Dissertação Tdah

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UNIVERSIDADE ESTADUAL PAULISTA “JÚLIO DE MESQUITA FILHO”

FACULDADE DE MEDICINA

REGINA CÉLIA DOS SANTOS

Transtorno de Déficit de Atenção e Hiperatividade (TDAH) e


Medicalização na infância: Uma análise crítica das significações de
trabalhadores da educação e da atenção básica em saúde

Orientadora: Profa. Dra. Sueli Terezinha Ferrero Martin

Botucatu
2017
Regina Célia dos Santos

Transtorno de Déficit de Atenção e Hiperatividade (TDAH) e


Medicalização na infância: Uma análise crítica das
significações de trabalhadores da educação e da atenção
básica em saúde

Dissertação apresentada à Faculdade de Medicina


de Botucatu, Universidade Estadual Paulista “Júlio
de Mesquita Filho”, Câmpus de Botucatu, para
obtenção do título de Mestre em Saúde Coletiva.

Área de concentração: Saúde Pública.

Linha de Pesquisa: Saúde Mental.

Orientadora: Profa. Dra. Sueli Terezinha Ferrero Martin

Botucatu
2017
FICHA CATALOGRÁFICA ELABORADA PELA SEÇÃO TÉC. AQUIS. TRATAMENTO DA INFORM.
DIVISÃO TÉCNICA DE BIBLIOTECA E DOCUMENTAÇÃO - CÂMPUS DE BOTUCATU - UNESP
BIBLIOTECÁRIA RESPONSÁVEL: ROSEMEIRE APARECIDA VICENTE-CRB 8/5651

Santos, Regina Célia dos.


Transtorno de Déficit de Atenção e Hiperatividade (TDAH)
e medicalização na infância : uma análise crítica das
significações de trabalhadores da educação e da atenção
básica em saúde / Regina Célia dos Santos. - Botucatu, 2017

Dissertação (mestrado) - Universidade Estadual Paulista


"Júlio de Mesquita Filho", Faculdade de Medicina de Botucatu
Orientador: Sueli Terezinha Ferrero Martin
Capes: 40600009

1. Distúrbio da falta de atenção com hiperatividade.


2. Saúde pública. 3. Medicalização. 4. Psicologia social.
5. Infância. 6. Atenção primária à saúde.

Palavras-chave: Infância; Medicalização; Psicologia


Histórico-Cultural; Saúde coletiva; Educação; TDAH.
Dedicatória

Para Erick, João, Maria Clara, Miguel e Naiobi, sobrinhos amados, por deixar de brincar
com vocês em função da dedicação a essa pesquisa nas férias, finais de semana e feriados.

Para minha mãe que não conseguiu realizar seu sonho de fazer faculdade.
Agradecimentos

Não serei o poeta de um mundo caduco.


Também não cantarei o mundo futuro.
Estou preso à vida e olhos meus companheiros.
Estão taciturnos mas nutrem grandes esperanças.
Entre eles, considero a enorme realidade.
O presente é tão grande, não nos afastamos.
Não nos afastemos muito, vamos de mãos dadas.
(Mãos dadas, Carlos Drummond de Andrade)

São muitas as contribuições das pessoas para realizar uma pesquisa de mestrado. Umas mais
relacionadas ao estudo, outras que nos fornecem amparo emocional, algumas têm os dois
aspectos. Pessoas são imprescindíveis e o poema faz alusão a esse princípio de coletividade
para nosso desenvolvimento.

Aos colegas servidores do Centro de Convivência Infantil (CCI) “Pertinho da Mamãe”, da


UNESP, por compreenderem meu afastamento para realizar as atividades do mestrado. De
modo especial, à Inês, pelo aconselhamento em situações difíceis, e também à Elaine, Juliana
e Marcia, por rirmos juntas quando estávamos cansadas ao final de mais um dia de trabalho.
À Carol, pela alegria contagiante e por ter estendido a mão quando eu mais sofria em outro
ambiente de trabalho.

À Lilian, Jéssica Rosa, Paula, Murici, amigas de perto, por nos fortalecermos juntas e pela
construção da mulher que cada uma quer ser.

