Mara - LITERATURA E MÚSICA - O CONTO O MOÇO DO SAXOFONE NA AULA DE EDUCAÇÃO MUSICAL - Pronto

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ISSN 2359-4799

Volume 5 / Número 2 / Ano 2019 – p. XX-YY


DOI:YYYYYY

LITERATURA E MÚSICA: O CONTO “O MOÇO DO SAXOFONE” DE


LÍDIA TELLES NA AULA DE EDUCAÇÃO MUSICAL

LITERATURE AND MUSIC: THE TALE “THE BOY OF THE SAXOPHONE”


BY LIDIA TELLES IN MUSIC EDUCATION
Mara Pereira da Silva
Universidade Federal do Tocantins. E-mail: [email protected] .

Artigo submetido em 17/09/2019, aceito em 01/10/2019 e publicado em 15/12/2019.

Resumo: O estudo aqui proposto discute a relação da música e da literatura, por meio do conto “O
moço do saxofone”, de Lygia Fagundes Telles, para a formação do leitor literário na aula de Educação
Musical, aproximando essas áreas e contribuindo em propostas didático metodológicas para
desenvolver trabalhos com o texto literário na Educação Musical. A metodologia empregada para a
construção desse texto foram baseados em fontes bibliográficas de autores das áreas de Literatura,
Música, Antropologia, e outros. Os resultados indicam que por meio do conto “O moço do saxofone
pode trabalhar nas aulas de Educação Musical conteúdos como funções da música na sociedade,
paisagem sonora, parâmetros do som ou qualidades do som e Mercado de trabalho dos músicos. Ao
desenvolver essa proposta em sala de aula, o professor estará contribuindo no arcabouço cultural
literário dos alunos em outras disciplinas do currículo, em que se inclui a música, visto que o conto
permite diversas interpretações.
Palavras-chave: Literatura; leitura; Moço do Saxofone; Educação Musical.

Abstract: The discourse proposed here contributes and allows discussing what music is and what is
literature and that through the tale studied it is possible to work the formation of the literary reader in
the class of Music Education and to some extent approaching the existing borders between these areas
and contributing to methodological didactic proposals to develop works with the literary text in Music
Education. The methodology used for the construction of this text were based on bibliographic sources
of authors from the areas of Literature, Music, Anthropology and others. The results indicate that
through the tale “The saxophone boy can work in music education classes such as music functions in
society, sound landscape, sound parameters or sound qualities and musicians labor market. By
developing this proposal in the classroom, the teacher will be contributing to students' literary cultural
framework in other curriculum subjects, including music, as the tale allows for various interpretations.
Keywords: Literature; reading; Saxophone Boy; Education Music.

moral (ENGELMANN, 2008). Assim,


1 INTRODUÇÃO
utilizando-se de Sócrates como interlocutor,
O filósofo Platão já dizia que a Platão vê na música um dos pilares da
música e a poesia eram formas de arte que educação
poderiam provocar mais fascínios no Sócrates – Tal será então o caráter do
espírito humano influenciando de maneira nosso guerreiro. Mas como educá-lo e
positiva ou negativa o comportamento instruí-lo? O exame dessa questão
pode ajudar-nos a descobrir o objeto
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de todas as nossas pesquisas, isto é, essa situação pode provocar desânimo em


