The Fundamentals - Breno Martins
The Fundamentals - Breno Martins
The Fundamentals - Breno Martins
Resumo
Fundamentalismo é hoje uma palavra polissêmica que permite classificar
movimentos religiosos e outros de naturezas diversas. Nem todas as
pessoas, mesmo dentre as que utilizam o conceito, conhecem sua origem
histórica e teológica no interior do protestantismo conservador norte-
americano do final do século XIX e início do XX. A fim de propor uma
genealogia, este artigo busca compreender o sentido da ação dos
fundamentalistas originários. Havia no ar um sentido de urgência, pois
aqueles autodesignados fundamentalistas lutavam contra os males da
modernidade que afligiam a igreja. Internamente, os desafios vinham do
liberalismo teológico e de sua crítica à Bíblia; externamente, o grande
adversário era o humanismo secularizado (incluindo os novos movimentos
religiosos). Na interação das ideias com as condições materiais de uma
época marcada religiosamente por avivamentos, conferências bíblicas,
distribuição de material impresso, destaca-se a publicação da coletânea The
Fundamentals: a Testimony to the Truth (1910-1915). Seus 12 volumes
desenvolvem os princípios básicos do fundamentalismo, ou seja, quais são
as doutrinas de que o protestantismo não pode abrir mão – com primazia
para o dogma da inerrância e infalibilidade da Bíblia, a sustentar uma
leitura literalista e sem hermenêutica contextualizada das Escrituras. Como
resultado principal alcançado por este artigo, fica a imagem de que no
movimento fundamentalista protestante, em qualquer época, importa
voltar sempre ao passado (mesmo que idealizado), pois as decisões para o
presente já foram tomadas outrora. O futuro que importa é o escatológico e
não o histórico.
Palavras-chave
Protestantismo. Fundamentalismo. The Fundamentals.
Abstract
Fundamentalism is, nowadays, a polysemic word that allows to classify
both religious and diverse nature movements. Not all people, even the ones
that use the concept, know its historical and theological origins inside the
conservative North American Protestantism in the end of 19th century and
beginning of 20th century. In order to propose a genealogy, this paper
intends to comprehend the meaning of the actions of the first
fundamentalists. There was a sense of urgency in the air, for those self-
called fundamentalists fought against the evils of modernity that afflicted
the church. From the inside, the challenges came from theological
liberalism and its criticism to the Bible; from the outside, the great
adversary was the secular humanism (including the new religious
Keywords
Protestantism. Fundamentalism. The Fundamentals.
Introdução
A pesquisa e a produção teórica em torno do tema fundamentalismo esbarram
sempre no mesmo fato: o campo semântico do termo foi ampliado a tal ponto de haver
perdido o rigor das intenções originais. Dentre as muitas formas possíveis de enunciar o
problema – ou melhor, o desafio a quem discute os limites do conceito –, Enzo Pace e Piero
Stefani oferecem uma síntese do caso sem denegar sua complexidade:
1 PACE, Enzo; STEFANI, Piero. Fundamentalismo religioso contemporâneo. Apelação: Paulus, 2002. p. 16.
Se hoje o sentido do termo, no caso religioso, tem uma repercussão social muito
mais negativa do que positiva, para não dizer somente negativa, pode parecer anacrônico
e sem sentido que, decorrido cerca de um século da publicação da obra original, ainda
existam protestantes que se autodenominem, nem que seja a contragosto,
fundamentalistas e que se vinculem como herdeiros àqueles que erigiram primeiramente
seu testemunho da verdade. Como de fato eles existem, os objetivos deste artigo se
completam pela análise do livro Os fundamentos para o século XXI: examinando os principais
temas da fé cristã (edição original estadunidense de 2000), filho caçula dentre as obras da
linhagem fundamentalista. O exame de seu teor vai permitir a compreensão do que
pensam e de como agem os fundamentalistas hoje.
