Querino, M. O Colono Preto Como Fator Da Civilização Brasileira

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O COLONO PRETO COMO FATOR DA CIVILIZAÇAO

BRASILEIRA

Manuel Querino

CAPÍTULO I

Portugal no meado do século XVI


Perdidas as pretensões de dominio, por infrutíferas que
foram as resoluções audaciosas de altos cometimentos, no
Oriente, as vistas da metrópole se voltaram, esnerançosas, para
a América Portuguesa. Escreveu eminente iiublicista lusitano,
tratando da colonizacão do Brasil: "LeGslamos, como se fo-
ram os portugueses de além-mar os párias da metrópole. Go-
vernamos, como se o Brasil fosse apenas uma herdade. onde
trouxéssemos agages obscuros e opressos jornaleiros. Defen-
demos-lhe a comunicação, e o trato de ?entes peregrinas. Re-
duzimos a estanco e monopólio grande parte das suas mais
valiosas produções.
"Proibimos-lhe que erigisse um tear, uma forja, uma
oficina.
"Declaramos por atentado que um só prelo difundisse
timidamente a sua luz naquelas regiões escurecidas. Conde-
namos, por subversivas, as sociedades literárias.
"Receamos que a mínima ilustração do pensamento nos
roubasse a colônia emancipada".
E ajuntava o mesmo escritor:
"O que nos sobra em glória de ousados e venturosos
navegantes, míngua-nos em fama de enérgicos e previdentes
colonizadores. Conquistamos a fndia para que estranhos a
lograssem.
"Devassamos a China, para que utilizassem depois os
seus comércios.
- Estado da Bahia, havia se tomado raridade bibliográfica. Pela
NOTA O presente artigo, publicado em 1918, pela Imprensa Oficial do
sua importância no contexto geral dos trabalhos publicados
sobre o negro brasileiro, julgamos oportuna a sua publicaçgo,
atualizada a ortografia.
"Levamos ao Japãc o nosso nome para que outros mais
felizes implantassem naquela terra singular os primeiros ru-
dimentos da Civilização Ocidental. Lustramos a Africa para
que alheios povos, tachando-nos de inertes e remissos, nos
disputássemos o que não soubemos aproveitar.
"Dos infindos territórios que o nosso poderio avassa-
lamos, resta-nos apenas no Oriente quanto de terra era sobeja
para cravar como histórica tradição, a bandeira nacional" (1).
A respeito da ação civilizadora dos portugueses no
Oriente escreveu ainda notável historiador patncio:
"Os portugueses foram, sem dúvida, bons soldados e
bons marinheiros empreendedores, valentes e denodados, po-
rém nunca foram conhecidos senão como conquistadores. Con-
quistaram grande parte da Afnca e da Asia, e de suas con-
quistas só sabemos que tantos mil mouros ou índios se ti-
nham deixado degolar impunemente por tantos centos de por-
tugueses, em tal ou qual parte.
"Das regiões mais distantes apenas conhecíamos as ri-
quezas que serviam de estímulo à cobiça dos novos argonau-
tas; nada sabíamos, que pudessc interessar às ciências e às
artes, até que outros povos participassem igualmente de seus
despojos: foi então, que pudemos conhecer as produções da
natureza naqueles variados climas.
"Leiam-se as crônicas daqueles tempos, consultem-se os
Iiistoriadores mais fiéis e se verá a longa série de facanhas ao
lado de uma descricão nomnosa de um rei ~risioneiroou con-
vertido à fé nela esi~adade um aventi~reiro.Pi1;rias e senul-
cros foram os mnnumentos aue deixaram na fndia os portu-
gueses: muita glória. se queremos. e nada mais" ( 2 ) .
Decidiu-se, pois, a metrópole portuguesa a recuperar no
Brasil o que perdera no Levante, e aqui os recursos de toda
a ordem poderiam satisfazer às necessidades do momento, e,
bem assim, assegurar-lhe próspero futuro.
Nessa faina, porém, de dobrar cabos e desbravar ter-
ritórios infindos, em proveito alheio, esterilizou-se toda a fe-
bre de grandezas e poderio da nação portumesa, milito em-
bora nas simas das suas caravelas se envolvessem a "c~i_?idez,
ganância. fome de oiro, sede de conaiiista" f ? )
Iniciada a colonizacão com os niores elementos da me-
trópole. o índio insubmisso revoltou-se contra a tirania e in-