como surgem a justiça e a injustiça um estudante iniciante considerando as
numa cidade (...) Mas que educação
lhe proporcionaremos? Será possível
diversas opiniões que existem.
encontrar uma melhor do que aquela Na música por muito tempo
que foi descoberta ao longo dos acreditou-se que ela seria uma linguagem
tempos? Ora, para o corpo temos a universal (JEANDOT,1997). Jeandot (1997,
ginástica e para a alma, a música. p.12) afirmou que “A música é uma
(PLATÃO; 2000:II, 63-4).
linguagem universal, mas com muitos
O autor Souza (2018) apresenta as dialetos, que variam de cultura para cultura,
fronteiras existentes entre estudos literários envolvendo a maneira de tocar, de cantar, de
com outras disciplinas. Para ele, essas organizar os sons e de definir as notas
aproximações se encontram em todas as básicas e seus intervalos”. O conceito de
áreas de conhecimento, seja do “campo das música como linguagem universal
humanidades como das áreas das ciências perpetuou por muito tempo nos livros da
exatas e da natureza” (SOUZA, 2018. P. área, ao abrir as literaturas musicais mais
73). Isso nos permite afirmar que essa conservadoras era o conceito que
proximidade dos estudos literários com os encontrávamos. Além desse, uma outra
demais campos de conhecimento acontece vertente muito comum é denominar a
com as Artes em que se inclui a música. música como arte de combinar os sons. A
A academia tem se debruçado sobre autora Priolli (2010) afirma que a música é
estudos que tentam definir os termos a arte de manifestar os diversos sentimentos
Literatura e Música que partem de conceitos da alma. Med (2006) apresenta que a
mais tradicionais a contemporâneos. Na música é a cor do som. Shafer (2011), por
Literatura encontramos autores como Lajolo outro lado, diz que os estudantes merecem o
(1982), Compagnon (1999), Eagleton benefício de uma definição de música que
(2006), Fiorin (2008), Souza (2018). Muitas seja útil e viva que tenha sentido para os
têm sido as tentativas de definir literatura mesmos. Nas falas de Shafer transparece,
(EAGLETON, 2006) e, segundo Lajolo para que tenha sentido, a terminologia
(1982, p. 106), “não existe uma resposta música precisa dialogar com as realidades
correta, porque cada tempo, cada grupo culturais desses estudantes.
social tem sua resposta, sua definição para A educadora musical Maura Penna
literatura”. Nesse sentido, a definição do (2014) questiona a música como linguagem
termo vai depender da época e do lugar em universal, para autora a música não é uma
que o indivíduo está inserido. Ao se referir à linguagem universal e sim um fenômeno
Literatura, Compagnon (1999, p. 46) universal. Ela apresenta que “A música – ou
apresenta que “a Literatura é uma inevitável melhor, a arte em geral - é uma atividade
petição de princípio. Literatura é literatura, essencialmente humana, intencional, de
aquilo que as autoridades (os professores, os criação, de significações (2014, p.20).
editores) incluem na literatura”. Apreende-se que alguns autores consideram
A definição do que é Literatura fica a música como linguagem e que precisa ser
a cargo dos profissionais da área que julgam exercida por seres humanos e por outro
quais obras devam ser Literatura de acordo lado, como Maura Penna (2014) a música
com seus juízos de valor. Fiorin apresenta a não é linguagem universal e sim fenômeno
literatura como sendo “a súmula de toda a universal que acontece nas mais diversas
produção do espirito humano ao longo da culturas. Assim como não existe um
história” (FIORIN, 2008, p.34). Ao se conceito definido de Literatura da mesma
referir sobre a teorização da literatura Souza forma parece não existir para a Música.
(2018) afirma que “o imenso conjunto de Uma outra questão que Platão considerava
construções teóricas disponíveis não era que a música tinha uma mensagem com
constitui um acervo uniforme”. Para o autor o poder de despertar as nossas emoções e
