mestre em Direito e Estado (UnB)
Ministro do Tribunal de Contas da União

SUMÁRIO: 1 Introdução: A prestação de serviços públicos no Estado moderno; 2 Natureza jurídica


das agências reguladoras; 3 A evolução do controle do TCU sobre a prestação de serviços públicos;
3.1 Estrutura organizacional do TCU; 3.2 Mecanismos de controle; 4 A atuação do TCU junto às agên-
cias reguladoras – alguns casos marcantes; 5 Considerações finais; Referências.

1 INTRODUÇÃO: A PRESTAÇÃO DE SERVIÇOS PÚBLICOS


NO ESTADO MODERNO

A criação das agências reguladoras está inserida no contexto da ampla reforma do


Estado brasileiro iniciada no começo da década de 90 e guarda pertinência com a nova
visão estatal, ensejada pelas contínuas mutações que vêm ocorrendo no mundo moderno,
as quais estão gradativamente impondo alterações nos ordenamentos jurídicos nacionais.
Questionam-se os objetivos do Estado, sua estrutura, sua própria razão de ser.
Nesse contexto, impõe rever sua atuação na prestação dos serviços ditos públicos,
os quais, na precisa lição de Maria Sylvia Zanella Di Pietro, englobam “toda atividade material
que a lei atribui ao Estado para que a exerça diretamente ou por meio de seus delegados,
com o objetivo de satisfazer concretamente às necessidades coletivas, sob regime jurídico
total ou parcialmente público”.1
Muito foi debatido a respeito da precisa definição de serviço público. Hoje, contudo,
a discussão perdeu muito de sua relevância. Afinal, são as normas positivas que definem
o que é serviço público. Os autores concordam que, independentemente das tentativas de
definição ontológica da expressão, serviço público é o que a lei estabelece como tal.
Assim, a evolução do conceito acompanha pari passu a própria dinâmica da visão de
Estado. No Estado Liberal pós-revolucionário, cuja principal função era garantir aos cidadãos
o usufruto pleno de seus direitos de liberdade e propriedade, poucas eram as prestações
positivas a cargo do Poder Público. A noção de serviço público era, então, incipiente.

1
DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Direito administrativo. 10. ed. São Paulo: Atlas, 1998. p. 85.
38 Benjamin Zymler

A evolução histórica caminhou no sentido de ampliar as funções estatais. Perce-


beu-se que a defesa da liberdade, por meio do estabelecimento de uma lista de direitos
individuais negativos, acarretava enorme desigualdade entre os cidadãos. Alargou o Estado,
então, seu espaço de atuação. Transmutou-se de agente garantidor para empreendedor, que
interfere nas esferas social e econômica. Coube ao novo Estado Social cumprir funções rele-
vantes, de forma a assegurar à população um nível mínimo de satisfação das necessidades
consideradas essenciais.
No final do século XX, a tendência verificada no ordenamento jurídico da grande
maioria dos países ocidentais teve sentido inverso, vinculada à passagem do Estado Social
para o chamado Estado Neoliberal, que retoma uma parcela dos paradigmas do antigo Es-
tado Liberal.
A crise fiscal do welfare state revelou a incapacidade de o Estado prestar diretamente
os serviços que estavam a seu cargo. Por conseguinte, implantou-se um modelo de enxuga-
mento da máquina administrativa, inclusive por meio da desestatização de suas empresas e
da concessão de serviços públicos para agentes privados.
Nesse novo contexto, o Poder Público, ao invés de prestar diretamente os serviços,
buscou executar uma atuação reguladora, deixando a função operacional e executora dos
serviços para terceiros. Inseriu-se no ordenamento jurídico, como reflexo desta mudança, a
figura da agência reguladora.

2 NATUREZA JURÍDICA DAS AGÊNCIAS REGULADORAS

Incapaz de realizar novos investimentos nos diversos setores básicos da econo-


mia, o Estado brasileiro, a partir do Programa Nacional de Desestatização, implantado pela
Lei n. 8.031/1990, adota novos mecanismos de prestação de serviços públicos. Afasta-se
gradualmente da prestação direta dos serviços públicos, reservando para si a atividade de
regulação e fiscalização, que passam a ser exercidas basicamente por agências criadas
por lei. A prestação desses serviços, agora realizada por terceiros, em regra, estranhos à
Administração, concretiza-se mediante contratos de concessão ou de permissão e atos de
autorização, de acordo com a vontade expressa nos arts. 175 e 21, XI e XII, da Constituição
Federal.
Se não há dúvida quanto ao sentido expresso da atividade de fiscalização, é mister
precisar o alcance do termo regulação. Para tanto, importa citar a lição de Pedro Henrique
Poli, que, em acepção ampla, define regulação como sendo:

a atividade administrativa desempenhada por pessoa jurídica de direito público con-


sistente no disciplinamento, na regulamentação, na fiscalização e no controle do ser-
viço prestado por outro ente da Administração Pública ou por concessionário, per-
O Tribunal de Contas da União e o controle das agências reguladoras 39

missionário ou autorizatário do serviço público, à luz de poderes que lhe tenham sido
por lei atribuídos para a busca da adequação daquele serviço, do respeito às regras
fixadoras da política tarifária, da harmonização, do equilíbrio e da composição dos in-
teresses de todos os envolvidos na prestação deste serviço, bem como da aplicação
de penalidades pela inobservância das regras condutoras da sua execução.2

As normas instituidoras de tais agências delimitaram sua natureza jurídica. São con-
sideradas autarquias especiais. Assim, por exemplo, a Lei n. 9.427/1996, que criou a Agên-
cia Nacional de Energia Elétrica (Aneel), estabeleceu, em seu art. 1º, que a referida agência
apresenta regime especial e tem por atribuição regular e fiscalizar a produção, transmissão,
distribuição e comercialização de energia elétrica.
Já a Lei n. 9.472/1997, conhecida como Lei Geral das Telecomunicações, ao criar a
Agência Nacional de Telecomunicações (Anatel), por força do ditame constitucional contido
no art. 21, XI, inseriu-a na Administração Pública federal indireta, vinculada ao então Minis-
tério das Comunicações, com a função de regular as telecomunicações, sob o regime de
autarquia especial (art. 8º). O § 2º do mencionado artigo esclarece que o regime especial
decorre da independência administrativa, da ausência de subordinação hierárquica, do man-
dato fixo com estabilidade de seus dirigentes e da autonomia financeira.
Por seu turno, a Lei n. 9.478/1997, que dispôs sobre a política energética nacional
e criou a Agência Nacional de Petróleo (ANP), estabeleceu, em seu art. 7º, que a referida
agência pertence à Administração Pública federal indireta e está vinculada ao Ministério de
Minas e Energia e submetida ao regime de autarquia especial.
Por fim, a Lei n. 10.233/2001 criou a Agência Nacional de Transportes Terrestres
(ANTT) e a Agência Nacional de Transportes Aquaviários (Antaq), tendo estabelecido que
esses entes devem fiscalizar e regular as respectivas áreas de atuação, quais sejam, trans-
portes terrestres e aquaviários. Nos termos do art. 21 do mencionado Diploma legal, foi
estabelecido que tais entidades integram a Administração Pública federal indireta, sendo
vinculadas ao Ministério dos Transportes e submetidas ao regime autárquico especial.
Percebe-se, por conseguinte, que compete às diversas agências regular e fiscalizar
a prestação de serviços públicos ou o exercício de atividade econômica específica (no caso
do petróleo e do gás natural). Integram, ademais, a Administração Pública federal indireta,
estando vinculadas aos Ministérios respectivos. Submetem-se a regime autárquico espe-
cial, notabilizado pela maior autonomia financeira e funcional, independência administrativa
e mandato fixo de seus dirigentes.

2
FIGUEIREDO, Pedro Henrique Poli de. A regulação do serviço público concedido. Porto Alegre: Síntese, 1999.
p. 40.
40 Benjamin Zymler

Discussão que se impõe, decorrente desse maior nível de autonomia conferido às


agências reguladoras, diz respeito à aplicação das normas relativas à supervisão ministerial,
na forma como disciplinada pelo Decreto-Lei n. 200/1967.
Característica fundamental dos entes estatais autárquicos é sua maior independência
em relação à Administração direta. Contudo, as entidades submetidas a regime autárquico
comum apresentam nível de interação com o ente superior mais estreito, quando compara-
das às de regime especial. O controle sobre aquelas é exercido pelo Ministério respectivo,
sob a forma de supervisão ministerial, nos termos dos arts. 19 a 29 do citado diploma legal.
Evidente que, em relação a estas, dotadas de regime especial, não há falar em sujeição às
mesmas limitações das demais autarquias. Por conseguinte, impõe-se afastar as normas do
Decreto-Lei n. 200/1967 que tratam da supervisão ministerial no que for incompatível com o
novo regramento dado às agências reguladoras.

3 A EVOLUÇÃO DO CONTROLE DO TCU SOBRE A


PRESTAÇÃO DE SERVIÇOS PÚBLICOS

Cumpre mencionar que a Constituição Federal de 1988, ao tratar da fiscalização da


Administração Pública, estabeleceu que o controle externo, no âmbito da União, compete ao
Congresso Nacional, que o exerce com o auxílio do Tribunal de Contas da União. Foram am-
pliadas consideravelmente as atribuições da Corte de Contas, como reflexo da preocupação
do constituinte originário em dotar o órgão de instrumentos jurídicos adequados para exercer
sua missão institucional.
Dentre as múltiplas facetas do controle externo, mencione-se o natural controle que
os Tribunais de Contas devem exercer sobre os órgãos e entidades estatais encarregados de
regular a prestação de serviços públicos delegados.
Os trabalhos iniciais desenvolvidos pelo TCU, concernentes ao acompanhamento de
concessões de serviços públicos, versaram sobre o setor de rodovias federais. As primeiras
normas reguladoras desse acompanhamento originaram-se de decisões pontuais proferidas
pelo Plenário da Corte de Contas, que foram, afinal, condensadas em instruções normativas.
O Tribunal, mediante a Decisão n. 141/1993, aprovou requerimento formulado pelo
então relator, Ministro Luciano Brandão, acerca do acompanhamento de todos os procedi-
mentos relativos à concessão para a exploração da Ponte Rio-Niterói, especialmente quanto
à viabilidade técnica e econômica da outorga, à licitação e aos aspectos do contrato de
concessão.
Após esses acompanhamentos iniciais, o Tribunal decidiu, dada a relevância do as-
sunto, criar norma interna sobre fiscalização de concessões, permissões e autorizações de
serviços públicos federais. Assim, em 22/11/1995, foi editada a Instrução Normativa TCU n.
O Tribunal de Contas da União e o controle das agências reguladoras 41

10, posteriormente substituída pela de n. 27/1998, que dispôs sobre a fiscalização dos pro-
cessos de desestatizações, concessões, permissões e autorizações de serviços públicos.
Em seguida, o TCU editou a Instrução Normativa TCU n. 46/2004, que regulamentou
a fiscalização, pelo Tribunal de Contas da União, dos processos de concessão para explora-
ção de rodovias federais, inclusive as rodovias ou trechos rodoviários delegados pela União
a estado, ao Distrito Federal, a município, ou a consórcio entre eles.
Tendo em vista a inserção no ordenamento jurídico pátrio das parcerias público-
-privadas, o TCU publicou a Instrução Normativa 52/2007, a qual tratou do controle e da
fiscalização de procedimentos de licitação, contratação e execução contratual de Parcerias
Público-Privadas (PPP), a serem exercidos pelo Tribunal de Contas da União.
Finalmente, no dia 20/6/2018, o TCU editou a Instrução Normativa n. 81/2018, que
dispõe sobre a fiscalização dos processos de desestatização. Essa última norma, além de
revogar as Instruções Normativas 27/1998, 46/2004 e 52/2007, consolidou os comandos
constantes dessas normas e apresentou significativas inovações em relação ao modelo an-
teriormente adotado.
Destaco que a Instrução Normativa n. 27/1998 previa o acompanhamento das con-
cessões, permissões e autorizações de serviços públicos em dois momentos distintos,
quais sejam, a fase do acompanhamento da outorga e a do acompanhamento da execução
contratual.
Na fase de execução contratual, a fiscalização verifica o fiel cumprimento das nor-
mas pertinentes e das cláusulas contidas no contrato e nos respectivos termos aditivos fir-
mados com a concessionária, além de avaliar a ação exercida pelo órgão ou entidade federal
concedente ou pela respectiva agência reguladora.
É importante ressaltar que essa metodologia de controle, porque enfatizava a fis-
calização concomitante da atuação do Estado, permitiu, como será visto adiante, a adoção
de ações preventivas e corretivas de extrema relevância. Contudo, havia necessidade de
aprimorar a dinâmica do acompanhamento das desestatizações e racionalizar a fiscalização
a cargo do Tribunal, priorizando os pontos de maior relevância, materialidade e oportunidade
e que apresentem maior risco para a regularidade e economicidade das desestatizações
conduzidas pelo Poder Público.
Dentre as inovações incorporadas, podem-se citar as seguintes:
i) o fim dos múltiplos estágios de acompanhamento dos processos. A experiência
tem demonstrado que alguns estágios de fiscalização se caracterizam por verificações de
documentos e outras formalidades, que passaram a agregar cada vez menos valor aos pro-
cessos de desestatização, diante da consolidação institucional-legal destes;
42 Benjamin Zymler

ii) o envio, por parte dos órgãos gestores, do extrato de planejamento da desesta-
tização com antecedência mínima de 150 dias da data prevista para a publicação do edital.
Esclareço que o referido documento deverá conter as seguintes informações: descrição do
objeto a ser desestatizado, previsão do valor dos investimentos, relevância e localização do
objeto ou empreendimento e cronograma licitatório. O objetivo desta inovação é gerar um
lapso de tempo suficiente para a revisão do planejamento dos trabalhos nas unidades técni-
cas do TCU, com vistas a mobilizar os recursos humanos necessários ao acompanhamento.
Devo ressaltar que as informações contidas em tais extratos são de caráter genérico e não
devem ser confundidas com as que constam dos estudos de viabilidade. Assim sendo, seu
envio não representa ônus significativo para o Poder Executivo, mas proporcionará ganhos
de eficiência para a Corte de Contas; e
iii) o envio da documentação ao Tribunal com antecedência mínima de 90 dias em
relação à publicação do edital licitatório, ampliando-se o prazo previsto nas normas revoga-
das, que era de 30 dias. São até 75 dias para a análise pelas unidades técnicas e 15 dias
para o julgamento, uma vez finalizado o trabalho daquelas. Esclareço que os referidos prazos
começam a fluir a partir do recebimento de todos os estudos de viabilidade e minutas de
documentos que formalizam a desestatização.
A previsão e a ampliação dos prazos mínimos para o envio de informações ao Tri-
bunal visaram permitir que a Corte de Contas aprofunde as análises das modelagens dos
projetos, para induzir o aperfeiçoamento dos arranjos contratuais e favorecer a regular exe-
cução dos serviços.

3.1 Estrutura organizacional do TCU

Em 1998, percebendo as mudanças advindas da reforma do Estado brasileiro, o


Tribunal de Contas da União criou unidade técnica voltada basicamente para a análise dos
processos de privatização e para o controle da atuação dos órgãos reguladores: a Secretaria
de Fiscalização de Desestatização (Sefid).
A verificação da atuação finalística dos entes reguladores ganhou maior destaque
com a reestruturação ocorrida no Tribunal. O acompanhamento dos atos de gestão orça-
mentária das agências reguladoras ficou a cargo de outra unidade técnica, viabilizando a
alocação de toda a força de trabalho da Sefid para a verificação dos atos associados à
regulação dos serviços públicos.
Posteriormente, houve a criação de uma segunda Sefid, em decorrência do signi-
ficativo aumento dos trabalhos de fiscalização realizados pelo TCU tendo como objeto a
concessão de serviços públicos.
O Tribunal de Contas da União e o controle das agências reguladoras 43

Mais recentemente, houve a fusão dessas secretarias com as antigas unidades


encarregadas da fiscalização das obras públicas, o que ensejou a criação de sete novas
unidades técnicas, denominadas Secretarias de Fiscalização de Infraestrutura (Seinfra), que
ficaram encarregadas de fiscalizar a prestação de serviços públicos e a atuação das agên-
cias reguladoras.
Cabe salientar que as Seinfras, ao contrário do que ocorria com as Sefid, fiscalizam
também as atividades-meio das agências reguladoras.
Atualmente, o Tribunal acompanha a prestação de serviços públicos nas áreas de
energia elétrica, telecomunicações, serviços postais, portos, rodovias, ferrovias, aeroportos,
transportes de passageiros interestaduais e internacionais e estações aduaneiras interiores
(os “portos secos”). Adicionalmente, a Corte de Contas federal fiscaliza a exploração das
atividades nos setores de petróleo e gás natural. A diversidade e a complexidade dessas
áreas exigem alto nível de especialização das equipes técnicas, o que vem impondo ao TCU
grande esforço na área de capacitação de pessoal.

3.2 Mecanismos de controle

Dispõe a Constituição Federal, em seu art. 71, que o controle externo da Adminis-
tração Pública federal compete ao Congresso Nacional, com o auxílio do Tribunal de Contas
da União. Os diversos incisos do referido dispositivo relacionam as atribuições da Corte de
Contas, dentre as quais destacam-se: i) o julgamento das contas dos gestores públicos da
Administração direta e indireta; ii) a apreciação, para fins de registro, da legalidade dos atos
de admissão de pessoal, a qualquer título, bem como das concessões de aposentadoria e
pensão na administração indireta; e iii) a realização de inspeções e auditorias nas entidades
da Administração direta e indireta.
Sendo as agências reguladoras entidades autárquicas, ainda que sob regime espe-
cial, o controle direto sobre os administradores das referidas agências decorre diretamente
do texto constitucional. Cabe ao Tribunal, por conseguinte, apreciar os atos de admissão de
pessoal e de concessão de aposentadoria e de pensão dos servidores das agências. Além
disso, os administradores principais têm o dever político de prestar contas dos recursos
geridos em determinado exercício ao TCU. Por fim, a Corte de Contas pode realizar, por
iniciativa própria ou em atendimento a solicitação do Congresso Nacional, auditorias nas
mencionadas entidades, para verificar a regularidade nas áreas contábil, financeira, patrimo-
nial e orçamentária.
Cumpre salientar que, caso sejam constatadas irregularidades que demandem rá-
pida atuação do TCU, deve o processo correspondente ser encaminhado imediatamente ao
respectivo Ministro-Relator. Nessa hipótese, por decisão monocrática ou colegiada, poderá
44 Benjamin Zymler

ser adotada medida cautelar, com vistas a evitar a ocorrência de dano efetivo ou potencial ao
Erário e, em última análise, aos usuários dos serviços públicos.
Aduzo que qualquer cidadão, partido político, associação ou sindicato pode apre-
sentar denúncia ao Tribunal acerca de possíveis irregularidades ou ilegalidades ocorridas na
atuação das agências reguladoras.
Não há, portanto, maiores dúvidas a respeito da larga extensão da atividade fiscaliza-
dora do TCU, a qual não se restringe aos aspectos jurídico-formais. O Tribunal de Contas da
União vai além, uma vez que procura examinar os resultados alcançados pelas agências no
exercício de sua missão institucional.
Afinal, consoante exposto pelo Ministro Marcos Vinicios Vilaça, “a fiscalização da
legalidade só será relevante e eficaz se estiver integrada à avaliação do desempenho da
Administração Pública e dos responsáveis pela gestão dos recursos públicos”.3
Ademais, deve-se ter em mente que, a partir da promulgação da Emenda Constitu-
cional 19/1998, o princípio da eficiência foi erigido à norma constitucional. Por conseguinte,
compete também ao Tribunal verificar se as entidades sujeitas ao seu poder controlador
atuam de forma eficiente.
Além disso, cabe destacar que o art. 71, IV, da Constituição Federal de 1988 expres-
samente atribuiu ao Tribunal o poder de realizar auditoria de natureza operacional. O objetivo
dessa modalidade de auditoria vai muito além do mero exame da regularidade contábil, orça-
mentária e financeira. Ela intenta verificar se os resultados obtidos estão de acordo com os
objetivos do órgão ou entidade, consoante estabelecidos em lei. Com esse desiderato, é exa-
minada a ação governamental quanto aos aspectos da economicidade, eficiência e eficácia.
Especificamente em relação às agências reguladoras, o TCU, por meio das auditorias
operacionais, verifica se estão sendo atingidas as finalidades estabelecidas para essas enti-
dades por meio das respectivas leis de criação. Isso abrange a avaliação do cumprimento de
sua missão reguladora e fiscalizadora.
Dessa forma, impõe-se ao Tribunal a fiscalização da execução dos contratos de
concessão. Uma análise superficial identificaria uma possível redundância das esferas de
controle, uma vez que uma das atribuições das agências é exatamente fiscalizar os contratos
de concessão e de permissão e os atos de autorização de serviços públicos.
Entretanto, fica claro que o TCU exerce uma atividade fiscalizatória de segundo grau,
que busca identificar se as agências estão bem e fielmente cumprindo seus objetivos insti-
tucionais, dentre os quais, o de fiscalizar a prestação de serviços públicos. Deve a Corte de
Contas, no desempenho de sua competência constitucional, atestar a correção da execução

3
VILAÇA, Marcos Vinicios. Encontro Anual de Dirigentes do Tribunal de Contas da União. Brasília (DF), 1996.
(Informação verbal – palestra).
O Tribunal de Contas da União e o controle das agências reguladoras 45

desses contratos. Ressalte-se, todavia, que essa ação não visa controlar a empresa conces-
sionária em si, mas apenas examinar se as agências estão fiscalizando de forma adequada
os contratos por elas firmados.
Em síntese, o Tribunal não pode pretender substituir as agências reguladoras, mas
zelar pela atuação pronta e efetiva desses entes, com o objetivo primordial de assegurar a
adequada prestação dos serviços públicos para a população.
Deve-se ter em mente, nessa nova concepção de Estado, e por que não dizer de con-
trole, que o objetivo último a ser buscado é a eficiência da prestação de serviços públicos.
A pronta atuação do Tribunal deve contribuir para o atingimento desse nível de excelência.

4 A ATUAÇÃO DO TCU JUNTO ÀS AGÊNCIAS


REGULADORAS – ALGUNS CASOS MARCANTES

Ao longo dos últimos anos, o Tribunal tem proposto, por iniciativa própria, uma sé-
rie de atividades na área de regulação. Tem recebido também várias demandas externas,
principalmente das Casas do Congresso Nacional e do Ministério Público Federal. A título
ilustrativo, são apresentados a seguir, de forma sucinta, alguns dos principais trabalhos exe-
cutados pelo TCU.
De início, centrou o Tribunal sua atenção na realização de auditorias nas agências
reguladoras que já estavam em funcionamento (Aneel, Anatel e ANP). Adicionalmente, o TCU
fiscalizou a área de transportes, por intermédio de auditorias realizadas no Departamento
Nacional de Infraestrutura de Transportes (DNIT).
Cabe frisar que as auditorias realizadas no DNIT tiveram o intuito de verificar a qua-
lidade dos serviços prestados nas rodovias concedidas, sendo o desempenho dessa autar-
quia como ente regulador do setor rodoviário avaliado apenas de forma subsidiária. Poste-
riormente, após a criação da Antaq e da ANTT, o enfoque das fiscalizações realizadas pelo
TCU passou a abarcar também o nível de qualidade das atividades regulatórias desenvolvidas
por essas duas entidades.
As auditorias realizadas na Aneel, Anatel e ANP permitiram conhecer a organização e
a forma de atuação de cada uma das agências reguladoras, bem como elaborar e implemen-
tar métodos e procedimentos para as fiscalizações das delegações de serviços públicos nos
setores de eletricidade, telecomunicações e petróleo.
Em momento posterior, as auditorias nas agências passaram a ter objetivos mais
específicos dentro do universo de atribuições das agências. Assim, por exemplo, em um de-
terminado exercício, foi enfocado precipuamente o desempenho das fiscalizações realizadas
pelas agências sobre os concessionários.
46 Benjamin Zymler

Para organizar melhor a exposição, serão enunciados, por área específica, os prin-
cipais resultados alcançados pelo Tribunal em cada um dos setores de serviços públicos.
No setor de telecomunicações, no caso das outorgas das bandas C, D e E, o Tribu-
nal identificou um erro nas fórmulas das planilhas que calculavam o preço mínimo dessas
outorgas. A correção desse erro, realizada pela Anatel tão logo comunicada a detecção da
falha, resultou em um acréscimo de cerca de R$ 1,6 bilhão em relação ao valor inicialmente
estipulado.
Posteriormente, a Anatel realizou licitação visando destinar a faixa de frequência de
700 MHz à ativação de serviço de telecomunicações móvel terrestre (SMP) utilizando tec-
nologia 4G denominada Long Term Evolution (LTE). A faixa de 700 MHz era ocupada por
serviços de radiodifusão. O art. 16 do Regulamento sobre Condições de Uso dessa faixa,
aprovado pela Resolução Anatel 625/2013, que modificou a destinação dessa faixa para o
serviço móvel pessoal, estabeleceu que os vencedores da licitação ressarciriam integral-
mente os custos decorrentes da redistribuição de canais de TV e RTV.
Inicialmente, o TCU apresentou alguns questionamentos, especialmente no que con-
cerne aos compromissos que seriam assumidos pelas licitantes vencedoras em relação ao
ressarcimento dos custos que seriam incorridos pelas emissoras de televisão que sairiam da
faixa de frequência licitada, os quais foram estimados em aproximadamente R$ 3,6 bilhões,
em valores históricos de 2014. Em resposta a esses questionamentos, a Anatel alterou o
edital e eliminou as pendências. Dessa forma, o leilão foi realizado e a atuação do TCU in-
duziu o aperfeiçoamento do processo licitatório. Ressalto que, graças a essas concessões,
foi implementado o processo de substituição da TV aberta analógica pela TV aberta digital.
No setor elétrico, destaco que o critério de fixação do preço mínimo para outorgas de
aproveitamentos hidrelétricos foi objeto de avaliações do Tribunal. Em decorrência da atua-
ção do TCU, a Aneel alterou o método de cálculo do preço mínimo, o que propiciou, apenas
nos leilões ocorridos em 2000, um acréscimo no preço inicial de mais de R$ 200 milhões
em relação ao critério anteriormente utilizado.
Merece destaque a prorrogação das concessões do setor elétrico, possibilitada pelo
art. 7º da Lei 12.783/2013, com o intuito de assegurar a continuidade e a eficiência da pres-
tação do serviço para a sociedade. Ocorre que o referido diploma não estabeleceu diretrizes
para a prorrogação dos contratos de 41 concessionárias de distribuição que venciam até
2017. Em razão disso, por meio do Acórdão 1.836/2013 – Plenário, foram expedidas deter-
minações no sentido de que fosse planejada tempestivamente a solução a ser adotada para
as referidas concessões.
Em um primeiro momento, o Ministério de Minas e Energia informou que pretendia
prorrogar todos os contratos de distribuição, devendo ser definidas metas de melhoria da
O Tribunal de Contas da União e o controle das agências reguladoras 47

prestação do serviço, num prazo de cinco anos. Em 2015, o Poder Executivo publicou o
Decreto 8.461/2015, que regulamentou a prorrogação das referidas concessões de distribui-
ção, tendo optado pela prorrogação de todas as concessões vincendas.
O TCU reconheceu a importância estratégica do serviço de distribuição de energia
elétrica e a gravidade de uma eventual descontinuidade no seu fornecimento, que atingiria 50
milhões de unidades residenciais. Nesse contexto, a Corte de Contas entendeu que, apesar
de algumas concessionárias apresentarem problemas históricos em relação à qualidade do
serviço e à falta de capacidade financeira, não havia condições para vedar a prorrogação dos
contratos em tela.
Cumpre salientar que as concessões problemáticas não foram prorrogadas, em con-
formidade com decisão adotada pela assembleia de acionistas da Eletrobras. Essa decisão
encontrou respaldo na Lei n. 13.360/2016, que facultou à União, quando as concessões de
energia elétrica não forem prorrogadas e quando o prestador do serviço for pessoa jurídica
controlada pela União, promover a licitação da concessão associada à transferência do con-
trole da pessoa prestadora do serviço.
No setor de petróleo, o Tribunal acompanhou as licitações de blocos para exploração
e produção de petróleo e gás natural, tendo sido feitas diversas determinações à ANP com
vistas ao aperfeiçoamento do processo licitatório, notadamente no sentido de dar maior
transparência aos interessados e garantir adequadas condições para a atuação da própria
agência durante a execução contratual.
Recentemente, o Tribunal de Contas da União aprovou os termos da revisão do con-
trato de cessão onerosa firmado pela Petrobras e pela União. O Governo federal pagará à
Petrobras US$ 9 bilhões pela revisão de um contrato firmado em 2010 para a exploração de
áreas do pré-sal. A Petrobras usará esse montante no leilão do excedente de cessão onerosa.
O contrato de cessão onerosa garantia à empresa explorar 5 bilhões de barris de
petróleo em áreas do pré-sal pelo prazo de 40 anos. Em troca, a empresa antecipou o paga-
mento de R$ 74,8 bilhões ao governo. Desde 2013, o governo vem negociando um aditivo
a esse contrato, depois que a Petrobras pediu ajustes por conta da desvalorização do preço
do barril de petróleo no mercado internacional.
Ainda no setor de petróleo e gás natural, o TCU aprovou a realização do leilão dos
excedentes da cessão onerosa da produção de petróleo. O relator do processo, Ministro
Raimundo Carreiro, não fez mudanças no edital, mas citou a ressalva com relação à capaci-
dade da Pré-Sal Petróleo S.A. (PPSA) de gerir o contrato do excedente da cessão onerosa.
Segundo o Tribunal, a estatal sofre com deficiência financeira e falta de pessoal.
O ministro apontou também a demora do Ministério de Minas e Energia em enviar
toda a documentação para a análise da corte de contas. Segundo ele, os referidos docu-
mentos deveriam ter sido entregues 90 dias antes da publicação do edital, mas só foram
enviados um mês antes.
48 Benjamin Zymler

No que concerne ao setor rodoviário, cabe destacar que, analisando os editais de


concessões de sete importantes lotes rodoviários, incluídos os trechos da rodovia Fernão
Dias e Régis Bittencourt, decidiu o Tribunal realizar 24 determinações ao Departamento Na-
cional de Estradas e Rodagens (DNER) com o objetivo de adequar o processo licitatório aos
ditames legais, dentre as quais se destacam: i) inclusão no edital de disposições acerca da
política ambiental a ser adotada pela concessionária; ii) alterações no edital buscando garan-
tir o caráter competitivo do certame e o sigilo das propostas; iii) supressão de cláusulas que
implicariam aumento de tarifas de pedágio para os usuários, decorrentes de riscos inerentes
ao negócio da concessionária; e iv) inclusão de cláusulas que visam garantir a prestação de
um nível de serviço adequado aos usuários.
No setor portuário, destaco que o TCU analisou a desestatização, por meio de ar-
rendamento, de áreas e instalações localizadas nos portos organizados de Santos, Belém,
Santarém, Vila do Conde e terminais de Outeiro e Miramar, relativas ao primeiro bloco dos
projetos previstos na Portaria 38/2013, emitida pela Secretaria de Portos da Presidência da
República (SEP-PR). Por meio do Acórdão 3.661/2013 – Plenário, o órgão de contas con-
dicionou a publicação dos editais das licitações à adoção de várias providências, relativas à
correção das falhas verificadas, dentre outros, nos estudos de demanda empreendidos pelo
órgão licitante.
Ainda no setor portuário, deve ser destacado o Acórdão 923/2019 – Plenário, tendo
em vista a discussão travada no Plenário do TCU a respeito dos limites do controle exercido
sobre as decisões discricionárias adotadas pelos dirigentes das agências reguladoras.
Naquela oportunidade, foram julgados pedidos de reexame interpostos pelo Centro
Nacional de Navegação Transatlântica (Centronave) e pela Agência Nacional de Transportes
Aquaviários (Antaq) contra o Acórdão 1.439/2016 – Plenário, cuja redação foi mantida pelo
Acórdão 1.877/2016 – Plenário, ambos relatados pela Ministra Ana Arraes. Os referidos
acórdãos foram proferidos quando do julgamento de denúncia versando sobre as seguintes
supostas irregularidades: i) aumento abusivo, sem homologação pela Agência Nacional de
Transportes Aquaviários (Antaq), das tarifas praticadas no arrendamento portuário Libra Ter-
minal Rio S.A. (Libra); ii) cobrança da tarifa Terminal Handling Charge (THC) sem comprova-
ção de seu caráter de ressarcimento; e iii) omissão da Antaq na fiscalização e na regulação
da atuação dos armadores estrangeiros.
Num primeiro momento, após reconhecer a existência de falhas na regulação pela
Antaq da cobrança de tarifas pelos arrendatários portuários, o TCU determinou quais ações
deveriam ser adotadas pelo ente regulador. Posteriormente, em sede de recurso, foi destaca-
do no voto condutor do acórdão que:

fica patente que a efetiva atuação da agência reguladora é necessária devido à falha
de mercado configurada pela assimetria de informações observada na situação em
O Tribunal de Contas da União e o controle das agências reguladoras 49

apreço. O usuário do serviço portuário desconhece os parâmetros da cobrança que


lhe é imposta pela empresa de transporte marítimo. Ao mesmo tempo, ficou claro
nos autos, conforme reconhecido pelo Tribunal ao prolatar o acórdão recorrido, que a
Antaq não exerce qualquer controle sobre os valores recolhidos a título de THC.

Contudo, o Plenário entendeu que, visando solucionar as falhas existentes na regu-


lação exercida pela Antaq, o TCU tinha determinado quais providências a agência deveria
adotar. Assim sendo, a Corte de Contas não só instou o ente regulador a exercer as atribui-
ções previstas na sua lei de criação (Lei n. 10.233/2001), mas também fixou as medidas
que deveriam ser implementadas, o que caracterizou uma intervenção excessiva na esfera
de competência daquele ente.
Diante disso, destaquei em meu voto que “tendo em vista a necessidade de respeitar
o espaço discricionário da Antaq, cabe a ela definir esses procedimentos, competindo ao
Tribunal fixar um prazo de 60 dias para que a agência apresente a esta Corte de Contas um
plano de ação detalhado a ser implementado com esse objetivo.”
Em síntese, compete ao TCU induzir a agência a adotar as medidas necessárias
para exercer plenamente suas competências. Entretanto, não cabe à Corte de Contas definir
previamente quais devem ser essas ações.

5 CONSIDERAÇÕES FINAIS

A Reforma do Estado Brasileiro redimensionou o papel da Administração Pública na


prestação de serviços públicos. Reduziu o tamanho do Estado agente, ao mesmo tempo que
acentuou sua função regulatória. Nesse contexto, insere-se a criação das agências regulado-
ras, entidades dotadas de maior autonomia financeira, administrativa e patrimonial.
O objetivo principal da descentralização em curso é a busca da prestação de ser-
viços públicos de forma mais adequada, o que favorece seus usuários. Atua o Estado na
regulamentação e fiscalização dos serviços, diretamente, mediante um de seus órgãos, ou
de forma descentralizada, por meio das agências reguladoras.
Dentro dessa nova concepção de Estado, o controle ganha preeminência. Além do
exame da legalidade, devem os órgãos controladores verificar a eficiência da atuação das
agências reguladoras.
O Tribunal de Contas da União detém competência constitucional para fiscalizar e
julgar as contas dos dirigentes das agências reguladoras. Nesse contexto, exerce o controle
também sobre as outorgas dos serviços públicos a terceiros.
Quanto ao acompanhamento da execução contratual dos serviços concedidos, deve
o Tribunal atuar de forma complementar aos órgãos/entidades reguladores. Em princípio, a
50 Benjamin Zymler

fiscalização das concessionárias é de responsabilidade do Poder Concedente. Entretanto,


isso não impede a atuação cooperativa e suplementar do TCU, ao realizar a fiscalização
sobre a prestação dos serviços públicos delegados.
Em relação ao controle social, peça chave do Plano de Reforma do Estado em curso,
deve-se convir que sua efetivação somente será eficaz se conseguir estabelecer vínculos
sistêmicos com os entes estatais encarregados do controle.
No momento atual, em que a sociedade civil ainda não encontra mecanismos plenos
de mobilização no âmbito da cidadania, somente técnicos especialistas, como os que com-
põem os quadros estatais, podem canalizar as demandas sociais. Daí a inafastável busca de
integração que se espera entre os diversos tipos de controle de serviços públicos.

REFERÊNCIAS

DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Direito administrativo. 10. ed. São Paulo: Atlas, 1998.

FIGUEIREDO, Pedro Henrique Poli de. A regulação do serviço público concedido. Porto Alegre: Síntese,
1999.

VILAÇA, Marcos Vinicios. Encontro Anual de Dirigentes do Tribunal de Contas da União. Brasília (DF),
1996. (Informação verbal – palestra)
Reforma jurídica para o desenvolvimento da
governança da ordenação pública
econômica no Brasil

Carlos Ari Sundfeld


Professor titular de Direito (FGV-SP)
Presidente da Sociedade Brasileira de Direito Público

SUMÁRIO: 1 Introdução; 2 Destinatários da Lei de Governança da Ordenação Pública Econômica;


3 Sobre o conteúdo das normas e atos e sobre os processos administrativos de ordenação pública;
4 Sobre a organização, avaliação periódica e revisão das normas administrativas de ordenação; 5 Con-
siderações finais: Sobre a expropriação regulatória; Referências.

1 INTRODUÇÃO

São três as tendências que, nesta apresentação, me interessam quanto aos debates
jurídicos e políticos sobre regulação pública.
A primeira tendência, naturalmente forte no dia a dia dos profissionais jurídicos e dos
agentes administrativos, é aceitar a regulação como ela é. Ela é vista como conjunto de fatos
consumados, devendo os burocratas e advogados se ocupar de entendê-la, interpretá-la e
aplicá-la de modo fiel. O regulador, aqui, mesmo quando edita normas gerais, é basicamente
um juiz, que dirige e arbitra disputas caso a caso, sem visão e projeto muito próprios. Tal
postura envolve a aceitação da regulação como produto inevitável dos jogos de forças dos
interesses. Ela pode ser chamada de orientação pró-regulação.
A segunda tendência é inversa. Por princípio, é contrária às regulações, vistas
como incapazes de alcançar os resultados que prometem, e também desconfiada dos
reguladores, potenciais sabotadores da liberdade privada e do funcionamento normal dos
mercados. É uma tendência de economistas e políticos hiper liberais, encampada às vezes
por intérpretes jurídicos para combater a regulação por meio de interpretações restritivas
ou argumentos de inconstitucionalidade. É razoável chamá-la de orientação antirregulação
ou pró-desregulação.
A terceira tendência reconhece o valor potencial das regulações. Em contrapartida,
é bem realista quanto aos inúmeros fatores que as desviam e desatualizam. Assim, em
tentativa de composição, ela põe o foco nos instrumentos de equilíbrio e correção dos pro-
cessos regulatórios. É a orientação por trás do movimento de melhoria regulatória (better
52 Carlos Ari Sundfeld

regulation), adotado por alguns governos para estimular mudanças nas regulações setoriais.
Entre os práticos do Direito, seu efeito mais evidente é a preferência pelo uso de argumentos
de natureza processual (defesa de mais instrução processual para a validade de medidas
regulatórias, por exemplo).
A orientação pró melhoria regulatória foi bem sintetizada pelo Conselho da OCDE
(Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico), em sua Recomendação de
2012 sobre Política Regulatória e Governança, que exortou os governos a assumirem com-
promissos de alto nível com uma política explícita de qualidade regulatória, inclusive por
meio de leis gerais aplicáveis a todas as administrações do país.
A Recomendação é enfática quanto à necessidade dessa política envolver mecanis-
mos de coordenação entre os níveis supranacional, nacional e subnacional do governo, para
promover coerência regulatória, evitando a duplicação ou conflito de normas. Para tanto,
a política tem de ser capaz de identificar questões regulatórias transversais em todos os
níveis do governo, promovendo a coerência entre as abordagens regulatórias setoriais ou
descentralizadas. Além disso, considerando que os níveis subnacionais de governo são nor-
malmente mais frágeis dos pontos de vista técnico e organizacional, a política nacional de
melhoria regulatória tem de ser capaz de desenvolver a capacidade de gestão e desempenho
regulatório desses níveis.
Para a OCDE, a política nacional de melhoria regulatória deve assegurar que os be-
nefícios econômicos, sociais e ambientais justifiquem os custos da regulação, bem como
que seus efeitos distributivos sejam considerados, maximizando os benefícios líquidos. Os
reguladores devem sempre buscar formas alternativas de regulação, para identificar a melhor
entre elas. Para tudo isso, é preciso que a avaliação de impacto regulatório (AIR) se torne
uma obrigação geral dos reguladores.
Ademais, a política nacional deve incluir transparência e participação nos processos
regulatórios, garantindo que a regulação sirva ao interesse público, bem como incorporar
mecanismos e instituições que supervisionem de modo ativo os reguladores, de modo a
promover a desejada qualidade regulatória. Ademais, devem existir sistemas acessíveis e
efetivos de revisão da legalidade das normas, processos, decisões e sanções regulatórias.
A avaliação de riscos, a gestão de riscos e as estratégias de comunicação de risco
para a concepção e implementação das regulações são também importantes para garantir
que a regulação seja direcionada e efetiva.
Por fim, a política nacional de melhoria regulatória deve incluir programas sistemáti-
cos de revisão do estoque regulatório, assegurando que as normas existentes estejam atua-
lizadas, efetivas, consistentes, capazes de atingir seus fins e com custos justificados.
A recente Lei da Liberdade Econômica (Lei Federal n. 13.874, de 2019) veio da
iniciativa de uma ala política e técnica que desconfia em princípio das regulações e das
Reforma jurídica para o desenvolvimento da governança... 53

atuações públicas, acredita de modo radical nas capacidades do setor privado e, por isso,
tende à defesa do estado mínimo. Embora ao final do processo legislativo o texto da lei não
tenha espelhado essa visão por inteiro – seja em virtude dos improvisos jurídicos dos res-
ponsáveis pela iniciativa, seja pelos ajustes que o Congresso Nacional fez no texto – durante
a tramitação foi a visão radical que mais apareceu na retórica dos defensores do texto que
acabou por vingar. Como a história segue, é previsível que novas iniciativas antirregulação
surjam em curto prazo.
Na nova lei, a visão antirregulatória ficou bem evidente nos dispositivos do art. 4º
que, na tentativa de conter ao máximo as mãos dos reguladores, definiu casos de “abuso
do poder regulatório” (palavras são relevantes: “abusos de autoridade” são crimes, hoje
tratados na lei 13.869, de 2019). Tais dispositivos da nova lei são bem abertos, com retórica
ameaçadora contra as autoridades regulatórias. No art. 3º também é expressivo o emprego
de força retórica em favor do espaço privado e contra reguladores ao se enunciar uma curio-
sa – embora confusa e, por isso, talvez pouco útil – Declaração de Direitos da Liberdade
Econômica.
Nesta apresentação, é inevitável chamar atenção para o fato de que a luta da visão
antirregulatória, que gerou a Lei da Liberdade Econômica, não é apenas contra os regulado-
res e seus simpatizantes mais convictos. Em alguma medida, é também contra os defenso-
res das medidas de qualidade regulatória que, na esfera internacional, são defendidas pela
OCDE, embora a nova lei tenha buscado ou simulado alguma solução de compromisso.
É interessante o art. 5º da Lei da Liberdade Econômica que, repetindo um preceito
recém aprovado na Lei das Agências Reguladoras Federais (n. 13.848, de 2019), previu em
seu caput a realização de análises de impacto regulatório, como defendido pela OCDE, mas
no parágrafo único esvaziou totalmente a força jurídica dessa previsão, delegando ao regu-
lamento dispor sobre a “data de início da exigência ... o conteúdo, a metodologia da análise
de impacto regulatório, os quesitos mínimos a serem objeto de exame, as hipóteses em que
será obrigatória sua realização e as hipóteses em que poderá ser dispensada”.
O notável nesse art. 5º é que, ao mesmo tempo, seu caput funciona como argumento
quanto à existência de uma política brasileira (embora apenas federal) de melhoria regulatória
(ao menos quanto às AIR), mas o parágrafo único deixa espaço para as autoridades hiper
liberais – responsáveis diretas pela nova lei – usarem seu atual poder para, sem qualquer
estudo técnico, eliminar com mais facilidade as regulações que julgarem inconvenientes ou
excessivas.
A presente apresentação, cética quanto à orientação antirregulação que determinou
a feição final da Lei de Liberdade Econômica, defende a possibilidade de, sem revogá-la, ser
editada outra lei, agora sob a inspiração da orientação pró melhoria regulatória, na linha da
OCDE.
54 Carlos Ari Sundfeld

Tomo como ponto de partida os diagnósticos e as propostas de pesquisa acadêmica


que coordenei, no ano de 2018, quanto à necessidade e possibilidade de uma reforma nor-
mativa nacional em favor da efetiva implementação das finalidades públicas da regulação,
com respeito à liberdade econômica. Na ocasião, eu e meus colegas elaboramos e apresen-
tamos um anteprojeto com normas gerais de direito econômico.1 Essas propostas tiveram
eco no debate público logo no início de 2019, chamaram atenção para um possível caminho
legislativo e para alguns conceitos jurídicos importantes (o de atos de liberação, p.ex.), mas
não foram consideradas no conteúdo essencial da Lei da Liberdade Econômica, editada
posteriormente a partir da improvisada medida provisória n. 881, de 2019.
A visão que defendemos é que liberdade econômica não é incompatível com as
finalidades verdadeiramente públicas que inspiram a ordenação.2 O equilíbrio ambiental, a
coesão social, a segurança das instalações e a qualidade da infraestrutura viabilizam o exer-
cício da liberdade – o qual, portanto, depende da existência de ordenação estatal.
O problema é que são intensas as restrições sobre a liberdade econômica e sobre a
vida comum, mas ainda faltam mecanismos capazes de, em âmbito nacional e para todos os
setores, evitar ou corrigir improvisos, fracassos e inadequações da ordenação. Com isso, o
estado ordenador da vida privada vem se transformando em fator de inibição do empreende-
dorismo, da inovação, da livre competição e dos avanços de produtividade, sem contar sua
baixa eficácia na realização das finalidades públicas.3
Nesse clima, surgem conflitos, confusões e abusos em torno da atuação adminis-
trativa, os quais deveriam ser evitados – tudo isso sem contar os casos de corrupção, que
não são excepcionais. Ministérios públicos, juízes e até tribunais de contas são acionados
para fazer algum controle a respeito e, se aqui e ali conseguem corrigir problemas e aplicar
punições, em seu conjunto não ajudam muito a conter a desordem, inclusive por faltarem
parâmetros mínimos e estáveis que os balizem. E aí o voluntarismo dos controladores acaba
se somando ao dos legisladores e administradores públicos.
A meu ver, o anteprojeto que defendemos sem sucesso é, entre os documentos
disponíveis para futuras discussões legislativas, o que se afina de modo mais completo com

1
Ver: SUNDFELD, Carlos Ari et al. Lei Nacional da Liberdade Econômica – para uma reforma nacional em favor da li-
berdade econômica e das finalidades públicas da regulação. Revista de Direito Público da Economia – RDPE, Belo
Horizonte, ano 17, n. 66, p. 239-244, abr./jun. 2019. Além do coordenador, foram responsáveis pela pesquisa e
pelas propostas os profs. Eduardo Jordão (FGV-RJ), Egon Bockmann Moreira (UFPR), Floriano Azevedo Marques
Neto (USP), Gustavo Binenbojm (UERJ), Jacintho Arruda Câmara (PUC-SP), José Vicente Santos de Mendonça
(UERJ) e Marçal Justen Filho (ex-UFPR).
2
Sobre o conceito jurídico da ordenação administrativa: SUNDFELD, Carlos Ari. Direito administrativo ordenador.
São Paulo: Malheiros, 1993.
3
O Tribunal de Contas da União vem realizando trabalho de levantamento das disfunções burocráticas do estado
brasileiro que afetam a competitividade das empresas. O acordão 634/2019 – Plenário, j. 20.03.2019, contém
síntese geral a respeito, além de dados sobre disfunções na expedição de autorizações de registro de produtos e
para o funcionamento de empresas.
Reforma jurídica para o desenvolvimento da governança... 55

a Recomendação da OCDE, além de ter sido elaborado com todos os cuidados técnico-jurídi-
cos, como se deve esperar de acadêmicos experientes, bem ao contrário da referida medida
provisória. Assim, se e quando o governo brasileiro entender chegada a hora de levar a sério
por inteiro a visão da OCDE, será um documento de referência útil ao debate.
O anteprojeto tem por objeto as intervenções feitas com os poderes de autoridade
sobre as atividades que, em função do princípio da liberdade, pertencem ao setor privado.
Mas suas regras também servem, embora supletivamente (isto é, apenas para suprir even-
tuais insuficiências das leis específicas), para proteger empreendimentos privados que, em
função de outorgas estatais (por concessão ou autorização), façam a exploração econômica
de serviços públicos.
O que se propôs foi uma lei que, com breves dispositivos, impeça o exercício des-
controlado da função estatal de ordenar a vida econômica privada, evitando a ineficácia da
regulação e as capturas, além de garantir o ambiente vital para a atuação dos agentes econô-
micos, que são regidos pelo direito privado. Assim, a proposta objetiva também preservar o
espaço normativo das leis de direito civil e comercial, cuja edição é de competência privativa
da União (CF, art. 22, I), impedindo seu esvaziamento. Mas a proposta não vingou.
Logo após a promulgação da Lei da Liberdade Econômica, resgatando parte das
soluções de nossa pesquisa e proposta acadêmica, os deputados Eduardo Cury (PSDB-SP)
e Alessandro Molon (PSB-RJ) – em coerência com o ponto de vista que defenderam durante
o processo legislativo e que acabou não prevalecendo – apresentaram à Câmara dos Deputa-
dos o Projeto de Lei n. 4.888, de 2019, o qual se encontra em tramitação, para dispor sobre
a governança da ordenação pública econômica.
Esse texto alternativo é mais enxuto que nossa proposta acadêmica inicial – para não
se contrapor ao conteúdo da Lei da Liberdade Econômica, recém editada – e tem algumas
normas que, embora não tivessem sido sugeridas antes, fazem sentido no atual contexto e
estão bem alinhadas com as ideias iniciais. Sua preparação envolveu a assessoria técnica
dos deputados, altamente qualificada, além dos acadêmicos que estiveram envolvidos desde
2018 no esforço de, por meio de uma lei com normas gerais de direito econômico, alinhar
os vários níveis de governo do Brasil aos programas internacionais pró melhoria regulatória.
Tanto nosso anteprojeto acadêmico original, mais amplo, como o Projeto de Lei n.
4.888, de 2019, sucinto, inspiram-se na ideia de que a ordenação pública brasileira precisa
ser globalmente ordenada por meio de um programa nacional de melhoria regulatória per-
manente. Para isso, entre outras medidas, eles consideram importante impor e viabilizar a
avaliação e a revisão permanentes da ordenação pela própria administração pública, com
forte participação dos controles internos.
Pelo ângulo dos estímulos jurídicos, essa evolução depende da solução de uma lacu-
na: falta no Brasil uma lei nacional com o marco geral para o programa de ação que garanta
56 Carlos Ari Sundfeld

a permanente melhoria da ordenação. É juridicamente viável suprir a lacuna por meio de


normas legais de direito econômico, com efeito vinculante para a União, os Estados, o Dis-
trito Federal e os Municípios. O direito econômico inclui todas as áreas da regulação pública
(urbanística, ambiental, sanitária, dos transportes, dos frigoríficos, do ensino privado, das
instituições financeiras, dos preços dos medicamentos, dos seguros, da previdência privada
etc.) e a Constituição de 1988 deu competência à União para editar normas gerais de direito
econômico (art. 24, I e § 1º). São elas, portanto, que podem ajudar na evolução.
No contexto atual, em que já está em vigor uma problemática Lei de Liberdade Eco-
nômica, é viável ao Congresso Nacional, com base nessa competência, fazer um ajuste
de rumo, editando a Lei de Governança da Ordenação Pública Econômica, sem chocar-se
propriamente com a lei já existente.
A presente apresentação procura, assim, chamar atenção para os pressupostos que
inspiram o projeto de Lei n. 4.888, de 2019 (Lei de Governança da Ordenação Pública Eco-
nômica), bem assim defender sua aprovação como passo relevante para o desenvolvimento
da ordenação pública brasileira e para alinhá-la às diretrizes da OCDE. Para tanto, busca
expor brevemente qual pode ser, no contexto que se vive, o conteúdo de uma lei nacional de
direito econômico.
A seguir, a apresentação se divide em quatro momentos: primeiro, explica quais são
os destinatários dos preceitos do projeto; segundo, destaca os dispositivos que buscam
influir sobre o conteúdo das normas e dos atos administrativos da ordenação pública, bem
como sobre os processos administrativos; terceiro, expõe quais são as regras relativas à
organização, avaliação periódica e revisão das normas administrativas de ordenação; por
fim, trata dos dispositivos que buscam impedir a expropriação administrativa de direitos.

2 DESTINATÁRIOS DA LEI DE GOVERNANÇA DA


ORDENAÇÃO PÚBLICA ECONÔMICA

Os destinatários mais diretos da futura lei serão os órgãos, entidades e autoridades


administrativas, inclusive as autônomas ou independentes, da União, dos Estados, do Distri-
to Federal e dos Municípios com competência de ordenação sobre as atividades econômicas
e sobre outros atos da vida privada, bem como os conselhos de fiscalização de profissões
regulamentadas.
Por um lado, o projeto prevê para eles o dever de observar normas gerais cujo obje-
tivo é modular a ordenação segundo diretrizes mais modernas; por outro lado, impõe o dever
de implantar programas de avaliação e revisão das normas.
Em coerência com a ideia de boa governança, o projeto exige que esses órgãos e
entidades estabeleçam, mantenham, monitorem e aprimorem sistema de gestão de riscos
Reforma jurídica para o desenvolvimento da governança... 57

institucionais e controles internos com vistas à identificação, à avaliação, ao tratamento, ao


monitoramento e à análise crítica de práticas que possam impactar o cumprimento de sua
missão e a observância da lei.
Em paralelo, para viabilizar materialmente o cumprimento desses deveres, o projeto
autoriza que, em todas as etapas e providências de quaisquer processos ou procedimentos
administrativos de ordenação, tais órgãos e entidades contem com apoio externo, operacio-
nal ou técnico, de entidades, empresas ou profissionais, por eles contratados segundo os
critérios da especialização, integridade, independência e confiança, devendo os atos decisó-
rios finais dos processos e procedimentos ser examinados e editados internamente.
O segundo grupo de destinatários públicos das normas gerais do projeto de lei são
os Chefes dos Poderes Executivos da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municí-
pios, para quem é prevista a competência de, por decreto, para cada ente federativo: definir
metas para a redução da quantidade e dos custos da ordenação pública; uniformizar critérios
para a organização por temas do estoque acumulado de regulamentos, atos e orientações
práticas de nível infralegal; orientar os processos de consulta pública, de definição da agenda
de revisão e de avaliação da eficácia e do impacto; e, ainda, assegurar o funcionamento do
sistema de gestão de riscos institucionais e controles internos.
Em conexão com essa competência das chefias do Executivo, com o objetivo de
garantir o respeito das metas e demais deveres pelos órgãos e entidades destinatários, o
projeto prevê que, em cada ente da Federação, órgão designado por lei ou decreto observará
a execução da Lei de Governança da Ordenação Pública Econômica e realizará consultas
públicas periódicas a respeito, submetendo ao Chefe do Executivo seu relatório de avaliação,
com propostas de correção ou melhoria.
O terceiro grupo de destinatários do projeto de lei são os particulares cujos direitos
individuais estejam envolvidos na ordenação pública, bem assim os entes privados (associa-
ções representativas) e os órgãos públicos (Ministérios Públicos) legitimados para a defesa
coletiva e difusa de direitos nesse campo.
Quanto a isso, o projeto prevê como direitos de natureza individual, coletiva ou difusa
em relação à ordenação pública: requerer e obter informação e orientação adequada e clara
quanto aos deveres e condicionamentos públicos a que estão sujeitas as atividades econô-
micas e outros atos da vida privada; obter em prazo razoável decisão clara e exaustiva quanto
aos requisitos para o deferimento de pleito negado por decisão administrativa ou judicial an-
terior; buscar proteção contra as medidas de ordenação pública inválidas, bem como contra
os métodos coercitivos ilegais ou desleais e outras práticas irregulares das autoridades; e
ter acesso aos órgãos administrativos e judiciários para prevenção ou reparação de danos
patrimoniais individuais, coletivos ou difusos causados pela violação dos direitos.
58 Carlos Ari Sundfeld

Além disso, o projeto prevê a inclusão, no artigo 1º da Lei da Ação Civil Pública (Lei
7.347, de 1985), de nova hipótese de cabimento dessa ação, agora para contemplar os da-
nos morais e patrimoniais causados à livre organização ou ao exercício da cidadania, da vida
civil ou de atividade econômica privada, por interferência, oneração ou barreira burocrática
ilegal ou abusiva, bem como por expropriação administrativa ilegal ou abusiva de direitos.
Assim, viabiliza-se o uso das ações civis públicas como meio de obrigar as autoridades de
ordenação a cumprirem o que dispuser a Lei de Governança da Ordenação Pública Econômi-
ca, assegurando a efetividade do programa nacional de melhoria regulatória.

3 SOBRE O CONTEÚDO DAS NORMAS E ATOS E SOBRE


OS PROCESSOS ADMINISTRATIVOS DE
ORDENAÇÃO PÚBLICA

Para influir no conteúdo das normas administrativas de ordenação, o projeto da Lei


de Governança da Ordenação Pública Econômica prevê quatro deveres básicos para os ór-
gãos e entidades por elas responsáveis.
O primeiro é adotar processos decisórios orientados pela conformidade legal, pela
desburocratização e pela indicação de evidências suficientes quanto à necessidade e ade-
quação das decisões.
O segundo dever é modular as exigências feitas aos administrados segundo a capa-
cidade real de as autoridades públicas tomarem, de modo tempestivo e fundamentado, as
providências respectivas a seu cargo.
O terceiro é, em função da experiência e das pesquisas disponíveis, classificar as
atividades privadas em níveis crescentes de risco, levando em consideração a probabilidade
estatística de incidentes, de danos e de outros efeitos negativos, para assim definir e graduar:
a imposição de deveres e condicionamentos públicos; a preferência pela autorregulação;
as políticas de liberalização; os programas e métodos de fiscalização; e as alternativas de
aplicação, dosimetria, dispensa e substituição de sanções administrativas.
O quarto dever é editar, como condição prévia da atividade fiscalizatória, normas
com parâmetros objetivos para identificar as infrações e para preveni-las, bem como para
orientar sua repressão.
Importante destacar, por fim, outro dispositivo, este ligado aos processos adminis-
trativos. Segundo o projeto, os estados, o Distrito Federal e os municípios, quando exercerem
competências administrativas de ordenação mas não tiverem normas legais próprias sufi-
cientes, deverão observarão as Leis Federais n. 9.784, de 1999 (Lei de Processo Adminis-
trativo da Administração Pública Federal) e n. 9.873, de 1999 (Lei dos Prazos de Prescrição
da Ação Punitiva da Administração Pública Federal).
Reforma jurídica para o desenvolvimento da governança... 59

4 SOBRE A ORGANIZAÇÃO, AVALIAÇÃO PERIÓDICA E


REVISÃO DAS NORMAS ADMINISTRATIVAS
DE ORDENAÇÃO

No Brasil, existem centenas de milhares de leis e regulamentos administrativos fede-


rais, estaduais, distritais e municipais com intervenções públicas das mais variadas espécies
nas atividades econômicas. Órgãos, agências e conselhos de fiscalização profissional se
multiplicam, exercendo competências administrativas de ordenação: editar regulamentos,
exigir licenças e autorizações, fazer fiscalizações, instaurar processos administrativos san-
cionadores, aplicar sanções, etc. Mas a eficácia global desse grande sistema não é avaliada
– e, muitas vezes, os resultados são ruins ou pelo menos duvidosos.
A lacuna principal do sistema é que as medidas de ordenação das atividades econô-
micas não passam por avaliações técnicas sistemáticas periódicas quanto à sua eficácia e
custos, com participação dos afetados e beneficiados, como devia ser, de modo a dar base
para sua revisão, quando necessário.
Para o projeto de Lei de Governança da Ordenação Pública Econômica, o caminho
da evolução é fazer a cultura da avaliação tomar o estado ordenador por inteiro, em todos os
níveis da Federação. As autoridades administrativas de ordenação devem ter o ônus jurídico
da prova periódica de que suas intervenções fazem sentido e funcionam.
As múltiplas ordenações estatais sobre a vida privada não devem ser aceitas como
dados naturais ou como desejáveis por princípio, tampouco podem se prolongar por simples
inércia. Em si, bons propósitos regulatórios são inúteis. O que vale é a capacidade de realizar
fins públicos, ao menor custo para a sociedade.
Em coerência com essas premissas, o projeto da Lei de Governança da Ordenação
Pública Econômica prevê três deveres básicos para os órgãos e entidades administrativas
responsáveis pela edição e aplicação de normas administrativas de ordenação.
O primeiro é o dever de manter o estoque acumulado de regulamentos, atos e orien-
tações práticas de nível infralegal organizado por temas, com a indicação expressa dos
vigentes para cada tema.
O segundo é o dever de fazer a revisão constante das normas de ordenação pública
para reduzir sua quantidade e os custos para os administrados e para a sociedade, sem
prejuízo às finalidades públicas.
O terceiro dever é fazer avaliações periódicas da eficácia, do impacto e da atualidade
de todas as medidas de ordenação pública e, quando for o caso, sua revisão.
Assim, quanto ao tópico que aqui interessa o objetivo do projeto da Lei de Governan-
ça da Ordenação Pública Econômica é, para proteger a liberdade e as finalidades públicas,
criar instrumentos para as medidas estatais de intervenção serem metódica e efetivamente
60 Carlos Ari Sundfeld

avaliadas, questionadas, corrigidas e, quando inadequadas, substituídas ou eliminadas. São


instrumentos para assegurar que toda ordenação estatal da vida privada seja considerada
sempre como experimental e provisória. O projeto acompanha a tendência internacional de
criação ou reforço da obrigação de avaliação de medidas regulatórias, no contexto de pro-
gramas de melhoria regulatória.4
O projeto cria um programa de revisão geral da ordenação pública, de âmbito na-
cional, para viabilizar a permanente prevenção e eliminação de problemas de eficácia, bem
como das ineficiências, desvios e excessos estatais.
Impõe-se aos administradores públicos o dever de implementar amplo programa de
compilação e de revisão das exigências regulatórias hoje existentes. O objetivo é dar clare-
za à ordenação existente, além de diminuir a quantidade e os custos da ordenação para a
sociedade ou para os agentes econômicos e também eliminar excessos cristalizados, sem
prejuízo da proteção das finalidades públicas. O programa de revisão terá caráter perma-
nente, com o engajamento não só dos órgãos setoriais, mas também dos Chefes do Poder
Executivo e dos órgãos centrais da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios.
Portanto, o projeto, além de trazer, ao Direito brasileiro como um todo, conceitos
jurídicos consistentes para balizar as relações entre o poder público ordenador e a iniciativa
econômica privada, concebeu um programa paulatino, porém constante, para a revisão re-
gulatória em todas as unidades do estado brasileiro.
O projeto foi construído tendo como pressuposto a temporariedade das leis de inter-
venção. Em virtude do regime constitucional da liberdade econômica este é um valor essen-
cial, que vem sendo comprometido no Brasil, distorcendo nossa organização econômica. É
hora de defendê-lo nacionalmente.

5 CONSIDERAÇÕES FINAIS: SOBRE A EXPROPRIAÇÃO


REGULATÓRIA

O projeto de Lei de Governança da Ordenação Pública Econômica também procurou


dispor sobre tema que, embora relevante para balizar a ordenação pública e proteger direitos
patrimoniais, não mereceu até hoje tratamento legislativo geral: o fenômeno que, por influên-
cia norte-americana, hoje se vem denominando como expropriação regulatória.
Os publicistas brasileiros sempre trataram dele, mas sob as rubricas “sacrifício de
direito” (usada entre os europeus) ou “servidão administrativa” (usada entre nós sobretudo
em questões sobre propriedade imobiliária, como contraposição a “limitação administrati-

4
Para uma análise a experiência norte-americana com os programas de revisão voltados à melhoria da qualidade
regulatória, ver: HAHN, Robert W.; SUNSTEIN, Cass R. A new executive order for improving federal regulation?
Deeper and wider cost-benefit analysis. John M. Olin Program in Law & Economics Working Paper, n. 150, 2002.
Reforma jurídica para o desenvolvimento da governança... 61

va”). Examinei os problemas ligados a procedimento e consequências da expropriação regu-


latória no artigo acadêmico denominado Revisão da Desapropriação no Brasil.5 Já quanto à
distinção entre, por um lado, os condicionamentos ou limitações administrativos (isto é, as
regulações não expropriatórias) e, por outro, os sacrifícios de direito (isto é, as regulações
expropriatórias), as discuti em meu artigo Condicionamentos e Sacrifícios de Direito.6
No projeto de Lei de Governança da Ordenação Pública Econômica, a primeira previ-
são importante sobre o tema é que o exercício de competências públicas de ordenação sobre
atividades econômicas ou sobre as propriedades privadas não poderá levar, de modo direto
ou indireto, à expropriação administrativa unilateral de direitos.
Para dar conteúdo a essa proibição, o projeto define como expropriatórias as medidas
de ordenação que, por suas características e abrangência, dificultem a ponto de inviabilizar
o exercício de direito patrimonial constituído ou que retirem parcela substancial de seu valor.
Mas nem toda medida restritiva de ordenação está abrangida nesse conceito e regi-
me. O projeto excetua a medida cujos efeitos restritivos possam ser compensados, de modo
imediato e suficiente, por formas alternativas de exercício do direito atingido, nos termos da
legislação aplicável.
Em coerência com essas disposições, o projeto estabelece que dependerá de desa-
propriação, com prévia declaração de utilidade pública ou interesse social, nos termos da
legislação específica – e, portanto, de indenização prévia, justa e em dinheiro – a eficácia
individual das medidas de ordenação que tenham caráter expropriatório, isto é, que dificultem
a ponto de inviabilizar o exercício de direito patrimonial constituído ou que retirem parcela
substancial de seu valor.7

REFERÊNCIAS

HAHN, Robert W.; SUNSTEIN, Cass R. A new executive order for improving federal regulation? Deeper
and wider cost-benefit analysis. John M. Olin Program in Law & Economics Working Paper, n. 150,
2002.

5
SUNDFELD, Carlos Ari. Revisão da desapropriação no Brasil. Revista de Direito Administrativo, Rio de Janeiro, v.
192, p. 38-48, 1993. Disponível em: http://bibliotecadigital.fgv.br/ojs/index.php/rda/issue/view/2425. Acesso em:
7 dez. 2019.
6
SUNDFELD, Carlos Ari. Condicionamentos e sacrifícios de direito. Revista Trimestral de Direito Público, São Paulo,
v. 4, p. 78-83, 1993.
7
Para uma explicação detalhada dessa proposta legislativa sobre as expropriações regulatórias, ver a palestra do
Gustavo Binenbojm: PROPOSTA para a Lei Nacional da Liberdade Econômica, 11.04.2019. [S.l.: S.n], 2019. 1
vídeo (34m50s). Publicado pelo canal SBDP Oficial. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=Cm-
QUUfp4lYE&list=UUAn-BqY-CsYRMA60O9Xx8dg&index=5&t=0s. Acesso em: 30 jun. 2020.
62 Carlos Ari Sundfeld

PROPOSTA para a Lei Nacional da Liberdade Econômica, 11.04.2019. [S.l.: S.n], 2019. 1 vídeo
(34m50s). Publicado pelo canal SBDP Oficial. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=-
CmQUUfp4lYE&list=UUAn-BqY-CsYRMA60O9Xx8dg&index=5&t=0s. Acesso em: 30 jun. 2020.

SUNDFELD, Carlos Ari et al. Lei Nacional da Liberdade Econômica – para uma reforma nacional em
favor da liberdade econômica e das finalidades públicas da regulação. Revista de Direito Público da
Economia – RDPE, Belo Horizonte, ano 17, n. 66, p. 239-244, abr./jun. 2019.

SUNDFELD, Carlos Ari. Revisão da desapropriação no Brasil. Revista de Direito Administrativo, Rio de
Janeiro, v. 192, p. 38-48, 1993. Disponível em: http://bibliotecadigital.fgv.br/ojs/index.php/rda/issue/
view/2425. Acesso em: 7 dez. 2019.   

SUNDFELD, Carlos Ari. Direito Administrativo Ordenador. São Paulo: Malheiros, 1993.

SUNDFELD, Carlos Ari. Condicionamentos e sacrifícios de direito. Revista Trimestral de Direito Público,
São Paulo, v. 4, p. 78-83, 1993.
A complexidade do poder regulamentar via
decretos: dos limites normativos ao possível
déficit democrático

Caroline Müller Bitencourt


Pós-doutora em Direito (PUCPR)
Doutora em Direito (Unisc)
Professora do Programa de Pós-Graduação,
Mestrado e Doutorado em Direito (Unisc)

Janriê Reck
Doutor em Direito (Unisinos)
Professor do Programa de Pós-Graduação,
Mestrado e Doutorado em Direito (Unisc)
Procurador federal

SUMÁRIO: 1 Introdução. 2 A atuação legislativa do Chefe do Poder Executivo a partir da figura do


decreto no direito brasileiro; 3 Os limites e as possibilidades de controle do decreto regulamentar: uma
questão não tão simples assim; 4 Considerações finais; Referências.

1 INTRODUÇÃO

A pergunta sobre o significado do decreto está na ponta da língua de qualquer ope-


rador jurídico, de estudantes de direito e mesmo de cidadãos mais bem informados: trata-se
de um ato do poder executivo que regulamenta uma lei. Regulamentar a lei significa que o
conteúdo do decreto versará sobre as minúcias que não cabe à lei detalhar, no sentido de
melhor aplicação desta. Um simples esforço de reflexão levará à falta de respostas, posto
que este conhecimento superficial do senso comum nem de longe responde perguntas como
“qual a situação hermenêutica do criador do decreto?”; “decreto é uma “aplicação” da lei?”,
“é possível dizer que o Decreto n. X regulamentou “mal” a Lei n. Y?”.
O decreto envolve uma alta complexidade no direito brasileiro, tanto sob a perspec-
tiva dos limites de sua atuação, quanto sobre o debate acerca da sempre polêmica atuação
legislativa do Poder Executivo e os possíveis déficits democráticos que poderá ocasionar,
final, impossível não lembrar que os decretos (então figura do Decreto-lei) foram utilizados
em abundância pela ditadura militar no período antidemocrática da história brasileira.
64 Caroline Müller Bitencourt | Janriê Reck

A principal questão é: que problema o decreto visa resolver, ou seja, qual a sua
função? Há diferentes funções a depender do tipo de decreto? Esta pergunta não pode ser
respondida a partir de alguma lógica, senão a da evolução do próprio Direito e da política. De
fato, como não poderia deixar de ser, o decreto não é, de longe, uma exigência lógica, mas
sim fruto de uma evolução histórica visando responder certos problemas. Assim como a
palavra “decreto” carrega toda sua tradição histórica, especialmente quanto a sua aplicação
no direito brasileiro.
Assim, o decreto enquanto ato normativo do Poder Público, neste trabalho será ob-
servado a partir da sua atuação pelo Poder Executivo, por tal razão, serão abordados os
chamados decretos regulamentares e também os decretos autônomos. Importante que se
diga, que no âmbito de sua atuação, será imprescindível que se compreenda suas diferentes
formas de controle, a partir também do estabelecimento dos limites de atuação em cada
espécie normativa.
Outro ponto sensível a esse estudo é justamente o debate democrático, afinal, tam-
bém, a tradição revela que é no Poder Legislativo que os cidadãos exercem sua autonomia
de autoconvencimento, transformando programas políticos de vinculação da sociedade na
linguagem do Direito e, procurando, com isto, dar-lhes uma estabilidade momentânea, até
serem substituídos por outro programa.1 O Poder Executivo é lócus de execução da lei e,
como tal, deriva sua legitimação das leis – estas sim legítimas porque fruto da autonomia do
cidadão. Daí a razão pela qual não se legitima a atividade do Executivo, apenas a pessoa de
seu comandante. A legitimação das atividades do Executivo é, deste modo, indireta.

2 A ATUAÇÃO LEGISLATIVA DO CHEFE DO PODER


EXECUTIVO A PARTIR DA FIGURA DO DECRETO
NO DIREITO BRASILEIRO

A figura do decreto, seja autônomo ou mesmo regulamentar, costuma ser defini-


da como um ato normativa de incumbência do chefe do Poder Executivo, diferenciando-se
quanto a sua classificação como um ato normativo primário2 ou um ato normativo secundá-

1
Note-se que o decreto regulamentar evidentemente não está nos atos normativos albergados no art. 59 da Consti-
tuição Federal e, por tal razão, não integra as fases do processe legislativo. Sobre as frases do processo legislativo
no Brasil ver em: GONÇALVES, Fernando Bernardo. O processo legislativo na Constituição de 1988. In: CLÈVE,
Clèmerson Merlin (Org.). Direito constitucional brasileiro. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2014. p. 381.
2
É um típico ato normativo primário a Lei ordinária, a qual se submete ao processo legislativo em todas as suas fa-
ses. Como regra geral, edita normas genéricas e abstratas que decorrem da Constituição, como “fruto da decisão
de um órgão do Estado de instaurar direito novo”. FERREIRA FILHO, Manoel Gonçalves. Processo legislativo. 7.
ed. São Paulo: Saraiva, 2012. p. 226.
A complexidade do poder regulamentar via decretos 65

rio.3 Evidente que apesar da abordagem ser jurídica, há que se refletir acerca do papel e de
sua função sob a lógica e observação política também da figura do decreto.
O fundamento de validade do decreto normativo, como não poderia deixar de ser,
encontra respaldo constitucional no art. 84, IV.4
A tradição, no direito brasileiro, sempre fora a de que os decretos normativos só
poderiam ser os decretos executivos, isto é, aqueles referidos na parte final do inciso IV
do art. 84: “para sua fiel execução” [da lei]. A Emenda Constitucional n. 32, cuja intenção
declarada fora desburocratizar a Administração Pública, reviveu os decretos autônomos, isto
é, decretos que podem criar ou extinguir direitos (no caso, organização da Administração
Pública, e extinção de funções e cargos públicos, quando vagos). Tal figura embora muito
interessante, especialmente por ser considerada na jurisprudência do Supremo Tribunal Fe-
deral um ato normativo primário, portanto, passível de ação direta de inconstitucionalidade,
não será objeto de análise nesse trabalho
Se questionado em que consiste a figura do regulamento, a dogmática jurídica res-
ponderia prontamente: “Regulamento é a norma jurídica de caráter geral, editada pela au-
toridade administrativa, em matéria de sua competência, conferida pela lei formal, com o
objetivo de facilitar-lhe a aplicação”.5 Ou seja, note-se que a primeira referência básica, é
justamente observar os limites desse poder regulamentar atrelado a fiel execução da lei,
afinal, o primeiro problema que o decreto terá de enfrentar é o problema da aplicação.
Observado pela perspectiva democrática, observa-se que a margem de atuação po-
lítica, por mais que em tese seja menor, afinal a sua atuação criativa já estaria limitada por
outro ato normativo, no caso, a Lei, também é verdade que o decreto afasta a caracterização
da construção legislativa em sua faceta mais democráticas, aberta a debates e interlocuções
com a esfera pública, haja vista sua caracterização se dar de forma bastante unilateral.6

3
Importa já referir que esses são atos que derivam imediatamente dos atos primários (ex: Lei), de quem dependerá
sua validade jurídica, em uma perspectiva de legalidade. Para Ferreira Filho: “Também neste nível cabe distinção
entre atos gerais – dos quais os regulamentos são o melhor exemplo e particulares (individuais) de que são típi-
cos atos de aplicação de normas gerais, a determinados indivíduos, pessoalmente indicados. FERREIRA FILHO,
Manoel Gonçalves. Processo legislativo. Op. cit., p. 225-226.
4
Art. 84. Compete privativamente ao Presidente da República: IV - sancionar, promulgar e fazer publicar as leis,
bem como expedir decretos e regulamentos para sua fiel execução; a) organização e funcionamento da adminis-
tração federal, quando não implicar aumento de despesa nem criação ou extinção de órgãos públicos; b) extinção
de funções ou cargos públicos, quando vagos.
5
CRETELLA JÚNIOR, José. Curso de direito administrativo. 16. ed. Forense: Rio de Janeiro, 1999. p. 238.
6
[...] opostamente às leis, os regulamentos são elaborados em gabinetes fechados, sem publicidade alguma, liber-
tos de qualquer fiscalização ou controle da sociedade ou mesmo dos segmentos sociais interessados na matéria.
Sua produção se faz apenas em função da vontade, isto é, da diretriz estabelecida por uma pessoa, o Chefe do
Poder Executivo, sendo composto por um ou poucos auxiliares diretos seus ou de seus imediatos. Não necessita
passar, portanto, nem pelo embate de tendências políticas e ideológicas diferentes, nem mesmo pelo crivo técnico
de uma pluralidade de pessoas instrumentadas por formação ou preparo profissional variado ou comprometido
com orientações técnicas ou científicos discrepantes. Sobremais, irrompe da noite para o dia, e assim também
pode ser alterado ou suprimido. MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Curso de direito administrativo. 12. ed. São
Paulo: Malheiros, 2000. p. 321.
66 Caroline Müller Bitencourt | Janriê Reck

Não é possível comparar-se a legitimação alcançada pelos processos de formação


da lei e do decreto, por mais defeituoso que seja o primeiro e virtuoso que seja o segundo:
o déficit de legitimidade é insuportável. Daí que a ideia, aferrada, com razão, na dogmática,
de que o regulamento deve ater-se à lei. A ideia de que a autonomia se expressa em leis do
legislativo, e que determinadas conquistas evolutivas, nesta linha, devam ser preservadas,7
fundamentam também conceitos fundamentais, quais sejam, o de Princípio da Legalidade8 e
Estado Democrático. Ambos são conquistas evolutivas que se tornaram estruturas e progra-
mas fundamentais do Direito, quase que se tornando símbolos deste.
Aqui a abordagem evidentemente é política, no sistema de formação das leis no direi-
to brasileiro há uma seria de freios e contrapesos no seu processo de formação, sujeitando-
-se a revisões pelas casas legislativas no caso federal, bem como a análise das comissões
e posteriormente a veto e sanção por parte do Executivo. Mesmo a necessidade de ter de
expor as razões do projeto e mesmo a defesa em caso de argumentos contrários durante as
deliberações legislativas, tende a enriquecer sua construção também na perspectiva da sua
fundamentação e legitimidade democrática. Assim, sob o manto da legalidade, é preciso que
o Poder regulamentar do Executivo, mantem-se como “o ato estritamente subordinado, isto
é, meramente subalterno e, ademais, dependente de lei. [...] Daí que, em nosso sistema, de
direito, a função do regulamento é muito modesta.9
Sabe-se que na tradição do uso de decreto no direito brasileiro, nem sempre foi
assim, basta lembrar da figura dos Decretos-leis. Tal figura amplamente utilizada na história
brasileira em períodos antidemocráticos, marcados pelas Constituições especialmente de
1937 e de 1967. Mais, a ideia de que o Executivo apenas pode regulamentar a lei reside
na conquista evolutiva, plenamente fundamentável, do Estado Democrático de Direito. Por
essa razão, na atual conjuntura pós Constituição de 1988, a atuação do Poder Executivo na
formação dos decretos regulamentares deve estar inserida no contexto da legalidade e da
democracia, “ isso que explica o facto de, na actualidade, não se conceberem regulamentos
independentes que, pelo menos, não tenham fundamento legal no que respeita à matéria a
regular”.10

7
BINENBOJM, Gustavo. O sentido da vinculação administrativa à juridicidade no Direito brasileiro. In: ARAGÃO,
Alexandre S. de; MARQUES NETO, Floriano de A. (Coords.). Direito administrativo e seus novos paradigmas. Belo
Horizonte: Fórum, 2009.
8
Evidente que aqui o conceito de legalidade não deve ser apenas observado pela sua simples vinculação com a lei,
nas lições de Aragão é necessário se ter presente em que medida acontece essa vinculação. ARAGÃO, Alexandre
S. de. A concepção pós-positivista do princípio da legalidade. Revista de Direito Administrativo, Rio de Janeiro, v.
236, p. 51-64, abr./jun. 2004. Embora o tema da vinculação e discricionariedade seja bastante relevante, não será
objeto central desse trabalho no tocante as possibilidades de controle do abuso do poder de regulamentar.
9
MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Curso de direito administrativo. Op. cit., p. 296.
10
CANOTILHO, Joaquim José Gomes. Direito constitucional e Teoria da Constituição. 4. ed. Coimbra: Almedina,
2000. p. 716.
A complexidade do poder regulamentar via decretos 67

Até aqui, pode-se concluir, rasteiramente, que faz parte da compreensão do atual
Estado Democrático de Direito a ideia de que a criação da norma é um, ou pelo menos, uma
tentativa, de um exercício da autonomia. Mal ou bem, isto é feito dentro do âmbito onde de-
bates são levados a efeito, o Poder Legislativo. Não pode o Poder Executivo criar leis, posto
que não é o foro competente – afinal, dentro do Poder Executivo, pelo menos dentro da atual
organização, não há debates plurais no que toca à elaboração do decreto.
Não é necessário muito dissertar acerca das dificuldades de se criar normas sufi-
cientemente “precisas” no Poder Legislativo. Além de uma empreitada impossível, a vagueza
normativa é parte do jogo político. Além disto, estratégia para prolongar a vida das normas.
Somam-se estes fatores com a necessidade de ação por parte dos poderes públicos e a
consagração da legalidade “genérica”,11 além de um progressivo incremento da atividade
administrativa, e tem-se como resultado um amplo espaço aberto para a “regulamentação”.
Trata-se de uma necessidade histórica e funcional: pelo menos dentro do Direito Adminis-
trativo, é praticamente impossível concretizar políticas públicas e demais programas sem os
procedimentos12 de sua materialização:

Regulamentação – Trata-se do poder de regulamentar (power of ordinance do direito


constitucional inglês); no Brasil, tal poder dissimula, por vezes, a delegação legislati-
va, vedada pelo art.36, § 2º. A Constituição francesa do ano VIII, art. 44, estatuiu que
o governo proporia as leis e faria os regulamentos necessários para lhes assegurar a
execução. Nela foi que se inspirou, nesse ponto, a Constituição imperial do Brasil. A
Constituição da República Argentina (art. 86, § 2º) ao tratar do assunto, recomendara
ao Presidente da república ter o cuidado de “não alterar o espírito” das leis regulamen-
tadas “com exceções regulamentares”.13

Aos poucos, a diferenciação entre poderes torna-se tal, e a atividade de regulamen-


tação, tão consagrada, que a atividade regulamentar configura-se como uma “prerrogativa”
do Poder Executivo, inviável de ser atacada pelos outros poderes. A crescente complexidade
da atuação dos poderes governamentais torna transparente uma visível maior quantidade de
atos do Poder Executivo, atos de cunho “geral”, e não “material”, assim “pode ser definido
como o que cabe ao Chefe do Poder Executivo da União, dos Estados e dos Municípios, de
editar normas complementares à lei, para sua fiel execução”.14

11
Isto é, a ideia de que os poderes públicos devem pautar por normas pré-estabelecidas, não necessariamente
“Leis”.
12
Tomados aqui no sentido de sucessão de atos.
13
MIRANDA, Francisco Cavalcanti Pontes de. Comentários à Constituição de 1946. VII. 2. ed. São Paulo: Max
Limonad, 1953. p. 411.
14
DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Direito administrativo. 19. ed. São Paulo: Atlas, 2006. p. 102.
68 Caroline Müller Bitencourt | Janriê Reck

Talvez seja temerário afirmar que houve uma tendência, ou que esta tendência se
mantém, de transferência da atividade de legislar do Poder Legislativo ao Executivo. É visível
que na maior parte dos países, senão na totalidade, há incremento tanto na produção de
“leis” quanto de “regulamentos”, pelo menos do século XIX em diante. De todo modo, é ver-
dade que há uma maior produção normativa executiva e uma crescente realocação das ten-
sões jurídicas em direção ao Poder Executivo, no que talvez adquira alguma proeminência.
É curioso, posto que a autocompreensão do Estado Democrático de Direito imputa ao Poder
Executivo a tarefa de executar materialmente as normas. Contudo, isso não é tão simples.
Daí a existência da atividade de regulamentação e sua incorporação na tradição dogmática,
como essencial a regular atividade jurídica.15
Tanto é assim que o Decreto é prontamente posto no sistema piramidal, adquirindo
validade da norma superior.16
A atividade regulamentar, deste modo, é posta junto a uma atividade legislativa latu
sensu do Poder Executivo, e é justificada no sistema de freios e contrapesos. O Poder Exe-
cutivo assume a tarefa de editar normas gerais. Pode fazê-lo tanto originariamente (o que
a tradição dogmática chama de “regulamentos autônomos”) quanto de maneira derivada,
regulamentar. O Poder Executivo opera, portanto, em uma lógica semelhante à do Poder
Legislativo, o Poder Executivo não faz nada imediatamente;17 põe, de outra banda, programas
que serão seguidos. O Poder Executivo não age motivado também por um “caso” específico:
os fatos relevantes são a edição de uma lei, seu dever normativo de regulamentar e os fatos
que motivaram a referida a lei a regulamentar.

15
CARRAZZA, Roque Antônio. O regulamento no Direito brasileiro. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1981. p. 115:
“A faculdade de regulamentar provém de um poder próprio da Administração Pública”
16
CRETELLA JÚNIOR, José. Curso de direito administrativo. Op. cit., p. 239: “Na hierarquia das normas, represen-
tam os regulamentos o grau mais alto na esfera administrativa, logo abaixo das normas legais, sendo a comple-
mentação destas. Pelo nosso sistema constitucional, são os regulamentos aprovados por decreto executivo e a
sua amplitude só encontra limites nos textos legais regulamentados”.
17
Uma abordagem simplista e não complexa da atividade de regulamentar pode conduzir a sua real dimensão de
interpretação e aplicação do direito: “Nesse sentido, a Administração seria mera executora de decisões tomadas
de modo completo pelo legislador, restando-lhe pouco ou nada a acrescentar, na medida em que a inovação
por regulamento lhe é vedada. Esse posicionamento parece-nos, se não inteiramente equivocado, ao menos
insuficiente. Seja porque nem o art. 5º, II, CF traduz o princípio da legalidade em sua completude, nem o poder
regulamentar se encerra na dicção do inciso IV, art. 84, CF; seja por não levar em conta as modificações sociais e
técnicas que vêm produzindo uma sociedade cada vez mais plural e complexa, insuscetível de ser normatizada de
forma ampla e exclusiva pela lei formal aprovada pelo Parlamento”. DEÁK, Renato Albuquerque; NOBRE JUNIOR,
Edilson Pereira. O princípio da legalidade e os limites do poder regulamentar. Revista acadêmica da Faculdade de
Direito do Recife, v. 89, n. 1, p. 144-166, jan./jun. 2017. Disponível em: bibliotecadigital.fgv.br › ojs › index.php ›
rda › article › viewFile. Acesso em: 30 nov. 2019.
A complexidade do poder regulamentar via decretos 69

Materialmente, o regulamento se assemelha à lei, pois, como ela, está voltado a uma
série indeterminada de situações ou pessoas. Dela, entretanto, se afasta pelo regime
jurídico que o rege, já que, como repetidas vezes acentuaremos, está hierarquicamen-
te submetido à lei18.

Todas as perplexidades que envolvem o Poder Legislativo (como é possível leis “ge-
rais”?) acorrem também ao Poder Executivo. Não se pode, idealisticamente, fechar os olhos
para a realidade: a despeito das dificuldades, o Poder Executivo entende a lei, regulamenta-a,
os servidores compreendem a lei e o decreto, e agem conforme estes. Fechar os olhos a
esta realidade é fechar-se em um mundo que se pretende crítico, mas que na realidade é
meramente uma manifestação de chauvinismo intelectual, tantas vezes inspirador de um
ceticismo artificial, noves fora o seu terrível ônus de prova: teriam de provar que as pessoas
“imaginam” que compreendem o decreto e a lei.
A atividade legislativa19 do Executivo, no Brasil, manifesta-se através de Medidas
Provisórias, Leis Delegadas e Decretos Regulamentares, mas também desde a edição. Os
dois primeiros veículos estão inseridos dentro da Constituição como espécies legislativas, e,
salvo restrições constitucionais, podem criar direitos e obrigações livremente. Para os fins
deste trabalho, contudo, essa temática não interessa. Interessa, isto sim, a figura “decreto”.
O decreto é um tipo de ato, formal, advindo do Poder Executivo.20 Geralmente é
observado mais da perspectiva do Direito Administrativo que do Direito Constitucional.
Assim, os juristas, se instados a responder qual a “natureza jurídica” do decreto, prova-
velmente a maior parte responderá que se trata de um ato administrativo, e não de uma
espécie legislativa.
Os decretos podem ser “gerais” ou “particulares” (materiais). No caso do decreto
particular, assume uma forma do tipo “Nomeie-se Maria para o Conselho tal” ou “Exonere-se
José”. Trata-se aqui meramente de manifestações do Poder hierárquico ou disciplinar da
Administração Pública. Não é também este o tipo de decreto a preocupação do trabalho.
Interessa a manifestação do Poder Normativo.
Nesta toada, o Direito cria um problema que ele tem de responder. O decreto parece
ser uma categoria fundamental para dar conta das demandas da política e da administração.
Mas esta solução cria uma série de outros problemas. O principal deles é o da vinculação
do decreto executivo à lei21. Isto será deixado para mais adiante. Estas questões serão mera-
mente exploratórias, para deixar clara a dimensão da problemática.

18
CARRAZZA, Roque Antônio. O regulamento no Direito brasileiro. Op. cit., p. 8.
19
“Legislativa” aqui tomada não no sentido técnico-jurídico, mas sim no de oposição aquele de atos concretos.
20
Existe também a figura do “Decreto Legislativo”, que não vem ao caso neste trabalho.
21
Para Meirelles que, “sendo o regulamento, na hierarquia das normas, ato inferior à lei, não a pode contrariar, nem
restringir ou ampliar suas disposições. Só lhe cabe explicitar, a lei, dentro dos limites por ela traçados.”. MEIREL-
LES, Hely Lopes. Direito administrativo brasileiro. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1991. p. 108.
70 Caroline Müller Bitencourt | Janriê Reck

A primeira questão é: para quem o decreto é dirigido? A doutrina usualmente tem


uma interpretação restritiva, apontando que o decreto volve-se à Administração Pública:

Os regulamentos contêm comandos dirigidos, não aos indivíduos, que só devem obe-
diência à lei (art. 153, §2º da CF), mas aos órgãos do Poder Executivo, subordinados
hierarquicamente ao Chefe da Administração Pública. Não produzem, pois, efeitos
junto aos particulares; endereçam-se, sim, aos funcionários executivos, que produ-
zem as normas individuais.22

Não tão simples. Os decretos apontam, em geral, sim, à Administração Pública. Isto
é bem verdade em ramos do direito tais como o Direito Previdenciário, Tributário e Admi-
nistrativo. Mas o decreto também estabelece a forma como direitos e obrigações, além da
explicitação de significados, advindos da legislação previdenciária, tributária e administrativa
serão exercidos pelos particulares; neste sentido, não há dúvidas que os decretos, mesmo
nestes ramos, estabelecem comportamentos para os particulares. Mas a realidade é ainda
maior: vê-se decretos regulamentando o Estatuto da Terra, a Lei de Duplicatas, cheques,
microempresa, juizados especiais, descanso semanal remunerado, aprendizes, lei de acesso
à informação, lei da migração etc., enfim, parece não haver ramo do Direito que escape à
atividade regulamentar do Poder Executivo, a despeito da opinião doutrinária. Esta pergunta
acima se liga à pergunta de se o decreto cabe em qualquer ramo do direito. Novamente a
resposta é a mesma: a doutrina vincula o decreto às atividades administrativas; na prática,
há uma plêiade de decretos regulamentando as mais diversas atividades, como citado. Um
ingrediente que aumenta a dificuldade é o de que uma série destes decretos foram elabora-
dos nas ordens constitucionais anteriores. Persiste a dúvida se a ordem constitucional inau-
gurada em 1988 recepcionaria decretos regulamentando direitos trabalhistas, por exemplo.
De todo modo, não é fácil alcançar, à primeira vista, uma solução constitucional, posto que a
norma constitucional aponta que o decreto regulará leis, sem dizer quais tipos de leis.
A doutrina é pouco aprofundada na discussão se existe ou não um dever de regula-
mentar. Se, de um lado, o Poder Executivo é independente, de outro, ele não pode ter o poder
de deixar ineficaz uma dada norma, pois aí seria invadir as atribuições do Poder Legislativo.
Interessante é o lado contrário deste debate: quais os limites de autonomia da própria Admi-
nistração, isto é, até onde ela pode resistir à legislação? Este debate liga-se aos limites da
divisão de poderes, onde ao Legislativo é vedado criar leis individuais e levar a efeito atos
materiais, competências que são reservadas ao executivo. São decorrências destes limites o
direito do Poder Executivo de auto-organizar-se, elaborando sua estrutura interna e planeja-
mento governamental. Exemplo disto são as reservas de iniciativa de lei ao Poder Executivo
presentes na Constituição. Mas casos há onde a Lei não interfere com a estrutura do Poder
Executivo, sendo saliente que a falta de um decreto regulamentar prejudica a própria lei.

22
CARRAZZA, Roque Antônio. O regulamento no Direito brasileiro. Op. cit., p. 8.
A complexidade do poder regulamentar via decretos 71

3 OS LIMITES E AS POSSIBILIDADES DE CONTROLE DO


DECRETO REGULAMENTAR: UMA QUESTÃO NÃO
TÃO SIMPLES ASSIM

Haveria um outro debate interessante quanto pensamos na administração pública e


sua atuação sob a ótica do interesse público, trataria de um PODER-DEVER de regulamen-
tar ou um DEVER-PODER23 da administração pública, considerando que a regulamentação
trouxesse mais segurança a aplicação da lei ou mesmo mais proteção ao interesse dos
administrados?
Uma das questões importantes que se pretende ver enfrentada é o da necessidade
de regulamentação. Existe algum tipo de lei, pelo modo de sua apresentação, que necessita
ser regulamentada, e outro tipo, que não? A doutrina responde que sim, há diferentes graus
de densidade da norma.
Roque Carrazza, por exemplo, pensa que apenas leis não autoaplicáveis merecem
regulamento: “podemos, pois, dizer que, no Brasil, o regulamento é um ato normativo, uni-
lateral, inerente a função administrativa, que, especificando os mandamentos de uma lei
não autoaplicável, cria normas jurídicas gerais”.24 Leis autoaplicáveis seriam aquelas que
não necessitam de maiores explicações, como o Código Civil e as leis penais. Também é a
opinião de Celso Antônio Bandeira de Mello.

A Constituição prevê os regulamentos executivos porque o cumprimento de determi-


nadas leis pressupõe uma interferência de órgãos administrativos para a aplicação
do que nelas se dispõe, sem, entretanto, predeterminar exaustivamente, isto é, com
todas as minúcias, a forma exata da atuação administrativa pressuposta.25

Daí porque a maioria dos doutrinadores preferir dizer que o decreto é apontado para
o Administrador público, e não para o público em geral. Afinal, é o Administrador público que
deverá materializar a lei. Difícil para a doutrina admitir dois fenômenos conjuntos: a supre-
macia da lei e a possibilidade de o decreto obrigar particulares. Como se opera em um nível
lógico de observação única, não é possível, para a doutrina, admitir a lei valer mais do que o
decreto, e, ao mesmo tempo, o cidadão ser obrigado a ambos. Ou um, ou outro. Obviamente
que tal descrição destoa da prática jurídica, motivo pelo qual é necessário encontrar obser-
vações mais complexas.
Interessante questão é a de que se é possível encontrar uma solução modalizada
em sim/não para a questão de se a atividade regulamentar é discricionária. Significa refletir

23
O conceito de dever poder é no sentido extraído da obra de: MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Curso de direito
administrativo. Op. cit.
24
CARRAZZA, Roque Antônio. O regulamento no Direito brasileiro. Op. cit., p. 14.
25
MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Curso de direito administrativo. Op. cit., p. 303.
72 Caroline Müller Bitencourt | Janriê Reck

se o Poder Executivo pode regulamentar de qualquer maneira, ou há uma maneira ótima de


regular, ou se depende, e em que casos.
A atividade regulamentar é discricionária.26
Para o referido autor, onde não houver espaço para a atuação administrativa, desca-
berá decreto; do mesmo modo, quando toda a lei for vinculante. Na opinião de Celso Antônio
Bandeira de Mello, a atividade regulamentar,27 de outra banda, é necessária não por impera-
tivos linguísticos, mas por força de uniformização do trato para com o cidadão: “Sem estes
padrões impostos na via administrativa, os órgãos e agentes administrativos guiar-se-iam
por critérios díspares ao aplicarem a lei, do que resultariam tratamentos desuniformes aos
administrados”.28
Parece, contudo, que mesmo diante a tentativa da doutrina de aclarar a margem de
atuação e consequentemente os limites do decreto, a questão permanece complexa. De fato,
existem âmbitos de regulamentação perfeitamente legítimos e abertos, e que permitem que
a Administração Pública exerça sua liberdade. Quando os fins são postos claramente, não
há porque se limitar esta liberdade, pena de interferência entre os poderes. Por exemplo, é
irrelevante, na ótica do cidadão, se seu requerimento vai passar por tal funcionário, ou tiver o
procedimento com “n” passos; ao cidadão importa o efetivo conhecimento de seu conteúdo
por alguém competente para decidir. Este parece ser o espaço legítimo para o decreto. Mas,
novamente, outras complexidades se impõem. Isso porque os procedimentos sempre estão
mesclados com conteúdos, e, sob determinada observação, são também eles mesmos con-
teúdos. Se uma lei estabelece, por exemplo, que o segurado deverá apresentar a “documen-
tação necessária” para que faça jus a benefício previdenciário, na teoria dominante, o decreto
poderá estabelecer quaisquer documentos que sejam, de modo a inviabilizar a concessão do

26
Essa parece ser a posição mais comum. Ver, por exemplo: MORAIS, Alexandre de. Direito constitucional. 19. ed.
São Paulo: Atlas, 2006. p. 437: “Essa vedação não significa que o regulamento deva reproduzir literalmente o texto
da lei, pois seria de flagrante inutilidade. O poder regulamentar somente será exercido quando alguns aspectos da
aplicabilidade da lei são conferidos ao Poder Executivo, que deverá evidenciar e explicitar todas as previsões le-
gais, decidindo a melhor forma de executá-la e, eventualmente, inclusive, suprindo suas lacunas de ordem prática
ou técnica”.
27
Trata-se, portanto, de uma fonte administrativa que detalha uma lei ordinária ou complementar, tornando-a apli-
cável na prática. A função desse regulamento em relação à Lei é semelhante à da Lei frente à Constituição. Há
casos e m que o detalhamento necessário para a aplicação da lei pelo Legislativo seria impossível ou, ao menos,
indesejada, sobretudo por motivos de eficiência e de celeridade na expedição dessas normas. Em outros casos,
mesmo que possível, mais adequado pode-se mostrar o detalhamento das regras legais feito por aqueles que co-
nhecem, mais de perto, a rotina das tarefas executivas. Aqui, a utilidade do poder regulamentar consiste em evitar
que o Legislativo, sem conhecer bem a tarefa de execução da lei, crie regras que impliquem em graves problemas
práticos. MARRARA, Thiago. As fontes do direito administrativo e o princípio da legalidade. Revista Digital de
Direito Administrativo, Ribeirão Preto. v. 1, n. 1, p. 23-51, 2014. Disponível em: http://www.revistas.usp.br/rdda/
article/view/73561/77253. Acesso em: 3 dez. 2019.
28
MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Curso de direito administrativo. Op. cit., p. 305.
A complexidade do poder regulamentar via decretos 73

referido benefício. Daí a necessidade de se estabelecer meios de controle da discricionarie-


dade.29 A própria doutrina, por outras vias, combate a discricionariedade na regulamentação:

Ao regulamentar uma lei tributária não autoaplicável, o Executivo precisa interpretá-


-la. Em outros termos, a emissão do decreto, que veicula o regulamento, deve ser
precedida, lógica e cronologicamente, de um labor exegético, ao qual não se pode
furtar o Chefe da Administração Pública [...] Tal interpretação alberga dois momentos;
a saber: 1) o da determinação exata da moldura que a lei tributária fixa, com todos
os caminhos que, dentro dela, podem prosperar; e, 2) o da opção por um desses
caminhos possíveis [...] Percebe-se, disto tudo, que a lei tributária ao ser regulamen-
tada limita o poder discricionário de que, neste particular, está investido o Chefe do
Executivo [...].30

Quando a lei expressamente define algum instituto, o decreto deve se ater aquele
significado. Quando a lei é vaga e permite definições, outras normas, inclusive o decreto,
poderão definir os termos. Algumas vezes, parece que a norma necessariamente remete ao
decreto, para que ganhe concretude.
Pontes de Miranda dá uma solução completamente diferente: quando a lei é tão vaga
que deixa dúvidas, o Executivo tem de encolher-se, posto que não é sua função fazer cessar
qualquer tipo de dúvida: “Onde a lei oferece dúvida, não é ao Poder Executivo que toca var-
rê-la”.31 Para Pontes de Miranda,32 o decreto tem mera função redundante-procedimental. De
todo modo, a doutrina é unânime no sentido de que o decreto executivo não pode ir além das
obrigações geradas na norma legal33:

Se a regra é impositiva, ou proibitiva, isto é, de direito cogente, ao regulamento não é


dado torná-la regra dispositiva ou interpretativa [...] O regulamento é proposto de in-
terpretação ou conjunto de normas de direito formal administrativo. Nenhum princípio
novo, ou diferente, de direito material se lhe pode introduzir [...] Vale dentro da lei; fora
da lei, a que se reporta, ou das outras leis, não vale.34

29
Eros Roberto Grau tenta responder ao problema estabelecendo algumas distinções. “Ora, há visível distinção entre
as seguintes situações: i) vinculação da Administração às definições da lei; ii) vinculação da Administração às
definições decorrentes – isto é, fixadas em virtude dela – de lei. No primeiro caso estamos diante da reserva da lei;
no segundo, em face da reserva da norma (norma que pode ser tanto legal quanto regulamentar; ou regimental)”.
GRAU, Eros Roberto. O direito posto e o direito pressuposto. 3. ed. São Paulo: Malheiros, 2000. p. 183.
30
CARRAZZA, Roque Antônio. O regulamento no Direito brasileiro. Op. cit., p. 138.
31
MIRANDA, Francisco Cavalcanti Pontes de. Comentários à Constituição de 1946. Op. cit., p. 411.
32
Aliás, uns dos autores que mais profundamente comentou o tema.
33
MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Curso de direito administrativo. Op. cit., p. 321: “São visíveis, pois, a natural
inadequação e os imensos riscos que adviriam para os objetivos essenciais do Estado de Direito – sobreposse,
repita-se, em um país ainda pouco afeito a costumes políticos mais evoluídos – de um poder regulamentar que
pudesse definir, por força própria, direitos ou obrigações de fazer ou não fazer imponíveis aos administrados”.
34
MIRANDA, Francisco Cavalcanti Pontes de. Comentários à Constituição de 1946. Op. cit., p. 412.
74 Caroline Müller Bitencourt | Janriê Reck

Enfim, o ciclo inicial está completo. Dado o estado atual do Estado Democrático de
Direito, entende-se que só a lei é produzida a partir da autonomia do sujeito. Regulamentar,
contudo, é necessário. Esta regulamentação, todavia, não poderá ir além do que posto na lei,
senão há, aí, um ataque ao próprio Estado Democrático de Direito e à liberdade, igualdade e
justiça que visa proteger. Surge, então, finalmente, a difícil questão de se saber se o decreto
regulamentou adequadamente uma norma legal. Antes, contudo, outra discussão, que tam-
bém ajuda a jogar luzes sobre o problema.
A discussão que emerge dos defeitos do decreto é interessantíssima. Trata-se de
perguntar em quais categorias de reciclagem normativa – existentes para a autopreservação
do Direito – que se encaixam os defeitos do decreto, isto é, na ilegalidade ou na inconstitu-
cionalidade. As dificuldades são várias, principalmente a começar pela divisão mesma, visto
que qualquer ilegalidade é, no final das contas, uma inconstitucionalidade. O ordenamento
criou, para dar conta disto, a tese da inconstitucionalidade reflexa, que gera inúmeras dificul-
dades, mas é isto que se tem para trabalhar.
Algumas proposições iniciais mais fáceis, para então se alcançar maior dificuldade.
É ponto pacífico na doutrina que ele não está sujeito, em princípio, ao controle concentrado
de constitucionalidade, via ação direta de inconstitucionalidade. A doutrina tem então admi-
tido, que por ser um ato do Poder Público, independente de normativo ou concreto, cabe-
ria se violar preceito fundamental, a arguição de descumprimento de preceito fundamental,
prevista no art. 102, parágrafo 1º e Lei 9.882/99. Mas porque não refletir o debate sobre a
possibilidade de controle difuso de constitucionalidade. Explica-se: se o decreto contraria
a lei, há uma ilegalidade, e a inconstitucionalidade é apenas reflexa. Não caberão ações de
controle concentrado, e tampouco jurisdição no STF; mas ações coletivas poderão dar conta
do problema, além da solução individual
Se um decreto regulamenta lei que não existe, há, aí, inconstitucionalidade, pos-
to que não há lei para contrastar. O decreto invadiu a competência do poder legislativo. O
curioso é que, neste caso, há aptidão para subida de recurso extraordinário, tendo em vista a
ofensa à competência prevista em norma Constitucional. Se se interpretar de maneira ainda
mais radical, o decreto sem lei sujeitar-se-á a controle concentrado, posto que o art. 102, a,
da Constituição Federal, utiliza os termos “ato normativo federal”.
Na atual conjuntura brasileira, tem-se o interessante debate estabelecido, por exem-
plo, no que se refere ao decreto das armas que já sofreu sete alterações legislativas pelo
próprio presidente, e sobre tais decretos já tramitam no Supremo Tribunal Federal ações
diretas de inconstitucionalidade e arguições de descumprimento de preceito fundamental.
Quando utilizada a ADPF é justamente por compreender que se trata de um ato normativo
secundário, no qual havia extrapolado seus limites regulamentares, já a preferência pela
Ação direta de inconstitucionalidade atacava a Lei 10.826/2003, pedindo o arrastamento
dos feitos para o Decreto que deveria regulamenta-la. Uma outra complexidade é adicionada
A complexidade do poder regulamentar via decretos 75

à discussão. É intuitivo que, nos termos acima, o Judiciário tem poder para invalidar, pelos
motivos constitucionais, os decretos. Agora, teria o Poder Legislativo tal poder? É claro que
interessa ao Legislativo, enquanto organização, que as leis sejam bem interpretadas, em uma
visão otimista das instituições. Isto significa que o Legislativo poder fazer este controle por si
só. A Constituição Federal responde que “art. 49. É da competência exclusiva do Congresso
Nacional: [...] V - sustar os atos normativos do Poder Executivo que exorbitem do poder
regulamentar ou dos limites de delegação legislativa”.
Note-se que a Constituição, deste modo, autoriza ao Poder Legislativo que proceda
ao controle da legalidade/constitucionalidade dos decretos. O Poder Legislativo utilizará do
instrumento normativo idôneo às questões relativas à sua competência exclusiva, que é o
Decreto Legislativo. Para tanto, os legisladores terão de interpretar se o decreto bem ou mal
regulamentou uma lei, e são necessário instrumentos para tanto.
Forma-se uma tensão delicada entre um Executivo que tem um poder autônomo de
regulamentar, e um Legislativo que tem instrumentos para fiscalizar e neutralizar este poder.
Isso vai fazer com que novamente o argumento da incompetência e invasão de poderes
venha à tona, e, deste modo, haveria sempre ofensa direta à Constituição. Enfim, sempre
que o Poder Legislativo sustar um ato do Poder Executivo, poderá estar sustando de maneira
incorreta. Como é uma ofensa direta à Constituição, e não uma indireta, e se trata de um ato
normativo, abrir-se-iam tanto as portas do Recurso Extraordinário quanto do controle con-
centrado. A complexidade das cadeias de observações/interpretações: o Executivo interpreta
a lei, editando um decreto; operação que por sua vez será observada a partir do Legislativo,
que deverá interpretar as duas normas com a edição de uma terceira (decreto legislativo) e,
finalmente, a do Judiciário, que terá de fazer a leitura de tudo isto junto, além de, por óbvio,
ter de realizar as outras operações inerentes à interpretação contemporânea, como levar em
conta o paradigma do Estado Democrático de Direito, a supremacia da Constituição, etc.
Observando novamente o primeiro problema, qual seja, o da vinculação do decreto à
lei. Pela compreensão ordinária do problema, não pode o decreto criar direitos e obrigações.
Isto não pode ser levado muito a sério, posto que, assim fosse, não haveria decreto (se o
decreto diz qual é a droga ilícita, gera o direito de perseguição e punir do Estado, e obrigação
de não consumir a droga; se o decreto diz quais são os documentos necessários, gera ao
cidadão a obrigação de trazê-los para efetivar seu direito35). Talvez fosse menos temerário
dizer que não é possível criar direitos e obrigações que não sejam instrumentais aos direi-
tos postos na lei. Mas isto gera uma série de outros problemas conceituais, que não serão
analisados agora.
Para que o decreto “regulamente” a lei, é necessário compreendê-la. Eis aí a delica-
deza da situação. Vai-se compreender normas gerais para criar normas gerais; trocar-se-ão

35
Muito embora, nesse caso, seria possível recorrer a outras categorias, como a de ônus e faculdade. Isso não
evitaria o problema, de todo modo.
76 Caroline Müller Bitencourt | Janriê Reck

universais por universais – se tais categorias ainda forem de algum uso. O fato é: o decreto
não resolve caso concreto algum, até porque ele não existe. O decreto não tem, contudo,
aquela liberdade significativa que a lei tem em face da Constituição36. Os fatos são os de
conhecimento geral (usam-se drogas tais), científicos (drogas tais costumam provocar os
danos x no corpo humano) e prospectivo (usualmente, os documentos “n” são aptos a gerar
a prova de tal situação); não há nenhum específico. A pergunta é se é um processo de dois
estágios, ou um estágio, e em que sentidos isto pode ser dito. A doutrina aponta para esta
necessidade de interpretação: “Regulamentar é mais difícil do que fazer a própria lei; exige
pleno conhecimento do alcance das regras jurídicas legais (o de que nem sempre tem noção
clara os legisladores) e do ramo do direito em que a lei mergulha”.37
Compara-se a atividade regulamentar com a do intérprete doutrinário:

O poder que tem o regulamento não é mais, intrinsecamente, do que o do intérprete


doutrinário, e, às vezes é menos [...]38. [...] A interpretação que o Executivo dá a uma
lei tributária, ao regulamentá-la, é tão passível de críticas como a que despede qual-
quer doutrinador, por maior que seja sua idoneidade intelectual. A única interpretação
que vincula a todos é a realizada pelo Poder Judiciário”39.

Para a doutrina, deste modo, o feitor do decreto terá de interpretá-lo não como um
juiz, mas sim como um intérprete doutrinário, sem a pressão do caso. Parece estranho,
posto que é a mesma doutrina a dizer, com exceção de Pontes, que a Administração Pública
tem discricionariedade para regulamentar. De todo modo, a intuição principal parece justa: a
de que Executivo é um intérprete do texto. Nem poderia deixar de ser, visto ser irrespondível
a pergunta de quando não há interpretação. De todo modo, com certeza, e a doutrina aponta
isto com certa razão, muito embora com muita ingenuidade, os legisladores trabalhem com
uma plêiade muito maior de textos possíveis e de convencimento recíprocos; o legislador
responde à pergunta, enfim, da razão prática: “que devemos fazer?” Tudo indica que o ma-
terial com o qual o Executivo está autorizado a trabalhar é muito menor, mas isto é uma
hipótese a ser confirmada ou refutada mais adiante.
De toda forma, o regulamento possibilita os enlaces comunicativos, que outro modo
seriam possíveis, mas caóticos. Reduz, assim, as possibilidades significativas possíveis, na
missão constitucional de permitir a execução da lei mesma. “Regulamentar é editar normas
que se limitem a adaptar a atividade humana ao texto, e não o texto à atividade humana, cria
meios que sirvam à atividade humana para melhor se entender o texto”.40 O decreto é, enfim,

36
Que é outro processo delicado de compreensão.
37
MIRANDA, Francisco Cavalcanti Pontes de. Comentários à Constituição de 1946. Op. cit., p. 411.
38
MIRANDA, Francisco Cavalcanti Pontes de. Comentários à Constituição de 1946. Op. cit., p. 412.
39
CARRAZZA, Roque Antônio. O regulamento no Direito brasileiro. Op. cit., p. 165.
40
MIRANDA, Francisco Cavalcanti Pontes de. Comentários à Constituição de 1946. Op. cit., p. 411.
A complexidade do poder regulamentar via decretos 77

um potencializador da comunicação entre lei e destinatário, e, conforme a autocompreensão


do Estado Democrático de Direito, a isto deve se resumir.
Finalmente, Pontes chega a uma conclusão sábia, porém utópica, se levada às últi-
mas consequências: “Quanto menos se regulamenta, melhor”.41 E veja-se tal máxima não
seria atribuída apenas ao Poder Regulamentar, pois Ferreira Filho em sua clássica obra do
Processo Legislativo já alertava que a constante mudança das leis ou excesso de produção
legislativa, mesmo que advinda de sua forma mais democrática como a Lei ordinária, reper-
cute constantemente sobre as relações sociais e afeta existências individuais: “Com isso o
mundo jurídico torna-se uma babel. A multidão de leis afoga os juristas, esmaga o advo-
gado, estonteia o cidadão, desnorteia o juiz. A segurança das relações sociais, o principal
mérito do direito, se evapora”.42 Não é, pois, a compreensão dos nosso Chefes do Executivo
pós redemocratização constitucional, a exemplo do atual presidente da República43 que tem
abusado de seu poder de regulamentar, gerando mais de 41 ações de controle de constitu-
cionalidade perante o Supremo Tribunal Federal, afinal, o número de decretos completados
seis meses do primeiro ano de mandato é de 237 até junho de 2019.44 Eis a configuração do
abuso do poder de legislar:

Comportamentos violadores das regras do jogo político muitas vezes não são perce-
bidos como desviantes pela sociedade, ou são tolerados em nome do apelo a formas
de legitimação vinculadas a argumentos irracionais (tradicional ou carismática). Invo-
cam-se as razões do Estado, os imperativos econômicos, governabilidade ou outros
conceitos indeterminados.45

Quem perde com tudo isso é a democracia e o esvaziamento dos espaços de delibe-
ração e representatividade popular, ou seja, todos nós.

41
MIRANDA, Francisco Cavalcanti Pontes de. Comentários à Constituição de 1946. Op. cit., p. 411.
42
FERREIRA FILHO, Manoel Gonçalves. Processo legislativo. Op. cit., p. 35.
43
Publicada a seguinte declaração do presidente pelo Jornal Zero Hora: “Com a caneta, eu tenho muito mais poder do
que você”, diz Bolsonaro a Maia. FERNANDES, Talita. “Com a caneta, eu tenho muito mais poder do que você”, diz Bolso-
naro a Maia. Jornal Zero Hora, maio 2019. Disponível em: https://gauchazh.clicrbs.com.br/politica/noticia/2019/05/
com-a-caneta-eu-tenho-muito-mais-poder-do-que-voce-diz-bolsonaro-a-maia-cjw8kzsb900j001lxxv8f2ecw.
html. Acesso em: 1º dez. 2019.
44
Matéria publicada na Revista Exame. BOLSONARO edita recorde de decretos desde Collor. Exame, jun. 2019.
Disponível em: https://exame.abril.com.br/brasil/bolsonaro-edita-recorde-de-decretos-desde-collor/. Acesso em:
1º dez. 2019.
45
NASCIMENTO, Rogério José Bento Soares do. Abuso do poder de legislar. Controle judicial da legislação de
urgência no Brasil e na Itália. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2004. p. 129.
78 Caroline Müller Bitencourt | Janriê Reck

4 CONSIDERAÇÕES FINAIS

Dizer que o Poder regulamentar do decreto está solucionado ao se afirmar que há da


vinculação do decreto à lei, é no mínimo amenizar o problema. Há como visto uma comple-
xidade que envolve o Poder regulamentar, cercada pelo limite muitas vezes tênue entre criar
a regulamentar, até os déficits democráticos por optar por essa forma de regulamentação,
haja vista que o decreto é construído muitas vezes “a portas fechadas”. Pela compreensão
ordinária do problema, não pode o decreto criar direitos e obrigações. Isso não pode ser
levado muito a sério, posto que, assim fosse, não haveria decreto (se o decreto diz qual é a
droga ilícita, gera o direito de perseguição e punir do Estado, e obrigação de não consumir a
droga; se o decreto diz quais são os documentos necessários, gera ao cidadão a obrigação
de trazê-los para efetivar seu direito. Talvez fosse menos temerário dizer que não é possível
criar direitos e obrigações que não sejam instrumentais aos direitos postos na lei. Mas isto
gera uma série de outros problemas conceituais, que não serão analisados agora.
Para que o decreto “regulamente” a lei, é necessário compreendê-la. Eis aí a delica-
deza da situação. Vai-se compreender normas gerais para criar normas gerais; trocar-se-ão
universais por universais – se tais categorias ainda forem de algum uso. O fato é: o decreto
não resolve caso concreto algum, até porque ele não existe. O decreto não tem, contudo,
aquela liberdade significativa que a lei tem em face da Constituição.
Em comum na doutrina brasileira encontra-se algumas premissas, tais como: I - re-
gulamentar a lei tem sido entendido pela doutrina como uma atividade onde a preocupação
é minudenciar os termos legais; II - não pode o decreto dispor de maneira “criativa”, isto
é, estipulando direitos e deveres, ou dirimindo dúvidas; III - doutrina em sua maior parte,
pensa o decreto de maneira mais liberal ao Executivo, de modo que a atividade regulamentar
pode suprir as “lacunas” deixadas pela lei; IV - quando exercido de forma a extrapolar a
finalidade a que se propôs, pode incorrer uma ilegalidade por contrariar a lei) ou incons-
titucionalidade (quando não regulamente e comete excesso criando norma primária), ou
mesmo quando dentro da legalidade mas utilizado em excesso, não deixa de configurar um
abuso do Poder de Legislar, sendo que o excesso legislativo do Poder Executivo comporta
um déficit democrático.

REFERÊNCIAS

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Administrativo, Rio de Janeiro, v. 236, p. 51-64, abr./jun. 2004.

BINENBOJM, Gustavo. O sentido da vinculação administrativa à juridicidade no Direito brasileiro. In:


ARAGÃO, Alexandre S. de; MARQUES NETO, Floriano de A. (Coords.). Direito administrativo e seus
novos paradigmas. Belo Horizonte: Fórum, 2009.
A complexidade do poder regulamentar via decretos 79

BOLSONARO edita recorde de decretos desde Collor. Exame, jun. 2019. Disponível em: https://exame.
abril.com.br/brasil/bolsonaro-edita-recorde-de-decretos-desde-collor/. Acesso em: 1º dez. 2019.

CANOTILHO, Joaquim José Gomes. Direito constitucional e Teoria da Constituição. 4. ed. Coimbra:
Almedina, 2000.

CARRAZZA, Roque Antônio. O regulamento no Direito brasileiro. São Paulo: Revista dos Tribunais,
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CRETELLA JÚNIOR, José. Curso de direito administrativo. 16. ed. Forense: Rio de Janeiro, 1999.

DEÁK, Renato Albuquerque; NOBRE JUNIOR, Edilson Pereira. O princípio da legalidade e os limites do
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30 nov. 2019.

DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Direito administrativo. 19. ed. São Paulo: Atlas, 2006.

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Novas tecnologias na Administração Pública, no
mercado e na sociedade: instrumentos para
aceleração da marcha ou verdadeiros entraves
para a condução do Brasil e dos brasileiros
rumo ao desenvolvimento?

Daniel Ferreira
Pós-doutor em Direito (IGC)
Doutor em Direito do Estado e Direito Administrativo (PUC-SP)
Professor e atual coordenador do Programa de
Mestrado em Direito (Uninter)

SUMÁRIO: 1 Introdução; 2 Desenvolvimento pressupõe crescimento econômico socialmente justo


e benigno do ponto de vista ambiental, mas não se resume a isso; 3 Compreendendo as tecnologias
e conjecturando acerca de seus impactos em relação ao desenvolvimento do Brasil e dos brasileiros;
4 O papel do Estado e da Administração Pública em relação aos “avanços” tecnológicos à luz do direito
pátrio vigente; 5 Considerações finais; Referências.

1 INTRODUÇÃO

A verificação dos potenciais impactos das novas tecnologias junto à Administração


Pública e ao Direito Administrativo no Brasil – e, paralelamente, junto ao mercado e à própria
sociedade – pode ser examinada por diversos ângulos.
Contudo, tratar desse particular objeto de estudo mediante consideração do desen-
volvimento nacional como objetivo a ser alcançado e, ainda mais, numa perspectiva pro-
positiva e inclusiva, parece reclamar um exame diferenciado e que repercuta na análise de
diferentes formas de intervenção estatal.
Elege-se, pois, a prestação de serviço de acesso (ou de conexão) à internet como
objeto de investigação a partir do seu entrelaçamento com o desenvolvimento e numa pers-
pectiva de inovação tecnológica, embora relativamente antiga. Sua escolha deriva, ademais,
da imprescindibilidade de acesso à internet no cotidiano das pessoas físicas e jurídicas, de
modo que investigar os efeitos do acesso – e do não acesso – há de repercutir em cons-
tatações antagônicas, no sentido de ela assumir feições de dádiva ou de quase-maldição,
conforme os resultados concretos de sua fruição.
82 Daniel Ferreira

Nesse contexto, não se chegará a conclusões propriamente ditas, porque o intento é


o de oferecer, ao fim e ao cabo, apenas algumas impressões, ainda que perfunctoriamente
justificadas, por não ser a internet e seu acesso assuntos conhecidos em extensão ou pro-
fundidade adequadas.

2 DESENVOLVIME NTO PRESSUPÕE CRESCIMENTO ECO-


NÔMICO SOCIALMENTE JUSTO E BENIGNO DO PONTO
DE VISTA AMBIENTAL, MAS NÃO SE RESUME A ISSO

Em obra anterior, conceituou-se o desenvolvimento como “crescimento econômico


socialmente justo e benigno do ponto de vista ambiental”,1 portanto, mediante filiação ao
pensamento de Ignacy Sachs. Mas o que isso quer significar, afinal?
De partida, o desenvolvimento deve ser compreendido como crescimento econômi-
co, assim denotando a majoração do Produto Interno Bruto (PIB) de um dado país, o qual,
por sua vez, exprime a somatória dos bens e serviços finais produzidos num dado espaço de
tempo e de território. Ou seja, na medida em que aumenta a disponibilidade objetiva desses
(bens e serviços) tem-se crescimento econômico.
Todavia, esse referencial, sozinho, diz pouco ou quase nada, se não quando obriga-
toriamente analisado em cotejo com a população que a eles tem (ou não tem) acesso. Se o
número de potenciais consumidores cresce em proporção superior à do PIB, então mesmo
com incremento do PIB o cenário poderá ser de recessão econômica, pois a divisão da to-
talidade dos bens e serviços pela população revelará um número menor, e não maior, como
se poderia equivocadamente supor. Além disso, o crescimento econômico tende, por si só,
a aumentar a riqueza das pessoas originalmente mais abastadas,2 maximizando o abismo
entre ricos e pobres. Logo, para se avaliar se houve ou não crescimento econômico é preciso
dar um passo adiante, passando-se a considerar o PIB per capita (PPC) como parâmetro
mais indicado e como potencial referência para a qualidade de vida das pessoas.
Ocorre que a consideração isolada do PPC também não se mostra prestante para
se concluir por ter havido crescimento econômico. Uma evasão acentuada de pessoas pode
repercutir no aumento PPC, ainda que o PIB diminua, o que revelaria uma melhor distribuição
de renda, mas não necessariamente expansão da economia. Portanto, o que realmente im-
porta em termos de desenvolvimento é crescimento econômico em quantidade e qualidade.

1
FERREIRA, Daniel. A licitação pública no Brasil e sua nova finalidade legal: a promoção do desenvolvimento
nacional sustentável. Belo Horizonte: Fórum, 2012. p. 48.
2
SACHS, Ignacy. Rumo à ecossocioeconomia: teoria e prática do desenvolvimento. São Paulo: Cortez, 2007. p. 97.
Novas tecnologias na Administração Pública, no mercado e na sociedade 83

Isto é, aumento do PIB pari passu com melhor distribuição de renda, repercutindo (em tese)
na melhoria da qualidade de vida das pessoas, concretizada mediante verdadeira mobilidade
social.3
Mesmo assim o resultado do aumento do PIB e do PPC, juntos, pode não ser com-
patível com o desenvolvimento, bastando haver, por exemplo, diminuição considerável do
número de empregos a partir da adoção de novas tecnologias, como a automação. Como
por meio dela se otimizam recursos de diversas ordens, um processo fabril automatizado
ou modernizado, para usar o termo empregado por Gilberto Bercovicci, pode redundar em
aumento de lucratividade e diminuição dos preços finais dos produtos, satisfazendo a um só
tempo o empresário e uma boa parcela da população, sobretudo de menor renda,4 porém
com evidente prejuízo aos postos de trabalho.
Logo, para se garantir o crescimento econômico socialmente justo faz-se mister
melhorar a distribuição de renda e riqueza, sem sacrificar a busca diuturna pelo pleno empre-
go. Destarte, o único desenvolvimento admissível – como tal – é o includente, que “requer,
acima de tudo, a garantia do exercício dos direitos civis, cívicos e políticos”,5 de modo a
promover verdadeira e completa emancipação da pessoa humana, no sentido de libertação
de quaisquer amarras e assunção de responsabilidades, inclusive de transformação da rea-
lidade em benefício próprio e dos demais, o que exige a prestação-fruição de um trabalho
remunerado e em condições tais que se mostre apto a subsidiar uma vida decente, plena e
gratificante.6
Com efeito, esse crescimento econômico, ainda quando socialmente justo, não pode
se mostrar selvagem do ponto de vista ambiental, como ocorre na China, por exemplo. É
dizer, o crescimento econômico também precisa ser ordenado e autossustentável, no sentido
de garantir transmissão da capacidade produtiva sempre que necessário, inclusive de uma
geração para outra,7 o que pressupõe manutenção de padrões de degradação “aceitáveis”,
de modo a se “minimizar as mudanças irreversíveis e, sobretudo, os danos irreversí-

3
Eros Grau defende, desde 1980, que o desenvolvimento pressupõe crescimento econômico acompanhado de um
processo contínuo e intermitente de mobilidade social, que faz com que as pessoas ascendam de uma condição
para outra. (GRAU, Eros. Elementos de direito econômico. São Paulo: RT, 1981. p. 7-14).
4
“Desenvolvimento é um fenômeno com dimensão histórica: cada economia enfrenta problemas que lhe são es-
pecíficos. Não existem fases de desenvolvimento pelas quais, necessariamente, passam todas as sociedades
seguindo os moldes da industrialização européia. [...] Quando não ocorre nenhuma transformação, seja social,
seja no sistema produtivo, não se está diante de um processo de desenvolvimento, mas simples modernização”.
(BERCOVICI, Gilberto. Constituição econômica e desenvolvimento: uma leitura a partir da Constituição de 1988.
São Paulo: Malheiros, 2005. p. 52-53).
5
SACHS, Ignacy. Rumo à ecossocioeconomia: Op. cit., p. 39.
6
SACHS, Ignacy. Rumo à ecossocioeconomia: Op. cit., p. 293.
7
SILVA, Solange Teles. Desenvolvimento sustentável e florestas: reflexões iniciais. In: PIOVESAN, Flavia; SOARES,
Inês Virginia Prado (Orgs.). Direito ao desenvolvimento. Belo Horizonte: Fórum, 2010. p. 395-422.
84 Daniel Ferreira

veis”8 ao ecossistema – o que pode e deve ser alterado sempre que inovações tecnológicas
permitirem a obtenção dos mesmos resultados por alternativas menos poluentes e degra-
dantes do meio ambiente ecologicamente equilibrado.
Por isso, insiste-se: “de conseguinte, a sustentabilidade ambiental deve ser assumi-
da como um freio, não no sentido de atrasar o avanço na direção do desenvolvimento, mas
de dar a temperança necessária à escolha da velocidade e dos caminhos eleitos no rumo à
ecossocioeconomia do amanhã”.9 De todo modo, desenvolvimento não se resume a isso.
Como afirmado por Ignacy Sachs,

[...] a noção de desenvolvimento é central nas preocupações da ONU. Ao longo dos


últimos 50 anos, ela se enriqueceu consideravelmente. A idéia simplista de que o
crescimento econômico, por si só, bastaria para assegurar o desenvolvimento foi
rapidamente abandonada em proveito de uma caracterização mais complexa do con-
ceito, expressa pelas adições sucessivas de epítetos: econômico, social, cultural,
naturalmente político, depois viável [susteinable], enfim, último e recente acréscimo,
humano, significando ter como objetivo o desenvolvimento dos homens e das mulhe-
res em lugar da multiplicação de coisas.10

Por sua vez, o traço de nacionalidade em termos desenvolvimentistas pressupõe


equilíbrio entre inovação e tradição, de modo que a identidade cultural de um povo seja pre-
servada em suas plúrimas facetas (língua, modo de viver – habitação, vestimenta, alimenta-
ção etc. – e obter recursos para a sobrevivência, relacionar-se com outras pessoas etc.), a
despeito da globalização desenfreada e dos avanços tecnológicos.
Em sua dimensão política, busca-se, como dito, não apenas garantir o exercício
de direitos cívicos e políticos, porém integrar cada ser humano ao corpo social, de modo
a permitir-lhe reconhecer-se nos demais e, por isso mesmo, engajar-se em todas as lutas
necessárias para o livre desenvolvimento de cada um e de todos, bem como das empresas
e da própria nação. Nesse sentido, Amartya Sen deixa muitíssimo claro que a “verdadeira”
liberdade só existe para aquelas pessoas que ostentam acentuado grau de desenvolvimento,
o que reclama crítica e reflexão especialmente acerca de questões econômicas, sociais e
políticas. Sendo assim, resta induvidoso que o desenvolvimento exprime um plus sobre
o crescimento econômico, representado por uma concomitante mais valia qualitativa, de
índole ambiental e social, pelo menos, muito embora seja a liberdade humana o principal fim,
bem como o principal meio, para atingimento desse desiderato, porque somente as liberda-
des reais experimentadas por cada sujeito poderão servir de parâmetro para conformação do

8
SACHS, Ignacy. Rumo à ecossocioeconomia: Op. cit., p. 99.
9
FERREIRA, Daniel. A licitação pública no Brasil e sua nova finalidade legal: Op. cit., p. 55.
10
SACHS, Ignacy. Rumo à ecossocioeconomia: Op. cit., p. 351-352.
Novas tecnologias na Administração Pública, no mercado e na sociedade 85

seu pessoal, particularizado e voluntário destino.11 E para ser livre é preciso, evidentemente
e pelo menos, ter-se oportunidade de acesso a trabalho digno, de modo a permitir autossub-
sistência e provisão singular ou associada das necessidades familiares.12
Mas há como ser verdadeiramente livre na sociedade (brasileira) do século XXI?

3 COMPREENDENDO AS TECNOLOGIAS E CONJECTURAN-


DO ACERCA DE SEUS IMPACTOS EM RELAÇÃO AO
DESENVOLVIMENTO DO BRASIL E DOS BRASILEIROS

Tecnologia, como qualquer outra palavra, pode ser empregada em vários sentidos.
Para fins deste estudo, aproveitamos as mesmas considerações feitas por Patrícia Baptista
e Clara Iglesias Keller para o fim de fixar conteúdo semântico do termo, em sentido amplo,
como sendo “qualquer processo com capacidade de transformação da realidade, física ou
virtual”.13
Dessa feita, o fogo e sua utilização – ou dominação, se se preferir – exprimem tec-
nologia que vem sendo utilizada pela humanidade há milhares de anos. Por outra, é possível
referir ao isqueiro como um produto representativo de inovação tecnológica, e disruptiva,
no sentido de ter sido ele “capaz de enfraquecer ou, eventualmente, de substituir indústrias,
empresas ou produtos estabelecidos no mercado”,14 como o palito de fósforo.
Sendo assim, são as inovações tecnológicas disruptivas que devem mais “preocu-
par” as pessoas, físicas e jurídicas, bem como o próprio Estado, no sentido de compreen-
são, exame e eventual correção de rumo dos impactos (ocorridos ou ainda antevistos como
passíveis de ocorrer) nos âmbitos econômico, social, ambiental, político, institucional ou até
mesmo psicológico delas decorrentes.

11
SEN, Amartya. Desenvolvimento como liberdade. Trad. Laura Teixeira Motta. São Paulo: Companhia das Letras,
2010. p. 76-77.
12
“O trabalho dignifica não só por conta da possibilidade que dá ao indivíduo de alimentar a sua família, mas, tam-
bém, pelo desenvolvimento pessoal que fomenta. O exercício da atividade laborativa requer, no mais das vezes,
qualificação, profissionalização, técnica, ou seja, requer do trabalhador dedicação ao aprendizado de um ofício,
ao conhecimento em determinado setor, e o conhecimento é instrumento a serviço da liberdade, da autonomia.
É através do conhecimento que se exercita a razão”. (POPP, Carlyle; SETTI, Maria Estela Gomes. A pessoa com
deficiência e seu direito ao trabalho: estrutura e efetividade. In: GUNTHER, Luiz Eduardo; SANTOS, Willians Franklin
Lira dos; GUNTHER, Noeli Gonçalves da Silva. Tutela dos direitos da personalidade na atividade empresarial. v. III.
Curitiba: Juruá, 2010. p. 353).
13
BAPTISTA, Patrícia; KELLER, Clara Iglesias. Por que, quando e como regular as novas tecnologias? Os desafios
trazidos pelas inovações disruptivas. RDA – Revista de Direito Administrativo, Rio de Janeiro, v. 273, p. 123-163,
set./dez. 2016. p. 129.
14
BAPTISTA, Patrícia; KELLER, Clara Iglesias. Por que, quando e como regular as novas tecnologias? Op. cit., p.
130.
86 Daniel Ferreira

Na sociedade moderna, os avanços tecnológicos tendem à otimização de recursos,


inclusive de pessoal, especialmente no que diz com as experiências econômicas do
passado. A automação bancária é bom exemplo, no mau sentido; e duplo. Por um
lado, fez encolher o número de obreiros efetivamente necessários nas unidades ban-
cárias e, por outro, os expôs a condições laborais propiciatórias de doenças ocupa-
cionais, como a LER (lesão do esforço repetitivo).15

Esse exemplo exprime per se a necessidade de exame das inovações tecnológicas


desde o seu nascedouro, para fins de se constatar sua compatibilidade com o desenvol-
vimento – das pessoas (consideradas individualmente, em termos coletivos ou enquanto
integrantes da sociedade em geral) e das instituições, privadas e públicas.
Dada as limitações deste artigo, elege-se uma única situação a examinar e, assim,
tentar exemplificar os ganhos e as perdas que o advento da Internet (enquanto Tecnologia
de Informação e Comunicação – TIC), está a produzir em termos de (des)desenvolvimento.
Tratando da “Sociedade da Informação – transformação e inclusão social”, Antonio
Francisco Maia Oliveira Rogério e Eduardo Rodrigues Bazi registram que

[...] para o desenvolvimento desta Sociedade da Informação é imprescindível a inte-


gração do acesso à informação para capacitar e atualizar cidadãos para que possam
competir no mercado de trabalho. A informação reduz incertezas e o acesso a ela
aumenta a competitividade.

[...] à medida que os cidadãos são informados, tornam-se capazes de ações com
um retorno mais confiável, lucrativo e prático. Costa (1995) afirma que: “o indivíduo
em condições de adquirir novas tecnologias de informação apresenta, via de regra,
maiores possibilidades de sucesso, do ponto de vista de competitividade, de qualida-
de e de produtividade na maioria das situações da vida”. Este ambiente informacional
satura-nos com mensagens de natureza distintas; esta extraordinária expansão do
conteúdo informacional da vida moderna é uma forte característica da Sociedade da
Informação.16

Concorda-se integralmente tais observações. Ter ou não ter acesso a informação


(“nova”, de qualidade e confiável) permite maior ou menor possibilidade de sucesso da
pessoa ou da instituição em diferentes cenários, mormente econômico.
Por exemplo, não se questiona o fato de que quem tem acesso a um curso de direito
numa capital de estado tem muito mais chances de se ver aprovado num concurso público,

15
FERREIRA, Daniel. A licitação pública no Brasil e sua nova finalidade legal: Op. cit., p. 51.
16
OLIVEIRA, Antonio Francisco Maia; BAZI, Rogério Eduardo Rodrigues. Sociedade da informação, transformação e
inclusão social: a questão da produção de conteúdos. Revista Digital de Biblioteconomia e Ciência da Informação,
Campinas, v. 5, n. 2, p. 115-131, jan./jun. 2008. p. 122-123.
Novas tecnologias na Administração Pública, no mercado e na sociedade 87

para cargo de nível médio, do que um morador de uma pequena cidade no interior nordestino
que não tem acesso a qualquer curso superior em seu domicílio.
Mutatis mutandis, o mesmo raciocínio-conclusão, dentre outros, permitiu a Ariane
Fernandes da Conceição titular-se doutora em desenvolvimento rural, junto à UFRS em 2016,
após defender a tese intitulada “Internet pra quê? – a construção de capacidades e as TIC no
processo de desenvolvimento rural”. Em suas conclusões, a olhos vistos também fortemen-
te influenciada por Amartya Sen, a autora deixou assim consignado:

No que tange ao desenvolvimento rural propriamente dito, a construção de capaci-


dades a partir da utilização da internet oportuniza aos agricultores familiares a busca
por novos mecanismos que possam promover o meio rural. A viabilidade física das
TIC é uma pré-condição essencial para estabelecer a ligação desta com o processo
de desenvolvimento rural, sendo necessária infraestrutura física, como acessibilidade
(estradas), infraestrutura de comunicação e de energia elétrica a fim de minimizar
a vulnerabilidade dos moradores rurais. Ao incentivar e proporcionar novas formas
de interação social, as TIC oportunizam a expansão da liberdade das escolhas dos
atores, que passam a ter a oportunidade de livre escolha na busca da melhoria de sua
condição de vida e de decisão no caminho que irão seguir.17

Ou seja, nessa perspectiva o acesso à internet se presta a viabilizar o desenvol-


vimento das pessoas, das famílias e dos pequenos empreendedores no âmbito rural pela
viabilização de acesso à informação e por interligar pessoas físicas e jurídicas à distância,
inclusive por meio de aplicativos, como o WhatsApp. A falta dela, pois, evidencia diferentes
níveis de oportunidades e revela que o acesso à internet poderia se prestar, pelo menos, a
buscar reequilibrar a situação entre quem está mais perto ou mais distante da informação
e das oportunidades sociais e tecnológicas, inclusive de educação à distância (EaD) em
diferentes níveis e formatos.
De outra banda, o acesso à internet pode ter efeitos nem tão bons assim, para dizer
o mínimo. Em tempos de modernidade líquida, em que o (parecer) “ter e consumir” assu-
me maior importância e evidência que o “ser”, o acesso à informação tende a exacerbar o
consumo,18 pois pertencer a um certo grupo requer assumir os mesmos padrões estéticos,
visuais, em termos de qualidade, quantidade e variedade, o que não poucas vezes repercu-
te em superendividamento ou diminuição de autoestima, podendo redundar em depressão,
quando isso não (mais) se torna possível.

17
CONCEIÇÃO, Ariane Fernandes da. Internet pra quê? – a construção de capacidades e as TIC no processo de
desenvolvimento rural. 2016. 208p. Tese (Doutorado em Desenvolvimento Rural) – UFRS, Porto Alegre, 2016. p.
191. Disponível em: https://lume.ufrgs.br/bitstream/handle/10183/150533/001009433.pdf?sequence=1&isAllo-
wed=y. Acesso em: 10 dez. 2019.
18
BAUMAN, Zygmunt. Modernidade líquida. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2001.
88 Daniel Ferreira

Ocorre que esse consumo também se vislumbra em relação às pessoas (e suas


histórias), cada vez mais escancaradas nas mídias sociais (notadamente o Facebook e o
Instragam) como potencial objeto de interesse,19 numa frenética busca por likes para autos-
satisfação, e, ainda pior, não poucas vezes colocadas à disposição para eventual “consumo”
por meio de aplicativos, como o Tinder (que cruza informações do Facebook e do Spotify
para buscar aproximações de “perfil”).
Numa situação nitidamente patológica, é preciso reconhecer que há pessoas vitima-
das por “dependência da internet e de jogos eletrônicos”, não por acaso figurando como tí-
tulo de artigo acadêmico cujas conclusões são aqui apresentadas, por sua particular impor-
tância para os fins deste artigo, e que por sua eloquência dispensam maiores lucubrações:

É evidente que a maioria dos usuários problemáticos de Internet apresenta formas


exacerbadas de vulnerabilidade pessoal (baixa tolerância à frustração, alta esquiva ao
dano, ansiedade social, baixa auto-estima) e que, dentre outras deficiências, a rede
mundial torna-se uma das melhores formas de diminuição do estresse e do medo
da vida real. Até aqui, parece haver uma concordância geral entre as pesquisas e
a visão de dois dos autores deste artigo (Abreu e Góes). Entretanto, nossa crença
é de que, à medida que esses internautas se refugiam progressivamente no mundo
virtual e se aliviam das experiências de vida, tais comportamentos começam a exibir
características muito mais peculiares e intensas daquelas inicialmente apresentadas.
Portanto, nesse momento passariam a assumir uma nova forma de classificação
psiquiátrica – a então denominada dependência de Internet. A essa altura, comporta-
mentos muito específicos começam a ser exibidos, fazendo com que os indivíduos
literalmente troquem a vida real pela vida virtual (dentro da Internet), pois encontram
mais satisfação nesse mundo anônimo do que aquela desfrutada no mundo real (es-
tão escondidos atrás da tela). Os dependentes de qualquer idade usam a rede como
uma ferramenta social e de comunicação, pois têm uma experiência maior de prazer
e de satisfação quando estão conectados (experiência virtual) do que quando não
conectados. Tais pacientes não mais se alimentam regularmente, perdem o ciclo do
sono, não saem mais de casa, têm prejuízo no trabalho e nas relações pessoais,
se relacionam somente com conhecidos do mundo virtual etc. Dessa maneira, não
seria de se estranhar que essas pessoas cheguem a ficar conectadas por mais de 12
horas por dia e atinjam, com relativa freqüência, 35 horas ininterruptas de conexão;
colecionem ao longo de um ano mais de quatro milhões de fotos eróticas ou recebam
mais de três mil e-mails em apenas um dia. Efetivamente, muda-se a geografia de
vida. Todavia, acreditamos que pesquisas futuras responderão se a Internet deve ser
entendida como uma das novas síndromes psiquiátricas do século XXI ou apenas um
novo campo de expressão dos velhos problemas. Em relação à dependência de jogos

19
“Numa sociedade de consumidores, tornar-se uma mercadoria desejável e desejada é a matéria de que são feitos
os sonhos e os contos de fadas”. (BAUMAN, Zygmunt. Vida para consumo: a transformação das pessoas em
mercadoria. Trad. Carlos Alberto Medeiros. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2008. p. 22).
Novas tecnologias na Administração Pública, no mercado e na sociedade 89

eletrônicos, os achados dos estudos de neuroimagem e eletrofisiologia, embora bas-


tante preliminares, sugerem uma possível base neurobiológica comum relacionada ao
sistema mesolímbico, reforçando a hipótese de que o uso excessivo de jogos eletrô-
nicos pode ser um transtorno psiquiátrico da linha das dependências. Mais pesquisas
sobre a dependência em jogos eletrônicos devem ser realizadas para que se possa
compreender melhor suas características clínicas, seus fatores de risco e proteção,
sua relação com outros transtornos mentais e as bases neurobiológicas associadas
a esse comportamento. Dessa forma, será possível formular diagnósticos mais cri-
teriosos e planejar tratamentos efetivos e individualizados para nossos pacientes.20

Por fim, cita-se o problema decorrente fake news na seara política, apenas a título de
ilustração, tomando por base os seus efeitos em relação à eleição americana de 2016, por
conta da atuação da empresa de consultoria política Cambridge Analytica, que coletou dados
de quase cem milhões de usuários do Facebook – como confessado por ele mesmo – para,
a partir disso, dirigir mensagens de publicidade política adaptada, com vistas a deliberada-
mente influenciar potenciais eleitores a votarem em Donald Trump.
Nesses referidos contextos, o acesso à internet pode facilmente se transmudar de
ferramenta para o desenvolvimento das pessoas, das instituições e até mesmo de uma nação
para instrumento de opressão, de precarização da saúde (física e mental) e desnaturação
de instituições (como a família, a empresa, círculo de amizades etc.), além de repercutir em
problemas econômicos e sociais que transcendem o espaço doméstico ou laboral, trazendo
prejuízo para a coletividade, de modo que o menor acesso a ela pode funcionar como fator de
evitação de desenvolvimento nas suas dimensões econômica, social, ambiental (do traba-
lho), cultural, política e humana, propriamente dita, dentre outras, de forma direta ou indireta.
Em suma, o acesso à internet – como ferramenta tecnológica de informação e co-
municação que é faz décadas – pode ser uma benção ou uma catástrofe para o desenvol-
vimento, o que exige dos órgãos de Estado (Executivo, Legislativo e Judiciário) e da própria
Administração Pública redobrada atenção e tomada de providências, conforme cada caso,
consoante o direito vigente.

4 O PAPEL DO ESTADO E DA ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA EM


RELAÇÃO AOS “AVANÇOS” TECNOLÓGICOS À LUZ DO
DIREITO PÁTRIO VIGENTE

O compromisso da República Federativa do Brasil com o desenvolvimento – das


pessoas, das instituições (privadas e públicas) e da própria nação – resta escancarado no

20
ABREU, Cristiano Nabuco de et al. Dependência de internet e de jogos eletrônicos: uma revisão. Revista Brasileira
de Psiquiatria, v. 30, n. 2, p. 156-167, 2008. p. 164-165.
90 Daniel Ferreira

preâmbulo da Constituição de 1988, porque arrolado como razão-de-ser e objetivo do Estado


Democrático que se estava fundando, assumidamente “destinado a assegurar o exercício
dos direitos sociais e individuais, a liberdade, a segurança, o bem-estar, o desenvolvimento,
a igualdade e a justiça como valores supremos de uma sociedade fraterna, pluralista e sem
preconceitos”.
Não bastasse isso, reforçou-se o mesmo ideário ao se prever, no inc. II do art. 3º,
garantir o desenvolvimento nacional como um objetivo fundamental da República, ao lado
da construção de uma sociedade livre, justa e solidária; da erradicação da pobreza e da
marginalização e redução das desigualdades sociais e regionais; e, ainda, da promoção do
bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas
de discriminação.
Portanto, o desenvolvimento como conceitualmente examinado encontra eco nas
disposições constitucionais primeiras, notadamente as constantes do art. 3º, pois “a aná-
lise sistemática dos objetivos da República revela a busca de um crescimento econômico
socialmente benigno, portanto que propicie, afinal, uma transformação social estrutural”.21
Ademais, o art. 5º inc. XXIX reforça as suas dimensões tecnológica e econômica como
direito fundamental22 e o art. 225 exprime a sustentabilidade ambiental como imperativo
constitucional, que impôs “ao Poder Público e à coletividade o dever de defendê-lo para as
presentes e futuras gerações”.
Em outro giro, ainda mais importante, o fato de a dignidade da pessoa humana ter
sido erigido como fundamento da República (art. 1º, inc. III) leva Gustavo Justino de Oliveira
a afirmar que:

em que pesem as inúmeras transformações pelas quais passa o Estado contemporâ-


neo, com ele permanece (e no caso brasileiro por expressa previsão constitucional) o
papel de indutor, promotor e garantidor do desenvolvimento nacional. E se no centro
da noção de desenvolvimento encontra-se a pessoa humana, cumpre à organização
estatal - mormente por meio de seu aparato administrativo - exercer ações em nú-
mero, extensão e profundidade suficientes para bem desincumbir-se da obrigação
constitucional de realizar um dos valores que fundamentam a República Federativa do
Brasil: a dignidade da pessoa humana [...].23

21
FERREIRA, Daniel. A licitação pública no Brasil e sua nova finalidade legal: Op. cit., p. 59.
22
Art. 5º [...] - a lei assegurará aos autores de inventos industriais privilégio temporário para sua utilização, bem
como proteção às criações industriais, à propriedade das marcas, aos nomes de empresas e a outros signos
distintivos, tendo em vista o interesse social e o desenvolvimento tecnológico e econômico do País.
23
OLIVEIRA, Gustavo Henrique Justino de. Direito ao desenvolvimento na Constituição Brasileira de 1988. Revista
Eletrônica de Direito Administrativo Econômico (REDAE), Salvador, Instituto Brasileiro de Direito Público, n. 16,
nov./dez./jan. 2009. Disponível em: http://www.direitodoestado.com.br/redae.asp. Acesso em: 27 nov. 2019.
Novas tecnologias na Administração Pública, no mercado e na sociedade 91

Sintetizando, para fins de induzir, promover e garantir o desenvolvimento nacional, o


Estado Brasileiro e a própria Administração Pública podem e devem lançar mão de diferen-
tes políticas e instrumentos, em todas as esferas da federação, conforme as necessidades
vislumbradas em cada situação, o que inclui agir de modo preventivo, concomitante ou
reativo, principalmente nos âmbitos legislativo e executivo, em se tratando de “avanços”
tecnológicos.
E outra vez invocando como justificativa as limitações editoriais deste artigo, ado-
ta-se a questão do acesso à internet como pano de fundo para examinar as competências
públicas na seara.
Para fins de intervenção no domínio econômico, o Estado pode explorar atividade
dessa natureza em situações especialíssimas, atendidos os requisitos do art. 173 da CR.
No que diz com a disponibilização de acesso à internet, com vistas à obtenção dos efeitos
positivos para o desenvolvimento, toma-se por exemplo a Prodepa,24 cujos objetivos sociais
englobam, dentre outros, a tarefa de “prestar serviços técnicos de telecomunicações, pro-
cessamento de dados e tratamento de documentos a órgãos ou entidades da Administra-
ção Federal, Estadual e Municipal, a entidades de direito privado e diretamente ao cidadão”,
constante disposto no item III do art. 4º do seu Regimento Geral.25 Logo, se efetivamente
garantido o acesso à internet (de banda larga) a todos os cidadãos paraenses por meio da
referida empresa pública, então o direito ao desenvolvimento instrumentalizado pelo acesso
à informação e comunicação digital estaria plenamente satisfeito, assim restando cumpridas
aos disposições constitucionais de 1988.
Nada obstante, ainda assim poderia haver certa celeuma, no sentido de utilidade-ne-
cessidade e, pois, acerca da legitimidade de uma unidade da federação intervir num serviço
habitualmente prestado pela iniciativa privada – ainda que intermediado por entidade inte-
grante da Administração Indireta e, em princípio, não vocacionada para a obtenção de lucros
(de mercado, pelo menos); portanto, como empresa pública. A resposta, para tanto, seria
objetiva e precisa: a busca pela universalização de acesso – ainda que não nos moldes de
serviço público, regido de partida pela Lei n. 8.987/1995 – que se sabe jamais será atingida
em regime de mercado estritamente privado por conta da falta de sustentabilidade econô-

24
“Empresa de Tecnologia da Informação e Comunicação do Estado do Pará, está vinculada à Secretaria de Esta-
do de Ciência, Tecnologia e Educação Técnica e Tecnológica (SECTET), faz parte do Conselho de Sistemas de
Informação e Telecomunicações (COSIT), por meio do Decreto de no. 1.489/2016, é a Empresa responsável
pela gestão e manutenção das Redes de Comunicação de Dados do Estado do Pará, por meio do Decreto de no.
796/2013, e ainda, é a Empresa que designada por propor, avaliar e recomendar as políticas e melhores práticas
de TIC para o Estado, por meio do Decreto de no. 1513/2016, visando a economicidade, eficiência e eficácia dos
gastos governamentais com TIC.” (PRODEPA. Quem somos. S.d. Disponível em: http://www.prodepa.pa.gov.br/
quem-somos. Acesso em: 5 dez. 2019).
25
PRODEPA. Regimento geral. S.d. Disponível em: http://www.prodepa.pa.gov.br/sites/default/files/REGIMENTO_
COMPLETO-V17_20_02_12_Por_Diretoria1_0.pdf. Acesso em: 5 dez. 2019.
92 Daniel Ferreira

mico-financeira para oferta. De todo modo, sabe-se que é necessária autorização legislativa
para tanto, de modo que esse tipo de “solução interventiva” não pode ser materializado pelo
Poder Executivo a seu exclusivo talante.
O mesmo se pode afirmar em relação à potencial disponibilização de acesso/cone-
xão à internet sob o manto do regime jurídico próprio dos serviços públicos. A atuação esta-
tal assim capitulada tem sido assumida como subsidiária em face de serviços não previstos
explicitamente na Constituição da República com essa feição. Logo, apenas quando induvi-
dosamente necessário e em relação a serviços que revelem interesse coletivo sobranceiro.
No caso do acesso à internet isso não se discute, ainda que os serviços de teleco-
municações sejam de competência material da União, consoante assim previsto no inc. XI
do art. 21: “XI - explorar, diretamente ou mediante autorização, concessão ou permissão, os
serviços de telecomunicações, nos termos da lei, que disporá sobre a organização dos ser-
viços, a criação de um órgão regulador e outros aspectos institucionais”. É que os serviços
de telecomunicações não se confundem com os serviços de acesso à internet, postos que
estes são assumidos por lei (não declarada inconstitucional) como uma “utilidade conexa”,
um serviço de valor adicionado.26
De conseguinte, mesmo quando prestado o serviço de telecomunicações de telefo-
nia fixa mediante concessão de serviço público, o concomitante oferecimento de acesso à
internet (estranhamente) não resta albergado pelo regime jurídico-administrativo, ainda que
sua essencialidade na sociedade contemporânea seja inconteste e, pois, sua universalização
se revelasse como de indiscutível interesse público há décadas.
Sendo assim, é preciso compreender como e em que medida o Marco Civil da Inter-
net – a Lei n. 12.965/2014 resolveu (ou não) o problema de universalização do acesso, que
se confirmou em seu bojo como condição de dignidade da pessoa humana na atualidade
e instrumento apto a auxiliar na promoção do desenvolvimento pleno dos indivíduos e das
instituições.
Dito marco legal trouxe novidades e previu, dentre tantas normas, algumas regras e
princípios de particular interesse para os fins deste estudo, basicamente os constantes dos
arts. 1º ao 4º, 6º ao 8º, aqui transcritos em partes, porém com os devidos destaques:

Lei n. 9.472/1997 (Lei Geral de Telecomunicações – LGT).


26

Art. 61. Serviço de valor adicionado é a atividade que acrescenta, a um serviço de telecomunicações que lhe dá
suporte e com o qual não se confunde, novas utilidades relacionadas ao acesso, armazenamento, apresentação,
movimentação ou recuperação de informações.
§ 1º Serviço de valor adicionado não constitui serviço de telecomunicações, classificando-se seu provedor como
usuário do serviço de telecomunicações que lhe dá suporte, com os direitos e deveres inerentes a essa condição.
§ 2° É assegurado aos interessados o uso das redes de serviços de telecomunicações para prestação de serviços
de valor adicionado, cabendo à Agência, para assegurar esse direito, regular os condicionamentos, assim como
o relacionamento entre aqueles e as prestadoras de serviço de telecomunicações.
Novas tecnologias na Administração Pública, no mercado e na sociedade 93

Art. 1º Esta Lei estabelece princípios, garantias, direitos e deveres para o uso da inter-
net no Brasil e determina as diretrizes para atuação da União, dos Estados, do Distrito
Federal e dos Municípios em relação à matéria.
Art. 2º A disciplina do uso da internet no Brasil tem como fundamento o respeito à
liberdade de expressão, bem como: [...]
II - os direitos humanos, o desenvolvimento da personalidade e o exercício da cidada-
nia em meios digitais; [...]
VI - a finalidade social da rede.
Art. 3º A disciplina do uso da internet no Brasil tem os seguintes princípios: [...]
IV - preservação e garantia da neutralidade de rede;
V - preservação da estabilidade, segurança e funcionalidade da rede, por meio de
medidas técnicas compatíveis com os padrões internacionais [...]
Art. 4º A disciplina do uso da internet no Brasil tem por objetivo a promoção:
I - do direito de acesso à internet a todos;
II - do acesso à informação, ao conhecimento e à participação na vida cultural e na
condução dos assuntos públicos;
III - da inovação e do fomento à ampla difusão de novas tecnologias e modelos de
uso e acesso; [...]
Art. 6º Na interpretação desta Lei serão levados em conta, além dos fundamentos,
princípios e objetivos previstos, a natureza da internet, seus usos e costumes particu-
lares e sua importância para a promoção do desenvolvimento humano, econômico,
social e cultural.
Art. 7º O acesso à internet é essencial ao exercício da cidadania, e ao usuário são
assegurados os seguintes direitos: [...]
IV - não suspensão da conexão à internet, salvo por débito diretamente decorrente de
sua utilização;
V - manutenção da qualidade contratada da conexão à internet; [...]
XII - acessibilidade, consideradas as características físico-motoras, perceptivas, sen-
soriais, intelectuais e mentais do usuário, nos termos da lei; e
XIII - aplicação das normas de proteção e defesa do consumidor nas relações de
consumo realizadas na internet.
Art. 8º A garantia do direito à privacidade e à liberdade de expressão nas comunica-
ções é condição para o pleno exercício do direito de acesso à internet.

