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“Casas bandeiristas” na construção da

identidade paulista: um estudo da casa seiscentista


de Santana de Parnaíba/SP
"Casas bandeiristas" in the construction of the identity of
the native of São Paulo: the case of the seventeenth-century
house of Santana de Parnaíba/SP
Daniel Martins Barros Benedito
Graduado em História
Universidade Federal de São Paulo (São Paulo)
[email protected]
Recebido em: 09/04/2017
Aprovado em: 30/08/2017

RESUMO: Este artigo investiga a história que circulou nos órgãos de preservação do patrimônio,
levando ao tombamento de uma casa de taipa de pilão na cidade de Santana de Parnaíba, Estado
de São Paulo, apontada como sendo uma construção seiscentista, porém não comprovada pela
pesquisa histórica. Foi tombada em 1957 e utilizada para instalação de museu entre 1962 e a
atualidade, contando com uma nova museografia a partir de 2014. Apesar de ter documentada uma
história de que a casa pertenceu a ex-escravos, a exposição atual não mostra esse elemento, pelo
contrário, omite-o e mostra a história sobre os primeiros moradores dela baseada na história mítica
dos bandeirantes. O motivo dessa mudança é entendido como sendo parte de uma política cultural
exitosa do projeto de nação de agentes dos órgãos de preservação do patrimônio que trabalharam
a memória coletiva e as exclusões a partir de gostos pessoais.

PALAVRAS CHAVE: Casas Bandeiristas, História-memória, Santana de Parnaíba.

ABSTRACT: This article investigates the history that circulated in the organs of preservation of
the patrimony, leading to the tipping of a house of pounded clay in the city of Santana de Parnaíba,
State of São Paulo, indicated as being a seventeenth - century construction, but not proved by the
research Historical. It was registered in 1957 and used for installation of a museum between 1962
and present, with a new museography from 2014. Despite having documented a history of the
house belonging to former slaves, the current exhibition does not show this element, at least On
the contrary, he omits it and shows the story about the first inhabitants of it based on the mythical
history of the bandeirantes. The reason for this change is understood to be part of a successful
cultural policy of the nation project of agents of the organs of preservation of the patrimony that
worked the collective memory and the exclusions from personal tastes.

KEYWORDS: Bandeirista Houses, History-memory, Santana de Parnaíba.

Temporalidades – Revista de História, ISSN 1984-6150, Edição 24, V. 9, N. 2 (mai./ago. 2017) 107
Seleção dos bens da nação

Lowande1 aponta para o surgimento de uma “bibliografia” sobre patrimônio e um balanço


das práticas patrimoniais quando ocorrem “carências de sentido” no que vinha sendo praticado.
Foi assim quando houve a substituição de Rodrigo Melo de Franco Andrade por Renato Soeiro e
depois por Aloísio Magalhães na direção do Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional
(SPHAN), atual Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN). Olhando para
este passado e para prática, convencionou-se sintetizar o que o órgão fez sob a direção do Dr.
Rodrigo como fase heróica. Verificamos perdas de sentido nos monumentos não intencionais, ou
seja, que não foram criados deliberadamente para rememoração, tal como nas estátuas2, mas que
no processo de consagração foram refeitos nas temidas restaurações estilísticas. Não estão claros
os valores mobilizados para o tombamento e se os bens tombados fossem objeto de estudos e
tombamentos na atualidade, necessitariam de uma maior explicação de sua escolha, pois são na
verdade projetos próprios dos especialistas, mantendo a população longe desse debate.

Este artigo é um resumo de um trabalho de conclusão de curso de graduação em História


pela UNIFESP sob a orientação de Lucília Santos Siqueira e de certa maneira se vincula ao grupo
de estudo sob sua orientação, o GVEPP – Grupo de Visitas, Estudo e Pesquisa em Patrimônio. O
objetivo dessa investigação é entender a história que se produziu e circulou nos órgãos de
preservação e suas releituras sobre a casa supostamente seiscentista de Santana de Parnaíba, cidade
da região metropolitana de São Paulo, Estado de São Paulo.

A metodologia consistiu na análise da documentação produzida no período de


tombamento, ocorrido de 1957 até 1959, quando houve uma breve pesquisa para inscrição no livro
do tombo e sua restauração. Entretanto, observamos na superintendência do IPHAN, em São
Paulo, outros documentos “apócrifos” de grande importância para compreender melhor a
atividade administrativa, jurídica e de certa maneira remontar o passo a passo da ação, que não
foram incluídos nos processos nº 557-T de 1958 e 520-T. A periodização da documentação
armazenada na superintendência paulista do IPHAN recua aos anos de 1941 e estende-se até

1 LOWANDE, Walter Francisco Figueiredo. Orientando-se em meio a lapsos: considerações sobre a produção
historiográfica relativa às políticas públicas de preservação patrimonial no Brasil. Revista CPC, São Paulo, n.15, p.
050-066, nov. 2012/abr. 2013
2 Sobre os monumentos intencionais dos não intencionais ver: RIEGL, A. El culto moderno a los monumentos.