1 Latino Coelho, Elogio Histórico de José Bonifácio, Lisboa, 1877.


2 General Abreu e Lima, Esbõço Histórim, Político e Literário
do Brazil.
3 Guerra Junqueiro, Discurso Republicano.
justiça de que fora vítima, com a exploração da sua atividade
nos trabalhos da lavoura.
Começaram então as lutas para a submissão dos silvi-
colas, as quais nem os próprios jesuitas conseguiram obstar ou
atenuar.
O que a Companhia de Jesus conseguia com brandura
persistente, com sua palavra repassada de carinho e de meigui-
ce, o colonizador português ia destruindo pelo terror e pelo
domínio da forca. De um lado, o afago e o desejo de uma
aliança fraternal e durável; do outro, o castigo, as torturas,
as sevícias, os tormentos inconcebíveis. O regimento dado a
Tomé de Sousa, primeiro governador, determinava: "Mais en-
tretanto que negociar as pazes, faça .o governador por colher
às mãos alguns dos principais que tiverem sido cabecas dos
levantamentos, e os mande enforcar por justiça nas suas pró-
prias aldeias ".
Com semelhante modo de colonizar, preferiram, pois,
os pobres íncolas americanos refugiar-se entre os animais bra-
vios, onde a liberdade fosse o mais valioso apanágio da sua
vida errante. O parasitismo alçou o colo, deu combate em
campo raso com o apoio do governo, que participava dos lu-
cros auferidos.
Por isso, o colono branco vinha com o espírito atormen-
tado pela ganância, repetindo o estribilho da mãe-pátria:

"Toda a prata que fascina


Todo o marfim africano
Todas as sedas da China".
Com ansiedade devastadora atirou-se à emmesa, con-
fiante no resultado imediato. "Em todas as colônias espanho-
las e portuguesas. Um subsolo riquíssimo em minerais movia
as ambicões do imigrante.
"Só vinha para a América o homem tangido de espe-
ranças e preocupações de fortuna rápida e fácil. Nenhum sen-
timento superior o animava: nem mesmo o sentimento da li-
berdade.
"O próprio despotismo era aceitável se se conciliava com
o interesse do momento" ( 4 ) .
Mal sucedido com o indígena que abandonara o litoral
para embrenhar-se na floresta virgem, a metrópole mudou
de rumo, e, a exemplo de outras nações da Europa, e, de par-
ceria com o árabe, firmou o seu detestável predomínio no ce-
leiro inesgotável, que fora o Continente negro, arrancou dali
4 Rocha Pombo, HiMria do Brasil.
o braço possante do africano para impulsionar e itensificar
a produção de cereais e da cana-de-açúcar e desentranhar do
seio da terra o diamante e metais preciosos.