À Suzana Marcolino, pela amizade e por provocar em mim o interesse pela Psicologia
Histórico-Cultural.

À Carol Takeda, Priscila, Simone Cecília, Carol Ladeira, Mafê, Renato, Durvalino e Adriana,
pela amizade sincera, um santo remédio.

Aos meus irmãos Ana, Júlio e Luiz por compartilharem tantas coisas boas da vida.
Especialmente, ao mano Paulo Cesar, por me incentivar no ingresso no mestrado e por
compartilhar comigo as correntes crítica da educação e da história. À Sheila, Juliane e
Ivonete. Também à Zenaide, pelas trocas carinhosas sobre nosso trabalho de ser professora. E
ao Janio, por ler o texto e incentivar minha escrita.

À minha mãe, dona Safira, por nos ensinar que o trabalho era um meio de sustento e de
sobrevivência em uma sociedade desigual. Para nos dar condições dignas de vida realizou
muitas atividades, cortando cana, varrendo rua, fazendo pão para vendermos, cozinhando e
limpando o chão de muitos patrões, mas jamais deixou que abandonássemos a escola, pois o
estudo, segundo ela, era algo bom e um meio de superar as duras condições impostas a nós,
que ainda tão pequenos tivemos que trabalhar para ter moradia e alimentação.

Ao Daniel, que chegou recentemente me dando carinho e fazendo comidas saborosas


enquanto eu escrevia esta dissertação.

À Mariana Nastri, Miriam Malacize, Sonia Fiorentini, Charles e Rachel, que me ajudaram em
uma fase importante e de planejamento para ingresso no mestrado.

Ao Danilo Tebaldi, a quem sou imensamente grata pelo trabalho que tem feito comigo.

Aos amigos do Grupo de Estudos e Pesquisa em Psicologia Histórico-Cultural e Saúde


Coletiva: Andressa, Caio, Carol, Camila, Juliana Pizano, Jéssica Rosa, Renata Moraes,
Melissa, Vitor, Juliana Cunha, Patrícia, Renata Lacerda e Nicelle pelas ricas contribuições de
estudo para o meu projeto de pesquisa. Neste grupo sempre estive confortável para perguntar,
debater e aprender junto.

À professora Dionísia, pelo empréstimo de livros, pela amizade e pelo apoio psíquico aos
trabalhadores que sofrem assédio moral no trabalho.

Às professoras Juliana Pasqualini e Marilene Proença, que, por meio dos apontamentos na
banca de qualificação, me fizeram avançar na pesquisa. Agradeço, sobretudo, pelo
comprometimento, pois diante do contexto neoliberal de enxugamento dos recursos públicos
na educação, inclusive para deslocamento, se fizeram presentes na qualificação e na defesa,
possibilitando reflexões para o aprimoramento deste estudo.
À Juliana Caldas pela revisão do texto.

Aos
trabalhadores da UNESP, em suas diferentes atividades e locais de trabalho: da biblioteca; da
pós-graduação; da central de aulas; os docentes, que me possibilitaram os meios para que
realizasse este mestrado e esta pesquisa.

Aos trabalhadores das Unidades Básicas de Saúde e das escolas públicas que se dispuseram a
participar da pesquisa, fornecendo dados e os relatos das entrevistas. Em alguns locais fui
muito bem recebida e percebi que fizeram esforços para que meu trabalho pudesse ser
realizado. Sou muito grata!