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sentimentos mais profundos. Deveria haver, apresenta três tipos de ciências: de fronteira,
portanto, uma escolha criteriosa dos interdisciplinar e Interciências a qual são
sentimentos que deveriam ser despertados, denominadas de Cartografia dos saberes.
na medida em que isso afetava diretamente Para a autora a Ciências de fronteira é a
a moral dos seus cidadãos. (MARTINHO, interface entre duas ou mais disciplinas
2001, p.67). Contudo, apesar das tradicionais, denominadas disciplinas
divergências existentes entre os autores híbridas. Nesse sentido, considero Literatura
apresentados, todos tentam caminhar para e Música como ciências de fronteira. O meu
um objeto comum entre a Música e a objetivo ao analisar os sentidos que se
Literatura. Como nos dizia Bakhtin (1992) escondem por detrás do conto “O moço do
“A literatura é uma parte inalienável da saxofone” é demonstrar que por meio dele,
cultura, sendo impossível compreendê-la é possível desenvolver práticas
fora do contexto global da cultura numa interdisciplinares entre Literatura e Música
dada época. Não se pode separar a literatura envolvendo o universo da leitura e a
do resto da cultura” (BAKHTIN, 1992, p. integração dos saberes para a formação de
362). leitores.
Considerando a música como um Considerando o processo de leitura e
fenômeno cultural podemos compreender escrita como competência de todas as áreas,
uma obra literária pelo contexto do o presente trabalho tem como objetivo
conhecimento musical contribuindo na mostrar que é possível usar o texto literário
formação do leitor. “Atualmente não mais em aula de outras linguagens artísticas em
compete ao ensino da literatura a que se inclui a música. A discussão aqui
transmissão de um patrimônio já constituído proposta contribui para se pensar em
e consagrado, mas a responsabilidade pela propostas didático-metodológicas para o
formação do leitor” (Zilberman, 2008, trabalho com o texto literário na Educação
p.16). Musical e de certa forma aproximando as
Sendo assim, ao folhear a obra “Os fronteiras existentes entre essas áreas,
Cem Melhores Contos Brasileiros do formando uma articulação do texto literário
Século, organizado pelo autor Italo (DALVI, 2013) com a música para a
Moriconi, lançado pela Editora Objetiva, em formação do leitor proporcionando aos
2009, me deparei com o conto “O moço do estudantes experiências com o texto
saxofone” de Lygia Fagundes Telles”, que literário.
me chamou atenção pelo título remeter a um O autor Villardi (1999, p.37) afirma
instrumento musical, e tendo como minha que “Ensinar a gostar de ler é exatamente
formação inicial a música, foi um dos isso: é ensinar a se emocionar com os
motivos que me levou a ler e pensar de que sentidos e com a razão (...); e, para isso, é
forma poderia utilizar esse conto nas aulas preciso ensinar a enxergar o que não está
de Educação musical para a formação do evidente, a achar as pistas e a retirar do
leitor literário. texto os sentidos que se escondem por
É sabido que as fronteiras permitem detrás daquilo que se diz”. O que se
uma maior articulação e aproximação entre pretende retirar do conto são os sentidos
disciplinas permitindo uma abordagem implícitos do que se diz em relação a
interdisciplinar, proporcionando aos música e tentar mostrar a possibilidade de
estudantes uma compreensão de duas ou trabalhar textos literários como instrumento
mais disciplinas do currículo, no caso desse de aprendizagem em outras áreas de
artigo a Literatura e a Música. conhecimento, nesse caso, a música. Além
O que nos diz fronteira entre disso contribuir na formação de leitores e ao
Literatura e Música? Com o objetivo de mundo cultural dos alunos na Educação
esclarecer o que se pensa sobre musical.
interdisciplinaridade, a autora Olga Pombo
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2 LYGIA FAGUNDES TELLES 3 O CONTO “O MOÇO DO