Chegada do africano no Brasil, suas habilitações


A história nos afirma que, muito antes da era cristã, os
árabes se haviam introduzido nos sertões do Continente negro,
e com maior atividade no século VII.
Missionários muçulmanos internaram-se em alguns Don-
tos da Africa semeando os &rmens da civilização. abolindo
a antropofagia e a abominável prática dos sacrifícios hu-
manos.
Levando-se em conta o grau de cultura atingindo por
esses invasores, com tais predicados, não resta a menor dú-
vida de que foram eles os introdutores dos conhecimentos in-
dispensáveis ao modo de viver do africano nas florestas, nas
planícies, nas matas, nas montanhas, vigiando os rebanhos,
cultivando os campos, satisfazendo assim as necessidades
mais rudimentares da vida. Acrescente-se a essa circunstân-
cia, a fundação de feitorias portuguesas em diversos pontos
do Continente, e, chegar-se-á à conclusão de que o colono pre-
to, ao ser transportado para a América, estava já aparelhado
para o trabalho que o esperava aqui, como bom cacador, ma-
rinheiro, criador, extrator do sal, abundante em algumas re-
giões. minerador de ferro. pastor, aqricultor, mercador de
marfim, etc. Ao temwo do tráfico já o africano conhecia o
trabalho da mineração, pois lá abundava o ouro, a prata, o
chumbo. o diamante e o ferro.
E como prova de que ele de longa data conhecia di-
versas aõlicações materiais do trabalho veia-se o aue diversos
ex~loradoresdo Continente negro dizem de referência ao que
sob^ o obieto encontraram.
"Em Vuane Kirumbe vimos uma foria indígena. onde
trabalhavam cerca de uma dúzia de homens. O ferro que se
emwregava era muito Duro e com ele fabricavam os grandes
ferros para as lanças de Uregra meridional, facas de todas as
dimensões, desde a pequena faca de uma polegada e meia de
extensão, até ao pesado cutelo em forma de gládio romano.
"A arte de ferreiro é muito apreciada nestas florestas
onde, em conseqüência do seu isolamento, as aldeias são obri-
gadas a fazerem tudo. Cada geração aprende por sua vez os
processos tradicionais, que são numerosos, e mostram que o
próprio homem das solidões é um animal progressivo e per-
fectível" (5) .
"Conhecem também os processos necessários para o
fabrico de aço, pela combinação do ferro com o carbono e a
têmpera" (6) .
Para a exploração das minas na Africa precedia con-
sulta aos deuses do feiticismo. Satisfeita esta pela afirma-
tiva, iniciavam as obrigações, com danças, feitura de ebós, ma-
tança de aves e animais para o melhor êxito da empresa. As
vezes não faltavam também os sacrifícios humanos.
Em meio do seu regozijo exclamavam: "Devemos cavar
a terra para enriquecer".
Não contentes com escravizar o fndio brasileiro, des-
truindo-lhe tribos e nações inteiras, como se deu no Mara-
nhão e no Pará, como se fez no Guairá, na zona do sul, no
sézulo XVII, e porque o escravo indígena era mui inconstante
c menos seguro, sobre ser uma propriedade muito controver-
tida entre os colonos e as autoridades, voltaram os coloniza-
dores do Brasil vistas cobiçosas para as terras da Africa e
daí retiraram a mais rica mercadoria que Ihes não forneciam
os silvícolas americanos. Os portugueses saídos de uma zona
temperada para se estabelecerem em um clima ardente, di-
verso do da metrópole, seriam incapazes de resistir ao rigor
dos trópicos, de desbravar florestas e arrotear as terras sem
o concurso de um braço mais afeito à luta nessas regiões es-
brasiadas e combatidas pelo impaludismo devastador.
Ao reinol, pois, que trazia o propósito de enriquecer
com menos trabalho, fácil lhe foi encontrar nisto razão e jus-
tificativa para se utilizar do colono negro, adquirido na Africa.
Sem isso, difícil senão impossível era pegar no País
a colonização com elemento europeu, tanto mais quanto ao
iniciar-se esta, afora os serventuários da alta administração,
as primeiras levas eram de degredados, de indivíduos viciosos
e soldados de presídio.
Foi, portanto, mister importar desde cedo, o africano
e dentro em pouco tempo os navios negreiros despejavam na
metrópole da América Portuguesa e em outros pontos cen-
tenas e centenas de africanos, destinados aos trabalhos da
agricultura e a todos os outros misteres. As próprias expe-
dições bandeirantes não lhe dispensavam o concurso, pois que
de quanto podia servir o negro nada se perdia.

5 Stanley, Atraves do Continente Negro, Vol. 2.", p . 362.


6 cape110 e Ivens, De Bengueiia às ~ é r r a sde ~ a c c i Vol.
, I.', p.
105.
A primeira folheta de ouro encontrada na margem do
Rio Funil, em Ouro Preto, coube a um preto bandeirante; bem
como a descoberta do diamante "Estrela do Sul". Laborioso
como era, muito embora com o corpo seviciado pelos açoites
do feitor, estava sempre o escravo negro, obediente as suas
determinações, com verdadeiro estoicismo .
No fim do século XVII começaram a exploração das
minas. O tráfico africano aumentou de intensidade, e as en-
tradas do colono preto, no País, foram muito maiores. Cres-
ceu, portanto, a cobiça e o parasitismo tomou o aspecto de
uma instituição social, com todo o cortejo de vícios e mal-
dades.
No domínio espanhol, a plebe que na terra natal "gru-
nhia na mais negra miséria, buscando no furto e na mendici-
dade diversão e remédio às torturas da fome, mas, julgando
sempre o trabalho abaixo da sua dignidade", igualmente as-
sumia proporções arrogantes de nobreza e valimento .
A idéia de riqueza fácil banira da mente do aventureiro
faminto o amor do trabalho, que era considerado uma fun-
ção degradante. Por mais respeitável que fosse a ocupação
era ela desprezada pelos reinós de pretensões afidalgadas .
Esta circunstância, porém, favoreceu aos homens de cor nas
aplicações mecânicas, e mesmo algumas liberais, cuia apren-
dizagem valia como um castigo infligido aos humildes, como
se fora ocupação infamante. Só a estes era dado trabalhar.
"Foi sobre o negro, importado em escala prodigiosa, que o
colono especialmente se apoiou para o arrotear dos vastos
territórios conquistados no Continente sul-americano . Robus-
to, obediente, devotado ao serviço, o africano tomou-se um
colaborador precioso do português nos engenhos do Norte,
nas fazendas do Sul e nas minas do Interior" (7).
Com esse elemento, o reino1 ambicioso e traficante viu
crescer a febre da descoberta dos diamantes e do ouro.
"Luxava-se por ingênua vaidade, por exagerada osten-
tação, por vanglória de enricados, por tédio sobretudo".
Uma testemunha da época escreveu:
"Vestem-se as mulheres e filhos, de toda c! sorte de ve-
ludos, damascos e outras sedas; e nisto têm grandes excessos.
"São sobretudo dados a banquetes, e bebem cada ano
dez mil cruzados de vinho de Portugal e alguns anos houve
que beberam oitenta mil cruzados dados em rol. Banquetes
de extraordinárias iguarias.. . e agasalham em leitos de da-
masco, carmecim, franjado de ouro e ricas colchas da fndia".