À orientadora Sueli Terezinha pelo modo como nos orienta em nossas pesquisas, pelo respeito
com nossos processos, sendo paciente e dedicada a cada dificuldade que encontramos no
percurso da pesquisa. Sou grata pelo que aprendi e pela sua escolha comprometida e afetiva
de ensinar.
“19 de Novembro de 1957

Querido Senhor Germain:

Deixei que passasse um pouco o movimento que me envolveu todos esses dias antes de vir-
lhe falar de coração aberto. Acaba de me ser feita uma grande honra que não busquei, nem
solicitei. Mas, quando eu soube da novidade, meu primeiro pensamento, depois de minha
mãe, foi para você. Sem você, sem essa mão afetuosa que você estendeu ao menino pobre que
eu era, sem seu ensino, sem seu exemplo, nada disso teria acontecido. Eu não faço questão
dessa espécie de honra. Mas essa é ao menos uma ocasião para dizer-lhe o que você foi e é
sempre para mim, e para assegurar-lhe que os seus esforços, o seu trabalho e o coração
generoso que você coloca em tudo que faz, sempre de maneira viva com relação a um de seus
pequenos discípulos que, não obstante a idade, não cessou jamais de ser seu aluno.

Um abraço com todas as minhas forças.

Albert Camus”1

1
Carta de Albert Camus ao seu professor de escola primária após ser nomeado vencedor do
prémio nobel de literatura em 1957.
Resumo

SANTOS, R.C. Transtorno de Déficit de Atenção e Hiperatividade (TDAH) e


medicalização na infância: uma análise crítica das significações de trabalhadores da
educação e da atenção básica em saúde. 2017. 150 f. Dissertação (Mestrado) – Faculdade de
Medicina de Botucatu, Universidade Estadual Paulista, Botucatu, 2017.

Em nosso estudo discutimos a Medicalização na infância, compreendida como um processo


que tem transformado questões que são de origem histórico-sociais em questões meramente
biológicas. Devido a relação com a indústria farmacêutica e o campo biomédico propaga-se
diferentes transtornos, ocultando expressões de sofrimentos e dificuldades do andar a vida
geradas pelas condições de vida na sociedade capitalista.
O Transtorno de Déficit de Atenção e Hiperatividade (TDAH) encontra-se entre eles, que, de
acordo com a literatura biomédica trata-se de transtorno mais comum na infância, atribuindo
causa genética em que localizam no cérebro a origem de comportamentos hiperativos e de
desatenção.
Apesar de essa concepção biomédica ser hegemônica, há estudos apresentando um quadro de
evolução dos encaminhamentos das escolas de crianças para as unidades de saúde. Esses
estudos criticam o crescimento do diagnóstico desse transtorno na infância e apontam que tal
fenômeno tem estreita relação com a concepção biomédica e a indústria farmacêutica, cuja
relação se constitui na propagação de medicamentos e a construção do diagnóstico, resultando
na medicalização da infância.
Em nosso estudo compreendemos o fenômeno TDAH como um processo saúde-doença,
questionando, portanto, a concepção que subjaz o determinismo biológico do transtorno. A
relação biológico-social é definida como unidade indissociável no desenvolvimento,
conforme os postulados da Psicologia Histórico-Cultural adotados em nossa pesquisa.
Portanto, a atenção e o comportamento humano são desenvolvidos pela unidade biológico-
social, ou seja, a visão biologicista é desmontada.
Nosso objetivo foi analisar, a partir das falas dos trabalhadores da educação e da atenção
básica em saúde, as significações sobre o diagnóstico e o tratamento em crianças com suposto
TDAH. E deste modo compreender como estes profissionais explicam as determinações desse
transtorno e suas expressões na escola e na saúde que tem levado à medicalização da infância.
Realizamos a pesquisa em duas unidades básicas de saúde (UBS) e três escolas públicas,
envolvendo desde a educação infantil, ao ensino fundamental I e II. Na primeira etapa da
pesquisa foi aplicado questionário, realizada observação participante e registro dos dados e
informações dos locais de pesquisa, bem como conversas com os participantes em diário de
campo. Na segunda etapa, realizamos entrevistas semiestruturadas com três trabalhadores da
área da educação e quatro da área da saúde para a construção dos núcleos de significação, que
se constituem nesse trabalho como proposta metodológica de análise. Os núcleos de
significação dos trabalhadores da educação foram delimitados em: a) Bagunceiras e
desatentas que não aprendem, supostamente crianças portadoras do TDAH; b) Ensino:
entre o gostar e a angústia no trabalho; c) A natureza do trabalho pedagógico atravessada
pelo campo biomédico;d) Quando a dificuldade da aprendizagem não é normal. E dos
trabalhadores da área da saúde emergiram os seguintes núcleos: a) TDAH caracterizando o
comportamento da criança como desvios de aprendizagem; b) Do pré-diagnóstico ao
diagnóstico; c) De hiperativas e olhar “sem foco” ao tratamento medicamentoso; d) A
criança que não se comporta, que não se educa.
A análise das significações indica que o discurso biomédico adentrou o espaço escolar para
explicar as causas da dificuldade escolar e que 1) apesar dos profissionais da educação
afirmarem o interesse pela atividade de ensinar, há um indicativo de que as condições e
intensificação do trabalho têm facilitado para que esse discurso seja instituído; 2) A
explicação biológica foi verificada como preponderante quando analisamos as expressões do
TDAH na escola e na saúde em que se atribui aos comportamentos agitado, hiperativo e
desatento como uma falha no cérebro, desconsiderando as relações de mediação do ato
educativo. Isto é, crianças que deveriam ser educadas estão sendo medicalizadas. 3) Apesar
desse discurso ser preponderante foi aferido socialmente que na educação esse entendimento
do TDAH é vago e permeado de dúvidas e na saúde não há consenso quanto ao diagnóstico;
há uma exclusividade do diagnóstico médico, desconsiderando outros saberes e práticas no
tratamento como os da psicologia e da fonoaudiologia. Concluímos, a partir dessa pesquisa,
que há uma tarefa a ser realizada em torno do ato de ensinar e que requer compreender e
superar as explicações biológicas sobre o desenvolvimento e aprendizagem, concebendo,
assim, que atenção e comportamento regulado se desenvolvem por mediações sociais e não
como um fenômeno biologicamente determinado.