Lygia Fagundes Telles, segundo a SAXOFONE”
enciclopédia Itaú Cultural, ao falar sobre a O conto “O moço do saxofone”
biografia da autora, afirma que é: conta a história de um chofer de caminhão
“Romancista e contista. Passa a maior parte que resolveu parar na estrada e se hospedar
da infância no interior do estado de São em uma pensão. Na sua estadia conheceu
Paulo, em cidades como Sertãozinho, James, o personagem que comia giletes e
Itatinga, Assis e Apiaí, em função do que trabalhava em uma feira de diversões e
trabalho do pai”. Segundo a biblioteca do lhe passou algumas informações sobre o
Itaú Cultural, Lygia morou em São Paulo- lugar, dentre as quais o moço do saxofone
capital com sua mãe e também passou uma que tocava seu instrumento toda vez que a
temporada Rio de Janeiro, sendo uma das mulher o traia e ficava trancado dentro de
suas principais obras a coletânea de contos um quarto escuro segurando o instrumento
Porões e Sobrados. Além disso, a autora musical.
estudou Educação física e direito, só depois O conto nos diz também que o moço
veio se interessar pelas letras, e em 1985 é do saxofone trabalhava a noite em um bar
eleita pela Academia de Letras. em que desenvolvia a profissão de músico.
O comentário crítico da enciclopédia Além de James, do moço do saxofone e da
Itaú cultural sobre escritora diz: mulher vadia, na pousada existiam outras
personagens que são citadas na obra e que
na ficção de Lygia de Fagundes Telles, faziam parte da paisagem do lugar, como: a
predomina quase sempre o retrato da dona da pensão que era a madame, alguns
dimensão psicológica dos personagens.
Os recursos tradicionais da narrativa
anões loiros e de cabelos repartidinhos do
são manipulados de acordo com a lado, o copeiro que era um empregado que
inclinação para investigar os efeitos possivelmente desenvolvia a função de
das relações entre os sujeitos e dos serviços gerais e um velhote de barbicha
sujeitos com o mundo sobre o que há que era professor.
de mais íntimo no ser humano
(ENCICLOPÉDIA ITAÚ
O caminhoneiro chega a marcar um
CULTURAL, p. s/n, 2019). encontro com a esposa do saxofonista,
porém entra na porta errada e dar de frente
Entre as suas obras publicadas que com o músico e começa a interrogá-lo sobre
retratam essa relação entre os sujeitos e dos o conflito que o mesmo vive com sua
sujeitos com o mundo podemos citar como mulher, um mundo de traições. Ao
exemplo: As meninas, A disciplina do questiona-lo porque o saxofonista não faz
amor, um coração ardente etc.... No caso do nada com a mulher, o músico diz: faço sim,
conto “O moço do saxofone, de um modo toco meu instrumento para esquecer minhas
geral, predomina aspectos psicológicos, tristezas.
representando a mulher prostituta na cultura Gostaria de informar que ao se
do consumo, a qual é vista como referir a trechos da obra “O moço do
interesseira, sujeita a crises existenciais. Os saxofone” levarei em consideração a
procedimentos metodológicos adotados para paginação do conto inserido na publicação
realização da construção desse artigo foram da editora Objetiva intitulada “Os Cem
baseados em fontes bibliográficas de autores Melhores Contos Brasileiros do Século”,
das áreas de Literatura, Música e selecionados por Italo Moriconi, foi
Antropologia. publicado nos anos 60 e inclui-se entre os
contos que remetem conflitos e desenredos.
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4 O USO DO CONTO EM UMA AULA sua utilização. (MERRIAM, 1964, p. 209).