7 Oliveira Lima, Aspectos da Literatura Colonlal Brasíleba


Sem esquecimento, já se.&, dos serviços de prata, pa-
lanquins, cavalos de preço com os respectivos guiões e selas
de ouro, tudo adquirido pelo esforço do herói do trabalho que
era o africano escravo, dócil e laborioso; pois o reino1 acos-
tumara-se a gozar o fruto do trabalho sem sentir-lhe o peso.

CAPITULO 111

Primeiras idéias de liberdade, o suicídio e a eliminação vio-


lenta dos senhorios.
O castigo nos engenhos e fazendas, se não requintava,
em geral, em malvadez e perversidade, era não raro severo,
e por vezes cruel. Mas, apontavam-se com repulsa social, os
senhores que disso abusavam. Ora era o escravizado preso,
conduzido pelo capitão-do-mato, que o obrigava a acompa-
nhar os passos da cavalgadura; ora eram dois possantes es-
cravizados de azorrague em punho a açoitarem a um parcei-
ro, cortando-lhe as carnes, até expirar, na presença do algoz
que assistia, satisfeito, àquela cena de canibalismo, vaidoso
da sua incontida prepotência.
Ali, um escravizado preso ao tronco e as vezes pelo
pescoço, sob a ação do suplício da fome e da sede, sem con-
seguir alcançar o alimento ou o vaso de água colocados pro-
positadamente Fora do alcance das mãos, enquanto os roe-
dores mordiam-lhe os pés.
Depois, é uma vítima que esteve no vira-mundo, a m a r
rada ao costado de um animal e mandada atirar longe do po-
voado, para sucumbir à míngua de qualquer recurso.
A nostalgia apoderou-se dos infelizes; e o filho do de-
serto adusto, recordando a impetuosidade do vento, o murmú-
rio brando da cascata, o eco adormecido das florestas do tor-
rão natal, angustiado pelo rigor da escravidão cniel, mortifi-
cado de pesares, uma única idéia lhe perpassava na mente, um
pensamento único lhe assaltava o espírito: a idéia sacrossanta
da liberdade qur ele tinha gravada no íntimo de sua alma.
E houve quem se apiedasse do seu infortúnio cansa-
grando-lhe estes consoladores versos. . .

Nas minhas carnes rasgadas,


Nas faces ensangüentadas
Sinto as torturas de cá;
Deste corpo desgracaclo
Meu espírito soltado
Não partiu - ficou-me lá!
Naquelas quentes areias,
Naquela terra de fogo,
Onde livre de cadeias
Eu corria em desafogo. . .
Lá nos confins .do horizonte. . .
Lá nas planícies. . . no monte. . .
Lá nas alturas do Céu. . .
De sobre a mata florida
Esta minha alma perdida
Não veio - s6 parti eu.

A liberdade que eu tive


Por escravo não perdia-a;
Minh'alma que lá só vive
Tornou-me a face sombria
O zunir do fero açoite
Por estas sombras da noite
Não chega, não, aos palmares
Lá tenho terra e flores. . .
Minha mãe. . . os meus amores. . .
Nuvens e céus. . . os meu lares (8).
r-

E como conquistar a liberdade?


Como adquiri-la ou reavê-la?
Os mais impacientes atiravam-se à correnteza dos rios
ou as -águas revoltas do mar, atenazados por desespero sem
nome, na incerteza de obter o bem perdido, sem a mais
ienue miragem da esperança, sob a esmagadora persuasão de
resultarem na terra amada.
"Seis escravos cantavam, como se nunca tivessem sen-
tido a sua abjeção, nem o peso do forcado que tinha no pes-
coço.
"Perguntei-lhes a causa da sua alegria: eles responde-
ram-me que se regozijavam de vir depois da morte, atorincn-
tar e matar aqueles que os tinham vendido" (9).
Os estrangulamentos voluntários, as bebidas tóxicas e
suplícios outros foram os mais prontos recursos de que lan-
çaram mão para extinguir uma existência tão penosa. Depois;
entenderam os escravizados que o senhorio era quem devera
padecer morte violenta, a que se entregavam os ini-ortunados
cativos.

