Teoria Da Infração Penal
Teoria Da Infração Penal
Teoria Da Infração Penal
Teoria da Infração Penal é a segunda cadeira do curso desta área do Direito Penal, pelo que
importa que algumas noções transmitidas no ano transato, em sede de Teoria da Lei Penal devem
estar presentes ou, não sendo caso disso, ser recordadas.
Este resumo – não passa precisamente disso – e, portanto, não dispensa a leitura da bibliografia
que abaixo indicarei e que fora recomendada pelo regente desta unidade curricular. Assim, com
o intuito de ajudar os demais estudantes, segue-se este documento que poderá servir de auxílio
ao vosso estudo.
O presente documento poderá conter erros ou imprecisões e, por isso, não me responsabilizo
por estes, sendo que, como referi, este deverá servir como complemento ao estudo e nunca como
base - base essa que deverá ser a leitura das obras recomendadas.
Bibliografia:
3º Ano – 1º Semestre
1
Teoria da Infração Penal
Capítulo I
2
Teoria da Infração Penal
1
Referir que Figueiredo Dias entende que esta relação de especialidade existe, também, entre o crime de
homicídio (artigo 131º CP) face ao crime de ofensa à integridade física (artigo 143º CP) – pág. 995 in
Direito Penal, Parte Geral, Tomo I, 2ª Edição. Não parece, todavia, ser esse o entendimento como
veremos supra.
3
Teoria da Infração Penal
Hipoteticamente, serão exemplos: os tipos legais que punem os atos preparatórios em relação
aos que punem as tentativas e os crimes consumados; entre a própria tentativa e a consumação
(prevalecerão os tipos legais que punem a consumação); entre os tipos legais que os crimes de
perigo e que punem os crimes de dano; entre outros. Concluindo, existem três campos de
aplicação:
– o campo de aplicação de uma norma A;
– o campo de aplicação de uma norma B;
– e o campo de aplicação de ambas as normas
(“zona” pela qual ambas se interessam).
Exemplificando praticamente:
A mata um cão (artigo 212º CP)
A mata um lince ibérico (artigo 278º, nº1, alínea a) CP)
Estamos, neste caso, perante campos de aplicação diferentes, pelo que o agente deverá ser
julgado através de ambos os tipos mencionados – a sua punição cumulativa, in casu, não consagra
uma violação do princípio do ne bis in idem (dupla valoração).
Todavia, no seguinte exemplo, a resposta não será a mesma:
Consideremos, agora, que A matou um cão que, ao mesmo tempo, é uma espécie protegida.
Nesta situação, já estamos no campo de interseção das duas normas – artigo 212º CP e 218º, nº1,
alínea a) CP -, aplicando-se, agora, a norma primária (a que estabelece a pena mais grave) e, por
isso, a que resulta do artigo 278º, nº1, alínea a) CP.
Desta forma, afastada está a aplicação da norma secundária – o artigo 212º CP.
Relações de Consunção – estas relações existem quando o conteúdo de um ilícito típico inclui,
em regra, o do outro facto, de tal modo que a condenação pelo facto ilícito-típico mais grave
exprime já de forma suficiente o desvalor de todo o comportamento. Na prática, uma norma é
consumida pela outra – a prevalecente.
Nestes casos, podemos autonomizar duas normas: a norma-fim e a norma-instrumento. Quando
a norma-fim consuma/absorva a norma-instrumento estamos perante uma consunção pura;
quando tal se suceda no sentido inverso e, portanto, a norma-instrumento consumir a norma-fim,
estamos perante um quadro de consunção impura.
Vários poderão ser os exemplos apontados deste tipo de relações entre normas: desde logo,
importa incluir nesta sede a relação entre o homicídio e a ofensa à integridade física (artigos 131º
e 143º CP, respetivamente) – na verdade, e ao contrário do que pensa Figueiredo Dias2, este é um
exemplo de consunção. O homicídio já pune de forma bastante a ofensa à integridade física quer
ela seja simples ou grave, já que, desde logo, não é possível representar-se o resultado – morte,
sem que antes seja prefigurável um cenário de ofensa à integridade física. Assim sendo, o
2
vide nota de rodapé 1.
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Teoria da Infração Penal
homicídio, porque pune a ação de matar e o resultado – morte, parece consumir o tipo de ofensa
à integridade física, pelo que punir um homicida por estes dois crimes consubstanciaria uma
violação do ne bis in idem, algo que não pode conceber-se.
Capítulo II
A Construção do Facto Punível
A construção do facto punível (do crime) tem por base - aceite na dogmática jurídico-penal - o
direito penal do facto, e nunca o direito penal do agente. Tal imperativo verifica-se no caráter
geral e abstrato que caracteriza o sistema jurídico-penal e, outrossim, pelo facto de as sanções
criminais visarem finalidades preventivas - nomeadamente a da tutela de bens jurídicos e a
ressocialização do agente. Negar-se tal pressuposto seria o mesmo que desrespeitar o Princípio
do Estado de Direito Democrático que, entre nós, vigora assente na igualdade perante a lei. Assim
sendo, é em redor do facto que se desenvolve a construção do facto punível.
Mas, na verdade, o que é o facto punível? Ora, afigura-se de elementar importância delimitar
este conceito - o facto punível é o conjunto de cinco elementos: ação, tipicidade, ilicitude, culpa
e punibilidade. Esta conceção é, no entanto, fruto de uma evolução levada a cabo no último
século, no decurso do qual surgiram três conceções distintas que mais do que quererem
substituir-se, quiseram superar-se - ainda que, como afirma Jescheck, todas elas continuam vivas,
"atualmente", consequência da contemporaneidade que os seus pensamentos comportam.
Posto isto, comecemos por estudar a Conceção "Clássica" (ou positivista-naturalista): esta visão,
influenciada pela Escola Moderna e pelo naturalismo positivista característico do monismo
científico, defendia que o sistema do facto punível haveria de ser somente constituído por
realidades empíricas e mensuráveis, pertencentes à facticidade (objetiva) do mundo exterior ou
a processos psíquicos internos (subjetivos). O conceito do crime deveria, então, ver-se bipartido
e agrupado numa vertente objetiva - a ação típica e ilícita - e numa vertente subjetiva a ação
culposa. Esta conceção tinha a ação como o movimento corporal determinante de uma
modificação do mundo exterior, ligada causalmente à vontade do agente - donde resultaria
inevitavelmente que uma dada ação se tornaria típica sempre que um dado comportamento se
subsumisse num tipo legal de crime (conceito que se afigura isento de quaisquer valores e
sentidos). Rapidamente, esta ação típica se tornaria ilícita caso não interviesse uma causa de
justificação, pelo que facilmente se daria como verificada a vertente objetiva do facto. Por sua
vez, no que toca à vertente subjetiva - concentrada na culpa - dar-se-ia como verificada sempre
que fosse possível comprovar a existência entre o agente e o seu facto objetivo de uma ligação
psicológica, suscetível de legitimar a imputação do facto ao agente a título de dolo ou de
negligência.
Esta conceção, no entanto, não conseguiu superar todas as críticas de que foi alvo
nomeadamente, porque o conceito de ação era demasiado lato e, tendo-se diminuído o seu
âmbito de forma considerável (quando se passou a exigir um movimento corpóreo para que esta
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Teoria da Infração Penal
relevasse), tal construção não poderia prevalecer; mais, a atividade lógico-formal de subsunção à
que estava adstrita a tipicidade, levava, igualmente, a resultados descabidos que não podiam
continuar a defender-se; reduzir-se o conceito de ilicitude à verificação de uma causa de
justificação mostrava-se paupérrimo; e no que toca ao conceito de culpa, esta conceção esquecer-
se-ia, também que os inimputáveis - incapazes de culpa - poderiam agir com dolo ou negligência.