DE EDUCAÇÃO MUSICAL No caso do conto “O moço do saxofone”, o
personagem que era músico tocava toda vez
Estudos usando a literatura como
que sua mulher o traia. Nesse sentido,
recurso de aprendizagem na Educação
associando as definições de Merrian(1964)
Musical e formação de leitores literários nas
sobre a diferença entre “usos” e “funções”
aulas de música ainda é incipiente na área,
apreende-se que a música para ele tinha a
na verdade, durante a escrita desse trabalho
função de liberar seus sentimentos, nesse
não foi encontrado pelo autor pesquisas que
caso expressar sua tristeza por estar sempre
remetem a essa temática em que se propõe
sendo traído por sua mulher.
caminhos didáticos - metodológicos para o
Essa situação e denominada por
uso do conto em aulas de educação musical
Merrian (1964) como Função de expressão
o que se ver muito é o caminho contrário,
emocional. Para o autor a expressão
ou seja, o uso de letras de música como
emocional refere-se à função da música
instrumento metodológico para a
como uma expressão da liberação dos
aprendizagem da literatura proporcionando
sentimentos, liberação das ideias reveladas
prazer na leitura.
ou não reveladas na fala das pessoas. Nesse
Assim, buscou-se estabelecer uma
caso, expressão emocional eram liberadas
relação entre o conto em estudo e o seu uso
por meio da execução instrumental do
em uma aula de Educação Musical. Assim,
saxofone. É como se fosse uma forma de
afirmamos que o conto “O moço do
desabafo de emoções através da música
saxofone” nos permite trabalhar alguns
(MERRIAN, 1964). Assim, o moço do
conteúdos musicais como funções da
saxofone desabafa seus sentimentos de
música na sociedade, Parâmetros,
tristeza por meio das notas musicais que
qualidades ou propriedades do som,
fluem ao soprar o seu instrumento musical.
Paisagem sonora e Mercado de trabalho de
Na leitura do conto percebe-se
músicos e ao mesmo tempo contribuir com
também que a música triste que saia do
o arcabouço literário dos estudantes
instrumento era percebida pelas pessoas da
contribuindo na formação de leitores.
pensão, como o caminhoneiro. Essa situação
Para compreendermos o primeiro
nos leva a pensar na função da música como
conteúdo apresentado que se trata das
funções da música na sociedade, propomos comunicação. Para Merrian (1964), a
música nos textos musicais emprega,
explicar a partir das considerações de
comunica informações diretamente àqueles
Merrian(1964) e que depois foram
que entendem a linguagem que está sendo
popularizadas por outros autores que
expressa. Ela transmite emoção, ou algo
tentaram refletir sobre as funções da música
similar à emoção para aqueles que
a partir das ideias do próprio autor. Estudar
entendem o seu idioma (MERRIAM, 1964).
funções da música, é uma exigência de
Podemos observar na fala do caminhoneiro
grande parte dos cursos de Licenciatura em
ao se expressar que: “Tocava bem, não
Música espalhados pelo Brasil, então por
discuto. O que me punha doente era o jeito,
meio do conto em estudo é possível o
um jeito assim triste como o diabo, acho que
professor contribuir no arcabouço literário
nunca mais vou ouvir ninguém tocar
do aluno e ao mesmo tempo abordar
saxofone como aquele cara tocava”
conhecimentos específicos da área musical.
(MORICONE, 2009, p.233).
Nessa perspectiva, Merrian realiza
Nessa narrativa percebe-se que o
uma diferenciação entre uso e funções da
moço do saxofone conseguia comunicar por
música, segundo ele: O “uso”, então, se
meio dos sons o que ele estava sentindo no
refere à situação na qual a música é aplicada
momento. Repassar aos ouvintes uma
em ações humanas; a “função” diz respeito
mensagem de tristeza era o seu objetivo e
às razões para o seu emprego e,
ele conseguiu transmitir a informação que
particularmente, os propósitos maiores de
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queria. Por outro lado, o caminhoneiro do saxofone, as próprias pessoas que


