Texto Completo Anais - RBA 2020 - Anne Alencar
Texto Completo Anais - RBA 2020 - Anne Alencar
Texto Completo Anais - RBA 2020 - Anne Alencar
reprodução e sexualidade 1
1. Introdução
Durante uma de nossas conversas Breno me conta como tenta conciliar a sua
transição de gênero2 e as mudanças em seu corpo com o fato de ter gestado sua filha.
Breno é um homem trans3 de 27 anos que mora em Feira de Santana, uma cidade próxima
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Trabalho apresentado na 32ª Reunião Brasileira de Antropologia, realizada entre os dias 30 de outubro e
06 de novembro de 2020.
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“Transição de gênero” é uma expressão êmica utilizada para se referir ao processo de autoidentificação
de gênero que pode estar acompanhado de diversas formas de transformações corporais, comportamentais
e judiciais. Vale salientar que essa transição não ocorre de forma linear, nem homogênea. Cada homem
trans utiliza ou não o que há disponível para compor seu gênero.
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A categoria “homem trans” se refere às pessoas que foram inicialmente consideradas como “mulheres” ao
nascer, a partir da observação de suas genitálias, mas que, no curso de sua constituição como sujeitos, se
opuseram a essa determinação e se autoidentificam enquanto homens. Tal experiência é designada por uma
diversidade de nomenclaturas como: trans homem, transman, FTM (sigla original do inglês female-to-
male), transexual masculino e homem transexual. Há também o uso da categoria “pessoa transmasculina”
que é utilizada para dar conta das pessoas que pensam e constroem suas identidades de gênero para além
das categorias binárias, uma vez que essas pessoas tendem a não se identificar com a categoria homem,
mas com as masculinidades, ou seja, enfatizam que há a possibilidade de vivenciar a masculinidade sem
necessariamente ser uma vivência de homem. Essa experiência das transmasculinidades é marcada por
diferentes formas de transformações corporais que podem incluir desde a utilização de roupas e acessórios
considerados masculinos até as intervenções cirúrgicas e hormonais (ALMEIDA, 2012; ÁVILA, 2014).
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a capital da Bahia. Ele possui cinco irmãos, filhos da sua mãe, sendo ele o filho mais
velho. Atualmente desempregado, vive dos “bicos” que faz como ajudante de pedreiro.
Engravidou aos 17 anos, mas pariu aos 18 quando já era “de maior”, na época ele ainda
não se identificava como um homem trans. Para “criar” a filha Ana, de 10 anos, Breno
conta com a ajuda financeira da mãe, com o auxílio do Bolsa Família e com a contribuição
de 100 reais mensais do outro pai da Ana, com o qual ele não tem muita proximidade.
Breno faz uso da testosterona4, ou simplesmente “T”, há mais ou menos 4 meses e usa o
binder5 apesar de ter tido, nas palavras dele, “a sorte de ter peitos pequenos”. A seguinte
reflexão feita por Breno ilustra o modo como os homens trans ao recriarem seu corpo e
sua identidade cuidam de suas relações sociais, uma vez ele não seria “feliz o suficiente
para terminar de criar a filha” se parasse com a transição de gênero:
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A maioria dos homens trans utiliza diferentes fármacos à base de testosterona, como Deposteron®,
Durateston®, Androgel® ou Nebido®. A testosterona é muito valorizada entre eles, pois através do seu
uso contínuo eles vivenciam mudanças significativas em seus corpos. As principais mudanças físicas
observadas por eles são: o crescimento de pelos do rosto, formando barba e bigode; mudança no timbre da
voz, que se torna mais grave; aumento da força muscular; aumento da libido sexual; mudanças no cheiro e
densidade dos fluidos corporais e a interrupção da menstruação.
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O binder é um colete ou faixa feito de tecido elástico que comprime e esconde o tamanho dos seios. É
bastante utilizado pelos homens trans que ainda não realizaram a mastectomia.