Madrid: Machado Libros S.A, 2008, p. 29. Os monumentos intencionais a construção de sentido é algo intrínseco e a
memória sobre o monumento imediata seja pela coisa só ou por suas legendas de identificação já o monumento não
intencional o valor e o sentido são construídos com maior dificuldade e relembrar por qual motivo tem valor é mais
difícil.

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meados de 2009. Cruzando os dados obtidos pela análise das fontes com todo referencial teórico
escrito sobre a atuação do IPHAN, de Luis Saia à restauração, pode-se visualizar um panorama em
consonância com a temática da edição da Revista Temporalidades.

Nas brochuras turísticas de Santana de Parnaíba, sites e outros instrumentos de divulgação


do turismo, a casa térrea de nº 09 é apresentada como sendo a única casa bandeirista urbana do
segundo século. São duas casas vizinhas, sendo uma térrea de nº 09, apresentada como do século
XVII. Possui janelas e portas com verga reta e esquadrias de cor preta, pelo uso do extrato de
nogueira. Conta também com janelas de assento, popularmente conhecidas como conversadeiras.
A outra edificação de dois pavimentos e com duas numerações, 19 e 25, é um sobrado que possui
esquadrias em cor verde e as portas e janelas com arco abatido, apresentada como do final do
século XVIII e início do XIX.

No atual museu instalado nas duas casas, existem diversos painéis com narrativas sobre a
história local, divididos em módulos temáticos. O módulo de arquitetura é assinado pelo arquiteto
Victor Hugo Mori e apresenta detalhes da casa seiscentista, entretanto sem citar os termos
bandeirista urbana ou bandeirista. Mori aponta também que tanto a casa térrea quanto a de dois
pavimentos foram construídas e cobertas por um mesmo telhado, detalhe que podemos constatar
através de uma marca na parede de Taipa, que possui uma parte construída com a técnica do adobe,
o que marcaria os séculos XVII e XVIII respectivamente.

Não foi considerada para fins de tombamento uma pesquisa mais apurada sobre esses
imóveis, como demonstraremos ao longo do texto, sendo usado um recurso turístico muito comum
na cidade de Santana de Parnaíba, de se vincular tudo à história dos sertanistas conhecidos como
bandeirantes e por muitas vezes é feita uma associação da propriedade dessas construções a essas
figuras míticas de forma arbitrária e sem critérios de análise aprofundados.

O processo de seleção dos bens culturais nacionais a serem protegidos foi uma iniciativa
da elite dos intelectuais brasileiros em torno de Capanema na era Vargas:

Essa geração de jovens intelectuais e políticos [...] converteu sua tomada de


consciência do legado barroco em ponto de partida de toda uma política de
revalorização daquele repertório que eles mesmos mapearam e definiram como
uma “identidade nacional” iluminista no tropico dependente [...] amostra
requintada e reverenciada das culminâncias de seu universo simbólico e, ao
mesmo tempo, o inventário, arrolado à sua imagem e semelhança, dos grandes
feitos, obras e personagens do passado. A política do patrimônio ostenta essa
marca classista em tudo que lhe diz respeito. 3

3 MICELI, Sérgio. Intelectuais à brasileira. São Paulo: Companhia das Letras, 2001

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Dentro dessa elite, o discurso não foi homogêneo, contando com as mais diversificadas
correntes sobre a evolução da nação. Lowande4 aponta para o grupo em torno da sociedade de
etnografia e folclore de São Paulo com Mário de Andrade e Luis Saia, sendo sua versão de nação a
cultura primitiva paulista dita mameluca.

Em 1944, dentro do projeto editorial da Revista IPHAN, Luis Saia publicou um artigo
intitulado “Nota Sobre Arquitetura Rural Paulista do Segundo Século” lançando sua versão e sua
orientação dentro da repartição sobre um tipo de residência rural que “induzem a considerar como
solução arquitetônica típica para fazendeiros mais abastados do Século XVII”. Em sua definição,
consta que este tipo arquitetônico é construído em forma retangular com paredes em taipa de pilão,
com quatro inclinações de telhado, nas proximidades de um riacho a meia encosta e com o seguinte
esquema: faixa fronteira com capela, alpendre, quarto de hóspede, corredor central, quartos nos
fundos e laterais. Dentro deste artigo, a casa seiscentista de Santana de Parnaíba é pouco
apresentada, são citados apenas os elementos comuns às outras casas. Esses detalhes, segundo Saia,
sugeririam uma longevidade comparável a essas casas rurais, porém, apesar de pesquisas, não foram
descobertas precisamente informações importantes.

Ao analisarmos São Paulo nas origens das práticas patrimoniais, observamos que o Estado
de São Paulo não foi destino favorito desses intelectuais por várias razões explicadas por sua
história, como os estrangeirismos, ecletismo e classicismo, trazidos pela riqueza do café, o que
excluiu as vilas operárias, festas populares e estações ferroviárias que teriam uma importância
rememorativa muito grande para grupos que não dispunham de recursos para verem protegidos
elementos de seu passado. Os projetos de nação dos especialistas eram levados a cabo às vezes
durante uma vida toda ou tombando capelas, igrejas, quartéis, fortes ou edificações civis.