8 José Bonifácio - O m6ç0, Saudades do Escravo


9 David Livingstone, Explorações Africanas.
Não vacilaram um instante e puseram em pratica os
envenenamentos, as trucidações bárbaras do sephorio, dos
feitores e suas famílias. Era a vingança a rugir-lhes n'alrna;
era a repulsa provocada pelos desesperos que Ihes inspirava
Q horror da escravidão. A perversidade de trato contra os es-
cravizados torturava o paciente, e ao espírito lhe acudia a re-
presália mais extravagante.
Reconhecida, porém, a ineficácia de todas essas violén-
cías, o próprio africano recuou de horror, tornando por outro
FUmO .
Recorreram então à fuga e à resistência coletiva, es-
condidos nas brenhas, onde organizaram verdadeiros núcleos
de trabalho.

Resistência coletiva, Palmares, levantes parciais.


De quantos martírios aqui acabrunharam o coração da
raça africana, teve esta, no entanto, um momento de expan-
sivo desafogo, quando, desertando os engenhos e fazendas, os
escravos constituíram a confederação de Palmares, em defesa
de sua liberdade.
A Roma antiga, que tantos povos escravizou, viu um
dia, estupefacta e aterrada, um Espartaco à testa de um exér-
cito de escravos.
No Brasil a escravidão também impeliu o africano a
suas revoltas, e ao seu desforço. Lá foi a guerra servil com
todos os seus horrores; em Palmares os elementos ai congre-
gados não tiveram por alvo a vingança: bem ao contrário, o
seu objetivo foi escapar à tirania e viyer em liberdade, nas
mais legítimas aspirações do homem.
Os escravos gregos eram instruídos tanto,nos jogos pú-
blicos como na literatura, vantagens que o africano escraviza-
do na América não logrou possuir, pois o rigor do cativeiro
que não consentia o menor preparo mental, embotava-lhe a
inteligência. Sem embargo, mostrou-se superior às angústias
do sofrimento, e teve gestos memoráveis de revolta buscando
organizar sociedade com governo independente. Conhecia as
organizações guerreiras e se predispôs para a defesa de sua
cidadela de Palmares, e para as incursões oportunas no ter-
ritório vizinho e inimigo.
Não desprezava as melodias selvagens adaptadas aos
seus cantos de guerra.
O escravo grego ou romano, abandonando o senhorio,
não cogitava de se organizar em sociedade regular, em terri-
rório de que porventura se apoderava; vivia errante ou em
bandos entregues a pilhagem.
A devastação, de que se fizeram pioneiros os escravos
romanos, inspirava terror a todos os que tinham notícias de
sua aproximação. Os fundadores de Palmares não procederam
de igual modo; procuraram refúgio no seio da natureza vir-
gem e aí assentaram as bases de uma sociedade, a imitação
das que dominavam na Africa, sua terra de origem, sociedade
aliás mais adiantada do que as organizações indígenas.
Não era uma conquista movida pelo ódio, mas uma afir-
mação legítima do desejo de viver livre, e, assim, possuíam os
refugiados dos Palmares as suas leis severas contra o roubo,
G homicídio, o adultério, as quais, na sua vida interna ob-
servavam com rigor.
Não os dominava o ódio contra o branco; perdoaram
e esqueceram mágoas, pondo-se a salvo, pelo amor da liber-
dade, pois que toda a sua aspiração cifrava-se na alegria de
viver livre.
Na sociedade de Palmares não medravam os vagabun-
dos e malfeitores; a vida de torturas das senzalas substituí-
ra-se pelo conforto natural e aparelhado.
Quando o civilizado chegava até a entrar em dúvida, se
o africano ou o índio tinha alma e os mais tolerantes mal a
concediam somente depois de batizado, o filho do Continente
negro dava provas de que a possuía, revoltando-se com in-
dignação contra a iníqua opressão de que era vítima, e im-
~ o n d oa força a sua liberdade e independência. "De todos os
protestos históricos do escravo, Palmares é o mais belo, o
mais heróico. É uma Tróia negra, e sua história uma Ilía-
da" (10).
"Palmares formam a página mais bela do heroísmo
africano e do grande amor da independência que a raça deixou
na América" ( 11) .
A derrota de Palmares estimulou o senhorio no jugo
ferrenho em que trazia o escravizado; era a reação requintada
pela previsão do perigo. O escravo do Recôncavo da Bahia,
principalmente, era, no geral, mal alimentado e não raro, por
vestuário, possuía apenas a tanga de tênue pano de aniagcm.
Mas o africano escravo não descansava, mantinha fir-
me a idéia de conquistar a liberdade perdida, por qualquer
meio. O governador Conde da Ponte, em 1807, ordenara me-
didas severas contra os quilombos, que se multiplicavam em
desmedida. Tornaram-se os senhores ainda mais cruéis, ao