Percebidas e compreendidas que estavam, à época, as deficiências desta conceção, construi-se
uma nova visão do conceito do facto punível, à qual se dá o nome de Conceção Neoclássica (ou
normativista). Fundada em valores de origem neokantiana e surgida nos primeiros anos do século
XX, esta conceção pretendia situar a construção do conceito do facto punível no mundo do "ser"
e o "dever-ser", instituindo-o de valores e sentidos que lhe eram estranhos até então. Daqui
decorre que se passou a caracterizar o ilícito como "danosidade social" e a culpa como
"censurabilidade" (do agente por ter agido como agiu, quando poderia ter agido de maneira
diferente). Todavia, não se trata de algo completamente novo - retiraram-se os exageros
naturalistas, substituídos pela relevância social mas nem por isso se "cortou" com a anterior
conceção. Na verdade, como dissemos, estas não pretendiam substituir-se mas, antes,
desenvolver o legado anterior - exemplo disso, é o facto do conceito de ação continuar a ser
concebido como comportamento humano causalmente determinante de uma modificação do
mundo exterior ligada à vontade do agente; no que concerne à tipicidade, esta já não se traduzia
reduzia apenas à subsunção mas teria que respeitar-se o requisito da danosidade social que o
comportamento deveria provocar, de forma a ser qualificado como tal; já o ilícito configurava-se
como um aglomerado de elementos subjetivos e objetivos; e quanto à culpa, esta conhecia, agora,
os seus graus através do dolo e da negligência, tinha-se a imputabilidade como a capacidade do
agente de avaliar a ilicitude do facto e, outrossim, exigir-se-ia ex novo, um comportamento
adequado ao direito.
Esta conceção também não escapou ilesa às críticas: a ação continuava a sugerir um conceito
mecânico-causalista que já estava ultrapassado, o que levaria a erros na construção posterior do
sistema.
Por fim, a última orientação: a Conceção Finalista (ou ôntico-fenomenológica). Após a II Guerra
Mundial, deu-se conta que as raízes neokantianas não ofereciam garantias de justiça e que,
portanto, os seus conteúdos deveriam ser superados, algo que se sucedeu, nomeadamente
aquando da passagem do Estado de Direito Formal para o Estado de Direito Democrático. Neste
seio, surge Hans Welzel a quem se atribui o mérito de se ter limitado a normatividade da Escola
Neoclássica através de leis estruturantes do “ser”. Para esta Escola, a ação humana seria uma
supradeterminação final de um processo causal – por outras palavras, o Homem dirige
finalisticamente os processos causais naturais em direção a fins mentalmente antecipados,
escolhendo para o efeito os meios correspondentes. Daqui resulta que o dolo passa a conformar
um elemento essencial da tipicidade – não bastava o entendimento neoclássico de que o tipo
seria apenas, ocasionalmente, constituído, também por elementos subjetivos; ora, era necessário
que este fosse constituído sempre por elementos objetivos (os elementos descritivos do agente,
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Teoria da Infração Penal
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Teoria da Infração Penal
initio todos os comportamento que não podem relevar (como ações) para o direito penal e para
a construção do conceito de crime (excluindo, por exemplo, os acontecimentos naturais, os
comportamentos de animais, os atos reflexos, etc.).
No entanto, defende o professor Figueiredo Dias que a pretensão de Jescheck, ao atribuir à ação
três funções distintas, não pode lograr-se – parece não ser possível cumular-se no conceito de
ação as funções de classificação e de definição e ligação, porque incompatíveis, já que a primeira
visa uma pré-determinação de todo o sistema e a segunda pretende que isso não se suceda de
forma alguma.
Ora, em matéria de conceito geral de ação, importa dar notícia de alguns conceitos (que,
também, dão conta da impossibilidade da cumulação das referidas funções):
Conceito Final de Ação: neste seio, podemos averiguar duas possibilidades – em primeiro, manter
a identificação entre a finalidade e o dolo. Mas, neste caso, estar-se-ia a pré-determinar o
conceito de ilícito o qual, atendendo à função de ligação, só pode referir-se ao tipo; a segunda,
seria operar a cisão entre finalidade e dolo, bastando, para que possamos falar de uma ação final,
que o agente “tenha querido alguma coisa”, isto é, que tenha supradeterminado mentalmente
um fim e que, para o atingir tenha escolhido os meios. Nesta hipótese, pode-se dar como satisfeita
a função de classificação (a ação como “capacidade de dirigir e dominar, dentro de certos limites,
os processos causais”), mas o mesmo já não poderá dizer-se em relação à função de definição –
por exemplo, um agente pode ter querido penetrar na habitação de outra pessoa mas, ainda
assim, não ter preenchido os tipos ilícitos de violação de domicílio porque poderia haver acordo
com o titular do direito de habitação. A substância da ação não é suficiente para suportar as
predicações posteriores – in casu, da ilicitude.
Este conceito final de ação também não exprime em si todas as formas de comportamento que
podem relevar para o direito penal, já que exclui os crimes de omissão e os negligentes (pelo
menos, quanto ao resultado). Logo, não poderá consubstanciar-se, face ao acima exposto, em
conceito geral de ação.
Conceito Social de Ação: também este conceito, não pode cumprir a sua função de classificação,
já que de fora deixa, inevitavelmente, o caráter omissivo das ações – caso o integrasse, estaria a
perder a função de ligação na medida em que, de forma a que essas condutas relevem, teria de
atender-se, desde logo, à tipicidade: a ação ”esperada” só o é através de uma imposição jurídica
que nasce do tipo. Mais, deste conceito de ação demasiado lato, só poderia resultar a imputação
do resultado à conduta através da doutrina das condições equivalentes. Critérios mais apertados
de imputação só podem provir do âmbito da proteção da norma incriminadora mas, dessa forma,
o conceito social de ação perderia o seu caráter autónomo e prévio relativamente à tipicidade e,
com isso, não teria cumprido a sua função de ligação.
Conceito “Negativo” de Ação: também este conceito não satisfaz. Na verdade, esta conceção ao
abranger apenas os “crimes de resultado”, deixa de fora importantes categorias como os “crimes
de mera atividade” e os “crimes de mera omissão”, o que, só por si, leva ao incumprimento da
função de classificação. Por outro lado, tal concetualização parece ter a ver com a doutrina da
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Teoria da Infração Penal
imputação objetiva e, mais uma vez, com problemas do tipo, pelo que tal levaria à não-satisfação
da função de ligação.
Conceito Pessoal da Ação: Claus Roxin, desta feita, concetualizou ação como “expressão de
personalidade”, abrangendo nela tudo aquilo que pode ser imputado a um homem como centro
de ação anímico-espiritual. Este conceito normativo cobriria as funções de classificação,
delimitação e de ligação (não concorda o prof. Figueiredo Dias3).
3
Vide páginas 259 e ss., Direito Penal, Dias Figueiredo
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Teoria da Infração Penal
pessoas. Assim, tomem-se como exemplos de crimes específicos próprios os seguintes: artigo
370º (Prevaricação de advogado ou solicitador), artigo 284º (Recusa de médico); e como
exemplos de crimes específicos impróprios os seguintes: artigo 378º face ao artigo 190º. Quanto
à conduta, os crimes podem ser de resultado ou de mera atividade. Nesta sede, definem-se quais
os comportamentos juridicamente relevantes, sendo certo que para que relevem é necessário
que sejam, desde logo, humanos – excluída está a capacidade de ação das coisas inanimadas e
dos animais, mas não dos entes coletivos 4 - e voluntários e, por isso, de fora ficam os atos
reflexos5, os cometidos em estados de inconsciência ou sob o impulso de forças irresistíveis6.
Posto isto, os crimes serão de resultado quando o tipo pressuponha a produção de um evento
como consequência da atividade do agente. O crime só se considera consumado se se verificar
uma alteração externa espácio-temporalmente distinta da conduta.
Importante: Resultado é a parte do tipo que o agente não domina, sendo uma mera consequência
da sua ação (note-se que o agente poderá dominá-lo quando escolhe atuar). Nos crimes de mera
atividade, o tipo incriminador preenche-se através da mera execução de um determinado
comportamento.
Considerem-se os seguintes exemplos: artigo 131º (Homicídio), artigo 143º (Ofensa à integridade
física), artigo 217º (Burla) – crimes de resultado; artigo 190º (Violação de domicílio ou
perturbação da vida privada), artigo 359º (Falsidade de depoimento ou declaração), artigo 371º
(Violação do Segredo de Justiça) – crimes de mera atividade.
Esta distinção não é tão fácil quanto aparenta, mas parece que o critério decisivo é que à ação
acresça (ou não) um efeito sobre o objeto da ação e desta distinto espácio-temporalmente.
– Outra classificação:
Crimes de Execução Vinculada: por exemplo, o crime de burla (artigo 217º CP) – só comete o
crime de burla quem atue “por meio de erro ou engano sobre factos que astuciosamente
provocou”. Assim, se a conduta do agente não estiver abrangida pelo tipo, então não estaremos
perante um crime de burla, já que este ilícito só pode ser cometido pela forma descrita.