Durante as festividades do IV centenário da fundação da cidade de São Paulo (1954), várias


ações foram feitas por políticos e intelectuais resgatando um passado glorioso, heróico e fantasioso
5
da pobreza dos sertanistas, maloqueiros, mamelucos ou portugueses de São Paulo .
Arbitrariamente, durante a restauração de uma casa nos “padrões” estabelecidos por Luis Saia
como sendo seiscentista, a casa do Butantã, Saia escreve um artigo mudando o nome das casas que
ele passou a vida estudando de casas rurais sedes de fazendas para Casas Bandeiristas 6.

4 LOWANDE. Orientando-se em meio a lapsos: Revista CPC, p. 050-066.


5SPOSITO, Fernanda. Santos, heróis ou demônios? Sobre as relações entre índios, jesuítas e colonizadores na
América meridional (São Paulo e Paraguai, séculos XVI e XVII). Tese de Doutorado em História Social. São Paulo:
FFLCH/USP, 2013.
6 SAIA, Luís. Morada Paulista. São Paulo: Editora Perspectiva – 3ª ed. – 1ª reimp. 2005.

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Cada um dos intelectuais tinha o seu projeto de nação, buscando para isso patrimonializar
seus projetos, tal qual aconteceu com os pedidos de tombamento encabeçados por Lucio Costa.
Com o apoio da rede de intelectuais ufanistas, a partir de 1954, Costa se propôs a realizar o
tombamento da casa seiscentista de Santana de Parnaíba. Herman Hugo Graeser ficou incumbido
de localizar os proprietários da casa térrea e do sobrado. Localizou apenas dados referentes aos
donos do sobrado, que moravam no bairro paulistano do Ipiranga, porém em relação à casa térrea
seiscentista, nosso objeto de estudo, Graeser não encontrou nenhuma informação.

Para realizar a pesquisa histórica, foi emprestada a professora efetiva do magistério


secundário oficial, Maria Regina da Cunha Rodrigues. O trabalho de pesquisa foi postergado até
depois do tombamento do imóvel em 1959, ano em que estava acontecendo a restauração. O
Ministro de Educação e Saúde havia feito um pedido para que o governo do Estado de São Paulo
cedesse uma professora para realizar as pesquisas e o IPHAN se encarregaria de remunerá-la. A
questão de falta de pessoal sempre foi e é um dos grandes impasses no patrimônio, de início com
o patrimônio edificado e nos tempos atuais com o patrimônio imaterial. Nesse caso, houve a
necessidade de pedir por empréstimo os serviços da servidora estadual. Nas orientações de Lucio
Costa observamos:

[...] Contudo, não é necessário nem mesmo talvez aconselhável o recurso a


historiadores de profissão uma vez que a curiosidade de ofício os conduz
insensivelmente a pesquisas laterais demoradas e absorventes com prejuízo dos
informes simples e precisos que interessam à repartição. (...) O que importa é a
circunspeção do pesquisador [...]. 7
Em diversas ocasiões, pode-se verificar que a pesquisadora cobrou o IPHAN sobre seus
pagamentos, como por exemplo no ofício enviado por Luis Saia ao Rio de Janeiro que faz menção
ao trabalho realizado por Maria Regina, na produção de 150 fichas de janeiro a abril de 1959:

Finalmente incerto de quanto se deva pagar à Dona Maria Regina pelo seu
trabalho, embora desde as suas primeiras indagações, eu tenha me abstido de
opinar, devo juntar a este relatório uma cópia de carta da referida pesquisadora
de data de 11 de fevereiro de 1959, a qual há referencias a respeito da
remuneração que recebia como professora efetiva do magistério secundário
oficial do Estado. Julgo este dado interessante para o processo de avaliação da
remuneração devida a senhora Maria Regina. 8
No serviço do patrimônio, os historiadores não foram grandes expoentes de produção de
pesquisa ou de decisão sobre os bens da nação. Em um ofício durante as pesquisas para o
tombamento, no ano de 1957, Luis Saia aponta que a pesquisadora estava desalinhada em relação

7 RIBEIRO, Marcus Tadeu Daniel. Entre o ser e o coletivo o tombamento das casas históricas. In: Revista do
Patrimônio Histórico e Artístico Nacional. Brasília: IPHAN, 2012.
8 Documentos armazenados na Superintendência do IPHAN em São Paulo.