10 Oliveira Martins, Portugal e as Coli3nias.


11 Rocha Pombo, H. do Brasil - vol. 2:

1.52
mesmo passo que aumentava r? rancor e despertava a sede
de vingança, nos infelizes. Prova-o a série crescente de le-
vantes, em toda a parte, qual mais, qual menos importante,
seguidos de mol-ticínios. A coragem dos revoltados, a serviço
da liberdade própria, lifio media sacrifícios, não se confor-
mava com o injusto sofrirriento. Era preciso lutar, e lutar
muito atendendo 2 desigualdade de condições.
"Incendido o ódio implacável no peito desses míseros
humanos, pelos bárbaros castigos e maus tratos que Ihes in-
fligiam os se~ihores,era natural que explodisse uma conspira-
ção infernal. Em 28 de fevereiro de 1814, na Bahia, flagelados
pela Some e desesperados pelo excesso de trabalho e pela ha-
bitual crueldade dos feitores, rebelaram e armados assaltaram
as casas e senzalas das armações, em Itapoã.
"As tropas da Legião da Torre tiveram no mesmo dia
vários encontros com os rebeldes junto de Santo Arnaro de
Ipitanga .
"Os pretos investiam contra elas tão desesperados e em-
bravecidos que só cediam na luta quando as balas os prostra-
vam em terra (12)".
A tropa, como de costume, procurava agir sem fazer
mortandade no intuito de poupar aos senhores a perda dos
seus escravos rebelados. Mas estes preferiam perder a vida,
lutando pela sua liberdade, e batendo-se com denodo, deses-
peradamente. Não foram poucos os Espartacos africanos que
no Brasil preferiram a morte ao cativeiro.

CAPfTULO V

As juntas para as alfovias


Extenuado por uma série de lutas constantes, cercea-
do por todos os meios, em suas aspirações, mas, firme, re-
soluto, confiante em seu ideal, o africano escravo não se de-
siludiu, não desesperou; tentou outro recurso, na verdade,
mais conforme com o espírito de conservação - a confiança
no trabalho próprio.
Conta-nos o infortunado escritor Afonso Arinos, no ex-
celente artigo "Atalaia Bandeirante", que a igreja de Santa
Ifigênia, no Alto da Cruz, em Minas, guarda a lenda de um
rei negro e toda a sua tribo, transportada para aquele Estado
como escravos, e "nivelados pelo mesmo infortúnio soberano