Crimes de Execução Livre: o exemplo paradigmático será o do homicídio (artigo 131º). Na
verdade, existem “milhentas” formas de cometer este crime, sendo indiferente a forma como o
resultado – morte – é alcançado.
Quanto ao bem jurídico, podemos classificar os crimes como crimes de dano ou crimes de perigo.
4
Este problema é abordado nas págs. 295 ss., i n Questões Fundamentais da Doutrina Geral, Tomo I,
Dias Figueiredo
5
Não se confundam os atos reflexos com os atos mecânicos (estão incutidos de tal forma no
agente que este, muitas vezes, nem se apercebe que os está a praticar). Quanto a estes
segundos - tem sido entendimento que, consubstanciando exteriorizações de personalidade,
são suscetíveis de desencadearem responsabilidade penal.
6
vis absoluta
10
Teoria da Infração Penal
Todavia, antes de nos centrarmos nesta classificação, importa perceber o que é, na sua essência,
um bem jurídico e, outroassim, o que o distingue do objeto da ação. Nesse sentido, considere-se
o seguinte exemplo: A furta um anel a B; aqui, o objeto da ação é o anel e o bem jurídico é a
“propriedade alheia”. Assim, bem jurídico é a expressão de um interesse, da pessoa ou da
comunidade, na manutenção ou integridade de um certo estado, objeto ou bem em si mesmo
socialmente relevante e, por isso, juridicamente reconhecido como valioso. Por sua vez, o objeto
da ação não é mais do que a manifestação real desta noção abstrata; é a realidade ameaçada ou
lesada pela prática de uma conduta ilícita.
Aqui chegados, avancemos para a mencionada classificação – quanto à forma como o bem
jurídico é posto em causa pela atuação do agente.
Os crimes de dano serão os que a realização do tipo incriminador pressupõe uma lesão efetiva
do bem jurídico como consequência de uma conduta (exemplos: artigo 131º (Homicídio), artigo
212º (Dano), artigo 164º (Violação Sexual)). Em contrapartida, nos crimes de perigo a realização
do tipo incriminador não pressupõe a lesão, bastando a mera colocação em perigo do bem
jurídico.
Dentro dos crimes de perigo, podemos conhecer os crimes de perigo concreto – aqui, o perigo
faz parte do tipo, isto é, o tipo só é preenchido quando o bem jurídico tenha efetivamente sido
posto em perigo (exemplos: artigo 138º (Exposição ou Abandono), artigo 291º (Condução
Perigosa de Veículo Rodoviário), artigo 272º (Incêndios ou Explosões)); e os crimes de perigo
abstrato – o perigo não é elemento do tipo, mas a sua motivação. Certos comportamentos são
tipificados em nome da sua perigosidade típica para um bem jurídico, mas sem que ela necessite
de ser comprovada no caso concreto7 (exemplos: Artigo 292º (Condução de um veículo em estado
de embriaguez, artigo 275º (Posse de arma proibida)). Tem-se levantado o problema da
constitucionalidade destes ilícitos-típicos pelo facto de poderem constituir uma tutela demasiado
avançada de um bem jurídico, pondo em risco o Princípio da Legalidade e o Princípio da Culpa. O
tribunal Constitucional, no entanto, admite-os e, por isso, decide pela sua não
inconstitucionalidade desde que visem a proteção de bens jurídicos de grande importância,
quando for possível identificar o bem jurídico tutelado e, cumulativamente, a conduta típica for
descrita de uma forma minuciosa e precisa. Daqui resultaram posições que, não obstante o
regime dos crimes de perigo abstrato, defendem a possibilidade de não punição de algumas
condutas (sempre aferida casuisticamente). Isto é, a não punição de condutas que prefigurem a
prática de um crime de perigo abstrato quando se comprove que na realidade não existiu, de
forma absoluta, perigo para o bem jurídico, ou que o agente tomou as medidas necessárias para
evitar que o bem jurídico fosse colocado em perigo – doutrina dos crimes de perigo abstrato-
concreto.
7
Defende o professor Figueiredo Dias que a perigosidade se presume iuris et de iure pela lei.
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Teoria da Infração Penal
– Outras classificações8:
Crimes Simples e Crimes Complexos
Crimes (ou tipos) Simples: visam apenas a tutela de um bem jurídico, como o homicídio (artigo
131º) – vida; e o furto (artigo 203º) – propriedade.
Crimes (ou tipos) Complexos: visam a tutela de vários bens jurídicos, como o roubo (artigo 210º)
– integridade física e propriedade.
Crimes Fundamentais, Qualificados e Privilegiados
Os crimes fundamentais contêm o tipo objetivo de ilícito na sua forma mais simples, constituíndo
o mínimo denominador comum, que será desenvolvido e conformado pelos tipos qualificados e
privilegiados (o tipo-base). A partir destes tipos fundamentais, o legislador acrescenta-lhe
elementos que agravam a pena – crimes qualificados -, ou, pelo contrário, que a atenuam –
crimes privilegiados.
Como exemplo tenha-se o tipo-base de homicídio, previsto no artigo 131º CP, previsto na forma
qualificada no artigo 132º CP e na forma privilegiada no artigo 133º CP; ou o tipo-base de furto
(artigo 203º CP) que conhece forma qualificada no artigo 204º CP.
8
Outras classificações poderiam ser aqui referidas mas porque não revestem grande interesse
prático ou porque, neste momento, não se revelam importantes não serão alvo de
esclarecimentos. Todavia, para os que pretendam conhecer mais, nomeadamente, acerca
dos crimes de empreendimento e dos crimes qualificados pelo resultado deverão consultar
as págs.315 e seguintes do manual supracitado – anteriormente indicado na bibliografia – de
Dias Figueiredo.
12
Teoria da Infração Penal
9
Vide capítulo III.
10
A esta exigência mínima dá-se o nome de causalidade.
11
Surgida no século XIX, com Glaser e v. Buri.
12
Conforme refere Figueiredo Dias.
13
Fórmula chamada de conditio sine qua non.
14
Criada no final do século XIX por v. Kries.
13
Teoria da Infração Penal
ideia é a de que a imputação penal não pode ir além da capacidade geral do homem de dirigir e
dominar os processos causais.
Concluindo, serão relevantes ao nível da imputação objetiva não todas as condições, mas só
aquelas que, segundo as máximas da experiência e a normalidade do acontecer – segundo o que é
previsível -, são idóneas a produzir o resultado.
A consagração desta teoria no nosso ordenamento jurídico-penal resulta, implicitamente, do
artigo 10º (“ação adequada” a produzir um certo resultado, como à “omissão da ação adequada a
evitá-lo”).
No entanto, também esta teoria enfrenta algumas dificuldades – na verdade, o nexo de adequação
que esta sugere, tem de se aferir segundo um juízo ex ante (já que, em concreto, depois de
verificado o resultado é difícil negar a previsibilidade) e não ex post – juízo de prognose póstuma:
o juiz deve deslocar-se mentalmente para o passado, para o momento em que foi praticada a
conduta e ponderar, enquanto observador objetivo, se, dadas as regras gerais da experiência e o
normal acontecer dos factos, a ação praticada teria como consequência a produção do resultado.
Caso se conclua que o resultado não era previsível, então não haverá lugar à imputação 15.
Ao juízo de prognose póstuma devem ser levados os conhecimentos especiais do agente – aqueles
que o agente detinha, apesar da generalidade das pessoas não dispor.
Além disto, a adequação deve referir-se a todo o processo causal, e não só ao resultado – e, aqui,
levantam-se problemas da “intervenção de terceiros” e da “interrupção do nexo causal”; neste
seio, a regra é a de que a atuação de terceiro que se integre no processo causal desencadeado pelo
agente excluirá a imputação, salvo se esta for provável ou previsível.