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a uma forma de trabalho que Saia achava mais “interessante”. Maria Regina seguia por várias linhas,
estudando de arquitetura tradicional a inventários e testamentos, buscando uma enorme quantidade
de documentos, dos mais variados tipos, como recibos de pagamentos de imposto predial, na
tentativa de localizar o proprietário; entretanto, após orientação de Saia, ela dedicou-se apenas a
alguns documentos inéditos, descobertos a partir do relato oral de moradores sobre um testamento
do proprietário daquela residência. Dessa maneira, foi localizado um testamento de 1860 de
Francisco de Paula Barros, arquivado na 3ª Vara de Família e Sucessão, Fórum de São Paulo. Esse
testamento faz referência direta à edificação e informa os direitos de herança: a casa passaria aos
escravos de Francisco de Paula Barros, sendo que no testamento aparece o nome do “escravo-
menino Valério” e com a morte do último que se utilizaria da casa, a posse ficaria para a padroeira
Nossa Senhora de Santa Ana. O falecimento do herdeiro “ex-escravo” Valério de Paula Barros
ocorreu 1927.

A empreitada de tombar as casas que Luis Saia determinava como uma espécie de valor
nacional, inserindo a participação paulista nos bens da nação, lograva êxito porque encontrava
ressonâncias em varias pessoas interessadas na (re)construção do passado Paulista. Em meados dos
anos 50, vemos uma atuação firme na construção de uma identificação eficaz com os símbolos
Paulistas; construção de uma mesma identidade para os migrantes, imigrantes e da população de
todo o Brasil, na crença de São Paulo como locomotiva do progresso do país, como um destino
manifesto desde os bandeirantes.

Rede de apoio à memória bandeirista

[...] Correspondendo às transformações materiais e étnicas da cidade,


transformavam-se também as relações históricas com o passado colonial. A
criação do Museu Paulista e do próprio Instituto Histórico e Geográfico de São
Paulo metabolizaram a recuperação idealizada das elites ancestrais de São Paulo,
sobre as quais pesava a ignorância documental e factual – e pairava o espectro da
miscigenação e do obscurantismo de linhagem. Ao mesmo tempo em que se
destruíram os vestígios materiais, foram sendo reconstruídos os feitos
bandeirantes, enaltecidos pelo pioneirismo que legara ao país a configuração
geográfica arrancada à Coroa espanhola. À louvação dos feitos sertanistas
correspondeu ainda o enaltecimento da raça, síntese entre o gentio e o
colonizador, que excluía naturalmente o negro africano [...]. 9
Dentro das esferas governamentais, essa atuação aparece nas ações do governo do Estado
de São Paulo que promulga uma série de leis que corroboram para o que estamos falando. A
primeira delas é o Decreto nº 26.218, de 3 de agosto de 1956 que cria os Museus Históricos e

9MARINS, Paulo César Garcez. O Parque Ibirapuera e a construção da identidade paulista. Anais do Museu
Paulista, história e cultura material, São Paulo, v. 6-7, p. 9-36, 1998-1999.

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Pedagógicos; outra é o Decreto Lei nº 32.767 de 16 de Junho de 1958, que dispõe sobre um grupo
de trabalho que faria a reconstituição do “Quadro Histórico dos Municípios do Estado de São
Paulo, preservação de seus patrimônios históricos, pesquisas e demais atividades relacionadas com
o estudo da evolução histórico-social do Estado”. No mesmo ano, por meio do Decreto Lei 33.980,
de 19 de novembro, Jânio Quadros cria a Rede de Museus Históricos e Pedagógicos e a não menos
importante Lei 10.247 de criação do CONDEPHAAT (Conselho de Defesa do Patrimônio
Histórico Arqueológico, Artístico e Turístico do Estado de São Paulo). O Serviço de Museus sob
o comando de Vinícius Stein Campos formatou a criação dos museus em períodos históricos
diferentes: O Colonial, o Monárquico e o Republicano10. Outros museus foram criados depois por
outros decretos, eis a necessidade do tombamento em nível estadual para a instalação de um museu
no imóvel:

Decreto Nº 40.444, de 23 de Julho de 1962, que “autoriza a instalação, em


Santana do Parnaíba, do Museu Histórico e Pedagógico Anhanguera”:
“Considerando que a tradicional cidade de Santana do Parnaíba possui restaurada
pela Diretoria do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, a casa do Anhanguera,
local que se presta à instalação de um museu histórico nos moldes dos que vem
sendo criados na Secretaria da Educação”, traz ainda que “Considerando
finalmente que a figura de Bartolomeu Bueno da Silva, o Anhanguera, precisa ser
melhor cultuada e conhecida das novas gerações”.
Quem promulgou tal decreto foi o Governador do Estado de São Paulo, Carlos Alberto
Alves de Carvalho Pinto, cinco anos depois do tombamento efetuado pelo IPHAN, em 1958. Essa
rede de intelectuais que, interessados na sociedade bandeirista, fizeram a consolidação do mito no
intuito de implementar suas ideias. A partir de então, para todo sempre a casa passa a ser difundida
como sendo a casa que morou o Anhanguera 11 , porém não há registro documental de tal
antiguidade e de seu primitivo morador. O tombamento realizado pelo CONDEPHAAT não
acrescenta nenhuma informação nova, foi apenas uma compilação das informações do processo
do IPHAN.