Pouco existe a discutir acerca do conteúdo de tais comandos, eloquentes por si, os
quais, entretanto, muito mais apresentam intenções do que fornecem ferramentas jurídicas
operacionalizáveis para cumprimento dos fins legais mediante intervenção administrativa
ou mesmo judicial. Nada obstante, a literalidade de tais disposições normativas atende aos
reclamos deste artigo e confirma que o acesso à internet pode e deve contar com a fiscali-
zação dos poderes públicos e exigir deles intervenções criativas.
94 Daniel Ferreira

Revendo a atuação-vocação da Prodepa, não seria difícil sustentar que a prestação


do acesso por meio de empresa pública se justifica na busca da mais expedita universali-
zação da rede e a preços que se supõe compatíveis com a essencialidade do serviço até
mesmo para exercício da cidadania. Dito de outro modo, os preços cobrados não podem ser
uma forma de ardilosamente afastar o cidadão do potencial controle dos gastos públicos, por
exemplo, nem mesmo para inibir a participação na construção orçamentária.
Outra revela-se por meio do Programa Internet para Todos, do Governo Federal, que
existe desde 2018 e pressupõe parcerias voluntárias com os governos locais. Dito programa
está vinculado ao Ministério da Ciência, Tecnologia, Inovações e Comunicações e tem por
objetivo:

[...] prover conexão às pessoas que vivem em uma localidade de um município. No


Brasil há mais de 30.000 localidades sem a conexão ou com prestação inadequada
de serviço de acesso à internet.
O Internet para Todos será implementado a partir de parcerias entre o MCTIC e muni-
cípios e executado por empresas credenciadas junto ao ministério.
Para participar do programa, os municípios deverão firmar um termo de adesão com
o MCTIC, no qual indicarão as localidades para atendimento. Esse termo define as
obrigações do município, como a garantia de infraestrutura básica para a instalação
dos equipamentos de conexão.
Os moradores das localidades indicadas pelos municípios terão a oportunidade de
contratar serviços de conexão à internet oferecidos por empresas prestadoras de ser-
viços de telecomunicações, que serão credenciadas pelo MCTIC a partir de janeiro de
2018. Essas empresas poderão prover elas mesmas os serviços ou trabalhar em
parceria com provedores locais para a sua efetiva disponibilidade.
O Internet para Todos não oferecerá o serviço gratuito, mas a preços reduzidos, pois a
empresa tem um ônus para manter a infraestrutura de conexão. Entretanto, a empresa
que atender essas localidades, por ter as garantias e isenções oferecidas pelo Progra-
ma, poderá oferecer um produto com um preço menor.
Como parte do esforço do governo federal para ampliar o acesso à internet em banda
larga no país, a Telebrás, por meio do Satélite Geoestacionário de Defesa e Comunica-
ções Estratégicas (SGDC), atuará na implantação do Internet para Todos.27

Com esse perfil, a ingerência indireta do governo federal no domínio econômico,


relativamente aos provedores de acesso à internet aperfeiçoa-se por meio de estímulo ao
engajamento do governo municipal, para que em parceria deste com a iniciativa privada
seja possível socializar o acesso, por meio de barateamento de preços (mediante isenções
fiscais), além de buscar a sua paulatina universalização.

27
BRASIL. Ministério da Ciência, Tecnologia, Inovações e Comunicações. Internet para todos. O que é o programa:
S.d. Disponível em: https://internetparatodos.mctic.gov.br/portal_ipt/opencms. Acesso em: 3 jan. 2020.
Novas tecnologias na Administração Pública, no mercado e na sociedade 95

A ideia parece conveniente e útil, converge para a construção de uma sociedade livre,
justa e solidária, mas só o tempo dirá se ela será suficiente para atender os direitos previstos
no Marco Civil da Internet ou se ainda será preciso intervir, indiretamente, mediante outros
mecanismos de fomento. Na insuficiência, pela importância de tal serviço e pelo seu induvi-
doso caráter de essencialidade, vê-se como plausível intervenção indireta regulatória, quem
sabe impondo, em caráter extraordinário e em certas regiões ou para certas pessoas, com
necessidades especiais provisórias ou permanentes, a prestação desse serviço agregado
(de valor adicionado) como conditio sine qua non de funcionamento da empresa privada
exploradora de atividade econômica ou de manutenção da outorga do serviço público conce-
dido/permitido, sem prejuízo de se abrir a discussão relativamente a quem será responsável
por custear o serviço, conforme disposto no §2º, do art. 61, da LGT. Crê-se que o encargo
econômico deva ser dos governos e que o encargo tecnológico seja assumido pelo em-
presariado atuante na localidade ou região, ainda que também subsidiado pelo governo por
conta da eventual necessidade de aumento da infraestrutura porventura existente. Portanto, a
necessidade de acesso à internet, e como condição de desenvolvimento que é, pode ensejar
intervenção estatal, direta ou indireta, que se robustece extraordinária, porém paulatinamen-
te, em qualidade e em quantidade, conforme a concreta necessidade.
Há que se tratar, também, da situação das pessoas que não tem condições econômi-
co-financeiras de custear o serviço, seja ele prestado pela iniciativa privada, seja ele dispo-
nibilizado até mesmo por empresas públicas. Por apenas um motivo, sem prejuízo de tantos
outros, entende-se que o pagamento por tais serviços seja de responsabilidade dos poderes
públicos, mais precisamente da Administração Pública. Afinal, como se exige, no Brasil,
transparência administrativa como exercício da cidadania ativa e como os serviços adminis-
trativos públicos estão sendo concretizados em atos e processos digitais visando conferir
maior transparência e obter economia de tempo e de recursos públicos (eficiência adminis-
trativa), então deve ser da alçada administrativa garantir os meios e as condições para que
tal “modernização” não afete negativamente a fruição de direitos e garantias fundamentais.
Como apontado por Thiago Marrara, o uso de “novas tecnologias voltadas à democratização
de informações e serviços públicos sem a devida observância de aspectos sociais, culturais
e econômicos corre o risco, já apontado, de restringir a cidadania e não ampliá-la”.28 E isso é
inconcebível, por evidente, relativamente à necessidade-utilidade de acesso à internet.
E enquanto isso não se concretizar, cogita-se de uma solução paliativa, qual seja
a de se garantir que toda e qualquer repartição pública disponibilize acesso à internet de
banda larga por meio de rede wi-fi de acesso ao público em geral, sem prejuízo de o mesmo
ocorrer em espaços públicos abertos, como parques. Tem-se notícia de que no Município de

28
MARRARA, Thiago. Direito administrativo e novas tecnologias. RDA – Revista de Direito Administrativo, Rio de
Janeiro, v. 256, p. 225-251, jan./abr. 2011. p. 240.
96 Daniel Ferreira

São Paulo já há centenas de pontos em que o acesso à internet, provido pelo Poder Público,
se universaliza, ainda que apernas perante a “coletividade” alcançada geograficamente pela
rede.
Derradeiramente, em relação ao dever estatal de evitar ou responder aos malefícios
derivados, direta ou indiretamente, do acesso à internet viabilizada por meio de serviços pri-
vados, vislumbra-se a regulação e a fiscalização (bem como seu desdobramento sanciona-
tório, se for o caso) como ferramentas legítimas e necessárias, não podendo haver omissão
injustificada nesse nicho, pelas razões fático-jurídica esmiuçadas. Entretanto, esse papel
aqui importa menos, e dispensa maior aprofundamento, por não se tratar de intervenção
inclusiva, voltada à ampliação do acesso.

5 CONSIDERAÇÕES FINAIS

A intenção inicial, quando do recebimento do convite para escrever o presente, era


tratar dos efeitos da adoção da Inteligência Artificial na sociedade, no mercado e na Adminis-
tração Pública, tendo como pano de fundo o desenvolvimento nacional. Contudo, num país
continental e ainda em fase de desenvolvimento, pareceu um contrassenso pretender tratar
dessa “novidade tecnológica” quando a questão de acesso (universal e economicamente
viável) à internet de banda larga, embora já relativamente vetusta, ainda está longe de se
resolver.
De todo modo, a investida acadêmica concretizada atendeu ao desafio proposto, no
sentido de provar a necessidade de sempre se revisar o tema do desenvolvimento em suas
variadas nuanças, mediante consideração, exame e crítica de benefícios e malefícios (con-
cretos ou potenciais) na sua promoção a partir de inovações tecnológicas, em especial em
segmentos críticos, como alimentação, saúde, geração de energia etc. Além disso, o case
examinado permitiu a realização de uma série de considerações e reflexões acerca da impor-
tância das inovações tecnológicas para a vida em sociedade, particularmente do acesso à
internet como ferramental apto a ampliar as competências e, pois, as próprias oportunidades
das pessoas físicas e jurídicas de satisfazerem suas pretensões, inclusive de alteração de
rumo, porque o facilitado acesso à informação, ao conhecimento e à comunicação amplia
os horizontes ao infinito.
A internet, a bem da verdade, “aumentou o mundo”, e o acesso a ela e aos apli-
cativos por ela disponibilizados permitem que o outrora impensável aconteça, derrubando
obstáculos de forma quase instantânea. Fronteiras físicas desaparecem. Barreiras linguís-
ticas são transpostas com grande facilidade. Ganham-se horas no dia pelo cumprimento
expedito de atividades por meio digital. Serviços são prestados por pessoas com as mais
variadas deficiências. Negócios são firmados eletronicamente com garantia de autenticidade.
Relações humanas podem ser mantidas à distância, permitindo interação escrita, verbal e/
ou visual em tempo real.
Novas tecnologias na Administração Pública, no mercado e na sociedade 97

Enfim, negar acesso a ela, direta ou indiretamente, é restringir o potencial de desen-


volvimento, em particular das pessoas humanas, de modo que eventual intervenção admi-
nistrativa (ou legislativa) no domínio econômico para que isso se concretize se mostra, in
potentia, conforme às leis e ao Direito, para além de necessária.

REFERÊNCIAS

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so em: 27 nov. 2019.
98 Daniel Ferreira

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SOARES, Inês Virginia Prado (Orgs.). Direito ao desenvolvimento. Belo Horizonte: Fórum, 2010.
Contratação temporária de professores substitu-
tos: a problemática da “sucessividade” e o dile-
ma das pequenas unidades administrativas

Eduardo dos Santos Dionizio


Especialista em Direito Processual Civil (Unisc)
Diretor Geral do Tribunal de Contas do Estado de Mato Grosso do Sul
Advogado

SUMÁRIO: 1 Introdução; 2 Necessidade de lei, necessidade temporária e a excepcionalidade do in-


ciso IX do art. 37 da CF/88; 3 Contratação/convocação temporária de professor substituto; 4 A questão
da “sucessividade” ou recontratação do mesmo profissional; 5 O processo seletivo como corolário dos
princípios da impessoalidade e da moralidade administrativa; 6 A exigência de motivação como pressu-
posto de validade do ato de contratação temporária; 7 Considerações finais; Referências.

1 INTRODUÇÃO

É sabido por todos que o acesso a cargos e empregos públicos1 é em regra, a via do
concurso público. Tal mandamento constitucional que guarda lugar no inciso II do artigo 37
da vigente Constituição Federal2 não deixa margem para interpretações diversas, haja vista
que corolário com os princípios insculpidos no caput do mesmo dispositivo e com a intenção
do constituinte em assegurar a universalização do acesso a cargos públicos.
Exceção à regra guarda previsão no mesmo artigo 37, cujo inciso IX preconiza que “a
lei estabelecerá os casos de contratação por tempo determinado para atender a necessidade
temporária de excepcional interesse público”. Fato é que, tornou-se rotina em áreas estraté-
gicas da administração pública, nas três esferas de governo, contratações desta natureza em
especial na área da educação a que se destina o presente estudo.

1
Nas palavras de Odete Medauar, em seu livro Direito Administrativo Moderno, “Cargo público é o conjunto de atri-
buições e responsabilidades cometidas a um servidor, criado por lei, em número certo, com denominação própria,
remunerado pelos cofres públicos”. (MEDAUAR, Odete. Direito administrativo moderno. 21. ed. Belo Horizonte:
Fórum, 2018. p. 270).
2
II - a investidura em cargo ou emprego público depende de aprovação prévia em concurso público de provas ou
de provas e títulos, de acordo com a natureza e a complexidade do cargo ou emprego, na forma prevista em lei,
ressalvadas as nomeações para cargo em comissão declarado em lei de livre nomeação e exoneração;
100 Eduardo dos Santos Dionizio

É indiscutível que educação e saúde são setores da administração que mais deman-
dam por mão de obra, inclusive especializada, seja pelo seu caráter de política pública essen-
cial, cuja providência é em primeiro plano do ente estatal, seja porque, dada sua abrangência,
exige-se número significativo de colaboradores. Nesse contexto, nem sempre o quantitativo
de servidores que compõe os quadros efetivos do órgão atende a contento a prestação do
serviço público, mormente se ocorrerem situações inesperadas.
A oferta de tais serviços públicos, por se tratarem de áreas fins da administração, o
provimento3 de seus cargos devem ocorrer pela via regular do concurso público. Ocorre que,
há situações em que não é possível prover cargos, e isso ocorre quando seus ocupantes
os deixam temporariamente para desempenhar outras funções, surge daí a necessidade da
contratação temporária a fim de manter a oferta do serviço.
No âmbito da educação, inúmeros são os professores do quadro efetivo que se
encontram lotados em outras funções de magistério4, administrativas ou até mesmo ocu-
pando cargos eletivos. São essas vagas, somadas a outras decorrentes de afastamentos ou
licenças que são cotidianamente supridas por profissionais contratados temporariamente.
Hodiernamente, órgãos de controle, especialmente os Tribunais de Contas e o Poder
Judiciário vem decidindo no sentido de obstar que os entes federados mantenham sucessi-
vas contratações da mesma pessoa, sob o fundamento de que, ao agir desta forma, está a
administração a ferir o princípio do concurso público.
Tal entendimento tem sido motivo de preocupações de Prefeitos e gestores da edu-
cação de pequenos Municípios, tendo em vista que, nestas unidades a oferta desta mão
de obra é um tanto quanto escassa, diferentemente das grandes e médias cidades que, ao
deflagrar uma seleção simplificada conta com farto quantitativo de candidatos inscritos.
No presente trabalho, muito longe de querer esgotar o tema, pretende-se demonstrar
que, independentemente de quem seja a pessoa a ser contratada temporariamente, oriunda
ou não de vínculos anteriores, a realização periódica de processo seletivo simplificado afasta
a pessoalidade, contempla a moralidade e corrobora para a escolha de profissionais melhor
preparados para o desempenho da docência.

3
Para Marçal Justen Filho, “O provimento consiste em ato administrativo unilateral, por meio do qual o Estado
atribui a determinado particular a condição de titular de um cargo” (JUSTEN FILHO, Marçal. Curso de direito
administrativo. 8. ed. rev. ampl. e atual. Belo Horizonte: Fórum, 2012. p. 891).
4
São profissionais que oferecem “suporte pedagógico” direto ao exercício da docência: direção ou administração
escolar, planejamento, inspeção, supervisão, orientação educacional e coordenação pedagógica. (art. 22, II da Lei
11.494/2007).
Contratação temporária de professores substitutos 101

2 NECESSIDADE DE LEI, NECESSIDADE TEMPORÁRIA E A


EXCEPCIONALIDADE DO INCISO IX DO ART. 37 DA CF/88

Para fins do presente estudo, necessário se faz entender o que determina o inciso IX
do artigo 37, já alhures transcrito.
É de se ver que, logo de início, referido dispositivo se apresenta como norma cons-
titucional de eficácia limitada, pendente, portanto, de regulamentação. Nesse sentido,os
casos de contratação para atender a necessidade temporária, hão que estar previstos em
lei, inclusive quanto à excepcionalidade. Não está autorizada a administração a promover
contratações temporárias de forma deliberada senão por expressa autorização legal, haja
vista a precariedade da disciplina tratada no citado inciso IX.
Ao julgar a ADI n. 3662/MT5 o Supremo Tribunal Federal entendeu que a Constituição
Federal “é intransigente em relação ao princípio do concurso público como requisito para o
provimento de cargos públicos” e ainda que “a exceção prevista no inciso IX do art. 37 da CF
deve ser interpretada restritivamente, cabendo ao legislador infraconstitucional a observância
dos requisitos da reserva legal”. Nesse sentido, vale ressaltar que, é a lei quem vai estabele-
cer a excepcionalidade, a necessidade temporária, os casos e o período em que ocorrerá a
contratação por tempo determinado.
Contratações temporárias realizadas de forma genérica, sem que haja a exata
quantificação dos cargos, o período em que estas se darão e a clara demonstração do
interesse público envolvido fere de morte o mandamento constitucional previsto no inciso
IX do art. 37.
Fabricio Motta6 ao discorrer sobre a Lei autorizadora assevera que, “Não atende aos
requisitos constitucionais a lei que meramente autoriza contratações, estabelecendo o quan-
titativo ou o nome dos contratados, sem a necessária caracterização do interesse (público)
a ser atendido”.
Em resposta à consulta formulada pelo município de Costa Rica-MS, o Tribunal de
Contas do Estado de Mato Grosso do Sul em percuciente Parecer-Consulta7 da Relatoria
do Conselheiro Iran Coelho das Neves entendeu que “é possível a contratação temporária
de professores, desde que preenchidos os seguintes requisitos: (i) excepcional interesse
público; (ii) temporalidade da contratação; e, (iii) hipótese expressamente previstas em lei.
Todavia, a regra para a investidura nos cargos de professores é mediante a realização de
concurso público (art. 37, II; e, art. 206, V: CF)”.

5
ADI 3662/MT - Relator: Min. Marco Aurélio, Redator: Min. Alexandre de Moraes. Julgado em: 23/03/2017.
6
DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella; MOTTA, Fabrício; FERRAZ, Luciano de Araújo. Servidores públicos na Constitui-
ção Federal. 3. ed. São Paulo: Atlas, 2015. p. 87.
7
Parecer Consulta n. 00-10/2018. Tribunal Pleno. Relator: Cons. Iran Coelho das Neves. Julgado em 31/10/2018.
Publicado no DOE-TCE/MS n. 1905 de 26/11/2018.
102 Eduardo dos Santos Dionizio

As condicionantes impostas pelo referido parecer guardam total conformidade com


a sistemática constitucional, haja vista que se constituem em expressas cláusulas de bar-
reira com a finalidade de se evitar que o princípio do concurso público seja desvirtuado. De
forma mais detalhada ainda, o posicionamento do TCE-MS foi no sentido de que: “Cada
ente federado deverá possuir sua lei própria, em sentido estrito, que defina as hipóteses de
excepcional interesse público, a forma de realização do processo seletivo simplificado, e a
temporalidade das contratações temporárias de professores.”.
Importa ressaltar que a necessidade reside no aspecto temporal, algo que, em um
dado momento cessará, enquanto que a excepcionalidade apresenta-se como sendo algo
incomum, fora da rotina do serviço público, aquilo que, se ausente, pode comprometer o
interesse dos administrados. Nesse sentido, assevera Gustavo Alexandre Magalhães que:
“Além de se tratar de necessidade transitória, é importante perquirir se é realmente indispen-
sável, ou seja, se não há outra maneira de suprir a demanda gerada por fatores excepcionais,
sob pena de banalização do instituto e, consequentemente, ofensa à exigência do concurso
público”.8
Conclui-se, portanto, que são a “necessidade temporária” e o “excepcional interesse
público” indicativos para a “contratação por tempo determinado”, de sorte que, uma vez
ausente um daqueles, não faz sentido essa subsistir. Sendo assim, pode-se afirmar que a
necessidade permanente deve sempre ser socorrida pela nomeação do agente precedida de
concurso público.

3 CONTRATAÇÃO/CONVOCAÇÃO TEMPORÁRIA DE
PROFESSOR SUBSTITUTO

A Constituição Federal9 estabelece que a educação é direito de todos e dever do


estado e da família. Cabe, portanto, a estas instituições prover os meios necessários para
que o indivíduo tenha acesso ao mundo letrado, à cidadania e à qualificação para o trabalho.
Seguramente são estes os grandes objetivos da política educacional brasileira.
Não diferente dos demais, o acesso ao cargo de professor, deve ocorrer pela via
ordinária do concurso público. Utilizar-se de outros meios para prover,10 em definitivo, esses
cargos, viola a Constituição Brasileira.

8
MAGALHÃES, Gustavo Alexandre. Contratação temporária por excepcional interesse público: aspectos polêmi-
cos. 2. ed. São Paulo: Atlas, 2012. p. 134.
9
Art. 205. A educação, direito de todos e dever do Estado e da família, será promovida e incentivada com a cola-
boração da sociedade, visando ao pleno desenvolvimento da pessoa, seu preparo para o exercício da cidadania e
sua qualificação para o trabalho.
10
Provimento é o ato pelo qual o poder público designa para ocupar cargo, emprego ou função a pessoa física que
preencha os requisitos legais (DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella; MOTTA, Fabrício; FERRAZ, Luciano de Araújo.
Servidores públicos na Constituição Federal. Op. cit., p. 75).
Contratação temporária de professores substitutos 103

A convocação de professores em caráter temporário é uma realidade presente no


âmbito todos os entes federados, haja vista a continuidade desta política pública que, a
exemplo da saúde, deve ser permanente e ofertada com a máxima qualidade.
No âmbito da união federal a contratação por tempo determinado em cumprimento
ao disposto no inciso IX do art. 37 da CF, está disciplinada na Lei 8.745, de 9 de dezem-
bro de 1993. Dentre seus dispositivos, a regra contida no art. 2º considera, entre outros
casos, como necessidade temporária de excepcional interesse público a admissão de
professor substituto e professor visitante. A exemplo da administração federal, Estados
e Municípios também disciplinam os casos de contratação por tempo determinado em
legislações próprias.
Importa consignar que a contratação/convocação de professores por tempo deter-
minado difere significativamente dos demais casos que rotineiramente surgem no âmbito da
administração pública, isso porque, indiscutivelmente trata-se de mão de obra especializada.
Não faria sentido promover processo seletivo para recrutar professores dentre pessoas que
não tenham a devida formação na área cuja necessidade se apresenta.
Inúmeros são os casos em que se faz necessário esse tipo de contratação, sem
que seja pela via do concurso público. A par disso, cabe no presente estudo, estabelecer
duas diferenças básicas quanto a vagas sujeitas a concurso e vagas que jamais poderão se
sujeitar aos parâmetros ordinários do concurso.
A título de exemplo, as vagas que obrigatoriamente estão sujeitas a serem providas
mediante a realização de certame, são aquelas que surgem pela exoneração, demissão,
redistribuição, aposentadoria ou óbito. Nesses casos, a contratação por tempo determinado,
quando necessária, deve cessar assim que ocorra a nomeação do servidor aprovado no
concurso. Ressalte-se que, contratações sucessivas sobre cargos vacantes pressupõe burla
ao princípio do concurso público.
De outro norte, é recorrente, especialmente no âmbito dos Estados e dos Municípios
o preenchimento de inúmeras vagas pela via da contratação temporária, não pela vacância
do cargo, mas pela ausência temporária de seu ocupante. São professores que passam a
desempenhar outros cargos11 ou funções na administração pública, inclusive funções de
magistério.12 Pode ocorrer ainda nos casos de licença para tratamento da própria saúde,
gestante, para acompanhamento de cônjuge ou no caso de posse em cargo inacumulável.13

11
São inúmeros os professores que são convidados a ocupar cargos de direção superior, como é o caso de ser
nomeado Secretário de Educação.
12
Nos termos do inciso II do artigo 22 da Lei 11.494/2007, são “profissionais do magistério da educação: docentes,
profissionais que oferecem suporte pedagógico direto ao exercício da docência: direção ou administração escolar,
planejamento, inspeção, supervisão, orientação educacional e coordenação pedagógica;”
13
Como é o caso de alguns cargos eletivos.
104 Eduardo dos Santos Dionizio

Todas as vezes que o professor é alçado a outros cargos ou funções que não a da
docência sua vaga deve ser suprida sob pena de comprometer o interesse público envolvido,
neste caso, a continuidade das aulas aos estudantes.
Ainda sobre o tema, o Supremo Tribunal Federal14 entendeu pela constitucionalidade
de lei autorizativa para contratação temporária de professores ainda que os cargos este-
jam vagos, para atender a determinadas situações transitórias, como já dito, os eventuais
afastamentos. Assim, entendeu a Suprema Corte que: “O artigo 37, IX, da Constituição exi-
ge complementação normativa criteriosa quanto aos casos de ‘necessidade temporária de
excepcional interesse público’ que ensejam contratações sem concurso. Embora recruta-
mentos dessa espécie sejam admissíveis, em tese, mesmo para atividades permanentes da
Administração, fica o legislador sujeito ao ônus de especificar, em cada caso, os traços de
emergencialidade que justificam a medida atípica.”.
O objeto da referida ADI foi a Lei Complementar n. 22/2000 do Estado do Ceará que
autoriza a contratação temporária de professores em situações como: licença para tratamen-
to de saúde, licença gestante, licença por motivo de doença de pessoa da família, licença
para trato de interesses particulares e cursos de capacitação.
Em situações como essas, não há que se falar na realização de concurso público
para provimento do cargo, pois conforme já dito, não ocorrera sua vacância definitiva, mas
sim, uma espécie de vacância provisória, ou seja, a qualquer momento o titular do cargo
pode retornar a desempenhar suas atribuições, daí sua natureza transitória. Evidentemente
que tal situação não prescinde da realização de regular processo seletivo simplificado con-
forme será abordado no presente estudo.

4 A QUESTÃO DA “SUCESSIVIDADE” OU RECONTRATAÇÃO


DO MESMO PROFISSIONAL

O inciso III do art. 9º da Lei 8.745/9315, cujo escopo de abrangência se aplica à


União, estabelece que a pessoa contratada não pode ser novamente contratada antes de
decorridos 24 meses do encerramento do contrato anterior, aplicando-se tal regra aos casos
de professores substitutos.
Por sua vez, o Decreto Federal n. 94.664 de 23 de julho de 198716 prevê no art. 9º
do seu anexo que poderá haver contratação de professor substituto por prazo determinado,

14
ADI 3721, Relator:  Min. Teori Zavascki, Tribunal Pleno, julgado em 09/06/2016, Acórdão Eletrônico DJe-170
Divulg. 12-08-2016. Publicado em 15-08-2016.
15
Referida Lei regulamenta os casos de contratação por tempo determinado no âmbito da União.
16
Aprova o Plano Único de Classificação e Retribuição de Cargos e Empregos de que trata a Lei n. 7.596 de 10 de
abril de 1987.
Contratação temporária de professores substitutos 105

na forma da legislação trabalhista, para substituições eventuais de docente das carreiras


de Magistério. Estabeleceu a referida norma que “o prazo total de contratação de professor
substituto, incluídas as renovações ou prorrogações, não será superior a um ano”.
Definiu ainda o Decreto que as substituições poderão se dar “nos casos de exone-
ração ou demissão, falecimento, aposentadoria, afastamento para tratamento de saúde e
licença a gestante.”.
Tal mandamento legal está replicado em inúmeras leis autorizadoras de contratação
por tempo determinado, nos diversos entes federados, provocando uma série de interpreta-
ções que, ao nosso sentir, acaba por prejudicar o interesse público como se verá a seguir.
Conforme já abordado no presente estudo, o cargo de professor só pode ser provido
pela via regular do concurso público, porém, ante as circunstâncias que exigem que determi-
nadas funções no âmbito do magistério só podem ser desempenhadas por profissionais do
quadro efetivo, surgem a partir daí as denominadas “vagas não puras”,17 a serem ocupadas
de maneira precária pela via da contratação por tempo determinado.
Dado o caráter transitório da vaga que eventualmente surge, não nos parece racional
impedir determinado profissional de ser contratado por sucessivas vezes para determinada
função, sob o argumento de possível perpetuação do vínculo com a administração pública e
eventual burla ao princípio do concurso público. Há que se observar que, o caráter provisório
deve estar atrelado à “função” de professor substituto e não à “pessoa” que a desempenha
e que fora devidamente aprovada em processo seletivo.
Assim, é perfeitamente possível que, findo o contrato, determinada pessoa que ocu-
pou vaga temporária, volte a competir em novo processo seletivo, objetivando novo vínculo
provisório. Desse modo, respeitados estariam os princípios da razoabilidade, da igualdade e
da isonomia para o acesso a cargos e funções públicas.
Insistimos que, o comando para que se autorize a contratação é a necessidade tem-
porária e o excepcional interesse público, ao tempo em que a escolha de quem irá laborar
precedida de seleção objetiva, afasta qualquer tipo de escolha direta que fira os princípios
da moralidade e da impessoalidade. Restando preservados os princípios norteadores da
atividade administrativa, a preocupação deve recair sobre a qualidade da mão de obra o que
também, conforme já dito, é possível pela via do processo seletivo.
Em recente julgado que culminou no tema 403 o Supremo Tribunal Federal no RE
635.648 entendeu que “a previsão legal que ‘não autoriza’ nova contratação de professor
substituto sem a observância de interstício mínimo concretiza a moralidade administrativa”.

17
Considera-se “vaga pura” aquela decorrente da vacância do “cargo” que somente pode ser ocupada por servidor
aprovado em concurso público.
106 Eduardo dos Santos Dionizio

Data máxima vênia, não nos parece adequado se aplicar tal entendimento de forma
genérica, porquanto não se observar a realidade enfrentada por inúmeros municípios Brasil
afora.
Existem diferenças gritantes na oferta de mão de obra de professor entre as grandes
cidades brasileiras e as pequenas unidades administrativas que, diga-se de passagem, são
inúmeras. No primeiro caso, ao se deflagrar um edital para seleção temporária de professo-
res, milhares de profissionais concorrerão, haja vista a farta oferta. Tal realidade não ocorre
nos pequenos Municípios. No mais das vezes, são os mesmos profissionais que concorrem
ao certame, configurando desta feita as sucessivas contratações da mesma pessoa.
Em recente decisão, o Tribunal de Contas do Estado de Mato Grosso do Sul entendeu
pelo não registro do ato de contratação temporária por violação à norma constitucional, haja
vista que em sede de controle externo verificou-se “contratações sucessivas do mesmo
agente para exercer a mesma função, que evidencia ausência de determinabilidade do prazo
de contratação, de temporariedade e de excepcionalidade de situação de interesse público,
em detrimento à obrigatoriedade do concurso público”.18 Aliás, é este o entendimento que
vem se consolidando no âmbito daquela Corte de Contas.
Acertada foi a balizada decisão do TCE-MS quando se constatou no ato de contra-
tação temporária a ausência de requisitos essenciais à sua validade, quais sejam, o prazo e
a excepcionalidade para a admissão do profissional, além, das “sucessivas contratações”.
Não obstante os acertos do referido acórdão, chama-se à atenção a aspectos voltados aos
termos “mesmo agente para exercer a mesma função”, o que se verá mais adiante.
Não é incomum que, muitos municípios brasileiros por repetidas vezes, se descuram
dos mais comezinhos deveres na formalização do ato administrativo, dentre eles a observân-
cia do princípio da motivação, como se verá no presente estudo. No caso do citado julgado,
não poderia ser diferente, a decisão do relator em que se constatou a presença de elementos
que descaracterizam a necessidade da contratação por tempo determinado.
Na mesma linha, Cármen Lúcia Antunes Rocha ao discorrer sobre contratações su-
cessivas nos leciona que, “Não configura ofensa à isonomia a previsão legal de proibição,
por prazo determinado, de nova contratação de candidato já anteriormente admitido em pro-
cesso seletivo simplificado para atender a necessidade temporária de excepcional interesse
público, sob pena de transformar-se ‘em ordinário o que é, pela sua natureza, extraordinário
e transitório”.19

18
Acórdão 02-500/2019. Processo TC/MS-31625/2016. Relator Cons. Ronaldo Chadid. Publicado em: 07/08/2019.
19
ROCHA, Cármen Lúcia Antunes. Princípios constitucionais dos servidores públicos. São Paulo: Saraiva, 1999.
p. 244.
Contratação temporária de professores substitutos 107

Ao se consolidar tais entendimentos, que, são mais que louváveis, as consequências


práticas, especialmente sobre os pequenos Municípios podem ser desastrosas e compro-
metedoras do interesse público envolvido, qual seja, a manutenção do tão almejado ensino
de qualidade.
Nesse sentido, ao nosso sentir, a realização periódica de processo seletivo simplifi-
cado para suprir temporariamente vagas que surgem em razão do afastamento temporário de
seu titular é corolário aos princípios da impessoalidade e da moralidade, mesmo que, reste
melhor classificada a pessoa que já tenha sido contratada mediante seleção anterior.
Há que se ter muito claro que a possibilidade de recontratação, deve ser limitada
no tempo, por prazo razoável, não superior a 24 meses como ocorre em várias unidades
administrativas da federação brasileira, hipótese em que o profissional deverá se submeter
a nova seleção.

5 O PROCESSO SELETIVO COMO COROLÁRIO DOS


PRINCÍPIOS DA IMPESSOALIDADE E DA
MORALIDADE ADMINISTRATIVA

A atividade administrativa é amplamente vinculada aos ditames da Lei (princípio da


legalidade). Não obstante, os atos decorrentes desta atividade devem, também, total obe-
diência aos demais princípios insculpidos no caput do art. 37 da magna carta, quais sejam
o da impessoalidade, da moralidade, da publicidade e da eficiência.
Não basta que a lei estabeleça os casos de contratação por tempo determinado,
imperioso é que, a escolha do agente que irá laborar no âmbito da administração ocorra
mediante processo seletivo simplificado em que restem consignados critérios objetivos em
sua aplicação. O Edital que visa proceder ao recrutamento de pessoal a ser contratado deve,
em obediência ao princípio da publicidade, ser devidamente divulgado, a exemplo do que
preconiza o art. 3º da Lei 8.745/93.20
Acertado foi o posicionamento do TCE-MS, quando no já mencionado Parecer-C im-
pôs como obrigatória a realização de processo seletivo simplificado para fins de contratação
temporária de professores e assim o fez “em virtude do princípio da impessoalidade (art. 37,
caput, CF), devendo a Administração Pública adotar os seguintes critérios mínimos: a) ter
edital público, com ampla divulgação; b) fixar, no edital, critérios objetivos e impessoais para
a seleção dos interessados; e, c) publicar o resultado, a homologação, e a classificação
de cada candidato com as notas finais obtidas.”

20
“Art. 3º O recrutamento do pessoal a ser contratado, nos termos desta Lei, será feito mediante processo seletivo
simplificado sujeito a ampla divulgação, inclusive através do Diário Oficial da União, prescindindo de concurso
público”.
108 Eduardo dos Santos Dionizio

De outro norte, não se pode confundir processo seletivo simplificado com concurso
público, haja vista que aquele visa precipuamente selecionar pessoas em caráter precário
e transitório, enquanto perdure o excepcional interesse público, de outra banda, este visa
prover, em caráter definitivo, cargos ou empregos públicos. “Essa seleção não substitui nem
elimina a obrigatoriedade de posterior concurso, no caso de necessidade permanente dos
serviços e da mão de obra, nem pode ser fonte de direito à permanência do contratado na
função”.21
Sobre o assunto, em recente julgado o Supremo Tribunal Federal22 decidiu que: “em-
bora não se aplique integralmente as regras do concurso público para as contratações por
necessidade temporária, deve a seleção simplificada observar os princípios da impessoali-
dade e da moralidade, inscritos no art. 37, caput, da CRFB”.
Pode se afirmar que a escolha das pessoas que irão atuar como contratados tempo-
rariamente se precedida de regular processo seletivo simplificado é capaz de assegurar não
somente a obediência a esses princípios, mas como também possibilitar a escolha da mão
de obra melhor qualificada para o exercício da função pública.
Vale ressaltar que, são condições inarredáveis para o suprimento temporário de
vagas de professores: i) a Lei autorizadora em que se descreva expressamente os casos
de contratação por tempo determinado, ii) a necessidade temporária e iii) o excepcional
interesse público envolvido, além evidentemente, da motivação do ato de nomeação. “O
diploma legislativo estabelecerá critérios objetivos para a identificação das hipóteses em que
o excepcional interesse público justificará a contratação”.23
Conforme já dito, rotineiramente surgem os casos em que o interesse público não
pode restar prejudicado em razão da falta de providências pela administração. No caso do
ensino, não resta facultado ao gestor público ofertá-lo ou não, constitui-se um “dever”.24
Por outro lado, nem sempre as vagas existentes serão providas mediante a realização
do concurso público haja vista que a qualquer momento o seu titular pode reassumi-la. Ainda
existem os casos de vacância do cargo pelos motivos já alhures elencados que, enquanto se
aguarda a realização do certame, devem ser ocupados temporariamente.

21
DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella; MOTTA, Fabrício; FERRAZ, Luciano de Araújo. Servidores públicos na Constitui-
ção Federal. Op. cit., p. 90.
22
RE 635.648, Ceará - Relator Min. Edson Fachin. Julgado em: 14/06/2017.
23
DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella; MOTTA, Fabrício; FERRAZ, Luciano de Araújo. Servidores públicos na Constitui-
ção Federal. Op. cit., p. 87.
24
O Art. 205 da Constituição Federal de 1988 expressamente determina que: “A educação, direito de todos e dever
do Estado e da família, será promovida e incentivada com a colaboração da sociedade, visando ao pleno desen-
volvimento da pessoa, seu preparo para o exercício da cidadania e sua qualificação para o trabalho”.
Contratação temporária de professores substitutos 109

É neste cenário que surge a figura da seleção simplificada como mecanismo eficiente
e capaz de afastar escolhas pessoais que, do ponto de vista principiológico são de um todo
imorais.

6 A EXIGÊNCIA DE MOTIVAÇÃO COMO PRESSUPOSTO DE


VALIDADE DO ATO DE CONTRATAÇÃO TEMPORÁRIA

A motivação do ato administrativo é seguramente pressuposto para sua validade,


porquanto, a explicitação das razões que levaram a sua prática coaduna-se com o respeito
que se deve dar à coisa pública.
É dever da administração se desincumbir das necessárias justificativas que demons-
trem de forma clara e objetiva que a prática do ato é necessária, se volta ao atendimento do
interesse público e está de acordo com os princípios norteadores da atividade administrativa.
São estes aspectos que revestem o ato, inclusive de contratação temporária de professores,
de elementos essenciais à sua validade.
No caso das contratações por tempo determinado, além dos requisitos legais e pro-
cedimentais já mencionados no presente trabalho, o ato que estabelece o vínculo do agente
com a administração, deve demonstrar clara e expressamente o interesse público envolvido.
No caso de substituição de professores, dados relevantes como o nome do substituído,
razões para o suprimento da vaga, local da prestação dos serviços, dentre outros, devem
compor a motivação do ato.
É comum no âmbito dos Municípios ocorrerem contratações temporárias por meio
de portarias ou decretos totalmente desprovidos das necessárias justificativas que levaram
à sua formalização. Ressalte-se que, tais práticas devem ser definitivamente extirpadas da
atividade administrativa, sob pena de “banalizar” o instituto da contratação temporária.

7 CONSIDERAÇÕES FINAIS

A atividade administrativa é de crucial importância para que as políticas públicas


cumpram seu desiderato, especialmente no que diz respeito ao alcance de seus resultados
de forma que os administrados sejam alcançados pelos efeitos da sua efetividade.
O funcionamento da máquina administrativa é impulsionado por colaboradores que,
nos termos da constituição Federal denominam-se “servidores públicos”. São estes os res-
ponsáveis por operacionalizar o complexo de ações que diariamente permeiam a oferta de
determinado serviço público.
110 Eduardo dos Santos Dionizio

Diferentemente do que ocorre na iniciativa privada, em que a seleção de colabora-


dores ocorre, em regra, por escolha direta e pessoal de seus dirigentes, na administração a
composição de seus quadros deve ocorrer mediante prévio concurso público.
Como se verificou no presente estudo, a Constituição Federal é “intransigente” quan-
to à realização de concurso público para o provimento de cargo e empregos públicos na
administração. É o concurso, instrumento hábil a assegurar a universalização do acesso a
cargos públicos com isonomia e imparcialidade, ao tempo em que possibilita o ingresso dos
melhores profissionais em seus quadros. Porém, conforme se extrai do presente trabalho, há
casos em que determinadas vagas, não podem ser objeto de provimento pela via do concur-
so, são as chamadas contratações temporárias.
Procurou-se demonstrar que a contratação temporária de professores, especialmen-
te pelas pequenas unidades administrativas é permeada de peculiaridades que exigem um
olhar diferenciado quanto à sua operacionalização. Não obstante a acertada tendência da
jurisprudência no sentido de impedir que ocorram sucessivas contratações de uma mesma
pessoa, entendemos que a realização periódica de processo seletivo simplificado são co-
rolários dos princípios da impessoalidade e da moralidade e afastam de per si as escolhas
diretas.
Evidentemente que a administração não está autorizada a promover contratações por
tempo determinado de forma desenfreada. Necessário se faz que as leis que autorizam tais
contratações estejam conforme o que preconiza o inciso IX do artigo 37 da Constituição Fe-
deral. Legislações genéricas que tratem deste assunto devem ser severamente combatidas
pelos órgãos de controle.
Dada a complexidade que envolve o tema, o que se espera é que o presente estudo
sirva de reflexão no sentido de ampliar o debate em torno da problemática das contrata-
ções sucessivas do mesmo agente e a realidade enfrentada pelos pequenos Municípios
brasileiros.

REFERÊNCIAS

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Contratação temporária de professores substitutos 111

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JUSTEN FILHO, Marçal. Curso de direito administrativo. 8. ed. rev. ampl. e atual. Belo Horizonte:
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ROCHA, Cármen Lúcia Antunes. Princípios constitucionais dos servidores públicos. São Paulo: Sa-
raiva, 1999.
Estado gerencial, regulação e desenvolvimento:
o papel da Administração Pública na indução
dos agentes privados à promoção social

Emerson Affonso da Costa Moura


Doutor em Direito (UERJ)
Professor adjunto (UFRJ)
Professor convidado do Mestrado (UFRJ/UFRRJ)

SUMÁRIO: 1 Introdução; 2 O Estado gerencial brasileiro; 3 Regulação estatal; 4 O direito humano


fundamental ao desenvolvimento e a Administração Pública; 5 Considerações finais; Referências.

1 INTRODUÇÃO

Em sociedades pluralistas, a ordem constitucional tende a refletir sob as convergên-


cias e divergências das forças políticas e sociais, uma carta compromissória que veicula sob
o manto de um pluralismo ideológico, aparentes conflitos entre interesses inicialmente tidos
como inconciliáveis.
A Constituição da República de 1988 reflete a tensão entre o influxo ideológico liberal
– exteriorizado na persecução do desenvolvimento econômico com a consagração da livre
iniciativa – e social – materializado na exigência de superação das desigualdades sociais e
na consecução de uma existência digna para todos.
Com as reformas estatais neoliberais que subtraíram a exclusividade do poder públi-
co no exercício da atividade econômica e na prestação dos serviços públicos permitindo a
expansão da iniciativa privada em atuações de interesse da coletividade, torna-se necessária
uma intervenção estatal que conduza a realização dos valores socialmente almejados.
Isto porque embora consagre um regime liberal de exploração da atividade econô-
mica, que será exercida precipuamente pela iniciativa privada em atenção aos princípios da
livre iniciativa e do direito de propriedade, igualmente previu a Constituição Federal de 1988
o atendimento pela busca dos valores sociais do trabalho e da dignidade da pessoa humana.
Busca o presente trabalho, investigar em que medida a atuação da Administração
Pública é capaz de conformar o exercício da atividade econômica exercida pelos sujeitos
privados na exploração da atividade administrativa, de forma a contribuir com a promoção
do desenvolvimento social.
114 Emerson Affonso da Costa Moura

De início, a análise concentra-se na ascensão do Estado Gerencial de modo a deli-


mitar a partir das reformas administrativas, a transição de um modelo hierarquizado, patri-
monialista e ineficiente para uma configuração policêntrica, flexível e eficiente que conduz à
intervenção da iniciativa privada e a atividade regulatória estatal.
Após, volta-se o estudo à intervenção regulatória segundo seus fundamentos e a
partir de seus caracteres, de forma a definir a intervenção estatal como instrumento capaz de
conciliar as questões econômicas e sociais contribuindo na criação de um ambiente propício
para o avanço econômico e desenvolvimento social.
Por fim, compreende o efeito da consagração do direito humano fundamental ao de-
senvolvimento na ação administrativa e, portanto, o papel intervencionista do Estado como
não somente mediador que garante a competitividade e o lucro, mas orienta a ação do agente
privado ao influxo dos objetivos sociais previstos pela Constituição.

2 O ESTADO GERENCIAL BRASILEIRO

Inicia a Administração Pública Brasileira o século XX com um modelo oligárquico e


patrimonialista, marcado pelo predomínio da corrupção, do nepotismo e da ineficiência na
gestão estatal, em uma economia com baixo grau de competitividade e concentração da
função pública em uma sociedade eminentemente aristocrática.1
Não obstante, a ascensão do governo autoritário2 e a aceleração do processo de in-
dustrialização na década de 30 importam na mudança para um padrão burocrático denotado
pelo formalismo exacerbado, a hierarquia e o controle rígido dos processos, que buscou
imprimir impessoalidade e eficácia na atuação administrativa.
Neste modelo organizacional burocrática, a Administração Pública passa a mover-
-se na esfera de competências previamente definidas, com relações estáticas baseadas na
autoridade e submissão, atividade especializada pela divisão racional e a criação de procedi-
mentos que gerem a prestação padronizada dos serviços públicos.
Sob um prisma, o ideal de burocracia profissional foi frustrado pela persistência das
concessões patrimonialistas transvertidas na forma de clientelismo e nos eventuais limites

1
Tanto no Brasil Império quanto no primeiro período da República, enquanto os senhores de Terra e os grandes
comerciantes se ocupavam da economia, ao Estamento burocrático ligado por laços de família ao patriarcado
rural cabia dominar com relativa autonomia o Estado e a Política. BRESSER-PEREIRA, Luiz Carlos. Do Estado
patrimonial ao gerencial. In: PINHEIRO, Paulo S.; WILHEIM, Jorge; SACHS, Ignacy (Orgs.). Brasil: um século de
transformações. São Paulo: Cia. das Letras, 2001. p. 222.
2
Pertinente é a distinção entre Estado autoritário e Estado fascista proposta por Azevedo Amaral, delimitando o
período do Estado Novo como governo, no qual a autoridade estatal obliterou-se de modo acentuado, com a
confusão política e a ataxia dos movimentos de Administração Pública, porém, garantido certo grau de liberdade
do indivíduo e exercício da liberdade de iniciativa no plano econômico, observada as restrições do bem comum
proposto pelo chefe do Executivo. AMARAL, Azevedo. O Estado autoritário e a realidade nacional. Rio de Janeiro:
José Olympio, 1938. p. 6.
Estado gerencial, regulação e desenvolvimento 115

do formalismo burocrático que impediam a construção de um modelo de gestão pública


capaz de atender as demandas da transformação econômica.3
Por outro lado, o advento da sociedade pós-industrial e recorrência da globalização,4
tornou o modelo de gestão burocrático inoperante e economicamente insustentável incapaz
de atender as demandas da economia e da sociedade, impondo um novo complexo de trans-
formações na Administração Pública.
Erigiu-se a implantação de um modelo gerencial, que baseado nos vetores da efi-
ciência e desempenho, fosse capaz de atribuir maior governança mediante a organização
dos fatores e finanças, a descentralização da estrutura administrativa, a cooperação entre os
entes federativos e o controle voltado à aferição do resultado.5
Sob este foco, as sucessivas reformas administrativas buscaram fornecer no plano
político, técnico e jurídico, instrumentos necessários à racionalização da gestão pública e
organizações estatais existentes, de modo a superar a crise de governabilidade e imprimir
legitimidade, eficiência e ética na persecução do interesse público.6
No plano político, compreende o realinhamento dos níveis de concentração do poder
público mediante a subsidiariedade da atuação estatal e a intervenção precípua das orga-
nizações privadas7, bem como, a expansão da participação dos cidadãos racionalizando e
legitimando a gestão pública8.

3
Observa-se até atualmente os perniciosos resquícios do patrimonialismo, a corrupção persistente, as políticas
paternalistas e a ineficiência na gestão estatal. Sobre o tema, vide: FAORO, Raymundo. Os donos do poder. 15.
ed. São Paulo: Globo, 2000. FREYRE, Gilberto. Casa-grande e senzala. 39. ed. Rio de Janeiro: Record, 2000; e
NUNES, Edson. A gramática política do Brasil – clientelismo e insulamento burocrático. Rio de Janeiro: Jorge
Zahar, 1997.
4
Não se trata a globalização de fenômeno novo, mas de evento recorrente em períodos de difusão cultural, po-
lítica, econômica ou religiosa, denotado pela expansão da informação e do conhecimento através da revolução
das comunicações. MOREIRA NETO, Diogo de Figueiredo. Globalização, regionalização, reforma do Estado e da
Constituição. Revista de Direito Administrativo, n. 215, p. 1-20, jan./mar. 1998.
5
Corresponde a instrumentos de modernização da administração, que buscam traduzir maior eficiência funcional
e produtividade a gestão pública, em uma nova concepção da relação entre Estado e sociedade, que envolve o
movimento de retorno da sociedade na prestação do serviço público. TÁCITO, Caio. A reforma do Estado e a
modernidade administrativa. Revista de Direito Administrativo, n. 215, jan./mar. 1999. p. 4-5.
6
Isso envolve uma mudança paradigmática também no direito administrativo com a ascensão de novos princípios
que orientam a atividade estatal e a releitura dos seus principais institutos. Sobre o tema, vide: BAPTISTA, Patrícia.
Transformações do direito administrativo. Rio de Janeiro: Renovar, 2003. Para uma análise da reforma adminis-
trativa a partir dos planos apresentados, vide a obra: MOREIRA NETO, Diogo de Figueiredo. Apontamentos sobre
a reforma administrativa. Rio de Janeiro: Renovar, 1999. Em especial Capítulo I.
7
A atuação estatal passa a se concentrar apenas nas demandas que devido sua complexidade e a necessidade de
ação concentrada e imperativa, não podem ser atendidas pela própria comunidade. Neste tocante, a ingerência
das organizações políticas obedecerá ao princípio organizador do poder, de forma que primariamente caberá ao
ente local a satisfação do interesse público, na impossibilidade ao ente regional e apenas diante de nova inviabi-
lidade ao ente nacional. MOREIRA NETO, Diogo de Figueiredo. Mutações do direito administrativo. 2. ed. Rio de
Janeiro: Renovar, 2001. p. 20-21.
8
As insuficiências do processo democrático restrito à prerrogativa popular de eleição, a impossibilidade da lei
alcançar a integralidade do fenômeno administrativo e a multiplicação dos centros de decisão no interior da
116 Emerson Affonso da Costa Moura

Sob o prisma jurídico, engloba a transmutação do dever de publicidade no mandado


de transparência, impondo a otimização do processo de visibilidade dos atos públicos e a
coordenação de interesses e ações com os administrados, que demarca a transição gradual
de uma Administração Pública unilateral para multilateral.9
No campo técnico, abrange a implantação do modelo de New Public Management
que envolve a descentralização racional – com atribuição de flexibilidade aos entes e órgãos
na persecução de suas finalidades – e a profissionalização – mediante a desburocratização
e o emprego racional dos recursos.10
Neste viés, o Estado intervém nas atividades econômicas e sociais, de forma diretiva
ou indutiva mediante a utilização de instrumentos de natureza regulatória, concorrencial,
monopolista e sancionatória, com fins de conformar e coordenar a atuação pública e privada
à ordem e princípios instituídos pela lei fundamental.11
Tal função regulatória compreende o complexo de atribuições normativas, geren-
ciais, negociais e sancionatórias, exteriorizadas nas funções de regulamentação, gestão,
negociação, fiscalização e fomento do ordenamento social e econômico, com as vantagens
da flexibilização negocial privada e com rigor da coercitividade estatal.12
A intervenção reguladora demonstra-se instrumento capaz de atender a especialida-
de, complexidade e multiplicidade das questões econômicas e sociais e entes autônomos,
equalizando os interesses em jogo a partir dos diversos atores envolvidos na atividade re-
gulada.13

Administração, denotam a crise de legitimidade da atividade administrativa que aliada à centralidade do indivíduo
na ordem jurídica impõe a substituição do modelo autoritário de gestão pública para a ordenação dos múltiplos
interesses sociais mediante a participação dos indivíduos influenciando e persuadindo a tomada de decisões.
BAPTISTA, Patrícia. Transformações do direito administrativo. Op. cit., p. 120-142.
9
Observa-se a crescente instituição de modelos de colaboração entre a Administração Pública e a sociedade que
permitem mediante parcerias o melhor desempenho de funções administrativas. Por efeito, observa-se acréscimo
de governabilidade, além de figurar como limites contra os abusos. TÁCITO, Caio. Direito administrativo participa-
tivo. Carta Mensal, CNC, v. 43, ago. 1997. p. 509.
10
Há uma inversão do modelo clássico, onde a fixação da finalidade orbitava na delimitação prévia da competência,
para uma nova concepção baseada na delimitação prévia da finalidade, determinada o âmbito de competência e
o ente ou órgão adequado à persecução daquele fim. MOREIRA NETO, Diogo de Figueiredo. Mutações do direito
administrativo. Op. cit., p. 22-24.
11
Abrange os mecanismos e técnicas estatais exteriorizados precipuamente de normas e regulamentos dispositivos,
que buscam conformar a atividade individual à consecução do interesse econômico e social almejado pela ordem
constitucional. Sobre o tema, vide: GRAU, Eros Roberto. A ordem econômica na Constituição de 1988. São Paulo:
Malheiros, 2003. p. 305-307.
12
Dessa forma, não se limita apenas as funções normativas, porém, compreende as de conciliação, mediação e
arbitragem, bem como, de fiscalização e fomento, desde o planejamento até o controle do setor ou atividade com
fins de propiciar o máximo de eficiência na solução de problemas. MOREIRA NETO, Diogo de Figueiredo. Direito
regulatório. Rio de Janeiro: Renovar, 2003. p 107-109.
13
Insere-se no processo de especialização e segmentação do Direito Administrativo, que torna necessário o surgi-
mento de novas estruturas – entes reguladores autônomos – capazes de promover mediante novas categorias
normas – normas regulatórias – a regulação de subsistemas de normatização e mediação, dotados de conceitos,
Estado gerencial, regulação e desenvolvimento 117

A instituição de agências dotadas de autonomia político-administrativa e econômico-


-financeira permitiu a neutralidade técnica e o devido insulamento político para o predomínio
de juízos técnicos sobre valorações políticas, evitando interferências externas inadequadas
no arbitramento dos interesses no processo regulatório.14
Neste modelo são produzidas decisões que baseadas em conceitos preponderante-
mente técnicos e voltadas aos objetivos das políticas públicas setoriais, tendem a encontrar
um ponto ideal entre os interesses dos agentes econômicos e sociais envolvidos ampliando
o grau de legitimidade e eficiência na atividade estatal.
Essa orientação primária por parâmetros científicos importa em redução do espectro
de opções válidas, permitindo a melhor escolha segundo critérios objetivamente aferíveis
por agentes especializados envolvidos no processo15 e produzindo maior racionalização e
despolitização no exercício da atividade reguladora.
Sob tal égide, a regulação torna-se importante instrumento de avanço econômico
e social, uma vez que garante com a sua neutralidade e despolitização, a criação de um
ambiente seguro para o exercício das atividades econômicas privadas, permitindo voltá-lo a
realização dos objetivos almejados.
Esse é o tema abordado a seguir.

3 REGULAÇÃO ESTATAL

Não obstante alcance relevo com o fenômeno de transformações que notabilizam o


Estado Gerencial Brasileiro,16 a atividade regulatória antes de nova atribuição da Administra-
ção Pública constitui conhecido instrumento de intervenção estatal no domínio econômico

princípios e procedimentos adequados à sua especialidade do setor econômico ou social. MARQUES NETO, Flo-
riano Azevedo. A nova regulação estatal e as agências independentes. In: SUNDFELD, Carlos Ari (Coord.). Direito
administrativo econômico. 1. ed. São Paulo: Malheiros, 2002. p. 82-83. SOUTO, Marcos Juruena Villela. Direito
administrativo regulatório. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2002. p. 20-21.
14
Ademais, uma vez que a intervenção sobre a economia ocorre através do exercício de autênticas expressões
do poder de polícia estatal, como por e.g. fiscalização e aplicação de sanções, tornou-se necessária a forma
de pessoa jurídica de direito público, justificando-se a implementação das agências reguladoras sob a forma de
autarquias com regime especial. BINENBOJM, Gustavo. O sentido da vinculação administrativa à juridicidade no
Direito brasileiro. Op. cit., p. 251.
15
Insere-se na subtração pelos agentes reguladores especializados de decisões cujo fundamento deve obedecer a
regras técnico-científicas da competência direta dos centros de decisão político-administrativa que se pautam por
juízos de oportunidade e conveniência formulados por políticos e burocratas não especializados. MOREIRA NETO,
Diogo de Figueiredo. Mutações do direito administrativo. Op. cit., p. 168-170.
16
Situa-se, por um lado, no movimento de redimensionamento da imperatividade estatal que buscando um ajuste
de equilíbrio entre a coerção e o consenso produz um conceito do público não-estatal em um fenômeno de des-
monopolização do poder. Por outro, engloba a passagem de uma Administração monista e monorganizada para
uma Administração Pública Pluralista e Pluriorganizada em razão da fragmentação e despublicização do interesse
público. Sobre o tema, vide: MOREIRA NETO, Diogo de Figueiredo. Mutações do direito público. Rio de Janeiro:
Renovar, 2006. p. 385-391.
118 Emerson Affonso da Costa Moura

e social inerente ao dever de boa administração exercido antes mediante atuação precipua-
mente fiscalizatória de órgãos subordinados.17
Isto envolveu a redefinição dos papéis dos atores sociais e estatais na gestão do
interesse público, através da dissociação do espaço público da esfera estatal e a coordena-
ção de suas atuações, voltando à sociedade a atividade de promoção dos bens e o Estado à
função de mediador do serviço, da competitividade e dos conflitos.18
Neste tocante, a Constituição da República de 1988 instituiu uma ordem econômica
baseada na livre iniciativa, garantindo a livre concorrência, a proteção da propriedade, bem
como, a exploração direta pela iniciativa privada da atividade produtiva, assumindo o Estado
um papel de agente regulador e executor direto excepcional.19
Na regulação, portanto, o Estado intervirá nas relações dentro de uma opção de
política econômica,20 utilizando instrumentos capazes de conformar o funcionamento das
instituições estatais e não estatais aos objetivos colimados pela ordem constitucional, con-
forme o programa de ação governamental.21
Propõe o modelo, todavia, não apenas a inserção na atividade econômica priva-
da buscando sua adequação à política macroeconômica estatal com fins à realização dos
princípios da ordem econômica, mas a intervenção também nos serviços públicos com a
participação da iniciativa privada no oferecimento de bens e utilidades essenciais.

17
Podemos citar dentre os órgãos estatais e comissões de fiscalização que exerciam funções reguladoras, o Con-
selho Nacional de Telecomunicações e o Conselho Administrativo de Defesa Econômica. Todavia, enquanto que
o Estado era o responsável, direta ou indiretamente, pela execução desta tarefa a função fiscalizatória não era
desempenhada com eficiência, uma vez que inexistia interesse em expor as próprias falhas ou deficiência da
administração. MARQUES NETO, Floriano Azevedo. A nova regulação estatal e as agências independentes. Op.
cit., p. 80-82.
18
Após uma concepção de Administração detentora do interesse público emerge o entendimento que essa atribui-
ção deve ser compartilhada com a sociedade, que passa não apenas executar as atividades necessárias à fruição
desses interesses, mas também a desenvolver e estabelecer a ordem e prioridade. MEDEAUAR, Odete. O direito
administrativo em evolução. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1992. p. 181.
19
Em contraponto, volta-se a ordem econômica à tutela dos direitos fundamentais coletivos, encontrando seu fun-
damento também na valorização do trabalho humano e na garantia da existência digna dos indivíduos, observando
os princípios de proteção da defesa do consumidor e do meio ambiente e orientando o exercício da atividade
econômica aos ditames da justiça social com a busca da redução das desigualdades regionais e sociais, como
forma de permitir a realização plena do desenvolvimento do homem e da sociedade.
20
Trata-se, portanto, de característica de um modelo econômico e não de certa família jurídica, que busca superar
o dirigismo estatal garantindo a livre iniciativa privada com a intervenção enfática no mercado utilizando instru-
mentos de autoridade, capaz de conformá-la aos objetivos eleitos. SUNDFELD, Carlos Ari. Serviços públicos e
regulação estatal. In: SUNDFELD, Carlos Ari (Coord.). Direito administrativo econômico. São Paulo: Malheiros,
2000. p. 23-24.
21
O plano diretor da Reforma do Aparelho do Estado em 1995 alinhou os seguintes princípios básicos: autonomia e
independência decisória; ampla publicidade de normas, procedimentos e ações; celeridade processual e simplifi-
cação as relações entre consumidores e investidores; participação de todas as partes interessadas no processo
de elaboração de normas regulamentares em audiência pública; e, limitação da intervenção estatal na prestação
de serviços públicos, aos níveis indispensáveis à sua execução. MOREIRA NETO, Diogo de Figueiredo. Direito
regulatório. Op. cit., p. 169.
Estado gerencial, regulação e desenvolvimento 119

Nessa faceta, a atividade regulatória abrange uma intervenção com fins a realização
de certos valores de natureza social, de forma que a disciplina da prestação dos serviços
públicos não compreende apenas a regulamentação do mercado, mas a sua adequação aos
interesses da própria coletividade.22
Sua finalidade não se identifica, portanto, apenas com aquelas de ordem econômica
– proteção da competitividade, fortalecimento do mercado e ampliação do investimento da
iniciativa privada –, mas alcança aqueles objetivos de natureza social na garantia de atendi-
mento dos interesses da coletividade.23
Embora o marco regulatório busque propiciar a estabilidade necessária para que os
investidores atuem, também, deve garantir espaços para que os reguladores possam – con-
forme as demandas sociais – fixar diretrizes que melhor atendam o interesse da coletividade,
respeitada às garantias dos agentes privados.24
Isto porque a inserção de atividade pública em um espaço econômico privado, não
importa na ausência total de intervenção sobre essas atividades, mas na atuação estatal em
rede articulando centros autônomos do poder externo – entes e redes locais, nacionais ou
transnacionais – e interno – agências e delegatárias.25
Esse é o tema abordado a seguir.

22
O modelo regulatório não é norteado apenas pela proposta de atenuar ou eliminar os defeitos do mercado, mas
na disciplina de prestação de serviços públicos, onde há relevância dos interesses coletivos envolvidos tem por
finalidade impedir a prevalência da pura e simples busca do lucro privado, em detrimento da sociedade. JUSTEN
FILHO, Marçal. Curso de direito administrativo. São Paulo: Saraiva, 2005. p. 451.
23
Torna-se necessário, portanto, não identificar a regulação enquanto fenômeno jurídico com a regulação da ativida-
de econômica pública e privada, uma vez que orientada também por fins sociais, importa construir um conceito de
regulação como o complexo de normas que regulam a atividade econômica e social com a finalidade de proteger o
interesse público. DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Limites da função reguladora das agências diante do princípio
da realidade. In: DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Direito regulatório: temas polêmicos. Belo Horizonte: Fórum,
2003. p. 30.
24
A flexibilidade e instrumentalidade do Direito Administrativo Econômico não pode significar a pura e simples
liberalidade em favor do concessionário sem os consequentes benefícios para o Estado e para o serviço público
delegado. ARAGÃO, Alexandre Santos de. O marco regulatório dos serviços públicos. Interesse Público, v. 5, n.
27, 2004. p 72-73 e 89.
25
Nesse cenário, é inegável a intervenção da globalização nos serviços públicos, uma vez que grande parte das
sociedades empresárias que assumem as prestações integram redes econômicas transnacionais e há pelo Es-
tado adesão a tratados internacionais como homogeneização e abertura de mercados a empresas com atuação
globais. ARAGÃO, Alexandre Santos de. Direito dos serviços públicos. Rio de Janeiro: Forense, 2008. p 51 e 52.
120 Emerson Affonso da Costa Moura

4 O DIREITO HUMANO FUNDAMENTAL AO DESENVOLVI-


MENTO E A ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA

Embora os direitos fundamentais, tenham antecedentes histórico na doutrina estoica


greco-romana e cristã da Antiguidade26 e desenvolvimento nas doutrinas jusnaturalistas27 e
previsão de direitos estamentais na Idade Média28 a sua consagração ocorre apenas com o
constitucionalismo na Idade Moderna, pelo reconhecimento nas principais Cartas e Consti-
tuições.29
No Estado Moderno, a evolução dos direitos fundamentais se liga ao processo his-
tórico de reinvindicações sociais e contrastes de regimes políticos, bem como, o processo
de desenvolvimento econômico, científico e político, que resulta em um primeiro momento
na tensão dialética e harmonização entre liberdade e igualdade, direitos individuais e direitos
sociais.30

26
Os valores da dignidade da pessoa humana, da liberdade e da igualdade dos homens encontra suas raízes na
filosofia clássica, em especial, na greco-romana e no pensamento cristão. Embora na antiguidade greco-romana
inexistisse direitos do homem válidos para todos, com os sofistas e, em especial, os estoicos romanos, adveio as
teses da igualdade de todos os homens em dignidade como lei natural. No cristianismo, a partir dos ensinamentos
do homem e sua semelhança à imagem de Deus, adveio a tese da unidade de humanidade, dignidade e liberdade
de todas as pessoas. CARVELLI, Urbano; SCHOOL, Sandra. Evolução histórica dos direitos fundamentais: da anti-
guidade até as primeiras importantes declarações nacionais de direito. Revista de Informação Legislativa, Brasília,
ano 48, n. 191, p. 169-171, jul./set. 2011.
27
A unidade universal dos homens e a igualdade cristã de todos foram as premissas para o desenvolvimento no jus-
naturalismo medieval, da ideia de postulados suprapositivos que orientavam e limitavam, atuando como critério de
legitimidade, o exercício do poder, de tal sorte que o direito natural condicionará à sua conformidade a obediência
do direito positivo. Com as teorias contratualistas as doutrinas jusnaturalistas de direitos fundamentais encontram
sua evolução, abrindo espaço para o reconhecimento normativos de tais direitos. LUÑO, Antonio Enrique Perez.
Los derechos fundamentales. Madrid: Tecnos, 2004. p. 29-33.
28
Embora sempre citada a Magna Charta Libertatum, firmada em 1215 pelo Reuo João Sem-terra e pelos bispos e
barões ingleses, que consagra direitos e liberdades clássicos, como o habeas corpus, o devido processo legal e
a garantia da propriedade, as cartas de franquia e os forais outorgados pelos reis e portugueses e espanhóis no
século XII e XIII, bem como, a Bula de Ouro da Hungria firmada por Afonso IX em 111, o Privilegio General outorga-
do por Pedro III em 1283 e os Privilégios da União Aragonesa em 1286 já veiculavam prerrogativas ou privilégios
aos estamentos sociais (Nobreza, Igreja, Corporações), que não correspondiam a direitos fundamentais, mas
obrigações concretas daqueles reis que o subscreviam. ANDRADE, José Carlos Vieira de. Direitos fundamentais
na Constituição de 1976. Coimbra: Almedina, 2001. p. 25.
29
Com as declarações inglesas de direito – Petition Of Rights de 1628, Habeas Corpus Act de 1679, Bill Of Rights de
1689 – foram reconhecidos direitos e liberdades aos cidadãos ingleses, como a legalidade, a proibição de prisões
arbitrárias e o habeas corpus, que significa a transposição das liberdades estamentais para as liberdades gerais
no plano de direito público. Com a Declaração americana de Direitos do Povo da Virgínia de 1776 e a Declaração
francesa dos Direitos do Homem e do Cidadão de 1789 se marca a transição dos direitos de liberdade legais
ingleses para os direitos fundamentais constitucionais. SARLET, Ingo Wolfgang. Op. cit. p. 42-43.
30
A evolução e as vicissitudes dos direitos fundamentais, seja numa linha de alargamento e aprofundamento, seja
numa linha de obnubilação, acompanham o processo histórico, as lutas sociais e os contrastes de regimes
políticos, bem como o progresso científico, técnico e econômico. Do Estado liberal ao Estado social de Direito, o
desenvolvimento dos direitos fundamentais faz-se no interior das instituições representativas de maneira bastante
variada, buscando harmonizar os direitos de liberdade e direitos econômicos, sociais e culturais. MIRANDA,
Jorge. Os direitos fundamentais... Op. cit. p. 199.
Estado gerencial, regulação e desenvolvimento 121

Inicialmente, abrangiam os direitos individuais em razão do pensamento liberal-bur-


guês e da doutrina iluminista e jusnaturalista do século XVII e XVIII, que se identificavam
com os direitos negativos e marcavam a esfera de autonomia do indivíduo em face do poder
estatal no exercício precípuo das liberdades.31
Porém, com a ascensão dos problemas sociais e econômicos no limiar do século
XIX, os direitos fundamentais foram ampliados na quadra seguinte para incluir os direitos
econômicos, sociais e culturais, que se correlacionando com os direitos positivos, passa-
ram a impor ao Estado atuações capazes de promover a justiça e bem-estar social, na tutela
do princípio da igualdade.32,33
Nesse viés, a consagração do desenvolvimento como um direito humano,34 impõe a
intervenção positiva do Estado mediante a garantia de igual oportunidade de acesso a todos
dos meios indispensáveis à subsistência material necessários para que o indivíduo exerça
em plenitude uma vida humana digna.35

31
Embora sob a influência da doutrina de Hobbes, Locke, Rousseau e Kant que proclamavam a liberdade do indiví-
duo, proclamavam as cartas os direitos não de todos os homens, uma vez que a maior parte dessas Constitui-
ções estabeleciam o sufrágio censitário, mas do homem burguês, com a tutela da propriedade privada de forma
sagrada e inviolável, razão pelo qual os textos eram considerados como patrimônio do indivíduo em sua condição
pré-social. LUÑO, Antonio Enrique Perez. Los derechos fundamentales. Op. cit., p. 38.
32
Quando o Estado coagido pela pressão das massas ao poder político, confere os direitos do trabalho, da previ-
dência, da educação e outros, coloca a sociedade dependente de sua intervenção no domínio econômico, político
e social, em restrição da iniciativa individual aos interesses sociais, demonstra a passagem de um Estado Liberal
para um Estado Social. BONAVIDES, Paulo. Do Estado liberal ao Estado social. 8. ed. São Paulo: Malheiros, 2007.
p. 186.
33
Embora tanto na concepção liberal quanto social se deparam liberdade e igualdade, na primeira a igualdade é a
titularidade dos direitos que demanda liberdade para todos, ao passo que, na segunda a igualdade é a concreta
igualdade de agir e a liberdade a própria igualdade puxada para ação. MIRANDA, Jorge. Direitos... Op. cit. p. 199-
200.
34
Seu reconhecimento teórico é atribuído a Keba Mbaye que introduziu na obra The Right to Development em 1972
o desenvolvimento como direito, sendo que na conferência proferida por Karel Vasak no Instituto Internacional de
Direitos Humanos em 1979, onde classifica os direitos humanos em gerações, a partir da liberdade (direitos do
indivíduo civis e políticos), da igualdade (direitos da coletividade trabalhistas, culturais e econômicos) e da soli-
dariedade (direitos da humanidade fraternidade, paz, meio ambiente, respeito ao patrimônio histórico e cultural)
que se consagra o direito ao desenvolvimento como um direito de terceira geração. Sobre o tema vide: VASAK,
Karel. For the third generation of human rights: the rights of solidarity. Inaugural lecture. Tenth Study Session, In-
ternational Institute of Human Rights, jul. 1979. BEDJAOUI, Mohammed. The right to development. In: BEDJAOUI,
Mohammed (Org.). International law: achievements and prospects. Paris: Martinus Nijhoff Publisher; Unesco,
1991.
35
Sua consagração pelos organismos internacionais ocorreu pela primeira vez com a Declaração sobre a Con-
cessão de Independência aos Países e Povos Coloniais, adotada pela Assembleia Geral das Nações Unidas na
resolução 1514 de 14 de dezembro de 1960, que reconheceu aqueles países o direito à persecução do seu livre
desenvolvimento económico, social e cultura. Porém, é com a Declaração sobre o Direito ao Desenvolvimento
adotada pela Assembleia Geral das Nações Unidas na resolução n. 41/128, de 4 de dezembro de 1986 que se
garante o direito ao desenvolvimento como direito humano inalienável (art. 1º §1º), o dever dos Estados de
promover as medidas necessárias para a sua realização (Art. 2º §3º) assegurando o acesso aos recursos bá-
sicos, educação, serviços de saúde, alimentação, habitação, emprego e distribuição equitativa da renda (art. 8º
§1º). ONU. Declaração sobre o Direito ao Desenvolvimento. Adotada pela Resolução n. 41/128 da Assembleia
Geral das Nações Unidas, de 4 de dezembro de 1986. Disponível em: http://www.direitoshumanos.usp.br/index.
122 Emerson Affonso da Costa Moura

A inclusão do desenvolvimento, também, como um dos fins estatais36 importa não


apenas na persecução do progresso econômico com a ampliação das riquezas e bens de
produção nacionais, porém, na busca por um desenvolvimento sustentável, capaz de garantir
o bem-estar social e qualidade de vida para os cidadãos.37
Por efeito, a ordem econômica e social volta-se à realização não apenas dos fins
econômicos e dos valores sociais, mas a concretização de direitos e garantias fundamentais
ordenando a atividade estatal e também a atuação privada que permita a eficácia dos direitos
individuais e transindividuais.38
No direito administrativo, a ascensão destes paradigmas constitucionais insere-se
em um movimento de revisão das premissas teóricas estruturantes da disciplina39 que im-
porta no redimensionando da atividade administrativa à realização dos valores, bens e direi-
tos constitucionais.40

php/Direito-ao-Desenvolvimento/declaracao-sobre-o-direito-ao-desenvolvimento.html. Acesso em: 12 jun. 2019;


ONU. Declaração sobre a concessão da independência aos países e povos coloniais. Resolução n. 1514 (XV)
da Assembleia Geral de 14 de dezembro de 1960. Disponível em: http://www.direitoshumanos.usp.br/index.php/
Direito-ao-Desenvolvimento/declaracao-sobre-a-concessao-da-independencia-aos-paises-e-povos-coloniais.
html. Acesso em: 12 jun. 2019.
36
Uma vez que a Constituição de 1988 consagra o desenvolvimento como um dos objetivos fundamentais (Artigo
3º), porém, sem delimitar seu conteúdo material, diverge a doutrina em variadas teorias: se abrange o direito de
cada indivíduo se beneficiar de uma ordem jurídica que garanta a ampla implementação dos direitos humanos;
se compreende o incremento gradual do bem estar de toda a população; se envolve desenvolvimento econômico
como forma de garantir minimamente os direitos fundamentais; ou se tem por núcleo a garantia de alguns direitos
sociais básicos. Sobre o tema: FERNANDES, Eric Baracho Dore. O papel do Poder Judiciário na concretização de
um modelo social de desenvolvimento. 2012. Mimeografado. Em especial Capítulo 2.
37
O desenvolvimento estatal envolve necessariamente o desenvolvimento do homem através da realização de seus
direitos fundamentais, sem que essa intervenção dos poderes públicos para a prestação de natureza social im-
porte na assunção de um modelo socialista, visto que a livre iniciativa e a livre concorrência são essenciais
para a realização desse desenvolvimento. TAVARES, André Ramos. Direito constitucional econômico. São Paulo:
Método, 2003. p. 68.
38
Os direitos econômicos e sociais são considerados prolongamento dos direitos e garantias individuais, contem-
plando a pessoa singularmente considerada, garantindo a realização de seus direitos que dependem para eficácia
da prestação de serviço público. A abstenção do poder público na continuidade dessas prestações é tão abusiva
quanto a própria violação de direitos individuais. TÁCITO, Caio. Os direitos fundamentais na Constituição brasileira
de 1988. Revista de Direito Administrativo, n. 178, out./dez. 1989. p. 2.
39
A discricionariedade administrativa e sua insindicabilidade judicial, as prerrogativas materiais e processuais con-
cedidas a Administração Pública e a supremacia do interesse público sobre o privado, passam a ser vistas sobre
a ótica da Constituição em um amplo movimento doutrinário de ampla revisão das categorias e institutos adminis-
trativos, formado dentre outros: MOREIRA NETO, Diogo de Figueiredo. Legitimidade e discricionariedade. 3. ed.
Rio de Janeiro: Forense, 1998. GRAU, Eros Roberto. A ordem econômica na Constituição de 1988: interpretação
e crítica. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1990. DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Parcerias na Administração
Pública: concessão, permissão, franquia, terceirização e outras formas. São Paulo: Atlas, 1999. MOREIRA NETO,
Diogo de Figueiredo. Mutações do direito administrativo. Op. cit. ARAGÃO, Alexandre Santos de. Agências regula-
doras e evolução do direito administrativo. Rio de Janeiro: Forense, 2002. BAPTISTA, Patrícia. Transformações do
direito administrativo. Op. cit. BINENBOJM, Gustavo. Uma teoria do direito administrativo: direitos fundamentais,
democracia e constitucionalização. Rio de Janeiro: Renovar, 2006. ARAGÃO, Alexandre Santos de. Direito dos
serviços públicos. Op. cit.
40
A Administração Pública é tida não mais como um poder originário, mas como uma função subordinada à realiza-
ção dos direitos fundamentais em uma concepção de um direito público pós-moderno que erige com os pilares do
Estado gerencial, regulação e desenvolvimento 123

Por efeito, há orientação da persecução estatal à promoção dos direitos e garantias


do homem, reordenando a relação entre a Administração Pública e o administrado41 ao eixo
nodal da dignidade da pessoa humana e a persecução do desenvolvimento, e encontrando
na regulação estatal importante instrumento.42
A intervenção estatal nas relações privadas através da regulação ocorre com vistas
à transformação das condições sociais, induzindo a adoção pelos agentes econômicos no
exercício das atividades econômicas propriamente ditas ou na prestação dos serviços públi-
cos, de condutas capazes de garantir a promoção humana e social.43
Assim, a intervenção do Estado na atividade econômica não se limita a condução
dos agentes econômicos a uma situação de mercado ideal com proteção da concorrência e
do lucro, mas deve ter por finalidade conduzir tanto os esforços públicos, quanto os privados
ao desenvolvimento e ao bem-estar social.44
Nos serviços públicos, cabe à atividade regulatória compatibilizar o consenso e a ne-
gociação no fornecimento das prestações pelo particular, garantindo a liberdade do exercício
da atividade econômica privada na execução dos bens e utilidades públicas, mas tutelando a
efetiva concretização dos bens e utilidade essenciais.45

novo modelo constitucional e de uma ação administrativa voltada a legitimidade, finalidade, eficiência e resultado
na concretização daqueles valores. MOREIRA NETO, Diogo de Figueiredo. Quatro paradigmas do direito adminis-
trativo pós-moderno: legitimidade, finalidade, eficiência, resultados. Belo Horizonte: Fórum, 2008. p. 14-15 e 28.
41
Nesse contexto, o indivíduo passa de súdito submetido à Administração Pública em uma relação hierarquizada
para um cidadão detentor de direitos e garantias, tornando-se a Administração Pública em centro de captação e
ordenação dos interesses envolvidos nos respeitos e concretização dos direitos fundamentais e colaborando no
desenvolvimento de suas potencialidades sociais. BAPTISTA, Patrícia. Transformações de direito administrativo.
Op. cit., p. 129-130.
42
A centralidade assumida pelos direitos fundamentais na ordem jurídica produz uma inversão epistemológica fun-
damental, que torna o ser humano protagonista do direito administrativo e o Estado instrumento para a sua rea-
lização, extraindo a legitimidade de sua atuação na medida da realização destes direitos. JUSTEN FILHO, Marçal.
O direito administrativo de espetáculo. Fórum Administrativo Direito Público, Belo Horizonte, ano 9, n. 100, jun.
2009. p. 150-152.
43
Ocorre através do estímulo e indução de adoção de determinadas condutas pelos agentes econômicos, o que
compreende uma série de medidas de facilitação como a concessão de benefícios fiscais, facilitação em dados
expedientes e afins. MOREIRA, Egon Bockmann. O direito administrativo da economia e a atividade interventiva
do Estado brasileiro. In: OSÓRIO, Fábio Medina; SOUTO, Marcos Juruena Villela (Coords.). Direito administrativo:
estudos em homenagem a Diogo de Figueiredo Moreira Neto. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2006. p 861.
44
Trata-se de uma intervenção promocional do Estado em países subdesenvolvidos com fins a garantir o bem-estar
social e o desenvolvimento. Em um Estado Democrático de Direito o desenvolvimento econômico não pode
ser deixado nas mãos do próprio mercado, diante do dever de administração e de desenvolvimento definido
pela Constituição. A intervenção não gravita mais de forma a garantir um mercado concorrencial perfeito como
ocorrido em momento anterior, mas em respeito à justiça social e ao princípio da dignidade da pessoa humana.
MOREIRA, Egon Bockmann. O direito administrativo da economia [...]. Op. cit., p 856-857 e 868.
45
É necessário pensar na gestão dos serviços públicos a partir da atual realidade de carência social, compreen-
dendo que os problemas sociais vividos guardam íntima relação com a prestação histórica dessas atividades de
forma inadequada e apenas com o justo equilíbrio entre os interesses privados e o público será capaz de modificar
o cenário. VALLE, Vivian Lima López. Serviço público, desenvolvimento econômico e a nova contratualização da
administração pública: o desafio na satisfação dos direitos fundamentais. Fórum Administrativo, v. 12, n. 132,
2012. p. 72.
124 Emerson Affonso da Costa Moura

Porém, o desenvolvimento social depende não apenas do oferecimento de bens e


serviços pela iniciativa privada para os respectivos usuários, mas pela expansão e perpetua-
ção dos serviços públicos a indivíduos tidos como não econômicos que necessitam dessas
prestações e aprioristicamente não tem acesso ou continuidade.
Assim, abrange a orientação pelo critério de universalização e de continuidade do
serviço público, como forma de garantir a esses indivíduos a prestação de utilidades neces-
sárias à fruição daqueles direitos, contribuindo com a preservação da dignidade da pessoa
humana e auxiliando no efetivo desenvolvimento.46
Ocorre pela definição de um marco regulatório capaz de estabelecer critérios de
acesso dos indivíduos ao serviço público, inclusive, para aqueles que não têm capacidade
econômica, além de mecanismos hábeis a garantir a prestação adequada, em atendimento
aos direitos do usuário e aos fins esperados pela sociedade.
Envolve, ainda, uma regulação capaz de garantir o dever de contínua e ininterrupta
oferta dos serviços públicos para os usuários, uma vez que abrangem bens e prestações
essenciais e indispensáveis à existência digna do indivíduo, bem como, de interesse geral da
sociedade, na persecução do seu desenvolvimento.47
Ademais compreende o critério de modicidade do serviço público, permitindo um
ajuste entre a legítima expectativa de lucro do agente econômico e o interesse de economici-
dade do serviço pela sociedade, oferecendo os serviços essenciais mediante tarifas módicas
capaz de garantir a inclusão e manutenção de usuários.48
Isso importa na criação de uma política tarifária capaz de propiciar o acesso e per-
manência a usuários não econômicos, contribuindo com o desenvolvimento social almejado,
bem como, se necessário pela definição de subsídios capazes de viabilizar o interesse e
competição na prestação desses serviços públicos.49

46
Abrange oferecimento do serviço e a promoção proativa de inclusão de novos usuários a serviços de saneamento
básico, energia, telefonia e gás que nas sociedades contemporâneas são utilidades cuja ausência afeta a dignida-
de da pessoa humana e dificulta a redução do subdesenvolvimento. GROTTI, Dinorá Adelaide Musetti. Redefinição
do papel do Estado na prestação de serviços públicos: realização e regulação diante do princípio da eficiência e
universalidade. Revista Interesse Público, Porto Alegre: Notadez, ano 8, n. 40, nov./dez. 2006. p. 68.
47
Isso não importa, todavia, negar a possibilidade de sua eventual restrição no seu fornecimento, como prevê a Lei
8.987 de 13 de Fevereiro de 1995 que permite a descontinuidade na prestação doe serviço público em situação de
emergência ou após aviso prévio quando motivada por razões de ordem técnica ou de segurança das instalações
e por inadimplemento de usuário considerado o interesse da coletividade (art. 6º §3º).
48
Ressalta-se a importância de o papel das agências intervir na prestação do serviço público pela iniciativa privada,
com qualidade, economicidade, eficiência e regularidade de forma a afastar a possibilidade de desprezo a finali-
dade pública, que caracterizou a o modelo de concessão e resultou no seu fracasso em um primeiro momento.
OLIVEIRA, Jose Carlos Ferreira de. O Estado regulador nas concessões de serviços públicos. Revista de Informa-
ção Legislativa, v. 33, n. 129, 1996. p. 100; 107.
49
Nesse tocante, o modelo de concessão patrocinada de serviços públicos, instituído pela Lei 11.079 de 30 de
dezembro de 2004 se erige como instrumento para a viabilização de uma política tarifa capaz de propiciar o desen-
volvimento, garantindo a compensação na exploração pela iniciativa privada daquela atividade. Sobre o tema, vide:
Estado gerencial, regulação e desenvolvimento 125

Mediante a definição de um valor de medida justa de tarifa garante-se a adequação


mínima do serviço público ao usuário e a realização da solidariedade para o consumidor,
uma vez que a relação entre o prestador dos bens e utilidades e o cidadão, se sujeita à apli-
cação do direito do consumidor e submete o lucro ao seu papel social.50

5 CONSIDERAÇÕES FINAIS

A atuação da Administração Pública permite garantir uma justa medida entre o fo-
mento à competição e o lucro para a iniciativa privada, com a necessária universalidade
e manutenção dos usuários e continuidade dos serviços públicos prestados a sociedade,
contribuindo com o desenvolvimento econômico e social.
Não se ignora as dificuldades em compatibilizar os interesses legítimos da iniciativa
privada na exploração da atividade exteriorizada no lucro e no crescimento, com as expecta-
tivas sociais na prestação do serviço público denotado no fornecimento dos bens e presta-
ções essenciais à dignidade da pessoa humana e ao desenvolvimento.
Todavia, na tensão entre a persecução do desenvolvimento econômico e a mitigação
das desigualdades sociais a regulação pela Administração Pública quanto a prestação do
serviço público pela iniciativa privada é capaz de se encontrar uma justa medida permitindo
a realização do influxo ideológico liberal e social que marcam nosso constitucionalismo.

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50
Amplia-se, portanto, a importância das agências reguladoras, que passam a garantir ao usuário-consumidor um
complexo de direitos permitindo o equilíbrio na relação jurídica entre ambos, não permitindo o fornecedor do servi-
ço se apropriar do lucro excessivo que detém em razão de sua posição no mercado, mas submete ao princípio de
solidariedade com socialização dos lucros em favor da sociedade. MACEDO JÚNIOR, Ronaldo Porto. A proteção
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De Mariana a Brumadinho: o marco regulatório
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ção do exercício do poder de polícia

Flávio Henrique Unes Pereira


Doutor em Direito Administrativo (UFMG)
Professor e coordenador do Mestrado Profissional (EDB – SP)
Professor e coordenador da Pós-Graduação em Direito Administrativo (IDP)
Presidente da Comissão Especial de Proteção de Dados (OAB)

SUMÁRIO: 1 Introdução; 2 A Política Nacional de Segurança de Barragens (Lei n. 12.334/2010):


como a fiscalização da segurança de barragens é disciplinada no marco regulatório hoje vigente?;
2.1 A dinâmica fiscalizador-empreendedor no contexto da PNSB; 2.2 A patente insuficiência fiscalizató-
ria do Estado; 3 A delegabilidade do exercício do poder de polícia e sua contribuição para o incremento
da fiscalização da segurança de barragens de rejeitos da mineração; 3.1 O atual modelo fiscalizatório
em xeque: o reconhecimento da inviabilidade e as propostas legislativas no sentido da delegação do
exercício do poder de polícia; 4 Considerações finais; Referências

1 INTRODUÇÃO

Passados mais de 10 meses da tragédia causada pela ruptura da barragem B1 da


Mina “Córrego do Feijão”, em Brumadinho-MG, o Corpo de Bombeiros de Minas Gerais
localizou, em 23.11.2019, o corpo da 256ª vítima do desastre.1 Com este número, o Brasil
consolida a sua posição no funesto ranking dos maiores acidentes envolvendo barragens de
rejeitos da mineração, em termos de vidas humanas perdidas. Ainda restam, contudo, 14
(quatorze) desaparecidos.
Com as confirmações faltantes, superaremos o desastre de Stava, no norte da Itália
(ocorrido em julho de 1985), em que 267 pessoas morreram e 20 ficaram feridas com os
180 mil metros cúbicos de lama que foram liberados pela ruptura da barragem da Prealpi
Mineraria. Aliás, a propósito do caso italiano, estudo publicado em 2012 na Natural Hazards
and Earth Systems Sciences já havia concluído que:

1
BRUMADINHO: partes de corpo são de funcionária terceirizada da Vale. UOL, São Paulo, nov. 2019. Disponível em:
https://noticias.uol.com.br/cotidiano/ultimas-noticias/2019/11/23/vitima-identificada-brumadinho.htm. Acesso
em: 2 jul. 2020.
132 Flávio Henrique Unes Pereira

Regulações estabelecendo padrões de construção, monitoramento operacional, e


inspeção periódica independente poderiam ter prevenido este desastre. Legislação
compreensível é necessária para efetivamente limitar as consequências adversas de
falhas de barragens de rejeitos da mineração por proporcionar um ambiente regulató-
rio em que a segurança e o bem-estar da área local possam ser equilibrados com os
benefícios econômicos das operações minerárias.2

Vale mencionar, também, que em relatório elaborado em 2017 pela fundação norue-
guesa GRID-Arendal, em parceria com o Programa das Nações Unidas para o Meio Ambiente
(PNUMA), aonde foram catalogados os maiores acidentes envolvendo rupturas de barragens
de rejeitos da mineração ocorridos desde 1985 (Mine Tailings Storage: Safety Is No Acci-
dent3), o Brasil figura como o país com maior número de acidentes deste tipo nos últimos 5
anos: em 2014, o rompimento de uma barragem da Herculano Mineração, em Itabirito-MG;
em 2015, o colapso da barragem do Fundão, em Mariana-MG, que deixou 19 mortos; e, por
fim, a tragédia de Brumadinho-MG.
Em termos de devastação ambiental, todavia, os 600 km percorridos pelos 50 a 60
milhões de metros cúbicos de rejeitos liberados pela ruptura da barragem do Fundão, que
gerou um prejuízo estimado de US$ 5,2 bilhões, colocam o desastre de Mariana-MG como
o maior do mundo nos últimos 100 anos, de acordo com estudo da consultoria de gestão
de riscos norte-americana Bowker Associates.4 Já o desastre de Brumadinho, a seu turno, é
considerado o maior acidente de trabalho da história do país.5
As centenas de mortes e desaparecimentos, bem como os milhares de hectares
devastados e leitos de rios contaminados por rupturas de barragens, são somente a ponta
de um grande “iceberg”. Para ficarmos apenas no exame do exercício do poder de polícia
(que não é o único fator a merecer modificações e aprimoramentos no marco regulatório do
setor), percebe-se que há, de um lado, um evidente déficit fiscalizatório da Agência Nacional
de Mineração (ANM), causada por um subfinanciamento da Agência e graves desfalques em
seus quadros de pessoal; de outro lado, a moldura jurídica fixada pelo quadro regulatório

2
LUINO, F.; GRAFF, J. V. de. The Stava mudflow of 19 july 1985 (Northern Italy): a disaster that effective regulation
might have prevented. Nat. Hazards Earth Syst. Sci., n. 12, p. 1029-1044, 2012. p. 1029. Tradução livre. Gri-
fos meus. Disponível em: https://www.nat-hazards-earth-syst-sci.net/12/1029/2012/nhess-12-1029-2012.pdf.
Acesso em: 2 jul. 2020.
3
ROCHE, Charles; THYGESEN, Kristina; BAKER, Elaine. Mine tailings storage: safety is no accident. S.l.: UN Envi-
ronment; GRID-Arendal, 2017. Disponível em: http://www.grida.no/publications/383. Acesso em: 2 jul. 2020.
4
LUCENA, Eleonora de. Tragédia da Samarco teve triplo recorde mundial, diz consultoria. Folha de São Paulo, São
Paulo, dez. 2015. Disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/cotidiano/2015/12/1718130-tragedia-da-samar-
co-teve-triplo-recorde-mundial-diz-consultoria.shtml. Acesso em: 2 jul. 2020.
5
SOUZA, Felipe; FELLET, João. Brumadinho é maior acidente de trabalho já registrado no Brasil. UOL, São Paulo,
jan. 2019. Disponível em: https://noticias.uol.com.br/ultimas-noticias/bbc/2019/01/28/brumadinho-pode-ser-
-2-maior-desastre-industrial-do-seculo-e-maior-acidente-de-trabalho-do-brasil.htm. Acesso em: 2 jul. 2020.
De Mariana a Brumadinho 133

da segurança de barragens no Brasil está assentada sobre o pressuposto dogmático da


indelegabilidade do exercício do poder de polícia a particulares, que precisa ser superado.
O presente artigo buscará apresentar, nesta perspectiva, a delegação do exercício do
poder de polícia a particulares como alternativa viável ao aprimoramento do marco regulató-
rio de segurança de barragens no país, além de demonstrar, por meio de dados empíricos, as
tendências legislativas que ora já se encaminham – ainda que implicitamente – para a adoção
da tese aqui propugnada.

2 A POLÍTICA NACIONAL DE SEGURANÇA DE BARRAGENS


(LEI N. 12.334/2010): COMO A FISCALIZAÇÃO DA SEGU-
RANÇA DE BARRAGENS É DISCIPLINADA NO MARCO
REGULATÓRIO HOJE VIGENTE?

Para que possamos ter uma visão mais nítida do grave problema envolvendo a segu-
rança das barragens de rejeitos da mineração no Brasil, é necessária uma breve incursão na
Lei n. 12.334, de 20 de setembro de 2010, que estabeleceu a Política Nacional de Segurança
de Barragens – PNSB.6
De acordo com o art. 7º, caput, da Lei, as barragens presentes no território nacional
devem ser classificadas, pelos agentes fiscalizadores, segundo 3 (três) critérios: (i) catego-
ria de risco; (ii) dano potencial associado – DPA –; e (iii) volume. Para que o fiscal da ANM
afirme em que categoria de risco se insere uma determinada barragem, ele deverá levar em
consideração as suas características técnicas, o estado de conservação do empreendimento
e o atendimento ao Plano de Segurança da Barragem – PSB. Já em relação ao DPA (que
poderá ser alto, médio ou baixo), a avaliação levará em conta o potencial de perdas de vidas
humanas e os impactos econômicos, sociais e ambientais decorrentes de uma eventual
ruptura da barragem.
A importância desta classificação reside, precisamente, em aferir se uma determi-
nada barragem deverá se submeter à Lei n. 12.334/2010 (pois, de acordo com o seu art.
1º, IV, ela se aplica apenas a barragens com categoria de DPA médio ou alto), bem como
em determinar a periodicidade, a qualificação da equipe responsável, o conteúdo mínimo e o
nível de detalhamento das inspeções de segurança (art. 9º, caput).

6
Ressalte-se que as disposições constantes da Lei n. 12.334/2010 se aplicam não apenas às barragens de rejeitos
da mineração. Como consta do art. 1º, parágrafo único, da Lei, “Esta Lei aplica-se a barragens destinadas à
acumulação de água para quaisquer usos, à disposição final ou temporária de rejeitos e à acumulação de resíduos
industriais que apresentem pelo menos uma das seguintes características”.
134 Flávio Henrique Unes Pereira

2.1 A dinâmica fiscalizador-empreendedor no contexto da


PNSB

Para que o sistema de fiscalização idealizado pelo legislador funcionasse, foi neces-
sário estabelecer que o órgão fiscalizador (no caso, a ANM) tem, dentre outras, as obriga-
ções de manter cadastro das barragens sob sua jurisdição (art. 16, I), além de exigir dos
empreendedores o cumprimento das recomendações constantes dos relatórios de inspeção
(art. 16, III), bem como o cadastramento e atualização das informações relativas à barragem
em um sistema informatizado destinado a receber o registro das condições de segurança
das barragens em todo o território nacional (art. 16, V): isto é, o Sistema Nacional de Infor-
mações sobre Segurança de Barragens (SNISB), instituído pelo art. 13 da Lei.
Pois bem. De acordo com o Relatório de Segurança de Barragens (RSB) elaborado
pela Agência Nacional de Águas (ANA)7 em 2018, há mais de 24 mil barragens no território
brasileiro, que servem a diversas finalidades. O número, todavia, representa apenas o quanti-
tativo de barragens devidamente cadastradas no SNISB: segundo a própria ANA, deve haver,
no Brasil, ao menos três vezes mais barragens do que os números oficiais apontam.8
No que concerne especificamente à contenção de rejeitos da mineração, há 790
barragens no território nacional. De acordo com o último RSB,9 421 delas (isto é, 53%) se
submetem à Lei n. 12.334/2010. Dentre estas, 204 possuem DPA alto. Por outro lado, há
7 barragens cujo risco é considerado alto: 4 em Minas Gerais, 2 em Santa Catarina e 1 em
Mato Grosso. Nada obstante, é oportuno lembrar que a barragem B1 da Mina “Córrego do
Feijão”, construída em 1976 e desativada desde 2015, tinha grau de risco baixo.10

2.2 A patente insuficiência fiscalizatória do Estado

Não se pode depositar qualquer esperança no exercício direto da fiscalização pela


ANM. A Agência tem apenas 35 fiscais11 capacitados para, in loco, apurar as reais condições

7
Lei n. 9.984/2000, art. 4o: A atuação da ANA obedecerá aos fundamentos, objetivos, diretrizes e instrumentos
da Política Nacional de Recursos Hídricos e será desenvolvida em articulação com órgãos e entidades públicas e
privadas integrantes do Sistema Nacional de Gerenciamento de Recursos Hídricos, cabendo-lhe: [...] XXII - coor-
denar a elaboração do Relatório de Segurança de Barragens e encaminhá-lo, anualmente, ao Conselho Nacional
de Recursos Hídricos (CNRH), de forma consolidada.
8
45 barragens preocupam órgãos fiscalizadores, aponta Relatório de Segurança de Barragens elaborado pela ANA.
ANA Notícias, nov. 2018. Disponível em: https://www.ana.gov.br/noticias/45-barragens-preocupam-orgaos-fisca-
lizadores-aponta-relatorio-de-seguranca-de-barragens-elaborado-pela-ana. Acesso em: 2 jul. 2020.
9
BRASIL. Ministério do Meio Ambiente. Relatório de segurança de barragens 2017. Brasília: ANA, 2018. Disponível
em: http://www.snisb.gov.br/portal/snisb/relatorio-anual-de-seguranca-de-barragem/2017/rsb-2017-versao-en-
viada-ao-cnrh.pdf. Acesso em: 2 jul. 2020.
10
LEAL, Natália. MG concentra 63% das barragens de minérios do país com ‘alto risco estrutural’. UOL, jan. 2019.
Disponível em: https://piaui.folha.uol.com.br/lupa/2019/01/25/barragens-alto-risco-mg/. Acesso em: 2 jul. 2020.
11
JENSEN, Roberta; GIRARDI, Giovana. País tem apenas 35 fiscais de barragem de mineração. Estadão, jan. 2019.
Disponível em: https://brasil.estadao.com.br/noticias/geral,pais-tem-apenas-35-fiscais-de-barragem-de-minera-
cao,70002699885. Acesso em: 2 jul. 2020.
De Mariana a Brumadinho 135

de estabilidade e segurança das 790 barragens de rejeitos da mineração espalhadas pelo


Brasil (número que reflete, como vimos, apenas as barragens cadastradas no SNISB). Aliás,
das mais de 24 mil barragens presentes no território nacional, apenas 780 foram fiscalizadas
pela Agência no ano de 2017. Ou seja, pouco mais do que 3%.12
É oportuno mencionar que o Tribunal de Contas da União (TCU), após o desastre de
Mariana-MG, determinou a realização de auditoria operacional no antigo Departamento Na-
cional de Produção Mineral (DNPM, hoje ANM), apurando, ao fim do estudo, que a atuação
do órgão é frágil e não atende aos objetivos da Lei da PNSB. Não por outra razão, a ementa
do Acórdão TCU n. 2440/2016 (relator o Ministro José Múcio Monteiro, Plenário, julg. em
21.09.2016) expressamente determinou ao antigo DNPM e ao Ministério de Minas e Engeria
(MME) que:

em conjunto, no prazo de 180 (cento e oitenta) dias, avaliem e apresentem estu-


dos fundamentados em análise e definição de prioridades e objetivos setoriais sobre
a adequabilidade do orçamento consignado anualmente ao DNPM e do quadro de
recursos humanos atual da autarquia, tendo em vista as suas competências ins-
titucionais, e estabeleçam plano de ação, em interlocução com o Ministério do Pla-
nejamento, Desenvolvimento e Gestão (MP), com o objetivo de solucionar ou mitigar
as dificuldades que vêm sendo enfrentadas pela entidade

Os números apresentados evidenciam que a fiscalização direta, pela ANM, do cum-


primento dos parâmetros estabelecidos para a segurança das barragens é absolutamente
infactível. Não há recursos humanos suficientes no órgão fiscalizador para que seja realizada,
a contento, a fiscalização das reais condições das barragens de rejeitos da mineração. A
solução do legislador – igualmente ineficiente, como veremos – foi impor à própria minera-
dora a responsabilidade pela verificação da segurança e da estabilidade de sua barragem,
transferindo-lhe o dever de obter declaração que ateste a adequação do empreendimento. A
propósito, o relatório final da CPI da Câmara de Vereadores de Belo Horizonte-MG observou
que “tal dependência de informações oriundas do empreendedor decorre em certa medida,
da PNSB e da capacidade operacional da Agência, que fica restrita, basicamente, à possi-
bilidade de exigir que o empreendedor atualize as informações cadastradas no sistema.”.13
Aliás, se não há fiscais para realizar vistorias nas próprias barragens, também não
há pessoal para analisar os milhares de páginas que compõem os relatórios das inspeções
e revisões periódicas de segurança, a serem obrigatoriamente inseridos pelo empreendedor
no SNISB (art. 17, XIII).

12
COSTA, Gilberto. De um total de 24 mil barragens, 780 foram fiscalizadas, diz relatório. Agência Brasil, jan. 2019.
Disponível em: http://agenciabrasil.ebc.com.br/geral/noticia/2019-01/de-um-total-de-24-mil-barragens-780-fo-
ram-fiscalizadas-diz-relatorio. Acesso em: 2 jul. 2020.
13
BRASIL. Câmara dos Deputados. Relatório Final Integral – CPI Barragens. Brasília: Câmara dos Deputados, 2019.
Disponível em: https://www.camara.leg.br/internet/comissoes/cpi/cpibruma/Relat%C3%B3rio%20final%20Inte-
gral%20-%20CPI%20-%20Barragens%20-%20Aprovado.pdf. Acesso em: 2 jul. 2020.
136 Flávio Henrique Unes Pereira

Como vimos, de acordo com a lei, é dever do órgão fiscalizador “manter cadastro
das barragens sob sua jurisdição, com identificação dos empreendedores, para fins de in-
corporação ao SNISB” (art. 16, I), além de “exigir do empreendedor o cadastramento e a
atualização das informações relativas à barragem no SNISB” (art. 16, V). Desta forma, em
tese, seria possível que a ANM tivesse maior controle a respeito das barragens que reclamam
maior atenção. Todavia, a informação não chega, e, se chegar, pode estar incorreta. Como
exemplo, mencione-se que, desde 2016, a barragem B1 da Mina “Córrego do Feijão” não
passava por vistoria in loco da Agência14.
Nessas condições, não há atividade fiscalizatória que possa ser exercida a contento.
Os dados fornecidos pelos empreendedores, portanto, são meramente declaratórios, e a
conferência dessas informações pela ANM, na prática, se dá somente durante as vistorias,
quando ocorrem. Para piorar, as constatações não são inéditas: relatório de auditoria reali-
zada pela Controladoria-Geral da União (CGU) em 2003 já apontava, dentre outras susce-
tibilidades, que o antigo DNPM dispunha “apenas de 56 fiscais para atuar junto aos 9 mil
empreendimentos minerais existente no País, aí englobados os que se encontram em fase de
pesquisa e os que já estão em efetiva exploração”.15
Questão crucial, para além da insuficiência de servidores da ANM aptos a irem a
campo realizar as inspeções de segurança, e da ausência de fiscalização adequada das
informações prestadas pelo próprio empreendedor, é a certificação da condição de estabili-
dade das barragens.
No modelo atual, não apenas a atualização das informações referentes à barragem
deve ser realizada e entregue à ANM pela mineradora; também a verificação e a declaração
da segurança da estrutura devem ser feitas pelo próprio empreendedor. Nesse sentido, a lei
estabelece (art. 9º, § 1º) que a inspeção de segurança regular da barragem será realizada
pela própria equipe de segurança da barragem, devendo o relatório final estar disponível ao
órgão fiscalizador e à sociedade civil. Já a inspeção de segurança especial da barragem será
realizada por equipe multidisciplinar de especialistas (art. 9º, § 2º).
No que tange às revisões periódicas de segurança (art. 10, § 1º), incumbe ao órgão
fiscalizador estabelecer, dentre outros critérios, a qualificação técnica da equipe responsá-
vel. Efetivamente, a Portaria DNPM n. 70.389, de 17 de maio de 2017, no que concerne às
inspeções de segurança regular e especial, bem como às revisões periódicas de segurança
da barragem, impõe que os respectivos relatórios sejam elaborados obrigatoriamente por
equipe externa contratada pelo empreendedor (arts. 16, § 1º, 24, III, e 50, § 1º).

14
FERRARI, Hamilton. Fiscais não apareciam na Barragem de Brumadinho desde 2016. Correio Braziliense,
fev. 2019. Disponível em: https://www.correiobraziliense.com.br/app/noticia/brasil/2019/02/02/interna-bra-
sil,734928/fiscais-nao-apareciam-na-barragem-de-brumadinho-desde-2016.shtml. Acesso em: 2 jul. 2020.
15
BRASIL. Controladoria-Geral da União. Controle e fiscalização do setor mineral é ineficaz, constata CGU. 2003.
Disponível em: https://www.cgu.gov.br/noticias/2003/06/controle-e-fiscalizacao-do-setor-mineral-e-ineficaz-
-constata-cgu. Acesso em: 2 jul. 2020.
De Mariana a Brumadinho 137

Ademais, também estabelece a Portaria que, caso as conclusões da revisão periódi-


ca indiquem a não estabilidade da barragem, a estrutura deverá ser imediatamente interdita-
da, suspendendo-se o lançamento de efluentes e/ou rejeitos no reservatório (art. 13, § 2º).
Assim também ocorre caso não seja apresentada a Declaração de Condição de Estabilidade
(DCE), que, do mesmo modo, deve ser emitida por equipe externa (art. 16, § 3º).
Daí, portanto, o risco de comprometimento – em decorrência de evidente conflito
de interesses – da veracidade das informações atinentes à condição de estabilidade da bar-
ragem. Não raro, a empresa auditora mantém outras relações comerciais com a auditada;
além do mais, evidentemente, o empreendedor, ao contratar serviço altamente especializado
de auditoria em geotecnia, o que representa o desembolso de vultosas somas em dinheiro,
deseja que seu empreendimento continue a funcionar. A relação contratual entre auditora e
auditada, obviamente, compromete a isenção e a imparcialidade do laudo técnico e da DCE
a ser exarada ao final da apuração.
Foi exatamente o que ocorreu em Brumadinho. A Tractebel Engie, após informar que
não mais poderia declarar a condição de estabilidade da barragem B1, foi substituída16 pela
alemã Tüv Süd, que emitiu a DCE em setembro de 2018. Não apenas a troca de auditoras
evidencia os interesses comerciais por trás da declaração de estabilidade, como também as
controvérsias envolvendo a apuração de responsabilidades pelo desastre, em que auditores
da Tüv Süd afirmam ter recebido e-mails de diretores da Vale S.A. “pressionando-os”17 a
declarar a estabilidade do reservatório. Efetivamente, três dias após a tragédia, foram presos
os dois engenheiros da Tüv Süd18 que atestaram a estabilidade da barragem, além de três
funcionários da Vale. Alguns dias após, foram soltos, por decisão concedida pelo Superior
Tribunal de Justiça em sede de habeas corpus.19

16
VALE trocou empresa que auditava barragens. O Antagonista, mar. 2019. Disponível em: https://www.oantagonis-
ta.com/brasil/vale-trocou-empresa-que-auditava-barragens/. Acesso em: 2 jul. 2020.
17
JUCÁ, Beatriz. A guerra entre a Vale e a Tüv Süd pela responsabilidade da tragédia de Brumadinho. El País, mar.
2019. Disponível em: https://brasil.elpais.com/brasil/2019/02/21/politica/1550770949_599589.html. Acesso
em: 2 jul. 2020.
18
TAVARES, Bruno; CERANTULA, Robinson. Engenheiros e funcionários da Vale que atestaram segurança de barra-
gem em Brumadinho são presos em MG e SP. G1 São Paulo, jan. 2019. Disponível em: https://g1.globo.com/sp/
sao-paulo/noticia/2019/01/29/engenheiros-que-prestaram-servico-a-vale-sao-presos-em-sp-apos-tragedia-em-
-brumadinho.ghtml. Acesso em: 2 jul. 2020.
19
BARBIÉRI, Luiz Felipe. STJ manda soltar funcionários presos após rompimento de barragem da Vale. G1 Política,
fev. 2019. Disponível em: https://g1.globo.com/politica/noticia/2019/02/05/stj-concede-liberdade-a-funcionarios-
-da-vale-e-engenheiros-presos-por-rompimento-de-barragem.ghtml. Acesso em: 2 jul. 2020.
138 Flávio Henrique Unes Pereira

3 A DELEGABILIDADE DO EXERCÍCIO DO PODER DE POLÍ-


CIA E SUA CONTRIBUIÇÃO PARA O INCREMENTO DA
FISCALIZAÇÃO DA SEGURANÇA DE BARRAGENS DE
REJEITOS DA MINERAÇÃO

Impor sanções aos responsáveis pela tragédia, apesar de ser parte importante do
processo de apuração e atribuição de responsabilidades pelas tragédias, não resolve o pro-
blema. A propósito, a Polícia Federal indiciou, no mês passado, 7 funcionários da Vale e 6 da
auditora Tüv Süd por falsidade ideológica e uso de documentos falsos20 – número equivalen-
te à metade de indiciamentos recomendados pela CPI da Assembleia Legislativa do Estado
de Minas Gerais21 e pela CPI do Senado Federal.22
Da mesma forma, organizar moções de apoio23 e de solidariedade24, além de con-
denar a mineradora ao pagamento de indenizações às famílias atingidas (em julho, a Vale e o
Ministério Público do Trabalho celebraram acordo para indenizações de familiares de empre-
gados mortos pelo rompimento da barragem;25 em setembro, a Vale foi condenada a pagar
montante total superior a R$ 11 milhões aos familiares de três vítimas da tragédia,26 na
primeira sentença proferida nos autos de demanda indenizatória individual) e à recuperação
dos ecossistemas arrasados (em julho a Vale foi condenada a reparar os danos causados
pela tragédia de Brumadinho27) são medidas igualmente importantes, mas não impedem
que novos desastres ocorram.

20
PF indicia 7 empregados de Vale por tragédia de Brumadinho. Exame, set. 2019. Disponível em: https://exame.
com/brasil/pf-indicia-7-empregados-de-vale-por-tragedia-de-brumadinho/. Acesso em: 2 jul. 2020.
21
CPI de Brumadinho pede indiciamento de presidente e diretores da Vale. Época Negócios, set. 2019. Disponível
em: https://epocanegocios.globo.com/Brasil/noticia/2019/09/epoca-negocios-cpi-de-brumadinho-pede-indicia-
mento-de-presidente-e-diretores-da-vale.html. Acesso em: 2 jul. 2020.
22
CPI aprova indiciamento de 14 pessoas por homicídio em Brumadinho. Agência Senado, jul. 2019. Disponível
em: https://www12.senado.leg.br/noticias/materias/2019/07/02/cpi-aprova-indiciamento-de-14-pessoas-por-
-homicidio-em-brumadinho. Acesso em: 2 jul. 2020.
23
ALVES, Sara. Fundação SOS Mata Atlântica faz ato de apoio a Brumadinho em BH. Metrópoles, jan. 2019. Disponí-
vel em: https://www.metropoles.com/brasil/fundacao-sos-mata-atlantica-faz-ato-de-apoio-a-brumadinho-em-bh.
Acesso em: 2 jul. 2020.
24
PROJETO ‘A arte abraça Brumadinho’ promove recuperação da cidade através da cultura. O Globo, abr. 2019.
Disponível em: https://oglobo.globo.com/cultura/projeto-arte-abraca-brumadinho-promove-recuperacao-da-ci-
dade-atraves-da-cultura-23624406. Acesso em: 2 jul. 2020.
25
BRUMADINHO: MPT e Vale assinam acordo para indenizar familiares de funcionários mortos na tragédia. G1 Mi-
nas Gerais, Belo Horizonte, jul. 2019. Disponível em: https://g1.globo.com/mg/minas-gerais/noticia/2019/07/15/
brumadinho-mpt-e-vale-assinam-acordo-para-indenizar-familiares-de-funcionarios-mortos-na-tragedia.ghtml.
Acesso em: 2 jul. 2020.
26
VALE pagará R$ 11,8 milhões a familiares de vítimas de Brumadinho. Vale, set. 2019. Disponível em: https://veja.
abril.com.br/brasil/vale-pagara-r-118-milhoes-a-familiares-de-vitimas-de-brumadinho/. Acesso em: 2 jul. 2020.
27
VALE é condenada pela primeira vez na Justiça estadual. Ascom TJMG, jul. 2019. Disponível em: http://www.tjmg.
jus.br/portal-tjmg/noticias/vale-e-condenada-pela-primeira-vez-na-justica-estadual.htm#.XZqdhUZKjIU. Acesso
em: 2 jul. 2020.
De Mariana a Brumadinho 139

Aliás, nestes pouco mais de 8 meses desde a tragédia de Brumadinho, novos rom-
pimentos de barragens foram verificados em Machadinho d’Oeste-RO28 (rompimento de
duas barragens inativas de rejeitos da mineração de cassiterita da Metalmig, em março,
deixando 100 famílias isoladas graças à queda de pontes); em Pedro Alexandre e Coronel
João Sá-BA29 (ruptura da barragem do Quati, em julho, deixando 1.500 desalojados e 400
desabrigados); e em Nossa Senhora do Livramento-MT30 (colapso da barragem TB01, de
contenção de rejeitos da mineração de ouro, da VM Mineração e Construção, em outubro).
Apresentar alternativas para que seja incrementado o marco regulatório da segu-
rança de barragens no Brasil é providência que atinge a “raiz” do problema, essencial à
prevenção de novas catástrofes, suprimindo (ou, quando menos, mitigando) o risco de que
os interesses comerciais atinentes ao empreendimento se sobreponham à segurança.
Nesse sentido, a tese da delegabilidade do exercício do poder de polícia a particula-
res figura como alternativa viável à redução das interferências indevidas apuradas no atual
quadro regulatório.
Apesar da importante evolução no entendimento acerca do assunto, apurada na úl-
tima década, a matéria ainda é tratada com reservas pela doutrina e pela jurisprudência.31
Identifica-se, no cerne da discussão, três principais argumentos em torno da impossibilidade
de que particulares exerçam, mediante delegação, poder de polícia32: (i) ausência de previ-
são constitucional que expressamente o autorize; (ii) inconstitucionalidade do exercício de
poderes de coerção e autoexecutoriedade por particulares; e (iii) necessidade de incidência
do regime jurídico do servidor público para o exercício da atividade de polícia.
Com relação ao item (i), é relevante observar que, além de não haver, no Texto Cons-
titucional, vedação expressa à delegação, há dispositivos que conferem aderência à tese da
delegabilidade. É o caso, por exemplo, do art. 37, XIX, que autoriza a criação de entidade
da Administração Pública, inclusive de direito privado, para desempenho de atividade de
sua competência, sendo lícito afirmar que o conceito de “atividade”, tal como utilizado pelo
constituinte, admite tanto os serviços públicos quanto o poder de polícia. Ademais, os arts.

28
ROMPIMENTO de barragens em Rondônia deixa 100 famílias isoladas. G1 Ariquemes e Vale do Jamari, mar.
2019. Disponível em: https://g1.globo.com/ro/ariquemes-e-vale-do-jamari/noticia/2019/03/30/cerca-de-50-fami-
lias-estao-isoladas-apos-rompimento-de-barragem-em-machadinho-doeste-ro.ghtml. Acesso em: 2 jul. 2020.
29
PITOMBO, João Pedro. Falha em barragem faz 350 famílias serem retiradas de casa na Bahia. Folha de São Paulo,
jul. 2019. Disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/cotidiano/2019/07/barragem-rompe-na-bahia-e-fami-
lias-sao-retiradas-de-suas-casas.shtml. Acesso em: 2 jul. 2020.
30
ESTIGARRIBIA, Juliana. Barragem rompe no MT e evidencia problema estrutural na mineração. Exame, out. 2019.
Disponível em: https://exame.com/negocios/barragem-rompe-no-mt-e-evidencia-problema-estrutural-na-minera-
cao/. Acesso em: 2 jul. 2020.
31
É relevante mencionar, a respeito do entendimento até agora predominante na jurisprudência dos Tribunais
Superiores, a orientação firmada pelo Supremo Tribunal Federal no julgamento da ADI n. 1.717-6/DF.
32
PEREIRA, Flávio Henrique Unes. Regulação, fiscalização e sanção: fundamentos e requisitos da delegação do
poder de polícia administrativa a particulares. Belo Horizonte: Fórum, 2013.
140 Flávio Henrique Unes Pereira

216 e 225 autorizam particulares a exercer atividade de polícia administrativa, o que reafirma
a tese da aderência constitucional à delegação, salvo previsão expressa sobre função estatal
específica.
Quanto ao item (ii), afigura-se-nos plenamente viável que a norma jurídica autorize
determinado sujeito a intervir na esfera jurídica de outrem sem que ele esteja autorizado a
fazer uso da força física para impor determinada conduta. Assim, ainda que se reconheça
que tal prerrogativa é exclusiva do Estado – salvo em caso de urgência que demande atuação
imediata –, é possível o exercício do poder de polícia sem que a autoexecutoriedade seja
transferida ao agente delegado.
Já a coercibilidade, a seu turno, pode ser exercida por particulares. Primeiro, porque
o Estado não deixa de ser o titular da atividade delegada quando transfere apenas a sua exe-
cução – como ocorre, por exemplo, com os serviços públicos –; segundo, porque o regime
jurídico de direito público incidirá sobre toda a execução da atividade, ainda que exercida
por particular; terceiro, porque a exigência de lei específica afasta a afronta ao princípio da
isonomia, já que não se cuida de simples imposição de obrigações entre particulares, mas,
sim, de delegação de função pública mediante lei, a atribuir qualidade jurídica distinta ao
agente delegado em relação ao mero particular.
Por derradeiro, no que concerne ao item (iii), é oportuno salientar que as prerrogati-
vas outorgadas pelo regime jurídico dos servidores públicos não chegam a ponto, ao menos
segundo o ordenamento constitucional vigente, de obstar genericamente a delegação da
atividade de polícia administrativa a particulares. Basta verificar, por exemplo, que as princi-
pais decisões políticas e administrativas, dentre as quais as sancionadoras, são tomadas por
agentes públicos que ocupam cargos de provimento em comissão, que não ingressaram no
serviço público mediante concurso e não possuem estabilidade.

3.1 O atual modelo fiscalizatório em xeque: o reconhecimento


da inviabilidade e as propostas legislativas no sentido da
delegação do exercício do poder de polícia

No que concerne às relações entre mineradora e empresa auditora, o relatório final33


da Comissão Parlamentar de Inquérito do Senado sobre Brumadinho e outras barragens
dedicou capítulo específico ao tema, ressaltando que:

as Declarações de Condição de Estabilidade, elemento considerado fundamental para


a segurança de uma barragem, mostram diversos vícios: interferências indevidas na
elaboração dos laudos, por parte da empresa auditada; permissividade excessiva, ao

33
BRASIL. Senado Federal. Requerimento n. 21, de 2019. Disponível em: https://legis.senado.leg.br/comissoes/
txtmat?codmat=135192. Acesso em: 2 jul. 2020.
De Mariana a Brumadinho 141

assinar laudos de estabilidade condicionados a correções que nunca foram feitas, por
parte da empresa auditora; conflitos de interesses através de múltiplos contratos, no
caso da empresa TUV SUD.

Na mesma linha, o relatório final da Comissão Parlamentar de Inquérito instaurada no


âmbito da Assembleia Legislativa do Estado de Minas Gerais,34 entregue à Mesa da ALMG
em 17 de setembro, recomendou à Vale que não utilize,

para elaboração de laudos de estabilidade de barragens, serviços de empresas de


auditoria externa que estejam executando outros tipos de serviços à mineradora” e, à
ANM, que proíba “a contratação de empresa de auditoria externa, que esteja prestando
ou tenha prestado outro tipo de serviço ao empreendedor, para emissão de Declara-
ção de Condição de Estabilidade, de forma a evitar conflito de interesses.

A propósito, o art. 9º do projeto de lei apresentado pela CPI do Senado Federal (PL
n. 3.913/2019, atualmente aguardando relatório no âmbito da Comissão de Constituição,
Justiça e Cidadania – CCJ35) assim dispôs:

Art. 9º Cabe à ANM a instituição de sistema de credenciamento e contratação de


profissionais e empresas especializadas, segundo requisitos de comprovada expe-
riência e capacitação técnica, para apoiar suas atividades de fiscalização de seguran-
ça e de avaliação de riscos de barragens de rejeitos.

Art. 10. A escolha e contratação dos responsáveis pela realização da revisão periódi-
ca de segurança de barragem e das inspeções de segurança regular e especial, bem
como os responsáveis pela emissão de laudos de estabilidade e de análise de risco de
barragens de rejeitos, cabe à ANM, que deve selecioná-los entre os profissionais e as
empresas credenciados na forma do art. 9º, por sorteio ou outro meio que garanta a
independência dos auditores em relação às mineradoras.

Curiosamente, entretanto, o mesmo relatório final da CPI do Senado sobre Bruma-


dinho consigna que “uma possível melhoria nas fiscalizações realizadas pelo poder público

34
CPI da Barragem entrega relatório final à Mesa da Assembleia. Assembleia Legislativa de Minas Gerais Notícias,
set. 2019. Disponível em: https://www.almg.gov.br/acompanhe/noticias/arquivos/2019/09/13_release_entrega_
relatorio_CPI_Mesa.html. Acesso em: 2 jul. 2020.
35
BRASIL. Senado Federal. Projeto de Lei n. 3913, de 2019. Proíbe o licenciamento ambiental de barragens de
rejeitos e de barragens de resíduos industriais novas, estabelece regras de segurança e prazo para o descomissio-
namento das barragens de rejeitos e das barragens de resíduos industriais em construção ou existentes, ativas e
inativas, e institui a Taxa de Fiscalização de Segurança de Barragens de Rejeitos (TFSBR). Brasília: Senado Federal,
2019. Disponível em: https://www25.senado.leg.br/web/atividade/materias/-/materia/137599. Acesso em: 2 jul.
2020.
142 Flávio Henrique Unes Pereira

seria a contratação de servidores (não é possível terceirizar a fiscalização, vez que envolve
o exercício do poder de polícia administrativa e, portanto, é atividade típica de estado)”.
Também o relatório final da CPI da Câmara dos Deputados sobre o rompimento da
barragem de Brumadinho, ao mesmo tempo que sugere a contratação temporária de em-
presas para, emergencialmente, fazer frente à demanda de trabalho, apresenta a realização
de mais concursos públicos como solução definitiva para o aprimoramento da eficiência na
atuação fiscalizatória, nos seguintes termos:

Dessa forma, para uma fiscalização mais eficiente das barragens de mineração, con-
sidera-se imprescindível a realização de concurso público – e o Ministério de Minas
e Energia (MME) deve ser instado a fazê-lo – e o treinamento de técnicos nessa área,
não se abrindo mão, no curto prazo, de soluções alternativas, tais como a realoca-
ção de servidores de outros órgãos (por exemplo, do Serviço Geológico Nacional
– CPRM) e a contratação temporária de empresas especializadas em geotecnia, para
dar vazão à sobrecarga atual de trabalho.

No mesmo diapasão, o relatório final da CPI da Câmara de Vereadores de Belo Hori-


zonte-MG consignou, reproduzindo trecho do relatório final da CPI do Senado, que:

Normalmente, as equipes de fiscalização in loco são compostas por no mínimo dois


servidores e duram pelo menos uma semana. Considerando que atualmente há 788
barragens no SIGBM, excluídas aquelas que constam como descadastradas, seriam
necessárias mais de 131 semanas para inspecionar todas as estruturas. Assim, in-
fere-se que uma possível melhoria nas fiscalizações realizadas pelo poder público
seria a contratação de servidores (não é possível terceirizar a fiscalização, vez que
envolve o exercício do poder de polícia administrativa e, portanto, é atividade típica
de estado).36

Ora, como visto, a adoção dos postulados normativo-dogmáticos da exclusividade


do ius imperii pelo Estado e, em consequência, da indelegabilidade do seu exercício a par-
ticulares, admite apenas, como solução para o problema, a seleção e posterior nomeação
de novos servidores públicos para os quadros da ANM. Nada obstante, acolher a delegação
do exercício do poder de polícia a particulares, máxime em um setor que reclama alto grau
de especialização técnico-científica, é providência que mais se compatibiliza com o dever de
eficiência da Administração Pública.

36
O mesmo relatório, entretanto, sugeriu que “[u]ma possível solução para a análise da condição de estabilidade
com maior isenção seria a formação, pela ANM, de listas de consultores selecionados por sorteio. A remuneração
desses consultores caberia à Agência, mediante pagamento de taxa pelo empreendedor. Situação similar ocorre
em processos judiciais, quando se faz necessária a realização de perícia.”.
De Mariana a Brumadinho 143

E, afinal, tanto os relatórios quanto o projeto de lei proposto pela CPI do Senado
Federal admitiram, ainda que por via reflexa – ou seja, sem o dizer expressamente – que par-
ticulares “apoiassem” a ANM em sua função fiscalizatória. No fundo, trata-se de delegação
do exercício do poder de polícia a particulares.
Aliás, também o Estado de Minas Gerais, através da aprovação da Lei n. 23.291, de
25 de fevereiro de 2019 (oriunda do Projeto de Lei n. 3.676/2016, intitulado Mar de lama
nunca mais37), previu que “As auditorias técnicas de segurança e as auditorias técnicas
extraordinárias de segurança serão realizadas por uma equipe técnica de profissionais in-
dependentes, especialistas em segurança de barragens e previamente credenciados peran-
te o órgão ou a entidade competente do Sisema, conforme regulamento” (art. 17, § 3º).
No mesmo sentido, a Resolução n. 13,38 de 8 de agosto de 2019, da Agência Nacional de
Mineração, determinou que o projeto técnico executivo de descaracterização de barragens
alteadas pelo método a montante (ou por método desconhecido) deverá ser feito por equipe
externa independente (art. 8º, § 1º).
Vê-se, portanto, que as conclusões alcançadas pelas diversas Comissões Parla-
mentares de Inquérito, bem como pelos órgãos de investigação (Polícia Federal39, Polícia
Civil, Ministério Público40), reconhecem que houve interferências indevidas e inserção de
informações inverídicas no processo de elaboração da Declaração de Condição de Estabili-
dade – DCE – que, ao fim e ao cabo, acarretou a tragédia de Brumadinho-MG, dentre outras
de menor magnitude (em termos de devastação e vítimas) no território nacional.
Nesse passo, cabe observar, ainda, que a Vale já firmou três Termos de Compromis-
so com o Ministério Público, comprometendo-se a contratar auditoria técnica independente
(i) para analisar a efetividade das medidas adotadas na contenção dos rejeitos e na recu-
peração socioambiental de todas as áreas impactadas pela tragédia de Brumadinho, bem
como a segurança e a estabilidade das estruturas remanescentes do Complexo Paraopeba II,

37
MAR de Lama Nunca Mais: por que a importância de aprimorar a legislação? MPMG Notícias, jan. 2019. Dispo-
nível em: https://www.mpmg.mp.br/comunicacao/noticias/mar-de-lama-nunca-mais-por-que-a-importancia-de-
-aprimorar-a-legislacao.htm. Acesso em: 2 jul. 2020.
38
BRASIL. Resolução n. 13, de 8 de agosto de 2019. Estabelece medidas regulatórias objetivando assegurar a
estabilidade de barragens de mineração, notadamente aquelas construídas ou alteadas pelo método denominado
“a montante” ou por método declarado como desconhecido e dá outras providências. Brasília: Ministério de Minas
e Energia; Agência Nacional de Mineração, 2019. Disponível em: http://www.in.gov.br/web/dou/-/resolucao-n-
-13-de-8-de-agosto-de-2019-210037027. Acesso em: 2 jul. 2020.
39
PF apresenta resultados de investigação sobre o rompimento de barragem em Brumadinho. PF Notícias, set.
2019. Disponível em: http://www.pf.gov.br/imprensa/noticias/2019/09/pf-apresenta-resultados-de-investigacao-
-sobre-o-rompimento-de-barragem-em-brumadinho. Acesso em: 2 jul. 2020.
40
BALANÇO de seis meses de atuação do MPMG no caso Brumadinho. MPMG Notícias, jul. 2019. Disponível em:
https://www.mpmg.mp.br/comunicacao/noticias/balanco-de-seis-meses-de-atuacao-do-mpmg-no-caso-bruma-
dinho.htm. Acesso em: 2 jul. 2020.
144 Flávio Henrique Unes Pereira

da Mina “Córrego do Feijão”;41 (ii) para promover estudos nas áreas geológica-geotécnica
nas barragens Norte Laranjeiras, B3, Dicão, Dique de Contenção da PDE3, Sul (Córrego do
Canal), além daquelas componentes ou integradas;42 e, ainda, (iii) para acompanhamento da
situação da Mina de “Gongo Soco”, especialmente da Barragem Sul Superior, no município
de Barão de Cocais-MG.43

4 CONSIDERAÇÕES FINAIS

São evidentes os sinais de desgaste e diversas as suscetibilidades do atual modelo


regulatório de segurança de barragens da mineração, máxime no que concerne às relações
entre auditora e auditada, a comprometer decisivamente um sistema de fiscalização que
– em virtude da insuficiência de recursos humanos –, da forma como se apresenta hoje,
precisa funcionar com base na confiança.
É hora de superarmos antigos dogmas do Direito Administrativo, em homenagem à
eficiência fiscalizatória, para que episódios como os de Brumadinho e Mariana não voltem a
ocorrer. Neste contexto, a delegação do exercício do poder de polícia a particulares, além de
não ser vedada pelo ordenamento jurídico nacional, é alternativa viável que se apresenta à
Administração Pública, como meio não apenas imediato, mas também definitivo de supera-
ção dos entraves que obstam o bom exercício da função fiscalizatória.
Vê-se que a tragédia de Brumadinho, especificamente, trouxe a lume a precariedade
do sistema atual, em que o papel do órgão fiscalizador, em virtude de seu subfinanciamento
e de sua notória incapacidade operacional (faltam recursos materiais e humanos para que a
agência reguladora exerça a contento o seu mister – e, com efeito, não se trata apenas da
fiscalização), está limitado à mera gestão e processamento de informações prestadas pelos
próprios empreendedores. A seu turno, a vedação a que as próprias mineradoras elaborem
os estudos necessários à emissão da declaração de condição de estabilidade, direciona-as
à busca, no mercado, por auditorias que lhes forneçam um serviço que possui sérias e de-
cisivas implicações na vida econômica da empresa auditada.
O Poder Legislativo – seja por meio do trabalho desempenhado pelas CPIs, seja
mediante a propositura de novas leis – já acena com a admissibilidade (ainda que velada) da

41
VALE deve contratar auditoria independente para verificar medidas de recuperação socioambiental das áreas
impactadas pela tragédia de Brumadinho. MPMG Notícias, fev. 2019. Disponível em: https://www.mpmg.mp.br/
comunicacao/noticias/vale-deve-contratar-auditoria-independente-para-verificar-medidas-de-recuperacao-so-
cioambiental-das-areas-impactadas-pela-tragedia-de-brumadinho.htm. Acesso em: 2 jul. 2020.
42
MPMG e Vale assinam acordo para realização de auditoria independente em barragens em São Gonçalo do Rio
Abaixo e Barão de Cocais. MPMG Notícias, jul. 2019. Disponível em: https://www.mpmg.mp.br/comunicacao/
noticias/mpmg-e-vale-assinam-acordo-para-realizacao-de-auditoria-independente-em-barragens-em-sao-gon-
calo-do-rio-abaixo-e-barao-de-cocais.htm. Acesso em: 2 jul. 2020.
43
MPMG e Vale assinam acordo para realização de auditoria independente [...]. Op. cit.
De Mariana a Brumadinho 145

delegação do exercício do poder de polícia a particulares. No fundo, e em verdade, manter


“cadastro de empresas auditoras” que desempenharão o papel de “auxiliar” o órgão fisca-
lizador nada mais é do que admitir que terceiros, alheios aos quadros funcionais do Poder
Público, desempenhem o papel de fiscalizar.
Os primeiros passos já estão sendo dados. A institucionalização da possibilidade
de delegação do poder de polícia é medida que se coaduna com o bom desempenho das
tarefas cometidas à Administração Pública – e, com relação à segurança de barragens, se
afigura como providência imprescindível a que novos episódios trágicos como os de Mariana
e Brumadinho voltem a ocorrer.

REFERÊNCIAS

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construção ou existentes, ativas e inativas, e institui a Taxa de Fiscalização de Segurança de Barragens
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madinho-pode-ser-2-maior-desastre-industrial-do-seculo-e-maior-acidente-de-trabalho-do-brasil.htm.
Acesso em: 2 jul. 2020.

TAVARES, Bruno; CERANTULA, Robinson. Engenheiros e funcionários da Vale que atestaram segurança
de barragem em Brumadinho são presos em MG e SP. G1 São Paulo, jan. 2019. Disponível em:https://
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VALE trocou empresa que auditava barragens. O Antagonista, mar. 2019. Disponível em: https://www.
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VALE pagará R$ 11,8 milhões a familiares de vítimas de Brumadinho. Vale, set. 2019. Disponível em:
https://veja.abril.com.br/brasil/vale-pagara-r-118-milhoes-a-familiares-de-vitimas-de-brumadinho/.
Acesso em: 2 jul. 2020.

VALE é condenada pela primeira vez na Justiça estadual. Ascom TJMG, jul. 2019. Disponível em: http://
www.tjmg.jus.br/portal-tjmg/noticias/vale-e-condenada-pela-primeira-vez-na-justica-estadual.htm#.
XZqdhUZKjIU. Acesso em: 2 jul. 2020.

VALE deve contratar auditoria independente para verificar medidas de recuperação socioambiental das
áreas impactadas pela tragédia de Brumadinho. MPMG Notícias, fev. 2019. Disponível em: https://
www.mpmg.mp.br/comunicacao/noticias/vale-deve-contratar-auditoria-independente-para-verificar-
-medidas-de-recuperacao-socioambiental-das-areas-impactadas-pela-tragedia-de-brumadinho.htm.
Acesso em: 2 jul. 2020.
O controle judicial do processo
administrativo disciplinar

Florivaldo Dutra de Araújo


Doutor em Direito Administrativo (UFMG)
Professor de Direito Administrativo (UFMG)

SUMÁRIO: 1 Introdução; 2 Processo disciplinar: do Estado liberal ao Estado Democrático de Direito;


3 Extensão do controle judicial do processo disciplinar; 3.1 Infrações disciplinares e conceitos jurídicos
indeterminados; 3.2 Processo disciplinar e “escolha” da pena a ser aplicada pela autoridade sanciona-
dora; 3.3 Tendências judiciais de ampliação do controle do sancionamento disciplinar; 4 Considerações
finais; Referências.

1 INTRODUÇÃO

O direito disciplinar, como sub-ramo do direito administrativo, apresenta-se nas ver-


tentes material e formal, essa última também dita processual.
O direito disciplinar material compõe-se das normas que estabelecem a prerrogativa
estatal de punir os agentes públicos e demais sujeitos submetidos à disciplina interna da ad-
ministração pública, definindo os ilícitos administrativos e as penalidades correspondentes.
O direito disciplinar processual constitui-se das normas que definem os procedimen-
tos que conduzem à possível declaração de ocorrência da ilicitude e à fixação da responsa-
bilidade administrativa daqueles que a praticaram.
Dentre os temas do direito administrativo, o direito disciplinar é um dos que muito
evoluíram entre as últimas décadas do século XX e o início do século XXI. Ao nosso ver, essa
evolução foi maior no campo do processo e seu controle, em comparação com o aspecto
material, tendo em vista, especialmente, que as definições dos ilícitos e correspondentes
sanções poderiam ser mais claras e específicas, contribuindo melhor para a segurança jurí-
dica. Não será este, contudo, o foco deste trabalho.
O presente texto ocupar-se-á do desenvolvimento do controle jurisdicional do pro-
cesso disciplinar no Brasil, com vistas a indicar aspectos nos quais essa evolução resultou
em incremento da segurança jurídica, por meio da abertura para novas hipóteses de cabi-
mento do controle judicial. Outro objetivo desta dissertação é apresentar uma breve análise
150 Florivaldo Dutra de Araújo

crítica de pontos de vista em relação aos quais entendemos haver um déficit perante os
princípios do Estado Democrático de Direito, indicando a ampliação do controle jurisdicional
como aspecto relevante para a adequada juridicização do processo disciplinar.

2 PROCESSO DISCIPLINAR: DO ESTADO LIBERAL AO


ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO

O chamado poder disciplinar da administração pública é a prerrogativa que esta


possui, de punir os servidores públicos e demais pessoas que com ela mantêm uma relação
especial de sujeição, em face de infrações cometidas contra os deveres desse específico
vínculo.
As relações jurídicas mantidas entre a administração pública e demais sujeitos de
direito, conforme clássica distinção construída pela doutrina alemã, podem ser divididas em
relações gerais de sujeição e relações especiais de sujeição.
As relações gerais de sujeição, também ditas relações gerais de poder, são as que
existem entre a administração pública e a generalidade dos sujeitos de direito, decorrente do
simples fato de que todas as pessoas, desde o começo de suas existências, encontram-se
assujeitadas ao poder estatal. O exercício do poder de polícia, que se revela pela imposição
de restrições à liberdade e à propriedade, em função de interesses coletivos, assenta-se
nessas relações gerais.
As relações especiais de sujeição, ou relações especiais de poder, são as que de-
correm da formação, compulsória ou voluntária, de vínculo específico entre uma pessoa e
a administração pública, para além da já referida vinculação geral. Estas relações desen-
volvem-se em campos específicos de atuação do poder público, a exemplo dos órgãos
administrativos, nos quais atuam os servidores públicos; das escolas públicas e das prisões.
Assim, tal como os servidores, os alunos de estabelecimentos públicos e os presidiários en-
contram-se em uma especial relação de sujeição, à qual se aplicam normas específicas de
conduta, que lhes atribuem direitos e deveres próprios. Para garantir a observância dessas
normas, a administração pública detém o poder disciplinar.
Em sua formulação originária, que data do século XIX, a teoria das relações especiais
de sujeição sustentava que tais vínculos eram característicos de áreas nas quais a ação do
estado se desenrolava sob isenção jurídica. Enquanto o exercício do poder de polícia – típico
das relações gerais de poder – deveria fundar-se em prévia autorização legal, nas relações
especiais as prerrogativas estatais, especialmente o poder disciplinar, decorriam diretamente
e apenas da própria administração pública, como poderes que lhe eram inerentes, regulados
por atos internos, tidos até meados do século XX como atos não-jurídicos e, portanto, sub-
traídos ao princípio da legalidade. Neste sentido é o ensinamento de Rivero: “A Administração
O controle judicial do processo administrativo disciplinar 151

não está regida pelo direito quando as regras a que obedece lhe são puramente interiores,
obrigatórias para os agentes em relação aos seus superiores, mas não em relação aos ad-
ministrados”.1
O caráter ajurídico dessas relações especiais, logicamente, serviu de fundamento à
sua exclusão do controle jurisdicional, uma vez que, conforme a clássica teoria da separação
dos poderes, que se constitui em um dos pilares do Estado de Direito, somente cabe aos
órgãos jurisdicionais o exame da legalidade dos atos da administração pública.
A concepção e sistematização dessas relações como ajurídicas devem-se principal-
mente a Paul Laband e Otto Mayer. Trata-se de concepção que, sobrevivendo à República de
Weimar e à democratização pós Segunda Guerra Mundial, só veio a encontrar o ocaso de
sua formulação original em 1972, quando o Tribunal Constitucional Federal alemão, julgando
lide relativa às relações entre o Estado e o indivíduo, no contexto da execução penal, decidiu
que também nas chamadas relações especiais de poder vigoram os direitos fundamentais e
sua juridicidade pode ser examinada pelo Judiciário.2
Atualmente a classificação dos vínculos entre administração pública e demais su-
jeitos de direito em relações gerais e especiais de sujeição tem repercussões muito mais
restritas, como a de explicar os distintos fundamentos do poder de polícia e do poder disci-
plinar, como acima já referido. O mais importante é que não mais se admite que as relações
especiais de poder sejam subtraídas da regência do princípio da legalidade, tampouco se
possa excluir de seu âmbito a proteção aos direitos fundamentais.
Contudo, na doutrina e na jurisprudência brasileiras ainda subsistem posições muito
restritivas no tocante à extensão do controle judicial do processo administrativo disciplinar. A
principal linha de fundamentação deste posicionamento é a alegação da discricionariedade
que, segundo se defende, prevalece na aplicação das normas disciplinares.
Embora originariamente essa discricionariedade tenha sido associada à isenção ju-
rídica das relações especiais de poder, o ocaso desta noção não foi suficiente para levar a
uma substancial redução da defesa de prerrogativas discricionárias da administração pública
no campo disciplinar.
Para ilustrar a defesa dessa discricionariedade, trazemos a lume a lição de Hely Mei-
relles, um dos mais influentes nomes do Direito Administrativo brasileiro:

Outra característica do poder disciplinar é seu discricionarismo, no sentido de que


não está vinculado a prévia definição da lei sobre a infração funcional e a respectiva

1
RIVERO, Jean. Droit administratif. Paris: Dalloz, 1975. p. 14.
2
LABAND, Paul. Le droit public de l’empire allemand. T. II. Paris: V. Giard & E. Brière, 1901. p. 100-107. MAURER,
Hartmut. Allgemeines Verwaltungsrecht. 9. Aufl. München: C. H. Beck, 1994. p. 105-106, 158-161. SILVA, Claris-
sa Sampaio. Direitos fundamentais e relações especiais de sujeição: o caso dos agentes públicos. Belo Horizonte:
Fórum, 2009.
152 Florivaldo Dutra de Araújo

sanção. Não se aplica ao poder disciplinar o princípio da pena específica que domina
inteiramente o Direito Criminal comum, ao afirmar a inexistência da infração penal sem
prévia lei que a defina e apene: “nullum crimen, nulla poena sine lege”. Esse princípio
não vigora em matéria disciplinar. O administrador, no seu prudente critério, tendo em
vista os deveres do infrator em relação ao serviço e verificando a falta, aplicará a san-
ção que julgar cabível, oportuna e conveniente, dentre as que estiverem enumeradas
em lei ou regulamento para a generalidade das infrações administrativas.3

Meirelles leciona que o administrador público não goza de discricionariedade para


escolher se pune ou não o subordinado faltoso, registrando que “A aplicação da pena disci-
plinar tem para o superior hierárquico o caráter de um poder-dever, uma vez que a condes-
cendência na punição é considerada crime contra a Administração Pública.”4
O juízo discricionário da autoridade disciplinar reside essencialmente, segundo a
doutrina tradicional, em dois aspectos.
Primeiro, na subsunção do fato punível às previsões legais das infrações disciplina-
res. Como afirma Di Pietro, a discricionariedade surge, neste aspecto,

com relação a certas infrações que a lei não define; é o caso do “procedimento ir-
regular” e da “ineficiência no serviço”, puníveis com pena de demissão, e da “falta
grave”, punível com suspensão; são expressões imprecisas, de modo que a lei deixou
à Administração a possibilidade de enquadrar os casos concretos em uma ou outra
dessas infrações.5

Trata-se, portanto, da aplicação dos chamados conceitos jurídicos indeterminados,


que grande parte da doutrina brasileira continua a considerar ensejadora de discricionarie-
dade administrativa, diferentemente dos conceitos determinados, que por utilizarem referen-
ciais rígidos (grandezas matemáticas, por exemplo), resultariam em vinculação do adminis-
trador público ao aplicá-los nos casos concretos.
O segundo aspecto da discricionariedade no exercício do poder disciplinar diz res-
peito à definição da pena a ser aplicada. Conforme Meirelles: “Conforme a gravidade do fato
a ser punido, a autoridade escolherá, entre as penas legais, a que consulte ao interesse do
serviço e a que mais bem reprima a falta cometida.”.6
Assim como a generalidade da doutrina administrativista, Meirelles adverte não se
confundir a discricionariedade com arbitrariedade e, para que esta não se caracterize, indica

3
MEIRELLES, Hely Lopes. Direito administrativo brasileiro. 42. ed. São Paulo: Malheiros, 2016. p. 146.
4
MEIRELLES, Hely Lopes. Direito administrativo brasileiro. Op. cit., p. 147.
5
DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Direito administrativo. 30. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2017. p. 126.
6
MEIRELLES, Hely Lopes. Direito administrativo brasileiro. Op. cit., p. 147.
O controle judicial do processo administrativo disciplinar 153

os dois condicionamentos jurídicos da aplicação válida de sanções disciplinares. O primeiro


é a apuração da falta disciplinar por meio de processo administrativo regular que, embora
mais simples e menos formal que o processo judicial, deve mostrar-se obediente às pres-
crições legais, o que inclui a observância do direito de defesa do acusado. O segundo é a
motivação do ato sancionatório, no qual deve ser feita a demonstração “quanto à existência
da falta e aos motivos em que a Administração embasa a punição”.7
Ressalva, no entanto, que o dever de motivação não permite que o poder judiciário
reavalie o seu conteúdo. Confira-se a conclusão de Meirelles:

Ao motivar a imposição da pena, o administrador não se está despojando da discri-


cionariedade que lhe é conferida em matéria disciplinar. Está, apenas, legalizando
essa discricionariedade, visto que a valoração dos motivos é matéria reservada pri-
vativamente à sua consideração, sem que outro Poder possa rever o mérito de tais
motivos.8

É importante observar que, embora as linhas mestras dessa tradicional concepção


do processo administrativo disciplinar e seu controle tenham sido construídas no mesmo
contexto ideológico que defendia a impermeabilidade das relações especiais de sujeição ao
controle judicial, com o passar do tempo elas foram incorporando modulações, na medida
em que os avanços da cidadania, na passagem do Estado Liberal ao Estado Social e Demo-
crático de Direito, ampliavam as garantias materiais e procedimentais das pessoas em face
da administração pública.
Assim, aproximadamente até a primeira metade do século XX, predominou a noção
de que o controle judicial dos atos disciplinares somente poderia alcançar três indagações:
se as formalidades procedimentais básicas foram observadas (o que incluía a emissão do
ato punitivo na forma legalmente prevista); se a punição aplicada encontrava-se prevista,
abstratamente, no ordenamento jurídico aplicável ao caso; e se o agente que expediu o ato
punitivo possuía competência legal para tanto.9

7
MEIRELLES, Hely Lopes. Direito administrativo brasileiro. Op. cit., p. 148.
8
MEIRELLES, Hely Lopes. Direito administrativo brasileiro. Op. cit., p. 149, grifos no original.
9
Manifestação exemplar dessa concepção encontramos no seguinte trecho de voto vencedor do Ministro Costa
Manso no Supremo Tribunal Federal (STF), proferido em 1938, no qual reitera argumentação já vertida em decisão
anterior: “Quando a lei estabelece garantias para o funcionário, podem os tribunais judiciais verificar se os precei-
tos da lei foram ou não violados. A lei, por exemplo, declara qual o funcionário competente para demitir, enumera
os casos de demissão e estabelece um processo para apurá-los. Se a demissão é decretada por funcionário
diverso do designado na lei, o ato é nulo, pela incompetência de quem o executou. Se a demissão é decretada por
motivo não previsto na lei, o ato é nulo por excesso de poder. Se, finalmente, a demissão é decretada sem obser-
vância das formalidades substanciais do processo estabelecido para a apuração do motivo legal, o ato é nulo, por
cerceamento dos meios de defesa. [...] Desde, porém, que a autoridade seja competente, que a demissão tenha
uma das causas previstas em lei, e que hajam sido observadas as formalidades legais, o ato poderá ser injusto,
mas não é nulo.” (Apelação Cível n. 6.845, Relator ad hoc Ministro Costa Manso.)
154 Florivaldo Dutra de Araújo

Essa concepção ainda encontrou guarida legal na revogada Lei n. 1.533, de


31/12/1951, que até há alguns anos disciplinava o mandado de segurança. No seu art.
5º, III, previa-se que não se concederia mandado de segurança quando se tratasse “de ato
disciplinar, salvo quando praticado por autoridade incompetente ou com inobservância de
formalidade essencial”. Embora constante de lei relativa a essa ação especial, reconhecia-se
que a citada vedação abrangia também as demais ações com as quais se pudesse impugnar
atos disciplinares, uma vez que se tratava de restrição fundada na discricionariedade inerente
à aplicação de sanções administrativas disciplinares.10
A nova Lei do Mandado de Segurança, n. 12.1016, de 07/08/2009, não mais contém
essa restrição, o que se deve à superação das noções que embasavam o art. 5º, III, da Lei
revogada.11
Porém, até o alcance dessa conquista legislativa, a doutrina e a jurisprudência, como
registrado, foram paulatinamente incorporando aberturas ao controle judicial do processo
disciplinar, que continuavam – e em parte continuam – a conviver, de modo contraditório,
com as antigas restrições dantes defendidas.
O texto clássico de Meirelles é um bom exemplo desse processo evolutivo e algo
contraditório. Ao mesmo tempo em que defende as restrições tradicionais ao controle judicial
do processo disciplinar, as suas lições incorporam exigências que se prestam a ampliar esse
controle. Assim, embora afirme que o “Judiciário deter-se-á no exame material e jurídico dos
motivos invocados, sem lhes adentrar a substância administrativa”.
Meirelles confere papel e consequências maiores à motivação do que a princípio
delimitara. Confira-se:

A motivação destina-se a evidenciar a conformação da pena com a falta e a permitir


que se confiram a todo tempo a realidade e a legitimidade dos atos ou fatos enseja-
dores da punição administrativa. Segundo a moderna doutrina francesa, hoje aceita
pelos nossos publicistas e pela nossa jurisprudência, todo ato administrativo é inope-

10
Nesse sentido, a lição de Celso Agrícola Barbi, contido em obra clássica sobre o mandado de segurança: “Ex-
clui-se, porém, expressamente, do âmbito do mandado de segurança o ato disciplinar, salvo quando praticado
por autoridade incompetente ou com inobservância de formalidade essencial. Esse princípio, aliás, não é peculiar
ao mandado de segurança, pois não se refere à forma processual adotada para o controle da Administração. A
restrição legal é devida à natureza discricionária do ato disciplinar, que não se coaduna com o exame do mérito
da pena, seja qual for a via processual escolhida. A intervenção do Poder Judiciário é, assim, limitada ao exame
apenas da legalidade do ato disciplinar e não de sua justiça.” (Do Mandado de Segurança, 1998, p. 96.) Deve-se,
porém, registrar que a doutrina e a jurisprudência cuidaram de dar interpretação mais garantista a esse dispositivo
da Lei 1.533/1951, de modo a ampliar as hipóteses de cabimento do mandado de segurança em matéria disci-
plinar, tal como registra José Armando da Costa (COSTA, José Armando da. Controle externo do ato disciplinar.
Fórum Administrativo: Direito Público, v. 5, n. 55, p. 6095-6111, set. 2005).
11
O não cabimento do mandado de segurança para controle do processo disciplinar pode decorrer, porém, da im-
propriedade dessa ação em casos nos quais seja necessária dilação probatória para comprovação de alegações,
tendo em vista que o seu rito especial somente admite prova documental, pré-constituída. A respeito, cf.: PEREI-
RA, Flávio Henrique Unes. O controle jurisdicional das sanções disciplinares no mandado de segurança. Interesse
Público, v. 9, n. 45, p. 69-75, set./out. 2007.
O controle judicial do processo administrativo disciplinar 155

rante quando o motivo invocado é falso ou inidôneo, vale dizer, quando ocorre ine-
xistência material ou inexistência jurídica dos motivos. Esses motivos, na expressão
de Jèze, devem ser “materialmente exatos e juridicamente fundados”. Tal teoria tem
inteira aplicação ao ato disciplinar, que é espécie do gênero — ato administrativo.12

Ora, se o controle judicial pode verificar a idoneidade do motivo invocado para a apli-
cação da sanção e se esse controle verifica, por meio da motivação, se os atos infracionais
legitimam a punição aplicada, já se está admitindo que a fiscalização pelo poder judiciário
não é apenas aquela restrita aos aspectos da competência, forma e previsão abstrata, em
lei, da punição aplicada. Esta nova perspectiva, que até a primeira metade do século XX fora
uma posição minoritária,13 tornou-se predominante nas últimas décadas do mesmo século,
culminando com o posicionamento legislativo já referido, que excluiu da regulação do man-
dado de segurança a analisada restrição ao cabimento desta ação em matéria disciplinar.
Com efeito, ainda na vigência das constituições de 1946 e 1967 avolumaram-se
nos tribunais brasileiros decisões em favor do sopesamento dos motivos ensejadores de
sanções disciplinares. Não cabe aqui um levantamento minucioso de todas essas decisões,
mas é importante ilustrar essa evolução com duas decisões emblemáticas.
Em dezembro de 1944, o STF julgou Embargos na Apelação Cível n. 7.307, cujo
Relator foi o Ministro Castro Nunes. Essa decisão foi publicada na Revista de Direito Adminis-
trativo14, comentada por Victor Nunes Leal, que a qualifica como leading case na mudança de
alteração do STF, não apenas no tocante ao controle da aplicação de sanções disciplinares,
mas também em relação ao reexame, pelo Poder Judiciário, dos atos administrativos, tendo
em vista que o conceito de legalidade é definido de maneira mais ampla do que até então
se concebera.
A ementa do acórdão ainda registra que o Judiciário “Deve inclinar-se antes a placitar
a medida disciplinar do que a revogá-la,15 quando encontre razoáveis fundamentos no ato

12
MEIRELLES, Hely Lopes. Direito administrativo brasileiro. Op. cit., p. 148-149, grifos no original.
13
Na referida decisão do STF adotada em 1938, o relator originário do feito, Ministro Laudo de Camargo, concorda
que “Na apreciação (de ato sancionatório disciplinar pelo poder judiciário), o que se deve ter em vista é a legalida-
de ou não do ato incriminado.” Contudo, objeta: “Terá ele (ato punitivo) de ser examinado pela forma com que se
apresentar e pelos motivos que o determinam.” Donde o questionamento então feito à corrente então majoritária,
que sustentava profunda restrição ao controle judicial dos atos disciplinares: “Como saber se o ato foi ou não
lícito sem pesar os motivos que o determinaram, nem apreciar os elementos colhidos?” (Apelação Cível n. 6.845,
Relator ad hoc Ministro Costa Manso).
14
NUNES LEAL, Victor. Atos administrativos – exame da sua validade pelo Poder Judiciário (comentário aos Em-
bargos na Apelação Cível n. 7.307 – STF, contendo a íntegra do acórdão). Revista de Direito Administrativo, v. 3,
1946. p. 69.
15
O termo “revogá-la”, aqui, claramente não é usado no sentido estrito com que atualmente se encontra consagrado
no Direito Administrativo, de retirada de um ato administrativo válido, por razões de conveniência e oportunidade
(Lei Federal n. 9.784, de 20/01/1999, art. 53). Naquela ocasião, o termo foi utilizado como sinônimo de extinção
do ato por motivo de contrariedade ao direito, fenômeno jurídico que hoje se acha consolidado sob as denomina-
ções de anulação e invalidação.
156 Florivaldo Dutra de Araújo

administrativo.” Mas, no caso em análise, o STF afasta a existência desses razoáveis funda-
mentos e, em vista disso, decide-se em sentido bem distinto do que até então predominara
naquela Corte e no Judiciário brasileiro em geral. A síntese dessa nova orientação acha-se
sintetizada nas seguintes afirmações contidas na ementa:

– O Poder Judiciário, no julgamento das demissões dos funcionários públicos, pode


rever o ato administrativo nos aspectos que configurem a sua ilegalidade, excluída a
apreciação de mera conveniência ou oportunidade da medida.
– A apreciação de mérito interdita ao Judiciário é a que se relacione com a conveniên-
cia ou oportunidade da medida, não o merecimento por outros aspectos que possam
configurar uma aplicação falsa, viciosa ou errônea da lei ou regulamento, hipóteses
que se enquadram, de um modo geral, na ilegalidade por indevida aplicação do direito
vigente.16

Como observa Victor Nunes Leal em seus comentários, o STF, rompendo a posição
restritiva até então imperante, admitiu “que o Judiciário reexamine a prova do inquérito e
possa contrapor-lhe novas provas produzidas em juízo”.17
Em seu voto, Castro Nunes afirma que o ato de punição de funcionário estável,
condicionado ao processo administrativo, não pode ser considerado discricionário. Quanto a
esse aspecto, Nunes Leal comenta:

A demissão é, pois, no caso de funcionários estáveis, um ato para cuja validade são
pressupostos certos requisitos não só formais como também substanciais. É um
ato que deve ser motivado, que se baseia em determinadas ocorrências de fato, sem
as quais o ato seria uma conclusão aberrante das premissas. Não é, pois, um ato
discricionário, porque a Administração, ao praticá-lo, tem seus poderes balizados por
pressupostos definidos.18

Em setembro de 1975, o STF julgou os Embargos no Recurso Extraordinário n.