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relações ligadas a esfera do parentesco. Com base nas narrativas que serão apresentadas
ao longo do texto fica evidente que mesmo não se identificando como homens no
momento da gestação essa experiência é relatada como parte da transição de gênero. O
significado que os homens trans dão ao gestar, parir e amamentar seus bebês é
incorporado a própria narrativa de constituição da masculinidade. Assim, o foco desta
análise está na experiência reprodutiva desses homens trans, que por sua vez é
imprescindível contextualiza-la na relacionalidade, já que cada momento da transição de
gênero marca a experiência da reprodução e a relação com os parentes, os amigos, os
parceiros e parceiras sexuais.
Essas reflexões tomam como base um trabalho mais amplo que se originou na
minha dissertação (MONTEIRO, 2018) e que dou continuidade no doutorado que está
em andamento. Nesta pesquisa analisei as dinâmicas relacionais de parentesco que
envolvem as transformações corporais, a sexualidade e a reprodução para homens trans
que passaram pela experiência da gestação. Minhas inspirações teóricas estão
fundamentadas nos estudos sobre gênero e relacionalidade ou relatedness (CARSTEN,
2000; 2004) e sobre aquilo que ficou conhecido na Antropologia como “novos estudos de
parentesco”, que se desdobraram a partir das críticas feitas por Schneider (2016) e pelas
antropólogas feministas como Yanagisako e Strathern (FONSECA, 2003). Os estudos de
parentesco não se tornaram obsoletos após as críticas de Schneider (2016). Bamford
(2019) demonstra que há uma falsa ideia ou um “senso comum” disciplinar de que os
estudos de parentesco desapareceram após tais críticas. Contudo, nas últimas décadas,
houve uma ampliação do conceito e um esforço de demonstrar que os laços de parentesco
não são estabelecidos somente pela reprodução biológica, mas que existem outras
maneiras de estabelecer tais conexões (BAMFORD, 2019). Certamente parentesco hoje
não tem o mesmo significado que tinha no século passado. Com isso, os estudos mais
recentes nessa área tem renovado suas ferramentas analíticas e metodológicas para dar
conta de analisar tais conexões que estão sujeitas a contínuas mudanças (BAMFORD,
2019), como é o caso do parentesco que envolve pessoas gays, lésbicas, queer e trans.
Assim, é a partir desse movimento de ampliação e renovação dos estudos de parentesco
que se insere a análise desta etnografia.
Para dar conta das vivências e experiências dos homens trans utilizei três estratégias
metodológicas para fazer a atividade de campo: observação participante nos espaços de
sociabilização de homens trans na cidade de Salvador, na Bahia; exploração na internet a
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partir do uso das mídias digitais6 acessando páginas, perfis, grupos no Facebook e no
Instagram, canais do Youtube, sites que produzem notícias sobre homens trans e
conversas pelo Whatsapp7; e realização de entrevistas individuais semiestruturadas em
profundidade com homens trans. Todo o processo de pesquisa de campo durou um ano e
meio e aconteceu entre os meses de setembro de 2016 a abril de 20188. Oito homens trans
foram os protagonistas da etnografia. A maioria são homens trans entre 22 e 43 anos, que
se autoidentificaram enquanto heterossexuais, sendo três que se autodeclararam como
negro, dois como pardo e três como branco. A maioria possui ensino médio completo e
está desempregado, três estão na faculdade e um já concluiu a graduação. Mais detalhes
sobre suas vidas serão apresentados ao longo do texto.
A pesquisa de campo foi realizada tendo como base os aspectos éticos das pesquisas
qualitativas do tipo participante, que envolve seres humanos (SCHMIDT, 2008) e por se
tratar de uma etnografia busquei seguir o Código de Ética da antropóloga e do
antropólogo elaborado pela Associação Brasileira de Antropologia (ABA, 2012). A
pesquisa foi aprovada pelo Comitê de Ética em Pesquisa do Instituto de Saúde Coletiva
da Universidade Federal da Bahia (CEP/ISC/UFBA) e consta com registro na Plataforma
Brasil através do Certificado de Apresentação para Apreciação Ética (CAAE) de número
80280117.9.0000.5030. Com isso, optei por utilizar nomes fictícios ao me referir aos
homens trans e às pessoas que eles citam, com o objetivo de preservar suas identidades.