Ao analisarmos que conhecimento histórico esse museu exibiu para seu público, abre-se
outro leque de autores clássicos, onde dentre eles aponta-se a contribuição do sociólogo Maurice
Halbwacs e do professor Ulpiano T. Bezerra de Menezes. Faremos um breve esboço de algumas
ideias dos dois para subsidiar a discussão. Nunca foi falado ao público, que se têm mais perguntas

10 MISAN, Simona. A Implantação dos Museus Históricos e Pedagógicos do Estado de São Paulo (1956 -
1973). Tese de Doutorado, USP/FFLCH, São Paulo, 2005.
11 Bartolomeu Bueno da Silva, o Anhanguera foi um sertanista que explorou o Brasil central, nas proximidades da atual

região de Goiás seu filho com o mesmo nome nasceu em Santana de Parnaíba, no inicio do século XVIII existe um
regimento, incentivo e permissão para exploração das minas de Goiás ver mais em PALACÍN, Luis. Sociedade
colonial (1549-1599). Goiânia: Ed. da UFG, 1981.

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do que respostas, sobre os moradores dessa casa, seus hábitos, costumes e tradições. Foi
referendada e apresentada como legítima toda uma historiografia produzida no início do século
XX sobre os sertanistas ou bandeirantes, basta dizer que o brasão de armas do município de
Santana de Parnaíba foi desenhado por Afonso d'Escragnolle Taunay, que foi diretor do Museu
Paulista popular Museu do Ipiranga e que a figura do bandeirante foi usada no discurso daquele
museu. A documentação existente sobre a casa e sua história é apenas um testamento do século
XIX onde um proprietário, Francisco de Paula Barros, sem filhos ou parentes próximos, deixa sua
casa para que seus cinco escravos utilizem o imóvel até o ultimo vir a falecer e quando ocorresse
este momento a casa passaria à posse de Nossa Senhora de Santana. Depois do decreto de criação
do museu, o problema aumenta muito.

Escritores como o poeta Paulo Bomfim entre outros intelectuais mais apaixonados pelo
tema difundiram nos jornais que aquela foi a casa onde morou Bartolomeu Bueno da Silva, o
Anhanguera, sertanista que ameaçou os índios perguntando onde havia ouro. Caso os índios não
revelassem, ele ameaçava queimar as águas dos rios. Teria colocado fogo em um líquido
transparente como água só que era aguardente e assustava os índios, que o chamavam de feiticeiro
Anhanguera. A museografia desde então passa a fazer o inverso do que propõe o professor Ulpiano
que seria ir do artefato (cultura material) para a sociedade, vão da sociedade que é projetada nos
poucos objetos musealizados. No texto “Do teatro da memória ao laboratório da História: a
exposição museológica e o conhecimento histórico12” dentre as várias reflexões destaco a dualidade
entre museu fórum, do debate e da construção do conhecimento, para o museu templo, lugar de
culto e sem questionamento. Outra questão tentadora: existe conhecimento histórico dentro de um
museu de história? A resposta parece óbvia, mas não é, os museus em seus discursos oficiais passam
a compor elementos da memória coletiva, no caso a substituição do morador da casa “um ex-
escravizado” ou os ex-escravos, para um bandeirante, que pelos documentos, nunca morou nela.

Maurice Halbwacs conceituou a memória como sendo tudo que flutua, o vivido, o múltiplo,
o sagrado, a imagem o afeto, o mágico e a História exclusivamente do campo crítico, problemático
e laicizante13. O museu tendeu a materializar o construto social dominante para memória coletiva,
ao invés de considerar a história dos dominados ou da sociedade como um todo, as linhas entre
memória e história ficaram tão tênues e maleáveis que torna-se tarefa difícil contrariar mais de 60
anos de um discurso. E para além, houve uma política de educação patrimonial, em todos os

12 MENESES, Ulpiano T. Bezerra de. Do teatro da memória ao laboratório da História: a exposição museológica e o
conhecimento histórico. Anais do Museu Paulista. São Paulo. N. Ser. v.2 p.9-42 jan./dez.1994
13 DOSSE, François. História e Ciências Sociais. Trad. Fernanda Abreu. Bauru, SP: Edusc. 2004.

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lugares, voltada a considerar monumentos como verdades históricas mesmo que tenham sido
criadas deliberadamente para lembrar ou esquecer algo. As fantasiosas estátuas, pinturas e
elementos presentes em praças, museus e livros didáticos que possuem monumentalidade
intencional, com intenção de memória, da monumentalidade assegurada pela ancianidade, o tempo
e a antiguidade garantiu importância histórica. Os anacronismos ficam claros nas estátuas dos
bandeirantes que para o grande público são retratos fieis daqueles tempos.