75.421. O voto do Relator, Ministro Xavier de Albuquerque, retrata a evolução do tema no
STF nas três décadas anteriores, incluindo a menção ao já citado acórdão de 1944, além de
outros que se seguiram, na mesma linha de ampliação do controle dos atos do processo
disciplinar. A conclusão unânime do Plenário do STF encontra-se assim resumida na ementa
do julgado: “Controle jurisdicional de ato administrativo vinculado. O exame, pelo Poder Ju-

16
NUNES LEAL, Victor. Atos administrativos – Op. cit., p. 69.
17
NUNES LEAL, Victor. Atos administrativos – Op. cit., p. 71.
18
NUNES LEAL, Victor. Atos administrativos – Op. cit., p. 72.
O controle judicial do processo administrativo disciplinar 157

diciário, de sua legalidade, compreende quer os aspectos formais, quer os materiais, nestes
se incluindo os motivos e pressupostos que o determinaram.”.19
O advento da Constituição de 1988 consolidou a tendência de ampliação dos con-
ceitos de legalidade e de vinculação dos atos administrativos, inclusive os disciplinares, o
que se deve, entre outros fatores, à consagração dos princípios da administração pública
como normas jurídicas e à expressa extensão da exigência do devido processo legal aos
procedimentos administrativos, em especial, os contenciosos.
A declaração de direitos fundamentais da Constituição vigente estabelece que “nin-
guém será privado da liberdade ou de seus bens sem o devido processo legal” (art. 5º, LIV)
e que “aos litigantes, em processo judicial ou administrativo, e aos acusados em geral são
assegurados o contraditório e ampla defesa, com os meios e recursos a ela inerentes” (art.
5º, LV).
É nesse novo contexto, fruto da referida ampliação dos parâmetros da atuação ju-
dicial desde meados do século XX e consolidado pelas três décadas de vigência da nova
Constituição, que se deve conceber hoje o controle jurisdicional do processo disciplinar.

3 EXTENSÃO DO CONTROLE JUDICIAL DO PROCESSO


DISCIPLINAR

Como acima registrado, significativa parcela da doutrina e da jurisprudência bra-


sileiras defende haver discricionariedade em favor da autoridade disciplinar no tocante à
subsunção do fato punível às previsões legais indicadoras das infrações e quanto à definição
da pena a ser aplicada, cabendo à autoridade a escolha com base em seu juízo de conve-
niência e oportunidade. Neste segundo aspecto inclui-se a apreciação conferida ao agente
sancionador para, no caso de suspensão e multa, fixar o quantum da sanção, entre um valor
mínimo e um valor máximo, legalmente estabelecidos.
Na sequência, faremos a análise crítica de ambos os aspectos.

3.1 Infrações disciplinares e conceitos jurídicos


indeterminados

A primeira dessas alegadas origens da discricionariedade disciplinar funda-se no fato


de que a maior parte dos deveres e das infrações não é definida com precisão, ou seja, em-
pregam-se os chamados conceitos indeterminados, também chamados conceitos vagos ou

19
BRASIL. STF. Embargos no Recurso Extraordinário n. 75.421. Relator: Ministro Xavier de Albuquerque. Embargan-
te: Paulo Santos Silva. Embargada: Prefeitura Municipal de Salvador. Revista Trimestral de Jurisprudência, v. 79,
n. 2, p. 478-491, fev. 1977. Disponível em: http://www.stf.jus.br/arquivo/cms/publicacaoRTJ/anexo/079_2.pdf.
Acesso em: 2 jul. 2020.
158 Florivaldo Dutra de Araújo

elásticos. São exemplos, extraídos do vigente estatuto dos servidores públicos federais (Lei
8.112, de 11/12/1990) as proibições de “promover manifestação de apreço ou desapreço
no recinto da repartição” (art. 117, V) e de “proceder de forma desidiosa” (art. 117, XV); os
deveres de “ser leal às instituições a que servir” (art. 116, II) e de “manter conduta compa-
tível com a moralidade administrativa” (art. 116, IX). Algumas transgressões a normas com
essa textura aberta são até mesmo punidas com a mais grave das sanções disciplinares, ou
seja, a demissão, como determina a Lei 8.112/1990 em relação à citada conduta desidiosa
e à infração consistente em “incontinência pública e conduta escandalosa, na repartição”
(art. 132, V).
Nesse aspecto, cabe inicialmente observar que a expressão conceito jurídico in-
determinado, ou simplesmente conceito indeterminado, considerada em si mesma, não é
expressão correta, pois traz uma contradictio in terminis. Como já tivemos ocasião de expor
com maior detalhamento20, os seres humanos comunicam-se por convenções linguísticas,
nas quais o significante e o significado ligam-se por acordo entre os usuários de uma dada
linguagem. Assim, a determinação convencional dos significantes e seus significados são
conditio sine qua non da comunicação. Por isso, delimitamos os conceitos, associando-os a
determinados objetos, e escolhemos os termos que utilizaremos para nos referir aos concei-
tos. Neste sentido, termos e conceitos são determinados convencionalmente. Todo conceito
é uma delimitação de ideias em relação a determinados objetos aos quais se referem. Se
esses significantes aos quais associamos dados objetos fossem indeterminados, a comu-
nicação seria impossível. Por exemplo, se ao termo cadeira e seu respectivo conceito não
correspondesse um conjunto de ideias delimitadas, que se referem a certos objetos, cada in-
divíduo poderia associar a esse significante qualquer ideia, tornando inviável a comunicação
interpessoal. O mesmo ocorre quando empregamos termos designativos de substantivos
abstratos. Se alguém utiliza o termo “urgência”, suscitar-se-á nos interlocutores um conjunto
de ideias que serão expressas analiticamente por outros termos, tais como “situação que
exige rápida providência”, “qualidade do que é indispensável e iminente”. Repita-se: o termo
(urgência) e o conceito (as ideias abstratas por ele suscitadas) são determinados por acordo
linguístico, ou seja, são fruto de uma delimitação convencional.
Porém, quando a teoria jurídica refere-se a “conceitos indeterminados”, a impreci-
são reside em outro aspecto da comunicação, qual seja: se alguém, numa comunidade de
linguagem, indaga se uma específica situação, real ou fictícia, é, por exemplo, ensejadora de
“urgência”, muito provavelmente encontrar-se-ão pessoas que responderão afirmativamen-
te; outras, negativamente.

20
ARAÚJO, Florivaldo Dutra de. Discricionariedade e motivação do ato administrativo. In: LIMA, Sérgio Mourão
Correa (Coord.). Temas de direito administrativo: estudos em homenagem ao professor Paulo Neves de Carvalho.
Rio de Janeiro: Forense, 2006. p. 107-112.
O controle judicial do processo administrativo disciplinar 159

Nesta perspectiva, a imprecisão não se encontra nos signos abstratos da comuni-


cação, nem nos objetos concretos (coisas, fatos) que existem ou ocorrem, mas na subsun-
ção aos signos desses múltiplos objetos que cotidianamente com eles desejamos indicar.
Trata-se, portanto, não de “conceitos indeterminados”, mas de expressões designadoras
de conceitos que, aplicados a situações concretas, tendem a gerar dissenso, entre diversos
interlocutores, sobre a ocorrência ou não, do que é indicado por tais expressões.
Assim, numa situação concreta, um ato praticado por um servidor público pode ser
entendido por alguns como “conduta escandalosa”; mas outros, por possuírem concepções
diversas de mundo e de costumes, poderão entender que o mesmo fato nada representa de
escandaloso.
Ou seja, conceito indeterminado significa, propriamente, expressão designativa de
ideias especialmente suscetíveis de gerar dissenso na sua aplicação aos casos concretos
(subsunção). Neste sentido é a lição de Bachof, ao dissertar sobre o que chama “verdadei-
ro problema” dos conceitos jurídicos indeterminados: “São, na realidade, duas diferentes
‘questões jurídicas’: de um lado, se um fato objetivamente é subsumível sob um suposto
jurídico, e, doutro lado, se, a propósito de uma devida apreciação, à autoridade pública é
permitido subjetivamente subsumir um fato sob um suposto jurídico”.21
Pode-se concluir, então, que a locução conceitos jurídicos indeterminados só faz
sentido se entendida como expressão de síntese. Com ela se quer dizer “indeterminação
(imprecisão) na subsunção do fato ao conceito previsto na lei”. Para se evitar a todo mo-
mento a utilização de tão extensa expressão, cunhou-se uma mais sintética, a qual, desde
que corretamente contextualizada e entendida, é inteiramente válida para indicar o fenômeno
a que se reporta.
A primeira objeção ao posicionamento dos conceitos indeterminados no campo da
discricionariedade administrativa vem de observação de outros campos do direito.
Tais conceitos não se constituem em particularidade do direito administrativo, ou
mesmo do direito público, encontrando-se em qualquer ramo do direito. Se na esfera pu-
blicística é comum encontrarem-se referências à “utilidade pública”, “ordem pública”, “in-
teresse coletivo” etc., no direito privado comparecem amiúde termos como “boa fé”, “bons
costumes”, conduta de bom pai de família”, “mau comportamento” etc.
Trata-se, portanto, de um fenômeno existente em todo o direito, e não uma particula-
ridade do direito administrativo, a conferir esse poder especial, chamado discricionariedade
administrativa, com seu consectário, que é a imunidade jurisdicional do pronunciamento da
administração pública.

21
“Es sind eben zwei verschiedene ‘Rechtsfragen’, ob einerseits ein Sachverhalt objektiv unter einen gesetzlichen
Tatbestand zu subsumieren ist, und ob andererseits die Behörde subjektiv einen Sachverhalt bei pflichtmässiger
Beurteilung unter einen Tatbestand subsumieren darf”. (BACHOF, Otto. Beurteilunsspielraum, Ermessen und un-
bestimmter Rechtsbegriff im Verwaltungsrecht. Juristenzeitung, Tübingen: J. C. Mohr, n. 4, p. 97-102, feb. 1955.
p. 99).
160 Florivaldo Dutra de Araújo

Não se põe em dúvida que um juiz pode, a propósito de um litígio entre particulares,
examinar as provas e argumentos contidos nos autos e decidir se houve “boa fé”, “mau
comportamento”, “honestidade” etc. Mas se expressões da mesma natureza surgem numa
regra dirigida à conduta da administração pública, então, como que por um passe de mágica,
o juiz se torna inapto para saber se a condição abstratamente apontada pela norma efetiva-
mente ocorre no caso concreto.
Só isso já seria o suficiente para demonstrar que a tese de que conceitos indetermi-
nados implicam discricionariedade não tem justificação material – que, se houvesse, seria
igualmente aplicável a todos os ramos do direito. Trata-se de um resquício das imunidades
jurisdicionais da administração pública que, originárias dos tempos do Estado Absolutista,
sobreviveram ao advento do Estado de Direito, agora sob outro discurso fundamentador.
Outra objeção, ligada a essa primeira, é a de que os conceitos indeterminados de-
vem, tal como nos demais ramos do direito, ser objeto de interpretação, na busca da sua
melhor aplicabilidade, cujo referencial deve ser a máxima otimização dos princípios e valores
em jogo em cada caso concreto.
Entendemos que a vinculação caracterizará um aspecto do ato administrativo sem-
pre que a norma de direito positivo o regular de modo a indicar que, na consideração do
direito e das circunstâncias em que este se faz aplicável, deve o administrador, ao aplicar
essa norma, fazê-lo da melhor maneira possível. Como a utilização de conceitos indeter-
minados não afasta esse dever de buscar a melhor aplicação possível, a sua presença na
norma jurídica a ser aplicada pelo agente administrativo não caracteriza, por si só, a previsão
de prerrogativa discricionária de atuação.
Por outro lado, a discricionariedade caracterizará um aspecto do ato administrativo
se a norma de direito positivo regulá-lo de modo a indicar que, na apreciação do direito e das
circunstâncias em que este se faz aplicável, está o administrador diante de número determi-
nado ou indeterminado de opções que se caracterizam como indiferentes jurídicos, ou seja,
face ao direito positivo é irrelevante que o administrador adote esta ou aquela alternativa.
No campo do direito administrativo punitivo, inclusive o disciplinar, não pode haver
solução indiferente para o direito.
O fato punível é somente aquele enquadrável nas condutas hipoteticamente descritas
como infrações. A infração ocorre ou não ocorre e por isso a instrução deve ser cuidadosa,
para deixar patente, se for o caso, a existência do ato ilícito. A pena tem de corresponder, le-
galmente, à infração apurada. E a dosimetria da pena deve ser proporcional às circunstâncias
da infração e aos fatores agravantes e atenuantes do caso.
A legalidade, no campo do direito punitivo, implica, portanto, a tipicidade das in-
frações, exigência válida tanto para o direito penal, como para o direito administrativo
sancionador.
O controle judicial do processo administrativo disciplinar 161

A tipicidade não deve ser entendida como a descrição “exata” de condutas infratoras,
capaz de excluir toda subjetividade no seu reconhecimento. Deve-se recordar aqui as clássi-
cas lições de Recaséns Siches que, nas primeiras décadas do século XX, elaborou primorosa
obra para demonstrar que raciocínios exatos, como os matemáticos, não são apropriados
como critérios exclusivos ou mesmo preponderantes da atividade jurídica.

A lógica da razão pura, do racional, da inferência, tem aplicação somente ao estudo


das formas a priori ou essenciais do jurídico, mas não tem aplicação à matéria ou
conteúdo das normas jurídicas.
A lógica do racional, da razão pura, pode, ademais, ter alguma intervenção, mas muito
limitada e simplesmente incidental, quando em um assunto humano se ache incrus-
tado um problema de tipo matemático, como, por exemplo, o de medir um prédio,
ou de calcular rendimentos, ou bem o problema de determinar a igualdade de duas
situações.
Mas a determinação dos conteúdos do direito, tanto das normas gerais, como das
normas individualizadas, deve reger-se pelo logos do humano e do razoável.
[...]
A solução estimativa ou valorada não está reservada exclusivamente ao legislador.
Pelo contrário, a função estimativa ou axiológica penetra e satura todos os graus na
produção do direito. A função do órgão jurisdicional, neste sentido, ainda manten-
do-se, como deve fazê-lo, dentro da obediência à ordem jurídico-positiva, é sempre
criadora, pois se alimenta de um rico complexo de valorações particulares sobre o
singular, as quais podem ser levadas a cabo com autoridade somente pelo órgão
jurisdicional.22

Assim, também os códigos penais são textos legislativos com abundante presença
de conceitos indeterminados, tais como “estado de necessidade”, “sacrifício (que) não era
razoável exigir-se”, “agressão injusta”, “motivo fútil” e “meio insidioso ou cruel”. Nem por
isso supõe-se discricionariedade na subsunção dos fatos às descrições normativas, nem na
aplicação das penas.
Portanto, a tipicidade, no direito penal e nos demais ordenamentos punitivos, não
deve ser entendida como “precisão absoluta”, o que seria quase sempre impossível ao legis-
lador. A tipicidade deve ser entendida em dupla vertente: 1) a vedação de tipos excessiva e
desnecessariamente abertos, sempre que seja possível maior precisão na descrição hipoté-
tica do fato punível; 2) a vedação do emprego da analogia e da interpretação extensiva para
qualificar um fato como infração.23

22
RECASÉNS SICHES, Luis. Algunos criterios y análisis sobre el logos de lo “razonable”. In: RECASÉNS SICHES,
Luis. Antologia (1922-1974). México: Fondo de Cultura Económica, 1976. p. 361-362.
23
Nesse mesmo sentido e com amplas remissões bibliográficas, cf.: BACELAR FILHO, Romeu Felipe. Processo
administrativo disciplinar. 2. ed. São Paulo: Max Limonad, 2003.p. 169-181.
162 Florivaldo Dutra de Araújo

3.2 Processo disciplinar e “escolha” da pena a ser aplicada


pela autoridade sancionadora

Outra ideia a ser superada no campo do direito disciplinar é de que cabe à autoridade
administrativa a discricionariedade de “escolher” a pena a ser aplicada, quando a lei não
impuser uma sanção exclusiva para dada infração, ou de fixar o quantum da sanção, entre
um valor mínimo e um valor máximo, legalmente estabelecidos, como normalmente ocorre
nos casos de previsão de suspensão e multa.
Essa alegação de discricionariedade é contrária a um princípio geral do direito pu-
nitivo estatal, também aplicável no campo disciplinar, que é o da individualização da pena
(CF, art. 5º, XLVI), cuja observância pressupõe respeito a outro princípio jurídico, que é o da
proporcionalidade.24
Decorrem desses princípios o disposto no caput do art. 128 da Lei 8.112/1990: “Na
aplicação das penalidades serão consideradas a natureza e a gravidade da infração come-
tida, os danos que dela provierem para o serviço público, as circunstâncias agravantes ou
atenuantes e os antecedentes funcionais.”
Portanto, longe de conferir discricionariedade à administração pública, o Estado De-
mocrático de Direito exige-lhe a fixação da pena adequada a cada circunstância e infrator.25
Ademais, essa adequação deve ser demonstrada por meio da motivação do ato
sancionador, que tem de estar lastreada nos elementos colhidos no processo disciplinar e
registrados nos respectivos autos. Neste sentido, o disposto no parágrafo único do citado
art. 128: “O ato de imposição da penalidade mencionará sempre o fundamento legal e a
causa da sanção disciplinar.”.
Consequentemente, a aplicação das sanções no âmbito do direito disciplinar, pela
administração pública, deve estar submetida ao controle jurisdicional, sob pena de os direi-
tos fundamentais tornarem-se mera retórica constitucional, com graves riscos à legalidade
e à segurança jurídica.

24
COSTA, José Armando da. Proporcionalidade da punição disciplinar. Fórum Administrativo (Recurso Eletrônico):
Direito Público, Belo Horizonte, v. 1, n. 9, nov. 2001. Disponível em: http://www.bidforum.com.br/bid/PDI0006.
aspx?pdiCntd=923. Acesso em: 2 jul. 2020.
25
Sobre a adequabilidade normativa na aplicação de sanções disciplinares, cf.: PEREIRA, Flávio Henrique Unes.
Sanções administrativas: o alcance do controle jurisdicional. Belo Horizonte: Fórum, 2007.
O controle judicial do processo administrativo disciplinar 163

3.3 Tendências judiciais de ampliação do controle do


sancionamento disciplinar

As teses aqui defendidas, no sentido da ampliação do controle jurisdicional do pro-


cesso disciplinar, vêm paulatinamente encontrando mais guarida nos pronunciamentos dos
órgãos judiciais brasileiros.26
No tocante aos tribunais superiores, a grande maioria dos pronunciamentos relativos
ao processo disciplinar é proferida pelo Superior Tribunal de Justiça (STJ). Isso se explica
pelo fato de as regras regentes do direito disciplinar encontrarem-se em leis, portanto, atos
infraconstitucionais.
A atuação do STF, nesta matéria, fica restrita aos casos que envolvem diretamente
princípios e regras constitucionais, o que cria um filtro redutor do potencial de conhecimento
de recursos nesta matéria. Cabe, como exemplo, a citação da seguinte manifestação:

1. Servidor do DNER demitido por ato de improbidade administrativa e por se valer do


cargo para obter proveito pessoal de outrem, em detrimento da dignidade da função
pública, com base no art. 11, caput, e inciso I, da Lei n. 8.429/92 e art. 117, IX, da
Lei n. 8.112/90.
2. A autoridade administrativa está autorizada a praticar atos discricionários apenas
quando norma jurídica válida expressamente a ela atribuir essa livre atuação. Os atos
administrativos que envolvem a aplicação de “conceitos indeterminados” estão su-
jeitos ao exame e controle do Poder Judiciário. O controle jurisdicional pode e deve
incidir sobre os elementos do ato, à luz dos princípios que regem a atuação da Ad-
ministração.
3. Processo disciplinar, no qual se discutiu a ocorrência de desídia --- art. 117, inciso
XV da Lei n. 8.112/90. Aplicação da penalidade, com fundamento em preceito diverso
do indicado pela comissão de inquérito. A capitulação do ilícito administrativo não
pode ser aberta a ponto de impossibilitar o direito de defesa. De outra parte, o motivo
apresentado afigurou-se inválido em face das provas coligidas aos autos.27

Em relação ao STJ, a título ilustrativo, citem-se os seguintes pronunciamentos:

26
Para um ótimo panorama relativo a essa temática, cf. CARVALHO, Juliana Brina Corrêa Lima de. Controle jurisdi-
cional do ato que aplica sanção disciplinar. Boletim de Direito Municipal, São Paulo, v. 21, n. 11, p. 831-844, nov.
2005. FORTINI, Cristiana; AVELAR, Mariana Magalhães; FERREIRA, Raquel Bastos. Controle judicial dos conceitos
jurídicos indeterminados utilizados no processo administrativo disciplinar: uma visão da abordagem dos Tribunais
Superiores. Revista da Procuradoria-Geral do Município de Belo Horizonte, Belo Horizonte, v. 5, n. 9, p. 67-89,
jan./jun. 2012.
27
BRASIL. STF. RMS 24.699. Primeira Turma, Relator: Ministro Eros Grau, julgado em 30/11/2004, DJ 01/07/2005.
p. 56.
164 Florivaldo Dutra de Araújo

Em face dos princípios da proporcionalidade, dignidade da pessoa humana e culpabi-


lidade, aplicáveis ao regime jurídico disciplinar, não há juízo de discricionariedade no
ato administrativo que impõe sanção disciplinar a Servidor Público, razão pela qual
o controle jurisdicional é amplo, de modo a conferir garantia aos servidores públicos
contra eventual excesso administrativo, não se limitando, portanto, somente aos as-
pectos formais do procedimento sancionatório. Precedentes.28

O Poder Judiciário pode e deve sindicar amplamente, em Mandado de Segurança, o


ato administrativo que aplica a sanção de demissão a Servidor Público, porquanto não
há juízo de discricionariedade no ato administrativo sancionador, conferindo garantia
a todos os Servidores contra eventual arbítrio; não se limita, portanto, somente aos
aspectos legais e formais, como algumas correntes doutrinárias ainda defendem.29

As sanções disciplinares não se aplicam de forma discricionária nem automática,


senão vinculadas às normas e sobretudo aos princípios que regem e norteiam a
atividade punitiva no âmbito do Direito Administrativo Disciplinar ou Sancionador; a
jurisdição sancionadora deve pautar-se pelo garantismo judicial, aplicando às preten-
sões punitivas o controle de admissibilidade que resguarda os direitos subjetivos do
imputado, ao invés de apenas viabilizar o exercício da persecução pelo órgão repres-
sor [...].30

No que tange ao controle jurisdicional de atos impositivos de sanção a servidor públi-


co, a jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça evoluiu no sentido de que, diante
dos princípios que vinculam o regime jurídico disciplinar, não há falar em discriciona-
riedade da Administração, devendo o controle exercido pelo Poder Judiciário incidir
sobre todos os aspectos do ato.31

I - Tendo em vista o regime jurídico disciplinar, especialmente os princípios da dig-


nidade da pessoa humana, culpabilidade e proporcionalidade, inexiste aspecto dis-
cricionário (juízo de conveniência e oportunidade) no ato administrativo que impõe
sanção disciplinar.
II - Inexistindo discricionariedade no ato disciplinar, o controle jurisdicional é amplo e
não se limita a aspectos formais.32

28
Trecho da ementa: BRASIL. STJ. MS 17.981. Primeira Seção, Relator Ministro Napoleão Nunes Maia Filho, julgado
em 25/02/2016, DJe 03/03/2016.
29
Trecho da ementa: BRASIL. STJ. MS 19.487. Primeira Seção, Relator Ministro Napoleão Nunes Maia Filho, julgado
em 13/09/2017, DJe 17/11/2017.
30
Trecho da ementa: BRASIL. STJ. MS 21.645. Relator Ministro Napoleão Nunes Maia Filho, Primeira Seção, julgado
em 13/09/2017, DJe 17/11/2017.
31
Trecho da ementa: BRASIL. STJ. REsp 1.001.673. Relator Ministro Arnaldo Esteves Lima, Quinta Turma, julgado
em 06/05/2008, DJe 23/06/2008.
32
Trecho da ementa: BRASIL. STJ. MS 12.983/DF. Relator Ministro Felix Fischer, Terceira Seção, julgado em
12/12/2007, DJ 15/02/2008. p. 79.
O controle judicial do processo administrativo disciplinar 165

4 CONSIDERAÇÕES FINAIS

Não obstante subsistirem posições mais restritivas, algumas das quais ainda alinha-
das com pressupostos teóricos da primeira metade do século XX, é nítida a tendência de am-
pliação do alcance do controle jurisdicional do ato sancionatório disciplinar, em consonância
com a evolução do tema no Estado Democrático de Direito.
Tal como já se verificou em outros campos da atuação administrativa, as novas
aberturas para o controle judicial não representam apequenamento da administração pú-
blica. Ao contrário, a existência de efetivo controle pelo poder judiciário apenas demonstra
que os diferentes setores do estado, assumindo os seus respectivos papéis na repartição de
funções estatais, poderão otimizar a contribuição de cada qual no Estado de Direito, melhor
contribuindo para a efetivação dos direitos fundamentais, em ambiente de maior segurança
jurídica.

REFERÊNCIAS

ARAÚJO, Florivaldo Dutra de. Discricionariedade e motivação do ato administrativo. In: LIMA, Sérgio
Mourão Correa (Coord.). Temas de direito administrativo: estudos em homenagem ao professor Paulo
Neves de Carvalho. Rio de Janeiro: Forense, 2006. p. 99-125.

BACELAR FILHO, Romeu Felipe. Processo administrativo disciplinar. 2. ed. São Paulo: Max Limonad,
2003.

BACHOF, Otto. Beurteilunsspielraum, Ermessen und unbestimmter Rechtsbegriff im Verwaltungsrecht.


Juristenzeitung, Tübingen: J. C. Mohr, n. 4, p. 97-102, feb. 1955.

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BRASIL. STF. Embargos no Recurso Extraordinário n. 75.421. Relator: Ministro Xavier de Albuquerque.
Embargante: Paulo Santos Silva. Embargada: Prefeitura Municipal de Salvador. Revista Trimestral de
Jurisprudência, v. 79, n. 2, p. 478-491, fev. 1977. Disponível em: http://www.stf.jus.br/arquivo/cms/
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BRASIL. STF. RMS 24.699. Primeira Turma, Relator: Ministro Eros Grau, julgado em 30/11/2004, DJ
01/07/2005.

BRASIL. STJ. MS 17.981. Primeira Seção, Relator Ministro Napoleão Nunes Maia Filho, julgado em
25/02/2016, DJe 03/03/2016.

BRASIL. STJ. MS 19.487. Primeira Seção, Relator Ministro Napoleão Nunes Maia Filho, julgado em
13/09/2017, DJe 17/11/2017.

BRASIL. STJ. MS 21.645. Relator Ministro Napoleão Nunes Maia Filho, Primeira Seção, julgado em
13/09/2017, DJe 17/11/2017.
166 Florivaldo Dutra de Araújo

BRASIL. STJ. REsp 1.001.673. Relator Ministro Arnaldo Esteves Lima, Quinta Turma, julgado em
06/05/2008, DJe 23/06/2008.

BRASIL. STJ. MS 12.983/DF. Relator Ministro Felix Fischer, Terceira Seção, julgado em 12/12/2007,
DJ 15/02/2008.

CARVALHO, Juliana Brina Corrêa Lima de. Controle jurisdicional do ato que aplica sanção disciplinar.
Boletim de Direito Municipal, São Paulo, v. 21, n. 11, p. 831-844, nov. 2005.

COSTA, José Armando da. Controle externo do ato disciplinar. Fórum Administrativo: Direito Público,
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COSTA, José Armando da. Proporcionalidade da punição disciplinar. Fórum Administrativo (Recurso
Eletrônico): Direito Público, Belo Horizonte, v. 1, n. 9, nov. 2001. Disponível em: http://www.bidforum.
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SILVA, Clarissa Sampaio. Direitos Fundamentais e relações especiais de sujeição: o caso dos agentes
públicos. Belo Horizonte: Fórum, 2009.
Atos normativos infralegais e os parâmetros do
controle judicial das políticas públicas de saúde
no tocante ao fornecimento de medicamentos

Georges Louis Hage Humbert


Pós-doutor em Direito (Universidade de Coimbra)
Doutor e mestre em Direito do Estado (PUCSP)
Professor titular (Unijorge-BA)
Advogado

Natália Libório
Especialista em Direito Público
Advogada

SUMÁRIO: 1 Introdução; 2 As políticas públicas de saúde e o fornecimento de medicamentos;


3 O controle judicial das políticas públicas; 4 Da especialidade jurídica do controle judicial das políticas
públicas de saúde no tocante ao fornecimento de medicamentos; 5 Considerações finais; Referências.

1 INTRODUÇÃO

O presente trabalho versará sobre os parâmetros do controle judicial das políticas


púbicas de saúde no tocante ao fornecimento de medicamentos, controle esse que, nos
dias de hoje, se faz muito presente nos tribunais brasileiros, assim como a necessidade e
adequação de parâmetros normativos com critérios técnicos, infralegais, no exercício de
competência executiva regulamentar.
Enfrenta-se assim, os seguintes problemas ou hipóteses fundamentais: quais são
os parâmetros para o controle judicial nas políticas públicas de saúde, no tocante ao forne-
cimento de medicamentos? Até que ponto pode o judiciário ingressar no âmbito do poder
executivo?
Embora o tema do controle judicial das políticas públicas de saúde e seus contornos
jurídicos seja objeto de sérias discussões doutrinárias, não se conseguiu chegar, até os dias
de hoje, a um entendimento pacífico acerca do assunto, parte da doutrina sendo veemente-
mente a favor dessa interferência do judiciário, e outra parte completamente contra, muito
menos sobre a necessidade e adequação de padrões técnicos a serem exteriorizados pela via
normativa atípica, do executivo, isto é, no exercício do poder regulamentar.
168 Georges Louis Hage Humbert | Natália Libório

De rigor, portanto, a compreensão do ponto de equilíbrio no tocante ao controle ju-


dicial das políticas públicas de saúde, de forma a não ser uma ingerência drástica na esfera
administrativa da elaboração de suas políticas públicas e, ao mesmo tempo, não deixar de
tutelar o fundamental direito à saúde.

2 AS POLÍTICAS PÚBLICAS DE SAÚDE E O FORNECIMENTO


DE MEDICAMENTOS

O tema das políticas públicas de saúde no Brasil é uma questão muito polêmica, a
qual tem sido constantemente enfrentada pela doutrina e sido alvo de diferentes decisões pe-
los Tribunais brasileiros. A questão fica ainda mais controvertida quando envolve o judiciário,
que tem constantemente sido instado a adentrar no assunto, especialmente em situações
emergenciais em que se pleiteia o fornecimento de medicamentos pelo poder público, tanto
em tutela definitiva, quanto em sede de tutela antecipada.
Primeiramente, como norma fundamental, encontramos o direito à saúde assegu-
rado expressamente na nossa Constituição Federal, em seus arts. 6º, 196 e 197. No artigo
6º da Constituição Federal (CF), encontramos a indicação da saúde como um direito social.
O constitucional artigo 196, por sua vez, dispõe que a saúde é direito de todos e dever do
Estado, garantido mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de
doença e de outros agravos e ao acesso universal e igualitário às ações e serviços para sua
promoção, proteção e recuperação. Por fim, o artigo 197 da CF assegura como relevantes
as ações e serviços de saúde, cabendo ao poder público dispor, nos termos da lei, sobre
sua regulamentação, fiscalização e controle, devendo sua execução ser feita diretamente ou
através de terceiros e, também, por pessoa física ou jurídica de direito privado.
Percebe-se, também, o direito à saúde implicitamente inserto nos arts. 1º, III, e 5º,
da CF. É cristalina a redação do art. 1º que prescreve a dignidade da pessoa humana como
fundamento do Estado Democrático de Direito. Ora, para que haja dignidade, é indispensável
existir saúde, pois sem ela não haverá vida digna. O referido artigo 5º, por sua vez, outorga
a todos a inviolabilidade do direito à vida. Não é novidade alguma o fato de que sem saúde
não há que se falar em direito à vida. Isso porque, aqueles que não têm condições satisfa-
tórias de saúde podem, a qualquer momento, falecer por conta de inúmeras enfermidades.
Ademais, vale registrar as disposições contidas nos arts. 198, 199 e 200 da CF, nas quais se
determinam as formas de prestação da saúde pelo poder público, através do Sistema Único
de Saúde (SUS), e pela iniciativa privada, de forma suplementar.
Além do amplo embasamento constitucional dado ao assunto, há que se ressaltar
a existência de leis infraconstitucionais reguladoras da matéria. Trata-se da Lei Federal no
8.080/1990, a qual tem a função de regular, em todo o território nacional, as ações e os ser-
viços de saúde, executados isolada ou conjuntamente, em caráter permanente ou eventual,
Atos normativos infralegais e os parâmetros do controle judicial... 169

por pessoas naturais ou jurídicas de direito público ou privado,1 conforme se verifica dos
seus artigos 2º e 5º. Some-se a isso a Lei 8.142/902 (Lei de Organização da Regularidade
Social), que dispõe sobre a participação da comunidade na gestão do Sistema Único de
Saúde (SUS) e sobre as transferências intergovernamentais de recursos financeiros na área
da saúde e dá outras providências.
Da leitura das normas constitucionais e infraconstitucionais indicadas, podemos
identificar três características fundamentais do direito à saúde, quais sejam, a universalidade,
a integralidade e a igualdade. Nesse sentido, podemos compreender a saúde como condição
de possibilidade da dignidade da pessoa humana, passando a constituir o que Rogério Leal
chama de “indicador constitucional parametrizante do mínimo existencial”.3
Com base nesse pensamento, podemos então afirmar que o direito à saúde, além de
ser um direito de todos e dever do Estado de garantir uma vida saudável, é um pressuposto
mínimo para a garantia de outros direitos fundamentais, como o próprio direito à vida, e a
uma existência com dignidade. Detém, nestes termos, uma específica proteção jurisdicional,
as quais advém do mais fundamental dos direitos já assegurados pela legislação (do qual,
aliás, decorrem todos os demais): a vida humana. 4
A concretização dos direitos fundamentais, como o direito à saúde, depende, portan-
to, das políticas públicas, sem as quais não teríamos como “tirar os direitos do papel” (posi-
tivação, tanto constitucional como infraconstitucional), e efetiva-los no mundo prático. Para
tanto, ao se falar em direito à saúde e os mecanismos para concretizá-lo – as políticas públi-
cas de saúde – é necessário que seja analisada toda a demanda social e universal existente,
e não apenas os casos que de fato chegam à apreciação administrativa ou jurisdicional.5
As políticas públicas se materializam por um conjunto de ações do governo voltadas
a produzir resultados específicos. São, assim, uma junção entre decisões técnico-adminis-
trativas e políticas. É o Estado que, dessa forma, através das políticas públicas, determina
como os recursos devem ser utilizados para o benefício de seus cidadãos.6

1
LIMA, Lucas Rister de Souza; ZORZETO, Thiago Rebellato. Os limites da atuação do Poder Judiciário na área de
saúde [parte geral – doutrina]. Revista SÍNTESE de Direito Administrativo, ano VI, n. 61, p. 73-83, jan. 2011. p. 75.
2
BRASIL. Lei n. 8.142, de 28 de dezembro de 1990. Dispõe sobre a participação da comunidade na gestão do
Sistema Único de Saúde (SUS) e sobre as transferências intergovernamentais de recursos financeiros na área da
saúde e dá outras providências. Brasília: Presidência da República, 1990. Disponível em: http://www.planalto.gov.
br/ccivil_03/leis/l8142.htm. Acesso em: 31 jul. 2012.
3
LEAL, Rogério. A quem compete o dever de saúde no direito brasileiro? Esgotamento de um modelo institucional
[Doutrina]. Revista de Direito Sanitário, v. 9, p. 50-69, 2008. p. 27.
4
LIMA, Lucas Rister de Souza; ZORZETO, Thiago Rebellato. Os limites da atuação do Poder Judiciário [...]. Op. cit.,
p. 74.
5
LIMA, Lucas Rister de Souza; ZORZETO, Thiago Rebellato. Os limites da atuação do Poder Judiciário [...]. Op. cit.,
p. 28.
6
SOUZA, Celina. Políticas públicas: uma revisão da literatura. Sociologias, Porto Alegre, ano 8, n. 16, p. 20-45, jul./
dez. 2006. p. 06. Disponível em: http://www.scielo.br/pdf/soc/n16/a03n16.pdf. Acesso em: 3 ago. 2012.
170 Georges Louis Hage Humbert | Natália Libório

Sobre o tema, Rogério Leal7 ensina que “[...] qualquer política pública, ou ação pre-
ventiva e curativa, necessitam levar em conta a demanda global que envolve tais interesses,
sob pena de atender uns e desatender muitos.”. Isto é, o aplicador do direito não pode deixar
de fazer uma análise global sobre o direito à saúde, analisando somente um caso posto à
sua apreciação, sem ter em vista todo o sistema sanitário brasileiro, sob pena de ao tentar
beneficiar uma outra pessoa, prejudicar toda uma coletividade.
Dessa forma, as políticas públicas voltadas ao sistema de saúde têm como objetivo
a concretização do direito à saúde insculpido na CF, devendo ser implantadas de acordo com
os ditames constitucionais, possibilitando assim, “a efetivação da CF na plenitude dos seus
efeitos”.8
Nesse contexto, a administração pública está vinculada à prestação da saúde, à
efetivação de suas políticas públicas. Não obstante, de que forma esse direito será garantido,
de que forma essas políticas públicas serão elaboradas e executas, pertencem à discriciona-
riedade da administração pública, a qual leva em consideração para elaboração das referidas
políticas, diversos fatores. Com efeito, a administração pública desenvolve políticas públicas
de saúde voltadas ao atendimento das necessidades mais gritantes da população, de acordo
com o orçamento que lhe é disponível. Daí porque, diferentemente do que muitos afirmam,
que não se trata de falta de esforço da administração no sentido de dar total efetividade ao
direito à saúde, mas sim, da impossibilidade de alcançar a sua efetividade total, diante dos
parcos recursos destinados ao orçamento com as políticas públicas de saúde.
Verifica-se que a administração pública, ao elaborar as políticas públicas de saúde,
leva em consideração diversos aspectos, tais como doenças mais graves, as mais frequen-
tes, as mais curáveis, os remédios mais eficazes, os mais acessíveis, além, é claro, da
questão do orçamento, da verba pública disponível para utilização nas políticas públicas de
saúde. Todas essas questões, naturalmente, fogem ao alcance do juiz quando demandado o
fornecimento de medicamentos.
O Brasil, por ser um país onde através do SUS, o acesso aos serviços de saúde é
universal, sofre, inevitavelmente, com o crescente aumento nos custos com a saúde, so-
bretudo com os medicamentos, uma vez que tem que fornecê-los gratuitamente para toda a
sua população que deles necessitar. Para isso, além do financiamento federal, os Estados e
Municípios tem que alocar recursos próprios para a aquisição de medicamentos.
Diante disso, não se podem alcançar todas as doenças nem fornecer todo e qual-
quer remédio, devendo a administração pública, como dito, fazer um juízo de conveniência
e oportunidade, avaliando diversos fatores que envolvem o fornecimento de medicamentos.

7
SOUZA, Celina. Políticas públicas: Op. cit., p. 34.
8
GOMES, Marco Aurélio Carvalho. As competências constitucionais relacionadas ao Sistema Único de Saúde e ao
Sistema de Saúde Suplementar [Doutrina]. Revista IOB de Direito Administrativo, ano V, n. 55, p. 89-96, jul. 2010.
p. 90.
Atos normativos infralegais e os parâmetros do controle judicial... 171

Em efeito, pode-se argumentar que os recursos destinados à saúde não são sufi-
cientes e que é preciso aumentar o suporte financeiro para o setor. Esse não é o problema.
O problema é que sempre haverá um limite. Nos dizeres de Fabiola Vieira,9 “aumentar os
recursos para a saúde pode significar ter que gastar menos em outras áreas, como educa-
ção, habitação, políticas de geração de emprego, de redistribuição de renda, dentre outras”.
Evidencia-se, portanto, uma limitação das políticas públicas por conta das restrições orça-
mentárias existentes. E uma das razões disso é o fato de que o direito à saúde, da forma
como previsto no art. 196 da Constituição Federal10, deu margem a dúvidas sobre sua
abrangência. Assim, ele tem sido interpretado como se pudesse ser aplicado em toda e
qualquer situação em que se alega a necessidade de fornecimento de medicamento pelo
Poder Público.
Não são analisados, dessa forma, todos os requisitos já citados, necessários a uma
organização e melhor distribuição dos recursos destinados à saúde pública, desrespeitando
as políticas públicas de fornecimento de medicamentos estabelecidas, e suas listas cuida-
dosamente elaboradas. De tal modo, é dever do poder público rigor, técnica e método na
elaboração das políticas públicas de saúde. A dispensação dos medicamentos, por sua vez,
deve se guiar pelo princípio isonômico, garantindo acesso universal e igualitário. Deve-se
procurar, dessa forma, dentre as limitações orçamentárias existentes, conseguir fornecer o
maior número de medicamentos possíveis, de acordo com as demandas da grande maioria
da população.

3 O CONTROLE JUDICIAL DAS POLÍTICAS PÚBLICAS

O tema do controle judicial dos atos administrativos é assunto que gera polêmica. A
partir de premissas como a Teoria da Separação dos Poderes, difundida por Montesquieu e
adotada em diversas constituições – dentre as quais a brasileira –, tem-se a regra da autono-
mia e independência das funções do Estado, sendo exceção a ingerência do Poder Judiciário
na esfera dos outros poderes, especialmente no que tange ao mérito das decisões do Poder
Executivo e do Legislativo.
Celso Ribeiro Bastos11 afirma que “não se desconhecem, contudo, as críticas ao
denominado ativismo judicial, à força criadora do Direito por parte dos magistrados e, nessa

9
VIEIRA, Fabiola Sulpino. Ações judiciais e direito à saúde: reflexão sobre a observância aos princípios do SUS.
Revista de Saúde Pública [on-line], v. 42, n. 2, p. 365-369, 2008. p. 367. Disponível em: http://www.scielo.br/
scielo.php?script=sci_abstract&pid=S0034-89102008008000200025&lng=en&nrm=iso&tlng=pt. Acesso
em: 17 abr. 2009.
10
BRASIL. [Constituição (1988)]. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Brasília: Presidência da
República, 1988. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm. Acesso em:
31 jul. 2012.
11
BASTOS, Celso Ribeiro. Curso de Teoria do Estado e ciência política. 4. ed. São Paulo: Saraiva, 1999. p. 161.
172 Georges Louis Hage Humbert | Natália Libório

linha, a tão preconizada falácia, que vem de Montesquieu, de que o juiz é a boca pela qual
a lei fala.”. O referido autor indica, portanto, a existência de diversas críticas ao ativismo
judicial, que representa esse papel de supremacia que tem sido atribuído ao Poder Judiciário
com relação aos outros dois Poderes.
Ocorre que, não obstante as diversas críticas apontadas por parte da doutrina, é
inolvidável e mesmo, constitucionalmente inafastável, o controle judicial dos atos adminis-
trativos e legislativos, sendo essa a própria essência do sistema de freios e contrapesos, de-
corrente da própria Tripartição dos Poderes, como uma forma de controle recíproco entre os
Poderes do Estado, concretizando o sistema de checks and balances e, consequentemente,
a tripartição dos Poderes preconizada na Carta Magna.
No entanto, o exercício desse controle não pode levar a uma substituição do admi-
nistrador pelo juiz, havendo limites. Assim, Steckelberg12 afirma que a conveniência e opor-
tunidade da administração não podem ser substituídas pela conveniência e oportunidade do
juiz. Mas é certo que o controle jurisdicional pode e deve incidir sobre os elementos do ato,
à luz dos princípios que regem a atuação da Administração. Segundo a referida autora, o
entendimento doutrinário atual é de que “caberá o controle judicial dos atos administrativos,
acerca da legalidade, da constitucionalidade e, mais, sua conformidade com os princípios
relativos à Administração Pública”.13
Ressalte-se, ademais, que o reconhecimento do direito a prestações materiais ori-
ginárias mínimas em saúde não dispensa o dever do Estado de direcionar esforços para a
consolidação da máxima efetividade possível do direito.14 Assim, o mínimo existencial é
utilizado como argumento favorável ao controle judicial das políticas públicas, posto que,
quando esse mínimo existencial não estiver sendo cumprido pela Administração Pública,
poderá o Judiciário, quando provocado, determinar o seu cumprimento. Nesse sentido, Fon-
seca Pires15 afirma que:

Por mais deficitários que sejam os recursos materiais, por mais parca que seja a
previsão financeira em leis orçamentárias, se a Administração Pública não atende
ao menos o mínimo essencial dos direitos fundamentais o Judiciário deve intervir e
determinar a realização da política pública correspondente.

12
BASTOS, Celso Ribeiro. Curso de Teoria do Estado e ciência política. Op. cit., p. 47.
13
BASTOS, Celso Ribeiro. Curso de Teoria do Estado e ciência política. Op. cit., p. 47.
14
FIGUEIREDO, Mariana Filchtiner. Direito fundamental à saúde: parâmetros para sua eficácia e efetividade. Porto
Alegre: Livraria do Advogado, 2007. p. 209.
15
PIRES, Luis Manuel Fonseca. Controle judicial da discricionariedade administrativa. Dos conceitos jurídicos inde-
terminados às políticas públicas. Rio de Janeiro: Campus Jurídico; Elsevier, 2009. p. 303.
Atos normativos infralegais e os parâmetros do controle judicial... 173

Esse foi também o entendimento do STF na ADPF n. 45,16 em que O Min. Relator
Celso de Mello defendeu a garantia de “condições mínimas necessárias a uma existência
digna”, cuja violação autoriza “a possibilidade de intervenção do Poder Judiciário, em ordem
a viabilizar, a todos, o acesso aos bens cuja fruição lhes haja sido injustamente recusada
pelo Estado”. Igualmente, Ingo Sarlet17 sustenta que:

Sempre onde nos encontramos diante de prestações de cunho emergencial, cujo


indeferimento acarretaria o comprometimento irreversível ou mesmo o sacrifício de
outros bens essenciais, notadamente – em se cuidando de saúde – da própria vida,
integridade física e dignidade da pessoa humana, haveremos de reconhecer um direito
subjetivo do particular à prestação reclamada em Juízo.

Assim, se a Administração Pública não estiver, de alguma forma, dando a máxima


efetividade a uma norma fundamental – como é o direito à saúde –, o Poder Judiciário estaria
legitimado para apreciar a demanda, concedendo, portanto, a máxima efetividade à norma
constitucional. Entretanto, a teoria do núcleo essencial dos direitos fundamentais, do mínimo
existencial e da máxima efetividade das normas constitucionais encontra forte resistência
nos defensores da escassez dos recursos e da teoria da reserva do possível, como será
demonstrado em tópico específico.
Na ADPF n. 45,18 o Rel. Min. Celso de Mello se posicionou sobre o controle judicial
das políticas públicas de saúde, afirmando para tanto que é certo que não se inclui, ordina-
riamente, no âmbito das funções institucionais do Poder Judiciário e do STF, em especial, a
atribuição de formular e de implementar políticas públicas, pois, neste domínio, o encargo
reside, primariamente, nos Poderes Legislativo e Executivo. É possível dizer que a escassez
de recursos e a teoria da reserva do possível são os argumentos mais utilizados pelos defen-
sores da vedação ao controle judicial das políticas públicas.
Cumpre destacar a advertência de Holmes e Sustein,19 de que “levar a sério os di-
reitos significa levar a sério a escassez”. Isso porque, para os referidos autores, “todos os
direitos são custosos, porque todos pressupõem uma maquinaria eficaz de supervisão, paga

16
ADPF 45
17
SARLET, Ingo Wolfgang. Algumas considerações em torno do conteúdo, eficácia e efetividade do direito à saúde
na Constituição de 1988. Revista Eletrônica sobre a Reforma do Estado (RERE), Salvador, Instituto Brasileiro
de Direito Público, n. 11, set./out./nov. 2007. p. 13. Disponível em: http://www.direitodoestado.com.br.rere.asp.
Acesso em: 5 abr. 2012.
18
A referida decisão do Min. Celso de Mello encontra-se publicada no Informativo n. 354 do Supremo Tribunal
Federal. BRASIL. STF. Informativo STF n. 345. Brasília, abr. 2004. Disponível em: http://www.stf.jus.br/arquivo/
informativo/documento/informativo345.htm. Acesso em: 1º out. 2012.
19
HOLMES, Stephen; SUSTEIN, Cass R. El costo de los derechos: por qué la libertad depende de los impuestos.1.
ed. Buenos Aires: Siglo Veintiuno, 2011. p. 117. Livre tradução.
174 Georges Louis Hage Humbert | Natália Libório

pelos contribuintes, para monitorar e controlar”.20 Fabiana Kelbert assinala que, “ao contrário
do que já se pensou, todos os direitos têm custos, não apenas os direitos a prestações po-
sitivas, mas mesmo os direitos a prestações negativas envolvem custos”.21
Também Barroso afirma que os recursos públicos seriam insuficientes para atender
às necessidades sociais, impondo ao Estado sempre a tomada de decisões difíceis. Investir
recursos em determinado setor sempre implica deixar de investi-los em outros22.
Quanto à escassez dos recursos, portanto, Gustavo Amaral23 faz os seguintes ques-
tionamentos:
Se os recursos são escassos, como são, é necessário que se façam decisões alo-
cativas: quem atender? Quais os critérios de seleção? Prognósticos de cura? Fila de espera?
Maximização de resultados (número de vidas salva por cada mil reais gasto, p. ex)? Quem
consegue primeiro uma liminar?
Percebe-se, com isso, de acordo com os questionamentos do referido autor, que se
os recursos são escassos, o que é um fato inegável, não se pode dizer que nenhum direito
é absoluto, nem mesmo o direito à saúde, posto que escolhas alocativas24 devem ser feitas
para determinar em que setores e de que forma serão aplicados os escassos recursos.
Desse modo, a prestação de direitos sociais a prestações materiais – como o direito
à saúde – fica na dependência da existência de meios e recursos, principalmente financeiros,
o que se manifesta por meio dos orçamentos públicos, bem como da possibilidade de dispor
desses meios e recursos, aspectos que compõem as dimensões da reserva do possível.25
Quanto à intervenção judicial na efetivação dos direitos sociais a prestações materiais – em
especial o direito à saúde, foco do presente trabalho –, pode-se dizer que a reserva do possí-
vel impõe restrições a esse controle judicial. Isso porque, as decisões exaradas pelos juízes
no tocante às políticas públicas de saúde, especialmente no que tange ao fornecimento de

20
HOLMES, Stephen; SUSTEIN, Cass R. El costo de los derechos: Op. cit., p. 65. Livre tradução.
21
KELBERT, Fabiana Okchstein. Reserva do possível e a efetividade dos direitos sociais no direito brasileiro. Porto
Alegre: Livraria do Advogado, 2011. p. 66.
22
BARROSO, Luís Roberto. Da falta de efetividade à judicialização excessiva: direito à saúde, fornecimento gratuito
de medicamentos e parâmetros para a atuação judicial. S.d. Disponível em: http://www.lrbarroso.com.br/pt/noti-
cias/medicamentos.pdf. Acesso em: 10 mar. 2012.
23
AMARAL, Gustavo. Direito, escassez e escolha. Critérios jurídicos para lidar com a escassez de recursos e as
decisões trágicas. 2. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2010. p. 11.
24
No que tange às decisões alocativas, Gustavo Amaral assevera que “a escassez é inerente às pretensões positivas
e de modo ainda mais acentuado quanto à saúde. Ante a escassez, torna-se imperiosa a adoção de mecanismos
alocativos. A alocação, notadamente no que tange à saúde, tem natureza ética dupla: é a escolha de quem salvar,
mas também a escolha de quem danar. Há uma natural tentação a “decidir não decidir”, a não tornar clara a
adoção de qualquer forma de alocação, tal como se a escolha não existisse. Ocorre que a escolha sempre existirá
e, com ela, sempre haverá as vítimas, sejam elas conhecidas ou não”. AMARAL, Gustavo. Direito, escassez e
escolha. Op. cit., p. 100.
25
KELBERT, Fabiana Okchstein. Reserva do possível e a efetividade [...]. Op. cit., p. 71.
Atos normativos infralegais e os parâmetros do controle judicial... 175

medicamentos, acabam por, em diversas oportunidades, dificultar a eficaz utilização dos


recursos já escassos.26
Dessa forma, constata-se a falta de padrões e critérios disponíveis e mesmo levados
a efeito pelo Poder Judiciário para intervir em matéria de políticas públicas, as quais envol-
vem uma gama de matérias e aspectos não analisados pelos juízes, os quais se detêm a
analisar apenas o caso concreto que lhe é apresentado, não tendo em vista a visão macro
que envolve a disposição dos recursos para as políticas públicas, sendo assim, necessário
e adequado a previsão de critérios técnicos por meio do exercício da atípica e excepcional
competência normativa regulamentar.

4 DA ESPECIALIDADE JURÍDICA DO CONTROLE JUDICIAL


DAS POLÍTICAS PÚBLICAS DE SAÚDE NO TOCANTE AO
FORNECIMENTO DE MEDICAMENTOS

A intervenção do Judiciário nas políticas públicas envolve, portanto, um universo


de variáveis, como a “disponibilidade de recursos financeiros alocados preventivamente,
políticas públicas integradas em planos plurianuais e em diretrizes orçamentárias, medidas
legislativas ordenadoras das receitas e despesas públicas, etc.”27.
É dizer, quando os Tribunais “proliferam decisões extravagantes ou emocionais, que
condenam a Administração ao custeio de tratamentos irrazoáveis – seja porque inacessíveis,
seja porque destituídos de essencialidade –, bem como de medicamentos experimentais de
eficácia duvidosa” acabam gerando gastos, imprevisibilidade e disfuncionalidade da pres-
tação jurisdicional. Tais excessos do Judiciário, afirma Barroso, “põem em risco a própria
continuidade das políticas pública de saúde pública, desorganizando a atividade adminis-
trativa e impedindo a alocação racional dos escassos recursos públicos.”. Nesses casos,
a judicialização das decisões políticas pode levar à não realização prática da Constituição
Federal. Isso porque, o Poder Judiciário não tem o conhecimento necessário da matéria para
decidir sobre políticas públicas de saúde, posto que observa apenas os casos concretos,
sem ter a visão geral do assunto.28

26
Nesse sentido, Fabiola Sulpino Vieira: “Torna-se evidente que os direitos sociais e dentre eles o direito à saúde
existem do ponto de vista da eficácia social, condicionados à reserva do possível. O aumento das sentenças ju-
diciais determinando o fornecimento de medicamentos causa distorções, pois sua concessão não está vinculada
à reserva orçamentária, prevista quando da formulação das políticas e do planejamento dos programas”. No
mesmo diapasão é o entendimento de Holmes e Sustein, para os quais: “Os tribunais não estão em posição de
supervisionar o complexo processo de alocação eficaz dos recursos por parte das agências do poder executivo, e
tampouco podem retificar de maneira simples as alocações erradas do passado. Os juízes não têm a preparação
adequada para desempenhar essas funções, e necessariamente operam com fontes de informação inadequadas e
parciais”. VIEIRA, Fabiola Sulpino. Ações judiciais e direito à saúde: Op. cit., p. 368. HOLMES, Stephen; SUSTEIN,
Cass R. El costo de los derechos: Op. cit., p. 117. Livre tradução.
27
LEAL, Rogério. A quem compete o dever de saúde no direito brasileiro? Op. cit., p. 30.
28
BARROSO, Luís Roberto. Da falta de efetividade à judicialização excessiva: Op. cit., p. 3-4.
176 Georges Louis Hage Humbert | Natália Libório

Desse modo, no que tange ao fornecimento de medicamentos, por exemplo, o Judi-


ciário, ao deferi-los em tutela judicial, considera o direito à saúde de forma individual e não
coletiva; interpreta o direito à saúde e os princípios do SUS como direito a qualquer cuidado
relacionado à saúde; ignora o fato de que a concretização do direito à saúde envolve gastos
públicos vultosos; e não leva em consideração as políticas públicas de distribuição de me-
dicamentos já existentes.29
De acordo com Lucas Lima e Thiago Zorzeto,30 os Tribunais têm concedido medi-
camentos, tratamentos e internações sem uma verificação criteriosa da real necessidade da
prestação solicitada, bastando, em muitos casos, uma simples apresentação de atestado
médico para a imediata lavratura de decisão concessiva do pedido. Os referidos autores
afirmam, também, que:

tal comportamento dos juízes, [...] gera a impressão para certa parcela da população
de que é possível obter qualquer tratamento ou remédio apenas acionando o Judiciá-
rio, ocasião em que, nem sempre, o medicamento solicitado, ou o serviço médico
descrito, é uma exigência clínica imprescindível para a manutenção saúde daquele
indivíduo, havendo, muitas vezes, outras alternativas fornecidas pelo Poder Público
que alcançariam o mesmo resultado, por custos infinitas vezes inferior.

Dessa forma, o direito à saúde, da maneira como concebido pelos Tribunais atual-
mente fere o princípio da isonomia, posto que pessoas com maior poder aquisitivo o aces-
sam com mais facilidade. Ocorre, assim, uma “inevitável transferência de recursos de ser-
viços que deveriam atender a todos em condições de igualdade para garantir integralidade a
apenas alguns”.31
Nesse sentido é o posicionamento do Min. Teori Zavascki,32 para quem “à luz dos
princípios democrático, da isonomia e da reserva do possível, não há dever do Estado de
atender a uma prestação individual se não for viável o seu atendimento em condições de

29
YOSHINAGA, Juliana Yumi. Judicialização do direito à saúde: a experiência do Estado de São Paulo na adoção de
estratégias judiciais e extrajudiciais para lidar com esta realidade. Revista Eletrônica sobre a Reforma do Estado
(RERE), v. 24, 2011. p. 03. Disponível em: http://www.direitodoestado.com/revista/RERE-24-DEZEMBRO-JANEI-
RO-FEVEREIRO-2011-JULIANA-YUMI.PDF. Acesso em: 11 abr. 2012.
30
LIMA, Lucas Rister de Souza; ZORZETO, Thiago Rebellato. Os limites da atuação do Poder Judiciário [...]. Op. cit.,
p. 80.
31
NUNES, António José Avelãs; SCAFF, Fernando Facury. Os tribunais e o direito à saúde. Estado e Constituição. 12.
ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2011.
32
Min. Teori Zavascki RECURSO EM MANDADO DE SEGURANÇA No 24.197 – PR (2007/0112500-5), Rel. Min. Fux,
maioria, vencido o Min. Zavascki, julgamento encerrado em 04.05.2010. BRASIL. STF. Recurso em mandado de
segurança n. 24.197 – PR (2007/0112500-5). Relator: Ministro Luiz Fux. Recorrente: Ministério Público do Esta-
do do Paraná. Recorridos: Estado do Paraná; Município de Curitiba. Data de julgamento: 04/05/2010. T1 Primeira
Turma. Data de publicação DJe 24/08/2010. Disponível em: https://stj.jusbrasil.com.br/jurisprudencia/16825941/
recurso-ordinario-em-mandado-de-seguranca-rms-24197-pr-2007-0112500-5/inteiro-teor-16825942. Acesso
em: 2 jul. 2020.
Atos normativos infralegais e os parâmetros do controle judicial... 177

igualdade para todos os demais indivíduos na mesma situação.”. Assim, o direito de um


paciente individualmente considerado, segundo Mariana Figueiredo,33 “não pode, a priori
e em termos abstratos, ser sempre preferente ao direito de outro(s) cidadão(s), igualmente
tutelado(s) pelo direito à saúde ou por políticas sociais diversas, mas também essenciais”.
As decisões judiciais em matéria de medicamentos, portanto, provocam a desor-
ganização da Administração Pública. Ademais, quando há alguma decisão judicial deter-
minando a entrega imediata de medicamentos, frequentemente o Governo retira o fármaco
do programa, desatendendo a um paciente que o recebia regularmente, para entregá-lo ao
litigante individual que obteve a decisão favorável.34
Deve-se ter em mente o fato de que em grande parte das demandas judiciais o
que se coloca é a exigência de se tratar certa doença com o uso de determinado produto
farmacêutico não incorporado pelo SUS, mesmo que o tratamento desta doença já esteja
contemplado no Sistema com a oferta de outras alternativas terapêuticas.35
Nesses casos, o Judiciário deve ser bastante cauteloso e criterioso, para não trans-
formar o direito à saúde, no direito ao tratamento médico preferido de cada pessoa. Afinal,
trata-se de um sistema universal e igualitário, devendo atender a todos da mesma maneira
e, diante da escassez dos recursos, não é possível fazê-lo se cada pessoa quiser o melhor e
mais caro remédio ou tratamento.
Essa questão conduz, ainda, ao controle de segurança dos medicamentos, posto que
muitas decisões englobam problemas como o fornecimento de fármacos ainda não aprova-
dos pelas autoridades nacionais, ou não incluídos nas listas oficiais de remédios alcançados
pelo SUS, assim como de substâncias em fase experimental de uso.36
Essa questão é bastante delicada, uma vez que põe em risco todo o trabalho da
Administração Pública de elaboração das listas de medicamentos disponibilizados pelo SUS,
os quais passam por inúmeras avaliações, devendo ter sua eficácia comprovada (passada
a fase experimental), ser aprovado pelas autoridades nacionais, bem como registrado pela
Anvisa.
Desse modo, não seria correto afirmar que os Poderes Legislativo e Executivo encon-
tram-se inertes ou omissos – ao menos do ponto de vista normativo – no que toca à entrega
de medicamentos para a população, visto que as listas definidas por cada ente federativo
veiculam as opções do poder público na matéria, tomadas – presume-se – considerando as
possibilidades financeiras existentes.

33
FIGUEIREDO, Mariana Filchtiner. Direito fundamental à saúde: Op. cit., p. 212.
34
BARROSO, Luís Roberto. Da falta de efetividade à judicialização excessiva: Op. cit., p. 25.
35
VIEIRA, Fabiola Sulpino. Ações judiciais e direito à saúde: Op. cit., p. 366.
36
FIGUEIREDO, Mariana Filchtiner. Direito fundamental à saúde: Op. cit., p. 213.
178 Georges Louis Hage Humbert | Natália Libório

Assim, se o Judiciário, numa demanda, verificar grave desvio na avaliação dos Pode-
res Públicos, poderá vir a rever a lista elaborada por determinado ente federativo para deter-
minar a inclusão de determinado medicamento, mas não deve determinar individualmente o
fornecimento deste medicamento, posto que resolveria o problema apenas do demandante.
Até porque, existem diversas outras políticas públicas de saúde, que não somente as
de fornecimento de medicamentos e, no contexto da análise econômica do direito, verifica-
-se que o benefício auferido pela população com a distribuição de medicamentos é significa-
tivamente menor que aquele que seria obtido caso os mesmos recursos fossem investidos
em outras políticas de saúde pública. 37
Deve-se questionar, neste passo, em que medida as interferências do Judiciário em
matéria de políticas públicas de saúde para determinar o fornecimento de medicamentos têm
sido benéficas à população em geral – e não apenas à pessoa beneficiada pela tutela judicial
–, e quais os limites que devem ser impostos a esse controle.38
Diante de tudo quanto demonstrado no presente trabalho, não resta dúvidas quanto à
impropriedade da forma como tem sido exercido o controle judicial das políticas públicas de
saúde, no tocante ao fornecimento de medicamentos. Essa intervenção desarrazoada e sem
qualquer critério do Judiciário tem causado inúmeros prejuízos à organização das políticas
públicas de saúde, prejudicando, ao final, os próprios cidadãos.
Cumpre, nesse contexto, analisar os parâmetros ao exercício desse controle judicial
sugeridos pela doutrina, bem como apresentar uma proposta de parâmetros que delimite e
norteie a atuação desse Poder, de forma a não prejudicar os demais Poderes e, principalmen-
te, o interesse público. E não resta outra saída ao estabelecimento: é necessário, portanto,
criar um sistema administrativo responsável por receber todas as demandas do ente federal
em matéria de medicamentos, para que seja feita uma verificação se este medicamento é
disponibilizado pela rede pública, e se sim, porque o mesmo não foi fornecido àquela pessoa.
Somente se não fosse possível obter o medicamento por via administrativa, aí sim, seria
necessário pleiteá-lo judicialmente.
Por outro turno, os referidos medicamentos, necessariamente, para deferimento em
tutela judicial, devem ter registro na Anvisa. Tal requisito, no entanto, é questionado tanto
na área de saúde como no meio judicial, segundo Ivana Costa,39 a qual informa, ainda, que
caberia à Agência Nacional de Vigilância Sanitária informar sobre a eficácia e a segurança do

37
BARROSO, Luís Roberto. Da falta de efetividade à judicialização excessiva: Op. cit., p. 20; 30; 25.
38
LIMA, Lucas Rister de Souza; ZORZETO, Thiago Rebellato. Os limites da atuação do Poder Judiciário [...]. Op. cit.,
p. 74.
39
COSTA, Ivana Ganem. Aplicação dos Princípios da reserva do possível e do mínimo existencial no fornecimento
de medicamentos [Assunto Especial – Doutrina]. Revista IOB de Direito Administrativo, ano V, n. 54, jun. 2010.
p. 29.
Atos normativos infralegais e os parâmetros do controle judicial... 179

produto. Naturalmente, não se verifica qualquer absurdo em querer preservar a segurança


dos pacientes, exigindo, para tanto, uma garantia do controle de qualidade dos medicamen-
tos, garantia essa feita pela Anvisa.
Ademais, além do referido registro na Anvisa, e da necessidade que o medicamento
conste da lista de medicamentos essenciais ou excepcionais do SUS, para o seu deferimento
em ação individual, é imprescindível a comprovação de eficácia dos fármacos pleiteados.
Isso porque, medicamentos experimentais não podem ser deferidos em tutela judicial, posto
que não apresentam eficácia comprovada, tornando-se, portanto, muito arriscados e custo-
sos para o poder público.
Barroso,40 nesse passo, entende que os medicamentos experimentais ou de eficácia
duvidosa e as terapias alternativas não logram êxito no procedimento de ponderação, uma
vez que não são suficientes a comprovar a pretensão e justificar o grave comprometimento
da teoria das reservas do possível.
Juliana Yoshinaga, por sua vez, apresenta uma interessante proposta ao problema do
controle judicial das políticas públicas de saúde no tocante ao fornecimento de medicamen-
tos, experimentada pela Procuradoria do Estado de São Paulo. Foi inaugurado um sistema
(SCJ), capaz de organizar os dados referentes aos pleitos judiciais em matéria de forneci-
mento e medicamentos. Em razão disso, foi possível perceber a recorrência de alguns pleitos
legítimos e, com isso, atualizar, de forma criteriosa, a lista oficial do SUS (incorporando
novos produtos aos programas já existentes) e, até mesmo, criar protocolos para tratamento
de diversas enfermidades antes não abrangidas pelas políticas públicas anteriores.41
Na Bahia, também em exercício de poder normativo regulamentar, O Plantão Médico
Judiciário, administrado pela Assessoria Especial da Presidência II – Assuntos Institucionais,
agora funciona 24 horas por dia. Criado com o objetivo de auxiliar juízes em decisões limi-
nares, o serviço está sob a coordenação da médica Jamile Ferraz que, em conjunto com as
médicas Ana Virgínia Cavalcanti e Carla Sartori, ambas especialistas em auditoria e perícia,
compõem a equipe que estará disponível para orientar os magistrados com informações
técnicas relacionadas a benefícios, medicamentos, procedimentos cirúrgicos, diagnósticos,
internações ou afins, ligados ao setor público (SUS) ou privado. Com funcionamento ininter-
rupto, o serviço atende à Recomendação n. 31 do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), pu-
blicada em 30 de março de 2010, que prevê a adoção de medidas com o objetivo de “melhor
subsidiar os magistrados e demais operadores do direito, para assegurar maior eficiência na
solução das demandas judiciais envolvendo a assistência à saúde”.
Forçoso concluir que o exercício da competência normativa regulamentar é útil a
solução deste aparente conflito entre o acesso universal à saúde e a reserva do possível.

40
BARROSO, Luís Roberto. Da falta de efetividade à judicialização excessiva: Op. cit.
41
YOSHINAGA, Juliana Yumi. Judicialização do Direito à Saúde: Op. cit., p. 12.
180 Georges Louis Hage Humbert | Natália Libório

5 CONSIDERAÇÕES FINAIS

Ao longo do presente trabalho, demonstrou-se que o controle judicial das políticas


públicas de saúde é uma matéria bastante controversa, existindo argumentos favoráveis e
contrários ao seu exercício, o que demanda uma análise sobre o assunto, para que se possa
chegar a uma solução benéfica a todos.
Restou claro, ademais, a impossibilidade material de o Estado conseguir garantir
o direito à saúde a todos de forma ampla e completa, posto que existe uma limitação de
recursos para tanto, recursos tanto financeiros quanto de pessoal, etc. É por isso, então, que
é imprescindível o papel da Administração Pública na delimitação das políticas públicas de
saúde, posto que é sempre necessário fazer escolhas.
Não obstante, o Poder Judiciário tem atuado constantemente no que tange às políti-
cas públicas de saúde, posto que tem sido provocado a julgar demandas pleiteando o forne-
cimento de medicamentos, dentre outras inúmeras questões de saúde pública. Essa atuação
do Judiciário, contudo, tem sido feita sem qualquer critério, causando diversos prejuízos à
gestão da saúde pública.
Demonstrou-se, com o exposto, que o controle judicial das políticas públicas tem
que ser exercido com determinados limites, posto que da forma como tem sido exercido
atualmente, tem sido prejudicial ao interesse público. Nesta toada, demonstrou-se que exer-
cício da competência normativa regulamentar se revela necessária e adequada à melhor
solução ao conflito jurídico no que se refere ao fornecimento de medicamentos, as políticas
públicas de saúde e o seu controle judicial.

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RERE-24-DEZEMBRO-JANEIRO-FEVEREIRO-2011-JULIANA-YUMI.PDF. Acesso em: 11 abr. 2012.
Parcerias sociais: dificuldades práticas na
implementação da Lei 13.019/2014

Irene Nohara
Doutora em Direito do Estado (USP)
Livre-docente em Direito Administrativo (USP)
Professora pesquisadora em Direito Político e
Econômico (Universidade Presbiteriana Mackenzie)

Daniel Scheiblich Rodrigues


Mestrando e especialista em Direito Político e
Econômico (Universidade Presbiteriana Mackenzie)
Advogado

SUMÁRIO: 1 Introdução; 2 Avanços da Lei de Parcerias Sociais; 3 Pesquisa empírica; 3.1 Objeto da
pesquisa; 3.2 Dificuldades de acesso à informação; 3.3 Resultados da pesquisa empírica; 3.4 Contri-
buições das unidades federadas pesquisadas; 4 Considerações finais; Referências

1 INTRODUÇÃO

A estruturação de regras para a celebração e o monitoramento de parcerias da Ad-


ministração Pública com as Organizações da Sociedade Civil representa um dos anseios que
provocou a criação do Marco Regulatório das Organizações da Sociedade Civil (MROSC),
Lei n. 13.019/2014, depois alterado substancialmente pela Lei n.13.204/2015. Há no Brasil,
conforme dados do IPEA, mais de 300 mil Organizações da Sociedade Civil.
Não obstante o impulso inicial de acolhimento mais recente das parcerias com o
terceiro setor no Brasil tenha se dado a partir da redemocratização e especialmente com o
caráter acolhedor da Constituição de 1988 em relação às ONGs, foi a partir da Reforma Ad-
ministrativa da década de 90 que houve a estruturação de passos para a parcerização com o
chamado setor público não estatal, para aproximação técnica do Estado com o terceiro setor.
Apesar da previsão inicial das organizações sociais, estabelecidas a partir de contra-
tos de gestão (figuras introduzidas no Brasil pela Reforma Administrativa, que culminou na
Emenda Constitucional n. 19/98), cuja parceria com a Administração foi depois regulamen-
tada pela Lei n. 9.637/98, o ápice da regulamentação do sistema de parcerias entre as enti-
dades do terceiro setor ocorreu apenas em 2014, com a edição da Lei de Parcerias Sociais.
184 Irene Nohara | Daniel Scheiblich Rodrigues

A Lei n. 13.019/2014 procurou criar um regime jurídico mais criterioso no estabe-


lecimento das parcerias, a partir da previsão de instrumentos jurídicos próprios celebrados
geralmente após o chamamento público, bem como de regras voltadas para a fiscalização
da articulação entre Estado e sociedade civil organizada. Parceria, no sentido empregado
pela lei, representa o conjunto de direitos, responsabilidades e obrigações decorrentes de
relação jurídica estabelecida formalmente entre a Administração Pública e as organizações
da sociedade civil, em regime de mútua colaboração, para a consecução de finalidades de
interesse público e recíproco.
Um dos pontos positivos da nova disciplina da Lei de Parcerias foi, portanto, a es-
pecificação mais clara de deveres e responsabilidades de cada qual dos parceiros, para
que efetivamente haja um monitoramento dos compromissos assumidos. São avanços que
incorporam na disciplina legal conceitos de governança associados com a accountability e a
responsiveness, retirando da parceria a pecha de liberalidade e reforçando as boas práticas
a partir de regras mais claras de monitoramento e estímulo a um terceiro setor que se volte
a produzir resultados sociais.
Segundo Ulrich Beck, “iniciativas da sociedade civil e novos movimentos sociais
ganham, com o abismo que se torna visível entre as demandas da população e sua repre-
sentação no espectro dos partidos políticos, um inteiramente imprevisto impulso político e
amplo apoio”.1 Uma forma de promoção de democracia, para além do estímulo aos meios
de participação direta do povo na discussão dos assuntos coletivos, é pelo empoderamento
da atuação da sociedade civil organizada. De acordo com Marco Aurélio Nogueira, na dé-
cada de noventa não se edificou um sistema político efetivamente democrático, nem houve
uma modificação substantiva dos hábitos democráticos pois, em boa medida, o eleitoral se
superpôs ao político, comprimindo-o e roubando seu espaço de manifestação.
Configurado pelo reformismo predominante, expõe ainda Nogueira que o sistema
político “evoluiu como uma democracia sem sociedade e sem Estado: não teve como dar
origem a nenhum dinamismo superior com o qual pudessem ser alteradas as estruturas de
poder, as práticas políticas e as escolhas governamentais”.2 Na visão de Joaquim Hirsch,
as ONGs podem ser vistas como protagonistas de um novo movimento social, dado que,
pela multiplicidade de interesses, orientações e frentes de conflito, não há mais a presença
de um ator político privilegiado, mas existem distintas ONGs que criam novos espaços para
discussões, processos de busca e de mobilização do conhecimento, mesmo diante dos
conflitos e das ambiguidades.3 Nas palavras de Hirsch:

1
BECK, Ulrich. Sociedade de risco. São Paulo: Editora 34, 2010. p. 284.
2
NOGUEIRA, Marco Aurélio. Um Estado para a sociedade civil: temas éticos e políticos da gestão democrática. 3.
ed. São Paulo: Cortez, 2011.p. 43.
3
HIRSCH, Joaquim. Teoria materialista do Estado. Rio de Janeiro: Revan, 2010. p. 273.
Parcerias sociais: dificuldades práticas na implementação da Lei 13.019/2014 185

As ONGs desempenham importante função na representação de interesses reprimi-


dos e na tematização de problemas relegados ao ostracismo. Ao lado das ativida-
des de ajuda prática, elas exercem importantes funções voltadas para o controle dos
processos políticos internacionais e nos conflitos envolvendo a definição da pauta
de negociações. Elas estão em condições de produzir conhecimento e pareceres,
colocando-os à disposição do movimento, ou seja, agem quase como think tanks.4

No entanto, questiona o Hirsch a independência da ação das ONGs, sobretudo diante


do fato de que muitas delas guardam uma proximidade com os aparelhos estatais e da
política de Estado. De acordo com Hirsch, como elas se estruturam como organizações
profissionalizadas em busca constante por financiamento, podem “cair facilmente sob a
dependência de Estados ou de doadores particulares, sem contar os casos em que Esta-
dos ou empresários as criam diretamente ou as instrumentalizam.”.5 Esse é um ponto que
fundamenta a exigência legal de algum tempo de existência da ONG, como condição para
participar do chamamento público, para que se afaste da atividade do fomento algumas
organizações da sociedade civil que são criadas do dia para noite tão-somente para auferir
recursos públicos em chamamentos ad hoc.
Trata-se da crítica que Emerson Gabardo6 faz da presença de um número grande
de ONGs no Brasil que não possuem tradição, mas que procuram `viver do fomento`, na
construção de um terceiro setor estatizado, o que não seria o ideal, dado que o sistema de
parcerias é para estimular a ação das ONGs e não propriamente para sustentá-las. O ideal é
que haja o estímulo às boas práticas do terceiro setor que possa, pela sua expertise, cola-
borar com a implementação de políticas públicas e não que haja o repasse de recursos para
ONGs que não tenham a mínima sustentabilidade econômica e financeira.
O objetivo da presente análise é explicar o regime jurídico das parcerias sociais,
após o MROSC, e realizar pesquisa empírica sobre o estado da arte da implementação da
lei, sendo apontadas as dificuldades de proliferação dos mecanismos avançados para os
aprimoramentos das parcerias sociais de acordo com os critérios da Lei n.13.019/2014,
conforme os resultados levantados dos dados coletados em diversas unidades federativas.

2 AVANÇOS DA LEI DE PARCERIAS SOCIAIS

A Lei de Parcerias foi criada em um contexto de debate sobre os escândalos de


desvios levantados pelas CPIs das ONGs. Apesar de não ter resultados práticos em medi-

4
HIRSCH, Joaquim. Teoria materialista do Estado. Op. cit. p. 273.
5
HIRSCH, Joaquim. Teoria materialista do Estado. Op. cit. p. 273.
6
GABARDO, Emerson. Papel do Estado e mito da subsidiariedade. In: NOHARA, Irene P. (Coord.). Gestão pública
dos entes federativos: desafios jurídicos para inovação e desenvolvimento. São Paulo: Clássica, 2013. p. 72.
186 Irene Nohara | Daniel Scheiblich Rodrigues

das judiciais, as CPIs das ONGs foram importantes para levantar os desvios e as fraudes
ocorridas no terceiro setor, demonstrando a necessidade de maior fiscalização e controle de
resultados das parcerias celebradas.
Do ponto de vista técnico-normativo, o marco, após alterações ocorridas na Lei
n.13.204/2015, ao regime inicial da Lei de Parcerias,7 contempla atualmente no art. 33, V,
da Lei 13.019/2014, as seguintes exigências para celebração das parcerias: (a) três anos
de existência, no mínimo, para parceria celebrada com a União; dois anos, no mínimo, para
os Estados e um ano de existência para os Municípios; (b) experiência prévia na realização,
com efetividade, do objeto da parceria ou de natureza semelhante; e (c) instalações, condi-
ções materiais e capacidade técnica e operacional para o desenvolvimento das atividades ou
projetos previstos na parceria e o cumprimento de metas estabelecidas.
Quanto à accountability, o Conselho de Política Pública é órgão criado pelo poder
público para atuar como instância consultiva, na respectiva área de atuação, na formação,
implementação, acompanhamento, monitoramento e avaliação de políticas públicas. Há
também o acompanhamento da parceira pela comissão de monitoramento e avaliação, sen-
do um órgão colegiado destinado a monitorar e avaliar as parcerias formadas em que haja
fomento. É obrigatória a participação de pelo menos um servidor ocupante de cargo efetivo
ou de emprego permanente do quadro de pessoal da administração pública.
A prestação de contas será feita pela análise de documentos previstos no plano de
trabalho. Existe, portanto, uma grande margem de discricionariedade para a estruturação
do plano de trabalho, sendo sua execução controlada por dois relatórios: (1) de execução
do objeto, contendo atividades ou projetos desenvolvidos para o cumprimento do objeto e
o comparativo de metas propostas com resultados alcançados; e (2) relatório de execução
financeira do termo de colaboração e termo de fomento, com a descrição de despesas e
receitas realizadas.
É possível que haja também os seguintes relatórios: de visita técnica in loco e rela-
tório técnico de monitoramento e avaliação, homologado pela comissão de monitoramento
e avaliação designada, sobre a conformidade do cumprimento do objeto e os resultados
alcançados durante a execução do termo de colaboração ou de fomento.8 Ressalte-se que
as responsabilidades assumidas variam em função do plano de trabalho firmado com a
Administração, que é estabelecido também no chamamento público.
Em suma, pode-se observar que a lei demanda um maior comprometimento tanto na
celebração da parceria como no seu monitoramento e na prestação de contas. Isso procura
evitar os convênios que simplesmente recebiam passivamente os dados, dado que agora
pode haver visita in loco e existem regras mais padronizadas e claras para a fiscalização e

7
Uma excelente obra é a organizada por: MOTTA, Fabrício; MÂNICA, Fernando Borges; OLIVEIRA, Rafael Arruda
(Orgs.). Parcerias com o terceiro setor: as inovações das Lei n. 13.079/2014. Belo Horizonte: Fórum, 2017.
passim.
8
NOHARA, Irene Patrícia. Direito administrativo. 9. ed. São Paulo: Atlas, 2019. p. 724.
Parcerias sociais: dificuldades práticas na implementação da Lei 13.019/2014 187

a verificação do cumprimento do objeto da parceria. A sistemática de monitoramento da lei


prevê não apenas um controle de procedimentos, mas sobretudo um controle de resultados.
A ideia central do marco foi criar um sistema como o chamamento público para
selecionar do universo de OSC existentes, as que tenham melhores condições de executar
determinada parceria. Também houve um empoderamento das OSCs que podem propor atra-
vés de termo de fomento que seja estabelecida uma parceria, sendo ainda possível que haja
a realização de um PMIS (Procedimento de Manifestação de Interesse Social) para coletar
propostas bottom-up (democráticas).
Ocorre que, apesar de o marco ter surgido em 2014 com maior rigor nas exigências
de celebração de parcerias com o terceiro setor, em 2015 houve uma flexibilização e uma
maior abertura, portanto, para hipóteses de celebração de parcerias sem chamamento pú-
blico, sobretudo nos casos de transferência autorizada por lei na qual seja identificada uma
entidade beneficiada e também em havendo emendas parlamentares às leis orçamentárias
anuais. Assim, permitiu-se com que a ação política possa novamente passar ao largo das
exigências mais rigorosas para celebração das parcerias sociais.

3 PESQUISA EMPÍRICA

3.1 Objeto da pesquisa

A pesquisa foi desencadeada, entre os dias 25 e 30 de junho de 2019, a partir de


requerimentos de informação protocolizados, com fundamento no artigo 9º, inciso I, alínea
“c”, da Lei Federal n. 12.527, de 18 de novembro de 2011, perante os Serviços de Informa-
ções ao Cidadão, visando ao levantamento de dados, durante o exercício financeiro de 2018,
sobre a aplicação da Lei Federal n. 13.019, de 31 de julho de 2014.
Haja vista que a Lei Federal n. 13.019, de 31 de julho de 2014, estabeleceu um marco
regulatório para as organizações da sociedade civil, alterando o regime jurídico das parcerias
celebradas entre a Administração Pública e a sociedade civil organizada, o recorte utilizado
foi a Assistência Social municipal, área em que o Terceiro Setor é notoriamente atuante.
Para que o campo de pesquisa pudesse ser capilarizado de forma homogênea por
todo o território brasileiro, foram mobilizadas todas as Capitais de Estado e o Distrito Federal
e, para obter uma visão mais abrangente, também foi mobilizada a União. Considerando que
a pesquisa foi desencadeada durante ano de 2019 e que a Administração Pública se organiza
em exercícios fiscais, a base anual adotada foi a do ano de 2018, para que se pudesse ter
como referência a completude do exercício fiscal mais recente.
O objetivo geral da pesquisa foi a obtenção de informações acerca da aplicação da
Lei Federal n. 13.019, de 31 de julho de 2014, enquanto o objetivo específico foi o levanta-
mento das dificuldades de implementação do novo regime jurídico de cooperação mútua e
interesse recíproco entre a Administração Pública e o setor público não estatal, numa tenta-
188 Irene Nohara | Daniel Scheiblich Rodrigues

tiva de descobrir se o marco regulatório já transformou a realidade das parcerias celebradas


por todo o Brasil.
Quanto ao instrumento adotado para a realização da pesquisa de campo, formulou-
-se um questionário contendo doze perguntas, das quais dez foram objetivas e duas foram
discursivas. O questionário foi protocolizado perante os Serviços de Informações ao Cidadão
das unidades federadas investigadas e, indiretamente, permitiu traçar um panorama das difi-
culdades de acesso à informação no Brasil.

3.2 Dificuldades de acesso à informação

Os Serviços de Informações ao Cidadão foram implementados pelo artigo 9º, inciso


I, alínea “c”, da Lei Federal n. 12.527, de 18 de novembro de 2011, com vistas a assegurar
o direito fundamental de acesso à informação. Ocorre que, na realidade, nem sempre a
sua mera existência implica na efetividade de acesso. Das vinte e oito unidades federadas
consultadas, quatorze prestaram informações claras e precisas, o que demonstra que houve
transparência em 50% (cinquenta por cento) das Administrações Públicas mobilizadas:

QUADRO 1 – Dificuldade de acesso à informação

HOUVE ACESSO À INFORMAÇÃO NÃO HOUVE ACESSO À INFORMAÇÃO

1 Aracaju Belém

2 Boa Vista Belo Horizonte

3 Campo Grande Cuiabá

4 Florianópolis Curitiba

5 Fortaleza Distrito Federal

6 João Pessoa Goiânia

7 Macapá Natal

8 Maceió Porto Velho

9 Manaus Rio de Janeiro

10 Palmas Salvador

11 Porto Alegre São Luís

12 Recife São Paulo

13 Rio Branco Teresina

14 União Vitória

FONTE: Elaborados pelos autores.


Parcerias sociais: dificuldades práticas na implementação da Lei 13.019/2014 189

A despeito da previsão expressa do artigo 9º, inciso I, alínea “c”, da Lei Federal
n. 12.527, de 18 de novembro de 2011, cinco unidades federadas entenderam que seus
Serviços de Informações ao Cidadão não eram canais próprios para a obtenção dos dados
requeridos: Belo Horizonte, Porto Velho, Rio de Janeiro, São Paulo e Teresina.
O prazo legal para a disponibilização das informações requeridas foi descumprido
por quatro unidades federadas, perante as quais os requerimentos de acesso à informação
permaneceram em processamento até a conclusão da presente pesquisa: Belém, Cuiabá,
Natal e Vitória.
Perante três unidades federadas, após a negativa inicial de acesso, os requerimentos
de acesso à informação adentraram morosas fases recursais: Distrito Federal, Goiânia e
São Luís. O requerimento de acesso à informação foi indeferido perante uma das unidades
federadas consultadas: Curitiba. Porém, a maior dificuldade de acesso à informação foi a do
Município de Salvador, cujo Serviço de Informações ao Cidadão esteve indisponível para a
protocolização de requerimentos durante todo o período em que a pesquisa foi realizada e,
mesmo após o envio de correspondências eletrônicas à Chefia de Gabinete da Prefeitura e à
Secretaria Municipal de Promoção Social e Combate à Pobreza, o acesso à informação foi
negligenciado9.

3.3 Resultados da pesquisa empírica

Das quatorze unidades federadas que prestaram as informações requeridas com


clareza e precisão, apenas o Município de Boa Vista informou que não aplica, na área de
Assistência Social, os procedimentos administrativos e os negócios jurídicos previstos na
Lei Federal n. 13.019, de 31 de julho de 2014:

[...] a Secretaria Municipal de Gestão Social – SEMGES não possui parcerias sociais
previstas na Lei n. 13.019/2014 com organizações da Sociedade Civil, seja por cha-
mamento público ou dispensa/inexigibilidade e, por esta razão, não há que se falar
na existência de relatórios de visita, termos de colaboração ou fomento. Diante do
exposto, não alcançamos o campo práticos para abordar acerca das dificuldades da
não aplicação integral dos mecanismos presentes na referida lei de parcerias.

Logo, o exame da aplicação do marco regulatório das organizações da sociedade


civil ficou no âmbito da União e de doze Capitais de Estado: Aracaju, Campo Grande, Floria-
nópolis, Fortaleza, João Pessoa, Macapá, Maceió, Manaus, Palmas, Porto Alegre, Recife e
Rio Branco.

9
A impossibilidade de requerimento de informações ensejou a propositura de uma representação perante o Centro
de Apoio Operacional às Promotorias de Proteção à Moralidade Administrativa, órgão vinculado ao Ministério
Público do Estado da Bahia.
190 Irene Nohara | Daniel Scheiblich Rodrigues

Do ponto de vista procedimental, a pesquisa almejou identificar se a celebração de


parcerias entre a Administração Pública e as organizações da sociedade civil é antecedida
de chamamento público e, em caso negativo, se a pactuação direta com as entidades é
fundamentada na inexigibilidade de certame, na indicação direta pelo Poder Executivo ou na
previsão em emendas parlamentares, obtendo os seguintes resultados:
QUADRO 2 – Levantamento das parcerias celebradas entre a administração pública
e organizações da sociedade civil

2. Quantos ter-
4. Quantas par-
mos de cola-
cerias sociais
boração ou de
(com entidades
fomento foram
de assistência
1. Quantas par- celebrados, 3. Quantas par-
social) foram
cerias sociais durante o exer- cerias sociais
celebradas sem
(com organiza- cício financeiro ocorreram com
a prévia realiza-
ções da socie- de 2018, com a dispensa ou
ção de chama-
ENTE FEDERADO dade civil/ONGs/ prévia realização inexigibilidade
mento público
entes do Tercei- de chamamento de chamamento
com base em
ro Setor) exis- público, nos ter- público, nas hi-
autorização le-
tem firmadas na mos autorizados póteses da Lei n.
gal com indica-
Pasta? pelo artigo 29 13.019/2014?
ção da entidade
da Lei Federal
beneficiária e/ou
n. 13.019, de
emendas parla-
31 de julho de
mentares?
2014?

Aracaju 11 09 02 02

Campo Grande 538 0 538 538

Florianópolis 40 0 40 0

Fortaleza 31 17 03 01

João Pessoa 37 37 0 50

Macapá 01 0 01 0

Maceió 14 0 0 0

Manaus 0 0 0 0

Palmas 01 01 0 0

Porto Alegre 255 0 261 0

Recife 07 01 0 0

Rio Branco 03 0 04 01

União 02 0 02 0

FONTE: Elaborados pelos autores.


Parcerias sociais: dificuldades práticas na implementação da Lei 13.019/2014 191

Do ponto de vista negocial, a pesquisa se propôs a identificar a quantidade de par-


cerias entre a Administração Pública e as organizações da sociedade civil, filtrando-as de
acordo com as espécies de negócios jurídicos arrolados na Lei Federal n. 13.019, de 31 de
julho de 2014:

QUADRO 3 – Levantamento de parceias de acordo com o tipo

1. Total de par- 2. Termos de 3. Termos de 4. Acordos de


ENTE FEDERADO
cerias colaboração fomento cooperação

Aracaju 11 0 11 0

Campo Grande 538 538 0 01

Florianópolis 40 40 0 0

Fortaleza 31 02 15 0

João Pessoa 37 37 0 01

Macapá 01 0 0 0

Maceió 14 0 0 02

Manaus 0 0 0 0

Palmas 01 0 0 0

Porto Alegre 255 261 0 0

Recife 07 01 0 0

Rio Branco 03 0 04 0

União 02 01 0 01

FONTE: Elaborados pelos autores.

Do ponto de vista do controle interno, a pesquisa buscou estabelecer o número de


relatórios expedidos para as visitas técnicas realizadas, pela Administração Pública, nos
termos do artigo 66, parágrafo único, inciso I, da Lei Federal n. 13.019, de 31 de julho de
2014, durante o exercício financeiro de 2018:
192 Irene Nohara | Daniel Scheiblich Rodrigues

QUADRO 4 – Levantamento dos relatórios

2. Relatórios de visita técnica


ENTE FEDERADO 1. Parcerias sociais
in loco

Aracaju 11 0

Campo Grande 538 13

Florianópolis 40 0

Fortaleza 31 62

João Pessoa 37 04

Macapá 01 0

Maceió 14 0

Manaus 0 0

Palmas 01 02

Porto Alegre 255 255

Recife 07 01

Rio Branco 03 0

União 02 01

FONTE: Elaborados pelos autores.

Considerando que o objetivo específico da pesquisa foi o levantamento das dificulda-


des de implementação, pela Administração Pública, da Lei Federal n. 13.019, de 31 de julho
de 2014, os entes federados consultados foram submetidos a um questionário para avaliar,
numa escala de um a cinco – sendo um para uma resposta que aponta para a negação total
da pergunta e cinco para uma resposta no qual se concorda integralmente com a pergunta –,
o nível de dificuldade enfrentado em quatro nichos específicos10:

10
A União optou por não se manifestar quanto a esta parte do levantamento, por interpretar que as perguntas “de-
mandam pronunciamento potencialmente subjetivo”.
Parcerias sociais: dificuldades práticas na implementação da Lei 13.019/2014 193

QUADRO 5 – Levantamento das dificuldade de implementação da lei

2. Falta de
1. Muitas bre-
vontade dos 3. Falta de co- 4. Não há di-
chas que permi-
agentes políti- brança da apli- ficuldades na
tem a celebra-
ENTE FEDERADO cos em imple- cação da lei por aplicação da lei,
ção de parcerias
mentar a Lei de parte da socie- que já é realida-
sem o chama-
Parcerias (Lei dade civil de no Município
mento público
13.019/2014)

Aracaju Nível 2 Nível 1 Nível 2 Nível 5

Campo Grande Nível 2 Nível 1 Nível 2 Nível 3

Florianópolis Nível 5 Nível 2 Nível 5 Nível 1

Fortaleza Nível 1 Nível 1 Nível 1 Nível 2

João Pessoa Nível 3 Nível 3 Nível 3 Nível 4

Macapá Nível 1 Nível 2 Nível 3 Nível 2

Maceió Nível 3 Nível 2 Nível 3 Nível 2

Manaus Nível 1 Nível 1 Nível 4 Nível 5

Palmas Nível 4 Nível 2 Nível 5 Nível 3

Porto Alegre Nível 3 Nível 1 Nível 4 Nível 5

Recife Nível 1 Nível 1 Nível 1 Nível 4

Rio Branco Nível 2 Nível 3 Nível 4 Nível 2

FONTE: Elaborados pelos autores.

3.4 Contribuições das unidades federadas pesquisadas

Algumas unidades federadas teceram considerações relevantes para as dificuldades


que enfrentam na aplicação da Lei Federal n. 13.019, de 31 de julho de 2014, merecendo
especial destaque.
A Prefeitura de Porto Alegre aderiu profundamente ao marco regulatório e o regula-
mentou em nível local, sobre ele opinando da seguinte maneira:
194 Irene Nohara | Daniel Scheiblich Rodrigues

Sim, realmente trouxe grandes avanços e desafios, tanto no que tange ao Monitora-
mento e Avaliação, quanto no formato da prestação de contas, que deve ocorrer por
meio de plataforma eletrônica. Em POA/RS foi instituído, por meio do Decreto Muni-
cipal 20.239/19 o Sistema de Gestão de Parcerias – SGP e o Manual de Prestação de
Contas das Parcerias do Município de Porto Alegre.

A Prefeitura de Macapá também teve um posicionamento positivo em relação à nova


legislação, pontuando que que há “grande utilidade” no marco regulatório, “trazendo inova-
ções ao regulamentar as parcerias e prevendo instrumentos de controle que permitem maior
rigor na celebração deste tipo de instrumento”. Traçando um balanço sobre a Lei Federal n.
13.019, de 31 de julho de 2014, a Prefeitura de João Pessoa foi igualmente bastante otimista:

Sem dúvidas impactou positivamente, além de oferecer parâmetros legais para a ce-
lebração das parcerias, oferece uma segurança financeira para as OSCs, uma vez que
tendo sido selecionado em Edital de Chamamento Público terá a certeza de contar o
pagamento pelos serviços prestados pelo período de vigência do Edital, sem precisar
ficar todo ano recorrendo aos gabinetes para conseguir financiamento para os proje-
tos, por outro lado, a gestão pública tem também maior liberdade para normatizar os
serviços que compra por meio do Edital.

Quanto à eficácia da nova legislação, a Municipalidade de João Pessoa enxerga pon-


tos desfavoráveis, uma vez que as entidades do Terceiro Setor “buscam meios para burlar,
encontrar um ‘jeito’, para conseguir parceria sem concorrer nos Editais.”.
As Prefeituras de Campo Grande, Fortaleza e Recife entendem que a necessidade de
criação de plataformas eletrônicas para as prestações de contas está entre as maiores difi-
culdades para que a aplicação do marco regulatório das organizações da sociedade civil seja
mais efetivo na área de Assistência Social. A Prefeitura de Campo Grande identifica, ainda, a
necessidade de que se promova a “padronização de instrumentos”.
O Município de Florianópolis apontou como dificuldades práticas na aplicação inte-
gral dos mecanismos presentes na Lei de Parcerias Sociais dois fatores principais: o desco-
nhecimento e o despreparo das organizações da sociedade civil, bem como a multiplicidade
de interpretações contrárias à legislação. A Prefeitura também admite que a existência de
brechas é um fator que contribui para a baixa aderência da Administração Pública à legisla-
ção: “Com as brechas trazidas pela 13.204/2015, a mudança para parcerias voltadas para a
área de assistência social, saúde e educação não sofreu grandes modificações”.
O “desconhecimento” foi também apontado pela Prefeitura de Palmas, juntamente
com a “burocracia”, como um elemento dificultador na aplicação do marco regulatório, fa-
zendo com que não tenha havido um “processo significativo” para sua implementação.
Parcerias sociais: dificuldades práticas na implementação da Lei 13.019/2014 195

A Prefeitura de Maceió vislumbra que a Lei Federal n. 13.019, de 31 de julho de 2014,


“ainda não modificou substancialmente a dinâmica das parcerias existentes”, atribuindo sua
baixa eficácia ao “fato dos convênios atualmente vigentes terem sido firmados com base na
Lei 8.666/93 encontrando-se aditivados por autorização legal”.
De modo similar, a Prefeitura de Recife expôs que a “Lei 13.019/2014 não modificou
substancialmente a dinâmica das parcerias existentes”. Porém, tal Prefeitura expõe que isso
se deve aos elevados padrões de rigor que a Municipalidade proativamente adotava para
os antigos convênios da área de Assistência Social, “visto que esta pasta já estabelecia as
parcerias de forma semelhante”.
Para a Prefeitura de Rio Branco a carência de “Decreto que regulariza a Lei no Muni-
cípio”, assim como a escassez de “agentes capacitados para aplicação da lei nas gestões
municipais”, são as maiores dificuldades para a aplicação integral da Lei Federal n. 13.019,
de 31 de julho de 2014.

4 CONSIDERAÇÕES FINAIS

Dos dados empíricos levantados percebe-se que há uma diferença muito grande
quanto ao grau de aplicabilidade e manejo dos instrumentos de parceria por parte dos entes
pesquisados. Há percepções muito diferentes quanto às dificuldades de aplicação da Lei
de Parcerias, vigorando ainda em diversos dos entes uma predominância pela “fuga” dos
chamamentos públicos, o que não significa desrespeito à lei, pois tal inobservância decorre
das próprias brechas legais abertas em 2015.
Fato é que é ainda muito cedo para se dizer que o marco não pegou ou não deu
certo, pois ele ainda é muito recente (cerca de cinco anos apenas), tendo de passar por um
período de amadurecimento do seu uso, o que deve ser implementado a partir de trocas de
experiências entre as gestões, tendo sido ressaltada a dificuldade de algumas Municipalida-
des (Campo Grande, Fortaleza e Recife) em implementar plataformas eletrônicas na área da
assistência social.
Interessante ressaltar que o Município que mais recorreu aos chamamentos foi João
Pessoa, na Paraíba, que também possui uma visão otimista da lei, tendo sido enfatizado que
ao se oferecer parâmetros legais para a celebração das parcerias, se trata de uma segurança
para as organizações da sociedade civil, que certamente contarão com o pagamento dos
serviços na vigência do chamamento, sem que haja que recorrer de expedientes políticos
para manter os projetos relevantes.
No entanto, todos os entes pesquisados que responderam os questionários alega-
ram que aplicam sim a lei. Curiosamente, a União identificou poucas parcerias, sendo ainda
as celebradas sem o chamamento, não tendo havido uma abertura para dialogar sobre as
dificuldades de implementação da lei, tendo sido tal pergunta taxada de muito subjetiva. For-
196 Irene Nohara | Daniel Scheiblich Rodrigues

taleza, por sua vez, foi um Município que apresentou um equilíbrio no número de parcerias,
sendo 31 celebradas em 2018 com 17 chamamentos públicos.
A Lei de Parcerias apresenta muitos pontos avançados, conforme exposto, apesar
das mencionadas brechas, e tem o potencial de transformar a realidade, pois à medida que a
sociedade perceber seu potencial de oferecimento de propostas e mesmo de maior controle
das parcerias, certamente que o manejo adequado e o maior conhecimento têm o potencial
de serem úteis para a transformação e a melhoria das parcerias.
No entanto, ainda há a necessidade de uma ampla transformação cultural de tais
parcerias, para que haja o empoderamento das organizações da sociedade civil que sejam
emancipadas do poder político e que, diante das transformações disruptivas que se anun-
ciam à sociedade, possam oferecer soluções inovadoras para colaborar no equacionamento
de inúmeros problemas sociais, para se transformarem em importantes coadjuvantes do
Estado na implementação das políticas públicas.

REFERÊNCIAS

BECK, Ulrich. Sociedade de risco. São Paulo: Editora 34, 2010.

GABARDO, Emerson. Papel do Estado e mito da subsidiariedade. In: NOHARA, Irene P. (Coord.). Gestão
pública dos entes federativos: desafios jurídicos para inovação e desenvolvimento. São Paulo: Clássica,
2013.

HIRSCH, Joaquim. Teoria materialista do Estado. Rio de Janeiro: Revan, 2010.

MOTTA, Fabrício; MÂNICA, Fernando Borges; OLIVEIRA, Rafael Arruda (Orgs.). Parcerias com o terceiro
setor: as inovações das Lei n. 13.079/2014. Belo Horizonte: Fórum, 2017.

NOGUEIRA, Marco Aurélio. Um Estado para a sociedade civil: temas éticos e políticos da gestão demo-
crática. 3. ed. São Paulo: Cortez, 2011.

NOHARA, Irene Patrícia. Direito administrativo. 9. ed. São Paulo: Atlas, 2019.
O princípio republicano como princípio
constitucional estruturante do regime
jurídico-administrativo

José Sérgio da Silva Cristóvam


Doutor em Direito Administrativo (UFSC)
Professor de Direito Administrativo (UFSC)
Conselheiro federal (OAB)
Advogado

SUMÁRIO: 1 Introdução; 2 O princípio republicano como princípio constitucional estruturante;


3 Antecedentes históricos e filosóficos da noção de República: a busca do “elo substantivo perdido”;
4 O princípio republicano como princípio axiológico fundamental; 5 Considerações finais; Referências.

1 INTRODUÇÃO

A proposta de redefinição dos contornos procedimentais e, sobretudo, materiais


do princípio republicano permite a rediscussão de diversos institutos do regime jurídico-
-administrativo tradicional. Exemplo disso é o modelo de prerrogativas administrativas e as
cláusulas exorbitantes dos contratos administrativos, fundadas em um consideravelmente
superado vetor de assimetria e verticalização do poder público sobre os cidadãos, a ser
retemperado pela perspectiva da horizontalidade, da consensualidade e da transparência
do agir administrativo, elementos de concretização política e jurídica de uma nova vocação
democrática e republicana da Administração Pública, muito mais afinada com a ordem cons-
titucional brasileira e com as melhores expectativas da Sociedade.
Eis a tônica central da temática aqui debatida, que parte de uma renovada e rees-
truturada concepção de regime jurídico-administrativo, constitucionalmente vinculado como
base normativa e conjunto de finalidades e objetivos, a ser acompanhada pela construção
normativo-axiológica das suas linhas mestras (princípios estruturantes).
O estudo tem justificativa a partir da proposta (em certa medida!) de superação
daquele paradigma tradicional, que fundava e legitimava o regime jurídico-administrativo em
um modelo mais assimétrico e verticalizado de poderes e prerrogativas da Administração
Pública, com a reconstrução das suas bases de justificação e conformação sistemática,
agora sobre fundamentos estruturantes capazes de afinar o diálogo e manter uma dialética
de legitimidade sinfônica com todo o arranjo normativo constitucional, sob a batuta instru-
198 José Sérgio da Silva Cristóvam

mental e horizontalizante do Estado constitucional de direito e do paradigma emergente da


Administração Pública democrática.1
Embora aqui não se possa avançar no debate mais aprofundado acerca dos con-
tornos deste referido paradigma emergente da Administração Pública democrática, cabe
assentar seu marcado traço de travessia para uma matriz jurídico-política administrativa
menos imperativa e verticalizada, fundada na valorização dos vetores da consensualidade,
da transparência, do controle social, da eficiência administrativa e da efetiva construção de
espaços democráticos para a formação da decisão administrativa, a partir dos princípios
estruturantes da dignidade da pessoa humana,2 do Estado democrático de direito,3 do
princípio republicano e da sustentabilidade.4
Convém adiantar que a noção de princípios estruturantes, aqui referida, parte da
doutrina do constitucionalista lusitano José Joaquim Gomes Canotilho, que os define como
aquelas “traves-mestras jurídico-constitucionais do estatuto jurídico do político”, as diretri-
zes normativas fundamentais, constitutivas e indicativas “das ideias directivas básicas de
toda a ordem constitucional”. Assim concebidos, os princípios estruturantes acabam por
alcançar concretização pela via de outros princípios e regras constitucionais de densificação,
que iluminam “o seu sentido jurídico-constitucional e político-constitucional, formando, ao
mesmo tempo, com eles, um sistema interno”.5
Para os contornos do presente ensaio, cumpre estabelecer como problema central
em que medida o princípio republicano se sustenta como princípio constitucional estruturan-
te do Direito Administrativo? Nada obstante, cabe registrar que refoge aos limites desse en-
saio o debate sobre as consequências para o regime jurídico-administrativo, que é de central
relevo e tem impacto por exemplo no modelo tradicional de prerrogativas da Administração
Pública, no regime de cláusulas exorbitantes dos contratos administrativos etc.6

1
Sobre o tema, ver: CRISTÓVAM, José Sérgio da Silva. Administração Pública democrática e supremacia do inte-
resse público: novo regime jurídico-administrativo e seus princípios constitucionais estruturantes. Curitiba: Juruá,
2015. p. 121-317.
2
Sobre o tema, ver: CRISTÓVAM, José Sérgio da Silva. A dignidade da pessoa humana como princípio consti-
tucional estruturante do direito administrativo. Revista Jurídica Luso-Brasileira, ano 2, n. 6, p. 745-772, 2016.
Disponível em: http://www.cidp.pt/revistas/rjlb/2016/6/2016_06_0745_0772.pdf. Acesso em: 4 jan. 2020.
3
Sobre o tema, ver: CRISTÓVAM, José Sérgio da Silva. O Estado democrático de direito como princípio constitucio-
nal estruturante do direito administrativo: uma análise a partir do paradigma emergente da Administração Pública
democrática. Revista Jurídica Luso-Brasileira, ano 3, n. 3, p. 575-604, 2017. Disponível em: http://www.cidp.pt/
revistas/rjlb/2017/3/2017_03_0575_0604.pdf. Acesso em: 4 jan. 2020.
4
Sobre o tema, ver: FREITAS, Juarez. Sustentabilidade: direito ao futuro. 3. ed. Belo Horizonte: Fórum, 2016.
5
CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito constitucional e teoria da Constituição. 7. ed. Coimbra: Almedina,
2003. p. 1173-1174.
6
Sobre o tema, ver: CRISTÓVAM, José Sérgio da Silva. Administração Pública democrática e supremacia do inte-
resse público: Op. cit., p. 304-317.
O princípio republicano como princípio constitucional estruturante... 199

Como hipótese do presente ensaio, entende-se que aqueles referidos princípios es-
truturantes não servem como parâmetros normativos que possam isoladamente sustentar
o regime jurídico-administrativo, mas sim como verdadeiro quarteto principiológico estrutu-
rante assecuratório dos padrões de unidade interior e adequação valorativa conformadores
de todo o edifício constitucional administrativo, cabendo aqui o debate voltado ao princípio
republicano.
Com efeito, eis os objetivos centrais do estudo: a partir de uma leitura sistemática
e comprometida com a plena efetividade das normas constitucionais, busca-se oferecer as
bases para um renovado regime jurídico-administrativo, aqui mais voltada à análise teórica
do princípio republicano como princípio constitucional estruturante deste referido regime
normativo.

2 O PRINCÍPIO REPUBLICANO COMO PRINCÍPIO


CONSTITUCIONAL ESTRUTURANTE

Não há como definir ao certo as razões, mas o fato é que o estudo jurídico da noção
de República como princípio constitucional não tem recebido quase nenhuma atenção ou de-
monstração de interesse pela doutrina nacional.7 Enquanto algumas temáticas relacionadas à
teoria dos princípios, proporcionalidade, razoabilidade, direitos fundamentais e hermenêutica
constitucional, apenas para exemplificar, recebem uma verdadeira “enxurrada” de estudos
monográficos, ensaios, artigos e trabalhos acadêmicos de mestrado e doutorado, o que é
sempre positivo para o amadurecimento do debate jurídico, outros assuntos ficam quase
esquecidos, como ocorre com o estudo do princípio republicano.8
A afirmação desse quadro pode ser colhida, inclusive, nas reflexões de Luiz Henrique
Urquhart Cademartori e Paulo Márcio Cruz, quando esclarecem que, embora vastamente

7
Na literatura jurídica nacional, vale ressaltar o trabalho do precocemente desaparecido publicista Geraldo Ataliba,
intitulado República e Constituição, um dos precursores debates sobre o tema, após o advento da Constituição
Federal. Sobre o tema, ver: ATALIBA, Geraldo. República e Constituição. 2. ed. atual. por Rosolea Miranda Folgosi.
São Paulo: Malheiros, 1998.
8
Sobre o tema do princípio republicano na literatura jurídica nacional, ver: AMORIM, Carlos Alberto Novelino de.
Princípio republicano, cargos em comissão e clientelismo político nos Municípios do Estado do Rio de Janeiro:
reflexões sobre a profissionalização da função pública no Brasil. 2008. 116 f. Dissertação (Mestrado em Ad-
ministração) – Curso de Mestrado em Administração Pública, Fundação Getúlio Vargas, Rio de Janeiro, 2008;
CADEMARTORI, Luiz Henrique Urquhart; CRUZ, Paulo Márcio. Sobre o princípio republicano: aportes para um
entendimento de bem comum e interesse da maioria. In: CONGRESSO NACIONAL DO CONPEDI, XVII, 2008,
Brasília. Anais [...]. Brasília: Conpedi, 2008. p. 845-860, 2008. Disponível em: http://www.conpedi.org.br/ma-
naus/arquivos/anais/brasilia/14_98.pdf. Acesso em: 4 jan. 2020; CRUZ, Paulo Márcio; SCHMITZ, Sérgio Anto-
nio. Sobre o princípio republicano. Revista Novos Estudos Jurídicos, Itajaí, v. 13, n. 1, p. 43-54, jan./jun. 2008;
LEWANDOWSKI, Enrique Ricardo. Reflexões em torno do princípio republicano. Revista da Faculdade de Direito
da Universidade de São Paulo, São Paulo, v. 100, p. 189-200, jan./dez. 2005; SILVA, Michel Mascarenhas. A de-
mocracia moderna e o princípio republicano: uma imbricação necessária para a proteção do interesse público. Jus
Navigandi, Teresina, ano 16, n. 2950, jul. 2011. Disponível em: http://jus.com.br/artigos/19671. Acesso em: 4 jan.
2020.
200 José Sérgio da Silva Cristóvam

empregados no universo jurídico e nos domínios da ciência política, República e princípio re-
publicano são categorias, no mais das vezes, não adequadamente compreendidas, porquan-
to “normalmente operadas a partir de conceitos modernos insuficientes ou parciais”. Isso
traz, por conseguinte, sérios prejuízos ao próprio entendimento de outras categorias correla-
cionadas, como os direitos fundamentais, a cidadania e a própria democracia. Como “prin-
cípio reitor de todo ordenamento jurídico”, o princípio republicano possui conteúdo jurídico
autônomo, pelo que não pode ser confundido conceitualmente com outros princípios com os
quais guarda constante diálogo, como o Estado democrático de direito, a temporalidade dos
mandatos eletivos, a democracia representativa e a dignidade da pessoa humana.9
Convém, desde já, esclarecer que, embora não diretamente relacionado à concepção
jurídico-normativa do princípio republicano, conforme aqui referido, a discussão em torno da
noção de República vem recebendo, mais recentemente, um importante influxo de estudos
filosóficos e políticos, sobretudo a partir do debate entre as correntes do “liberalismo” e
do “republicanismo” (neorrepublicanismo),10 sendo, para alguns autores, que este último
poderia ser tomado em certa medida como sinônimo de “comunitarismo”.11 Antes da abor-
dagem acerca dos contornos e do conteúdo do princípio jurídico-constitucional republicano,
vale trazer uma breve recuperação dos seus antecedentes históricos e filosóficos, a partir da
noção de República.

3 ANTECEDENTES HISTÓRICOS E FILOSÓFICOS DA


NOÇÃO DE REPÚBLICA: A BUSCA DO “ELO
SUBSTANTIVO PERDIDO”

A dimensão moderna de República está fundada mais em conceitos formais de


como são escolhidos os governantes (se por eleição ou se por hereditariedade), por vezes
até confundida com uma noção de democracia representativa e suas disposições formais e
procedimentais, do que em uma concepção substantiva de governo republicano. Esse é o
interesse maior na recuperação, ainda que breve, de um conceito republicano substantivo,
desde a Antiguidade, a fim de se estabelecerem os contornos adequados do princípio repu-
blicano na atualidade.

9
CADEMARTORI, Luiz Henrique Urquhart; CRUZ, Paulo Márcio. Sobre o princípio republicano: Op. cit.
10
Ultrapassam os limites da presente abordagem a recuperação do complexo e riquíssimo debate entre as diversas
concepções de liberalismo, de republicanismo e de comunitarismo. Sobre o tema, ver: CITTADINO, Gisele. Plu-
ralismo, Direito e justiça distributiva: elementos da filosofia constitucional contemporânea. 3. ed. Rio de Janeiro:
Lumen Juris, 2004; DIAS, André de Vasconcelos. Teorias republicanas da democracia. 2008. 76 f. Monografia da
Disciplina de Direito Constitucional (Mestrado em Direito) – Ciências Jurídico-Políticas, Faculdade de Direito, Uni-
versidade de Lisboa, Lisboa, 2008; PINTO, Ricardo Leite. Liberdade republicana e Estado constitucional. Boletim
da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, Coimbra, v. LXXXVI, p. 429-474, 2010.
11
Sobre o tema, ver: DOBROWOLSKI, Samantha Chantal. A construção social do sentido da Constituição na demo-
cracia contemporânea: entre soberania popular e direitos humanos. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2007. p. 80.
O princípio republicano como princípio constitucional estruturante... 201

A recuperação histórica da ideia de República no pensamento político deve ser bus-


cada na Antiguidade clássica grega, em especial nos pensamentos platônico e aristotélico.
De início, importa ressaltar a considerável dificuldade na recuperação da noção clássica
de República, pois esta concepção é um tanto estranha à linguagem e à política grega.
Conquanto a mais difundida e traduzida obra platônica tenha sido legada sob o título de “A
República”, sua designação original era Politeía, um termo riquíssimo de sentidos e signifi-
cações no grego clássico, podendo indicar tanto uma noção de Constituição (como forma de
governo em um Estado soberano), como uma ideia de Estado ou até um regime político.12
Com efeito, o termo “politeía” deriva de “polités”, o habitante e participante da “pólis”, a cida-
de-estado grega. “Politeía” designa mais amplamente a comunidade dos cidadãos nas suas
relações orgânicas, especializando-se, com a reflexão filosófica, no sentido das próprias
relações, e daí vem a significar “Estado” e as leis e instituições que o organizam.
A teoria política platônica oferece o desenho de um regime ideal de governo, admitin-
do a existência de seis formas de governo: duas delas seriam a manifestação da constituição
ideal (a monarquia e a aristocracia); uma delas representaria a transição entre as formas
perfeitas e as imperfeitas (a timocracia – forma de governo fundada na honra); e, as três
outras corresponderiam a formas indesejáveis ou degeneradas (a tirania, a oligarquia e a
democracia).13
Essa questão é recuperada pelo pensamento aristotélico, sendo que a sua proposta
de tipologia dos governos assenta basicamente no número de governantes e no interesse
regente das ações do governo. Assim, formula a distinção dos governos em autênticos
(constitucionais) ou degenerados (despóticos) a partir da noção-chave de “bem comum”,
pressuposto do governo constitucional e ausente no governo despótico, este cuja finalidade
estaria assente no bem da classe dominante. Para Aristóteles, existiriam três formas autên-
ticas de governo (ou constitucionais): monarquia, aristocracia e democracia moderada; e
três degeneradas (ou despóticas): tirania, oligarquia e democracia extremada (ou governo
da plebe). Um bom governo (das leis, constitucional) seria aquele capaz de se guiar pela
razão sem paixão. Nesse sentido, quem melhor conduziria tal governo seria a classe média,
que não agiria por interesse próprio, mas no interesse comum, o que justificaria a sua maior
capacidade para o prudente exercício da coisa pública.14
Sobre o interesse da filosofia política na recuperação da noção de República na
Antiguidade grega, com destaque especial para o modelo ateniense, Pedro Delgado Alves es-
clarece que isso não ocorre somente “por se tratar da maior e mais importante polis grega do

12
Nesse sentido, ver: ALVES, Pedro Delgado. O princípio republicano. Revista da Faculdade de Direito da Universi-
dade de Lisboa, Lisboa, v. XLVIII, n. 1 e 2, p. 165-270, 2007. p. 167; PLATÃO. A República. Trad. Edson Bini. 2.
ed. São Paulo: Edipro, 2012. p. 14.
13
PLATÃO. A República. Op. cit., p. 327-364.
14
ARISTÓTELES. A Política. Trad. Nestor Silveira Chaves. 2. ed. São Paulo: Edipro, 2009. p. 119-225.
202 José Sérgio da Silva Cristóvam

período em estudo, mas porque se trata da forma mais avançada de organização política e de
desenvolvimento da ideia de cidadania”, sendo que as concepções de “isonomia, igualdade
perante a lei de todos os cidadãos, acaba por operar como um equivalente de democracia
no sentido moderno do termo, particularmente se associada à ideia de isegoria, ou seja, a
liberdade de expressão associada ao desempenho de direitos políticos”.15
Outra relevante contribuição para a construção do conceito de República pode ser
recuperada da Antiguidade romana, em especial nos escritos de Marco Túlio Cícero, do qual
se pode extrair uma concepção de República enquanto propriedade do povo (res populi) ou
coisa pública (res publica). No pensamento político ciceroniano o conceito de res publica
não está fundado em uma perspectiva formal vinculada a quem exerce o poder (repartição
do poder), mas em uma dimensão substancial e finalística do poder, ou seja, os fins pelos
quais o poder é exercido, se de forma reta, honesta e em favor dos interesses de todos (com-
promisso ético-político). Isto remete à concepção ciceroniana de utilidade comum (utilitas
communis), o que modernamente pode ser entendido como a ideia de interesse público da
comunidade política.16
A noção de República ciceroniana guarda sensíveis relações com a própria concep-
ção de Estado em Roma, um conceito completamente diverso daquele que nos tem legado a
Modernidade. Nesse sentido, José Isaac PILATI adverte que em “Roma, o Estado não é uma
pessoa; é um lugar, uma praça, onde se reúnem os romanos, que partilham bens coletivos
como o ager publicus; coletivos, no sentido de pertencentes aos romanos e não a um Estado
separado deles”, o que permite considerar que, na República romana, “os Romanos são
condôminos dos bens públicos, sem representantes intermediários, com direito a invocar
ações populares à defesa do coletivo, ou seja, daqueles bens dos quais não se dispunha
individualmente, só coletivamente”.17
De fato, a recuperação da dimensão coletiva e da concepção de res publica, que
conformam a genética da República romana, são essenciais para a compreensão dos mo-
delos republicanos que a sucederam, inclusive para as concepções republicanas moderna e
contemporânea. A partir de uma análise da República romana instaurada a partir do ano 509
a.C., após a queda da Monarquia, Alves ressalta que o modelo republicano “vai manter uma
considerável estabilidade interna, permitindo a consolidação das fronteiras, a hegemonia em
Itália e a derrota de Cartago, única potência do Mediterrâneo Ocidental com capacidade para
ameaçar sua supremacia”. Nesse sentido, mesmo envolta em constantes e graves tensões
sociais e políticas internas, “Roma consegue adaptar as suas estruturas institucionais e

15
ALVES, Pedro Delgado. O princípio republicano. Op. cit., p. 181.
16
CÍCERO, Marco Túlio. Da República. Trad. Amador Cisneiros. Bauru: Edipro, 1995. p. 24-30.
17
PILATI, José Isaac. Os interesses coletivos perante a legislação autoral individualista: perspectivas da sua tutela.
Revista Sequência: Estudos Jurídicos e Políticos, Florianópolis, v. 27, n. 52, p. 163-182, jul. 2006. p. 190.
O princípio republicano como princípio constitucional estruturante... 203

aligeirar o peso oligárquico do regime mediante cedência à plebe, designadamente através


da criação do tribunado da plebe (494 a.C.) ou da atribuição de força de lei às deliberações
do concilium plebis, a assembleia da plebe (287 a.C.)”.18
Sobre a República romana, Enrique Ricardo Lewandowski relembra que ela “encerra
a ideia de coisa comum, de um bem pertencente à coletividade, correspondendo em linhas
gerais à antiga noção grega de politeía, regime em que os cidadãos participavam ativamente
da gestão da polis”. Nesta quadra, na República romana os cidadãos de pleno direito (optimo
jure) “eram detentores de direitos políticos (Jura política), que compreendiam o voto nos co-
mícios, a elegibilidade para as magistraturas, o acesso ao sacerdócio e faculdade de apelar
quando processados”, sendo que havia, ainda, os “direitos civis (jura privata), que incluíam
a propriedade, o casamento entre iguais e a possibilidade de demandar na justiçar”, bem
como as “obrigações (munera), com destaque para o dever de participar do recenseamento
(census), de servir no exército (militia) e de pagar imposto (tributum)”.19
Afora a centralidade substantiva da dimensão pública e da noção de bem comum
no conceito de República da Antiguidade clássica, pode-se também buscar no pensamento
político maquiaveliano um rico e fecundo espaço para a recuperação histórica e filosófica do
conceito de República. Nicolau Maquiavel estrutura uma nova tipologia de formas de governo
que passará a ser reproduzida com inegável preponderância na ciência política moderna.
É clássica aquela passagem em que abre o seu “O Príncipe”, sustentando que “todos os
Estados, todos os domínios que tiveram ou têm autoridade sobre os homens foram e são ou
repúblicas ou principados”.20
Com efeito, da teoria maquiaveliana é possível extrair algumas das bases da ciência
política legada à contemporaneidade, a partir da noção moderna de Estado, da disposição
bipartida dos governos em Monarquias e Repúblicas e, sobretudo, da construção de uma
nova moralidade política e de uma nova perspectiva de bem comum, a partir de uma sofisti-
cada dimensão de virtude cívica. Sua doutrina política, fundada no realismo político e em um
conceito de humanismo apartado da filosofia cristã, introduz uma genuína ideia de virtude
cívica que ecoa até a atualidade, servindo de base para muitas das concepções republicanas
do período moderno.
Nesta recuperação histórica e filosófica da noção de República, interessa também
mencionar, ainda que brevemente, o pensamento político rousseauniano e sua defesa da
alternativa republicana pela via da crítica ao sistema monárquico, uma espécie de repu-
blicanismo antimonárquico, que também vai marcar largamente o pensamento moderno.
Ainda que promova uma divisão dos governos basicamente pelo número de membros que a

18
ALVES, Pedro Delgado. O princípio republicano. Op. cit., p. 182-184.
19
LEWANDOWSKI, Enrique Ricardo. Reflexões em torno do princípio republicano. Op. cit., p. 190-195.
20
MAQUIAVEL, Nicolau. O príncipe. Trad. Maria Júlia Goldwasser. 3. ed. 2. tir. São Paulo: Martins Fontes, 2008.
p. 3.
204 José Sérgio da Silva Cristóvam

compõem, Jean-Jacques Rousseau defende que a base de um governo republicano reside


na ação política determinada pela vontade geral, expressão máxima da razão coletiva do
corpo da comunidade, única capaz de conduzir o Estado e a Sociedade ao bem comum.21
A concepção formal de República (governo temporário e eletivo) em contraposição à
Monarquia (governo hereditário e vitalício) vai acompanhar boa parte da Modernidade. Mas
na filosofia kantiana a concepção de República passa a ser tratada a partir de uma constante
política e jurídico-normativa. Essa noção de constituição republicana está assentada em três
princípios básicos: liberdade para todos os membros da sociedade, sujeição de todos a um
mesmo corpo de legislação e igualdade entre todos os cidadãos.22
Para Immanuel Kant, afora uma classificação dos regimes políticos fundada na forma
da soberania, que pode redundar nas categorias clássicas da autocracia, da aristocracia e da
democracia, é possível proceder à análise a partir da maneira como o poder é exercido, com
a substancial divisão entre o poder governamental e o Parlamento, a indicar uma República,
ou com a ausência dessa separação de poderes, o que acarreta o despotismo.
Para a filosofia kantiana o governo republicano seria o único em condições de al-
cançar o projeto de paz perpétua, sendo a constituição republicana a única perfeitamente
adequada ao direito dos homens, embora advirta e reconheça que “é também a mais difícil
de estabelecer, e mais ainda de conservar, e a tal ponto que muitos afirmam que deve ser um
Estado de anjos porque os homens, com as suas tendências egoístas, não estão capacita-
dos para uma constituição de tão sublime forma”.23
Em síntese, o pensamento kantiano suprime e castra em larga medida aquela di-
mensão eminentemente cívica e política da noção de República vinculada às precedentes
concepções de bem comum, utilidade pública, virtude cívica ou vontade geral, inaugurando
o debate do republicanismo a partir dos princípios básicos da liberdade jurídica e autodeter-
minação (autonomia), da sujeição ao conjunto de leis e da igualdade jurídica dos membros
da comunidade política enquanto cidadãos.
Essas reformulações do conceito republicano, afastado daqueles componentes polí-
ticos da prossecução do bem comum e da promoção da virtude cívica, acabam por aproxi-
má-lo de uma perspectiva muito mais formal do que substancial. A Modernidade assume as
ideias republicanas mais a partir da sua associação aos modelos de governo representativo
e concepções modernas de democracia, da sua relação com o princípio da separação de
poderes e da sua oposição aos governos monárquicos hereditários, do que com base em

21
ROUSSEAU, Jean-Jacques. O contrato social ou princípios de direito público. Trad. Antonio de Pádua Danesi. 3.
ed. 3. tir. São Paulo: Martins Fontes, 1999. p. 71-95.
22
KANT, Immanuel. A paz perpétua: um projecto filosófico. Trad. Artur Morão. Covilhã: LusoSofia – Biblioteca Online
de Filosofia e Cultura, 2008. p. 3-53. Disponível em: http://www.lusosofia.net/textos/kant_immanuel_paz_perpe-
tua.pdf. Acesso em: 4 jan. 2020.
23
KANT, Immanuel. A paz perpétua: Op. cit.
O princípio republicano como princípio constitucional estruturante... 205

uma dimensão substantiva de defesa do bem comum (Republicanismo ateniense) e de par-


ticipação coletiva nas decisões da coisa pública (República romana). O debate acerca de
uma dimensão substantiva do republicanismo (neorrepublicanismo), com o resgate das dis-
cussões sobre a natureza do espaço público e a recuperação de valores coletivos (virtudes
cívicas), somente será retomado a partir das últimas décadas do século XX, já no limiar do
terceiro milênio.24

4 O PRINCÍPIO REPUBLICANO COMO PRINCÍPIO


AXIOLÓGICO FUNDAMENTAL

A recuperação histórica e filosófica da noção de República deixa transparecer o de-


bate contemporâneo entre as concepções liberais, fundadas basicamente em uma ideia forte
de individualismo, de liberdade e autonomia da esfera privada, e as concepções relacionadas
ao republicanismo (ou neorrepublicanismo), que sustentam a necessidade de retomada da
proeminência da esfera pública e da defesa do bem comum, a partir de uma noção contem-
porânea de interesse público e de virtudes cívicas.
Por certo, a construção do conteúdo do princípio republicano não pode ser reduzida
a uma (quase acanhada) dimensão formal-procedimental, relacionada à forma pela qual são
escolhidos os governantes da nação (temporalidade dos mandatos eletivos). No sistema
constitucional brasileiro o princípio republicano é alçado à condição de princípio axiológico
estruturante do Estado constitucional de direito, um princípio jurídico-político substantivo,
que funciona como parte do núcleo essencial da Constituição e informa toda a normatividade
constitucional, servindo de base e esteio à defesa e promoção de todos os direitos e interes-
ses da coletividade dos cidadãos, assim considerados.
Trata-se de um princípio constitucional aberto e dinâmico, concretizado a partir de
uma série de outros princípios (gerais e especiais) e regras constitucionais, bem como as
demais normas de concretização legislativa e decisões administrativas e judiciais, a partir de
um constante e complexo diálogo e da relação dialética com os demais princípios estruturan-
tes da ordem constitucional, como os princípios da dignidade da pessoa humana, do Estado
democrático de direito e da sustentabilidade.
Sobre a construção de um modelo republicano fundado na dignidade humana, Luís
Pedro Pereira Coutinho oferece uma noção de República assente em uma dimensão de or-
dem, que “corresponde à estruturação normativa de uma existência colectiva, enquanto
tal definidora do estatuto dos membros de uma comunidade historicamente alcançada e

24
Para uma análise dos debates em torno do chamado neorrepublicanismo, a partir dos aportes teóricos e filosófi-
cos de autores como J. G. A. Pocock, Quentin Skinner e Philip Pettit, ver: ELIAS, Maria Ligia Granado Rodrigues.
Democracia e participação política no novo republicanismo: um estudo sobre o pensamento de Philip Pettit. 2008.
112 f. Dissertação (Mestrado em Sociologia) – Curso de Pós-Graduação em Sociologia Política, Universidade
Federal de Santa Catarina, Florianópolis, 2008.
206 José Sérgio da Silva Cristóvam

instituidora de um poder político que os subordina”. E, a partir dessa dimensão de ordem


normativa, não enquanto mero e instável resultado de uma decisão política da comunidade,
mas enquanto parametrização moral e ética fundamental da humanidade, o constitucionalista
lusitano defende o princípio da dignidade humana como o princípio legitimador da República,
uma “República baseada na dignidade humana”.25
Em sentido semelhante, depois de defender que o princípio republicano representa
a “viga mestra do sentimento constitucional”, Lewandowski o define como “um estado de
espírito coletivo que, ‘transcendendo todos os antagonismos e tensões existentes, político-
-partidárias, econômico-sociais, religiosas ou de outro tipo, integra os detentores e destina-
tários do poder num marco de uma ordem comunitária obrigatória’”. E, nesta linha, aproxima
claramente o princípio republicano a uma perspectiva substantiva e axiológica de projeto
democrático (parametrização moral e política), ao justificá-lo como fruto de um sentimento
de repulsa ao regime militar de exceção e de “repúdio ao passado histórico de autoritarismo
político e de exclusão social, consubstanciando um projeto de desenvolvimento nacional que
busca a superação das desigualdades, a efetivação dos direitos fundamentais e a consoli-
dação da democracia”.26
Certamente, não se está a defender que o princípio republicano seja obra inovadora
do legislador constituinte de 1988. É sabido e consabido que, desde a Constituição de 1891,
o Estado brasileiro assumiu a forma republicana, sem jamais tê-la abandonado. Mas tam-
bém não se pode negar que, até o advento da ordem constitucional de 1988, sua genética
formal-procedimental falava muito mais alto, abafando qualquer traço substantivo porventura
normatizado.
Com efeito, parece difícil negar que, embora normativamente republicano, o Estado
brasileiro jamais conseguiu se apartar daquela sua genética patrimonialista e da ilegítima
e epidêmica colonização do espaço público por interesses egoísticos de grupos que se
revezam no poder, verdadeiras traças a corroer o tecido sociopolítico nacional e a plantar no
senso comum um sentimento de desesperança e desencanto com a esfera pública.
Por certo, as bases substantivas políticas e sociais para o choque normativo e
ideológico de republicanização e democratização nacional só foram estabelecidas com a
Constituição Cidadã. Mas da vontade normativa para a realidade das ruas e das repartições
públicas há um descompasso de tempo considerável, a demonstrar que essa dimensão
substantiva de República aqui alinhada não pode ser entendida como um conceito político
ou jurídico acabado, mas como uma constante ética e ideológica em contínua construção,
mais uma utopia humanista a ser recuperada e vitaminada no seio da comunidade política.

25
COUTINHO, Luís Pedro Pereira. Do que a República é: uma República baseada na dignidade humana. In: MIRAN-
DA, Jorge (Org.). Estudos em homenagem ao Prof. Doutor Martin de Albuquerque. v. II. Coimbra: Coimbra, 2010.
p. 187-211.
26
LEWANDOWSKI, Enrique Ricardo. Reflexões em torno do princípio republicano. Op. cit., p. 197.
O princípio republicano como princípio constitucional estruturante... 207

Sobre essa dimensão axiológica ou ideológica do princípio republicano, Cademartori


e Cruz partem da noção de interesse da maioria vinculada às ideias de bem comum e de res-
gate da coisa pública (esfera pública), o que os leva a sustentar o princípio republicano como
o “princípio dos princípios”, que funciona “como a matriz político-ideológica do ordenamento
e vincula todas as outras normas jurídicas”, pelo que o seu real significado “permite que se
estabeleçam hipóteses e que se possa propor desdobramentos para todo o Direito Público,
com uma melhor e mais segura compreensão do conteúdo, sentido e alcance de todos os
seus institutos. A República é uma espécie de síntese de todas as instituições”.27
Essas considerações, embora sofisticadas e bem fundadas, não podem ser assu-
midas sem uma necessária reflexão crítica. Importa, de início, reconhecer que os referidos
autores são expressos em afirmar que essa noção do princípio republicano como o “prin-
cípio dos princípios” não dialoga com qualquer feição autoritária ou monolítica, pelo que o
interesse da maioria sempre estará adstrito “aos limites republicanos, ou seja, circunscritos
aos ditames do Estado Democrático de Direito, aos Direitos Humanos, à Dignidade da Pes-
soa Humana, à Temporalidade dos Mandatos Eletivos, à Democracia Direta e Representativa
e aos demais princípios que emanam do Princípio Republicano”.28
Nada obstante, não parece sustentável a defesa de que todo o sistema normativo
constitucional estaria submetido à perspectiva estruturante do princípio republicano, assim
entendido como o “princípio dos princípios”. Não parece adequada ou mesmo compatível
com o Estado constitucional de direito, nos termos aqui estabelecidos, a ideia de que sob o
princípio republicano estariam assentados todos os demais princípios fundamentais gerais e
especiais, em uma síntese completa da normatividade constitucional, inclusive no sentido de
que o Estado democrático de direito e o princípio federativo seriam estruturas instrumentais
à consecução do princípio republicano e aos interesses da maioria. Não se pode concor-
dar com uma dimensão assim totalizante e absoluta do princípio republicano, como “valor
maior que conforma todo o ordenamento jurídico no qual o interesse de muitos ou de todos
suplante sempre o interesse de poucos ou de um: o Princípio Republicano é um inestimável
instrumento para a consecução da Justiça, em seu tríplice aspecto (comutativa, distributiva
e social)”.29
No Brasil, um princípio ideal assim concebido exige ignorar o fato de que os quase
cento e trinta anos de República ainda não foram suficientes para “republicanizar” o Estado.
Nem se fala em “republicizar”, porque isso remete a uma falsa ideia de que em algum mo-
mento o Estado brasileiro já foi, genuinamente, público – o que não encontra respaldo históri-
co. Somente agora, desde os trinta anos da Constituição cidadã, é que se pode falar em uma
“Primeira República brasileira”, uma efetiva proposta de Estado republicano do ponto de vista

27
CADEMARTORI, Luiz Henrique Urquhart; CRUZ, Paulo Márcio. Sobre o princípio republicano: Op. cit.
28
CADEMARTORI, Luiz Henrique Urquhart; CRUZ, Paulo Márcio. Sobre o princípio republicano: Op. cit.
29
CRUZ, Paulo Márcio; SCHMITZ, Sérgio Antonio. Sobre o princípio republicano. Op. cit., p. 49-50.
208 José Sérgio da Silva Cristóvam

substantivo, ainda que fortemente limitada ao mundo das normas. Mas este é um processo
social e político que requer uma dimensão histórica, a paulatina criação de uma cultura de
esfera pública na Sociedade. Não há como falar em um conceito normativo de esfera pública,
de coisa pública, de res publica, se não estão dadas as suas bases sociais e políticas.
No mesmo quadrante, do ponto de vista normativo, isso exigiria reconhecer que a
ordem constitucional compactua com um realinhamento normativo mais ao Estado e com o
esvaziamento daquele propalado personalismo constitucional, focado no cidadão e não no
poder estatal. A ideia de um princípio assim forte e com claras vocações de um centralis-
mo absolutista da racionalidade normativa constitucional depõe contra a própria perspectiva
aberta, dinâmica e pluralista do Estado constitucional de direito, que perde em funcionalidade
sistêmica e em efetividade normativa, sobretudo se pensado pela via dos direitos e garantias
fundamentais.
Apenas para um exercício retórico, pode-se dizer que a defesa de uma dimensão
assim totalizante do princípio republicano somente seria legítima, se pensada a partir de um
modelo ideal de Estado republicano, radicalmente fundado sobre as bases de uma sociedade
efetivamente livre e materialmente igualitária, instrumentalizada por uma noção de democra-
cia participativa e pelo primado da dignidade humana. Mas estes modelos de Estado e de
Sociedade assim descritos não existem. E o Brasil, por certo, não serve de parâmetro para
qualquer tentativa de aproximação a um modelo idealista assim estruturado.
Em síntese, o princípio republicano é aqui assumido na sua dimensão axiológica de
princípio constitucional estruturante, que deve ser densificado a partir do diálogo contínuo
e de complexa conformação dialética com os princípios da dignidade humana, do Estado
democrático de direito e da sustentabilidade, com vistas à defesa e promoção dos direitos,
interesses e valores plasmados no seio da Constituição cidadã e na respectiva ordem jurídica
correspondente.

5 CONSIDERAÇÕES FINAIS

Pode-se dizer, tomando por base as reflexões de Carlos Ari Sundfeld, que no diálogo
bipolarizado do Direito Administrativo da atualidade desponta o claro avanço de um modelo
de “Direito Administrativo dos negócios” (mais informal, não infenso à consensualidade e
mais interessado na gestão e eficiência do agir administrativo), em contraste com a posição
decrescente de um conjunto de perspectivas que fundam aquele chamado “Direito Adminis-
trativo dos clipes” (burocrático, autoritário, formalista e pouco preocupado com a gestão de
custos e resultados da atividade administrativa).30

30
SUNDFELD, Carlos Ari. Direito administrativos para céticos. São Paulo: Malheiros, 2012. p. 85-92.
O princípio republicano como princípio constitucional estruturante... 209

A superação do paradigma tradicional da imperatividade faz eclodir, em variados qua-


drantes, vivas e fecundas comprovações da efervescência com que desponta o paradigma
emergente da Administração Pública democrática, o que permite falar, efetivamente, em um
novo regime jurídico-administrativo, uma disciplina aberta, dinâmica, dialética e dialógica,
fundada lógica, axiológica, metodológica e ideologicamente no quarteto estruturante dos
princípios da dignidade da pessoa humana, do Estado democrático de direito, da sustentabi-
lidade e do princípio republicano.
Esse Direito Administrativo constitucionalizado entende o Estado e todo o aparato
estatal como estruturas meramente instrumentais, insuscetíveis a qualquer corporificação ou
personificação substantiva do interesse público, tanto em um sentido amplo (político-axio-
lógico) como em uma dimensão estrita (jurídico-normativa). O poder público é instrumento
cativo de defesa e promoção dos direitos fundamentais individuais e sociais. Esta é a sua
precípua finalidade e fonte última de legitimação. Um modelo de Administração Pública de-
mocratizada, fundada na consensualidade e no controle social, submetido a um dinâmico e
dialógico modelo vinculado à primazia dos direitos fundamentais e à supremacia da ordem
constitucional, e que tem suas bases sobremaneira temperadas e vivificadas pelo princípio
republicano.

REFERÊNCIAS

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Disponível em: http://jus.com.br/artigos/19671. Acesso em: 4 jan. 2020.

SUNDFELD, Carlos Ari. Direito administrativos para céticos. São Paulo: Malheiros, 2012.
Direito administrativo e desenvolvimento:
visão prospectiva

Juarez Freitas
Doutor em Direito (UFSC)
Professor titular de Direito (UFRGS/PUCRS)

SUMÁRIO: 1 Introdução; 2 Direito administrativo e desenvolvimento: visão prospectiva; 3 Conside-


rações finais; Referências.

1 INTRODUÇÃO

A presente abordagem sobre o futuro do Direito Administrativo tem em conta a meta


primordial do desenvolvimento duradouro, vinculada ao trinômio metodológico, norteador
do enfoque, a saber: (i) uma visão prospectiva que fixa contornos e rumos adaptativos para
o sistema administrativo; (ii) uma formulação do plano continuado e integrado de revisão
crítica de categorias-chave da dogmática e (iii) o engajamento fecundo nas transformações
liquidamente positivas. Quanto à visão prospectiva, trata-se, por ora, de antever cenários e
possibilidades do serviço público no século XXI, compreendido como aquele que, por defini-
ção normativa, ostenta natureza essencial e demanda universalização includente.
No ponto, a prospecção de tendências limita-se a antecipar as potencialidades be-
néficas em termos sociais, ambientais e econômicos, no afã de promover, por intermédio
da recalibração de princípios e regras do Direito Administrativo, o direito fundamental à boa
administração pública e ao desenvolvimento duradouro. No tocante ao plano continuado e in-
tegrado de revisão crítica do Direito Administrativo, a proposta consiste em realizar gradativa
e prudente filtragem das categorias existentes, de maneira compatível com a inflexão para a
gestão pública digital, sustentável e baseada em evidências.
Finalmente, no que diz com o engajamento nas transformações administrativas
(substanciais e processuais), cogita-se de propor o aprimoramento da performance huma-
na, por meio de controles e autocontroles integrados e infungíveis, nessa era cada vez mais
regulada pela inteligência artificial, entendida aqui como sistema cognitivo de máquina, com
adaptabilidade e relativa autonomia, emulatório das decisões humanas. Nessa ordem de
considerações, a totalidade dos atores jurídico-institucionais é, por assim dizer, convoca-
da a tomar assento no grande projeto científico que busca reinventar a sindicabilidade das
decisões administrativas, desde a fase interna, com a inclusão de congruente e consistente
214 Juarez Freitas

sopesamento “ex ante” de impactos, que contemple custos e benefícios, diretos e indiretos,
acima de decisionismos tóxicos e arbitrariedades mercuriais. 
A partir do prisma adotado (visão prospectiva, plano continuado e integrado de revi-
são categorial e engajamento lúcido), são revistos tópicos cruciais, relocalizando-os qualita-
tivamente, a partir do joeiramento de conceitos que não se revelarem operativos, prestimo-
sos e úteis. Ao mesmo tempo, assimila-se a disruptiva realidade tecnológica, que força, por
exemplo, o reconhecimento da inequívoca produção de atos administrativos pela inteligência
artificial (em contraste com a automação, que produz tão-só fatos administrativos).
Com base nessas premissas, apresentar-se-á a visão prospectiva do Direito Admi-
nistrativo alinhado com o desenvolvimento gerador de bem-estar intergeracional.  

2 DIREITO ADMINISTRATIVO E DESENVOLVIMENTO:


VISÃO PROSPECTIVA

Na ocasião do XXXIII Congresso Brasileiro de Direito Administrativo, a fala se concen-


trou na visão prospectiva do Direito Administrativo, tendo em mente a obtenção do desen-
volvimento sustentável, com a propositura de indispensáveis mudanças dogmáticas, legisla-
tivas e hermenêuticas. Aqui, em caráter sumário, explicitam-se as premissas subjacentes à
explanação efetuada, com breve alusão a fontes complementares destinadas ao aprofunda-
mento, assim como são fixadas as linhas mestras que inspiraram/balizaram a palestra profe-
rida na mesa de encerramento do Congresso, que ocorreu em Campo Grande, em outubro de
2019. Eis, com nota prescritiva, as antecipações/possibilidades mais promissoras do Direito
Administrativo para o século em curso, no alvo do desenvolvimento que importa:

(I)
O Direito Administrativo terá que se tornar um sistema de escolhas públicas basea-
das em evidências. Bem por isso, dados de qualidade – compartilhados pelas Carreiras de
Estado, independentemente de prévia autorização judicial – convertem-se no insumo mais
significativo para a gestão pública eficiente e eficaz. Em outras palavras, a decisão admi-
nistrativa não pode ser tomada quase às cegas, sob o influxo de impressões fragmentárias,
soltas e caprichosas, não raro temporalmente míopes e enviesadas. O controle, nessa ótica,
terá que se tornar eminentemente baseado em evidências e predisposto a sindicar “ex ante”
a provável efetividade das escolhas públicas.
Para ilustrar, a priorização do fomento para as energias renováveis haverá de resultar
solarmente clara. Já a transição para os veículos elétricos, em substituição gradual dos
veículos à combustão, será outra prioridade incontornável se a decisão pública for genuina-
mente baseada em evidências e não se deixar eclipsar, distrair ou capturar pelas pressões
conjunturais de grupos especiais e sectários de interesse.
Direito administrativo e desenvolvimento 215

(II)
O Direito Administrativo terá que viabilizar o sistema de prestação precípua de ser-
viços públicos digitais. Quer dizer, a ideia de “governo como plataforma” (ultrapassando a
governança analógica e eletrônica) terá que ser absorvida na plenitude dos efeitos. Todo
serviço público que reunir condições para ser prestado digitalmente deverá sê-lo, numa pla-
taforma única, no intuito de promover a mais radical desburocratização acompanhada de
inédita avaliação continuada das políticas públicas, por meio de aplicativos.
Desse modo, será fortalecida a democracia de aprendizagem permanente, sem pre-
juízo de audiências públicas online e outros instrumentos disponíveis. Não resta dúvida que
a economia do século XXI será preponderantemente de serviços digitalizados, razão pela qual
a transformação digital do Direito Administrativo é cogente e impostergável.

(III)
O Direito Administrativo terá que regular, comedidamente, a inteligência artificial, eis
que esta já regula – mediante recomendação de conteúdos, por exemplo – as preferências
comportamentais da sociedade. Para isso, quadra perceber que a inteligência artificial não
se confunde com a automação. Inteligência artificial é o sistema cognitivo de máquina, com
adaptabilidade e relativa autonomia, emulatório das decisões humanas. Dito de outro jeito,
em face da relativa autonomia (especialmente de “machine learning”), faz-se imprescindível
dilatar o conceito de atos administrativos e exigir transparência das decisões algorítmicas,
sob pena de sério risco ao núcleo dos direitos fundamentais de várias dimensões.
Com efeito, a automação produz fatos administrativos, sem presunção de legitimi-
dade. No entanto, em determinadas circunstâncias, a inteligência artificial suscita manifes-
tações unilaterais, em nome da Administração Pública, com o fito de produzir efeitos no
mundo jurídico. Ora, o nome do fenômeno é ato administrativo. Deve, pois, ser motivado e
explicável, não se permitindo a opacidade de preditores e passos lógicos. A decisão adminis-
trativa algorítmica pode esconder vieses e, mais, aprender a ter vieses, que não constavam
da programação original.
É, de fato, a primeira vez, na história humana, que se inventa um sistema de máqui-
na apto a aprendizagem autônoma (embora baseado em correlações). Portanto, a decisão
administrativa algorítmica não comporta caixa-preta em sentido forte, visto que a rastreabi-
lidade e a explicabilidade se impõem na seara pública, ainda que com eventual redução de
acurácia. Tampouco é suficiente invocar o art. 20 da Lei de Proteção de Dados, pois importa
admitir a cogente processualização da decisão administrativa algorítmica, requerida para a
216 Juarez Freitas

prática dos demais atos administrativos,1 sem prejuízo da responsabilização de pessoas


físicas e jurídicas.
Em paralelo, os modelos preditivos tendem a ser ferramentas extremamente úteis
como assistência decisória, com a ressalva de que sejam corretamente manejados no com-
bate às falhas de mercado e de governo.

(IV)
O Direito Administrativo terá que sobrepassar o modelo de contraposição polarizada,
rígida e hostil entre a Administração Pública e a sociedade civil, entendendo a solução con-
sensual de conflitos como prioritária. A judicialização passa a ser alternativa última. Tudo que
se revelar passível de ser pacificado no âmbito da Administração Pública, via conciliação,
negociação, mediação e outras técnicas de resolução dos conflitos goza de primazia.
Mais: os agentes públicos, que participarem de autocomposições, só responderão
por dolo ou fraude.2 O Direito Administrativo, noutros termos, deve evoluir para ser, sempre
que possível, não-adversarial, ultrapassando a (i)lógica do inimigo e aprendendo a construir
soluções vantajosas para todos, em autênticos jogos “win-win”, em lugar de onerososos
jogos de soma zero.3

(V)
O Direito Administrativo terá de ser reorientado pela consecução mensurada dos ob-
jetivos do desenvolvimento sustentável. Implica dizer que uma licitação pública que não ob-
servar critérios multidimensionais de sustentabilidade encontrar-se-á no campo da ilicitude,
não suscetível de mera convalidação. Sem exagero, todas as categorias administrativistas
terão que ser ressignificadas sob a coloração do princípio constitucional da sustentabilidade
(CF, arts. 225, 170, VI e 3º),4 de molde a injetar a justiça intergeracional no cerne das
relações de administração.

1
Vide, para aprofundar: FREITAS, Juarez. Direito administrativo e inteligência artificial. Interesse Público, ano 21,
n. 114, 2019. Vide, para deixar nítida a produção de verdadeiros atos administrativos, a decisão italiana proferida
pelo Consiglio di Stato, Sentença n.2270, publicada em 8 de abril de 2019.
2
Vide Lei 13.140/2015, art. 40: Os servidores e empregados públicos que participarem do processo de com-
posição extrajudicial do conflito, somente poderão ser responsabilizados civil, administrativa ou criminalmente
quando, mediante dolo ou fraude, receberem qualquer vantagem patrimonial indevida, permitirem ou facilitarem
sua recepção por terceiro, ou para tal concorrerem.
3
Vide, para aprofundar: FREITAS, Juarez. Direito administrativo não-adversarial: a prioritária solução consensual de
conflitos. Revista de Direito Administrativo, n. 276, 2017.
4
Vide, para aprofundar: FREITAS, Juarez. Sustentabilidade: direito ao futuro. 4. ed. Belo Horizonte: Fórum, 2019.
(Especialmente o Capítulo 9).
Direito administrativo e desenvolvimento 217

(VI)
O Direito Administrativo terá que exigir que a motivação explícita, clara e congruente5
seja acompanhada de avaliação preferencialmente “ex ante” e sistemática dos impactos das
decisões administrativas de repercussões sistêmicas, não apenas de cunho regulatório.6
Não se postula tão-somente a motivação consequencial, por mais importante que seja, mas
o exame integrado, estratégico e ecossistêmico de custos e benefícios, diretos e indiretos7
(sociais, ambientais e econômicos) dos atos, procedimentos e contratos administrativos,
sem o cometimento de estridentes falhas de análise custo-benefício, desvios que têm pro-
vocado danos cumulativos e irreparáveis. Para ilustrar, o custo social do carbono precisa ser
considerado em qualquer análise prévia ou de resultados das decisões administrativas. Tal
motivação, certamente, integra o projeto do Direito Administrativo baseado em evidências.

(VII)
O Direito Administrativo terá que ser magnetizado pela cooperação, que representa a
postura compatível com a eficiência, a eficácia e a produtividade sistêmica. Nesse sentido,
os agentes estatais são chamados a desenvolver “soft skills”, tais como empatia, simpatia
e inteligência coletiva para um exitoso trabalho em rede. Ao mesmo tempo, a avaliação de
desempenho não pode, sob hipótese alguma, ser contaminada pela cultura de ameaça e
terror, porque deve – com o suporte nas ciências comportamentais – primar pelo incentivo
como tônica.

(VIII)
O Direito Administrativo terá que edificar o sistema de confiança regulatória intertem-
poral, apto a se manter hígido após a passagem dos governantes da hora. Essa confiança
engendrará a deferência legítima e atrairá gravitacionalmente os vitais investimentos produ-
tivos de longo prazo, notamente em infraestrutura. O Estado-Administração tem que estar

5
Lei 9.784/99, art. 50.
6
Vide, sobre avaliações de impactos regulatórios, Lei 13.848/2019, art. 6º: A adoção e as propostas de altera-
ção de atos normativos de interesse geral dos agentes econômicos, consumidores ou usuários dos serviços
prestados serão, nos termos de regulamento, precedidas da realização de Análise de Impacto Regulatório (AIR),
que conterá informações e dados sobre os possíveis efeitos do ato normativo. Vide, ainda, Lei 13.874/2019, art.
5º: As propostas de edição e de alteração de atos normativos de interesse geral de agentes econômicos ou de
usuários dos serviços prestados, editadas por órgão ou entidade da administração pública federal, incluídas as
autarquias e as fundações públicas, serão precedidas da realização de análise de impacto regulatório, que conterá
informações e dados sobre os possíveis efeitos do ato normativo para verificar a razoabilidade do seu impacto
econômico.
7
Vide, nessa linha, art. 4º, da Lei 12.462/2011: Nas licitações e contratos de que trata esta Lei serão observadas
as seguintes diretrizes: [...] III - busca da maior vantagem para a administração pública, considerando custos e
benefícios, diretos e indiretos, de natureza econômica, social ou ambiental, inclusive os relativos à manutenção,
ao desfazimento de bens e resíduos, ao índice de depreciação econômica e a outros fatores de igual relevância;
218 Juarez Freitas

preordenado a servir confiavelmente à obtenção do bem-estar e da equidade intergeracional,


não funcionando como máquina solipsista e encarcerada em si mesma.
A interdependência público-privada é, nesse quadro, condição “sine qua non” para
a tutela efetiva do direito fundamental à boa administração pública e ao desenvolvimento
duradouro. A presunção de boa-fé dos particulares e a presunção de boa-fé do agente pú-
blico completam-se sinergicamente, forçando a revisão global das presunções do Direito
Administrativo.

(IX)
O Direito Administrativo terá que ser proativo e associado a prestações de qualidade,
em tempo útil. Não se pode, a propósito, acolher, sem modulação, a alternativa temerária de
hipertrofiar o silêncio administrativo com efeitos positivos. Em vez disso, convém homena-
gear o princípio da legalidade: somente atendidos todos os requisitos legais pelo particular
(“apresentados todos os elementos necessários à instrução do processo”), é que correrá
o prazo para a eventual incidência do silêncio administrativo positivo.8 Mais do que nunca,
impõe-se uma exegese ponderada que harmonize direitos e deveres fundamentais, até para
evitar as tragédias decorrentes da ausência de cuidados basilares de precaução e prevenção,
no desempenho de atividades econômicas e regulatórias.

(X)
O Direito Administrativo terá que servir ao desiderato da proporcionalidade como
vedação simultânea de excessos e omissões. A par disso, o administrativista terá que inserir,
mais intensamente, nas suas reflexões e práticas, uma rede de princípios hoje seriamente
deficitários, tais como legitimidade,9 economicidade e eficácia,10 impedindo que o teste de
proporcionalidade sirva para naturalizar a decisão insustentável. Assim, uma tábua principio-
lógica mais robusta11será valiosa para neutralizar os interesses sectários e a discricionarie-
dade que abriga irracionalismos lesivos, por definição.

8
Esta é a melhor intelecção sistemática da Lei 13.874/2019, art. 3º, IX:  São direitos de toda pessoa, natural ou
jurídica, essenciais para o desenvolvimento e o crescimento econômicos do País, observado o disposto no pa-
rágrafo único do art. 170 da Constituição Federal:[...] IX - ter a garantia de que, nas solicitações de atos públicos
de liberação da atividade econômica que se sujeitam ao disposto nesta Lei, apresentados todos os elementos
necessários à instrução do processo, o particular será cientificado expressa e imediatamente do prazo máximo
estipulado para a análise de seu pedido e de que, transcorrido o prazo fixado, o silêncio da autoridade competente
importará aprovação tácita para todos os efeitos, ressalvadas as hipóteses expressamente vedadas em lei;
9
CF, art. 70.
10
CF, art. 74.
11
Vide, para aprofundar: FREITAS, Juarez. Direito fundamental à boa administração pública. 3. ed. São Paulo: Ma-
lheiros, 2014. E, ainda: FREITAS, Juarez. O controle dos atos administrativos e os princípios fundamentais. 5.
ed.,= São Paulo: Malheiros, 2013. (Especialmente o Capítulo 1 sobre princípios constitucionais regentes das
relações de administração).
Direito administrativo e desenvolvimento 219

3 CONSIDERAÇÕES FINAIS

Com o suporte dessa mirada prospectiva, no concernente aos possíveis rumos ben-
fazejos do Direito Administrativo, a exposição recomenda tópicos para pesquisas em rede.
Espera-se que a abordagem caia em solo fértil, pois se afigura rigorosamente incontornável
o poder-dever de oferecer o legado de novas e melhores categorias de Direito Administrativo
para atender às justas demandas das presentes e futuras gerações.