demonstra entender da linguagem musical, moravam ali eram cumplices no processo de
compreende os significados musicais, pois construção sonora daquele ambiente.
para Merrian (1964, p. 223) a música não Segundo Schafer(1991) era preciso
era uma linguagem universal, mas, sim, aperfeiçoar os modos de apreensão do som,
moldada nos termos da cultura da qual ela valorizar sua importância, nem sempre
faz parte. Assim a música parece ser algo adequadamente percebida, e conscientizar
familiar ao caminhoneiro, fazendo parte do as pessoas a respeito do som ambiental,
seu mundo cultural. tornando-as cúmplices no processo de
Além de algumas funções da música, construir um ambiente sonoro adequado a
outro conteúdo musical que poderia ser elas e à comunidade na qual viviam.
trabalhado por meio do conto em estudo é Em se tratando do conto em análise,
Paisagem sonora (SCHAFER, 1991), que as pessoas da pensão se tornaram
pode ser percebido quando o conto relata pertencentes de fazer parte daquele
que o saxofone a princípio incomodava as ambiente. No caso do caminhoneiro, ele
pessoas que moravam na pensão, que estava ali somente de passagem, então
posteriormente acabaram se acostumando apresentava uma paisagem sonora diferente,
com aquela paisagem Sonora que sai do considerando que cada povo e cultura
saxofone. A paisagem sonora consiste, de possui sua própria ambiência musical.
acordo com Schafer (VALENTE, 2013, A paisagem sonora acaba
p.240), interferindo na percepção dos sons e na
Para o compositor canadense, os
formação do gosto estético das pessoas.
estudos da paisagem sonora envolvem Podemos perceber quando ele narra o
um campo interdisciplinar de seguinte: “Não que não gostasse de música,
pesquisas referentes ao ambiente sempre gostei de ouvir tudo quanto é
acústico, não importando sua natureza. charanga no meu rádio de pilha de noite na
São paisagens sonoras as situações e
circunstâncias em que os eventos
estrada, enquanto vou dando conta do
sonoros se desenrolam no tempo e no recado. Mas aquele saxofone era mesmo de
espaço, incluindo-se próprias entortar qualquer um (MORICONE, 2009,
transfigurações de um mesmo p.233)”. A música era algo bem presente na
ambiente: a paisagem sonora de um vida do caminhoneiro, era um fenômeno
mesmo espaço físico se transfigura ao
longo das horas do dia, das estações do
cultural de sua realidade, porém, soava de
ano; o transcorrer dos séculos também outra forma aos seus ouvidos.
imprime variações. A rigor, a A paisagem sonora da pensão não
paisagem sonora tende a ser mais envolvia somente o saxofone, tinha outros
barulhenta nas grandes cidades, devido elementos os quais podemos destacar: as
a uma maior ocorrência de eventos
sonoros simultâneos, sejam eles
conversas baixinhas, as pisadas nas escadas,
motivados por pessoas ou outras a batida da porta, tro- ló- ló do James.
fontes. Acrescente-se que a evolução Todos esses elementos formavam a acústica
tecnológica vem trazendo um aumento sonora do lugar.
progressivo na quantidade de objetos Outra relação que se destaca no
produtores de ruídos, congestionando a
paisagem sonora. Os sons naturais -
conto em relação à música são as narrativas
sobretudo animais- tornaram-se raros do caminhoneiro sobre a sonoridade que
ou menos frequentes. soava do saxofone naquela noite na pensão
e o seu papel de crítico musical, de um
Uma paisagem sonora para Schafer
apreciador da música, que na literatura seria
(1991) envolve elementos sonoros e cada
um crítico literário, expressando o seu valor
comunidade é responsável por seu ambiente
(COMPAGNOM, 1999). Para Compagnom
sonoro, as paisagens sonoras das culturas
(1999, p.225) “A crítica deveria ser uma
são diferentes. Assim, se a pousada não
avaliação argumentada”, é o que não faltou
cortou no início o som tão forte que chegava
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ao caminhoneiro falando sobre música, ao como juízo de valor é apresentada por