Tratando das transformações que ocorreram no campo do patrimônio na segunda metade


do século XX, quando se amplia a noção de histórico e artístico para a de patrimônio cultural,
ampliando também a memorabilidade do fato histórico, emergem novas perspectivas rompendo
com o ufanismo paulista dos bandeirantes em favor da história indígena ou da perspectiva da
história social e cultural da escravidão, não reverberou tanto no discurso turístico da cidade. No
CONDEPHAAT14, os erros são ainda mais grosseiros. Um que foi bastante intrigante é o caso da
divulgação da casa no site do órgão de preservação:

Localização: Praça da Matriz, 9, esquina com a Rua Álvaro Luís do Vale. Número
do Processo: 00354/73. Resolução de Tombamento: Ex-Officio em
13/10/1980.Livro do Tombo Histórico: inscrição nº 139, p.25, 29/05/1981.O
bandeirante Bartolomeu Bueno da Silva, o Anhanguera, é reconhecido por suas
investidas pelos sertões de Minas e Goiás à procura de ouro no século XVIII.
No início deste século, após a Guerra dos Emboabas, se estabeleceu na Vila de
Parnaíba e tornou-se proprietário deste imóvel. Fonte Processo de Tombamento.
Essa informação foi retificada e consta agora da seguinte maneira:

Localização: Praça da Matriz, 9, esquina com a Rua Álvaro Luís do Vale. Número
do Processo: 00354/73. Resolução de Tombamento: Ex-Officio em
13/10/1980. Livro do Tombo Histórico: inscrição nº 139, p.25, 29/05/1981.
Em Santana de Parnaíba ainda são encontrados exemplares da arquitetura
paulista tradicional. As casas situadas no Largo da Matriz n° 9, 19, e 23, na
realidade formam um conjunto dos mais antigos e significativos. Até o momento
é difícil dizer se todo o conjunto constituiu uma única residência, o que é
provável, cuja construção dataria do século XVII, ou seria composto de 2
unidades, conforme se encontra atualmente. A casa n° 9, segundo Luis Saia
repete partidos de residências bandeirísticas do século XVIII adaptada para a área
urbana. Essa casa é conhecida como a "casa de Anhanguera" que a teria habitado,
segundo a tradição. Edificação térrea possui telhado de três águas e beiral
ricamente adornado com cachorros. De dimensões reduzidas, apresenta apenas
dois lanços de cômodos e um sótão que servia de depósito de gêneros. De
propriedade do IPHAN, é administrada pela Prefeitura Municipal que nela
instalou o Museu Casa do Anhanguera. Fonte: Processo de Tombamento.

14De acordo com a Secretaria de Cultura do Estado de São Paulo o Conselho de Defesa do Patrimônio Histórico
Arqueológico, Artístico e Turístico (Condephaat) tem a função de proteger, valorizar e divulgar o patrimônio cultural
no Estado de São Paulo. Nessa categoria se encaixam bens móveis, imóveis, edificações, monumentos, bairros, núcleos
históricos, áreas naturais, bens imateriais, dentre outros.

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Para o valor rememorativo intencionado, Alois Riegl15 aponta que existe o desejo do eterno
presente. A ação fundamental e direta dos monumentos intencionais é a “restauração”. Esta
categoria de monumentos, em conflito com o valor de antiguidade está dada desde o princípio e
de modo permanente. Sem restauração, os monumentos começariam rapidamente a deixar de ser
intencionados; por outro lado, o valor de antiguidade é por natureza inimiga mortal do valor
rememorativo intencional. Nos processos, não ficam explicitadas as justificativas nem quais valores
pautaram a escolha dessa casa, como foi demonstrado nesse estudo. Autores explicam essa prática
institucional com pareceres e instruções bem escassos e enxutos em que:

[...] considerava-se desnecessário elaborar justificativas consistentes – com um


mínimo de objetividade –, o valor histórico dos bens não requeria melhor
tratamento e a prioridade era assegurar a preservação das edificações pelo
tombamento. Sabia-se de antemão o que tinha valor e porque tinha valor e,
portanto, sabia-se de antemão o que deveria ser preservado; as discordâncias,
pontuais, não chegavam a deflagrar debate ou reflexão sobre os bens em questão
[...]16
A existência de vários indivíduos de prestigio acadêmico, político, econômico ou social que
identificamos, com uma atuação parecida, uma rede de pessoas que tem o intuito de construir a
memória paulista com a manipulação simbólica do bandeirante. Construção visível na obra de Luis
Saia, em 1944 em um artigo sobre as casas grandes paulistas que depois da comemoração do IV
centenário da cidade de São Paulo ficaram conhecidas como casas bandeiristas. As analogias de
Luis Saia foram decisivas no tombamento das edificações, ele está tratando de uma história que
relaciona as edificações, não explicando especificamente casa a casa. Há carência de informações
indispensáveis para a compreensão dos processos evolutivos que ocorreram nessas casas. Para o
arquiteto Carlos A. C. Lemos, Luis Saia chega a conclusões extremamente simpáticas, porém de
difícil comprovação. Não basta olhar as 12 residências bandeiristas e a casa urbana de Parnaíba, “é
preciso que se conheça a história da região no que diz respeito à economia, com seus sistemas de
transporte, à sociedade com seus hábitos, etc.”. 17

