Vieira 1993

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O historicismo gramsciano e a

pesquisa em educação

Carlos Eduardo Vieira"

Introdução
O objetivo desse artigo é apresentar, resumidamente, os resul-
tados de um esforço de três anos de pesquisa sobre o processo de
apropriação do pensamento gramsciano pela pesquisa em educação
no Brasil. O resultado completo desse estudo se encontra na disser-
tação O Historicismo Gramsciano e a Pesquisa em Educação,
defendida na PUC-SP em março de 1994.
A influência do legado gramsciano, no âmbito do pensamento
acadêmico-educacional brasileiro, está delimitada nos últimos
quinze anos, entre 1979 e 1994. Os últimos anos da década de se-
tenta representam o marco inicial da interlocução da pesquisa edu-
cacional no Brasil com as idéias gramscianas, cabendo à década de
oitenta a consolidação desse esforço. Os anos noventa indicam uma
tendência de descenso dessa interlocução.
Discutir o processo de apropriação do pensamento gramsciano
pela pesquisa educacional possibilita, a meu ver, introduzir alguns
pontos para a reflexão sobre as várias leituras do seu legado teórico
e, em particular, sobre os problemas que cercam a questão do his-
toricismo na sua obra. Além da oportunidade de discutir Gramsci,
essa polêmica nos permite trazer à tona uma série de questões per-
tinentes ao debate mais amplo da produção científica na área edu-
cacional no Brasil.

* Professor da Universidade Federal do Paraná, Setor de Educação,


Departamento de Métodos e Técnicas da Educação.

PERSPECTIVA. Florianópolis, UFSC/CED, NUP, n.20, p.31-51.


32 • Carlos Eduardo Vieira

A tradução e a publicação da obra gramsciana no Brasil na


década de sessenta antecedeu o período de endurecimento do regi-
me militar, porém estava longe de representar um sucesso editorial.
Somente a partir de meados dos anos setenta a procura se intensifi-
cou e, em curto espaço de tempo, a sua obra se tornou uma leitura
obrigatória em todos os cursos da área de ciências humanas. As
suas principais categorias se tornaram rotineiras no jargão acadê-
mico e político brasileiro, ainda que nem sempre compreendidas
adequadamente.
A influência do pensamento gramsciano sobre a pesquisa edu-
cacional no Brasil não é um fato difícil de ser percebido, bastando
uma rápida busca nas referências bibliográficas das teses e disser-
tações dos últimos quinze anos para encontramos a evidência em-
pírica desse fenômeno. Segundo Paolo Nosella, "nesta última dé-
cada, cerca de um terço das dissertações ou teses da área acadê-
mico-educacional cita o nome de Antonio Gramsci" (NOSELLA,
1992, p.4).
A aproximação com essas idéias ocorreu de maneira diferen-
ciada entre os pesquisadores e centros de pesquisa do país; no en-
tanto, é indiscutível a ressonância dessas discussões no cenário
acadêmico e político brasileiro. A presença do legado gramsciano
no debate acadêmico na década de oitenta é um fenômeno de gran-
de proporção, a ponto de Marco Aurélio Nogueira afirmar que o
"gramscismo veio à luz do dia com a força de um vulcão. Todos, de
uma ou outra forma, tornaram-se 'gramscianos"' (NOGUEIRA,
1988, p.130).
No que diz respeito especificamente à pesquisa educacional, é
preciso destacar três aspectos fundamentais. Em primeiro lugar,
asseverar que Gramsci é um autor que permeia a pesquisa educaci-
onal dentro de um processo mais amplo de aproximação dos pes-
quisadores brasileiros com o materialismo histórico. Ainda que
Gramsci, pela características próprias da sua produção, represente
uma expressão particular desse movimento — a ponto de muitos se
considerarem gramscianos antes de se considerarem marxistas, ou
mesmo, sem nunca se considerarem marxistas.
O segundo aspecto a ser ressaltado é a
... singularidade da incorporação do pensamento de Gramsci
na área educacional que, ao contrário de outros teóricos, não
O historicismo gramsciano e a pesquisa em educação • 33

sofreu mediações prevalentes de outras áreas do conhecimen-


to. Gramsci é apropriado pela pesquisa em educação de ma-
neira simultânea, ou mesmo antecipada, a outras á.reas de
mais tradição de pesquisa no pais que, historicamente, servi-
ram de mediadoras dos aportes teóricos para a área acadêmi-
co-educacional, sobretudo a psicologia e a sociologia.
(VIEIRA, 1994, p.5)

O último ponto se refere aos antecedentes teóricos do boom


gramsciano dos anos oitenta, ou seja, a presença dos teóricos estru-
turalistas, entre os quais destaco Passeron, Bourdieu e, em especial,
o filósofo francês Louis Althusser.
O contexto sócio-político do Brasil dos anos setenta e oitenta
pode nos ajudar a explicar parcialmente a aproximação com as
idéias gi-amscianas. Não obstante, para apreender a forma como o
seu pensamento foi assimilado pela pesquisa educacional, é neces-
sário a focalização de aspectos mais complexos e historicamente
mais distantes da conjuntura política e econômica dos anos setenta
e oitenta.
Não pretendo realizar nesse espaço uma análise histórico-
epistemológica da pesquisa educacional, mas sim discutir alguns
pontos sobre a relação entre história e lógica no âmbito da teoria do
conhecimento. A referência para essa discussão é, obviamente, a
produção gramsciana, em particular a sua concepção do marxismo
como um historicismo absoluto.
A posição do teórico sardo sobre os problemas do historicis-
mo foi ignorada pelo pensamento acadêmico-educacional na déca-
da de oitenta, proporcionando, a meu ver, uma apropriação do seu
legado que se opõe radicalmente à sua proposição metodológica
historicista.
Gramsci foi incorporado a partir de uma visão formalista da
história e suas categorias passaram a ser manipuladas ao sabor dos
mais variados projetos intelectuais. O flerte descompromissado
com as suas idéias transformou o seu pensamento vivo em modelo
abstrato e aplicável universalmente.
Ao longo desse texto denominarei essa maneira formalista de
compreensão do legado gramsciano de logicismo. O logicismo é o
"sistema fechado dentro do qual os conceitos circulam intermina-
velmente, reconhecem-se e interrogam-se mutuamente, e a intensi-
34. Carlos Eduardo Vieira