Apesar da Teoria da “Causalidade Adequada” ter vindo diminuir o campo de imputação e,
outrossim, lhe seja reconhecido o mérito de ter trazido para este âmbito critérios mais rigorosos
de imputação, esta teoria ainda não se mostra satisfatória, pelo que foi corrigida por vários
princípios – como o do juízo de prognose póstuma, o da causa virtual, o da tentativa impossível16,
entre outros. Ainda assim, deixou espaço para que um terceiro degrau se erguesse – falamos da
Teoria da Conexão do Risco. Segundo esta, o resultado só deve ser imputável à ação quando esta
tenha criado (ou aumentado, ou incrementado) um risco proibido para o bem jurídico protegido
pelo tipo de ilícito e esse risco se tenha materializado no resultado típico. Temos, então, dois
requisitos17 para que possa haver lugar à imputação: o agente, com a sua ação, tem que criar um
risco não permitido ou tenha aumentado um risco já existente; e que esse risco tenha conduzido à
produção de um resultado concreto.
15
Exemplo: A dá uma navalhada superficial a B, que acaba por morrer devido a hemofilia.
16
Conforme veremos infra.
17
Ou condições (cumulativas). Quando uma não se verifique, a imputação deve ter-se por excluída.
14
Teoria da Infração Penal
Analisemo-los:
- Criação de um risco não permitido: quanto às condutas que diminuem ou atenuem um risco pré-
existente, a imputação deve ter-se por excluída 18; a imputação não deve operar, também, em
relação às condutas que não tenham ultrapassado o limite do risco juridicamente protegido – não
pode o direito penal, dada a sua natureza de ultima ratio, sancionar comportamentos que tenham
produzido a lesão de bens jurídicos em virtude da materialização de riscos que são tolerados de
forma geral – falamos, neste sentido, do risco geral de vida, desde que dotado de uma medida
normal.
- Potenciação do risco: nestas situações, já está criado um risco que ameaça o bem jurídico
protegido, antes da atuação do agente. No entanto, o resultado continuará a ser imputado à
conduta do agente, se esta aumentou ou potenciou o risco já existente, piorando a situação do
bem jurídico ameaçado19.
- Concretização do risco não permitido no resultado típico: como se disse, não basta que o agente,
com a sua ação, crie ou potencie um risco não permitido; é preciso, também, determinar se foi
esse o risco que se materializou ou concretizo no resultado típico20. A dificuldade provém de que
sobre a existência e as características do perigo é decisivo um juízo ex ante; para saber que perigo
acabou por determinar o resultado, é uma questão que só pode ser respondida ex post, ou seja,
com o conhecimento de todas as circunstâncias relevantes para a verificação efetiva do resultado.
- Produção de resultados não cobertos pelo fim ou pelo âmbito de proteção da norma: além das
condições já mencionadas, para que a imputação do resultado a uma conduta possa suceder, é
ainda necessário que o perigo que se concretizou no resultado seja um daqueles que corresponde
ao fim de proteção da norma de cuidado. Quando tal não se verifique, deve ter-se por excluída a
imputação objetiva. O campo de aplicação desta situação é, nomeadamente, o da negligência; não
estando excluída a hipótese desta situação ocorrer em relação a ações dolosas21.
À partida, a criação ou potenciação de um risco e a sua concretização no resultado típico será
bastante para que possamos falar em imputação objetiva do resultado à ação. No entanto, tal
verificação não bastará nos casos em que o âmbito do tipo não cobre resultados da espécie
daquele que efetivamente se verificou – por excelência, como dissemos, o campo dos crimes
negligentes.
18
É o exemplo de A que empurra B, causando-lhe leves lesões, para evitar que este seja atropelado por um
veículo que segue na sua direção.
19
Exemplo: o condutor de uma ambulância que, em virtude de uma manobra errada, causa a morte do
paciente que transportava e que, em todo o caso, se encontrava já em péssimo estado em virtude de um
enfarte maciço do miocárdio.
20
Esta não é uma tarefa fácil, nomeadamente quando estejamos perante casos de concurso de riscos. Veja-
se Direito Penal, Tomo I, Figueiredo Dias, 337-338.
21
Neste contexto, analise-se o exemplo dada por Figueiredo dias, in Direito Penal, Tomo I, 339.
15
Teoria da Infração Penal
Por fim, e no que toca à imputação objetiva, resta dar conta do problema da “causalidade virtual”
que, dada a sua relevância, merece um tratamento autónomo, ainda que sumário.
Aqui, na verdade, pode o agente ter criado um perigo não permitido com a sua ação, este ter-se
materializado no resultado típico e, todavia, haver razões para duvidar-se que este deva ser
imputado objetivamente àquele – causalidade virtual.
Assim, por exemplo – A faz explodir o avião X para matar o passageiro B; no entanto, B acabaria
por morrer, ainda que A não tivesse feito explodir o avião, já que este despenhar-se-ia igualmente
por falta de combustível. Neste contexto, a causa virtual seria a de que avião se despenharia por
falta de combustível, o que levaria à morte B, bem como os restantes passageiros.
Ora, tem sido entendimento da doutrina – maioritariamente – que à causa virtual não deve ser
atribuída qualquer relevância jurídico-penal; continua a ter sentido não abandonar o bem jurídico
à agressão do agente só porque aquele já não pode, definitivamente, ser salvo.
Dolo do tipo
O Código Penal não define o dolo do tipo, limitando-se, no seu artigo 14º a expor cada uma das
suas formas. Na sua aceção mais geral poderá ser conceitualizado como o conhecimento e vontade
de realização do tipo objetivo de ilícito.
E, antes de mais, importa retirar algumas conclusões do que é estipulado pelo artigo 13º: só é
punível o facto praticado com dolo ou, nos casos especialmente previstos na lei, com negligência.
Donde, em primeiro lugar, poder-se-á concluir que no âmbito criminal o lugar primordial, por mais
grave, é conferido à criminalidade dolosa. Ora, tanto assim é que apenas um décimo dos crimes
previstos no Código Penal estão previstos na forma negligente; e quase sempre com molduras
penais mais baixas do que os correspondentes delitos dolosos. A estrutura dogmática do dolo tem,
então, de estar condicionada por esta diferente relevância dos delitos dolosos e dos negligentes,
pelo desvalor jurídico mais alto que caberá aos primeiros face aos segundos. Assim sendo, a
diferença entre estes dois tipos de delitos terá que ser, essencialmente, uma diferença de culpa.
O dolo do tipo, baseando-se na diferença de culpa, surge estruturalmente composto por dois
elementos: o elemento intelectual (conhecimento) e o elemento volitivo (vontade). Ora, só este
segundo elemento nos poderá levar à distinção entre a culpa dolosa e culpa negligente, uma vez
que do artigo 15º, alínea a) resulta que o comportamento será negligente, ainda que o agente
represente que preenche um tipo de ilícito (negligência consciente); é, portanto, o elemento
volitivo, quando ligado ao elemento intelectual requerido, que diferencia estes dois graus de culpa.
16
Teoria da Infração Penal
22
Para mais esclarecimentos, vide Figueiredo Dias, Direito Penal, Tomo I, 355-356.
23
Vejam-se os exemplos dados por Figueiredo Dias, in Direito Penal, ibidem, 357.
17
Teoria da Infração Penal
Dolus generalis – trata-se de casos em que o agente erra sobre qual de diversos atos de uma
conexão da ação produzirá o resultado almejado. E, neste sentido, relevam dois momentos: num
primeiro momento o agente pensa erroneamente ter produzido, com a sua ação, o resultado
típico; num segundo momento, fruto de uma nova atuação do agente 26 , o resultado vem
efetivamente a concretizar-se (exemplo: o agente que, atuando com o dolo correspondente,
acredita ter morto com uma pancada a sua vítima e depois tentar simular um suicídio, enforcando-
a, tendo a morte ocorrido só com o enforcamento).
Ainda que neste âmbito, o entendimento doutrinal não seja consensual, a solução, entre nós, deve
seguir os passos da doutrina da imputação objetiva: e, então, saber se o risco que se concretiza no
resultado pode reconduzir-se ao quadro dos riscos criados pela (primeira) ação. Se a resposta for
24
Vide capítulo III.
25
Neste sentido, veja-se o exemplo de Figueiredo Dias, in Direito Penal, Tomo I, 359-360.
26
Quase sempre com fins de encobrimento.
18
Teoria da Infração Penal
afirmativa deve considerar-se o crime como consumado; se negativa, a imputação só poderá ter
lugar a título de negligência, eventualmente em concurso com um crime negligente consumado.
Aberratio ictus vel impetus – estes são os casos em que, por erro na execução, vem a ser atingido
objeto diferente daquele que estava no propósito do agente (exemplo: A pretende matar B com m
tiro, mas este vir a atingir C, em vez de B). Aqui, o resultado ao qual se refere a vontade de
realização do facto não se verifica, mas sim um outro, da mesma espécie ou de espécie diferente.