Palavras-chaves: Saúde Coletiva, Educação, Infância, Medicalização, TDAH, Psicologia


Histórico-Cultural.
Abstract
SANTOS, R.C. Attencion Deficit Hyperactivity Disorder (ADHD) and medicalization in
childhood: a critical analysis of meanings from education and primary health care
workers 2017. 150 f. Thesis (Master) – Faculty of Medicine of Botucatu, Universidade
Estadual Paulista, Botucatu, 2017.

In our study, we discuss the Medicalization of childhood, understood as a process that has
been transforming questions that are historical-social in origin into merely biological
questions. Due to the connection with the pharmaceutical industry and the biomedical field,
different disorders are disseminated, concealing expressions of suffering and difficulties of
going through life created by life conditions in capitalist society.
The Attention Deficit Hyperactivity Disorder (ADHD) is among them, and is, according to
the biomedical literature, more common throughout childhood, attributing a genetic cause in
which the brain is reputed to be the origin of hiperactivity and inattention behavior. Even
though this biomedical conception is hegemonic, there are studies showing the evolution of
referrals from children schools to health units. These studies criticize the raise of diagnosis of
this disorder during childhood, and point out that this phenomenon has a close link with the
biomedical conception and the pharmaceutical industry, a relationship based on medication
propagation and construction of diagnosis, resulting in the medicalization of childhood. In our
study, we consider the ADHD phenomenon a health-illness process, questioning, thus, the
subjacent conception of the disorder's biological determinism. According to the cultural-
historical psychology postulates adopted in our research, the biological-social relationship is
defined as an inseparable unity in the development process, therefore, the attention and the
human behavior are developed by the biological-social unity, in other words, the biologistic
framework is dismounted. Our objective was to analyze the meanings about diagnosis and
treatment in children allegedly bearer of ADHD, starting with the speeches of education
workers and primary health care workers. And this way we aim to understand how these
workers explain the determinations of this disorder and its expressions in the education and
health fields that have been leading to the medicalization of the childhood. We conducted the
research in two basic health units (BHU) and three public schools, from elementary school to
secondary education. On the first phase of the research, a questionnaire was applied,
participant observation was conducted, and collection of data, informations about the local of
research and conversations with the participants, registered in a field journal, was performed.
On the second phase, we conducted semi-structured interviews with three workers from the
education sector and four workers from the health sector for the construction of the nuclei of
meanings, which constitutes the methodological proposition of analysis of this research. The
nuclei of meanings from education workers were delimited as: a) Rowdy and inattentive
children that don't learn, children allegedly bearer of ADHD; b) Education: between work's
liking and distress; c) The nature of pedagogical work traversed by the biomedical field; d)
When the learning disability is not normal. And from the workers from the health sector
emerged the following nuclei: a) ADHD characterizing children's behavior as learning
deviations; b) From pre-diagnosis to diagnosis; c) From hyperactive and “unfocused” gaze
to pharmacological treatment; d) The misbehaved child, that doesn't learn. The analysis of
meanings indicates that the biomedical discourse penetrated the school space in order to
explain the causes of learning difficulties and that 1) even though the education workers
affirm their interest in the educational activity, there is an indicative that the conditions and
intensification of work have been facilitating the institution of this discourse; 2) when the
ADHD expressions in the education and health sectors were analyzed, the biological
explanation was verified as preponderant, which attributes agitated, hyperactive and
inattentive behavior to a brain flaw, disregarding the mediation relations of the act of
educating. In other words, children that should be being educated are being medicalized. 3)
Even though this discourse is preponderant, it was socially verified that in the education field
this understanding of ADHD is vague and riddled with doubts, and in the health field there is
no consensus about the diagnosis; they reveal that there is exclusivity of medical diagnosis,
disregarding other fields and practices of knowledge on the treatment, like those of
psychology and phonoaudiology.
With this research, we conclude that there is a task to be performed regarding the act of
educating and that it requires the understanding and overcoming of biological explanations of
the development and learning processes, conceiving, thus, that attention and regulated
behavior evolve through social mediation and not as a biologically determined phenomenon.