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Esta pesquisa compreende as mídias digitais como sendo “[...] uma forma de se referir aos meios de
comunicação contemporâneos baseados no uso de equipamentos eletrônicos conectados em rede, portanto
referem-se – ao mesmo tempo – à conexão e ao seu suporte material. Há formas muito diversas de se
conectar em rede e elas se entrecruzam diversamente segundo a junção entre tipo de acesso e equipamento
usado. Por exemplo, é possível conectar-se por meio do uso de rede de telefonia fixa, wi-fi ou rede celular
assim como essas formas de conexão podem se dar por computadores de mesa, portáteis, celulares ou
tablets. É muito diferente acessar a rede por meio de um computador fixo em uma lan house usando linha
telefônica ou acessá-la com o uso de um smartphone pela rede celular. Dentre os elementos que variam
destacam-se a frequência de acesso, a mobilidade, a velocidade da conexão e o tipo de redes em que o
usuário se insere.” (MISKOLCI, 2011, p.12)
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O Youtube, Facebook, Instagram, Whatsaap são espaços de relacionamentos virtuais onde ocorre formas
de interação que permitem ter conversas coletivas, privadas e o compartilhamento de áudios, vídeos ou
fotos.
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Embora eu considere esse intervalo de tempo para a pesquisa de campo, minha aproximação e convivência
com os homens trans ocorreu anteriormente ao início dessa pesquisa. Foi durante o “I Encontro de Homens
Trans do Norte e Nordeste” que foi organizado pela Associação Brasileira de Homens Trans (ABHT) e que
ocorreu em João Pessoa – Paraíba, em 2013. Nesse encontro conheci alguns homens trans com os quais
mantive contato. Essa viagem foi fundamental para mim, pois conheci também namoradas, namorados,
amigos e amigas de homens trans, com os quais pude conversar bastante e aprender com suas experiências.
Foi o primeiro espaço em que consegui participar, mais proximamente, da vida cotidiana dessas pessoas e,
desde então, venho mantendo contato e construindo uma rede de afeto e amizade com elas.
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Comecei meu trabalho de campo com o interesse de analisar as relações de
parentesco que envolviam homens trans que haviam gestado seus próprios filhos e filhas.
Contudo, à medida que ia avançando na pesquisa de campo percebi que o corpo tinha
uma centralidade em suas relações. Frequentemente eu presenciava conversas sobre
aquilo que eles chamam de transição de gênero, que envolve determinados processos de
transformações corporais a partir do uso de fármacos à base de testosterona, uso do
binder, packer9, acessórios masculinos, loções para crescer a barba10 e realização de
cirurgias. A principal cirurgia realizada e a mais desejada pelos homens trans é a
mastectomia ou mamoplastia masculinizadora, que visa masculinizar o tórax a partir da
retirada dos seios. Além da mastectomia, outras cirurgias podem ser feitas, como a
histerectomia, que consiste na retirada do útero, e a cirurgia de redesignação sexual. Essas
cirurgias são feitas com menos frequência, sendo a última menos almejada, pois, segundo
eles, os resultados são insatisfatórios. Assim, homens trans podem engravidar, caso não
tenham realizado a histerectomia ou a cirurgia de redesignação sexual. Muitos homens
trans não são estéreis, mas o uso dos seus órgãos reprodutivos pode significar uma
transgressão ao gênero escolhido. Afinal, uma gestação pode ser vista como um ato
incompatível com sua identidade masculina, pois a gravidez é compreendida, de uma
forma geral, como uma antítese ao que é ser homem, uma vez que ser um homem é
sinônimo de não engravidar (HÉRAULT, 2011). Contudo, para os homens trans com os
quais eu convivi, a gravidez não significou ser “menos homem”. A experiência da
gestação narrada por eles está diretamente relacionada com a dinâmica corporal que
envolve o percurso de transição, as diversas experiências sexuais e a relação com parentes
e amigos. Antes de analisarmos em mais detalhes essas experiências é preciso evidenciar
que dos homens trans que convivi somente um engravidou após a autoidentificação
enquanto homem e seis engravidaram antes da transição. As narrativas dos que
engravidaram antes se diferenciam a partir das suas identidades sexuais no memento da
gestação, ou seja, três deles estavam em um relacionamento heterossexual quando
gestaram e três se reconheciam enquanto mulheres lésbicas no momento da gestação.