A ação falha o seu alvo, configurando, por isso, uma tentativa. A produção do outro resultado só
pode eventualmente conformar-se como um crime negligente. Desta forma, a punição deve ter
lugar só por tentativa ou por concurso desta com um crime negligente27.
Error in persona vel objeto28 - nestas situações, o agente encontra-se em erro quanto à identidade
do objeto ou da pessoa a atingir; ademais, o decurso do acontecimento corresponde inteiramente
ao intentado. Não se trata, pois, de um erro na execução, mas na formulação da vontade.
Exemplo: A, pensando que está alvejar B, seu inimigo, dispara contra ele um tiro mortal,
verificando-se, posteriormente, que afinal quem A matara foi C, um estranho, e não B.
Este erro é, no nosso ordenamento jurídico-penal, irrelevante – a lei proíbe a lesão não de um
determinado objeto ou indivíduo, mas de todo e qualquer objeto ou pessoa compreendidos no
tipo de ilícito.
Nota: se o agente erra também sobre as qualidades tipicamente relevantes do objeto por ele
atingido, então há que ficar ou só na responsabilidade por tentativa, ou eventualmente na
combinação de tentativa com uma responsabilidade por negligência.
27
Denominada teoria da concretização.
28
Erro sobre a pessoa do objeto.
29
Nomeadamente – mas não exclusivamente -, este erro relevará no âmbito dos ilícitos de mera ordenação
social.
19
Teoria da Infração Penal
30
Das quais apenas daremos conta sumariamente. Para mais desenvolvimentos, vide Direito Penal, Tomo
I, Figueiredo Dias, 368-377.
31
Ter como fundamento uma ideia de probabilidade de realização típica levanta alguns problemas – vide
369-370 do manual mencionado supra.
20
Teoria da Infração Penal
eventual); ou se, pelo contrário, a repudiou intimamente (e, neste momento, entrar-se-á no campo
da imputação a título de negligência consciente)32.
Teorias da conformação – esta é, então, a conceção que é hoje largamente dominante; é a ela que
se refere, aliás, o artigo 14º, nº3: se o agente atuar conformando-se com aquela realização. Assim,
parte-se da ideia de que o dolo pressupõe algo mais do que o conhecimento do perigo da realização
típica. Conforme refere Eduardo Correia, o critério do dolo eventual será o facto de o agente atuar
não confiando em que o resultado se não verificará.
Seguindo a orientação de Figueiredo Dias, não obstante as teorias da conformação constituírem a
conceção dominante, não é a preferível33.
Esta distinção é demasiado frágil e insegura que mal é capaz de justificar diferenças significativas
das molduras penais aplicáveis a um e a outro caso.
32
Sobre o alcance das críticas de que foram alvo estas teorias, vide 370-371.
33
Vide 372.
34
Como veremos infra.
21
Teoria da Infração Penal
modo, os elementos objetivos do tipo justificador servem para excluir o desvalor do resultado,
enquanto os subjetivos para concretizar a falta de desvalor da ação.
Assim, o conhecimento pelo agente dos elementos do tipo justificador constitui-se como a
exigência subjetiva mínima indispensável à exclusão da ilicitude, o mínimo denominador comum
de todo e qualquer causa justificativa – ainda que algumas façam, ainda, exigências adicionais.
Ora, qual o tratamento jurídico-penal que merecerá o agente que atue ao abrigo de uma causa de
justificação mas que não represente os elementos do tipo? Defende Figueiredo Dias que dever-se-
á aplicar o regime da tentativa por analogia35.
Por outro lado, poderá ocorrer que o agente aceite erroneamente que estão verificados os
pressupostos de uma causa de justificação, ainda que, na realidade, não o estejam. Aqui,
inversamente das situações que abordámos anteriormente, objetivamente não se dão no caso os
elementos justificadores exigidos, mas (subjetivamente) o agente supõe falsamente que eles se
verificam – situações de justificação putativa ou de erro sobre os elementos do tipo justificador36.
O tratamento dado a estes casos resulta do artigo 16º, nº2 – o erro sobre um estado de coisas que,
a existir, excluiria a ilicitude do facto, exclui o dolo. No entanto, e conforme ressalva o nº3 do
mesmo preceito, poderá haver lugar à punibilidade a título de negligência37.
Posto isto, e introduzido o presente capítulo, analisaremos os tipos justificadores de uma forma
autónoma e, até, pormenorizada.
Legítima defesa
Prevista no artigo 32º CP, esta opera nos seguintes casos: constitui legítima defesa o facto
praticado como meio necessário para repelir a agressão atual e ilícita de interesses juridicamente
protegidos do agente ou de terceiro.
Neste contexto, deve pôr-se de lado o pensamento de Hegel traduzido na ideia de que o Direito
nunca deve ceder perante o ilícito; na verdade, defendendo-se o Direito perante o ilícito, o agente,
através do seu facto, está a defender não só os interesses agredidos mas, em último termo, o
interesse da comunidade na integridade do direito objetivo.
Atualmente, a legítima defesa é imprescindível na proteção (necessária) e consequente prevenção
do bem jurídico agredido. Por detrás desta figura, encontram-se dois fundamentos: a necessidade
de defesa da ordem jurídica, através da qual se justificará que se sacrifiquem bens jurídicos de
valor superior aos postos em causa pela agressão; por outro lado, também existe a necessidade de
proteção dos bens jurídicos ameaçados pela agressão.
35
Para mais desenvolvimentos, vide Direito Penal, Tomo I, Figueiredo Dias, 394-396.
36
Tome-se como exemplo destes casos o seguinte: A aponta uma pistola a B gritando “a bolsa ou a vida”,
mas B saca rapidamente de uma arma que traz no bolso e mata A; verifica-se depois que A, um “pândego”
dotado de um estranho sentido de humor, só queria assustar B e que a arma que lhe apontou não passava
de um brinquedo.
37
Esta questão, no entanto, mereceu, por parte de Figueiredo Dias, um tratamento mais complexo – vide
397-400.
22
Teoria da Infração Penal
38
Juridicamente e não necessariamente jurídico-penal.
39
A legítima defesa, contudo, não deve ser negada quando exercida contra animais que estejam a ser
usados por alguém como instrumento de agressão, já que nestes casos não deixamos de estar perante uma
agressão humana, apenas com a particularidade de um animal ser utlizado como arma.
40
O entendimento, quanto a estas, é consensual.
41
Concretamente, a vida.
42
Tenha-se em conta o seguinte exemplo: deve considerar-se coberto pela legítima defesa o disparo de A
sobre B quando efetuado no momento em que B levou a mão ao bolso para sacar do revólver como o qual
pretendia atirar sobre A.
43
Exemplo: o dono de uma estalagem ouve, ao jantar, três hóspedes combinarem entre si o assalto ao
estabelecimento durante a noite.
23
Teoria da Infração Penal
A defesa pode ter lugar até ao último momento em que a agressão ainda persiste. No entanto,
não pode confundir-se este momento com o da consumação, já que na maioria dos crimes a
agressão e o estado de antijuridicidade perduram para além da consumação típica ou “formal”.
Assim sendo, neste contexto é relevante o momento até ao qual a defesa é suscetível de pôr fim à
agressão, pois só então fica afastado o perigo de que ela possa vir a revelar-se desnecessária para
repelir aquela.
Mais: a legítima defesa só é admitida contra agressão ilícita – esta ilicitude, como dissemos, deve
ser aferida à luz da totalidade da ordem jurídica, não tendo de ser especificamente penal. Deste
pressuposto, resulta que não são ilícitas as agressões justificadas, não podendo contra elas ser
exercida legítima defesa. A quem atua ao abrigo de ma causa de exclusão é concedido um direito
de intervenção na esfera de terceiros, que faz impender sobre estes um dever de suportar aquela
conduta e impossibilita uma reação em legítima defesa.
Por fim, diga-se que é entendimento da maioria da doutrina que tanto as agressões dolosas como
as negligentes podem dar lugar a uma resposta em legítima defesa. Por outro lado, também esta
figura poderá ser utilizada como resposta a agressões ilícitas, ainda que o agente atue sem culpa –
devido a inimputabilidade, à existência de uma causa de exclusão da culpa ou a um erro sobre a
ilicitude não censurável.