Acho que vivemos numa época em que todo mundo sabe que, sejam quais
forem os domínios do saber, seja a filosofia, seja uma ciência humana ou
ciência exata, sempre dependemos de uma linguagem. Nosso
conhecimento é sempre interpretativo, pois não temos acesso direto à
verdade. Se tivéssemos acesso direto à verdade, então... não haveria mais
comunicação possível.2
Se vamos reagir, precisamos ter cuidado para não execrar as pessoas que
não pensam como nós. [...] Com certeza, teremos de nos opor, mas sempre
estendendo pacientemente as mãos para o diálogo, para que, em nosso
2 GEFFRÉ, Claude. Crer e interpretar: a virada hermenêutica da teologia. Petrópolis: Vozes, 2004. p. 93-94.
Os fundamentos do fundamentalismo
Ao tratar do caso particular do fundamentalismo protestante norte-americano e de
sua ideologia, Nancy T. Ammerman afirma de modo geral, ampliando a abrangência de sua
proposição, que “nenhum movimento, é claro, consiste exclusivamente de ideias”.4
Movimentos sociais se fazem da interação das ideias com as condições materiais que lhes
são próprias. Quanto ao contexto vivencial em que emergiu o fundamentalismo, a autora
trata daquilo que classifica como certa organização preliminar que favoreceu o
florescimento e a circulação da mentalidade fundamentalista. “Os lugares em que as ideias
fundamentalistas fizeram sentido, e, portanto, os locais da organização fundamentalista
mais primitiva, foram os centros urbanos dos industrializados Estados Unidos e Canadá –
Boston e Toronto, Nova Iorque e Chicago”.5
Foi em cidades industrializadas que o modelo tradicionalista e conservador do
protestantismo sofreu um duro golpe, pois um centro urbano é, segundo Ammerman, o
locus privilegiado não somente de um pluralismo de fé e estilos de vida, mas também de
uma complexa divisão do trabalho (na qual a religião acaba também por ser absorvida).
No mundo rural e suas variantes, a força da cultura secularizada foi, num primeiro
momento, muito menor, senão inexpressiva, pois a religiosidade das pessoas continuava a
ser como sempre havia sido. A religião não deixou de existir nas cidades, mas foi separada
da vida pública. Foram as cidades e os desafios de seu estilo de vida à religião que
exigiram uma resposta beligerante do protestantismo tradicionalista e conservador: o
fundamentalismo. Ammerman destaca, pelo menos, quatro condições materiais em
afinidade eletiva com a ideologia (teologia) e o comportamento (ética) fundamentalistas:
(1) os reavivamentos, (2) as conferências bíblicas e proféticas, (3) os institutos bíblicos e (4)
o mundo da palavra impressa.
livros: toda espécie de publicação da palavra escrita foi utilizada para compartilhar as
decisões das conferências bíblicas e proféticas, bem como as ideias discutidas nas aulas
dos institutos bíblicos e as mensagens dos acampamentos, campanhas evangelísticas ou
grupos de estudo.
Para Pace e Stefani, sem a coletânea The Fundamentals e sua penetração capilar nas
igrejas protestantes, o manifesto da Conferência Bíblica de Niágara de 1895, por exemplo,
“não teria passado de um documento interno de um debate teológico”.14 O nome de
batismo para o movimento não demorou a chegar.
O autor deste livro descobriu esse segredo na fé cristã. Mas a fé cristã dita
aqui, por certo, não é a religião da igreja liberal moderna, mas sim a
mensagem da graça divina, quase esquecida hoje, como o foi na Idade
Média, destinada a queimar novamente, de acordo com o tempo de Deus,
em uma nova Reforma, e trazer luz e liberdade para a humanidade.19
Os fundamentos no século XX
Por haver deixado muitas lacunas, o escorço histórico apresentado demonstra que
todo movimento complexo, como foi o fundamentalismo em seus primeiros passos, escapa
de qualquer tentativa de apreensão total. Como se torna impossível tratar de tudo, a
leitura e interpretação críticas do período de fundação do fundamentalismo dirigem-se,
segundo o escopo deste artigo, para a coletânea The Fundamentals e alguns de seus
principais desdobramentos históricos e bibliográficos.
No princípio, a obra foi posta em movimento pela concepção e financiamento de
um magnata do petróleo Lyman Stewart da Califórnia do Sul e seu irmão e sócio Milton
Stewart, movidos pelo pressuposto de que a verdade não podia definhar por estar
indisponível.