dade de sua repetitiva vida introversiva é erroneamente tomada


por urna ciência" (THOMPSON, 1981, p.21).
O processo de adesão do pensamento acadêmico-educacional
ao estruturalismo nos anos setenta, passando pela crítica, e pela apro-
ximação com o pensamento gramsciano nos anos oitenta, tem em
comum essa proposição metodológica logicista. Ainda que o es-
truturalismo permita, ou mesmo fomente, esse tipo de compreensão
abstrata da realidade histórica, o pensamento gramsciano tem no seu
núcleo metodológico uma proposição radicalmente diferente.
A aproximação da pesquisa educacional com o materialismo
histórico na década de oitenta propiciou um esforço mais consisten-
te de compreensão das matrizes epistemológicas nas ciências soci-
ais. As questões do método e, em particular do método dialético
ocuparam um espaço significativo nos estudos realizados nesse
período, quase sempre transformados em capítulo introdutório nas
dissertações e teses. Todavia, apesar dessa preocupação metodoló-
gica intensa — ainda que na sua maior parte restrita a cansativos
exercícios abstratos e, sobretudo, inócuos em relação ao tratamento
do objeto de pesquisa- a questão do historicismo, pressuposto me-
todológico central da obra gramsciana, não provocou nenhuma
investigação de fôlego por parte da pesquisa educacional.
O historicismo de Gramsci, reclamado insistentemente ao
longo da sua obra, significa um esforço do pensador italiano de
crítica às vertentes do racionalismo abstrato que, na sua época,
apresentavam-se na prevalente visão economicista dos marxistas e,
também, na obra do filósofo italiano Benedetto Croce.

Alguns comentários sobre o historicismo absoluto


gramsciano
A formação teórica do pensador e dirigente comunista italiano
sempre foi motivo de profundas controvérsias dentro e fora da tra-
dição marxista. Entre os pontos mais polêmicos está a influência
sobre o seu pensamento do filósofo idealista italiano Benedetto
Croce. Parcela considerável dessa discussão tem sua explicação na
profunda disputa política que se dá em torno do legado gramsciano:
de um lado os herdeiros políticos de Gramsci, que buscavam
descaracterizar a influência de Croce e vincular o seu pensa-
O historicismo gramsciano e a pesquisa em educação • 35

mento a Marx e sobretudo a Lênin; e no outro pólo um conjun-


to de intelectuais vinculados ou não a perspectivas partidárias,
que consideram sua produção a continuação da vigorosa tradi-
ção italiana do idealismo, que pouco absorveu de Marx e se
constituiu na antítese direta de Lênin.
(VIEIRA, 1994, 103)1
O ponto de tensão dessas discussões é, quase sempre, a po-
lêmica entre idealismo e materialismo. A rigor, a tradição marxista
demonstrou, historicamente, dificuldades em superar as simplifica-
ções que permeiam essa equívoca dualidade entre subjetividade e
objetividade, representando, em determinados momentos da histó-
ria do pensamento contemporâneo, os próprios animadores desse
tipo de enfoque simplificador.
Gramsci, no intento de analisar a assimilação do marxismo na
Itália, afirmava que a interlocução com o materialismo histórico
ocorreu pela iniciativa de dois grupos distintos de intelectuais: os
intelectuais puros, expressão gramsciana para denominar a escola
idealista italiana, e os intelectuais ligados às tarefas de organização
do movimento socialista na península.
Os primeiros, segundo Gramsci, desnaturaram o núcleo políti-
co-revolucionário do pensamento marxiano, para se apropriarem da
riqueza do historicismo que permeava a concepção e, assim, supe-
rar o especulativismo abstrato inerente à tradição clássica do idea-
lismo. Benedetto Croce liderou esse grupo que incorporou a filo-
sofia da práxis "a fim de fortalecer as suas concepções e atenuar o
decrépito filosofismo especulativo com o realismo historicista da
nova teoria" (GRAMSCI, 1978, p.101).
Enquanto Croce e Gentile se empenhavam nas polêmicas so-
bre a cultura, a moral, a história, os intelectuais vinculados ao mo-
vimento operário italiano se limitavam à compreensão do marxis-
mo como um conjunto de preceitos ou leis de evolução do modo de
produção capitalista que, invariavelmente, conduziam a conclusões
de um determinismo grosseiro. A pretexto de afirmar o materialis-