O que lembrar e o que esquecer

Luis Saia teria construído uma imagem para a casa bandeirista par e passo das obras e não
com base nos levantamentos específicos e no que as restaurações estariam revelando, tendo

15 RIEGL, A. El culto moderno a los monumentos. Madrid: Machado Libros S.A, 2008
16 SIQUEIRA, Lucília Santos. A história que foi usada nos tombamentos e na conservação da Casa do Conselheiro
Rodrigues Alves Lucília. Revista CPC, São Paulo, n.19, p.49–79, jun.2015.
17 LEMOS, Carlos A. C. Casa paulista: história das moradias anteriores ao ecletismo trazido pelo café. São Paulo:

EDUSP, 1999.

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elaborado de uma maneira que, ao final das restaurações, as casas teriam muito mais semelhanças
do que anteriormente, possibilitando um estado completo que pode jamais ter existido. Para
Mayumi 18 , com o tempo as casas grandes ou casas bandeiristas passam de uma construção
ideológica do bandeirante à condição de documento histórico e artístico.

Conforme o exposto, ao longo da segunda metade do século XX, circularam informações


e se produziu conhecimento sobre esta casa seiscentista em diversos meios e lugares, ainda que
limitados. Os órgãos de patrimônio debruçaram-se sobre ela a fim de patrimonializá-la e de
restaurá-la; os órgãos públicos da cultura prepararam-na para receber um museu e elaboraram
discurso sobre a edificação que o abrigava; os jornais publicaram diferentes matérias sobre a
proteção da casa e seu uso como museu; por fim, estudiosos do âmbito universitário, da arquitetura
e da história, produziram bastante conhecimento sobre as casas bandeiristas, na tentativa de
compreender os vestígios coloniais de São Paulo. É importante salientar aqui, contudo, que essas
esferas não dialogaram.

Direcionando o olhar para o foco deste trabalho – a história que circulou sobre a casa
seiscentista19 – basta ver que nos processos de tombamento e nos documentos posteriores que
ainda estão armazenados nos órgãos de patrimônio não há referência à bibliografia, às notícias
sobre o tombamento e à abertura do museu que insistem na atribuição da edificação ao
Anhanguera; o Museu Histórico e Pedagógico, ainda muito tempo depois de sua inauguração se
apresentava como “do Anhanguera”. Ao procurar a história que se tentou proteger com esse
tombamento presente nos processos e nas notícias de jornais verificou-se que ela não é a mesma
obtida pela responsável pela pesquisa histórica. É possível observar na prática como os
historiadores eram profissionais pouco valorizados no serviço do patrimônio.

Essas decisões às pressas são visíveis em outros monumentos, como na conhecida casa do
Sítio do Padre Inácio. Luis Saia pede a Dom Clemente da Silva Nigra que localize na cidade de
Cotia um padre de nome Inácio. De maneira muito apressada, Dom Clemente diz ter havido em
Cotia um padre de nome Inácio Francisco do Amaral e que sua tia já idosa tinha problemas de
locomoção até a cidade, por isso solicitou realizar missas na capela da casa.

Nigra verificou que a Tia de Inácio era Luiza, viúva de Francisco Soares Medela, filho do
famoso Roque Soares Medela, que havia criado fazenda em uma sesmaria de Cotia em 1721, então

18 MAYUMI, Lia. Taipa, canela-preta e concreto: estudo sobre o restauro de casas bandeiristas. Tese (Doutorado)
- Faculdade de Arquitetura e Urbanismo, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2005.
19 Processo do IPHAN nº 557-T de 1958 e pelo Condephaat nº 00354 de 1973.

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Saia associou a casa a Medela. Os inventários e outras fontes elucidam muita coisa, ao fazer o
percurso de olhar documentos como: maços de população de Cotia, pesquisa em cartórios dos
proprietários antecessores, registros paroquiais, etc. Num dos maços de população, Lemos 20
descobre Luiza Leme de Barros, viúva, 62 anos, residindo com três filhas e Inácio Francisco
Amaral, portanto indica que o famoso Inácio morava com Luiza numa outra casa, que foi erguida
com a técnica do pau de sebe ou taipa de mão, informação que aparece nos testamentos e
inventários.

Ao que consta nos documentos, uma das filhas de Luiza, Ana Barros, é quem de fato
herdou a casa que erroneamente recebe o nome de casa do padre Inácio. Essa herança consta no
testamento de óbito de seu tio, Padre Rafael Antonio de Barros. Rafael foi o único que construiu
casa com a técnica da taipa de pilão dentro da sesmaria de seu pai, os demais usaram taipa de mão.
Portanto, a casa “Sítio do padre Inácio” deveria ser denominada sítio do padre Rafael. Os
documentos afundam nesse exemplo a tese de Saia dessa residência representar a época áurea do
bandeirismo. Cruzando as datas dos documentos, Lemos21 pôde inferir que a casa deve ter sido
erguida em meados do século XVIII, quando o bandeirantismo já estava decaído, portanto, a
edificação não foi do padre Inácio e não é tão antiga quanto parece.