REFERÊNCIAS

FREITAS, Juarez. O controle dos atos administrativos e os princípios fundamentais. 5. ed. São Paulo:
Malheiros, 2013.

FREITAS, Juarez. Direito fundamental à boa administração pública. 3. ed. São Paulo: Malheiros, 2014.

FREITAS, Juarez. Direito administrativo não-adversarial: a prioritária solução consensual de conflitos.


Revista de Direito Administrativo, n. 276, 2017.

FREITAS, Juarez. Direito administrativo e inteligência artificial. Interesse Público, ano 21, n. 114, 2019.

FREITAS, Juarez. Sustentabilidade: direito ao futuro. 4. ed. Belo Horizonte: Fórum, 2019.
A atualidade do debate sobre políticas urbanas
para a promoção do direito à cidade

Lígia Maria Silva Melo de Casimiro


Doutora em Direito Econômico e Social (PUC-PR)
Mestre em Direito do Estado (PUC-SP)
Professora do Departamento de Direito Público (UFC)

SUMÁRIO: 1 Introdução; 2 Concebendo o direito à cidade: políticas públicas e serviços urbanos;


3 A atualidade do direito à cidade como fundamento das ações administrativas; 4 Considerações finais:
em defesa da atualidade do tema na agenda pública nacional; Referências.

1 INTRODUÇÃO

A urbanização resulta de uma atividade pública que tem por base um conjunto de
competências variadas em um sistema próprio de decisões, as quais tem o poder de resolver
e gerar diversas situações passíveis de melhorar e(ou) piorar a vida na cidade, concomitan-
temente. Sob a perspectiva delineada no pacto constitucional, a urbanização pode promover
o direito à cidade, devendo ser promovida por meio de um conjunto de ações públicas para
organizar, estruturar e regular os espaços habitáveis, tendo no planejamento urbano social e
participativo a sua principal premissa.
A capacidade de transformar o espaço urbano e seus limites correspondentes de-
pende de intervenção e autorização pública, embasada por legislação geral e específica, o
que nem sempre é de fácil precisão, levando ao entendimento de que não existe um único
método racional de optimização das ações públicas para garantir a promoção do direito à
cidade, promover desenvolvimento urbano, já que toda decisão em matéria de urbanização
traz vantagens e inconvenientes a serem repartidos entre os diversos segmentos sociais,
individual e coletivamente.
Sob tal perspectiva, esse trabalho defende que o núcleo central da agenda para o
desenvolvimento envolva diretamente a promoção do direito à cidade por meio de políticas
públicas e ações desempenhadas pela Administração Pública, representando um novo e
atual paradigma constituído por princípios, ações, metas, indicadores e formas de monitora-
mento destinados a (re) desenhar cidades habitáveis de forma equânime, justa, democrática
e sustentável.
222 Lígia Maria Silva Melo de Casimiro

2 CONCEBENDO O DIREITO À CIDADE: POLÍTICAS


PÚBLICAS E SERVIÇOS URBANOS

O Estado social brasileiro tem como um dos pontos de partida para o desenvolvi-
mento, delineado no texto constitucional, a proposta de um urbanismo social e democrático
a ser considerado pelos agentes políticos, sociais e econômicos como referência na con-
dução de políticas públicas. Para um balizamento e controle adequado às características
locais e regionais com a observação de um regime jurídico próprio, deve estar compreendido
que inclusão e integração social e econômica, deveres constitucionais públicos, se opõem
à exclusão social, o que obriga ao planejamento estratégico1 municipal urbano propor e
estruturar a promoção de condições de habitabilidade adequadas, infraestrutura e serviços
públicos compatíveis com a população e demandas existentes.
As políticas públicas são programas de ações públicas e fomento para posturas
privadas, consistindo em decisões formuladas no âmbito da atividade de governo, podendo
ter maior ou menor amplitude e impacto social e econômico a depender da configuração
institucional da Administração Municipal.2 No caso brasileiro, tem-se um rol extenso de de-
veres públicos para promover o desenvolvimento urbano com a definição jurídica de Municí-
pio arquitetada dentro de princípios de Democracia Social e Republicana, substanciada pela
gama de programas e deveres de proteção e promoção dos direitos fundamentais, os quais
devem ser exercidos especialmente em território urbano, dada a relação da cidade com o
desenvolvimento.
O alcance de condições satisfatórias e adequadas ao ser humano, permitindo-lhe
ascender ao bem-estar e à vida digna está vinculado à vida urbana sustentável, já que os
dados sobre a urbanização mundial prospectam que o mundo do futuro é um mundo urba-
nizado.3 Viver em núcleos urbanos já foi incorporado como um direito e parece ser inevitável
afastar-se de um debate coletivo sobre que tipo de cidade atende às necessidades huma-
nas, em especial dos mais vulneráveis. Para tanto, pensar cidades a partir de condições de
habitabilidade adequadas e equânimes, infraestrutura e mobilidade, controle dos recursos
ambientais em estruturas sustentáveis para prestação de serviços públicos deve ser objetivo
dos administradores públicos do século XXI, pois é condição de realização da cidadania.

1
NASCIMENTO NETO, José Osório do. Política pública como estratégia de controle socioambiental no Estado De-
mocrático de Direito. In: MOTTA, Fabrício; GABRADO, Emerson (Coords.). Limites do controle da Administração
Pública no Estado de Direito. Curitiba: Íthala, 2019. p. 182.
2
VALLE, Vanice Regina Lírio do. Políticas públicas, direitos fundamentais e controle judicial. Belo Horizonte: Fórum,
2009. p. 36.
3
UN-HABITAT. Urbanization and development: emerging futures. World cities report 2016. Nairobi: UN-Habitat,
2016. Disponível em: http://cdn.plataformaurbana.cl/wp-content/uploads/2016/06/wcr-full-report-2016.pdf.
Acesso em: 20 jan. 2020. p. 7-8.
A atualidade do debate sobre políticas urbanas... 223

No entanto, grande parte da população brasileira ainda vive, de forma geral, como se
estivesse no século XIX. Em cidades com baixo índice de infraestrutura urbana relacionada
à promoção da saúde, inacessibilidade de moradias adequadas à condição humana digna,
com acesso à circulação cerceado indiretamente pelo alto custo do transporte público, com
grandes distâncias a serem percorridas, alimentação industrializada de má qualidade, parco
abastecimento de água potável, serviços públicos de educação, saúde, iluminação, limpeza
urbana insuficientes, e muitas vezes inexistentes, retroalimentando a precarização da vida
nos centros urbanos.
Todos as atividades, serviços públicos e bens que podem garantir à população me-
lhoria na sua condição de vida estão relacionadas tanto à capacidade do poder público de
ofertá-los quanto à possibilidade da população de acessá-los. De tal forma que a agenda
pública para o desenvolvimento urbano envolve a atividade administrativa de planejar, esta-
belecer planos, elaborar políticas públicas e executar ações vinculadas aos objetivos consti-
tucionais estabelecidos, que não se afastam da proteção e promoção do acesso à vida digna
para o cidadão e a cidadã comuns.4
A (re) construção de cidades funcionais e coerentes no Brasil passa por enfrentar a
relação conflitiva entre quem produz e garante transformações nos espaços urbanos e quem
pode ou não se apropriar deles, definidos pelo poder econômico que domina, inclusive, a
estrutura administrativa estatal. A vida contemporânea se realiza no território urbano, em um
ambiente de comportamentos, condições e necessidades múltiplas, solicitando uma capaci-
dade dialógica de tenso enfrentamento com o capital, exercida constantemente.5
É importante promover o debate sobre a definição da funcionalidade sócio urba-
na coerente afinada com a defesa do direito à cidade sustentável.6 Distingue-se da noção
simples de ordenação territorial e da urbanização, quando tratadas de forma isolada, para
reconhecer que a cidade é um ambiente coletivo que pertence a todos e todas, habitantes e
transeuntes que têm o direito de encontrar nesse espaço as condições para realizarem-se
política, econômica, social e individualmente.7

4
SCHIER, Adriana da Costa Ricardo; FLORES, Pedro Henrique Brunken. Que modelo de Estado brasileiro? Para
além do liberalismo e a busca pela efetividade dos direitos fundamentais sociais. In: SANTANO, Ana Cláudia;
LORENZETTO, Bruno Meneses; GABARDO, Emerson. Direitos fundamentais na Nova Ordem Mundial. Curitiba:
Íthala, 2018. p. 26-30.
5
MOREIRA, Eduardo. Desigualdade & caminhos para uma sociedade mais justa. 3. ed. Rio de Janeiro: Civilização
Brasileira, 2019. p. 77-79.
6
Aqui, uma definição de cidade sustentável que se encontra com a funcionalidade: “[...] cidade sustentável é o
assentamento humano constituído por uma sociedade com consciência de seu papel de agente transformador
dos espaços e cuja relação não se dá pela razão natureza-objeto e sim por uma ação sinérgica entre prudência
ecológica, eficiência energética e equidade socioespacial.” ROMERO, Marta A. B. Urbanismo sustentável no Brasil
e a construção de cidades para o novo milênio. S.d. Disponível em: https://www.usp.br/nutau/sem_nutau_2010/
perspectivas/romero_marta.pdf. Acesso em: 20 jan. 2020.
7
REBOLLO, Luis Martín. El planeamiento municipal: perspectiva general. In: REBOLLO, Luis Martín; BOLADO, Ro-
berto O. Bustillo (Dir.). Fundamentos de derecho urbanístico – Tomo I. Pamplona: Thomson Reuters, 2009. p.
267-268.
224 Lígia Maria Silva Melo de Casimiro

3 A ATUALIDADE DO DIREITO À CIDADE COMO


FUNDAMENTO DAS AÇÕES ADMINISTRATIVAS

As formas de ocupar e usar o espaço urbano compreendem o exercício dos direitos


fundamentais, que por sua vez devem ser protegidos e promovidos pelo poder público, que
o faz por meio da prestação de serviços e execução de obras. Embora a reflexão sobre
a construção da cidade, em constante mutação, não tenha marcado suficientemente os
estudos jurídicos sobre o tema, a prescrição normativa do direito à cidade é atual e tem
mobilizado debates entorno do seu significado jurídico. O ponto de partida para a construção
do conceito é uma reivindicação coletiva do espaço urbano, que realize direitos e promova
desenvolvimento segundo as aspirações e necessidades de seus habitantes.
No cenário internacional, o direito à cidade ganha dimensão a partir das ideias de
Henry Lefebvre, sociólogo que cria o termo defendendo uma dimensão simbólica e filosófica
da mesma, tendo em conta o impacto negativo sofrido por cidades em países de economia
capitalista, com a conversão do território urbano em mercadoria a serviço exclusivo dos
interesses da acumulação de capital.
Para Lefebvre, como para Milton Santos, o espaço e a cidade são núcleos centrais
catalisadores das contradições sociais. Partindo da crítica ao modo de produção capitalista,
identifica a dinâmica transformadora do espaço urbano, construindo cidades geradoras de
conflitos, pois reprodução das relações socioeconômicas vigentes, capazes de expurgar
uma parcela dos habitantes do acesso à cidade. A cidade, nessa visão, portanto, conjuga
duas vertentes importantes: uma como obra coletiva, dotada de valor de uso, e como pro-
duto, fornida do valor de troca. 8
Discorrendo sobre ser a cidade uma projeção da sociedade sobre o solo, o soció-
logo define o direito à cidade como uma forma superior de direito, o direito à liberdade,9 à
individualização e à socialização, à diferença, à participação e apropriação da obra “cidade”,
vivendo e criando os espaços, fundada na produção social do espaço urbano.10
Sob uma visão complementar à concepção do direito à cidade, o geógrafo David
Harvey provoca o debate defendendo que seria mais do que a liberdade de acessar os re-

8
LEFBVRE, Henri. O direito à cidade. Trad. Rubens Eduardo Frias. São Paulo: Centauro, 2001. p. 105.
9
BLANCHET, Luiz Alberto. O princípio constitucional da reciprocidade como pressuposto do desenvolvimento sus-
tentável. Constituição, Economia e Desenvolvimento: Revista da Academia Brasileira de Direito Constitucional,
Curitiba, n. 3, p. 32-55, ago./dez. 2010. p. 33-35. Disponível em: http://www.abdconst.com.br/revista4/blanchet.
Acesso em: 10 dez. 2019.
10
MAKRYGIANNI, Vasiliki; TSAVDAROGLOU, Charalampos. El derecho contra la ciudad. In: MATHIVET, Charlotte
(Coord.). Develando el derecho a la ciudad: representaciones, usos e instrumentalización del derecho a la ciudad.
Paris: Ritimo, 2016. p. 63.
A atualidade do debate sobre políticas urbanas... 225

cursos urbanos11 que possibilitam a mudança de condição individual e coletiva, trata-se do


direito de viver e moldar a condição de vida nas áreas urbanas, como protagonistas autôno-
mos e interligados.
A cidade é uma associação de pessoas que se relacionam em função de seus in-
teresses difusos, coletivos, subjetivos, em busca incessante pela igualdade material e pelo
direito de viver bem.12 Sendo assim, a apropriação do espaço urbano conduz à sua concep-
ção, organização e utilização em um território de ocupação definitivamente heterogênea que,
segundo o filósofo, caberia ser exercido como um direito.13
O tema “cidade” tem sido analisado pelas mais variadas ciências, para além da
arquitetura e urbanismo, economia, entre outras.14 No âmbito do Direito contemporâneo
brasileiro, ainda que sua regulação esteja presente expressamente no Estatuto da Cidade,
desde 2001, a defesa do direito à cidade ainda é uma árdua tarefa na qual, dentre outras
questões, reflete a dificuldade de mensurar qualitativa e quantitativamente o objeto de inter-
venção do poder público. Da ausência de diálogo entre as áreas das ciências sociais resulta
um vazio de importância teórica e prática para compor seu conteúdo e, portanto, identificar
que o direito à cidade é o direito de produzir e ter acesso à possibilidade de desenvolver-se
no território urbano. Dentro do direito à cidade há, indubitavelmente, o debate sobre o valor
e o uso das coisas, dos espaços, dos territórios, dos mobiliários, sua administração, sua
regulação, sua função.
Ao situar um debate sobre a Administração Pública e políticas públicas para o direito
à cidade exsurgem as assimetrias no acesso a direitos, bens, recursos e meios em geral,
estabelecidas em um processo que exige a análise sobre a forma de ocupação do solo urba-
no, e por outro, a forma de organização espacial que, no Brasil, reflete e reforça a tendência
histórica de concentração de terra e renda, segregação social e administrativa, alimentando
a inacessibilidade à infraestrutura e aos serviços públicos que podem promover vida digna.
A cidade como direito tem vários significados e conteúdos – sociológicos, filosó-
ficos, econômicos –, o que demonstra a complexidade do processo de urbanização, da
produção e apropriação do espaço, da reprodução ampliada do capital, das desigualda-
des sociais, econômicas e sócio espaciais. Dimensionar tal direito envolve compreender as
concepções materiais, políticas, simbólicas além das jurídicas, para garantir-lhe definição.
E para tanto, não é possível olvidar que, pensar a questão urbana envolve refletir sobre a

11
HARVEY, David. A liberdade da cidade. In: MARICATO, Ermínia. Cidades rebeldes: passe livre e as manifestações
que tomam as ruas do Brasil. São Paulo: Boitempo, 2013. p. 28.
12
ELIAS, Norbert. A sociedade dos indivíduos. SCHROTER, Michael (Org.). Trad. Vera Ribeiro. Rio de Janeiro: Jorge
Zahar, 1994. p. 72-75.
13
LEFEBVRE, Henri. O direito à cidade. Op. cit., p. 43.
14
Para Lefebvre, tais ciências tem um enorme peso na compreensão da questão urbana, mas nenhuma tem mais
do que a História. Ainda, com a fragmentação da análise para fins de compreensão do tema, a contribuição veio
na forma da criação de uma ciência da cidade. LEFEBVRE, Henri. O direito à cidade. Op. cit., p. 42-44.
226 Lígia Maria Silva Melo de Casimiro

complexidade de um território ocupado por pessoas dos mais variados interesses e necessi-
dades, destinatárias dos mesmos direitos formais, carentes do atendimento que demandam.
Para ser caracterizado, o direito à cidade no ordenamento jurídico brasileiro, é pre-
ciso analisar o conjunto normativo que define direitos e deveres no território urbano, a partir
da delimitação espacial, lugar de concentração da população urbana, produção, circulação,
lugar de consumo de bens e serviços e também de atuação e decisão política. O que Lefeb-
vre defendeu provocativamente na perspectiva filosófica e sociológica sobre o que é o direito
à cidade, no Brasil a Constituição de 1988 substancia com comandos objetivos que indicam
o valor de bem comum e sua configuração com um direito difuso, traduzível em pretensões
coletivas e individuais.15
Se a legislação brasileira prevê textualmente o direito à cidade sustentável como o
direito à terra urbana, à moradia, ao saneamento ambiental, à infraestrutura urbana, ao trans-
porte e aos serviços públicos, ao trabalho e ao lazer para as presentes e futuras gerações,
tem-se para sua realização a definição de competências materiais próprias dos entes admi-
nistrativos.16 As previsões se encontram no texto da lei 10.257/2001, denominada Estatuto
da Cidade, refletindo as diretrizes e comandos constitucionais presentes, em especial, nos
artigos 182 e 183 da Constituição Federal, bem como nas leis sobre Serviços Públicos (Lei
8987/1995), Licitações e Contratos (Lei 8.666/1993 e atualizações), Parcerias Público-Pri-
vadas (Lei 11.079/2004), Regime Diferenciado de Contratações – RDC (12.462/2011), Ser-
viços de Saneamento Básico ( Lei 11.445/2007 e atualizações) dentre outras, posicionado o
Estado brasileiro como agente promotor do desenvolvimento humano.17

15
HACHEM, Daniel Wunder. Princípio constitucional da supremacia do interesse público. Belo Horizonte: Fórum,
2011. p. 378.
16
BRASIL. Lei 10.257, de 10 de julho de 2001. Regulamenta os artigos 182 e 183 da Constituição Federal, es-
tabelece diretrizes gerais da política urbana e dá outras providências. Brasília: Presidência da República, 2001.
Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/leis_2001/l10257.htm. Acesso em: 10 dez. 2019.
17
“Art. 182. A política de desenvolvimento urbano, executada pelo Poder Público municipal, conforme diretrizes
gerais fixadas em lei, tem por objetivo ordenar o pleno desenvolvimento das funções sociais da cidade e garantir
o bem-estar de seus habitantes. § 1º O plano diretor, aprovado pela Câmara Municipal, obrigatório para cidades
com mais de vinte mil habitantes, é o instrumento básico da política de desenvolvimento e de expansão urbana. §
2º A propriedade urbana cumpre sua função social quando atende às exigências fundamentais de ordenação da
cidade expressas no plano diretor. § 3º As desapropriações de imóveis urbanos serão feitas com prévia e justa
indenização em dinheiro. § 4º É facultado ao Poder Público municipal, mediante lei específica para área incluída
no plano diretor, exigir, nos termos da lei federal, do proprietário do solo urbano não edificado, subutilizado ou
não utilizado, que promova seu adequado aproveitamento, sob pena, sucessivamente, de: I - parcelamento ou
edificação compulsórios; II - imposto sobre a propriedade predial e territorial urbana progressivo no tempo; III -
desapropriação com pagamento mediante títulos da dívida pública de emissão previamente aprovada pelo Senado
Federal, com prazo de resgate de até dez anos, em parcelas anuais, iguais e sucessivas, assegurados o valor real
da indenização e os juros legais. Art. 183. Aquele que possuir como sua área urbana de até duzentos e cinqüenta
metros quadrados, por cinco anos, ininterruptamente e sem oposição, utilizando-a para sua moradia ou de sua
família, adquirir-lhe-á o domínio, desde que não seja proprietário de outro imóvel urbano ou rural. § 1º O título
de domínio e a concessão de uso serão conferidos ao homem ou à mulher, ou a ambos, independentemente do
estado civil. § 2º Esse direito não será reconhecido ao mesmo possuidor mais de uma vez. § 3º Os imóveis pú-
blicos não serão adquiridos por usucapião”. BRASIL. [Constituição (1988)]. Constituição da República Federativa
do Brasil de 1988. Brasília: Presidência da República, 1988. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/
constituicao/constituicao.htm. Acesso em: 3 jul. 2020.
A atualidade do debate sobre políticas urbanas... 227

O adequado desenvolvimento, reflexo da materialização do direito à cidade, resulta de


um processo que se delineia, em especial, no Município – território que agrega zona urbana e
zona rural. O Estatuto da Cidade, por sua vez, determina os institutos jurídicos próprios para
a condução do ordenamento territorial e oferta de serviços, aponta para a necessidade de
definições apropriadas à competência municipal e prevê sanções para uma correspondente
violação das regras estabelecidas. Tal modelo deve ser construído e aprovado no âmbito de
uma gestão democrática do território da cidade.
A coerência normativa indica a importância e o valor dado à questão urbana, definin-
do o uso e ocupação da terra urbana, a planificação do espaço para garantir desenvolvimento
humano sustentável, a partir do principal instrumento de política urbana, o Plano Diretor a ser
elaborado em parceria com a população e aprovado como lei municipal.
Desde os princípios e objetivos fundamentais constitucionais indicando diretrizes a
serem encaminhadas no sentido da proteção à cidadania e promoção do desenvolvimento
humano até as legislações sobre usos imobiliários, intervenções urbanísticas para obras e
serviços públicos, existe todo um plexo de comandos provedores da funcionalidade da cida-
de. Para a Administração Pública, exercer suas competências em zonas urbanas é promover
o acesso ao direito à cidade para todos e todas.
Os comandos de matiz urbanístico não podem ser ignorados pelo poder público,
tendo em vista o dever intrínseco de proteger a dignidade humana e promover o bem comum.
A cidade é contemporaneamente e como já demonstrado, o lócus onde as necessidades co-
letivas e individuais são providas, é o próprio bem comum onde a concretização dos direitos
fundamentais ganha forma.
Na perspectiva de avançar na configuração do direito à cidade, deve-se ter por base
a descrição constitucional sobre o comportamento estatal de promover direitos, sem perder
de vista as caraterísticas territoriais de um país de urbanização imponderadamente desigual,
disparidades socioeconômicas, fragmentação e conflitos territoriais. Na atualidade, o caráter
democrático de um regime estatal pode ser distinguido de acordo com o usufruto das liber-
dades urbanas, com o desenho da cidade e seu formato de ocupação.18 Uma cidade inóspi-
ta e desigual é ambiente para a inacessibilidade agressiva aos direitos fundamentais que não
consegue mais se justificar, expondo formalmente não somente a ausência de eficiência e
compromisso, como a desobediência aos deveres de boa gestão pública.
No Brasil, à identificação da municipalidade e do interesse local no tocante à res-
ponsabilidade sobre a questão urbana, somaram-se definições ampliativas da previsão
constitucional sobre regiões metropolitanas, com a aprovação do Estatuto da Metrópole –
Lei n. 13089/2015 –, acompanhando, na perspectiva de um país em desenvolvimento, as

18
LEFBVRE, Henri. O direito à cidade. Op. cit., p. 99.
228 Lígia Maria Silva Melo de Casimiro

exigências de um cenário global de urbanização acelerada.19 Com esse cenário, que não é
recente na dinâmica urbana brasileira, os processos de elaboração de políticas públicas para
o desenvolvimento urbano não podem se furtar a prever a coordenação de meios adequados
à realização de ações interventivas nas cidades, sob uma perspectiva regional, nacional e
até global, definindo comportamentos públicos e privados que contribuam para o desenvol-
vimento humano nas cidades.20
O reflexo das relações sociais no espaço urbano impõe um alto custo para a modifi-
cação da realidade citadina, no entanto, não se pode ignorar a presença do direito à cidade
como um norteador das funções estatais e dos comportamentos pelo uso da propriedade
privada, como se fora somente uma “apropriação normativa-institucional” carente de subs-
trato formal principiológico, definidor de um dever funcional social.21
De acordo com a legislação brasileira atual, os serviços e obras públicas resultam
de contratos firmados pelo poder público e devem seguir, além dos parâmetros de forma, o
conteúdo do planejamento urbano que envolve a identificação das demandas da população,
o número de pessoas a serem atendidas, áreas com densidade demográfica carecedoras de
infraestrutura, investimento e proteção às áreas ambientais, oferta de mobilidade por meio
de diversos modais, dentre outros. O volume de intervenções públicas tem ligação direta
com o número de habitantes, as indicações de demanda, bem como com o orçamento indi-
cado. Tais informações são coletadas e descritas a partir de um processo de planejamento
municipal que se apresenta sob a forma do Plano Diretor, instrumento jurídico que tem como
cerne o levantamento de informações de toda ordem, sobre o Município, com a participação
da população como legitimadora de sua elaboração.
O direito à cidade aponta ainda para a importância do acesso e da participação efeti-
va da população urbana nos processos de decisão sobre a gestão da cidade, feitos mediante
políticas públicas de planejamento, planificações e atos materiais. Nenhum dos elementos
citados consegue promover eficiência isoladamente sem coordenação, transparência e diá-
logo. A participação dos habitantes concede legitimidade, eficácia e possibilidade maior de
efetividade aos modos de intervenção urbana.
Os mecanismos de atuação urbanística variam por seu caráter estruturante e execu-
tório. O protagonismo popular na (re) construção dos espaços, bem como a ocupação do

19
KLINK, Jeroen. A reestruturação produtivo-territorial e a emergência de uma nova agenda metropolitana: o pano-
rama internacional e as perspectivas para o caso brasileiro. In: KLINK, Jeroen (Org.). Governança das metrópoles:
conceitos, experiências e perspectivas. São Paulo: Annablume, 2010. p. 7-13.
20
CASIMIRO, Lígia Maria Silva Melo de. El derecho a la ciudad en el Estado Brasileño: ¿qué nos falta para Garantizar-
lo? In: BRAVO, Alvaro Sanchez; CASIMIRO, Lígia Maria Silva Melo de; GABARDO, Emerson (Eds.). Estado social y
derechos fundamentales en tiempos de retrocesso. Sevilla: Punto Rojo Libros, 2019. p. 162.
21
SCHIAVO, Ester; GELFUSO, Alejandro; VERA, Paula. El derecho a la ciudad. Una mirada desde América La-
tina. Cad. Metrop., São Paulo, v. 19, n. 38, p. 299-312, jan./abr. 2017. p. 300. Disponível em: http://dx.doi.
org/10.1590/2236-9996.2017-3812. Acesso em: 10 dez. 2019.
A atualidade do debate sobre políticas urbanas... 229

território de maneira a atender às demandas dos segmentos sociais, satisfazendo necessi-


dades e aspirações sempre foi a tônica da dialética urbana concebendo as mais importantes
legislações sobre o tema, dentre elas o Estatuto da Cidade – Lei 10.257/2001.22
Analisa-se que o comando normativo para a participação do cidadão permite um
controle garantidor de que o direito difuso à cidade, a ser promovido com a sua funciona-
lidade, possa ser efetivado por meio dos demais instrumentos normativos indicados e não
seja utilizado tão somente em favor de alguns, mas de todos que habitam e circulam pelo
espaço citadino. Diante do histórico de adensamento e expansão da malha urbana, com pa-
drões predominantemente desiguais de acesso à terra urbanizada e à moradia adequada,23
toda e qualquer intervenção, pública ou privada, na cidade refletirá no seu valor de uso e na
acessibilidade do cidadão a melhores ou piores condições de vida urbana, o que por si só
justificaria a premente necessidade de garantir sua participação na gestão urbana. 24

4 CONSIDERAÇÕES FINAIS: EM DEFESA DA ATUALIDADE


DO TEMA NA AGENDA PÚBLICA NACIONAL

Para ser precisa na indicação dos aspectos mais significativos que fundamentam o
direito à cidade se impõem a necessidade de modificação da desigualdade social e econô-
mica. Trata-se, em específico, de debruçar-se sobre os direitos urbanos com um compor-
tamento público promotor de um conjunto de possibilidades de circulação livre e equânime,
de pessoas e bens, acesso à habitação, serviços de educação, à cultura, lazer, serviços de
abastecimento de água potável, limpeza urbana, gerenciamento de resíduos, todos, opor-
tunidades de capacitação, trabalho e renda, para além de serviços públicos fundamentais,
pois os mesmos só se configuram em condições de desenvolvimento real dialogando com
a noção de direito à cidade.25
De acordo com a global plataform for the right to the city, rede composta por diver-
sas entidades nacionais e internacionais comprometidas globalmente com as mudanças

22
BRAGA, Andréa Luiza Curralinho; PESSALI, Huáscar Fialho. Direito à cidade, participação social e a política urbana
no contexto brasileiro. Guaju, Matinhos, v. 1, n. 2, p. 3-22, jul./dez. 2015. p. 6. Disponível em: http://revistas.ufpr.
br/guaju/article/view/45033. Acesso em: 15 maio 2017.
23
CARVALHO, Carlos Henrique Ribeiro de. Desafios da mobilidade urbana no Brasil. Texto para discussão n. 2198.
Brasília: Rio de Janeiro: Ipea, 2016. p. 8.
24
PEREIRA, Silvia Regina. Percursos urbanos: mobilidade espacial, acessibilidade e o direito à cidade. 2006. 323
f. Tese (Doutorado) – Faculdade de Ciências e Tecnologia, Universidade Estadual Paulista, Presidente Prudente,
2006. p. 60-75. Disponível em: http://hdl.handle.net/11449/105070. Acesso em: 15 maio 2017.
25
Art. 2º A política urbana tem por objetivo ordenar o pleno desenvolvimento das funções sociais da cidade e da
propriedade urbana, mediante as seguintes diretrizes gerais: I – garantia do direito a cidades sustentáveis, enten-
dido como o direito à terra urbana, à moradia, ao saneamento ambiental, à infraestrutura urbana, ao transporte e
aos serviços públicos, ao trabalho e ao lazer, para as presentes e futuras gerações. BRASIL. Lei 10.257, de 10 de
julho de 2001. Op. cit.
230 Lígia Maria Silva Melo de Casimiro

sociais e com a promoção do direito à cidade,26 os pilares desse direito se sustentam na


possibilidade de distribuição espacialmente justa dos recursos, na participação social, aces-
so democrático a uma agenda política urbana e no respeito à diversidade sociocultural no
território da cidade.
A dimensão dada ao direito à cidade é para além da provocação de Lefebvre sobre
o direito à vida urbana, é ver a cidade como bem comum, que no ordenamento pátrio, tem
sua identificação a partir da gênese do Estado Democrático e Republicano de Direito, com
sua principiologia plasmada em valores sociais de igualdade, equidade, participação, justiça
e solidariedade.
Na perspectiva dos pilares referenciados, a planificação que distribua os recursos
materiais de maneira espacialmente e socialmente justa está vinculada ao dever público de
garantir funcionalidade estrutural ao território urbano. Compete ao Estado o papel marcante
de definidor do uso e ocupação da propriedade imobiliária, provedor de serviços públicos
– precedidos ou não de obras públicas –, com a organização administrativa garantindo in-
fraestrutura para o usufruto da população.27 Essa é uma definição contemporânea e global do
comportamento público institucional para a promoção do direito à cidade.
As intervenções urbanas exigem coerência e adequação com as necessidades da
sociedade, estando a distribuição de recursos materiais previstas na forma de serviços e
obras de saneamento básico, abastecimento de água, limpeza urbana, transportes públicos
e outros modais garantidores da mobilidade, políticas de acesso ao trabalho e a renda. São
ações vinculadas às previsões normativas e que exercem, para o conjunto de membros da
cidade, funções capazes de modificar as condições de vida de toda uma população dado o
seu caráter provedor de melhorias socioeconômicas.
Dessa feita, defende-se:
- que a atuação do poder público tem que estar vinculada à oferta do usufruto do
direito à cidade;
- que os espaços urbanos definidos na cidade devem estar servidos de condições
que gerem benefícios a seus habitantes, com o mobiliário urbano acolhendo os serviços de
educação, saúde, lazer, esportes, incluindo praças e espaços de conservação de ecossiste-
mas e biodiversidade em um território que não é homogêneo;
- que não é suficiente, somente, o suporte concreto às prestações, em sentido am-
plo, dos serviços que amparam a vida social;

26
A Plataforma Global é uma iniciativa de um grupo de organizações nacionais e internacionais que visam contribuir
para a adoção de compromissos, políticas públicas, projetos e ações voltadas ao desenvolvimento de cidades
justas, democráticas, sustentáveis e inclusivas pelas instâncias das Nações Unidas e pelos governos nacionais
e locais. GLOBAL Platform for the Right to the City. S.d. Disponível em: http://www.righttothecityplatform.org.
br/?lang=pt. Acesso em: 10 abr. 2017.
27
CAMARGO, Juliana Werneck de. O IPTU como instrumento de atuação urbanística. Belo Horizonte: Fórum, 2008.
p. 94.
A atualidade do debate sobre políticas urbanas... 231

- que é necessário que a cidade tenha condições de ofertar meios e oportunidades


equitativas de desenvolvimento em um sistema social, econômico e cultural que lhe corres-
ponda. Aqui, as políticas públicas e o planejamento são determinantes, bem como a partici-
pação da iniciativa privada, resgatando a compreensão sobre o capítulo da política urbana,
na Constituição, estar contido no texto sobre a ordem econômica e financeira.
As previsões constitucionais definem o modo de ser de uma determinada economia,
fundada, segundo os artigos 3º e 170 da Constituição, sob os ditames da justiça social,
assegurando a todos uma existência digna. A consagração das diretrizes que propõe a cons-
trução de uma sociedade livre, justa e solidária, bem como a garantia do desenvolvimento
nacional propõe investimentos públicos em um processo contínuo de mudanças que supe-
rem injustiças sociais de repartição, também do produto econômico,28 em uma estrutura
social hoje concentrada em atividades comerciais e industriais, fixadas no território urbano.
A dimensão urbana dos deveres e direitos fundamentais justifica a defesa da existên-
cia real do direito à cidade sustentável. A cidade é o lugar escolhido para afiançar o desenvol-
vimento humano na contemporaneidade, tendo em vista ser, presente e prospectivamente, o
local de maior concentração dos indivíduos em busca por realizações pessoais e coletivas.29
Em sendo funcionalmente acessível, à cidade se atribui, para além das necessidades e pos-
sibilidades de progresso, também o cultivo do corpo e do espírito, a realização da alegria de
viver.30
A cidade tem significado valorativo, identificador e memorial, um organismo vivo no
qual a possibilidade de promover intercâmbios sob tal perspectiva poderá reproduzir soli-
dariedade, possibilidades de resolução racional dos conflitos inerentes à condição de vida
coletiva, bem como a promoção da sustentabilidade com vínculos inclusivos, desde que
estimulados e promovidos. Aqui está a atualidade do tema!

28
GRAU, Eros Roberto. A ordem econômica na Constituição de 1988. São Paulo: Malheiros, 2010. p. 217-229.
29
De acordo com o relatório da ONU, Cidades do Mundo, a perspectiva de que em meados desse século 66% da
população mundial viva em cidades. Ainda, se avalia que a população rural tem crescido lentamente, esperando-
-se uma redução da mesma. Apontou-se ainda um fator de urbanização que envolve as megacidades, que em sua
maior parte está localizada em países em desenvolvimento, tendência que deve continuar já que muitas cidades
de Ásia, América Latina e África devem se tornar megacidades até 2030, segundo o relatório. Atualmente, as
600 principais cidades do mundo têm 1/5 da população mundial e geram 60% do PIB global. As mesmas estão
localizadas principalmente em países desenvolvidos. O relatório apresenta um capítulo sobre a urbanização como
uma força transformativa, no entanto indica que o modelo atual de urbanização é insustentável, sendo necessário
pensar e efetivar “novas formas de colaboração, cooperação, planejamento, governança, financiamento”. ATUAL
modelo de urbanização é insustentável, diz ONU-Habitat em relatório. ONU, maio 2016. Disponível em: https://
nacoesunidas.org/atual-modelo-de-urbanizacao-e-insustentavel-onu-habitat-relatorio/. Acesso em: 10 dez. 2019.
30
CORBUSIER, Le. Planejamento urbano. São Paulo: Perspectiva, 1984.
232 Lígia Maria Silva Melo de Casimiro

REFERÊNCIAS

ATUAL modelo de urbanização é insustentável, diz ONU-Habitat em relatório. ONU, maio 2016. Dispo-
nível em: https://nacoesunidas.org/atual-modelo-de-urbanizacao-e-insustentavel-onu-habitat-relatorio/.
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A aplicabilidade do Código de Processo Civil
no processo administrativo

Manoel Messias Peixinho


Doutor em Teoria do Estado e Direito Constitucional (PUC-RJ)
Professor do Programa de Mestrado (Universidade Candido Mendes)
Professor do Departamento de Direito (PUC-RJ)
Advogado

SUMÁRIO: 1 Introdução; 2 Notas propedêuticas; 2.1 O devido processo legal; 2.2 Forma federativa
de estado e distinção entre leis nacionais e leis federais; 2.3 Aplicação da Lei n. 9784/1999 aos estados
e municípios; 2.4 Integração das lacunas de leis processuais administrativas estaduais e municipais
pela Lei n. 9784/1999; 3 Aplicação suplementar e subsidiária do código de processo civil ao pro-
cesso administrativo; 3.1 Exemplos e comentários acerca da aplicação suplementar e subsidiária do
CPC/2015 no processo administrativo; 3.1.1 Da suspeição e do impedimento; 3.1.2 Das prerrogativas
dos advogados; 3.1.3 Da intimação na forma eletrônica; 4 Considerações finais; Referências.

1 INTRODUÇÃO

O objetivo deste trabalho é analisar de forma objetiva e sumária1 a aplicação do Có-


digo de Processo Civil aos processos administrativos.2 A competência para legislar em ma-
téria de processo administrativo é exclusiva de cada ente federativo em razão da autonomia
administrativa prevista no artigo 18 da Constituição Federal. Porém, a autonomia federativa
idealizada pelo Poder Constituinte originário é desafiada pelas carências materiais e culturais
do sistema federativo brasileiro.
As carências materiais são oriundas da falta de estrutura administrativa ou da incom-
petência institucional dos parlamentos locais para regulamentarem, por lei própria, os seus
estatutos processuais. A carência cultural decorre de um sentimento de inferioridade dos
entes federativos em razão das suas próprias legislações. Há um descaso e desconfiança

1
Um estudo mais completo que coteja a aplicação do NCPC às normas processuais administrativas previstas na
Lei n. 9784/1999 está em fase de conclusão.
2
A expressão “processos administrativos” é utilizada porque existem os processos administrativos federal, esta-
dual, municipal e distrital. O processo administrativo federal se desdobra no processo administrativo geral, regido
pela Lei n. 9784/1999 e nos processos administrativos especiais, regulados por leis específicas, como, por
exemplo, o processo administrativo disciplinar dos servidores públicos federais positivado pela Lei n. 8112/1990.
O NCPC se aplica, como se verá neste trabalho, com as adequações metodológicas específicas, supletiva e
subsidiariamente a todas as espécies de processo administrativa.
236 Manoel Messias Peixinho

pelas leis estaduais e municipais. Assim, são incontáveis os entes federativos que utilizam
legislações federais em matéria de direito administrativo, não obstante tenham leis especifi-
cas sobre a matéria.
A despeito do tema principal exigir uma análise especifica da aplicação do NCPC
aos processos administrativos, entendemos oportuno, metodologicamente, abordar outros
subtemas, quais sejam: (1) a aplicação da Lei n. 9784/1999 aos processos administrativos
dos entes federativos, (2) as diferenças entre leis federais e leis nacionais e (3) as similitudes
e diferenciações entre a aplicação supletiva e a aplicação subsidiária.
Por fim, foi feita uma análise de alguns exemplos de artigos do Código de Processo
Civil que podem ser aplicados supletiva e subsidiariamente ao processo administrativo, sen-
do certo que os paradigmas escolhidos dão uma pequena amostra que há uma premente
necessidade de um estudo mais aprofundado e aproximado do processo civil e do processo
administrativo.
Não foram enfrentados nesta breve reflexão, ainda que reputemos fundamentais, os
entendimentos dos processualistas civis sobre o diálogo entre os dois sistemas processuais.
As limitações temporal e espacial deste trabalho impuseram essa renúncia metodológica. A
escolha da metodologia, destarte, reconhece com honestidade a carência do trabalho, mas
aponta desafios interessantíssimos para os pesquisadores que desejem aprofundar esse
cotejo entre os dois sistemas processuais.
A bibliografia foi utilizada de forma pontual e necessária para descortinar o objeto
deste ensaio.

2 NOTAS PROPEDÊUTICAS

2.1 O devido processo legal

A aplicabilidade do Código de Processo Civil aos processos administrativos3 não é


somente uma necessidade metodológica e pragmática que objetiva sanar as lacunas exis-
tentes no âmbito do direito administrativo. É, antes, sobretudo, uma exigência de garantia
do devido processo legal porque um ordenamento jurídico incompleto e lacunoso,4 que não
responda às garantias fundamentais viola, frontalmente, o princípio do devido processo le-
gal e mais especificamente macula o princípio da segurança jurídica. Um estatuto jurídico
incompleto é inseguro, ineficiente e injusto porque não consegue atender às demandas dos
administrados.

3
Refiro-me a aplicação do NCPC ao processo administrativo federal regido pela Lei n. 9784/1999, às diversas leis
processuais especiais federais e às leis de processo administrativo estaduais, municipais e distrital.
4
Sobre a incompletude num ordenamento jurídico, cf. PEIXINHO, Manoel Messias. A interpretação da Constituição
e os princípios fundamentais. 4. ed. São Paulo: Atlas, 2015. p. 45-49.
A aplicabilidade do Código de Processo Civil no processo administrativo 237

Consagrado pelo artigo 5º, inciso LIV, da Constituição Federal de 1988, o devido
processo legal é uma garantia civilizatória tanto no direito estrangeiro quanto no direito brasi-
leiro. Esse caráter iluminista do devido processo legal se verifica, por exemplo, no artigo 6º,
inciso I, da Convenção Europeia dos Direitos do Homem que estatui o direito a um processo
equitativo, sobretudo, o direito a um processo fundado na celeridade e que seja examinado,
publicamente, por um tribunal independente e imparcial.
Destaque-se que o devido processo legal se estende a todos os processos instau-
rados, independentemente da matéria ou do tribunal pelo qual será processado e julgado.
Nas lições de Paulo Jansen “é preciso que se diga que o princípio do devido processo legal
inicialmente tutelava especialmente o direito processual penal, mas já se expandiu para pro-
cessual civil e até para o administrativo.”.5 A relevância do devido processo legal no direito
constitucional se estende, pragmaticamente, ao direito administrativo em geral e ao processo
administrativo em particular. 6 Neste sentido, a Lei n. 9.784/1999 estabeleceu normas funda-
mentais sobre o processo administrativo no âmbito da Administração Federal direta e indireta
a visar, em especial, à proteção dos direitos dos administrados e ao melhor cumprimento dos
fins da Administração.7
Dentre essas normas de garantias processuais, a aludida Lei Federal consagrou,
além de normas processuais, uma série de princípios e postulados norteadores do processo
administrativo, tais quais a legalidade, a finalidade, a motivação, a razoabilidade, a propor-
cionalidade, a moralidade, a ampla defesa, o contraditório, a segurança jurídica, o interesse
público e a eficiência, bem como a atuação conforme a lei e o Direito, o atendimento aos
fins de interesse geral, a adequação entre meios e fins, a observância das formalidades
essenciais à garantia dos direitos dos administrados, dentre tantos outros.8 Esses princípios
não são suficientes por si sós porque reclamam metodologicamente por leis substanciais
e processuais gerais e especiais que possam regulamentar as diversas materiais que pro-
manam das céleres e cruciais transformações sociais, econômicas e políticas. O discurso
da autossuficiência das teorias principiológicas pode acarretar em insegurança jurídica e
em arbitrárias discricionariedades tanto administrativas quanto jurisdicionais, como bem de-
mostram as patologias principiológicas bem descritas por Lênio Luiz Streck.9

5
JANSEN, Euler Paulo de Moura. O devido processo legal. Jus Navigandi, jan. 2004. Disponível em: https://jus.
com.br/artigos/4749/o-devido-processo-legal. Acesso em: 8 jan. 2020.
6
O devido processo legal, aplicado ao direito administrativo, é um verdadeiro direito de defesa impõe ao Estado a
observação de garantias constitucionais a um processo justo e equilibrado. Sobre o direito de defesa no direito
francês, cf. STIRN, Bernand. Les sources constitutionnelles du droi administratif. 10. ed. Paris: LGDJ, 2019. p.
103-115.
7
Cf. Artigo 1º da Lei n. 9.784/1999.
8
Cf. Artigo 2º da Lei n. 9.784/1999.
9
STRECK, Lenio Luiz. Compreendendo direito. Como o senso comum pode nos enganar. São Paulo: RT, 2014.
p.100-111.
238 Manoel Messias Peixinho

Apesar das garantais constitucionais e legais serem, de fato, indispensáveis à con-


secução do devido processo legal na tutela do interesse público e dos direitos dos adminis-
trados, as tutelas positivadas não são suficientes. Conforme será a seguir demonstrado, a
supracitada Lei de Processo Administrativo contém lacunas e omissões que, caso não sejam
sanadas, são capazes de provocar incalculáveis prejuízos tanto à Administração quanto aos
administrados. Nesse aspecto, observa-se significativa relevância de uma “metodologia in-
tegrativa” que decorre da aplicação do Código de Processo Civil de 2015 ao processo admi-
nistrativo, posto que, sendo o primeiro mais robusto e completo do que a Lei n. 9.784/1999,
é capaz de suprir as deficiências (lacunas) da Lei Federal de Processo Administrativo na
maioria dos casos.

2.2 Forma federativa de Estado e distinção entre leis


nacionais e leis federais

A Constituição brasileira adota a forma federativa de Estado na qual está desenha-


da um paradigma de Estado Federal com uma estrutura administrativa complexa em que,
segundo Raul Machado Horta, “atuam forças contraditórias e já se observou que nela coe-
xistem o princípio unitário e o princípio federativo”.10 O Estado Federal é um Estado uno e
composto por determinado número de regiões com governo próprio, os Estados-Membros,
e unidas sob um governo federal, ressaltando-se que o instrumento dessa integração é a
Constituição Federal, o que confere estabilidade normativa a esse Estado, característica es-
sencial à sua natureza.11
É importante destacar que um dos requisitos básicos do Estado Federal é a auto-
nomia do Estado-Membro, posto ser o que diferencia a forma de um Estado Unitário com
descentralização administrativa.12 Assim, nesse modelo, diversamente do que ocorre na for-
ma unitária de Estado, o direito de autogoverno de cada região autônoma está consignado
constitucionalmente e não pode ser revogado por uma decisão unilateral do governo central,
conforme dispõe o caput do artigo 1º e o artigo 18 da Constituição da República Federativa
do Brasil de 198813:

Art. 1º A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados
e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito e
tem como fundamentos:

10
HORTA, Raul Machado. Reconstrução do federalismo brasileiro. Revista de Informação Legislativa, ano 18, n. 72,
out./dez. 1981. p. 13.
11
HORTA, Raul Machado. Reconstrução do federalismo brasileiro. Op. cit., p. 13.
12
HORTA, Raul Machado. Reconstrução do federalismo brasileiro. Op. cit., p. 19
13
BRASIL. [Constituição (1988)]. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Brasília: Presidência da
República, 1988. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm. Acesso em:
13 jan. 2020.
A aplicabilidade do Código de Processo Civil no processo administrativo 239

[...] Art. 18. A organização político-administrativa da República Federativa do Brasil


compreende a União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios, todos autôno-
mos, nos termos desta Constituição. (grifo nosso).

Portanto, em que pese o Estado Brasileiro ser indivisível houve por bem reparti-lo
em várias pessoas jurídicas de direito público interno com o fito de distribuir-lhes as diversas
atividades inerentes ao funcionamento da Administração Pública, dentre as quais se destaca
a competência legislativa.14
A partir dessa descentralização política pretendeu-se criar entes com personalidade
jurídica própria para que fossem capazes de promulgar suas próprias leis, válidas no âmbito
territorial em estrita conformidade com os dispositivos constitucionais. Sobre o tema, é o
que ensina Hans Kelsen que “algumas das normas serão válidas para o território inteiro – do
contrário, este não seria o território de uma única ordem –, enquanto outras serão válidas
apenas para diferentes partes dele”.15
Assim sendo, a União produz normas gerais, válidas para todos os entes que com-
põem o Estado Federal (União, Estados, Distrito Federal e Municípios), denominadas leis
nacionais, mas também produz normas parciais, denominadas leis federais, válidas apenas
para a pessoa jurídica de direito público que a instituiu. Exemplo de legislação nacional é a
Lei Complementar n. 101/2000 (Lei de Responsabilidade Fiscal), que é aplicável a todos os
entes federativos. Exemplo de legislação federal é a Lei 9784/1999 (Lei de Processo Admi-
nistrativo Federal), que se aplica a administração pública federal direta e as suas autarquias
e fundações públicas.
Desta feita, para distinguir as leis federais das leis nacionais, trazemos à baila os
ensinamentos de Hélio do Valle Pereira:

[...] a distinção entre leis nacionais e leis federais. Aquelas são relativas à atribuição
legislativa da União como ente que congrega todas as pessoas políticas, estabele-
cendo normas a eles comuns (p. ex., direito penal, normas gerais tributárias). As leis
federais referem-se à regulamentação de situações que envolvem exclusivamente a
União, como pessoa pública equiparada às demais (v.g., estatuto de seus servidores,
criação de imposto federal)16.

14
Sobre a distinção entre estado unitário e estado federal, cf.: OLIVA, Éric; GIUMMARRA, Sandrine. Droit constitu-
tionnel. 9. ed. Paris: Sirley, 2017. (Especialmente nas páginas 18-20). Nessa obra os autores fazem a distinção
entre as diversas formas de estado, quais seja: (1) estado unitário, cuja as subespécies são estado unitário
centralizado e estado unitário descentralizado; (2) estado regional e (3) estado federal.
15
KELSEN, Hans. Teoria geral do direito e do Estado. Trad. Luis Carlos Borges. 3. ed. São Paulo: Martins Fontes,
1988. p. 434.
16
PEREIRA, Hélio do Valle. Manual da fazenda pública em juízo. 3. ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2008. p. 7, nota de
rodapé.
240 Manoel Messias Peixinho

Vislumbra-se, assim, a dupla função do Congresso Nacional: (i) produzir leis nacio-
nais que detém força vinculante em todo o território nacional e cuja aplicabilidade é total, já
que indistinta perante todos os entes federativos, e (ii) produzir leis federais válidas apenas
para a pessoa jurídica de direito público interno que a produziu, qual a seja a União, cuja
aplicabilidade é parcial, e a finalidade é a sua própria auto-organização. Logo, as leis federais
têm simetria em relação às leis estaduais, distritais ou municipais no sentido de todas for-
marem ordens jurídicas parciais que, juntamente com a as leis nacionais, compõem a ordem
jurídica total ou nacional.
Em suma, a fonte primária do processo administrativo é a lei formal emanada pelo
Poder Legislativo que, no caso concreto, é Lei n. 9.784/1999 e as leis processuais locais que
são editadas pelos outros entes federativos. A Lei n. 9784/1999 aplica-se à Administração
Federal da União, às suas autarquias, às fundações públicas, à administração pública dos
Poderes Legislativo e Judiciário. Estão excluídas da incidência do referido diploma legal as
empresas públicas e as sociedades de economia mista federais e, ainda, os Estados, os
Municípios e o Distrito Federal, devido ao regime federativo e a sua já exposta característica
essencial da autonomia dos entes federativos, que possuem competência privativa para le-
gislar acerca de seus processos administrativos.17

2.3 Aplicação da Lei n. 9784/1999 aos estados e municípios

A despeito de ser a Lei 9784/1999 de aplicação restrita à administração pública fede-


ral direta e as suas autarquias e fundações, é possível aplicá-la supletiva e subsidiariamente,
aos outros entes federativos em caso de existência de lacuna legal, tendo, portanto, caráter
genérico e subsidiário concomitantemente. Assim, a despeito dos Estados, Municípios e o
Distrito Federal serem regidos por leis específicas, ressalta a professora Maria Silvia Zanella
de Pietro, que a Lei n. 9.784/1999 pode ser aplicada aos outros entes federativos porque:

o objetivo da Lei não foi apenas estabelecer normas sobre o processo. Se fosse o
caso, a Lei poderia ser considerada de âmbito federal apenas. Ocorre que ela não se li-
mitou a isso. Ela foi além. O seu principal objetivo foi o de dar aplicação aos princípios
constitucionais pertinentes aos direitos do cidadão perante a Administração Pública.
Ora, quando se fala em princípios constitucionais e em direitos do cidadão, entra-se
na esfera de temas de interesse nacional e, portanto, de competência nacional.18

17
CARVALHO FILHO, José dos Santos. Manual de direito administrativo. 31. ed. rev., atual. e ampl. São Paulo: Atlas,
2017. p. 1044.
18
NOHARA, Irene Patrícia; MORAES FILHO, Marco Antônio Praxedes de. Processo administrativo: temas polêmicos
da Lei n. 9784/99. São Paulo: Atlas, 2011. p.190.
A aplicabilidade do Código de Processo Civil no processo administrativo 241

Portanto, a aplicabilidade da Lei n. 9.784/1999 aos estados-membros e municípios


não fere o princípio da autonomia federativa previsto no artigo 18 da Constituição Federal,
uma vez que os entes federativos têm plena autonomia administrativa para decidir se devem
ou não aplicar a referida lei. Porém, se o ente federativo não dispõe de lei que regule o pro-
cesso administrativo, é obrigatório o uso do estatuto federal porque em razão do princípio
da legalidade não pode haver processo administrativo sem lei que o regule, sob pena de se
constituir num tribunal de exceção.

2.4 Integração das lacunas de leis processuais


administrativas estaduais e municipais pela
Lei n. 9784/1999

Se a Lei n. 9784/1999 pode ser, por um lado, “completada” pelo NCPC, por outro
lado, o Estatuto Processual Administrativo tem uma função integrativa e deve ser aplicado
nas hipóteses de lacunas existentes nas legislações de Estados e Municípios e nos casos
de vazio normativo existente nas legislações de processo administrativo federais especiais.
No que se refere aos processos administrativos específicos não há, no entanto, exclusão de
incidência, ou seja, quando houver lacuna é possível a aplicação do princípio da subsidia-
riedade com a aplicação das normas da Lei n. 9.784/99 aos diversos diplomas regedores
de processos administrativos especiais federais, estaduais e municipais, tanto nos casos
omissos das leis especiais como naqueles que possam reclamar aplicação suplementar.19

3 APLICAÇÃO SUPLEMENTAR E SUBSIDIÁRIA DO CÓDIGO


DE PROCESSO CIVIL AO PROCESSO ADMINISTRATIVO

O Código de Processo Civil de 2015, em seu artigo 15 previu, expressamente, a


possibilidade de suas regras serem aplicadas supletiva e subsidiariamente aos processos
administrativos quando estes carecerem de normatização. Contudo, a aplicação das normas
processuais civis não incide, automaticamente, no processo administrativo. É imperioso que
a norma processual civil “aplicada” esteja em harmonia com os princípios norteadores do di-
reito administrativo em geral e do processo administrativo em especial. É de se exemplificar,
por exemplo, que a lacuna no processo administrativo não pode preenchida automaticamen-
te por uma norma processual civil que seja contrária ao interesse público.
Nessa mesma lógica e diante da irrestrita aplicabilidade do Código de Processo Civil
em todo o território nacional, por todos os entes federativos, característica das leis nacionais,
este, em seu artigo 15, determina, nos termos abaixo colacionados, que: “Art. 15. Na ausên-

19
FERRAZ, Sérgio; DALLARI, Adilson Abreu. Processo administrativo. 3. ed. São Paulo: Malheiros, 2012. p. 59.
242 Manoel Messias Peixinho

cia de normas que regulem processos eleitorais, trabalhistas ou administrativos, as dispo-


sições deste Código lhes serão aplicadas supletiva e subsidiariamente.” (grifos nossos).
Da exegese do artigo 15 pode-se concluir que se aplica o Código de Processo Civil
supletiva e subsidiariamente à Lei n. 9.784/1999 quando houver uma lacuna parcial ou total
na Lei Federal que regula os processos administrativos ou quando houver vazios nas diver-
sas leis processuais administrativas. Nestes casos, o NCPC supre uma omissão da Lei n.
9.784/1999, de modo a regular a norma jurídica inexistente.
Por outro lado, o Código de Processo Civil também pode ser aplicado subsidiaria-
mente à Lei n. 9.784/1999 nas situações em que, apesar da similaridade nos institutos de
ambas espécies normativas, a lei nacional veicule soluções mais benéficas à tutela do inte-
resse público, bem como à defesa dos interesses dos administrados, quando comparadas
àquelas concebidas no bojo da Lei Federal em comento.
Sobre o tema, Teresa Arruda Alvim Wambier, Maria Lúcia Lins Conceição, Leonardo
Ferres da Silva Ribeiro e Rogério Licastro Torres de Mello afirmam, acertadamente, que:

A aplicação subsidiária ocorre também em situações nas quais não há omissão.


Trata-se, como sugere a expressão ‘subsidiária’, de uma possibilidade de enriqueci-
mento, de leitura de um dispositivo sob outro viés, de extrair-se da norma processual
eleitoral, trabalhista ou administrativa um sentido diferente, iluminado pelos princípios
fundamentais do processo civil. A aplicação supletiva é que supõe omissão. Aliás,
o legislador, deixando de lado a preocupação com a própria expressão, precisão da
linguagem, serve-se das duas expressões. Não deve ter suposto que significam a
mesma coisa, se não, não teria usado as duas. Mas como empregou também a mais
rica, mais abrangente, deve o intérprete entender que é disso que se trata20.

A jurisprudência também já se consolidou no sentido de autorizar a aplicação da


Lei n. 9784/1999 aos processos administrativos dos entes federativos, conforme se pode
destacar deste excerto oriundo da Suprema Corte brasileira.

A jurisprudência do STJ firmou-se no sentido de que a Lei n. 9.784/99 pode ser


aplicada de forma subsidiária no âmbito dos demais Estados Membros, se ausente
lei própria que regule o processo administrativo local, o que não é o caso dos
autos. De fato, a Lei Estadual n. 12.327/98 é silente acerca do pedido de revisão.
Não obstante, não deixou de regular o tema, pois tratou do processo administrativo
disciplinar, não prevendo a existência do pedido de revisão das decisões que apli-
quem a penalidade de cassação de credencial do Despachante, mas tão somente de

20
WAMBIER, Teresa Arruda; CONCEIÇÃO, Maria Lúcia Lins; RIBEIRO, Leonardo Ferres; DE MELLO, Rogério Licastro.
Primeiros comentários ao Novo Código de Processo Civil: artigo por artigo. São Paulo: RT, 2015. p. 75.
A aplicabilidade do Código de Processo Civil no processo administrativo 243

recurso ao Secretário de Estado da Segurança Pública, no prazo de 15 dias, o que foi


feito pela Recorrente. STJ, RMS 21936/MG, Rel. Min. Luiz Fux, Primeira Turma, DJe
17/12/2008.

Por conseguinte, é forçoso reconhecer a necessidade e a importância da aplicação


dos institutos do Código de Processo Civil aos processos administrativos em razão de lacu-
nas, omissões e deficiências da Lei n. 9.784/1999, na incessante persecução da satisfação
dos interesses públicos e da proteção dos direitos fundamentais dos administrados.
Com o intuito de concretizar o art. 15 do Código de Processo Civil para o campo prá-
tico, serão apresentados nos tópicos subsequentes alguns exemplos e comentários acerca
da abordada aplicabilidade, supletiva e subsidiária, deste Código aos processos administra-
tivos.

3.1 Exemplos e comentários acerca da aplicação


suplementar e subsidiária do CPC/2015 no processo
administrativo

3.1.1 Da suspeição e do impedimento

A imparcialidade do julgador, tema já brevemente abordado neste estudo, é uma das


garantias constitucionais que decorrem do artigo 5º, inciso LIV, da Constituição Federal de
1988. Em conformidade com tal previsão constitucional, tanto a Lei de Processo Administra-
tivo Federal, quanto o Código de Processo Civil de 2015 trouxeram dispositivos que preveem
hipóteses de impedimento e suspeição da autoridade, nos processos administrativos, e do
juiz, nos processos judiciais. Sobre o tema, é o que dispõe a Lei n. 9.784/1999, in verbis:

Art. 18. É impedido de atuar em processo administrativo o servidor ou autoridade que:


I - tenha interesse direto ou indireto na matéria;
II - tenha participado ou venha a participar como perito, testemunha ou representante,
ou se tais situações ocorrem quanto ao cônjuge, companheiro ou parente e afins até
o terceiro grau;
III - esteja litigando judicial ou administrativamente com o interessado ou respectivo
cônjuge ou companheiro.

Art. 19. A autoridade ou servidor que incorrer em impedimento deve comunicar o fato
à autoridade competente, abstendo-se de atuar.
Parágrafo único. A omissão do dever de comunicar o impedimento constitui falta gra-
ve, para efeitos disciplinares.
244 Manoel Messias Peixinho

Art. 20. Pode ser arguida a suspeição de autoridade ou servidor que tenha amizade
íntima ou inimizade notória com algum dos interessados ou com os respectivos côn-
juges, companheiros, parentes e afins até o terceiro grau.
Art. 21. O indeferimento de alegação de suspeição poderá ser objeto de recurso, sem
efeito suspensivo.

Por sua vez, as previsões do CPC/2015 quanto às hipóteses de impedimento e sus-


peição do juiz, são as abaixo colacionadas:

Art. 144. Há impedimento do juiz, sendo-lhe vedado exercer suas funções no pro-
cesso:
I - em que interveio como mandatário da parte, oficiou como perito, funcionou como
membro do Ministério Público ou prestou depoimento como testemunha;
II - de que conheceu em outro grau de jurisdição, tendo proferido decisão;
III - quando nele estiver postulando, como defensor público, advogado ou membro do
Ministério Público, seu cônjuge ou companheiro, ou qualquer parente, consanguíneo
ou afim, em linha reta ou colateral, até o terceiro grau, inclusive;
IV - quando for parte no processo ele próprio, seu cônjuge ou companheiro, ou pa-
rente, consanguíneo ou afim, em linha reta ou colateral, até o terceiro grau, inclusive;
V - quando for sócio ou membro de direção ou de administração de pessoa jurídica
parte no processo;
VI - quando for herdeiro presuntivo, donatário ou empregador de qualquer das partes;
VII - em que figure como parte instituição de ensino com a qual tenha relação de
emprego ou decorrente de contrato de prestação de serviços;
VIII - em que figure como parte cliente do escritório de advocacia de seu cônjuge,
companheiro ou parente, consanguíneo ou afim, em linha reta ou colateral, até o ter-
ceiro grau, inclusive, mesmo que patrocinado por advogado de outro escritório;
IX - quando promover ação contra a parte ou seu advogado.
§ 1º Na hipótese do inciso III, o impedimento só se verifica quando o defensor público,
o advogado ou o membro do Ministério Público já integrava o processo antes do início
da atividade judicante do juiz.
§ 2º É vedada a criação de fato superveniente a fim de caracterizar impedimento do
juiz.
§ 3º O impedimento previsto no inciso III também se verifica no caso de mandato
conferido a membro de escritório de advocacia que tenha em seus quadros advogado
que individualmente ostente a condição nele prevista, mesmo que não intervenha
diretamente no processo.

Art. 145. Há suspeição do juiz:


I - amigo íntimo ou inimigo de qualquer das partes ou de seus advogados;
A aplicabilidade do Código de Processo Civil no processo administrativo 245

II - que receber presentes de pessoas que tiverem interesse na causa antes ou depois
de iniciado o processo, que aconselhar alguma das partes acerca do objeto da causa
ou que subministrar meios para atender às despesas do litígio;
III - quando qualquer das partes for sua credora ou devedora, de seu cônjuge ou com-
panheiro ou de parentes destes, em linha reta até o terceiro grau, inclusive;
IV - interessado no julgamento do processo em favor de qualquer das partes.

Observa-se que o Código de Processo Civil é mais expansivo e positiva um rol maior
com hipóteses não previstas na Lei de Processo Administrativo. Todavia, esta deficiência da
Lei Federal Processual Administrativa não poderá causar óbices à necessidade de se asse-
gurar a imparcialidade da autoridade julgadora do processo administrativo.
Logo, nos casos em que, porventura, determinada autoridade encontre-se em situa-
ção de impedimento ou suspeição não prevista pela Lei n. 9.784/1999, mas sim naquelas
previstas pelo CPC/2015, poderá este ser invocado em prol do seu afastamento. Assim,
segundo a lição de Egon Bockmann Moreira:

as previsões relativas ao impedimento e à suspeição não podem ser tidas por exaus-
tivas. A Lei n. 9.784/1999 enumera exemplificativamente casos-limite e torna viá-
vel a aplicação subsidiária especialmente do Código de Processo Civil. As regras
processuais devem ser compreendidas à luz da máxima efetividade dos princípios
constitucionais da imparcialidade e da impessoalidade (moralidade administrativa).21

Por conseguinte, tem-se nestes casos a aplicação subsidiária do Código de Pro-


cesso Civil de 2015 à Lei de Processo Administrativo Federal, tendo em vista que, apesar
da correspondência dos institutos do impedimento e da suspeição em ambas as legis-
lações, o CPC/2015 deverá ser aplicado de modo a complementar a deficiência da Lei
n. 9.784/1999. Deste modo, resguarda-se o devido processo legal e os interesses dos
administrados, que somente responderão ao processo administrativo perante autoridade
absolutamente imparcial.

3.1.2 Das prerrogativas dos advogados

A Lei de Processo Administrativo Federal prevê como um dos direitos de os admi-


nistrados fazer-se assistir, facultativamente, por advogado, salvo quando obrigatória a re-

21
MOREIRA, Egon Bockmann. Processo administrativo. Princípios constitucionais e a Lei 9.784/1999. 3. ed. São
Paulo: Malheiros, 2007. p. 335-336.
246 Manoel Messias Peixinho

presentação por força de lei.22 Todavia, nenhuma disposição sobre o modo de atuação dos
advogados é vislumbrada no âmbito desta Lei.
Sobre o tema, é cediço que, para que um advogado exerça a defesa de qualquer
cidadão de forma plena e autônoma, faz-se necessária a observância de uma série de prer-
rogativas. Estas estão asseguradas pelo Estatuto da Advocacia (Lei n. 8.906/1994), especi-
ficamente em seus artigos 6º e 7º. Com o intuito de reforçar a necessidade de observância
de tais prerrogativas, o Código de Processo Civil de 2015 reservou um artigo para destacar
os direitos dos advogados, consoante se infere do dispositivo que trazemos à baila:

Art. 107. O advogado tem direito a:


I - examinar, em cartório de fórum e secretaria de tribunal, mesmo sem procuração,
autos de qualquer processo, independentemente da fase de tramitação, assegurados
a obtenção de cópias e o registro de anotações, salvo na hipótese de segredo de
justiça, nas quais apenas o advogado constituído terá acesso aos autos;
II - requerer, como procurador, vista dos autos de qualquer processo, pelo prazo de
5 (cinco) dias;
III - retirar os autos do cartório ou da secretaria, pelo prazo legal, sempre que neles lhe
couber falar por determinação do juiz, nos casos previstos em lei.
§ 1º Ao receber os autos, o advogado assinará carga em livro ou documento próprio.
§ 2º Sendo o prazo comum às partes, os procuradores poderão retirar os autos
somente em conjunto ou mediante prévio ajuste, por petição nos autos.
§ 3º Na hipótese do § 2º, é lícito ao procurador retirar os autos para obtenção de
cópias, pelo prazo de 2 (duas) a 6 (seis) horas, independentemente de ajuste e sem
prejuízo da continuidade do prazo.
§ 4º O procurador perderá no mesmo processo o direito a que se refere o § 3º se não
devolver os autos tempestivamente, salvo se o prazo for prorrogado pelo juiz.
§ 5º O disposto no inciso I do caput deste artigo aplica-se integralmente a processos
eletrônicos. 

Observa-se que a Lei 9.784/99 prevê acerca dos advogados apenas em relação ao
direito dos administrados de se fazerem assistir por eles. No que se refere às suas prerro-
gativas, no entanto, nada dispôs o referido estatuto legal. Desse modo, observa-se a clara
necessidade de aplicação do CPC/2015 que, por sua vez, regulamenta o tema em âmbito
processual. Desse modo, diante da inexistência de um paralelo sobre o assunto na Lei n.
9.784/1999, deverá ser o CPC/2015 aplicado supletivamente quando se estiver diante de
qualquer afronta aos direitos e prerrogativas dos advogados no exercício de defesa de seus
jurisdicionados na esfera processual administrativa.

22
Art. 3o O administrado tem os seguintes direitos perante a Administração, sem prejuízo de outros que lhe sejam
assegurados: IV - fazer-se assistir, facultativamente, por advogado, salvo quando obrigatória a representação, por
força de lei.
A aplicabilidade do Código de Processo Civil no processo administrativo 247

3.1.3 Da intimação na forma eletrônica

A intimação, no processo administrativo federal, é o principal meio para estabelecer


a comunicação entre a Administração e o administrado. Observa-se que, nos termos da Lei
n. 9.784/1999, a intimação tem um sentido amplo, uma vez que abrange a citação, a qual,
por sua vez, não encontra referência expressa no citado diploma legal.
Sobre a forma da intimação, a referida lei determina, em seu artigo 26, §3º, que
“pode ser efetuada por ciência no processo, por via postal com aviso de recebimento, por
telegrama ou outro meio que assegure a certeza da ciência do interessado” 23. Sendo assim,
pode-se afirmar que a Lei n. 9.784/1999 prevê uma “fórmula casuística seguida de uma
previsão aberta que admite, por fim, quaisquer formas de intimação que assegurem a ciência
do interessado”.24 Acerca da citação nos processos judiciais, é o que dispõe o CPC/2015,
ipsis litteris:

Art. 246. A citação será feita:


I - pelo correio;
II - por oficial de justiça;
III - pelo escrivão ou chefe de secretaria, se o citando comparecer em cartório;
IV - por edital;
V - por meio eletrônico, conforme regulado em lei. (grifo nosso).

Mister ressaltar, ainda, que nos termos do artigo 270 do CPC/2015, as intimações
“realizam-se, sempre que possível, por meio eletrônico, na forma da lei”. Novamente, obser-
va-se caso de lacuna normativa da Lei 9.784/99, que não contemplou expressamente hipó-

Art. 26. O órgão competente perante o qual tramita o processo administrativo determinará a intimação do inte-
23

ressado para ciência de decisão ou a efetivação de diligências. § 1o A intimação deverá conter: I - identificação
do intimado e nome do órgão ou entidade administrativa; II - finalidade da intimação; III - data, hora e local
em que deve comparecer; IV - se o intimado deve comparecer pessoalmente, ou fazer-se representar; V -
informação da continuidade do processo independentemente do seu comparecimento; VI - indicação dos fatos
e fundamentos legais pertinentes. § 2o A intimação observará a antecedência mínima de três dias úteis quanto à
data de comparecimento. § 3o A intimação pode ser efetuada por ciência no processo, por via postal com aviso
de recebimento, por telegrama ou outro meio que assegure a certeza da ciência do interessado. § 4o No caso de
interessados indeterminados, desconhecidos ou com domicílio indefinido, a intimação deve ser efetuada por meio
de publicação oficial. § 5o As intimações serão nulas quando feitas sem observância das prescrições legais, mas
o comparecimento do administrado supre sua falta ou irregularidade.
Art. 27. O desatendimento da intimação não importa o reconhecimento da verdade dos fatos, nem a renúncia
a direito pelo administrado. Parágrafo único. No prosseguimento do processo, será garantido direito de ampla
defesa ao interessado.
Art. 28. Devem ser objeto de intimação os atos do processo que resultem para o interessado em imposição de
deveres, ônus, sanções ou restrição ao exercício de direitos e atividades e os atos de outra natureza, de seu
interesse.
24
GOMES, Milton Carvalho. Repercussões do novo CPC no processo administrativo: a intimação eletrônica e a
sua implementação normativa. Jota, jun. 2016. Disponível em: https://www.jota.info/opiniao-e-analise/artigos/
repercussoes-novo-cpc-no-processo-administrativo-intimacao-eletronica-e-sua-implementacao-normati-
va-29062016. Acesso em: 13 jan. 2020.
248 Manoel Messias Peixinho

tese de intimação por via eletrônica, ao passo que o CPC/2015 trouxe tal previsão de forma
clara. Na presente situação, destaca-se que a Lei Federal, ao elencar os meios de realização
da intimação, admite estabelecer um rol exemplificativo, posto que prevê, além dos meios
expostos, a possibilidade de “outro meio que assegure a certeza da ciência do interessado”.
Desta feita, as normas do Código de Processo Civil são perfeitamente aplicáveis, de
forma subsidiária, à Lei 9.784/1999 para regular a citação e a intimação na forma eletrônica,
temas lacunosos na Lei de Processo Administrativo Federal. Logo, conforme bem expõe Mil-
ton Carvalho Gomes, “a intimação eletrônica, prevista pelo novo CPC, é plenamente aplicá-
vel ao processo administrativo, devendo ser considerada, inclusive, a forma preferencial de
comunicação dos atos processuais, dada a sua economia e celeridade, evidenciando-se,
novamente, suas funções de atualizar e expandir as normas administrativas”.25

4 CONSIDERAÇÕES FINAIS

É possível reconhecer, após a análise dos temas propostos que, em muitas situa-
ções, as leis de processo administrativo são insuficientes para regular as constantes e sen-
síveis demandas que nascem da relação conflituosa entre a Administração Pública e os
cidadãos administrados e bem como resguardar o interesse público e tutelar os direitos dos
administrados por uma razão muito singela: o Código de Processo Civil, ainda que conte-
nha muitos dispositivos de interesse público, é um estatuto primordialmente direcionado à
tutela dos interesses privados individuais e coletivos, mesmo que hodiernamente na doutrina
haja um consenso de que o direito processual civil se constitucionalizou à semelhança do
que ocorreu com o direito civil. Porém, ainda que oxigenado pela Constituição de 1988 e
com todos os avanços civilizatórios, os objetivos das leis processuais civis e das leis de
processos administrativos se diferenciam. O direito administrativo ainda é, como bem diz
Carlos Ari Sundfeld, “um direito administrativo especial, oposto ao privado”, não obstante
o próprio autor reconheça que este ramo especializado passou e tem passado por muitas
transformações.26
Porém, nos estreitos limites metodológicos propostos neste artigo e sem aprofundar
as limitações históricas e culturais do direito administrativo de modo geral e do processo ad-
ministrativo de modo especial há de concluir que as lacunas de regulamentação se não fos-
sem enfrentadas e sanadas acabariam por violar frontalmente o devido processo legal, uma
garantia indispensável de acesso às instâncias administrativas previstas pela Constituição
Federal de 1988, como direitos fundamentais do cidadão administrado. Assim, a aplicação
do NCPC, com a nova orientação positivada do artigo 15, permite fazer uma aproximação
metodológica entre a processualística civil e a processualística administrativa com significa-
tivos proveitos para a cidadania.

25
GOMES, Milton Carvalho. Repercussões do novo CPC no processo administrativo: Op. cit.
26
SUNDFELD, Carlos Ari. Direito administrativo para céticos. São Paulo, Malheiros, 2012. p. 28-30.
A aplicabilidade do Código de Processo Civil no processo administrativo 249

Em última instância, entendemos que a inexistência de diálogo dessas fontes ex-


tremantes relevantes implicaria no enfraquecimento dos processos administrativos e estes,
ademais, estariam metodológica e substancialmente fadados ao insucesso, tendo os admi-
nistrados que recorrerem às instâncias judiciais a cada oportunidade em que se deparassem
com as lacunas, omissões e deficiências das leis processuais administrativas com a outorga
de mais poder aos juízes ativistas em prejuízo à soberania do legislador.
Portanto, a aplicabilidade do CPC/2015 à Lei n. 9.784/1999 e aos processos admi-
nistrativos em geral mostra-se fundamental para a persecução das garantias fundamentais
relativas ao devido processo legal com a consequente manutenção de um Estado Democrá-
tico de Direito.

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PEIXINHO, Manoel Messias. A interpretação da Constituição e os princípios fundamentais. 4. ed. São


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250 Manoel Messias Peixinho

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gério Licastro. Primeiros comentários ao Novo Código de Processo Civil: artigo por artigo. São Paulo:
RT, 2015.
A nova LINDB e o direito administrativo:
o que esperar?

Maria Sylvia Zanella di Pietro


Professora titular aposentada de Direito (USP)
Procuradora aposentada do Estado de São Paulo

SUMÁRIO: 1 Introdução; 2 Do princípio da segurança jurídica; 3 Do princípio da motivação; 4 Do


princípio da proporcionalidade; 5 Considerações finais; Referências.

1 INTRODUÇÃO

A Lei n. 13.655, de 25-4-18, que inclui no Decreto-lei n. 4.657, de 4 de setembro


de 1942 (Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro) disposições sobre segurança
jurídica e eficiência na criação e na aplicação do direito público, resultou da aprovação do
Projeto de Lei n. 7.448/2017 (Projeto de Lei do Senado n. 349/2015), de iniciativa do Sena-
dor Antonio Augusto Junho Anastasia e aprovado, com alguns vetos, pelo Chefe do Poder
Executivo. A redação do anteprojeto foi feita por Carlos Ari Sundfeld e Floriano de Azevedo
Marques Neto.
Ainda na fase de tramitação desse projeto de lei, foi publicado pelo Senado Federal
um texto intitulado Segurança Jurídica e Qualidade das Decisões Públicas, reunindo trabalho
de vários juristas contendo comentários a dispositivos do projeto. A Coordenação coube a
Flávio Henrique Unes Pereira.
Em sua fase de tramitação, o Projeto recebeu críticas formuladas pela Consultoria
Jurídica do Tribunal de Contas da União, em trabalho intitulado “Análise preliminar do PL
7.448/2017”. Essas críticas foram objeto de análise em texto publicado na Revista Brasileira
da Advocacia (RBA), ano 3, n. 9, abr./jun. 2018, firmado por mais de vinte juristas da área de
direito administrativo de diferentes Universidades do país. Conforme afirmado nesse texto,
“o TCU parece ver no PL tentativa de supressão de competências constitucionais do próprio
Legislativo e das Cortes de Contas”, acrescentando que “os questionamentos são fruto de
leitura incorreta dos dispositivos do projeto, pois ou não refletem o teor expresso de suas
normas ou vislumbram conflitos normativos inexistentes”.
A leitura desse texto publicado pela RBA é importante para bem compreender o sen-
tido das normas contidas na Lei n. 13.655/18, que não têm e não poderiam ter por objetivo
afetar, de algum modo, as competências constitucionais do TCU. A Lei traz sensível con-
252 Maria Sylvia Zanella di Pietro

tribuição para os profissionais do direito relativamente à interpretação e aplicação das leis,


especialmente nas matérias afetas à Administração Pública e que são sujeitas à apreciação
pelos órgãos de controle. Como se verifica por vários de seus dispositivos, a lei dirige-se
à Administração Pública, aos órgãos de controle (externo e interno) e ao Poder Judiciário.
A Lei n. 13.655, de 25 de abril de 2018 veio mudar um pouco a feição da antiga
LINDB – Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro. Essa lei, desde suas origens,
continha normas que se inseriam na teoria geral do direito e, portanto, aplicáveis a todos os
ramos do direito, público e privado. A Lei n. 13.655 veio estabelecer normas essencialmente
voltadas para o direito administrativo, alcançando não só a própria Administração Pública,
mas também os órgãos que a controlam, como Tribunais de Contas, Ministério Público e
Judiciário, além dos órgãos de controle interno.
Ela estabelece diretrizes que orientam e limitam a atuação desses órgãos no que diz
respeito à interpretação e à aplicação do direito.
Nem tudo o que nela se contém constitui inovação, porque a lei agasalha preceitos
que já decorrem dos ensinamentos da doutrina ou de teses já aceitas pela jurisprudência, ou
que já estão consagradas no próprio direito positivo. Ela tem o mérito de tornar expressos
em lei alguns desses preceitos; ela tem também o mérito de definir, ainda que parcialmente,
o conteúdo de alguns princípios do direito administrativo. Eu diria que, em alguns casos, ela
transforma princípios em regras jurídicas.
As alterações introduzidas na LINDB pela Lei n. 13.655 reforçam e complementam
a exigência de determinados princípios já previstos na Constituição, de forma expressa ou
implícita, e em leis infraconstitucionais, em especial os da segurança jurídica, motivação,
proporcionalidade, consensualidade, transparência, eficiência, interesse público.
Vou deter-me, nesta oportunidade, na análise de três princípios especialmente rele-
vantes na lei: o da segurança jurídica (que já aparece no preâmbulo), o da motivação e o da
proporcionalidade. Mas é certo dizer que quase todos os princípios e regras contidos na Lei
n. 13.655 têm por objetivo último garantir a segurança jurídica na aplicação do direito ad-
ministrativo, seja na esfera administrativa, seja na esfera de controle, seja na esfera judicial.

2 DO PRINCÍPIO DA SEGURANÇA JURÍDICA

Um dos principais dispositivos que protege a segurança jurídica é o artigo 24, que
veda a retroação de nova orientação geral. Determina esse dispositivo “que a revisão, nas
esferas administrativa, controladora ou judicial, quanto à validade de ato, contrato, ajuste,
processo ou norma administrativa cuja produção já se houver completado levará em conta
as orientações gerais da época, sendo vedado que, com base em mudança posterior de
orientação geral, se declarem inválidas situações plenamente constituídas”. E o parágrafo
único define “orientações gerais como “as interpretações e especificações contidas em atos
A nova LINDB e o direito administrativo: o que esperar? 253

públicos de caráter geral ou em jurisprudência judicial ou administrativa majoritária, e ainda


as adotadas por prática administrativa reiterada e de amplo conhecimento público”.
O dispositivo reforça norma que já se continha na Lei de Processo Administrativo
federal (Lei n. 9.784, de 29 de janeiro de 1999) que, no artigo 2º, parágrafo único, inciso
XIII, proíbe a “aplicação retroativa de nova interpretação”. Só que o dispositivo da LINDB tem
alcance maior que o da Lei n. 9.784, já que ela só se aplica aos processos administrativos,
enquanto o dispositivo daquela alcança não só os órgãos administrativos, como também os
órgãos de controle, inclusive o Poder Judiciário, em todas as esferas de governo.
Além disso, a norma do artigo 24 se completa com o preceito contido no artigo 23,
pelo qual, em caso de mudança de interpretação ou orientação nova, impondo novo dever
ou novo condicionamento de direito, deverá ser previsto regime de transição de modo que
o novo dever ou condicionamento seja cumprido de modo proporcional, equânime e sem
prejuízo aos interesses gerais.
É muito comum a Administração Pública adotar determinada interpretação com ca-
ráter normativo, como acontece na Receita Federal e no âmbito da advocacia pública, cujas
leis chegam a prever a elaboração de súmulas de observância obrigatória para todos os
órgãos sujeitos à sua área de atuação. Se a Administração Pública posteriormente alterar
o seu entendimento e aprovar nova orientação, esta não pode atingir situações plenamente
constituídas na vigência da orientação anterior.
É exatamente o mesmo fundamento que deu origem à regra do artigo 5º, inciso XXX-
VI, da Constituição Federal, pelo qual “a lei não prejudicará o direito adquirido, o ato jurídico
perfeito e a coisa julgada”.
Se a lei não pode retroagir, a toda evidência, não podem retroagir as novas interpre-
tações adotadas nos âmbitos administrativo, controlador e judicial. Essa retroação afronta o
princípio da segurança jurídica, inclusive sob o aspecto da proteção à confiança: o cidadão
acredita que a sua situação se consolidou com base em orientação adotada à época e não
pode ser prejudicado pela mudança dessa orientação.
É importante realçar que o artigo 24 não impede a invalidação de todo e qualquer ato
ou contrato administrativo, mas apenas daqueles que foram praticados com base em orien-
tação geral vigente à época. As orientações gerais, por terem alcance normativo, retratando
um posicionamento da Administração Pública sobre determinada matéria controvertida, cria
a expectativa do administrado no sentido de que a decisão administrativa está correta, por
ter sido adotada com base na interpretação vigente na esfera administrativa. O objetivo da
norma é proteger a boa-fé dos administrados que foram beneficiados com a orientação apro-
vada em caráter geral. A norma protege a confiança legítima, que corresponde ao aspecto
subjetivo do princípio da segurança jurídica. E protege também a estabilidade das relações
jurídicas, que corresponde ao aspecto objetivo da segurança jurídica. Não pode o adminis-
254 Maria Sylvia Zanella di Pietro

trado ficar à mercê das mudanças de interpretação passíveis de afetar situações jurídicas já
definitivamente constituídas. Essas mudanças só podem produzir efeitos futuros.
Conforme realçado no texto publicado na RBA,

ninguém nega que as instituições públicas, na administração, no sistema de controle


ou no Poder Judiciário, possam alterar suas interpretações sobre o Direito. É normal
que, com o devido cuidado, o façam, inclusive em decorrência de novas demandas e
visões que surgem no passar do tempo. Contudo, as relações jurídicas preexistentes
não podem ser ignoradas. Elas seguem existindo e, se for o caso, terão de se adequar
às novas interpretações ou orientações. Necessário, então, que seja previsto regime
jurídico de transição que lhes dê tempo e meios para que realizem a conformação,
segundo parâmetros de razoabilidade e proporcionalidade, tal qual tem se dado em
matéria de modulação de efeitos nas declarações de inconstitucionalidade e, mais
recentemente, com mera modificação de posição dominante do Supremo Tribunal
Federal.

O texto ainda observa que

o dispositivo, aliás, fortalece os órgãos de controle e aumenta a transparência de sua


ação, autorizando-os a negociar formalmente com os destinatários de suas decisões,
quando for o caso. Isso, por um lado, supera preconceitos jurídicos arcaicos, segun-
do os quais as autoridades públicas não poderiam jamais ouvir e dialogar, devendo
sempre impor e castigar. De outro lado, a autorização legal formal evita que, na busca
de soluções de transição adequadas, essas autoridades tenham, como é comum, de
recorrer a artifícios (pedidos de vista, instruções processuais protelatórias, reuniões
informais com os interessados etc.). O ganho de transparência fortalece todos os
destinatários da norma.

A norma do artigo 24 se reforça com o preceito contido no artigo 23, pelo qual,
em caso de mudança de interpretação ou orientação nova, impondo novo dever ou novo
condicionamento de direito, deverá ser previsto regime de transição de modo que o novo
dever ou condicionamento seja cumprido de modo proporcional, equânime e sem prejuízo
aos interesses gerais.
O Decreto n. 9.830, de 10 de junho de 2019, que regulamenta o disposto nos artigos
20 a 30 do Decreto-Lei n. 4.657, de 4 de setembro de 1942, repete, no artigo 5º, caput e §
1º, o preceito já contido no artigo 24 da LINDB. No § 1º determina que “é vedado declarar
inválida situação plenamente constituída devido à mudança de orientação geral”. E no § 2º
estabelece que “o disposto no § 1º não exclui a possibilidade de suspensão de efeitos futu-
ros de relação em curso”.
A nova LINDB e o direito administrativo: o que esperar? 255

3 DO PRINCÍPIO DA MOTIVAÇÃO

No que diz respeito ao princípio da motivação, já amplamente defendido pela doutri-


na e jurisprudência e previsto no direito positivo, a LINDB, com a introdução dos artigos 20
a 22, impõe aos órgãos administrativos, controladores e judiciais, a observância de determi-
nadas exigências que devem ser observadas na motivação de suas decisões.
Normalmente se considera que a motivação (obrigatória tanto para a Administração
Pública, como para os órgãos de controle e para o Judiciário) exige indicação dos fatos
e dos fundamentos jurídicos da decisão. Na Lei de Processo Administrativo, o artigo 2º
prevê o princípio da motivação entre aqueles a que se sujeita a Administração Pública; e, no
parágrafo único, inciso VII, exige “indicação dos pressupostos de fato e de direito que deter-
minarem a decisão”. Por sua vez, o artigo 50 estabelece que os atos administrativos devem
ser motivados, com indicação dos fatos e dos fundamentos jurídicos. Por isso se diz que os
motivos podem ser de fato e de direito.
Os artigos 20 a 22 da LINDB tornaram mais exigente a motivação. Não basta men-
cionar os fatos e o direito que levaram à prática do ato. É necessário que a decisão, seja
administrativa, controladora ou judicial, leve em conta os efeitos práticos, jurídicos e admi-
nistrativos da decisão.
O artigo 20 determina que “nas esferas administrativa, controladora e judicial, não
se decidirá com base em valores jurídicos abstratos sem que sejam consideradas as con-
sequências práticas da decisão.” O artigo 3º, § 1º, do Decreto n. 9.830/19 define como
“valores jurídicos abstratos aqueles previstos em normas jurídicas com alto grau de inde-
terminação e abstração”. Não basta mencionar um princípio em que se baseia ou um va-
lor representado por um conceito jurídico indeterminado. Não basta motivar invocando, por
exemplo, o princípio do interesse público, sem especificar o seu conteúdo no caso concreto;
ou mencionar a moralidade administrativa, sem dizer em que sentido a decisão contraria
esse valor. É preciso raciocínio voltado para o futuro, para as consequências do ato. Eu cito
no meu livro Direito Administrativo,1o exemplo da invalidação de um contrato que já está
em execução: a invalidação obrigará a celebração de outros contratos, inclusive emergen-
ciais, sem licitação; poderá acarretar o dever de indenizar o contratado, se não foi ele que deu
causa à ilegalidade; pode levar a uma contratação de maior valor. Esses efeitos decorrem do
próprio ordenamento jurídico.
Vale dizer que, ponderando sobre os efeitos da decisão, a autoridade poderá concluir
que a invalidação não é a melhor solução.
Isso não constitui novidade no direito brasileiro. De longa data, a doutrina e a juris-
prudência defendem a possibilidade de manter atos ou contratos ilegais, se da invalidação

1
DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Direito administrativo. 32. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2019. p. 89.
256 Maria Sylvia Zanella di Pietro

resultar prejuízo maior para o interesse público. Desde longa data a doutrina e a jurisprudên-
cia defendem a possibilidade de manutenção de atos ou contratos ilegais, se da invalida-
ção resultar prejuízo maior para o interesse público. Isto não significa que o agente público
responsável pela ilegalidade não deva responder pelas consequências danosas de seu ato.
Uma coisa é manter o ato ilegal. Outra coisa é isentar de responsabilidade o servidor que
agiu ilegalmente.
O Regulamento da Lei (Decreto n. 9.830, de 10 de junho de 2019) permite que a
autoridade module os efeitos de sua decisão de invalidação e permite que sua eficácia se
inicie em momento futuro. A modulação também não constitui novidade no direito brasileiro,
porque já prevista no artigo 27 da Lei n. 9.868, de 10 de novembro de 1999, e no artigo 11
da Lei n. 9.882, de 3 de dezembro de 1998, que regulam, respectivamente a ADIN e a ADPF.
Essa modulação constitui aplicação do princípio da segurança jurídica, como está expresso
nos dispositivos legais citados.
Outra circunstância que deve ser levada em consideração na motivação são os obs-
táculos e as dificuldades que o gestor enfrente na gestão pública e no cumprimento de
políticas públicas. É o que determina o artigo 22, caput, da LINDB, em cujos termos “na
interpretação de normas sobre gestão pública, serão considerados os obstáculos e as difi-
culdades reais do gestor e as exigências de políticas públicas a seu cargo, sem prejuízo dos
direitos dos administrados”.
Por exemplo, devem ser levadas em consideração as limitações financeiras e orça-
mentárias, inclusive as normas da Lei de Responsabilidade Fiscal (Lei Complementar n. 101,
de 4-5-00), a necessidade de adotar medida urgente diante das circunstâncias concretas
enfrentadas pelo administrador, a imposição de medidas necessárias para dar cumprimento
a políticas públicas.
A respeito do artigo 22 da LINDB (que corresponde ao artigo 21 do Projeto de Lei
349/15, do Senado), Alexandre Santos de Aragão2 observa que “no Direito Administrativo,
muitas vezes as previsões abstratas das normas, e a interpretação que delas fazem alguns
órgãos de controle, não possuem maleabilidade suficiente para dar conta de todos os casos
concretos com os quais o administrador público se depara em seu dia a dia, colocando-o
diante de um difícil dilema: cumprir cegamente a letra da lei e deixar perecer alguma neces-
sidade pública premente ou a implementação eficiente da política pública a seu encargo; ou
interpretá-la inteligentemente, à luz dos seus fins sociais, atendendo aos objetivos públicos
que estão ao seu encargo, mas não a sua letra fria e isolada, sujeitando-se, por essa razão, a
sanções. Sua grande falta teria sido realizar materialmente os objetivos da norma e do direito,
mas não cumprido a sua regra abstrata e isolada tal como interpretada, mais ortodoxamente,
por alguns órgãos de controle”. O autor cita alguns exemplos concretos para ilustrar o dilema
que enfrenta o administrador público e depois acrescenta que:

2
ARAGÃO, Alexandre Santos. Artigo 21. In: PEREIRA, Flávio Henrique Unes (Coord.). Segurança jurídica e qualida-
de das decisões públicas. Desafios de uma sociedade democrática. Brasília: Senado Federal, 2015. p. 20.
A nova LINDB e o direito administrativo: o que esperar? 257

diante da renitência de alguns órgãos de controle em seguir essa visão de uma lega-
lidade mais ampla ou de juridicidade, parece necessário se explicitar para o Direito
Administrativo como um todo – já que o problema não é restrito a determinados
setores da Administração Pública ou entes federativos – a necessidade de que a sua
interpretação deve levar em consideração as exigências práticas com as quais o ad-
ministrador tem que lidar em cada caso concreto, pois a Administração Pública não se
destina apenas a fazer belas subsunções formais, mas a transformar concretamente a
realidade de acordo com o programa constitucional.

Com efeito, as dificuldades de toda ordem enfrentadas pelo administrador público


são muitas e não podem deixar de ser levadas em consideração pelos órgãos de controle.
Por isso mesmo, o § 1º do artigo 22 determina que “em decisão sobre regularidade de
conduta ou validade de ato, contrato, ajuste, processo ou norma administrativa, serão consi-
deradas as circunstâncias práticas que houverem imposto, limitado ou condicionado a ação
do agente”.
O artigo 8º do Decreto n. 9.830/19 repete, com outras palavras, a norma do artigo
22 da LINDB. No § 2º determina que a decisão sobre a regularidade de conduta ou a validade
de atos, contratos, ajustes, processos ou normas administrativas (referida no § 1º), observe
“o disposto nos artigos 2º, 3º ou 4º”, que são os dispositivos que contêm normas sobre a
motivação. Por outras palavras, a decisão sobre a regularidade de conduta ou de vício de ile-
galidade, não pode basear-se em valores abstratos, deve levar em conta a situação concreta
enfrentada pela autoridade, deve apontar os efeitos da decisão nas esferas administrativa e
controladora, deve observar a adequação, proporcionalidade e razoabilidade. A motivação
deve observar essas exigências.

4 DO PRINCÍPIO DA PROPORCIONALIDADE

O princípio da motivação deve ser combinado com o da proporcionalidade. A LINDB


exige que se demonstre a necessidade e adequação da medida imposta ou da invalidação
decretada, levando em consideração as possíveis alternativas. Lembre-se a lição de Robert
Alexy que, para a proporcionalidade, em sentido amplo, se exige demonstração de adequa-
ção, necessidade e proporcionalidade em sentido estrito.
O parágrafo único do artigo 21 da lei, na parte final, proíbe que, para fins de regu-
larização de um ato ou contrato ilegal, se imponham aos sujeitos atingidos ônus ou perdas
que, em razão das peculiaridades do caso, sejam anormais ou excessivas. Trata-se também
de aplicação do princípio da proporcionalidade. Aqui também a medida repete, em outros
termos, norma que já se contém no artigo 2º, parágrafo único, inciso VI, da Lei de Processo
Administrativo federal (Lei n. 9.784/99), o qual exige, nos processos administrativos, se
258 Maria Sylvia Zanella di Pietro

observe a “adequação entre meios e fins, vedada a imposição de obrigações, restrições e


sanções em medida superior àquelas estritamente necessárias ao atendimento do interesse
público”.
A norma do artigo 21 da LINDB repete-se no artigo 4º, § 2º, do Regulamento. E o §
4º do mesmo dispositivo estabelece a possibilidade de modulação dos efeitos da declaração
de invalidade, prevendo a possibilidade, para o administrador, de “I – restringir os efeitos da
declaração; ou II – decidir que sua eficácia se iniciará em momento posteriormente defini-
do”. Pelo § 5º do artigo 4º, “a modulação dos efeitos da decisão buscará a mitigação dos
ônus ou das perdas dos administrados ou da administração pública que sejam anormais ou
excessivos em função das peculiaridades do caso”.
Ainda a exigência de proporcionalidade está presente na lei em matéria de aplicação
de sanções.
O artigo 22, § 2º, contém norma que repete preceito que aparece de longa data nos
estatutos dos funcionários públicos, como é o caso do artigo 128 da Lei n. 8.112/90: “Na
aplicação de sanções serão consideradas a natureza e a gravidade da infração cometida,
os danos que dela provierem para a administração pública, as circunstâncias agravantes ou
atenuantes e os antecedentes do agente”.
Tudo isso tem que ser demonstrado na motivação da sanção. E já tem sido aplicado
pela jurisprudência. São inúmeras as ações judiciais em que o autor reclama do excesso de
punição. Mesmo as pessoas que não são servidoras públicas, como as punidas por agên-
cias reguladoras ou outros órgãos que exercem poder de polícia, com muita frequência vão
a juízo para alegar os excessos da punição diante da infração praticada. Só que agora não se
trata apenas de um princípio, mas de um comando legal. Trata-se de regra jurídica.
Ainda sobre a proporcionalidade na aplicação de sanções, o § 3º do artigo 22 da LIN-
DB estabelece que “as sanções aplicadas ao agente serão levadas em conta na dosimetria
das demais sanções de mesma natureza e relativas ao mesmo fato”.
Esse dispositivo é especialmente relevante diante da sobreposição de instâncias san-
cionadoras, agasalhadas pelo direito positivo. O mesmo fato pode ensejar punição na esfera
administrativa, na esfera cível (pela aplicação da lei de improbidade administrativa, ou pela lei
anticorrupção), na esfera do Tribunal de Contas, na esfera do Cade, na esfera das agências
reguladoras. Muitas vezes, a mesma sanção é prevista em várias leis. Nesse caso, o § 3º do
artigo 22 exige que as sanções aplicadas aos agentes, em uma das instâncias seja levada
em consideração em outras instâncias, na dosimetria das demais sanções. O objetivo é
impedir a cumulação de sanções pela prática da mesma infração. Não há como aplicar, por
exemplo, duas vezes a pena de multa ou a proibição de receber incentivos do poder público,
ou a declaração de inidoneidade.
A nova LINDB e o direito administrativo: o que esperar? 259

O Supremo Tribunal Federal já decidiu que o Tribunal de Contas da União não pode
aplicar sanções que já foram levantadas em acordo de leniência.3
Por sua vez, o Tribunal de Contas da União4 realçou o aspecto da unicidade do
sistema de controle. Ele reconheceu que o acordo de leniência, tendo natureza contratual,
só produz efeitos entre as partes. Como o Tribunal não participou do acordo de leniência, ele
não poderia ser alcançado pelos seus efeitos. No entanto, entendeu que:

as diversas instâncias de controle devem atuar em prol da unidade do sistema de


combate aos ilícitos que são instrumentalizados a perseguir e sancionar. Tomando por
base a ideia de um microssistema de tutela da moralidade e da probidade públicas,
compreendo que o Tribunal de Contas, o Ministério Público, o Ministério TFC e o CADE
devem atuar, nos eventuais espaços de sobreposição, no sentido de cooperar entre si
com vistas a maximizar a eficácia de defesa dos referidos bens jurídicos, sob a ótica
do Estado como um todo.

5 CONSIDERAÇÕES FINAIS

Diante dos aspectos da LINDB, apontados nos itens anteriores, ficam algumas inda-
gações: O que esperar? O que exigir?
A lei não é muito fácil de ser entendida e aplicada no dia a dia pelo servidor público,
dependendo da categoria em que se insere e do nível de preparo exigido para o cargo ou
emprego que ocupa.
A sua compreensão depende, em grande parte, das lições e experiências que o servi-
dor vai vivenciando no exercício de suas funções. Ele pode e deve ser orientado pelos órgãos
jurídicos que existem em todos os níveis da Administração Pública. A efetiva aplicação da
lei depende em grande parte de sua aceitação pelos órgãos de controle, especialmente do
Poder Judiciário.
Embora, aparentemente, a lei apresente, a uma primeira leitura, alguma dificuldade
de entendimento, o fato é que ela não contém tantas inovações como pode parecer. Muitos
dos preceitos por ela adotados já são aplicados pela jurisprudência dos tribunais, inclusive
dos Tribunais de Contas.
O seu descumprimento pela Administração Pública pode ser corrigido nas vias de
controle e judiciais.
Além dos textos já citados, contendo comentários sobre a lei, é importante lembrar
que, em 14 de junho de 2019, foi realizado um seminário pelo Instituto Brasileiro de Direito

3
Medida Cautelar no MS-35.435-DF, Rel. Min. Gilmar Mendes, j. 13-04-2018.
4
Acórdão 1214/2018, relatado pelo Ministro Benjamin Zymller, em 30-05-2018.
260 Maria Sylvia Zanella di Pietro

Administrativo (IBDA), reunindo professores de direito administrativo de várias Universida-


des, no Município de Tiradentes, em Minas Gerais, do qual resultou a aprovação de “Enun-
ciados relativos à interpretação da LINDB e seus impactos no Direito Administrativo”. Tais
enunciados foram divulgados por meio de artigo de Fabrício Motta, então presidente daquele
Instituto, conforme publicação no Conjur do dia 11 de julho de 2019.

REFERÊNCIAS

ARAGÃO, Alexandre Santos. Artigo 21. In: PEREIRA, Flávio Henrique Unes (Coord.). Segurança jurídica
e qualidade das decisões públicas. Desafios de uma sociedade democrática. Brasília: Senado Federal,
2015.

DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Direito administrativo. 32. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2019.

MARQUES NETO, Floriano de Azevedo; SUNDFELD, Carlos Ari; e outros. Resposta aos comentários
tecidos pela Consultoria Jurídica do TCU ao PL 7.448/2017. Revista Brasileira da Advocacia. São Paulo:
AASP – Associação dos Advogados de São Paulo; Revista dos Tribunais, ano 3, n. 9, p. 289-312, abr./
jun. 2018.

MOTTA, Fabrício. Pela segurança jurídica, precisamos tratar da interpretação da LINDB. Consultor Ju-
rídico, 11 jul. 2019.

PEREIRA, Flávio Henrique Unes (Coord.). Segurança jurídica e qualidade das decisões públicas. Desa-
fios de uma sociedade democrática. Brasília: Senado Federal, 2015.
Riscos de improbidade administrativa na gestão
de calamidades públicas e as consectárias res-
ponsabilizações jurídicas do agente público1

Rogério Gesta Leal


Doutor em Direito (UFSC)
Professor titular (Unisc/FMP)
Desembargador do Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul

SUMÁRIO: 1 Introdução; 2 Tempos de (des)ordem: limites de contenções; 3 A atuação da Ad-


ministração Pública em face de estados de calamidade pública: aspectos normativos e conceituais
preliminares; 4 A dispensa de licitação pública como espécie de improbidade administrativa em face de
calamidades públicas; Referências.

1 INTRODUÇÃO

A Administração Pública em geral tem sido chamada a responder, cada vez mais,
por demandas diversas e complexas do Mercado e da Sociedade, muitas vezes tensas e
justapostas, levando a escolhas disjuntivas, eis que implicam eleger algumas prioridades em
detrimento de outras. Por certo que estas escolhas (em alguns casos trágicas) reclamam
razões de justificação e fundamentação amplas, legitimas e democráticas, submetidas a
todo o tipo de controle, preventivos e curativos.
Pretendemos no presente texto avaliar os riscos de configuração de improbidade
administrativa no âmbito da gestão de calamidades públicas e as respectivas responsabili-
zações dos agentes públicos, notadamente no caso da dispensa de licitação para o atendi-
mento destas demandas.

2 TEMPOS DE (DES)ORDEM: LIMITES DE CONTENÇÕES

Tempos de crises institucionais, políticas e econômicas, modo geral, colocam na


agenda dos debates internacionais e nacionais grandes e sérios perigos a determinadas con-
quistas, princípios e liberdades constitucionais a Democracia. Aqui, a tentação em desres-
peitar tais direitos e garantias encontra-se em seu apogeu, enquanto que os seus tradicionais

1
Artigo elaborado para publicação no livro do XXXIII Congresso Brasileiro de Direito Administrativo, em Campo
Grande, Mato Grosso do Sul, nos dias 16 a 18 de outubro de 2019.
262 Rogério Gesta Leal

mecanismos de efetivação e proteção estão em baixa; sutilezas legais podem ser deixadas
de lado para serem apreciadas somente em tempos de paz e tranquilidade.2
Em meio a tais turbulências garantias constitucionais são colocadas a prova, razão
pela qual os compromissos permanentes em preservar e manter direitos e liberdades de-
vem estar constantemente equalizados/convergentes com os cuidados de não transmutar a
Constituição em um pacto suicida, na expressão do Juiz da Suprema Corte Norte-americana
Robert H. Jackson. O Juiz Jackson, em 1949, no caso Terminiello v. Chicago, no qual a maio-
ria dos magistrados decidiu que lei municipal de Chicago que proibia o discurso de provocar
a ira do público, convidar a disputas, provocar situação de inquietação ou criar distúrbios,
estaria violando as Primeira e Décima Quarta Emendas à Constituição Norte-americana, dis-
sentiu sob o argumento de que:

This Court has gone far toward accepting the doctrine that civil liberty means the
removal of all restraints from these crowds and that all local attempts to maintain
order are impairments of the liberty of the citizen. The choice is not between order and
liberty. It is between liberty with order and anarchy without either. There is danger that,
if the Court does not temper its doctrinaire logic with a little practical wisdom, it will
convert the constitutional Bill of Rights into a suicide pact.3

Os cenários de emergências, crises, riscos e perigos nos quais nos encontramos


de forma, muitas vezes, involuntária, são cada vez mais recorrentes, derivando sequelas de
multiníveis, aumentando os custos de mantença de liberdades públicas, direitos e garantias
políticas tradicionais; do mesmo modo, vão gerando tensões de dimensões trágicas entre
valores democráticos e respostas a emergências políticas, sociais e institucionais. Basta
analisarmos – usando exemplo radical – algumas situações envolvendo nações democráti-
cas em face de sérias ameaças terroristas que colapsam o exercício de liberdades públicas
dos seus cidadãos.4
Ao mesmo tempo, exigências e crises agudas tem desafiado vários conceitos cen-
trais da democracia constitucional, e mesmo de sistemas jurídicos tradicionais, surgindo
preocupações sobre qual a extensão e em que medida podem ser justificadas violações de
valores fundamentais em nome da sobrevivência da própria democracia. Em outras palavras,

2
Ver o texto de: GROOM, Brian. Detaining suspects not abuse of Human Rights. Financial Times, London, 12 nov.
2001.
3
US SUPREME COURT. Terminiello v. City of Chicago, 337 U.S. 1. 1949. p. 24. Ver na mesma linha o texto de:
BELLESILES, Michael A. Suicide pact: new readings of the second amendment. Constitutional Commentary 764,
v. 16, 1999. Disponível em: https://scholarship.law.umn.edu/concomm/764. Acesso em: 21 jan. 2019.
4
Ver o texto de: ARREGUIN-TOFT, Ivan. How the weak win wars: a theory of asymmetric conflict. New York: Cam-
bridge University Press, 2005. Também ver o texto de: WOLIN, Sheldon S. Democracy incorporated: managed
democracy and the specter of inverted totalitarianism. New Jersey: Princeton University Press, 2008.
Riscos de improbidade administrativa na gestão de calamidades públicas... 263

em que medida governos republicanos e democráticos podem justificar ações nestas dire-
ções sem se transformar em regimes autoritários?
Quando exigências extremas surgem, de forma quase invariável, as forças políticas e
econômicas, institucionais e sociais, deixam às mãos do Poder Executivo a responsabilidade
imediata de seus enfrentamentos, levando ao seu fortalecimento enquanto poder de Estado,
e isto não somente em face dos demais poderes estatais, mas também diante de direitos
individuais e liberdades públicas.5
Por outro lado, se o Poder Executivo tem assumido protagonismo diferenciando no
confronto de cenários de crises sociais envolvendo, principalmente, riscos e perigos trágicos
e iminentes, a despeito da vontade ou mesmo reação dos outros poderes de Estado, isto
também ocorre justamente porque o tempo e a forma tradicionais de tomada de decisões na
Democracia representativa ordinária, por vezes, não atende minimamente – por serem mais
morosos – as expectativas e necessidades de determinadas demandas comunitárias mar-
cadas por níveis de complexidade e emergências imediatas. Como nos diz Daron Acemoglu
e James Robinson:

While such expansions and concentrations of powers are not unique to times of cri-
sis, but rather are part of the modernization of society and the need for governmental
involvement in an ever-growing number of areas of human activity, it can hardly be de-
nied that such phenomena have been accelerated tremendously (and, at times, initia-
ted) during emergencies. Our acceptance of the growing role of the executive branch
as natural may be attributed, in part, to our conditioning during times of emergency.6

Em face disso, dois vetores aparentemente antitéticos estão em constante tensão: a


existência de necessárias restrições e limitações aos poderes governamentais constituem-se
em atributos fundamentais dos regimes democráticos modernos; por outro lado, os ideias
deste modelo de Democracia representativa, como os direitos individuais, a legitimidade dos
poderes instituídos, a accountability social, os sistemas de controles dos poderes, sugerem
que, em tempos difíceis de instabilidades econômicas, políticas e sociais, podem surgir
oportunidades em que este mesmo Estado precise se valer de medidas urgentes/adequadas
– sob o ponto de vista de suas efetividades – para dar conta de problemas de alta gravidade.
Emergências inusitadas em termos de demandas públicas tendem a provocar ini-
ciativas de contenção ou solução a elas com velocidade diferida da legislativa e, por ve-

5
Ver o texto de: ROSENTHAL, Peter. The new emergencies act: four times the war measures act. Manitoba Law
Journal, n. 563, p. 576-80, 1991. Disponível em: https://heinonline.org/HOL/LandingPage?handle=hein.journals/
manitob20&div=44&id=&page=. Acesso em: 11 fev. 2019.
6
ACEMOGLU, Daron; ROBINSON, James. The role of institutions in growth and development. Review of Economics
and Institutions, v. 2.1, 2010. p. 16. ISSN 2038-1379. DOI 10.5202. Disponível em: http://www.rei.unipg.it/rei/
article/view/14. Acesso em: 18 fev. 2019.
264 Rogério Gesta Leal

zes, a partir de premissas não raro apressadas e divorciadas das conquistas civilizatórias
de direitos e garantias, colocando à disposição das autoridades públicas maiores poderes
abrangentes para resolver problemas urgentes.
É fácil compreendermos isto na medida em que se afigura mais confortável fazer
aprovar medidas de exceção do que questionar porque elas são necessárias, além do que ao
poder instituído garante protagonismo de ação e reação, o que sem dúvidas não é suficiente,
pois tão somente mostra o que autoridades públicas podem fazer (atacando as consequên-
cias e deixando de lado as causas) em vez de estarem inertes.
Assim, em cenários democráticos, é preciso reconhecer, o conceito de poderes de
emergência remete a situações de fôlego curto e medidas transitórias que são constituídas
para responder a situações particulares, para, então, serem removidos o mais rápido possí-
vel, tanto quanto bastem para dar cabo exitoso das razões pelas quais foram instituídos. Em
outras palavras, a sensação de que medidas de emergência, as quais podem se desviar do
que é aceitável normalmente no âmbito e confins do sistema legal em tempos ordinários, não
podem afetar campos legais e políticos durante muito tempo, sob pena de fazer com que a
natureza draconiana das ações perpetradas seja aceita mais facilmente.
É muito fácil dizer que em certas situações, quando o pânico, o medo, o ódio, e
emoções similares prevalecem, discursos e análises racionais são colocadas de lado na
formulação de respostas a demandas públicas decorrentes. O problema é que, quando de-
parados com sérias ameaças ou com emergências extremas, o público em geral – e seus
líderes – costumam ter dificuldades de avaliar com precisão racional os riscos e perigos
efetivos que se postam a Sociedade, até porque discursos, práticas e estratégias ideológicas
ganham folego em busca de hegemonias conjunturais.7
Qualquer ato de balanceamento/ponderação levando em conta as ameaças – reais e
fictícias – que precisam ser atendidas, e os custos para a Sociedade e seus membros, para
os fins de enfrentar tudo isto de diferentes maneiras, precisa sempre ser muito bem funda-
mentado e controlado, mesmo quando aplicado com a melhor das atenções.
Para alguns teóricos desta problemática, as pessoas se comportam a partir de con-
juntos de limitações cognitivas e preconceitos que podem preveni-las diante da captura das
reais probabilidades de ocorrência de certos tipos de riscos e incertezas. As avaliações
precisas destas reclamam informações relacionadas e confiáveis da magnitude do que está
envolvido, e das possibilidades de que se materializem.8

7
Ver o excelente texto de: FENTON, Natalie. The internet and radical politics. In: CURRAN, J.; FENTON, N.; FREED-
MAN, D. Misundestanding the internet. New York: Routledge, 2012.
8
Ver os textos de: CASTELLS, Manuel. Redes de indignação e esperança: movimentos sociais na era da internet.
Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2013; CASTELLS, Manuel. A sociedade em rede – a era da informação. São Paulo:
Paz e Terra, 2012; CASTELLS, Manuel. Comunicació i poder. Barcelona: UOC, 2009; CASTELLS, Manuel. Comuni-
cação, poder e contra-poder na sociedade em rede. Jornal Internacional de Comunicação, v. 1, n. 1, p. 29, 2007.
Riscos de improbidade administrativa na gestão de calamidades públicas... 265

O conceito de racionalidade limitada aqui relaciona-se com nosso insuficiente co-


nhecimento sobre os estados de coisas relacionados naqueles cenários, e as imperfeições
das tecnologias que deveriam nos auxiliar para o enfrentamento de emergências sociais e
individuais as mais variadas, o que, em parte, explicam as falhas para lidar com informações
e dados inéditos, isto porque importantes elementos de processos cognitivos e de análises
precisam ser investigados para fins de determinar – mesmo que aproximadamente – conse-
quências e alternativas aqueles contextos.
Não podemos olvidar que emergências, caracterizadas como repentinas e geralmen-
te imprevisíveis, situações que requerem ações/respostas imediatas, frequentemente sem
tempo para reflexões e considerações preliminares, acentuam os problemas relacionados
com habilidades para processar informações e avaliar situações complexas. Consequente-
mente, tais exceções tendem a provocar o aumento da dependência em racionalidades/cog-
nitividades mais arejadas diante daqueles, buscando caminhos mais curtos que as pessoas
usam quando tomam decisões refletidas e de maneira mais tranquila, principalmente para
combater a falta de tempo suficiente e apropriada a avalição destes ambientes. O problema
é que, não raro, aquelas racionalidades não operam, e a tendência é serem criados padrões
de avaliações deficitários e equivocados.9
A avaliação de racionalidades deficitárias, pois, evidencia que indivíduos tendem a
conectar as probabilidades de eventos particulares a partir de suas habilidades de imaginar
eventos similares ocorridos no passado, não se dando conta das diferenças espaciais e
temporais (ideológicas, políticas, econômicas, culturais) nas quais se forjaram os padrões
eleitos como diretrizes de suas compreensões. Neste sentido, teorias prospectivas sugerem
que as pessoas tendem a dar peso excessivo a resultados de baixa probabilidade quando os
riscos são altos o suficiente e os resultados são particularmente ruins. Ameaças terroristas,
tais como as ocorridas no 11 de Setembro, são perceptíveis para os fins de elevar as expec-
tativas de novos ataques a níveis muito altos. Assim, nossa percepção de riscos surgidos em
situações de emergência pode ser distorcida.10
Cass Sunstein recentemente sugeriu que as previsões das teorias prospectivas são
especialmente válidas onde os maus resultados afetam ricos, nomeadamente onde envol-
vem não somente sérias perdas, mas onde se produzem particularmente fortes emoções.11

9
Conforme: LUECKE, Richard. Gerenciando a crise. Rio de Janeiro: Record, 2010; e o texto de: ADELANTADO,
José. Desigualdad, democracia y políticas sociales focalizadas. Barcelona: Universidad de Barcelona, 2005.
10
Ver o texto de: KAPLAN, F.; SCHWARTZ, S. (Eds.). Human judgment and decision processes. New York: Acadenzic
Pres, 2005. Ver também o texto de: FRANZONI, Juliana M. Domesticar la incertidumbre en América Latina. Costa
Rica: Universidad de Costa Rica, 2008.
11
SUNSTEIN, Cass R. Probability neglect: emotions, worst cases, and law. John M. Olin Program in Law and Eco-
nomics Working Paper n. 138, 2001. p. 3. Disponível em: http://www.law.uchicago.edu/Lawecon/index.html.
Acesso em: 1º abr. 2019. Refere expressamente o autor que: For those who study the topic of risk regulation,
there are many things to say about this state of affairs. First, safety is a matter of degree; it is foolish to worry, as
people seemed to be doing, about whether they are “safe” or “not safe.” As a statistical matter, most people, in
266 Rogério Gesta Leal

O autor foca no que chama de probabilidades negligentes, no sentido de, muitas vezes, as
teorias das probabilidades não levarem em conta, porque deixam de acessar/avaliar todos
os fatores e variáveis que compõem os ambientes nos quais as probabilidades são demar-
cadas, elegendo tão somente os piores resultados possíveis, os quais invocam emoções
e sentimentos demasiadamente fundamentalistas como o medo, reclamando respostas (a
demandas equivocadas) igualmente radicais.12
É interessante o argumento de Sunstein no sentido de que as pessoas desenvolvem
perspectivas míopes sobre o futuro no qual elas tendem a subvalorizar benefícios e custos
quando os comparam com os atuais. Quando duras medidas/respostas governamentais,
em face de situações delicadas e representativas de perigos, são percebidas pela Sociedade
como socialmente benéficas, os custos de longo prazo para o Estado de Direito e mesmo
para os direitos fundamentais individuais tendem a ser tolerados.
O fato de que os custos do futuro sejam vistos de forma muito intangível e abstrata
em quadros de emergência, especialmente quando comparados com aqueles sentimentos
tangíveis de medos expressivos, associados com o aumento da segurança como resultado
de ações governamentais – sejam quais forem –, somente amplificam os equívocos das
avaliações de emergências reais e políticas públicas consectárias. Ou seja, os ciclos de
radicalização ideológica ou retórica dos discursos do medo (junto com as percepções equi-
vocadas por conta de percepções negligentes e imperitas) em face daquilo que os gestores
públicos não conhecem muito bem (e tampouco desejam conhecer), geram sentimentos
trágicos de pavor horripilante, imediato e violento, da possibilidade de eventos e fenôme-
nos que coloquem em xeque a normalidade de espaços públicos e privados, fomentando a
institucionalização de medidas de força e violência em nome de determinada ordem social.
Temos, todavia, que no Estado Democrático de Direito atual as emergências políticas
e sociais devem ser enfrentadas a partir de ações e reações pautadas por prudência e razoa-
bilidade adequadas as urgências apresentadas, razões pelas quais governantes devem ter
ampla responsabilidade ao determinar quais medidas são necessárias e devem ser tomadas
para lidar com crises de maneira efetiva e eficaz.
Máximas como necessidades não conhecem a lei (salus popula suprema lex ext; in-
ter arma silente leges), ou razões de Estado, estão mais associadas com formas autoritárias
de tratamento daqueles cenários do que democráticas.

most places (not excluding airports), were not at significantly more risk after the attacks than they were before.
(Grifos nossos). Ver também o texto de: SCHREUER, Christoph. Derogation of human rights in situations of public
emergency: the experience of the European Convention on Human Rights. Yale Journal, v. 9, p. 113-132, 1982.
Disponível em: http://digitalcommons.law.yale.edu/yjil/vol9/iss1/6. Acesso em: 20 maio 2019.
12
Lembra Sunstein que: “When a bad outcome is highly salient and triggers strong emotions, government will be
asked to do something about it, even if the probability that the bad outcome will occur is low”. SUNSTEIN, Cass
R. Probability neglect: Op. cit., p. 5.
Riscos de improbidade administrativa na gestão de calamidades públicas... 267

Sob essa marca de realismo político, democracias não representam enigmas reais
em face de emergências, isto porque há restrições que limitam governos no tratamento des-
tas, oriundas tanto de marcos institucionais e orçamentários limitados, como também por
processos e procedimentos democráticos a serem adotados e pautados pelos termos da lei,
porque justamente estes tendem a evitar (ou diminuir) os níveis de ilegitimidade democrática,
abusos de poder e desvios de finalidades.13
Em posição diametralmente oposta à do realismo político de que estamos falando
há o reclame no sentido de que o sistema jurídico não deve, sob qualquer condição e inde-
pendentemente de circunstâncias, reconhecer emergências como merecedoras de especial
tratamento divorciadas dos princípios e regras constitucionais e infraconstitucionais assegu-
radores do regime democrático. Na medida em que o realismo abandona estas premissas, a
Democracia se expõe a instabilidades as mais diversas.14
A despeito dessas posições, entendemos que são as disposições jurídicas vigentes
que devem pautar as respostas governamentais às emergências sociais, e a premissa neural
que está subjacente a tais argumentos é o primado da norma fundamental, determinando que
qualquer que sejam as respostas dadas aos desafios de demandas públicas urgentes, elas
devem estar sustentadas nos confins dos comandos constitucionais.15
Em outras palavras, somente sob o argumento do gerencialismo como paradigma
e modelo de poderes emergenciais, o Estado de Emergência não justifica os desvios even-
tualmente cometidos em face dos sistemas jurídicos ordinários. Nenhum poder especial de
emergência é introduzido em bases permanentes, isto porque estes sistemas costumam
providenciar respostas necessárias para situações de crises eventuais sem depender, dema-
siadamente, de formulações assertóricas legislativas ou executivas inéditas, ou aditivas de
ocasião, razão pela qual a ocorrência de qualquer particular emergência não pode justificar
ou explicar a suspensão, por todo ou em parte, dos padrões normativos vigentes.16
O firme argumento sobre a aplicabilidade de normas ordinárias em cenários de emer-
gência institucional e social reforçam a tese de que quaisquer operações de governo somente

13
Ver o texto de: BALDWIN, David A. Neoliberalism, neorealism, and world politics. In: ELMAN, Colin; JENSEN,
Michael A (eds.) Realism reader. New York: Routledge, 2014.
14
Conforme o texto de: MURRAY, Alastair. Reconstructing realism: between power politics and cosmopolitan ethics.
Edinburgh: Keele University Press, 2007.
15
Como lembra VASQUEZ, John A. The power of power politics: a critique. New Brunswick: Rutgers University
Press, 2009. p. 61: “While terrorists are lawless and operate outside the sphere of legal principles, democratic
governments must be careful not to fight terrorism with lawless means. Otherwise, these governments may
succeed in defeating terrorism at the expense of losing the democratic nature of the society they are defending.
The assumption is, therefore, that the exception is governed and controlled by legal norms”.
16
Neste sentido ver o texto de: DERSHOWITZ, Alan M. Is it necessary to apply “physical pressure” to terrorists—and
to lie about it? Israel Law Review, v. 23, n. 192, 1989. Ver também o texto de: KITTRIE, Nicholas N. Patriots and
terrorists: reconciling human rights with world order. Case Western Reserve Journal of International Law, v.13, iss.
21981. Disponível em: https://scholarlycommons.law.case.edu/jil/vol13/iss2/3. Acesso em: 6 maio 2019.
268 Rogério Gesta Leal

devem se dar dentro dos limites da lei, colocando os agentes públicos em alerta para serem
mais responsáveis em suas gestões, evitando a defraudação dos sistemas normativos a que
estão vinculados. Em face desta perspectiva, a necessidade permanente de prestação de
contas e transparência de tais atos justifica a exposição pública como ferramenta de controle
e responsabilização maior de suas ações.
Lembremos que, se o poder já está instalado em instâncias governamentais e com
protagonistas com escopos e projetos mais privados do que públicos, isto torna mais fá-
ceis ações ilícitas em face daquelas situações políticas nas quais relações ainda não estão
consolidadas. Por isto a inexistência de limites normativos a governabilidade – inclusive
em cenários de emergências – pode encorajar inescrupulosos líderes políticos a fomentar
atmosferas de medo, invocando poderes extraordinários de gestão.
No caso da Administração Pública brasileira é possível que o gestor lance mão de
medidas de urgência para lidar com situações calamitosas ou trágicas que, de inopino, sur-
gem em seu quotidiano, como os casos de calamidade pública, e isto está minimamente re-
gulamentado, mas, mesmo assim, tem dado ensejo para o cometimento de muitas irregula-
ridades e ilícitos de diversas ordens, e aqui queremos destacar a improbidade administrativa
como possibilidade comportamental, matéria que vamos abordar na sequência.

3 A ATUAÇÃO DA ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA EM FACE DE


ESTADOS DE CALAMIDADE PÚBLICA: ASPECTOS
NORMATIVOS E CONCEITUAIS PRELIMINARES

É preciso que entendamos como os marcos normativos brasileiros estabelecem as


condições e possibilidades do enfrentamento administrativo de situações de emergências
nominadas de calamidades públicas.
Neste sentido importa tomar como referência os termos da Lei Federal n.
12.340/2010, e do Decreto Federal n. 7.527/2010, os quais demarcam em que situações, e
por quais procedimentos, podem ser instituídos/declarados estados de calamidades públi-
cas nas demais entidades federativas da União.
Neste ponto, é o art. 2º, do Decreto referido, que apresenta tais conceitos, a começar
pelo de defesa civil, a ser providenciada por Estados e Municípios, através de ações preventi-
vas, de socorro, assistenciais e recuperativas, destinadas a evitar desastres e minimizar seus
impactos para a população, assim como restabelecer a normalidade social.
Aqui já podemos perceber o conjunto de categorias indeterminadas que a normativa
utiliza para tratar de situações, riscos e perigos que efetivamente se apresentam como de
força maior, envolvendo casos fortuitos não passiveis de previsão e acautelamento anterior.
Tais categorias, entretanto, não autorizam atribuição de sentido a partir tão somente da dis-
Riscos de improbidade administrativa na gestão de calamidades públicas... 269

cricionariedade absoluta do Administrador, mas estão vinculadas necessariamente aos dita-


mes de gestão pública proba e aos princípios e regras constitucionais e infraconstitucionais
aplicáveis a espécie.
E por que dizemos isso? Pelo fato de que o que se espera da Administração Pública
proba e eficiente é que ela permanentemente desenvolva políticas e ações governativas que
previnam desastres e calamidades públicas, e só conseguirá fazer isto com planejamento,
programação, investimento, diagnósticos e prognósticos confiáveis de demandas e respos-
tas da gestão, nos mais diversos níveis de gravidade e urgência. Mesmo adotando medidas
de evitação, se estes vierem a ocorrer por conta de fenômenos efetivamente fortuitos ou de
força maior, então impõem-se ao administrador a promoção de socorro, medidas assisten-
ciais e recuperativas, destinadas a minimizar os impactos para a população, assim como
restabelecer a normalidade social.
Para além desses parâmetros, também o Decreto apresenta outros mais específi-
cos a autorizar o reconhecimento do estado calamitoso, tais como: (i) diante de desastres,
ora entendido como resultado de eventos adversos, naturais ou provocados pelo homem
sobre um ecossistema vulnerável, causando danos humanos, materiais ou ambientais e
consequentes prejuízos econômicos e sociais.17 E novamente temos de nos questionar: (i) o
que são eventos adversos e como se caracterizam? (ii) como identificar ecossistemas vul-
neráveis? (iii) há disposições normativas exaustivas que os qualificam? (iv) qualquer dano
humano, material ou ambiental que gere qualquer tipo de prejuízo econômico e social, pode
autorizar o enquadramento da ocorrência como desastre e para os fins da institucionalização
do estado de calamidade pública? (v) quem responde a todas estas interrogações?
Os mesmos âmbitos de incertezas assolam os conceitos de situação de emergência
e de estado de calamidade pública, os quais o Decreto Federal toma por sinônimos,18 ao
descreve-los como situação anormal, provocada por desastres – ou seja, por contextos de
significados abertos e condicionados a variáveis múltiplas –, causando danos e prejuízos
que impliquem o comprometimento parcial da capacidade de resposta do poder público do
ente atingido. Como podemos saber qual a capacidade de resposta que o poder público tem
que ter para determinados cenários de emergência e, a partir disto, delimitar qual o compro-
metimento parcial desta capacidade?
Agregadas a tais dificuldades hermenêuticas se apresentam diversos problemas re-
lacionados as ações e políticas que a Administração Pública pode/deve realizar para dar
conta dos riscos, perigos e danos – instalados e iminentes – que decorrem das condições de
urgência, descritos a partir do inciso V, do mesmo art. 2º (ações de socorro, assistência as
vítimas, reestabelecimento de serviços essenciais, reconstrução e prevenção), e todas elas

17
Inciso II, do art. 2º, do Decreto Federal n. 7.527/2010.
18
Inciso III, do art. 2º, do Decreto Federal n. 7.527/2010.
270 Rogério Gesta Leal

reclamam profundos e eficientes mecanismos de controle preventivo e curativo, pois podem


decorrer daí situações de malversação de patrimônio público, e mesmo por negligência, im-
prudência ou imperícia, o cometimento de crimes ou improbidades as mais diversas contra
a Administração Pública.19
Estamos querendo dizer que: (i) a situação de emergência e o estado de calamidade
pública para se configurar precisam, histórica e contextualmente, estar fora da capacidade de
alcance de previsibilidade, evitação e resposta ordinárias do Poder Público; (ii) esta medida
de alcance tem de ser aferida a partir de indicadores objetivos e públicos de eficiência e pro-
bidade das políticas públicas de gestão, assim como das capacidades cognitivas, estruturais
e conjunturais (espaciais e temporais) de respostas preventivas e curativas do poder público,
pois suas ausências poderão configurar, eventualmente, responsabilidades por omissões ou
por negligência, imperícia ou imprudência.20
Em face disto, terá o gestor público que providenciar, a todo o tempo, os elementos
para a delimitação, o mais objetiva possível, das exigências normativas perquiridas, as quais
vão servir também para se estabelecer os controles de legitimidade e legalidade levados
a efeito para o seu regular enfrentamento, assim como as responsabilidades decorrentes,
isto porque as particularidades distintivas de calamidades e desastres são muitas, sendo
necessárias apreciações pontuais – com critérios claros – as suas delimitações e enfrenta-
mentos.21
Sem sombra de dúvidas que isto envolve – direta e indiretamente – a capacidade
da gestão pública ser eficiente (responsável) em termos de diagnósticos das demandas
(ordinárias e emergenciais) de sua comunidade, e na geração adequada de políticas preven-
tivas e curativas para elas, pois aqueles gestores que não se ocupam de constituir planos
e programas de governos fundados em cenários confiáveis de agendas do presente e do

19
Destacamos o item prevenção aqui porque ele vai ser fundamental como imposição ao gestor público no desen-
volver políticas públicas de evitação notadamente de ocorrências que, a despeito de trágicas e sazonais, tem se
repetido no tempo, descaracterizando – eventualmente – emergência inédita que autorize medidas de exceção,
basta lembrarmos de enchentes periódicas que arrasam núcleos habitacionais todos os anos, e que estão em
situação de clandestinidade no âmbito da ocupação do solo urbano.
20
Por tais razões, o Tribunal de Contas da União brasileiro já teve oportunidade de editar um enunciado dizendo
o seguinte: É pressuposto da aplicação de dispensa de licitação por emergência ou calamidade pública que a
situação adversa não possa, em alguma medida, ser atribuída à culpa ou dolo do agente público que tinha o dever
de agir para prevenir a ocorrência de tal situação. BRASIL. TCU. Autos do Acórdão 224/2007. Plenário. Relator
Min. Marcos Vinicius Vilaça. data da sessão em: 28 fev. 2007. Disponível em: https://pesquisa.apps.tcu.gov.br/.
Acesso em: 19 jul. 2019. Por outro lado, há procedimentos próprios exigidos pelo marco normativo sob comento
para o regular reconhecimento/declaração de situação de emergência e estado de calamidade pública para os
efeitos jurídicos de que estamos falando. Ver também a Instrução Normativa 001, de agosto de 2012, emitida pelo
Ministério da Integração Nacional, regulamentando ainda mais esses requisitos.
21
Claro que, por vezes, em face da gravidade das calamidades que estão a ocorrer, pois não concluíram seus ciclos
de efetivação e danos, resta difícil demarcar com precisão matemática quais são estes elementos, mas ao menos
informações relacionados as ocorrências já consolidadas e as medidas que se exigem diante delas é possível
e necessário constituir. Registre-se que os Estados brasileiros costumam legislar supletivamente sobre estas
matérias.
Riscos de improbidade administrativa na gestão de calamidades públicas... 271

futuro, certamente estarão mais expostos a surpresas e eventos inesperados por conta da
incapacidade/incompetência de tê-los previstos, a despeito dos seus indicadores estarem
presentes no quotidiano da Comunidade.
Se de um lado a legislação nacional criou estas possibilidades de gestão de crises
envolvendo o administrador público, por outro trouxe dever correlato por parte destes em
justificar e fundamentar seus atos a este título de forma muito bem articulada e convincen-
te, sempre vinculado as hipóteses normativas especiais (infraconstitucionais), e as gerais
(constitucionais), em termos de princípios e regras jurídicas, sob pena de correr o risco de
cometer ilícitos cíveis, administrativos e penais. Dentre esses, para os fins deste trabalho,
queremos dar destaque a dispensa de licitação como espécie de improbidade administrativa
descrita no inciso VIII, do art. 10º, da Lei n. 8.429/1992, em face das chamadas situações
de calamidade pública, prática muito corrente em vários Municípios brasileiros.

4 A DISPENSA DE LICITAÇÃO PÚBLICA COMO ESPÉCIE


DE IMPROBIDADE ADMINISTRATIVA EM FACE DE
CALAMIDADES PÚBLICAS

Como vimos até aqui são muitas as hipóteses de enquadramento de riscos e peri-
gos – iminentes e consolidados – como calamidades públicas que estejam a exigir políticas
de prevenção ou gerenciamento de danos sociais por parte dos administradores públicos
brasileiros.
As normativas acima referidas, propositadamente, tratam da matéria sob comento
ora de forma conceitualmente precisa, identificando quais os elementos objetivos que ca-
racterizam situações de calamidades públicas; ora o fazem de modo mais genérico, com
categorias mais abertas em termos de sentidos, evidenciando significações plurais diante,
até, da natureza de eventos de força maior ou casos fortuitos de difícil delimitação imediata
e definitiva.
O problema é que o sistema jurídico nacional atual conta com marcos normativos
diversos que se ocupam da regulação e responsabilização dos administradores públicos
quando se desviam de finalidades lícitas (por meios e resultados), prevendo sanções dis-
tintas – e cumulativas – a eles, desde: (a) suspensão de direitos políticos, perda de cargo
e função pública, nos termos do art. 37, parágrafo 4º, da Constituição Federal de 1988, e
art. 12, I, da Lei de Improbidade Administrativa (n. 8.429/92); (b) ressarcimento de dano e
multa civil, art. 12, I, da Lei de Improbidade Administrativa (n. 8.429/92); (c) multa aplicável
pelo Tribunal de Contas aos chefes de Poderes e ocupantes de cargos de direção de órgãos
públicos, nos termos do art. 5º, da Lei Federal n. 10.028/2000; (d) prisão, multa e penas
restritivas de direitos, nos termos da mesma Lei Federal n. 10.028/2000, que criou capitulo
272 Rogério Gesta Leal

especifico no Código Penal para crimes contra as finanças públicas22; (e) as penas dos cri-
mes praticados por Prefeitos nos termos do Decreto n. 201/67.
Nas situações de calamidade pública sob comento, o ordenador da despesa pode,
mediante os termos da lei (todas as normas aqui referidas, portanto), dentre outras medidas,
fazer uso, se for o caso, de contratações diretas de serviços, obras e produtos para realizar
o enfrentamento das demandas que se apresentam por decorrência das situações calamito-
sas indicadas, e o faz, em tese, ao abrigo do disposto no art.24, IV, da Lei de Licitações (n.
8.666/93), que disciplina:

IV - nos casos de emergência ou de calamidade pública, quando caracterizada ur-


gência de atendimento de situação que possa ocasionar prejuízo ou comprometer
a segurança de pessoas, obras, equipamentos e outros bens, públicos ou particu-
lares, e somente para os bens necessários ao atendimento da situação emergencial
ou calamitosa e para as parcelas de obras e serviços que possam ser concluídas no
prazo máximo de 180 (cento e oitenta) dias consecutivos e ininterruptos, contados
da ocorrência da emergência ou calamidade, vedada a prorrogação dos respectivos
contratos.

É certo que alguns casos de emergência ou de calamidade pública se caracterizam


como de conteúdos jurídicos indeterminados, que reclamam complementação normativa
oriunda do sistema jurídico como um todo, em especial das Leis acima referidas, e não da
subjetividade absoluta do administrador.
É verdade também que a doutrina majoritária de Direito Administrativo no Brasil tem
sustentado que esta possibilidade de dispensa de licitação, nas situações sob comento, re-
fere-se aos casos em que o decurso de tempo necessário ao procedimento licitatório normal
impediria a adoção de medidas indispensáveis para evitar danos irreparáveis. Quando fosse
concluída a licitação, o dano já estaria concretizado. A dispensa de licitação e a contratação
imediata representam uma modalidade de atividade acautelatória do interesse público.23
Temos que esta assertiva não se sustenta de forma isolada e aprioristicamente, pois
quando a situação de emergência ou de calamidade pública origina-se, total ou parcialmente,
da falta de planejamento, da desídia administrativa ou da má gestão de recursos disponíveis
por parte da Administração Pública – seja por culpa ou dolo –, que tinha o dever de agir para
prevenir o ocorrido, ai não podemos aplicar a lógica meridiana da aceitabilidade simples da

22
Estamos falando dos arts. 359-A, 359-B, 359-C, 359-D, 359-E, 359-F, 359-G e 359-H, do Código Penal brasi-
leiro, quase todos com disposições que podem ser consideradas norma penal em branco, ou seja, de conteúdo
incompleto, com certa vagueza, o que pode criar dificuldades de imputação mas também de defesa.
23
JUSTEN FILHO, Marçal. Comentários a Lei de Licitações e contratos administrativos. São Paulo: Dialética, 2002.
p. 240. Grifos nossos. Ver também: FIGUEIREDO, Lúcia Valle. Curso de direito administrativo. São Paulo: Malhei-
ros, 2015. p. 307.
Riscos de improbidade administrativa na gestão de calamidades públicas... 273

dispensa de licitação e contratação direta. Então, se houver má-fé no sentido de não se tomar
nenhuma providência anterior para que os fatos danosos não viessem a ocorrer, e somente
quando estes estiverem na iminência de ocorrer é que o agente público vem a contratar,
trata-se, aí, de uma emergência “fabricada” ou “fictícia”, que, apesar de haver a necessidade
da contratação, levará à responsabilidade do agente público.24
E temos muitas ocorrências fabricadas ou fictícias de calamidades públicas decre-
tadas por gestores irresponsáveis – agindo com culpa e dolo –, pois não se revelam reais
aquelas que deveriam ter sido resolvidas de imediato, quando já se tinha conhecimento muito
tempo antes dos seus riscos e iminência, até, por vezes, em face de suas recorrências no
tempo e espaço. Nesta hipótese, como nos diz Gasparin, estamos diante de situação ficta
ou fabricada. Em tais casos, há negligência, não urgência. Apesar disso, contrata-se, e, pela
negligência, responderá a autoridade omissiva.25
Essa é a mesma linha de posicionamento do Tribunal de Contas da União, sob o
argumento de que a situação adversa, dada como de emergência ou de calamidade pública,
não pode se originar, total ou parcialmente, da falta de planejamento, da desídia adminis-
trativa ou da má gestão dos recursos disponíveis, pois se isto ocorrer, em alguma medida,
deve ser atribuída à culpa ou dolo do agente público que tinha o dever de agir para prevenir
a ocorrência de tal situação, razão pela qual o Tribunal tem punido os gestores que invocam
a dispensa de licitação para situações emergenciais fabricadas pela própria inoperância ge-
rencial.26
Mesmo que ocorram efetivamente tais cenários de calamidade pública por conta da
incompetência, imprudência, negligencia ou imperícia do Administrador, e eles representem
riscos e perigos a comunidade, sem dúvidas que medidas precisam ser tomadas dando
respostas adequadas a tais demandas, mas deverá também o agente público responder por
sua inércia causadora – em parte ou totalmente – das consequências trágicas.27

24
Ver o texto de: PEREIRA, Jessé Torres. Comentários à Lei das Licitações e contratações da administração pública.
Rio de Janeiro: Renovar, 2002. p.118. Alerta o autor ainda que há requisitos materiais da calamidade pública que
precisam ser observados nestas circunstâncias, a saber: (i) que exista urgência concreta e efetiva do atendimento
a situação decorrente do estado emergencial ou calamitoso, visando afastar risco de danos a bens ou à saúde ou
à vida das pessoas; (ii) que o risco, além de concreto e efetivamente provável, se mostre iminente e especialmente
gravoso; (iii) que a imediata efetivação, por meio de contratação com terceiro, de determinadas obras, serviços
ou compras, segundo as especificações e quantitativos tecnicamente apurados, seja o meio adequado, efetivo e
eficiente de afastar o risco iminente detectado.
25
GASPARIN, Diógenes. Direito administrativo. São Paulo: Saraiva, 2015. p. 214.
26
Ver as Decisões 347/1994 e 738/2006, do Plenário do Tribunal de Contas da União do Brasil. BRASIL. TCU.
Decisão 347/1994. Plenário. Relator: Ministro Carlos Átila Álvares da Silva. Data da sessão em: 1º jun. 1994.
Disponível em: https://pesquisa.apps.tcu.gov.br/. Acesso em: 19 jul. 2019; BRASIL. TCU. Acordão 738/2006.
Plenário. Relator: Ministro Marcos Bemquerer. Data da sessão em: 17 maio 2006. Disponível em: https://pesquisa.
apps.tcu.gov.br/. Acesso em: 19 jul. 2019.
27
Daí porque a 2ª Turma do STJ tem afirmado há mais tempo que a configuração da improbidade administrativa se
basta na comprovação da culpa (simples), consoante os termos do Agravo Regimental no AREsp 654.406/SE,
Rel. Ministro Herman Benjamim, Segunda Turma, julgado em 17/11/2015, DJe 04/02/2016. Temos consciência
274 Rogério Gesta Leal

Em recente decisão o Superior Tribunal de Justiça (STJ) teve oportunidade de assen-


tar que uma dispensa de licitação foi baseada em emergência ficta e não real, isto porque
houve contratação direta de empresa prestadora de serviço de locação de 34 (trinta e quatro)
ônibus de, no mínimo, 40 (quarenta) lugares, para transporte de alunos da zona rural do
Município, todavia, em anos letivos anteriores, houve a devida realização de concorrência
pública para a contratação dos mesmos serviços. Portanto, a Administração Pública tinha
plena ciência de que o procedimento deveria ser renovado periodicamente, e também de
quanto tempo, aproximadamente, é necessário para se percorrer todas as suas fases, até a
adjudicação do contrato administrativo. Por conta disto, decidiu:

Nesta esteira, não se sustenta o argumento segundo o qual a emergência se fazia


presente devido à proximidade da data do início do ano letivo sem que o procedimento
licitatório tivesse se encerrado. Se isso, de fato, aconteceu, ou seja, se o contrato
ainda não havia sido celebrado mesmo às vésperas do início das aulas, a omissão se
deveu única e exclusivamente por desídia do agente público. Destarte, a continuidade
do serviço público de transporte escolar de alunos era medida de rigor. Entretanto, tal
continuidade deveria se dar pelos tramites regulares e não com a dispensa irregular
da licitação.28

É digno de registro que o STJ tem se valido, para estes casos, do conceito de dano in
re ipsa, hipótese de dano presumido, que termina por amoldar a tipificação do ato de impro-
bidade descrito no artigo 10, da Lei 8.429/92, em especial nos casos de indevida dispensa
de licitação (inciso VIII), evidenciando que o conceito de culpa usado pela Lei de Improbidade
é amplo para os efeitos de responsabilizar os atos que a ela se relacionam.29 

de que parte da doutrina defende a tese de que o artigo 28, da Lei 13.655/18, ao dizer que “o agente público res-
ponderá pessoalmente por suas decisões ou opiniões técnicas em caso de dolo ou erro grosseiro”, afeta a regra
do artigo 10, da Lei 8.429/92, na medida em que transforma em pressuposto da responsabilização do agente
público (que decide ou emite opinião técnica) exclusivamente o dolo e o erro grosseiro, afastando a responsabili-
zação por culpa stricto sensu. Dentre estes o Dr. Luciano Ferraz, em artigo publicado no Conjur na data de 10 de
maio de 2018. Não podemos concordar com isto porque tal intento fragiliza por demais a proteção do bem jurídico
tutelado pela norma constitucional e infraconstitucional aplicada a espécie.
28
BRASIL. STJ. Recurso Especial n. 1.760.128-SP. Relator Ministro Herman Benjamin. Segunda Turma. Julgado
em 11/12/2018. Data da publicação 08/02/2019. Disponível em: https://ww2.stj.jus.br/processo/revista/inteiro-
teor/?num_registro=201801851749&dt_publicacao=08/02/2019 Acesso em: 19 jul. 2019. No mesmo sentido
ver: BRASIL. STJ. Agravo Interno no Agravo em Recurso Especial n. 784.438 – RN (2015/0243380-3). Rela-
tora: Min. Assusete Magalhães. Segunda Turma. julgado em 06/09/2018. Data de publicação DJe 19/12/2018.
Disponível em: https://ww2.stj.jus.br/processo/revista/inteiroteor/?num_registro=201801851749&dt_publica-
cao=08/02/2019. Acesso em: 19 jul. 2019.
29
Ver: BRASIL. STJ. Embargos de Declaração no AREsp 419.769/SC. Rel. min. Herman Benjamin. 2ª Turma. Julga-
do em 18/10/2016. Data de publicação DJe 25/10/2016. Disponível em: https://ww2.stj.jus.br/processo/revista/
inteiroteor/. Acesso em: 19 jul. 2019.
Riscos de improbidade administrativa na gestão de calamidades públicas... 275

Por fim, os fundamentos das decisões do STJ que levaram a edição do tema Re-
petitivo n. 701, em especial do Recurso Especial n. 1.366.721 - BA (2013/0029548-3),
aprofundaram aqueles fundamentos:

A luz do que dispõe o art. 7º da Lei 8.429/1992, verifica-se que a indisponibilidade


dos bens é cabível quando o julgador entender presentes fortes indícios de respon-
sabilidade na prática de ato de improbidade que cause dano ao Erário, estando o pe-
riculum in mora implícito no referido dispositivo, atendendo determinação contida no
art. 37, § 4º, da Constituição, segundo a qual ‘os atos de improbidade administrativa
importarão a suspensão dos direitos políticos, a perda da função pública, a indispo-
nibilidade dos bens e o ressarcimento ao erário, na forma e gradação previstas em
lei, sem prejuízo da ação penal cabível’. O periculum in mora, em verdade, milita em
favor da sociedade, representada pelo requerente da medida de bloqueio de bens,
porquanto esta Corte Superior já apontou pelo entendimento segundo o qual, em
casos de indisponibilidade patrimonial por imputação de conduta ímproba lesiva
ao erário, esse requisito é implícito ao comando normativo do art. 7º da Lei n.
8.429/92. Assim, a Lei de Improbidade Administrativa, diante dos velozes tráfegos,
ocultamento ou dilapidação patrimoniais, possibilitados por instrumentos tecnológi-
cos de comunicação de dados que tornaria irreversível o ressarcimento ao erário e
devolução do produto do enriquecimento ilícito por prática de ato ímprobo, buscou
dar efetividade à norma afastando o requisito da demonstração do periculum in mora
(art. 823 do CPC), este, intrínseco a toda medida cautelar sumária (art. 789 do CPC),
admitindo que tal requisito seja presumido à preambular garantia de recuperação do
patrimônio do público, da coletividade, bem assim do acréscimo patrimonial ilegal-
mente auferido.

É disso que estamos falando, para tornar mais eficaz o combate aos abusos de poder
e desvios de finalidade cometidos pelos gestores públicos em nome de calamidades públi-
cas declaradas – e as vezes fictas –, é preciso e urgente termos esta compreensão ampliada
da responsabilidade por improbidade administrativa e, quando for o caso, aplicar todas as
sanções que ela indica, notadamente ressarcitórias e de suspensão dos direitos políticos,
caso contrário estaremos esvaziando os interesses e patrimônios públicos protegidos pelo
sistema jurídico vigente.

REFERÊNCIAS

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Os poderes regrantes do Executivo e de
sua administração

Sergio de Andréa Ferreira


Professor titular de Direito Administrativo (UERJ)
Desembargador Federal aposentado do TRF2
Advogado e parecerista

SUMÁRIO: 1 Introdução: Poder, órgão, função; 2 Poder normativo legiferante e poder de execução;
3 Poder regulamentar e poder instrutório; 4 Poder regulatório; Referências.

1 INTRODUÇÃO: PODER, ÓRGÃO, FUNÇÃO

Em sede de Direito Público, poder engloba um sentido objetivo, de força jurígena,


de facultas; e outro, subjetivo, organizacional, que, na instituição estatal, é o poder público.
No primeiro significado, o poder é um polo legitimante, habilitador da prática de atos
jurídicos e atos materiais; do exercício de direitos e faculdades; do cumprimento de deveres
e obrigações; de imputação de responsabilidades.
Os poderes são atribuídos a órgãos, unidades estruturais competenciais, da organi-
zação do Estado; esferas de divisão do trabalho; e que desenvolvem, por meio dos agentes
públicos, seus ocupantes, as funções estatais.
A atuação do poder público se caracteriza como função, porquanto os poderes, que
detém, devem ser utilizados com o comprometimento finalístico da consecução do interesse
coletivo; a englobar o interesse público e o social; com respeito e asseguração dos direitos
individuais e coletivos, e na efetivação dos direitos sociais.
As funções estatais, nesse significado dinâmico, são o cometimento, pelos Po-
deres Públicos, de seus encargos.
Essas funções se identificam como legiferante, jurisdicional, de provedoria de justi-
ça (CF, Título IV, Capítulo IV) e executiva.
280 Sergio de Andréa Ferreira

2 PODER NORMATIVO LEGIFERANTE E PODER


DE EXECUÇÃO

O emprego do poder legiferante, com sua natureza normativa, conduz à prática


de atos-regra; à produção de regras jurídicas, com a criação, modificação ou ex-
tinção, em abstrato, de situações jurídicas objetivas, isto é, de poderes e deveres, em
tese, através de uma das fontes enumeradas no art. 59 da CF (cf. art. 5º, II). Só a lei pode
inovar o Direito Positivo, ou seja, o Direito Objetivo.
As regras legais, por força da prática de atos praticados pelos agentes jurídicos,
criadores de situações subjetivadas; ou em decorrência de fatos geradores, incidem e, jun-
tamente com o contexto jurídico-factual, em que se inserem esses atos e fatos, se fazem
normas jurídicas, individualizando as situações objetivas, seja pela investidura nas mesmas;
seja pela criação ou geração das referidas situações jurídicas subjetivas.
O exercício do poder de execução (concretização jurídica) envolve subpoderes,
como o poder político stricto sensu ou governamental em sentido estrito (tal como na decre-
tação de estado de sítio); o administrativo, com o seu cognato, o financeiro público (Título
VI, Capítulo II), do qual se destacou o tributário (Título VI, Capítulo I); e o de defesa nacional
(CF, arts. 142 e 143, a cargo das Forças Armadas).
A função administrativa compreende a prestação dos serviços públicos (CF, art.
175); a manutenção e gestão dos serviços administrativos (burocráticos, internos); o exer-
cício do poder de polícia; a participação econômico-social; a preservação da segurança
pública (art. 144); o exercício de poderes regrantes: regulamentar, instrutório e regulatório.
Segmentos, todos esses, que formam a administração ativa, por oposição à administração
de controle, que se traduz na exercitação dos poderes hierárquico e disciplinar, de supervi-
são administrativa e o contencioso administrativo. Dentre os regrantes, o regulamentar e o
instrutório são atividades-meio, enquanto o regulatório é atividade-fim.

3 PODER REGULAMENTAR E PODER INSTRUTÓRIO

Destarte, os poderes públicos, além e contar com o poder normativo legiferante,


exerce poderes regrantes, através da Chefia do Executivo e de administradores públicos,
ocupantes de determinados órgãos.
Esses poderes regrantes são fontes de preceitos, cuja formalização dá nascimento,
no mundo do direito, a regras jurídicas.
Os diplomas regulamentares, os instrutórios e os regulatórios são o produto dessa
formalização, através da prática de atos-regra, com a natureza de atos administrativos
gerais.
Os poderes regrantes do Executivo e de sua administração 281

A expedição dessas peças dispositivas integra a função material e formalmente ad-


ministrativa, e não, legiferante.
Fixemo-nos, inicialmente, nas figuras do poder regulamentar e do regulamento; so-
bre as quais a Constituição Federal dedica vários dispositivos.
Sob o aspecto da hierarquia eficacial normativa, as disposições regulamentares po-
sicionam-se logo abaixo das normas da legislação.
A Carta Magna Nacional usa a expressão “fiel execução da lei”, para identificar a
finalidade legítima dos regulamentos (art. 84, IV, 2ª parte, da CF).
Nessa moldura, o administrador não pode editar normas regulamentares que con-
flitem com as normas legais, porquanto, se assim o fizer, estará agindo em conflito com o
princípio da legalidade, apanágio do Estado de Direito.
A natureza normativa, mas não legislativa, do poder regulamentar, é explicitado pela
CF, em vários de seus dispositivos: cf. os arts. 5º, LXXI, c/c 102, I, q, e 105, I, h; 49, V; 97;
102, II, c; 103, § 3º.
Aludimos às expressões poder regulamentar e poder instrutório, que são conexos.
Ambos, para uma parte da doutrina, subsomem-se no conceito de poder regulamen-
tar, que, assim, poderá ser tomado em sentido lato e em sentido estrito ou próprio.
O regulamento em sentido lato reveste-se, pois, de diferentes formas, exteriorizan-
do-se através de várias espécies de diplomas normativos.
Adite-se que a CF usa, já agora, em sentido livre, as expressões norma regulamen-
tadora (abrangendo a legal), nos arts. 5º, LXXI, 102, I, q, e 105, I, h; ato normativo federal,
estadual e municipal, por oposição a lei ou norma legal (arts. 97, 102, I, a; 103, § 3º; e 125,
§ 2º). O art. 49, V, refere-se a atos normativos do Poder Executivo e a poder regulamentar.
É mister, no entanto, sublinhar que a CF reserva os termos, decreto e regulamento
(os primeiros podem aprovar ou incorporar os segundos; e formalizar atos individualizados),
para o presidente da República: art. 84, IV.
Nessa linha, o poder regulamentar, com significado estrito ou próprio, é aquele re-
servado ao Chefe do Executivo; isso, nas diferentes órbitas federativas.
Em sentido largo, regulamentar e regulamento albergam, no entanto, outros instru-
mentos preceituais, que são as formas de exercício do poder instrutório.
Segundo os textos constitucionais, federal e estaduais, e as leis orgânicas dos Muni-
cípios, o poder instrutório é afetado, respectivamente, aos Ministros de Estado (CF, art. 87,
II) e aos Secretários de Estado e aos Municipais.
Com referência aos Ministros, emprega o termo, instruções: que são expedidas para
“a execução das leis, decretos e regulamentos”.
282 Sergio de Andréa Ferreira

Em verdade, contudo, o poder instrutório é titularizado, também, por órgãos admi-


nistrativos – monocráticos e colegiados. A propósito, ao conceituar instruções, Oswaldo
Aranha Bandeira de Mello1 define-as como “regras gerais abstratos e impessoais”, para cuja
edição têm poder órgãos da Administração Pública; e não, apenas, os Ministros e Secretá-
rios; salientando, ademais, o seu ‘caráter prático’. Assinala, com ênfase, a natureza regrante
das instruções, que se impõem coercitivamente aos agentes públicos; refletindo-se, efica-
cialmente, sobre a sociedade.
Cita, inclusive, autores que sustentam que, nesse último caso – o de serem dotadas
de reflexo eficacial externo –, são as instruções verdadeiros regulamentos.
Dentre as normas regulamentares lato sensu, a hierarquia eficacial reflete a posição
do órgão, autor do ato, na estruturação administrativa; identificando-se, em consequência,
como de primeiro grau, as editadas pela Chefia dos Poderes Políticos; regulamentos de
segundo grau, as expedidas por Ministros e Secretários, e assim por diante.
Pontes de Miranda2, no mesmo sentido, destaca que as instruções ministeriais
e avisos, circulares, são fontes jurídicas, embora inferiores às leis e aos regulamentos da
Chefia do Executivo, aos quais se reportam e a cuja boa execução se destinam. Negrita que
o regime constitucional reconhece sua existência no quadro das regras de direito.
O sentido lato abrange, portanto, além de decretos e instruções, as portarias, as
resoluções administrativas, as ordens de serviço, os provimentos, os avisos, as posturas,
as circulares. Até a pareceres pode ser conferida eficácia normativa.
É claro que, assim como as próprias leis, os decretos e os demais atos citados po-
dem ter, por conteúdo, a individualização do direito, e não regras jurídicas.
Lembremos que existem outras formas regrantes; como os Regimentos Internos dos
Tribunais (cf. art. 96, I, a); e as que dizem respeito à atuação das Casas legislativas (arts.
51, III; 52, XII; 57, § 3º, II).
Quem regulamenta está administrando, exerce função material e formalmente exe-
cutiva; pois que viabiliza a execução das leis.
Com efeito, o regulamento e as instruções, em suas diferentes formas, instrumenta-
lizam, por um lado, a execução, pela Administração, das regras legais e das administrativas
que lhes são eficacialmente superiores; bem como, de outro, seu cumprimento pelo juris-
dicionado.