Essas informações serão exploradas nas narrativas a seguir.
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Os packers são próteses penianas que podem ser fabricadas em vários tamanhos, estilos, materiais e
servem para fazer volume na roupa, para urinar em pé, para ter relações sexuais, podendo ser facilmente
adquiridas em lojas virtuais ou em sex shops. Alguns homens trans fazem o packer com meias emboladas
e dobradas para que simulem o volume do pênis na roupa.
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Alguns homens trans utilizam o Minoxidil®, um vasodilatador que estimula o crescimento da barba e do
bigode.
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2. Homens que engravidam
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[...] Então foi isso que de certa forma favoreceu nosso relacionamento,
apesar de que eu ainda não tinha esses conflito [da transgeneridade] à
tona. [...] Eu engravidei quando eu tinha uns 18 ou 19 anos. É um susto,
é um baque, eu não estava esperando. Depois que passou o choque, eu
curtir bastante a ideia. [...] A nossa separação foi por outros motivos
que não tem relação nem com a questão afetiva, nem com a questão de
identidade de gênero, foram outras circunstancias que levaram a isso.
Depois que a gente se separou, que eu passei por esse processo de
reorganizar aminha vida e aí na sequência que eu comecei a me
relacionar com mulheres.
Fica evidente nas narrativas a cima que para Gustavo e Vitor que engravidaram
antes de se autoidentificarem como homens o que justifica o relacionamento que
culminou na gestação é a “pressão da família”. Para se manter uma “aparência” ou mesmo
por não saber dar sentido ao sentimento de “diferença”. Já para os que engravidaram antes
da transição mas se identificavam como lésbica há uma tensão entre o ser lésbica e a
gravidez. Essa tensão fica evidente na relação sexual com homens cisgêneros11, o que por
um momento poderia colocar à prova sua identidade lésbica. Para aqueles que escolheram
engravidar como é o caso de Marcelo as pessoas o questionavam:
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Cisgênero ou simplesmente “cis” é um termo usado para referir-se às pessoas que se identificam com o
gênero que lhes foi atribuído ao nascimento. Esta expressão é utilizada para fazer referência às pessoas que
não são trans e é utilizada para substituir termos como “mulher/homem verdadeiros” ou “mulher/homem
naturais” (JESUS, 2012).
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engravidou aos 23 anos e apesar de só ter gestado o Joaquim, ele assume também os dois
filhos da Rosana. Marcelo é aposentado por questões de saúde, mas complementa a renda
familiar trabalhando como “cobrador de van” (um transporte público alternativo que
circula em alguns bairros da cidade) e Rosana não trabalha. Na época em que conheci o
Marcelo ele morava junto com a companheira e os três filhos em um bairro popular em
Salvador. Marcelo tem pouco mais de um ano que começou a transição, mas tem poucos
meses que faz uso da testosterona. Já a história do Leo é distinta das apresentadas aqui.
Leo tem 45 anos e mora em São Paulo, tendo passado a infância em um sítio localizado
no interior. Possui duas irmãs e um irmão, sendo ele o filho mais velho. Atualmente
desempregado, Leo sobrevive das vendas de seus artesanatos. Ele é pai da Priscila e avô
da Camila. Quando Leo tinha 19 anos, ele foi vítima de um estupro corretivo 12, que
acabou ocasionando a gestação, diante da qual ele optou por não abortar. Na época ainda
não se identificava enquanto homem trans, mas como lésbica. Hoje Leo mora sozinho,
mas conta que já foi casado com uma mulher, quando Priscila era criança. Quando
Camila, sua neta, nasceu, eles moraram um tempo juntos, mas depois Priscila decidiu se
mudar. Durante nossas conversas ele me contou sobre sua experiência com a gravidez.