Ação de defesa – do artigo 32º resulta, desde logo, que a defesa deve ser necessária; donde, não
haverá defesa “legítima” se ela for desnecessária.
A justificação por legítima defesa pressupõe que na ação de defesa sejam usados os meios
necessários para repelir a agressão atual e ilícita – falamos, portanto, da necessidade de meios. O
meio será necessário se for idóneo para deter a agressão e, caso sejam vários os meios adequados
de resposta, ele for o menos gravoso para o agressor.
O juízo de necessidade reporta-se ao momento da agressão, tem natureza ex ante, e nele deve ser
avaliada objetivamente toda a dinâmica do acontecimento, merecendo atenção as características
pessoais do agressor, os instrumentos de que dispõe, a intensidade e a surpresa do ataque, em
contraposição das características pessoais do defendente e os instrumentos de defesa de que
poderia lançar mão. Ainda que não resulte expressamente do artigo 32º CP, o meio menos gravoso
para o agressor será sempre o recurso às forças policiais; donde, sempre que tal seja possível,
deverá considerar-se esse meio como o necessário à defesa44.
O uso de um meio não necessário determina um excesso, o que leva à não justificação do facto
por legítima defesa. Estas situações estão previstas no artigo 33º CP – vulgarmente designadas pela
doutrina por excesso de meios ou de legítima defesa45. Estes casos, dada a complexidade46 que os
rodeia, poderá merecer tratamentos que atenuem as sanções criminais a aplicar, ainda que não se
44
Neste sentido, cfr. artigo 21º, nº1 CRP.
45
Ver exemplos referidos por Figueiredo Dias, in Direito Penal, Tomo I, 422.
46
De sentimentos, nomeadamente. Exige-se uma frieza de ânimo e discernimento na escolha do meio, o
que, muitas vezes, dada a emoção derivada da agressão não é possível.
24
Teoria da Infração Penal
exclua a ilicitude – como a diminuição da pena (nº1, artigo 33º) e, até, a exclusão da culpa (nº2,
artigo 33º).
Neste campo, exige-se ainda a necessidade de defesa – a defesa deve, ela própria, ser
normativamente imposta para que possa ser vista como exigência de reafirmação do Direito face
ao ilícito na pessoa do agredido.
Nota: Quanto menos responsável for o agente pela sua atuação, mais restritos serão os limites de
necessidade de defesa. Por isso, a defesa agressiva não é necessária se o agredido puder esquivar-
se à agressão (por exemplo, quando os agressores sejam inimputáveis; ou porque o agressor atua
com falta de consciência do ilícito não censurável).
Pode suceder que a agressão seja precedida de atitudes de provocação do agredido sobre o
agressor: é o agredido que dá azo à situação de confronto através de injúrias, da prática de atos
ilícitos (mas não atuais) que afetam a esfera jurídica do agressor ou mesmo de atos lícitos mas
socialmente reprováveis. Nestas hipóteses, a necessidade de defesa deve ser negada,
nomeadamente quando a agressão haja sido pré-ordenadamente provocada – constitui exemplo
o seguinte: A, pretendendo ajustar contas antigas com B e sabendo que este é bastante sensível a
certo tipo de insultos, profere propositadamente essas injúrias para suscitar nele uma reação e, ao
abrigo de uma aparência de legítima defesa, poder esfaqueá-lo com uma navalha que trazia
escondida; no entanto, casos haverá em que a agressão não foi pré-ordenadamente provocada –
e, aqui, a doutrina não nega a necessidade de defesa, introduzindo-lhe, todavia, fortes limitações.
Por fim, referir um último grupo de casos – crassa desproporção do significado da agressão e da
defesa: A, paralítico, na falta de outro meio, dispara a matar contra o ladrão B, que quer furtar-lhe
a carteira que contém 5 euros. Aqui, impera a unanimidade: todos estão de acordo que não é
conferido a A um direito de intervenção com o relevo jurídico que este possui, seja em nome da
legítima defesa ou de qualquer outra causa de justificação.
Posto isto, o estudo desta causa de exclusão fica concluído. Remetemos, no entanto, para a obra 47
de Figueiredo Dias para a análise de outros grupos de casos que não analisámos, dada a sua pouca
relevância prática.
47
In Direito Penal, Tomo I, 431-437.
25
Teoria da Infração Penal
48
Situação comum ao direto de necessidade (artigo 34º) e ao estado de necessidade desculpante (causa de
exclusão da culpa – artigo 35º).
49
No mesmo sentido, Taipa de Carvalho.
50
Em sentido contrário, Taipa de Carvalho – defende que, ao contrário do que sugere Figueiredo Dias, em
qualquer dos casos por ele apresentados já nos encontramos num estádio posterior ao da iminência do
perigo – e não anterior.
51
Ao contrário do que se viu quanto à legítima defesa preventiva – que não deve ser admitida. No entanto,
existe também quem discorde da necessidade de construção da figura do estado de necessidade preventivo
– vide Direito Penal, Tomo I, Figueiredo Dias, 443.
52
Quem se tenha posto em perigo, então que pereça. – citamos Binding.
26
Teoria da Infração Penal
53
O mesmo entendimento é defendido por Taipa de Carvalho.
54
E, mesmo aqui, quando se queira proteger interesses de terceiro, a justificação não deve ser negada –
como mostra Figueiredo Dias, in Direito Penal, Tomo I, 445.
55
Princípio do interesse preponderante.
56
Transcrevemos Fernanda Palma – a justificação em estado de necessidade não é reconduzível ao
confronto objetivo entre bens jurídicos, como era próprio da teoria da ilicitude objetiva, porque é o mundo
do merecimento pessoal de todos os intervenientes possíveis num conflito de interesses o que sobressai do
artigo 34º.
57
Conforme resulta do artigo 200º, nº3 CP, o dever de solidariedade cessa quando a ação necessária para
salvar o bem jurídico em perigo puser em risco sério a vida ou a integridade física essencial do omitente.
Esta é uma clara limitação à alínea c) do artigo 34º CP e, simultaneamente, um limite ao dever de
solidariedade; e, até, ao dever de garante (artigo 10º, nº2).
58
Vide nota 57.
27
Teoria da Infração Penal
Quanto ao direito de necessidade previsto no Código Civil – previsto no artigo 339º -, a verdade é
que não acrescenta muito ao artigo 34º CP, daí que não a analisaremos59.
Conflito de deveres
O artigo 36º, nº1, 1ª parte CP estabelece que não é ilícito o facto de quem, em caso de conflito no
cumprimento de deveres jurídicos (…) satisfizer dever de valor igual ou superior ao dever (…) que
sacrificar.
Donde podemos extrair os seguintes pressupostos: a impossibilidade de cumprir dois (ou mais)
deveres jurídicos e o cumprimento do dever superior, quando os valores são de hierarquia
diferente, ou o cumprimento de qualquer um dos deveres, nos casos de os deveres em conflito
serem da mesma hierarquia.
Em primeiro lugar, importa salientar que os deveres em conflito têm de ser deveres jurídicos60. No
entanto, não é necessário que os deveres em apreço sejam jurídico-penais, sendo apenas
suficiente que um deles o seja61 - logo, o conflito de deveres previsto no artigo 36º, nº1 pode ser
entre um dever jurídico-penal e um dever jurídico não penal.
Constitui exemplo de conflito de deveres o seguinte: um pai vê os seus dois filhos a afogar-se e só
pode salvar um.
Esta causa de exclusão não pode ser confundida com o direito de necessidade: enquanto que o
fundamento do conflito de deveres baseia-se na impossibilidade de cumprir os dois deveres de
ação, o direito de necessidade baseia-se, conforme vimos, no Princípio da Solidariedade62.
Como se procede à hierarquização ou ponderação dos deveres? Para tanto, vislumbra-se
fundamental recorrer a vários critérios, dos quais daremos conta: em primeiro lugar, releva o valor
dos bens jurídicos em confronto – em regra, os bens jurídicos pessoais são mais importantes que
os patrimoniais; abstratamente, também serão mais valiosos os bens jurídico-penais que os bens
jurídicos não patrimoniais; outro critério de ponderação será o da gravidade dos danos – estando
em confronto danos patrimoniais elevados e danos patrimoniais claramente inferiores, prevalece
o dever de praticar a ação impeditiva daqueles; em terceiro, relevará o grau de perigo - o caso de
dois sinistrados que dão entrada no hospital, ambos correndo risco de morte, mas em que este
risco é mais iminente num que noutro. Na impossibilidade de atendimento simultâneo dos dois,
deverá ser atendido primeiramente aquele que não pode esperar nenhum tempo pela intervenção.