1 Uma das obras que se insere nessa problemática da formação teórica


gramsciana que, sem dúvida, gerou inúmeras polêmicas dentro e fora
da Itália é O Conceito de Sociedade Civil, de Norberto Bobbio.
36 • Carlos Eduardo Vieira

mo e a cientificidade da nova concepção, os herdeiros do marxismo


atribuíam ao processo histórico um papel meramente reflexo dos
movimentos infra-estruturais do modo de produção capitalista. As
leis econômicas são apresentadas como engendradoras da evolução
natural do capitalismo para o socialismO.
Gramsci acaba por justificar esse materialismo vulgar e esse
cientificismo simplificador, presentes na visão dos quadros socia-
listas, como uma representação provisória das idéias revolucionári-
as, própria do momento de implementação prático-política da con-
cepção de mundo socialista, que enfrenta no âmbito do senso-
comum das massas trabalhadoras a secular percepção teológico-
mágica da realidade. Segundo Gramsci, na história
... da cultura, que é muito mais ampla do que a história da filo-
sofia, todas as vezes que a cultura popular aflorou, porque se
atravessava uma fase de transformação e da ganga popular se
selecionava o metal de uma nova classe, ocorreu um floreci-
mento do 'materialismo'; ao contrário, no mesmo momento, as
Classes tradicionais abraçavam o espiritualismo.

(GRAMSCI, 1978, p.107)

Quanto aos intelectuais puros, a principal virtude foi compre-


ender as limitações do neo-hegelianismo italiano, ao mesmo tempo
que perceberam e denunciaram a redução naturalista do fenômeno
sócio-histórico operada pelos seus contemporâneos marxistas, que
se somavam a outras versões do cientificismo reinante na Europa
daquele período, entre as quais se destacavam os darwinistas, os
spencerianos e, principalmente, os positivistas.
Os marxistas da II Internacional, os positivistas e os spenceri-
anos, guardadas suas profundas diferenças, emprestam do modelo
metodológico físico-naturalista as bases conceituais para operar a
análise dos fenômenos sócio-históricos. O modelo físico-naturalis-
ta, extremamente eficaz no plano da natureza, quando aplicado ao
plano histórico e/ou sociológico da realidade não obtém resultados
cientificamente sólidos, pois aborda um tipo específico de fenôme-
no que não se reduz a relações de causa e efeito2

2 Sobre os fenômenos físico-naturais, há nessa passagem uma flagrante


redução da sua complexidade; todavia, o objetivo perseguido não é
O historicismo gramsciano e a pesquisa em educação e

Croce e, antes dele, Labriola sustentam uma posição totalmen-


te diversa dessa interpretação da ciência social e histórica. Para
Croce, identificar o princípio de causação de um determinado fe-
nômeno sócio-histórico não implica na descoberta de uma lei de
desenvolvimento, pois na diimensão da ciência histórica a noção de
experióncia não se assemellha à realizada nas condições de testa-
gem de hipótese, de controle de variáveis, assim como nos ambien-
tes laboratoriais. A idéia do historiador que diagnostica as causas
dos fenômenos históricos ,e, por conseguinte, prevê os efeitos e
prescreve os tratamentos que possibilitam a intervenção antecipada
sobre o devir é totalmente recusada na obra croceana (cf.CROCE,
1962, p.156).
Croce também critica a imagem do historiador como um
compilador de fatos que se exime dos julgamentos de valor, até
porque a eleição do que é fato já se constitui num julgamento. A
historiografia não é a imagem frígida do vivido, bem como "a his-
tória não é pensável num ponto arquimediano fora do mundo, por-
que, bem ao contrário, somente no mundo, entre os contrastes do
mundo, nasce a necessidade dela, e, com a necessidade, a investi-
gação e a inteligência" (CROCE, 1962, p.86).
Croce, no âmbito da crítica historiográfica, elegeu três verten-
tes metodológicas para sua polêmica: a historiografia diplomática,
a historiografia filológica ou erudita e a historiografia positivista
ou sociológica. As três concepções, ressalvadas as diferenças, têm
em comum: 1°) preconizam desvencilhar a história da filosofia,
prescindindo dos julgamentos axiológicos; 2°) priorização dos da-
dos empíricos; 3°) construir relações de causalidade entre os fatos
históricos. Embora essa última característica só esteja plenamente
desenvolvida na historiografia positivista, as outras vertentes não
negavam essa possibilidade (cf. CROCE, 1953, p.239)3.

simplificar a sua natureza, mas sim demonstrar as características dife-


renciadas da epistemologia que trata dos fenômenos sócio-históricos
em relação à epistemologia que aborda a dimensão físico-natural da
ciência. Sobre a questão da complexidade epistemológica no plano fí-
sico-naturalista, em especial na química e na física moderna, ver Gas-
ton Bachelard, A epistemologia não cartesiana, In: O novo espírito ci-
entífico, e/ou A epistemologia.
3 No âmbito da classificação croceana, o marxismo está situado na ver-
38 • Carlos Eduardo Vieira

No contraponto dessas vertentes historiográficas está, segundo


Croce, a filosofia da história. No ponto de vista dos filósofos da
história, a historiografia não está desvinculada da filosofia mas,
pelo contrário, está subordinada ao movimento espiritual, represen-
tando, tão somente, uma expressão menor do devir da idéia racio-
nalizadora.
Entre os principais interlocutores de Croce, no plano das dis-
cussões sobre o método histórico, estão Kant, Fichte, Schelling e
Hegel, representantes da filosofia da história, enquanto na perspec-
tiva da tradição historiográfica se destacam Ranke, Droysen, Sim-
mel e Dilthey, além do marxista italiano Antonio Labriola.
A discussão com esses interlocutores possibilita a Croce im-
postar o seu objetivo estratégico, no âmbito da discussão sobre a
metodologia da historiografia, de pleitear a unidade metodológica
entre história e filosofia. A concepção croceana se opõe à historio-
grafia pura, que busca em vão se desvencilhar da subjetividade
filosófica, ainda que não adira à solução pleiteada pelos filósofos
da história, que adjudicam à história um papel secundário, confor-
mado e obediente aos desígnios do projeto racional.
A historiografia pura, que pretende alcançar o status da cien-
tificidade negando a filosofia e a axiologia, representa uma reação
ao subjetivismo e ao especulativismo da filosofia da história. Não
obstante, segundo Croce, ambas as posições são prisioneiras de
uma mesma crença racionalista, pois a história é conduzida, na
perspectiva da historiografia pura e da filosofia da história, ao sa-
bor de um projeto mental que se justifica na determinidade das leis
naturais-econômicas ou do espírito autoconsciente.
Em outros termos, o conceito de causa na ciência histórica,
compartilhado pelas vertentes historiográficas, é tão abstrato
quanto o conceito defini, próprio da filosofia da história. Para Cro-
ce "la transcendencia es siempre transcendencia, sea que se la
piense como la de un Dios o de una Razón, o como la de una Na-
turaleza o de una Materia" (CROCE, 1953, p.245).