1
BANDEIRA DE MELLO, Oswaldo Aranha. Princípios gerais de direito administrativo. v. I. 3. ed. São Paulo: Malhei-
ros, 2010. p. 381e ss.
2
PONTES DE MIRANDA, Francisco C. Comentários à Constituição de 1967, com a Emenda de 1969. Tomo III. 2.
ed. São Paulo: RT, 1970. p. 371.
Os poderes regrantes do Executivo e de sua administração 283

Se a sujeição da Administração Pública às normas legais atende ao princípio da


legalidade, a expedição de regulamento, lato sensu, faz funcionar outro princípio basilar:
o princípio da autovinculação: a norma regulamentar cria obrigações para o administrador,
fazendo surgir, em contrapartida, para terceiros, a pretensão à exigência do comportamento
administrativo, de acordo com as disposições regulamentares editadas.
Ao invés de cingir-se a administrar no caso concreto, o administrador se antecipa,
prescrevendo a sua própria conduta no cumprimento de seus deveres e obrigações, e no
exercício de seus direitos, poderes e faculdades; assim como a maneira pela qual o jurisdi-
cionado deve comportar-se no seu relacionamento com a Administração.
Cabe o regulamento, quando é permitido agir discricionariamente; de modo que, re-
gulamentando, surge a autovinculação, traduzindo o entendimento do administrador; fixando
suas ações, através de regras jurídicas.
Compete ao Congresso Nacional “dispor sobre todas as matérias de competência
da União”: CF, art. 48.
Essa abrangente regra geral prende-se ao princípio da preferência legal; ou seja, se
houver regra legal sobre alguma matéria, não cabe a produção, pelo administrador público,
de regras jurídicas conflitantes com as geradas pela exercitação do poder legiferante.
Mas o mesmo dispositivo constitucional, em sua parte final, introdutória dos res-
pectivos incisos, que elencam várias matérias, é informado por outro princípio: o da reserva
legal, o que se denota pelo emprego do advérbio, “especialmente”, no sentido de especifi-
cação dos assuntos sobre que somente a lei pode dispor.
Dentre elas, algumas são ligadas à estruturação da Administração Pública: art. 48,
IX a XI . 3

Quanto ao conteúdo, as disposições regulamentares envolvem a interpretação, a


integração ou especificação, e a índole funcional ou procedimental.
Ao interpretar a lei, fixa-se o entendimento administrativo quanto ao sentido e ao
alcance de poderes, direitos, faculdades, deveres e obrigações legais, titularizados pela AP.
A jurisprudência tem identificado como causa de ilegalidade, e não de inconstitucio-
nalidade, a incompatibilidade entre a interpretação regulamentar e a lei.4

3
“IX - organização administrativa, judiciária, do Ministério Público e da Defensoria Pública da União e dos Territórios
e organização judiciária e do Ministério Público do Distrito Federal;  (Redação dada pela Emenda Constitucional n.
69, de 2012) (Produção de efeito); X - criação, transformação e extinção de cargos, empregos e funções públicas,
observado o que estabelece o art. 84, VI, b ; (Redação dada pela Emenda Constitucional n. 32, de 2001); XI -
criação e extinção de Ministérios e órgãos da administração pública;(Redação dada pela Emenda Constitucional
n. 32, de 2001)”
4
“Se a interpretação administrativa da lei, que vier a consubstanciar-se em decreto executivo, divergir do sentido e
do conteúdo da norma legal que o ato secundário pretendeu regulamentar, quer porque tenha este se projetado ul-
tra legem, quer porque tenha permanecido citra legem, quer, ainda, porque tenha investido contra legem, a questão
284 Sergio de Andréa Ferreira

As disposições regulamentares integrativas ou de especificação têm lugar, quando


a norma legal emprega standards ou padrões jurídicos; ou, como salienta Amilcar Falcão,5
traçado, legalmente, “o quadro geral” e “fixados os elementos fundamentais”, cabe a integra-
ção, “quando a atuação do comando legal ficar a depender de uma estimativa ou verificação
de uma apreciação técnica”. Cabe, então, a complementação, sem ofensa ao princípio da
legalidade;6 sempre respeitados os princípios da razoabilidade e da proporcionalidade.
Os preceitos regulamentares funcionais ou procedimentais estabelecem o rito que
será seguido pela Administração Pública, no exercício dos poderes e no cumprimento de
seus deveres; no relacionamento interno entre seus órgãos, e com servidores e adminis-
trados. Dispõem, pois, sobre a formalização dos processos através dos quais se realiza a
função administrativa.
Esses são os regulamentos de execução típicos, eis que, sempre devendo manter
fidelidade aos comandos expedidos pelo legislador, vinculam-se a uma lei, à parte de uma
lei, ou a um conjunto de leis. Neste último caso, podem, inclusive, assumir um papel con-
solidativo.
Quando o regulamento tem função supletiva, surge o regulamento autônomo ou
independente.
Os regulamentos autônomos ou independentes têm lugar, quando, possuindo a Ad-
ministração Pública poder-dever constitucional, ela se autolimita, diante da inexistência de
norma legal disciplinadora.
Exemplificando. Pela Constituição Federal, é obrigação da Administração Pública ex-
pedir certidões, requeridas às suas repartições, para defesa de direitos e esclarecimento
de situações (art. 5º, XXXIV, b). Assim, se, em alguma unidade federativa, inexistir norma
legal sobre o procedimento a ser seguido no requerimento e expedição dessas certidões,
poderia o administrador, em cada caso concreto, formular essa ou aquela exigência, quanto
aos aspectos formais da petição, a legitimação para firmá-la e a comprovação de interesse
na postulação. A Administração pode, no entanto, preferir editar regulamento, disciplinando
todos esses aspectos.

caracterizará, sempre, típica crise de legalidade, e não de inconstitucionalidade, a inviabilizar, em consequência,


a utilização do mecanismo processual da fiscalização normativa abstrata. O eventual extravasamento, pelo ato
regulamentar, dos limites a que materialmente deve estar adstrito poderá configurar insubordinação executiva aos
comandos da lei. Mesmo que, a partir desse vício jurídico, se possa vislumbrar, num desdobramento ulterior, uma
potencial violação da Carta Magna, ainda assim estar-se-á em face de uma situação de inconstitucionalidade
reflexa ou oblíqua, cuja apreciação não se revela possível em sede jurisdicional concentrada. [ADI 996 MC, rel.
min. Celso de Mello, j. 11-3-1994, P, DJ de 6-5-1994.] ADI 4.176 AgR, rel. min. Cármen Lúcia, j. 20-6-2012,
P, DJE de 1º-8-2012”
5
FALCÃO, Amilcar. Introdução ao direito tributário. 3. ed. Rio: Forense, 1987. p. 45.
6
PORTO NETO, Benedito. Regulação e o direito das comunicações. In: SUNDFELD, Carlos Ari. Direito administrativo
econômico. São Paulo: Malheiros, 2001. p. 290-291.
Os poderes regrantes do Executivo e de sua administração 285

Ao contrário, portanto, do que entendem os que se insurgem contra o regulamento


autônomo, taxando-o de ilegítimo no Direito Brasileiro, pois que corresponderia a uma in-
vasão da competência do legislador, o regulamento autônomo, desde que entendido nos
termos antes fixados, é uma afirmação do Direito Administrativo, porquanto constitui mani-
festação expressiva do princípio da autolimitação do administrador.
As normas regulamentares autônomas estão, porém, é claro, submetidas aos princí-
pios da reserva legal e da preferência legal.
Se se tratar de matéria reservada, pela Constituição, à competência normativa legis-
lativa, é vedado ser objeto de regulamentação (cf. art. 5º, II, e incisos do art. 48).
De outro lado, existente regra legal sobre a matéria, mesmo não submetida à reserva
legislativa, descabe a expedição de regulamento autônomo. Por seu turno, editada regra legal
ulterior sobre o assunto regulamentado autonomamente, se houver incompatibilidade com o
ato-regra administrativo anterior, esse fica prejudicado; caso contrário, poderá, nos limites da
consonância com o diploma legal, funcionar como regulamento de execução.
Também se tem falado em regulamento autônomo, quando operativo um outro prin-
cípio: o da reserva administrativa.
Por ele, sempre que se trata de matéria reservada pela Constituição à competência
regrante administrativa, a lei não pode sobre ela dispor.
Hoje em dia, o assunto reveste-se de relevância especial, em sede de organização
administrativa.
Tradicionalmente, identificavam-se, na espécie de regulamento de execução, as dis-
posições regulamentares de organização, de atribuição, ou outorgativas, como sendo aque-
las distributivas, entre os órgãos administrativos, das competências que as leis imputam à
Administração Pública.
A CF/67, com a redação da Emenda Constitucional n. 1/69, no art. 81, V, atribuía,
privativamente, ao presidente da República “dispor sobre” a “estruturação, atribuições e
funcionamento dos órgãos da administração federal”.
Já o art. 43, V, da EC 1/69 reservava ao Legislativo a competência para dispor sobre
“a criação de cargos públicos e fixação dos respectivos vencimentos, ressalvado o disposto
no item III do artigo 55” (hipótese em que cabia o decreto-lei);
A Constituição Federal de 88 reformulou esse ponto, dividindo a competência em
tela entre atribuições do Congresso Nacional, com a sanção do presidente da República, e
atribuições deste.
Originalmente, cabia ao Poder Legislativo a “criação, estruturação e atribuições dos
Ministérios e órgãos da administração pública” (art. 48, XI); por sua vez, a regra do art.
84, VI, atribuiu, privativamente, ao presidente da República “dispor sobre a organização e o
funcionamento da administração federal, na forma da lei”.
286 Sergio de Andréa Ferreira

Com a Emenda Constitucional n. 32/2001, o inciso X do art. 48 passou a enunciar,


em termos de reserva legal, a “criação, transformação e extinção de cargos, empregos e
funções públicas, observado o que estabelece o art. 84, VI, b”; e o inciso XI passou a precei-
tuar, que compete ao Congresso Nacional, dispor, especialmente, sobre “criação e extinção
de Ministérios e órgãos da administração pública”.
Agora, o art. 84, por força da mesma Emenda Constitucional, prescreve que com-
pete ao presidente da República “dispor, mediante decreto”, sobre “organização e funciona-
mento da administração federal, quando não implicar o aumento de despesa, nem criação ou
extinção de órgãos públicos” (alínea a); e “extinção de funções ou cargos públicos, quando
vagos” (alínea b).
O diploma expedido pelo Executivo é de natureza decretal, não legal (senão, seria
decreto-lei), mas não é regulamento, nem mesmo autônomo. Trata-se de decreto regrante,
de mesmo patamar eficacial das leis que são editadas com base no art. 48, X e XI.
O que ocorre é uma coexistência de reservas normativas: a reserva legal e a reserva
administrativa.
Observe-se, ademais, o emprego do termo dispor, no inciso VI do art. 84 (cf. art.
81, V da CF 67/69); vocábulo que denota o poder estatuidor do respectivo objeto. Anote-se,
ainda, que, no inciso X, ao elencar, no âmbito da reserva legal, a “criação, transformação e
extinção de cargos, empregos e funções públicas’, acrescenta-se ‘observado o que estabe-
lece o art. 84, VI, b”.
Destarte, nem a Chefia do Executivo pode desbordar os lindes da área que lhe é re-
servada; nem, tampouco, o Legislativo pode extrapolar os limites do que é privativo daquela7.
A Lei n. 13.655, de 25.04.18, que acrescentou dispositivos à Lei de Introdução às
Normas do Direito Brasileiro, tratou dos atos administrativos normativos, nos novos arts. 29,
e §§, e 30 da LINDB.8

7
PONTES DE MIRANDA, Francisco C. Comentários à Constituição de 1967, [...]. Op. cit., p. 314; 316: “Regulamen-
tar é editar regras que se limitam a adaptar a atividade humana ao texto, e não, o texto à atividade humana. Assim,
quando o poder executivo, para tornar mais inteligível a regra jurídica [...] nenhum princípio novo, ou diferente, de
direito material se lhe pode introduzir”.
8
“Art. 29. Em qualquer órgão ou Poder, a edição de atos normativos por autoridade administrativa, salvo os
de mera organização interna, poderá ser precedida de consulta pública para manifestação de interessados,
preferencialmente por meio eletrônico, a qual será considerada na decisão. (Incluído pela Lei n. 13.655, de
2018) (Vigência) (Regulamento). § 1º A convocação conterá a minuta do ato normativo e fixará o prazo e de-
mais condições da consulta pública, observadas as normas legais e regulamentares específicas, se houver. (In-
cluído pela Lei n. 13.655, de 2018) (Vigência) [...] Art. 30.  As autoridades públicas devem atuar para aumentar
a segurança jurídica na aplicação das normas, inclusive por meio de regulamentos, súmulas administrativas e
respostas a consultas. (Incluído pela Lei n. 13.655, de 2018) (Regulamento). Parágrafo único. Os instrumentos
previstos no caput deste artigo terão caráter vinculante em relação ao órgão ou entidade a que se destinam,
até ulterior revisão.”. Ver:  MARQUES NETO, Floriano de Azevedo; FREITAS, Rafael Véras de. Comentários à
Lei 13.655/18. Belo Horizonte: Fórum. 2019. p. 139 e ss. BEZNOS, Clóvis. A LINDB – alterações. In: MOTTA,
Fabiano; GABARDO, Emerson (Coord.). Limites do controle na Administração Pública no Estado de Direito.
Curitiba: Íthala, 2019. p. 79 e ss.
Os poderes regrantes do Executivo e de sua administração 287

Os dispositivos mencionados enfatizam a pertinência do emprego da consulta públi-


ca, precedentemente à edição de atos normativos; e à necessidade de aumento da seguran-
ça jurídica na aplicação das normas, inclusive por meio de regulamentos.
A redação original do caput do art. 29 empregava o termo, deverá, em relação à
precedência da consulta, mas, ulteriormente, o texto dado pela Lei n. 13.655/18, substituiu-o
por ‘poderá’; o que retirou o caráter impositivo da norma; não obstante haver opiniões em
contrário.

4 PODER REGULATÓRIO

Uma das atividades-fim administrativas é o exercício do poder de polícia.


O Código Tributário Nacional (L. 5.172, de 25.10.66, com a redação do AC n. 31,
de 28.12.66), em seu art. 78, apresenta definição legal do poder de polícia administrativa,
assim considerada a

atividade da Administração Pública que, limitando ou disciplinando direito, interesse


ou liberdade, regula a prática de ato ou a abstenção de fato, em razão de interesse
público concernente à segurança, à higiene, à ordem, aos costumes, à disciplina
da produção e do mercado, ao exercício de atividades econômicas dependentes de
concessão ou autorização do poder público, à tranquilidade pública ou ao respeito à
propriedade e aos direitos individuais ou coletivos.

A CF prevê a figura e emprega a denominação, em seu art. 145, II, ao contemplar,


como tributo instituível, nas várias ordens federativas, a taxa, cobrada “em razão do exercí-
cio do poder de polícia”.
Assim como o poder público não pode ser absoluto, tampouco podem sê-lo os direi-
tos dos administrados. É certo que existem os direitos fundamentais, como o direito à liber-
dade pessoal; absolutos, no sentido de que não comportam limites a seu conteúdo. Ao lado
desses, porém, existem, em maior número, os direitos ditos institucionalizáveis, como o da
propriedade; institutos jurídicos sem conteúdo completo a priori, pois que o mesmo é dado
pelo Direito. O poder público competente, ao legislar sobre direito da espécie, estabelecendo
o seu estatuto jurídico, forma o respectivo conteúdo, e configura seu exercício; dotando-o de
poderes e faculdades, e traçando-lhe os seus limites positivos, com a indicação de até onde
pode ir o titular do direito; estabelecendo, ainda, limites negativos, ao conferir a terceiros,
direitos de incursão, de ingerência no direito que está sendo regulado. Vê-se tal fenômeno,
com clareza, na disciplina do citado direito de propriedade, como direito real, como domínio.
Essa configuração institucional do direito decorre da noção de que, não sendo este absoluto,
288 Sergio de Andréa Ferreira

vigora o princípio de sua relatividade, necessária à própria coexistência e ao próprio coexer-


cício dos direitos iguais ou conexos.9
Mas as limitações do exercício de um direito ou poder decorrem, igualmente, da
necessidade de salvaguarda dos interesses públicos e sociais, cuja tutela está a cargo das
várias pessoas político-federativas (e não, necessariamente, da competente para estabelecer
o estatuto básico do direito); interesses como a saúde pública, a segurança, a tranquilidade
comunitária, a competição hígida nos mercados. Na medida em que o exercício dos poderes
e direitos interfere com tais interesses, a pessoa política competente, exercitando seu poder
normativo, através da edição de normas legais, e de atos administrativos gerais regrantes,
disciplina tal exercício, na proteção daqueles interesses.
Essa disciplina traduz-se em limitações de Direito Público e Social.
As limitações em tela dão sentido expresso à regularidade (daí, regular e órgão
regulador), do exercício dos direitos, na defesa desses interesses. Quanto mais espontânea
e autêntica for a sensibilidade comunitária para os mesmos, menor terá de ser o número de
normas disciplinadoras do exercício. Busca-se evitar o cometimento do abuso de direito.10
Ainda quando emanam do mesmo legislador, porque competente em ambas as
áreas – a da fixação do conteúdo e a da disciplina do exercício, em função de externalidades
sociais –, distinguem-se, pelas razões expostas, as duas ordens de regras.
A própria CF, ao enumerar e assegurar direitos públicos subjetivos, esboça limitações
do gênero (cf. art. 5º, XVII).
As limitações ao exercício dos direitos e poderes são desenvolvidas pela legislação
ordinária, expedida pelo poder público competente para tutelar os mencionados interesses
públicos e sociais. Fala-se, na espécie, em marcos regulatórios.
Entra em cena, a seguir, o administrador público.
Primeiramente, expedindo regulamentos de execução, com suas finalidades pró-
prias.
Mas diferente de regulamentar é regular. O poder regulatório, enquanto também par-
cela do poder regrante da Administração Pública, corresponde à edição de regras jurídicas
harmonizadoras de interesses, no seio da sociedade; disciplinadoras de espaços sociais,
inclusive o mercado, a envolver os protagonistas que os compõem, sujeitos ao cumprimento
dessas regras, sendo parcela da atividade-fim administrativa.

9
FERREIRA, Sergio de Andréa. O direito de propriedade e as limitações e ingerências administrativas. São Paulo:
RT, 1982.
10
Art. 187 do Código Civil de 2002: “Também comete ato ilícito o titular de um direito que, ao exercê-lo, excede
manifestamente os limites impostos pelo seu fim econômico ou social, pela boa-fé ou pelos bons costumes”.
Os poderes regrantes do Executivo e de sua administração 289

O sentido normativo da regulação brasileira está claro, por exemplo, na Lei Comple-
mentar n. 109, de 29.05.01, que dispõe sobre o regime de previdência privada, e cujo art. 5º
explicita que a normatização das atividades do setor será realizada por órgão regulador.
Giza Alberto Venancio Filho,11 em clássica obra, que, segundo Bernard Chenot,12 a
regulação se desenvolveu pelo alargamento da noção de poder de polícia; e que, também no
Brasil, foi, originariamente, essa noção, a justificativa doutrinária para a chamada interven-
ção do Estado no domínio econômico (art. 149 e § 2º, da CF); considerado tal poder, já pelo
grande Ruy Barbosa, como “poder orgânico elementar, fundamental, a que estão ligadas as
exigências capitais de conservação da sociedade”.13
Peculiaridade da regulação, é que as normas produzidas têm, como destinatários
imediatos, os administrados, eis que interferem em relações entre eles; assim como a AP,
porquanto essa é protagonista necessária do Direito Público Social, na condição de agente
harmonizador e equilibrante desses relacionamentos, num papel protetivo da parte mais
vulnerável.
Cai-se, então, numa figura diferente; em um outro tipo de poder normativo da Admi-
nistração, que não é o poder regulamentar, mas o poder regulador. Ele não é regulamentar,
porque não diz respeito à execução de leis. Quem executa leis é a Administração Pública,
assim como quem as aplica é o juiz. O que faz o particular? O particular cumpre o Direito.
A inovação na participação social do Estado, como parcela individualizável da atua-
ção governamental, radica-se em que, estando os interesses juridicamente protegidos titu-
larizados em membros da comunidade, ou por parcelas da mesma, com referência a outros
sujeitos jurídicos desses relacionamentos, é que o Estado participa, regulando normativa-
mente, e, depois, atuando in concreto.
Essa coparticipação estatal nas situações e relações jurídicas de terceiros – e, daí,
a noção de intervenção – é que identifica a regulação, seja normativamente, num primeiro
momento; seja concretamente, in casu, como exaurimento da atuação social do Estado.
A regulação normatizante tem função de complementariedade, em relação às nor-
mas constitucionais e legais.
Complementar não é completar: é aditar algo que mantém um conjunto interseção,
uma conexão ou homogeneidade com o aditado, mas tem identidade própria. Assim, a Lei
Complementar complementa a CF, mas não a completa, o que só é possível, por meio de
Emenda Constitucional.

11
VENANCIO FILHO, Alberto. A intervenção do Estado no domínio econômico. Rio: Editora FGV, 1968. p. 75.
12
DROIT Public Économique. In: CHENOT, Bernard. Dictionnaire des Sciences Économiques. v. I. Paris: Presses
universitaires de France, 1956. p. 422.
13
BARBOSA, Ruy. Comentários à Constituição federal brasileira. Coligidos por Homero Pires. São Paulo: Saraiva,
1934. p. 315.
290 Sergio de Andréa Ferreira

Tema fundamental é o da regulação econômica.


O art. 174 da Constituição Federal, no Título, “Da Ordem Econômica”, é explícito
em preceituar que, “como agente normativo e regulador da atividade econômica, o Estado
exercerá, na forma da lei, as funções de fiscalização, incentivo e planejamento, sendo este
determinante para o setor público e indicativo para o setor privado”.
Pode constatar-se, pelo uso do vocábulo, na própria legislação brasileira, que apesar
da distinção entre agente normativo e agente regulador, feita pelo citado art. 174 da CF,
regulação abrange uma atuação regrante, em tese e em abstrato; e outra, individualizadora,
operativa, in casu e in concreto.
No segundo sentido, que é o empregado pelo dispositivo constitucional, compõe-se,
a regulação, de atos de execução do Direito; podendo exemplificar-se com o controle do
câmbio, mediante a atuação do Banco Central.
No significado normativo estrito, poder regulador é segmento específico do poder
regrante estatal; poder, este último, que, além do constituinte, engloba o legiferante, o regu-
lamentar-instrutório e o regulatório.
Proliferaram as agências reguladoras, que atuam nas áreas dos serviços públicos,
delegados, concedidos, autorizados; dos serviços de relevância pública e no setor econô-
mico.
Relevante é a Lei n. 13.848, de 25.06.19, que dispõe sobre a gestão, a organização,
o processo decisório e o controle social dessas agências.14
A substituição de “menos Estado” por “mais sociedade” significa a substituição da
regulação estatal (que chamam de regulamentação) pelas regulações sociais. Daí, a deregu-
lation norte-americana. A CF Brasileira dá, porém, expressa, incisiva e imperativamente, ao
Estado (não só a União) o mister de agente regulador, em sentido largo.
Eros Roberto Grau15 identifica regulação – que diferencia de regulamentação – com
a tendência neoliberalizante da autorregulação ou desregulamentação.16
Não se poderá deixar de citar a Lei n. 13.874, de 20.09.2019, a qual, nessa linha,
instituiu a “Declaração de Direitos de Liberdade Econômica” e estabeleceu “garantias de li-
vre mercado’; através de ‘normas de proteção à livre iniciativa e ao livre exercício da atividade

14
O art. 4º estatui que “a agência reguladora deverá observar, em suas atividades, a devida adequação entre meios
e fins, vedada a imposição de obrigações, restrições e sanções em medida superior àquela necessária ao atendi-
mento do interesse público”. O art. 5º impõe a indicação dos pressupostos de fato e de direito, inclusive a respeito
da edição, ou não, de atos normativos. E o art. 9º prevê a obrigatoriedade de consulta pública prévia, em relação
a atos normativos de interesse geral. Ver: FERREIRA, Sergio de Andréa. Direito da regulação econômica – a expe-
riência brasileira. Revista Brasileira de Direito Comparado, n. 22, 2002.
15
GRAU, Eros Roberto. O direito posto e o direito pressuposto. São Paulo: Malheiros, 2000. p. 94 e ss.
16
“Literalmente, ‘desregular’ significa, no caso, deixar de fazê-lo através de preceitos de autoridade, ou seja, jurí-
dicos. [...]. O mercado não seria possível sem uma legislação que o protegesse e uma racional intervenção, que
assegurasse a sua existência e preservação”.
Os poderes regrantes do Executivo e de sua administração 291

econômica’, bem como ‘disposições sobre a atuação do Estado como agente normativo e
regulador” (art. 1º).17
Fixa, como dever da Administração Pública e das demais entidades destinatárias da
Lei, evitar o abuso do poder regulatório.
O controle legislativo e o jurisdicional são básicos no balizamento da atuação regu-
ladora. Estamos no campo do “sistema de freios e contrapesos”, dos checks and balances.
Assim, o art. 49 da CF, além de atribuir ao Congresso Nacional competência exclusiva
para “sustar os atos normativos do Poder Executivo que exorbitem do poder regulamentar ou
dos limites da delegação legislativa”, outorga-lhe a incumbência de “zelar pela preservação
de sua competência legislativa em face da atribuição normativa de outros Poderes” (n. XI).
É mister sublinhar que o art. 25, I, do Ato das Disposições Constitucionais Transitó-
rias, revogou, a partir de 180 dias da promulgação da Constituição de 88, salvo prorrogação
por lei, todos os dispositivos legais que atribuíam ou delegavam “a órgão do Poder Executivo
competência assinalada pela Constituição ao Congresso Nacional, especialmente no que
tange à ação normativa”.
A distinção entre regular e regulamentar é importante na fixação de limites do con-
trole jurisdicional, segundo inteligência do Supremo Tribunal Federal.
Entende este que “não cabe ação direta contra norma que regulamenta lei, porquan-
to se está diante de questão de ilegalidade e não de inconstitucionalidade”.18
Mas, em verdade, pode ocorrer que, ao invés de a incompatibilidade ser entre o regu-
lamento e a lei, aquele próprio ferir diretamente a Constituição; hipótese em que se alargam
os lindes do controle jurisdicional (CF, arts. 102, I, a, e 103, § 5º: cabe a Ação Direta de
Inconstitucionalidade em face de lei ou ato normativo).
Com maior razão, se regular não é regulamentar, constituindo segmento próprio do
poder normativo estatal, e tendo, por destinatários, terceiros, vinculados ao cumprimento da
norma reguladora, pode haver vício direto de inconstitucionalidade.
Aliás, Pontes de Miranda19 sustentava que, “se o regulamento se afasta da lei, é
inconstitucional”.

17
Determina que seus preceitos serão observados “na aplicação e na interpretação do direito civil, empresarial,
econômico, urbanístico e do trabalho, que se encontra no seu âmbito de aplicação e na ordenação pública”
(§ 1º). Aduz que se interpretam ‘em favor da liberdade econômica, da boa-fé e do respeito aos contratos, aos
investimentos e à propriedade, todas as normas de ordenação pública sobre atividades econômicas privadas’(§
2º). Trata, também, do que será mais desregulamentação do que desregulação, ao cuidar dos atos públicos de
liberação da atividade econômica (§ 5º, I).
18
Foi sob esse fundamento que o STF, por maioria, não conheceu da Ação Direta de Inconstitucionalidade n. 2.387
– DF, aforada pelo Partido Socialista Brasileiro – PSB contra o Decreto n. 3.721/2001, que fixou o limite mínimo
de idade para o início do recebimento da complementação da aposentadoria, alterando o Decreto n. 81.240/78,
regulamentador do art. 3º da Lei n. 6.435/77 (Inf. STF 218:1. Relatora p/acórdão, Ministra Ellen Gracie; julg. em
21.02.2001).
19
PONTES DE MIRANDA, Francisco C. Comentários à Constituição de 1967, [...]. Op. cit., p. 318.
292 Sergio de Andréa Ferreira

Há leis que determinam sua regulamentação, inclusive fixando prazo para tal.
A questão não é de vigência (não se caracteriza uma vacatio legis), pois que a regra
incide; mas sim, de exequibilidade, sempre, aliás, relativa, porquanto, na medida do possível,
seu cumprimento é exigível. É o mesmo que ocorre, quando a Constituição assegura um
direito, mas emprega a cláusula, na forma da lei.
É, na hipótese de regulação, que, mais comumente, poderá ocorrer a inexequibilida-
de de dispositivo do ato legal.
Em qualquer dos casos, porém, tem o regulamentador ou o regulador a obrigação de,
no prazo que lhe foi assinado, editar o ato-regra administrativo. Se não o fizer, caberá o em-
prego do mandado de injunção, a par da possibilidade da propositura de outras ações, que
viabilizem o exercício, pelo administrado, do seu direito, ou o cumprimento de sua obrigação.

REFERÊNCIAS

BANDEIRA DE MELLO, Oswaldo Aranha. Princípios gerais de direito administrativo. v. I. 3. ed. São
Paulo: Malheiros, 2010.

BARBOSA, Ruy. Comentários à Constituição federal brasileira. Coligidos por Homero Pires. São Paulo:
Saraiva, 1934.

BEZNOS, Clóvis. A LINDB – alterações. In: MOTTA, Fabiano; GABARDO, Emerson (Coord.). Limites do
controle na Administração Pública no Estado de Direito. Curitiba: Íthala, 2019.

DROIT Public Économique. In: CHENOT, Bernard. Dictionnaire des Sciences Économiques. v. I. Paris:
Presses universitaires de France, 1956.

FERREIRA, Sergio de Andréa. Direito da regulação econômica – a experiência brasileira. Revista Brasi-
leira de Direito Comparado, n. 22, 2002.

FERREIRA, Sergio de Andréa. O direito de propriedade e as limitações e ingerências administrativas.


São Paulo: RT.

FALCÃO, Amilcar. Introdução ao Direito Tributário. 3. ed. Rio: Forense, 1987.

GRAU, Eros Roberto. O direito posto e o direito pressuposto. São Paulo: Malheiros, 2000.

MARQUES NETO, Floriano de Azevedo; FREITAS, Rafael Véras de. Comentários à Lei 13.655/18. Belo
Horizonte: Fórum. 2019.

PONTES DE MIRANDA, Francisco C. Comentários à Constituição de 1967, com a Emenda de 1969.


Tomo III. 2. ed. São Paulo: RT, 1970.

PORTO NETO, Benedito. Regulação e o direito das comunicações. In: SUNDFELD, Carlos Ari. Direito
administrativo econômico. São Paulo: Malheiros, 2001.

VENANCIO FILHO, Alberto. A intervenção do Estado no domínio econômico. Rio: Editora FGV, 1968.
Acordo de leniência na Lei Anticorrupção: pon-
tos de estrangulamento de segurança jurídica

Thiago Marrara
Doutor em Direito Administrativo (LMU)
Professor de Direito Administrativo (USP)
Advogado consultor

SUMÁRIO: 1 Introdução; 2 Acordo e programa de leniência: definições relevantes; 3 Regime da le-


niência na Lei Anticorrupção; 4 Benefícios do programa de leniência por ato de corrupção; 5 Panorama
das falhas do regime jurídico legal; 6 Tentativas de aprimoramento do regime: MP 703; 7 Regulamen-
tação infralegal: avanços?; 8 Considerações finais: pontos de estrangulamento da segurança jurídica;
Referências.

1 INTRODUÇÃO

Julho de 2018. A Advocacia Geral da União em conjunto com a Controladoria Geral,


de um lado, e a Odebrecht, de outro, celebraram um dos maiores e mais impactantes acor-
dos de leniência do país. Diante de irregularidades em aproximadamente cinco dezenas de
contratos administrativos com o governo federal, a empreiteira, no acordo, comprometeu-se
a adotar uma política de integridade e a devolver aos cofres públicos dois bilhões e setecen-
tos milhões de reais em até 22 anos.1
Aos leigos, a notícia acima soa muito bem. Afinal, o governo logrou reaver bilhões
de reais graças ao sucesso da leniência – instituto que “pegou”, diferentemente de muitos,
criados pelo legislador num dia, mas esquecidos no outro. Entretanto, àqueles que se dedi-
cam ao estudo do polêmico acordo administrativo, a notícia causa inúmeras perplexidades
e dúvidas. É possível tratar de reparação de danos em leniência? Há limitação temporal às
obrigações pactuadas? É lícito unir, sob única leniência, dezenas de atos tipificados na Lei
Anticorrupção brasileira? Qual é, afinal, a função, o regime e o nível de flexibilidade que ca-
racterizam esse tipo de acordo? Todas essas perguntas convergem a uma dúvida maior: qual
é o grau de segurança jurídica que o regime legal oferece a quem deseja celebrar acordos
como o noticiado em 2018?

1
Cf.: BRASIL. CGU. Acordo de leniência com a Odebrecht prevê ressarcimento de 2,7 bilhões. 2018. Disponível
em: encurtador.com.br/mwxI0. Acesso em: 3 jul. 2020.
294 Thiago Marrara

Com o escopo de contribuir com a elaboração de uma resposta a essas inquieta-


ções e lançar estímulos a potenciais futuras reformas da Lei Anticorrupção, o presente texto
resgatará preliminarmente a definição do acordo de leniência, buscando tornar mais claros
seus traços distintivos em relação a outros ajustes que ganharam força ao longo do gradual
movimento de consensualização da Administração Pública brasileira. Em seguida, apresen-
tará, com suporte em um método dogmático, analítico e crítico, as características gerais do
regime jurídico do programa de leniência para atos de corrupção, levando em conta as deter-
minações tanto legais, quanto infralegais. Com isso, em conclusão, objetiva-se demonstrar:
(i) quais são as falhas e lacunas existentes no modelo adotado pelo legislador brasileiro; (ii)
como atos normativos posteriores reagiram diante desses problemas e (iii) o que, após a
edição de tantas normas, necessita ser aperfeiçoado para que se possa dar o devido grau de
segurança jurídica e previsibilidade aos interessados em fazer uso desse acordo de coope-
ração nos três níveis federativos.

2 ACORDO E PROGRAMA DE LENIÊNCIA: DEFINIÇÕES


RELEVANTES

Diz o ditado: “O uso do cachimbo entorta a boca”. Na prática da Administração Públi-


ca, não há nada mais verdadeiro. Ao longo do tempo, pequenas distorções ou má-aplicações
de institutos se consolidam e acabam por gerar problemas estruturais, não raro exigindo
que o ordenamento se adapte ou que a jurisprudência os reinterprete para preservar suas
funcionalidades.
A preocupação com a definição do acordo de leniência se enraíza exatamente na
necessidade de se evitar que o uso inadequado do instituto venha a distorcer a lógica do
modelo de gestão pública consensual e, mais que isso, fragilizar a política de combate à cor-
rupção por meio de inseguranças criadas por invenções quotidianas sem qualquer respaldo
no ordenamento jurídico. Em outras palavras, o resgate da definição do ainda novo conceito
em debate serve não apenas para guiar a discussão vindoura de seu regime jurídico, senão
igualmente para fixar sua função, evitando seu emprego indevido em substituição ou em pre-
juízo de outros instrumentos de gestão pública, inclusive acordos como os compromissos
de cessação de prática.
Diante dessa premissa, portanto, considera-se imprescindível reafirmar a definição
de acordo de leniência como:

ajuste que integra o processo administrativo sancionador mediante celebração pelo


ente estatal que titulariza, na esfera administrativa, o poder de punir e, de outro lado,
por um infrator que se propõe a colaborar com o Estado na execução de suas tarefas
Acordo de leniência na Lei Anticorrupção 295

instrutórias no intuito de obter, em troca da cooperação e do adimplemento de outras


obrigações acessórias, a mitigação ou a imunização das sanções estatais aplicáveis
nesse mesmo processo administrativo ou fora dele.2

O acordo de leniência, tal como definido, envolve duas partes. De um lado, posicio-
na-se o infrator, que se dispõe a cooperar com a produção de provas, colaborando com a
instrução e a busca da efetividade processual. Confesso e disposto a colaborar, o infrator age
por conta e risco, assumindo todos os custos, financeiros ou não, da cooperação na produ-
ção de provas, bem como os riscos de exposição social e midiática, de eventual persecução
em outros processos etc. Ele não assume, porém, obrigação de resultado, ou seja, de que
o processo culmine numa decisão administrativa condenatória. Sua obrigação é de reforçar
e robustecer a instrução, com a comprovação da materialidade e da autoria dos ilícitos,
tornando-se perfeitamente concebível que a cooperação se confirme ainda que não advenha
a condenação de todos os acusados.
De outro lado, como contratante, o Estado se propõe a agir de modo leniente, suave,
brando no exercício de seu poder punitivo. O acordo lhe acarreta a obrigação de reduzir ou
extinguir sanções potencialmente aplicáveis ao infrator confesso. Cabe a ele, por conseguin-
te, o verdadeiro papel de leniente – papel que se justifica na medida em que a brandura pu-
nitiva seja compensada pela obtenção de provas que sustentem a persecução e condenação
de outros infratores.
Em síntese, o acordo de leniência:

• A) constitui acordo de direito administrativo, vinculado no geral a processos adminis-


trativos, diferentemente da delação premiada, regida pelo direito penal. Na leniência,
não se debatem infrações penais, ainda que, a depender do modelo adotado, o legis-
lador possa conferir ao colaborador alguns benefícios quanto a potenciais sanções
criminais com o objetivo de incrementar a atratividade do programa de cooperação
com a Administração Pública – o que, vale dizer, infelizmente não se previu na Lei
Anticorrupção.

• B) integra um processo administrativo punitivo, convivendo com a via unilateral de


decisão estatal. Dito de outro modo: a leniência é acordo integrativo, uma vez que
convive com o processo e o acompanha até sua conclusão, buscando torná-lo viável
ou alcançar um resultado útil. Em contraste, os compromissos de cessação de prática
suspendem o processo administrativo e, após o cumprimento das obrigações, oca-
sionam seu arquivamento, de modo que não se chega a uma decisão, condenatória
ou absolutória, em relação ao infrator compromissário.

2
DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella; MARRARA, Thiago (Orgs.). Lei anticorrupção comentada. Belo Horizonte: Fórum,
2017. p. 196.
296 Thiago Marrara

• C) pressupõe um comportamento pretensamente ilícito, ainda em curso ou já ces-


sado, e sempre desenvolvido em coautoria. Por força dessa premissa, reputa-se
ilegítima e imotivada a leniência celebrada com todos os infratores. Essa prática im-
possibilitaria o exercício do poder punitivo e negaria a própria essência do acordo.
Leniência não é perdão, nem técnica de renúncia de competências. Na verdade, as
características desse acordo são a comutatividade, a cooperação e o utilitarismo dian-
te das finalidades do processo punitivo; e

• D) exige que a Administração Pública não detenha condições de, por si só, desen-
volver com sucesso as atividades instrutórias no curso do processo administrativo
sancionador. Pela sua essência e função, a leniência se harmonizará com o princípio
da moralidade administrativa somente quando duas condições básicas forem com-
binadas: o Estado não dispuser de condições de conduzir a instrução de modo sa-
tisfatório por seus próprios meios e o infrator, que busca a leniência, mostrar-se apto
para entregar provas robustas, aptas a contribuir efetiva e significativamente com a
instrução processual. Na falta dessas condições, não deverá ser celebrado o acordo,
sob pena de se utilizá-lo com a finalidade exclusiva de beneficiar um dos acusados em
detrimento de outros – o que, novamente, representaria desvio da finalidade.3

O acordo de leniência, tal como definido, não se confunde com o conceito mais
amplo de programa de leniência. O termo programa equivale à política de cooperação instru-
tória e abrange diversas fases que ultrapassam em grande medida a vida do mero acordo de
leniência. O programa inclui, portanto:

• A fase de qualificação: essa é a etapa em que as autoridades públicas recebem pro-


postas de negociação do acordo. A propositura ocorrerá antes da abertura do pro-
cesso administrativo sancionador (leniência prévia) ou ao longo do processo (leniên-
cia concomitante). Não existe, porém, leniência posterior à conclusão do processo.
Durante a qualificação, caberá ao Estado organizar a lista de interessados e verificar
quais cumprem os requisitos legais que os habilitam a apresentar uma proposta. Para
organizar a demanda pelo acordo, deverá adotar a distribuição de senhas pela sequên-
cia temporal de chegada ou outro qualquer meio que diferencie os infratores interessa-
dos pelo momento de manifestação de seu interesse, pois a Lei Anticorrupção impede
a celebração de leniência com mais de uma pessoa jurídica em relação a um mesmo
processo. Especificamente no âmbito federal da política de combate à corrupção, o
art. 31, §2º, do Decreto n. 8.420/2015 prevê que a formalização da proposta poderá
ser realizada por meio de memorando de entendimentos entre a pessoa jurídica pro-
ponente e a CGU.

• A fase de negociação e de celebração: após a ordenação dos interessados em cola-


borar com o Estado, o órgão competente deve iniciar o estudo da primeira proposta

3
DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella; MARRARA, Thiago (Orgs.). Lei anticorrupção comentada. Op. cit., p. 196-198.
Acordo de leniência na Lei Anticorrupção 297

qualificada e as negociações conforme a ordem de chegada. Caso as negociações


com o primeiro qualificado se revelem infrutíferas, iniciam-se negociações com o
próximo da lista de qualificados até que um acordo venha a ser celebrado. É ainda
possível que se retome a fase de negociação após uma leniência firmada, mas frus-
trada ao longo de sua execução, ou seja, descumprida – isso será viável desde que o
processo ainda não tenha se encerrado.

• A fase de execução do acordo: uma vez concluída a negociação de modo exitoso,


celebra-se o acordo de leniência e inicia-se sua execução, ou seja, o cumprimento
das obrigações nele dispostas por conta e risco do infrator colaborador. Como dito,
ele age por risco próprio, uma vez que a leniência não o imuniza contra todas as esfe-
ras de responsabilização que decorrem de sua iniciativa de delatar e colaborar com o
Estado na apuração de fatos nos quais ele mesmo está envolvido. Ele age igualmente
por conta própria, pois assume todos os custos da colaboração.

• A fase de avaliação do acordo: a última fase do programa é a de avaliação. Nela se


verificam se foram atingidos os objetivos do acordo e, sobretudo, se o colaborador
executou as obrigações que assumiu de boa-fé. Essa avaliação ocorre simultanea-
mente à condenação e nela se definem os benefícios a se conferir ao colaborador.
Excepcionalmente, em casos de inadimplemento grave ao longo da fase de execução,
deve ser possível ao Estado encerrar de modo antecipado o acordo e, como dito,
iniciar novas negociações com outro infrator colaborador.4

3 REGIME DA LENIÊNCIA NA LEI ANTICORRUPÇÃO

O sucesso dos programas e, por conseguinte, dos acordos de leniência depende de


uma série de fatores jurídicos e extrajurídicos que, entre outras coisas, confiram previsibili-
dade e segurança aos contratantes. Para que isso ocorra, cabe ora ao legislador, na elabora-
ção do regime legal, ora ao administrador público, na negociação do termo de leniência: 1)
definir e fixar com clareza os sujeitos autorizados a participar do programa na qualidade de
contratantes, de interessados ou de meros ouvintes; 2) traçar regras sobre a apresentação e
a aceitação de propostas; 3) detalhar os requisitos, a duração e o procedimento de negocia-
ção; 4) definir os requisitos e a forma de celebração; 5) estabelecer o modo de cumprimento
das obrigações pactuadas; 6) estipular os efeitos do cumprimento do acordo dentro e fora
do processo administrativo; e 7) prever casos de potencial descumprimento do acordo com
suas respectivas implicações.
No âmbito da política brasileira de combate à corrupção, a disciplina jurídica do
acordo e seus aspectos essenciais foi delineada pela Lei Anticorrupção, editada em 2013.

4
DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella; MARRARA, Thiago (Orgs.). Lei anticorrupção comentada. Op. cit., p. 211-212.
298 Thiago Marrara

Em dois dispositivos específicos, referida lei previu a leniência para os ilícitos de corrupção
(art. 16) e a possibilidade de sua extensão para ilícitos licitatórios (art. 17). Em 2015, esses
dispositivos foram regulamentados pelo Decreto Presidencial n. 8.420, bem como pela Por-
taria CGU n. 901. Em 2016, finalmente, editou-se a Portaria CGU/AGU n. 2.278, tratando de
cooperação interorgânica na negociação e celebração do acordo, posteriormente substituída
pela Portaria Conjunta n. 4, datada de 09 de agosto de 2019.
Em breve resumo, a Lei Anticorrupção, após enumerar os atos ilícitos nela tratados
(art. 5º) e da responsabilidade objetiva civil e administrativa por sua prática,5 prevê normas
gerais sobre o acordo de leniência aplicáveis aos três entes da federação brasileira. O art.
16 da Lei Anticorrupção, especificamente, cuida: (i) da autoridade competente para celebrar
o acordo de leniência; (ii) dos sujeitos que dele podem se beneficiar; (iii) das obrigações
principais dos contratantes; (iv) dos requisitos para celebração; (v) dos benefícios do acordo
no processo administrativo em que ele se integra; (vi) da ausência explícita de imunização
contra medidas de reparação civil; (vii) da possibilidade de extensão do acordo ao grupo
econômico de fato e de direito; (viii) da publicidade do acordo; (ix) de alguns efeitos da ne-
gociação frustrada; (x) da vedação de celebração de nova leniência por um triênio em caso
de acordo descumprido e (xi) do efeito da celebração em relação a prazos prescricionais.

4 BENEFÍCIOS DO PROGRAMA DE LENIÊNCIA POR ATO DE


CORRUPÇÃO

Certamente, as normas mais relevantes em todo esse conjunto de disposições do


art. 16 da Lei Anticorrupção se referem aos efeitos do cumprimento do acordo para o infrator
colaborador. De maneira geral, os efeitos benéficos de um programa de leniência classifi-
cam-se em: (i) administrativos, internos e externos; (ii) civis e (iii) penais. O cumprimento da
leniência prevista na legislação em debate acarreta, porém, meras vantagens administrativas
e civis para a pessoa jurídica. Em termos formais, o cumprimento também exigirá a exclusão
de informações do CNEP (art. 22, §5º), reduzindo a exposição do colaborador. Contudo,
não haverá efeitos penais, nem qualquer efeito administrativo ou civil para pessoas físicas.
Conforme prescrição da Lei Anticorrupção, a “celebração” (sic) do acordo de leniên-
cia isentará a pessoa jurídica das sanções previstas no inc. II do art. 6º e no inc. IV do art.
19 e reduzirá em até 2/3 (dois terços) o valor da multa aplicável (art. 16, §2º). Traduzindo: o

5
Se condenada no processo administrativo acusatório por corrupção, a pessoa jurídica poderá sofrer duas san-
ções: (i) multa sancionatória, cuja intensidade variará de 0,1 a 20% de seu faturamento anual, descontados
tributos, e que jamais poderá ser inferior à vantagem auferida quando for possível mensurá-la, nem excluirá a re-
paração civil e/ou (ii) a publicação da decisão condenatória nos meios de comunicação, na entidade e na internet,
medida que persegue de modo evidente o intuito de expor o infrator e submetê-lo a eventuais “sanções indiretas”
por parte de investidores, consumidores, concorrentes e outros agentes sociais e econômicos. Trata-se, pois, da
sanção de admoestação pública.
Acordo de leniência na Lei Anticorrupção 299

reconhecimento do “cumprimento” do acordo de leniência por parte do infrator colaborador


(e não a celebração em si, como diz a lei) gerará dois efeitos administrativos e um efeito
civil, a saber:

• A imunidade à sanção administrativa de publicação extraordinária da decisão conde-


natória (art. 6º, II). Não obstante o infrator colaborador também deva ser condenado,
sobretudo porque confessa a infração, ele não se sujeitará aos custos financeiros e
não financeiros de divulgação da infração. Além disso, para que o benefício previsto
na lei produza efeito prático, há que se interpretá-lo de modo extensivo. Não basta a
isenção em relação à sanção de publicação. É preciso que ele não conste das publica-
ções impostas aos outros condenados. Afinal, se seu nome constar de outras publica-
ções, o benefício que o legislador pretendeu oferecer ao colaborador será aniquilado.

• A redução em até dois terços da multa administrativa, a qual, nos termos da Lei
Anticorrupção, varia de 0,1% a 20% do faturamento bruto anual, excluídos os tribu-
tos, do último exercício anterior ao da instauração do processo ou, quando não for
possível identificar o faturamento, de seis mil reais a sessenta milhões de reais (art.
6º, II e §4º). Isso significa que, para conceder o benefício, a Administração terá que
condenar o colaborador e fixar sua multa-base, aplicando em seguida o fator percen-
tual redutor. Como se sustentou alhures,6 da maneira como ficou disciplinado na Lei
Anticorrupção, o benefício de redução da multa se mostra bastante problemático. Em
primeiro lugar, a lei deixou de fazer uma importante distinção entre a leniência prévia
e a leniência concomitante ao processo. Para a leniência prévia, seria ideal que se
garantisse um benefício maior que o da concomitante, já que o infrator confessa algo
desconhecido pelo Estado. Todavia, o legislador ignorou essa distinção e, ao igualar o
benefício, acabou por criar um regime legal que desestimula a cooperação anterior à
abertura do processo administrativo. Em segundo lugar, ao tratar da redução da multa,
a despeito do momento da leniência, a lei somente prevê um teto de redução (2/3),
sem a garantia de qualquer mínimo. Nesse contexto, para que se confira segurança
jurídica ao colaborador e se estimule a boa-fé da Administração,7 é preciso que o
acordo contenha cláusula que: a) ou preveja exatamente o percentual da redução pelo

6
MARRARA, Thiago. Acordos de leniência no processo administrativo brasileiro: modalidades, regime jurídico e
problemas emergentes. Revista Digital de Direito Administrativo, v. 2, n. 2, 2015. p. 521-522.
7
Preleciona Bacellar Filho que “o cidadão, ao dar início às solenidades que antecedem o exercício de uma atividade
lícita e ao empenhar-se moral e financeiramente com o projeto dela decorrente, tem, de acordo com o princípio
da juridicidade, a certeza de um direito. A certeza do direito representa, pois, para o cidadão, uma visão confiante
e antecipada do acolhimento de seu desejo ou de sua pretensão, uma vez cumpridos os requisitos exigidos
[...]” (BACELLAR FILHO, Romeu Felipe; MARTINS, Ricardo Marcondes. Tratado de direito administrativo: ato
administrativo e procedimento administrativo. v. 5. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2014. p. 537.). Em sentido
semelhante, ensina Bandeira de Mello que “a essência do Direito é firmar previamente os efeitos que associará
aos comportamentos tais ou quais [...] a ordem jurídica constitui uma prévia rede de segurança para a conduta
dos indivíduos, afastando liminarmente qualquer imprevisto ou surpresa que poderia lhes advir se não existisse
essa preliminar notícia sobre o alcance de sua atuação futura”. E arremata: “a própria possibilidade de o Direito se
realizar depende, às completas, de que exista a certeza, a segurança de que um prévio comportamento ocorrerá
na hipótese de uma conduta ser tal ou qual” (MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Estado de direito e segurança
300 Thiago Marrara

cumprimento da leniência ou b) estabeleça uma faixa de redução (por exemplo, de 1/3


a 2/3), deixando-se a mensuração final da redução para o momento de condenação
conforme o grau de colaboração verificado ao longo da execução do acordo.8 Em ter-
ceiro lugar, mostra-se importante garantir ao colaborador o benefício da menor multa.
É inaceitável que o infrator que auxilia a Administração se sujeite à sanção pecuniária
mais gravosa que a imposta ao infrator que não participa do programa de leniência
e não colabora com a comprovação da materialidade e da autoria. Na Lei de Defesa
da Concorrência, explicita-se que a “pena sobre a qual incidirá o fator redutor não
será superior a menor das penas aplicadas aos demais coautores da infração” (art.
86, §5º).9 A Lei Anticorrupção, contudo, silencia sobre o assunto. A esse despeito, o
benefício da menor pena resulta do princípio da moralidade administrativa, da própria
lógica do programa de leniência e da boa-fé. Não houvesse essa garantia, pouca razão
sobraria para se cooperar com o Estado. De todo modo, na falta de previsão legal,
mais seguro ao colaborador é negociar a inserção do benefício da menor pena em
cláusula do acordo.

• E, no tocante às possíveis punições civis, a imunidade à sanção de “proibição de


receber incentivos, subsídios, subvenções, doações ou empréstimos de órgãos ou
entidades públicas e de instituições financeiras públicas ou controladas pelo poder
público, pelo prazo mínimo de 1 (um) e máximo de 5 (cinco) anos” (art. 19, IV).
Esse benefício, concedido no processo administrativo, só ganhará utilidade diante de
uma eventual ação judicial civil promovida pela Advocacia Pública ou pelo Ministério
Público contra os infratores. Assim como ocorre em relação ao benefício de redução
da multa, a disciplina do benefício civil da leniência da Lei Anticorrupção se mostra
igualmente problemática. A razão para a crítica é simples. As sanções civis aplicáveis
são quatro e podem incluir a suspensão da atividade empresarial até a dissolução da
pessoa jurídica. Nesse contexto, seguindo-se uma interpretação literal da lei, o fato de
a leniência ser cumprida não imunizará o colaborador contra um pedido de extinção
de sua pessoa jurídica ou de suspensão de suas atividades. Qual será, porém, a
vantagem de se celebrar um acordo que impede a aplicação da sanção de proibição
de recebimento de incentivos pelo infrator colaborador, mas permite que o Ministério
Público solicite sua “pena de morte” (ou seja, a extinção da pessoa jurídica)? Para

jurídica. In: VALIM, Rafael; OLIVEIRA, José Roberto Pimenta; DAL POZZO, Augusto Neves (Orgs.). Tratado sobre o
princípio da segurança jurídica no direito administrativo. Belo Horizonte: Fórum, 2013. p. 41).
8
Essa possibilidade de mensuração do benefício no momento de julgamento existe no âmbito do processo con-
correncial. Em relação à Lei Anticorrupção, porém, há autores que descartam essa possibilidade e entendem que
o percentual de 2/3 de redução da pena previsto na lei é fixo. Nesse sentido, Heinen aduz que: “os benefícios
à pessoa jurídica, definidos no §2º do art. 16, são vinculados, ou seja, não podem ser sonegados quando en-
tabulado o acordo e cumpridas as suas cláusulas [...] A lei brasileira não deu margem ao Poder Público poder
negociar os benefícios em caso de colaboração posta a efeito pelo acusado” (HEINEN, Juliano. Comentários à Lei
Anticorrupção: Lei n. 12.846/2013. Belo Horizonte: Fórum, 2015. p. 243).
9
Em detalhes sobre o benefício da menor pena no direito concorrencial, cf. MARRARA, Thiago. Sistema brasileiro
de defesa da concorrência: organização, processos e acordos administrativos. São Paulo: Atlas, 2015. p. 355-
356.
Acordo de leniência na Lei Anticorrupção 301

que se garanta a utilidade da leniência, para que seus benefícios sejam reais e efe-
tivos, é preciso interpretar referidos mandamentos em sentido lógico e teleológico.
Conquanto o art. 16 não o diga, a leniência impõe uma imunidade também contra a
medida prevista no art. 19, inc. III.10 Se não for assim, de nada adiantará o benefício
quanto ao inc. IV. O que a leniência não poderá incluir em hipótese alguma como
benefício civil será a imunidade em relação à reparação de danos causados ao Estado
ou a terceiros. O acordo não se presta ao proibir indenizações civis ao Estado ou a
terceiros por expressa vedação legal (art. 16, §3º), nem pode conter cláusulas sobre
indenizações civis por falta legitimidade ao Estado para representar particulares nesse
âmbito. Ademais, é bastante questionável que se possa fazer arbitramento de danos
civis no momento de celebração da leniência já que o acordo precede a instrução e,
por óbvio, a decisão administrativa final que aponta se há ou não danos e qual sua
extensão.

5 PANORAMA DAS FALHAS DO REGIME JURÍDICO LEGAL

No regime jurídico em exame, como se viu, notam-se muitas falhas e lacunas que,
em última instância, afetam a previsibilidade, a segurança jurídica e, pior, a atratividade do
programa de leniência.
A uma, a Lei Anticorrupção ignora o papel das pessoas físicas, ou seja, não há pre-
visão de participação dessas pessoas no acordo – lacuna que, em última instância, acaba
por tornar o programa menos atrativo, na medida em que coloca a pessoa física (como o
administrador diretamente responsável pela corrupção praticada pela empresa) em situação
de alta vulnerabilidade, sobretudo no âmbito penal.
A duas, mesmo para a pessoa jurídica infratora que decide colaborar com o Estado,
o regime de leniência não garante uma imunização ampla em relação a todas as sanções
previstas na Lei Anticorrupção. Conquanto celebre o acordo e o cumpra integralmente, ne-
nhuma mitigação atingirá grande parte das sanções civis (previstas no art. 19).11 Além
disso, a Lei não trata de possibilidade de arbitramento de danos no acordo, ainda que, na
prática, alguns acordos tenham previsto cláusulas a respeito do perdimento de bens e do
pagamento de indenizações.

10
MARRARA, Thiago. Acordos de leniência no processo administrativo brasileiro: Op. cit., p. 522.
11
As sanções civis, dependentes de condução de ação civil pública ajuizada pela entidade lesada ou pelo Ministério
Público, consistem em reparação do dano; perdimento de bens e valores; suspensão de atividades econômicas;
dissolução da pessoa jurídica (apenas nos casos listados na lei); proibição de incentivos, doações, empréstimos
públicos etc. No processo judicial, também poderão ser aplicadas as duas sanções administrativas previstas na
Lei, caso a entidade pública competente para punir o infrator não tenha agido.
302 Thiago Marrara

A três, a lei falha ao não prever um sistema diferenciado de benefícios conforme o


momento de celebração da leniência12 – diferentemente do programa construído no âmbito
do direito da concorrência, que diferencia a leniência prévia, a leniência concomitante e a
leniência plus, cada qual com benefícios distintos, de modo a estimular o infrator a cooperar
com o Estado o mais rápido possível e a despeito de se ter conhecimento da infração.
A quatro, a lei não garante um percentual mínimo de redução da administrativa ao
infrator colaborador, nem prevê o importante benefício da menor multa. Isso significa que,
se o acordo não for bem negociado, o colaborador poderá receber benefícios insignifican-
tes ou uma sanção superior à imposta a infratores que não colaboraram com a instrução
processual. Enfim, a cinco, a lei em debate não traz normas sobre cooperação interadminis-
trativa e interorgânica para articular os diversos órgãos envolvidos na política de combate à
corrupção.

6 TENTATIVAS DE APRIMORAMENTO DO REGIME: MP 703

Em certa medida, por conta das várias falhas e lacunas do regime jurídico da leniên-
cia na Lei Anticorrupção – problemas que comprovam a ignorância do legislador em relação
aos avanços e estudos que já existiam na época a respeito da leniência concorrencial – bus-

12
Por um critério temporal, o acordo de leniência pode ser prévio ao processo administrativo, concomitante ou
secundário. A modalidade prévia designa o acordo celebrado antes que o poder público tenha conhecimento da
infração administrativa. Previamente à abertura do processo ou de seus procedimentos preparatórios, um dos
infratores busca a cooperação e celebra a leniência que então dará origem ao processo sancionador. Por gerar
elevado benefício ao Estado e representar uma colaboração “mais” espontânea, esse tipo de leniência resulta,
em muitos ordenamentos, em maiores benefícios ao colaborador. Quando a leniência é firmada ao longo do pro-
cesso, fala-se então de um acordo concomitante. O infrator já se encontra na posição de acusado e, para mitigar
as sanções que lhe podem atingir, recorre à cooperação pela via da leniência. Nesta hipótese, como o Estado já
dispõe de informações básicas de autoria e materialidade, a leniência “vale menos”, gera menores benefícios ao
colaborador. Daí se entende que, ao diferenciar os benefícios da leniência concomitante em relação à modalidade
prévia, o legislador promove uma “corrida pela leniência”, aumenta o clima de desconfiança entre os infratores
e desestabiliza as relações entre eles. Apesar dessa vantagem, a Lei Anticorrupção brasileira ignorou a distinção
e não registrou a obrigatoriedade de se concederem benefícios diferenciados conforme o momento da leniência.
Referida lacuna tenderá a desestimular os acordos prévios, levando o infrator a esperar a abertura do processo
administrativo para avaliar a utilidade da colaboração. Além da leniência prévia e da concomitante, é possível
falar de uma leniência secundária ou tardia. Trata-se de um acordo igualmente concomitante ao processo, mas
que é celebrado após uma primeira leniência no mesmo processo administrativo. Em alguns ordenamentos, a
leniência secundária é vedada por força da regra first come, first serve, a qual foi igualmente consagrada na Lei
Anticorrupção. Por conseguinte, somente o primeiro que se qualificar para colaborar estará autorizado a celebrar
o acordo. Em outros modelos, aceita-se a leniência secundária ou tardia, mas se conferem menores vantagens ao
colaborador, criando-se um sistema de benefícios em cascata pelo qual a quantidade de vantagens ao colaborador
se reduz conforme a quantidade de leniências aumenta. Existe ainda um terceiro modelo, referente à leniência
plus, adotado no âmbito do direito concorrencial brasileiro, mas sem previsão na política de combate à corrup-
ção. Aqui, a leniência secundária poderá ser celebrada em um processo que já conta com um colaborador, mas
desde que o segundo colaborador apoie as atividades de instrução neste primeiro processo e, adicionalmente,
traga informações sobre uma nova infração desconhecida pela Administração Pública. A leniência plus pode ser
chamada de leniência dúplice, uma vez que congrega uma leniência concomitante no processo em curso e uma
leniência prévia para a nova infração confessada.
Acordo de leniência na Lei Anticorrupção 303

cou-se modificar o regime jurídico descrito por meio de uma Medida Provisória, igualmente
mal debatida e preparada. Apesar de ter perdido vigência por falta de conversão em lei no
prazo constitucional, a MP n. 703, de 18 de dezembro de 2015 modificou brevemente inú-
meros dispositivos da Lei Anticorrupção e, para o regime da leniência, de modo especial,
trouxera as significativas mudanças ao art. 16.
Em primeiro lugar, a MP tentou extirpar a regra do first come, first serve (art. 16, §1º,
I), de acordo com a qual somente uma pessoa jurídica está autorizada a celebrar o acordo
em cada processo administrativo. Para garantir a celebração, a pessoa jurídica necessita
ser a primeira a se qualificar perante a Administração. Ao afastar essa regra, a MP buscava
impedir o efeito de bloqueio que uma leniência gerava para outros infratores interessados.
Isso tornaria possível celebrar múltiplas leniências no mesmo processo. Se aprovada, essa
nova sistemática quebraria o estímulo à “corrida pela leniência” e esvaziaria o próprio sentido
do processo punitivo.
Em segundo lugar, ao possibilitar múltiplas leniências, a MP teve que necessariamen-
te alterar o sistema de benefícios e isso ocorrerá pela diferenciação das vantagens dadas ao
primeiro infrator-colaborador (maiores) e aquelas conferidas aos subsequentes (menores).
A diferenciação, hoje revogada, tentava salvar um pouco do efeito da “corrida” pelo acordo,
já que o primeiro receberia mais prêmios que os colaboradores tardios.
Em terceiro lugar, também de modo a facilitar a posição do infrator interessado no
acordo, a MP retirava da lei a necessidade de confissão do ato de corrupção (art. 16, §1º,
II). Isso colocava o colaborador em situação mais confortável e reduzia sua vulnerabilidade,
ou melhor, os riscos de punição e de responsabilização em outras esferas – fator que, em
última instância, tornava o programa de leniência muito mais atrativo. Na prática, porém, a
confissão é essencial e constitui requisito lógico da leniência. Afinal, é o fato de o colabora-
dor ser ele mesmo um dos infratores que lhe dá legitimidade para atuar ao lado do Estado
como um fornecedor confiável de provas.
Em quarto lugar, a MP ampliou de modo extremamente significativo as vantagens
decorrentes do cumprimento do acordo,13 por exemplo, ao beneficiar o infrator-colaborador
contra sanções na esfera licitatória, inclusive as de caráter pecuniário, e por permitir que o

13
Para se constatar essa ampliação, basta verificar a redação que o art. 16, §2º havia assumido por conta da
MP n. 703: “§2º O acordo de leniência celebrado pela autoridade administrativa: (Redação dada pela Medida
provisória n. 703, de 2015): I – isentará a pessoa jurídica das sanções previstas no inciso II do caput do art. 6º
e das sanções restritivas ao direito de licitar e contratar previstas na Lei n. 8.666, de 21 de junho de 1993, e em
outras normas que tratam de licitações e contratos; (Incluído pela Medida provisória n. 703, de 2015); II – poderá
reduzir a multa prevista no inciso I do caput do art. 6º em até dois terços, não sendo aplicável à pessoa jurídica
qualquer outra sanção de natureza pecuniária decorrente das infrações especificadas no acordo; e (Incluído pela
Medida provisória n. 703, de 2015); III – no caso de a pessoa jurídica ser a primeira a firmar o acordo de leniência
sobre os atos e fatos investigados, a redução poderá chegar até a sua completa remissão, não sendo aplicável à
pessoa jurídica qualquer outra sanção de natureza pecuniária decorrente das infrações especificadas no acordo.”
(Incluído pela Medida provisória n. 703, de 2015).
304 Thiago Marrara

acordo tratasse da reparação de danos, inclusive mediante técnicas de amortização que


levassem em conta a “capacidade econômica do agente”.14
Em quinto lugar, também no sentido de incrementar os benefícios do acordo, tor-
nando-o mais atrativo e menos arriscado aos colaboradores, a MP ainda previu que sua
celebração impediria ações de improbidade, ações civis em geral e a ação para aplicação
das sanções civis por corrupção (art. 19 da lei), desde que o acordo fosse firmado com a
participação da Advocacia Pública ou do Ministério Público.
Em sexto, a MP determinou que os documentos fornecidos pelo colaborador ao
Estado fossem devolvidos em caso de proposta de leniência frustrada (art. 17-B), suprindo
assim uma lacuna da redação originária da lei. Na prática, esse problema foi resolvido por
normas infralegais, como a Portaria Conjunta CGU/AGU n. 04/2019, cujo art. 8º, parágrafo
único, hoje prevê que “a desistência da proposta de acordo de leniência ou sua rejeição: I –
não importará em reconhecimento da prática do ato lesivo investigado pela pessoa jurídica;
II – implicará a devolução, sem retenção de cópias, dos documentos apresentados, sendo
vedado o uso desses ou de outras informações obtidas durante a negociação para fins
de responsabilização, exceto quando a administração pública tiver conhecimento deles por
outros meios; e III – não acarretará sua divulgação, ressalvado o disposto no art. 4º desta
Portaria”.
A MP caminhou bem em certos aspectos, mas realmente parece ter exagerado na
ampliação dos benefícios e, pior, sem que ainda houvesse na doutrina e no âmbito dos ór-
gãos competentes uma reflexão madura e aprofundada a respeito das deficiências do modelo
de leniência da lei. Outro fator que a prejudicou, por natural, foi o momento político e social
de sua edição e igualmente o fato de não ter sido capaz de resolver todas as falhas da disci-
plina jurídica da leniência para atos de corrupção.

7 REGULAMENTAÇÃO INFRALEGAL: AVANÇOS?

No âmbito da União, antes e após a esperada perda de vigência da MP n. 703,


foram editados alguns diplomas de natureza administrativa com o objetivo de detalhar os
procedimentos e o funcionamento do programa de leniência. Essas normas se encontram no
Decreto n. 8.420/2015, que regulamentou a Lei Anticorrupção, na Portaria CGU n. 901/2015
e, posteriormente, na Portaria n. 2.278/2016, que acabou por revogar os arts. 27 a 37 da
Portaria anterior referentes ao tema em debate. Mais tarde, a Portaria n. 2.278/2016 foi
substituída pela Portaria Conjunta n. 04/2019.

14
Isso se vislumbrava na redação modificada do art. 16, §4º: “O acordo de leniência estipulará as condições neces-
sárias para assegurar a efetividade da colaboração e o resultado útil do processo administrativo e quando estipular
a obrigatoriedade de reparação do dano poderá conter cláusulas sobre a forma de amortização, que considerem
a capacidade econômica da pessoa jurídica.” (Redação dada pela Medida provisória n. 703, de 2015, mas não
convertida).
Acordo de leniência na Lei Anticorrupção 305

O exame sistemático desses vários diplomas normativos de caráter administrativo


revela que o Poder Executivo, ao detalhar o assunto, também intentou superar inúmeras
falhas e lacunas materiais e procedimentais constantes da legislação e inovou em muitos
aspectos – em alguns casos, inclusive, de modo a extrapolar os limites constitucionais do
poder regulamentar. Entre os avanços mais marcantes da abrangente disciplina infralegal, é
imprescindível destacar:

• A relativização da regra do “first come, first serve”. De acordo com o art. 30 do De-
creto n. 8.420, “a pessoa jurídica que pretenda celebrar acordo de leniência deverá:
I – ser a primeira a manifestar interesse em cooperar para a apuração de ato lesivo
específico, quanto tal circunstância for relevante”. O trecho final dá a entender que,
a critério da autoridade pública, em juízo de conveniência e oportunidade, será lícito
celebrar várias leniências no mesmo processo administrativo. Da forma como posta,
a norma autorizativa viola inequivocamente o texto legal, que permite uma única le-
niência para pessoas jurídicas em cada processo administrativo de responsabilização.
Além de inconstitucional, por exorbitar o poder de regulamentação previsto no art. 84,
IV, da Constituição da República, a norma poderá chancelar violações ao princípio da
impessoalidade e ao princípio da moralidade, uma vez que não prevê critérios transpa-
rentes para a aceitação de leniências adicionais, diferentemente do que se vislumbra
na legislação concorrencial a respeito da leniência plus.15

• A definição de um prazo máximo de propositura do acordo. Nos termos do art. 30,


§2º, do Decreto n. 8.420/2015, a proposta do acordo poderá ser feita até a conclusão
do relatório a ser elaborado no PAR. Em outras palavras, a leniência torna-se impossí-
vel após a conclusão da instrução. Essa norma se acopla perfeitamente ao espírito do
acordo de cooperação instrutória. Se a instrução já se encerrou, não há mais espaço
para colaboração, nem utilidade potencial para um acordo. Faça-se apenas uma res-
salva. Se o órgão julgador determinar a reabertura de instrução, há que se reabrir, por
automático, o prazo para propostas de leniência. Enquanto houver instrução, haverá
possibilidade de colaboração.

• A composição do órgão de negociação do acordo de leniência. Uma forma importan-


te de se garantir a estabilidade e a durabilidade do acordo consiste na articulação dos
inúmeros interesses e órgãos estatais envolvidos na persecução do ilícito. Atento a
isso, o art. 5º da Portaria Conjunta n. 04/2019, de modo a superar uma lacuna da lei,
previu o seguinte: “Uma vez assinado o Memorando de Entendimentos, o Secretário
de Combate à Corrupção da CGU: I - designará, mediante despacho, comissão res-
ponsável pela condução da negociação do acordo, composta por, no mínimo: a) dois
membros da carreira de Finanças e Controle em exercício na CGU; e b) um membro da
AGU indicado pelo DPP”. Essa norma tem caráter autolimitativo, mas não se mostra

15
A respeito da leniência plus no direito concorrencial, cf. MARRARA, Thiago. Sistema brasileiro de defesa da
concorrência: Op. cit., p. 373.
306 Thiago Marrara

inconstitucional, pois a lei não estabeleceu regras de composição da Comissão, de


modo que se afigura perfeitamente lícito e recomendável que se busque a articulação
interadministrativa para se chegar a um acordo mais satisfatório. Da maneira como o
assunto foi disciplinado, a participação da AGU se tornou obrigatória. Além disso, os
membros da AGU têm a função especifica de “avaliar a vantajosidade e a procedência
da proposta da empresa em face da possibilidade de propositura de eventuais ações
judiciais” (art. 7º, §4º). Distinta é a situação de membros da comissão de negociação
provenientes dos entes lesados. Nos termos do art. 54º, § 1º parágrafo único, da
Portaria Conjunta: O Secretário de Combate à Corrupção da CGU “poderá solicitar
a indicação de servidor ou empregado do órgão ou entidade lesada para prestar in-
formação para participar das reuniões da comissão responsável pela condução das
negociações” (g.n.). Aqui, a solicitação da participação é discricionária e o membro
externo, aparentemente, não detém qualquer poder decisório, senão mero direito de
voz e dever de colaboração.

• A definição do prazo de negociação. Superando uma lacuna da lei, o art. 32 do De-


creto prescreve que a negociação da leniência seja concluída no prazo prorrogável
de 180 dias, que devem ser contados entre a data de apresentação do memorando
conjunto de entendimentos e a celebração do acordo. O decreto não prevê, contudo,
um limite às prorrogações.

• A forma de proposta final do acordo. Prescreve o art. 31, caput do Decreto n.


8.420/2015, que a leniência será proposta de modo oral ou escrito. A proposta for-
malizada, porém, será objeto de memorando conjunto de entendimentos que defina
seus parâmetros, nos termos do art. 31, §2º. A partir desse memorando é que se
iniciam as negociações. Todavia, o encaminhamento do memorando não impede a
desistência da proposta a qualquer momento antes da assinatura, conforme garante o
art. 34 do referido ato normativo.

• A estipulação de procedimentos em caso de desistência ou rejeição. De modo a


solucionar uma lacuna da lei, o Decreto n. 8.420 previu o seguinte: “caso o acordo
não venha a ser celebrado, os documentos apresentados durante a negociação serão
devolvidos, sem retenção de cópias, à pessoa jurídica proponente e será vedado seu
uso para fins de responsabilização, exceto quando a administração pública federal
tiver conhecimento deles independentemente da apresentação da proposta do acordo
de leniência” (art. 35). A Portaria Conjunta CGU/AGU n. 04/2019 foi ainda mais
detalhada ao prever que: “A desistência da proposta de acordo de leniência ou sua re-
jeição: I – não importará em reconhecimento da prática do ato lesivo investigado pela
pessoa; jurídica; II – implicará a devolução, sem retenção de cópias, dos documentos
apresentados, sendo vedado o uso desses ou de outras informações obtidas durante
a negociação para fins de responsabilização, exceto quando a Administração Pública
tiver conhecimento deles por outros meios; e III – não acarretará na sua divulgação,
ressalvado o disposto no art. 4º desta Portaria” (art. 8º, parágrafo único).
Acordo de leniência na Lei Anticorrupção 307

• A previsão da celebração conjunta entre CGU e AGU. Em favor da articulação interad-


ministrativa, a Portaria Conjunta n. 04 não apenas torna a participação dos membros
da AGU obrigatória na negociação, como também partilha com ela a competência da
CGU para celebração do acordo. Nesse sentido, dispõe o art. 9º, parágrafo único, que
“a decisão sobre a celebração do acordo de leniência caberá ao Ministro de Estado
da CGU e ao Advogado Geral da União”. Aqui, obviamente, a Portaria extrapolou os
termos da lei, que prevê competência exclusiva de celebração em favor da CGU. En-
tretanto, se bem analisada, verifica-se que a norma infralegal cria apenas uma forma
de autolimitação de um órgão da Administração Direta em favor de outro no sentido
de dar mais eficiência ao acordo. Lida dessa forma, a celebração conjunta não parece
representar uma violação aos termos da lei, mas sim um aprimoramento procedimen-
tal relevante à luz dos princípios constitucionais da Administração Pública.

• A ampliação dos requisitos de celebração. Realmente questionável é a norma infrale-


gal que estende o rol de requisitos para a celebração da leniência previstos no art. 16,
§1º, da Lei Anticorrupção. Além dos requisitos legais (confissão, disponibilidade de
cooperação, cessação da prática e primariedade na cooperação), o art. 7º, inciso V,
alínea “c” da Portaria Conjunta n. 04/2019 prevê a necessidade de aplicação, aperfei-
çoamento ou adoção de programas de integridade, e o inciso VI se refere a “negociar
os valores a serem ressarcidos, preservando-se a obrigação da pessoa jurídica de re-
parar integralmente o dano causado”. O art. 7º, na mesma linha, afirma que o relatório
final da comissão de negociação deverá tratar, entre outras coisas, do “compromisso
de compliance” e da reparação do dano, além de cuidar da quantificação da multa,
“se for o caso”. Ora, não há dúvidas de que a imposição desses requisitos adicionais
exorbita o poder regulamentar, fere a Lei Anticorrupção e a regra da livre negociação
que deveria pautar o programa de leniência. Não está no escopo da Lei Anticorrupção
tratar da reparação de danos, cabendo a cada ente lesado as providências para tanto.
Nesse sentido, o máximo que se poderia aceitar na negociação seria uma reparação
dos danos sofridos pela entidade federal lesada e já evidentes, nada mais que isso.
A não aceitação da reparação na esfera administrativa pelo colaborador, ademais,
jamais poderá ser tomada como motivo para afastar a celebração do acordo. É direito
seu querer discutir a reparação em outras esferas e não no campo do acordo. A ado-
ção de programas de integridade, de outra parte, também é uma decisão da pessoa
jurídica e não é exigível como requisito de celebração, já que não consta da lei e não
se mostra essencial ao funcionamento do acordo. Além de não guardar relação lógica
com o acordo em si e a infração sob apuração, a exigência de programa de integri-
dade gera elevados custos para a pessoa jurídica, razão pela qual deve permanecer
sob sua esfera de decisão, sobretudo diante da falta de norma legal que a obrigue a
adotá-lo como requisito para participar do programa de leniência.

• A extensão da competência processual da CGU. Nos termos do art. 38 do Decreto


n. 8.420/2015, a CGU poderá conduzir e julgar os processos administrativos que
apurem infrações de corrupção e em outras normas de licitações e contratos, “cujos
308 Thiago Marrara

fatos tenham sido notificados por meio do acordo de leniência”. Essa norma, em
verdade, inova o ordenamento jurídico e parece violar o art. 8º, caput e §2º, bem
como o art. 9 da Lei Anticorrupção. Esses dispositivos respectivamente: (a) preveem
a competência da entidade lesada para condução do PAR; (b) reconhecem competên-
cia concorrente da CGU para instaurar o PAR apenas no âmbito do Poder Executivo
federal ou para avocar os processos instaurados com fundamento nesta lei, somente
para exame de sua regularidade ou para lhes corrigir o andamento e (c) conferem
competência exclusiva à CGU para conduzir processos relativos a ilícitos praticados
contra a administração pública estrangeira. É de duvidosa constitucionalidade a nor-
ma infralegal que, no intuito de regulamentar, retira a competência das entidades le-
sadas para conduzir o PAR, nos termos do art. 8º, caput, da Lei Anticorrupção, ainda
que ele tenha se iniciado em razão de provas ofertadas pelo infrator colaborador no
programa de leniência.

• A extensão dos benefícios. A Portaria Conjunta n. 04, não bastasse ter estendido
indevidamente os requisitos do programa de leniência, também ampliou sem respaldo
na lei os benefícios gerados pelo cumprimento do programa. Nos termos de seu art.
12, “A celebração do acordo de leniência poderá: I - isentar a pessoa jurídica das
sanções previstas no inciso II do art. 6º e no inciso IV do art. 19 da Lei n. 12.846, de
2013; II - reduzir em até dois terços, nos termos do acordo, o valor da multa aplicável,
prevista no inciso I do art. 6º da Lei n. 12.846, de 2013; e III - isentar ou atenuar, nos
termos do acordo, as sanções administrativas ou cíveis aplicáveis ao caso”. Ora,
nesse dispositivo final, a Portaria, sem base na lei, permite que a comissão de nego-
ciação, a seu critério exclusivo, ofereça benefícios para determinados colaboradores
que não tenham qualquer fundamento legal e deixe de ofertá-los a outros. A norma é
exorbitante do poder regulamentar, além de violar os princípios da impessoalidade e
da moralidade.

• O estímulo à articulação administrativa. Além da salutar previsão de colaboração com


a AGU, o art. 50 do Decreto n. 8.420/2015, prevê que “os órgãos e as entidades
da administração pública, no exercício de suas competências regulatórias, disporão
sobre os efeitos da Lei n. 12.846/2013, no âmbito das atividades reguladas, inclusive
no caso de proposta e celebração de acordo de leniência”. Com isso, o Poder Exe-
cutivo pretendeu estimular o respeito ao acordo de colaboração e reduzir os riscos
a que se submete o infrator colaborador diante do poder persecutório (de polícia) de
outras entidades da Administração Pública, sobretudo as agências reguladoras. Toda-
via, acredita-se que a norma em questão terá efetividade limitada, dada sua abertura
mandamental e a falta de respaldo mais objetivo na Lei Anticorrupção.
Acordo de leniência na Lei Anticorrupção 309

8 CONSIDERAÇÕES FINAIS: PONTOS DE ESTRANGULA-


MENTO DA SEGURANÇA JURÍDICA

A complexidade e a multiplicação das infrações administrativas quotidianas, as difi-


culdades e os custos relativos à execução dos poderes de fiscalização e de instrução pelo
Estado, a necessidade de se concretizar interesses públicos primários (como o combate
à corrupção, a proteção da concorrência etc.) e o desejo popular por uma máquina admi-
nistrativa mais eficiente e por um ordenamento jurídico socialmente efetivo são algumas
das razões a justificar a construção de uma cultura utilitarista de cooperação, diálogo ou
consensualização no âmbito do poder sancionador estatal. São esses os fundamentos, por
conseguinte, para a inserção, no Brasil, de diversos programas de leniência, como o previsto
na Lei Anticorrupção.
Ocorre, porém, que o regime legal do programa de leniência para infrações de cor-
rupção contém inúmeras falhas e lacunas. Ao longo do presente artigo, buscou-se demons-
trar esses problemas, passando-se pela discussão da falta de benefícios a pessoas físicas,
da ausência de previsão clara dos benefícios mínimos às pessoas jurídicas, da lacuna quan-
to a benefícios penais e reparação civil, da inexistência da garantia da menor sanção, da
reduzida disciplina acerca da importante articulação entre os órgãos públicos envolvidos na
política de combate a corrupção.
Em certa medida, a despeito da não conversão da MP 703 em lei, o próprio Poder
Executivo buscou lidar com esses problemas por meio de soluções previstas no Decreto
Regulamentar e em Portarias Específicas. Contudo, nem todas as questões polêmicas foram
resolvidas a contento, seja porque as inovações normativas violam o texto legal, seja porque
não se harmonizam bem com os princípios constitucionais regentes da Administração Públi-
ca ou com as características básicas de um programa de leniência.
É preciso, assim, que prossigam os debates acerca do aprimoramento da legislação
brasileira. Sem isso, os pressupostos para o sucesso do programa de leniência não serão
alcançados e, em última instância, colocar-se-á em risco a utilidade desse importante ins-
trumento de consensualização da Administração Pública brasileira no combate a um dos
maiores males do país: a corrupção incessante.
Como já sustentei alhures,16 esses pressupostos essenciais ao bom funcionamento
de qualquer leniência consistem basicamente em: (i) garantir a transparência e a previsibili-
dade dos deveres e riscos envolvidos e do pacote de benefícios nas mais diversas esferas
de responsabilidade; (ii) conferir credibilidade ao programa, gerada, entre outras coisas, pelo
profissionalismo dos agentes e órgãos públicos envolvidos, pela boa-fé e proteção da con-
fiança, pelo respeito contínuo aos procedimentos preparatórios e às cláusulas acordadas,

16
MARRARA, Thiago. Sistema brasileiro de defesa da concorrência: Op. cit., p. 339-341.
310 Thiago Marrara

bem como pela punição precisa diante de descumprimento; e (iii) oferecer benefícios efeti-
vos ao infrator colaborador, de sorte a compensá-lo pelos riscos da cooperação instrutória.17

REFERÊNCIAS

BACELLAR FILHO, Romeu Felipe; MARTINS, Ricardo Marcondes. Tratado de direito administrativo: ato
administrativo e procedimento administrativo. v. 5. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2014.

BRASIL. CGU. Acordo de leniência com a Odebrecht prevê ressarcimento de 2,7 bilhões. 2018. Dispo-
nível em: encurtador.com.br/mwxI0. Acesso em: 3 jul. 2020.

COSTA, Marcos da; MENEZES, Paulo Lucena; MARTINS, Rogério Gandra da Silva (Org.). Direito con-
correncial: aspectos jurídicos e econômicos: comentários à Lei8.884/94 e estudos doutrinários. Rio de
Janeiro: América Jurídica, 2003.

DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella; MARRARA, Thiago (Orgs.). Lei anticorrupção comentada. Belo Hori-
zonte: Fórum, 2017.

HEINEN, Juliano. Comentários à Lei Anticorrupção: Lei 12.846/2013. Belo Horizonte: Fórum, 2015.

MARRARA, Thiago. Acordos de leniência no processo administrativo brasileiro: modalidades, regime


jurídico e problemas emergentes. Revista Digital de Direito Administrativo, v. 2, n. 2, 2015.

MARRARA, Thiago. Sistema brasileiro de defesa da concorrência: organização, processos e acordos


administrativos. São Paulo: Atlas, 2015.

MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Estado de direito e segurança jurídica. In: VALIM, Rafael; OLIVEIRA,
José Roberto Pimenta; DAL POZZO, Augusto Neves (Orgs.). Tratado sobre o princípio da segurança
jurídica no direito administrativo. Belo Horizonte: Fórum, 2013.

STETNER, Renato Parreira. Artigos 35-B e 35-C. In: COSTA, Marcos da; MENEZES, Paulo Lucena;
MARTINS, Rogério Gandra da Silva (Orgs.). Direito concorrencial: aspectos jurídicos e econômicos:
comentários à Lei 8.884/94 e estudos doutrinários. Rio de Janeiro: América Jurídica, 2003.

VALIM, Rafael; OLIVEIRA, José Roberto Pimenta; DAL POZZO, Augusto Neves (Orgs.). Tratado sobre o
princípio da segurança jurídica no direito administrativo. Belo Horizonte: Fórum, 2013.

17
Nesse sentido, cf. também: STETNER, Renato Parreira. Artigos 35-B e 35-C. In: COSTA, Marcos da; MENEZES,
Paulo Lucena; MARTINS, Rogério Gandra da Silva (OrgS.). Direito concorrencial: aspectos jurídicos e econômi-
cos: comentários à Lei n. 8.884/94 e estudos doutrinários. Rio de Janeiro: América Jurídica, 2003. p. 313.
Um olhar substancialmente federativo das
compras públicas no Brasil

Victor Aguiar Jardim de Amorim


Doutorando em Direito (UnB/UniCEUB)
Mestre em Direito Constitucional (IDP)
Professor dos cursos de Pós-Graduação (IDP/ILB/IGD)

SUMÁRIO: 1 Introdução: O que sobra para estados e municípios em matéria de normatização de li-
citações e contratos administrativos? 2 A eficácia vinculante da “jurisprudência” dos órgãos de controle
federais; 3 Por um “giro hermenêutico” no direito administrativo dos estados e municípios; Referências.

1 INTRODUÇÃO: O QUE SOBRA PARA ESTADOS E MUNICÍ-


PIOS EM MATÉRIA DE NORMATIZAÇÃO DE LICITAÇÕES
E CONTRATOS ADMINISTRATIVOS?

Em razão do complexo sistema de distribuição de competência normativa o Brasil


no tocante à normatização das compras públicas, é de se reconhecer a grande dificuldade
de observância dos atributos inerentes à autonomia dos estados e municípios no processo
de instituição de leis e regulamentos para o processamento das aquisições e contratações.
O critério de distribuição de competência do tipo vertical pressupõe a existência
de um critério para a conciliação de interesses entre os entes, sendo conferida à União a
prerrogativa de editar normas gerais em relação às matérias especificamente indicadas pela
Constituição. Tais normas gerais deverão ser observadas pelos demais entes federativos
quando da edição de suas respectivas leis tendentes à complementar as disposições gerais
advindas da União.
Com esteio na referida previsão constitucional, lastreada no critério de repartição
vertical de competência, caberá à União definir as normas gerais sobre o tema, sendo, por
outro lado, permitido aos demais entes legislar sobre normas específicas de acordo com as
suas particularidades.1 Logo, apenas as normas gerais são de obrigatória observância para
as demais esferas de governo, que ficam liberadas para regular diversamente o restante.

1
Nesse sentido, vide entendimento do STF sufragado na ADI n. 4.658/PR: “Esta Corte já assentou o entendimento
de que assiste aos Estados competência suplementar para legislar sobre licitação e contratação, desde que
respeitadas as normas gerais estabelecidas pela União” (BRASIL. STF. ADI 4658. Relator(a): Min. Edson Fachin,
Tribunal Pleno, julgado em 25/10/2019, Processo Eletrônico Dje-245 Divulg 08-11-2019 Public 11-11-2019).
312 Victor Aguiar Jardim de Amorim

Neste aspecto, cumpre anotar a importância de estabelecimento de um critério defi-


nidor do alcance da normatização da União no tocante à licitação e aos contratos administra-
tivos. Tal critério funda-se na distinção entre “normas gerais” e “normas específicas”. Com
efeito, quando a União estabelece uma “norma geral”, tal diploma ostenta a condição de “lei
nacional”, aplicável em todo o território, devendo ser observada indistintamente por todos os
entes federativos. Noutra via, ao criar “norma específica” sobre o assunto, tal lei terá âmbito
federal, só atingindo a própria União.
A liquidez do conceito de “norma geral” a que alude o XXVII do art. 22 da Constitui-
ção da República e a sanha regulatória da União, tornam cada vez mais confusa e melindrosa
a linha tênue entre “norma geral” e “norma específica”, o que conduz à extirpação da compe-
tência normativa suplementar dos Estados e Municípios em matéria de licitações e contratos.
O que começa como uma indefinição de limites no desenho de distribuição de com-
petências normativas na Federação brasileira, se desenvolve para uma considerável atrofia
na gestão pública nacional, marcada pelo cariz totalitário da União na condução das ações
dos gestores estaduais e municipais.
Afora as determinações impositivas da União em sede de convênios e repasses de
recursos – em muitos casos com uma feição de um “contrato de adesão”, sem qualquer
abertura para práticas substancialmente dialógicas com os tomadores dos recursos2 –, pa-
rafraseando Jürgen Habermas,3 há um significativo processo de “colonização”, pela ótica
federal, do direito administrativo que se “vive” no âmbito estadual e municipal.

2
Nesse sentido, vide a previsão constante no §3º do art. 1º do Decreto Federal n. 10.024/2019 referente à obri-
gatoriedade de adoção da forma eletrônica da modalidade pregão por Estados, Municípios e Distrito Federal
para contratações com recursos da União repassados aos referidos entes subnacionais a título de transferências
voluntárias. Indo além da competência conferida pelo art. 52 do mencionado decreto, o Secretário de Gestão da
Secretaria Especial de Desburocratização, Gestão e Governo Digital do Ministério da Economia editou a Instrução
Normativa n. 206, de 18 de outubro de 2019, estabelecendo não apenas os prazos para os entes subnacionais uti-
lizarem o pregão eletrônico, veiculando, ainda, comando de observância estrita das regras procedimentais fixadas
no regulamento federal. Compreende-se que tal postura de imposição das regras do procedimento federal cons-
titui violação à autonomia de gestão dos entes subnacionais. O fato é que na forma federada de Estado, adotada
pela Constituição pátria (art. 1º e 18), é inerente à autonomia de cada um dos entes a competência para legislar
sobre normas relativas à sua administração, ressalvados os casos previstos de forma diversa na Constituição.
Não se diga que se trata de uma regra da União cuja adesão dos demais entes federados é uma opção. É sabido
que diversos Estados e Municípios brasileiros são dependentes dos recursos federais decorrentes de transferên-
cias voluntárias, o que significa dizer que tais entes não terão alternativa. Além disso, o repasse de recursos entre
os entes da federação ocorre dentro de um contexto de uma atuação coordenada voltada para a cooperação nos
exercícios dos respectivos misteres, e não numa espécie de liberalidade do ente federal, o que lhe daria plenos
poderes para fazer exigências aos destinatários dos recursos. Há de se ressaltar, ainda, que a obrigatoriedade
de obediência ao procedimento previsto no Decreto n. 10.024/2019 cria um ambiente de grande complexidade
jurídica nas áreas de licitação e contrato dos entes estaduais, municipais e distritais, que ora se verão obrigados
a obedecer às suas normas e ora estarão submissos ao regulamento federal. Sendo que tal complexidade não
será sentida apenas internamente, pois, no âmbito externo, o mercado também sentirá as dificuldades inerentes à
variação normativa dos certames realizados.
3
HABERMAS, Jürgen. Teoria do agir comunicativo: sobre a crítica da razão funcionalista. v. 2. São Paulo: Martins
Fontes, 2012. p. 675-676.
Um olhar substancialmente federativo das compras públicas no Brasil 313

O fato de muito pouco “sobrar” para Estados e Municípios em termos de regramen-


tos procedimentais relevantes sobre licitações e contratações públicas, conduz ao um para-
digma normativo quase indissociável entre normas “nacionais” e “federais”, de modo que o
parâmetro de referência jurídico sempre conduz às leis e regulamentos da União.
Para tanto, basta observar o conteúdo da Lei n. 8.666/1993: muito se discute, mas
pouco se resolve acerca do que ali seria “nacional” ou meramente “federal”, ou seja, aplicá-
vel apenas aos órgãos e entidades da Administração Pública Federal.
Diante de tal indefinição – introduzida como efeito da fluidez normativa do legislador
e reforçada pela doutrina4 e, em especial, pelo Poder Judiciário –, Estados e Municípios
seguem pelo caminho mais seguro: não inventar e, assim, ser deferente às opções do le-
gislador federal. Ou seja, a “colonização” federal sobre a vida dos Estados e Munícipios
conduz a um preocupante estado de inércia legiferante dos entes nacionais que, ao não con-
textualizarem, adaptarem e especificarem as normas gerais da União de acordo com suas
particularidades, perdem a oportunidade de dotar o gestor de instrumentos que viabilizem
uma efetiva gestão de suas contratações.
E há de se reconhecer que tal inércia alimenta o apetite expansionista das práticas de
gestão da União, impondo-as aos Estados e Municípios como medidas de excelência técnica
a serem incorporadas em todos rincões do país sem qualquer questionamento ou criticidade.
O fato das leis e regulamentos federais – isso para não falar dos demais atos nor-
mativos infralegais como as instruções normativas, portarias e outros – servirem como
paradigma quase exclusivo para Estados e Municípios conduz à uma extrema dependência
em termos de gestão.
Afinal, tais normas federais são criadas à luz da realidade e da estrutura da Admi-
nistração Pública Federal, realidade essa completamente diferente daquela vivida nas plagas
estaduais e municipais notadamente no que tange aos recursos financeiros, estruturais e
humanos disponíveis.
De todo modo, merecem registros as iniciativas de alguns Estados da Federação,
como Bahia5 e Paraná6 que, na atividade de normatização complementar das “leis gerais”

4
Para tanto, vide o tópico “Sistematização dos entendimentos doutrinários” na obra de: CARMONA, Paulo Afonso
Cavichioli. Das normas gerais: alcance e extensão da competência legislativa concorrente. Belo Horizonte: Fórum,
2010. p. 57-58.
5
A Lei de Licitações do Estado da Bahia (Lei Estadual n. 9.433/2005), em seu art. 78, com originalidade, inverteu a
sequência procedimental das modalidades concorrência, tomada de preços e convite então estabelecida na Lei n.
8.666/1993, preconizando que, inicialmente, proceder-se-ia a abertura dos envelopes contendo as propostas de
preços e, posteriormente, a abertura dos envelopes de habilitação apenas dos “três primeiros lugares”. Entende-
mos que não há qualquer vício em tal previsão, tendo em vista tratar-se de regulamentação específica apenas no
tocante ao procedimento em si, mantendo-se a disciplina afeta às modalidades e tipos de licitação estabelecidos
na Lei n. 8.666/1993.
6
Como destaque, vide a previsão contida no art. 45 da Lei Estadual n. 15.608/2007 que insere na possibilidade
de uso da modalidade pregão as “obras comuns”, compreendendo, como densificação do comando “serviços
314 Victor Aguiar Jardim de Amorim

sobre licitações e contratos apresentam densificações significativas, não se limitando a mera


reprodução da literalidade das leis editadas pela União.
Da mesma forma, dada as peculiaridades regionais, cumpre destacar a originalidade
normativa promovida pelo Estado do Amapá7 e do município de Macapá-AP8 ao disporem
sobre a preferencialidade da forma presencial do pregão para aquisição de produtos para
merenda escolar.

2 A EFICÁCIA VINCULANTE DA “JURISPRUDÊNCIA” DOS


ÓRGÃOS DE CONTROLE FEDERAIS

Não obstante o extrapolamento das raias das normas “federais” tratada no tópico
anterior, a dependência é reforçada pela adoção acrítica da interpretação que se faz das
normas advindas da União. Não raro, a “gestão pública” realizada nos Estados e Municípios
se dá com base na “jurisprudência” do Tribunal de Contas da União e nos entendimentos da
Advocacia-Geral da União e da Controladoria-Geral da União.
Talvez o ponto mais sensível a se discutir no presente tópico seja a intensidade e a
relevância da “jurisprudência” do TCU na formação da vontade e aplicação do Direito por
parte dos agentes públicos, em especial os estaduais e municipais.
É assaz comum verificarmos nas petições de recursos administrativos, nas decisões
de comissões de licitação, de pregoeiros e nos despachos de autoridades argumentos e
motivações que, a rigor, representam a “jurisprudência” do TCU sobre determinada matéria,
como se a citação de um único acórdão ou julgado apenas fosse suficiente para caracterizar
um entendimento apriorístico, uníssono, consolidado e definitivo da corte de contas.
Dessa forma, fica nítido que a resolução da lide administrativa é vencida por aquele
que apresenta o julgado que melhor se “encaixa” ao caso em discussão, ignorando, muitas
vezes, a literalidade da lei, os ensinamentos doutrinários e a indissociabilidade do elemento
interpretativo na aplicação da norma (legal ou administrativa). Aliás, tal prática não se limi-
ta apenas ao âmbito federal, porquanto, salvo reduzidas exceções, os tribunais de contas
estaduais e também os municipais tendem a reproduzir o “entendimento” do TCU. Tem-se,

comuns” constante da Lei n. 10.520/2002, as obras de engenharia que venham a apresentar “padrões de desem-
penho e qualidade possam ser objetivamente definidos no edital com base nas especificações usuais praticadas
no mercado”. Em sentido contrário, no intento de positivar certo entendimento do TCU sobre o tema, o art. 4º,
I, do Decreto Federal n. 10.024/2019 exclui estabelece que o “pregão, na forma eletrônica, não se aplica a con-
tratações de obras”.
7
Art. 29 da Lei Complementar n. 108/2018: “Em licitações para aquisição de produtos para merenda escolar, a
Administração pública estadual deverá utilizar preferencialmente a modalidade do pregão presencial”.
8
Art. 49 da Lei Municipal n. 61/2009: “Art. 49. Em licitações para aquisição de produtos para merenda escolar,
destacadamente aqueles de origem local, a Administração Pública Municipal deverá utilizar preferencialmente a
modalidade do pregão presencial”.
Um olhar substancialmente federativo das compras públicas no Brasil 315

assim, o estado da arte da lógica decisória da administração pública brasileira, em todos os


níveis e segmentos.
A rigor, o atributo de definitividade do julgado ou a conclusão comum dos integrantes
da corte de contas se limita ao conteúdo da parte dispositiva, não havendo que se falar em
transcendência dos motivos determinantes do julgado ou, ainda, dos obter dictum constan-
tes da “fundamentação”.
O problema identificado na práxis hodierna da administração pública brasileira reside
em dois pontos: i) tomar a conclusão contida na parte dispositiva do acórdão como enten-
dimento apriorístico do TCU e, assim, aplicável a todo e qualquer caso que aparente alguma
semelhança; ii) extrair da “fundamentação” (motivos determinantes e obter dictum) enuncia-
dos abstratos e conferindo-lhe status de entendimento da corte de contas.
Outrossim, tal prática conduz a conferir aos julgados do TCU caráter abstrato-nor-
mativo,9 vinculando os agentes públicos quando do enfrentamento de situações futuras.
Entendidas como enunciados normativos especiais em relação às normas gerais editadas
pelo Legislativo, tais conclusões da corte de contas seriam de aplicação obrigatória e inde-
pendente das características e do contexto do caso concreto. Daí, se retira toda liberdade
interpretativa do agente público e se fecham os caminhos alternativos não reputados pelo
TCU como viáveis.
Tal problema torna-se ainda mais complexo diante da singularidade de determinados
casos concretos nos quais a corte de contas faz, a partir das circunstâncias fáticas, uma
avaliação meritória de controle e conformação acerca do caminho excepcional adotado por
um administrador. Da conclusão do TCU quanto ao acerto ou desacerto da decisão admi-
nistrativa não se pode extrair, em caráter abstrato, uma norma de aplicação apriorística e
atemporal para casos futuros sem o devido cotejo de todas as circunstancias incidentes
sobre a nova situação.10

9
Ao emplacar em todos os julgados do TCU um efeito vinculante (inclusive dos próprios motivos determinantes),
estamos, nas palavras de Lenio Streck e Georges Abboud, dando respostas antes mesmo das perguntas. Afinal,
“texto e norma não são a mesma coisa. Somente os fundamentos da decisão possuem força vinculante. O
dictum é apenas uma observação ou uma opinião. Mas o mais importante a dizer é que os precedentes são
“feitos” para decidir casos passados; sua aplicação em casos futuros é incidental. Tudo isso pode ser resumido
no seguinte enunciado: precedentes são formados para resolver casos concretos e eventualmente influenciam
decisões futuras: as súmulas (ou os ementários em geral, coisa muito comum em terrae brasilis), ao contrário,
são enunciados “gerais e abstratos” — características presentes na lei — que são editados visando à “solução
de casos futuros” [...] Quem faz uma ementa e dela se serve de forma atemporal e a-histórica está igualando texto
e norma, lei e direito. Trata-se de uma pretensão com viés anti-hermenêutico. E por que é anti-hermenêutico?
Porque a hermenêutica é exatamente a construção para demonstrar que é impossível ao legislador antever todas
as hipóteses de aplicação” (STRECK, Lenio Luiz; ABBOUD, Georges. O que é isto – o precedente judicial e as
súmulas vinculantes? Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2013. p. 31).
10
Sob o prisma histórico, é salutar registrar a existência de discussão seminal no âmbito do TCU acerca da
abrangência e dos limites da suposta competência normativa da Corte prevista no §2º do art. 79 do Decre-
to-Lei 2.300/1986, a norma geral sobre licitações e contratos administrativo revogada posteriormente pela Lei
8.666/1993. Tal previsão foi discutida pelo Plenário do TCU em sessão no dia 13/8/1987, no bojo do Processo TC
316 Victor Aguiar Jardim de Amorim

É fato que o “direito administrativo do medo”11 e a abstrativização intensiva dos jul-


gados do TCU se não conduzem a um grave quadro de ineficiência da administração pública,
ao menos, ao castrar a liberdade interpretativa dos agentes públicos, arrefecem a capacidade
de desenvolvimento de outras soluções viáveis para a melhoria da gestão pública. Afinal, o
controlador jamais poderá substituir o administrador.
Os manuais e os demais livros de “doutrina administrativista” que adornam as me-
sas de trabalho de gestores públicos, pregoeiros, membros de comissão e ordenadores de
despesas estaduais e municipais são desenvolvidos a partir da legislação federal e com base
no que diz o TCU.12 Em outras palavras: o direito administrativo que se aprende é aquele
produzido a partir de práxis da Administração Federal, não se vislumbrando espaço para
categorizações e conceitos particularizados para Estados e Municípios.
Não se observa nos entes estaduais e municipais um “direito administrativo” próprio,
contextualizado e pensado com base em suas particularidades organizacionais e políticas.
Pensado a partir das dificuldades reais vividas pelo gestor estadual e municipal que, em
grande parte, lida com necessidade coletivas primárias, como saúde e educação.
A incorporação acrítica da “jurisprudência” do TCU pode ser danosa à Administração
estadual e municipal. Afinal, extrair uma “forma correta de gestão” de um caso concreto
julgado com base em pressupostos fáticos completamente distintos da realidade, não se
mostra como a opção mais efetiva.

2.084/1987, referente a um grupo de trabalho constituído “com a finalidade de proceder a imediatos estudos re-
lativos ao Decreto-lei n. 2.300”. Em seu voto, expôs o ministro Ivan Luz: “[...] Em nenhum momento ao legislador
constitucional ocorreu a hipótese de atribuir ao Tribunal de Contas funções regulamentadoras das leis, ‘instruções
complementares’ a estas. Não lhe compete, desenganadamente, normatizar ‘procedimentos licitatórios’ ou maté-
ria relativa a ‘contratos administrativos’. O que lhe cabe, isso sim, é, no exercício de suas funções jurisdicionais,
interpretar as normas que regulam as atividades da administração federal para realizar o controle de legalidades de
seus atos e o julgamento, conseqüente, da regularidade das contas dos administradores e demais responsáveis
por bens, dinheiros e valores públicos [...] Em conclusão e pelos motivos expostos, não me parece deva o Tribunal
expedir as instruções complementares de que trata o §2º do art. 79 do Decreto-lei n. 2.300, de 21 de novembro de
1986” (disponível em: http://bibliotecadigital.fgv.br/ojs/index.php/rda/article/viewFile/45592/43997).
11
Para maiores aprofundamentos sobre a questão, sugerimos o fundamental artigo de Fernando Vernalha Guima-
rães intitulado “O Direito Administrativo do Medo: a crise da ineficiência pelo controle”, publicado na revista Direito
do Estado, edição 71, ano 2016 (BRASIL. TCU. Estudos sobre o Decreto-lei n. 2.300/86. Processos n. 2.084/87,
6.616/87-9 e 8.574/86-3. R. Dir. Adm., Rio de Janeiro, v. 169, p. 177-186, jul./set. 1987. Disponível em: http://
www.direitodoestado.com.br/colunistas/fernando-vernalha-guimaraes/o-direito-administrativo-do-medo-a-crise-
-da-ineficiencia-pelo-controle. Acesso em: 3 jul. 2020).
12
Acerca dos efeitos deletérios da incorporação apressada e descontextualizada dos julgados do TCU, vide artigo
de minha autoria publicado no Conjur: AMORIM, Victor A. J. de. Julgados do TCU em matéria de licitações
e contratos não são jurisprudência. Consultor Jurídico, abr. 2018. Disponível em: https://www.conjur.com.br/
2018-abr-17/vitor-amorim-julgados-tcu-nao-sao-jurisprudencia. Acesso em: 3 jul. 2020.
Um olhar substancialmente federativo das compras públicas no Brasil 317

E onde estão os Tribunais de Contas Estaduais e Municipais13 14? Será que o enun-
ciado da Súmula n. 222 do TCU15 soterrou completamente a independência criativa de tais
Cortes? Muitos dirão: estão atolados em casos de corrupção e no proselitismo político! Mas,
e aí? Vamos jogar a criança fora junto com a água suja?

3 POR UM “GIRO HERMENÊUTICO” NO DIREITO


ADMINISTRATIVO DOS ESTADOS E MUNICÍPIOS

Ante o panorama exposto no tópico anterior, mostra-se salutar e necessário um “giro


hermenêutico” no direito administrativo dos Estados e Municípios, caracterizado pelo de-
senvolvimento e condução autônomos do modo de se fazer gestão pública – a partir da
contextualização e da consideração das realidades peculiares de cada um desses entes – e
pela incorporação crítica, quando for o caso, das práticas observadas no âmbito da Ad-
ministração Federal. E, para tal empreitada, é salutar um protagonismo dos Tribunais de
Contas, Controladorias e Procuradorias estaduais e municipais, além da incisiva atuação da
academia (notadamente dos cursos de pós-graduação), dos institutos regionais de direito
administrativo e congêneres, das escolas de governo e das Seccionais da Ordem dos Advo-
gados do Brasil, com suas comissões temáticas.

13
Registre-se, em caráter alvissareiro, a postura altiva de alguns Tribunais de Contas Estaduais como o TCE-MG e
o TCE-PR, em especial no que tange ao entendimento quanto à possibilidade de realização de licitação exclusiva
para microempresas e empresas de pequeno porte, sediadas em determinado local ou região, em observância
aos objetivos estabelecidos no art. 47 da Lei Complementar n. 123/2006. Para tanto, vide Prejulgado n. 27 do
TCE-PR: “É possível, mediante expressa previsão em lei local ou no instrumento convocatório, realizar licitações
exclusiva à microempresas e empresas de pequeno porte, sediadas em determinado local ou região, em virtude
da peculiaridade do objeto a ser licitado ou para implementação dos objetivos propostos no art. 47, Lei Comple-
mentar n. 123/2006, desde que, devidamente justificado” (PARANÁ. TCE-PR. Prejulgado n. 27. Tribunal Pleno.
Relator: Cons. Artagão de Mattos Leão. Sessão Ordinária do Tribunal Pleno n. 26 de 31/07/2019. Publicação:
DETC n. 2130 de 27/08/2019. Disponível em: https://www1.tce.pr.gov.br/multimidia/2019/8/pdf/00339015.pdf.
Acesso em: 3 jul. 2020). No mesmo sentido, apontou o TCE-MG: “Este Tribunal de Contas já se manifestou no
sentido de que a exclusividade na contratação de microempresa ou empresa de pequeno porte sediada local ou
regionalmente, em licitação em que o valor dos itens é inferior a R$80.000,00 (oitenta mil reais), observados os
requisitos legais, encontra amparo no art. 47 da Lei Complementar n. 123, de 2006” (MINAS GERAIS. TCE-MG.
Denúncia n. 1071325. Rel. Cons. Gilberto Diniz. Sessão do dia 29/08/2019. Publicação DOC do dia 26/09/2019).
14
Há que se mencionar o entendimento do TCE-MG a respeito da utilização de “robôs” por parte dos licitantes em
certames eletrônicos, destoando frontalmente da jurisprudência já consolidada do TCU no sentido de reputar
como prática ilícita e afrontosa à isonomia e moralidade o uso de tais ferramentas tecnológicas. Nesse sentido:
“1. Não há nenhum impedimento legal para utilização de robótica em procedimentos da Administração Pública,
especialmente na realização de lances em Pregão Eletrônico. 2. Tratando a questão de processos licitatórios,
a otimização trazida pelo uso da robótica favorece a celeridade e eficiência, princípios caros à Administração
Pública.2. O uso de robô por si só não determina a vitória do licitante” (MINAS GERAIS. TCE-MG. Denúncia n.
1066880. Rel. Cons. Subst. Adonias Monteiro. Sessão do dia 18/06/2019. Publicação DOC do dia 10/07/2019).
15
“As Decisões do Tribunal de Contas da União, relativas à aplicação de normas gerais de licitação, sobre as quais
cabe privativamente à União legislar, devem ser acatadas pelos administradores dos Poderes da União, dos Esta-
dos, do Distrito Federal e dos Municípios”.
318 Victor Aguiar Jardim de Amorim

Afinal, como resolver os problemas reais do gestor estadual e municipal relativos às


contratações na área de saúde e educação com base em “jurisprudência” e “boas práticas”
desenvolvidas a partir de pressupostos diferentes? Como compatibilizar, por exemplo, para
casos de “vida e morte” (o que, acredite, é comum na vida do gestor estadual e municipal), a
compreensão de regularidade formal exigida pelo TCU quanto às contratações emergenciais,
quando essa mesma jurisprudência da Corte de Contas é formada com esteio na análise das
contratações federais envolvendo demandas públicas secundárias (cujo pressuposto e a
própria noção de “urgência” e dos riscos envolvidos é distinta)?
Quanto ao elevado déficit financeiro e de recursos estruturais, é salutar o desenvol-
vimento de uma “jurisprudência de crise”16 devidamente contextualizada para a realidade de
Estados e Municípios, na qual se contemple as dificuldades reais enfrentadas pelo gestor,
a limitação de recursos, a falta de capacitação dos agentes envolvidos e, em especial, a
ausência de um paradigma hermenêutico próprio.
Mas, repita-se: tal “giro” deve partir da perspectiva dos próprios intérpretes e ges-
tores públicos dos Estados e Municípios, no sentido de que a superação da “dependência”
demanda, por parte do próprio dependente, uma ação de emancipação.
Ocorre que tal processo é, de certa forma, dificultado por uma perspectiva opaca
e parcial da tecnocracia iluminista de Brasília. A busca pela inovação, padronização e in-
formatização produz uma visão “federalizada” do Brasil, em prejuízo a uma compreensão
“nacionalizada”.
Estados e Municípios, até mesmo com um viés preconceituoso, são vistos pelos
experts como entes subalternos, que dependem das “luzes racionais” advindas das “bolhas
de excelência” de Brasília. E eventual resistência à incorporação dos comandos de boas
práticas seria resultado de um rasteiro boicote das forças corruptas que veem no atraso da
gestão pública o campo fértil para a continuidade de suas práticas de “privatização” dos
recursos públicos.
Ora, parecem tais experts não compreender que não se faz gestão pública sem po-
lítica. Vale, quanto a tal fenômeno, relembrar a afirmação de Chantal Mouffe ao analisar o
contexto atual de pós-política das democracias ocidentais: «la política ha passado a ser una
mera cuestión de administración del orden establecido, un dominio reservado a expertos,

16
Trata-se de uma referência aos pressupostos de excecionalidade econômica, social e política observados em
Portugal na década de 2000 que promoveram o desenvolvimento de uma “jurisprudência de crise” por seu Tribu-
nal Constitucional. Para tanto, vide: CANOTILHO, M.; VIOLANTE, T.; LANCEIRO, R. Weak rights, strong principles:
social rights in the Portuguese constitutional jurisprudence during the economic crisis. In: CONGRESSO MUNDIAL
DE DIREITO CONSTITUCIONAL: Constitutional Challenges: Global and Local. Workshop 4: Social rights and the
challenges of economic crisis, Associação Internacional de Direito Constitucional, jun./2014, Oslo. Anais [...].
Oslo: s.n., 2014. Disponível em: https://www.jus.uio.no/english/research/news-and-events/events/conferen-
ces/2014/wccl-cmdc/wccl/papers/workshop4.html. Acesso em: 3 jul. 2020.
Um olhar substancialmente federativo das compras públicas no Brasil 319

y la soberanía popular ha sido declarada obsoleta”17. E, nessa linha, a precisa observação


de Daniel Innerarity:

Os administradores da objetividade, aqueles que desejariam que a política fosse uma


ciência exata, têm muita dificuldade em entender para que ela serve, porque não per-
cebem que a política, mais do que gerir objetividades, está ligada à ponderação do
significado social das decisões, da sua oportunidade em contextos determinados,
do modo como afetam as pessoas [...] No topo da política, há um equilíbrio precário
entre a administração e o governo, entre a técnica e a política [...] Sem a adminis-
tração, a política se converteria numa solução de improvisações ineficazes; sem a
política, nada nos protegeria da maquinaria conservadora em que a administração
degeneraria.18

E a política possui um papel muito mais intenso e ativo nas administrações estaduais
e municipais e tal fenômeno deve ser considerado. Vide, nesse sentido, todos os fatores
políticos que circundam as discussões atinentes ao uso de ferramentas para a promoção do
mercado local e a “retenção” de receitas nos munícipios ou, ainda, a importante compatibi-
lização entre as atividades formais de gestão do sistema educacional e o protagonismo de
associações da comunidade.
Mas, no âmbito federal, a tecnocracia brasiliense parece crer que a “vida” da Admi-
nistração deve ser conduzida de forma neutra, sem qualquer tipo de interferência política.
E, nesse mundo idealizado, valendo-se da utopia discursiva de Ronald Dworkin,19 o gestor
público é visto como o “gestor hércules”.
Daí se pensar que a lei ou os regulamentos, por si só e a priori, devem fazer a gestão
pública. Ora, cabe às normas dotar o gestor do ferramental necessário para que ele tenha
a autonomia necessária, “dentro da lei”, para contextualizar a ação e, assim, se valer da
ferramenta mais adequada para o atendimento efetivo da necessidade pública em questão.
Daí o equívoco político do legislador federal, com os olhos voltados para a realidade
particular da Esplanada dos Ministérios, impor às administrações de todo o país um modo
específico de atuar e a “melhor” solução para resolver os desafios cotidianos enfrentados
pelo gestor. Para tanto, vide o substitutivo do projeto da “nova Lei de Licitações” (PL n.

17
MOUFFE, Chantal. Por un populismo de izquierda. Buenos Aires: Siglo XXI, 2018. p. 32.
18
INNERARITY, Daniel. A política em tempos de indignação. Rio de Janeiro: LeYa, 2017. p. 38-39.
19
DWORKIN, Ronald. Levando os direitos a sério. São Paulo: Martins Fontes, 2002. p. 164-203.
320 Victor Aguiar Jardim de Amorim

1.292/1995) aprovado pela Câmara dos Deputados em 17/09/2019.20 Prevalece a perspec-


tiva “federal” em detrimento da “nacional”.21
O gestor precisa é de uma “caixa de ferramentas” para dispor daquela que, abrangida
pelo círculo da legalidade, viabilize, contemplados os aspectos políticos, a solução mais
efetiva para o seu problema devidamente contextualizado e conforme as circunstâncias que
influenciem a sua opção.22
E, em conclusão, é preciso que os gestores estaduais e municipais desenvolvam
a sua autonomia hermenêutica para vislumbrar as soluções que lhes sejam mais efetivas
diante de uma “caixa de ferramentas”23 abrangidas pelo escopo da legalidade, sem que sua
atuação seja pautada pelo cumprimento cego da práxis forjada no solipsismo tecnocrático
de Brasília.

REFERÊNCIAS

AMORIM, Victor A. J. de. Julgados do TCU em matéria de licitações e contratos não são jurisprudência.
Consultor Jurídico, abr. 2018. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2018-abr-17/vitor-amorim-
-julgados-tcu-nao-sao-jurisprudencia. Acesso em: 3 jul. 2020.

BRASIL. STF. ADI 4658. Relator(a): Min. Edson Fachin, Tribunal Pleno, julgado em 25/10/2019, Proces-
so Eletrônico Dje-245 Divulg 08-11-2019 Public 11-11-2019.

BRASIL. TCU. Estudos sobre o Decreto-lei n. 2.300/86. Processos n. 2.084/87, 6.616/87-9 e 8.574/86-
3. R. Dir. Adm., Rio de Janeiro, v. 169, p. 177-186, jul./set. 1987. Disponível em: http://www.direito-
doestado.com.br/colunistas/fernando-vernalha-guimaraes/o-direito-administrativo-do-medo-a-crise-
-da-ineficiencia-pelo-controle. Acesso em: 3 jul. 2020.

BRASIL. Câmara dos Deputados. PLS n. 163/95. Redação final do substitutivo da Câmara dos De-
putados ao Projeto de Lei n. 1.292-f de 1995 do Senado Federal. Brasília: Câmara dos Deputados,

20
O texto aprovado, trata-se da Emenda Substitutiva Global n. 01/2019, de relatoria do Deputado Augusto Couti-
nho (BRASIL. Câmara dos Deputados. PLS n. 163/95. Redação final do substitutivo da Câmara dos Deputados
ao Projeto de Lei n. 1.292-f de 1995 do Senado Federal. Brasília: Câmara dos Deputados, 2019. Disponível
em: https://www.camara.leg.br/proposicoesWeb/prop_mostrarintegra;jsessionid=9805D1520BBAB5B05D3F-
CFE620305E39.proposicoesWebExterno2?codteor=1819390&filename=Tramitacao-PL+1292/1995. Acesso
em: 3 jul. 2020).
21
Como exemplo significativo da perspectiva federal do substitutivo aprovado pela Câmara dos Deputados, desta-
ca-se o teor do art. 172: “Art. 172. Os órgãos de controle deverão orientar-se pelos enunciados das súmulas do
Tribunal de Contas da União relativos à aplicação desta Lei, de modo a garantir uniformidade de entendimentos e
a propiciar segurança jurídica aos interessados. Parágrafo único. A decisão que não acompanhar a orientação a
que se refere o caput deste artigo deverá apresentar motivos relevantes devidamente justificados”.
22
SALAMON, Lester M. The new governance ant the tools of public action: an introduction. In: SALOMON, Lester M.
(Coord.). The tools of government: a guide to the new governance. Nova York: Oxford University Press, 2002. p.
11.
23
Vide a relevante obra de: RIBEIRO, Leonardo Coelho. O direito administrativo como “caixa de ferramentas”: uma
nova abordagem da ação pública. São Paulo: Malheiros, 2016.
Um olhar substancialmente federativo das compras públicas no Brasil 321

2019. Disponível em: https://www.camara.leg.br/proposicoesWeb/prop_mostrarintegra;jsessionid=-


9805D1520BBAB5B05D3FCFE620305E39.proposicoesWebExterno2?codteor=1819390&filename=-
Tramitacao-PL+1292/1995. Acesso em: 3 jul. 2020.

CANOTILHO, M.; VIOLANTE, T.; LANCEIRO, R. Weak rights, strong principles: Social rights in the Por-
tuguese constitutional jurisprudence during the economic crisis. In: CONGRESSO MUNDIAL DE DI-
REITO CONSTITUCIONAL: Constitutional Challenges: Global and Local. Workshop 4: Social rights and
the challenges of economic crisis, Associação Internacional de Direito Constitucional, jun./2014, Oslo.
Anais [...]. Oslo: s.n., 2014. Disponível em: https://www.jus.uio.no/english/research/news-and-events/
events/conferences/2014/wccl-cmdc/wccl/papers/workshop4.html. Acesso em: 3 jul. 2020.

CARMONA, Paulo Afonso Cavichioli. Das normas gerais: alcance e extensão da competência legislativa
concorrente. Belo Horizonte: Fórum, 2010.

DWORKIN, Ronald. Levando os direitos a sério. São Paulo: Martins Fontes, 2002.

GUIMARÃES, Fernando Vernalha. O direito administrativo do medo: a crise da ineficiência pelo contro-
le. Direito do Estado, edição 71, 2016. Disponível em: http://www.direitodoestado.com.br/colunistas/
fernando-vernalha-guimaraes/o-direito-administrativo-do-medo-a-crise-da-ineficiencia-pelo-controle.
Acesso em: 3 jul. 2020.

HABERMAS, Jürgen. Teoria do agir comunicativo: sobre a crítica da razão funcionalista. v. 2. São Paulo:
Martins Fontes, 2012.

INNERARITY, Daniel. A política em tempos de indignação. Rio de Janeiro: LeYa, 2017.

MINAS GERAIS. TCE-MG. Denúncia n. 1071325. Rel. Cons. Gilberto Diniz. Sessão do dia 29/08/2019.
Publicação DOC do dia 26/09/2019.

MINAS GERAIS. TCE-MG. Denúncia n. 1066880. Rel. Cons. Subst. Adonias Monteiro. Sessão do dia
18/06/2019. Publicação DOC do dia 10/07/2019.

MOUFFE, Chantal. Por un populismo de izquierda. Buenos Aires: Siglo XXI, 2018.

PARANÁ. TCE-PR. Prejulgado n. 27. Tribunal Pleno. Relator: Cons. Artagão de Mattos Leão. Sessão
Ordinária do Tribunal Pleno n. 26 de 31/07/2019. Publicação: DETC n. 2130 de 27/08/2019. Disponível
em: https://www1.tce.pr.gov.br/multimidia/2019/8/pdf/00339015.pdf. Acesso em: 3 jul. 2020.

RIBEIRO, Leonardo Coelho. O direito administrativo como “caixa de ferramentas”: uma nova aborda-
gem da ação pública. São Paulo: Malheiros, 2016.

SALAMON, Lester M. The new governance ant the tools of public action: an introduction. In: SALOMON,
Lester M. (Coord.). The tools of government: a guide to the new governance. Nova York: Oxford Univer-
sity Press, 2002.

STRECK, Lenio Luiz; ABBOUD, Georges. O que é isto – o precedente judicial e as súmulas vinculantes?
Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2013.
Conceito jurídico-positivo de ato de
improbidade administrativa

Vladimir da Rocha França


Doutor em Direito Administrativo (PUCSP)
Mestre em Direito Público (UFP)
Professor Associado do Departamento de Direito Público (UFRN)

SUMÁRIO: 1 Introdução; 2 Improbidade administrativa na legislação em vigor; 3 Sobre os fatos jurí-


dicos ilícitos; 4 Ato de improbidade administrativa como ato ilícito; 5 Considerações finais; Referências.

1 INTRODUÇÃO

Malgrado a forte cultura patrimonialista1 que grassa as instituições brasileiras desde


independência política do Brasil em 1822, a preocupação com a probidade na gestão pública
sempre esteve presente nos sistemas de Direito Positivo2 que antecederam o que atualmente
se encontra em vigor.3
Quando se fala de probidade, costuma-se associar esse conceito à preservação dos
bens públicos e à repressão do enriquecimento pessoal do agente público em detrimento
da sociedade. Mas, de certo modo, a probidade tem sido associada ao cumprimento dos
princípios do regime jurídico-administrativo, com especial destaque para a moralidade ad-
ministrativa.

1
Sobre a matéria, consultar: FAORO, Raymundo. Os donos do poder: formação do patronato político brasileiro. 3.
ed. São Paulo: Globo, 2001; LEAL, Victor Nunes. Coronelismo, enxada e voto: o município e o regime represen-
tativo no Brasil. 7. ed. São Paulo: Companhia das Letras, 2012.
2
Entenda-se por sistema do Direito Positivo o sistema de normas postas ou reconhecidas pelo Estado, que com-
partilham um mesmo fundamento último de legitimidade (a Constituição), cuja efetividade é garantida pela coação
estatal ou por aquela autorizada pelo Estado.
Anote-se que a Constituição vigente funda o sistema do Direito Positivo brasileiro, sem prejuízo da recepção das
normas jurídicas produzidas sob a vigência das Constituições anteriores e que com aquela sejam naturalmente
compatíveis.
Sobre a matéria, consultar: BOBBIO, Norberto. Teoria generale del Diritto. Turim: G. Giappichelli, 1993; KELSEN,
Hans. Teoria geral das normas. Trad. José Florentino Duarte. Porto Alegre: Sérgio Antônio Fabris, 1986; KELSEN,
Hans. Teoria pura do Direito. 3. ed. Trad. João Baptista Machado. São Paulo: Martins Fontes, 1991; KELSEN,
Hans. Teoria geral do Direito e do Estado. 2. ed. Trad. Luís Carlos Borges. São Paulo: Martins Fontes, 1992; VILA-
NOVA, Lourival. As estruturas lógicas e o sistema do direito positivo. São Paulo: Max Limonad, 1997; VILANOVA,
Lourival. Causalidade e relação no Direito. 4 ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2000.
3
Instaurado pela Constituição da República Federativa do Brasil, promulgada em 5 de outubro de 1988.
324 Vladimir da Rocha França

Nesse sentido, as Constituições pretéritas sempre tiveram a preocupação em garan-


tir a responsabilidade política e civil dos agentes públicos pela prática de atos incompatíveis
com aquele valor, com a previsão da improbidade administrativa como causa de inelegibili-
dade a partir de 1967.4
À luz do art. 5º, LXXIII, e do art. 37, caput, ambos da Constituição Federal vigente,
verifica-se que a moralidade tem status de princípio jurídico,5 servindo como parâmetro para
a invalidação de atos jurídicos que lhe sejam lesivos em sede de ação popular.6 Isso sem
prejuízo do manejo dessa ação constitucional para a invalidação de ato lesivo ao patrimônio
público ou de entidade de que o Estado participe.
De todo modo, há previsão constitucional no sentido de que os atos de improbidade
administrativa devem ser punidos com as sanções previstas no art. 37, § 4º, do texto da Lei
Maior, sem prejuízo da ação penal cabível. Determina-se ainda que a lei complementar deve
estabelecer as hipóteses de inelegibilidade para a proteção da probidade administrativa,7
bem como que é crime de responsabilidade o ato do presidente da República que atente
contra a probidade na Administração.8

4
Vide o art. 133, VI, e o art. 179, XXIX, ambos da Constituição do Império do Brasil, outorgada em 25 de março de
1824.
Vide o art. 54, 6º e 7º, e o art. 82, ambos da Constituição da República dos Estados Unidos do Brasil, promulgada
em 24 de fevereiro de 1891.
Vide o art. 57, “f” e “g”, e o art. 171, ambos da Constituição da República dos Estados Unidos do Brasil, promul-
gada em 16 de julho de 1934.
Vide o art. 85, “d”, e o art. 58, ambos da Constituição dos Estados Unidos do Brasil, outorgada em 10 de novem-
bro de 1937.
Vide o art. 89, V e VII, o art. 141, § 31, e o art. 195, parágrafo único, todos da Constituição dos Estados Unidos
do Brasil, promulgada em 18 de setembro de 1946.
Vide o art. 84, V, o art. 105, parágrafo único, o art. 148, II, e o art. 150, § 11, todos da Constituição do Brasil,
outorgada em 24 de janeiro de 1967.
Vide o art. 82, V, o art. 107, parágrafo único, o art. 151, II, e o art. 153, § 11, todos da Constituição da República
Federativa do Brasil, outorgada em 1º de outubro de 1969.
5
Adota-se aqui a distinção entre princípio jurídico e regra jurídica.
A regra jurídica é uma proposição prescritiva dotada da seguinte estrutura lógica: (i) o antecedente, do qual con-
tém a descrição de um evento futuro ou já ocorrido; e, (ii) o consequente, em que há a prescrição de uma relação
ou situação jurídica.
Caso a regra jurídica se refira a evento futuro, a regra será geral; caso haja a descrição de evento já ocorrido,
tem-se uma regra individual.
Contudo, ao invés da descrição de um evento, há no antecedente a referência a um valor a ser efetivado no siste-
ma do Direito Positivo, identificando-se no consequente o dever de preservá-lo ou implantá-lo, está-se diante de
um princípio jurídico.
Sobre a matéria, consultar: FRANÇA, Vladimir da Rocha. Estrutura e motivação do ato administrativo. São Paulo:
Malheiros, 2007.
6
Sobre o princípio da moralidade administrativa, consultar: CAMMAROSANO, Márcio. O princípio constitucional da
moralidade e o exercício da função administrativa. Belo Horizonte: Fórum, 2006.
7
Vide o art. 14, § 9º, da Constituição Federal.
8
Vide o art. 85, V, da Constituição Federal.
Conceito jurídico-positivo de ato de improbidade administrativa 325

Levando-se em consideração as referências constitucionais expressas ou implícitas


à ato de improbidade administrativa, bem como o uso dessa expressão no plano infracons-
titucional, impõe-se a identificação de seu conceito jurídico-positivo9 para fins de melhor
compreensão de seu modelo (ou regime) jurídico10 no sistema do Direito Positivo brasileiro.
Nesse mister, emprega-se aqui a metodologia preconizada pela Dogmática Jurídica,
voltada à descrição do sistema do Direito Positivo vigente com ênfase na sua dimensão
normativa.11

2 IMPROBIDADE ADMINISTRATIVA NA LEGISLAÇÃO


EM VIGOR

No plano infraconstitucional, há várias referências expressas e implícitas na legisla-


ção vigente à probidade administrativa e à improbidade administrativa.
Os atentados do presidente da República contra a probidade da Administração e
contra a guarda e o legal emprego dos dinheiros públicos são tipificados como crimes de
responsabilidade no art. 4º, V e VII, da Lei Federal n. 1.079, de 10 de abril de 1950.
Esses crimes de responsabilidade são tipificados de forma mais específica, respec-
tivamente, no art. 9º e no art. 11, ambos da Lei Federal n. 1.079/1950.
Caso sejam comprovados perante o Senado Federal,12 após juízo de admissibilidade
feito pela Câmara dos Deputados,13 o infrator deve ficar sujeito às sanções de perda do

9
Os conceitos jurídicos podem ser: (i) jurídico-positivos, quando prescritos expressa ou implicitamente por normas
jurídicas; e, (ii) científico-jurídicos, destinados à descrição dos fenômenos do sistema do Direito Positivo.
Sobre a matéria, consultar: FERRAZ JÚNIOR, Tércio Sampaio. A ciência do Direito. 2. ed. São Paulo: Atlas, 1980;
KELSEN, Hans. Teoria pura do Direito. Op. cit., p. 77-120; VILANOVA, Lourival. As estruturas lógicas e o sistema
do direito positivo. Op. cit.
O modelo (ou regime jurídico) consiste em subsistema do sistema do Direito Positivo que disciplina determinado
10

fenômeno social ou instituição. Em rigor, trata-se de um conjunto de regras jurídicas que giram em torno de
princípios jurídicos específicos.
Sobre a matéria, consultar: MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Curso de direito administrativo. 31. ed. São Paulo:
Malheiros, 2014. p. 53-59; JUSTEN FILHO, Marçal. Curso de direito administrativo. 8. ed. Belo Horizonte: Fórum,
2012. p. 103-107; REALE, Miguel. Fontes e modelos do Direito: para um novo paradigma hermenêutico. São
Paulo: Saraiva, 1999.
11
Sobre a matéria, consultar: REALE, Miguel. Filosofia do Direito. 17. ed. São Paulo: Saraiva, 1996; VILANOVA,
Lourival. As estruturas lógicas e o sistema do direito positivo. Op. cit.; VILANOVA, Lourival. Causalidade e relação
no Direito. Op. cit.
12
Vide o art. 52, I, da Constituição Federal.
Vide os arts. 24 a 38 da Lei Federal n. 1.079/1950.
13
Vide o art. 51, I, da Constituição Federal.
Vide arts. 14 a 23, e o art. 80, todos da Lei Federal n. 1.079/1950.
326 Vladimir da Rocha França

cargo, com inabilitação, por oito anos, para o exercício de função pública, sem prejuízo das
demais sanções judiciais cabíveis.14
Registre-se que os Ministros de Estado15 e os Governadores dos Estados-membros
e do Distrito Federal16 também podem realizar esses atos ilícitos. Os crimes de responsabi-
lidade dos Prefeitos e Vereadores são por sua vez disciplinados no Decreto-lei n. 201, de 27
de fevereiro de 1967.
No âmbito penal, há vários tipos que têm pertinência à tutela da probidade adminis-
trativa.17 Na esfera administrativa, o servidor público federal titular de cargo efetivo18 é puní-
vel com a demissão caso ele realize improbidade administrativa.19 E, a atuação conforme os
padrões éticos de probidade é instituído como critério a ser observado pela Administração
Pública Federal no processo administrativo.20
Mas não há dúvida que o principal diploma legal sobre a matéria é a Lei Federal n.
8.429, de 2 de junho de 1992, editada para disciplinar o art. 37, § 4º, da Constituição Fede-
ral. Esse diploma legal será analisado mais detidamente em tópico posterior.
Por fim, há a previsão de responsabilidade objetiva civil e administrativa de pessoas
jurídicas em razão da prática de atos lesivos à Administração Pública nacional ou estran-
geira, nos termos da Lei Federal n. 12.846, de 1º de agosto de 2013. Observe-se que de
acordo com o seu art. 30, I, as sanções previstas nesse diploma legal não afastam aquelas
constantes da Lei Federal n. 8.429/1992.

3 SOBRE OS FATOS JURÍDICOS ILÍCITOS

O fato jurídico surge a partir da incidência da regra geral que o prevê abstratamente
em seu antecedente, por meio de sua aplicação por meio de uma regra individual.21 Configu-

14
Vide o art. 52, parágrafo único, da Constituição Federal.
Vide o arts. 24 a 38, e o art. 80, todos da Lei Federal n. 1.079/1950.
15
Vide o art. 13, 1 e 2, da Lei Federal n. 1.079/1950.
16
Vide o art. 74 da Lei Federal n. 1.079/1950.
Nesse caso, as competências para o juízo de admissibilidade e para o julgamento são exercidas pela Assembleia
Legislativa, nos termos do art. 25, caput, e do art. 33, caput, ambos da Constituição Federal, e dos arts. 75 a 79
da Lei Federal n. 1.079/1950.
17
Vide os arts. 312 a 337-D do Código Penal.
Vide os arts. 89 a 99 da Lei Federal n. 8.666, de 21 de junho de 1993.
18
Vide o art. 37, caput, I e II, o art. 40 e o art. 41, todos da Constituição Federal.
Vide o art. 3º, o art. 9º, I, e o art. 10, todos da Lei Federal n. 8.112, de 11 de dezembro de 1990.
19
Vide o art. 132, IV, da Lei Federal n. 8.112/1990.
20
Vide o art. 2º, parágrafo único, IV, da Lei Federal n. 9.784, da Lei Federal n. 9.784, de 29 de janeiro de 1999.
21
Sobre a matéria, consultar: CARVALHO, Paulo de Barros. Direito tributário: fundamentos jurídicos da incidência.
2. ed. São Paulo: Saraiva, 1999; FRANÇA, Vladimir da Rocha. Estrutura e motivação do ato administrativo. Op.
cit.; FERRAZ JÚNIOR, Tércio Sampaio. Introdução ao estudo do Direito: técnica, decisão e dominação. 6. ed. São
Paulo: Altas, 2011. p. 238-251.
Conceito jurídico-positivo de ato de improbidade administrativa 327

rado o fato jurídico, o efeito jurídico que se encontra previsto no consequente da regra geral
surge no sistema do Direito Positivo, se devidamente especificado no consequente da regra
individual que a aplicou.
Em rigor, o fato jurídico e o efeito jurídico são, respectivamente, o antecedente e o
consequente de regra jurídica individual.
Os fatos jurídicos serão considerados ilícitos na medida em que sejam antecedentes
de regras individuais sancionadoras, que se destinam por sua vez a aplicação de regras
gerais sancionadoras. Noutro giro: o fato jurídico ilícito é pressuposto para uma sanção
jurídica.
Os fatos jurídicos ilícitos podem ser: (i) fatos jurídicos em sentido estrito ilícitos,
caso se trate da descrição de evento que não seja uma conduta humana; (ii) ato-fato jurídico
ilícito, se o evento descrito constitui uma conduta humana que não seja uma declaração
prescritiva; e, (iii) o ato jurídico ilícito, que representa em verdade um ato jurídico inválido
cuja expedição enseja a punição de seu emissor.22
As sanções jurídicas são basicamente restrições ou privações de bens jurídicos de
quem as sofre. O bem jurídico não tem natureza necessariamente patrimonial, podendo per-
feitamente se encontrar vinculado à personalidade do indivíduo. De todo modo, a expressão
“bem jurídico” deve ser vista como elíptica, pois o que interessa ao Direito é a conduta
humana, e não aquilo sobre o qual ela se projeta. Nesse contexto, quando se restringe ou se
priva alguém em torno de um bem jurídico, restringe-se ou priva-se alguém no exercício de
uma faculdade em face desse bem jurídico.
No Estado de Direito contemporâneo, não basta que a regra jurídica tenha tipificado
o evento como passível de ser descrito como fato jurídico ilícito. É preciso que o evento
efetivamente represente um atentado contra os princípios constitucionais regentes, ou seja,
que seja contrário aos valores jurídicos.
Outro ponto relevante reside na existência de relação social entre o evento que se
quer verter em fato jurídico ilícito e um sujeito de direito. Em outras palavras, que as sanções
que se quer aplicar em razão desse fato sejam imputáveis a um sujeito de direito.
Nesse contexto, a possibilidade de fato jurídico em sentido estrito ilícito se torna cada
vez mais teórica.

Anote-se que há inspiração aqui na teoria do fato jurídico proposta por Francisco Cavalcanti Pontes de Miranda
22

(PONTES DE MIRANDA, Francisco C. Tratado de direito privado. Atualização de Vilson Rodrigues Alves. v. 53.
Campinas: Bookseller, 2000), aperfeiçoada por Marcos Bernardes de Mello (MELLO, Marcos Bernardes de. Teoria
do fato jurídico: plano da existência. 20. ed. São Paulo: Saraiva, 2014). Contudo, trabalha-se aqui com o conceito
de ato jurídico como veículo introdutor de norma jurídica, como declaração prescritiva.
Sobre a concepção adotada de ato jurídico, consultar: CARVALHO, Paulo de Barros. Direito tributário: Op. cit.;
FRANÇA, Vladimir da Rocha. Estrutura e motivação do ato administrativo. Op. cit.
328 Vladimir da Rocha França

No sistema do Direito Positivo brasileiro, pode-se surpreender cinco modalidades de


fatos jurídicos ilícitos, haja vista a previsão constitucional de regimes jurídicos diferenciados
para cada uma dessas categorias. Tem-se: (i) o fato jurídico ilícito civil; (ii) o fato jurídico
ilícito penal; (iii) o fato jurídico ilícito administrativo; (iv) o crime de responsabilidade; e, (v) o
ato de improbidade administrativa.
O fato jurídico ilícito civil compreende aquele que é pressuposto para a aplicação de
uma sanção em virtude da tutela dos direitos de propriedade e de personalidade do sujeito
de direito atingido, de competência do Poder Judiciário no exercício da jurisdição cível. Na
sanção civil, atinge-se o patrimônio ou a liberdade do infrator.
Os ilícitos e sanções civis podem ser estabelecidos em lei federal, ou estipuladas
por meio de negócio jurídico, quando a lei federal confere aos indivíduos o poder jurídico de
fazê-lo no campo da autonomia privada.23
Em todos os casos, a efetividade da sanção civil é assegurada pelo Estado no exer-
cício da atividade jurisdicional. Se a sanção civil for prevista em negócio jurídico, esse ato
poderá ser perfeitamente objeto de revisão judicial quanto à sua validade.24
O ato-fato jurídico ilícito civil e o ato jurídico ilícito civil encontram-se previstos no
arts. 186 a 188, e no art. 927, ambos da Lei Federal n. 10.406, de 10 de janeiro de 2002 (Có-
digo Civil). Mas outros diplomas legais podem perfeitamente dispor sobre a matéria, como
na Lei Federal n. 8.078, de 11 de setembro de 1990 (Código de Defesa do Consumidor).
Por sua vez, o fato jurídico ilícito penal consiste no pressuposto para a aplicação de
sanção dirigidas à liberdade de locomoção ou à vida do infrator, tendo-se em vista a proteção
dos bens jurídicos que são considerados em lei como os mais importantes para o indivíduo
e para a Sociedade.25 As sanções penais são de competência do Poder Judiciário, no exer-
cício da jurisdição penal.
Por injunção do princípio da legalidade penal, somente a lei ordinária federal deve
ser empregada para tipificar condutas como ilícitos penais e estipular as correspondentes
sanções penais.26

23
Vide o art. 1º, III e IV, o art. 22, I, o art. 5º, caput, II, XXIII, o art. 170, caput, II, e parágrafo único, todos da Cons-
tituição Federal.
24
Vide o art. 5º, XXXV, da Constituição Federal.
Sobre a matéria, consultar: BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de direito penal: parte geral. v. 1. 23. ed. São
25

Paulo: Saraiva, 2017. p. 282-295; NORONHA, Edgard Magalhães. Direito penal: introdução e parte geral. v. 1. 9.
ed. São Paulo: Saraiva, 1973. p. 91-101.
Nesse contexto, merece lembrança o disposto no art. 1º do Decreto-lei n. 3.914, de 9 de dezembro de 1941 (Lei
de Introdução ao Código Penal).
26
Vide o art. 5º, XXXIX, o art. 22, I, e o art. 59, III, o art. 61, o art. 64, e o art. 66, todos da Constituição Federal.
Conceito jurídico-positivo de ato de improbidade administrativa 329

No Brasil, os atos-fatos jurídicos ilícitos penais e os atos jurídicos ilícitos penais


estão previstos essencialmente no Decreto-lei n. 2.848, de 7 de dezembro de 1940 (Código
Penal), sem prejuízo de outros diplomas legais sobre a matéria.
Já no fato jurídico ilícito administrativo, identifica-se o pressuposto para a aplicação
da sanção de competência de uma autoridade administrativa. A sanção administrativa des-
tina-se à proteção da Administração Pública e dos bens jurídicos que devem ser zelados por
meio a atividade administrativa.
Com efeito, o princípio da legalidade administrativa27 determina que a Administração
Pública somente tem legitimidade para agir quando há lei que expressa ou implicitamente o
autorize.28 Recorde-se, contudo, o fato de que o princípio federativo enseja o reconhecimen-
to de competências legislativas em matéria de Direito Administrativo para todos os entes
federativos.29
Nesse diapasão, a existência jurídica do ilícito administrativo e da respectiva sanção
administrativa pressupõe a lei do ente federativo legislativamente competente. Entretanto,
nas hipóteses de relações de supremacia especial,30 admite-se a possibilidade de a lei ou-
torgar competência normativa para que a Administração Pública trate dessa matéria, obser-
vadas as diretrizes constitucionais e legais em vigor. Mas mesmo nessas relações, não há
impedimento para que a lei disponha exaustivamente sobre as infrações administrativas e
correspondentes penalidades.
Anote-se ainda que as sanções administrativas aplicadas se encontram sujeitas ao
controle de juridicidade a cargo do Poder Judiciário, nos termos do art. 5º, XXXV, da Cons-
tituição Federal.
Assim, os atos-fatos ilícitos administrativos e os atos jurídicos ilícitos administrati-
vos se encontram tipificados num conjunto cada vez mais amplo de leis e atos normativos
da Administração Pública.
O crime de responsabilidade representa uma modalidade muito específica de fato
jurídico ilícito. Envolve grave atentado aos fundamentos da República, realizado por agentes
políticos ou agentes do Poder Judiciário, do Ministério Público ou de Tribunal de Contas. As
sanções são de competência de órgãos indicados diretamente pela Constituição Federal,31

27
Vide o art. 5º, II, o art. 37, caput, e o art. 84, IV e VI, todos da Constituição Federal.
28
Nesse sentido, consultar: FRANÇA, Vladimir da Rocha. Estrutura e motivação do ato administrativo. Op. cit.
29
Vide o art. 1º, caput, o art. 18, e os arts. 20 a 36, todos da Constituição Federal.
Na relação de supremacia especial, o ingresso do administrado na relação jurídica em face da Administração
30

Pública se dá voluntariamente. Nesse caso, há uma maior margem de discricionariedade administrativa e de com-
petência normativa para disciplinar e desenvolver a relação jurídica administrativa. Sem prejuízo, evidentemente,
das garantias fundamentais dos administrados, asseguradas na Constituição Federal.
Já na relação de supremacia geral, o administrado não tem a opção de travar ou não relação jurídica com a Admi-
nistração Pública, salvo se escolher por não realizar a conduta que a ensejará.
31
Ou mediatamente, no que diz respeito aos Estados-membros, Distrito Federal e Municípios.
330 Vladimir da Rocha França

e abrangem basicamente a suspensão de direitos políticos e o impedimento para o exercício


de mandato eletivo ou de cargo, emprego ou função pública.
Os crimes de responsabilidade e respectivas sanções devem estar previstas na
Constituição Federal e densificados em lei federal,32 estando a abertura do processo sancio-
nador sujeito ao juízo de oportunidade do órgão legislativo ou judicial competente.
Resiste-se aqui à ideia de que a punição do crime de responsabilidade seja feita por
ato jurisdicional, ainda que o órgão competente seja do Poder Judiciário. Justifica-se essa
opção em razão do fato de que tal sanção pode ser objeto de ação, nos termos do art. 5º,
XXXV, da Constituição Federal. Ainda que se restrinja o controle jurisdicional da sanção pela
prática de crime de responsabilidade a aspectos estritamente formais, haja vista o princípio
da separação dos poderes ou o forte caráter político de tal penalidade.
Quanto ao ato de improbidade administrativa, ele será tratado em item específico,
haja vista constituir o cerne do presente trabalho.

4 ATO DE IMPROBIDADE ADMINISTRATIVA COMO FATO


JURÍDICO ILÍCITO

O uso indiscriminado das expressões probidade e improbidade administrativa na


legislação em vigor, e no próprio texto constitucional, geram naturalmente espaços para
equívocos e confusões na inserção do ato de improbidade administrativa como fato jurídico
ilícito no sistema do Direito Positivo brasileiro.
De todo modo, não se deve perder de vista que uma conduta pode ser tipificada,
simultaneamente, por mais de uma norma sancionadora. Em outras palavras, um deter-
minado ato-fato ou ato jurídico pode ser, ao mesmo tempo, ilícito civil, ilícito penal e ilícito
administrativo.33

Vide o art. 29-A, §§ 1º e 2º, o art. 50, caput, e § 2º, o art. 52, I e II, parágrafo único, o art. 85, o art. 86, o art. 96,
32

III, o art. 100, § 7º, o art. 102, I, “c”, o art. 105, I, “a”, o art. 108, I, “a”, e o art. 167, § 1º, todos da Constituição
Federal.
Vide o art. 60, IX, do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias.
Ou na Constituição Estadual, na Lei Orgânica do Distrito Federal ou na Lei Orgânica do Município, conforme o
vínculo do infrator.
Se um servidor público federal efetivo destrói dolosamente um bem móvel da União, ele realiza uma conduta que é
33

considerada ilícita pelas normas veiculadas pelos seguintes dispositivos legais: (i) o art. 186 e o art. 927, ambos
do Código Civil; (ii) o art. 163, parágrafo único, III, do Código Penal; e, (iii) o art. 116, VII, e o art. 132, X, todos
da Lei Federal n. 8.112, de 11 de dezembro de 1990.
Ou então, quando um Prefeito autoriza dolosamente o pagamento de empresa contratada pelo Município sem
o cumprimento da prestação ajustada no negócio jurídico administrativo, conduta punível em face das normas
jurídicas veiculadas pelos seguintes dispositivos legais: (i) o art. 186 e o art. 927, ambos do Código Civil; (ii) o
art. 312 do Código Penal; (iii) o art. 1º, I, do Decreto-lei n. 201/1967.
Conceito jurídico-positivo de ato de improbidade administrativa 331

Não unanimidade na doutrina no que diz respeito à definição do ato de improbidade


administrativa.34 Aqui faz-se a opção por um conceito que procura ser o mais fiel possível ao
sistema do Direito Positivo.
Em rigor, o ato de improbidade administrativa constitui fato jurídico ilícito, violador da
moralidade administrativa, que constitui pressuposto para a aplicação de sanção instituída
lei com base no art. 37, § 4º, da Constituição Federal. Não se pode perder de vista que o ato
de improbidade administrativa não deixa de ser a imoralidade administrativa qualificada pelo
dolo (ou excepcionalmente pela culpa) e pelo prejuízo ao patrimônio público ou por ensejar
o enriquecimento ilícito.35 Pode ser um ato-fato jurídico ilícito ou ato jurídico ilícito, pelo que
se depreende do exame dos arts. 9º a 11 da Lei Federal n. 8.429/1992.
Consoante o art. 1º da Lei Federal n. 8.429/1992, todas as pessoas jurídicas de Di-
reito Público36 e as pessoas jurídicas de Direito Privado da Administração Pública Indireta37
podem ser vítimas de ato de improbidade administrativa.38 Ainda em conformidade com
esse dispositivo legal, as pessoas jurídicas de Direito Privado cuja criação ou custeio tenha
ocorrido por meio do erário público, observados os percentuais estabelecidos em lei.39
Levando-se em consideração o disposto no art. 2º da Lei Federal n. 8.429/1992,
faz-se necessário que o ato-fato jurídico ilícito ou ato jurídico ilícito tenha sido realizado por

34
Sobre a matéria, consultar: DUARTE JR., Ricardo. Improbidade administrativa: aspectos teóricos e práticos. Rio
de Janeiro: Lumen Juris, 2017. p. 5-51; JUSTEN FILHO, Marçal. Curso de direito administrativo. Op. cit., p. 1010-
1013; OSÓRIO, Fábio Medina. Teoria da improbidade administrativa: má gestão pública – corrupção – ineficiência.
São Paulo: Revista dos Tribunais, 2007; PRADO, Francisco Octavio de Almeida. Improbidade administrativa. São
Paulo: Malheiros, 2001. p. 20-29.
35
Sobre a relação entre moralidade administrativa e improbidade administrativa, consultar: CAMMAROSANO, Már-
cio. O princípio constitucional da moralidade administrativa [...]. Op. cit., p. 95-110; DUARTE JR., Ricardo. Im-
probidade administrativa: Op. cit., p. 59-63.
36
Vide o art. 1º, o art. 18, e o art. 37, caput, XIX, todos da Constituição Federal.
Vide o art. 4º, I, do Decreto-lei n. 200, de 25 de fevereiro de 1967.
Vide o art. 41 do Código Civil.
Vide o art. 1º, § 1º, e art. 6º, I, ambos Lei Federal n. 11.107, de 6 de abril de 2005.
37
Vide o art. 37, caput, XIX a XXI, e o art. 173, ambos da Constituição Federal.
Vide o art. 4º, II, e o art. 5º, ambos do Decreto-lei n. 200/1967.
Vide o art. 1º, § 1º, e o art. 6º, II, ambos da Lei Federal n. 11.107/2005.
Vide a Lei Federal n. 13.303, de 30 de junho de 2016.
38
Sobre a organização administrativa, consultar: MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Curso de direito administrativo.
Op. cit., p. 141-247.
Fato que enseja a inclusão das chamadas entidades do terceiro setor no rol de possíveis vítimas do ato de impro-
39

bidade administrativa.
Vide a Lei Federal n. 9.637, de 15 de maio de 1998.
Vide a Lei Federal n. 9.790, de 23 de março de 1999.
Vide a Lei Federal n. 13.019, de 31 de julho de 2014.
Sobre a matéria, consultar: COSTA, José Marcelo Ferreira. Organizações sociais: comentários à Lei Federal n.
9.637, de 15 de maio de 1998. São Paulo: Atlas, 2015; ROCHA, Sílvio Luís Ferreira da. Terceiro setor. São Paulo:
Malheiros, 2003; ZOCKUN, Carolina Zancaner. Da intervenção do Estado no domínio social. São Paulo: Malheiros,
2009.
332 Vladimir da Rocha França

alguém que esteja no exercício de competência administrativa ao fazê-lo. Logo, tem que ser
ato-fato administrativo ou ato jurídico administrativo.
Com efeito, todos os agentes públicos tem capacidade infracional para a prática
de ato de improbidade administrativa.40 Mas, insista-se, é preciso que se trate de conduta
diretamente relacionada à atividade administrativa.
Portanto, deve-se registrar que somente condutas decorrentes do exercício da fun-
ção administrativa41 são tipificáveis como atos de improbidade administrativa.42
Isso se justifica em razão do laço que o ato de improbidade administrativa tem com
o princípio da moralidade, constante do art. 5º, LXXIII, e do art. 37, caput, da ambos da
Constituição Federal. Princípio este voltado para a atividade administrativa do Estado, e
que serve de base para a invalidação de atos jurídicos administrativos e que funciona como
diretriz constitucional na tipificação de condutas como atos de improbidade administrativa.
Ademais, as diferenças entre os regimes constitucionais da função administrativa, da
função legislativa43 e da função jurisdicional44 seriam completamente ignoradas caso se re-
solvesse pela incidência e aplicabilidade da Lei Federal n. 8.429/1992 para atos-fatos e atos
jurídicos legislativos ou jurisdicionais. Mas não se olvide que as normas veiculadas pelo
referido diploma legal devem ser aplicadas à atividade administrativa do Poder Legislativo, do
Poder Judiciário, e das funções essenciais à Justiça mantidas pelo Estado.45
Consoante o art. 3º da Lei Federal n. 8.429/1992, verifica-se que o administrado
também tem capacidade infracional para a prática do ato de improbidade administrativa,
desde que sua conduta tenha relação direta com a ação ou omissão de agente público.