Fica evidente em sua narrativa que não só o estupro tinha a função de “corrigir” a sua
sexualidade, mas a sua gestação foi interpretada por sua mãe como algo que também iria
“corrigir” a sua masculinidade. Mas não foi isso que aconteceu. O que se sucede é uma
experiência marcada pela tensão entre a “masculinidade latente” nesse momento da vida
e a gestação:
Não foi uma gestação tranquila porque na minha cabeça, homem não
engravidava e na minha cabeça eu era um homem, as mudanças
corporais elas me afetavam muito. Quando eu ia comprar roupas, as
roupas de gestante era só vestido, vestido. Eu falei não, não vou. Aí fui
numa costureira e mandei fazer uns macacões assim, bem masculinos.
Eu lembro que eu estava tomando banho e de repente começou a sair
leite do meu peito e eu comecei a gritar: “mãe socorro! Está
acontecendo alguma coisa errada!”. E aí minha mãe falou: “para de ser
besta, isso é leite”. Quando eu estava fazendo o pré-natal, eu fiz o pré-
natal certinho, eu lembro de ter conversado com o médico e falado pra
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O estupro corretivo é uma prática comum contra mulheres cisgêneras que são lésbicas masculinizadas.
Esse tipo de violência pode ser caracterizado como uma prática de estuprar lésbicas para “curar” sua
sexualidade. O agressor pune a pessoa por descumprir a obrigatoriedade da heterossexualidade, buscando
obrigá-la, através da coerção, que se adeque às normas sexuais (SOARES, 2016). Os homens trans também
podem ser vítimas dessa violência, uma vez que, ao construírem suas masculinidades em um corpo que é
visto socialmente como feminino, estão sujeitos a serem estuprados para que “consertem” sua identidade
de gênero e voltem a ser “mulheres de verdade”.
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ele que jamais, em momento algum eu faria parto normal, que eu
pagaria a cesária.
Em diálogo com a narrativa de Leo, percebi que a gravidez transmasculina
complexifica as fronteiras entre a feminilidade (aqui posta pela gravidez) e a
masculinidade (aqui representada pelo “sentir-se homem”). Para Breno, por exemplo,
continuar utilizando roupas largas, performando uma masculinidade durante a gravidez
se tornava cada vez mais difícil:
Graças a Deus a gestação foi bem tranquila. Quando a Manu nasceu ela
foi uma recém nascida bastante tranquila, não tinha cólica, dormia a
noite inteira, acordava de três em três horas para mamar como é o
normal. Mas para mim foi bem difícil na parte da amamentação. Porque
eu sempre tive uma disforia muito grande, nem sei porque tem gente
que não gosta de usar esse termo. Então, disforia, desconforto em
relação ao meu peito. Então, eu amamentava ela chorando e ela não
tinha uma pega muito boa, acabou machucando um do bicos e aí
sangrava, foi bem horrível. Eu falo que essa parte de gestação, barriga,
ficar em consulta, ficar fazendo aquele maldito exame de toque, foi
péssimo.
Com base nas narrativas apresentadas até agora podemos perceber que mesmo não
se identificando como homens no momento da gestação, essa experiência faz parte do
processo de transição. O significado que esses homens dão ao gestar, parir e amamentar
seus bebês é incorporada a própria narrativa de constituição subjetiva da masculinidade.
Para Júlio também não foi muito diferente mesmo já se autoidentificando como homem
trans no momento da gestação. Júlio tem 22 anos e morou a vida inteira em uma
cidadezinha que fica na zona norte do Estado de São Paulo. Filho de pais separados, tem
três irmãos, dois por parte de mãe e um por parte de pai. Identifica-se como homem há
mais ou menos 4 anos e fez o uso da testosterona Androgel® durante dois meses e meio,
mas resolveu parar. Nesse intervalo, Júlio acabou engravidando e teve seu primeiro filho,
Davi, que hoje está com um pouco mais de um ano. Ele conta que engravidou do seu
amigo “por acidente”:
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terminasse a faculdade. Mas eu acabei transando com meu melhor
amigo, que hoje não é mais. Ele é um pai péssimo. Mas eu nunca tinha
transado com um homem cis, eu era virgem, digamos assim. Foi um
momento que a gente bebeu e transamos sem camisinha. Uma falha
humana, aí aconteceu. Ele foi meu namorado quando eu era fulana, aí
eu terminei porque estava descobrindo que gostava de mulheres, aí eu
me transformei no Júlio e a gente ficou, a gente transou eu sendo Júlio.