tente sociológica da história que, apesar de interesses políticos dife-


renciados, aproxima-se muito do positivismo clássico. Sobre essa
aproximação, ver Marxismo e positivismo no pensamento da Segunda
Internacional, In: Michael Ltiwy, As aventuras de Karl Man( contra o
Barão de Münchhausen.
O historicismo gramsciano e a pesquisa em educação • 39

A crítica contundente ao racionalismo das vertentes historio-


gráficas, bem como da filosofia da história, não faz de Croce um
irracionalista, pois a cientificidade, a lógica do processo histórico é
uma questão
... indubitável, porquanto, se a lógica está no homem, está
também na história e, se o pensamento humano pensa esta,
pensa-a como foi visto, logicamente. Mas a palavra "lógica", na
sobredita sentença, significa coisa bem diferente da
"logicidade", um plano ou programa segundo o qual a história
se iniciaria, desenvolveria e terminaria, cabendo ao historiador
encontrar, por sob fatos aparentes, a oculta matriz desses fa-
tos, sua última e verdadeira interpretação

(CROCE, 1962, p.23)


O marxismo, segundo Croce, é uma concepção de mundo que
realiza a subordinação do processo histórico real ao projeto lógico,
isto é, ao determinismo das chamadas leis econômicas. O econo-
micismo marxista não passa de uma artimanha racionalista que
toma os sujeitos históricos concretos como "fantoches puxados por
um fio ou acionados por certa mola" (CROCE, 1962, p.17).
Como representante dileto dessa visão racionalista, o marxis-
mo reduz a história ao hedonismo do pomo oeconomicus, enquan-
to que o historicismo leva em conta "toda história, da ação e do
pensamento não menos que da literatura e da arte" (CROCE,
1962, p.260). O historicismo representa a crítica radical ao logicis-
mo racionalista, ou melhor,
... é a antítese e a síntese do raciona1lismo, que nega os
desmandos apriorísticos da lógica, para apreendê-la na sua
configuração concreta, isto é, histórica. O historicismo na con-
cepção de Croce é a incorporação à história do método filosó-
fico, que liberta a história do empirismo, ao mesmo tempo que
dá concretude à abstração filosófica.4

4 No limite da reflexão croceana, o autor vai pleitear a contemporaneida-


de de toda história, uma vez que esta é sempre um apelo para o nosso
presente, para as necessidades da ação prática (cf. CROCE,1962,
p.13-14). Sobre a crítica da concepção de história croceana, ver His-
tória e verdade, de Adam Schaff.
40 • Carlos Eduardo Vieira

(VIEIRA, 1994, p.133)

O historicismo na perspectiva croceana se constitui na supera-


ção dialética da filosofia da história e da historiografia pura, à me-
dida que,
... assim como a verdade moderna foi se libertando cada vez
mais dos vínculos da transcendência grega e da medieval, a.
teoria moderna da lógica buscou a filosofia no céu e nos cimos
em que ela se dedicava à estéril contemplação das idéias, e a
convidou e forçou a baixar à terra; ao mesmo tempo, com esse
ato, libertou a história do baixo ofício de compiladora de anedo-
tas, de cronistas do que acontece, e a elevou ao céu ou aos
cimos das idéias, fazendo-a encontrar, em meio do caminho, a
filosofia, abraçando-se e fundindo-se ambas numa nova pes-
soa mental.
(CROCE, 1962, p.254)

A origem dessa interpretação historicista, Croce reputa a Hegel, orga-


nizador de um sistema filosófico que "concedeu em interpretar a realida-
de como historicidade" (CROCE, 1962, p.42), bem como a alguns histori-
adores da escola historiográfica alemã, discípulos de Ranke, entre os quais
ele destacava Simmel, Meineker e Dilthey5
O objetivo desse desenho esquemático da problemática do historicismo
na concepção croceana do método histórico é introduzir a discussão da
formação historicista gramsciana, à medida que não consta das obras de
Gramsci uma interlocução direta com a tradição clássica do historicismo,
na versão do romantismo alemão de Schlegel, Schleiermacher, Adan
Müller, Sybel, ou mesmo, na tradição moderna do historicismo de Ranke,
Simmel, Diltley e Mannheim. Sendo assim, mostra-se correta a afirmação
de Angelo Broccoli sobre a formação historicista gramsciana: "la infor-
mación de Gramsci respecto de la tradición historicista resulta aproxima-
tiva, mientras que, por el contrario, los puntos de referencia que establece
con aquella tradición a través del debate con Croce resultan suficiente-
mente precisos (BROCCOLI, 1977, p.243).