Este livro é o primeiro de uma série que será publicada e distribuída a todo
pastor, evangelista, missionário, professor de teologia, estudante de
teologia, superintendente de Escola Dominical, secretarias da Associação
Cristã de Moços e Associação Cristã de Moças no mundo de fala inglesa, na
medida em que os endereços de todos eles possam ser obtidos. Dois
inteligentes e consagrados leigos cristãos arcaram com as despesas porque
acreditam que chegou um tempo em que uma nova afirmação dos
fundamentos do cristianismo deve ser feita. O desejo mais sincero deles é
que você o lerá cuidadosamente e transmitirá sua verdade a outros.22
Em 1909 Deus moveu dois cristãos leigos a abrir mão de uma grande
quantia de dinheiro para publicar 12 volumes que estabelecessem os
fundamentos da fé cristã, e que fossem enviados gratuitamente a ministros
do evangelho, missionários, superintendentes de Escola Dominical e outros
envolvidos ativamente na obra cristã no mundo de fala inglesa. Um comitê
de homens conhecidos por ser sadios na fé foi escolhido para fazer a
supervisão destes volumes. O Rev. Dr. A. C. Dixon foi o primeiro
secretário-executivo do Comitê e depois de sua partida para a Inglaterra o
Rev. Dr. Louis Meyer foi nomeado para seu lugar. Depois da morte do Dr.
Meyer o trabalho da secretaria-executiva recaiu sobre mim. Fomos capazes
de trazer à luz estes 12 volumes de acordo com o plano original. Alguns
dos volumes foram enviados a 300.000 ministros, missionários e outros
obreiros em diferentes partes do mundo. Depois da conclusão dos 12
volumes como planejados originalmente, a obra foi continuada por The
King’s Business [...]. Embora tenha sido publicado um número maior de
volumes do que o de nomes de nossa lista de endereços, por fim, o estoque
se esgotou, mas os pedidos continuaram a vir de todas as partes do mundo.
Como não havia mais fundo para esta finalidade, o Instituto Bíblico de Los
Angeles, ao qual as placas [de impressão] foram entregues quando o
Comitê encerrou seus trabalhos, decidiu trazer à luz vários artigos que
apareceram em The Fundamentals em quatro volumes com o preço mais
barato possível. Todos os artigos que apareceram em The Fundamentals,
com exceção de muito poucos que não pareceram estar de acordo com o
exato propósito original, foram publicados nesta série.25
“Posteriormente a esta edição, surgiu uma outra, em 1958, produzida por Charles
L. Feinberg e pela Biola University [antigo Instituto Bíblico de Los Angeles], que
atualmente tem sido impressa pela editora Kregel Publications”.26 Trata-se do terceiro
movimento (ou capítulo da história) referente à obra The Fundamentals, cujo título foi
fixado pela reedição de 1990 como The Fundamentals: the Famous Sourcebook of Foundational
Biblical Truths. Salvo engano, as edições da coletânea The Fundamentals de 1910-1915 e 1917
não tiveram tradução para o português em edição brasileira. A de 1958, por sua vez, foi
publicada no Brasil, na íntegra, em 2005 (com base na reedição de 1990), pela Editora
Hagnos: Os fundamentos: a famosa coletânea de textos das verdades bíblicas fundamentais. Trata-
se de 66 artigos (em 64 capítulos) dentre os 90 da coletânea original do início do século XX.
Entre os anos 1910 e 1915, uma série de 12 livros com exaustivos ensaios,
sob o título The Fundamentals: a Testimony to the Truth [Os fundamentos: um
testemunho da verdade], foi enviada a pastores, missionários e obreiros
cristãos nos Estados Unidos e até no mundo inteiro. De forma bem efetiva e
popular, era lançada uma defesa das doutrinas capitais do cristianismo,
servindo durante toda essa década de plataforma, bandeira, e identificando
uma grande maioria de cristãos conservadores da América do Norte com o
nome de “fundamentalistas”. Quando a onda de apostasia pôs em risco a
firmeza doutrinária das igrejas do Ocidente, nos embates eclesiásticos das
décadas de 1930 e 1940, esses livros foram de grande ajuda, fornecendo
princípios doutrinários ao segundo movimento mundial no cristianismo: “o
evangelicalismo”.31
31 COUCH, Mal (Ed.). Os fundamentos para o século XXI: examinando os principais temas da fé cristã. São
Paulo: Hagnos, 2009. p. 11.
32 COUCH, 2009, p. 11.
33 COUCH, 2009, p. 11-12.
Quanto à primeira diferença, mais geral, os títulos e o teor dos artigos apontam
indícios de quais foram os desafios ao etos fundamentalista na segunda metade do século
XX. Quanto à segunda, especificamente escatológica, a teologia fundamentalista pré-
milenarista interpreta literalmente o texto bíblico e cria uma história ainda por vir que
corresponda à doutrina.