pronunciar “tão forte chegava a música até Eagleton (2003). Para o autor “os juízos de
nossa mesa” (MARICONE, 2009, p. 234). valor que a constituem são historicamente
Essa palavra “forte” faz parte do variáveis, mas que esses juízos têm, eles
vocabulário musical, incluído nos próprios, uma estreita relação com as
parâmetros do som ou qualidades do som ideologias sociais” (EAGLETON, 2003, p.
que são conteúdos que toda pessoa que 22).
gosta de apreciar e estudar música ou Enquanto na Literatura os juízos de
deveria conhecer. valor estão relacionados à determinação do
Nos estudos voltados para esse que seja ou não Literatura, no caso do conto
assunto, encontramos a intensidade do som em estudo está relacionado ao gosto do que
que pode ser forte ou fraco, e que tem seja ou não música boa para o personagem
relação com a dinâmica na música. Med da narrativa, a partir das suas próprias
(1996) afirma que a intensidade está conclusões culturais, querendo impor seu
relacionada à dinâmica. Para o autor “a domínio de poder sobre a performance
alternância de notas de intensidades musical do outro.
diferentes resulta em dinâmica” (MED, Seus desabafos levando em
1996, p.12). A dinâmica seria “graduação da consideração o seu entre lugar continua
intensidade do som”, ou seja, “grau de segue em frente ao começar descrever a
intensidade com que o som e emitido e forma de tocar o saxofone: “começou a
articulado” (MED, 1996, p.12). O tocar de um jeito abafado, sem fôlego como
caminhoneiro possivelmente imprimia uma boca querendo gritar, mas com uma
muita força ao soprar o instrumento musical mão tapando, os sons espremidos saindo por
o que ocasionava um som forte que entre os dedos” (MORICORI, 2009, p. 234).
incomodava as pessoas que não estavam O caminhoneiro se mostra mais uma vez
acostumadas a ouvi-lo. como um bom apreciador musical narrando
O caminhoneiro ainda disse: Quando elementos que observou no tocador de
dei a partida, o saxofone já subia num agudo saxofone.
que não chegava nunca ao fim” Por fim, outra relação que podemos
(MORICONI, 2009, p.238). A palavra identificar, refere-se ao mercado de trabalho
“agudo” é um termo que se usa na música do músico na sociedade capitalista visto que
expressando também a altura, que pode ser o conto deixa transparecer que apesar do
grave ou agudo, sendo uma das saxofonista se dedicar muitas horas em
características do som, e que se inclui estudo do instrumento musical e trabalhar
também nas propriedades ou qualidades até altas horas da noite, seu salário não era
sonoras. O autor Med (1996, p. 11-12), ao suficiente para manter sua amada. Ao narrar
se referir à altura, diz que ela e que o moço do saxofone tocava num bar,
“determinada pela frequência das vibrações, voltava só de madrugada, remete-nos a um
isto é, da sua velocidade. Quanto maior for problema social vivenciado por muitos
a velocidade da vibração mais agudo será o músicos no Brasil que tocam em bares,
som”. restaurantes e casas de show e muitos vezes
A análise crítica do caminhoneiro não são remunerados, como gostariam que
sobre o som que saia do saxofone continua fossem, recebendo míseros salários que em
ainda ao dizer: “É uma música desgraçada sua maioria não conseguem manter suas
de triste” “Será que ele não tem uma música famílias com uma vida digna, sendo
mais alegre?” (MORICORI, 2009, p.234). desvalorizados em suas profissões na
Seu juízo de valor está relacionado aos seus sociedade capitalista, e em muitos casos
próprios interesses em relação à música por tendo que conciliar a profissão de músico
gostar de músicas mais alegres ou Allegro com outra para poderem se manter na
que é um andamento musical. A literatura sociedade.
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5 CONCLUSÕES REFERÊNCIAS
Considera-se que a Literatura e a BAKHTIN, M. Os estudos literários, hoje.
música são linguagens artísticas que podem In: Estética da criação verbal. Trad. Maria
se complementar para a aprendizagem tanto Ermantina Galvão G. Pereira. São Paulo:
de conteúdos musicais, como na fomentação Martins Fontes, 1992.
do gosto pela da leitura dependendo da
temática retratada na obra em estudo. COMPAGNOM, Antoine. O demônio da
Por meio do conto “O moço do Teoria: Literatura e senso comum. Belo
saxofone podemos discutir nas aulas de Horizonte: Ed. UFMG, 1999.
música conteúdos como funções da música
na sociedade, paisagem sonora, parâmetros, DALVI, Maria Amélia e Et. Alt (Org,).
propriedades ou qualidades do som e Leitura de Literatura na Escola. Ed.
Mercado de trabalho dos músicos na Parábola: São Paulo, 2013.
sociedade do consumo visto a realidade de
trabalho que o moço do saxofone levava, EAGLETON, T. Teoria da literatura: uma
tendo que trabalhar até tarde da noite, introdução. São Paulo: Martins Fontes,
estudar seu instrumento várias horas do dia 2003.
e ter como recompensa uma baixa
remuneração, e como consequência, não FIORIN, José Luiz. Linguagem e
conseguia dar uma vida digna a sua amada, interdisciplinaridade. Revista ALEA,
e a mesma tinha que recorrer a prostituição. volume 10 número 1, janeiro-junho, p.
Na análise desse conto, podemos 29-53, 2008.
perceber que a leitura pode ser trabalhada
não apenas nas aulas de língua portuguesa ISER, Wolfgan. O fictício e o imaginário:
ou literatura, mas o professor pode perspectiva de uma Antropologia literária.
contribuir no arcabouço cultural literário Tradução de Johannes Kretschmer. Rio de
dos alunos em outras disciplinas do Janeiro: 2013.
currículo, oferecendo contributo a
integração de saberes, nesse caso, musicais JEANDOT, Nicole. Explorando o universo
e literários. da música. Editora Scipione: São Paulo,
Neste sentido, o uso do conto nas 1997.
aulas de música cumpre com a sua função
LYGIA Fagundes Telles. In:
de colaborar no processo de leitura dos
ENCICLOPÉDIA Itaú Cultural de Arte e
alunos, reconhecendo que o ato de ler não é
Cultura Brasileiras. São Paulo: Itaú
responsabilidade somente do professor de
Cultural, 2019. Disponível em:
Língua Portuguesa, mas de outras áreas de
<http://enciclopedia.itaucultural.org.br/pess
conhecimento.
oa6011/lygia-fagundes-telles>. Acesso em:
Acredita-se que a leitura desse
15 de Jan. 2019. Verbete da Enciclopédia.
trabalho pode despertar outros professores
ISBN: 978-85-7979-060-7.
de música a trabalharem com textos
literários que remetem a interpretações do MED. Bohumil. Teoria da Música. Brasília:
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