5 Sobre Simmel e Dilthey, Croce reconhece o esforço de superação da


pretensa neutralidade da historiografia rankeniana, não obstante dis-
corde das soluções encontradas por esses autores para as questões
do historicismo (cf. VIEIRA, 1994, p.131).
O historicismo gramsciano e a pesquisa em educação • 41

O estudo dedicado das polêmicas croceanas contra o raciona-


lismo economicista permite ao jovem socialista sardo uma prepara-
ção sólida para o debate com as posições hegemônicas no interior
do PSI. O jovem militante, desde a sua adesão ao partido, manteve-
se em uma posição política diferenciada das correntes maximalistas
e reformistas que dirigiam a organização socialista. O grupo ordi-
novista — que Gramsci liderou no interior do PSI e, posteriormen-
te, no PCI- tem sua trajetória de crítica cultural e política marcada
pela recusa da visão fatalista do processo revolucionário, que con-
cebia o socialismo como uma realização das leis naturais do desen-
volvimento histórico6.
A influência de Croce possibilitou a Gramsci amadurecer
"também na valorização crítica do próprio idealismo" (NO-
SELLA, 1992, p.l 12), rompendo com a efêmera dicotomia entre
materialismo e idealismo. Obviamente, Croce não é a única influ-
ência sobre Gramsci, porém é interessante ressaltar que a interlo-
cução com Croce não faz parte de um período voluntarista do jo-
vem Gramsci. Marx, Lênin e Engels são referência fundamentais
para compreensão da obra gramsciana, em especial os dois primei-
ros, contudo a aproximação com estes não ocorre na dispensa do
pensamento croceano.
Na formação do pensamento gramsciano a "herança croceana
não se configura em um estigma que de todas as maneiras deve ser
recusada, sob pena de contaminação idealista"(VIEIRA, 1994,
p.227), da mesma forma que não se trata de justificar a fertilidade
de Gramsci, atestando o alinhamento do seu pensamento com o de
Marx e Lênin, assim como se utiliza o "fio de prumo para medir o
alinhamento de uma parede" (BOBBIO, 1987, p.11).
A engenhosidade da reflexão gramsciana está na revalorização
da luta cultural, da subjetividade, do papel dos intelectuais e, sobre-
maneira, da necessidade política do proletariado intervir na "elabo-
ração superior da estrutura em superestrutura na consciência dos
homens. Isto significa, também, a passagem do 'objetivo ao subje-
tivo' e da 'necessidade à liberdade — (GRAMSCI, 1978, p.53).
O programa croceano de crítica historicista ao racionalismo,

6 A expressão ordinovista se refere à Revista L'Ordine Nuovo, que


Gramsci, Togliatti, entre outros, fundaram e dirigiram.
42 • Carlos Eduardo Vieira

imanente às correntes historiográficas e à filosofia da história, é


incorporado por Gramsci. Ainda que, ao apreender a crítica ao ra-
cionalismo abstrato, que impõe o projeto lógico como demiurgo do
processo histórico real, Gramsci inclui o croceanismo como uma
das expressões mais hábeis desse racionalismo logicista.
A crítica ao pensamento croceano, realizada por Gramsci ao
longo da sua obra carcerária, não ocorre pela via da impugnação do
historicismo, assim como pretendeu Althusser e consortes, mas sim
pela demonstração da incapacidade de Croce levar a termo a sua
proposição metodológica historicista. Segundo Gramsci, "a dialéti-
ca croceana é um artifício de tipo racionalista, que ao pensar o
movimento dialético antecipa a priori os elementos da tese que
serão preservados na síntese; na expressão de Gramsci, é uma
`astúcia da Providência' (VIEIRA, 1994, p.67).
A história para Croce é um terreno onde "há regras
pré-determinadas e seguidas de comum acordo pelos opositores
históricos, ou seja, ele aceita a dialética desde que seja preservado
o Estado liberal como terreno de conflito entre a antítese e a tese"
(VIEIRA, 1994, p.201). Croce, embora tenha realizado uma con-
tundente crítica ao logicismo racionalista, acaba manifestando uma
concepção de história — habilmente mascarada — de história
como desígnio (GRAMSCI, 1978, p.252).
O projeto teórico-político gramsciano estabeleceu uma discus-
são em duas frentes: o economicismo marxista e o idealismo cro-
ceano. Norberto Bobbio compara essa disputa em duas frentes dis-
tintas, isto é, Bukharin e Croce, com a polêmica de Marx e Engels
com o idealismo hegeliano, concomitante com a crítica ao materia-
lismo vulgar de Feuerbach; embora Gramsci não traduza Croce
como um novo Hegel, mas, precisamente, como um Sr. Dühring
(cf. BOBBIO, 1987, p.69-72)7.
A presença dessa crítica ao logicismo, na formação teórica do
jovem Gramsci, não se limita aos textos croceanos, porquanto na
obra marxiana o jovem socialista sardo encontrou, assim como
Croce havia encontrado, a acesa polêmica do jovem Marx com a
tradição neo-hegeliana dos chamados Livres de Berlim, entre os