40
Sobre os agentes públicos, consultar: MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Curso de direito administrativo. Op. cit.,
p. 248-270.
41
Entenda-se por função administrativa a atividade desenvolvida pelo Estado, ou por quem está no exercício de com-
petências públicas, que compreende a expedição de regras jurídicas complementares à lei (ou excepcionalmente à
própria Constituição), voltada à concretização dos interesses públicos e dos direitos fundamentais, e subordinada
ao controle de juridicidade feito pelo Poder Judiciário.
42
Nesse sentido, consultar: DUARTE JR., Ricardo. Improbidade administrativa: Op. cit., p. 47-51.
Em sentido contrário: MARTINS JÚNIOR, Wallace Paiva. Probidade administrativa. 4. ed. São Paulo: Saraiva,
2009. p. 307-309; PRADO, Francisco Octavio de Almeida. Improbidade administrativa. Op. cit., p. 20-29, p. 68-
70; OSÓRIO, Fábio Medina. Teoria da improbidade administrativa: Op. cit., p. 199-202.
43
A função legislativa compreende a atividade desenvolvida por órgãos previstos diretamente pela Constituição
Federal, consubstanciada na expedição de regras complementares às normas constitucionais, destinadas à disci-
plina dos interesses públicos e à harmonização dos direitos fundamentais, sem prejuízo do controle de constitu-
cionalidade.
44
Já na função jurisdicional, tem-se a atividade de expedição de regras subsidiárias à lei (ou à própria Constituição,
conforme o grau de densidade da norma veiculada por ela), desenvolvida por órgãos independentes e imparciais
do Poder Judiciário, destinada à prevenção ou resolução definitiva de conflitos.
45
O Ministério Público (arts. 127 a 130-A da Constituição Federal), a Advocacia Pública (arts. 131 e 132 da Cons-
tituição Federal) e a Defensoria Pública (arts. 134 e 135 da Constituição Federal).
Conceito jurídico-positivo de ato de improbidade administrativa 333

Registre-se o entendimento de que não somente as pessoas naturais,46 mas também


as pessoas jurídicas de Direito Privado instituídas pelo particular47 podem ser responsabili-
zadas por tal modalidade de ilícito.
Nessa matéria, também não se vê restrições à capacidade delitual de empresas pri-
vadas que sejam beneficiárias de concessões petrolíferas,48 de concessões gaseíferas,49 de
contratos de partilha,50 de concessões de uso de bem público e contratos assemelhados,51
ou de concessões de serviços públicos.52
O mesmo pode ser dito quanto às entidades do terceiro setor, como as organizações
sociais, as organizações da sociedade civil de interesse público e as organizações da so-
ciedade civil.
Todavia, fica difícil conceber como as pessoas jurídicas de Direito Privado da Ad-
ministração Pública Indireta teriam capacidade delitual para a prática de ato de improbidade
administrativa. Afinal, elas seriam sempre vítimas na hipótese de configuração desse ilícito
no caso concreto.
Os tipos de ato de improbidade administrativa estão enquadrados, de modo exem-
plificativo, em quatro categorias: (i) aqueles que importam em enriquecimento ilícito;53 (ii)
aqueles que causam prejuízo ao erário;54 (iii) aqueles decorrentes de concessão ou aplicação
indevida de benefício financeiro ou tributário;55 (iv) aqueles que atentam contra os princípios
da Administração Pública.56

46
Vide os arts. 1º e 2º do Código Civil.
47
Vide os arts. 44 e 45 do Código Civil.
48
Vide o art. 177, § 1º, da Constituição Federal.
Vide a Lei Federal n. 9.478, de 6 de agosto de 1997.
49
Vide o art. 177, § 1º, da Constituição Federal.
Vide a Lei Federal n. 11.909, de 4 de março de 2009.
50
Vide o art. 177, § 1º, da Constituição Federal.
Vide a Lei Federal n. 12.351, de 22 de dezembro de 2010.
51
Vide art. 176 da Constituição Federal.
Vide o Decreto-lei n. 9.760, de 5 de setembro de 1946.
Vide a Lei Federal n. 9.636, de 15 de maio de 1998.
52
Vide o art. 175 da Constituição Federal.
Vide a Lei Federal n. 8.987, de 13 de fevereiro de 1995.
Vide a Lei Federal n. 11.079, de 30 de dezembro de 2004.
53
Vide o art. 9º da Lei Federal n. 8.429/1992.
54
Vide o art. 10 da Lei Federal n. 8.429/1992.
55
Vide o art. 10-A da Lei Federal n. 8.429/1992.
56
Vide o art. 11 da Lei Federal n. 8.429/1992.
334 Vladimir da Rocha França

Excetuando-se os tipos listados no art. 10 da Lei Federal n. 8.429/1992, somente


se admite a forma dolosa57 para o enquadramento da conduta como ato de improbidade
administrativa. Ou seja, é preciso que se demonstre que o agente público – e o administrado
conforme o caso – quis o resultado ou assumiu o risco de produzi-lo no caso concreto.58
Esse posicionamento se justifica em razão da ausência de referência expressa à
forma culposa no art. 9º, no art. 10-A e no art. 11, todos da Lei Federal n. 8.429/1992.59
Em se admitindo a forma culposa,60 faz-se necessário que se comprove a negligên-
cia, imperícia ou imprudência do agente público – e, insista-se, do administrado conforme
o caso – para se viabilizar a incidência e aplicabilidade do tipo legal de ato de improbidade
administrativa.61
Mas se rejeita aqui a tese de que o art. 28 da Lei de Introdução às normas do
Direito Brasileiro teria restringindo peremptoriamente a configuração da culpa à hipótese
de erro grosseiro, em matéria de improbidade administrativa.62 O art. 10 da Lei Federal n.
8.429/1992 não faz tal limitação, e as espécies de culpa já estão previstas no Código Penal
e no Código Civil.

A configuração do dolo demanda a presença de dois elementos: (i) o elemento cognitivo ou intelectual, ou seja, a
57

consciência da conduta que se realizar, em todos os elementos constantes do tipo infracional; e, o (ii) o elemento
volitivo, por sua vez, a decisão de realizar a conduta, bem como a previsão do nexo de causalidade entre esta e o
resultado, também descrito na regra geral sancionadora.
Sobre a matéria, consultar: BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de direito penal: Op. cit., p. 362-380; NORO-
NHA, Edgard Magalhães. Direito penal: Op. cit., p. 129-133.
58
Vide o art. 18, I, do Código Penal.
Vide o art. 186 do Código Civil.
Vide o art. 4º do Decreto-lei n. 4.657, de 4 de setembro de 1942 (Lei de Introdução às normas do Direito Brasileiro).
59
Vide o art. 18, parágrafo único, do Código Penal.
Vide o art. 4º da Lei de Introdução às normas do Direito Brasileiro.
A identificação da culpa pressupõe: (i) a inobservância do cuidado objetivo devido à luz do princípio da confiança;
60

(ii) a existência de nexo de causalidade entre o descumprimento do dever de cuidado e o resultado constante do
tipo infracional; (iii) a previsibilidade objetiva deste resultado; e, (iv) a efetiva ocorrência do resultado previsto na
regra geral sancionadora.
Sobre a matéria, consultar: BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de direito penal: Op. cit., p. 381-397; NORO-
NHA, Edgard Magalhães. Direito penal: Op. cit., p. 133-142.
61
Vide o art. 18, II, do Código Penal.
Vide o art. 186 do Código Civil.
Vide o art. 4º da Lei de Introdução às normas do Direito Brasileiro.
Vide o Enunciado 19 do Instituto Brasileiro de Direito Administrativo ao interpretar a Lei de Introdução às normas
62

do Direito Brasileiro, que tem a seguinte redação:


“19. A modalidade culposa de improbidade administrativa não se harmoniza com a Constituição, porque improbi-
dade é ilegalidade qualificada pela intenção desonesta e desleal do agente. Não obstante, analisando-se a legisla-
ção infraconstitucional, o art. 10 da Lei de Improbidade Administrativa deve ser interpretado de acordo com o art.
28 da LINDB, afastando-se a possibilidade de configuração da improbidade sem a presença de erro grosseiro do
agente (culpa grave)”.
Conceito jurídico-positivo de ato de improbidade administrativa 335

Uma alternativa é entender que a restrição do art. 28 da Lei de Introdução às normas


do Direito Brasileiro diz respeito apenas à pareceres ou laudos técnicos.63 Nessa perspectiva,
o erro grosseiro seria o erro inescusável ou vencível, ocorrido em razão da negligência,
imperícia ou imprudência do agente público que realizou tais atos-fatos jurídicos adminis-
trativos.64
Quanto ao dano, é importante analisar tipo a tipo da Lei Federal n. 8.429/1992.
Nos atos de improbidade administrativa previstos no art. 9º da Lei Federal n.
8.429/1992, mostra-se indispensável comprovar que o agente público auferiu dolosamente
qualquer tipo de vantagem patrimonial em razão do exercício da competência administrativa
que lhe foi outorgada. A comprovação do dano ao erário público é dispensável,65 devendo,
entretanto, haver a condenação do infrator ao ressarcimento caso ele ocorra no caso con-
creto.66
Já nos atos de improbidade administrativa tipificados no art. 10 da Lei Federal n.
8.429/1992, exige-se a comprovação de que houve conduta dolosa ou culposa do agente
público que ensejou lesão ao erário público, sob a forma de perda patrimonial, desvio, apro-
priação, malbaratamento ou dilapidação dos bens ou haveres das entidades protegidas pelo
diploma legal em apreço. Mas, observe-se, demanda-se que se comprove de que houve
efetivo dano material ao erário, sob pena de se ampliar indevidamente o alcance das normas
veiculadas pelo referido dispositivo legal. Notadamente, em face do art. 22, § 2º, da Lei de
Introdução às normas do Direito Brasileiro.
Em se tratando dos atos de improbidade administrativa decorrentes de concessão
ou aplicação indevida de benefício financeiro ou tributário, é preciso demonstrar que houve
conduta dolosa do agente público no descumprimento do art. 8º-A, caput, e § 1º, da Lei
Complementar Federal n. 116, de 31 de julho de 2003.
Por fim, há que se examinar os atos de improbidade administrativa que atentam con-
tra os princípios da Administração Pública, previstos no art. 11 da Lei Federal n. 8.429/1992.
Em rigor, é preciso que se comprove que houve conduta dolosa por parte do agente público
no sentido de se violar o princípio do regime jurídico-administrativo, bem como a pertinência
desse atentado à moralidade administrativa.

63
Entende-se aqui que os pareceres e laudos emitidos no contexto do processo administrativo são atos-fatos ju-
rídicos administrativos, uma vez que não tem por conteúdo uma declaração prescritiva, mas sim uma opinião
técnico-científica a respeito de um caso ou dúvida levada à apreciação de seus emissores pelas autoridades
administrativas competentes.
64
Vide os arts. 20 e 21 do Código Penal.
Vide os arts. 138 a 144 do Código Civil.
Sobre matéria, consultar: BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de direito penal: Op. cit., p. 513-539; NORONHA,
Edgard Magalhães. Direito penal: Op. cit., p. 143-151.
65
Vide o art. 21, I, da Lei Federal n. 8.429/1992.
66
Vide o art. 5º e o art. 12, I, ambos da Lei Federal n. 8.429/1992.
336 Vladimir da Rocha França

Em todos os casos o administrado será considerado infrator caso se demonstre que


este induziu ou concorreu para o ato de improbidade administrativa, ou dele dolosamente se
beneficiou. Salvo na hipótese do art. 10 da Lei Federal n. 8.429/1992, que admite também a
responsabilização do administrado por culpa.
As sanções pela prática de ato de improbidade administrativa estão previstas no
art. 12 da Lei Federal n. 8.429/1992. Mas tratar delas aqui exorbitaria os limites do presente
ensaio.

5 CONSIDERAÇÕES FINAIS

A análise do regime jurídico do ato de improbidade administrativa, bem como a iden-


tificação de seu conceito jurídico-positivo a partir dele, leva à conclusão de que se trata de
uma modalidade específica de ilícito, que não deve ser confundida com o ilícito civil, o ilícito
penal, o ilícito administrativo e o crime de responsabilidade.
Também não se pode perder de vista a cautela que deve ser tomada ao se enquadrar
as condutas administrativas nos tipos constantes da Lei Federal n. 8.429/1992, sob pena de
se exorbitar garantias fundamentais básicas como a legalidade e a razoabilidade.
É o rigor científico, e não a ojeriza à imoralidade administrativa, o devido vetor da
interpretação e aplicação das normas jurídicas destinadas à repressão da improbidade ad-
ministrativa.

REFERÊNCIAS

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2017.

BOBBIO, Norberto. Teoria generale del Diritto. Turim: G. Giappichelli, 1993.

DUARTE JR., Ricardo. Improbidade administrativa: aspectos teóricos e práticos. Rio de Janeiro: Lumen
Juris, 2017.

CAMMAROSANO, Márcio. O princípio constitucional da moralidade e o exercício da função administra-


tiva. Belo Horizonte: Fórum, 2006.

CARVALHO, Paulo de Barros. Direito tributário: fundamentos jurídicos da incidência. 2. ed. São Paulo:
Saraiva, 1999.

COSTA, José Marcelo Ferreira. Organizações sociais: comentários à Lei Federal n. 9.637, de 15 de maio
de 1998. São Paulo: Atlas, 2015.

FAORO, Raymundo. Os donos do poder: formação do patronato político brasileiro. 3. ed. São Paulo:
Globo, 2001.
Conceito jurídico-positivo de ato de improbidade administrativa 337

FERRAZ JÚNIOR, Tércio Sampaio. A ciência do Direito. 2. ed. São Paulo: Atlas, 1980.

FERRAZ JÚNIOR, Tércio Sampaio. Introdução ao estudo do Direito: técnica, decisão e dominação. 6.
ed. São Paulo: Altas, 2011.

FRANÇA, Vladimir da Rocha. Estrutura e motivação do ato administrativo. São Paulo: Malheiros, 2007.

JUSTEN FILHO, Marçal. Curso de direito administrativo. 8. ed. Belo Horizonte: Fórum, 2012.

KELSEN, Hans. Teoria geral das normas. Trad. José Florentino Duarte. Porto Alegre: Sérgio Antônio
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KELSEN, Hans. Teoria pura do Direito. 3. ed. Trad. João Baptista Machado. São Paulo: Martins Fontes,
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KELSEN, Hans. Teoria geral do Direito e do Estado. 2. ed. Trad. Luís Carlos Borges. São Paulo: Martins
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LEAL, Victor Nunes. Coronelismo, enxada e voto: o município e o regime representativo no Brasil. 7. ed.
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MARTINS JÚNIOR, Wallace Paiva. Probidade administrativa. 4. ed. São Paulo: Saraiva, 2009.

MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Curso de direito administrativo. 31. ed. São Paulo: Malheiros, 2014.

MELLO, Marcos Bernardes de. Teoria do fato jurídico: plano da existência. 20. ed. São Paulo: Saraiva,
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NORONHA, Edgard Magalhães. Direito penal: introdução e parte geral. v. 1. 9. ed. São Paulo: Saraiva,
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OSÓRIO, Fábio Medina. Teoria da improbidade administrativa: má gestão pública – corrupção – inefi-
ciência. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2007.

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PONTES DE MIRANDA, Francisco C. Tratado de direito privado. Atualização de Vilson Rodrigues Alves.
v. 53. Campinas: Bookseller, 2000.

REALE, Miguel. Fontes e modelos do Direito: para um novo paradigma hermenêutico. São Paulo: Sa-
raiva, 1999.

REALE, Miguel. Filosofia do Direito. 17. ed. São Paulo: Saraiva, 1996

ROCHA, Sílvio Luís Ferreira da. Terceiro setor. São Paulo: Malheiros, 2003.

VILANOVA, Lourival. As estruturas lógicas e o sistema do direito positivo. São Paulo: Max Limonad,
1997.

VILANOVA, Lourival. Causalidade e relação no Direito. 4. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2000.

ZOCKUN, Carolina Zancaner. Da intervenção do Estado no domínio social. São Paulo: Malheiros, 2009.
PARTE II

TEXTOS VENCEDORES DO
CONCURSO DE
ARTIGOS JURÍDICOS
PRIMEIRO LUGAR

A utilização de inteligência artificial na atividade


regulatória: uma proposição de regulação inteli-
gente em favor do desenvolvimento nacional

William Ivan Gallo Aponte


Mestrando em Direito Econômico e Desenvolvimento (PUC-PR)

Rafaella Nátaly Fácio


Graduanda em Direito (UFPR)

SUMÁRIO: 1 Introdução; 2 O papel da função regulatória para o desenvolvimento nacional; 3 “Smart


regulation” ou regulação inteligente: conceito e suas transformações, instrumentos e experiência brasi-
leira e internacional; 4 A utilização de inteligência artificial no âmbito da Análise de Impacto Regulatório
(AIR): compatibilidade, considerações e pressupostos; 5 Considerações finais; Referências.

1 INTRODUÇÃO

Em março de 2011, a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) editou uma


Resolução sobre a garantia de qualidade de medicamentos importados. Entretanto, no pro-
cesso de elaboração, revisão e aprovação da norma, não foi suscitado que ela continha
uma disposição que gerava dúvidas sobre a necessidade de manutenção de amostras de
referência por parte das importadoras. Foi justamente em razão desse tipo de ocorrência que
a referida Agência passou a dar atenção ao incremento da qualidade regulatória, passando a
desenvolver suas primeiras Análises de Impacto Regulatório (AIR).1
A regulação é objeto de múltiplas transformações, entendimentos e incorporações,
inclusive vanguardista em termos tecnológicos, tudo com a finalidade de investigar qual é
a melhor opção para tornar-se efetiva e menos custosa, tanto em termos da produção nor-
mativa, quanto em relação aos custos suportados por todos os atores afetados. Para atingir
tal objetivo, fica cada vez mais evidente, tanto no Brasil quanto na comunidade exterior, que
a edição de normas não pode ser errática, é dizer, apostando-se no erro e acerto. Ela deve,

1
ANVISA. Agência Nacional de Vigilância Sanitária. Análise de Impacto Regulatório – Processo 25351365875200953.
2018. Disponível em: http://portal.anvisa.gov.br/analise-de-impacto-regulatorio?p_p_id=110. Acesso em: 19
set. 2019.
342 William Ivan Gallo Aponte | Rafaella Nátaly Fácio

sobretudo, ser precedida de metodologias específicas que levem em conta todas as infor-
mações pertinentes, tais como a opinião das empresas e usuários, e também quantidades
expressivas de dados que proporcionem ao gestor uma tomada de decisão consciente a
partir de um retrato fidedigno da realidade.
É sensível a esta realidade que o presente trabalho se propõe a discutir a possibilida-
de de aplicação de inteligência artificial no âmbito da atividade regulatória, especificamente
na Análise de Impacto Regulatório que deve preceder a edição das normas. Para tanto, será
adotada metodologia dedutiva, descritiva e comparativa, conjugada com a técnica de pesqui-
sa documentação indireta das referências bibliográficas e normativas.

2 O PAPEL DA FUNÇÃO REGULATÓRIA PARA O


DESENVOLVIMENTO NACIONAL

A construção do direito administrativo no contexto oitocentista francês é assentada


sobre o paradigma do positivismo jurídico, segundo o qual a atuação da Administração Públi-
ca tinha como único fundamento a lei. Afinal de contas, a vontade do soberano foi substituída
pela vontade geral cuja expressão máxima, nos termos do dogma rousseauniano, era a lei. O
espaço de escolha administrativa era, portanto, bastante reduzido na medida em que estava
vinculado à subsunção aos preceitos legais estritos.2 Este arquétipo decisório começa a se
modificar com a criação do Conselho do Estado francês e com o fortalecimento da máquina
administrativa sob o comando de Napoleão,3 mas é na pós-modernidade4 que se demonstra
inequivocamente insuficiente.
O positivismo jurídico intentou se desvincular da axiologia e do conteúdo substantivo
na aplicação da lei com a pretensão de se tornar uma ciência dita “pura”; entretanto, ao
prescindir de tais valores ou pressupostos, acabou por fundamentar os mais catastróficos
erros históricos de abuso do ser humano. Urgiu-se, então, a necessidade de refundar o
Direito sobre bases distintas, que expressassem valores, finalidades e interesses capitais
indisponíveis da natureza humana. Assim se culminou no neoconstitucionalismo, modelo
caracterizado por Constituições com extenso catálogo de direitos fundamentais, bem como
valores e princípios que deslocam a noção de legalidade para a noção de juridicidade.5

2
GUERRA, Sérgio. Discricionariedade, regulação e reflexividade: uma nova teoria sobre as escolhas administrati-
vas. 5. ed. Belo Horizonte: Fórum, 2018, p. 60.
3
GUERRA, Sérgio. Discricionariedade, regulação e reflexividade: Op. cit., p. 64.
4
O termo pós-modernidade foi popularizado por Jean-François Lyotard para indicar as novas concepções que sur-
giram após a Segunda Guerra Mundial, bem como as subsequentes transformações nas décadas de 80 e 90 do
século XX. (LYOTARD, Jean-François. Post-modern condition. Minneapolis: University of Minnesota Press, 1985
apud GUERRA, Sérgio. Discricionariedade, regulação e reflexividade: Op. cit., p. 116.
5
Um dos autores que mais se debruçou sobre o tema foi Miguel Carbonell. Segundo o autor, este fenômeno de-
nominado neoconstitucionalismo pode ser analisado em três planos: (i) textos constitucionais, que atualmente
hoje são mais substantivos, mais valores, mais direitos fundamentais, mais princípios;(ii) forma de interpretação
A utilização de inteligência artificial na atividade regulatória 343

A Lei Maior de 1988, como Constituição pós-moderna que é, reflete essa mudança:
reclama um Direito Administrativo segundo o qual o Estado administra os interesses públicos
que constitucionalmente lhe foram atribuídos além da observância das regras legais ema-
nadas dos órgãos legitimados.6 Reclama, enfim, um Direito Administrativo pós-moderno.7
Importa estudar os contornos desse Direito Administrativo pós-moderno especificamente
em relação à regulação independente, pois esta tem contornos especiais em relação aos
demais atos administrativos praticados no exercício de função administrativa. Isto porque
as leis instituidoras de sistemas de regulação têm menor densidade normativa, o que ne-
cessariamente abre espaço para maior discricionariedade da Administração Pública. E, além
disso, esse fator aumenta a complexidade da análise de legalidade dos atos, tendo em vista
que a ausência de subsunção simétrica à lei demanda avaliações mais complexas sobre
proporcionalidade, razoabilidade e imparcialidade.8
O modelo de Estado regulador foi confirmado no Brasil com a promulgação da Cons-
tituição de 1988.9 É oportuno esclarecer que ao reafirmar o modelo regulador não se pre-
tende coadunar com a indefensável ideia de que o Estado pode prescindir da prestação dos
serviços públicos que lhe foram outorgados, substituindo-a pela mera regulação, pois tal
entendimento não tem respaldo constitucional.10 Conforme enuncia o artigo 175 da Consti-
tuição, ao poder público incumbe prestar, e não apenas “garantir” ou “regular” a prestação
serviço público. A este respeito, afirma Odete Medauar que por mais que a noção de serviço
público seja repensada até mesmo com a finalidade de “inserir o dado econômico, a concor-
rência, a gestão privada”, nunca poderá ser abolida a presença do Estado.11

e aplicação das normas constitucionais, considerando a utilização de métodos mais abertos que silogismo e sub-
sunção; (iii) novos modelos teóricos de compreensão da constituição e do direito como um todo (CARBONELL,
Miguel (Org.). Neoconstitucionalismo(s). Madrid: Trotta, 2003).
6
MOREIRA NETO, Diogo de Figueiredo. O direito administrativo do século XXI: um instrumento de realização da
democracia substantiva. A&C Revista de Direito Administrativo & Constitucional, Belo Horizonte, ano 11, n. 45, p.
13-37, jul./set. 2011. p. 19-20.
7
Expressão cunhada por MOREIRA NETO, Diogo de Figueiredo. Quatro paradigmas do direito administrativo pós-
-moderno: legitimidade, finalidade, eficiência, resultados. Belo Horizonte: Fórum, 2008.
8
MOREIRA NETO, Diogo de Figueiredo. Quatro paradigmas do direito administrativo pós-moderno: Op. cit., p. 9.
9
GUERRA, Sérgio. Discricionariedade, regulação e reflexividade: Op. cit., p. 139.
10
Alguns autores se posicionam em sentido contrário, defendendo que as competências de prestação de serviço
público podem ser exercidas apenas mediante “a garantia” de que a atividade seja de alguma forma prestada
(SCHIRATO, Vitor Rhein. Livre iniciativa nos serviços públicos. Belo Horizonte: Fórum, 2012. p. 138-139), ou
que esta atividade seja “de algum modo assegurada pelo Estado” (MOREIRA NETO, Diogo de Figueiredo. Mito e
realidade do serviço público. Revista de Direito da Procuradoria Geral do Estado do Rio de Janeiro – RDPGE, v. 53,
2000. p. 140-141.). Entretanto, o conteúdo jurídico da titularidade estatal dos serviços públicos não comporta en-
tendimentos segundo os quais o Estado desempenha um papel de garantidor, seja através da atividade regulatória
ou de qualquer outro meio. Nesse sentido, cf. MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Serviço público e concessão de
serviço público. São Paulo: Malheiros, 2017; e SCHIER, Adriana. Serviço público: garantia fundamental e cláusula
de proibição de retrocesso social. Curitiba: Íthala, 2016.
11
MEDAUAR, Odete. Serviços públicos e serviços de interesse econômico geral. In: MOREIRA NETO, Diogo de
Figueiredo (Coord.). Uma avaliação das tendências contemporâneas do direito administrativo. Rio de Janeiro:
Renovar, 2003. p. 126.
344 William Ivan Gallo Aponte | Rafaella Nátaly Fácio

A regulação estatal pode ser compreendida em sentido amplo ou estrito. No amplo,


equivale a qualquer postura que o Estado adote visando o correto funcionamento de um
determinado mercado, incluindo até mesmo a monopolização de uma atividade. Em sentido
estrito, regulação equivale a uma ação estatal específica por meio da qual o Estado age como
normatizador e controlador do exercício de uma atividade econômica, cujo objetivo também
é garantir o melhor funcionamento e desenvolvimento possível do mercado regulado. E o
bom funcionamento do mercado não está atrelado apenas aos interesses empresariais, mas
também dos usuários dos serviços e o do próprio Estado.12
Isto é, a finalidade de garantir o desenvolvimento está embutida no próprio conceito
de regulação. Mas o que seria desenvolvimento? Trata-se de um vocábulo polissêmico e
sem conceituação legal para o qual já foram atribuídos inúmeros significados. Até a década
de 1960 prenominou uma visão estritamente economicista de desenvolvimento, entretanto
os preceitos da Constituição brasileira de 1988 imprimem ao termo uma feição intimamente
vinculada com o valor da igualdade.13 Para além do crescimento econômico, a noção repre-
senta um processo de elevação contínua da vida dos cidadãos com incremento também so-
cial e político.14 Ademais, o desenvolvimento deve contemplar a geração presente e também
as gerações futuras, portanto deve ser também sustentável.15
Nesse sentido, muito embora a função regulatória tenha ganhado proeminência no
contexto da reforma administrativa da década de 90, cujo cunho ideológico em relação ao
desenvolvimento era notoriamente neoliberal,16 o arcabouço dogmático sobre ela deve ser
assentado sobre aspectos diversos, além do econômico, listados acima: social e político.
Nada mais natural do que isso, uma vez que à função regulatória é inerente a confluência
de ao menos três interesses legítimos subjacentes: os interesses do Estado, os interesses
empresariais dos agentes privados e também os interesses dos usuários dos serviços.17
A imbricação entre regulação, desenvolvimento e sustentabilidade foi muito bem ob-
servada por Juarez Freitas, para quem a finalidade da função regulatória é defender a longo

12
SCHIRATO, Vitor Rhein. A deterioração do sistema regulatório brasileiro. Revista de Direito Público da Economia
– RDPE, Belo Horizonte, ano 11, n. 44, out./dez. 2013. p. 4-5.
13
HACHEM, Daniel Wunder. A noção constitucional de desenvolvimento para além do viés econômico: reflexos
sobre algumas tendências do Direito Público brasileiro. A&C Revista de Direito Administrativo & Constitucional,
Belo Horizonte, ano 13, n. 53, p. 133-168, jul./set. 2013. p. 150.
14
GABARDO, Emerson. Interesse público e subsidiariedade: o Estado e a sociedade civil para além do bem e do mal.
Belo Horizonte: Fórum, 2009. p. 243.
15
SCHIER, Adriana. Fomento: Administração Pública, direitos fundamentais e desenvolvimento. Curitiba: Íthala,
2019. p. 42-43.
16
A observação é feita por Daniel Wunder Hachem, que aponta como que exemplo nacional Luiz Carlos Bresser-
-Pereira, um dos principais pivôs da reforma neoliberal do Estado brasileiro na década de 1990 e também um
dos grandes autores sobre o tema do desenvolvimento (HACHEM, Daniel Wunder. A noção constitucional de
desenvolvimento para além do viés econômico: Op. cit., p. 150).
17
SCHIRATO, Vitor Rhein. A deterioração do sistema regulatório brasileiro. Op. cit., p. 2-3.
A utilização de inteligência artificial na atividade regulatória 345

prazo a preponderância dos princípios, objetivos, e direitos fundamentais, tendo em vista o


“bem estar multidimensional no presente, sem comprometer o bem-estar no futuro”.18 Para
o autor, o século XXI reclama uma nova teoria administrativa de regulação estatal como parte
de uma agenda de sustentabilidade, e ela deve ser alicerçada entre outras coisas, na boa
regulação.19 Afinal de contas, a sustentabilidade exige um arcabouço regulatório consistente
a longo prazo.20
Assim, conforme anota Vitor Rhein Schirato, o desempenho desta função de forma
equivocada causa instabilidade nas relações entre as partes afetadas e prejudica o desenvol-
vimento do setor regulado, o que impossibilita ações de longo prazo sustentáveis. A falta de
isenção e influência política, por exemplo, implica na tomada de decisões não isentas e sem
tecnicidade porque o elemento primordialmente visado não é a qualidade ou sustentabilidade
a longo prazo da atividade setorial regulada.21
Não obstante a importância da regulação para o desenvolvimento sustentável, o atual
sistema regulatório brasileiro enfrenta uma franca crise. Para Vitor Rhein Schirato, há ao me-
nos três pressupostos básicos que garantem o seu bom funcionamento: (i) a independência
das autoridades reguladoras; (ii) o processo decisório dessas autoridades, que deve ser
técnico e permeável ao diálogo com os demais agentes do setor regulador; e (iii) o respeito,
pelos órgãos de controle (interno e externo), das decisões técnicas emitidas pelas autori-
dades reguladoras.22 E todos estão comprometidos: (i) a independência das autoridades
reguladoras é cada vez mais mitigada por influência política; (ii) o processo decisório das
agências é ameaçado em razão da falta de tecnicidade de seus dirigentes e do desrespeito às
normas de processos e (iii) os órgãos de controle se imiscuem, com frequência, no campo
de discricionariedade que é reservado às agências.23
Nesse contexto, é imprescindível uma mudança de paradigma na forma de ação
da Administração Pública reguladora que contemple “um processo muito mais complexo
de identificação e ponderação de todos os interesses públicos subjacentes à decisão, com
vistas à emissão de uma manifestação final equilibrada para o funcionamento adequado do
setor regulado”.24 O presente artigo, ao propor a incorporação de Análise de Impacto Regu-
latório com Inteligência Artificial como apoio da decisão regulatória, pretende colaborar para
a realização do pressuposto de tecnicidade de seu conteúdo.

18
FREITAS, Juarez. Sustentabilidade: direito ao futuro. 1. ed. 1. reimp. Belo Horizonte: Fórum, 2011. p. 278-279.
19
FREITAS, Juarez. Sustentabilidade: Op. cit., p. 254.
20
FREITAS, Juarez. Sustentabilidade: Op. cit., p. 255.
21
SCHIRATO, Vitor Rhein. A deterioração do sistema regulatório brasileiro. Op. cit., p. 4.
22
SCHIRATO, Vitor Rhein. A deterioração do sistema regulatório brasileiro. Op. cit., p.1-2.
23
SCHIRATO, Vitor Rhein. A deterioração do sistema regulatório brasileiro. Op. cit., 2.
24
SCHIRATO, Vitor Rhein. A deterioração do sistema regulatório brasileiro. Op. cit., p. 9.
346 William Ivan Gallo Aponte | Rafaella Nátaly Fácio

3 “SMART REGULATION” OU REGULAÇÃO INTELIGENTE:


CONCEITO E SUAS TRANSFORMAÇÕES, INSTRUMENTOS
E EXPERIÊNCIA BRASILEIRA E INTERNACIONAL

O conceito de smart regulation ou regulação inteligente tem tido uma compreensão


indiscriminada. Na maioria das vezes, de acordo com o significado literal de suas palavras,
compreende-se como a ação ou o efeito de regular ou ordenar determinada atividade ou ser-
viço com certa destreza, habilidade e experiência. Nesta linha geral, pode-se compreender
a noção como um mecanismo capaz de conjugar, com certo pragmatismo, dinamismo e
determinada coordenação. 25
A regulação inteligente se relaciona também com o conceito de efetividade, pois com
o aumento sobre o conhecimento de processos, funções e estrutura reais da economia, edu-
cação, saúde, entre outros, promove o respeito das peculiaridades de cada um dos subsiste-
mas sociais. Partindo dessa premissa, a solução para determinado problema relacionado à
adequação da regulação de certa área será concebida de forma “mais inteligente”. 26
Para melhor compreender a importância da noção de qualidade regulatória e como
ela pode ser efetivada nos ordenamentos jurídicos, em especial no brasileiro, é necessário
delinear duas análises: (i) uma histórica e teórica da noção, destacando como se deu seu
surgimento e posteriores transformações até a sua atual concepção; (ii) e outra especifi-
camente sobre um dos seus instrumentos de efetivação, a Análise de Impacto Regulatório
(AIR), destacando a experiência pátria e demais países na sua implementação.
O conceito de regulação inteligente foi introduzido em 1988 por Neil Gunningham
como uma proposta alternativa de abordagem regulatória, através da qual se acolhe de ma-
neira flexível, criativa e inovadora as diferentes formas de controle social. Deste modo, a
aplicação da regulação inteligente permitiria a participação de diversos atores que, conforme
se destacou no tópico anterior, são legitimamente interessados no processo de regulação e
devem ter sua participação assegurada. Com a abertura da participação tem-se o resultado
de medidas mais efetivas e eficientes do que as formas tradicionais de regulação em que
apenas o Estado participa e decide.27
No âmbito da interação entre os diversos atores citados acima, conforme assinala
Gunningham, a concepção tradicional do processo regulatório no qual o Estado atua como
regulador e as empresas como terceiros “regulados” sofre uma transformação substancial.

25
SILVA, Leandro Novais e. O processo de globalização e a instabilidade dos modelos econômicos de Estado.
Revista de Informação Legislativa, Brasília, ano 41, n. 163, jul./set. 2004. p. 343.
26
ARAGÃO, Alexandre Santos de. O poder normativo das agências reguladoras independentes e o Estado Democrá-
tico de Direito. Revista de Informação Legislativa, Brasília, ano 37, n. 148, out./dez. 2000. p. 276.
27
GUNNINGHAM, Neil; SINCLAIR, Darren. Smart regulation. In: DRAHOS, Peter. Regulatory theory: foundations and
applications. Camberra: Austrália National University, 2017. p. 133-149. Disponível em: https://press-files.anu.
edu.au/downloads/press/n2304/pdf/book.pdf. Acesso em: 10 abr. 2019.
A utilização de inteligência artificial na atividade regulatória 347

A tendência passa a ser a incorporação desses interessados mediante múltiplos mecanis-


mos que permitem integrar de forma célere padrões e parâmetros, na maioria dos casos
internacionais, com o objetivo de obter resultados de qualidade. 28
Essa tendência foi proposta para analisar a falta de efetividade das soluções con-
cebidas para os complexos problemas ambientais que o mundo sofre. Entretanto, tomou
proporções de caráter geral, no sentido de que deve ser incorporada nos diversos segmentos
regulados, razão pela qual chega-se a afirmar que é uma nova forma de política pública,29
cujo objetivo é primordialmente responder de modo eficaz às necessidades dos cidadãos.30
Para Michael Moran, diferentemente do proposto por Gunningham, a regulação inte-
ligente surgiu para responder a uma pergunta crítica relacionada à transição de estratégias
do governo da forma mais sutil possível.31 Esta concepção, portanto, novamente amplia a
noção de regulação inteligente. Num primeiro momento, como se viu, a ideia era inerente às
matérias ambientais, e passou-se adotá-la nos diversos ramos, tudo com vistas a garantir
a participação dos legitimamente interessados; num segundo momento o objetivo é não
apenas garantir a participação de demais atores, mas sobretudo para garantir a efetividade
da regulação.
É precisamente essa a conotação de regulação inteligente que se adota no presente
trabalho, segundo a qual deve haver qualidade regulatória em todos os setores regulados,
cuja finalidade é não apenas o incremento da participação dos interessados, mas também
o aumento da tecnicidade das decisões. Afinal de contas, apesar da imprecisão do termo
qualidade regulatória, pode-se afirmar que a esta noção é construída a partir de diversos
outros princípios além da participação social, tais como: a preferência por variedade de ins-
trumentos regulatórios, a opção por medidas alternativas à regulação em excesso32 (e não
desregulação) e, por fim, a busca pela maximização de resultados satisfatórios.33
Nesse mesmo sentido, a Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Eco-
nômico (OCDE) concebe a regulação inteligente como um instrumento para diminuir a mul-
tiplicidade de fontes de regulação incidindo sobre o mesmo caso, o que causa insegurança

28
GUNNINGHAM, Neil; SINCLAIR, Darren. Smart regulation. Op. cit., p. 134.
29
Para leitura específica sobre o tema, cf. TOFFELSON, C. et al. Setting the standard: certification, governance and
the Forest Stewardship Council. Vancouver: UBC Pres, 2008.
30
É o caso da Colômbia, onde o conceito foi incorporado como política pública. Cf. COLOMBIA. Departamento
Nacional De Planeación (DNP). Colombia da los primeros pasos hacia una regulación inteligente basada en la
participación de los ciudadanos. 2018. Disponível em: https://www.dnp.gov.co/Paginas/Colombia-da-los-prime-
ros-pasos-hacia-una-regulaci%C3%B3n-inteligente-basada-en-la-participaci%C3%B3n-de-los-ciudadanos.aspx.
Acesso em: 9 maio 2018.
31
MORAN, Michael. Review article: Understanding the Regulatory State. British Journal of Political Science, [s.l.],
Cambridge University Press (CUP), v. 2, n. 2, p. 391-413, 28 mar. 2002.
32
Para leitura específica sobre o tema: MASSIMINO, Leonardo F. La intervención estatal, la regulación económica y
el poder de policía. Revista de Direito Econômico e Socioambiental, [s.l.], v. 6, n. 677, p. 36-63, 2015. p. 39.
33
GUNNINGHAM, Neil; SINCLAIR, Darren. Smart regulation. Op. cit., p. 134.
348 William Ivan Gallo Aponte | Rafaella Nátaly Fácio

jurídica na medida em que os destinatários da norma não podem tem certeza sobre qual
regra deve ser obedecida. 34
Os instrumentos de melhora regulatória foram desenvolvidos a partir das ordens
executivas (“executives orders”) nos Estados Unidos.35 A prática foi iniciada no referido país
sob o comando do então presidente Ronald Reagan, que editou ordens determinando que
a regulação fosse obrigatoriamente precedida de análises de custo-benefício. Havia certo
ceticismo em relação à proposta, pois se temia que a análise meramente econômica não
fosse compatível com a regulação de temas como meio-ambiente e saúde. Mesmo assim,
os presidentes Bill Clinton e Barack Obama deram continuidade à prática de forma bastante
satisfatória, pois observou-se que a metodologia ajudou a identificar regulações que não
cumpriam seu propósito e acolher outras boas ideias em termos de efetividade.36
Esses instrumentos inicialmente concebidos nos Estados Unidos foram reconhe-
cidos como boas práticas pela ODCE já em 1995, e desde então a entidade internacional
passou a recomendar a sua adoção para os demais países integrantes. Eles consistem,
basicamente, em agenda regulatória, análise de impacto normativo ou regulatório ex ante
ou ex post, advocacia de competência, expedição normativa e consulta pública. O foco do
presente trabalho será a Análise de Impacto Regulatório (AIR). Para tanto, a seguir se dis-
correrá sobre a utilização da ferramenta no Brasil, bem como comparar a experiência pátria
com outros países.
A atividade regulatória ganhou proeminência no Brasil com a reforma administrativa
da década de 90 e a crescente delegação de serviços públicos. A ideologia proposta pelo en-
tão governo era focada na “diminuição do tamanho do Estado”. Nesse contexto, as agências
reguladoras foram concebidas (ou foi esta, pelo menos, a intenção) como instituições autô-
nomas e independentes, cujo objetivo era melhorar o arcabouço regulatório para obtenção de
resultados mais efetivos.37 Essa necessidade inaugura “uma nova fase do debate de melhora
regulatória no Brasil”,38 constituindo um paradigma de implementação de ferramentas com
tendência de sistematização e coordenação para o incremento da qualidade regulatória.

34
KLINGBEIL, Marianne. Smart regulation. S.d. Disponível em: https://www.oecd.org/regreform/policyconferen-
ce/46528683.pdf. Acesso em: 10 abr. 2019. Veja-se também o caso da União Europeia, onde a implantação de
regulação inteligente implica a avaliação de impacto e análise de resultados. CONSEJO EUROPEO. Comunicación
n. 543, de 08 de outubro de 2010. Comunicación de La Comisión al Parlamento Europeo, al Consejo, al Comité
Económico y Social Europeo y al Comité de las Regiones: documento para trabajo 2011. Bruselas: Consejo Euro-
peo, 08 out. 2010.
35
BETANCOR, Andrés. Mejorar la regulación. Una guía de razones y medios. Madrid: Marcial Pons, 2009. p. 107.
36
SUSTEIN, Cass R. Costs, benefits and regulation post-Trump. Bloomerang The Company, 1 ago. 2019. Dispo-
nível em: https://www.bloomberg.com/opinion/articles/2019-08-01/cost-benefit-analysis-regulation-after-trump.
Acesso em: 19 set. 2019.
37
RAGAZZO, Carlos. Coordenação efetiva e sistematização: novas tendências da melhora da qualidade regulatória
no Brasil. Revista Estudos Institucionais, Rio de Janeiro, v. 4, n. 2, p. 513-536, jul./dez. 2018.
38
RAGAZZO, Carlos. Coordenação efetiva e sistematização: Op. cit., p. 516.
A utilização de inteligência artificial na atividade regulatória 349

Neste contexto, já em 2007, pelo Decreto n. 6.062 foi criado o Programa de Forta-
lecimento da Capacidade Institucional para Gestão em Regulação (PRO-REG). Em termos
de iniciativas concretas, é relevante citar que diversas agências (Agência Nacional de Trans-
portes Terrestres – ANTT, Agência Nacional de Saúde Suplementar e Agência Nacional de
Aguas) passaram a realizar (respectivamente em 2009, 2010 e 2015), ainda que pontual-
mente e de forma não obrigatória, Análises de Impacto Regulatório (AIR).39
A Análise de Impacto Regulatório (AIR), conforme a nomenclatura de seu nome já
anuncia, consiste num processo40 de análise dos impactos da norma regulatória, e pode ser
feito tanto antes da sua edição quanto depois, considerando que a decisão regulatória deve
ser continuamente avaliada. O propósito da ferramenta é sobretudo proporcionar o aferimen-
to do custo-benefício da norma a ser editada. A análise, entretanto, não é apenas econômica,
pois abrange também os aspectos social, político e cultural.41
A utilização desta ferramenta de gestão pública para tomada de decisões promove
uma verdadeira transformação da cultura administrativa.42 Além do incremento em relação à
sua finalidade intrínseca, que é o aumento da efetividade da regulação43, a melhora regulató-
ria se também verifica nos seguintes aspectos: (i) no aumento da participação dos interes-
sados, considerando a processualização do empreendimento; (ii) no aumento da tecnicidade
da decisão, delimitando de forma clara a discricionariedade44, evitando-se, assim, o uso
político da função sob o disfarce da conveniência e oportunidade; (iii) e no estabelecimento
de padrões mais claros para o controle do processo decisório.45

39
BRASIL. Casa Civil da Presidência da República. Inventário AIR – Visão Geral da Análise de Impacto Regulatório
nas Agências Reguladoras Federais. Brasília: Presidência da República, 2018.
40
Opta-se pela nomenclatura “processo” ao invés de “procedimento” para demarcar que ao instituto é imprescin-
dível a participação dos interessados e afetados, voltado não apenas à efetividade da regulação, mas também
aos direitos e garantias fundamentais do cidadão. (BACELLAR FILHO, Romeu Felipe; PIVETTA, Saulo Lindorfer.
O regime jurídico do processo administrativo na Lei n. 9.784/99. A&C Revista de Direito Administrativo & Cons-
titucional, Belo Horizonte, ano 14, n. 58, p. 107-135, out./dez. 2014). Para uma leitura aprofundada sobre a
processualização da função administrativa, cf. MEDAUAR, Odete. A processualidade no direito administrativo. 2.
ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2008.
41
FERREIRA, Marco Antônio da Cunha et al. Contribuição do método sistema especialista fuzzy na Análise de Im-
pacto Regulatório. Revista Produção Online, Florianópolis, v. 15, n. 3, p. 859-885, jul./set. 2015. Disponível em:
https://www.producaoonline.org.br/rpo/article/view/1823. Acesso em: 18 out. 2019.
42
CASTRO, Camila Moreira de. Some aspects of implementing Regulatory Impact Analysis in Brazil. Revista de
Administração Pública, [s.l.], v. 48, n. 2, p. 323-342, abr. 2014.
43
MENEGUIN, Fernando Boarato; BIJOS, Paulo Roberto Simão. Avaliação de impacto regulatório: como melhorar a
qualidade das normas. Senado Federal. Consultoria de Orçamentos, Fiscalização e Controle – CONOFOR. Avalia-
ção, 2016. p. 7. Disponível em: https://www2.senado.leg.br/bdsf/bitstream/handle/id/519196/OED0024.pdf?se-
quence=1&isAllowed=y. Acesso em: 19 set. 2019.
44
BLANCHET, Luiz Alberto; BUBNIAK, Priscila Lais Ton. Análise de Impacto Regulatório: uma ferramenta e um
procedimento para a melhoria da regulação. Revista de Ciências Jurídicas, Fortaleza, v. 22, n. 3, p. 1-15, set./dez.
2017.
45
JORDÃO, Eduardo et al. A produção legislativa do Congresso Nacional sobre agências reguladoras. Revista de
Informação Legislativa, Brasília, ano 56, n. 222, p. 75-107, abr./jun. 2019. Nesse sentido também o Projeto de
Lei n. 1.539 de 2015 da Câmara dos Deputados, que estabelece a obrigatoriedade de realização de Análise de
Impacto Regulatório no âmbito da Administração Federal.
350 William Ivan Gallo Aponte | Rafaella Nátaly Fácio

Do ponto de vista da concreção normativa, a implementação do AIR como ferramenta


obrigatória é recente. Em 2015 foi apresentado projeto de lei no qual se estabeleceu diretrizes
gerais para a realização de AIR em relação à tomada de decisões regulatórias, entretanto a
norma jamais foi sancionada.46 Em novembro de 2017, o Governo federal publicou o Decreto
n. 9.203, no qual se estabeleceu que a aplicação de boas práticas regulatórias, entre elas o
AIR, é uma diretriz e princípio de governança pública. Em 2018, o Governo federal publicou
as Diretrizes gerais e guia orientativo para elaboração de Análise de Impacto Regulatório,47
um documento de referência no qual se desenvolvem importantes aspectos de implantação,
análise e projeção da ferramenta de melhora regulatória.
Em junho de 2019 foi promulgada a Lei n. 13.848, que determina a realização de
AIR para a adoção e as propostas de alteração de atos normativos de interesse geral dos
agentes econômicos, consumidores ou usuários dos serviços prestados. A implantação da
ferramenta, entretanto, depende da edição de regulamento específico. Outra norma recente
que se abordou o tema foi a chamada “MP da liberdade econômica”, Medida Provisória n.
881/2019. A referida norma também exige AIR em caso de edição ou alteração de atos nor-
mativos de interesse geral de agentes econômicos ou de usuários dos serviços prestados,
e estende a exigência a qualquer por órgão ou entidade da administração pública federal,
incluídas as autarquias e as fundações públicas.
Considerando as iniciativas e normas citadas acima, é evidente que a progressiva
inclusão do AIR como ferramenta de melhora regulatória dentro da Administração Pública
é um assunto contemporâneo e cada vez mais frequente. Deste modo, o Brasil se alinha a
uma tendência internacional, considerando as já diversas experiências dos demais países no
tema, que serão pontualmente mencionadas a seguir.48
No México, a denominada Ley General de Mejora Regulatoria, editada em 2018,
inclui a AIR como uma ferramenta do Sistema Nacional de Mejora Regulatoria. O objetivo da
iniciativa é garantir que os benefícios da regulação sejam superiores a seus custos e que a
escolha normativa seja a melhor alternativa para determinado problema, sem desconsiderar

46
BRASIL. Congresso Nacional. Projeto de Lei n. 1.539/2015. Estabelece a obrigatoriedade de realização de
Análise de Impacto Regulatório – AIR pelas Agências Reguladoras no âmbito da Administração Federal. Bra-
sília: Congresso Nacional, 2015. Disponível em: https://www.camara.leg.br/proposicoesWeb/prop_mostrarin-
tegra;jsessionid=0E6A4D328962E24E5E9213B11A5CBC21.proposicoesWeb2?codteor=1334093&filena-
me=PL+1539/2015. Acesso em: 19 set. 2019.
47
BRASIL. Subchefia de Análise e Acompanhamento de Políticas Governamentais et al. Diretrizes gerais e guia
orientativo para elaboração de Análise de Impacto Regulatório – AIR. Brasília: Presidência da República, 2018.
Disponível em: https://www.gov.br/casacivil/pt-br/centrais-de-conteudo/downloads/diretrizes-gerais-e-guia-o-
rientativo_final_27-09-2018.pdf/view. Acesso em: 19 set. 2019.
48
É importante especificar que, diferentemente do Brasil, alguns países adotam outra denominação do AIR. Por
exemplo, na Colômbia, é chamado Análise de Impacto Normativo (AIN); no México, Declaração do Impacto Regu-
latório, no Reino Unido, Regulatory Impact Analysis (RIA).
A utilização de inteligência artificial na atividade regulatória 351

o interesse geral.49 Na Espanha, a denominada Ley de Procedimiento Administrativo Común


de las Administraciones Públicas integra a AIR de forma implícita. De acordo com a lei, a
norma regulatória deve ser adequada aos princípios da boa regulação, promovendo a análise
econômica de seu impacto e evitando a instituição de restrições injustificadas ou despropor-
cionais à atividade econômica.50 No Chile, em abril 2019, publicou-se a Guía Chilena para
la Buena Regulación, a qual incorpora o AIR a todos os projetos de lei e normas infralegais,
propondo uma avaliação preliminar para determinar a necessidade, magnitude do impacto e
a opção com maior benefício social.51
Seja no contexto nacional ou internacional, é evidente que a inclusão da Análise de
Impacto Regulatório, assim como as demais ferramentas de melhora regulatória, está pro-
gressivamente permeando os processos decisórios de regulação. Diante disso, é natural que
passemos a discussões sobre aspectos específicos de sua aplicação, como, por exemplo,
a utilização de recursos e meios tecnológicos. Sendo este especificamente o tema sobre o
qual o presente trabalho pretende discorrer, no próximo capítulo se abordará especificamente
a utilização de inteligência artificial no mecanismo de AIR.

4 A UTILIZAÇÃO DE INTELIGÊNCIA ARTIFICIAL NO ÂMBI-


TO DA ANÁLISE DE IMPACTO REGULATÓRIO (AIR):
COMPATIBILIDADE, CONSIDERAÇÕES E PRESSUPOSTOS

A inteligência artificial (adiante denominada IA) é termo cuja definição não é unívoca,
mas é possível destacar a concordância quanto à ao menos três de suas características: (i)
a intencionalidade, no sentido de que o sistema algorítmico não opera de modo passivo e de
relativa autonomia para exercer tarefas específicas; (ii) a inteligência propriamente dita, uma
vez que o sistema aprende numa sequência assemelhada à humana,; (iii) e adaptabilidade,
pois ostenta a capacidade cognitiva de efetuar ajustes à medida que coleta vastíssimas in-
formações.52 Desse modo, ao mesmo tempo em que a inteligência artificial não se confunde
com a automação, tão pouco pode ser equiparada à inteligência humana, já que é esta aquela
que irá condicionar a programação daquela.

49
MÉXICO. Congreso General de la Unión de los Estados Unidos Mexicanos. La Ley General de Mejora Regulato-
ria. Ciudad de México, 18 maio 2018. Disponível em: http://dof.gob.mx/nota_detalle.php?codigo=5523172&fe-
cha=18/05/2018. Acesso em: 17 set. 2019.
50
JEFATURA DEL ESTADO ESPAÑOL. Lei n. 39, 1 de outubro de 2015. Del Procedimiento Administrativo Común
de Las Administraciones Públicas. Madrid, 1º oct. 2015. Disponível em: https://www.boe.es/buscar/pdf/2015/
BOE-A-2015-10565-consolidado.pdf. Acesso em: 16 out. 2019.
51
CHILE. Ministerio de Economía, Fomento y Turismo. Guía chilena para una buena regulación. Santiago, abr. 2019.
Disponível em: https://open.economia.cl/wp-content/uploads/2019/04/Guia-Chilena-2019_25abril.pdf. Acesso
em: 10 out. 2019.
52
FREITAS, Juarez. Direito administrativo e inteligência artificial. Interesse Público – IP, Belo Horizonte, ano 21, n.
114, p. 15-29, mar./abr. 2019. p. 16.
352 William Ivan Gallo Aponte | Rafaella Nátaly Fácio

Entre as múltiplas aplicações da inteligência artificial ao Direito que devem receber


especial da atenção está a assistência digital para a tomada da decisão pública.53 O tema
da utilização da inteligência artificial no sistema jurídico tem sido pautado cada vez mais
frequentemente, especialmente no âmbito da intervenção regulatória estatal. Neste campo,
a promessa é de prevenir as falhas de mercado (como, por exemplo, as informações assi-
métricas, o abuso do poder dominante e as externalidades negativas) e as falhas de governo
(como, por exemplo, a omissão de prevenção e precaução e o patrimonialismo), mediante
incorporação de “valores elevados ao cerne de algoritmos, no cabal acatamento à dignidade
e ao direito ao futuro”.54 A promessa é tentadora, pois pretende substituir um modelo de
regulação errática e suscetível ao patrimonialismo por um modelo ótimo, isto é, pretende
promover a chamada “smart regulation”.
A incorporação da IA no processo regulatório, no âmbito do AIR, contribui com a po-
tencialização da função, pois dá assistência para a tomada de decisões públicas. Nesse sen-
tido, seu uso poderia otimizar o fluxo de dados e informação que se encontram a disposição
do gestor público, pois passaria a ser possível a resolução de questões que anteriormente
requereriam múltiplos passos, procedimentos e fases. 55 A nova tecnologia e o instrumento
de melhora regulatória são compatíveis na medida em que ambas as figuras estão voltadas,
entre outras coisas, à redução de custos e promoção de análises sistêmicas e fidedignas à
realidade. O resultado da união de ambas não será outro senão à qualidade regulatória me-
diante a priorização de esforços e simplificação da tomada de decisão. 56
A AIR, além de ser uma ferramenta regulatória que permite avaliar os prováveis bene-
fícios, custos e efeitos da norma a ser editada, é um processo auxiliar à tomada de decisões
regulatórias. 57 Deste modo, a IA ganha relevância e importância com o processo lógico de
formação da AIR. Com o apoio daquela, a coleta e organização de dados pode ser feita de
modo inteligente, conduzida de acordo com o problema regulatório que se pretende sanar.
Além disso, pode-se programar o provimento de diversas alternativas de solução a serem
dadas pelo próprio sistema, o que apenas incrementa a tecnicidade da decisão regulatória e
aumenta a sua aderência e conformidade com a realidade.

53
O termo foi cunhado por FREITAS, Juarez. Direito administrativo e inteligência artificial Op. cit., p. 19.
54
FREITAS, Juarez. Direito administrativo e inteligência artificial. Op. cit., p. 17-18.
55
CORVALÁN, Juan Gustavo. Administración Pública digital e inteligente: transformaciones en la era de la inteligen-
cia artificial. Revista de Direito Econômico e Socioambiental, Curitiba, v. 8, n. 2, p. 26-66, maio/ago. 2017. p. 58.
56
OCDE – Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Económico. Panorama de las Administraciones Pú-
blicas: América Latina y el Caribe 2017. Paris: Éditions OCDE, 2016. p. 122.
57
OCDE – Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Económico. Buildingan institutional framework for
regulatory impact analysis. Version 1.1 Regulatory Policy Division Directorate for Public Governance and territorial
Development. Paris: Éditions OCDE, 2008. Disponível em: http://www. oecd.org/gov/regulatory-policy/40984990.
pdf. Acesso em: 12 dez. 2015.
A utilização de inteligência artificial na atividade regulatória 353

Um bom exemplo prático pode ser dado no âmbito da regulação do transporte pú-
blico urbano. Supondo-se que se observa empiricamente que o sistema de transporte pú-
blico de uma cidade já não é mais efetivo, o ente regulador deve investigar as causas, listar
possíveis soluções e ter critérios claros para optar por uma delas. Para tanto, é necessário
sintetizar uma realidade que pode ser apreendida de inúmeros dados. No caso hipotético, a
IA poderia ser utilizada para identificar vários aspectos do fluxo de passageiros: a quantidade,
o ponto de partida e ponto de chegada, horários de pico, linhas e carros ociosos ou super-
lotados, entre outros. As soluções poderiam ser várias: alteração de rota, inclusão de novas
linhas ou carros, estímulo à locomoção por meios alternativos (como bicicletas e patinetes)
em determinadas localizações, entre outros. Essa tarefa seria deveras tortuosa, custosa e
demorada se feita apenas pelo gestor público, senão impossível. Com o apoio da IA no pro-
cesso de AIR, entretanto, seria rápida e precisa.
Em outros países é possível observar de forma clara a conjugação da inteligência
artificial no processo regulatório. Na Austrália, a adaptação às mudanças tecnológicas faz
parte dos princípios da regulação, cuja aplicação prática é voltada para a identificação de
dados e instrumentos que fortalecem a melhor decisão dos agentes público,58 com a fina-
lidade de melhorar os processos regulatórios em termos de avaliação e revisão de custos
e benefícios.59 A Comissão Europeia, por sua vez, dispõe que a inteligência artificial, com
apoio em big data,60 cria novas possibilidades para a análise de circunstâncias sociais e
econômicas.61 No país Moldavia, o governo elaborou um guia metodológico para avaliação
de impacto da regulação de políticas públicas. No documento, consignou-se que este pro-
cesso pressupõe a utilização de meios tecnológicos que viabilizem a obtenção de referên-
cias e consultorias durante a avaliação de impacto (sugestão de soluções e simulação de
cenários, por exemplo). E isto é possível apenas por intermédio da inteligência artificial. 62
De modo geral, a introdução de ferramentas tecnológicas no processo de identi-
ficação de problemas, alternativas e seus impactos, é uma transformação que demanda

58
AUSTRALIA. Commissioner For Better Regulation. Victorian guide to regulation: a handbook for policy-makers in
Victoria (Australia). 2016. Disponível em: http://www.betterregulation.vic.gov.au/files/98181269-905c-4893-bff-
3-a6bb009df93c/Victorian-Guide-to-Regulation-PDF-final.pdf. Acesso em: 19 set. 2019.
59
AUSTRALIA. Best practice regulation handbook. 2007. Disponível em: http://regulationbodyofknowledge.org/wp-
-content/uploads/2013/03/AustralianGovernment_Best_Practice_Regulation.pdf. Acesso em: 19 set. 2019.
60
Termo que designa grandes conjuntos de dados que podem ser processados e armazenados.
61
EUROPEAN COMMISSION. Better regulation “Toolbox”. 2015. p. 17. Disponível em: https://ec.europa.eu/info/
law/law-making-process/planning-and-proposing-law/better-regulation-why-and-how/better-regulation-guideli-
nes-and-toolbox_en. Acesso em: 19 set. 2019.
62
MOLDOVIA. Methodological guide on ex-ante assessment of the impact of public policies. 2009, p. 57. Disponível
em: https://www.legislationline.org/documents/id/17155. Acesso em: 19 set. 2019.
354 William Ivan Gallo Aponte | Rafaella Nátaly Fácio

esforços,63 mas que converge para a consolidação de um Governo e Administração Pública


digitais, modelo no qual a verificação de acertos e desacertos é mais assertiva.64
Não obstante os inúmeros benefícios advindos da utilização da IA no processo regu-
latório na fase de AIR, o fenômeno deve ser analisado com parcimônia à luz do ordenamento
jurídico, especialmente em relação aos direitos e garantias fundamentais. Portanto, além de
propor a referida prática, no presente trabalho também são listados os pressupostos para
tanto. E eles são (i) em relação à extensão da possibilidade de utilização de inteligência arti-
ficial; (ii) em relação ao modo da implantação da inteligência artificial.
Quanto ao primeiro aspecto, a IA deve ser implantada sem que se substitua a decisão
final pelo próprio agente público. Por certo a função da prática é viabilizar o apoio digital
mediante o auxílio na identificação de problemas e sugestões de solução, mas a decisão
deve ser sempre daquele que detém competência para tanto.65 Deste modo, o gestor não
estará vinculado a aplicar as conclusões providas pela IA, mas tão somente a utilizá-las na
motivação de sua decisão. Este é um limite ético importante por ao menos duas razões: para
evitar-se eventual “tirania digital”; para resguardar o inevitável componente subjetivo que in-
tegra a discricionariedade;66 e para evitar a retirada do componente humano de uma função
cujo fim último é justamente o bem-estar dos cidadãos.
Em segundo lugar, quanto ao modo da implantação da inteligência artificial, Juarez
Freitas já destacou pioneiramente que se deve garantir o acesso à sequência dos passos
lógicos da decisão algorítmica.67 A exigência se justifica porque muito embora a análise
de dados por inteligência artificial aparente ser um processo neutro, ela não é. Por trás da
inteligência artificial está a programação feita por um ser humano, que como tal pode ser
tendenciosa e viciada. Um exemplo pode ajudar a compreender a importância desse pres-
suposto: caso uma pessoa racista promova a análise de regulação do serviço público de

63
MENEGUIN, Fernando; SILVA, Rafael Silveira y (Orgs.). Avaliação de impacto legislativo: cenários e perspectivas
para sua aplicação. Brasília: Senado Federal, 2017. Disponível em: https://www2.senado.leg.br/bdsf/bitstream/
handle/id/535244/avaliacao_de_impacto_legislativo_1ed.pdf?sequence=1&isAllowed=y y. Acesso em: 19 set.
2019.
64
BRASIL. Ministério do Planejamento, Desenvolvimento e Gestão. Estratégia de governança digital – EGD. 2019.
Disponível em: https://www.governodigital.gov.br/EGD/documentos/revisao-da-estrategia-de-governanca-digi-
tal-2016-2019.pdf. Acesso em: 19 set. 2019.
65
Como fora muito bem pontuado por André Luiz Freire, o âmbito das atividades públicas é pautado pelo princípio da
competência, segundo o qual o Estado não pode se escusar de prestar algo que lhe foi incumbido (FREIRE, André
Luiz. O regime de direito público na prestação de serviços públicos por pessoas privadas. São Paulo: Malheiros,
2014. p. 246).
66
SANTOFIMIO GAMBOA, Jaime Orlando. Tecnología e inteligencia artificial: incidencias en el derecho aplicable a la
administración pública: dos ideas en torno a su futuro inmediato de frente al cumplimiento eficaz de los propósitos
y finalidades de la función pública administrativa. In: ZEGARA VALDIVIA, Diego. La proyección del Derecho Admi-
nistrativo Peruano: estudios por el Centenario de la Facultad de Derecho de la PUCP. Lima: Palestra, 2019. Cap. 1.
p. 17-42.
67
FREITAS, Juarez. Direito administrativo e inteligência artificial. Op. cit., p. 25-26.
A utilização de inteligência artificial na atividade regulatória 355

água, ela poderia indevidamente criar algoritmos tendenciosos a indicar que regiões mais
habitadas por negros não precisa de melhoras no serviço.
Por fim, há ainda um segundo requisito em relação ao modo da implantação da
inteligência artificial. Como visto, a IA é desenvolvida a partir de quantidade significativa
de dados, pois é apenas a partir destes que se pode identificar padrões e dar sequência a
passos lógicos. Em termos de regulação, os dados serão necessariamente dos particulares:
empresas reguladas, usuários de serviços públicos e consumidores. A situação atrai a in-
cidência das normas da Lei Geral de Proteção de Dados, em especial as disposições sobre
o tratamento de dados pessoais pelo Poder Público. Considerando o escopo e extensão do
presente trabalho, não será feita uma análise esmiuçada de quais são as referidas disposi-
ções e de que modo, na prática, elas deverão ser observadas. Por ora cumpre ressaltar que
a Administração Pública, ao desempenhar a função reguladora com o apoio da IA, não está
isenta de respeitar os direitos inerentes aos dados pessoais que opera.

5 CONSIDERAÇÕES FINAIS

Diante de todo o exposto, concluiu-se que a utilização de inteligência artificial no âm-


bito da Análise de Impacto Regulatório é viável e desejável, considerando a compatibilidade
entre ambas e sua aptidão para proporcionar uma decisão mais técnica e efetiva. Tal prática,
entretanto, deve ser efetivada de acordo com pressupostos de duas ordens: (1) em relação à
extensão da possibilidade de utilização de inteligência artificial, (1.1) jamais deve-se permitir
que a IA substitua a decisão do agente público; (2) em relação ao modo da implantação da
inteligência artificial, (2.1) deve-se dar publicidade à sequência dos passos lógicos da deci-
são algorítmica; (2.2.) deve-se observar as disposições da Lei Geral de Proteção de Dados.

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SEGUNDO LUGAR

Hércules, o gestor

Francisco Arlem de Queiroz Sousa


Mestrando em Direito (UFC)
Especialista em Direito Tributário e Finanças Públicas (IDP)
Advogado da União

SUMÁRIO: 1 Introdução; 2 O juiz Hércules e a única decisão correta; 3 Discricionariedade adminis-


trativa; 4 A constitucionalização dos princípios e o fim da discricionariedade; 5 O gestor Hércules e a
única decisão correta; 6 Considerações finais; Referências.

1 INTRODUÇÃO

“Ontem os códigos, hoje as constituições!” Assim declarou Paulo Bonavides ao re-


ceber a medalha Teixeira de Freitas em 1998, sinalizando a grande importância que incide
sobre esse documento clássico do liberalismo, em especial após a segunda grande guerra
mundial, sendo exatamente no bojo das grandes transformações ocorridas nesse período
histórico que se pode complementar a frase do abalizado Mestre com a afirmação: “antes as
regras, agora os princípios”.
Bonavides1 traça com precisão a trajetória histórica dos princípios, desde a sua
primeira fase jusnaturalista, nos quais eram tidos como axiomas jurídicos ou normas do
bem-obrar; passando pela fase juspositivista, com os princípios entrando nos códigos como
fonte normativa subsidiária, carentes de normatividade e irrelevantes juridicamente; até che-
gar no pós-positivismo, o qual segundo Barroso2, compõe um conjunto de ideias ricas e
heterogêneas, a exemplo da reentronização dos valores na interpretação jurídica, da reabili-
tação da razão prática e da argumentação jurídica; da formação de uma nova hermenêutica;
e do desenvolvimento de uma teoria dos direitos fundamentais.
A normatividade dos princípios, recorda Bonavides3, foi afirmada categórica e pre-
cursoramente por Vezio Crisafulli em 1952, mas depois de acalmados os debates acerca de
sua força normativa é com os aportes teóricos de Ronald Dworkin que eles se convertem no

1
BONAVIDES, Paulo. Curso de direito constitucional. 25. ed. São Paulo: Malheiros, 2009. p. 259-264.
2
BARROSO, Luís Roberto. Curso de direito constitucional contemporâneo. 5. ed. São Paulo: Saraiva, 2015. p. 283.
3
BONAVIDES, Paulo. Curso de direito constitucional. Op. cit., p. 257.
362 Francisco Arlem de Queiroz Sousa

coração das constituições, fazendo vir abaixo tanto a doutrina do Direito Natural como a do
velho positivismo ortodoxo.
Sob os influxos dessas ideias, as constituições passaram a conter, além das re-
gras, princípios com fortes conteúdos axiológicos e fundamentos éticos, abrigando valores
jurídicos suprapositivos como igualdade, solidariedade e moralidade. Eles se tornaram “o
oxigênio das Constituições na época do pós-positivismo. É graças aos princípios que os
sistemas constitucionais granjeiam a unidade de sentido e auferem a valoração de sua ordem
normativa”.4
Nessa senda, observa-se que “com o advento da “era dos princípios constitucionais”
o ambiente jurídico brasileiro foi tomado por uma espécie de transtorno obsessivo-compul-
sivo, muito bem descrito por Streck como pan-principiologismo, no qual ‘“positivam-se os
valores’: assim se costuma anunciar os princípios constitucionais, circunstância que facilita
a ‘criação’, em um segundo momento, de todo tipo de ‘princípio’, como se o paradigma do
Estado Democrático de Direito fosse a ‘pedra filosofal da legitimidade principiológica’, da
qual pudessem ser retirados tantos princípios quantos necessários para solvermos os casos
difíceis ou ‘corrigir’ as incertezas da linguagem [...]”.5
Muito embora o festejado Ronald Dworkin tenha dedicado sua vida e sua obra para
construir uma teoria que combatesse o positivismo jurídico e seu insistente apelo à discricio-
nariedade judicial nos casos difíceis, seu constructo em terras brasileiras teve efeito contrá-
rio, com o Judiciário se utilizando da teoria dos princípios para embasar decisões solipsistas
em prejuízo de outra discricionariedade, a administrativa.
O presente estudo tece considerações acerca das consequências que o enviesamen-
to cognitivo adotado no Brasil acerca da construção doutrinária de Dworkin tem causado
para a administração pública e como a criação metafórica de um juiz sobre-humano foi
incorporada ao imaginário de parte da magistratura brasileira que, ilusoriamente, adquiriu
superpoderes, utilizando-os para aumentar sua influência e restringir a liberdade decisória
de outras autoridades da República, tolhendo-lhes competências vocacionadas à gestão da
coisa pública.
Inicia-se por apresentar o embate de Ronald Dworkin contra uma das ideias centrais
do positivismo jurídico consistente na premissa de que na ausência de regras o juiz utiliza de
discricionariedade em seu sentido forte para decidir o caso concreto; ato contínuo, expõe-se
a metáfora dworkiana do juiz Hércules e a tese da única resposta correta.

4
BONAVIDES, Paulo. Curso de direito constitucional. Op. cit., p. 288.
5
STRECK, Lenio. Verdade e consenso: constituição, hermenêutica e teorias discursivas. 4. ed. São Paulo: Saraiva,
2014. p. 525.
Hércules, o gestor 363

Na sequência, abordar-se-á com referência às doutrinas clássica e moderna, os con-


tornos da discricionariedade administrativa, bem como as transformações pelas quais ela
passou em paralelo com a evolução do estado.
Em seguida, analisar-se-á como a introdução dos princípios na realidade constitu-
cional brasileira propiciou um efeito contrário ao pretendido por Dworkin, em face do recru-
descimento da discricionariedade judicial, a qual passou a substituir a discricionariedade
administrativa.
Por fim, caminha-se para a conclusão de que se nada mudar em face do agigan-
tamento do controle exercido pelo Judiciário, é necessário que a administração pública no
Brasil seja entregue nas mãos de Hércules, um gestor sobrenatural, muito embora isso seja
uma utopia e as soluções tenham que ser construídas pelos simples mortais.

2 O JUIZ HÉRCULES E A ÚNICA DECISÃO CORRETA

Ronald Dworkin6 inicia sua empreitada contra o positivismo apresentando aqueles


que seriam seus três preceitos chaves, quais sejam: 1) o direito de uma comunidade é um
conjunto de regras especiais; 2) no direito não existem outros padrões que não sejam regras;
e, 3) quando não há um regra o juiz decide o caso segundo seu discernimento pessoal.
Na sequência, o professor e filósofo de Harvard lança seu ataque contra o modelo
puro de regras do positivismo, propondo a existência de outros dois padrões, as políticas e
os princípios, onde o primeiro visa alcançar uma melhoria em algum aspecto econômico,
político ou social da comunidade e o segundo não promove nenhuma melhoria geral, mas é
uma exigência de justiça, equidade ou moralidade.7
Dworkin8 se rebela contra a doutrina positivista do poder discricionário (leia-se: dis-
cricionariedade) e reconhece que nela há três sentidos. Algumas vezes se emprega o termo
em um sentido fraco para dizer que os padrões que uma autoridade pública deve aplicar não
podem ser aplicados mecanicamente, exigindo a formulação de algum tipo de julgamento
com base em padrões que foram estabelecidos por uma autoridade superior a qual ela deve
obediência, como no caso do tenente que ordena ao sargento que escolha os cinco homens
mais experientes.
Em outros casos se usa o conceito de poder discricionário em um segundo sentido
fraco para dizer que alguma autoridade tem a faculdade de tomar a decisão em última instân-
cia, como é o caso do Supremo Tribunal Federal.

6
DWORKIN, Ronald. Levando os direitos à sério. Trad. Nelson Boeira. São Paulo: Martins Fontes, 2002. p. 27-28.
7
DWORKIN, Ronald. Levando os direitos à sério. Op. cit., p. 36.
8
DWORKIN, Ronald. Levando os direitos à sério. Op. cit., p. 51-53.
364 Francisco Arlem de Queiroz Sousa

Por último, há o sentido forte de poder discricionário, que é aquele no qual a autori-
dade pode decidir sem estar sujeita a padrão algum preestabelecido, como se no exemplo do
tenente que ordenou ao sargento a escolha de cinco homens não houvesse a precondição de
serem os mais experientes, estando o subordinado livre para decidir.
Entende Dworkin que “o conceito de poder discricionário está perfeitamente à von-
tade em apenas um tipo de contexto: quando alguém é em geral encarregado de tomar
decisões de acordo com padrões estabelecidos por uma determinada autoridade”9, seja
ela um órgão superior ou um regulamento, ou seja, somente há poder discricionário (discri-
cionariedade) nos sentidos fracos.
No fundo seu intento era criticar a pregação positivista da discricionariedade judicial
no sentido forte, ou seja, a afirmação de que os juízes, na ausência de uma regra clara e
explícita, decidem segundo seus próprios critérios, alheios a qualquer condicionamento.
Dworkin10 assevera que não se deve admitir que juízes criem direito pós-facto e os
apliquem retroativamente ao caso, pois todos concordam que ninguém deve ser obrigado a
fazer ou deixar de fazer alguma coisa, senão em virtude de lei existente e válida. Ademais,
o direito deve ser criado por pessoas eleitas pelo povo e não por juízes que não são legis-
ladores.
Essa visão, diga-se de passagem, discrepa frontalmente da de Mauro Cappelletti, o
qual entende que os juízes mesmo quando aplicam leis preexistentes criam o direito, pois a
interpretação sempre possui um certo grau de discricionariedade, haja vista que “discricio-
nariedade não quer dizer necessariamente arbitrariedade, e o juiz, inevitavelmente criador do
direito, não é necessariamente um criador completamente livre de vínculos. Na verdade, todo
o sistema jurídico civilizado procurou estabelecer e aplicar certos limites à liberdade judicial,
tanto processuais quanto substanciais.”11
Dworkin12 também não aceita que o Direito seja irremediavelmente subjetivo, moti-
vado por convicções particulares e “apenas uma questão do que cada juiz, individualmente,
acha melhor ou do que ele comeu no café da manhã”. Para resolver tudo isso ele dá vida a
um juiz de capacidade, sabedoria, paciência e sagacidade sobre-humanas, capaz de desen-
volver teorias sobre aquilo que a intenção legislativa e os princípios jurídicos requereriam,
batizando-o de Hércules.13

9
DWORKIN, Ronald. Levando os direitos à sério. Op. cit., p. 51.
10
DWORKIN, Ronald. Levando os direitos à sério. Op. cit., p. 132.
11
CAPPELLETTI, Mauro. Juízes legisladores? Trad. Carlos Alberto Alvaro de Oliveira. Porto Alegre: Sérgio Antonio
Fabris, 1999. p. 23-24.
12
DWORKIN, Ronald. Uma questão de princípio. Trad. Luís Carlos Borges. São Paulo: Martins Fontes, 2001. p. 242.
13
DWORKIN, Ronald. Levando os direitos à sério. Op. cit., p. 165.
Hércules, o gestor 365

Para Dworkin, o juiz Hércules ao lidar com casos difíceis (hard cases) não cria o
direito discricionariamente, mas usa de princípios morais colhidos da história institucional da
comunidade para encontrar uma única resposta correta.
Casos difíceis “são aqueles que, devidos razões diversas, não têm uma solução
abstratamente prevista e pronta no ordenamento, que possa ser retirada de uma prateleira de
produtos jurídicos”.14 Eles podem ter origem na ambiguidade da linguagem, nos desacordos
morais razoáveis existentes nas sociedades modernas e hipercomplexas e nas colisões de
normas constitucionais, sobretudo, principiológicas e de direitos fundamentais.
A única resposta correta consiste na afirmação de que mesmo não havendo uma
regra clara dispondo sobre o caso, pode haver um direito pré-estabelecido, cabendo ao juiz
descobri-lo com base nos princípios jurídicos que, embora muito gerais e abstratos, exigem
que o intérprete os densifique, atentando especialmente para as decisões anteriores, que
espelham à história institucional.
As decisões anteriores exercem sobre Hércules uma força gravitacional que o impele
a levá-las em consideração a cada nova decisão, restringindo desse modo seu juízo subje-
tivo e sua discricionariedade, devendo estar sempre atento para não cair na mera repetição
cega e acrítica do passado.
Na sua empreitada contra a discricionariedade judicial, no sentido forte, Dworkin
abriu caminho para o fim de outra discricionariedade, a administrativa, até mesmo no sentido
fraco por ele mencionado.

3 DISCRICIONARIEDADE ADMINISTRATIVA

Binenbojm15 relata que a discricionariedade tem sua origem no antigo Estado euro-
peu dos séculos XVI e XVIII, quando expressava a soberania decisória do monarca absoluto
(voluntas regis suprema lex). Era a época do Estado policial, onde o monarca era o estado e
o governo se confundia integralmente com a administração pública.
Com o advento do Estado de Direito a ideia original de discricionariedade passou
a ser questionada, pois vista como sinônimo de arbitrariedade monárquica não condizente
com limites jurídicos à atividade estatal que deve se pautar nos estritos limites da lei.

14
BARROSO, Luís Roberto. Curso de direito constitucional contemporâneo. Op. cit., p. 348.
15
BINENBOJM, Gustavo. Uma teoria do direito administrativo. Direitos fundamentais, democracia e constitucionali-
zação. 2. ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2008. p. 195.
366 Francisco Arlem de Queiroz Sousa

Foi o período em que se acreditou na onipotência da razão reta e universal, capaz de


tudo desvendar e, inclusive, criar leis gerais e abstratas capazes de condensar a própria ideia
de justiça, além de legítimas por serem expressão da vontade geral.16
No entanto, mesmo mudanças bruscas de regime não reconstroem tudo do zero,17
por isso a discricionariedade conseguiu sobreviver reconstruída em novos parâmetros, sob
a noção de poder da administração de agir nos espaços livres deixados pela lei, ou seja,
estabelece-se uma vinculação negativa para a administração, na qual ela pode fazer tudo
aquilo que a lei prevê, bem como aquilo que a lei não proibir.
Com a Revolução Industrial se promoveu uma acentuada concentração de capital,
agigantando-se a desigualdade entre aqueles que o detinham e as classes proletárias. Nisso
o Estado legislativo começa a ruir e o encantamento pelas leis se perde, pois não solucionam
as crescentes disputas entre o capital e o trabalho, ganhando cada vez mais proeminência o
Poder Executivo, porquanto esse exerce a função administrativa e sua importância é direta-
mente proporcional à necessidade de implementar políticas públicas, inexistentes no modelo
de Estado Liberal.
Para Cappeletti,18

tipicamente, os direitos sociais pedem para sua execução a intervenção ativa do esta-
do, frequentemente prolongada no tempo. Diversamente dos direitos tradicionais, para
cuja proteção requer-se apenas que o estado não permita sua violação, os direitos
sociais – como o direito à assistência médica e social, à habitação, ao trabalho – não
podem ser simplesmente ‘atribuídos’.

A ilusão exegética de que a subsunção com a mecânica reprodução do sentido literal


de um texto previamente conhecido seria suficiente para preservar a segurança e a certeza
não se sustentou. Não somente os juízes, mas também os funcionários estatais, foram cha-
mados a valorar situações concretas e passam a usufruir de discricionariedade exatamente
porque não é possível predeterminações absolutas.
Nesse momento a doutrina da vinculação negativa é sentenciada à morte em razão
do aumento absurdo de atos infralegais não vinculados à lei, resultado do poder discricioná-

16
A doutrina francesa nessa época se centrou na análise do Código Civil Francês de 1804 (conhecido como Códi-
go de Napoleão), expressão máxima do racionalismo, criando a Escola da Exegese e tendo como pensamento
filosófico o positivismo exegético, no qual o raciocínio jurídico era reduzido a um esquema silogístico formal de
subsunção que reduzia a atividade judicial a um raciocínio lógico-dedutivo, daí a figura do juiz “boca da lei”.
17
De acordo com Gordilho, “el cambio institucional no se produjo de um día para outro y em todos los aspectos, ni
está todavia terminado: no solamente quedan etapas por cumplir em el lento abandono de los princípios de las
monarquias absolutas u otros autoritarismos, sino que existen frecuentes retrocesos em el mundo em general”
(GORDILHO, Agustín A. Tratado de derecho administrativo. 3. ed. Buenos Aires: Macchi, 1995. p. 2-5).
18
CAPPELLETTI, Mauro. Juízes legisladores? Op. cit., p. 39-41.
Hércules, o gestor 367

rio da administração, a qual teve que desenvolver funções sociais incorporadas pelo estado,
partindo-se, então para a doutrina da vinculação positiva, segundo a qual a administração
pública somente pode fazer o que a lei determinar.
Entretanto, o Estado Social que surgiu para atender, ao menos em tese, as necessi-
dades de uma nova classe social emergente que clamava por prestações materiais, redução
das desigualdades e justiça, não consegue corrigir as injustiças promovidas pelo Estado Li-
beral e ingressa em decadência entre as décadas de 60 e 70, impulsionada pelos sucessivos
colapsos econômicos, pelo custo da máquina estatal e da política assistencialista.
O Estado Democrático de Direito que se funda na soberania popular emerge dessa
crise na tentativa de amoldar o Estado de Direito ao Estado Social, não se restringindo a
uma adaptação melhorada das condições sociais de existência, mas institucionalizando a
participação popular em uma perspectiva voltada à transformação do status quo que consiga
promover uma nova realidade.
Nesse novo paradigma estatal é que se apresenta a discricionariedade administrativa
como um instituto jurídico necessário para “formalizar e adequar a autonomia das escolhas
do administrador público pela supremacia do princípio da legalidade”.19
Para Engisch,20 o “autêntico poder discricionário é atribuído pelo direito e pela lei
quando a decisão última sobre o justo (correcto, conveniente, apropriado) no caso concreto
é confiada à responsabilidade de alguém”, não apenas porque não se possa excluir a inse-
gurança por mais minúcias a que desçam as regras, mas também porque em determinadas
situações o ponto de vista de alguém responsável por suas obrigações pode apresentar a
melhor solução.
Entende-se por discricionariedade, segundo a visão de Meirelles,21 “o Poder dis-
cricionário que o Direito concede à Administração, de modo explícito ou implícito, para a
prática de atos administrativos com liberdade na escolha de sua conveniência, oportunidade
e conteúdo.”.22

19
JUSTEN FILHO, Marçal. Curso de direito administrativo. 9. ed., rev., atual e ampl. São Paulo: Revista dos Tribunais,
2013. p. 241.
20
ENGISCH. Karl. Introdução ao pensamento jurídico. Trad. João Baptista Machado. Lisboa: Fundação Calouste
Gulbekian, 2001. p. 222.
21
MEIRELLES, Hely Lopes. Direito administrativo brasileiro. 42. ed., atual. até a Emenda Constitucional 90, de
15.9.2015. São Paulo: Malheiros, 2016. p. 139.
22
Juarez de Freitas relaciona-a com o direito fundamental à boa administração, propondo uma reconceituação do
termo, no sentido de entendê-la como dever de avaliar e eleger, concretamente as melhores consequências diretas
e indiretas para as políticas públicas, observando as prioridades constitucionais, no uso pertinente e eficaz dos
recursos disponíveis (FREITAS, Juarez. As políticas públicas e o direito fundamental à boa administração. Revista
do Programa de Pós-Graduação em Direito da UFC – NOMOS, v. 35, n. 1, p. 195-217, jan./jun. 2015. Disponível
em: http://www.periodicos.ufc.br/nomos/article/view/2079/1555. Acesso em: 9 ago. 2019).
368 Francisco Arlem de Queiroz Sousa

A professora Germana de Oliveira Moraes apresenta um sumário das definições de


discricionariedade, onde existe o critério formal ou negativo (margem de livre decisão não re-
gulada ou parcialmente regulada pelo Direito atribuída pela norma à Administração ou como
a possibilidade de escolha entre várias soluções jurídicas); o critério material ou positivo
(ponderação valorativa do interesse público no caso concreto); e, o critério eclético por ela
adotado (complemento da previsão aberta da norma, margem de livre decisão e a pondera-
ção valorativa dos interesses concorrentes).23
Para Celso Antônio Bandeira de Mello, discricionariedade “é a margem de liberdade
que remanesça ao administrador para eleger, segundo critérios consistentes de razoabilida-
de, um, dentre pelo menos dois comportamentos cabíveis, perante cada caso concreto, a
fim de cumprir o dever de adotar a solução mais adequada à satisfação da finalidade legal,
quando, por força da fluidez das expressões da lei ou da liberdade conferida no mandamento,
ela não se possa extrair objetivamente, uma solução unívoca para a situação vertente”.24
No uso de competência discricionária o legislador confere ao gestor uma certa mar-
gem de liberdade para agir com o intuito de que possa adotar a melhor providência possível
diante do caso concreto, mediante critérios subjetivos de conveniência e oportunidade, por
isso é necessário ressaltar que ela não resulta da ausência de lei, mas de liberdade dentro
da lei.
As razões para existência da discricionariedade administrativa são práticas e jurídi-
cas. Do ponto de vista prático a realidade da vida complexa e multifacetada torna impossível
que o legislador preveja e regule hermeticamente todas as situações possíveis e isso já era
previsto por John Locke quando dizia, ainda no Século XVIII, que “onde quer que os poderes
legislativo e executivo estejam em mãos distintas (como ocorre em todas as monarquias
modernas e nos governos bem constituídos), o bem da sociedade exige que diversas ques-
tões sejam deixadas à discrição daquele que detenha o poder executivo”.25
Em vista à impossibilidade de o legislador prever abstratamente a solução mais ade-
quada para todos os casos, ele permite que o executor de sua obra avalie concretamente a
situação e adote a conduta que melhor cumprirá as finalidades legais.

23
“Discricionariedade é a margem de liberdade de decisão, conferida ao administrador pela norma de textura aberta,
com o fim de que ele possa proceder, mediante a ponderação comparativa dos interesses envolvidos no caso
específico, à concretização do interesse público ali indicado, para, à luz dos parâmetros traçados pelos princípios
constitucionais da Administração Pública e pelos princípios gerais de Direito e dos critérios não positivados de
conveniência e de oportunidade: [...]” (MORAES, Germana de Oliveira. Controle jurisdicional da administração
pública. 2. ed. São Paulo: Dialética, 2004. p. 37-48).
24
MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Discricionariedade e controle jurisdicional. 2. ed. São Paulo: Malheiros, 1993.
p. 48.
25
LOCKE, John. Dois tratados sobre o governo. Trad. Júlio Fischer. São Paulo: Martins Fontes, 2005.
Hércules, o gestor 369

Qual seria o resultado se o legislador sempre vinculasse o gestor em todas as situa-


ções, questiona Celso Antônio Bandeira de Mello:26 “Dada a multiplicidade e a variedade das
situações fáticas possíveis, quando a regra de direito tipificasse uma delas em termos objeti-
vos, teria manietado o administrador, ao prefigurar como obrigatória, perante aquela situação
tipificada em termos incontroversíveis, uma dada e única providência que, eventualmente,
seria inconveniente para os próprios interesses públicos que a norma pretendeu satisfazer.27
As razões de cunho jurídico poder ser encontradas na dinâmica jurídica de Kelsen28
e sua pirâmide normativa, o qual elimina a diferença entre interpretação e discricionariedade,
pois toda interpretação é um ato de escolha entre várias opções igualmente válidas contidas
na moldura normativa.
Para Kelsen o fundamento de validade de uma norma jurídica é encontrado em uma
norma superior que regula sua produção e determina não somente o processo de formação
da norma inferior, mas também, eventualmente, seu conteúdo. Entretanto, essa determi-
nação nunca é completa, “ficando uma margem, ora maior ora menor, de livre apreciação,
de tal forma que a norma do escalão superior tem sempre, em relação ao ato de produção
normativa ou de execução que a aplica, o caráter de um quadro ou moldura a preencher por
este ato”.29
O exemplo dado pelo próprio Kelsen ilustra bem seu pensamento. “Mesmo uma
ordem o mais pormenorizada possível tem de deixar àquele que a cumpre ou executa uma
pluralidade de determinações a fazer. Se o órgão A emite um comando para que o órgão B
prenda o súdito C, o órgão B tem de decidir, segundo o seu próprio critério, quando, onde e
como realizará a ordem de prisão, decisões essas que dependem de circunstâncias externas
que o órgão emissor do comando não previu e, em grande parte, nem sequer podia prever.”30
A separação de poderes montesquiana aparece como outra razão jurídica para a
discricionariedade, escreve Queiró,31 haja vista que as normas legais devem ter um limite

26
MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Discricionariedade e controle jurisdicional. Op. cit., p. 34.
27
Ilustrativo dessa inconveniência e de como a discricionariedade é necessária foi a polêmica em torno do critério
econômico para concessão do benefício de prestação continuada – BPC. A Lei n. 8.742/1993 vinculou a Admi-
nistração de modo que somente concedesse esse benefício ao incapaz de prover a manutenção da pessoa com
deficiência ou idosa, cuja família tivesse renda mensal per capita inferior a 1/4 (um quarto) do salário-mínimo
(§ 3º do art. 20). Ao determinar objetivamente os pressupostos de fato para concessão do BPC, o legislador
ordinário relegou ao desamparo milhões de necessitados que, muito embora, não satisfizessem abstratamente o
critério puramente econômico, eram insofismavelmente miseráveis que necessitavam do auxílio estatal, muitas
vezes mais do que outros que se enquadravam na moldura normativa.
28
KELSEN, Hans. Teoria pura do Direito. Trad. João Baptista Machado. 6. ed. São Paulo: Martins Fontes, 1998.
29
KELSEN, Hans. Teoria pura do Direito. Op. cit., p. 246.
30
KELSEN, Hans. Teoria pura do Direito. Op. cit., p. 246.
31
QUEIRÓ, Afonso Rodrigues. A teoria do “desvio de poder” em direito administrativo. Revista de Direito Administra-
tivo, Rio de Janeiro, v. 6, p. 57, out. 1946. ISSN 2238-5177. DOI: http://dx.doi.org/10.12660/rda.v6.1946.9571.
Disponível em: http://bibliotecadigital.fgv.br/ojs/index.php/rda/article/view/9571. Acesso em: 6 ago. 2019.
370 Francisco Arlem de Queiroz Sousa

para a individualização que não pode ser ultrapassado, sob pena de perderem sua abstração
e o legislador sacrificar sua qualidade com tal.
A primeira norma brasileira a versar sobre discricionariedade foi a Lei n. 221, de 20
de janeiro de 1894, que em seu art. 13, § 9º, alínea “a”, reza que a “autoridade judiciaria
fundar-se-á em razões jurídicas, abstendo-se de apreciar o merecimento de actos adminis-
trativos, sob o ponto de vista de sua conveniência ou oportunidade”.
Assevera-se que discricionariedade não se deve confundir com interpretação, pois
essa precede àquela na atividade de revelar sentido ao texto normativo, algo diferente das
escolhas predeterminadas pelo próprio legislador e que dão ensejo ao uso da discriciona-
riedade. Na interpretação se extrai a norma jurídica contida no enunciado normativo para na
sequência se aferir se há margens de escolha à autoridade pública.
Nessa senda, em face da introdução dos princípios nas constituições e com o reco-
nhecimento de sua força normativa a própria administração pública passou a ser enquadrada
por princípios como o da impessoalidade, moralidade, eficiência, sujeitando-se à nova her-
menêutica que veio para lidar com a imprecisão e indeterminação semântica características
dessa tipologia de normas.
Resultado disso é que hoje o direito público vive um ambiente de “geleia geral”32 em
virtude de tantos excessos e distorções hermenêuticas comprometedoras da governabilida-
de, somada à crítica de grande parte da doutrina administrativa que entende ser retrógrado
ou positivista demais falar em discricionariedade administrativa ou defender a existência de
uma reserva da administração.33

32
SUNDFELD, Carlos Ari. Direito administrativo para céticos. 2. ed. São Paulo: Malheiros, 2012. p. 205.
33
Engraçado que quando se trata do Judiciário invadir a competência do Executivo, o ministro Celso de Mello parece
desconhecer a existência de (mais) um “princípio constitucional”, o da reserva de administração, conforme se
observa no ARE 639337 AgR/SP, comentado na nota de rodapé n. 47, infra. Contudo, ao julgar casos em que não
está em jogo a autopreservação da esfera de poder do Judiciário, o eminente ministro defende eloquentemente
a separação de poderes com base no referido princípio, como se observa no EDRE 427.574-MG: “O princípio
constitucional da reserva de administração impede a ingerência normativa do Poder Legislativo em matérias
sujeitas à exclusiva competência administrativa do Poder Executivo. É que, em tais matérias, o Legislativo não se
qualifica como instância de revisão dos atos administrativos emanados do Poder Executivo. [...] Não cabe, desse
modo, ao Poder Legislativo, sob pena de grave desrespeito ao postulado da separação de poderes, desconstituir,
por lei, atos de caráter administrativo que tenham sido editados pelo Poder Executivo, no estrito desempenho de
suas privativas atribuições institucionais. Essa prática legislativa, quando efetivada, subverte a função primária
da lei, transgride o princípio da divisão funcional do poder, representa comportamento heterodoxo da instituição
parlamentar e importa em atuação ultra vires do Poder Legislativo, que não pode, em sua atuação político-jurídica,
exorbitar dos limites que definem o exercício de suas prerrogativas institucionais” (BRASIL, Supremo Tribunal
Federal. Embargo de Declaração no Recurso Extraordinário n. 427574 – Minas Gerais. 2ª Turma. Embargante:
Câmara Municipal de Belo Horizonte. Embargado: Município de Belo Horizonte. Rel. Min. Celso de Mello, Brasília.
Julgado em 13 de dez. de 2011. Diário da Justiça Eletrônico de 13 de fev. de 2012).
Hércules, o gestor 371

4 A CONSTITUCIONALIZAÇÃO DOS PRINCÍPIOS E O FIM DA


DISCRICIONARIEDADE

Com o passar dos anos houve uma invasão do mérito administrativo pelo Poder
Judiciário e várias teorias deram suporte a isso, como a teoria do desvio de poder,34 a teoria
dos motivos determinantes,35 a teoria dos conceitos jurídicos indeterminados36 e a constitu-
cionalização dos princípios,37 com o advento do pós-positivismo.
O pós-positivismo pode ser apresentado como um movimento jus-filosófico que
surgiu após a segunda guerra mundial em razão das barbáries cometidas pelos nazistas, os
quais procuraram justificar suas atrocidades com a alegação de que apenas cumpriam leis.
Daí, seguiu-se a necessidade de humanizar essas leis, incorporando nelas valores
que conduzissem à percepção de que a pessoa humana, bem como a sua dignidade, deve
estar no centro das preocupações do ordenamento jurídico.
Nesse sentido, o pós-positivismo38 se apresenta como uma terceira via interme-
diária entre o jusnaturalismo e o positivismo, que buscar reaproximar o direito da moral,
introduzindo os valores na interpretação jurídica; reconhecendo que princípios são normas

34
O desvio de poder ocorre quando o ato praticado não visa a finalidade legal, se desviando do alvo. Nasceu na Fran-
ça com a decisão do Conselho de Estado de 25 de fevereiro de 1864, confirmada em 7 de junho de 1865, no caso
Lesbats, em que se anulou ato do Prefeito de Fontainebleau que, no uso do poder de polícia, negara autorização a
um cidadão para o ingresso de viaturas no pátio da estação da estrada de ferro, pois sua intenção era beneficiar
outro transportador, ao invés de prover o atendimento satisfatório dos usuários, como deveria ser (TÁCITO, Caio.
Teoria e prática do desvio de poder. Revista de Direito Administrativo, Rio de Janeiro, v. 117, p. 5, nov. 1974. ISSN
2238-5177. Disponível em: http://bibliotecadigital.fgv.br/ojs/index.php/rda/article/view/40110. Acesso em: 24 jul.
2019).
35
Essa teoria vincula o administrador ao motivo declarado, ou seja, a validade do ato administrativo depende da
validade dos motivos apresentados. Por ela se predica que se o agente enunciar os motivos para a prática de de-
terminado ato, ainda que não haja obrigação legal expressa para isso, o ato só será válido se a situação declarada
for verídica.
36
A celeuma entorno da relação entre conceitos jurídicos indeterminados e discricionariedade administrativa data
de meados do século XIX, quando Edmund Bernatzik, em 1886, defendeu a Teoria da Multivalência ou Duplicidade
que dizia existir na interpretação e aplicação dos conceitos jurídicos indeterminados a possibilidade de várias
interpretações discricionárias; e, Friedrich Tezner que, em 1888, advogou a Teoria da Unicidade, na qual os con-
ceitos jurídicos indeterminados somente apontam para uma solução correta, a qual deve ser encontrada por meio
da interpretação adequada.
37
DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Direito administrativo. 31. ed., rev., atual e ampl. Rio de Janeiro: Forense, 2018.
p. 297.
38
Importante assinalar que neoconstitucionalismo e pós-positivismo representam realidades distintas, muito em-
bora tenham pontos de contato. O primeiro termo é atribuído a Susanna Pozzolo que o utilizou pioneiramente em
1997 no XVIII Congresso Mundial de Filosofia Jurídica e Social, realizado em Buenos Aires. Segundo Pozzolo: “Si
bien es cierto que la tesis sobre la especificidad de la interpretación constitucional encuentra partidarios en diver-
sas disciplinas, en el ámbito de la filosofía del derecho viene defendida, en particular, por un grupo de iusfilósofos
que comparten un peculiar modo de acercarse ao derecho. He llamado a tal corriente de pensamiento neocons-
titucionalismo. Me refiero, en particular, a autores como Ronald Dworkin, Robert Alexy, Gustavo Zagrebelsky y,
sólo en parte, Carlos S. Nino” (POZZOLO, Susanna. Neoconstitucionalismo y especificidade de la interpretación.
Doxa – Cuadernos de Filosofia del Derecho, Alicante, v. 2, n. 21, 1998. p. 339).
372 Francisco Arlem de Queiroz Sousa

ontologicamente diferentes das regras; reabilitando a razão prática e a argumentação jurí-


dica; formando uma nova hermenêutica, especialmente para interpretar a constituição; e
desenvolvendo uma teoria dos direitos fundamentais edificada sobre a dignidade da pessoa
humana.39
No bojo dessas transformações, a entronização de princípios nas constituições al-
cançou os domínios do direito administrativo, passando o controle a ser realizado em con-
fronto com a economicidade, a moralidade, a eficiência, a proporcionalidade, dentre tantos
outros, fazendo emergir a noção de vinculação à juridicidade em substituição à legalidade
estrita,
Segundo a professora Germana de Oliveira Moraes,

a constitucionalização desses princípios da Administração Pública e dos princípios


gerais do Direito gerou para o Poder Judiciário a possibilidade de verificar além da
conformidade dos atos administrativos com a lei, ao exercer o controle de seus as-
pectos vinculados, à luz do princípio da legalidade, também aspectos não vinculados
desses atos, em decorrência dos demais princípios constitucionais da Administração
Pública [...].40

Di Pietro41 ressalta que com a constitucionalização dos princípios o conceito de


legalidade foi ampliado, passando a abranger além dos atos normativos, valores e princípios
(explícitos e implícitos) constitucionais, causando uma sensível redução do mérito adminis-
trativo, pois aquilo que antes era visto como insuscetível de controle judicial, agora se insere
na legalidade.
A mudança, continua Di Pietro,42 é que antes o juiz não se preocupava com os
limites da discricionariedade, mas hoje ele averigua se entre as diferentes opções válidas o
gestor adotou uma delas e não extrapolou a razoabilidade, a proporcionalidade ou desviou-se
da finalidade legal.
No entanto, o que se tem observado é um uso abusivo dos princípios pelo Judiciário,
que os tem utilizado para justificar qualquer decisão em qualquer circunstância, como se
fossem varinhas de condão capazes de transformar, em um passe de mágica, a dura desi-
gualdade brasileira em um jardim do Éden, com mero apelo retórico a princípios como o da
dignidade da pessoa humana e da isonomia.

39
BARROSO, Luís Roberto. Curso de direito constitucional contemporâneo. Op. cit., p. 520.
40
MORAES, Germana de Oliveira. Controle jurisdicional da administração pública. Op. cit., p. 37-48, p. 112.
41
DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Direito administrativo. Op. cit., p, 297.
42
DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Direito administrativo. Op. cit., p. 297-298.
Hércules, o gestor 373

Como bem articula Carlos Ari Sundfeld,43 “a ordem jurídica ampliou-se gigantesca-
mente, e passou a distribuir direitos de modo indeterminado e aberto. Ela não se limita, como
em algum passado, a atribuir e proteger direitos específicos; passou a conferir, a grupos e
pessoas, direitos em construção. Parte importante da ordem jurídica atual se dirige ao le-
gislador e ao administrador público e tenta antecipar seu trabalho na construção de direitos
– por meio de normas iniciais, de princípios”.
As arbitrariedades começam logo no batismo, pois todo doutrinador que dá vida a
um princípio, gestado de alguma palavra com mais de uma acepção no vernáculo, se sente
no direito de escolher o nome do recém-nascido. Com isso, mais um membro é registrado
na numerosa família dos princípios e estará apto para solucionar inúmeros casos concretos,
bastando referenciar a sua alcunha.
Marcelo Neves alerta para a panaceia que se criou com a invocação de princípios:
“Por um lado, a invocação aos princípios (morais e jurídicos) apresentava-se como panaceia
para solucionar todos os males da nossa prática jurídica e constitucional. Por outro, a retóri-
ca principialista servia ao afastamento de regras claras e ‘completas’, para encobrir decisões
orientadas à satisfação de interesses particularistas.” 44
O fetichismo pelos princípios é visto como algo bom e respeitar a lei se tornou ul-
trapassado. Com isso o juiz acaba tomando conta de um poder que não lhe foi dado e suas
convicções pessoais findam por prevalecer em detrimento da discricionariedade conferida
pela lei ao gestor.
Os princípios, em função de sua linguagem aberta, têm sido utilizados equivocada-
mente para manipular decisões de acordo com a necessidade ou interesses de cada caso
concreto. A febre principiológica, além de banalizar e vulnerabilizar a força dos princípios
constitucionais, em especial o da dignidade da pessoa humana, tem servido para substituir
o gestor pelo juiz.
Lênio Streck ao tratar da discricionariedade judicial esclarece que “se trata, sim, de
discutir – ou, na verdade, pôr em xeque – o grau de liberdade dado ao intérprete (juiz) em
face da legislação produzida democraticamente, com dependência fundamental da Consti-
tuição”.45
O princípio da dignidade humana, que pode estar em vários lugares ao mesmo tem-
po, ainda que antagônicos, acolhe também os direitos fundamentais de segunda geração,
tais como saúde, educação, moradia, lazer e previdência social, sendo que a aceitação de

43
SUNDFELD, Carlos Ari. Direito administrativo para céticos. op. cit., p. 217.
44
NEVES, Marcelo. Abuso de princípios no Supremo Tribunal Federal. Consultor Jurídico, out. 2012. Disponível em:
https://www.conjur.com.br/2012-out-27/observatorio-constitucional-abuso-principios-supremo-tribunal. Acesso
em: 21 ago. 2019.
45
STRECK, Lenio. Verdade e consenso: Op. cit., p. 49.
374 Francisco Arlem de Queiroz Sousa

que esses direitos previstos constitucionalmente têm eficácia imediata,46 devendo ser ga-
rantido pelos juízes em casos concretos, tem feito com que as escolhas administrativas
sejam tomadas pelo Judiciário.47
Mas competindo ao Poder Executivo, encarregado da função de administrar, a tarefa
de realizar escolhas trágicas, diante da impossibilidade de atender plenamente todas as pres-
tações sociais, não caberia ao Judiciário tomar-lhe o lugar, como se a única decisão correta
somente pudesse ser encontrada pelo juiz, estigmatizando os gestores como incapazes,
incompetentes ou corruptos.

5 O GESTOR HÉRCULES E A ÚNICA DECISÃO CORRETA

Como grande parte dos princípios tem fundamento na própria Constituição, uma das
consequências de sua introdução nos textos constitucionais foi a ampliação do controle ex-
terno sobre a gestão, fazendo com que os agentes públicos tenham medo de decidir e prefi-
ram soluções cartesianas, diante de tantos riscos e condicionantes aos quais estão sujeitos.
Com o agigantamento do Poder Judiciário, imiscuindo-se sobre searas de compe-
tência dos outros Poderes com esteio na febre principiológica que avançou sobre todos os

46
Gomes Canotilho critica a leitura enviesada feita no § 1º do art. 5º da Constituição brasileira ao proclamar a
aplicabilidade imediata das normas definidoras de direitos e garantias fundamentais: “O problema está não na con-
testação da bondade política e dogmática da vinculatividade imediata, mas sim no alargamento não sustentável
da força normativa directa das normas constitucionais a situações necessariamente carecedoras da interpositio
legislativa. É o que acontece, a nosso ver, com a crítica transferência do princípio da aplicabilidade imediata con-
sagrado no artigo 5º, LXXVII, 1º, da Constituição brasileira, a todos os direitos e garantias fundamentais de forma
a abranger indiscriminadamente os direitos sociais consagrados no Capítulo II.” (CANOTILHO, José Joaquim
Gomes. Constituição dirigente e vinculação do legislador. 2. ed. Coimbra: Coimbra, 2001. p. XVI).
47
Cite-se como exemplo a decisão proferida no ARE 639337 AgR/SP, da lavra do Ministro do Supremo Tribunal
Federal, Celso de Mello: “EMENTA: criança de até cinco anos de idade – atendimento em creche e em pré-escola
– sentença que obriga o município de São Paulo a matricular crianças em unidades de ensino infantil próximas
de sua residência ou do endereço de trabalho de seus responsáveis legais, sob pena de multa diária por criança
não atendida – legitimidade jurídica da utilização das “astreintes” contra o poder público – doutrina – jurispru-
dência – obrigação estatal de respeitar os direitos das crianças – educação infantil – direito assegurado pelo
próprio texto constitucional (cf, art. 208, iv, na redação dada pela EC n. 53/2006) – compreensão global do direito
constitucional à educação – dever jurídico cuja execução se impõe ao poder público, notadamente ao município
(cf, art. 211, § 2º) – legitimidade constitucional da intervenção do poder judiciário em caso de omissão estatal
na implementação de políticas públicas previstas na constituição – inocorrência de transgressão ao postulado da
separação de poderes – proteção judicial de direitos sociais, escassez de recursos e a questão das “escolhas
trágicas” – reserva do possível, mínimo existencial, dignidade da pessoa humana e vedação do retrocesso social
- pretendida exoneração do encargo constitucional por efeito de superveniência de nova realidade fática – questão
que sequer foi suscitada nas razões de recurso extraordinário – princípio “jura novit curia” – invocação em sede
de apelo extremo - impossibilidade – recurso de agravo improvido. Políticas públicas, omissão estatal injustificável
e intervenção concretizadora do poder judiciário em tema de educação infantil: possibilidade constitucional” (BRA-
SIL. Supremo Tribunal Federal. Agravo Regimental no Recurso Extraordinário 436.996-6 – São Paulo. 2ª Turma.
Agravante: Município de Santo André. Agravado: Ministério Público do Estado de São Paulo. Rel. Min. Celso de
Mello. Brasília. Diário da Justiça Eletrônico n. 177. Divulgação em: 14 set. 2011. Publicação: 15 set. 2011). 
Hércules, o gestor 375

campos do direito, está havendo uma certa paralisia da máquina administrativa por conta da
retração do gestor público que passou a ter medo de usar da discricionariedade conferida a
ele por lei.
A política do medo finca raízes cada vez mais profundas no solo da administra-
ção pública, transformando os gestores em meros robôs aplicadores da lei, quando não se
omitem para protegerem seu nome e seu patrimônio, perante a possibilidade de tomarem
decisões de boa-fé e mesmo assim virem a ser condenados ao pagamento de multas, dentre
outras sanções.
Cada vez mais acuado o gestor público se vê reduzido a um objeto de direito, tal qual
uma cadeira, pois tolheram-lhe a liberdade criativa. Seu papel é cumprir, ainda que não sejam
a melhor opção, recomendações da controladoria, do ministério público, as decisões do
judiciário e do tribunal de contas, pois a inobservância, ainda que de meras recomendações,
será punida gravemente com processos administrativos disciplinares, sanções de improbi-
dade administrativa e condenações pesadas.
O exercício da competência discricionária então passou a configurar hards cases em
face de tantos fatores que devem ser levados em conta pelo agente público – proporcionali-
dade em suas três vertentes (adequação, necessidade e proporcionalidade em sentido estri-
to), melhor interesse público, reserva do possível, prevaricação, desvio de finalidade, abuso
de poder, improbidade, consequências práticas da decisão48 - estando sempre sujeito a que
um juiz, com base em algum princípio abstrato condene seu agir e lhe impute uma multa a
ser paga com a remuneração auferida pelo exercício do cargo, tirando do próprio sustento
e de sua família.
Com isso, cada vez mais se impõe que a administração pública seja gerida por seres
dotados de poderes sobrenaturais, os quais sejam capazes de encontrar a única solução
correta ou não, pois, como o próprio Dworkin assevera, a tese da única solução correta
também é uma metáfora, mas pelo menos encontrar a decisão que agrade ao juiz e consiga
satisfazer sua discricionariedade. Em suma: é necessário que Hércules peça exoneração do
cargo de juiz e que tome posse como gestor público em algum ministério.
Somente Hércules com sua capacidade, sabedoria, paciência e sagacidade sobre-
-humanas conseguirá desenvolver teorias sobre aquilo que a intenção legislativa e o “carna-
val” de princípios jurídicos requerem, reduzindo a zero a discricionariedade administrativa em
face do seu poder de encontrar a única resposta correta.

48
Conferir o novo art. 20 da Lei de Introdução as Normas do Direito Brasileiro:  “Nas esferas administrativa,
controladora e judicial, não se decidirá com base em valores jurídicos abstratos sem que sejam consideradas
as consequências práticas da decisão” (BRASIL. Lei n. 13.655, de 25 de abril de 2018. Inclui no Decreto-Lei n.
4.657, de 4 de setembro de 1942 (Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro), disposições sobre segu-
rança jurídica e eficiência na criação e na aplicação do direito público. Brasília: Presidência da República, 2018.
Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2015-2018/2018/Lei/L13655.htm#art1. Acesso em: 19
jul. 2019.
376 Francisco Arlem de Queiroz Sousa

O gestor Hércules não deixará que sua vontade subjetiva influencie no processo
decisório e adotará soluções válidas somente com base em tudo que se apurou no procedi-
mento, ou seja, suas conclusões levam sempre a um resultado que, ao fim e ao cabo, seria
vinculado, pois não qualquer outra melhor alternativa.
Hércules sabe que os recursos são finitos e as necessidades infinitas, mesmo assim
conseguirá suprir todas as demandas por direitos sociais, pois como ele é dotado de astúcia
e sagacidade divinas terá sabedoria contábil suficiente para elaborar uma peça orçamentária
que atenda a reserva do possível e do impossível.
Ademais, Hércules, diferentemente de seus pares, não tem medo do controle juris-
dicional (nem do Ministério Público, é até bem entrosado com seus procuradores), pois ele
enfrenta os fatos à luz de todos os princípios, gerais do direito e constitucionais, explícitos
ou implícitos, bem como daqueles que porventura vierem a ser criados após sua escolha. Ele
sabe que sua discricionariedade sempre acerta em cheio no alvo.
O multicitado herói desce à fundo em cada questão posta a sua análise, avaliando
previamente as consequências de suas escolhas, com base em uma prognose infalível que
não deixa margem para qualquer questionamento acerca proporcionalidade, razoabilidade,
eficiência, efetividade, eficácia, economicidade, moralidade, enfim, juridicidade de suas de-
cisões, democráticas, diga-se de passagem, pois Hércules sempre está atento ao que dizem
as ruas, ou melhor, aos consensos, aos paradigmas e às compreensões que os membros
da comunidade política partilham.

6 CONSIDERAÇÕES FINAIS

O constitucionalismo moderno tem gerado excessos por parte do Poder Judiciário,


muitos com amparo nas ideias de Canotilho e sua constituição dirigente que impõe e direcio-
na totalmente a ação dos agentes públicos.
Contudo, atualmente essas ideias foram abandonadas pelo seu próprio mentor, o
qual reconhece a falência dos códigos dirigentes que se arrogam “o papel de alavanca de
Arquimedes” com força para transformar o mundo, sem perceber que existem outros mun-
dos.49
Esse é um tema muito melindroso também por outro viés. Qualquer um que se ponha
a criticar os princípios constitucionais e defenda a discricionariedade administrativa será vis-
to como “advogado do diabo”, alguém que compactua com a arbitrariedade, com o desvio
de finalidade, com o patrimonialismo, o nepotismo, o clientelismo, o fisiologismo, o mando-
nismo, dentre outros quejandos.

49
CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Constituição dirigente e vinculação do legislador. Op. cit., p. XI.
Hércules, o gestor 377

O fato é que de Kelsen a Dworkin, ou seja, do positivismo normativo para o pós-po-


sitivismo, a discricionariedade administrativa se retraiu, enquanto a judicial se expandiu, com
a substituição do administrador público pelo juiz no exercício de sua atividade-fim.
O controle judicial tem produzido corpos dóceis50 e provocado o “apagão das cane-
tas”. Até atos puramente administrativos, que outrora, seria inimaginável a intromissão judi-
cial, hoje são questionados em razão do princípio da inafastabilidade da jurisdição, previsto
no do art. 5º, XXXV da Constituição,51 também chamado de princípio do direito de ação, por
meio do qual tudo pode ser levado à apreciação judicial, mitigando o princípio da separação
dos poderes.52
Decorrência disso, anota Emerson Gabardo,53 é que o “princípio da legalidade, que
sempre foi tomado como fundamento da idéia (sic) típica de Estado de Direito, vem sendo
contestado como critério de identificação do Direito válido. A justiça está deixando de ser um
ideal consensual”.
Esquecem-se que o fim vincula o administrador e o fim do ato a ser dado é dado
sempre por uma norma que precisa ser interpretada e quem primeiro aplica a norma e por
consequência a interpreta é o administrador, daí que a distinção entre discricionariedade ad-
ministrativa e judicial não é tão pacífica como se pode imaginar. Ademais, essa interpretação

50
A expressão é de Michel Foucault ao narrar que o poder antes era personificado na figura do soberano, mas com a
modernidade ele se dissemina nas instituições sob a forma de disciplina, docilizando lenta e paulatinamente os se-
res humanos até que tudo pareça estar como sempre esteve: normal. “É dócil um corpo que pode ser submetido,
que pode ser utilizado, que pode ser transformado e aperfeiçoado” (FOUCAULT, Michel. Vigiar e punir: nascimento
da prisão. Trad. Raquel Ramalhete. Petrópolis: Vozes, 1987. p. 163).
51
Notório desse fato são as nomeações de ministros de estado, típico ato político-discricionário do presidente da
República, que têm sido impedidos pelo Supremo Tribunal Federal, como ocorreu com o ex-presidente Luís Inácio
Lula da Silva e de Moreira Franco, que nomeados pelos ex-presidentes Dilma Rousseff e Michel Temer, respecti-
vamente, tiveram suas nomeação obstadas por liminares.
52
Desde Rui Barbosa que se conhece (Habeas Corpus 300, impetrado por Ruy Barbosa em 1892 em defesa do
almirante Eduardo Wandenkolk), entre nós, a political question doctrine do Estados Unidos, a qual compartilha do
mesmo berço do controle de constitucionalidade das normas, proferidas na célebre decisão do Chief de Justiça
Jonh Marshall (Marbury x Madison) de 1803. Por essa doutrina certas matérias são de cunho político e discri-
cionário do Poder Executivo e não pode o Judiciário nelas se imiscuir. Com a judicialização da política, fenômeno
mundial, mas que entre nós tem se destacado com maior vigor) essa doutrina tem sofrido sérios abalos à ponto de
praticamente inexistir seara imune à competência judicial. Na França são denominados atos de governo para fazer
referência a autolimitação que o próprio Conselho de Estado se impôs em apreciar atos do Executivo. A decisão
pioneira ocorreu em 1822, quando o baqueiro Laffitte resolveu cobrar do governo o valor aproximado de 670.000
(seiscentos e setenta mil) francos referente a uma verba não paga pela Princesa Borghese. Na decisão o Conselho
de Estado assentou: “Considérant que la réclamation du sieur B. tient à une question politique, dont la décision
appartient exclusivement au gouvernement”. FRANÇA. Revue générale du droit. Conseil d’Etat, ORD, 1 mai 1822,
Laffitte, requête numéro 5363, Rec. 1821-1825 p. 202. Disponível em: https://www.revuegeneraledudroit.eu/blog/
decisions/conseil-detat-ord-1-mai-1822-laffitte-requete-numero-5363-rec-1821-1825-p-202/. Acesso em: 25
jul. 2019.
53
GABARDO, Emerson. O jardim e a praça para além do bem e do mal. 2009. 409p. Tese (Doutorado em Direito do
Estado) – Setor de Ciências Jurídicas, Universidade Federal do Paraná, Curitiba, 2009. p. 3.
378 Francisco Arlem de Queiroz Sousa

pode sempre deixar afinal de contas um resto teoreticamente ininterpretável tanto para um
como para o outro.54
O próprio Kelsen, citado por Queiró, escreve que “para a construção jurídica não
constitui qualquer diferença relevante saber se o poder discricionário compete a um órgão
jurisdicional ou a um órgão administrativo. Em ambas as formas do executivo o poder discri-
cionário é o mesmo; são possíveis todas as espécies de poder discricionário”.55
Então a afirmação peremptória de Celso Antônio Bandeira de Mello,56 citando Gon-
çalves Pereira, de que “[...] Reduzir a discricionariedade à simples formulação de um juízo é
afinal negar o próprio poder discricionário, reconduzir todo o poder à vinculação e pôr-se em
contradição manifesta com o Direito Positivo” é muito atual.
Acuado, o gestor público se esconde e tem medo de usar o pouco de discricionarie-
dade conferida pela lei que ainda não foi restringida à zero pela miríade de princípios que lhe
cercam. Seu número de CPF57está sob vigilância constante e ele precisa protegê-lo, por isso
os bons profissionais estão fugindo do serviço público com receio de serem responsabiliza-
dos, mesmo agindo de boa-fé.
Urgentemente, Hércules precisa ser empossado para dignificar uma classe de ser-
vidores que está cada vez mais refém do medo e da insegurança jurídica, envoltos em uma
crise de legitimidade democrática.
Em que pese todo o apelo retórico que a metáfora do juiz, e agora do gestor, Hércules
possa ter, é necessário reconhecer que não existem deuses (nem demônios) que possam
auxiliar na escolha da melhor ou da única decisão correta.
Tudo aquilo que deve e precisa ser feito está ao alcance de pessoas comuns, basta
bom senso, humildade, respeito e diálogo constante entre os atores estatais e as instituições
democráticas para que se consiga cumprir a árdua missão de promover a justiça, diminuir
as desigualdades sociais, formar cidadãos e garantir o bem de todos.

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2015.

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54
QUEIRÓ, Afonso Rodrigues. A teoria do “desvio de poder” em direito administrativo. Op. cit.
55
QUEIRÓ, Afonso Rodrigues. A teoria do “desvio de poder” em direito administrativo. Op. cit., p. 47.
56
MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Curso de direito administrativo. 30. ed. São Paulo: Malheiros, 2013. p. 988.
57
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Hércules, o gestor 379

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SEGUNDO LUGAR

O lobby como facilitador da decisão pública


satisfatória

Gustavo Martinelli
Mestrando em Direito (PUCPR)
Membro do Núcleo de Pesquisa em Políticas Públicas e
Desenvolvimento Humano (PUCPR)
Advogado

SUMÁRIO: 1 Introdução; 2 A racionalidade limitada dos agentes econômicos; 3 Lobby enquanto


provedor e distribuidor de informações: a prática de lobby no contexto brasileiro; 4 Os limites do lobby
e da colaboração com a escolha satisfatória; 5 Considerações finais; Referências.

1 INTRODUÇÃO

Objetiva-se demonstrar como a presença de lobby lícito e regulado pode contribuir


para escolhas políticas mais satisfatórias ao interesse público. Nesse sentido, conceitua-se
lobby como a comunicação e a defesa de interesses de entes privados em face dos pode-
res públicos constituídos e legitimados para tomar decisões.1 Este contato é vantajoso ao
lobista na medida em que insere na agenda pública uma preocupação relativa ao interesse
defendido. Igualmente, sustenta-se que esta aproximação interessa ao agente político, uma
vez que os lobbies poderão fornecer uma elevada quantidade de informações anteriormente
desconhecidas pelo decisor.
Tendo em vista que as partes envolvidas na relação estão sujeitas a falhas de com-
portamentos, incapazes de calcular todas as variáveis implicáveis e desprovidos das infor-
mações relevantes, é provável que más escolhas públicas sejam feitas. Nesse cenário, o
primeiro tópico do artigo expõe a teoria da racionalidade limitada dos agentes econômicos
desenvolvida por Herbert Simon, em oposição à ideia da racionalidade substantiva elaborada

1
Trata-se de lobby privado, ou lobby em sentido estrito. Diversamente, ao trabalhar com a ideia de lobby em sentido
amplo, Andréa Cristina de Oliveira identifica quatro espécies, classificando-os em lobby público, lobby classista,
lobby institucional e, enfim, lobby privado, conforme os agentes ativos envolvidos. Nesse sentido: OLIVEIRA,
Andréa Cristina de Jesus. Lobby e representação de interesses: lobistas e seu impacto sobre a representação
de interesses no Brasil. 2004. 296p. Tese (Doutorado) – Instituto de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade
Estadual de Campinas, Campinas, 2004.
382 Gustavo Martinelli

pela teoria econômica ortodoxa. Defende-se que, sendo impossível ao agente econômico
atingir o comportamento maximizador, espera-se que o decisor se aproxime da escolha sa-
tisfatória conforme recebe informações relevantes.
A segunda seção apresenta a atividade de lobby enquanto um procedimento de co-
lheita e distribuição de informação aos tomadores de decisão, descrevendo-se sucintamente
as principais estratégias adotadas no contexto brasileiro para influenciar as instituições em
favor de determinados segmentos sociais. A moldura conceitual e metodológica desenhada
exclui a consideração de comportamentos ilícitos, bem como se restringe à decisão no
ambiente de defesa do interesse público.
Adiante, o terceiro capítulo estuda os limites e o impacto do lobby sobre a formação
da decisão política. Discorre-se sobre outros fatores capazes de influenciar igualmente na
tomada de decisão, tais como o perfil do decisor, o contexto socioeconômico em que a deci-
são é feita, bem como o tipo da decisão na agenda política. Em complemento, demonstra-se,
através de um modelo estatístico, como o lobby pode servir para notificar o policy maker
acerca da opinião popular sobre determinada decisão, contribuindo para fortalecer o liame
entre o representante político e a base eleitoral.
Por fim, valendo-se de método dedutivo a partir de levantamento bibliográfico, con-
clui-se que a participação de lobbies no contexto da racionalidade limitada dos agentes
econômicos contribui para aprimorar a qualidade das decisões tomadas e para desenhar
alternativas mais satisfatórias para as questões objeto de decisão.

2 A RACIONALIDADE LIMITADA DOS AGENTES


ECONÔMICOS

Um dos pilares da teoria econômica clássica é a noção de racionalidade ilimitada ou


substantiva. Tal qualidade econômica presume a existência de indivíduos oniscientes, com
capacidade irrestrita de fazer sempre a melhor escolha para maximizar a utilidade marginal
de seus interesses. Sobretudo na microeconomia, cujo objeto central repousa no compor-
tamento individual dos agentes econômicos, a racionalidade ilimitada foi internalizada como
verdadeira matéria de princípio2. Tradicionalmente, a economia procurou modelar matemati-
camente o comportamento dos agentes econômicos (empresas, investidores, consumidores
e decisores públicos) através de pressupostos básicos e da generalização dos resultados,

2
STEINGRABER, Ronivaldo; FERNANDEZ, Ramon Garcia. A racionalidade limitada de Herbert Simon na microeco-
nomia. Revista da Sociedade Brasileira de Economia Política, n. 34, p. 123-162, fev. 2013. p. 03.
O lobby como facilitador da decisão pública satisfatória 383

assumindo um agente com comportamento padrão idealizado, sem falhas ou imperfeições,


denominado “homo economicus”.3, 4
Nesse sentido, a escolha da racionalidade substantiva seria aquela que preferisse
mais a menos, escolhesse a mais alta taxa de retorno, minimizasse custos unitários e, por
fim, buscasse a satisfação de seu próprio interesse, desconsiderando-se o bem-estar dos
demais. Em uma palavra, a escolha ideal seria aquela que buscasse maximizar a utilidade
marginal dentro das limitações orçamentárias ou de produção. Tal opção seria dada por uma
informação perfeita, completa e adquirida sem custos.5 Em termos econômicos, portanto, o
comportamento maximizador é condicionado pelo homo economicus.
O postulado da racionalidade passou a definir a chamada “economia ortodoxa”, na
medida em que atua como hipótese básica ao modelo Arrow-Debreu de equilíbrio no sistema
econômico. Segundo essa doutrina, se a economia se equilibra autonomamente, dispensan-
do-se interferências exógenas ao mercado, é porque os agentes se comportam de modo a
maximizar as suas vontades constantemente. Nesses moldes, a racionalidade substantiva é
tomada como algo trivial, parte do conjunto de axiomas da ciência econômica.6
Ainda, da racionalidade ilimitada implica que todas as contingências futuras podem
ser levantadas previamente e com segurança. A justificativa para a antecipação de eventos
futuros leva em consideração duas condições de teoria econômica clássica: primeiro, assu-
me-se que o sistema econômico é ergódico, ou seja, invariante, apesar de dinâmico, o que
inviabiliza a existência de surpresas futuras; segundo, presume-se uma identidade entre o
modelo apresentado acima e o mundo real, no qual “o suposto da racionalidade substantiva
presta-se apenas à prova lógica, mas não empírica”.7
Na concretude da vida, contudo, os indivíduos não se comportam como o homo
economicus. No mais das vezes, fazem escolhas ruins e contrárias a seus próprios interes-
ses, derivadas de previsões falhas e parciais, quando não sustentadas puramente em des-
vios comportamentais intuitivos e automáticos, muito menos racionais do que a economia
ortodoxa fazia crer.8

3
STEINGRABER, Ronivaldo; FERNANDEZ, Ramon Garcia. A racionalidade limitada de Herbert Simon na microeco-
nomia. Op. cit., p. 03.
4
Nessa construção ideal, o homem econômico é aquele que pensa e decide infalivelmente bem, optando pela
melhor escolha após ter acessado a completude das informações disponíveis, sopesado todas as alternativas
viáveis e planejado todas as contingências futuras. É, portanto, um retrato de um sujeito capaz de “pensar como
Albert Einstein, armazenar tanta memória quanto o Big Blue da IBM e ter a força de vontade de Mahatma Gandhi”,
cf. THALER, Richard H.; SUSTEIN, Cass R. Nudge: o empurrão para a escolha certa – aprimore suas decisões
sobre saúde, riqueza e felicidade. Rio de Janeiro: Elsevier, 2009. p. 08.
5
BLAUG, Mark. Metodologia e economia ou como os economistas explicam. São Paulo: Edusp, 1999. p. 315.
6
STEINGRABER, Ronivaldo; FERNANDEZ, Ramon Garcia. A racionalidade limitada de Herbert Simon na microeco-
nomia. Op. cit., p. 04.
7
MELO, Tatiana Massoroli; FUCIDJI, José Ricardo. Racionalidade limitada e tomada de decisão em sistemas com-
plexos. Revista de economia política, v. 36, n. 3 (144), p. 622-645, jul./set. 2016. p. 624.
8
THALER, Richard H.; SUSTEIN, Cass R. Nudge: Op. cit., p. 11.
384 Gustavo Martinelli

Tendo isso em consideração, Herbert Simon introduziu, em 1957, o conceito de


racionalidade limitada dos decisores públicos (policy makers). Para o economista de Chica-
go, a racionalidade dos agentes econômicos – notadamente dos decisores públicos – seria
sempre limitada por problemas como informação incompleta ou imperfeita, urgência para
a tomada de decisão, além de elementos biológicos, psicológicos e sociais alheios à preo-
cupação econômica.9 O argumento basilar da racionalidade limitada, tal como proposto por
Simon, foi sedimentado a partir da premissa de dinâmica do sistema econômico, advogan-
do-se que não apenas os agentes econômicos agem de forma variável ao longo do tempo,
mas também o próprio ambiente em que atuam se modifica. Assim, em oposição à ergo-
dicidade da teoria ortodoxa, o sistema econômico seria lotado de incertezas, fragilizando a
capacidade de predição dos eventos futuros.10
Além dessa incerteza relativa ao ambiente, Herbert Simon assume que os decision
makers não possuem a capacidade de coletar e processar todas as informações relevantes
para a tomada decisão. Mesmo se se retirasse o axioma da incerteza, numa situação hipoté-
tica de perfeita informação, a limitação dos agentes para tratar o conjunto das informações
frustra a busca de resultados maximizadores.11
A teoria da racionalidade limitada, portanto, advoga por uma limitação quanto a pos-
sibilidade de compreensão objetiva do cenário econômico, dotado de incerteza e dinamicida-
de, bem como pela limitação cognitiva dos agentes econômicos, os quais não têm acesso a
todas as informações disponíveis, tampouco são capazes de sopesar idealmente o conjunto
de alternativas ofertadas para determinada escolha.
O impacto da crítica desenvolvida pela racionalidade limitada não está somente na
desconstrução do homem econômico, mas no produto da tomada de decisão realizada.
Inexistindo a possibilidade de escolher conforme o comportamento maximizador – o qual
busca a máxima utilidade marginal – o decisor fará sempre uma “escolha satisfatória”, ou
seja, uma aproximação satisfatória dos resultados. O termo originalmente utilizado por Her-
bert Simon para designar essa escolha é satisface. O neologismo considera que o agente
público, satisfaz alguns critérios da escolha ideal, mas sacrifica outros, na medida em que
não tem sagacidade bastante para fazê-la. Desloca-se a ideia de maximização para o con-
ceito de satisface.12

9
SOUZA, Celina. Políticas públicas: uma revisão de literatura. Sociologias, Porto Alegre, ano 8, n. 16, p. 20-45, jul./
dez. 2016. p. 23-24.
10
MELO, Tatiana Massoroli; FUCIDJI, José Ricardo. Racionalidade limitada e tomada de decisão em sistemas com-
plexos. Op. cit., p. 624.
11
MELO, Tatiana Massoroli; FUCIDJI, José Ricardo. Op. cit., p. 629.
12
OLIVEIRA, Kamila Pagel de Oliveira; DE PAULA, Ana Paula Paes. Herbert Simon e os limites do critério de eficiência
na nova administração pública. Cadernos de gestão pública e cidadania, São Paulo, v. 19, n. 64, jan./jul., 2014.
p. 118.
O lobby como facilitador da decisão pública satisfatória 385

A esse agente econômico falível e limitado, convivente na facticidade de um am-


biente extremamente incerto e dinâmico, e ainda provido de informações incompletas, im-
perfeitas e parciais, Herbert Simon chamou de homem administrativo (administrative man).
Enquanto o homem econômico da teoria clássica maximiza, selecionando sempre a melhor
alternativa entre todas disponíveis, o homem administrativo contemporiza – tradução de
satisfaces na edição brasileira – optando por uma escolha satisfatória ou boa o suficiente. O
homem econômico trabalha muito bem em um mundo infinitamente complexo. Já “o homem
administrativo reconhece, contudo, que o mundo por ele percebido é apenas um modelo
drasticamente simplificado do agitado e confuso mundo real”.13
Defende-se a inviabilidade do comportamento maximizador pela impossibilidade
lógica do agente avaliar todas as alternativas disponíveis. Assim, o homem administrativo se
resigna a eliminar as cogitações incalculáveis no momento da escolha e realiza a opção to-
mando em consideração apenas aqueles fatores que julga mais relevantes e fundamentais.14
Importa destacar, contudo, que a racionalidade limitada não se confunde com a irra-
cionalidade absoluta, ou com atitudes econômicas aleatórias e desvairadas. Pelo contrário,
o comportamento administrativo de Simon se coloca num espectro em que há intencio-
nalidade de ação e escolha, bem como cálculos provisórios dos resultados esperados no
momento da decisão. Diferencia-se da racionalidade substantiva na medida em que encontra
fronteiras intransponíveis, mas permanece enquanto racionalidade relativa ao conjunto de
informações fornecidas.
Nessa esteira, Simon descreve alguns mecanismos comportamentais, presentes
nos seres humanos, que demonstram o modelo da racionalidade relativa. O primeiro deles
é a capacidade de concentração dos indivíduos nos problemas que demandam atenção ur-
gente.15 O segundo mecanismo é a potencialidade humana de produzir alternativas de ação,
aprimorando ou modificando aquelas já existentes. O mais importante dos mecanismos, em
terceiro lugar, é a capacidade humana de adquirir fatos e inferir a partir deles. A essa capaci-
dade, Simon chama de escolha logicamente consistente: uma escolha será racional quando
for consistente com as informações disponíveis no momento da tomada de decisão.16
O comportamento manterá sua característica racional apesar de uma ressalva ne-
cessária: a interpretação das informações disponíveis ao agente é dada a partir de critérios

13
SIMON, Herbert A. Comportamento administrativo: estudo dos processos decisórios nas organizações adminis-
trativas. 2. ed. Rio de Janeiro: Fundação Getúlio Vargas, 1970. p. XXIV.
14
SIMON, Herbert A. Comportamento administrativo: Op. cit., p. XXV.
15
Thaler e Sustein criticam esse mecanismo ao apresentarem aquilo que denominam de comportamento dinamica-
mente inconsistente. “Podemos ver a inconsistência dinâmica em várias situações. Nas manhãs de sábado, as
pessoas podem dizer quer preferem fazer exercícios a assistir televisão, mas quando chega a tarde, elas estão no
sofá, em casa, assistindo ao jogo de futebol” cf. THALER, Richard H.; SUSTEIN, Cass R. Nudge: Op. cit., p. 44.
16
MELO, Tatiana Massoroli; FUCIDJI, José Ricardo. Racionalidade limitada e tomada de decisão em sistemas com-
plexos. Op. cit., p. 625.
386 Gustavo Martinelli

subjetivos, como os interesses particulares perseguidos e a percepção que o indivíduo tem


acerca do ambiente em que está inserido. No entanto, como a percepção do cenário depen-
de igualmente das informações ofertadas, “um conjunto de informações completamente
deturpadas pode gerar um comportamento racional, desde que as ações de um grupo de
indivíduos sejam amparadas por estas informações”.17 Nota-se que a qualidade dos dados
ofertados importa tanto quanto a sua quantidade no momento da tomada de decisão.
Assim, o agente econômico ainda busca a escolha mais satisfatória do ponto de
vista da utilidade subjetiva, porém, impossibilitado de eleger a alternativa objetivamente mais
eficiente, opta pela alternativa possivelmente mais eficiente. Trata-se de uma eficiência rela-
tiva ao conteúdo da racionalidade.18
Percebe-se que a quantidade e a qualidade das informações utilizadas pelo agente
econômico são fundamentais na escolha que potencialmente melhor atinja a utilidade satis-
fatória. O revés, porém, é que as informações são dispersas, onerosas e incorretas. Com
efeito, em tempos das tecnologias da informação e comunicação (TICs), os dados deixam
de ser escassos, mas a dispersão e o ruído informacional podem conduzir a uma incoerên-
cia na decisão. Se avaliar o conjunto de pesquisas já esbarra nas limitações do tomador de
decisões, produzir novas informações é tarefa hercúlea. É possível, no entanto, delegar a
tarefa para terceiros que não participam da escolha final, não obstante tenham interesse nela.

3 LOBBY ENQUANTO PROVEDOR E DISTRIBUIDOR DE IN-


FORMAÇÕES: A PRÁTICA DE LOBBY NO CONTEXTO
BRASILEIRO

A organização da sociedade civil para a persecução de vantagens específicas e rei-


vindicação de interesses perante os poderes constituídos é prática legítima em uma demo-
cracia. Sobretudo no regime democrático contemporâneo, o exercício da soberania popular
ultrapassa o sufrágio universal e coloca em crise o sistema representativo, exigindo-se a par-
ticipação direta da população nas decisões políticas. Nesse cenário, o termo “democracia
direta”, foi cunhado para designar a democracia real – não apenas formal – na qual os sujei-
tos e agremiações operantes na sociedade têm a potencialidade de falarem por si próprios.19
Não que o novo substitua necessariamente o velho. A formação de grupos de inte-
resse pode ocorrer pela constituição de partidos políticos com ideais sólidos e reivindicações
específicas, como de fato se passa desde a conquista do direito ativo de voto, mas também

17
MELO, Tatiana Massoroli; FUCIDJI, José Ricardo. Racionalidade limitada e tomada de decisão em sistemas com-
plexos. Op. cit., p. 625.
18
OLIVEIRA, Kamila Pagel de Oliveira; DE PAULA, Ana Paula Paes. Herbert Simon e os limites do critério de eficiência
na nova administração pública. Op. cit.
19
COSTA, Pietro. Poucos, muitos, todos: lições de história da democracia. Curitiba: Editora UFPR, 2012. p. 300.
O lobby como facilitador da decisão pública satisfatória 387

através de movimentos sociais, confederações sindicais e empresariais e associações civis


com propósitos sociais. De fato, há uma pluralidade de formas e estratégias de mobilização
social na defesa de interesses específicos.20
Os representantes de grupos de interesse fornecem um importante caminho de co-
municação entre o Estado e a sociedade civil, sendo muitas vezes responsáveis por levar de-
mandas relevantes de determinado estrato social ao conhecimento das autoridades públicas.
Ocupam, portanto, um papel de mediadores entre interesses privados e aqueles mais amplos
da sociedade. Nesse sentido, os grupos de interesse possibilitam um exercício efetivo da
cidadania na medida em que buscam a participação popular de maneira mais incisiva que a
ação individual.21
Evidentemente, existem inúmeras formas de organização capazes de influenciar em
maior ou menor grau a tomada de decisão e atingir a consecução de determinados fins. Ape-
sar de não haver consenso nas definições, é ilustrativa a divisão entre (i) grupos de interesse,
(ii) grupos de pressão, e (iii) lobby, classificados a partir da sofisticação dos elementos
organizativos, embora sejam usualmente tratados como sinônimos.22
Um grupo de interesse pode ser identificado pela associação de indivíduos com base
em um ou mais interesses ou preocupações compartilhados e direcionados para influenciar
políticas públicas a seu favor, ou apresentar resistências e reivindicações contra grupos opo-
sitores.23 Em que pese seja uma definição bastante ampla, isso não significa que todo grupo
social será um grupo de interesse, na medida que organizações sociais podem ter como
vínculo características pessoais, mas não interesses específicos.24
O grupo de interesse pode rapidamente se transformar em um grupo de pressão
quando passar a adotar estratégias mais incisivas, investindo e instrumentalizando recursos
de poder para determinada pretensão. Diferem-se dos grupos de interesse, portanto, pelo
exercício de uma pressão instrumentalizada para alterar políticas públicas, inclusive a partir
do financiamento desse interesse perante organismos públicos.25 Grupos de pressão contri-
buem para um sistema político arejado e aberto visto que muitos atores passam a interagir
entre si – por oposição ou convergência – instigando a variância e inconstância do poder no
jogo político.

20
GOZETTO, Andréa Cristina Oliveira. Movimentos sociais e grupos de pressão: duas formas de ação coletiva.
Cenários da Comunicação, São Paulo, v. 7, n. 1, p. 57-65, 2008. p. 61.
21
GREENWOOD, Justin; THOMAS, Clive S. Regulating lobbying in the western world. Parliamentary affairs: a journal
of representative politics, v. 51, n. 4, p. 487-499, 1998. p. 491. Disponível em: https://dialnet.unirioja.es/ejem-
plar/68152. Acesso em: 30 ago. 2019.
22
BLANCHET, Luiz Alberto; SANTANO, Ana Claudia; NETTO, Fernando Gama de Miranda. O tabu da relação do lobby
e políticas públicas no Brasil. Revista de Direito Econômico e Socioambiental, v. 7, p. 49-72, 2016. p. 51.
23
BERRY, Jeffrey M. The interest group society. Boston: Scott Foresman, 1989. p. 17.
24
BLANCHET, Luiz Alberto; SANTANO, Ana Claudia; NETTO, Fernando Gama de Miranda. O tabu da relação do lobby
e políticas públicas no Brasil. Op. cit., p. 52.
25
GOZETTO, Andréa Cristina Oliveira. Movimentos sociais e grupos de pressão: Op. cit., p. 61.
388 Gustavo Martinelli

Por fim, o que diferencia o lobby das demais formas de influência seria a atividade
de conectar diretamente os interesses organizados e os policy makers. Por mais que grupos
de pressão invistam recursos para alterar políticas públicas, não estão, de fato, dentro do
poder.26 Por outro lado, tem-se um lobby a partir do momento em que a prática coletiva
imprime influência direta na tomada de decisões governamentais. Em outras palavras, lobby
(ou lobbying) é a atividade de grupos ou indivíduos na tentativa de influenciar as decisões
tomadas nas esferas institucionais em prol de interesses específicos.27
Para Eduardo Patri,28 lobby é a atividade direcionada a influenciar a escolha política.
Diferencia-se dos movimentos sociais pela abordagem institucional mais ativa, com o conta-
to direito diante das instituições. Igualmente, separa-se do partido político por não participar,
ele próprio, da tomada de decisão. Assim, vislumbra-se o lobby como forma de ação política
importante na sociedade democrática, na medida em que identifica projetos políticos confli-
tantes e garante a tomada de decisão com maior grau de informação pelos agentes públicos.
Trata-se, portanto, de uma visão inicial da presença de grupos de pressão, especificamente
do lobby, como elemento enriquecedor das disputas políticas.
Departamentos de assuntos corporativos e lobistas não apenas garantem a manu-
tenção permanente da representatividade do grupo no jogo político, como cuidam de seus
interesses, antecipando problemas e detectando oportunidades que não teriam caso não
houvesse uma relação direta com os tomadores de decisão. Em razão disso, lobistas muitas
vezes fornecem auxílios importantes aos governos, apresentando ideias e iniciativas para
problemas que o Estado e o setor interessado estejam enfrentando.29 A colheita e oferta
de informação ao agente político fica bastante clara quando se entende a prática efetiva da
atividade.
Com efeito, o impacto e a influência de determinado lobby envolvem atividades de
informação e comunicação. Em primeiro lugar, para identificar riscos e oportunidades lícitas,
os lobistas costumam ter consigo um atento monitoramento legislativo. Toma-se em con-
sideração todos os projetos e proposições em trâmite no Poder Legislativo, tanto em nível
nacional quando infranacional, destacando-se aqueles cujos interesses sejam convergentes
ao grupo ali representado. A avaliação não se limita ao mérito dos atos normativos, mas se

26
BLANCHET, Luiz Alberto; SANTANO, Ana Claudia; NETTO, Fernando Gama de Miranda. O tabu da relação do lobby
e políticas públicas no Brasil. Op. cit., p. 53.
27
MAICAN, Ovidiu-Horia. Legal regime of lobby activities: a comparative view. Juridical Tribune, v. 4, n. 2, p. 105-
118, dez. 2014. p. 104.
28
PATRI, Eduardo Carlos Ricardo da. Relações governamentais, lobby e advocacy no contexto de public affairs.
Revista brasileira de comunicação organizacional e relações públicas (Organicom), São Paulo, v. 8, n. 14, 2011.
p. 141.
29
OLIVEIRA, Andréa Cristina de Jesus. O lobbying institucional no Brasil: canal de comunicação entre Estado e
sociedade civil? Cenários da comunicação, São Paulo, v. 6, n. 1, p. 57-64, 2007. p. 60.
O lobby como facilitador da decisão pública satisfatória 389

investiga igualmente o timing da proposição, o andamento do processo legislativo, as pro-


postas congêneres, bem como as emendas editadas sobre a proposta original.30
Desde o momento inicial de elaboração legislativa, os lobistas se empenham na
análise do impacto da proposta sobre os interesses representados. Para tanto, mobilizam-se
especialistas temáticos de diversas ciências (juristas, economistas, engenheiros e biólogos,
por exemplo), os quais serão responsáveis por apreciar o conteúdo da proposta de maneira
técnica. O resultado desse estudo multifacetado geralmente é apresentado em pareceres,
publicações e demais documentos, contribuindo para compreensão completa do decisor
público.31 Referida estratégia, para além de amparar o interesse defendido pelos lobistas,
possui uma utilidade geral dado que fomenta o debate público e técnico do projeto de lei,
elevando a qualidade de informação disponível para a tomada de decisão satisfatória, nos
termos propostos por Herbert Simon.
Quando o projeto de lei já se encontra redigido, a atividade de comunicação do lobby
ao policy maker ocorre em outros momentos, não tanto através de publicações técnicas,
mas diretamente, nas comissões ou no plenário, conforme o estágio do ato normativo no
processo legislativo. Distribuída a proposição legislativa à comissão temática, os lobbies
terão a oportunidade de participar de audiências públicas, seminários e reuniões de trabalho,
de modo a interagir com os legisladores, elevar o debate e apresentar as demandas sociais.
Como as comissões se baseiam nos pareceres dos relatores, estes se tornam alvos privile-
giados dos lobistas antes dos demais membros da comissão.32
Paralelamente, cria-se um monitoramento político, estruturado no mapeamento dos
tomadores de decisão. Identificam-se os aliados dos interesses da empresa em determina-
dos assuntos, as lideranças políticas mais atuantes no Congresso Nacional e quem ocupa os
papéis-chave no governo.33 Aqui há um criterioso cálculo de rede capaz de medir a influência
entre diversos atores, reconhecendo e distinguindo aqueles que ocupam posições centrais,
bem como os clusters, ou seja, agentes com alta incidência de ligações entre si, que apro-
ximam e aceleram as trocas de informações, ainda que não sejam os protagonistas. Típico
exemplo são os assessores de parlamentares.34 Dito de outra forma, é realizado um cálculo
considerando o (i) nível de centralidade e vizinhança dos policy makers, (ii) a capacidade de

30
OLIVEIRA, Andréa Cristina de Jesus. O lobbying institucional no Brasil: Op. cit., p. 61.
31
MANCUSO, Wagner Pralon; GOZETTO, Andrea Cristina Oliveira. Lobby e políticas públicas. Rio de Janeiro: FGV
Editora, 2018. p. 50-60.
32
MANCUSO, Wagner Pralon; GOZETTO, Andrea Cristina Oliveira. Lobby e políticas públicas. Op. cit., p. 55.
33
OLIVEIRA, Andréa Cristina de Jesus. O lobbying institucional no Brasil: Op. cit., p. 61.
34
CESÁRIO, Pablo Silva. Redes de influência no Congresso Nacional: como se articulam os principais grupos de
interesse. Revista de Sociologia e Política, v. 24, n. 59, p. 109-127, set. 2016. p. 110.
390 Gustavo Martinelli

influência de determinado indivíduo ou agremiação e (iii) os custos agregados na mudança


de opinião, em termos de compromisso político.35
Os lobistas podem servir os tomadores de decisão com estudos e pesquisas refina-
dos, capazes de auxiliar na escolha racional mais eficaz, ilustrando dados inacessíveis aos
agentes políticos. As informações repassadas, ainda que obtidas com antecipação, não se
confundem com informações privilegiadas, ilícitas e usualmente obtidas através de tráfico
de influência. Nesse processo de reconhecimento de demandas e trocas de informações,
cria-se a possibilidade de um debate qualificado sobre os impactos que os projetos, regula-
mentos ou políticas públicas podem exercer sobre determinados segmentos sociais.36
Em que pese a associação de ideais entre lobistas e práticas desleais e prejudiciais
à democracia, porque usualmente relacionados ao abuso de poder econômico, à corrupção
e ao tráfico de influência, o lobby é a uma atividade lícita importante para congregação de
múltiplos interesses e participação política popular efetiva. O estigma sobre a prática de
lobby impediu um amplo e sério estudo acerca da temática no Brasil, sobretudo no Direito, o
que não necessariamente se reflete na literatura estrangeira.37
Com efeito, o elemento pernicioso ao regime democrático se manifesta quando há
um desequilíbrio ou uma assimetria significativa de um grupo de interesse específico so-
bre as instituições políticas, proporcionando uma influência superior deste em relação aos
demais. Nesse caso há uma captura dos órgãos de tomada de decisão por entes privados
naquilo que pode ser chamado de “repatrimonialização”: a perda da impessoalidade das
instituições estatais pelo apoderamento de determinadas elites.38
Lobbies podem facilmente convencer agentes políticos porque obtêm informações
relevantes através de pesquisas antecipadas, onerosas, mas com maior grau de precisão,
especialmente quando os decisores desconhecem a temática e seus reflexos econômicos e
sociais. As informações servidas aos parlamentares e administradores alteram radicalmente
o sentido da decisão quando apresentadas no momento adequado, razão pela qual a presen-
ça de um grupo hegemônico como produtor da interlocução mina a autonomia burocrática e
conduz a um resultado unilateral em favor dos objetivos de lobistas.39

35
BELO, Manoel Alexandre C. Grupos de pressão e influência política. Verba Juris, ano 2, n. 2, p. 155- 173, jan./dez.
2003. p. 168.
36
OLIVEIRA, Andréa Cristina de Jesus. O lobbying institucional no Brasil: Op. cit., p. 62
37
BLANCHET, Luiz Alberto; SANTANO, Ana Claudia; NETTO, Fernando Gama de Miranda. O tabu da relação do lobby
e políticas públicas no Brasil. Op. cit., p. 55.
38
FUKUYAMA, Francis. Ordem e decadência política: da Revolução Industrial à globalização da democracia. Rio de
Janeiro: Rocco, 2018. p. 476.
39
FUKUYAMA, Francis. Ordem e decadência política: Op. cit., p. 477.
O lobby como facilitador da decisão pública satisfatória 391

Fundados no receio da captura das instituições políticas por interesses privados,


muitos países ocidentais buscaram regular as atividades de lobby.40 Em que pese a inércia
legislativa quanto ao regulamento do lobby no Brasil,41 fato é que essa atividade é plenamente
lícita e agasalhada pelo sistema constitucional contemporâneo, inclusive como potencializa-
dora de comunicação entre a sociedade civil e o governo. Desde a Constituição de 1988,
durante a Assembleia Constituinte, cerca de 383 grupos de interesse puderam ser identifica-
dos em atuação direta para ver suas reivindicações atendidas. A convocação da Assembleia
Constituinte, assim, foi um importante marco para os avanços nas relações de grupos de
interesse nas instituições.42
Não apenas, Blanchet, Santano e Netto43 esclarecem como as normas constitucio-
nais positivadas dão pleno espaço para o agenciamento de lobby no Brasil, como promotor
e difusor de interesses válidos que merecem ser levados em consideração na tomada de
decisão política. A licitude do lobby se concentra sobretudo no título dos direitos fundamen-
tais do texto constitucional. A liberdade de expressão (art. 5º, IV, CRFB) e de comunicação
(art. 5º, IX, CRFB), quando pensadas em conjunto ao direito de petição aos poderes públicos
(art. 5º, XXXIV, CRFB) garantem a defesa de interesses de grupos ou indivíduos, bem como
resguardam suas pretensões. Também a liberdade de associação para fins lícitos (art. 5º,
XVII, CRFB) e o direito do acesso à informação pública (art. 5º, XXXIII, CRFB) são fundamen-
tações amplas para o lobby.
Por outro lado, os deveres de transparência e publicidade na Administração Pública,
inerentes ao princípio republicano, obrigam a prestação de informações dos órgãos públicos.
No Estado em que o povo é o legítimo detentor do poder político, as instituições têm o dever
de prestar contas de seus atos.44 Assim, tanto os princípios gerais da Administração Pública
(art. 37, caput, CRFB) quanto o direito fundamental à informação pública (art. 5º, XXXIII,
CRFB) constrangem o Estado a se reportar com transparência à sociedade civil – exceto nos

40
Em que pese a onda de regramento tenha surgido ao final do século XX, o caso estadunidense inaugura a preo-
cupação de modo específico ainda em 1946, através do Lobbying Act, passando por diversas alterações poste-
riores. A legislação tem como pressuposto jurídico a concretização de direitos fundamentais positivados na 1ª
Emenda da Constituição Estadunidense, particularmente no que diz respeito à liberdade de expressão e ao direito
de petição aos representantes do povo. Cf. THOMAS, Clive S. Interest group regulation across the United States:
rationale, development and consequences. Parliamentary affairs: a journal of representative politics, v. 51, n.
4, p. 500-515, 1998. p. 503. Disponível em: http://www.fgu-nickolaus.narod.ru/3/TGU/Interest_Group_Regula-
tion_Across_the_United_States.pdf. Acesso em: 3 out. 2018.
41
Em agosto de 2019, encontram-se em tramitação no Congresso Nacional os seguintes projetos de lei acerca da
regulamentação do lobby: PL 1202/07, PL 11025/18, PL 6131/90, PRC 176/16, PLS 203/89, PLS 336/15, PEC
47/16.
42
GOZETTO, Andréa Cristina Oliveira. Movimentos sociais e grupos de pressão: Op. cit., p. 62.
43
BLANCHET, Luiz Alberto; SANTANO, Ana Claudia; NETTO, Fernando Gama de Miranda. O tabu da relação do lobby
e políticas públicas no Brasil. Op. cit., p. 60.
44
GABARDO, Emerson; SALGADO, Eneida Desiree. O princípio da publicidade e os abusos de poder político e econô-
mico na democracia contemporânea. In: GABARDO, Emerson; AFFORNALLI, Maria Cecília N. Munhoz (Coords.).
Direito, informação e cultura. Belo Horizonte: Fórum, 2012. p. 149-171.
392 Gustavo Martinelli

casos em que o interesse público motivar o sigilo –, inclusive com ampla divulgação dos
agentes que participaram da tomada de decisão, exercendo influência política.
Expôs-se como, na prática, lobistas podem se revelar como fontes de informação a
fim de oferecer dados confiáveis e de alta credibilidade sobre as consequências das ações
governamentais.45 No entanto, resta demonstrar em termos econômicos e de concorrência
como o lobby eleva naturalmente o comportamento satisfatório do gestor público ao tomar
uma decisão.