59
Vide Direito Penal, 2ª Edição, Taipa de Carvalho, 420-422.
60
No entanto, como mostra Taipa de Carvalho poderá haver, excecionalmente, conflito entre um dever
moral e um dever jurídico – vide Direito Penal, 2ª Edição, 423.
61
I. é, só é necessário que um deles seja um dever jurídico-penal. Esta exigência deriva do facto de esta
figura ser uma causa de exclusão da ilicitude penal, ou seja, uma causa de exclusão de ilicitude penal do
não cumprimento de um dever que tem de ser jurídico-penal.
62
Em sentido diverso, Figueiredo Dias – o conflito de deveres repousa no mesmo fundamento justificador
do direito de necessidade.
28
Teoria da Infração Penal
Quando se verifiquem uma igualdade de circunstâncias, defende Taipa de Carvalho, que a solução
mais justa será a de praticar a ação “salvadora” do bem daquele de que foi vítima.
Finalmente, aborde-se o critério da espécie do dever jurídico – dever jurídico de garante (artigo
10º, nº2) e dever geral de auxílio (artigo 200º). E, aqui, o entendimento é o de que prevalecerá o
primeiro em relação ao segundo.
Obediência hierárquica63
A resolução das questões levantadas pelo dever de obediência hierárquica implica que se
considerem, num primeiro momento, quais os pressupostos da ordem dada pelo superior
hierárquico. Neste âmbito, podemos distinguir os pressupostos formais – referem-se à
competência material-abstrata e à forma que deve revestir a ordem. Donde, terá legitimidade
formal a ordem que emano da autoridade competente e que revestiu as formalidades legalmente
prescritas; e os pressupostos materiais – exigência que a ordem do superior hierárquico se traduza
na concretização do direito face à situação concreta que vai ser executada.
Face a uma ordem forma e materialmente legítima é devida obediência por parte do respetivo
inferior hierárquico e os atos praticados por este, na execução da ordem, estão justificados; pelo
contrário, não é devida obediência a uma ordem formalmente ilegítima, pelo que o seu não
acatamento não se consubstancia na prática de um ilícito.
Consentimento
A primeira consideração a fazer será a de que o consentimento tanto pode ter como objeto a
prática de atos que são socialmente adequados e até positivos, como ter por objeto a prática de
atos que são socialmente inadequados e negativos. Ora, quando visem a prática de factos
inadequados e negativos, o consentimento servirá para justificar a conduta – sem ele, a conduta
seria ilícita; donde, nestes casos, operará como causa de exclusão da ilicitude.
O fundamento do consentimento, como causa de exclusão da ilicitude, é o princípio da autonomia
ou autodeterminação individual. Contudo, para que nestas hipóteses o consentimento releve, é
necessário que deem por verificados alguns pressupostos; analisemo-los: o artigo 38º, nº1
estabelece que o consentimento exclui a ilicitude do facto quando se referir a interesses jurídicos
livremente disponíveis e o facto de não ofender os bons costumes. Ora, é necessário que o bem
jurídico seja disponível e que, sendo-o, que o facto lesivo do bem jurídico disponível em apreço
não ofenda os bons costumes. Neste momento, levanta-se uma questão: quais são os bens jurídicos
dos quais pode o seu titular livremente dispor? Há um critério que permite que identifiquemos
quais os bens jurídicos disponíveis e quais os bens jurídicos indisponíveis – no entanto, antes de
mais, é evidente que é indubitavelmente indisponível, o bem jurídico vida, uma vez que constitui
63
Esta causa de exclusão não vai ser alvo de grande aprofundamento, dada a pouca importância que lhe foi
concebida ao longo do semestre. Para mais desenvolvimentos – porque utiliza uma linguagem mais simples
e porque as posições doutrinais não diferem muito neste contexto – vide Taipa de Carvalho, Direito Penal,
2ª Edição, 432-442.
29
Teoria da Infração Penal
o “suporte” de todos os outros bens jurídicos bens jurídicos. Tal decorre da própria legislação
penal, nomeadamente do artigo 134º CP - quando pune o homicídio a pedido da vítima; e do artigo
135º CP – quando pune o auxílio ao suicídio. Mas, também, a integridade física – protegido pelo
artigo 144º CP64 – é indisponível.
Por outro lado, são disponíveis – em regra – os bens jurídicos patrimoniais; ou outros, como a
honra65.
A questão mais complexa situa-se ao nível da integridade física protegida pelo artigo 143º 66 - tendo
em conta a posição de Taipa de Carvalho, o consentimento deve ter-se como irrelevante, no
sentido de não excluir a ilicitude do facto praticado, quando vise consentir lesões que, embora não
configurem o crime de “ofensas à integridade física grave”, sejam graves ou irreversíveis67.
E, diga-se, a cláusula dos “bons costumes” também deve ter-se como ponto de referência para a
delimitação, dentro das ofensas à integridade física previstas no artigo 143º, entre aquelas que
poderão ser consentidas eficazmente e as que não poderão ser.
Cumulativamente, é necessário que o consentimento seja livre (liberdade do consentimento) –
sendo o fundamento desta causa de justificação, o princípio da autodeterminação, o
consentimento só relevará quando tenha sido plenamente livre. Esta liberdade pressupõe, desde
logo, a capacidade de compreensão do sentido da decisão de autorização na heterolesão e dos
efeitos do ato de lesão consentido.
Relativamente aos menores de 16 anos, o consentimento deve ser prestado pelos seus
representantes e sempre no interesse do representado – artigo 38º, nº3 CP; caso assim não suceda,
o consentimento é irrelevante.
Exigir-se que o consentimento seja livre, é o mesmo que dizer que este não pode ser obtido através
de coação ou ameaça, por exemplo – pelo que, quando assim suceder, o consentimento deve ser
tido como não livre.
Quanto à forma: não é exigida forma para o consentimento, sendo irrelevante – tanto pode ser
dado por escrito, como oral ou gestualmente; o que resulta do nº2 do artigo 38º: o consentimento
pode ser expresso por qualquer meio.
Finalmente, dizer ainda que o consentimento pode ser livremente revogado até à execução do
facto – artigo 38º, nº2, in fine.
Ora, exige-se – tal como se disse relativamente a outras casas de justificação – a verificação de um
elemento subjetivo, que se traduz no conhecimento do consentimento: exige-se que o agente
conheça a situação objetiva justificante que, concretamente, é o próprio consentimento (artigo
38º, nº4).
64
Falamos das ofensas à integridade física graves.
65
Cfr. artigos 180º a 184º CP.
66
Denominada por Taipa de Carvalho por integridade física “não essencial”.
67
Por exemplo, a facada num braço.
30
Teoria da Infração Penal
68
Para mais desenvolvimentos, Figueiredo Dias, Direito Penal, Tomo I, 518.
69
Diz, no entanto, Figueiredo Dias, que esta generalização leva à duvidosa desconsideração da
personalidade do agente.
31
Teoria da Infração Penal
Um outro passo com vista à superação da mencionada querela, traduziu-se na conceção de uma
“culpa do (ou pelo) caráter” – do que aqui se trata não é de substituir a responsabilidade pelo
facto por uma responsabilidade pela personalidade (assim, atenta-se ao caráter ou à personalidade
que no facto se exprimiu). No entanto, também esta teoria foi alvo de uma crítica importante – na
verdade, o fundamento desta culpa continuou a ser o mau exercício (reiterado ao longo da vida)
da liberdade de vontade.
Finalmente, analise-se a liberdade pessoal e a tese da culpa da pessoa. Visando a superação de
uma liberdade indeterminista (o “livre-arbítrio”) por uma liberdade pessoal, criou-se uma
conceção fundada na ideia da liberdade como “característica do ser-total-que-age”. Ora,
conforme afirma Figueiredo Dias, poder-se-á falar de culpa da pessoa (pessoa essa concreta e
situada, Homem socializado, no sentido de que vive em um mundo e de que é, assim, aquilo que
através da sua ação objetiva no mundo e que o mundo subjetiva nele). Tais teorizadores vieram
mostrar que o “lugar” da liberdade se situa na mais radical e originária das realidades: o existir
humano – o homem tem que se decidir a si e sobre si, sem que possa em qualquer momento furtar-
se a tal decisão. A ideia é, então, a de que o homem determina a sua ação através da sua livre
decisão sobre si mesmo.