7 Eugen Dühring, filósofo e economista, professor da Universidade de


Berlim.
O historicismo gramsciano e a pesquisa em educação • 43

quais Edgar Bauer e Kaspar Schimidt, bem como a enérgica oposi-


ção ao pensamento dialético de Proudhon8.
A contribuição gramsciana, no âmbito das discussões metodo-
lógicas do marxismo, está na recuperação da centralidade da histó-
ria no projeto teórico-político marxiano e, sobremaneira, no esfor-
ço de compreendê-la como possibilidade de superação de todo
formalismo racionalista. A história é o momento de identificação
entre estrutura econômica e superestrutura ideológica, onde "o ser
não pode ser separado do pensar, o homem da natureza, a ativida-
de da matéria, o sujeito do objeto; se se faz esta separação, cai-se
em uma das muitas formas de religião ou na abstração sem senti-
do" (GRAMSCI, 1978, p.70, grifo nosso). Isto significa dizer que
não somente o homem é produto da sua história, das suas relações
sociais, como também a lógica que pleiteia esse paradigma é im-
pensável fora da história.
Nesse sentido, as categorias gramscianas, tais como sociedade
civil, bloco histórico, hegemonia, catarse, intelectuais orgânicos,
entre outras, devem ser compreendidas como um instrumental lógi-
co que se apropria da historicidade engendradora do rea1 8 . As ca-
tegorias do pensamento gramsciano são o resultado dessa tenacida-
de historicista, que procura na história o princípio unitário do ser
social. Segundo Gramsci,
... os continuadores de Hegel destruíram esta unidade, retor-
nando-se, por um lado aos sistemas materialistas e, por outro,
aos sistemas espiritualistas. A filosofia da praxis, em seu fun-
dador, reviu toda essa experiência — de hegelianismo, de
feuerbachismo, de materialismo francês — a fim de reconstruir
a síntese da unidade dialética: 'o homem que caminha sobre
as pernas'

8 As referências ao jovem Marx e ao jovem Gramsci têm como objetivo,


simplesmente, identificar um momento cronológico da obra desses au-
tores.
9 Sobre esse ponto é preciso afirmar que Gramsci não compreende o
objeto teórico como imagem fiel do objeto real, assim como Althusser
interpretou na sua crítica ao historicismo gramsciano (cf. ALTHUSSER,
1977, p.257). O autor dos Cadernos do Cárcere indica o permanente
movimento entre o "concreto figurado (conceito) e o concreto (realidade
in fiere)" (SOARES, 1992, p.35).
44 • Carlos Eduardo Vieira

(GRAMSCI, 1978, p.107).

O pensamento logicista se descola da realidade e constitui um


universo abstrato, resultado do automovimento da razão, que de
forma enganosa é apresentado como história e/ou processo históri-
co. Marx e Engels, ao escreverem a Ideologia Alemã, afirmaram
que muitos intelectuais e pensadores "ao ouvirem as palavras
'história ' e 'histórico', terem o hábito de pensar em todas as coi-
sas possíveis e imagináveis menos na realidade" (MARX &
ENGELS, s.d, p.33). Marx é um teórico que assume efetivamente a
crítica ao racionalismo e defende a centralidade da história no de-
bate com Hegel e, posteriormente, com o neo-hegelianismo. Marx
é o fundador de uma concepção de mundo radicalmente
"historicista da realidade, que se libertou de todo o resíduo de
transcendência" (GRAMSCI, 1978, p.221); o marxismo é um
"historicismo absoluto, a mundanização e a terrenalidade absoluta
do pensamento" (GRAMSCI, 1978, p.189).
A apropriação do legado gramsciano que ignora essa perspec-
tiva de radical historicismo, reduz o seu pensamento a conceitos e
categorias lógicas que acabam por 'funcionar como 'meio' para o
estabelecimento de um descompromissado flerte com o marxismo e
por emprestar autoridade a idéias as mais estranhas" (NOGUEI-
RA, 1988, p.131).
A área educacional é um dos exemplos desse movimento de
assimilação do pensamento gramsciano por uma via que Gramsci
dedicou a sua vida e a sua obra para criticar: ou seja, uma via for-
malista que adere somente à estrutura lógica do sistema teórico,
tomando as categorias nas suas expressões lógico-abstratas como
se essas contivessem em si a chave explicativa de toda a história.
A polêmica contra o logicismo racionalista presente na obra
de Marx e Gramsci não sensibilizou nossas discussões sobre o
método dialético. Na melhor das hipóteses conseguimos identificar
a questão na obra desses autores, ainda que a resultante concreta
dessa identificação não ultrapasse o compromisso formal com a
intenção de historicizar a teoria. Sintomaticamente, as categorias
gramscianas, ao longo do processo de assimilação do seu legado
teórico pela pesquisa educacional, "tornaram-se onicompreensivas
de tudo e de todos. Os limites das categorias e a análise concreta
de situação concreta foram sacrificados em favor de esquematiza-
O historicismo gramsciano e a pesquisa em educação • 45

ções áridas, todas repletas de catarses, hegemonias e emergentes


blocos históricos" (VIEIRA, 1994, p.229).

O logicismo e a pesquisa educaciona110
A crítica ao historicismo é postulada por autores das mais va-
riadas correntes do pensamento contemporâneo, entre os quais
Popper, Althusser, Benjamin, entre outros. O significado, os obje-
tivos e os interlocutores desses autores são totalmente diferentes; o
próprio conceito de historicismo se modifica muito na obra de cada
um desses pensadores. Por conseguinte, falar sobre o historicismo
em geral é sempre bastante complicado" .
A discussão sobre o historicismo, especificamente o gramsci-
ano, tem na obra de Althusser uma referência bastante precisa. O
filósofo francês, que obteve grande influência sobre a área acadê-
mico educacional no Brasil, na década de setenta, escreveu um
texto denominado O marxismo não é um historicismo, em polêmi-
ca direta com a proposição gramsciana do marxismo entendido
como um historicismo absoluto.
Althusser considera que a reação ao economicismo no interior
da tradição marxista levou muitos pensadores a um movimento
pendular de crítica, ou seja, uma retomada do subjetivismo idealis-
ta expresso no humanismo e no historicismo. Dai todos os marxis-
tas, que buscaram retomar a discussão da subjetividade e da histo-
ricidade no pensamento marxiano, acabaram classificados pelo
filósofo francês como membros de uma esquerda historicista, entre
os quais ele destaca Korsch, Rosa de Luxemburg, Mehring, Lukács