Mayumi22 faz uma análise pertinente do trabalho de Julio Katinsky que aponta o mérito de
Luis Saia que “em primeiro lugar, restaurou algumas casas e estabeleceu publicamente os primeiros
critérios para a sua caracterização”. Para a autora essa frase de Katinsky possui duas leituras
possíveis:

Como delegado do IPHAN em São Paulo, Saia foi o principal responsável pelo
achamento e em seguida pelas primeiras restaurações, das residências rurais
bandeiristas. Todavia, o que significaria, na afirmação de Katinsky, a
“caracterização” dessas casas? À primeira vista a idéia parece ser a de apreender
as particularidades do objeto arquitetônico através da observação, mensuração e
da pesquisa, e em seguida, eventualmente, deixar registrada essa caracterização.
Neste sentido foi Saia, de fato, o responsável pelos pioneiros levantamentos
arquitetônicos e de informações documentais sobre as casas bandeiristas, através
do que se constituiu uma caracterização arquitetônica, social, econômica e
histórica daqueles edifícios. Contudo, há outra leitura possível da afirmação de
Katinsky, da qual se pode depreender que “através das restaurações se
estabeleceram publicamente os primeiros critérios para a caracterização das casas
bandeiristas”. Poder-se-ia, então, supor que foi através das obras de restauração
das casas que ocorreu a sua caracterização? Ou, dito de outra forma: teria sido a
casa bandeirista caracterizada a partir das restaurações? Se a resposta for

20 LEMOS. Casa paulista.


21 LEMOS. Casa paulista.
22 KATINSKY, Júlio R. Casas bandeiristas: nascimento e reconhecimento da arte em São Paulo. Tese de

doutorado, IG-USP, 1976.

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afirmativa, a restauração pode ser entendida também como momento em que
ocorreu a “construção” de uma “imagem” pretendida para a casa. 23
A falta de certeza sobre a casa faz emergir, em efeito cascata, inúmeros outros equívocos
com ou sem intencionalidade. Conforme apontamos no início deste artigo, durante a primeira
metade do século XX, podemos enxergar a construção de uma determinada rede de pessoas com
o interesse comum de promover certo ufanismo paulista; uma rede de pessoas articuladas para
inúmeras iniciativas que visavam à construção da memória paulista. Grande parte dos moradores
mais antigos da cidade ainda chamam a casa de Casa do Anhanguera mesmo seu nome ficando
Museu Anhanguera.

Os bens tombados sofrem a ação administrativa e jurídica que para fins práticos deve ser
embasada em elementos que justifiquem esta escolha. A casa térrea foi inscrita no livro do tombo
de bens históricos, já o sobrado no livro do tombo de belas artes, o que demonstra que processos
que orbitavam em torno de determinadas construções de sentido do que seria o patrimônio
histórico e artístico nacional, ou seja, os projetos encabeçados pelo pessoal do Rio de Janeiro, de
São Paulo ou de outras localidades não geravam grandes debates se não entrassem em conflito.

[...] No entanto, é preciso agora dirigir o olhar para os aspectos menos notados
(no tempo e no espaço) dessas práticas, que igualmente as constituem. “O nariz
torcido de Lucio Costa” passaria a representar, assim, mais a necessidade de
acatamento de pontos de vista discordantes, que a autoridade absoluta dos
quadros dirigentes. É necessário investigar, desse modo, se essas práticas foram
mesmo forjadas pela imposição de pontos de vista dominantes, ou se se
constituíram, na verdade, num espaço de disputa pela implementação de
interesses individuais ou grupais específicos. Um empreendimento cultural do
porte do que foi pretendido pelo Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico
Nacional (SPHAN), isto é, a proteção de um patrimônio cultural disperso numa
área de mais de oito milhões de quilômetros quadrados, precisou,
necessariamente, contar com o apoio de intelectuais detentores das mais
diversificadas versões sobre a evolução da nação (talvez o único ponto
consensual entre eles). 24
Deixando a casa seiscentista de Santana de Parnaíba/SP e outros monumentos
desatualizados e carentes de sentido. Qual a razão de terem sido preservados, tombados, que
memória ou que história narra? No senso comum muitas pessoas acham que os monumentos que
foram preservados por serem históricos, quando na verdade emergem outras questões que levaram
a escolhas e exclusões. Essa seleção e essa direção no olhar provocaram a existência de varias

23 MAYUMI, Lia. Taipa, canela-preta e concreto: estudo sobre o restauro de casas bandeiristas. Tese (Doutorado)
- Faculdade de Arquitetura e Urbanismo, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2005.
24 LOWANDE. Orientando-se em meio a lapsos: Revista CPC, p. 050-066.

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versões, do bem em si, à apresentada pelo museu e no caso da versão do serviço do patrimônio
(Atual IPHAN) sobre o bem e notamos um uso prático do passado na consagração do patrimônio.

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