4 OS LIMITES DO LOBBY E DA COLABORAÇÃO COM A


ESCOLHA SATISFATÓRIA

Dentre as críticas feitas à atividade de lobby está o seu potencial nocivo de captura
das instituições, também denominado como “fenômeno da repatrimonialização”.46 Por mais
republicana e preocupada com a boa burocracia, essa opinião não possui lastro científico e,
no mais das vezes, acaba por simplesmente reproduzir o mito do lobby como algo prejudicial
ao interesse público per se. Espera-se demonstrar o oposto, desmascarando este estigma e
sustentando a utilidade do lobby enquanto provedor de informação de qualidade ao decisor
público.
Em uma preocupação típica da Nova Economia Institucional (NEI), Francis Fukuya-
ma47 argumenta que o perigo do lobby ao regime democrático consiste no desequilíbrio ou
na assimetria significativa de um grupo de interesse em face aos demais, proporcionando
uma influência desproporcional sobre as instituições políticas, em detrimento de outras vo-
zes. Por mais louvável que seja essa inquietação, ela não deveria se sustentar em face dos
estudos em lobby.
Primeiramente, imaginar que lobistas detém o poder de sozinhos capturar as institui-
ções políticas é superestimar a sua capacidade de impressão sobre a tomada de decisão. Ao
menos quando feito de modo lícito. O lobby deve ser sopesado com ao menos outros três
fatores igualmente relevantes na tomada de decisão do policy maker: o perfil do decisor, o
contexto decisório, e o tipo de decisão que está em pauta48.
A inadequação da crítica parte de um pressuposto onde o decisor é um ator me-
ramente passivo, que apenas responde mecanicamente às pressões recebidas. Salvo ex-
ceções extremas, o perfil do agente político é composto por características subjetivas, tais
como valores, preferências, ideologias, visões de mundo, convicções e crenças. Outra incor-

45
GOZETTO, Andréa Cristina Oliveira. Movimentos sociais e grupos de pressão: Op. cit., p. 62.
46
FUKUYAMA, Francis. Ordem e decadência política: Op. cit., p. 477.
47
FUKUYAMA, Francis. Ordem e decadência política: Op. cit.
48
MANCUSO, Wagner Pralon; GOZETTO, Andrea Cristina Oliveira. Lobby e políticas públicas. Op. cit., p. 74.
O lobby como facilitador da decisão pública satisfatória 393

reção é acreditar que a relação entre lobista e decisor é uma via de mão única; pelo contrário,
o agente administrativo dialoga com o segmento social, expondo ponderações e entra em
contato com os demais decisores, construindo uma opinião dinâmica. A ideia do decisor
tabula rasa, portanto, é admitida apenas como modelo inapropriado de raciocínio.49
Wagner Pralon Mancuso e Andréa Cristina Oliveira Gozetto50 indicam, ainda, que as
circunstâncias que envolvem a tomada de decisão podem influir consideravelmente no resul-
tado. O contexto sociocultural, histórico e econômico impacta diretamente na manifestação
do decisor. Assim, por exemplo, um cenário de crescimento econômico pode favorecer o
pleito de lobbies que visam a conquista de novos benefícios materiais ou tratativas privilegia-
das. Por outro lado, uma recessão econômica implica em corte de gastos e vozes favoráveis
a um déficit zero serão apreciadas mais atentamente. Ao final, por mais incisiva que seja a
participação de lobbies, o decisor estará mais tendente a optar pelo que mais favorece o
contexto.
Por fim, outro fator que acaba tendo igual importância (quando não maior) na for-
mação da escolha do agente é o tipo da decisão na agenda política, na medida em que afeta
a intensidade, o equilíbrio e o conflito dos lobbies. Uma análise mais detida desse fator é
necessária antes se avançar, uma vez que a exposição será colocada à prova na sequência.
O primeiro tipo de decisão é aquele que concentra benefícios em segmentos sociais especí-
ficos e dispersa os custos por segmentos sociais amplos. Nesse caso, há efetivamente um
desequilíbrio nas relações de influência, mas calcado pelo desinteresse por parte do grupo
prejudicado. Uma ilustração é a “concessão de isenções tributárias a um setor específico
do empresariado (por exemplo, fabricante de automóveis) à custa de pequena elevação da
carga tributária do restante da sociedade”.51
O mesmo pode ocorrer com o tipo oposto de decisão. Nesse caso, distribuem-se
benefícios para setores amplos da sociedade à custa de segmentos específicos, desenhando
igualmente um contexto decisório pouco conflituoso e desequilibrado, com mais lobbies dos
setores amplos. Por mais que esse segundo tipo de decisão crie um custo per capta superior
aos pagadores, porque menos compartilhado, ainda assim o dispêndio com a mobilização
para alterá-la permanece superior ao pagamento. Não se pode dizer que o policy maker foi
efetivamente capturado por uma das partes em detrimento das outras, mas que há um de-
sinteresse pelo segmento específico em se mobilizar.
O tipo de decisão mais comum, no entanto, é justamente aquele que se passa num
cenário altamente conflituoso, mas equilibrado, com intensa formação de lobbies entre pa-
gadores e beneficiários. Aqui se tem uma alocação de custos e benefícios somente entre

49
MANCUSO, Wagner Pralon; GOZETTO, Andrea Cristina Oliveira. Lobby e políticas públicas. Op. cit., p. 75.
50
MANCUSO, Wagner Pralon; GOZETTO, Andrea Cristina Oliveira. Lobby e políticas públicas. Op. cit., p. 75.
51
MANCUSO, Wagner Pralon; GOZETTO, Andrea Cristina Oliveira. Lobby e políticas públicas. Op. cit., p. 78.
394 Gustavo Martinelli

setores específicos e bem definidos, mas antagônicos; enquanto os segmentos mais amplos
possuem pouca relevância. É o caso, por exemplo, da disputa sobre neutralidade da rede,
que coloca provedores de um lado, e criadores de conteúdo/aplicativos de outro; ou da
competição de regulação entre desenvolvedores de aplicativos de transporte individual e
taxistas.52
Do exposto, percebe-se que o sucesso do lobista consiste na convergência entre o
teor da decisão tomada e a posição defendida. Ainda a vitória seja anunciada na convergên-
cia dos polos, é possível que o cálculo do decisor sequer tenha considerado o fator lobby,
mas apenas o contexto e a afinidade ideológica da posição, por exemplo. Medir o sucesso
do lobby não corresponde a medir a sua influência.
De todo modo, o mérito do lobby consiste em prover ao policy maker uma gama
de informações potencialmente desconhecidas, devidamente tratadas, de modo não one-
roso, usualmente postas em concorrência pela disputa de grupos antagônicos, ainda que a
participação do lobista não tenha sido condicionante para a tomada de decisão. Ou seja, o
decisor político dispôs de mais para tomar a decisão que melhor satisfaz o comportamento
contemporizador de Simon.
David Austen-Smith e John R. Wright53 foram bem-sucedidos em demonstrar a pre-
missa segundo a qual o lobby é fundamentalmente um agregador de informação ao policy
maker. Parte-se do pressuposto que o decisor público com mandato (no caso, um legis-
lador), ainda que possua um perfil tendente a determinada ideologia, tem como interesse
primário a reeleição. Deste modo, sempre irá buscar direcionar a decisão de modo a poten-
cializar a aprovação da base eleitoral. Porém, ainda que o legislador tenha uma percepção
sobre o retorno eleitoral, a opinião pública é um elemento dinâmico e incerto, variável de
acordo com as informações disponíveis.
Por outro lado, segundo os mesmos autores, assume-se que os lobbies (i) tenham o
interesse primário em conseguir o apoio do decisor; (ii) possuam informações indisponíveis
ao legislador, tanto em termos de apoio popular quanto de consequências da política pública
escolhidas; e que (iii) o processo de lobbying é formado por duas etapas, uma voltada à
aquisição de informações, outra direcionada à comunicação com decisores. Por fim, pre-
sume-se que (iv) as informações em posse dos lobbies sejam onerosas, decorrentes da
aplicação de surveys, pesquisas eleitorais e mobilização social, o que afasta o interesse do
legislador em busca-las. Ainda assim, é necessário que o legislador tenha recursos disponí-
veis para verificar a informação, caso assim desejar.

52
MANCUSO, Wagner Pralon; GOZETTO, Andrea Cristina Oliveira. Lobby e políticas públicas. Op. cit., p. 79.
53
AUSTEN-SMITH, David; WRIGHT, John R. Competitive lobbying for a legislator’s vote. Social Choice Welfare, v. 9,
issue 3, p. 229-257, jul. 1992.
O lobby como facilitador da decisão pública satisfatória 395

Desenvolveram, então, o seguinte modelo probatório: considera-se uma agenda


fixa (A, B) e um legislador específico (L) aberto a variar seu voto entre a agenda A ou B, a
depender da que tenha o maior apoio popular ou o menor custo político. Não há possibilidade
de abstenção, mas há incerteza em saber qual escolha lhe será mais vantajosa. Acrescido
a isso, assume-se que há um ruído sinalizador (s) que fornece uma informação relevante e
pode ser originariamente observada pelo legislador. Por exemplo, se s = B, assume-se que
o legislador tende a optar pela agenda B. Ocorre que este sinal (s) pode sempre vir acom-
panhado de um erro, uma vez que eventos anteriores à tomada de decisão afetam a opinião
popular sobre a decisão. O ruído sinalizador (s), portanto, representa uma probabilidade
condicional (q < 1) incerta na qual quanto menor for q, menos confiável será a informação.54
Seguindo esse mesmo modelo, existem dois lobbies (Ga, Gb) com interesses es-
pecíficos e antagônicos, preocupados com o resultado do voto legislativo entre as duas
agendas (A, B). Como os lobbies dispõem de recursos para aquisição de informações, con-
seguem observar o ruído (s) sem incerteza a partir de um determinado custo (C), podendo
optar pela estratégia de transmissão para revelar o valor de s ao decisor.55
Sem pretensão de demonstrar detalhadamente o cálculo contido no modelo supra,
para David Austen-Smith e John R. Wright,56 a proposição central é que a existência de lobby
induz a votar mais corretamente (comportamento mais satisfatório) que a ausência de lobby.
Isso porque, nos cenários em que o quociente de probabilidade condicional for alto (menos
incerteza quanto ao ruído s), o legislador terá uma melhor percepção da opinião popular,
favorecendo com que apenas o lobby aliado à opinião popular manifeste as informações
obtidas, ao passo que afasta o lobby contrário a investir em pesquisas ineficientes. Nesse
caso, a presença de lobby equivale a sua ausência em termos de resultado, mas a escolha
foi acrescida em informações.
Por outro lado, havendo elevada dúvida sobre a opinião popular, ambos os lobbies
irão concorrer a fim de captar informações e fornecer ao legislador, o qual, por sua vez,
sempre poderá verificar pela verossimilhança dos resultados, caso se apresentem absurdos.
Nessa competição de lobbies, o maior vencedor é o próprio policy maker, o qual passa a de-
cidir amparado por informações mais completas e precisas sobre a opinião popular. Assim,
em ambos os casos, sustentam os autores do modelo, a presença de lobby induz a votar de
forma mais satisfatória que a ausência dele.57

54
AUSTEN-SMITH, David; WRIGHT, John R. Competitive lobbying for a legislator’s vote. Op. cit., p. 233.
55
AUSTEN-SMITH, David; WRIGHT, John R. Competitive lobbying for a legislator’s vote. Op. cit., p. 233.
56
AUSTEN-SMITH, David; WRIGHT, John R. Competitive lobbying for a legislator’s vote. Op. cit., p. 229–257.
57
AUSTEN-SMITH, David; WRIGHT, John R. Competitive lobbying for a legislator’s vote. Op. cit., p. 236.
396 Gustavo Martinelli

5 CONSIDERAÇÕES FINAIS

Tanto as razões expostas por Wagner Mancuso e Andréa Gozetto quanto o modelo
competitivo proposto por David Austen-Smith e John R. Wright conduzem à compreensão do
lobby como um processo formado pelas etapas de aquisição e transmissão de informações,
a fim de influenciar a tomada de decisão política.
Tais etapas detém uma complexidade própria e podem chegar a ser extremamente
custosas, de modo que nem sempre será interessante ao lobista investir na atividade. Para
Mancuso e Gozetto, esse cenário corresponde a um tipo de decisão que distribui benefícios a
um setor específico à custa de uma baixa taxa per capta para os pagadores, ou seja, o custo
de mobilização social para influir na decisão é superior ao custo suportado pela decisão
originária. Para Austen-Smith e Wright, esse contexto se evidencia quando a incerteza da
opinião popular acerca de determinada decisão é bastante baixa.
Ao contrário, cenários que distribuem altos custos e benefícios a setores antagôni-
cos, ou quando a incerteza a respeito da opinião popular é tão elevada que o decisor não
consegue esboçar uma tendência, são extremamente favoráveis para a formação de lobbies
equilibrados e conflituosos, dispostos a arcar com dispêndios elevados a fim de obter infor-
mações preciosas e de elevada qualidade ao decisor público.
Em ambas as hipóteses, porém, toma-se o policy maker como agente falível, tal qual
o agente administrativo de Herbert Simon, apresentado na segunda seção. Com efeito, no
mundo ideal do agente econômico clássico, dotado da racionalidade substantiva e capaz
de sempre optar pelo comportamento maximizador, a presença de lobby é verdadeiramente
inútil. Lobistas atuam como um canal de comunicação entre a sociedade civil e os poderes
constituídos, apresentando preocupações sociais importantes que usualmente não são apre-
ciadas pelo decisor. Quando este é capaz de conhecer sempre a melhor opção, no entanto,
esta atividade se torna desnecessária.
Por outro lado, no contexto dos agentes econômicos de racionalidade limitada, ex-
postos a uma quantidade restrita de informações incompletas e incorretas, lobbies são bas-
tante bem-vindos como auxiliares da melhor formação de escolhas públicas, capacitando
decisores para que levem em consideração as consequências das decisões tomadas, nem
que seja para um segmento social específico, o que procurou se demonstrar ao longo da
exposição.

REFERÊNCIAS

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Welfare, v. 9, issue 3, p. 229-257, jul. 1992.
O lobby como facilitador da decisão pública satisfatória 397

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ted_States.pdf. Acesso em: 3 out. 2018.
TERCEIRO LUGAR

O marco regulatório do saneamento no Brasil e


o impacto nas políticas de saneamento dos mu-
nicípios da região norte de Santa Catarina

Daniel Wagner Heinig


Mestrando em Planejamento e Governança Pública (UTFPR)

Ana Paula Myszczuk


Doutora em Direito Econômico e Socioambiental (PUCPR)

SUMÁRIO: 1 Introdução; 2 A política de saneamento no Brasil – uma breve introdução histórica;


3 O marco regulatório do saneamento no Brasil – a Lei Federal 11.445/07; 3.1 A formulação das polí-
ticas municipais de saneamento e do plano municipal de saneamento; 3.2 A participação e o controle
social. A criação e efetivação dos conselhos municipais; 3.3 A universalização dos serviços como
princípio fundamental; 4 Metodologia; 5 Resultados e discussões; 5.1 Da universalização dos serviços
de abastecimento de água e coleta e tratamento de esgoto; 6 Considerações finais; Referências.

1 INTRODUÇÃO

A humanidade tem tratado a questão do saneamento com abordagens diferenciadas


ao longo de sua história, em função do contexto social, político, econômico e cultural, de
cada época e nação. Por vezes, o saneamento toma recortes de uma política social. Por
outras, é tratada apenas como uma política pública. Esta ambiguidade está traduzida não só
no campo teórico, mas também na ação governamental.1
O saneamento básico tem sido definido como “o conjunto de medidas que visam a
modificar as condições do meio ambiente, com a finalidade de prevenir doenças e promover
a saúde”.2 Por sua vez, o comando normativo brasileiro conceitua o saneamento básico
como o conjunto de serviços, infraestruturas e instalações de abastecimento de água, es-

1
BORJA, Patrícia Campos; MORAES, Luiz Roberto Santos. Saneamento como um direito social. Assembleia da
Assemae, v. 35, 2005.
2
MENEZES, Luiz C. C. Saneamento básico, saúde pública e qualidade de vida: considerações. Revista DAE, [S.l.],
v. 44, n.1, mar. 1984. p. 15.
400 Daniel Wagner Heinig | Ana Paula Myszczuk

gotamento sanitário, limpeza urbana e manejo de resíduos sólidos e drenagem de águas


pluviais urbanas.3
Vale ressaltar que tal conceituação expressa de forma mais coerente a realidade de
países em desenvolvimento, como o Brasil, onde as ações de saneamento ainda devem ser
encaradas como uma medida de saúde pública, aproximando a política de saneamento às
políticas sociais. Em países desenvolvidos, as questões básicas de saneamento já restaram
superadas há algumas décadas, e atualmente são tratadas como políticas de infraestrutura.4
Tal preocupação refletida em países em desenvolvimento é resultado da compro-
vação de que a precariedade do sistema de saneamento básico tem relação direta com
problemas de saúde da população, além de elevar os gastos públicos com o tratamento
às vítimas de doenças causadas pela deficiência no abastecimento de água potável e ine-
xistência de sistema de tratamento de esgoto.5 Estudos têm apontado que a adoção de
ações integradas no setor de saneamento proporciona melhores condições de saúde para
as pessoas, evitando a contaminação e a proliferação de doenças. Do mesmo modo, resulta
em ganhos na preservação do meio ambiente. Alguns modelos buscam explicar a influência
dos sistemas de abastecimento de água e tratamento de esgoto sobre indicadores de saúde,
como a expectativa de vida ou a mortalidade infantil.6 O artigo 30 da Constituição Federal
define como competências municipais, dentre outras, a função de legislar sobre assunto
de interesse local, prestar serviços públicos de interesse local e promover, no que couber,
o adequado ordenamento territorial, mediante planejamento, e controle do uso, do parcela-
mento e da ocupação do solo urbano. Nesta ótica, são considerados de interesse local os
serviços públicos de saneamento básico, entre os quais o abastecimento público urbano de
água potável e o esgotamento sanitário.
Em observância ao comando constitucional, foi publicada a Lei Federal 11.445/07,
que estabeleceu diretrizes nacionais para o saneamento básico, e construiu uma série de
conceitos, como o de gestão associada e prestação regionalizada, definindo a titularidade
dos serviços e sua competência na formulação da política pública de saneamento local.
Importante ressaltar que, até a vigência da referida norma, o setor de saneamento
era caracterizado pela auto-regulamentação, sem a presença de qualquer marco regulatório
que estabelecesse regras mínimas entre os titulares e prestadores dos serviços e usuários,
a serem seguidas por todos os entes federativos.
O presente estudo pretende avaliar alguns impactos que a Lei Federal n. 11445/07
ocasionou na política de saneamento dos municípios do norte catarinense. Especificamente,

3
Vide art. 3º da Lei 11.445/2007.
4
BORJA, Patrícia Campos; MORAES, Luiz Roberto Santos. Saneamento como um direito social. Op. cit.
5
MENDONÇA, Mario Jorge Cardoso de; MOTTA, Ronaldo Seroa da. Saúde e saneamento no Brasil. Rio de Janeiro:
Ipea, 2005 (Texto para Discussão, n. 1.081).
6
MOREIRA, Terezinha. Saneamento básico: desafios e oportunidades. Revista do BNDES, Rio de Janeiro, fev. 2002.
O marco regulatório do saneamento no Brasil... 401

busca verificar se os municípios analisados instituíram e efetivaram os instrumentos da polí-


tica de saneamento determinados pela lei federal, em especial a formulação da política muni-
cipal de saneamento básico, a instituição de um plano municipal de saneamento e a criação
de conselhos municipais como órgãos de controle social das políticas de saneamento. Em
seguida, pretende-se analisar se um dos mais importantes princípios insculpidos na norma
está sendo observado, qual seja, o princípio da universalização dos serviços.
Ressalta-se que muito embora o conceito de saneamento básico compreenda os sis-
temas de abastecimento de água e esgoto, a drenagem pluvial urbana, a coleta e disposição
de resíduos sólidos e o controle de vetores, considerou-se neste estudo apenas os sistemas
de água e esgotos, quando verificada a observância dos princípios da universalização dos
serviços, através de dados disponíveis no Sistema Nacional de Informações de Saneamento
– SNIS.
A estrutura deste artigo contempla, além desta introdução, um breve contexto his-
tórico da política de saneamento no Brasil, seguido de uma contextualização da Lei Federal
11.445/07, no que diz respeito às competências direcionadas pela norma aos municípios
para a instrumentalização da política de saneamento. Na sequência, faz-se a apresentação
dos caminhos metodológicos, bem como dos resultados e discussões. Por fim, retoma-se
a construção do trabalho, indicando algumas limitações e reflexões com base no contexto
analisado.

2 A POLÍTICA DE SANEAMENTO NO BRASIL – UMA BREVE


INTRODUÇÃO HISTÓRICA

Para a possível compreensão das políticas públicas de saneamento no contexto


municipal, como proposto, torna-se de fundamental importância a verificação das circuns-
tâncias históricas que culminaram no atual modelo de saneamento básico no Brasil, seus
problemas e tomadas de decisão ao longo das últimas décadas.
A política de saneamento básico ganhou ênfase no início do Século XX, época em que
as primeiras instalações relevantes na área de saneamento foram verificadas nas grandes
cidades, já afligidas por problemas de saúde decorrentes da ausência de políticas públicas
voltadas para o setor. Neste momento histórico, as ações de saneamento eram caracteriza-
das por comportamentos particulares em cada região, justificados pela ausência de unidade
de ações, e estruturadas sob o paradigma do higienismo, especialmente como resposta a
situações epidêmicas.7 Aliás, foram as epidemias e doenças endêmicas verificadas no início
do Séc. XX que despertaram nas elites a consciência da interdependência sanitária, segundo

7
MELO, Geórgia Karênia Rodrigues Martins Marsicano de; MARACAJ, Kettrin Farias Bem; DANTAS NETO, José.
Histórico evolutivo legal dos recursos hídricos no Brasil: uma análise da legislação sobre a gestão dos recursos
hídricos a partir da história ambiental. Âmbito Jurídico, Rio Grande, XV, n. 100, maio 2012.
402 Daniel Wagner Heinig | Ana Paula Myszczuk

a qual todos os homens estavam ligados por um elo representado pelo agente causador da
doença. Tal percepção desencadeou intensa agitação política em torno da questão sanitária,
que aliada à eminente inserção da economia brasileira no contexto do capitalismo mundial,
motivou transformações na atuação do poder público, ampliando suas intervenções nas
ações coletivas de saneamento, ainda que vinculadas aos interesses das elites, resultando
em atuações pontuais e insuficientes, focadas em áreas de interesse econômico.8
Por esse motivo, constavam nos planos urbanos da época invariavelmente a drena-
gem das águas pluviais, esgotamentos ou aterramentos de mangues, além de terraplena-
gens, relocação e construção de matadouros e cemitérios, arborização e melhorias na limpe-
za pública. A elaboração do Código de Águas em 1934 representeou o primeiro instrumento
de controle de recursos hídricos, diante da necessidade crescente de políticas regulatórias
em um cenário de convergência de fatores como a urbanização acelerada e o impressionante
crescimento populacional, assim como o início do aproveitamento hidrelétrico e o incremen-
to da atividade industrial, que levavam o país a conflitos de natureza econômica e política de
grande monta.9
Após o período conturbado na história política brasileira, que culminou em 1964 com
a ascensão de militares ao governo, surgiu a obrigação de responder ao desafio de intervir
nos serviços de saneamento. Priorizou-se, através do Plano Nacional de Saneamento (Pla-
nasa), o grave problema da água e do esgoto.
O plano apoiou-se na importância de investimentos para melhoria da saúde e quali-
dade de vida da população, bem como na necessidade de intervenção no desenvolvimento
econômico nacional, através da alocação de grande quantidade de recursos do Banco Nacio-
nal da Habitação (BNH) e de investimentos internacionais, captados no sistema financeiro.
Como visto, o Planasa, adotado no início da década de 70 impulsionou os investi-
mentos em saneamento básico por todo o território nacional. Na verdade, até a instituição
do Planasa, não havia um sistema regular de financiamento e auxílio para investimentos em
saneamento nos estados e municípios, ou um planejamento nacional de investimentos.10
Baseado no pilar econômico da autossustentação tarifária, um dos preceitos do plano
era a viabilização da cobertura dos custos de operação e manutenção dos serviços e amor-
tização dos financiamentos através das tarifas cobrados pela disponibilização do serviço.
Nesse contexto, uma das premissas do referido Plano Nacional era a criação de Companhias

8
RUBINGER, Sabrina D. Desvendando o conceito de saneamento no Brasil: uma análise da percepção da popula-
ção e do discurso técnico contemporâneo. 2008. 197f. Dissertação (Mestrado em Saneamento, Meio Ambiente e
Recursos Hídricos) – Faculdade de Engenharia, Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte, 2008.
9
MURTHA, Ney Albert; CASTRO, José Esteban; HELLER, Léo. Uma perspectiva histórica das primeiras políticas
públicas de saneamento e de recursos hídricos no Brasil. Revista Ambiente e Sociedade, São Paulo, v. 18, n. 3, p.
193-210, set. 2015.
10
ARRETCHE, Marta T. S. Política Nacional de Saneamento: a reestruturação das companhias estaduais. In: IPEA.
Temas especiais – Infraestrutura. Perspectivas de reorganização. Brasília: Ipea, 1999.
O marco regulatório do saneamento no Brasil... 403

Estaduais em cada estado da federação, para a viabilização dos seus objetivos através de um
modelo de gestão centralizado, autoritário e marcado pela ausência de participação social.11
A centralização da gestão era necessária para a viabilidade da utilização dos sub-
sídios cruzados. A lógica era de que a instituição de tarifas menores para os usuários de
poder aquisitivo mais baixo, e a compensação dos déficits de um grande conjunto de muni-
cípios menores com o superávit dos maiores. Assim, para que os preceitos do plano fossem
atendidos, a prestação dos serviços deveria ultrapassar as fronteiras municipais, prevendo
pretensas economias de escala ao atribuir abrangência estadual às companhias.
Foi neste período, por exemplo, que a Companhia Catarinense de Águas e Saneamen-
to de Santa Catarina (Casan) foi criada, em 31 de dezembro de 1970, através da Lei Estadual
4547/71, absorvendo inicialmente16 sistemas de abastecimento de água e 02 sistemas de
coleta de esgotos (Florianópolis e Lages) até então geridos pelo Departamento Autônomo
de Engenharia Sanitária (Daes). Quinze anos depois, em 1985, a Companhia Estadual já era
responsável pelo saneamento básico de 167 municípios catarinenses, o que representava
84% de todos os municípios existentes no Estado, incluindo neste rol os municípios da re-
gião norte de Santa Catarina.
Vale lembrar essa adesão maciça dos municípios a um modelo no qual deveriam
abrir mão de sua prerrogativa de prestar serviços de natureza local, como os de saneamento
básico, certamente foi influenciada por intensas pressões por parte de governadores e parla-
mentares estaduais, em um ambiente político autoritário dominante no país.
Porém, o referencial de política representado pelo Planasa esgotou-se com a extin-
ção da sua principal fonte de financiamento, o Banco Nacional de Habitação (BNH) no ano
de 1986, ainda que a inércia de suas rotinas gerenciais tenha se mantido por vários anos
no setor. Destaca-se, por específico, que durante a sua vigência houve uma qualificação do
déficit de atendimento, que se concentraram ainda mais nas populações de mais baixa renda
e nas regiões mais pobres do país.12
Por sua vez, o processo de redemocratização do país, que culminou com a pro-
mulgação da Constituição Federal de 1988, trouxe importantes avanços no que se refere
às garantias de acesso aos serviços de saneamento, e estabeleceu alterações pontuais na
distribuição de competências federativas.
De fato, se por um lado a Constituição Federal de 1988 acabou por estabelecer como
competência comum da União, Estados e Municípios a promoção da melhoria das condições

11
HELLER, L.; OLIVEIRA, A. P. B. V.; REZENDE, S. C. Políticas públicas de saneamento: por onde passam os confli-
tos? In: ZHOURI, Andrea; LASCHEFSKI, Klemens (Orgs.). Desenvolvimento e conflitos ambientais. Belo Horizonte:
Editora UFMG, 2010. p. 302-328.
12
MOREIRA, Renata Maria Pinto. Distribuição de água na região metropolitana de São Paulo: tecnologias da univer-
salização e da produção do espaço. 2008. 210p. Dissertação (Mestrado em Arquitetura e Urbanismo) – Faculdade
de Arquitetura e Urbanismo, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2008.
404 Daniel Wagner Heinig | Ana Paula Myszczuk

de saneamento básico (art. 23), por outro indicou que a titularidade para organizar e prestar
os serviços públicos de interesse local era dos municípios (art. 30). Além disto, a Carta
Magna estabeleceu como dever constitucional do ente público garantir que o serviço fosse
universalizado mesmo que não haja capacidade de pagamento para tanto.
Na década seguinte, foi instituída a Política Nacional de Recursos Hídricos (PNRH),
através da Lei Federal n. 9433/97, estabelecendo seus fundamentos, objetivos, diretrizes e
instrumentos, e principalmente reforçando o fundamento da água como um bem de domí-
nio público, um recurso natural limitado e dotado de valor econômico. No entanto, o termo
domínio público não teve o condão de transformar o poder público em proprietário da água,
mas torná-lo gestor desse bem, no interesse de todos.13
Nesse cenário, o ordenamento jurídico passou a exigir uma gestão dos recursos
hídricos que proporcionasse os usos múltiplos das águas, de forma descentralizada e parti-
cipativa, contando com a participação de todos os agentes envolvidos: Poder Público, usuá-
rios e comunidades. A Política Nacional de Recursos Hídricos, por imposição normativa,
deveria ser formulada, executada e avaliada por meio de gestão democrática, que contasse
com ampla participação social.
Na mesma época outro assunto significativo entrava na pauta de discussões da polí-
tica de saneamento: o conflito entre os municípios e as companhias estaduais na prestação
dos serviços. Isto porque a maior parte das concessões, firmadas logo após a criação do
Planasa, na década de 70, com prazos que variavam entre 20 e 30 anos, alcançavam o
término do prazo de vigência dos contratos, o que passou a ocorrer a partir do ano 2000.
Com o fim dos ajustes, muitos municípios buscaram a assunção dos serviços, in-
clusive através de disputas judiciais. Entretanto, muitas companhias estaduais continuaram
prestando serviço sem nenhum vínculo contratual com diversos municípios, mesmo após a
expiração do contrato de concessão. Exemplos disso foram os municípios de São Paulo e
Santos, onde a Companhia de Saneamento Básico do Estado de São Paulo (Sabesp) conti-
nuou atuando sem contrato.14
Passados quase vinte anos da promulgação da Constituição de 1988, e dentro de
um cenário permeado de conflitos e incertezas, era necessário estabelecer uma espécie
de marco regulatório dos serviços de saneamento. Assim, a publicação da Lei n.11.445,
de cinco de janeiro de 2007, estabeleceu diretrizes nacionais para o saneamento básico,
construiu uma série de conceitos, como o de gestão associada e prestação regionalizada,
e definiu a titularidade dos serviços e sua competência na formulação da respectiva política

13
AITH, Fernando M. A.; ROTHBARTH, Renata. O estatuto jurídico das águas no Brasil. Estudos Avançados, São
Paulo, v. 29, n. 84, p. 163-177, ago. 2015.
14
HELLER, L.; OLIVEIRA, A. P. B. V.; REZENDE, S. C. Políticas públicas de saneamento: Op. cit.
O marco regulatório do saneamento no Brasil... 405

pública de saneamento e na regulação e execução dos serviços. Previu ainda a elaboração


do Plano Nacional de Saneamento Básico como competência da União, sob coordenação do
Ministério das Cidades.
O Plansab foi finalizado no ano de 2013, como um instrumento fundamental para a
definição das metas e estratégias de governo para o setor no horizonte dos próximos vinte
anos, com vistas à universalização do acesso aos serviços de saneamento básico como
um direito social. Para tanto, foram estimados investimentos estimados de R$ 508,4 bilhões
para o período. O plano estabeleceu como meta, para os serviços de abastecimento de água,
alcançar nos próximos 20 anos 99% de cobertura no abastecimento de água potável, sendo
100% na área urbana.
Este é o breve contexto histórico do saneamento no Brasil, que permite um melhor
entendimento do cenário atual, bem como auxilia na percepção do objeto do presente estudo.

3 O MARCO REGULATÓRIO DO SANEAMENTO NO BRASIL –


A LEI FEDERAL 11.445/07

Conforme já evidenciado, o fim do Planasa criou um vazio nas políticas de sanea-


mento que demorou a ser preenchido. Nem mesmo com a promulgação da Constituição
Federal de 1988, que evidenciaram direitos fundamentais e sociais, o saneamento voltou à
pauta de discussões. Somente dez anos após a Constituição Federal, iniciaram-se tratativas
em torno de uma estrutura institucional para a regulação do setor de saneamento, e depois
de quase duas décadas de discussão e autorregulação do setor foi aprovado o marco legal
do setor.
A Lei 11.445, de 5 de janeiro de 2007, também conhecida como Lei do Saneamento,
representou uma interrupção no estado de imobilismo verificado na maioria dos municípios,
titulares dos serviços de saneamento básico, e de prestadores desses serviços, que por
vários motivos haviam deixado de investir na ampliação e na atualização dos serviços.
A lei estabeleceu diversos princípios, entre os quais, a universalização do acesso, a
eficiência e a sustentabilidade econômica e ambiental, princípios que, se seguidos, poderiam
guiar uma política de saneamento básico segura para a população e para as empresas pri-
vadas atuantes no setor.15
Por outro lado, a norma federal estabeleceu diretrizes nacionais para a política de
saneamento básico no Brasil. Nessa perspectiva, os municípios brasileiros, titulares dos ser-
viços públicos de saneamento básico, foram chamados a assumir competências quanto ao
planejamento, à prestação, à regulação e à fiscalização dos serviços, bem como à promoção

15
MADEIRA, Rodrigo Ferreira. O setor de saneamento básico no Brasil e as implicações do marco regulatório para
a universalização do acesso. Revista do BNDES, n. 33, p. 123-154. jun. 2010.
406 Daniel Wagner Heinig | Ana Paula Myszczuk

da participação e do controle social, tendo em vista o alcance de princípios básicos definidos


na referida lei, como a universalização do acesso, a integralidade e a equidade das ações e
a intersetorialidade, em clara alusão à articulação das políticas de desenvolvimento urbano
e regional com outros setores.16
Assim, os municípios, titulares dos serviços, passaram a ter a obrigação de estabe-
lecer legislações próprias mais detalhadas quanto ao planejamento e regulação dos serviços
de saneamento básico. Dentre estas normas, caberia ao ente federativo a elaboração dos
instrumentos da política de saneamento no âmbito local, como a instituição da política muni-
cipal de saneamento, a elaboração do plano municipal de saneamento, a criação ou nomea-
ção de entidades reguladoras, as quais poderão ter âmbito local, microrregional (consórcios
de municípios), e a concepção de órgãos colegiados consultivos e outros mecanismos de
promoção do controle social.

3.1 A formulação das políticas municipais de saneamento e


do plano municipal de saneamento

A importância do planejamento reside no fato de que a sua adoção focaliza a reali-


zação de ações por meio de iniciativas planejadas, evitando ações improvisadas com menor
potencial de sucesso. Ao realizar um planejamento, mesmo que simplificado, as chances de
alcançar o objetivo é muito mais efetiva.
O planejamento proporciona o alcance do conhecimento da real necessidade da po-
pulação, aumentando o envolvimento e participação social, e promovendo a melhoria da
qualidade dos serviços prestados. Por outro lado, a falta de planejamento no âmbito munici-
pal contribui muitas vezes para o desperdício de recursos e ineficiência dos serviços, dada a
possibilidade de descontinuidades e fragmentação das ações voltadas para o setor.
Assim, a Lei Federal 11.445/07 deixou claro que o modelo jurídico institucional ado-
tado e a definição clara e objetiva dos direitos e deveres dos cidadãos seria função da Política
Municipal de Saneamento, enquanto o Plano Municipal de Saneamento deveria estabelecer
os objetivos, as diretrizes, as metas e as condições de prestação dos serviços, tendo como
objetivo a sua universalização.
Nesse sentido, a política municipal contemplaria os princípios que, no âmbito do
Plano de Saneamento, irão orientar a formulação dos objetivos, metas, programas e ações,
bem como as diretrizes que deverão ser observadas quando do estabelecimento das condi-
ções para a gestão dos serviços. Dentre estes, destacam-se os princípios da integralidade

16
HELLER, Leo; PITERMAN, Ana; REZENDE, Sonaly Cristina. (A falta de) Controle social das políticas municipais de
saneamento: um estudo em quatro municípios de Minas Gerais. Revista Saúde e Sociedade, São Paulo, v. 22, n.
4, p. 1180-1192, 2013.
O marco regulatório do saneamento no Brasil... 407

das ações, da igualdade, da titularidade municipal, da gestão pública, da articulação ou


integração institucional, e principalmente, os princípios da participação e controle social e da
universalidade dos serviços.
Por sua vez, o plano municipal de saneamento básico consiste em um dos principais
instrumentos da política municipal, além de ser uma condição para a validade dos contratos
de prestação dos serviços e um requisito para o acesso a recursos federais a partir de 2014.
O plano municipal de saneamento deve representar o conjunto de diretrizes, estudos,
programas, projetos, prioridades, metas, atos normativos e procedimentos. Por conseguinte,
deve avaliar o estado de salubridade ambiental, inclusive da prestação dos serviços públicos
a ela referentes, e definir a programação das ações e dos investimentos necessários para a
prestação dos serviços de saneamento básico.
A Lei Federal de Saneamento Básico definiu ainda a obrigatoriedade da participação
da população e o controle social em todo o processo de formulação da Política, como tam-
bém na elaboração do Plano, desde a concepção do mesmo.

3.2 A participação e o controle social: a criação e efetivação


dos conselhos municipais

A participação e o controle social têm sido abordados em recentes discussões e


práticas de diversos segmentos da sociedade. Correspondem a uma interação entre governo
e sociedade, por meio de canais democráticos de participação, onde a esta cabe o estabe-
lecimento de práticas de vigilância e fiscalização sobre aquele.
Nesta perspectiva, Heller et al. destaca que “os conselhos municipais surgiram den-
tro das novas propostas de democratização e descentralização das políticas sociais, res-
paldados pelas leis orgânicas, como mecanismos de democracia semidireta. A existência
dos conselhos nas três esferas governamentais e em diversas áreas de políticas públicas
configurou uma nova realidade de gestão envolvendo vários atores”.17
Seguindo o mesmo raciocínio, Maria Valéria Costa Correia reforça que o controle
social envolve a capacidade que a sociedade civil tem de interferir na gestão pública, orien-
tando as ações do Estado e os gastos estatais na direção dos interesses da coletividade.
Neste sentido, a lógica do controle social seria justificada da seguinte forma: “quem paga
indiretamente, por meio de impostos, os serviços públicos é a própria população; portanto,
ela deve decidir onde e como os recursos públicos devem ser gastos, para que tais serviços

17
HELLER, Leo; PITERMAN, Ana; REZENDE, Sonaly Cristina. (A falta de) Controle social das políticas municipais de
saneamento: Op. cit.
408 Daniel Wagner Heinig | Ana Paula Myszczuk

tenham maior qualidade, sejam eficientes e atendam aos interesses da maioria da população,
não ficando à mercê dos grupos clientelistas e privatistas”.18
O marco regulatório do saneamento no Brasil também deixou muito claro a neces-
sidade de participação social na formulação e fiscalização das políticas voltadas ao setor.
A obrigatoriedade de estabelecer mecanismos de controle social restou expressa no rol de
atribuições do titular dos serviços, com o intuito de garantir à sociedade informações, repre-
sentações técnicas e participações nos processos de formulação de políticas, de planeja-
mento e de avaliação.
Neste sentido, o artigo 47 da Lei 11.445/07 estabeleceu que a participação social
poderia se dar através de órgão colegiado de caráter consultivo, assegurada a representação
dos titulares dos serviços, de órgãos governamentais, dos prestadores e usuários dos ser-
viços públicos de saneamento básico e de entidades técnicas, organizações da sociedade
civil e de defesa do consumidor relacionadas ao setor. Assim, dentre as prerrogativas do
referido órgão colegiado, ou conselho municipal, está a aprovação do Plano Municipal de
Saneamento Básico, além da regulação, fiscalização e avaliação da prestação dos serviços
de Saneamento Básico, mediante apoio técnico.

3.3 A universalização dos serviços como princípio


fundamental

Conforme já evidenciado, a universalização do acesso ao saneamento básico é des-


tacada no marco regulatório como um dos princípios fundamentais a serem observados na
formulação de políticas públicas relacionadas à temática.
Nada obstante, é importante destacar que tal princípio faz parte inclusive das me-
tas de desenvolvimento do milênio estabelecida pela Organização das Nações Unidas, em
especial porque, como já abordado, o acesso aos serviços de água e coleta de esgoto tem
impacto direto nos indicadores relacionados à saúde da população, mortalidade infantil, er-
radicação de doenças e sustentabilidade ambiental.
A falta de água e de esgotamento sanitário ocasiona uma grande desvantagem no
ciclo de vida, considerando que enfermidades cognitivas e físicas derivadas dos problemas
sanitários reduzem o potencial de produção e de rendimento dos adultos e aumentam as
desigualdades de gênero. A água é mais cara para os pobres, e isso reforça ainda mais a
condição de pobreza. Estudo publicado em 2018, com base em dados de 2015, pela Comis-
são Econômica para a América Latina e o Caribe (Cepal), demonstra que o acesso a água e

18
CORREIA, Maria Valéria Costa. Que controle social? Os conselhos de saúde como instrumento. Rio de Janeiro:
Fiocruz, 2000.
O marco regulatório do saneamento no Brasil... 409

à coleta e tratamento de esgoto é 18% maior entre os 20% mais ricos da população brasileira
do que entre os 20% mais pobres.19
Neste sentido, a Constituição de 88 estabeleceu como dever do Estado a garantia
da universalização do serviço, mesmo que não haja capacidade de pagamento para tanto.
“Então, a escala ótima seria a de provisão do serviço com a qualidade mínima aceitável
pelos usuários, incorrendo nos menores custos para o prestador. Há casos em que a escala
ótima envolveria a utilização de redes ou componentes de infraestrutura por mais de um
município.”.20

4 METODOLOGIA

O presente trabalho consistiu em uma pesquisa descritiva, realizada através de pes-


quisa bibliográfica e documental, com o levantamento de dados secundários em relação aos
sistemas de abastecimento de água e coleta de esgoto dos municípios da região Norte de
Santa Catarina, que compreende nove municípios: Joinville, Garuva, Itapoá, Campo Alegre,
Rio Negrinho, São Bento do Sul, Araquari, Balneário Barra do Sul e São Francisco do Sul.
Assim, foram realizadas pesquisas em leis e decretos municipais dos nove municí-
pios, nos últimos doze anos, com o objetivo de verificar se as obrigações previstas na Lei
Federal 11.445/07, no que se refere à implantação das políticas municipais de saneamento
e à instituição do plano municipal de saneamento foram cumpridas. Em seguida, buscaram-
-se atos normativos que pudessem demonstrar a criação e efetiva atuação dos conselhos
municipais de saneamento.
Por outro lado, a análise da observância do princípio da universalização dos servi-
ços de saneamento foi realizada através dos indicadores contidos no sistema nacional de
informações de saneamento, SNIS, disponibilizado pela Secretaria Nacional de Saneamento
Ambiental, no período compreendido entre os anos de 2007 (ano de publicação do marco
regulatório) e 2017 (último ano contido na base de dados).

5 RESULTADOS E DISCUSSÕES

O referencial teórico deste estudo permite evidenciar que o marco regulatório do


saneamento no Brasil estabeleceu ainda no ano de 2007 a obrigatoriedade dos titulares dos
serviços de saneamento de implantarem, dentro de suas competências, a Política Municipal

19
CEPAL – Comisión Económica para América Latina y El Caribe. La ineficiencia de La desigualdad. Síntesis (LC/
SES. 37/4), Santiago, 2018.
20
NADALIN, Vanessa Gapriotti; LIMA NETO, Vicente Correia; KRAUSE, Cleandro. O saneamento básico como ques-
tão metropolitana: há cooperação? In: FURTADO, Bernardo Alves; KRAUSE, Cleandro; FRANÇA, Karla Christina
Batista de (Orgs.). Território metropolitano, políticas municipais: por soluções conjuntas de problemas urbanos
no âmbito metropolitano. 1. ed. v. 1. Brasília: Ipea, 2013. p. 225-258.
410 Daniel Wagner Heinig | Ana Paula Myszczuk

de Saneamento e o Plano Municipal de Saneamento. A primeira, contendo o modelo jurídico


institucional adotado e a definição clara e objetiva dos direitos e deveres dos cidadãos. O
segundo, estabelecendo objetivos, diretrizes, metas e condições de prestação dos serviços.
Ainda, determinou aos municípios que implantassem uma série de mecanismos de
participação e controle social. Dentre estes instrumentos, a norma federal deu destaque ao
Conselho Municipal de Saneamento.
Neste sentido, as pesquisas realizadas em leis e decretos municipais produzidos
pelos nove municípios do norte catarinense, e publicadas após o início da vigência da Lei
11.445/07, demonstraram avanços nas políticas de saneamento.
No que se refere à implantação da política municipal de saneamento, os estudos
apontaram que a maioria dos municípios alcançou a meta estabelecida pelo Decreto Federal
7217/2010, que determinava a data de 01/01/2014 como prazo final de cumprimento. Na
referida data, apenas os municípios de Campo Alegre e Garuva ainda não haviam estabele-
cido suas normas gerais de saneamento, logrando êxito nos anos de 2015 e 2017, respec-
tivamente.
E ambos os municípios somente não foram prejudicados com a demora na insti-
tuição das respectivas políticas municipais porque o Governo Federal, por três oportuni-
dades, ampliou o prazo anteriormente definido. A primeira prorrogação se deu através do
Decreto Federal 8211/2014, que estabeleceu a data de 31/12/2015 como prazo final. O
segundo adiamento veio através da publicação do Decreto Federal 8268/2015, que definiu
31/12/2017 como último dia de prazo. Por fim, o Decreto 9257/2017 prorrogou novamente
o limite de tempo para a implantação das políticas municipais, estabelecendo a data de
31/12/2019 como prazo final.
Por outro lado, os municípios tiveram mais dificuldade em instituir os planos muni-
cipais de saneamento. Estudos comprovam que os municípios de pequeno porte enfrenta-
ram muitas dificuldades na elaboração de seus planos municipais, tendo como principais
entraves a escassez de recursos financeiros, a carência de profissionais com qualificação
técnica e profissional em seus quadros de servidores, e a ausência de vontade política dos
gestores.21

21
LISBOA, Severina Sarah; HELLER, Léo; SILVEIRA, Rogério Braga. Desafios do planejamento municipal de sanea-
mento básico em municípios de pequeno porte: a percepção dos gestores. Eng. Sanit. Ambient. [online], v. 18, n.
4, 2013.
O marco regulatório do saneamento no Brasil... 411

TABELA 1 – Normas municipais e as políticas de saneamento

POLÍTICA MUNICIPAL DE SA- PLANO MUNICIPAL DE SANEA-


MUNICÍPIO
NEAMENTO BÁSICo MENTO BÁSICO

Lei Complementar Municipal


Araquari Lei Municipal 3.222/2017
84/2009

Baln. Barra do Sul Lei Municipal 1.055/2012 Lei Municipal 1.055/2012

Campo Alegre Lei Municipal 4.245/2015 Lei Municipal 4.593/2017

Garuva Lei Municipal 2.007/2017 Lei Municipal 1.987/2017

Itapoá Lei Municipal 294/2010 Decreto Municipal 1.205/2010

Lei Complementar Municipal


Joinville Decreto Municipal 26.680/2016
396/2013

Rio Negrinho Lei Municipal 2.616/2013 Lei Municipal 2.615/2013

São Bento do Sul Lei Municipal 3.055/2012 Lei Municipal 3.629/2015

São Francisco do Sul Lei Municipal 1.600/2013 Lei Municipal 1.600/2013

FONTE: Elaborado pelos autores.

De fato, para os municípios de Araquari, Garuva e Campo Alegre, os planos muni-


cipais de saneamento foram finalizados somente no ano de 2017, após a cooperação do
Ministério da Saúde, através do Fundo Nacional da Saúde – Funasa.
O auxílio do ente federal se deu através do Programa de Cooperação Técnica esta-
belecido pelo Ministério. O programa, direcionado especialmente para os municípios com
população total de até 50 mil habitantes garantiu os recursos humanos e financeiros neces-
sários para a confecção dos planos, através de convênio firmado com a Universidade do
Extremo Sul Catarinense – Unesc.
Para a realização dos referidos planos, a Unesc, por meio de seu Instituto de Pes-
quisas Ambientais e Tecnológicas, contou com uma equipe de 40 profissionais, dentre
engenheiros civis, químicos, ambientais e agrimensores, geólogos, geógrafos, arquitetos,
biólogos, economistas, advogados, estatísticos, assistentes sociais, secretárias executivas,
desenhistas, além de estagiários de diferentes cursos da Universidade.
Assim, os municípios da região norte de Santa Catarina tiveram êxito em estabelecer
suas políticas e planos municipais, conforme determinado pelo Marco Regulatório do Sanea-
mento, ainda que alguns tenham extrapolado o prazo inicial fixado no Decreto 7.217/2010
que regulamentou a norma federal. Por outro lado, ressalta-se que a assistência promovida
412 Daniel Wagner Heinig | Ana Paula Myszczuk

pelo Ministério da Saúde, através do financiamento dos estudos técnicos foi imprescindível
para o alcance de tais resultados.
No que se refere à participação da sociedade na construção das políticas de sanea-
mento e o controle social, importantes princípios inseridos nas políticas e planos municipais
de saneamento básico, o estudo apontou que estes não se efetivaram em sua plenitude em
todos os municípios analisados.
Sobre os conselhos municipais de saneamento, verificou-se que todos os municí-
pios instituíram o órgão colegiado. Neste contexto, as principais atribuições conferidas a eles
foram: formular propostas de revisões de taxas, tarifas e outros preços públicos formuladas
pelo órgão regulador; deliberar a respeito do plano municipal de saneamento básico e suas
revisões; e propor alterações de normas legais e administrativas de regulação dos serviços.
Apesar disso, em três dos nove municípios analisados, os conselhos municipais
de saneamento, apesar de instituídos, nunca foram efetivamente compostos pelos atores
sociais destacados na norma, tendo em vista que inexistem atos de nomeação. Assim, con-
sidera-se como presumível que nesses municípios (Garuva, Campo Alegre, Balneário Barra
do Sul) nunca tenha havido qualquer reunião dos referidos conselhos.
Dessa forma, percebe-se que em alguns municípios as ações de saneamento ainda
não são debatidas em órgãos colegiados, existindo um espaço em branco no que diz res-
peito ao controle social na política pública municipal do setor. Tal situação acaba por deixar
as decisões fundamentais sob uma estrutura vertical e tecnicista, sem qualquer controle
democrático efetivo a respeito das deliberações do poder executivo municipal.22
Nos demais município verificou-se ao menos a nomeação de uma composição do
conselho municipal de saneamento, e muito embora a pesquisa não tenha se estendido à
verificação da efetividade dos conselhos, ao menos se pode inferir que existem conselheiros
designados.

5.1 Da universalização dos serviços de abastecimento de


água e coleta e tratamento de esgoto

A pesquisa buscou ainda verificar que resultados os municípios do norte catarinense


registraram ao longo do período de dez anos após a publicação da Lei Federal 11.445/07, em
termos de expansão dos serviços de abastecimento de água e coleta e tratamento de esgoto.
Por consequência, analisar se o princípio da universalização dos serviços de saneamento
tem sido observado.

22
HELLER, Leo; PITERMAN, Ana; REZENDE, Sonaly Cristina. (A falta de) Controle social das políticas municipais de
saneamento: Op. cit.
O marco regulatório do saneamento no Brasil... 413

Assim, foram realizadas análises baseadas nos indicadores contidos no sistema


nacional de informações de saneamento, SNIS, disponibilizado pela Secretaria Nacional de
Saneamento Ambiental, no período compreendido entre 2007 (ano de publicação do marco
regulatório) e 2017 (último ano contido na base de dados). Os dados coletados pelo SNIS
apontam para duas realidades distintas: de um lado, avanços consideráveis nos serviços de
abastecimento de água potável. De outro, resultados preocupantes relacionados aos servi-
ços de coleta e tratamento de esgoto.
No que se refere ao abastecimento de água, destaca-se primeiramente que o nú-
mero de habitantes atendidos na região aumentou 23% no período de dez anos, saltando
de 663.742 para 816.412 moradores. Por sua vez, a população total da região passou de
701.069 para 847.080, um aumento de 20,83%. Dentre os analisados, merecem destaque
os municípios de Garuva e Campo Alegre, que registraram aumentos expressivos no percen-
tual de habitantes atendidos. O primeiro registrava 39,36% em 2007, e passou a 81,50% da
população atendida em 2017. O segundo, no mesmo período, saltou de 63,36% para 100%
da população.23 O gráfico abaixo reflete os resultados de cada município analisado:

GRÁFICO 1 – Abastecimento de água – População atendida (%)

FONTE: Sistema Nacional de Informações de Saneamento – SNIS.

Outros dados do SNIS apontam que as redes de abastecimento e distribuição de


água existentes nos nove municípios da região foram expandidas em 26,80%, chegando ao
total de 4.365 quilômetros de extensão. Destaques para os municípios de Garuva, Itapoá
e Campo Alegre, que expandiram suas redes em 69,65%, 101,41% e 493,75%, respecti-

23
SNIS – Sistema Nacional de Informações sobre Saneamento. Consumo de água por habitante. S.d. Disponível em:
http://www.snis.gov.br/index.php. Acesso em: 10 jul. 2019.
414 Daniel Wagner Heinig | Ana Paula Myszczuk

vamente.24 Ainda em relação às redes de distribuição de água, também foram analisados


dados referentes à quantidade de ligações totais de água (indicador AG021). Os números
indicaram que na década que sucedeu à publicação da Lei 11.445/07 as ligações totais au-
mentaram 29,51% na região, com destaque para os municípios de Araquari e Garuva, com
crescimento na ordem de 153,89% e 151,63%, respectivamente.

GRÁFICO 2 – Quantidade de ligações totais de água

FONTE: Sistema Nacional de Informações de Saneamento – SNIS.

Por outro lado, apesar dos importantes avanços no que se refere ao abastecimento
de água potável, a deficiência no acesso ao serviço ainda é realidade para 30.668 habitantes
da região, o que corresponde a quase 4% de sua população total. Além do mais, os municí-
pios de Garuva e Araquari ainda registram percentuais abaixo da média brasileira, que no ano
de 2017 alcançou 83,5% da população.
Contudo, se no quesito abastecimento de água os números da região foram positi-
vos, nos serviços de coleta e tratamento de esgoto esses resultados não se repetiram. No
ano de 2007, quando da publicação do marco regulatório do saneamento, os índices de
população atendida pelo serviço já apresentavam números alarmantes. Naquele ano, apenas
11,98% da população total da região norte era atendida pelo serviço de coleta e tratamen-
to de esgoto, correspondendo a 83.986 habitantes. Mais preocupante ainda era o fato de
que, dos nove municípios analisados, apenas três (Joinville, Rio Negrinho e São Bento do
Sul) disponibilizavam, ainda que parcialmente, os serviços. Os outros seis municípios não
registravam quaisquer números. Sequer indicavam um metro de rede coletora de esgoto.
Ultrapassados dez anos da publicação da lei, pouco se evoluiu. Os últimos dados disponíveis

24
SNIS – Sistema Nacional de Informações sobre Saneamento. Consumo de água por habitante. Op. cit.
O marco regulatório do saneamento no Brasil... 415

no Sistema Nacional de Informações de Saneamento (SNIS), do ano de 2017, apontam que


os mesmos seis municípios da região norte catarinense permanecem sem qualquer sistema
de coleta e tratamento de esgoto. Por outro lado, os municípios de Joinville, Rio Negrinho e
São Bento do Sul avançaram nos números de atendimentos, alcançando 29,85%, 19,03% e
22,81% de sua população, respectivamente.
Nota-se que, apesar de avanços nas três cidades que possuem sistema de coleta e
tratamento de esgoto, todos os percentuais continuam bem abaixo dos 43,93% registrados
na região Sul do Brasil, e dos 52,36% da média nacional.25 O gráfico a seguir demonstra a
evolução nos percentuais de atendimento dos três municípios que possuem a rede coletora
de esgotos, e registra a ausência de atendimentos nos outros seis municípios analisados:

GRÁFICO 3 – Coleta e tratamento de esgoto – população atendida (%)

FONTE: Sistema Nacional de Informações de Saneamento – SNIS.

Esses dados permitem afirmar que há uma contradição no setor de saneamento na


região norte catarinense, pois ao mesmo tempo em que os serviços de abastecimento de
água atingem níveis satisfatórios, acima inclusive da média nacional, a rede de esgotamento
sanitário é uma das piores do Brasil, o que demonstra que a universalização do acesso ao
saneamento básico, no que se refere aos serviços de coleta e tratamento de esgoto, ainda
não é tida como preocupação central na maioria dos municípios analisados.

25
SNIS – Sistema Nacional de Informações sobre Saneamento. Consumo de água por habitante. Op. cit.
416 Daniel Wagner Heinig | Ana Paula Myszczuk

6 CONSIDERAÇÕES FINAIS

O presente estudo permitiu a análise de alguns impactos gerados pela Lei Federal
11.445/2007, conhecida como o Marco Regulatório do Saneamento no Brasil, em municí-
pios do norte catarinense. Em especial, buscou verificar se os municípios apontados instituí-
ram suas políticas e planos municipais de saneamento, bem como os órgãos colegiados de
participação e controle social.
Por outro lado, permitiu analisar a evolução da prestação dos serviços de abasteci-
mento de água e coleta e tratamento de esgoto, no período de uma década após a publicação
da norma federal.
O objetivo do trabalho foi alcançado, tendo em vista que a pesquisa permitiu de-
monstrar que os municípios catarinenses analisados constituíram suas políticas municipais
de saneamento no prazo estabelecido. Da mesma forma, os planos municipais foram ins-
tituídos, ainda que alguns municípios tenham necessitado de auxílio técnico e financeiro
promovido pelo Ministério da Saúde, através de convênio com a Universidade do Extremo
Sul Catarinense.
No que se refere à implantação de órgãos colegiados (conselhos municipais), a pes-
quisa apontou que, apesar de legalmente criados, em alguns municípios os referidos conse-
lhos não se mostram atuantes, apontando a necessidade de reflexão acerca da participação
e controle social nas respectivas políticas de saneamento.
Não obstante, quando a análise se refere à universalização dos serviços de sanea-
mento básico, percebe-se que as atenções continuam voltadas à expansão do abastecimen-
to de água a toda a população local, deixando de lado a preocupação com a implantação de
rede de coleta e tratamento de esgoto. Assim, se por um lado a universalização dos serviços
de abastecimento encontra-se muito próxima de se tornar realidade, por outro se verifica um
enorme abismo que persiste em separar a população do efetivo tratamento do esgoto.
Ademais, como limitação do estudo, ressalta-se que a pesquisa envolveu exclusiva-
mente dados obtidos no Sistema Nacional de Informações de Saneamento, referentes a seis
indicadores apenas. Assim, inegável a impossibilidade de generalização dos resultados aqui
apresentados, mormente se considerar que os dados disponíveis na plataforma SNIS são
alimentados pelos próprios entes federados titulares dos serviços.
Torna-se imprescindível, assim, que novos estudos possam aprofundar ainda mais a
análise da implantação das políticas públicas de saneamento. Neste sentido, novas pesqui-
sas poderiam avaliar qual a percepção dos usuários dos sistemas, verificando quais são os
pontos positivos e negativos da política pública, bem como relacioná-los ao controle social
e participação democrática tidos como princípios norteadores das políticas de saneamento.
O marco regulatório do saneamento no Brasil... 417

REFERÊNCIAS

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21 de junho de 1993, 8.987, de 13 de fevereiro de 1995; revoga a Lei no 6.528, de 11 de maio de 1978;
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418 Daniel Wagner Heinig | Ana Paula Myszczuk

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SNIS – Sistema Nacional de Informações sobre Saneamento. Consumo de água por habitante. S.d.
Disponível em: http://www.snis.gov.br/index.php. Acesso em: 10 jul. 2019.
PARTE III

RESUMOS DE
EXPERIÊNCIAS
INOVADORAS EM
GESTÃO PÚBLICA
Desenvolvimento Nacional 421

Licitações públicas – transparência na era


digital na administração municipal

José Roberto Tiossi Junior


Mestre em Direito (Unicesumar)

É inegável reconhecer que os procedimentos licitatórios no Brasil sempre foram alvo


de especulação e desconfiança por parte dos órgãos de fiscalização e da população em
geral, principalmente em âmbito municipal. Instaurou-se uma cultura de que as licitações
públicas carecem de transparência, lisura e profissionalismo, fruto de constantes casos de
corrupção. Ocorre que os pregões eletrônicos, ferramentas inovadoras de transparência e
isonomia nos certames, ainda estão distantes da realidade de boa parte dos municípios
brasileiros, em especial aqueles de menor porte localizados no interior. Diante deste cenário,
foi desenvolvido um grande projeto de transparência, capaz de propagar informações dos
certames públicos presenciais em tempo real pela internet. Referido projeto foi implantando
no município de Mandaguari, localizado na região Norte do Estado do Paraná e que possui
uma população de aproximadamente 35.000 mil habitantes, buscando garantir mais eficiên-
cia, transparência e controle em seus procedimentos licitatórios. Dessa forma, o autor foi
contratado como responsável técnico para prestação de serviços técnicos especializados de
consultoria jurídica, visando a implantação do projeto de “transmissão online e em tempo
real das licitações presenciais”, através de uma reestruturação de procedimentos, encami-
nhamento de minutas e capacitação dos servidores públicos. O intuito era garantir a ampla
divulgação dos certames públicos no Portal de Transparência e redes sociais, oferecendo
a transmissão online das licitações municipais como ferramenta de participação e controle
social. Foi editada a Lei Municipal 2.912/2017 de 03 de julho de 2017, que determinava a
transmissão online, via internet, de todas as licitações realizadas no Município. Referido
projeto se tornou uma valorosa iniciativa do Poder Executivo Municipal para promover a boa
aplicação dos recursos públicos através de ações transparentes que permitem o acompa-
nhamento e controle social. A efetivação deste projeto demonstra o compromisso com a
reversão dos tributos pagos pela população à consecução das finalidades da Administração
Pública. Oferece, inclusive, oportunidade para assegurar o tratamento isonômico entre os
licitantes de forma transparente, além de ampliar a fiscalização e o interesse da participação
popular, desmistificando a falsa noção que o certame público é local de falcatruas e acordos
imorais entre Administração Pública e particular. Desta feita foram adquiridas câmeras de
filmagem de alta resolução, bem como microfones de alta captação para serem instalados
na sala de licitações localizada no Paço Municipal. Aliado a estas aquisições, foram adqui-
422 Fabrício Motta | Emerson Gabardo - Coords.

ridos equipamentos e softwares de informática para possibilitar as transmissões online, via


internet dos certames licitatórios. Os resultados foram imediatos, pois permitiu a população
conhecer de forma remota, mas em tempo real, o que estava sendo adquirido ou contratado
pelo Poder Público Municipal, além de ter eliminado práticas corruptivas durante o certame.
O combate à corrupção no âmbito das contratações públicas e o incremento da transparên-
cia eram os focos do projeto.

Palavras-chave: Licitação. Transparência. Internet. Controle. Eficiência.


Desenvolvimento Nacional 423

Gestão de riscos como condição para uma admi-


nistração sustentável: atuação da Controladoria
Geral da Prefeitura de Santa Maria-RS

Carolina Salbego Lisowski


Doutora em Letras (UFSM)
Professora (Faculdade Palotina)

Tratando-se de boas práticas públicas e de gestão, mais do que se pensar em revi-


são de atos, é latente a necessidade de a administração pública, em seus diversos níveis,
trabalhar de forma proativa, ampliando as possibilidades de ação, sem deixar de lado, por
óbvio, o respeito aos requisitos legais. Contudo, a realização de ações públicas nem sempre
representam tomadas de decisão ou atos sustentáveis, antevendo as necessidades de ser-
viços e prestações públicas, a administravam ainda precisa fazer isso a partir das melhores
decisões, o que, por sua vez, demanda um arcabouço eficiente de dados e referenciais
que devem estar à disposição do gestor. Nesse sentido, em 2016, a Lei Federal 13.303/16
concedeu destaque aos estudos de impacto de riscos, como forma de acompanhamento
e de melhor estratégia de controla para os atos públicos vinculados a estes órgãos. Nesse
contexto, mesmo que já seja pauta de controle de alguns órgãos externos, nem todos os
municípios regulamentaram tais práticas em seus âmbitos, não tendo aderido a esta meto-
dologia, nem do ponto de vista formal – via lei – nem material, via práticas estabelecidas.
Nesta oportunidade, o que se quer é apresentar a adoção das teorias e práticas sobre gestão
de riscos no âmbito da Controladoria e Auditoria Geral (Cagem) do Município de Santa Maria,
como forma de tomada de decisão para gestão de procedimentos administrativos. No aspec-
to prático, cabe destacar que ainda não há, em Santa Maria, lei municipal ou qualquer outro
ato normativo que faça a adesão do município às práticas da gestão de riscos. Contudo,
a Cagem, reconhecendo-se como órgão orientador das boas práticas dos demais órgãos
municipais estabeleceu, em 2018, estabeleceu o “Grupo de Práticas de Gestão de Riscos”,
formado por 6 servidores que atuam como gestores de equipes, na Cagem. As reuniões da
equipe são semanais e a metodologia de trabalho se estabelece a partir do mapeamento
dos principais processos administrativos realizados por cada Superintendência. Entende-se
que somente após os processos administrativos terem seus trâmites regulamente mapeado
pelos próprios servidores que os originam, desenvolvem, impulsionam e finalizam, e que
será possível estabelecer a gestão de risco dos processos, indicando as fragilidades de cada
ato, as possibilidades de problemas deles advindos e as vantagens públicas que surgem a
cada decisão. No caso dos órgãos municipais de Santa Maria, não se tem definidos objetivos
424 Fabrício Motta | Emerson Gabardo - Coords.

gerais e específicos de cada órgão, havendo somente as atribuições legais, o que acaba por
comprometer a atuação de muitas secretarias em face ou da ausência de atuação ou da
sobreposição de funções legais, qualquer uma dessas possibilidades bastante importante
quando se trata de avaliação de riscos. Trata-se de projeto em desenvolvimento, até então,
foram identificados os objetivos gerais e específicos da Cagem, além de mapear e levantar
riscos de 6 processos. Foram reconhecidos 10 riscos em cada processo que já são balizas
a atuação do setor a fim de reconhecer e priorizar as ações em cada ato, o que já possibilita
após a ação piloto, estender à pratica aos demais setores da Prefeitura.

Palavras-chave: Gestão de risco. Gestão de processos. Administração pública municipal.


Controladoria geral. Sustentabilidade.
Desenvolvimento Nacional 425

O uso das novas tecnologias nos serviços


públicos: a experiência do município de Pato
Branco (PR) no ranking das cinco principais
smart cities de médio porte do Brasil

Bárbara Dayana Brasil


Doutora em Direito Público (Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra)
Diretora da Procuradoria Geral do Município de Pato Branco

A quarta Revolução Industrial radica num processo evolutivo sentido em diferentes


dimensões, com transformações de escala e complexidade incomparáveis. Inteligência ar-
tificial, robótica, neurotecnologia, internet das coisas, virtualização dos espaços, conceitos
antes apenas imaginados que trouxeram a ficção científica para a vida. Tem-se um ambiente
disruptivo, de crescimento rápido e exponencial, em que desafios profundos são colocados
a Administração Pública, em especial quanto ao modo como as novas tecnologias podem
operar nos serviços públicos. Neste âmbito, a atuação administrativa disruptiva pode se dar
sobre todo o ciclo dos serviços públicos: no planejamento, na execução e no controle, alcan-
çando todas as realidades, quer executados pelo Estado quer por particulares. No planeja-
mento, é possível ter um suporte preciso na tomada de decisões para impulsionar eficiência
e cortar custos, contribuir com a redução de uso de recursos naturais, geração de resíduos
e consumo de energia, especialmente no espaço urbano, o que trouxe o conceito de “smart
cities” que estimulam a inovação sustentável com estruturas digitais e redes interligadas. O
Município de Pato Branco no Estado do Paraná é um case de bons resultados no uso das
novas tecnologias, o que o colocou em 5º lugar no país no ranking das cidades inteligentes
de médio porte segundo a Revista Exame. Medidas integradas na execução dos serviços
públicos, como fornecimento de tablets e notebooks nas escolas para compartilhamento de
conteúdos e formação continuada, aulas de robótica, internet livre nos espaços públicos, a
estruturação do Parque Tecnológico com fomento a pesquisa, extensão e inovação de em-
presas de base tecnológicas e qualificação de mão de obra especializada atraem empreende-
dores de todo o país e até mesmo do exterior. A essas medidas, alia-se uma infraestrutura de
redes de fibra ótica, totens de autoatendimento digital, internet no campo, monitoramento do
trânsito e espaços públicos, limpeza pública integrada, agendamento de consultas, prontuá-
rio eletrônico e outras que permitem controle eficiente de recursos públicos e transformam
o ambiente ao possibilitar maior autonomia tecnológica. Como resultado, a concretização da
democracia material é obtida com a inclusão digital e a universalidade do acesso à tecno-
426 Fabrício Motta | Emerson Gabardo - Coords.

logia, de modo a assegurar a liberdade de informação e o exercício efetivo da cidadania na


realidade cada vez mais digital. Além disso, o ecossistema de inovação do município reúne
infraestrutura e arranjos institucionais e culturais, que atraem empreendedores e recursos
financeiros, potencializa o desenvolvimento da sociedade do conhecimento e promove uma
atuação administrativa disruptiva adequada às novas necessidades. Através desta experiên-
cia é possível demonstrar que a Administração Pública tem ao seu alcance, com as novas
tecnologias, a oportunidade de alcançar maior eficiência nos serviços públicos e atender aos
princípios fundamentais do Estado, em especial a dignidade da pessoa humana e a cidadania
que lhe conferem fundamento, no quadro de uma esfera pública digital.

Palavras-chave: Revolução industrial. Administração pública disruptiva. Smart cities. Servi-


ços públicos. Cidadania digital.
Desenvolvimento Nacional 427

Ouvidoria 100%: ranking de eficiência dos


interlocutores e secretarias

Weber Dias Oliveira


Pós-graduado em Direito Público com ênfase em Direito Administrativo
e Direito Constitucional (“Newcorp” – Educação Corporativa Newton Paiva,
em parceria com a Associação Nacional dos Magistrados Estaduais)
Controlador Geral do Município de Contagem

A Controladoria Geral do Município, buscando eficiência na prestação do serviço


público, apresenta o Reis – Ranking de Eficiência dos Interlocutores e Secretarias. O objetivo
do trabalho é gerar uma competitividade positiva entre as secretarias, visando o atendimento
de 100% das demandas de ouvidoria em prazos menores e aumentando a qualidade das
respostas. O Reis busca envolver, treinar e estimular os secretários/interlocutores, desen-
volvendo indicadores e aprimorando a comunicação democrática entre a administração e o
munícipe. As secretarias são avaliadas pelo Ouvidor Geral do Município com relação à todas
manifestações registradas pela Ouvidoria através de seus canais de atendimento (telefone,
internet, presencial). São considerados o tempo de resposta, a participação dos interlocu-
tores e secretários nos treinamentos oferecidos, desenvolvimento de projetos de Ouvidoria
Ativa, número de demandas e elogios. Serão divulgados resultados parciais trimestrais e o
total anual, em duas tabelas de classificação, sendo uma para secretarias mais demandadas
e outra para menos demandadas. A pontuação máxima será de 100 pontos, distribuídos em:
prazo de respostas – 50 pontos (avaliação trimestral e anual); participação em treinamen-
tos – 20 pontos (avaliação anual); desenvolvimentos de projetos de Ouvidoria Ativa – 10
pontos (avaliação anual); por demanda – a cada 100 manifestações recebidas, a secretaria
ganhará 01 ponto, com limite máximo de 20 pontos; e pontos extras por elogios – 02 pontos
(limitado à 10 pontos, contando como critério de desempate). As Secretarias serão classi-
ficadas como Mais Transparente (1º, 2º e 3º lugares); Transparente (até 60% do 3ºlugar) e
Não Transparente (abaixo de 60% do 3º lugar). O Secretário poderá recorrer das avaliações
do Ouvidor ao Controlador Geral (pontuações, negativas de propostas de ouvidorias ativas,
reprovação de cursos externos, perdas de prazos para resposta e idoneidade dos elogios).
As secretarias que alcançarem os melhores desempenhos terão publicados seus resultados
no Portal da Transparência e os secretários receberão certificados em evento realizado pela
CGM. Os interlocutores que se destacarem receberão certificado de eficiência, registrado em
pasta funcional e publicado no Diário Oficial. A secretaria que obtiver status não transparen-
te, deverá adotar medidas corretivas, podendo, a critério do Controlador Geral, firmar Termo
de Compromisso de Gestão. Os agentes públicos que inadimplirem com as obrigações, não
428 Fabrício Motta | Emerson Gabardo - Coords.

obtendo notas finais acima 50% do 3º lugar, estarão sujeitos às penalidades estabelecidas no
Estatuto do Servidor, LRF 101/2000, Lei 13.460/2017, Lei 12.527/2011 e Lei 8.429/1992.
Como resultado da implementação do programa, foi auferida maior eficiência das respostas,
com aumento de 10% em demandas respondidas entre 0-20 dias; elevação no número de
demandas respondidas de 85% para 97%, com expectativa de alcançar 100% até o final do
ano; aumento da confiabilidade na ouvidoria, com a elevação do número de demandas rece-
bidas. Com o Reis, a CGM conseguiu favorecer a eficiência e a transparência na execução
das exigências do Código de Defesa do Usuário dos Serviços Públicos - Lei 13.460/2017.
Assim, pretende-se continuar a alcançar melhorias no atendimento ao munícipe, na presta-
ção dos serviços públicos e na transformação do modelo de ouvidoria, resultando em um
formato mais eficiente, ativo e democrático.

Palavras-chave: Ouvidoria. Ranking. Eficiência. Indicadores. Transparência.


Desenvolvimento Nacional 429

Plano Mineiro de Promoção da


Integridade – PMPI

Nicolle Ferreira Bleme


Subcontroladora de Transparência e Integridade na
Controladoria Geral do Estado de Minas Gerais

Juliana Aschar
Superintendente Central de Integridade e Controle Social na
Controladoria Geral do Estado de Minas Gerais

Visando contribuir para o desenvolvimento sustentável, crescimento econômico,


preservação do meio ambiente e progresso social, a Controladoria Geral do Estado de Minas
Gerais (CGE) lançou o Plano Mineiro de Promoção da Integridade (PMPI), por meio do Decre-
to n. 47.185/2017. Essa iniciativa é pertinente às práticas e arranjos institucionais para pre-
venção à corrupção, incremento à transparência e gestão de licitações e contratos. Objetivo:
Apresentar um conjunto de ações que tem como finalidade criar um ambiente íntegro – de
conduta ética, honestidade e conformidade – no Estado de Minas Gerais, no âmbito da admi-
nistração pública, iniciativa privada e sociedade, bem como apoiar a instituição de ambiente
de integridade nas licitações e contratações públicas e ainda, disseminar metodologias e
boas práticas em ações de integridade para os municípios de Minas Gerais. Procedimento
metodológico: Atendendo ao objetivo do PMPI de fomentar a cultura de integridade, a CGE
desenvolveu a seguinte metodologia, para implementação dos programas de integridade:
instituição de grupos de trabalho multidisciplinares; avaliação dos eixos temáticos de in-
tegridade; elaboração do Programa de Integridade; consulta pública interna (servidores e
gestores); plano de comunicação e treinamento; publicação e monitoramento do Programa.
Resultados: O PMPI propõe a criação de planos de integridade específicos para cada órgão
ou entidade e de maneira inovadora, a CGE sugere a implementação estruturada, com me-
todologias e ferramentas adaptadas à realidade da instituição. Até o mês de setembro de
2019 foram publicados 06 Planos de Integridade (Saúde, CGE, Funed, Hemominas, Plane-
jamento e Fazenda) e há outros 06 em fase de elaboração. Em relação a ações implementa-
das, citamos: Publicação da agenda dos gestores, divulgação dos voos governador, criação
do Conselho de Transparência e Combate à Corrupção, melhoria do canal de denúncias,
publicação de guias de integridade pública, seleção de cargos comissionados de gestão
por processo seletivo (Transforma Minas) e criação do sistema (plataforma eletrônica) de
monitoramento do PMPI. Conclusões: A promoção da integridade é um tema atual que vem
sendo debatido e articulado em organizações públicas e privadas. Legislações internacionais
430 Fabrício Motta | Emerson Gabardo - Coords.

e nacionais antifraude, antissuborno, entre outras – em especial a Lei Anticorrupção Brasi-


leira (12.846/2013) – estimulam as organizações a criar programas de integridade. Nesse
sentido o PMPI é um instrumento importante para a administração pública, pois a sociedade
demanda eficiência e qualidade na prestação de serviços e atendimento a suas inúmeras
necessidades, sem abrir mão do respeito e conformidade às leis, prestação de contas e
responsabilidade com a boa gestão dos recursos públicos.

Palavras-chave: Compliance. Integridade. Transparência. Fomento. Prevenção.


Desenvolvimento Nacional 431

Eficiência na gestão educacional municipal:


projeto “Situação nas Escolas” e os 100
indicadores para uma escola de qualidade
em Ribeirão Preto – SP

Celso de Almeida Afonso Neto


Mestrando em Direito (USP)

Fábio Wendel de Souza Silva


Graduando em Direito (USP)

O presente trabalho informa sobre a criação de um método para a fiscalização da


Secretaria Municipal de Educação (SME) no tocante às ações de manutenção e melhoria do
espaço físico e pedagógico das instituições municipais de ensino, bem como no amparo aos
servidores e estudantes vinculados. Tudo isso alicerçado no art. 37 da Constituição Federal,
que prega por uma administração pública eficiente e transparente, embasando-se, então,
na análise de diversas leis federais, estaduais e municipais sobre o tema, bem como leitura
de especialistas em gestão escolar. Assim, após um ano de estudos e reuniões com espe-
cialistas e profissionais da educação, criou-se 100 indicadores para avaliar a qualidade das
escolas administradas pela Prefeitura de Ribeirão Preto, disponibilizados para consulta no
site “www.situacaodasescolas.com.br”. A inovação dessa ferramenta é a democratização
do controle social, pois qualquer pessoa nutrida de conexão com a internet poderá saber
a qualidade da escola em que seu filho estuda, de maneira simplificada e de fácil acesso,
além de compreender quais ações a SME adota para desenvolver a qualidade do ensino
na cidade. Tais indicadores estão agrupados em 10 supraindicadores, os quais estão des-
critos numa Cartilha Técnica disponível no site “http://fabianoguimaraes.com/wp-content/
uploads/2019/08/CARTILHA-TECNICA-SITUACAO-DAS-ESCOLAS.pdf”, e são, especifica-
mente, condições gerais de: 1) Segurança predial e prevenção a incêndio, 2) Gestão, manu-
tenção e estrutura, 3) Segurança do trabalho e ergonomia, 4) Entorno da escola. 5) Acessi-
bilidade, 6) Segurança patrimonial, 7) Adequação do quadro de professores e funcionários,
8) Atenção Psicológica e à Saúde, 9) Capacitação do Quadro de Servidores das unidades
escolares, e 10) Pedagógicas. A plataforma tem suas informações atualizadas trimestral-
mente por meio de requerimento protocolado pelo gabinete do Vereador Fabiano Guimarães
e direcionado à SME, que repassa o formulário com as perguntas e opções de resposta
(“Sim”, “Não” e “Não se Aplica”) para as 107 escolas municipais. Portanto, os dados que
432 Fabrício Motta | Emerson Gabardo - Coords.

chegam ao site possuem presunção de veracidade. Contudo, qualquer munícipe pode dis-
cordar dessas respostas e realizar denúncias no site; a partir disso, a equipe do Vereador
supracitado averigua o ocorrido. Oportuno contextualizar que a qualidade do ensino público
municipal em Ribeirão Preto pouco avança nos últimos anos, vide os resultados do Índice de
Desenvolvimento da Educação Básica (IDEB) entre 2011 e 2017 (ano da última medição).
Não obstante, mesmo o IDEB, importante mecanismo de avaliação, não é suficiente em um
cenário de dificuldades também estruturais nas escolas municipais. Diante disso, o Projeto
“Situação nas Escolas” e seus 100 indicadores para uma escola de qualidade surgem como
uma ferramenta que concentra diversas informações em todos os âmbitos da gestão escolar,
simplificando, dessa forma, a fiscalização social dos munícipes. Por fim, cabe informar que
a referida plataforma recebe aprimoramento constante sobre o objeto das perguntas e na
forma como estão dispostos. Desta feita, sugestões e críticas da comunidade escolar são
recebidas e aplicadas para o pleno desenvolvimento de uma ferramenta eficiente, inovadora
e moderna para uma boa prática da administração pública.

Palavras-chave: Gestão educacional. Controle social. Transparência. Indicadores. Inovação.


Desenvolvimento Nacional 433

Integração na análise automatizada de risco


em licitações e contratos

Henriques Moreira Turíbio


Bacharel em Ciência da Computação (IUESO)
Acadêmico de Direito (UFG)
Auditor de Controle Externo no Tribunal de Contas dos
Municípios do Estado de Goiás

Cézar Augusto Ferreira


Engenheiro de software (UFG)
Assessor Técnico no Tribunal de Contas dos
Municípios do Estado de Goiás

Com o objetivo de aumentar a eficiência das atividades de controle externo exerci-


das pelo Tribunal de Contas dos Municípios do Estado de Goiás (TCMGO), foi desenvolvido
uma nova plataforma para recepção e análise de dados de jurisdicionados. A plataforma
contém diversas novas funcionalidades, sendo uma delas a integração de serviços para a
análise automatizada de risco em licitações e contratos. A integração de serviços consiste
na utilização de outras soluções desenvolvidas pelo próprio TCMGO ou por agentes externos
(outros órgãos ou entidades da administração pública) para buscar evidências que possam
identificar o índice de risco presente na licitação ou contrato, com isso, a análise de risco é
potencializada por aproveitar serviços já implementados, não exigindo que sejam implemen-
tados exclusivamente com a finalidade de análise de risco na plataforma. A integração dos
serviços é realizada no momento da inclusão de pontos de verificação a serem aplicados
nos dados dos jurisdicionados. Sobre os pontos de verificação, estes são construídos de
forma dinâmica, permitindo que sejam continuamente criados e evoluídos, assim, o ganho
de eficiência na atividade de controle é considerável, tendo em vista que esse processo de
criação e evolução passa a ser realizado com menor custo ao Tribunal, em razão do baixo
nível de esforço necessário quando comparado aos métodos tradicionais de inclusão de
novas verificações em sistemas de informação, além de se aproveitar serviços externos
integrando-os ao serviço do TCMGO. Cabe destacar que as verificações são realizadas no
momento do recebimento, sobre todos os dados recebidos, permitindo que seja calculado
um índice de risco para seleção de casos em que o Tribunal atuará diretamente. Esse modelo
permite que a seleção de casos não se baseie estritamente em critérios probabilísticos, per-
mitindo que critérios não probabilísticos sejam aplicados sem prejudicar a objetividade com
a qual os casos são selecionados para fiscalização. Os resultados obtidos até o momento
434 Fabrício Motta | Emerson Gabardo - Coords.

são satisfatórios, em vista das estimativas iniciais. Entre os mais de 100 mil envios de dados
recepcionados (licitações, atos de dispensa de licitação e contratos), mais de 1 milhão de
verificações foram realizadas, a partir de 25 pontos de verificação únicos, sendo 163 mil
consultas a serviços externos, possibilitadas pelo modelo de integração. Essas verificações
incluem: verificações junto ao cadastro da pessoa na Receita Federal do Brasil; verificação
de existência de sanção administrativa aplicada por outros órgãos da Administração Pública;
verificação de risco de conflitos de interesse; entre outros. Atualmente, o projeto encontra-
-se em fase de prospecção de serviços externos para serem integrados e consultados no
momento da análise de dados. A Lei de Acesso à Informação, Lei n. 12.527/11, em seu art.
8º, § 3º, III, prevê disponibilização de dados em formatos abertos para serem consultados
por sistemas externos de forma automatizada. Assim, com a ampliação gradual de serviços
disponibilizados, novos pontos de verificação serão incorporados, ampliando a capacidade
da solução identificar o adequado nível de risco presente no objeto sob análise.

Palavras-chave: Análise de risco. Tribunal de contas. Controle externo. Fiscalização. Inte-


gração de sistemas.
Desenvolvimento Nacional 435

O controle interno no Poder Legislativo – um


estudo de caso da Câmara Municipal
de Campinas

Bruno Barbosa de Souza Santos


Pós-graduando em Gestão Pública Municipal (Unifesp)
Controlador Geral adjunto na Câmara Municipal de Campinas-SP

Heloisa Candia Hollnagel


Doutora em Ciências (USP)
Professora do Departamento de Ciências Contábeis (Unifesp)

A implantação do sistema de controle interno de cada Poder, em todas as esferas de


governo, é um mandamento constitucional e o Tribunal de Contas do Estado de São Paulo
tem firmado posicionamento em fazer cumprir essa determinação da Carta Magna, seja por
meio de seus comunicados emitidos, seja nas fiscalizações realizadas aos órgãos sob sua
guarda, afinal após mais de três décadas da promulgação da constituição federal de 1988,
ainda há órgãos públicos que não contam com um sistema de controle interno. Em 2014 o
TCE-SP apontou que dos 644 municípios fiscalizados, 193 não dispunham, ao menos, de
um servidor formalmente designado para tal atividade. Com uma pesquisa descritiva e qua-
litativa, na modalidade estudo de caso o objetivo desse trabalho foi descrever a implemen-
tação e o funcionamento do sistema de controle interno no âmbito do Poder Legislativo de
Campinas abordando a concepção teórica e normas regulamentadoras, bem como analisar
sua contribuição para o aprimoramento da gestão. Os resultados encontrados nesse estudo
indicam que além do atendimento a legislação e normas aplicáveis ao órgão de controle
interno do Poder, é nítida sua contribuição em tornar a Administração Pública mais eficiente
e transparente como demanda a sociedade. No exercício de 2018 foram propostas diversas
recomendações pela Controladoria Geral, que geraram 59 planos de ação, sendo 47 melho-
rias implementadas no decorrer do próprio exercício, as 12 remanescentes passaram para
acompanhamento no exercício de 2019. Essas atividades já culminaram em supressões de
contratos, implementação de controles, identificação de não conformidade de registros nas
áreas de gestão de contratos, gestão de pessoas, gestão de patrimônio, gestão de almo-
xarifado, com a posterior correção das inconsistências identificadas. O acompanhamento
citado é realizado por meio de software livre (redmine), não gerando assim, custos para
a Administração e permitindo o monitoramento on-line dos planos de ação em vigor (que
contam com prazos fixados para implementação). O órgão central do sistema de controle
436 Fabrício Motta | Emerson Gabardo - Coords.

interno do Poder Legislativo Campineiro é formado por servidores efetivos com requisitos
para ingresso graduação em ciências contábeis e pós-graduação em auditoria, a área conta
com um plano anual de atividades desenhado de acordo com a força de trabalho disponível,
atividades estas que são desenvolvidas e os relatórios gerados são direcionados conforme
fluxograma normatizado. As recomendações para aprimoramento dos processos contidas
em seus relatórios geram planos de ação para mitigar os riscos identificados, planos esses
que são monitorados pelo órgão central do sistema de controle interno e periodicamente
levados ao conhecimento da alta administração da Casa. Por fim, ao final de cada exercício
é gerado o relatório anual da área para demonstração de todas as atividades desenvolvidas e
conquistas atingidas. Nesse contexto, é possível verificar o atendimento do órgão a norma-
tização vigente e principalmente aos anseios da sociedade, que tem o direito de contar com
entidades públicas com linhas de defesas internas para zelar e contribuir com o emprego dos
recursos públicos de forma transparente e eficiente.

Palavras-chave: Controle interno. Gestão pública. Poder Legislativo. Transparência. Gasto


público.
Desenvolvimento Nacional 437

Eixo 3 da ETR-Probidade (PGF/AGU):


da repressão à prevenção

Bruno Félix de Almeida


Mestrando em Direito (UFC)
Procurador federal

A Procuradoria-Geral Federal (PGF), órgão da AGU, criou em 2016 a Equipe de Tra-


balho Remoto em ações de improbidade administrativa (ETR-Probidade), com a atribuição
principal de análise de procedimentos de instrução prévia ao ajuizamento de ações civis
públicas por improbidade administrativa, nos casos em que o ente lesado pelo ato ímpro-
bo seja uma autarquia ou fundação pública federal representada pela PGF (159 entes). A
atuação concentrada permitiu uma ampla coleção de dados capazes de identificar padrões
dos atos de improbidade na administração federal indireta, possibilitando o retorno das in-
formações como forma de prevenir futuros atos, fornecendo subsídios para gestão de risco
das entidades e aprimoramento de rotinas administrativas, como também sugestões para
atualizações na legislação. Tal atuação, denominada de eixo 3 se expandiu por meio de duas
vertentes que corporificam uma atuação concertada da advocacia pública e dos órgãos
assessorados e representados. A primeira se deu com a alteração recente da Portaria PGF n.
156/16, que passou a prever (art. 6º, XII) como atribuição expressa do integrante da equipe:
“alertar a coordenação da ETR sobre identificação reiterada de vulnerabilidades em rotinas
administrativas dos entes representados, sugerindo” e ao coordenador da equipe “analisar
e encaminhar os alertas de vulnerabilidade e sugestões de aprimoramento de rotinas ad-
ministrativas, formalizados pelos integrantes da ETR-Probidade às procuradorias federais
juntos às autarquias e fundações públicas federais representadas pela PGF”. Tais mudanças
incluem na rotina da atuação repressiva da improbidade, o dever de subsidiar a estratégia
preventiva de promoção da probidade. A segunda vertente se corporificou por meio de atua-
ção direta da equipe em temas revelados nos procedimentos de investigação prévia, em
especial, o problema da improbidade administrativa decorrente de atos de assédio sexual.
Foi criado o Grupo Estratégico de Prevenção e Combate ao assédio integrado por membros
da ETR-Probidade e procuradores em exercício nas consultorias jurídicas de Instituições
Federais de Ensino-IFES. Juntando a expertise do contencioso repressivo e da consultoria
preventiva para desenvolver material informativo multidisciplinar, contando com a colabora-
ção de psicólogos servidores de IFES, destinados desde o corpo discente, passando pelo
pessoal técnico-administrativo e corpo docente das IFES. A iniciativa gerou projeto aprovado
pela PGF/AGU sob o título: PROJETO DA AGU DE ENFRENTAMENTO DO ASSÉDIO SEXUAL
438 Fabrício Motta | Emerson Gabardo - Coords.

NAS INSTITUIÇÕES FEDERAIS DE ENSINO SUPERIOR. Por meio da criação de cursos EAD,
com confecção de e-books, palestras presenciais e material de divulgação multimídia para
a comunidade das IFES. Tais cursos, multidisciplinares, tem o foco na prevenção dos atos,
como também a identificação e tratamento de casos de assédio no interior dessas ins-
tituições, tanto na perspectiva de proteção das vítimas, como na apuração adequada da
responsabilidade dos agentes públicos envolvidos. Assim, também se subsidia comissões
disciplinares e consultorias jurídicas na condução de apurações disciplinares quando envol-
vam fatos desta natureza. Na segunda fase, será lançado um programa de fomento de tais
práticas antiassédio, por meio da concessão do selo de reconhecimento das entidades que
adotem um conjunto mínimo de medidas contra atos de assédio.

Palavras-chave: Defesa da probidade. Atuação preventiva. Combate ao assédio. Concerta-


ção administrativa. Advocacia pública.
PARTE IV

RESUMOS DE
COMUNICADOS
CIENTÍFICOS
Desenvolvimento Nacional 441

Programas de integridade no Projeto de Lei


1292/95 – nova Lei de Licitações e Contratos
Administrativos

Philippe Magalhães Bezerra


Mestre em Planejamento e Políticas Públicas (UECE)

O presente resumo, fruto de uma pesquisa documental, objetiva verificar de que


forma os programas de integridade ou programas de compliance figuraram no texto do PL
1292/95 cujo texto-base foi aprovado em junho de 2019 na Câmara dos Deputados, objeti-
vando criar um novo marco legal no âmbito das contratações públicas nacionais, revogando
a Lei 8.666/93, bem com as leis do pregão e RDC. No âmbito do direito administrativo e das
contratações públicas, os programas de integridade têm aparecido cada vez mais. Podemos
citar, por exemplo, a Lei 12.846/13, Lei Anticorrupção, que no artigo 7º menciona os pro-
gramas de integridade como fator que deve ser levado em consideração na aplicação das
sanções daquela norma. Como condição da existência dos referidos programas para que o
Estado possa contratar o particular, temos as Leis 6.112/18 (Distrito Federal), 7.753/17 (Rio
de Janeiro), 15.228/18 (Rio Grande do Sul) e 16.717/18 (Ceará). Como já era de se esperar,
o Projeto de Lei 1292/95, que trará nossa nova Lei de Licitações, também fez referência aos
programas de integridade, porém ampliou significativamente a importância dos referidos
programas para quem desejar contratar com o poder público. Primeiramente a norma, para
contratações de grande vulto (acima de 200 milhões), estabeleceu a obrigatoriedade de o
contratado implementar um programa de integridade em 6 meses nos termos do parágrafo
4º do artigo 24. Já o artigo 58 do PL traz o desenvolvimento pelo licitante de programa de
integridade como um dos critérios de desempate do certame licitatório. O artigo 154, por
sua vez, trouxe regra muito parecida com aquela prevista na Lei 12.846/13 e estabeleceu
que na aplicação das sanções da nova Lei de Licitações serão levados em consideração a
implantação ou aperfeiçoamento de programa de integridade. E, para finalizar, o parágrafo
único do artigo 161, tratando da reabilitação de pessoa jurídica punida pela lei, condicionou
a possibilidade de reabilitação também à implantação ou aperfeiçoamento de programa de
integridade para alguns tipos de infrações que o próprio dispositivo menciona. Dessa ma-
neira, percebe-se, de forma clara, que a existência de uma política interna de integridade no
seio das pessoas jurídicas que pretendem manter relações com o poder público vem cada
vez mais se tornando uma tônica que vai impactar consideravelmente em vários aspectos
da contratação pública, desde uma condicionante à própria contratação, até o impacto em
442 Fabrício Motta | Emerson Gabardo - Coords.

eventuais penalidades administrativas aplicadas na execução contratual. Assim, a política de


governança pública, claramente influenciada pelas premissas da governança coorporativa,
trouxe ao Estado a necessidade de ter um novo olhar sobre os agentes privados que com ele
deseja manter relação, criando um novo paradigma nas relações do público com o privado.

Palavras-chave: Integridade. Licitações. Governança. Contratos administrativos. Compliance.


Desenvolvimento Nacional 443

Repercussão da sustentabilidade nas contrata-


ções públicas na manutenção e custeio de
serviços públicos

Antônio Flávio de Oliveira


Mestre em Direito e Políticas Públicas (UFG)

Em pesquisa no mestrado profissional em Direito e Políticas Públicas da Universida-


de Federal de Goiás, na qual se tratou da sustentabilidade nas contratações administrativas, o
trabalho realizado teve como tema a sustentabilidade nas contratações administrativa, tendo
hipótese norteadora que a ausência de planejamento consistente poderia levar à insusten-
tabilidade econômica e financeira, seja em razão da ausência dotações orçamentárias su-
ficientes para o custeio da obra ou serviço, ou por não tendo sido estimado o ingresso de
recursos públicos, levando-se em conta dados históricos, faltarem recursos em caixa para
os pagamentos das parcelas executadas. O resultado obtido da análise de dados empíricos
foi a confirmação da hipótese aventada. Na ocasião, todavia, já se apontou, ainda que apenas
de passagem, que a sustentabilidade também seria comprometida pela falta de planejamento
quanto a outros aspectos na implantação de políticas públicas, que levassem em considera-
ção a necessidade pública que se buscaria atender, como a percepção social a respeito da
prioridade eleita como aquela a ser realizada em primeiro lugar e, ainda, quanto ao comporta-
mento dos dados estatísticos populacionais e econômicos relacionados com a manutenção
e uso do equipamento urbano construído ou serviço implantado. O que se percebe ao anali-
sar processos que tramitam pelas diversas esferas da Administração Pública no Brasil é que,
na maioria dos casos, não são realizados estudos adequados de planejamento que visem
responder acerca da necessidade e adequação da obra ou serviço público em um horizonte
razoável de tempo. Tal situação tanto pode acarretar formulação de resposta à determinada
necessidade pública que seja insuficiente para a solução do problema, ou demasiadamente
onerosa, frente às possibilidades econômicas do ente público que deverá se responsabilizar
pelo seu custeio e manutenção. Tratamento de políticas públicas, oferecendo-lhes respostas
aos problemas diagnosticados, espera-se, não devem constituir em novo problema. É fun-
damental, antes, portanto, que sejam pensadas as ações públicas em todas as suas dimen-
sões, de maneira que uma vez implementada, apesar de necessitarem de adequações cons-
tantes, em função da dinâmica social, não constituam, em sua essência, um novo problema.
Desta maneira, é que a proposição neste trabalho se dá no sentido de que políticas públicas
complexas devem ser compreendidas na inteireza de sua complexidade antes de se lhes
444 Fabrício Motta | Emerson Gabardo - Coords.

oferecer uma resposta definitiva, a fim de que sejam estas sustentáveis, ou seja, do mesmo
modo que as contratações demandam planejamento para sua concretização sustentável, as
obras e serviços delas resultantes necessitam de planejamento em nível mais elevado para
que se apresentem sustentáveis frente às disponibilidades econômicas da Administração e
pela evolução da percepção social quanto ao objetivo pretendido com a ação desenvolvida.

Palavras-chave: Planejamento. Dinâmica social. Sustentabilidade. Orçamento. Política pú-


blica.
Desenvolvimento Nacional 445

O dispute boards e a arbitragem como novas


perspectivas no procedimento licitatório

Henrique Nonato Quaresma dos Santos


Estudante de Direito (Unicap)

Dentre todos os meios extrajudiciais para a resolução de conflitos, tendo em vista


a morosidade muitas vezes fatal do Poder Judiciário, o dispute boards e o procedimento
arbitral, são, sem dúvidas, uns dos mais escolhidos como meio alternativo para a resolução
de contendas, razão pela qual estão ganhando grande visibilidade e importância no cenário
atual. Prova disso, pode ser encontrada na nova Lei de Licitações que está em tramite no
Congresso Nacional, prevendo, expressamente, que serão cabíveis a formação de um Comi-
tê de Resolução de Disputas para acompanhamento da execução do contrato administrativo
celebrado, e a escolha pelo procedimento arbitral. Diante disso, utilizando-se do método
indutivo, o artigo elaborado possui como finalidade compreender o cabimento da utilização
dos meios supramencionados pela Administração Pública, compreendendo desde suas van-
tagens até suas desvantagens. Ao contrário do que uma leitura rápida acerca do tema pode
transparecer, está consolidada a legalidade da utilização da arbitragem pela Administração
Pública, fato que, frise-se, não fere o princípio da supremacia do interesse público, pelo
contrário, reforça e resguarda, pois, além de uma solução célere, tempestiva e qualificada,
pode também evitar um deságio social. Em suma, no presente trabalho, compreende-se que
a junção da utilização desses meios só se faz recomendável e mais econômica diante de
grandes empreendimentos, contratos complexos e aqueles em que o interesse social seja a
principal finalidade, pois demandam um elevado custo financeiro. Nesse diapasão, ainda, é
demonstrado que apesar de serem meios diversos, essas formas de resolução de conflitos
não se excluem, podendo serem utilizados de forma complementar para garantir, de fato, o
alcance ao interesse público, pois, repise-se, possibilitam uma resolução não só qualificada,
mas tempestiva do conflito instaurado, evitando deságios econômicos e financeiros para
o Estado. Em tempo, corroborando a autonomia desses meios extrajudiciais, a nova Lei
de Licitações prevê ainda que poderão versar, inclusive, acerca do equilíbrio econômico e
financeiro do contrato, mas, conforme abordado no artigo elaborado, não poderá ser reali-
zado com base na simples autonomia das vontades, motivo pelo qual faz-se imprescindível
o respeito aos requisitos já existentes na atual Lei de Licitações que ainda está vigente, qual
seja, a Lei n. 8.666/96. Por fim, conclui-se que a nova lei vem com a finalidade de desafogar
o Poder Judiciário acerca das ações que versam sobre conflitos decorrentes de contratos
446 Fabrício Motta | Emerson Gabardo - Coords.

administrativos realizados pela Administração Pública, bem como possibilitar a resolução


célere dessas intempéries.

Palavras-chave: Licitações. Dispute boards. Arbitragem. Administração.


Desenvolvimento Nacional 447

Concurso público para Polícia Militar do Estado


da Bahia: desdobramentos da anulação de
questões por ação judicial individual

Adhemar Santos Xavier


Mestrando em Direito Justiça e Desenvolvimento (EBD)
Especialista em Direito Público com ênfase em
Direito Administrativo (Uniritter)
Advogado

Este artigo tem como objetivo analisar as consequências da interferência do Po-


der Judiciário na anulação de questões do concurso público para o Curso de Formação de
Soldados da Polícia Militar da Bahia do ano de 2012 e suas repercussões em candidatos já
incorporados à força policial, bem como a atribuição de efeito erga omnis de ação decla-
ratória interposta por alguns candidatos visando a anulação de questões que exigiam con-
teúdo em dissonância com o edital, inclusive desprezando dispositivo previsto no edital que
demandava a repercussão para todos os candidatos, sendo necessário a emissão de novo
ato homologatório, com nova classificação, em virtude da aplicação de transcendência dos
motivos determinantes. O estudo de natureza bibliográfica, seguiu o caminho metodológico
dos procedimentos de uma pesquisa documental sobre o concurso público do Estado da
Bahia, o edital, a perícia e a sentença. A prova objetiva exigiu conhecimentos divergentes
do nível de escolarização exigido e não disposto no edital. Os resultados apontaram que
a administração pública deveria reconhecer a nulidade após decisão judicial com transito
em julgado e repercutir nos resultados de todos os candidatos, eis que, a homologação do
resultado final estaria eivada de nulidade, no entanto quedou-se inerte diante da ilegalidade
reconhecida pela justiça, inclusive fundamentada em perícia técnica, desprezando princípios
constitucionais e da melhor administração pública, propiciando inúmeras ações individuais
pleiteando tal anulação e reclassificação que foi feita sem as devidas correções na lista geral.
Observou-se que divergências existem no entendimento de que a decisão judicial transitou
em julgado após o termo final da validade do certame, não mais se poderia reverter o ato
homologatório, mesmo sendo nulo.

Palavras-chave: Concurso. Questões. Legalidade. Anulação. Isonomia.


448 Fabrício Motta | Emerson Gabardo - Coords.

PEC 287: os impactos antes de sua aprovação

Ana Luiza da Cunha Menezes Almeida


Pós-graduada em Processo Civil (Unifor)
Bacharel em Direito (Unifor)
Assessora Jurídica na Controladoria e
Ouvidoria Geral do Estado do Ceará

Lara de Oliveira Osório Ayres


Mestre em Administração (Universidad Americana)
Especialista em Comércio Exterior (Unifor)
Auditora de Controle Interna da Controladoria e
Ouvidoria Geral do Estado do Ceará

Pretende-se analisar as proposições sobre a seguridade social brasileira através da


exposição da conjuntura da Previdência Social pós-Constituição 1988; e as projeções na
qual se baseia a PEC 287/16, que prevê alterações na CF, através de pesquisas bibliográfi-
cas. Apresentando os principais fatores causais dessa reforma, apontando características,
estratégias e alterações. A celeuma da reforma que assombra hoje o Brasil passou outrora
por algumas transformações. Talvez de forma mais discreta, por não se tratar de um pa-
cote tão robusto que não impactaram beneficiários de várias categorias de uma única vez.
Pode-se dizer que alguns direitos de outrora já não existem mais e quiçá após a aprovação
da proposta da PEC 287/2016. O futuro da Previdência clama por estudos pormenorizados
e atentos à interdisciplinaridade dos direitos sociais, consagrando a proteção social como
fonte propulsora do desenvolvimento econômico. Não se pode simplesmente aceitar os ar-
gumentos superficiais para justificar a PEC 287/2016. Isto porque, a ausência de critérios
objetivos para avaliação do impacto financeiro de propostas de reforma para tornar suas
conclusões efetivamente fidedignas, afasta a legitimidade das mesmas, maculando sua pre-
sunção de veracidade, trazendo incertezas ao cerne do debate. É incontroverso que temos
uma demografia que está envelhecendo e insistindo em um regime de coparticipação. Opor-
tuno repisar que a reforma não afetará os direitos adquiridos dos beneficiários da ativa que já
tenham atendidos aos critérios para aposentadoria ou pensão, todavia, aqueles beneficiários
ativos que não atenderem aos requisitos mínimos e também não se enquadrarem nas regras
de transição até a data da promulgação da proposta de reforma, terão que se adequar às
alterações da legislação vigente, a qual afetará de forma significativa a expectativa de direito
dos beneficiários ativos. Os trabalhadores rurais passarão por medidas que comprometerão
a aposentadoria da maioria desses beneficiários que trabalham informalmente no campo,
pois esses trabalhadores dificilmente poderão contar com uma renda fixa mensal para con-
Desenvolvimento Nacional 449

tribuir conforme mencionado na proposta atualmente. Outro impacto significante para os


beneficiários, é que após a promulgação da PEC 287 não será mais possível o acúmulo de
aposentadorias ou de aposentadoria com pensão deixada por cônjuge. A reforma também
terá as regras de transição para os beneficiários ativos de ambos os regimes previdenciários,
que deverão atender a dois requisitos: possuir tempo mínimo de contribuição de 35 anos
para homens e 30 anos para mulheres e idade igual ou superior a 50 anos se homem e 45
anos se mulher. No Regime Próprio de Previdência Social, o beneficiário deverá ter também
no mínimo 20 anos de serviço público e 5 anos no cargo para poder aderir à aposentadoria.
Diante disso, a previdência, tendo em vista sua magnitude e importância social, é tema a
ser acompanhado, debatido e atualizado por toda a sociedade, uma vez que implicará na
supressão de garantias consolidadas. Sua dívida ativa deve ser constantemente combatida,
e sua reforma deve pautar-se por rigorosos critérios que permitam o melhor regramento e
justiça social. Por hora, temos que a reforma se encontra em tramitação.

Palavras-chave: Previdência Social. Reforma. PEC 287/2016. Previsão. Impactos.


450 Fabrício Motta | Emerson Gabardo - Coords.

Do compromisso previsto no artigo 26 da LINDB


como instrumento de negociação de dívidas e
a ordem cronológica dos pagamentos na Admi-
nistração Pública: propostas para a eficiência na
gestão dos recursos públicos

Gustavo Silva Gusmão dos Santos


Pós-graduado em Ciências Jurídicas
(Universidade Cândido Mendes/Instituto a Vez do Mestre)
Especialista em Gestão Pública Municipal (ECG)
Advogado na Prefeitura Municipal de Macaé-RJ

O presente trabalho tem como objetivo analisar o compromisso previsto no artigo


26 da Lei de Introdução às Normas de Direito Brasileiro como instrumento de composição
aplicável à negociação de dívidas da Administração Pública junto a fornecedores de bens e
prestadores de obras e serviços. Trata-se de novel instrumento jurídico hábil ao gestor públi-
co que busca corrigir irregularidade, incerteza jurídica ou situação contenciosa relacionada
à aplicação do direito público junto a terceiros, prestigiando-se a autocomposição no âmbito
da Administração Pública, na medida em que permite às partes interessadas (de um lado,
a Administração e, de outro lado, o particular) promover, em comum acordo, a solução do
conflito de interesses. Trata-se de instrumento jurídico que vai ao encontro da Administração
Pública contemporânea, na qual a burocracia e a atuação por meio de atos administrativos
unilaterais dão lugar à eficiência, cuja participação do administrado no desenvolvimento das
atividades administrativas pode resultar na satisfação do interesse público de forma mais cé-
lere e mais vantajosa. De outro lado, a lei condiciona o pagamento de obrigações contraídas
pela Administração Pública decorrentes do fornecimento de bens, locações, realização de
obras e prestação de serviços à ordem cronológica das datas de suas exigibilidades, salvo
relevantes razões de interesse público, de forma prévia e motivada pelo gestor. Nesse senti-
do, o compromisso se apresenta como instrumento adequado para tanto, na medida em que
as suas características e requisitos se coadunam com as exigências da Lei de Licitações no
tocante à excepcionalidade à ordem cronológica de pagamentos, permitindo ao gestor públi-
co se valer da nova figura jurídica para negociar dívidas da Administração Pública com seus
fornecedores, de forma eficiente e revestido de segurança jurídica para ambas as partes. Em
um cenário em que se vislumbra de um lado uma crise fiscal sem precedentes, e de outro
lado a existência de dívidas decorrentes de fornecimento de bens ou da prestação de obras
Desenvolvimento Nacional 451

e serviços à Administração Pública, a formulação de proposta de desconto para pagamento


se apresenta como proposta plausível a justificar a excepcionalidade à ordem cronológica
de pagamentos, podendo ser perfeitamente formalizado por intermédio da celebração do
compromisso previsto no artigo 26 da LINDB. Através de pesquisa bibliográfica, notadamen-
te da legislação de regência e do estudo comparado da doutrina de direito administrativo,
além da jurisprudência dos tribunais sobre o tema, conclui-se que o compromisso se revela
como ferramenta de eficiência na gestão dos recursos públicos, permitindo a negociação
de dívidas da Administração Pública, sem prejuízo à ordem cronológica dos pagamentos da
Administração Pública.

Palavras-chave: LINDB. Compromisso. Negociação. Dividas. Pagamento.


452 Fabrício Motta | Emerson Gabardo - Coords.

A reforma trabalhista de 2017 como fato do prín-


cipe ensejador de reequilíbrio econômico-finan-
ceiro de contrato administrativo

Bruno Dourado Bertotto Martins


Pós-graduando lato sensu em MBA em
Gestão Pública (Universidade Cruzeiro do Sul)
Bacharel em Direito (UFGD)

Antônio Zeferino da Silva Júnior


Mestrado em Direito Processual e Cidadania (Unipar)
Pós-Graduação em Direito Público
(Faculdade Professor Damásio de Jesus)
Professor (UFGD)

O presente estudo busca firmar tese identificando a reforma trabalhista de 2017,


nomeadamente a Lei 13.467/2017, como fato do príncipe criado pelo poder público federal
ensejador de revisão de contrato administrativo em consecução do reequilíbrio econômico-
-financeiro. Essa mudança legislativa incluiu, por meio do artigo 611-A, da Consolidação
das Leis do Trabalho, a prevalência do acordo coletivo, bem como da convenção coletiva,
sobre a lei em determinadas pautas remuneratórias, possibilitando majoração ou minoração
acentuada dos gastos salariais e outros despendidos por empresa contratada pela adminis-
tração para execução de determinada avença administrativa. Para além do fato do príncipe
intimamente ligado a entrada em vigência de referida norma, a redação do dispositivo in-
cluído possibilita a criação de outros fatos do príncipe equiparados, os quais sejam novos
acordos coletivos e convenções coletivas, ou até mesmo dissídios coletivos, diante do poder
normativo daquela justiça especializada. Tal concepção rompe com a jurisprudência, até
aqui prevalente, de somente autorizar o instituto do reajuste contratual, não de reequilíbrio
econômico-financeiro por meio da revisão de contratos administrativos para correções sala-
riais advindas de normas coletivas do trabalho. Impondo-se perceber que o posicionamento
jurisprudencial aplicado foi inicialmente tomado em momento anterior a edição e entrada em
vigor da lei ora escrutinada. Para o alcance da conclusão esculpida, desde o título da cor-
rente pesquisa, realizou-se uma abordagem doutrinária ampla, bem como multidisciplinar,
analisando, ainda, as razões determinantes para que os tribunais pátrios viessem conceben-
do ser devido apenas reajustes, que não revisionais, dos contratos administrativos quando
a oneração posterior fosse determinada por correções salariais da mão-de-obra arcada pelo
contratado pela administração. O olhar adotado busca ser bastante crítico. Avançando sobre
Desenvolvimento Nacional 453

a matéria, o obrado traz uma solução propositiva, para uma evolução jurisprudencial que
entenda pela permissividade da recomposição contratual em casos de mudanças remunera-
tórias advindas de normas convencionais do trabalho, que impactem os preços contratados,
em resguardo da administração pública, bem como do particular.

Palavras-chave: Reforma. Trabalhista. Reequilíbrio. Contratos. Administrativos.


454 Fabrício Motta | Emerson Gabardo - Coords.

Os programas de integridade como instrumento


de combate à corrupção

Dalila Martins Viol


Mestranda em Administração Pública (FJP-MG)

Marcus Vinicius Gonçalves da Cruz


Pós-doutor em Sociologia (Universidade do Porto)
Professor no Programa de Mestrado (FJP-MG)

A corrupção é fenômeno multifacetado, de incidência mundial, cujos efeitos mobi-


lizam estratégias para seu controle e prevenção. Este trabalho tem como pressuposto que
os programas de integridade são tidos como a forma contemporânea mais eficaz de enfren-
tamento à corrupção, conforme defendem organismos mundialmente relevantes como a
Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE). Recentemente, no
Brasil, esses têm se multiplicado tanto nas organizações privadas como nas públicas, sendo
mais conhecidos como compliance nas primeiras. O objetivo do presente trabalho é refletir
em qual perspectiva de enfrentamento à corrupção se inserem os programas de integridade,
seus conceitos e a sua institucionalização. O trabalho se justifica, pois, em investigação da
produção acadêmica nacional constatou-se que há lacunas relacionadas aos estudos sobre
controle interno, corrupção e programas de integridade. Ademais, o tema é contemporâneo
e relevante, especialmente porque as organizações têm investido recursos na implantação
dos mesmos, em um contexto de contingência, sendo, portanto, essencial que a academia
se dedique ao estudo técnico desse instrumento a fim de desvendá-lo. Metodologicamente
realizou-se a opção pela pesquisa qualitativa, por meio de estudo de casos, com suporte na
legislação, no levantamento sistemático da literatura e de fontes secundárias. Em relação às
perspectivas sobre a corrupção conclui-se que há duas dominantes: a primeira, prevalecente
até os anos 1990, baseada na noção de modernização e centrada no conceito weberiano de
patrimonialismo; a segunda, hoje hegemônica, que se relaciona a teoria da escolha pública,
advinda da nova economia institucional e que tem o rent-seeking como o principal conceito.
Porém, uma terceira vertente teórica vem ganhando força no debate público recente, a repu-
blicana, que apresenta como resposta à corrupção o reforço das condutas em conformidade
e, subsidiariamente, a punição das irregularidades. Os achados da pesquisa revelam que os
programas de integridades estão inseridos na perspectiva republicana; que o conceito de
programa de integridade privado adotado pelos entes federativos repete o do Decreto federal
n. 8.420/2015 e que o conceito de programa de integridade público ainda é fluído; que os
Desenvolvimento Nacional 455

fluxos de difusão, além da busca pelo cumprimento da legislação, nas organizações privadas
se mostram relacionados com o proveito econômico e nas públicas com a busca por legiti-
midade; derradeiramente, que esses estão em estágio de pré-institucionalização no país, ou
seja, estão em fase de habitualização nas organizações. Conforme a Teoria do Novo Insti-
tucionalismo esse estágio é caracterizado pela a geração de novos arranjos estruturais em
resposta a problemas organizacionais específicos, bem como a conversão de tais arranjos
em formalização de políticas. Conclui-se que para alcançar resultados positivos em relação
à corrupção é necessário que os programas de integridade avancem para além do estágio
atual, superando a formalização por meio da implementação de práticas e mecanismos que
promovam a assimilação da cultura de integridade pelos membros da organização. Os acha-
dos da pesquisa colaboram com a discussão técnica e propositiva relacionada à corrupção
no país. Por fim, sugere-se que novos estudos continuem analisando a institucionalização
dos programas de integridade a fim de verificar a evolução e efetividade do instrumento no
Brasil.

Palavras-chave: Corrupção. Programas de integridade. Programas de compliance. Adminis-


tração Pública. Institucionalismo.
456 Fabrício Motta | Emerson Gabardo - Coords.

A aplicação da teoria dos precedentes pelo


Tribunal de Contas da União e as alterações
da LINDB

Fernanda de Moura Ribeiro Naves


Mestre em Direito e Políticas Públicas (UFG)

A pesquisa realizada avaliou se o Tribunal de Contas da União (TCU) utiliza suas


decisões como precedentes em matéria de licitações e contratos para o julgamento de ca-
sos análogos, utilizando-se como parâmetro exemplos de cláusulas restritivas ao caráter
competitivo de licitações de obras públicas. As decisões do TCU podem conferir ao gestor
público uma fonte importante de conhecimento para a tomada de decisões, funcionando
como instrumento de indução de boas práticas, evitando a ocorrência de irregularidades.
Entretanto, o TCU emite um amplo volume de orientações sobre licitações e contratos ad-
ministrativos, o que pode gerar dificuldades interpretativas aos seus jurisdicionados. A Lei
n. 13.655/2018 (Lei da Segurança Jurídica) que modificou a Lei de Introdução às Normas
do Direito Brasileiro (LINDB) chancelou a necessidade de proteção à segurança jurídica em
sede de pronunciamentos administrativos, com o objetivo de aprimorar a qualidade decisória
dos órgãos administrativos, inclusive os de controle, definindo balizas de interpretação e
aplicação de normas sobre a gestão pública. A investigação foi realizada com suporte em
pesquisa bibliográfica e documental, com o levantamento qualitativo e quantitativo de deci-
sões emanadas do TCU, com coleta e análise via internet. Partiu-se do pressuposto de que
precedente para o TCU refere-se a uma decisão anterior citada pelo órgão em uma de suas
próprias decisões. O estudo não é exaustivo, uma vez que o manejo de precedentes pelo TCU
envolve variáveis que não foram consideradas, como as características dos Ministros, seu
papel e a origem política de alguns deles, a forma de deliberação e argumentação. Também
foi dispensada a análise da estrutura institucional do TCU e o desenvolvimento da instrução
de seus processos, pois são dados facilmente encontrados em seu site. A base de acórdãos
do TCU é disponibilizada de forma completa e em seu inteiro teor desde 1992. Entretanto, a
mera análise das ementas das decisões não permitiu a verificação das cláusulas restritivas
escolhidas, de maneira que a pesquisa precisou ser complementada com a consulta e leitura
do inteiro teor da decisão. Após análise de 132 decisões, verificou-se que o TCU ainda não
incorporou o sistema de precedentes em suas decisões. Apenas pela verificação das remis-
sões a outros julgados, é que se chegou à totalidade das decisões buscadas. O precedente
é citado pelo órgão sem analogia fática com o caso anterior, bastando-lhe uma semelhança
Desenvolvimento Nacional 457

teórica no que tange a um parágrafo. Isso pode ensejar a aplicação de reprimendas que de-
satendam aos princípios da isonomia e da segurança jurídica. Tendo em vista que a jurispru-
dência do TCU ainda encontra-se dispersa, foi feita análise crítico-propositiva no sentido de
que o TCU tenha duas agendas: uma visando à superação de fragilidades históricas, como a
necessidade de consolidação de jurisprudência e aprimoramento e harmonização de proces-
sualística à luz da LINDB (que deve ser típica e autônoma), e, outra focada na incorporação
de novas tecnologias à rotina de trabalho, com possível convênio com o Superior Tribunal de
Justiça (STJ) para o aprimoramento de seu serviço de jurisprudência e indexação de seus
acórdãos, a bem da segurança jurídica.

Palavras-chave: Precedentes. Administração Pública. LINDB. Tribunal de Contas da União.


Segurança jurídica.
458 Fabrício Motta | Emerson Gabardo - Coords.

A economia comportamental como mecanismo


de aprimoramento da gestão das
empresas estatais

Giovani Ribeiro Rodrigues Alves


Doutor e mestre em Direito (UFPR)

A economia comportamental vem se estabelecendo desde os anos 1980 como uma


vertente econômica que incorpora elementos da psicologia para melhor compreender a atua-
ção das pessoas. A compreensão que o ser humano adota atalhos para tomar decisões
(heurísticas) e que comete erros sistematicamente (vieses) contribui para o melhoramento
da previsão dos comportamentos. No mesmo sentido, a noção de nudge, trazida por Cass
Sunstein e Richard Thaler, pode ser utilizada para o aperfeiçoamento da gestão das socie-
dades estatais. Compreender a atuação dos agentes que atuam em referidas sociedades,
elaborar programas que estimulem o comportamento adequado por tais agentes e que de-
sestimulem desvios de conduta se torna mais factível com o auxílio das ferramentas trazidas
pela economia comportamental. O método utilizado foi o dedutivo, a partir da leitura de obras
nacionais e estrangeiras que dizem respeito à economia comportamental, à atuação dos
agentes e às estruturas de governança em sociedades que contam com o controle estatal.
A conclusão foi de que o direito precisa da contribuição da economia comportamental, não
como substituta da ordem jurídica, mas como uma via complementar para o aperfeiçoamen-
to da gestão das sociedades estatais.

Palavras-chave: Heurísticas. Vieses. Economia comportamental. Sociedades estatais. Efi-


ciência.
Desenvolvimento Nacional 459

O direito administrativo sanitário e os desafios


da assistência farmacêutica no Brasil

Jordão Horácio da Silva Lima


Doutor em Saúde Global e Sustentabilidade (USP)
Mestre em Saúde Global e Diplomacia da Saúde (Fiocruz)
Professor assistente (Faculdade Evangélica Raízes de Direito)
Professor da Pós-Graduação de Direito Médico e
Proteção Jurídica Aplicada à Saúde (Ipog)

Daniel dos Santos Rodrigues


Doutorando em Direito (UFMG)
Mestre em Direitos Humanos (UFG)
Promotor de Justiça no Ministério Público do Estado de Minas Gerais

O direito da saúde pública apresenta-se peremptoriamente imbricado ao direito ad-


ministrativo, porque se trata de disciplina normativa que se caracteriza pelo preenchimento
dos princípios básicos da supremacia do interesse público sobre o particular e da indispo-
nibilidade do interesse público. Diante do fenômeno da judicialização da saúde, que envol-
ve aspectos políticos, sociais, éticos e sanitários, que vão muito além de seu componente
jurídico e de gestão de serviços públicos, já há manifestação doutrinária mencionando um
novo campo de conhecimento, o direito administrativo sanitário, concentrado na análise dos
vínculos entre acesso à justiça e o papel do Estado na efetividade do direito à saúde. Nesse
contexto, objetivou-se discutir e refletir acerca dos desafios e das contribuições da legislação
e das doutrinas administrativista e constitucionalista na efetivação do direito constitucional à
saúde, em especial no que se refere à assistência farmacêutica integral. Metodologia: foram
realizadas uma pesquisa exploratória e uma revisão (bibliográfica) de artigos e decisões
judiciais mais recentes concernentes ao fornecimento judicial de tecnologias para doenças
raras e ultrarraras. Resultados: analisando-se os recentes julgados do Supremo Tribunal
Federal, depreende-se ainda certa alienação da corte com relação à estrutura normativa do
SUS, o que vem permitindo o uso sistemático do Judiciário como uma porta “paralela” de
incorporação de tecnologias. Conclusão: para se contornar tal problema concluiu-se pela
necessidade de se aprofundar a compreensão das teorias dos diálogos institucionais por
parte dos atores do sistema de justiça, de um lado, e pelo uso dos contratos administrativos
de compartilhamento de risco, por outro.

Palavras-chave: Direito administrativo sanitário. Assistência farmacêutica. Judicialização da


saúde. Diálogos institucionais.
460 Fabrício Motta | Emerson Gabardo - Coords.

Concepções e esclarecimentos sobre a revoga-


ção parcial do artigo 10 da Lei n. 8.429/1992
frente ao artigo 28 da Lei n. 13.655/2018

Wellison Muchiutti Hernandes


Professor universitário com Especialidade em Direito Público
com ênfase em Gestão Pública (Complexo Damásio de Jesus)
Ex-conselheiro tutelar de Sidrolândia-MS (2010-2013)
Vice-prefeito da cidade de Sidrolândia-MS (2017-2020)

Com a entrada em vigor da Lei n. 13.655/2018 mais especificamente o artigo 28,


que traz em seu bojo elementos como “erro grosseiro” e “dolo”, este revoga parcialmente
o artigo 10 da Lei n. 8.429/1992, que traz os elementos “culpa” e “dolo”. Mesmo que aqui
defendida a tese da inconstitucionalidade da modalidade culposa no ato de improbidade
administrativa, também defendida a revogação do artigo, esboçando o histórico da evolução
da matéria no Brasil. A demanda importante referente a dúplice interpretação, podem trazer
inúmeros prejuízos para quem sofrer tal imposição em demanda judicial, pelo fato de ser
uma interpretação muito subjetiva, deixando um lastro para discricionariedade judicial, ge-
rando prejuízos para uma futura contratação pública ou mesmo candidatura, bem como sua
imagem diante a sociedade. A forma mais correta da aplicação da Lei de Improbidade, que
desde seu nascedouro já vem sendo questionada, seria o dolo, simplesmente essa conduta
que deveria ser feita, ter um fato determinado transcrito em lei, e não por culpa, nem mesmo
erro grosseiro. Aplicar a subjetividade desses requisitos, demanda muita cautela, em que
processos extensos e complexos, que perpetuam no judiciário, sejam julgados proforma,
retirando algo importante da vida das pessoas. O debate cinge-se por essa contradição de
aplicações obsoletas do Poder Judiciário, sendo usado no presente artigo, inúmeros autores
de grande conhecimento sobre a matéria, para uma futura alteração no artigo 10 da Lei n.
8429/92. Explicação teóricas e práticas sobre o tema principalmente quando se trata da
culpa na matéria de improbidade administrativa com a alteração da LINDB.

Palavra-chave: Direito administrativo. Culpa. Erro grosseiro. Dolo. Improbidade adminis-


trativa.
Desenvolvimento Nacional 461

A inobservância do dever de acessibilidade


como ato de improbidade administrativa

Ana Laura de Freitas Rego


Pós-graduanda em Direito Eleitoral (PUC-MG)
Advogada

Rebeca de Souza Barbalho


Pós-graduanda em Direito Administrativo (UFRN)
Advogada

O presente ensaio tem por objetivo analisar a inclusão feita pelo Estatuto da Pessoa
com Deficiência na Lei de Improbidade Administrativa. Nesse âmbito, especificadamente
sobre a inobservância do dever de acessibilidade como ato de improbidade administrativa.
A Constituição Federal Brasileira preconiza a dignidade da pessoa humana e igualdade, sem
distinção de qualquer natureza, sendo o direito à acessibilidade intrínseco a estes. Diante
desse direito fundamental que deve ser tutelado pelo Estado, será averiguado o instituto da
acessibilidade, sob a ótica dos princípios da dignidade da pessoa humana e da igualdade, no
qual se observará a ausência de efetividade dos direitos fundamentais da pessoa com de-
ficiência; Outrossim, examinará o tratamento jurídico conferido as pessoas com deficiência
e em seguida verificar-se-á o ato de improbidade administrativa e a responsabilidade estatal
pelo não cumprimento dos deveres constitucionais, ensejando à conduta a tipificação como
ato de improbidade administrativa dos agentes públicos que inobservarem dolosamente o
direito à acessibilidade. Portanto, chegou-se à conclusão que apesar dos avanços no arca-
bouço normativo no que tange a pessoa com deficiência, o Brasil ainda precisa evoluir para
alcançar os objetivos dispostos no Estatuto da Pessoa com Deficiência e permitir o exercício
da cidadania em sua máxima efetividade e o novo dispositivo no artigo 11 da L.I.A, é um
instrumento que fortifica o dever de observância do direito à acessibilidade, com punições
expressivas ao praticante. Utilizou-se para a persecução dos objetivos delineados a meto-
dologia qualitativa, com método dedutivo, para a obtenção dos objetivos delineados, análise
bibliográfica, de disposições normativas atinentes ao tema e documental.

Palavras-chave: Acessibilidade. Igualdade. Dignidade humana. Direito fundamental. Impro-


bidade administrativa.
462 Fabrício Motta | Emerson Gabardo - Coords.

Parâmetros para aplicação do controle de con-


vencionalidade dos tratados de direitos huma-
nos da OIT no Brasil

Bruna Nubiato Oliveira


Graduanda do curso de Direito (UCDB)

Maucir Pauletti
Doutorando e mestre em Desenvolvimento Local (UCDB)
Professor do curso de Direito (UCDB)

A presente tese científica revela-se na primazia de expor a conjuntura dos direitos


sociais dos trabalhadores sob a perspectiva do controle de convencionalidade, no que tange
a efetividade dos tratados de direitos humanos da Organização Internacional do Trabalho no
Brasil. A totalidade da legislação brasileira é condicionada a passar pelo crivo dos tratados
internacionais pelos quais é signatário. O controle de convencionalidade é em sua essên-
cia um mecanismo de compatibilização das normas de direito interno com os tratados de
direitos humanos ratificados. Deve-se observar a adequação dos dispositivos infraconsti-
tucionais aos tratados internacionais de direitos humanos ratificados e em vigor no Brasil,
possuindo, portanto, uma parametricidade específica. As tratativas do controle de consti-
tucionalidade serão abordadas como forma de proteção aos direitos trabalhistas, verifican-
do-se, especialmente, a supressão de direitos a que revela a reforma trabalhista de 2017.
Concerne na vedação de retrocessos analisando o chamado “pendulo democrático”, tendo
como parâmetro as convenções internacionais da Organização Internacional do Trabalho,
que completa seu centenário no ano de 2019. O presente trabalho foi desenvolvido por uma
metodologia dedutivo-analítica sendo que a exposição científica em tela, será explanada em
uma conjuntura fundada na primazia humana, digna e democrática. Ao explanar cada uma
das tratativas, propõe-se instruir a sociedade acerca da efetividade e relevância no que tange
os parâmetros internacionais, para que se fortaleça os direitos adquiridos e garantidos em
âmbito nacional e internacional.

Palavras-chave: Controle de convencionalidade. Organização Internacional do Trabalho. Di-


reitos fundamentais. Efeito pêndulo. Reforma trabalhista.
Desenvolvimento Nacional 463

Contratação temporária de professores substitu-


tos – a problemática da “sucessividade” e o dile-
ma das pequenas unidades administrativas

Eduardo dos Santos Dionizio


Especialista em Direito Processual Civil (Unisc)
Diretor Geral do Tribunal de Contas do Estado de Mato Grosso do Sul
Advogado

O provimento de cargos e empregos públicos está sujeito, em regra, ao princípio do


concurso público. Tal mandamento, albergado no inciso II do artigo 37 da Constituição Fe-
deral não deixa margem para interpretações diversas, porquanto corolário com os princípios
insculpidos no caput do mesmo dispositivo e com a intenção do constituinte em assegurar a
universalização do acesso a cargos públicos. Exceção à regra guarda lugar no IX do mesmo
artigo da Magna Carta ao permitir que, de acordo com o estabelecido em lei, poderão ocorrer
contratações por tempo determinado para atender a necessidade temporária de excepcional
interesse público. Tal instituto tem sido muito utilizado por todos os entes federados como
forma de suprir necessidades temporárias de excepcional interesse público em vagas que
não podem ser supridas por meio do concurso público. Com base na doutrina administrati-
vista, pretende-se no presente trabalho demonstrar que referida norma constitucional remete
à lei o estabelecimento dos casos em que se autorizem os contratos por tempo determinado,
o quantitativo de pessoal e o prazo do vínculo de natureza precária. Dar-se-á ênfase à pro-
blemática das contratações sucessivas, para tanto, buscou-se além do amparo doutrinário,
o entendimento de alguns Tribunais de Contas brasileiros e dos Tribunais Superiores, em que
as jurisprudências caminham no sentido de obstar a renovação de contratos temporários
com a mesma pessoa, ainda que o vínculo tenha se estabelecido mediante a realização de
processo seletivo simplificado. Não está a se propor a relativização da regra do concurso
para fins de acesso a cargos públicos, muito pelo contrário, é também objetivo do presente
estudo trazer à baila o dilema vivenciado pelos pequenos Municípios brasileiros – quando
adotam a contratação temporária de professores – em que a escassez de mão de obra quali-
ficada tem dificultado a oferta de um ensino público de qualidade, haja vista que, mesmo que
melhor qualificado, o profissional anteriormente contratado tem sido excluído da eventual
futura contratação. Sem intenção de esgotar o tema, pretende-se demonstrar que, indepen-
dentemente de quem seja a pessoa a ser contratada temporariamente, oriunda ou não de vín-
culos anteriores, concluir-se-á que, respeitada a regra do concurso público para provimento
de cargos vagos, para as necessidades temporárias e excepcionais, a realização de seleção
464 Fabrício Motta | Emerson Gabardo - Coords.

simplificada, contempla os princípios da impessoalidade e da moralidade, bem como é capaz


de assegurar o ingresso de profissionais melhor qualificados para o atendimento do interesse
público, independentemente se oriundas de contratações anteriores. Dada a complexidade
que envolve o tema, o que se espera é que o presente estudo sirva de reflexão no sentido de
ampliar o debate em torno da problemática das contratações sucessivas do mesmo agente
e a realidade enfrentada pelos pequenos Municípios brasileiros.

Palavras-chaves: Concurso público. Contratação temporária de professores. Processo se-


letivo. Impessoalidade. Moralidade.
Desenvolvimento Nacional 465

Administração Pública e o novo regime fiscal:


eficiência ou morte

Paulo Tadeu Moreira Saldanha


Especialista em Direito Administrativo (IDP)
Secretário de Administração, Orçamento e Finanças do TRE-DF

Um cenário fiscal falimentar, uma máquina inchada e ineficiente somados a uma


revolução tecnológica de proporção igual ou maior à revolução industrial convidam a Ad-
ministração Pública a sair de seu estado de letargia em busca de um redesenho que lhe
conduza à eficiência. O presente artigo intenta analisar o novo regime fiscal e seus impactos
numa Administração Pública impregnada de práticas patrimonialistas e burocráticas. Obje-
tiva, ademais, demonstrar que, dadas as seguidas reduções na capacidade de custeio da
administração, a eficiência deverá sair da gélida retórica legal e se concretizar em cada agir
dos administradores como forma de evitar a completa paralisia da máquina administrativa.
Para tanto, disseca-se o novo regime fiscal, detalha-se o elevado peso da folha de pessoal
no orçamento dos órgãos da administração, são analisados os estágios da Administração
Pública e apontadas rotinas ainda hoje vigentes que precisam ser melhoradas, porquanto
ainda marcadas pelo patrimonialismo. Destarte, verifica-se que, se de um lado o teto dos
gastos necessita ser revisto por possuir potencial de passar de antídoto a veneno, de ou-
tro lado, há vasto campo de melhorias que precisam ser implementadas na gestão pública
como medida necessária a torná-la eficiente e racional. Por fim, constata-se que a inércia do
gestor público em adotar medidas capazes de fazer brotar a eficiência, aproveitando-se das
oportunidades que os períodos de crises criam e da enormidade de avanços tecnológicos
disponíveis aos administradores mais proficientes, tende a conduzir a administração à para-
lisia de seus serviços e a redução da máquina pública sem o necessário planejamento o que,
por consequência, levará ainda mais sofrimento às classes menos favorecidas e, por isso,
mais dependentes dos serviços públicos.

Palavras-chave: Orçamento. Novo regime fiscal. Eficiência. Administração Pública. Avanços


tecnológicos.
466 Fabrício Motta | Emerson Gabardo - Coords.

Evolução do planejamento no macroprocesso de


contratações públicas

Leandro de Souza Alcântara


Pós-graduado em Direito (ESMA-DF)
Profissional Nível Médio Suporte (Eletronorte)

O objetivo deste trabalho é apresentar a evolução do planejamento como vetor da


atuação da administração pública, trazendo dados estatísticos, informações do momento e
contexto histórico da sociedade brasileira dos períodos desde a instituição do planejamento
como princípio geral da administração pública pelo Decreto-Lei 200/1967 até como fase
propriamente dita do macroprocesso de contratação pública em Instruções Normativas da
Administração Pública Federal e jurisprudência do Tribunal de Contas da União. Faz-se um
apanhado das principais reformas administrativas brasileiras ocorridas durante o período
republicano, em que o planejamento tenha sido previsto direta ou indiretamente, para fun-
damentar e distinguir os períodos, bem como a comparação das normas, jurisprudências
(tanto provenientes de estudos e levantamentos quanto de julgamento propriamente ditos)
e doutrina, vigentes até os dias de hoje e aplicáveis a diferentes setores (órgãos e entidades
da administração pública direta e indireta dos diferentes níveis da federação) ou natureza
do objeto da contratação (obras públicas ou serviços de engenharia de alta complexidade,
equipamentos de informática, aquisição de bens, materiais ou serviços comuns) para am-
pliar o escopo de observação e da experimentação para robustecer a conclusão deste artigo.
Sendo assim, o presente trabalho científico, realizado à luz do método dedutivo, sugere olhar
crítico sobre a importância do planejamento sobre a contratação pública desde a verificação
da necessidade até o encerramento da vigência contratual, como um fim em si mesmo,
como forma de contornar a cultura muitas vezes fisiologista do gestor público que precisa
caminhar no sentido de satisfazer dos projetos e interesses públicos.

Palavras-chave: Contratação pública. Planejamento. Reforma do aparelho do Estado. Mo-


delo gerencial. Gestor público.
Desenvolvimento Nacional 467

O marco regulatório do saneamento no Brasil e


o impacto nas políticas de saneamento dos mu-
nicípios da região norte de Santa Catarina

Daniel Wagner Heinig


Mestrando em Planejamento e Governança Pública (UTFPR)

Ana Paula Myszczuk


Doutora em Direito Econômico e Socioambiental (PUC-PR)

A Lei Federal 11.445/2007, conhecida como o Marco Regulatório do Saneamento


Básico, trouxe importantes avanços na política de saneamento nacional. Além de definir
normais gerais, conferiu atribuições pontuais aos municípios, titulares dos serviços, dentre
elas a necessidade de instituição de políticas e planos municipais de saneamento, e a obri-
gatoriedade de criação de órgãos colegiados que permitissem a participação e o controle
sociais. Não obstante, também estabeleceu diversos princípios norteadores às políticas do
setor, com destaque ao princípio da universalização dos serviços de saneamento. A presente
pesquisa, tida como descritiva, bibliográfica e documental, buscou verificar que impactos
a norma federal trouxe às políticas de saneamento dos nove municípios do norte de Santa
Catarina. O objetivo foi averiguar se os municípios instituíram suas políticas e planos de
saneamento, bem como se criaram os respectivos conselhos municipais. Ainda, buscou
avaliar, através de dados disponíveis no Sistema Nacional de Informações sobre Saneamento
(SNIS), os avanços na universalização dos serviços de abastecimento de água e coleta e
tratamento de esgoto nos respectivos municípios. Os resultados apontaram que os municí-
pios instituíram as políticas e planos municipais dentro do prazo estabelecido, e criaram os
respectivos conselhos municipais, muito embora em alguns deles a participação e controle
social das políticas de saneamento ainda não se tornaram realidades. Por outro lado, os
indicadores analisados apontaram que na década seguinte à norma foram registrados im-
portantes avanços na universalização do abastecimento de água. Entretanto, no que se refere
aos serviços de coleta e tratamento de esgoto, os percentuais de atendimento permanecem
abaixo da média nacional.

Palavras-chave: Políticas de saneamento. Lei Federal 11.445/07. Plano municipal de sanea-


mento. Controle social. Universalização dos serviços.
468 Fabrício Motta | Emerson Gabardo - Coords.

Ação popular e o controle social exercido pelos


Tribunais de Contas

Luiz Gustavo de Oliveira Vieira


Mestrando em Direito (Universidade Nove de Julho)
Agente de Fiscalização do Tribunal de Contas do Município de São Paulo

O presente artigo tem por objetivo propor um estudo comparativo entre a ação po-
pular e a representação perante os tribunais de contas brasileiros, ambos mecanismos de
controle social da Administração Pública. São apresentadas as principais características dos
institutos, com destaque para o fato de a ação popular ser um procedimento judicial. Diante
do afogamento do Poder Judiciário, mormente em virtude do elevado número de processos
pendentes de julgamento, a representação que pode ser feita perante os tribunais de contas
é uma alternativa viável para que os integrantes da sociedade exerçam o controle do patri-
mônio público. Esta última via de controle se opera no âmbito administrativo que, além de
colaborar no sentido de desafogar a instância judicial, é amplamente acessível. Ademais,
os tribunais de contas são instituições especializadas, com corpo técnico capacitado na
realização de auditorias e que realiza procedimentos específicos para enfrentar as questões
relacionadas à gestão do patrimônio público e dos interesses da coletividade. É diferente do
que ocorre no âmbito do processo judicial, no qual o julgador não é especialista em uma área
do conhecimento específica. Para este estudo, empregaram-se os métodos comparativo e
indutivo. Primeiramente, foram confrontadas as peculiaridades da ação popular e da repre-
sentação junto aos tribunais de contas. Destacadas e delineadas as características de cada
um dos procedimentos, chegou-se à conclusão genérica de que a via dos tribunais de contas
é uma via de ação que deve ser levada em consideração por aqueles que almejam exercer o
controle da Administração. Como resultado da pesquisa, foi possível identificar na atuação
dos tribunais de contas uma via de controle potencialmente mais técnica, barata e adequada
para a fiscalização dos atos do poder público que pode produzir resultados satisfatórios à
coletividade. Além de poder trazer resultados para a gestão pública, pode colaborar para
solucionar a questão do paradigma da eficiência do Poder Judiciário, reduzindo o número de
processos e dando soluções que efetivamente podem modificar uma realidade.

Palavras-chave: Fiscalização. Controle social. Ação popular. Tribunais de Contas. Eficiência.


Desenvolvimento Nacional 469

O lobby como facilitador da decisão


pública satisfatória

Gustavo Martinelli
Mestrando em Direito (PUC-PR)
Membro do Núcleo de Pesquisa em Políticas Públicas e
Desenvolvimento Humano (PUC-PR)
Advogado

O trabalho investiga a participação dos lobbies enquanto fornecedores de informação


valiosa para o gestor público. Valendo-se da teoria da “racionalidade limitada dos agentes
econômicos”, elaborada por Herbert Simon, parte-se do pressuposto de que os policy ma-
kers não possuem dados suficientemente completos e verdadeiros para fazer a escolha mais
satisfatória ao interesse público. Por esse motivo, estariam dispostos a serem influenciados
por especialistas interessados na decisão pública a ser tomada. Nesse contexto de lacuna
informacional, emergem-se grupos de pressão com intuito de promover uma comunicação
estratégica para influenciar os poderes públicos constituídos e legitimados para tomar
decisões. Tem-se aí o lobbying. Em que pese o estigma social que a ideia carrega, usual-
mente associada ao crime de tráfico de influência e à corrupção ativa, fazer lobby não passa
de um procedimento planejado de colheita e distribuição de informações, a fim de melhor
instruir os tomadores de decisões. Com efeito, dentre as principais técnicas lícitas para
influenciar os agentes públicos estão (i) o financiamento de surveys e pesquisas públicas,
a fim de colher dados anteriormente ignorados; (ii) a criação de think tanks, destinados à
elaborar e promover argumentos científicos que reforcem a tese defendida; bem como (iii) a
publicação de white papers, documentos redigidos com o intuito de formalizar os resultados
e dados encontrados. Embora haja uma tendência pressuposta em produzir resultados de
pesquisas parciais e maculados pelo conflito de interesses, em ambientes de decisão in-
certa e variável – como é o caso das decisões políticas – é natural o surgimento de grupos
concorrentes. Esses, por sua vez, geram dados mais qualificados que os anteriormente pro-
duzidos, na tentativa de obter a atenção do gestor público em detrimento dos demais. Nesse
cenário de intensa competitividade entre lobbies, somado ao conjunto de ferramentas de
comunicação que auxiliam e informam o decisor político, o maior beneficiário é o interesse
público, agraciado pela cacofonia democrática de interesses que em muito contribui para a
escolha administrativa. Lastreado pelo método dedutivo e facilitado pela revisão de literatura,
conclui-se que a abertura do diálogo entre decisores públicos e entes privados propicia um
espaço para que lobbies de interesses antagônicos disputem pelo fornecimento de informa-
ções mais completas e bem tratadas. Tendo em vista a racionalidade limitada dos agentes
470 Fabrício Motta | Emerson Gabardo - Coords.

econômicos, lobbies devem ser bem-vindos enquanto auxiliares da formação de escolhas


públicas mais satisfatória, capacitando os decisores a considerarem os custos, benefícios e
externalidades das decisões tomadas.

Palavras-chave: Lobby. Gestor público. Escolha pública. Racionalidade limitada. Direito ad-
ministrativo.
Desenvolvimento Nacional 471

O termo de compromisso do art. 26 da LINDB, o


licenciamento ambiental e a proteção do direito
ao meio ambiente

Luiz Antônio Freitas de Almeida


Doutor em Ciências Jurídico-Políticas (Universidade de Lisboa)
Mestre e especialista em Direitos Fundamentais (Universidade de Lisboa)
Promotor de Justiça no Estado de Mato Grosso do Sul.

O art. 26 da Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro (LINDB) trouxe a pos-


sibilidade de celebração do termo de compromisso para resolver irregularidade, incerteza
jurídica e solucionar questão administrativamente contenciosa. Consagra-se um espaço de
consensualidade em conformidade com várias ondas de alteração de paradigmas no Direito
Administrativo, em decorrência de um mercado globalizado e a fragmentação da soberania
trazida pela submissão estatal a agendas ditadas por instituições supranacionais, em um
cenário em que jogam inúmeros interesses em conflito. O artigo apresentado, a par de situar
sua introdução dentro desse contexto de multipolaridade de interesses, pretende examinar
as possibilidades de celebração do compromisso, as formalidades exigidas na lei e no seu
regulamento, inclusive com a apresentação de ideias para interpretar o conceito jurídico
indeterminado que condiciona o compromisso – a satisfação de interesse geral relevante.
Depois, objetiva-se examinar a possibilidade jurídica de, ao formalizar o compromisso, deixar
de paralisar atividades potencialmente poluidoras sem licença ambiental dentro do contexto
de proteção constitucional ao meio ambiente. Nesse compasso, há alguma comparação ao
termo de ajustamento de conduta, previsto no art. 5º, §6º, da Lei n. 7.347/85, e ao termo de
compromisso ambiental, tratado no art. 79-A da Lei n. 9.605/98. O método utilizado é o dog-
mático ou técnico-jurídico, com recurso aos textos e diálogo com a doutrina. As conclusões
principais são as seguintes: a) O art. 26 da LINDB confere um novo regime jurídico geral
permissivo à realização de acordos administrativos, com o intuito de acabar com a incerteza
jurídica dessa via por parte dos agentes públicos; b) a competência para a celebração do
compromisso é da autoridade administrativa, sendo viável construir um paralelo com o con-
ceito de autoridade coatora para impetração de mandado de segurança; c) interesses gerais
relevantes não se confundem necessariamente com o interesse público, mas o compromis-
so não pode ser banalizado, de sorte que se exige uma repercussão além da esfera mera-
mente individual do administrado. A relevância do interesse deve ser objeto de uma ponde-
ração do compromitente com o norte de maior atendimento ao interesse público, guiada por
equanimidade, proporcionalidade, eficiência administrativa e demais princípios que regem a
472 Fabrício Motta | Emerson Gabardo - Coords.

Administração Pública; d) Deve-se dar mesmo interpretação conforme à constituição ao art.


26 da LINDB, no sentido de proibir acordos substitutivos para empreendimentos potencial-
mente poluidores que permitam a prossecução da atividade sem licença ambiental, em fun-
ção da desproporcionalidade da proteção oferecida ao direito fundamental ao meio ambiente
decorrente do entendimento reverso. Há um conflito entre os direitos ao meio ambiente e à
livre iniciativa. Superados os testes de idoneidade e necessidade, adentra-se no exame de
proporcionalidade em sentido estrito, que favorece o direito ao meio ambiente. Isso porque
há maiores pesos abstratos e concretos do direito ao meio ambiente afetado. Afinal, não se
tolhe o exercício da atividade econômica indefinidamente e essa forma de “regularização”
já foi realizada com os compromissos do art. 79-A da Lei n. 9.605/98. Levam-se em conta
os princípios de prevenção e precaução e o custo de reparar o bem ambiental degradado.

Palavras-chave: Direito ao meio ambiente. Direito administrativo. Consensualidade. Termo


de compromisso. Licenciamento ambiental.
Desenvolvimento Nacional 473

Sanções e penas: entre a coerência punitiva


estatal e a independência das instâncias
administrativa e jurisdicional penal

Antonio Rodrigo Machado


Mestre em Direito (UniCEUB)
Professor de Direito Administrativo da Graduação e Pós-Graduação (IDP)

A presente pesquisa tem por objeto a análise da independência entre as instâncias


penal e administrativa no julgamento dos mesmos fatos tipificados como crime e infração
disciplinar contra servidor público. O estudo investigou as razões da vinculação da decisão
administrativa sancionadora à jurisdição penal nas hipóteses de sentença criminal que absol-
va o réu por negativa de autoria e de materialidade e em caso de absolvição por insuficiência
de provas, no qual prevalece o isolacionismo entre as instâncias. A partir do reconhecimento
da unidade punitiva do Estado, buscou-se argumentos jurídicos com o escopo de estabe-
lecer harmonia entre os julgados na jurisdição penal e no processo administrativo sancio-
nador. Por meio do método dialético, a pesquisa foi empreendida no sentido de alcançar os
significados e os limites da regra de independência entre as instâncias com base na análise
das diferentes modalidades de responsabilidade do servidor público e na caracterização da
supremacia da instância criminal sobre a administrativa. Foram discutidas as espécies de
sentenças absolutórias que formam a coisa julgada penal, as razões de existência do princí-
pio ne bis in idem, os efeitos da coisa julgada e os elementos que definem a similitude dos
objetos litigiosos dos processos penais e administrativos disciplinares. Para a resolução
do conflito com o princípio da separação de poderes e sua regra de independência entre
as instâncias, propusemos utilizar os princípios constitucionais do devido processo legal,
da presunção de inocência, do respeito à coisa julgada, da dignidade da pessoa humana,
da segurança jurídica e da proporcionalidade, além da regra de vinculação entre instâncias
em duas hipóteses de absolvição penal. A utilização do princípio da proporcionalidade, por
meio de sua lei da ponderação, foi a ferramenta de afastamento do isolacionismo entre as
instâncias punitivas. Propôs-se, ainda, uma análise da jurisprudência do Supremo Tribunal
Federal, do Superior Tribunal de Justiça, do Tribunal Regional Federal da 1ª região e do Tri-
bunal de Justiça do Distrito Federal e Territórios, o que nos permitiu constatar que, apesar
do posicionamento majoritário de independência entre as instâncias penal e administrativa,
diversos precedentes já vêm aplicando o princípio da proporcionalidade como limitador da
arbitrariedade na aplicações de sanções administrativas.

Palavras-chave: Independência entre instâncias. Coisa julgada penal. Sanção administrati-


va. Absolvição por insuficiência de provas. Princípio da proporcionalidade.
474 Fabrício Motta | Emerson Gabardo - Coords.

A importância dos cartórios extrajudiciais para o


combate à corrupção: realidade e expectativa

Mariângela de Fatima Ariosi


Mestre em Direito (UERJ)
Tabeliã e registradora em Flórida Paulista-SP

Este trabalho defende a tese na qual os cartórios são as únicas entidades capa-
zes de gerar e transmitir dados aos órgãos públicos de forma segura e eficiente e, através
desse compartilhamento, auxiliar a prevenir e combater a corrupção. Atualmente, os cartó-
rios vão além da sua função registral e notarial atuando como alimentadores de dados para
órgãos públicos. Forma-se no Brasil uma rede complexa de sistema informatizado, pelo
desenvolvimento de plataformas institucionais dentro das quais os cartórios atuam como
alimentadores de dados. O compartilhamento de dados entre cartórios e poder público segue
normas rígidas de exigência, principalmente com relação aos prazos de cumprimento para
transmissão dos dados e instalação de ambiente tecnológico sofisticado pelos cartórios.
Apresentam-se os principais portais utilizados pelos cartórios nesse compartilhamento de
dados e sua importância para o combate às fraudes. Porém, mesmo diante de um cenário
de alta interdependência entre Estado e cartórios, surgem fortes críticas defendendo sua
extinção, todas pautadas em argumentos midiáticos risíveis, como fundamentar a sua extin-
ção pelo fato de os cartórios serem muito rentáveis. Nesse contexto, apontam-se algumas
deficiências, já identificadas, no compartilhamento de dados; sugerem-se alternativas para
melhorar o desempenho; e, se conclui que somente por um compartilhamento de dados
eficiente o poder público conseguirá debelar as fraudes e a corrupção e os cartórios se apre-
sentam neste cenário como entidades indispensáveis. Enfim, se questiona os reais motivos
de figuras públicas defenderem a extinção dos cartórios, sendo estes os únicos capazes de
gerar e compartilhar informações necessárias para combater a corrupção.

Palavras-chave: Cartórios. Serventias extrajudiciais. Corrupção. Tecnologia. Improbidade


administrativa.
Desenvolvimento Nacional 475

A Lei de Improbidade Administrativa: a busca


por uma maior intensidade nas penas

Guilherme Gabriel Tiago Gomes Gonçalves


Acadêmico do curso de Direito (Unigran)

A Lei de Improbidade Administrativa inovou o sistema jurídico brasileiro ao trazer a


previsão da tríplice responsabilidade jurídica ao sujeito que comete um ato improbo dentro
de uma único dispositivo legal, devendo ser salientado um aspecto importante, pois a lei não
trouxe em seu texto nenhuma conduta tipificada como crime, a lei não tem caráter penal, ela
apenas não exclui da apreciação do Código Penal, um possível ato Improbo que também seja
considerado um ilícito penal. A lei trata de três espécies de atos de improbidade administra-
tiva, sendo: Atos que causam enriquecimento ilícito, Atos que causam danos ao erário; Atos
que atentam contra os princípios da administração pública. Nesse meio a LIA traz diversas
previsões dentro de seu texto de ações e omissões que podem ser consideradas como atos
ímprobos, não obstante tais previsões são meramente exemplificativas. Tal diploma legal,
busca punir em seu conceito mais abrangente o sujeito ativo do ato de improbidade, o agente
público, não se atendo a apenas ele, e alcançando também os particulares que concorrem
para a prática do ato ou se beneficiaram. É mister considerar o quão importante é esse
dispositivo legal de proteção da probidade, apesar da baixa majoração do capítulo que trata
das penas, salienta-se que o dispositivo em geral traz grandes benefícios para a proteção
do dever da honestidade e probidade na Administração Pública. O presente trabalho propõe
analisar a Lei de Improbidade Administrativa, e despertar por meio dessa pesquisa a ideia de
uma necessidade de alteração legal no que tange a aplicação das penas. Para a elaboração
do texto em tela, fez-se amplo estudo em doutrinas majoritárias, legislações, julgados de
juízos de diferentes alçadas. O rol de penas que a LIA traz em seu texto e suas previsões
se mostram de suma importância e seu cabimento se encontra em perfeito sincronismo. O
legislador ao trazer a previsão de ressarcimento do dano, suspensão dos direitos políticos do
autor do ato, perda da função pública, pagamento de multa civil, proibição de contratar com
a administração pública ou receber benefícios fiscais, são previsões essenciais para punição
de tais agentes. O que o presente trabalho pretende demonstrar é a baixa intensidade de tais
penas, na qual suspensão dos direitos políticos do sujeito praticante do ato se restringe no
máximo a 10 anos, nesse liame é necessária uma majoração. Pelo estudo realizado che-
ga-se à consideração de que é preciso majorar as penas para realmente ter maior eficácia
na aplicação da LIA isto é, aumentar sua intensidade para tais atos, exemplificando um ato
penalizado com 10 anos elevar para 20 anos.

Palavras-chave: Improbidade. Público. Agente. Penas. Majoração.


476 Fabrício Motta | Emerson Gabardo - Coords.

Competência suplementar dos estados como


medida para agilizar a implementação de
arbitragem tributária em âmbito regional:
uma análise pela perspectiva da
Administração Pública dialógica

Érika A. Rosa
Mestranda em Estudos Fronteiriços (UFMS)

O presente trabalho teve como objetivo suscitar o debate sobre a possibilidade da im-
plementação da arbitragem tributária por meio de legislação ordinária editada pelos próprios
estados-membros através da competência suplementar, frente a carência de legislação fede-
ral que autorize tal medida. Em relação ao procedimento metodológico, foi realizada pesquisa
bibliográfica exploratória, tendo a coleta de dados ocorrida por meio de fichamento, após a
escolha de obras consideradas relevantes para a interpretação do tema. Essa reflexão se fez
necessária devido ao fato de as execuções fiscais serem notoriamente as maiores responsá-
veis pelo congestionamento processual que atravanca o judiciário, à vista disso, o instituto
da arbitragem em matéria tributária pode se transformar num instrumento para a administra-
ção judiciária tentar mitigar o referido problema. Todavia, a adoção do citado método hetero-
compositivo de resolução de conflitos em matéria fiscal foi obstado por alguns doutrinadores
mais conservadores do direito administrativo ao principal argumento da indisponibilidade da
receita tributária, contudo os resultados mostraram que os argumentos jurídicos contrários à
efetivação da arbitragem tributária restaram superados, tanto pela doutrina quanto pela juris-
prudência, ambas alinhadas ao novo paradigma da administração pública, mais democrática
e dialógica. Não obstante, o que se observou foi uma grande resistência política por ser um
instrumento nunca utilizado no Brasil e como toda novidade induz sentimento de medo e
desconfiança. Concluiu que a possibilidade de regulamentação desse método alternativo de
resolução de conflitos no âmbito fiscal por meio de legislação suplementar como alternativa
à inércia legislativa federal representaria um avanço para a administração pública, sobretudo
no que tange a gestão judiciária posto que se mostra como uma via alternativa ao congestio-
namento processual fiscal ao mesmo tempo em que vislumbra um alargamento no diálogo e
a promoção da democracia participativa, uma vez que possibilita a densificação do resultado
útil do processo através de um mecanismo mais especializado, além de representar impor-
tante instrumento de notável impacto no sistema de arrecadação tributária.

Palavras-chave: Arbitragem tributária. Gestão judiciária. Administração dialógica. Democra-


cia. Competência suplementar.
Desenvolvimento Nacional 477

Políticas públicas para o alcance do desenvolvi-


mento nacional: a proposição e inclusão do ter-
ceiro setor na educação básica por meio
das medidas de fomento

Carla Regina Bortolaz de Figueiredo


Pós-graduanda em Direito
Administrativo (Instituto de Direito Romeu Bacellar)
Graduada em Direito (UniBrasil)

O estudo sobre a formulação de políticas públicas para o alcance dos direitos cons-
titucionais – principalmente direitos fundamentais sociais – se faz de suma importância para
o avanço social, uma vez que é a partir dessas escolhas públicas que reside a possibilidade
de construção de uma sociedade mais justa, solidária, plural e com atendimento às necessi-
dades básicas dos cidadãos que a integram. Sob esta perspectiva é que o presente resumo
pretende trazer à baila a discussão de como tais políticas interferem no desenvolvimento
nacional, tendo como pano de fundo a avaliação da sua efetividade. O objetivo é colocar em
discussão a possibilidade de prestação do serviço de educação pelo Estado em conjunto
com os particulares, como forma de cooperação, utilizando-se de instrumentos disponíveis
no ordenamento jurídico brasileiro. A partir dessa premissa, sugere-se o debate das ativi-
dades prestadas pelo terceiro setor por meio das medidas alternativas de fomento, na área
da educação, como tentativa de incrementar a qualidade de ensino prestada à sociedade
brasileira. Sob este viés, destaca-se a importância da realização e execução de políticas
públicas, simulando a aplicação da escolha pública educacional através das medidas de
fomento como estímulo ao terceiro setor para a prestação de atividades na área da educa-
ção, em complementariedade ao serviço já prestado pelo Estado, ressaltando os meios de
avaliação dos efeitos desta política pública na sociedade. Assim, tendo as políticas públicas
como ponto de partida para a concretização de direitos fundamentais sociais, juntamente
com as parcerias da administração pública com o particular na cooperação de esforços para
alcance do desenvolvimento nacional, enseja-se a discussão da viabilidade da execução
das atividades de educação por meio das Organizações Sociais, a fim de proporcionar o
aumento da qualidade na prestação de ensino por meio das medidas de fomento, forçando
a sociedade a repensar sobre os atuais modelos praticados e a reflexão sobre a inserção
dos novos modelos para a contribuição de uma sociedade mais plural e democrática que,
por meio da colaboração e união de esforços do Estado com o particular, possam contri-
buir para o desenvolvimento nacional idealizado pelo constituinte originário. Assim, pode-se
478 Fabrício Motta | Emerson Gabardo - Coords.

concluir que se o gestor público unir esforços desde a formulação de uma política pública
educacional, estudando as possíveis vias de ação e eleger a via mais eficaz, eficiente e que
efetivamente possa trazer bons resultados, a educação pública já terá um grande avanço.
Soma-se a isso, a execução desta escolha pública por meio de parcerias firmadas com o
terceiro setor, como já vem ocorrendo na área da saúde, vislumbrando a possibilidade de,
a longo prazo, modificar o cenário educacional atual e colher bons frutos para galgar ao
desenvolvimento nacional.