10 No espaço desse artigo não realizarei uma polêmica direta com qual-
quer pesquisador da área educacional, pois isso demandaria um espa-
ço que não disponho. Portanto, finalizarei a discussão problematizando
a questão do logicismo. Ao longo do trabalho que deu origem a esse
artigo, O Historicismo Gramsciano e a Pesquisa em Educação, a
discussão , no âmbito da pesquisa educacional, elegeu quatro interlo-
cutores principais: Dermeval Saviani, Paolo Nosella, Jamil Cury e Luci-
lia Machado (cf. VIEIRA, 1994, p.25-100 ).
11 Sobre a critica popperiana ao historicismo, ver A Miséria do histori-
cismo; quanto a Benjamim, ver Sobre o conceito da história. In:
Walter Benjamin, Obras escolhidas, v.1.
46 • Carlos Eduardo Vieira

e Gramsci (cf. ALTHUSSER, 1977, p.245-6).


Althusser reconhece a possibilidade das leituras historicistas e
humanistas de Marx, porquanto a obra marxiana é produto de uma
época em que a terminologia idealista permeava toda produção
intelectual. Marx, apesar de inaugurar um novo continente científi-
co, manteve-se prisioneiro dessa linguagem. Nesse sentido, Althus-
ser assevera que somente uma nova leitura crítica e objetiva dos
textos marxianos será capaz de desvincular o corpo científico cate-
gorial marxiano do universo semântico hegeliano (ALTHUSSER,
1977, p.245).
O projeto althusseriano — de elaborar uma teoria do Estado
capitalista, em continuidade aos esforços teóricos realizados por
Marx, Engels e Lênin (cf. ALTHUSSER, 1983, p.65-7) — é susten-
tado por uma concepção extremamente formal do processo históri-
co, pois, na busca dos elementos que promovem a estabilidade da
estrutura social, a história aparece como uma singularidade incô-
moda, por vezes desagregadora da harmonia interna da lógica es-
trutural.
A edificação das categorias althusserianas é o resultado de um
processo longo de decantação teórica, que intenciona purificar o
conceito até a sua plena consistência lógico-heurística. A ideologia,
tema profundamente estudado por Althusser, é uma dessas catego-
rias que se verifica no plano estatal e que "tem unia estrutura e um
funcionamento tais que fazem dela uma realidade não histórica,
isto é, omni-histórica, no sentido em que esta estrutura e este fun-
cionamento se apresentam na mesma forma imutável em toda a
história" (ALTHUSSER, 1983, p.84)
Ora, se no plano lógico essas idéias são muito atraentes, no
plano histórico a questão é mais complicada. A análise estrutural
nos permite apreender os fenômenos de regularidade da dinâmica
estatal em um plano abstrato e, portanto, amplamente generalizá-
vel. No entanto, Marx considerava que "as categorias mais abstra-
tas — precisamente por causa de sua natureza abstrata-, apesar de
sua validade para todas as épocas, são, contudo, na determinidade
dessa abstração, igualmente produto de condições históricas, e
não possuem plena validez senão para essas condições e dentro
dos limites destas" (MARX, 1982, p.17, grifo nosso).
A ideologia burguesa não se constitui no âmbito da sua reali-
zação histórica em uma estrutura a-temporal, estável, homogênea e,
O historicismo gramsciano e a pesquisa em educação • 47

por extensão, generalizável a todas as formações capitalistas, visto


que a ideologia é também uma representação da subjetividade his-
tórico-cultural das- formações sociais que, por razões incomensurá-
veis, trilham caminhos próprios e particulares.
A história encontra sua base material no terreno da produção,
todavia a lógica estrutural do capital não homogeneiza o processo
histórico, ou seja: "Eis aí o enigma dos tempos modernos que Marx
formulou, mas nos legou a tarefa de decifrar: o capital universali-
zou a história; não a unificou e, por isso, não legitima os intentos
explicativos e interpretativos uniformizadores" (WARDE, 1993,
p.47).
Essa breve menção às idéias de Althusser não pretende con-
duzir a conclusões pueris e, sobretudo, cômodas sobre o formalis-
mo na análise histórica, que depositam sobre os ombros de Althus-
ser os esquematismos e simplificações de toda ordem por nós pra-
ticados. A perspectiva logicista na pesquisa educacional
... não está delimitada e/ou esgotada na influência do estrutu-
ralismo marxista de corte althusseriano. Pelo contrário, a pró-
pria leitura da obra althusseriana [...] é perpassada por esse
formalismo logicista. O que não exime Althusser de ser tam-
bém um formalista e, principalmente, de ter contribuído bastan-
te para reforçar essa perspectiva através da sua oposição ra-
dical ao historicismo.
(VIEIRA, 1994, p.71)