Com isso, a vivência da gestação está contextualizada e construída com base na relação
com as outras pessoas. É relevante para os homens trans o que suas mães pensaram no
momento em que contaram sobre a nova gravidez e também a leitura social que as pessoas
fizeram desse momento, principalmente através das roupas que escolheram usar durante
a gestação. A experiência desses homens trans se aproximam das experiências de jovens
negras de Salvador analisadas por McCallum e Reis (2006) e das mulheres de Riachão
no Sul da Bahia acompanhadas por Rezende (2015), pois essas experiências aparecem,
também, relacionadas com contextos mais amplos que envolvem a família, os
profissionais de saúde, o Estado. Nesse sentido amplo, gestação e parto é compreendido
como um processo relacional (MCCALLUM; REIS, 2006). Contudo, diferente dessas
mulheres, os homens trans dão sentido a reprodução como uma experiência que constitui
suas masculinidades. Eles narram esse momento a partir de elementos que remetem a
construção do que é ser homem para eles. Assim, a gestação não deve ser compreendida
como um fenômeno biológico restrito a feminilidade ou que possui uma associação direta
com a maternidade. Engravidar também faz parte do que é ser esse tipo de homem. É
notório que os homens trans complexificam as categorias binárias de gênero ao, por
exemplo, trazer para o rol das masculinidades a gravidez, a amamentação e o parir.
Contudo, essa complexificação ocorre dentro dos contextos sociais que esses homens
vivem o que pode gerar conflitos e violências. Esse foi um tema recorrente nas diversas
histórias que ouvi, que serão aprofundadas no próximo tópico.
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constrangimento. A família de Marcelo, por exemplo, não aceitou a sua sexualidade e
muito menos a sua identidade de gênero. Foi sempre muito difícil para ele conversar com
a mãe sobre esse assunto. Durante uma de nossas conversas ele me contou que na
adolescência ele assumiu uma identidade lésbica para a mãe e a primeira reação dela foi
agredi-lo fisicamente. “De lá pra cá eu vim travando essa luta toda com ela e com minha
família e depois que eles viraram evangélicos tudo piorou”. Além da sexualidade muitos
homens trans precisam também “revelar” diante da família a sua identidade de gênero. A
revelação pública da transgeneridade, principalmente para alguém da família, também
envolve conflitos e tensões. Alguns homens trans, como Júlio, não contam diretamente e
simplesmente vão mudando:
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Passabilidade cis é um termo utilizado pela comunidade trans para se referir ao processo em que a pessoa
trans passa a ter uma leitura social de acordo com o gênero ao qual se identifica, passando despercebida em
meio a cisgêneridade sem ter seu gênero questionado (SANTANA, 2019).
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vivenciam em suas famílias ao ter que lidar constantemente com a “revelação” de sua
identidade de gênero. O que observei é que ao revelarem suas identidades há uma tensão
nas relações, como descreve Breno:
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realidade o que o outro é para mim. No caso dos homens trans, ter sua identidade de
gênero negada significa também romper com alguns laços familiares. E ter sua identidade
“aceita” implica que as pessoas ao seu redor participem do processo de transição, aceitar
implica transicionar junto.
Assumir uma nova forma de ser e estar no mundo a partir das transmasculinidades
tem impactos significativos nas relações com outras pessoas, principalmente naquelas que
são consideradas enquanto parte da família ou como sendo parentes. Para Vitor a
transição nunca é solitária, as mudanças vivenciadas por ele também são mudanças
coletivas:
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REFERÊNCIAS
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de Pós Graduação em Estudos Interdisciplinares Sobre Mulheres, Gênero e Feminismos
do Núcleo de Estudos da Mulher, Universidade Federal da Bahia, Salvador, 2016.
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