Como ocorre quanto aos começos da história, assim também quanto aos
fins: a maioria dos fundamentalismos propõe visões bem precisas do final e
juízos bem precisos sobre ele. A filosofia substantiva da história [...] trata
do futuro como se já tivesse acontecido, pelo menos o suficiente para dar
colorido à interpretação do tempo intermediário.35
Mais forte dos que as duas diferenças reconhecidas é o substrato mental (ou
imaginário) que fez surgir os fundamentos para o século XX e para o século XXI: a
cosmovisão dualista (maniqueísta) do mundo.
Tão forte quanto este substrato é a ação consequente: o retorno ao passado. É até
inusitado: quanto à escatologia, o futuro (na Terra como céu) tem existência concreta para
o fundamentalista; quanto à história, o passado, aquilo que concretamente ocorreu, é
idealizado como se tivesse acontecido da maneira como o fundamentalista anuncia. Na
verdade, o retorno ao passado é um retorno doutrinariamente idealizado.
A questão sempre foi estar ou não estar com a Palavra de Deus, ou seja, do lado
certo – como se fosse possível verdade sem hermenêutica. A pergunta do fundamentalista é
a seguinte: “[...] como você pode ler o texto que eu leio e não chegar à mesma compreensão
que eu?”.37 O fundamentalismo não pode aceitar visões de mundo que sejam diferentes da
sua nem conviver com elas, pois seu espírito militante é de conquista. “Com a chegada do
século XXI, percebemos que estamos mais uma vez em um divisor de águas teológico”.38
O grande desafio imposto pelo outro cristianismo aos verdadeiros cristãos refere-se a uma
religião do tipo faça você mesmo: “Tal religião recusa enfrentar as consequências lógicas de
um mundo secular que tem virado as costas para Deus”.39 A imagem de novo é a de uma
guerra (como em 1958 ou na segunda década do século XX): ou retorno aos fundamentos
ou queda na apostasia.
Considerações finais
A respeito da confusão de sentido quanto ao vocábulo fundamentalismo,
mencionada na seção de abertura deste artigo, Schweitzer apresenta uma constatação
interessante: “A palavra fundamentalismo teve um imenso e trágico sucesso e, na França
pelo menos, poucas pessoas sabem que ela surgiu no universo protestante”.40 A restrição
que ele acrescenta ao argumento – na França pelo menos – pode ser tomada como um zelo
excessivo do pesquisador, em contexto francês, que não quer afirmar nada sem dados
concretos nem experiência vivida (ou uma jogada retórica para, do exemplo particular,
permitir ao leitor a ampliação da abrangência). Para ele, “essa palavra [fundamentalismo]
está ligada a circunstâncias precisas, fora das quais dificilmente poderíamos compreendê-
la”.41
Se o liberalismo foi, por afirmação, uma reação religiosa moderna aos desafios da
modernidade, para que o cristianismo continuasse a fazer algum sentido às pessoas no
mundo desencantado e na sociedade secularizada, o fundamentalismo, por negação,
também pode ser considerado uma reação moderna à modernidade (e ao liberalismo).
Reação moderna à modernidade, entretanto, no sentido definido por Jürgen Moltmann:
Como movimento dogmático desde seus primórdios e ainda hoje, pois é assim que
opera, o fundamentalismo estabelece referências (certezas absolutas) e divide o mundo
entre convertidos e não convertidos. Para ganhar o mundo, vale qualquer atitude, pois o
que está em jogo é a salvação ou a perdição eterna das almas. Em diálogo com Geffré,
embora sem tratar propriamente do fundamentalismo no texto em questão, Walter
Ferreira Salles explicita a diferença entre uma teologia sem hermenêutica (típica do
empreendimento fundamentalista) e aquela outra, crítica, que não abre mão da
interpretação:
No prefácio do livro Os fundamentos para o século XXI, Couch afirma que os autores
de The Fundamentals, a despeito de aceitações diferenciadas que a coletânea obteve na
comunidade de fiéis, estavam cheios da esperança de que ela fosse qual “[...] farol para a
caminhada das novas gerações”.44 Segundo a perspectiva fundamentalista, a luz que
ilumina o tempo presente, qualquer que seja o período, vem do passado. No tempo
intermediário – aquele vivido entre o passado mais longínquo (desde a criação), que foi
como a interpretação literalista da Bíblia afirma, e o futuro, que será como a escatologia
bíblica literalista afirma –, os protestantes (caso sejam de fato convertidos) e, quiçá, a
própria humanidade devem viver conforme os fundamentos – ontem, hoje e sempre.