Essa visão formalista ou logicista, que subordina a história a


"um universo conceptual autogerador que impõe sua própria idea-
lidade aos fenômenos da existência material e social"
(THOMPSON, 1981, p.22), informou o processo de apropriação do
pensamento gramsciano, ainda que este tenha sido introduzido na
pesquisa educacional como suporte para a crítica ao althusseria-
nismo e, por extensão, ao estruturalismo dos chamados crítico-
reprodutivistas.
A intenção de proclamar a unilateralidade das análises crítico-
reprodutivistas sobre o funcionamènto do Estado e da escola deter-
minou a busca de novos interlocutores. Entre os mais requisitados
está Gramsci, todavia a introdução do seu pensamento entre os pes-
quisadores da área acadêmico-educacional não resultou de uma cri-
48 • Carlos Eduardo Vieira

tica ao racionalismo logicista inerente a essas concepções. As cate-


gorias gramscianas foram assimiladas da mesma maneira que as
categorias althusserianas, ou seja, como abstrações lógicas que
operam a análise do abstrato e genérico modo de produção capita-
lista.
O pretendido nexo dialético entre reprodução e transformação
que, segundo os gramscianos da educação, Althusser e todos os
chamados reprodutivistas não haviam dado conta de apreender, não
passou de uma proposição de ordem formal, muito atraente na sua
arquitetura lógica, mas incapaz de dar conta do Brasil e da realida-
de escolar brasileira. Em outros termos, "afirmar a contradição em
abstrato dá uni entendimento que não coincide com a realidade
contraditória da educação brasileira" (RACHI, 1990, p.79).
Falar sobre as contradições da genérica escola capitalista si-
gnifica dizer muito pouco sobre a escola concreta e, em determina-
das ocasiões, subverter a escola real para conformá-la ao modelo
da genérica escola capitalista. A figura do proletariado, concebido
como força emergente que disputa com a concepção burguesa a
hegemonia no plano da sociedade civil, não passa de uma fórmula
abstrata, saturada de moralismo porém incapaz de compreender o
proletariado concreto, sua composição, sua organização política,
suas lutas, enfim, a sua história. Assim como a burguesia, o prole-
tariado se torna um ente idealizado para cumprir no plano empírico
as tarefas traçadas previamente pelo projeto lógico.
É possível perceber na leitura da obra gramsciana como cada
categoria foi elaborada a partir de uma profunda análise da realida-
de italiana. As categorias de intelectual orgânico e intelectual tra-
dicional, amplamente utilizadas entre nós, são o resultado de um
estudo cuidadoso da formação dos intelectuais na Itália, sua origem
de classe, sua formação, sua posição no interior do Estado e da
sociedade civil, além do estudo da influência das várias cosmovi-
sões que permearam as discussões ao longo da história da tardia
unificação do Estado Italiano. Gramsci estudou o Estado tomando
por base a produção intelectual de Maquiavel, Croce, Marx, Lênin,
entre outros, mas nunca na dispensa dos fenômenos histórico-
concretos que constituíram esse Estado. A sua obra, nunca concluí-
da, A questão meridional, traz à tona uma riqueza de problemas ao
abordar a histórica divisão entre o sul agrícola e o norte industriali-
zado da península, a complexa questão vaticana, a unificação do
O historicismo gramsciano e a pesquisa em educação • 49

Estado Italiano liderada pelo liberal moderado Cavour, além de


discutir o papel da Itália no contexto europeu de desenvolvimento
capitalista.
O historicismo gramsciano é "uma expressão teórica que bus-
ca sistematizar a lógica inerente ao processo histórico real, ao con-
trário das teorias que compreendem o real como ilustração da sua
lógica" (VIEIRA, 1994, p.233). As categorias são expressões con-
ceituais do real, por conseguinte mantêm a sua plena validez en-
quanto os fatos empíricos permanecerem inalterados (cf.
BADALONI, 1977, p.295-8).
Categorias como Bloco Histórico, Filosofia da Práxis, Hege-
monia, Intelectuais Orgânicos, não são originárias do pensamento
gramsciano, mas sim o resultado das suas interlocuções com Sorel,
Gentile, Lênin e Croce. Daí a fertilidade de Gramsci não estar na
originalidade dos seus conceitos ou categorias e sim na reelabora-
ção historicista dessas categorias, movido pela intenção de fazer
análise concreta de situação concreta.
Ao abstrairmos a consistência historicista do marxismo, este
se transforma em "formulário mecânico, que dá a impressão de
poder colocar toda a história no bolso" (GRAMSCI, 1978, p.152).
O chamado método dialético acaba reduzido a um conjunto de câ-
nones.
... uma banal caixa de ferramentas que, ao proceder à pesqui-
sa, encontra seus limites concretos na rebeldia da realidade
que teima em desobedecer aos modelos explicativos. O logi-
cismo abandona tudo aquilo que escapa à fórmula e incorpora
todos os fatos que colaboram com o enunciado teórico, de
preferência os mais genéricos, em nome da historicidade do
pensamento. É como se o conceito, a lei, a categoria já com-
portassem a historicidade, determinando assim o ritmo e os
contornos do processo histórico.
(VIEIRA, 1994, p.233)

A presença da história, no âmbito dessa interpretação logicista


do materialismo histórico, é totalmente acessória, ou seja, nos mo-
mentos em que a história é requisitada, ela aparece como comple-
mento ilustrativo do movimento realizado pela idéia.
Para concluir, é importante assinalar que o pensamento
50. Carlos Eduardo Vieira

gramsciano não nos dá todas as soluções, assim como o historicis-


mo não esgota a problemática metodológica da história. O legado
gramsciano é "de excepcional interesse e sua influência foi, sem
dúvida, muito fecunda. Penso, entretanto, que não se deve buscar
nele um elenco de respostas prontas para os problemas do presen-
te. Para ser corretamente avaliado, Gramsci precisa ser situado
historicamente, precisa ser compreendido no seu meio, na sua
situação" (LUKACS, entrevista a Leandro Konder, apud
NOSELLA, 1992, p.5).

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