Palavras-chave: Políticas públicas. Fomento. Terceiro setor. Direito fundamental social à


educação. Educação.
Desenvolvimento Nacional 479

O Código de Defesa do Usuário de Serviço


Público: concretizando uma agenda
inclusiva para os cidadãos?

Cynthia Gruendling Juruena


Doutoranda em Direito (PUC-PR)
Mestre em Direito (Unisc)
Pesquisadora do Núcleo de Pesquisas em Políticas Públicas e
Desenvolvimento Humano (PUC-PR)

Clayton Santos do Couto


Doutorando e mestre em Direito (PUC-PR)
Professor dos cursos de Graduação em Direito (PUC-PR)
Professor (Universidade Positivo)

Com a entrada em vigor do Código de Defesa do Usuário de Serviço Público (Lei


13.460/17) em junho de 2018, para União, estados, Distrito Federal e municípios com popu-
lação superior a 500 mil habitantes, o presente trabalho teve por objeto verificar, para além
das modificações introduzidas, se – e como – ele vem sendo utilizado pela jurisprudência.
Os julgados foram pesquisados nos sítios eletrônicos do Tribunal de Justiça do Paraná e do
Tribunal Regional Federal da 4ª Região, com o lapso temporal a partir da data de entrada
em vigor até fevereiro de 2019. A metodologia de pesquisa adotada foi o método hipotéti-
co-dedutivo, pois este concilia a racionalização do método dedutivo e a experimentação do
método indutivo, sendo essa experimentação as análises quantitativa e qualitativa da juris-
prudência do TJ-PR e análise quantitativa no TRF-4. Nesta senda, o problema de pesquisa
que foi enfrentado no trabalho é, a partir da análise quantitativa e qualitativa dos julgados
envolvendo o código de defesa do usuário de serviço público, se houve modificações nas
decisões, e quais estão sendo essas alterações. No entanto, o resultado foi de que o TJ-PR
e o TRF-4, neste lapso temporal selecionado, não se utilizaram da Lei 13.460/17. Com isso,
partiu-se de uma nova hipótese: no lapso temporal selecionado, não houve falhas na pres-
tação de serviços públicos nos municípios com população superior a 500 mil habitantes,
não sendo necessária a aplicação do Código de Defesa do Usuário de Serviço Público. Para
confirmar ou refutar essa hipótese, realizou-se uma nova pesquisa jurisprudencial, com as
palavras-chave “serviço público” adequado. Com essa busca, obtiveram-se resultados no
TJ-PR e no TRF-4, onde, analisando-se qualitativamente os acórdãos, verificou-se que o
Código de Defesa do Consumidor continua sendo utilizado quando da falha na prestação de
serviço público, mesmo havendo legislação específica. Além disso, realizou-se uma análise
480 Fabrício Motta | Emerson Gabardo - Coords.

nos portais da transparência nos mesmos municípios que possuem população superior a
500 mil habitantes, quais sejam, Curitiba e Londrina, além do sítio eletrônico do estado do
Paraná. Os aspectos analisados foram se há publicização de Carta de Serviços ao Usuário,
disponibilização na internet de relatório de gestão, desenvolvimento de mecanismos reativos
para responder as manifestações dos usuários – através das ouvidorias, e publicação de
classificação das entidades com maior incidência de reclamação dos usuários. Verificou-se
que, também no Poder Executivo, a legislação não vem sendo muito observada.

Palavras-chave: Código de Defesa do Usuário de Serviço Público. Jurisprudência. Portais


da transparência. Serviço público adequado. Código de Defesa do Consumidor.
Desenvolvimento Nacional 481

A utilização de inteligência artificial na atividade


regulatória: uma proposição de regulação inteli-
gente em favor do desenvolvimento nacional

William Ivan Gallo Aponte


Mestrando em Direito Econômico e Desenvolvimento (PUC-PR)

Rafaella Nátaly Fácio


Graduanda em Direito (UFPR)

O objetivo do presente trabalho é analisar a função regulatória a partir da perspec-


tiva do desenvolvimento nacional, atrelando-a a noção de qualidade regulatória, ou “smart
regulation”, e seus instrumentos, especificamente a Análise de Impacto Regulatório (AIR)
realizado com o apoio de inteligência artificial (IA). Para tanto, discorreu-se sobre: (1) o
papel da função regulatória para o desenvolvimento nacional; (2) o conceito de “Smart regu-
lation” ou regulação inteligente, suas transformações, instrumentos e experiência brasileira e
internacional; (3) a utilização de inteligência artificial no âmbito da Análise de Impacto Regu-
latório, quanto à sua compatibilidade e pressupostos. A metodologia adotada foi a dedutiva,
descritiva e comparativa, conjugada com a técnica de pesquisa documentação indireta das
referências bibliográficas e normativas. Ao final, concluiu-se que a utilização de inteligência
artificial no âmbito da Análise de Impacto Regulatório é viável e desejável para incrementar
a melhora regulatória e contribuir para o desenvolvimento nacional, considerando a compa-
tibilidade entre ambas e sua aptidão para proporcionar uma decisão regulatória mais técnica
e efetiva. Tal prática, entretanto, deve ser efetivada de acordo com pressupostos de duas
ordens: (1) em primeiro lugar, em relação à extensão da possibilidade de utilização de in-
teligência artificial, (1.1) jamais deve-se permitir que a IA substitua a decisão do agente
público; (2) em segundo lugar, em relação ao modo da implantação da inteligência artificial,
(2.1) deve-se dar publicidade à sequência dos passos lógicos da decisão algorítmica; (2.2.)
e deve-se observar as disposições da Lei Geral de Proteção de Dados, especialmente no que
tange ao tratamento de dados pessoais pelo poder público.

Palavras-chave: Função regulatória. Qualidade regulatória. Desenvolvimento. Análise de Im-


pacto Regulatório (AIR). Inteligência artificial (IA).
482 Fabrício Motta | Emerson Gabardo - Coords.

Terceirização na administração pública após


a reforma trabalhista

Luciana da Silva Vilela


Pós-graduada em Direito
Público (Rede de Ensinos Luiz Flávio Gomes)
Pós-graduada em Gestão Previdenciária e
Regime Próprio de Previdência (Faculdade Unyleya)
Aluna especial do Mestrado em Direito (UFMS)

Roberta Seben
Pós-graduanda em Direito Processual
Civil (PUC-SP em parceria com a ESAMS)
Aluna especial do Mestrado em Direito (UFMS)
Servidora pública federal do Tribunal Regional
do Trabalho da 24ª Região

O presente artigo objetiva abordar sobre os contratos de prestação de serviços pú-


blicos mantidos pela Administração Pública com os particulares prestadores de serviços,
configurando a terceirização trabalhista. Trata-se de intermediação de serviços de mão de
obra por interposta pessoa para redução de custos dos cofres públicos, possibilitando maior
enfoque do Órgão Público à prestação de seus serviços principais. A regulamentação da
terceirização no Brasil iniciou em 1967 com a emissão do Decreto 200/67, que permitia
à Administração Pública recorrer à execução indireta para prestação de serviços que não
constituíam suas atividades primordiais. No decorrer dos anos a matéria foi sendo regula-
mentada pela Constituição Federal, entendimentos do TST (Súmulas 256 – já cancelada – e
Súmula 331), Lei 8.666/93, Decreto 2.271/97 revogado pelo Decreto 9.507/2018, permitin-
do, primeiramente, a contratação da iniciativa privada para realização das atividades-meio
prestadas pelo poder público, ampliando, posteriormente, também para as atividades-fim.
Inicialmente, desde que os serviços prestados não fossem essenciais, não era estabelecido
vínculo direto entre o prestador dos serviços e o tomador, sendo a responsabilidade subsi-
diária da administração pelo inadimplemento de encargos trabalhistas. Com o advento da
Lei 13.426/2017 e 13.467/2017 ampliaram-se as possibilidades de terceirização do Esta-
do, possibilitando a prestação de atividades principais e acessórias. Após, foram proferidos
entendimentos pelo Supremo Tribunal Federal (RE 760.931, RE 958.252 e ADPF 324/DF),
legalizando a terceirização na Administração Pública e nas empresas privadas, mantendo,
contudo, a responsabilidade subsidiária caso comprovadas a culpa in vigilando e culpa in
eligendo. Nas recentes decisões, o STF afirmou que a distinção feita entre atividade-fim e
Desenvolvimento Nacional 483

atividade-meio encontra-se superada e desconsidera a dinâmica da economia moderna, não


revelando, por si só, instituto fraudulento, afirmando ser permitida pela Constituição Federal
(artigo 1º, IV, 37, caput, e 170 da CF/88). Após proferidos os referidos entendimentos, foi
editado o Decreto 9.507/2018, que regulamentou permissivos de contratação de prestação
de serviços para com a Administração, extinguindo os limites até então impostos pelo Decre-
to 2.271/97. As modificações da legislação podem ser tidas como inconstitucionais, pois,
além do Decreto 9.507/2018 conter vício de forma, afrontam valores sociais do trabalho e
da livre iniciativa (artigo 1º, IV da CF/88), a dignidade da pessoa humana (artigo 1º, III da
CF/88), e ainda aos princípios intrínsecos da Administração Pública, como a prevalência do
interesse público, impessoalidade, moralidade e até mesmo a eficiência dos serviços pres-
tados. Trata-se de pesquisa exploratória, com exposições de leis, entendimentos e exibição
da progressão da terceirização no âmbito público, além de apresentações críticas sobre a
possibilidade de terceirização liberada e desenfreada, que coloca em risco os interesses e
imparcialidade da administração pública.

Palavras-chave: Reforma. Impacto. Terceirização. Contratos. Administração Pública.


484 Fabrício Motta | Emerson Gabardo - Coords.

A necessidade de se pensar as reformas sob a


ótica da sustentabilidade

Guilherme Cortez dos Santos


Pós-graduando em Direito Administrativo (PUC-MG)
Servidor público municipal da Prefeitura de Santa Maria-RS

A necessidade de reforma nas legislações das mais diversas áreas que envolvem a
administração pública brasileira tem sido pauta recorrente nos últimos tempos, especialmen-
te desde as últimas eleições presidenciais, em 2018. A tão propagada reforma da previdên-
cia já está em análise pelo Poder Legislativo, além da reforma trabalhista, já aprovada no final
do ano de 2017, e alterações que também configuram como reformistas, como a tributária
e da Lei de Licitações demonstram esse movimento legislativo importante. Nesse contexto,
é comum se perceber uma parcela significativa da sociedade defender a realização dessas
reformas pelo fato de, em tese, elas representarem uma forma quase que única de mudança
e transformação do Brasil, como se a corrupção e a precariedade na prestação dos serviços
públicos fossem melhorar tão somente por consequência da aprovação das referidas legis-
lações. Não há como se negar que a legislação brasileira, em especial no que se refere ao
Direito Público, assim como em qualquer outro país que tenha se desenvolvido nas últimas
duas décadas de forma mais significativa, precisa de avanços e carece de atualização e que
hoje, a administração pública padece em um limbo entre as necessidades de inovações e, de
outro lado, legislações que impedem algumas práticas mais proativas. No entanto, é preciso
que haja um equilíbrio no que se busca debater, especialmente para que o aprimoramento
proposto se dê de forma mais sustentável. Neste sentido, este estudo apresenta a proposta
de leitura dos projetos de lei da Reforma da Previdência (PEC 6/2019) e da Reforma Tribu-
tária, a fim de analisá-los sob a perspectiva da sustentabilidade, compreendida nos aspec-
tos econômicos, sociais, administrativos e éticos. O que se busca compreender é em que
medida esses textos propõem mudanças que possibilitem que o Estado funcione de forma
a cotejar todos estes vieses, assegurando o desenvolvimento que contemple e equilibre
avanços sociais e econômicos. Parte-se do pressuposto que é insuficiente qualquer reforma
que contemple as eventuais metas fiscais, mas não estimule o planejamento que leve em
conta uma análise de resultados advindo de cada medida, para além do que se mostra como
imediatamente posto, aos olhos de alguns, como sendo a desburocratização ou a diminuição
das cargas tributárias. Pelo que se pode analisar dos referidos projetos de alteração, em
muitas propostas é flagrante a ausência de propostas sustentáveis, pela ausência de análise
de riscos das medidas e, de outra parte, pela falta de avaliação de resultados das políticas
Desenvolvimento Nacional 485

que se pretende mudar e/ou estabelecer. Desde já se pode afirmar que há legitimidade ao se
propor reformas, contudo, tais propostas não podem se dar, sob pena de comprometimento
das futuras gerações, inclusive, sem se mobilizar a noção de sustentabilidade.

Palavras-chave: Sustentabilidade. Reforma da previdência. Reforma tributária. Análise de


risco. Administração Pública.
486 Fabrício Motta | Emerson Gabardo - Coords.

Comunidades terapêuticas e políticas públicas:


um estudo de caso em Campo Grande

Hudson Marcos Alves Dias


Mestrado profissional em Administração
Pública em Rede Nacional (UFMS)

A temática do uso de drogas envolve áreas como segurança, saúde, educação e eco-
nomia. Estando diretamente relacionada a problemas sociais como a superlotação carcerária
e a criminalidade. No intuito de enfretamento dessa realidade social brasileira, foi editada a
Lei de Drogas 11.343/2006 que instituiu o Sistema Nacional de Políticas Públicas (Sisnad),
o qual “prescreve medidas para prevenção do uso indevido, atenção e reinserção social de
usuários e dependentes de drogas”. A lei possibilita a cooperação entre o Estado e a socieda-
de e entre as entidades civis que atuam na política de drogas estão as Comunidades Terapêu-
ticas apoiando o dependente químico. Além disso, através de entrevistas semiestruturadas e
da pesquisa documental e legislativa, verificar o estado da arte dessas entidades em Campo
Grande. Quantas são, as suas necessidades, a organização do trabalho, a relevância destas
e a relação com o Estado, no que tange a visibilidade e o apoio recebido. Assim são os obje-
tivos dessa pesquisa: analisar a atual política pública de drogas de Campo Grande, como um
estudo de caso, do tipo exploratório e descritivo, das entidades (públicas e privadas) e das
políticas públicas atuais em Campo Grande. Além de subsidiar a elaboração de uma proposta
de nova política pública, integrando as já existentes, com foco na atuação das comunidades
terapêuticas, bem como a elaboração de uma agenda de pesquisa no sentido de desen-
volve-la e acompanha-la. Para tal, foi realizado um estudo bibliográfico na busca de expor
conceitos do campo psicossocial e validar métodos que atuam na redução da demanda por
drogas, como as comunidades terapêuticas. Além disso, para esta pesquisa, foi utilizado o
método benchmarking, a fim de buscar as melhores práticas.

Palavras-chave: Políticas públicas. Comunidades terapêuticas. Efetividade. Política de dro-


gas. Trabalho em rede.
Desenvolvimento Nacional 487

Políticas públicas em relação ao uso de drogas:


estudo de caso considerando uma análise de
efetividade administrativa

Ricardo Luiz Alves


Mestrando pelo Programa de Pós-Graduação em
Direito e Políticas Públicas (UFG)
Professor (Centro Universitário de Mineiros)

Franciele Silva Cardoso


Doutora em Direito (USP)
Professora adjunta (UFG)
Docente permanente do Programa de Pós-Graduação em
Direito e Políticas Públicas (UFG)

Este estudo compõe uma pesquisa que será apresentada no Programa de Pós-gra-
duação em Direito e Políticas Públicas, Universidade Federal de Goiás. Seu objetivo é analisar
a efetividade da política pública de tratamento e reinserção de pessoas que usam drogas,
considerando o programa implantado no Estado de Goiás, qual seja, o Centro Estadual de
Referência e Excelência em Dependência Química de Aparecida de Goiânia Prof. Jamil Issy
(CREDEQ Prof. Jamil Issy). Considera-se o consumo de drogas um problema que pode advir
de questões sociais, biológicas e psicológicas, conforme o meio social em que o indivíduo
se insere. Além de um fator social, o uso de drogas também é um problema de saúde públi-
ca, que prepondera sobre os problemas de segurança pública. O texto constitucional define a
saúde como um direito fundamental, tornando essa prestação um encargo do Estado, logo,
a disponibilidade de políticas públicas vinculadas às questões de drogas não são discricio-
nárias, o meio pode ser relativizado, mas a prestação de serviços públicos de saúde, não.
Nesse sentido, mostra-se relevante explorar como o Estado de Goiás está implementando
políticas de redução de danos em relação às pessoas dependentes do uso de drogas. Pre-
tende-se com este estudo de caso, verificar se a inserção de uma política pública de saúde
de tratamento diretamente nos casos de pessoas que tem problemas com o uso de drogas
pode ter influência positiva e eficiente na política de redução de riscos e danos do uso de
drogas, bem como, a reinserção de pessoas que usam ou usaram drogas, considerando as
determinações feitas pelo Sistema Nacional de Políticas Públicas sobre drogas. Optou-se
por metodologia dedutiva, haja vista que a política pública deve ser considerada como um
processo que busca a escolha racional e coletiva de prioridades, a fim de se perseguir um
resultado em consonância com o interesse público, fundamento do Estado de Direito. Será
488 Fabrício Motta | Emerson Gabardo - Coords.

descrito um recorte epistemológico sobre o referencial teórico dos critérios adotados para
aferir a efetividade da referida política pública. De início, eficiência relaciona-se à boa gestão
de recursos públicos, na razão de que a atividade seja desempenhada de modo mais adequa-
do e coeso aos fins determinados, considerando também a escolha dos meios e o momento
oportuno para utilizá-los. De outra forma, sua relação está ligada à ideia de ação, ou seja,
preocupa-se com a delimitação temporal na prestação de serviços públicos, contrapondo à
ideia de lentidão e descaso no desenvolvimento de políticas públicas. Contudo, a definição
de efetividade necessita de interpretação axiológica, considerando a adequação entre as
necessidades e resultados esperados, a justa repartição de recursos e, o atendimento das
reivindicações sociais. Outra característica que não poderá ausentar-se da prestação de ser-
viço público é a sua relação entre o princípio da dignidade da pessoa humana e a respectiva
política pública. Conclui-se que a análise de efetividade de políticas públicas deve guardar
relação com valores axiológicos do princípio da eficiência, além da garantia do princípio da
dignidade da pessoa humana no cumprimento de objetivos técnicos, resultados rápidos e
precisos e obediência à boa administração.

Palavras-chave: Direito administrativo. Políticas públicas. Dependência química. Efetividade.


Eficiência.
Desenvolvimento Nacional 489

A eliminação da relativização da propriedade


privada como proposta de governo que
prejudica o desenvolvimento nacional

Maria Luiza Miranda da Costa


Estudante de Graduação do Curso de Direito (UFC)

O presente estudo se propôs a combater a proposta de governo do então candida-


to à presidência de 2019, Jair Bolsonaro, que sugere a retirada da Constituição qualquer
relativização da propriedade privada, tornando-a absoluta. Com a eleição do candidato e,
consequentemente, do plano de governo, fez-se necessária uma análise minuciosa da pro-
posta, para avaliar o impacto gerado por ela no desenvolvimento nacional, se concretizada.
Para isso, foi utilizado o método descritivo-analítico em pesquisa bibliográfica, analisando-se
primeiro a possibilidade jurídica de se tornar o direito à propriedade absoluto, a partir de
duas interpretações do objetivo da proposta: tornar a propriedade absoluta como um direito
hierarquicamente superior aos demais, dando a ele maior relevância, e tornar a propriedade
absoluta como um direito ilimitado, inviolável sob qualquer hipótese. A discussão teve como
base as lições de Ronald Dworkin, em especial as referências ao modelo da dimensão do
peso dos princípios e da aplicação tudo-ou-nada das regras e os ensinamentos de Norberto
Bobbio, especialmente sua teoria juspositivista que buscava combater os argumentos de
fundamentação absoluta dos direitos. Posteriormente, foram analisadas as consequências
materiais de se concretizar a proposta, a partir dos objetivos fundamentais da República
estabelecidos pela Constituição Federal de 1988 e seus princípios jurídicos correlatos, em
especial a função social da propriedade e a supremacia do interesse público. A proposta,
por entrar em conflito com as normas do Direito brasileiro, incluindo normas constitucio-
nais, também prejudica o desenvolvimento nacional, tendo em vista que a absolutização da
propriedade privada implica o afastamento de princípios intrínsecos ao ordenamento jurídico
vigente, que possuem como objetivo a garantia do desenvolvimento nacional, explícito no
artigo 3º, II, da Constituição Federal, motivo pelo qual a proposta deve ser completamente
afastada.

Palavras-chave: Jair Bolsonaro. Propriedade privada. Inconstitucionalidade. Intervenção es-


tatal. Interesse público.
490 Fabrício Motta | Emerson Gabardo - Coords.

Negociação processual atípica nos processos


administrativos disciplinares:
desafios e perspectivas

Roberta Cruz da Silva


Doutoranda em Direito (Unicap)
Professora (Asces/Unita)
Professora (Unicap)

Shayenne Ladislau Silva


Graduanda em Direito (Asces/Unita)

Aborda-se a possibilidade de se construir uma relação dialógica entre Administração


Pública e servidor na condução dos processos administrativos disciplinares. Partiu-se do
seguinte problema de estudo: é possível adotar a negociação processual atípica, prevista no
CPC/2015, nos processos administrativos disciplinares sem ferir o Princípio da Supremacia
do Interesse Público? O tema é interdisciplinar, atual e controvertido. Analisa a possibili-
dade de adoção da cláusula de negociação processual atípica, prevista no artigo 190 do
CPC/2015, nos processos administrativos disciplinares (PAD’s). Inicialmente acreditou-se
que a abertura para negociação na esfera pública poderia ferir o Princípio da Supremacia
do Interesse Público. Assim, adotou-se o método hipotético-dedutivo. Ademais, realizou-se
vasta pesquisa bibliográfica, que foi a base para um estudo explicativo, com a finalidade de
buscar informações relativas ao estado da arte da gestão pública consensual no Brasil, es-
pecificamente, no concernente aos PAD’s. O estudo evoluiu da pesquisa explicativa para ex-
ploratória, com o intuito de avaliar se a adoção do consensualismo tem sido responsável pela
possível desconstrução do princípio da supremacia do interesse público sobre o privado.
Analisou-se a possibilidade de confluência entre os dispositivos legais que regem os PAD´s
e o processo civil, com a análise do artigo 15 do CPC. O poder público brasileiro passou e
passa por mudanças em busca de mais eficiência, princípio esse inserido como propulsor
para que essas mudanças garantam os direitos constitucionais. Embora sejam necessárias
algumas transformações, institutos clássicos como a Supremacia do poder público seguem
inalteráveis, haja vista sua relevante capacidade de manutenção da ordem pública. Não obs-
tante, o CPC/2015 fomenta soluções concertadas, adequadas ao caso concreto, através da
possibilidade de negociações atípicas, criando, a partir da autorização prevista no artigo 15,
a possibilidade de adoção da cláusula de negociação processual atípica nos PAD’s, sem dis-
por de interesse público. Assim, conclui-se que, ainda que seja um processo caracterizado
Desenvolvimento Nacional 491

pelo “jus puniende”, é possível adotar a negociação, mantendo a supremacia do interesse


público. Desse modo, quando se tratar de direito disponível, as partes forem capazes e o liti-
gio admitir a autocomposição, será possível e legítima a conformação na seara pública, com
base no artigo 15 do CPC/2015 e no artigo 26 da LINDB. Podendo, por exemplo, negociar os
prazos e despesas processuais, ou ainda, a dispensa de assistente técnico.

Palavras-chave: Administração Pública. Processo administrativo disciplinar. Negociação


processual atípica. Consensualidade. Supremacia do interesse público.
492 Fabrício Motta | Emerson Gabardo - Coords.

Entre pontes e muralhas, o “soberano” cidadão:


a interpretação jurídica do investimento estran-
geiro na infraestrutura brasileira na perspectiva
do direito administrativo neoconstitucional

Carolina Reis Jatobá Coêlho


Doutoranda em Direito Administrativo (PUC-SP)

Trata-se de pesquisa sobre as implicações jurídicas dos investimentos estrangeiros


na infraestrutura brasileira à luz da Constituição Federal, na interpretação da perspectiva
neoconstitucional, abordagem na qual os princípios ganham densidade normativa com di-
recionamento constitucional que fundamenta e orienta as interpretações sobre o tema. É
cediço que a infraestrutura ocupa relevância no nível de desenvolvimento social e também
econômico do Estado, seja por possibilitar a prestação de serviços públicos aos seus ci-
dadãos, seja por ofertar insumo essencial para crescimento da Economia em amplos seto-
res. Na formatação clássica do Estado Nacional, temas como soberania, independência e
desenvolvimento nacional tradicionalmente justificariam sua exploração exclusiva em áreas
indispensáveis à segurança territorial, autonomia e independência econômica, sendo comum
apontar a necessidade de que tais bens ou serviços permanecessem fora do mercado. Po-
rém, no cenário contemporâneo, observa-se a emergência cada vez maior dos influxos de
investimento advindos de fontes externas – sejam públicas, sejam privadas – na prestação
de serviços relacionados à infraestrutura, sem que tenha havido um verdadeiro e profundo
debate científico acerca de suas consequências jurídicas, com indicação de regime jurídico
adequado que imprima a segurança jurídica esperada, fatos que por si só já justificariam a
existência do aprofundamento de estudos. Não se ignora sua multiplicidade temática, já que
o assunto é rico de proposições que vão além das meras interseções entre sistema econômi-
co, político e jurídico, interdependentes e nenhum deles puramente autorreferente. Delimitada
a pesquisa jurídica, as contribuições da teoria econômica, ciência política e administração
são apenas elementos para compreensão dos fenômenos ocorridos no contexto fático, que
serão interpretados à luz do Direito, com enfoque dogmático e método analítico, realizado a
partir de estudos doutrinários e jurisprudências, nacionais e estrangeiras. Considerar-se-á o
princípio da soberania nacional como fundamento da República Federativa do Brasil (art. 1º,
I, da CRFB) e da Ordem Econômica (art. 170, I, CRFB) e o desenvolvimento nacional como
um dos objetivos da República (art. 3º, II, CRFB). Esse núcleo de dispositivos também será
utilizado como parâmetro interpretativo para análise do que se compõe o conceito de sobe-
Desenvolvimento Nacional 493

rania nacional em conjunto com circunstanciais reformas que convém ser analisadas quanto
sua constitucionalidade. São elas: Emenda Constitucional n. 05/95, que alterou o parágrafo
2º do art. 25 para permitir empresa estrangeira prestar serviço de gás canalizado; Emenda
Constitucional n. 06/95, que revogou o art. 171 e o conceito constitucionalizado de empresa
brasileira; Emenda Constitucional 08/95 alterou o inciso XI do art. 21 para permitir a abertura
de prestação de serviços de telecomunicações aos estrangeiros; Emenda n. 09/95 alterou a
redação do parágrafo 1º do art. 177 para permitir a exploração do monopólio federal do pe-
tróleo e gás natural por empresa estrangeira. Considerar-se-ão, na pesquisa, o marco teórico
de Robert Alexy, quanto à teoria dos princípios, especialmente, diante de sua otimização na
maior medida possível, dadas as possibilidades jurídicas e fáticas dos setores de infraes-
trutura, diante do exame de proporcionalidade que será verificado casuisticamente, em cada
tipo de investimento, delineando-se contornos verificáveis em tese, a partir de segmentos
econômicos e de serviços públicos predeterminados.

Palavras-chave: Infraestrutura. Serviços públicos. Investimentos estrangeiros. Princípio da


soberania. Teoria dos princípios.
494 Fabrício Motta | Emerson Gabardo - Coords.

Meios consensuais para solução de conflitos em


matéria de improbidade administrativa e a
derrogação do art. 17, §1º, da Lei n. 9.249/1992

Mateus Domingues Graner


Mestrando em Direito (PUC-PR)
Pós-graduado em Direito
Administrativo (Instituto de Direito Romeu Felipe Bacellar)

O artigo propõe-se a analisar se a vedação de transação, acordo e conciliação em


matéria de improbidade (art. 17, §1º, da Lei n. 9.249/1992) foi derrogada por incompati-
bilidade pelas normas posteriores, especialmente pelo art. 24 da LINDB. Para tanto, esco-
lheu-se enfrentar essa problemática à luz de dois aspectos: primeiro, diante do fenômeno
da consensualidade na Administração Pública, retratado nas diversas alterações legislati-
vas desde 1992, especialmente: Lei n. 8.078/1990 e Lei n. 13.004/2014 que alteraram a
Lei n. 7.347/85 (Lei da Ação Civil Pública); Lei n. 12.846/13 (Lei Anticorrupção); Lei n.
13.140/15 (Lei Mediação Administração Pública); Lei n. 13.655/2018 que alterou o Decre-
to-Lei n. 4.657/1942 (LINDB) e Convenção das Nações Unidas contra a Corrupção (Decreto
n. 5.687/2006); e, segundo, em cotejo com o marco teórico adotado para os princípios da
supremacia do interesse público e da indisponibilidade do interesse público, já que frequen-
temente são invocados como óbices para o consensualismo em matéria de improbidade.
Assim, conclui-se que houve derrogação por incompatibilidade do art. 17, §1º, da Lei n.
9.249/1992. Também, que ambos os princípios citados acima não vedam tais compro-
missos, pois o princípio da supremacia do interesse público não traz em si um critério de
solucionamento de conflitos entre interesses viáveis, e os compromissos podem propiciar
efeitos positivos (efetividade, economia de tempo etc.), sem implicar renúncia do interesse
público; e o princípio da indisponibilidade do interesse público (seja quanto à finalidade legal,
do interesse do dever de agir ou das competências administrativas) não impede soluções
consensuais, como meio alternativo à judicialização.

Palavras-chave: Improbidade administrativa. Meios consensuais. Compromisso de ajuste


de conduta. Derrogação. Incompatibilidade.
Desenvolvimento Nacional 495

Análise e possibilidade de implementação do


instituto do dispute board em obras de grande
vulto no âmbito nacional

Henrique Furtado Tavares


Mestrando em Direito (UFMS)
Pós-graduado em Direito e Processo
Civil (Complexo Educacional Damásio de Jesus)

No Brasil, em especial, a título exemplificativo, à época de grandes eventos como


a Copa do Mundo de Futebol e Olimpíadas, algumas obras emblemáticas foram bastante
questionadas devido ao custo de recursos públicos empregados, tanto em sua construção,
em sua manutenção e principalmente na devida expectativa da população em sua conclu-
são. O presente estudo traz uma abordagem dogmática acerca da norma vigente da Lei de
Licitações e do princípio constitucional da eficiência em correlato com o instituto do dispute
board como forma garantidora da devida conclusão das obras licitadas em âmbito nacional,
e parte através da utilização do método de pesquisa explicativa, com fonte primária de pes-
quisa em artigos e projetos de estudo em curso, com caráter qualitativo e ênfase no estudo
documental assim como revisões bibliográficas. O dispute board ou comitê de resolução de
disputas nada mais é do que um instrumento de solução de divergências entre as partes de
um contrato. Nasce antes mesmo da assinatura do contrato, onde as partes, no caso em
tela, licitante e licitado, definem previamente um comitê formado por profissionais espe-
cialistas (advogados, auditores, engenheiros, arquitetos, árbitros), em número ímpar para
que, em caso de controvérsias acerca da execução do contrato e da obra propriamente dita,
auditem, estudem, recomendem e principalmente formulem meios de resolução do conflito
instaurado ou a ser verificado, mediante delimitação de poderes estipulados pelas partes,
com o objetivo fim de se ver concluída a obra licitada. Não somente isso, os membros do
dispute board entendemos, podem até mesmo produzir provas periciais que serviriam em
litígios judiciais no sentido em que, durante a fiscalização e execução da obra, uma de suas
devidas competências é a elaboração de relatório preciso e minucioso de cada aspecto e
atualização do projeto licitado. Nesse sentido verifica-se que o trabalho do comitê de re-
solução de disputas instituído por ambas as partes, em momento anterior à assinatura do
contrato de obras, se faz extremamente valioso e quase que imprescindível em casos de
obras de grande vulto tanto no quesito da transparência como também no estrito cumpri-
mento ao princípio constitucional da eficiência. Apesar de não haver lei federal que regule
tal instituto (ressalta-se que existe Projeto de Lei em trâmite no Senado Federal) o dispu-
496 Fabrício Motta | Emerson Gabardo - Coords.

te board já figurou como pressuposto necessário em obras cujo financiamento advêm de


Bancos Internacionais, como Banco Interamericano de desenvolvimento e Banco Mundial,
um exemplo fora a presença do instituto supramencionado para os contratos de expansão do
metrô de São Paulo em 2003. Com fundamento nos princípios constitucionais da eficiência e
transparência, assim como no dispositivo do art. 42 §5º e art. 67 da Lei de Licitações pátria,
verifica-se a utilidade do presente instituto como mantenedor das garantias do interesse
público, em especial no objetivo fim, de conclusão de obras e prevenção de obras paradas.
Acredita o autor que o dispute board seria de imensa valia para obras, em especial de grande
vulto, para o desenvolvimento nacional.

Palavras-chave: Dispute board. Comitê de resolução de disputas. Contratos de obras. Obras


de grande vulto. Desenvolvimento nacional.
Desenvolvimento Nacional 497

A necessidade de um Estado menos engessado


e mais tecnológico

Renata Carvalho Kobus


Doutoranda e mestre em Direito do Estado (UFPR)
Professora da Pós-Graduação (PUC-PR)
Pesquisadora do Núcleo de Investigações Constitucionais (UFPR)
Advogada

O presente trabalho possui como objetivo demonstrar que a sociedade precisa de um


Estado forte e eficiente, principalmente em tempos em que a democracia e os fundamentos
republicanos estão sob ameaça. Diante do crescimento exponencial das novas tecnologias,
as quais impactam drasticamente nas relações individuais e sociais, vivenciamos uma nova
Revolução Industrial, intitulada de Revolução 4.0 ou de Quarta Revolução Industrial, marcada
pela expansão digital e por tecnologias disruptivas como o Blockchain. Contratações públi-
cas autoexecutáveis celebradas por Smart Contracts, cidadãos com todo o seu histórico
de saúde e informações relevantes cadastradas em uma plataforma digital, a possibilidade
de imigrantes e estrangeiros serem cidadãos brasileiros digitais, a desburocratização dos
serviços cartorários por meio da utilização da tecnologia Blockchain, a possibilidade de con-
trole da atuação da atividade pública em tempo real pela sociedade e o controle dos gastos
públicos realizado por máquinas que não são suscetíveis à corrupção, são exemplos da
importância da tecnologia como grande aliada de um Estado que zele por uma atuação de
excelência. A Administração Pública, por possuir como um de seus pilares o princípio da
eficiência, deve se adaptar às novas tecnologias sob pena de oferecer uma atuação arcaica,
obsoleta e até mesmo impraticável. A pesquisa se valeu de levantamento bibliográfico, bus-
cando incorporar mecanismos de aperfeiçoamento na atuação da Administração Pública por
meio da utilização da tecnologia. O método utilizado foi o dedutivo. Como resultado, obser-
va-se que o poder público tem que ser um protagonista digital, devendo acompanhar as ino-
vações tecnológicas, caso contrário pode ser substituído involuntariamente por instituições
tecnológicas e influentes socialmente. Isso porque a utilização da tecnologia faz com que o
poder público não fique sufocado na coleira burocrática e passe a atuar de forma muito mais
célere e eficaz. Sendo assim, conclui-se que o futuro já chegou e que compete ao Estado se
desvencilhar das vetustas amarras de sua atuação rumo à prestação de um serviço público
tecnológico que o leve ao pedestal da excelência.

Palavras-chave: Quarta Revolução Industrial. Tecnologia. Eficiência. Blockchain. Adminis-


tração Pública.
498 Fabrício Motta | Emerson Gabardo - Coords.

Autocomposição na administração federal: uma


avaliação de eficiência administrativa e eficácia

Carolina Lemos de Faria


Mestre em Direito e Políticas Públicas (UFG)

A pesquisa realizada avaliou a autocomposição na Administração Federal com foco


na Câmara de Conciliação e Arbitragem da Administração Federal (CCAF), órgão da Advoca-
cia-Geral da União, a fim de verificar a eficiência administrativa e eficácia da implementação
da política pública consensual realizada no âmbito da referida instituição (avaliação ex post).
A investigação foi realizada tendo como referencial metodológico a Teoria dos Sistemas Au-
topoiéticos, de Niklas Luhmann, a qual se mostrou adequada para a abordagem do problema,
pois pôde ser observada a redução da complexidade quanto ao tratamento dos conflitos na
Administração Pública Federal, considerando o procedimento autocompositivo realizado pela
CCAF. A pesquisa examina a política pública consensual da Administração Federal, erigida
com fundamento no direito fundamental à boa administração pública, além princípio demo-
crático, do direito fundamental de acesso à justiça, do princípio da eficiência (cf. art. 1º, 5º,
XXXV, e art. 37 da CF), que exigem a cooperação estatal e tem como objetivo aproximar não
só a administração e o cidadão, mas a própria administração, que é chamada a compatibi-
lizar interesses, que devem ser interpretados em consonância com os fins constitucionais,
que incluem tempo razoável, com decisão justa e efetiva, também no âmbito administrativo
(art. 5º, LXXVIII, da CF). Considerando a constitucionalidade e legitimidade da condução do
procedimento autocompositivo pela Advocacia-Geral da União, que é função essencial à jus-
tiça, foi desenvolvido protocolo metodológico de análise dos dados obtidos. A partir do mé-
todo indutivo, com realização de pesquisa empírica, além do método auxiliar estatístico, com
uso de análises qualitativas e quantitativas, foram examinados os procedimentos autocom-
positivos que ingressaram na CCAF em 2014 – ano em que os autos se tornaram virtuais
– até 2017, com exame de seu trâmite até 2018. A eficiência administrativa do procedimento
foi constatada, considerando os critérios pré-estabelecidos, tendo se mostrado adequada ao
tratamento de 82,61% dos conflitos entre as pessoas jurídicas de direito público da Adminis-
tração Federal. A eficácia da conciliação e mediação no âmbito da Advocacia-Geral da União
também foi demonstrada, tendo englobado toda a atuação da CCAF, e não apenas os casos
em que o conflito era entre entes e órgãos federais, já que se observou uma total aderência a
todas as categorias de conflitos e políticas públicas envolvidas, bem como houve a provoca-
ção por diversos interessados, sem notícia de descumprimento dos acordos entabulados e
receptividade desses pelo Poder Judiciário, quando essas são levadas a seu conhecimento,
Desenvolvimento Nacional 499

no período de observação. A fim de aprimorar o desempenho da implementação da política


pública consensual realizada pela Advocacia-Geral da União foi feita análise crítico-proposi-
tiva, que pode colaborar, inclusive, na replicação do modelo às demais Advocacias Públicas,
que, por força da Lei n. 13.140/2015, podem criar, em seu seio, Câmara com o propósito de
realizar a autocomposição de conflitos.

Palavras-chave: Autocomposição. Administração federal. Avaliação. Eficiência administra-


tiva. Eficácia.
500 Fabrício Motta | Emerson Gabardo - Coords.

Governança corporativa nas sociedades de


economia mista: o que faltou à Petrobras?

Ludmyla Rocha Lavinsky


Graduada em Direito (UFBA)
Advogada

O trabalho acadêmico a que se refere este resumo propõe a análise da efetividade


da governança corporativa aplicadas ao caso da Petrobras que, mesmo possuindo normas
nesse sentido desde 1997, não conseguiu impedir a ocorrência de escândalos de corrupção
investigados pela Operação Lava-Jato. Assim, para discutir o que faltou para a concretização
e eficácia das normas de governança na gestão da estatal, foi tratada da importância deste
instituto para as sociedades de economia mista, bem como os instrumentos de combate à
corrupção decorrentes desta forma de gestão (independência política e comprometimento
do conselho de administração, existência de conselho fiscal, sistema de gestão de complian-
ce) e desde quando eles vêm sendo aplicados à Petrobras, para, ao final, discutir, utilizando
referências políticas, filosóficas e sociológicas, além de dados quantitativos, o porquê de não
ter conseguido a estatal evitar os desvios éticos e a desconformidade evidenciada. A hipó-
tese, que restou confirmada, era a de que a existência de normas, por si só, não é capaz de
efetivar o combate à corrupção. Para tanto, foi feita a análise bibliográfica, incluindo artigos
acadêmicos, notícias e dados sobre o tema, o que levou à conclusão de que, apesar dos
avanços no combate à corrupção (mais normas sobre o tema, maior conscientização da po-
pulação, fortalecimento da cultura de compliance), o óbice principal existente na Petrobras à
época dos escândalos foi a ausência de “cultura institucional ética” e de sistemas de gestão
de compliance eficientes, resultado de contexto social de desvalorização da educação, da
cultura e da arte. Ademais, como promessa de avanço, tem-se a observância das condutas
previstas na ISO 37001 (2017), norma que trata de condutas específicas a serem adotadas
para evitar o “suborno”, possibilitando, desta forma, a concretização da transparência e da
integridade na gestão da “coisa pública”, princípios da governança corporativa.

Palavras-chave: Governança corporativa. Compliance. Petrobras. Corrupção. Ética.


Desenvolvimento Nacional 501

Novas matizes do jogo democrático no cenário


nacional: reflexões sobre judicialização da políti-
ca, ativismo judicial e combate à corrupção

Romano Deluque Júnior


Mestrando do Programa de Pós-Graduação em Psicologia (UCDB)
Graduando em Direito (Uniderp)
Pesquisador de temas como Preconceito e Democracia

Em um Estado Democrático livre, e de Direito, não raro, o fenômeno da corrupção


emerge como um agente corrosivo do elo política-sociedade. Age pois, como uma ameaça
ao Estado e à sociedade. Possui portanto, natureza que transcende o agente que a comete,
e sabota assim, os próprios fundamentos da democracia. O intuito do presente artigo é o de
propor um debate a respeito do tema da judicialização da política, do ativismo judicial, bem
como suas interrelações com a temática da corrupção. Portanto, discutir-se-á o papel do juiz
proativo e seus limites de julgar, bem como as novas matizes do jogo político que se instau-
ram no atual momento da democracia brasileira. Trata-se aqui de uma uma revisão narrativa
da literatura, que busca discutir questões ligadas à função do Judiciário enquanto poder
institucional, às nuances do entorno do fenômeno da corrupção, bem como as alteridades
trazidas pelos últimos acontecimentos jurídico-sociais que ganharam grande repercução no
cenário nacional no que tange à uma reformulação do entendimento sobre política e suas
respectivas atribuições, por parte do cidadão brasileiro. Cabe dizer, que no cenário nacional,
a corrupção tem feito emergir um estado de desconfiança por parte da sociedade em relação
à toda uma classe: a política. E da descrença de um povo junto à seus representantes eleitos
ascende o protagonismo do poder judiciário. Com a fragilização das instituições politicas, a
tendência à judicialização da vida é amplificada, e é nesse momento de ascensão do poder
judiciário que reside um importante ponto que demanda por reflexão. A julgar pelas mani-
festações sociais mais recentes, hoje no Brasil, já se concebe que a ordem política deva
visar o bem do povo, e o político eleito, tal como instrumento dessa ordem, existe a serviço
desse povo. Iniciaram-se as cobranças. Mais do que discutir o problema da corrupção para
fins acadêmicos e conceituais, a relevância à que merece o tema traduz necessidades bem
pragmáticas. Por conta dela faltam recursos para que se invista em ações e em políticas de
assistência aos menos favorecidos e hipossuficientes, pois no final da ordem do dia, são os
que pagam a conta mais cara e os que possuem a voz mais baixa. Nesse contexto, o judi-
ciário emerge pois, como o guardião da constituição e das normas jurídicas, e por elas deve
prezar mesmo que para isso tenha que proferir decisões impopulares e contramajoritárias.
502 Fabrício Motta | Emerson Gabardo - Coords.

Trata-se de atitude em favor da democracia e da sociedade, e pautada em um sentimento


moral que, supõe-se, se baseie em princípios éticos preocupados com o proveito comum.
Porém, a postura ativista deve vir imbuída de, com o perdão pelo truísmo, nobreza e digni-
dade. Portanto, a importância de um comportamento pautado pela ética deve ser ensinado
desde a tenra infância e também nos cursos de graduação. A cultura do gift-gift ou do toma
lá da cá deve ser desencorajada e, se possível, varrida da realidade jurídica, social e política
brasileira, tal ideal porém, ainda parece demasiado distante e abstrato.

Palavras-chave: Judicialização. Ativismo judicial. Corrupção. Democracia. Sociedade.


Desenvolvimento Nacional 503

O mito da autonomia no modelo brasileiro


de agências reguladoras

Ana Luíza Fernandes Calil


Mestre em Direito Público (UERJ)
Professora de Direito Administrativo (UFRJ)
Advogada

Leonardo Parizotto Gomes


Graduando em Direito (UFRJ)
Membro do Instituto de Direito Administrativo
do Estado do Rio de Janeiro

O presente trabalho tem como objetivo aplicar a teoria do domínio presidencial frente
ao novo marco legal das agências reguladoras (Lei n. 13.848 de 2019) e à postura política
dos governos Dilma, Temer e Bolsonaro (2015-2019). Foram utilizados como metodologia
de pesquisa a análise doutrinária do tema e a coleta de dados normativos do Poder Executivo
e do Poder Legislativo, no recorte temporal de 2015 a 2019, que trataram de alterações or-
ganizacionais e de competências das agências reguladoras. O modelo brasileiro de agências
reguladoras tem suas bases no modelo norte-americano, com poucas aproximações e mui-
tos distanciamentos. No momento do transplante para o ordenamento nacional, as agências
se desenvolveram de forma diversa do pretendido. De um lado, as agencies americanas
representavam um núcleo de rompimento com a ideia de Estado mínimo e de normatização,
voltada para o legislativo, dotadas de ampla autonomia e independência. De outro, as agên-
cias reguladoras brasileiras, apesar do discurso em prol da autonomia, têm forte submissão
ao governo central e aos ministérios. Isso reflete na chamada teoria do domínio presidencial.
Os graus de aplicação da teoria variam conforme o perfil de governo, conferindo as agências
eixos de poder distintos a depender do cenário político. No Brasil, o presidente possui forte
controle sobre as agências, o que é justificado por meio da teoria do domínio presidencial,
marcada pela ingerência política. A postura atual, apesar da edição do marco das agências,
é de esvaziamento ao perfil técnico da competência das agências. À luz da teoria do domínio
presidencial, a prática política atual tende para centralização político-administrativa, pautada
na redução do comprometimento com o caráter técnico das agências. Conforme se com-
prova pelos dados levantados neste trabalho, há uma progressiva dominação presidencial
no funcionamento das agências, que deve ser reajustada para que o modelo de autonomia
permaneça vigente. O trabalho aponta pelas seguintes conclusões: (i) por meio dos vetos
presidenciais, principalmente dos dispositivos que instituíam a pré-seleção de uma lista trípli-
504 Fabrício Motta | Emerson Gabardo - Coords.

ce anterior à nomeação do presidente, se garantiu a perpetuação da falta de barreiras legais


acerca do aparelhamento político das agências; (ii) a centralização de poderes encontra seu
ápice no atual governo, por conta de medidas de reorganização administrativa e controle de
poderes em ministérios, comparado com os governos anteriores no recorte temporal. A título
de exemplo, a equipe de transição analisou a viabilidade de reduzir as competências das
agências, via decreto, com o objetivo de transferi-las aos Ministérios. Ademais, a Portaria
n. 121 reduziu o nível de importância dos cargos de diretores das agências, rebaixando o
seu status na organização hierárquica. Em vez de fortalecer as agências jurídica e institu-
cionalmente, até o momento, a prática brasileira vem trilhando o caminho oposto da noção
de autonomia. Passados mais de vinte anos da implementação do modelo de agências no
Brasil, é preciso repensar em suas características e olhar para prática, no intuito de buscar a
sua adequação para os anos que virão.

Palavras-chave: Agências reguladoras. Poder Executivo. Direito administrativo. Competên-


cia técnica. Controle ministerial.
Desenvolvimento Nacional 505

O exercício do controle de constitucionalidade


pelo Poder Legislativo enquanto
Administração Pública

Arthur Gabriel Marcon Vasques


Graduando do curso de Direito (UCDB)

Lamartine Santos Ribeiro


Doutorando e mestre em Desenvolvimento Local no
Contexto de Territorialidades (UCDB)
Professor titular de Direito do Consumidor e
Direito Administrativo (UCDB)

No presente estudo propôs-se uma análise da atuação do Poder Legislativo, em


sua função atípica de Administração Pública, frente às normas inconstitucionais e decretos
regulamentadores do Executivo. Imperioso o entendimento de que o dever de zelar pela efi-
cácia da Lei Maior não é atribuição privativa destinada apenas ao Poder Judiciário, mas, pelo
contrário, deve estar ao alcance de todos os Poderes do Estado. O presente trabalho obje-
tivou verificar a possibilidade do controle extraordinário de legalidade e constitucionalidade
desempenhado pelo Poder Legislativo, em sua função atípica de Administração Pública, bus-
cando-se expor também as vantagens advindas dessa sistemática de controle e os cuidados
necessários para seu exercício. A justificativa da pesquisa se dá, portanto, em razão de o
controle de constitucionalidade, em sua essência, repousar sobre o princípio da supremacia
do Estado de Direito Constitucional – norteando todos os atos e normas às suas ordenanças
–, atuando como mecanismo para efetividade da segurança jurídica e garantia dos direitos
fundamentais dos cidadãos. Assim sendo, como hipótese inicial, concebeu-se que exercer
o controle de constitucionalidade não acarreta, por pura consequência, em decretar a in-
constitucionalidade de uma norma, razão pela qual seria possível e permitido o exame de
constitucionalidade da norma – e de legalidade do decreto regulamentar –, e, sendo o caso,
a rejeição de aplicação pelo Administrador Público, vez que essa organização se desenvolve
como corolário de justiça e segurança do ordenamento. Na consecução do estudo, a pesqui-
sa utilizou-se dos métodos de abordagem hipotético-dedutivo e de procedimentos histórico
e tipológico, baseando-se em pesquisas bibliográficas e documentais. Como resultado da
pesquisa, infere-se que é necessária uma participação conjunta dos poderes na efetivação
dos preceitos constitucionais, sempre ressalvando a não banalização da rigidez da Constitui-
ção Federal. Concluiu-se, portanto, que a necessidade de observância do interesse público,
506 Fabrício Motta | Emerson Gabardo - Coords.

bem como a observância à supremacia do Estado Constitucional de Direito são fundamentos


aptos a sustentar a possibilidade da tese defendida.

Palavras-chave: Controle de constitucionalidade. Legalidade. Poder Legislativo. Estado


constitucional. Interesse público.
Desenvolvimento Nacional 507

O direito à boa Administração Pública:


um direito fundamental?

Dafne Reichel Cabral


Mestre em Direitos Fundamentais (UFMS)
Auditora de Controle Externo

Esta pesquisa, de método dedutivo, possui natureza descritiva e exploratória quanto


aos fins e bibliográfica quanto aos meios. Aborda o direito à boa administração pública
com foco no atendimento à população. A problemática reside em compreender se e como
é possível entender o direito à boa administração pública como um direito fundamental.
Pretende-se, de maneira mais específica, compreender qual o conteúdo jurídico do direito
à boa administração pública; quais os fundamentos desse direito; verificar se se trata de
um direito fundamental; e quais os efeitos gerados a partir desta conclusão. Desta feita,
entre os variados princípios expressos, implícitos ou decorrentes optou-se por tratar dos
dois grandes princípios que embasam o direito público e as atividades de controle do Es-
tado: a supremacia do interesse público sobre o privado e a indisponibilidade do interesse
público. Desta feita, percebe-se que o direito de boa administração pública figura como
um plexo de direitos, um princípio síntese que congrega e reúne diversos outros direitos e
princípios (oriundos dos dois supraprincípios mencionados), servindo como uma verdadeira
exigência da Administração atuar com transparência, eficiência, seguindo os trâmites legais,
submetida ao controle, demandando maior participação social, ou seja, inúmeros princípios
e direitos voltados para a administração pública formam esse direito fundamental à boa
administração pública. Finalmente, trabalhou-se o conteúdo jurídico de boa administração
pública e sua qualificação como direito fundamental, trazendo sua origem da Constituição
italiana, interpretada por doutrinadores italianos como Guido Falzone, que se traduz na real
necessidade da administração pública realizar uma boa administração. Ao final da pesquisa,
compreendido o conceito de direito à boa administração pública, conseguimos enxergar
que ele pode se enquadrar como direito fundamental seja na perspectiva formal seja na
perspectiva material. Na perspectiva formal, ao se entender que o direito fundamental à boa
administração decorre desta série coordenada de princípios e outros direitos fundamentais
encartados na Constituição Federal, embora não tenhamos de maneira expressa em algum
artigo da Constituição brasileira afirmando o direito à boa administração pública, igual ocor-
re, por vezes, em algumas Constituições europeias, temos no direito brasileiro esta série
coordenada de princípios e direitos aplicados à administração pública. Então este conjunto
está positivado no texto constitucional, o que demonstra o aspecto formal da fundamenta-
508 Fabrício Motta | Emerson Gabardo - Coords.

lidade. Por outro lado, focando na perspectiva material, do respeito à dignidade da pessoa
humana, pode-se afirmar que alcançando uma boa administração pública garante-se essa
dignidade, que é o núcleo dos direitos fundamentais sob esta perspectiva, porque sem a
Administração Pública gerindo bem os recursos disponíveis, atendendo devidamente aos
direitos prestacionais dos quais necessitam o administrado, resta inalcançável a dignidade
da pessoa humana.

Palavras-chave: Direitos fundamentais. Boa administração pública. Princípios. Dignidade da


pessoa humana. Interesse público.
Desenvolvimento Nacional 509

Administração Pública e a absorção de inova-


ções tecnológicas: violência simbólica do
mercado e autonomia administrativa

Luasses Gonçalves dos Santos


Doutor e mestre (UFPR)
Especialista em Direito Administrativo
(Instituto de Direito Romeu Felipe Bacellar)
Professor de Direito Administrativo (Universidade Positivo)

Administração Pública e mercado possuem formas distintas de se relacionar com


a absorção e utilização de inovações e novas tecnologias. O mercado visa, sobretudo, lu-
cro, expansão e monopólio, objetivos esses que, obviamente, não são admissíveis ao po-
der público em relação às suas tarefas essenciais, definidas principalmente na Constituição
Federal. Ao cindir as lógicas estruturais de condução e administração do mercado e do
poder público, importa definir um método próprio para a Administração Pública construir,
absorver, adotar e desenvolver as inovações e avanços tecnológicos que lhe interessam e
que, por consequência, importam à coletividade. A Administração Pública brasileira deve ser
capaz de criar e desenvolver boa parte das inovações e das soluções tecnológicas de que
precise, baseada justamente nas demandas que lhe são próprias e nas peculiaridades da
sua atuação em relação à coletividade. Tais soluções e inovações precisam ter como foco
na diminuição da desigualdade social, sustentado em uma sólida base ética, no sentido de
impedir que a nova tecnologia seja implementada como um “fim em si mesmo”, sem que
se determine de antemão qual a função desse instrumento tecnológico em relação à grande
massa de pessoas que de forma efetiva depende do poder público para sua sobrevivência.
As novas tecnologias, expandindo as possibilidades de negócios e de novas fontes de lucro,
precisam ser compreendidas sob o aspecto da dominação e da sobreposição de interesses
do mercado. Essas tecnologias e inovações, em que pese o caráter instrumental, não são
dotadas de neutralidade, pois carregam de forma sutil e velada os princípios e objetivos de
dominação do mercado. É admitir que as inovações tecnológicas e os discursos dominantes
da intensa renovação e implementação desses novos aparatos se constituem como formas
de violência simbólica, no sentido sociológico desenvolvido por Pierre Bourdieu, em que
o mercado insere e impõe sua maneira de dominação cultural e política à Administração
Pública e, por consequência à sociedade. Na forma de violência simbólica, a dominação do
mercado se faz de forma “naturalizada”, na medida em que a inovação e as novas tecnolo-
gias são impostas ao Estado como elementos que necessariamente precisam ser introduzi-
510 Fabrício Motta | Emerson Gabardo - Coords.

dos e reintroduzidos, produzindo constantemente discursos e práticas que enfatizam que as


soluções adotadas anteriormente estão defasadas, prevalecendo a ideia que a Administração
Pública está constantemente atrasada. o poder público não pode ficar refém do mercado,
sobretudo em relação às imprescindíveis atualizações tecnológicas. Significa concluir que o
Estado brasileiro precisa afirmar sua autonomia administrativa, especialmente para definir
suas prioridades tecnológicas a partir das suas peculiares demandas e atividades. Faz-se
necessário estimular a produção de inovações e de novos aparatos tecnológicos por meio
das entidades vinculadas ao poder público, as quais são responsáveis pela maior parte da
pesquisa e da produção tecnológica no Brasil: universidades públicas e entidades estatais
de desenvolvimento tecnológico. A parceria ativa e pujante entre a Administração Pública e
essas entidades pode permitir a atuação realmente eficiente frente às necessidades reais
que a burocracia demanda, aliado às concretas necessidades da população, com o objetivo
principal de redução das desigualdades sociais.

Palavras-chave: Administração Pública. Novas tecnologias. Lógica de absorção e desenvol-


vimento. Mercado e violência simbólica. Autonomia administrativa.
Desenvolvimento Nacional 511

Condições e limites objetivos à celebração


de compromissos do art. 26 da LINDB no
exercício de competências vinculadas
da Administração Pública

Murilo Cesar Taborda Ribas


Bacharel em Direito (UFPR)
Advogado

Recentemente, a Lei n. 13.655/2018 inseriu importantes alterações sobre a Lei de


Introdução às Normas do Direito Brasileiro (LINDB), com o objetivo de dar maior segurança
jurídica à atuação administrativa e de estabelecer parâmetros e contenções às instâncias de
controle. Uma dessas inovações está no art. 26, que permite a celebração de compromis-
sos pela Administração Pública para “eliminar irregularidade, incerteza jurídica ou situação
contenciosa na aplicação do direito público”, consistindo, na visão da doutrina mais recente,
num permissivo genérico à realização de acordos. Ocorre que a concepção do dispositivo
foi pensada para a realização de acordos substitutivos ou integrativos de decisões predo-
minantemente discricionárias – como a aplicação de sanções ou o exercício de poder de
polícia –, muito embora também seja possível a celebração do compromisso “no caso de
expedição de licença”, tradicionalmente caracterizada como ato de caráter vinculado. Desse
modo, o objetivo do presente trabalho consiste em desenvolver uma análise crítica sobre as
possibilidades e os limites à celebração desses compromissos para substituir, integrar ou
complementar o exercício de competências estritamente vinculadas da Administração Públi-
ca, especialmente nas hipóteses em que se geram efeitos positivos aos particulares interes-
sados. A importância da investigação está no fato de a Administração não possuir margem
de escolha no exercício de competências vinculadas, cabendo a ela tão somente concretizar
as consequências previstas em lei caso os pressupostos tenham se materializado – o que,
em tese, reduziria a atratividade na celebração de compromissos. Para identificar as con-
dições e os limites objetivos aplicáveis, o trabalho partiu de uma metodologia dedutiva da
legislação, avaliando as condicionantes gerais estabelecidas pelo próprio art. 26 da LINDB,
em seu caput e § 1º, e as relacionando a casos hipotéticos de exercício de competência vin-
culada pela Administração Pública. Em sequência, também foram levantadas observações
doutrinárias sobre limites e técnicas contemporâneas para o controle da discricionariedade
administrativa, a fim de identificar quais cautelas gerais devem ser assumidas pelo compro-
misso – que, por essência, será construído discricionariamente – para que sua celebração
512 Fabrício Motta | Emerson Gabardo - Coords.

não seja caracterizada como um indevido by-pass de competências da Administração Pú-


blica. O resultado da pesquisa demonstra que não há uma vedação à celebração de acordos
em integração, substituição ou complementação ao exercício de competências estritamente
vinculadas. Porém, sua realização deve observar: (i) os limites funcionais impostos pelo
caput do art. 26 da LINDB – para eliminar irregularidade, incerteza jurídica ou situação con-
tenciosa de direito público –; (ii) a impossibilidade de desoneração permanente de dever ou
condicionamento de direitos reconhecidos por orientação geral e relacionados à competên-
cia vinculada; (iii) a bilateralidade das obrigações assumidas pelas partes pública e privada,
não podendo consistir em mera desoneração do particular sem qualquer contrapartida; e
(iv) a existência de fundamentação sólida e coerente pela celebração do compromisso, com
tratamento isonômico a outro(s) particular(es) interessado(s) na realização de acordos com
circunstâncias e configurações semelhantes.

Palavras-chave: Consensualidade administrativa. Acordos administrativos. Competência


vinculada. Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro. Controle da Administração
Pública.
Desenvolvimento Nacional 513

A corrupção como fenômeno político e econô-


mico: uma abordagem teórica e um estudo
de caso no Brasil

Fernanda Maria Afonso Carneiro


Doutora em Teoria Jurídico-Política e
Relações Internacionais (Uninta)
Coordenadora do curso de Direito (Uninta)

O estudo teve como objetivo principal compreender a corrupção em todos os seus


aspectos, a partir de uma análise histórica do fenômeno, desde o período da antiguidade até
os dias atuais que permitisse investigar se as políticas públicas implantadas no Brasil, para
a eliminação da extrema pobreza e do analfabetismo, contribuem para o combate à corrup-
ção, e avaliar as principais ações, medidas e decisões que têm, como objetivo, combater
a corrupção; os impactos e efeitos da corrupção na política, na economia e na vida das
pessoas, tendo como foco a Região Nordeste; e se a corrupção que ocorre no restante do
país assemelha-se à praticada no Nordeste, considerando as características da região e os
baixos níveis de indicadores econômicos e sociais verificados na região. Objetivou-se, ainda,
avaliar a eficácia dos esforços governamentais, através da adoção de incentivos fiscais e
aplicação de investimentos públicos, com o intuito de diminuir as desigualdades regionais,
bem como da adoção de políticas de combate à corrupção e de eliminação da pobreza e
do analfabetismo, como instrumentos capazes de promover o desenvolvimento regional. A
investigação desenvolvida fundou-se numa análise e tratamento de dados realizados a partir
de um questionamento proposto aos parlamentares nordestinos, cuja pretensão foi a de
colher subsídios que permitissem avaliar e analisar o fenômeno da corrupção, sobretudo em
relação aos impactos político-econômico-social que produzem enormes desigualdades entre
a Região Nordeste e as regiões mais desenvolvidas do país. Abordagem foi fundamentalmen-
te qualitativa e constou do emprego de categorias que permitiram a recolha de dados atra-
vés de entrevistas estruturadas obtidas com a aplicação de questionários. A aplicação dos
questionários permitiu observar que, apesar de todos os esforços, a corrupção, mesmo com
todos os reveses sofridos em todo o mundo, e de modo particular no Brasil, ainda, encontra
meios para corroer a dinâmica da vida brasileira, ou seja, as medidas já adotadas, ou em dis-
cussão, embora importantes, ainda são insuficientes e muito é preciso fazer, para que o país
possa sair da incômoda posição em que se encontra no ranking dos índices de percepção
da corrupção. Em relação ao Nordeste, o que se observou é que, o controle político exercido
pela minoria dominadora e elitista associa-se a sequelas sociais na região que remontam aos
514 Fabrício Motta | Emerson Gabardo - Coords.

tempos do período colonial brasileiro, como os alarmantes níveis de pobreza e a alta taxa de
analfabetismo, cuja lógica perversa mantém a população empobrecida e analfabeta, como
garantidor do controle das estruturas de poder. Os estudos apontaram conclusivamente que:
a) não há uma fórmula mágica a ser aplicada no combate à corrupção e cada proposta que
se apresente, pode ser menos ou mais eficiente e sua eficácia dependerá basicamente de
quem a propõe; b) combater a corrupção exige esforços concentrados da sociedade civil
organizada; dos três níveis dos poderes (executivo, legislativo e judiciário) da mídia, como
indutor da investigação e da divulgação dos casos de corrupção.

Palavras-chaves: Corrupção. Desenvolvimento regional. Extrema pobreza. Políticas públi-


cas. Região Nordeste.
Desenvolvimento Nacional 515

Política pública de combate a obesidade: o uso


de uma tributação seletiva e seu impacto
no orçamento público

Gabriel Buissa Ribeiro de Freitas


Mestrando Profissional em Direito e Políticas Públicas (UFG)
Especialista em Direito Civil (UFG)

Lucas Bevilacqua
Doutor e mestre em Direito Econômico,
Financeiro e Tributário (USP)
Professor no Mestrado Profissional em Direito e
Políticas Públicas (UFG)

A pesquisa investiga a possibilidade do uso do princípio da seletividade conforme


a essencialidade do produto como instrumento de uma política pública de saúde no com-
bate preventivo a obesidade. Conforme demonstram recentes dados FAO e do Ministério da
Saúde, o número de obesos, no mundo e no Brasil, cresceu exponencialmente nos últimos
anos. A bibliografia médica nos demonstra que uma população com número elevado de
pessoas obesas será também uma população que aumentará os gastos com a saúde. Por-
tanto, buscar uma política pública que previna esse efeito cascata, prevenirá também o futuro
financeiro da saúde pública. Inicialmente, o estudo vale-se de pesquisa bibliográfica sobre
os conceitos de saúde pública, os gastos no Brasil com esse direito fundamental, seu de-
senvolvimento ao longo dos anos e os efeitos de uma norma tributária indutora ou condutora
sobre a alimentação. Na sequência, buscará se compreender a evolução do termo “saúde”,
passando de um “não estar doente”, para um estado de bem-estar total, entendendo como o
Estado será seu promotor. Dessa maneira, adentrará ao tema a função reguladora do Estado
Pós-Moderno. Além disso, seguindo as ponderações de Leifert e Lucinda, uma tributação
sobre alimentação não pode somente sobretaxar o que é prejudicial, como também incenti-
var aquele que é saudável, para não encarecer ainda mais a alimentação da população. Isto
recairá nas Finanças Públicas. O país já não se encontra em situação confortável. O tema de
incentivos também voltou a ser discutido, em especial quanto a seus limites. Logo, trata-se
de um trabalho de equilíbrio, para gerar ganhos com a sobretaxação, como feito em lugares
no mundo com as chamadas Junk Food Taxes, e gastos com as formas de incentivos fiscais
sobre produtos com projeção mais saudáveis. A importância do tema proposto se revela
no fato de que são notórios os impactos do gasto da saúde nacional com os tratamentos
para essa doença, assim como serão ainda maiores os futuros. O reconhecimento do direito
516 Fabrício Motta | Emerson Gabardo - Coords.

fundamental à saúde pública hoje se ramifica para a saúde alimentar de uma população,
buscando a contemplação do artigo 6º da Constituição Federal. Como as políticas públicas
são direitos assegurados na Constituição, pode-se afirmar uma política pública para uma
saúde alimentar deve fazer parte de um conjunto de ação do poder público na efetivação dos
direitos. Propõe-se como sugestão, portanto, uma política pública de combate a obesidade
com base em uma indução tributária, com impacto positivo sobre o orçamento público, de
diminuição a longo prazo nos gastos a saúde e aumento de receitas provenientes a entrada
de novas fontes.

Palavras-chave: Políticas públicas. Saúde. Seletividade. Orçamento. Regulação.


Desenvolvimento Nacional 517

Controle social na elaboração e execução das


políticas urbanas: compatibilidade da legislação
federal com a gestão democrática da cidade

Carolina Barbosa Rios


Mestranda em Direito (USP)

Atualmente, a lógica patrimonialista histórica das políticas urbanas ainda se verifica


na prática, apesar de vertente já superada no ordenamento jurídico. Tal lógica patrimonia-
lista diz respeito a uma miscelânea entre interesses públicos e privados e também à grande
capacidade de influência direta de grandes empreiteiras no processo decisório das políticas
urbanas. Em virtude da consequente falta de representatividade pelos tomadores de tais de-
cisões, que acabam por não privilegiar integralmente o interesse público e coletivo, vislum-
bra-se a importância do fortalecimento da democracia participativa e do controle social no
âmbito das políticas urbanas. Diante desse quadro, o objetivo geral deste trabalho é verificar
se, na legislação federal que versa sobre as fases de elaboração e execução de políticas
urbanas, as previsões acerca do controle social são compatíveis com o princípio da gestão
democrática da cidade. Para alcançar tal objetivo geral, delimitam-se os seguintes objetivos
específicos: i) Estabelecer, a partir de exame doutrinário, o parâmetro acerca da definição do
princípio da gestão democrática da cidade e suas finalidades, além dos requisitos para que o
controle social seja condizente com este princípio; ii) Realizar mapeamento das condições e
mecanismos de controle social nas normas federais das políticas urbanas de parcelamento
do solo, habitação, acessibilidade, saneamento básico, resíduos sólidos, mobilidade urbana
e regularização fundiária; iii) Elaborar categorização das condições e mecanismos de contro-
le social por fases da política urbana, ou seja, se na sua elaboração ou na sua execução; iv)
Realizar a crítica final deste trabalho, verificando se as condições e os mecanismos de con-
trole social encontrados nas fases das diferentes políticas urbanas estão de acordo com o
parâmetro estabelecido para a consecução da gestão democrática da cidade. A metodologia
traçada para este trabalho consiste, primeiramente, em levantamento bibliográfico, aprofun-
dado a partir de doutrina e artigos científicos, e realização de mapeamento das condições
e mecanismos de controle social nas leis federais das políticas urbanas a serem estudadas
neste trabalho. Aplicando-se o método dedutivo e o dialético a partir do material coletado,
será possível a consecução de cada um dos objetivos específicos enumerados e, assim,
atingir o objetivo geral desta pesquisa. Pelo fato de este estudo encontrar-se em fase de
518 Fabrício Motta | Emerson Gabardo - Coords.

projeto, não há resultados parciais ou finais a serem apresentados, assim como também não
se verificam conclusões a serem demonstradas.
Palavras-chave: Controle social. Política urbana. Gestão democrática da cidade. Análise
legislativa. Legislação urbanística federal
Desenvolvimento Nacional 519

O fundo de combate e erradicação da pobreza


como mecanismo de alcance do desenvolvimen-
to nacional e sustentável – da Resolução 41/128
- ONU à Emenda Constitucional 31/2000

Saúl Hercán Kritski Báez


Mestrando em Direitos Fundamentais e Democracia (UniBrasil)
Pós-graduado em Direito Civil e Empresarial (PUC-PR)
Bacharel em Direito (PUC-PR)

O presente artigo visa promover estudo a respeito do desenvolvimento e sua apli-


cabilidade na seara brasileira. Visa avaliar a conceituação doutrinária e normativa quanto ao
direito ao desenvolvimento, principalmente no que concerne à interpretação de que o direito
ao desenvolvimento se encontra vinculado ao direito da dignidade humana. Também, sem
o intento de esgotar o tema, busca-se citar e considerar os mecanismos adotados pelo
Brasil para a aplicação do desenvolvimento e a erradicação da pobreza. A Organização das
Nações Unidas mediante sua Assembleia Geral já no ano de 1986 promoveu a Resolução
n. 41/128 e estabeleceu como direito humano o desenvolvimento. Contudo, o processo que
levou a emissão ocorrida em 1986 e que estabeleceu o desenvolvimento como direito huma-
no remonta período ainda anterior, pois é quando da ocorrência da Conferência das Nações
Unidas datada de 26 de junho de 1945 e com a emissão da Carta das Nações Unidas, que
entrou em vigor em 24 de outubro de 1945, promovida pelo fim do conflito bélico, é que sur-
ge a necessidade de registro da cooperação internacional para a busca do bem-estar social
das nações. A previsão legislativa para a criação de mecanismos no intuito da composição
de condições de existência humana digna consta eclipsada na Constituição da República
Federativa do Brasil quando o Estado, social intervencionista, propõe garantias fundamentais
e os direitos sociais concernentes ao bem-estar, ao desenvolvimento e a igualdade de sua
população. A executabilidade social da dignidade da pessoa humana está estritamente vincu-
lada ao condicionamento eficiente da criação e garantia de condições de existência humana
digna, sendo supedâneo para o direito subjetivo. As discussões a respeito do financiamento
de projetos e programas sociais de erradicação da pobreza sofreram estruturação com o
advento da Emenda Constitucional n. 31/2000, a qual, em seu bojo, preceitua a criação de
fundos junto aos entes públicos abastecidos com percentuais da arrecadação tributária do
ICMS de produtos considerados supérfluos.

Palavras-chave: Desenvolvimento. Pobreza. Constituição. Direitos fundamentais.


520 Fabrício Motta | Emerson Gabardo - Coords.

As “orientações gerais da época” do art. 24 da


LINDB: (in)segurança jurídica e desafios à gover-
nança pelos precedentes administrativos

Fernanda Alves Andrade Guarido


Pós-doutoranda em Direito (PUC-PR)
Doutora e mestre em Administração (Universidade Positivo)
Professora de Instituições de Direito, Direito Empresarial e
Metodologia do Trabalho Científico (FAE)

Daniel Castanha de Freitas


Doutorando e mestre em Direito (PUC-PR)
Professor de Direito Administrativo e de
Fundamentos de Direito Público (FAE)
Membro pesquisador do Núcleo de Pesquisas em Políticas
Públicas e Desenvolvimento Humano (PUC-PR)

O Decreto-Lei n. 4.657/42, atualmente intitulado Lei de Introdução às Normas do


Direito Brasileiro (LINDB), experimentou considerável incremento com a edição da Lei n.
13.655/2018. Dentre a sucessão de prescrições normativas inseridas, o artigo 24 trouxe
expressão com elevada carga valorativa: as “orientações gerais da época”, entendimentos
do ente público consolidados em certo lapso temporal e que passam a vincular eventual
revisão ulterior levada a efeito nos âmbitos administrativo, de controle e do Judiciário. Não há
dúvidas de que o preceito legal em questão representa certo avanço hermenêutico das nor-
mas constitucionais, eis que vinculado diretamente ao princípio da segurança jurídica, além
de transformar a compreensão sobre as funções estatais. Afinal, as noções de governança
atualmente em voga fizeram com que a relação entre Administração e sociedade fosse altera-
da, permitindo-se afirmar a existência de um ethos público no ambiente governamental e nas
pessoas que o compõem. O administrado aproxima-se da Administração, passando a ser
participante efetivo da gestão pública, em contrapartida à noção de cliente do Estado. Assim,
normas voltadas ao aprimoramento da gestão e do controle são estruturadas, bem como
regras e orientações voltadas ao Judiciário e aos órgãos de controle são formuladas com
base nas razões de governança, materializando-se em ações, ritos e procedimentos, o que
possibilita a concreção dos princípios da eficiência e da transparência, entre outros. O art.
24 da LINDB, portanto, dá pistas da influência desses elementos, sem olvidar das premissas
que regem a estrutura e a aplicação do ordenamento jurídico brasileiro. No entanto, deve-se
contextualizar os comandos normativos e harmonizar as decisões no âmbito administrativo,
Desenvolvimento Nacional 521

através do aprimoramento das estruturas, ritos, processos e ações dos agentes públicos
no espectro administrativo. A partir do panorama apresentado, o escopo da pesquisa, de-
senvolvida pelo método hipotético-dedutivo a partir de revisão bibliográfica e coleta de da-
dos oficiais, busca compreender o alcance e o conteúdo do conceito jurídico indeterminado
“orientações gerais da época” e dos demais termos que compõem o caput do artigo 24 e
seu parágrafo único, além dos seus reflexos para as relações jurídico-administrativas, tudo
para construir a legitimidade da escolha de precedentes administrativos para maior estabili-
dade das decisões administrativas e as implicações na efetivação da segurança jurídica para
os administrados que se encontrem em uma mesma conjuntura fático-jurídica. Entretanto,
dado o arquétipo estatal hodierno, é preciso cautela na utilização despreocupada destes
precedentes. Isso porque a boa governança – pautada nos princípios da eficiência e da pro-
dutividade –, demanda a estruturação de critérios de aferição da qualidade e validade das tais
orientações gerais da época, o que ainda não se tem notícia. Logo, sumarizados os pontos
aventados na pesquisa, pode-se sugerir, a título conclusivo, que este cenário, somado à
falta de técnica jurídica dos quadros de servidores e gestores responsáveis pela construção,
compilação e uso de seus precedentes administrativos, sem olvidar do conhecimento defici-
tário do próprio regime jurídico-administrativo – com suas prerrogativas e sujeições –, tradu-
z-se em óbice ainda não superado, encerrando a possibilidade de se consolidar precedentes
inválidos e, assim, inaplicáveis aos litígios constituídos, prevalecendo a insegurança jurídica.

Palavras-chaves: LINDB. Orientações gerais da época. Precedentes administrativos. Gover-


nança. Segurança jurídica.
522 Fabrício Motta | Emerson Gabardo - Coords.

Acesso à justiça e seu diálogo com o direito à boa


Administração Pública: uma possibilidade?

Raphaela Rodrigues Costa


Mestranda em Justiça Administrativa (UFF)
Advogada

Informações apuradas pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ) indicam que mais
de 50% das demandas que chegam ao Judiciário envolvem autoridades públicas. Há que se
considerar que essas demandas em geral versam sobre tributos, ou seja, são execuções
fiscais, ou são sobre a (não)aplicação de normas que garantem a concretização de direitos
fundamentais. Desses dados, é possível ponderar que o abarrotamento sofrido pelo Judiciá-
rio conta fortemente com a contribuição de uma gestão de processos débil dentro da própria
Administração Pública. Por óbvio, a cultura litigante associada a gestão processual inade-
quada que incentiva o administrado a buscar resposta no Judiciário, embaraça ainda mais a
já dificultosa fluidez do acesso à justiça. É importante verificar que o fortalecimento do pro-
cesso administrativo, sob a orientação de todos os princípios constitucionais expressos ou
implícitos e a utilização devida da Lei n. 9784/1999, é uma boa ferramenta para a solução de
conflitos na esfera administrativa. Do mesmo modo, servidores públicos que possuam for-
mação jurídica, que gozem de garantias e prerrogativas e que, assim, possam instruir e deci-
dir em procedimentos, garantiriam transparência, confiança legítima e segurança jurídica aos
administrados. Nesse sentir, pode ser invocado o direito a uma boa administração pública,
que foi instituído na União Europeia, por meio da Carta de Nice, em dezembro de 2000. Após
sua consagração no bloco europeu, verificou-se que se trata de um direito fundamental implí-
cito no texto constitucional brasileiro. A boa Administração Pública perfaz-se com o agir do
gestor de modo a materializar a cogência das normas pertinentes a atuação do Estado; ces-
sando a irresponsabilidade e a conduta vacilante, reconhecendo a força principiológica que
reveste as diretrizes sob as quais está o mister público. Para a satisfação do acesso à justiça
no âmbito da justiça administrativa, sob a ótica da boa administração, são imprescindíveis
as orientações orgânicas desse direito. Em outras palavras, é defender uma administração
eficiente, eficaz, que cumpre cabalmente seus deveres, operando de modo transparente e
sustentável, que motiva suas decisões de modo imparcial, ostentando a moralidade, a parti-
cipação social e a responsabilidade por suas condutas, sejam elas omissivas ou comissivas.
Assim, os objetivos aqui avençados são: (I) indicar os últimos dados reunidos pelo CNJ que
se refiram às causas que envolvam o poder público; (II) discutir como os gestores públicos
podem concretizar os direitos fundamentais, por meio dos procedimentos, a fim de viabilizar
Desenvolvimento Nacional 523

o acesso à justiça; (III) verificar a aplicação do direito a uma boa administração pública e sua
relação com o acesso à justiça. A principal metodologia utilizada é a pesquisa bibliográfica
nas fontes doutrinárias, além de fontes documentais. Os resultados obtidos demonstram que
a utilização desse princípio guarda-chuva que é a boa administração pública, favorece uma
melhor instrução processual, atendendo de modo muito mais satisfatório ao administrado,
que, ao ter seu pleito atendido, ou ao menos devidamente conduzido, não precisará recorrer
ao Judiciário. É indubitável a urgência do fortalecimento da esfera administrativa para que,
segundo o que o direito a boa administração inspira, o acesso à justiça goze de maior con-
cretude.

Palavras-chave: Direito à boa Administração Pública. Acesso à justiça. Direitos fundamen-


tais. Direito administrativo. Gestão pública.
524 Fabrício Motta | Emerson Gabardo - Coords.

A razão pública no liberalismo político de Jhon


Rawls: mecanismo de racionalidade para orien-
tar a tomada de decisão na esfera pública?

Clayton Gomes de Medeiros


Doutorando e mestre em Direitos Fundamentais e
Democracia (UniBrasil)
Bolsista do Programa Prosup (Capes)

O presente trabalho se concentra, valendo-se do método dedutivo a partir da revisão


bibliográfica, debater as ideias de “consenso sobreposto” e “razão pública” contida na obra
O liberalismo político (1993) do filósofo americano John Rawls. Tais ideias são apresenta-
das como a superação, a complementariedade ou resposta no que se refere à sua teoria da
justiça equitativa, que se baseava na produção de normas justas a partir de uma construção
pautada na posição original. Inobstante o brilhantismo em sua construção, na obra “Uma
Teoria da Justiça” (1971), o filósofo apresenta nova roupagem para sua teoria, tentando
atingir o que seria o ideal de justiça, para tanto constrói novos argumentos, sobre os quais
se debruçará o presente trabalho, com a finalidade de validar a sua utilização como argumen-
to decisório das escolhas políticas. Tais questões se colocam diante dos direitos políticos
fundamentais relacionados à representatividade e a ideia de justiça que norteia a tomada de
decisão na esfera pública. Tal problematização representa um dos maiores desafios demo-
cráticos a medida em que limita a liberdade dos cidadãos diante de imposições desarrazoa-
das, quando não pautadas em uma racionalidade decisória que prestigie os anseios sociais
de maior grandeza, ou seja, a efetivação dos direitos fundamentais. Ao longo do trabalho,
observou-se que o referencial teórico indicado, a delimitação imposta pelo autor quanto a
sua ideia de “razão pública”, ou seja, os limites e racionalidade que a razão pública estabele-
ce, tal conceito não se aplicaria a todas as questões políticas, mas apenas às questões que o
autor chama de “elementos constitucionais essenciais” ou questões de justiça básica. Logo,
para atingir o objetivo proposto, o referencial teórico alçado, não é suficiente para embasar
a proposta de trabalho, qual seja: a construção de “razão pública de John Rawls, pois sua
abrangência limita-se e grupos de tomada de decisão mais restritos dos que os almejados
por este trabalho. A presente pesquisa buscará referenciais diversos, que possam embasar
a racionalidade na tomada de decisão na esfera pública.

Palavras-chave: Razão pública. Consenso sobreposto. Escolhas políticas. Poder do povo.


Direitos fundamentais. Democracia.
Desenvolvimento Nacional 525

Levando o combate ao desmatamento à sério:


o PPCDAm e o princípio da proibição de
retrocesso ambiental

Diego Emanuel Arruda Sanchez


Doutorando em Direito (PUC-PR)

O combate ao desmatamento da Amazônia no Brasil, até muito recentemente, cons-


tituía-se em uma bastante bem sucedida política pública nacional. Apesar disto, temos ob-
servado uma certa deterioração das bases estruturantes do Plano de Ação para Prevenção e
Controle do Desmatamento na Amazônia Legal (PPCDAm). Diante deste cenário, este traba-
lho tem por objetivo examinar os efeitos das recentes mudanças sofridas por este programa
integrado à luz do princípio da proibição de retrocesso em matéria ambiental. Cenário este
em que verificou-se, primeiramente, que o plano possui enorme valor para o desenvolvimen-
to regional e nacional brasileiro por diversos fatores, em especial conta da sua importância
para os nossos compromissos de redução de emissão de gases de efeito estufa, pela sua
importância para a preservação da sócio e biodiversidade nacionais e dos inúmeros serviços
florestais fornecidos pela floresta Amazônica. E que, desde a sua implementação observa-
mos foi responsável por uma significativa queda do desmatamento anual da região (aprox.
60%). Tendência de queda essa, contudo, que nos últimos meses tem indicado claros sinais
de uma abrupta reversão e que, neste ano – apesar dos claros alertas do sistema de moni-
toramento DETER – não vem sendo acompanhado de uma política de proporcional aumento
da fiscalização por parte dos órgãos de fiscalização ambiental federais. Muito pelo contrário,
vem sendo acompanhada da radicalização do discurso antiambiental e da ingerência política
sobre os estes e órgãos de controle e monitoramento por parte do governo federal. Aspecto
em que, desde maio deste ano, ao contrário de uma pronta resposta aos alertas do DETER
por parte do governo federal, o que se observou foi apenas a manutenção do drástico corte
orçamentário do Ibama e ICMBio e uma grande redução do número de operações de fiscali-
zação destes órgãos na região. Um conjunto de inércias, ingerências e cortes orçamentários
sobre o PPCDAm e seus órgãos que compromete vários dos pilares do plano de ação e que
já se materializa na redução de 42% do número de autos de infração lavrados na região pelo
Ibama. E que, desta forma, configura-se um modelo de gestão radicalmente desalinhado aos
objetivos e comandos de desenvolvimento contido na Carta Magna de 1988, gravemente
danoso à biodiversidade nacional e que, por razões óbvias, não assegura o cumprimento
de muitos dos compromissos internacionais de desenvolvimento pactuados pelo Brasil na
526 Fabrício Motta | Emerson Gabardo - Coords.

Declaração Rio 92 e no Acordo de Paris. Uma gestão tão danosa que tem levado o atual
governo federal a alcançar o feito inédito de – em menos de nove meses – sofrer duras crí-
ticas conjunta de oito ex-ministros do Meio Ambiente, enfrentar uma grave crise diplomática
internacional, um pedido de impeachment do Ministro de Meio Ambiente e um pedido de CPI
no Senado. Um conjunto de ingerências, portanto, que vem afetando seriamente o objetivo
social do PPCDAm; ameaça o direito de todos – presentes e futuras gerações – ao Meio
Ambiente Ecologicamente Equilibrado; e que, por isto, constitui-se também em um conjunto
de reformas e modelo de gestão que afronta de maneira grave ao princípio do não-retrocesso
em matéria ambiental.

Palavras-chave: PPDCAm. Desmatamento. Amazônia. Mínimo existencial ecológico. Proi-


bição ao retrocesso.
Desenvolvimento Nacional 527

Políticas regulatórias de mobilidade urbana:


reflexões acerca da utilização das
patinetes elétricas

Lucas Bossoni Saikali


Mestre em Direito (PUC-PR)

Comunicado: As inovações tecnológicas cada vez estão presentes no cotidiano das


cidades brasileiras. Recentemente, passou-se a observar a presença constante de patinetes
elétricas nos maiores centros urbanos do país. Dessa forma, o presente comunicado tem
como enfoque a análise da utilização patinetes elétricas como meios de transporte (prin-
cipalmente no que se refere aos serviços de aluguel desse modais) a partir da lógica da
regulação estatal frente às novas tecnologias. Inicialmente, estuda-se o cenário brasileiro do
Estado Regulador. Será estudada a ascensão do Estado Regulador brasileiro, com enfoque
na liberalização da economia na década de 1990 e na subsequente criação das agências
reguladoras. Após o estudo refletir sobre a intervenção estatal na economia, será estudada
com maior ênfase a mobilidade urbana dentro do ambiente legislativo brasileiro, entre seus
aspectos constitucionais e inconstitucionais, buscando demonstrar a importância da gestão
do ambiente da mobilidade urbana, especialmente dentro de um contexto em que as inova-
ções tecnológicas são cada vez mais presentes. Seguindo, serão apresentados os projetos
de regulamentação do serviço do aluguel e utilização das patinetes elétricas nas cidades de
São Paulo e do Rio de Janeiro para, então, analisar as possíveis melhorias regulatórias para
o setor, visando congregar o interesse público com a inovação tecnológica. Como conclusão
preliminar, tem-se que que é necessária a existência de uma regulamentação que, ao ser
planejada com a participação dos atores econômicos envolvidos, dê incentivos de utilização
prudente dos modais tanto para os usuários e às empresas. Buscando-se, assim, solucionar
os problemas envolvendo as patinetes elétricas de forma menos burocrática, mais eficiente
e rápida. De toda forma, ainda que evidente a necessidade de se integrar as patinetes às polí-
ticas locais de mobilidade urbana, é preciso planejar a integração desse modal no modelo de
smart cities, buscando garantir segurança jurídica para os agentes econômicos envolvidos
através da participação conjunta entre Estado e sociedade civil. A metodologia de pesquisa
empregada é a hipotético-dedutiva e a técnica de pesquisa é a documentação indireta, atra-
vés da pesquisa bibliográfica.

Palavras-chave: Tecnologia. Inovação disruptiva. Regulação. Patinetes elétricas. Mobilidade


urbana.
528 Fabrício Motta | Emerson Gabardo - Coords.

A ideia de serviço público como meio essencial


de desenvolvimento e da condição de agente

Amanda Luiza Oliveira Pinto Tomazini


Mestre em Direito (PUC-PR)

Baseando-se nas compreensões trazidas por Amartya Sen, o estudo busca analisar
uma nova finalidade ao serviço público além da tradicional concepção de promoção da igual-
dade e existência humana digna, qual seja: o fomento ao desenvolvimento da capacidade
de agência dos indivíduos, tornando-os capazes de prosperar e se autopromoverem em
suas vidas. Tal releitura é aplicável atualmente, uma vez que a sociedade desconsidera no
contexto atual o verdadeiro sentido do serviço público: o desenvolvimento social. A metodo-
logia utilizada é a descritiva, utilizando a seleção dos conceitos dos autores para analisar e
correlacionar fatos sociais. Entende-se que o Serviço Público não pode ser encarado apenas
como uma atividade estatal, que oferece aos cidadãos utilidades materiais para atender con-
veniências básicas da sociedade, mas sim como uma atividade que permite ao ser humano
se desenvolver sem a necessidade de depender de qualquer pessoa ou entidade para “so-
breviver” ou ter acesso ao mínimo existencial. Sobre a óptica de Amartya Sen, é por meio do
fortalecimento das liberdades individuais a maneira ideal de se alcançar o desenvolvimen-
to e a melhora da vida dos indivíduos, ideais somente possíveis com a industrialização, o
progresso tecnológico, modernização social e, principalmente, com as disposições sociais
e econômicas, a exemplo dos serviços de educação e saúde, bem como direitos civis (li-
berdade política). Parte-se do pressuposto de que a pobreza é uma imposição artificial nos
seres humanos, ou seja, não é de sua natureza, sendo necessário mudar o pensamento de
cada indivíduo, inclusive daqueles que se intitulam como desfavorecidos, para que saiam
da inércia e busquem nos serviços públicos uma oportunidade de se emanciparem. Sen
constrói a definição de condição de agente dos indivíduos, capaz de propiciar oportunidades
para que desenvolvam e expressem suas capacidades e, assim, fomentar o desenvolvimento
social. No mesmo sentido, Muhammed Yunus compreende que a capacidade de empreen-
dimento é habilidade inata de todos os seres humanos, possibilitando a emancipação do
indivíduo, com o trabalho e independentemente do Estado. A união dos marcos teóricos
permite idealizar o objetivo maior do serviço público: dar condições aos indivíduos para que
se tornem agentes, proporcionando oportunidades de emancipação, trabalho e desenvolvi-
mento, juntamente com a sociedade. Entretanto, há problemas a enfrentar. A universalidade
é princípio basal para que essa releitura do instituto do serviço público se materialize. Não
há aumento de oportunidades, capacidades, liberdade, condição de agente e empreendedo-
Desenvolvimento Nacional 529

rismo sem que todos os cidadãos tenham facilidade de acesso aos serviços básicos como
saneamento básico, água limpa e energia elétrica. Entretanto, universalidade de acesso aos
serviços públicos no Brasil não é realidade e assim, para implementar essa nova noção, será
necessário “reeducar” a mente da maior parte dos brasileiros, demonstrando o caminho da
emancipação, da condição de agente e liberdade individual. Essa “reeducação” deve ser
feita à indivíduos que sequer tem acesso nem ao mínimo para a sua saúde, como ao serviço
público de saneamento básico. Assim, a releitura do instituto do serviço público deve ser
feita juntamente com uma releitura da atuação do poder público.

Palavras-chave: Serviço público. Desenvolvimento. Liberdade. Amartya Sen. Universalidade.


530 Fabrício Motta | Emerson Gabardo - Coords.

Entre o intervencionismo e a subsidiariedade do


Estado: a demonização do Estado no caso
das privatizações

Giulia De Rossi Andrade


Mestranda em Direito (PUC-PR)
Advogada

Tailaine Cristina Costa


Mestranda em Direito (PUC-PR)

Dentro da ótica do Estado contemporâneo, no que tange à sua função administrativa,


o Estado sofreu diversas modificações, passando de Estado Absolutista a Estado Liberal
que, por sua vez, viu-se substituído pelo Estado Social, este buscando a realização con-
creta das necessidades materiais da sociedade. A partir da ideia de Estado Social, a figura
estatal ficou atrelada ao papel de prestador de serviços públicos essenciais, como aqueles
relativos à defesa da pátria, à segurança pública, à administração da justiça, dentre outros.
As constantes mudanças sofridas pelo Direito Público, através das feições assumidas pelos
Estados, resultaram em um processo de transformação contínuo, e no Brasil não foi dife-
rente. Nas últimas décadas, dando-se destaque para o momento atual, diversos confrontos
político-ideológicos tomaram a frente da reforma do Estado, sendo a Administração Pública
um dos setores que mais sofreu alterações. Assim, o objetivo do presente comunicado é
fazer uma análise do intervencionismo e da subsidiariedade do Estado a partir da insurgência
à tendência neoliberal no sistema constitucional brasileiro, inaugurada por Celso Antônio
Bandeira de Mello. Para ilustrar o objetivo pretendido, foi escolhida a discussão do fenô-
meno das privatizações, notadamente por conta do anúncio feito pelo governo de que 17
empresas estatais serão privatizadas a partir de 2019, incluindo os Correios. Este tema das
privatizações revela intensa perplexidade, especialmente porque o seu procedimento não
segue os mandamentos constitucionais preconizados, e deve-se ter em mente que é a segu-
rança constitucional que mantém a estabilidade das relações e a segurança jurídica. Em um
segundo momento, trata-se da demonização do Estado e dos moralismos impregnados na
sociedade brasileira, que o veem como o responsável por todos os males existentes no país.
No contexto atual, não seria exagero afirmar que o que se está vendo é a mais pura moder-
nização do golpe de Estado brasileiro, passando ao largo da ideia de democracia. O que se
vê é que o Brasil, nas atuais condições, vive em um constante Estado de exceção em que a
ordem constitucional é muito facilmente deixada de lado, dando vez a medidas excepcionais
Desenvolvimento Nacional 531

que não se coadunam com a ordem jurídica estabelecida. É inadmissível a flexibilização do


Estado Democrático de Direito sob a justificativa de “combate a um mal maior”. O mal é o
Estado de exceção, é a quebra da Constituição, é a relativização da democracia. Não há uma
exceção que justifique o abandono dos princípios republicanos fundamentais. Mesmo a crise
vivenciada pelo Brasil nesta segunda década do século XX não é motivo para a violação do
Estado de Direito. Destaca-se, ao fim, a respeito da função social das empresas estatais e o
perigo de retrocesso social em caso de privatização. A partir das leituras realizadas, dentre
os entraves encontrados para a privatização situa-se a possível precarização da prestação de
serviços públicos, deficiência que será sentida por aqueles que mais necessitam e que não
serão vistos como consumidores em potencial pelas empresas privadas, pois não possuem
recursos para adquirirem este status, rompendo com o compromisso constitucional de uma
sociedade livre, justa e solidária.

Palavras-chave: Intervencionismo. Subsidiariedade. Privatização. Serviço público. Estado


social.
532 Fabrício Motta | Emerson Gabardo - Coords.

A necessidade de comprovação da má-fé para


caracterização de um ato ímprobo que importe
em enriquecimento ilícito

Rodrigo de Oliveira Ferreira


Pós-graduando em Direito Processual
Civil (PUC-SP em parceria com a ESAMS)
Advogado

Este trabalho de pesquisa visa estudar a Lei 8.429/92, Lei de Improbidade Adminis-
trativa, enfocando os atos de improbidade que importem em enriquecimento ilícito, modali-
dade prevista no artigo 9º da lei mencionada. Por meio de um estudo detalhado e pragmáti-
co, pretende-se demonstrar que não raramente as ações de improbidade administrativa não
demonstram a má-fé do agente público em seu agir, ignorando o fato de que a lei aplica-se
somente quando o ato tido como ilícito puder ser rotulado como improbidade qualificada,
como desonestidade perversa e abjeta, e não quando se tratar de mera irregularidade. Tem
como escopo enfatizar que para a caracterização do ato ímprobo que importe em enriqueci-
mento ilícito é necessária a comprovação da má-fé do agente público. O objetivo é demons-
trar que a Lei n. 8.429/92 visa a resguardar os princípios da administração pública sob o
prisma do combate à corrupção, da imoralidade qualificada e da desonestidade funcional
considerada grave, não se coadunando com a punição de meras irregularidades adminis-
trativas ou transgressões disciplinares. É apresentada a má-fé como elemento fundamental
para o delineamento da ilicitude ou do juízo de reprovabilidade de determinada conduta. A
relevância de se fazer menção ao tipo enriquecimento ilícito decorre da necessidade legal de
demonstrar que o agente público concorreu com dolo, isto é, que teve a intenção deliberada
de auferir ou de ajudar alguém a auferir, indevidamente, dinheiro público. A metodologia a ser
utilizada é o método dedutivo, partindo do conceito geral de má-fé e de improbidade adminis-
trativa, ponderando-se e correlacionando-se ambos os institutos à luz da legislação aplicada
ao tema. Além disso, a presente pesquisa tem caráter exploratório, descritivo e bibliográfico,
recorrendo a obras jurídicas, periódicos e doutrinas, além de análise jurisprudencial, tendo
o método indutivo como forma de análise. Como resultado, espera-se demonstrar que o ato
ímprobo que importe em enriquecimento ilícito precisa ser consciente e deliberadamente
praticado pelo agente público com o objetivo evidente de afrontar a norma proibitiva implícita
no tipo sancionador previsto no artigo 9º da Lei 8.429/92, indicando que a má-fé contribuirá
para a aferição da reprovabilidade, ou não, de sua conduta, justificando, ou não, a incidência
Desenvolvimento Nacional 533

do sistema sancionador veiculado pela lei. Concluindo-se, assim, que esta lei apresenta um
caráter subsidiário, somente tendo cabimento quando a irregularidade não puder ser coibida
por outras esferas, como a administrativa.

Palavras-chave: Improbidade administrativa. Enriquecimento ilícito. Má-fé. Agente público.


Erário.
534 Fabrício Motta | Emerson Gabardo - Coords.

Compreendendo os riscos da
Administração Pública

Tiago Beckert Isfer


Mestre em Direito Internacional Privado e do
Comércio Internacional (Université Paris 2, Panthéon-Assas)
Professor de Direito (UnB)
Advogado

O objetivo deste trabalho é compreender como os riscos da Administração Pública


interferem na sua atuação. Apoia-se em estudos da psicologia sobre como o ser humano
reage quando confrontado com incertezas, a fim de integrá-los com o Direito Administrativo.
Observou-se que raramente o Direito regulamenta o risco em si, como um fenômeno futuro
e incerto, pois comumente reparte ônus por eventos já concretizados. Fez-se um apanhado
geral sobre o estado atual da teoria de fato jurídico e identificou-se a necessidade de alterá-la
para compreender o risco, que não é evento nem acontecimento. Assim, riscos podem ser
fatos jurídicos, pois estes são qualquer fenômeno que o Direito ateste existência e dispense
tratamento. Em seguida, verificou-se que o risco está presente em toda ação administrativa.
Na teoria do ato administrativo, entendeu-se ser ele um elemento indissociável, até mesmo
do ato vinculado. O mérito da análise de riscos dos atos administrativos pode ser controlado,
inclusive judicialmente. Para atos administrativos de natureza decisória, o artigo 20 da Lei de
Introdução às Normas do Direito Brasileiro exige a análise de riscos, sob pena de nulidade do
ato, ainda que em determinados casos seja possível mitigar essa exigência. Verificou-se que
riscos causam falhas cognitivas na tomada de decisão, sendo necessário que a responsabi-
lidade do agente público seja apurada pela adequação de sua conduta a fim de proteger erros
honestos. Nesse sentido, pode-se emprestar, para todos os gestores públicos, o requisito
da teoria americana business judgment rule de conduta desinteressada, informada e refle-
tida, já admitida no Brasil com relação às empresas estatais. Por fim, a gestão de riscos é
ferramenta que permite mitigar vieses e heurísticas, podendo ser utilizada como orientações
gerais de conduta.

Palavras-chave: Risco. Administração Pública. Fato jurídico. Ato administrativo. Erro honesto.
Desenvolvimento Nacional 535

O reconhecimento de dívidas na Administração


Pública: excepcionalidades e considerações
normativas com fulcro em casos concretos

Débora Walter dos Reis


Pós-Graduação stricto sensu em Engenharia de Minas (UFOP)
Bacharel em Direito Minas (UFOP)
Servidora pública federal

O estudo foi realizado no âmbito da Administração Pública, na Universidade Federal


de Ouro Preto – Ufop –, com vistas a regulamentar os pagamentos devidos a fornecedor par-
ticular, em casos onde a mesma, diante da invalidade na contratação pública, deverá pagar
/ ressarcir a prestação de serviço ou realizar o pagamento do produto, com a justificativa de
evitar danos aos cofres públicos, almejando que os recursos da Administração não sejam
utilizados de forma arbitrária pelo gestor, ou ainda a fim de evitar que o fornecedor de boa-fé
seja prejudicado pelo Estado. Para o desenvolvimento da normativa para a Universidade, rea-
lizou-se estudo dos esparsos textos acerca do tema, os que fazem referência aos requisitos
mínimos para o correto uso do procedimento, alicerçados pelos princípios gerais do direito.
Assim, com base no regramento legal aplicável aos contratos administrativos nulos – art. 59,
parágrafo único da Lei de Licitações e na Instrução Normativa n. 04 de 1º de abril de 2009 da
Advocacia Geral da União, o procedimento contempla a fase de reconhecimento, pagamento
e de apuração de responsabilidade do servidor com fluxograma reconhecido pela Advocacia
Geral da União. Assim, como o reconhecimento de dívidas na administração só ocorrerá
motivado por vícios nos atos administrativos, para a normatização discutiu-se, também, os
efeitos deles nas contratações públicas e as possibilidades de convalidação, caracterizando
os atos inválidos e ponderando pelo pagamento daqueles classificados e justificados como
nulos. Em sede de responsabilização foram analisadas as possíveis formas de responsabi-
lização do agente que produziu os vícios na contratação e as consequências dos mesmos
na esfera administrativa. Para tal, a normativa determina a abertura de um procedimento
apartado ao reconhecimento da dívida, com nomeação de comissão sindicante nos moldes
da Lei 9.784 de 29 de janeiro de 1999, que regula o processo administrativo no âmbito da
Administração Pública Federal. A normativa Ufop, portanto, é o resultado de um estudo rea-
lizado, basicamente, em institutos regulatórios esparsos sobre o tema, tendo em vista que
não há lei especifica para o tal, e em julgados do Tribunal de Contas da União com vistas a
transparência pública e coibição as fraudes na Administração.

Palavras-chave: Administração Pública federal. Reconhecimento de dívidas. Contratação


pública. Responsabilidade administrativa. Gestão.
536 Fabrício Motta | Emerson Gabardo - Coords.

A retroatividade na instituição do ato adminis-


trativo: atos declaratórios e constitutivos

Flávio Garcia Cabral


Doutor em Direito Administrativo (PUCSP)
Professor (Unigran)

Jorge Felipe Fernandes dos Santos


Acadêmico de Direito (Centro Universitário Anhanguera)

O presente trabalho procura explorar a retroatividade na instituição do ato adminis-


trativo declaratório e constitutivo, tema este pouco debatido em nosso ordenamento jurídico.
A maior parte das obras que trataram do assunto são estrangeiras ou, quando brasileiras,
publicadas entre os anos 50 e 80, todos pré Constituição Federal de 1988. Quando muito,
foca-se na retroatividade relacionada à extinção dos atos, mas não na sua instituição. Assim,
este estudo, de cunho bibliográfico, procura enriquecer a discussão sobre o tópico por meio
de uma pesquisa nas orientações doutrinárias do passado, traçando um paralelo com as
ideias e conceitos contemporâneos sobre a retroatividade do ato administrativo. Na rotina
da Administração Pública, diversos atos administrativos são emitidos constantemente, de
modo que alguns deles possuem natureza meramente declaratória, isto é, seus efeitos se
restringem a confirmar uma situação de fato ou de direito preexistentes. Sobre os atos decla-
ratórios, é certo que seus efeitos são retroativos, pois os fatos ali regidos já foram realizados
anteriormente. Discussão maior é a que permeia a retroatividade dos atos administrativos
constitutivos. No passado, autores afirmavam a possibilidade da retroeficácia dos atos admi-
nistrativos constitutivos desde que estes gerassem benefícios aos administrados, a exemplo
de uma nomeação com efeitos retroativos; noutro giro, não seria admissível a retroatividade
de um ato que limitasse direitos ou gerasse deveres ao administrado. Neste ínterim, tanto o
Superior Tribunal de Justiça, quanto o Supremo Tribunal Federal, possuem orientação que
prega a impossibilidade de nomeação (ou posse) com efeito retroativo; além disso, alguns
diplomas normativos recentes têm positivado a mesma ideia, citando-se o exemplo da Lei
Complementar 840/2011 do Distrito Federal, que veda a edição de atos de nomeação, posse
ou exercício com efeito retroativo. Deveras, parece-nos claro que a orientação genérica da
possibilidade de retroatividade de atos administrativos ampliativos ou benéficos resta supe-
rada, seja devido à existência de certos proibitivos legais (a exemplo da lei mencionada), seja
porque a retroatividade de tal ato ofende o princípio da isonomia e publicidade dos atos, visto
que um ato administrativo constitutivo, em regra, só pode produzir efeitos após sua devida
Desenvolvimento Nacional 537

publicação. Sobre a impossibilidade da retroatividade atos administrativos que prejudiquem,


limitem direitos dos administrados, concordamos. Nesse sentido, destaca-se que o princípio
da confiança legítima (ou proteção à confiança) representa a ótica subjetiva da segurança
jurídica, assim, o cidadão não espera ser lesado pelo poder público, presumindo a legitimi-
dade e licitude dos atos pretéritos emitidos pelo Estado. Portanto, pode-se observar que a
retroatividade dos atos administrativos comporta alguns requisitos mínimos, quais sejam:
a) o respeito ao princípio da segurança jurídica, destarte, o ato administrativo retroativo não
poderá atingir o ato jurídico perfeito, a coisa julgada e o direito adquirido, bem como não
será possível a retroeficácia de ato que prejudique o indivíduo; b) o respeito aos normativos
superiores e aos princípios do regime jurídico administrativo, assim, na elaboração de um
ato administrativo retroativo deverão ser observados os normativos primários e os princípios
fundantes do regime jurídico administrativo.

Palavras-chave: Retroatividade. Ato administrativo. Declaratório. Constitutivo. Requisitos.


538 Fabrício Motta | Emerson Gabardo - Coords.

Consensualismo e Estado: uma solução ao baixo


índice de pagamento de multas ambientais?

Mirela Miró Ziliotto


Mestranda em Direito Econômico e Desenvolvimento (PUC-PR)

O presente estudo voltou-se à análise da abertura ao consensualismo administrativo


no âmbito de processos administrativos sancionadores para aplicabilidade de multas am-
bientais simples, a partir de uma descrição analítica dos dados do Relatório de Gestão do
Ibama de 2017 (atualizado) em relação ao índice de pagamento de multas administrativas.
Assim, pelo método hipotético-dedutivo, constatou-se a existência de dois problemas em
relação ao pagamento das multas ambientais: ineficiência da gestão processual do Ibama
e perda massiva de adesão ao texto normativo. Diante desse contexto, analisou-se a possi-
bilidade de a atividade consensual, dialógica e negocial sobrepor-se à atividade imperativa
e unilateral, quando aquela se mostrar mais eficiente ao atingimento do interesse público
abarcado nos casos de infrações ambientais, sem, contudo, desobrigar o interessado da re-
paração do dano ambiental. A temática abordada decorre da crescente utilização de acordos
para solução de conflitos entre as entidades ambientais e infratores de normas que regulam
a defesa do meio ambiente, conforme disciplina dos artigos 139 e seguintes do Decreto Fe-
deral n. 6.514/2008. Assim, após análise dos principais contornos dogmáticos da abertura
ao consensualismo administrativo, especialmente a sua viabilidade jurídica e a sua utilização
como instrumento de democratização e dialogicidade, bem como do estudo dos reflexos da
atividade imperativa comparada à atividade consensual, e a sua implicação no caso concreto
das infrações ambientais, concluiu-se que políticas públicas voltadas à resolução consen-
sual de conflitos podem ser mais eficientes ao alcance do interesse público da preservação
ambiental, porque convidativas à cooperação pelo infrator, permitindo-se maior adesão ao
texto normativo e a conservação do meio ambiente.

Palavras-chave: Administração Pública. Multas ambientais. Consensualismo. Política públi-


ca. Eficiência.
Desenvolvimento Nacional 539

Responsabilidade civil do Estado legislador: leis


de efeitos concretos

Larissa Pereira Eiras


Mestranda em Direito e Desenvolvimento (USP)

A presente pesquisa tem como objeto a análise da responsabilidade civil do Estado


Legislador com enfoque nas leis de efeitos concretos, dentro do ordenamento jurídico bra-
sileiro. Como é sabido, a responsabilidade civil do Estado é um tema clássico no Direito
Administrativo, havendo uma profusão de escritos, livros, artigos e pesquisas sobre o as-
sunto, o que poderia conduzir-nos à fácil conclusão de que se trata de uma teoria acabada.
Ocorre que, apesar de todo esse emaranhado de estudos sobre o tema e da consequente
evolução alcançada nessa matéria, ainda remanescem muitos aspectos controvertidos, es-
pecialmente no que diz respeito à responsabilidade civil do Estado pelo desempenho da
função legislativa. Essa preocupação não é recente; existem vários estudos dedicados ao
tema, razão pela qual se faz necessário recorte mais restrito do assunto para que se explore
de forma mais aprofundada os impactos advindos desse tipo específico de ato normativo
danoso. Desta forma, o estudo tem como objetivo examinar se o Estado deve indenizar os
particulares pelos atos normativos de efeitos concretos danosos, ainda que conforme as re-
gras constitucionais. Ao perscrutar o assunto, através de pesquisa exploratória, percebeu-se
que há na doutrina e jurisprudência existência de grande divergência a respeito desse tema.
Há corrente doutrinária que entende que a responsabilidade civil do Estado por ato legislativo
não seria possível em razão de suas características de generalidade e abstração. Os adeptos
dessa corrente posicionam-se no sentido de que o ato legislativo não pode causar a respon-
sabilidade civil do Estado, nos casos em que a lei é produzida em estrita observância aos
mandamentos constitucionais. Em contrapartida, tem havido um reconhecimento crescente
na jurisprudência e doutrina que em situações excepcionais poderá exsurgir a obrigação
do Estado de indenizar nos casos de a lei atingir direitos de determinados grupos de indiví-
duos à custa de benefícios a um universo maior de destinatários. Trata-se da chamada “lei
de efeitos concretos”, identificada, neste primeiro momento, como autêntico problema da
responsabilidade civil do Estado por atos legislativos. Como método de abordagem, será
utilizado o raciocínio dedutivo em quase todos os capítulos, cujo conteúdo está relacionado
aos aspectos teóricos da responsabilidade geral do Estado e da responsabilidade específica
por atividade legiferante, com vistas a organizar e especificar o conhecimento que já se tem
sobre o tema. Todavia, no último capítulo, o raciocínio se pautará no método indutivo, no
qual serão analisadas as peculiaridades das leis de efeitos concretos através da jurisprudên-
540 Fabrício Motta | Emerson Gabardo - Coords.

cia extraída de casos paradigmáticos sobre o assunto. Será utilizado, outrossim, o método
dialético, expondo ao longo do trabalho as diversas correntes doutrinárias e teorias sobre a
matéria, desenvolvendo-se proposições teóricas a partir das contradições expostas e dos
contrários internos inerentes ao problema de pesquisa, mas sem perder de vista que estes
se apresentam como uma unidade indissolúvel.

Palavras-chave: Responsabilidade civil. Estado. Atividade legislativa. Leis de efeitos concre-


tos. Direito administrativo.
Desenvolvimento Nacional 541

Sanção administrativa concorrencial:


balizas e parâmetros

Paulo Victor Barbosa Recchia


Mestrando em Direito e Desenvolvimento (USP)

O estudo da sanção no direito administrativo é tema complexo. Sanções de trânsito,


disciplinares ou advindas de descumprimento de contrato administrativo são apenas exem-
plos de quão amplo e diverso o tema aparece no cotidiano da Administração Pública. As
sanções concorrenciais, quer sejam as respostas ao cometimento das infrações à ordem
econômica previstas na Lei 12.529/2011, são objeto do presente estudo, fruto de disserta-
ção de mestrado em fase intermediária de execução. O objetivo que guia a pesquisa é inves-
tigar se as sanções concorrenciais previstas na Lei de Defesa da Concorrência se compati-
bilizam com os limites e parâmetros do Direito Administrativo Sancionador. Assim, sanções
administrativas em conformidade com o Estado Democrático de Direito são fundamentais ao
processo de desenvolvimento, vez que, nessa seara, são elementos fundamentais na com-
preensão das relações entre Estado e mercado, de modo a conferir, ao mesmo tempo, segu-
rança jurídica aos administrados e eficácia na aplicação das sanções que inibam os ilícitos
antitruste. O trabalho justifica-se pela necessidade do diálogo entre o direito administrativo
geral e direito administrativo específico aplicado ao microssistema do direito concorrencial,
ainda muito insipiente na doutrina, bem como pela análise da extensão e limites do poder
de polícia aplicado à regulação em um contexto democrático. Ressalte-se também que o
estudo permite da reflexão sobre as fronteiras entre direito administrativo e penal e suas res-
pectivas sanções. Para o estabelecimento das bases do Direito Administrativo Sancionador,
entende-se que seus limites são extraídos do rol dos direitos fundamentais da Constituição
Federal, dentre os quais citamos a legalidade, a tipicidade, a irretroatividade, a razoabilidade,
a pessoalidade, a individualização e a vedação ao bis in idem. Outrossim, o ordenamento
jurídico apresenta outros parâmetros a serem considerados pelo órgão sancionador anti-
truste, o Tribunal do Conselho Administrativo de Defesa Econômica (TADE), dentre as quais
as recentes alterações da LINDB, que traz uma lógica consequencialista à imposição de
sanções, bem como a Lei de Processo Administrativo Federal e a recentíssima Lei Geral de
Agências Reguladoras, a qual traz dispositivos que tratam da relação entre regulação setorial
e concorrencial, impactando o tema das sanções. Ressalte-se que os ilícitos concorrenciais
também são sancionados na esfera civil e criminal, o que também deve ser considerado no
momento da imposição da sanção administrativa, além da eventual aplicação das sanções
trazidas pela Lei Anticorrupção, no caso, por exemplo, de carteis licitatórios, de modo que
542 Fabrício Motta | Emerson Gabardo - Coords.

não haja sobreposição. Compreendido o sistema sancionatório antitruste, por meio de seus
limites, parâmetros e demais formas de sanção, se fará a análise em espécie das sanções
aplicadas no âmbito do Sistema Brasileiro de Defesa da Concorrência, seja reprimindo as
condutas anticompetitivas, seja na construção das estruturas de mercado que não permitam
o abuso do poder econômico. Por se tratar de uma pesquisa de cunho essencialmente teóri-
co, a metodologia adequada é a pesquisa bibliográfica.

Palavras-chave: Sanção concorrencial. Balizas e parâmetros. Direito administrativo sancio-


nador. Relação Estado-mercado. Sistema Brasileiro de Defesa da Concorrência.
Desenvolvimento Nacional 543

Os limites da atividade controladora e os novos


sistemas de controle interno municipais

Óthon Castrequini Piccini


Graduando em Direito (USP)

Este comunicado científico é fruto de Iniciação Científica com fomento da Fapesp. A


partir das discussões doutrinárias sobre os limites da atividade controladora e seus impac-
tos na execução de políticas públicas, nota-se que, na jurisprudência do Supremo Tribunal
Federal (STF), os julgados recaem sobre as competências do Tribunal de Contas da União
(TCU). A seguir, propôs-se investigação sobre a repercussão dessas mesmas controvérsias
quanto ao controle interno: a Constituição Federal, no dispositivo que regula a matéria, dota
satisfatoriamente o sistema de controle interno de instrumentos a conferirem autonomia
para exercer a fiscalização? Como a doutrina contemporânea compreende a dimensão dos
poderes do controle interno? O procedimento metodológico baseia-se nos levantamentos bi-
bliográfico e documental, razão pela qual procedeu-se à descrição interpretativa sobre os ar-
tigos 31 e 74 da CF. Nesse momento, foram registrados os posicionamentos de autor cético
quanto às competências oferecidas pelo Texto Magno ao desempenho do controle interno,
mas constatou-se a prevalência de entendimento doutrinário segundo o qual, para o vigor
do referido sistema, deve-se exigir do Poder instituidor uma adequada disposição normativa
do controle interno. Como exemplo, apurou-se que, no Poder Executivo Federal, houve uma
mudança de paradigma com o advento da Controladoria-Geral da União (CGU), por meio
da qual o sistema de controle interno do Executivo deste ente federativo expandiu as suas
funcionalidades e nichos de atuação. Diante disso, julgou-se oportuno questionar: quais os
influxos deste novo conceito de estruturação do controle interno nos demais entes federati-
vos? Os municípios estão revisando a normatização de seus sistemas de controle interno?
Para verificar os reflexos dessa conjuntura em âmbito municipal, resolveu-se proceder a um
levantamento, nos dez municípios de maior população no Estado de São Paulo, sobre os atos
normativos locais de regulamentação dos seus respectivos sistemas de controle interno.
Constatou-se que 70% destes revisaram estes regramentos desde 2013, fato a denotar ten-
dência de reestruturação estrutural da fiscalização municipal, à luz do modelo federal. Essa
constatação demonstra, para a Academia, a necessidade de acompanhar o fenômeno e,
principalmente, de estimular debates sobre a técnica legislativa empregada para a estrutura-
ção de sistemas de controle interno, cujos atos normativos regradores são os instrumentos
responsáveis pela fixação dos seus limites e pela garantia de efetivas competências, a fim de
evitar o estabelecimento de mecanismos inócuos de fiscalização, questionamentos judiciais
544 Fabrício Motta | Emerson Gabardo - Coords.

semelhantes aos ocorridos no controle externo pelo TCU e o travamento de políticas públicas
e obras de infraestrutura. Para futuros trabalhos e teses, sugere-se o estudo das diretrizes
internacionais de controle interno, emitidas pelo COSO e pela INTOSAI, como modelos a
serem incorporados e positivados pelo ordenamento jurídico brasileiro, lacunoso quanto a
critérios e parâmetros gerais de organização do controle interno, e a balizarem a edição de
novos atos normativos pertinentes à matéria.

Palavras-chave: Controle interno. Direito municipal. Fiscalização. Controladoria. Sistema


integrado.
Desenvolvimento Nacional 545

Contributo das cinco gerações de administrati-


vistas ao tema do controle jurisdicional da
discricionariedade administrativa

Antonio Rodrigues do Nascimento


Mestrando em Ciências Jurídico-Políticas (Universidade de Lisboa)
Especialista em Direito Administrativo (PUC-SP)
Professor de Direito
Advogado

Mais que os enunciados do direito constitucional positivo que prescrevem a divi-


são ou separação dos poderes do Estado, a doutrina administrativista nacional tem papel
determinante para conformação e operacionalização do controle jurisdicional da discricio-
nariedade administrativa, instituto controvertido, preordenado a servir de instrumento do
acoplamento estrutural dos sistemas jurídico e político. Diante dessa constatação, con-
siderando-se que a tarefa doutrinária de definição da extensão e intensidade do controle
jurisdicional da Administração Pública é fundamental à segurança jurídica e ao equilíbrio
político-institucional, a presente tese propõe demonstrar o protagonismo da atividade teórica
na configuração dos diferentes modos de controle vivenciados ao longo da história do país,
intentando fazê-lo pela descrição de uma “genealogia” da doutrina nacional e das teses
sobre o controle jurisdicional da discricionariedade administrativa predominantes em cada
geração. Assim, Identifica-se cinco gerações e quatro estágios da doutrina: (i) 1ª geração
- “pais fundadores”, publicistas do 2º Reinado (1840-1889) compiladores dos institutos
geneticamente liberais estranhos à administração centralizada no Imperador e insuscetível
ao controle; (ii) 2ª geração - assimilou conceitos herdados do “Estado de Polícia” quanto ao
caráter político da discricionariedade, destacando-se por iniciar a sistematização do direito
administrativo brasileiro no período entre a República Velha e Estado Novo (1889-1945); (iii)
3ª geração - perfilhou as teses precedentes quanto à “natureza política” da discricionarieda-
de, contudo, tendo Miguel Seabra Fagundes como precursor, consolidou entre as décadas
de 1940/70 a doutrina do controle restrito do ato discricionário para coibir desvio ou abuso
de poder; (iv) 4ª geração - integrada por juristas que iniciaram produção acadêmica e/ou
profissional na década de 1960/70, tendo como referência Celso Antônio Bandeira de Mel-
lo, promoveu o giro teórico-metodológico do tema para o campo linguístico, resultando na
doutrina do controle amplo de cariz garantístico que predominará nas décadas de 1980/90;
(v) 5ª geração – composta por administrativistas cuja produção de referência é realizada
sob vigência da Constituição de 1988, desenvolverá com autores da 4ª geração as teses
546 Fabrício Motta | Emerson Gabardo - Coords.

do controle extremo, de base principiológica, tendo como principal referencial teórico as


obras Ronald Dworkin e Robert Alexy. A doutrina contemporânea do controle principiológico
da discricionariedade administrativa ressente-se da falta de consenso mínimo na teoria do
direito quanto ao que seja “princípio jurídico”, bem como da identificação destes e de seus
respectivos conteúdos jurídicos no ordenamento jurídico brasileiro, especialmente com rela-
ção aos princípios ditos “implícitos” ou “doutrinários”. Estas circunstâncias são agravadas
diante da instrumentalização judicial de conceitos fundamentais à doutrina principiológica,
como “razoabilidade”, “proporcionalidade” e “ponderação”, frequentemente aplicados como
topois argumentativos que aludem a determinados pressupostos teóricos, porém não logram
demonstrar sua adequada aplicação na atividade de controle dos atos discricionários da
Administração Pública.

Palavras-chave: Discricionariedade. Controle. Doutrina. Princípios. Ponderação.


Desenvolvimento Nacional 547

O instituto da requisição administrativa aplicada


à área da saúde pública: reflexões a partir da
experiência de Palmas-TO

Aline Sueli de Salles Santos


Doutora em Direito (UnB)
Professora adjunta de Direito Administrativo (UFT)

Do estudo de caso das requisições administrativas de medicamentos e consultas


médicas especializadas determinadas pela prefeitura de Palmas-TO, busca-se refletir sobre a
pertinência e limites do instituto no contexto de crise e judicialização da saúde pública. Para
tanto o artigo pautou-se em pesquisa bibliográfica e documental, com uso de fontes primá-
rias legislativas, administrativas e judiciais. A saúde aparece na Constituição como um direito
universal a ser garantido integralmente e de forma descentralizada pelo poder público, cuja
execução dá-se diretamente ou através de terceiros, no âmbito do SUS. Cabe, ainda, ao Es-
tado, regulamentar, fiscalizar e controlar as ações e serviços de saúde, garantida a liberdade
à iniciativa privada nas atividades de assistência à saúde. Também há previsão constitucional
de requisição administrativa como modo de restrição à propriedade particular, no caso de
iminente perigo público, assegurado ao proprietário indenização ulterior, se houver dano. A
Lei do SUS dá às autoridades administrativas de todas as esferas federativas, nos limites de
suas competências, a atribuição de requisitar bens e serviços de pessoas naturais ou jurí-
dicas para atendimento de necessidades coletivas, urgentes e transitórias. Em Palmas-TO,
as requisições de medicamentos foram instituídas por portarias do Secretário de Saúde,
respondendo a uma provocação do Ministério Público estadual. Abarcaram 231 itens que
integravam tanto a Relação Municipal de Medicamentos Essenciais, e que havia processos
administrativos de licitação desertos ou fracassados, bem como decorrentes de demandas
judiciais. Incidindo sobre 3 diferentes empresas, traziam a quantidade para o atendimento
durante 6 meses, tempo indicado como necessário para saneamento administrativo. Exito-
sas, os medicamentos foram entregues ao município e pagos administrativamente nos ter-
mos dos atos, que previam justa indenização com base nos valores da tabela da Câmara de
Regulação do Mercado de Medicamentos da Anvisa. Já as requisições de consultas médicas
especializadas incidiram sobre 8 profissionais ou empresas de áreas médicas específicas,
por 6 meses, e traziam entre suas justificativas a ausência de interessados nos editais de
credenciamento, a quantidade da demanda reprimida no sistema de regulação, além da alu-
são a decisões judiciais por consultas da especialidade. Pautam sua legitimidade também
na aprovação por unanimidade pelo Conselho Municipal de Saúde. Estas determinações, no
548 Fabrício Motta | Emerson Gabardo - Coords.

entanto, não foram levadas a cabo, obstadas por 2 ações judiciais (uma já transitada em
julgada, outra ainda com decisão liminar) que levaram à suspensão dos atos, com especial
ênfase nos argumentos de ausência de perigo iminente, além de menção ao baixo valor dos
procedimentos previstos na Tabela do SUS e o impacto que isso teria no desenvolvimento
das atividades privadas, o que configuraria risco para as partes, justificando, inclusive, as
decisões interlocutórias. Conclui-se que as requisições administrativas podem ser uma alter-
nativa em situações pontuais de judicialização e de problemas nas prestações de saúde pú-
blica que, apesar do Estado agir, persistem, mas seu sucesso parece associado à ausência
de choque de interesses com os requisitados, pois quando este emerge, a difícil ponderação
entre interesse público e liberdade privada ainda impõe severas limitações ao direito à saúde.

Palavras-chave: Requisição administrativa. Direito à saúde. Saúde pública. Medicamentos.


Consultas médicas especializadas.
Desenvolvimento Nacional 549

Judicialização da saúde e a interferência


judicial no planejamento orçamentário da
Administração Pública

Júlia Maria Tomás dos Santos


Mestranda em Direito e Políticas Públicas (UFG)
Advogada

Platon Teixeira de Azevedo Neto


Doutor em Direito (UFMG)
Mestre em Direitos Humanos (UFG)
Juiz do Trabalho

A saúde foi elevada pela Constituição Federal à condição de direito social de apli-
cabilidade imediata, a ser assegurado pelo Estado, por intermédio de políticas econômicas
e sociais. Sabe-se, porém, que a previsão constitucional não é suficiente para efetivar a
contento a universalização e a integralidade desse direito, como pretendido pelo constituinte.
Esse cenário de falta de efetividade deu espaço à judicialização da saúde, que consiste no
crescente volume de ações pelas quais se pedem, pela via judicial, tratamentos e medica-
mentos não disponibilizados pela Administração Pública. Nesse contexto, o poder público
enfrenta o desafio de encaixar no Orçamento as políticas públicas de saúde no âmbito do
SUS e o cumprimento de ordens judiciais. Essas decisões, cada vez mais frequentes, im-
põem o custeio de prestações de saúde não abarcadas no planejamento feito previamente
e, muitas das vezes, em caráter de urgência. A maioria dessas ações são individuais, o que
evidencia um paradoxo na judicialização da saúde. Isso porque essa atuação judicial, sob
a pretensão de efetivar esse direito, oferece respostas espasmódicas para um problema
amplo, impactando no orçamento público, ao redirecionar dinheiro que financiaria políticas
públicas direcionadas à coletividade para atender a indivíduos com capacidade econômica
suficiente para pleitear prestações perante o Poder Judiciário. O objetivo da pesquisa é reali-
zar um estudo empírico documental sobre o posicionamento adotado pelo STF e o STJ com
relação ao direito à saúde. Isso se dará com a verticalização em casos paradigmas, julgados
entre 2004 e 2019, a partir dos quais se analisará a correção do uso da técnica de ponde-
ração de princípios – com base em Dworkin e Alexy – no confronto entre o direito à saúde e
a reserva do possível. Além disso, pretende-se verificar se há estabilidade temporal do posi-
cionamento das Cortes referidas. Adotar-se-á o método dialético-argumentativo, juntamente
com o procedimento técnico de revisão documental para analisar os casos paradigmáticos.
550 Fabrício Motta | Emerson Gabardo - Coords.

As hipóteses investigadas são que o Judiciário aplica incorretamente a técnica de pondera-


ção de princípios no caso da saúde, por desconsiderar totalmente a reserva do possível, ao
deferir reiteradamente as prestações pretendidas. E, mais, que a tese do mínimo existencial é
utilizada como subterfúgio para usurpar a competência do gestor público, implementando e
interferindo em políticas públicas já existentes. Enfim, que a judicialização da saúde subverte
a ideia de justiça social, por retirar dinheiro de políticas coletivas e direciona-lo a indivíduos
com maior capacidade econômica. Preliminarmente, conforme dados do TCU e do CNJ,
constatou-se que o tratamento médico-hospitalar e o fornecimento de medicamentos são
os pedidos mais recorrentes; que há predominância da litigância individual em detrimento de
ações coletivas, sendo que, no Estado de Goiás, não há registro de ação coletiva referente
ao direito à saúde. Além disso, o gasto com o cumprimento de decisões judiciais passou de
70 milhões de reais, em 2008, para 7 bilhões de reais em 2017, em todo o País. Enfim, no
Estado de São Paulo, 74% dos beneficiários das decisões judiciais nessa seara são pessoas
com melhor situação econômica.

Palavras-chave: Direito à saúde. Judicialização. Mínimo existencial. Reserva do possível.


Ponderação de princípios.
Desenvolvimento Nacional 551

Efetividade do poder de polícia ambiental no


Estado de Goiás

Letícia Martins de Araújo Mascarenhas


Mestranda em Direito e Políticas Públicas (UFG)
Especialista em Direito Processual Civil e Direito Civil (Atame)
Advogada

Cleuler Barbosa das Neves


Doutor em Ciências Ambientais (UFG)
Mestre em Direito Agrário (UFG)
Procurador Geral do Estado de Goiás

A administração pública ambiental enfrenta hoje um grande problema que é como


tornar efetivo os ditames do art. 225 da CF/1988, o qual nos garante um meio ambiente
ecologicamente equilibrado. Diante no referido dispositivo, o poder público tem o dever de
primeiro defendê-lo ao lado da coletividade. Para tanto, o parágrafo terceiro do menciona-
do dispositivo, estabelece a responsabilidade daquele que causar dano ao meio ambiente,
incluindo, além das esferas civil e penal, a administrativa, que corresponde ao exercício do
poder de polícia e aplicação de sanção administrativa. A necessidade de se debruçar sobre
o tema se dá em função da morosidade na apreciação dos processos administrativos que
tramitam junto ao Ibama e junto à Secretaria de Estado de Meio Ambiente e Desenvolvimento
Sustentável (Semad), no Estado de Goiás. Ocorre que, em grande parte desses processos,
as sanções aplicadas não são efetivas uma vez que, pela demora na apreciação, os autos
incorrem em prescrição intercorrente e, por conseguinte, não resultam na apreciação da
validade ou não da sanção imposta. Diante desse cenário, busca-se a resolução pacífica
dos conflitos na Administração Pública Ambiental, com o fito de finalizar o processo de
forma mais célere, buscar a pacificação social e aumentar as chances de cumprimento do
acordado pelas partes, evitando a eternização do litígio. O presente estudo visa verticalizar
o objeto da pesquisa na prescrição intercorrente que permeia os processos administrativos
ambientais, mediante coleta de dados junto à Semad. Em seguida, visa-se verificar, esta-
tisticamente, o número de processos administrativos ambientais dos últimos dez anos que
prescreveram ou estão em vias de prescrever, bem como analisar a efetividade da aplicação
dos métodos consensuais de solução de conflitos na esfera da Administração Pública Am-
biental estadual. A pesquisa vale-se do método hipotético dedutivo para testar hipóteses por
meio da análise estatística descritiva e inferencial e estudo de caso, para uma abordagem
quantitativa e qualitativa. As hipóteses a serem testadas são que a falta de aparelhamento, de
552 Fabrício Motta | Emerson Gabardo - Coords.

pessoal e de verba são responsáveis pelo agravamento da lentidão do trâmite dos processos
administrativos ambientais junto ao Ibama e Semad; bem como os métodos de solução con-
sensual de conflitos podem contribuir para uma maior efetividade da garantia constitucional
ao meio ambiente ecologicamente equilibrado. Em sede de resultados preliminares, segundo
recente estudo produzido pelo Ibama, entre os anos de 2000 e 2018, foram lavradas 1.049
autuações por infrações ambientais no Estado de Goiás, totalizando R$ 448,08 milhões em
multas e deste número, apenas R$ 19,2 milhões foram pagos pelos infratores, o que cor-
responde a ínfimos 4,32% de adimplemento. Ainda segundo o referido estudo, por meio de
realização de auditoria, entre os anos de 2013 a 2017, foram detectados 9.076 casos de
reconhecimento formal de prescrição de processos de apuração dos autos de infração. Por
derradeiro, mediante análise de cases de sucesso, conclui-se que a solução consensual de
conflitos tem potencial para dar efetividade ao exercício do Poder de Polícia.

Palavras-chave: Política pública ambiental. Infração ambiental. Processos administrativos.


Prescrição intercorrente. Método consensual de solução de conflitos.
Desenvolvimento Nacional 553

Proteção de dados: uma nova dimensão de direi-


tos fundamentais e impressões iniciais acerca
do enfrentamento da corrupção
pela administração

Cinthya Hayashida de Carvalho Zortéa


Especialista em Direito Administrativo e
Administração Pública (Universidade Estácio de Sá-RJ)
Aluna especial do Mestrado em Ciência Política (UFG)
Assessora da Presidência do Tribunal de Contas do Estado de Goiás

O presente trabalho tem como escopo trazer à discussão o tema afeto a proteção de
dados enquanto nova dimensão de direito fundamental, bem como as primeiras impressões
acerca de um possível novo pacto global. Ao mesmo tempo em que encurtou distâncias, o
fenômeno da globalização provocou descompassos em algumas áreas, na medida em que
não se mostrou hábil em absorver tensões nem administrar o direito à privacidade. Nesse
sentido, considerando o novo regulamento acerca da proteção de dados, revela-se oportuna
a reflexão sobre o acesso e tratamento da informação, com ênfase nas questões jurídicas e
culturais advindas da evolução tecnológica, considerando a escassez de estudos voltados
aos temas. A partir do ano de 2016, com a entrada em vigor do GDPR (Regulamento Geral
de Proteção de Dados) na União Europeia, o caráter transnacional da questão que envolve a
proteção de dados é suscitado, com destaque para o fato de que inexiste uma visão regulató-
ria comum entre grandes atores de peso, sinalizando, contudo, um marco jurídico de grande
relevo no que tange a influência na adoção de padrões comuns, ou seja, a compatibilização
entre regimes nacionais de proteção de dados, com o possível estabelecimento de um pacto
global. O objetivo específico do estudo é promover um recorte de pesquisa na questão da
proteção de dados, enquanto direito fundamental, no que se refere ao Estado brasileiro,
a partir da entrada em vigor, em 2020, da LGPG (Lei Geral de Proteção de Dados), com
destaque para as conexões e repercussões no âmbito do enfrentamento da corrupção pela
Administração Pública.

Palavras-chave: Direito fundamental. LGPD. Corrupção. Proteção de dados. Repercussões.


554 Fabrício Motta | Emerson Gabardo - Coords.

A competência legislativa concorrente estadual


da arbitragem na Administração Pública

Guilherme Sampieri Santinho


Doutorando em Direito (Fadusp)
Mestre em Direito (Uenp)
Professor (UCDB)

Tiago Andreotti e Silva


Doutor em Direito (EUI)
LLM (NYU)
Professor (UCDB)

O objetivo do presente artigo é analisar a constitucionalidade das normas legais


referentes à arbitragem previstas na Lei Estadual n. 4.303/2012, que instituiu o programa de
Parceria Público-Privada do Estado de Mato Grosso do Sul, com base na análise da com-
petência legislativa constitucional dos Estados Membros. Parta tanto com base na doutrina
se adotou como premissa que Constituição Federal de 1988 prevê que é de competência
privativa da União legislar sobre matéria “processual”, enquanto a competência torna-se
concorrente entre União, estados e Distrito Federal para tratar sobre “procedimentos em ma-
téria processual”, conforme os seus arts. 22, I e 24, XI. No âmbito da competência concor-
rente, a União somente pode legislar sobre normas gerais, enquanto os estados e o Distrito
Federal podem legislar principalmente sobre normas específicas, possuindo competência
para normas gerais somente quando não existir lei federal. Para a análise, estabelecemos
critérios de distinção entre processo e procedimento, especialmente em relação à arbitragem
e a normas de licitação e contratos administrativos, bem como para identificar normas de
caráter geral e de caráter específico. Com base nesses parâmetros, a metodologia utilizada
foi dedutiva bibliográfica analisando a constitucionalidade das normas da Lei Estadual n.
4.303/2012 que tratam sobre arbitragem. Diante do estudo se concluiu que legislação esta-
dual sul-mato-grossense apresenta vícios como inconstitucionalidade e ilegalidade em sua
redação quanto a disposição sobre sentença arbitral na referida norma – por inobservância,
por parte do árbitro, de regra de decisão – e a remessa do litígio à jurisdição estatal sob
argumento de nulidade da sentença.

Palavras-chave: Arbitragem administrativa. Processo. Procedimento. Competência legisla-


tiva. Licitação.
Desenvolvimento Nacional 555

A gestão do Fundo Amazônia na visão da teoria


da ação comunicativa de Habermas: oportunida-
de de avanço no Estado Democrático de Direito

Mário Augusto de Araújo Luzzi Júnior


Mestre em Direito em Relações Econômicas e
Sociais (Faculdade de Direito Milton Campos-MG)
Bacharel em Ciências Aeronáuticas (AFA-SP)
Bacharel em Direito (UFMG)

Este artigo se propõe a analisar a gestão do “Fundo Amazônia”, uma fonte de recur-
sos financeiros disponível em tempos de crise econômica por que passa o nosso país, mas
que se encontra no centro de uma disputa internacional entre o Governo brasileiro e países
da União Europeia, notadamente a França, Dinamarca e Alemanha, face ao crescente des-
matamento e aumento de queimadas na floresta amazônica. Inicialmente, buscou-se realizar
uma pesquisa histórica de análise de vários textos que abordam o atual cenário da região,
com as notícias que circularam na imprensa nacional e internacional, provocando uma gran-
de discussão sobre a finalidade do Fundo criado para receber investimentos estrangeiros,
visando a proteção da biodiversidade e da floresta amazônica, tudo isso em decorrência da
falta de uma política de proteção ambiental do atual Governo para a região. Efetuou-se uma
busca sistematizada abrangendo artigos de periódicos, dissertações, teses, comunicações
em eventos e legislações, como o Decreto n. 6.527, de 1º de agosto de 2008, que dispõe so-
bre o estabelecimento do Fundo Amazônia pelo Banco Nacional de Desenvolvimento Econô-
mico e Social – BNDES. A técnica de análise de conteúdo foi utilizada mediante a organização
da construção de uma ideia de plena operacionalização do assunto, através dos objetivos da
pesquisa, do conhecimento do campo teórico e prático, fundamentada na análise de da es-
trutura administrativa existente para a gestão dos recursos financeiros do Fundo Amazônia.
Com base na sistematização desse conhecimento, objetivou-se estabelecer uma proposta de
um modelo de gestão com base na Teoria da Ação Comunicativa (ou do Agir Comunicativo),
expondo a visão do Prof. Jürgen Habermas que no início do século XX buscava fundamen-
tar, para os interessados no processo, um dos pilares do Estado Democrático de Direito: o
diálogo democrático. Tais benefícios, que derivam da implantação de modelo gerencial mais
adequado, a ser efetivado por iniciativa de projeto de lei, foram analisados no que tange à
sua adequabilidade, praticabilidade e aceitabilidade, sendo que o estado do conhecimento
atingido a partir deste trabalho pode ser plenamente utilizado pela Administração Pública. 

Palavras-chave: Fundo Amazônia. Ação comunicativa. Gestão compartilhada. Diálogo de-


mocrático. Modelo gerencial.
556 Fabrício Motta | Emerson Gabardo - Coords.

Hércules, o gestor

Francisco Arlem de Queiroz Sousa


Mestrando em Direito (UFC)
Especialista em Direito Tributário e Finanças Públicas (IDP)
Advogado da União

O reconhecimento da força normativa das constituições surgiu no conjunto de trans-


formações promovidas pelo pós-positivismo, o qual buscou superar a dicotomia existente
entre o jusnaturalismo e o positivismo jurídico, reaproximando o direito da moral e reconhe-
cendo que princípios são normas, ao lado das regras. De meros axiomas jurídicos, os princí-
pios passaram a ocupar o topo da pirâmide normativa, espraiando-se por todos os ramos do
direito. De solução para o problema da discricionariedade dos juízes, eles se multiplicaram e
passaram a ser problema para uma solução, qual seja: a discricionariedade administrativa. O
controle jurisdicional por princípios passou a incidir sobre a formulação de políticas públicas
e na responsabilização de gestores. Com isso, gerou-se o apagão das canetas e os adminis-
tradores públicos, com medo de decidir, acreditam que se Hércules pedir exoneração da ma-
gistratura e tomar posse como gestor, dias melhores estão por vir. Contudo, não há deuses
nem demônios para ajudar no trato com a coisa pública. As soluções serão encontradas com
base no respeito mútuo entre os atores estatais e no diálogo constante entre as instituições
democráticas para que se consiga cumprir a árdua missão de promover a justiça, diminuir
as desigualdades sociais, formar cidadãos e garantir o bem de todos. O presente artigo se
propõe, com suporte em ampla pesquisa bibliográfica, a contribuir para o debate jurídico e
político nessa matéria, permitindo uma reflexão crítica em torno da problemática que pode
existir entre separação de poderes e princípios jurídicos.

Palavras-chave: Princípios constitucionais. Pós-positivismo. Discricionariedade. Única de-


cisão correta. Gestor público.
Desenvolvimento Nacional 557

Educação previdenciária como ação de inclusão


social: instrumento de política pública
da administração

Suzana Toshimi Furuia Tsukagoshi Gallinati Heim


Especialista em Contabilidade Gerencial (UFMS)
Graduanda em Direito (Unigran)

James Gallinati Heim


Doutor em Direito (PUCSP)
Professor adjunto (UFGD)

Neste trabalho oferecemos uma proposta da universidade pública e privada utilizando


os mecanismos do ensino, pesquisa e extensão para realizar a construção dos ideais repu-
blicanos fixados na constituição federal brasileira capaz transformar indivíduos em cidadãos,
a proposta utiliza o procedimento metodológico de execução de um projeto de extensão
que tem como previsão um período para ser executado, que será entre março a novembro
de 2020. No texto defende-se a tese de que a relação jurídico-administrativa no campo
previdenciário brasileiro exige uma análise das constituições brasileiras, que demonstra que
a previdência social baseia-se no binômio evento-proteção e tem como fundamento dar
conhecimento à população começando pelos adolescentes que cursam o ensino médio,
apresentando nos módulos do curso de extensão a existência de uma estrutura de direito e
administração pública como forma de garantir a defesa do direito fundamental da dignidade
da pessoa humana. A partir da construção de um referencial teórico de direito da informa-
ção previdenciária, configurado pelo Programa de Educação Previdenciária concebido pelo
Instituto Nacional do Seguro Social – INSS desenvolvido já há quase duas décadas em nível
nacional o como meio de aproximação entre os trabalhadores e os princípios fundamentais
da seguridade social temos a concepção de um conteúdo programático adequado ao público
alvo. Paralelamente, vamos expor a situação vivida pela nossa sociedade de uma realidade
política de inadequação da democracia representativa para as necessidades atuais do Estado
brasileiro que é evidente nos últimos tempos, com isso faz necessário se aproximar das
futuras gerações para despertar nelas uma perspectiva de cidadania através da democracia
participativa. Entretanto, evidencia-se cada vez mais a falta de conhecimento das instituições
jurídicas por parte dos jovens e adolescentes que em breve estarão nas universidades, po-
rém completamente despreparados para desempenhar seus papéis na sociedade brasileira.
Portanto, os resultados almejados pelo processo de interação dos acadêmicos da graduação
558 Fabrício Motta | Emerson Gabardo - Coords.

de direito através dos conteúdos ministrados para os alunos do ensino médio durante a
execução do projeto de extensão é dar um conhecimento sobre a origem e futuras perspec-
tivas da previdência social no Brasil. Exatamente neste momento histórico de debates no
Poder Legislativo da proposta da reforma do sistema previdenciário proposta de nosso Poder
Executivo federal apontada como essencial para a sobrevivência de nossa estrutura adminis-
trativa do Estado. Devemos concluir defendendo a ideia que somente através da educação
que iremos impulsionar o desenvolvimento do país e alcançar uma posição marcada pelo
progresso que irá gerar a sustentabilidade social e econômica para a sociedade brasileira.

Palavras-chave: Seguridade social. Previdência. Cidadania. Reforma. Inclusão social.


COORDENAÇÃO DO XXXIII CONGRESSO
BRASILEIRO DE DIREITO ADMINISTRATIVO

PRESIDÊNCIA DO CONGRESSO:
• Fabrício Motta (GO)

COMISSÃO ORGANIZADORA:
• Cristiana Fortini (MG)
• Emerson Gabardo (PR)
• Maurício Zockun (SP)
• Rodrigo Valgas dos Santos (SC)

COORDENAÇÃO EXECUTIVA:
• Ana Paula Martins Pereira de Assunção (MS)
• João Paulo Lacerda da Silva (MS)
• Jean Phierre da Silva Vargas (MS)
• José Cláudio Barbosa Silva (MS)
• Isadora Felix Mota (MS)
• Katia Silene Sarturi (MS)
• Robson Souza da Silva (MS)
• Vander José da Silva Jamberci (MS)
PROGRAMA DO XXXIII CONGRESSO BRASILEIRO DE
DIREITO ADMINISTRATIVO

XXXIII Congresso Brasileiro de Direito Administrativo

Desenvolvimento nacional:
por uma agenda propositiva e inclusiva
16 a 18 de outubro de 2019
Centro de Convenções de Campo Grande

PRIMEIRO DIA – 16 DE OUTUBRO

08h00 – CREDENCIAMENTO

09h00 – ABERTURA OFICIAL

• Fabrício Motta (GO)


Presidente do Instituto Brasileiro de Direito Administrativo – IBDA
• João Paulo Lacerda (MS)
Presidente do Instituto de Direito Administrativo de Mato Grosso do Sul –
IDAMS
Homenagem ao Professor Celso Antônio Bandeira de Mello (SP)
• Romeu Felipe Bacellar Filho (PR)
Lançamento do livro “Memórias do IBDA”
• Pedro Paulo de Almeida Dutra (MG)

09h30 – MESA ESPECIAL DE ABERTURA:


Presidência de Mesa: Regina Maria Macedo Nery Ferrari (PR)
Palestrantes:
A nova LINDB e o direito administrativo: o que esperar?
• Maria Sylvia Zanella Di Pietro (SP)
Parcerias sociais: dificuldades práticas na implementação da Lei 13.019/14
• Irene Patrícia Nohara (SP)
562 Fabrício Motta | Emerson Gabardo - Coords.

Contratualização das sanções administrativas


• Maria Fernanda Pires de Carvalho Pereira (MG)
Política urbana e atualidade do “direito à cidade”
• Lígia Maria Silva Melo de Casimiro (CE)

12h00 – Intervalo para o Almoço

14h00 – 1º PAINEL DE DEBATES: NOVAS TECNOLOGIAS - IMPACTO NA ADMINISTRAÇÃO


PÚBLICA E NO DIREITO ADMINISTRATIVO
Mediador: Bruno da Rocha Vieira Barbirato (AM)
Debatedores:
• Daniel Ferreira (PR)
• Marcos Nóbrega (PE)
• Vanice Lírio do Valle (RJ)

15h30 – Intervalo para Café e Lançamento de Livros

16h00 – 2º PAINEL DE DEBATES: PODER DE POLÍCIA ADMINISTRATIVA - EXCESSOS E


OMISSÕES NA TUTELA JURÍDICA DO MEIO AMBIENTE - DE MARIANA A BRUMA-
DINHO
Mediadora: Maria Cristina Cesar de Oliveira (PA)
Debatedores:
• Flávio Henrique Unes Pereira (DF)
• João Batista Gomes Moreira (DF)
• Raquel Melo Urbano de Carvalho (MG)

SEGUNDO DIA – 17 DE OUTUBRO

Programação Simultânea (3 salas)

08h30 às 10h00

SALA 1:
Organização e reforma administrativa: a legalidade e os limites dos decretos e
atos normativos
Mediador: Georges Louis Hage Humbert (BA)
Desenvolvimento Nacional 563

Debatedores:
• Carolina Muller Bitencourt (RS)
• Juscimar Pinto Ribeiro (GO)
• Sergio de Andréa Ferreira (RJ)

SALA 2:
Novos dilemas da tutela da probidade
Mediador: Marcelo Harger (SC)
Debatedores:
• Mateus Bertoncini (PR)
• Rogério Gesta Leal (RS)
• Vladimir da Rocha França (RN)

SALA 3:
Licitações: perspectivas do novo marco regulatório
Mediador: Jean Phierre da Silva Vargas (MS)
Debatedores:
• André Luiz Freire (SP)
• Edgar Guimarães (PR)
• Joel de Menezes Niebuhr (SC)

10h00 – Intervalo

10h30 às 12h00

SALA 1:
Terceirização e reforma trabalhista: os impactos na Administração
Mediador: Fernando Borges Mânica (PR)
Debatedores:
• Carolina Zancaner Zockun (SP)
• Clovis Beznos (SP)
• Luciani Carvalho (MS)

SALA 2:
Dilemas do regime jurídico das empresas estatais
Mediador: Bernardo Stroebel Guimarães (PR)
564 Fabrício Motta | Emerson Gabardo - Coords.

Debatedores:
• Luciano de Araújo Ferraz (MG)
• Rodrigo Pironti Aguirre de Castro (PR)
• Maurício Zockun (SP)

SALA 3:
Crise fiscal e eficácia do controle da Administração
Mediadora: Heloísa Monteiro Godinho (GO)
Debatedores:
• Cynara Monteiro Mariano (CE)
• José Sérgio Cristovam (SC)
• Júlio Marcelo Oliveira (DF)

12h00 – Intervalo para Almoço

14h00 – 3º PAINEL DE DEBATES: REFORMA DA PREVIDÊNCIA


Mediador: Flávio Garcia Cabral (MS)
Debatedores:
• Marcelo Siqueira Freitas (DF)
• Rodrigo Tenório (PE)

15h30 – Intervalo para Café e Lançamento de Livros

16h00 às 18h00 – PALESTRAS


Presidência de Mesa: Alexandre Bastos (MS)
Políticas públicas: novas perspectivas.
• Maria Paula Dallari Bucci (SP)
Direito Administrativo social e a promoção do desenvolvimento.
• Daniel Wunder Hachem (PR)
Reforma da Previdência: transição, lacunas de transição e insegurança jurídica.
• Paulo Modesto (BA)
Desenvolvimento Nacional 565

TERCEIRO DIA – 18 DE OUTUBRO

Programação Simultânea (3 salas)

08h30 às 10h00

SALA 1:
Os 20 anos da Lei 9.784/99: os próximos passos do processo administrativo
Mediador: André Saddy (RJ)
Debatedores:
• Eurico Bitencourt Neto (MG)
• Florivaldo Dutra de Araújo (MG)
• Weida Zancaner (SP)

SALA 2:
Prevenção e combate à corrupção: mudanças legislativas e os próximos passos
Mediador: Francisco Taveira Neto (GO)
Debatedores:
• Paulo Cezar dos Passos (MS)
• Paulo Motta (PR)
• Rodrigo Valgas dos Santos (SC)

SALA 3:
O futuro da contratação pública
Mediador: Jader Ferreira Guimarães (ES)
Debatedores:
• Cristiana Fortini (MG)
• Marçal Justen Filho (DF)
• Vera Monteiro (SP)

10h00 – Intervalo

10h30 às 12h00 – PALESTRAS


Presidência de Mesa: Fabíola Marquetti Sanches Rahim (MS)
Palestrantes:
Improbidade administrativa: reflexos das alterações da LINDB
• José dos Santos Carvalho Filho (RJ)
566 Fabrício Motta | Emerson Gabardo - Coords.

Reforma da Previdência
• Thiago Marrara (SP)
Legalidade, legalismo e legalistas
• Márcio Cammarosano (SP)

12h00 – Intervalo para almoço

14h00 – 4º PAINEL: DIREITO DA INFRAESTRUTURA: CONSTRUINDO VERDADEIRAS PAR-


CERIAS
Mediador: Salomão Ribas Júnior (SC)
Debatedores:
• Ministro Benjamin Zymler (DF)
• Carlos Ari Sundfeld (SP)
• Diogo Mac Cord de Faria (DF)

15h30 – PAINEL DE ENCERRAMENTO: DESENVOLVIMENTO NACIONAL: DEBATE ATUAL E


INTERDISCIPLINAR
Palestrantes:
• Eduardo Moreira (SP)
• Juarez Freitas (RS)

17h00 – ENTREGA DO PRÊMIO “CELSO ANTÔNIO BANDEIRA DE MELLO” DO CONCURSO


DE ARTIGOS JURÍDICOS, BEM COMO DOS PRÊMIOS DE “MENÇÃO HONROSA DO
IBDA” PARA OS MELHORES COMUNICADOS CIENTÍFICOS E PARA O MELHOR
RESUMO DO FÓRUM DE BOAS PRÁTICAS DE INOVAÇÃO EM GESTÃO PÚBLICA.

17h15 – MESA DE ENCERRAMENTO


Desenvolvimento Nacional 567

COMISSÕES DE AVALIAÇÃO DE TRABALHOS

COMISSÃO DA SESSÃO DE TESES E COMUNICADOS CIENTÍFICOS 01


Presidente da Comissão:
• Adriana da Costa Ricardo Schier (PR)
Membros:
• Lindomar Tiago Rodrigues (MS)
• Fernanda Valentini Fritoli (SP)

COMISSÃO DA SESSÃO DE TESES E COMUNICADOS CIENTÍFICOS 02


Presidente da Comissão:
• Saulo Coelho (GO)
Membros:
• Christianne Stroppa (SP)
• Flávia Cammarosano (SP)

COMISSÃO DA SESSÃO DE TESES E COMUNICADOS CIENTÍFICOS 03


Presidente da Comissão:
• Yara Stroppa (SP)
Membros:
• Márcia Walquíria Santos (SP)
• Roberto da Silva Pinheiro (MS)

COMISSÃO DA SESSÃO DE TESES E COMUNICADOS CIENTÍFICOS 04


Presidente da Comissão:
• Spiridon Anyfantis (GO)
Membros:
• Marcela Oliveira Santos (SP)
• Noemi Mendes Siqueira Ferrigolo (MS)

COMISSÃO DA SESSÃO DE TESES E COMUNICADOS CIENTÍFICOS 05


Presidente da Comissão:
• Gustavo Santiago Torrecilha Cancio (MS)
Membros:
• Emerson Moura (RJ)
• Rafael Amorim de Amorim (DF)
568 Fabrício Motta | Emerson Gabardo - Coords.

COMISSÃO DA SESSÃO DE APRESENTAÇÃO DE EXPERIÊNCIAS INOVADORAS EM GES-


TÃO PÚBLICA – FÓRUM DE BOAS PRÁTICAS
Presidente da Comissão:
• Raquel Dias da Silveira (PR)
Membros:
• Eduardo dos Santos Dionizio (MS)
• Rafael Arruda Oliveira (GO)

COMISSÃO DO CONCURSO DE ARTIGOS JURÍDICOS


PRÊMIO “CELSO ANTÔNIO BANDEIRA DE MELLO”
Presidente da Comissão:
• Dinorá Adelaide Musetti Grotti (SP)
Membros:
• Ana Cláudia Finger (PR)
• Kátia Silene Sarturi (MS)
• Júlio Cesar dos Santos Esteves (MG)
• Luciano Elias Reis (PR)
• Manoel Messias Peixinho (RJ)

PROPOSIÇÕES TEMÁTICAS – COORDENAÇÕES


Coordenador Geral das Proposições:
• Victor Amorim (DF)
Consensualidade, mediação e arbitragem
• César Augusto Guimarães Pereira (SP)
Controle da Administração Pública
• Heloísa Monteiro Godinho (GO)
Licitações e contratos
• José Anacleto Abduch Santos (PR)
Organização administrativa, parcerias sociais e terceiro setor
• Fernando Borges Mânica (PR)
Prevenção e combate à corrupção
• Cristiana Fortini (MG)
Profissionalização da função pública
• Raquel Dias da Silveira (PR)
Reforma da Previdência
• Paulo Modesto (BA)
Tutela da probidade administrativa
• Marcelo Harger (SC)

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