Deste modo será, pois, a culpa o ter que responder pelas qualidades juridicamente desvaliosas
da personalidade que fundamentam um facto ilícito-típico e nele se exprimem.
70
Donde, caso tal comprovação não seja possível estar-se-á no campo da punibilidade a título de
negligência.
71
Nas palavras de Taipa de Carvalho. Traduzido no desprezo pelos bens jurídicos.
32
Teoria da Infração Penal
do facto típico praticado? Ou, por outras palavras, excluirá o erro sobre a ilicitude a culpa e,
consequentemente, a responsabilidade penal?
Procuraram dar resposta a esta questão algumas teorias, das quais nos ocuparemos em seguida:
Teorias do dolo – defendem que este erro, isto é, a falta de consciência da ilicitude exclui o dolo.
O que se defende é, então, que o elemento intelectual do dolo abrange o conhecimento da
proibição – da ilicitude do facto.
Não tendo o agente, no momento da prática do facto ilícito, a consciência da ilicitude, não atua
dolosamente, pois faltará o elemento intelectual referido (faltando este elemento, o dolo tem que
ser negado e o agente poderá ser punido mas a título de negligência, se se verificarem os
pressupostos de tal punibilidade72 e o agente for censurável pelo erro).
Nas Teorias do Dolo, podemos dar conta de dois sub-grupos: teoria estrita do dolo – para os que
a defendem, o erro sobre a ilicitude exclui sempre o dolo; teoria limitada do dolo – estes 73
defendem a mesma fundamentação e a mesma conclusão da teoria estrita do dolo, divergindo
estas conceções apenas ao nível das consequências jurídico-práticas. Assim sendo, os defensores
da teoria limitada do dolo consideram que há casos tão graves que o desconhecimento da
proibição é revelador de uma “personalidade cega para o direito”. Donde, estabelecem a seguinte
limitação punitiva: nos casos em que a falta de consciência da ilicitude é reveladora de uma grave
e censurável indiferença perante o dever-ser jurídico-penal, perante o bem jurídico afetado pelo
facto ilícito, embora o erro sobre a ilicitude exclua o dolo, deve, todavia, o agente ser punido como
se tivesse agido dolosamente, sendo-lhe aplicável correspondente ao crime doloso. Pelo contrário,
os defensores da teoria estrita do dolo não impõem esta limitação.
Teorias da culpa – por seu turno, estas teorias defendem que o erro sobre a ilicitude não exclui o
dolo. Reduzem o dolo ao conhecimento da factualidade típica, aceitando somente o dolo de facto
ou dolo natural, donde a conclusão é a de que ao dolo é estranho qualquer conhecimento da
proibição ou ilicitude. Logo, o erro sobre a factualidade típica exclui o dolo, pois que exclui o
elemento intelectual do dolo do facto, deixando – no que diz respeito à culpa – o dolo intacto.
A relevância do erro sobre a ilicitude está na sua evitabilidade ou inevitabilidade: se for evitável
(censurável), há culpa; caso seja inevitável (não censurável), exclui a culpa.
Também no “mundo” destas teorias, se poderão autonomizar dois sub-grupos: a teoria estrita da
culpa – ao dolo é estranha qualquer referência à ilicitude; o dolo é a mera representação e vontade
do facto que está descrito no tipo incriminador. Logo, apenas o erro sobre os elementos do tipo
legal exclui o dolo; teoria limitada da culpa – considera que o dolo abrange não apenas os
elementos do tipo legal mas também os pressupostos das causas de justificação. Logo, o erro sobre
um destes elementos também exclui o dolo.
Posto isto, resta referir qual a posição adotada pelo Código Penal.
72
Vide Capítulo V.
73
De entre os quais destacamos Eduardo Correia.
33
Teoria da Infração Penal
Ora, resulta do artigo 17º, nº1 que, quando a falta de consciência da ilicitude do facto praticado
não for reveladora de uma atitude ético-pessoal de indiferença74 perante o dever-ser jurídico-
penal, tal falta o erro tem o efeito de uma causa de exclusão da culpa. Pelo contrário, quando este
erro for censurável – for revelador e uma personalidade de indiferença perante o bem jurídico
lesado ou posto em perigo, então há culpa e o agente é punível pelo respetivo crime doloso. Poder-
se-á dizer que a própria falta de consciência é, nestes casos, culposa – cfr. artigo 17º, nº2.
Quanto ao erro sobre os elementos de uma causa de justificação, por força do artigo 16º, nº2, não
restam dúvidas, de que se opera à exclusão dolo – tanto da factualidade típica como do dolo-culpa.
Causas de desculpação75
Desde logo, não se pode confundir as causas de desculpação com as causas de exclusão, já que
aquelas excluem a culpa e estas, como analisámos e dissemos em sede devida, excluem a ilicitude.
Ademais, o juízo de ilicitude tem por objeto o facto humano em si mesmo considerado, ao passo
que o juízo de culpa tem por objeto o próprio agente do facto ilícito.
As causas de exclusão da culpa são a inimputabilidade, o erro sobre a ilicitude não censurável e as
causas de desculpação em sentido estrito.
A imputabilidade é um pressuposto objetivo da culpa – o inimputável (seja em razão da idade ou
em razão de anomalia psíquica) não é suscetível de ser objeto de um juízo de censura – cfr. artigos
19º e 20º CP. Assim, a inimputabilidade será uma causa de exclusão da culpa.
A inexigibilidade traduz-se na ideia da averiguação se, concretamente, era exigível ao agente a
prática de uma conduta diferente da adotada – o denominado comportamento lícito alternativo
(e, portanto, um comportamento adequado ao direito). E, deste modo, para efetuar tal
averiguação deve ter-se em conta o padrão do homem dotado de uma resistência espiritual normal
(em relação aos momentos exteriores que poderão influenciar o agente a praticar o facto ilícito-
típico). Ora, se a generalidade dos homens atuassem da mesma forma (que atuou o agente), então
a culpa deve ter-se por excluída porque não lhe era exigível a prática do comportamento lícito
alternativo.
Estado de necessidade desculpante (artigo 35º) – esta é uma das manifestações do princípio da
inexigibilidade. Ora, supõe – e, de resto, como já foi dito anteriormente, a colisão de bens jurídicos,
pelo que se deverá ter em conta, neste seio, também, as exigências de hierarquia dos bens em
conflito. A exclusão da culpa através desta figura só operará quando não esteja em causa a
salvaguarda de bens jurídicos claramente preponderantes, mas antes de bens inferiores, iguais ou,
no máximo, sensivelmente superiores ao bem jurídico lesado.
Atentemos aos requisitos: perigo atual e não removível de outro modo; bens suscetíveis de serem
lesados – vale o que foi dito para o Estado de Necessidade consagrado no artigo 34º CP76. Ora, +e
74
Referimo-nos à existência (ou não) do dolo emocional – situado na culpa.
75
Utilizamos a designação de Taipa de Carvalho.
76
Vide páginas 25-26.
34
Teoria da Infração Penal
também exigido o elemento subjetivo, isto é, que o agente tenha, com ele, prosseguido a finalidade
de salvação do bem jurídico ameaçado.
Assim, se não for exigido ao agente comportamento diverso – a inexigibilidade – é-lhe excluída a
culpa (artigo 35º, nº1).
Excesso de legítima defesa 77 (artigo 33º CP) – do que aqui se trata é, ao contrário do que
pressupõe a legítima defesa (artigo 32º), de um desrespeito pela ideia de proporcionalidade e
adequação de meios que subjaz a esta figura (“meio necessário”). Quando o agente empregue um
meio de forma excessiva e se, concretamente, não lhe for exigível comportamento diverso (não é
censurável), não será punido (nº2, artigo 33º); quando assim não seja, poderá haver lugar a uma
especial atenuação da pena (nº1).
77
Ao contrário do que abordamos aqui, a legítima defesa putativa “cabe” no artigo 16º, nº2 CP – o agente
representa, erroneamente, que está a atuar ao abrigo desta figura mas não se verificam os seus
pressupostos; o que levará à exclusão do dolo.
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