12 Dr. Caldas Britto, Levantes de Pretos na Bahii.


153
e vassalos, estes guardaram sempre ao rei a antiga fé, o mes-
mo amor e obediência".
E acrescenta ao mesmo escritor:
"A custa de um trabalho insano, feito nas curtas horas
reservadas ao descanso, o escravo rei pagou a sua alforria.
"Forro, reservou o fruto do seu trabalho para compras
a liberdade de um dos da tribo; os dois trabalharam juntos
para o terceiro; outros para o quarto, e assim, sucessivamen-
te, libertou-se a tribo inteira. Então, erigiram a capela de San-
ta Ifigênia, princesa da Núbia.
"Ali, ao lado do culto à padroeira, continuou o culto
ao rei negro, que, pelos seus, foi honrado como soberano e
legou
- às gerações de agora a lenda suave do Chico-Rei".
Praticavam aqui na Bahia, quase o mesmo, os africanos.
Ainda não existiam as caixas econômicas, pois que a primeira
fundada na Bahia data de 1834, não se cogitava ainda das
caixas de emancipação e das sociedades abolicionistas, antes
mesmo de se tornar tão larga como depois se tornou a ge-
nerosidade dos senhorios, concedendo cartas de alforria ao
festejarem datas íntimas, e já havia as caixas de empréstimo,
destinadas pelos africanos à conquista de sua liberdade e de
seus descendentes, caixas a que se denominavam - junta^'^.
Com esse nobilíssimo intuito reuniam-se sob a chefia
de um deles, o de mais respeito e confiança, e, constituíam a
caixa de empréstimos. Tinha o encarregado da guarda dos
dinheiros um modo particular de notações das quantias rece-
bidas por amortização e prêmios.
Não havia escrituração alguma; mas, a proporção que
os tomadores realizavam as suas entradas, o prestamista ia
assinalando o recebimento das quantias ou quotas combina-
das, por meio de incisões feitas num bastonete de madeira
para cada um.
Outro africano se encarregava da coleta das quantias
para fazer entrega ao chefe, quando o devedor não ia levar,
espontaneamente, ao prestamista a quota ajustada.
De ordinário, reuniam-se aos domingos para o recebi-
mento e contagem das quantias arrecadadas, comumente em
cobre, e tratarem de assuntos relativos aos empréstimos rea-
lizados.
Se o associado precisava de qualquer importância, as-
sistia-lhe o direito de retirá-la, descontando-se-lhe, todavia, os
juros correspondentes ao tempo. Se a retirada do capital era
integral, neste caso, o gerente era logo embolsado de certa
percentagem que lhe era devida, pela guarda dos dinheiros
depositados. Como era natural, a falta de escrituração pro-
porcionava enganos prejudiciais às partes.
As vezes, o mutuário retirava o dinheiro preciso para
sua alforria, e, diante os cálculos do gerente, o tomador pa-
gava pelo dobro a quantia emprestada.
No fim de cada ano, como acontece nas sociedades anô-
nimas ou de capital limitado, era certa a distribuição de di-
videndos. Discussões acaloradas surgiam nessa ocasião, sem
que todavia os associados chegassem as vias de fato, tornan-
ao-se desiiecessarna e improticua a intervenção policial.
E assim auxiliavam-se mutuamente, no interesse prin-
cipal ae oorerem suas cartas de airorria, e dela usarem como
se se encontrassem ainaa nos sertoes arricanos. Kesgatavam-
se, pelo auxiiio mutuo ao esrorço paciente, esses nerois do
trauamo .
CAPITULO VI
O africano na família, seus descendentes notáveis
Percorrendo a história, deixando iluminar-
nos a Pronte a luz amarelenta das cronicas, não
sapemos ao certo quem maior influencia exer-
ceu na iormação nacional desta terra, se o por-
tugues ou o negro. Chamado para juiz nesta cau-
sa, necessariameilte o nosso voto não pertence
ao primeiro. (Mel10 Moraes Filho) .
A agricultura foi a fonte inicial e perene da riqueza do
País.
Orientada por processos acanhados, rotineiros e super
ficiais, nem por isso deixou de medrar e desenvolver-se sob a
atividade e influxo do trabalho escravo. Todo o esforço fí-
sico do africano caracterizava-se na idéia de se aproveitar a
maior soma de produção agrícola, donde os colonizadores pu-
dessem colher farta messe de proventos, e só depois de delida
a resistência muscular do escravizado pelos rigores do eito e
da canícula, e, sobretudo, pela idade, é que se lhe permitia,
em paga de tantas fadigas, entregar-se a outros misteres no
interior dos lares, e isso quando a morte o não surprendia
em meio dos rudes labores dos campos.
Uma vez removido para o lar doméstico, o escravo ne-
gro, de natureza afetiva, e, no geral, de boa índole e com a
sua fidelidade a toda a prova, a sua inteligência, embora in-
culta, conquistava a estima dos seus senhores pelo sincero
devotamento, e sua dedicação muitas vezes até ao sacrifício.
Foi no lar do senhorio que o negro expandiu os mais nobres
sentimentos de sua alma, colaborando, com o amor dos pais,
na criação da tenra descendência dos seus amos e senhores,
com o cultivo da obediência, do acatamento, da respeito à
velhice e inspirando simpatia, e mesmo amor a todas as pes-
soas da família.
As mães negras eram tesouro de ternura para os se-
nhores moços no ilorescimento da família dos seus senhores.
Desse convívio no lar, resultaram as diversas modali-
dades do serviço mais íntimo, surgiram então a mucama de
confiança, o lacaio confidente, a ama de leite carinhosa, os
pajens, os guarda-costas e criados de estima.
Trabalhador, econômico e previdente, como era o afri-
cano escravo, qualidade que o descendente nem sempre con-
servou, não admitia a prole sem ocupação lícita e, sempre que
lhe foi permitido, não deixou jamais de dar a filhos e netos
uma profissão qualquer. Foi o trabalho do negro que aqui
siistentou por séculos e sem desfalecimento, a nobreza e a
prosperidade do Brasil: foi com o produto do seu trabalho
que tivemos as instituições científicas, letras, artes, comércio,
indústria, etc., competindo-lhe, portanto, um lugar de desta-
que, como fator da civilização brasileira.
Quem quer que compulse a nossa história certificar-ãe-
á do valor e da contribuição do negro na defesa do território
nacional, na agricultura, na mineração, como bandeirante, no
movimento da independência, com as armas na mão, como
elemento apreciável na família, e como o herói do trabalho
em todas as aplicações úteis e proveitosas. Fora o braço pro-
pulsor do desenvolvimento manifestado no estado social do
país, na cultura intelectual e nas grandes obras materiais, pois
que, sem o dinheiro que tudo move, não haveria educadores
nem educandos: feneceriam as aspirações mais brilhantes, dis-
sipar-se-iam as tentativas mais valiosas. Foi com o produto
do seu labor que os ricos senhores puderam manter os filhos
nas Universidades européias, e depois nas faculdades de en-
sino do País, instruindo-os, educando-os, donde saíram vene-
ráveis sacerdotes, consumados políticos, notáveis cientistas,
eméritos literatos, valorosos militares, e todos quantos, ao de-
pois fizeram do Brasil colônia, o Brasil independente, nação
culta, poderosa entre os povos civilizados.
Do convívio e colaboração das raças na feitura deste
País, procede esse elemento mestiço de todos os matizes, don-
de essa plêiade ilustre de homens de talento que, no geral,
representaram o que há de mais seleto nas afirmações do sa-
ber, verdadeiras glórias da nação. Sem nenhum esforço pu-
demos aqui citar o Visconde de Jequjtinhonha, Caetano Lopes
de Moura, Eunápio Deiró, a privilegiada família dos Rebouças,
Gonçalves Dias, Machado de Assis, Cruz e Souza, José Agos-
tinho, Visconde de Inhomirim, Saldanha Marinho, Padre José
Maurício, Tobias Barreto, Lino Coutinho, Francisco Glicério,
Natividade Saldanha, José do Patrocínio, José Teófilo de Jesus,
Damião Barbosa, Chagas, o Cabra, João da Veiga Wdrici e
inuitos outros, s6 para falar dos mortos. Circunstância essa
que nos permite asseverar que o Brasil possui duas grandezas
reais: a uberdade do solo c o talento do mestiço.
Tratando-se da riqueza econômica, fonte da organização
nacional, ainda é o colono preto a principal figura, o fator
máximo.
São esses os florões que cingem a fronte da raça per-
seguida e sofredora que, a extinguir-se, deixará jmorredoiras
provas do seu valor incontestável que a justiça da história há
de respeitar e bem dizer, pelos inestimáveis servicos que nos
prestou, no período de mais de três séculos.
Com justa razão disse um patriota:

"Quem quer que releia a história


Verá como se formou
A nação, que só tem glória
No africano que importou".

T H E REACK SETTLER AS A FACTOR IN THE


BRAZILIAN CIVILIZATION

Manuel Querino is one o f the most important names in


the Ethnographv and Arts History in Brazil.
It is fundamental to include, nowadays, his contribution
to the study of the Negro in Brazil, among the basic biblio-
graphy on this subject.
Thus, the revubíication of this ~ ~ o printed
rk for the first
time in 1918 is just, since it has become a bibliographic
rarity .
Particutarly important on the text refered to, are the re-
ferences to the Negro's resistance movements and to the esta-
blishmmt of beneficia1 entities exclusively black.
Closing his work, Manuel Qtterino recalls the Negro con-
tribution to~the most diverse activities in the Brazilian society,
making a list o f persortalities who ueally secured a place zn the
Brazilian history .
LE COLON NOIR COMME FACTEUR DE LA
CIVILISATION BRÉSILIENNE

Manuel Buerino est I'un des noms le vlus important dans


Z'Ethnographie et l'Histoire des Arts d Bahia.
lL'inclusion, aujourd'hui, de sa contribution d l'étude du
Noir au Bvésil, au milieu de la bibliographie esserttielfe sur
ce sujet, est fondamentale.
Pourtant, c'est juste ta républication de eet suvrage, im-
primé, pour ta première fois, en 1918, puisqu'il est devenu une
rareté bibliographique .
Les références aux mouvements de vesistance du Nègre
et à la création d'entités benefactrices exclusivement noires
présentées sur ce texte sont d'une importance toute particu-
Zière .
A lu fin de son ouvrage, Manuel Querino rappelle de nou-
veau la contribution du Noir atrx plus diverses activités de
Ia societf brésilienne, en élaborant une liste de personnalités
qui ont definitivement conquis leur place dans Z'histoire de
la Cznlture brésilienne .

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