Keywords: Collective Health, Education, Childhood, Medicalization, ADHD, Cultural-


historical Psychology.
Listas de abreviaturas e siglas

ABP Associação Brasileira de Psiquiatria


ABRASME Associação Brasileira de Saúde Mental
ACS Agente Comunitário de Saúde
ANVISA Agência Nacional de Vigilância Sanitária
APA Associação Americana de Psiquiatria
AVC Acidente Vascular Cerebral
BRATS Boletim Brasileiro de Avaliação em Tecnologia em Saúde
CCI Centro de Convivência Infantil
CEP Comitê de Ética em Pesquisa
CID Classificação Internacional de Doenças
CNS Conselho Nacional de Saúde
CPFL Companhia Paulista de Força e Luz
CVS Centro de Vigilância Sanitária
DSM Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais
DPEE Diretoria de Educação Especial
ECA Estatuto da Criança e do Adolescente
EMEFEI Escola Municipal de Ensino Fundamental e Educação Infantil
ENSP Escola Nacional de Saúde Pública
ESF Estratégia Saúde da Família
EUA Estados Unidos da América
FIOCRUZ Fundação Oswaldo Cruz
FMB Faculdade de Medicina de Botucatu
HTPC Horário de Trabalho Pedagógico Coletivo
IBGE Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística
MEC Ministério da Educação
NASF Núcleo de Apoio à Saúde da Família
NIMH National Institute of Mental Health
OMS Organização Mundial da Saúde
ONU Organização das Nações Unidas
PSE Programa Saúde na Escola
QI Quociente de Inteligência
RAPS Rede de Atenção Psicossocial
SECADI Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização, Diversidade e Inclusão
SUS Sistema Único de Saúde
TA Transtorno de Aprendizagem
TCLE Termo de Consentimento Livre e Esclarecido
TDAH Transtorno de Déficit de Atenção e Hiperatividade
TO Terapia Ocupacional
TOC Transtorno Obsessivo Compulsivo
TSH Hormônio Estimulante da Tireoide
UBS Unidade Básica de Saúde
UNESP Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”
UNICAMP Universidade Estadual de Campinas
UNICEF Fundo das Nações Unidas para a Infância
Lista de quadros

Quadro 1 – Caracterização das unidades escolares e de saúde quanto


a quantidade e tipo de atendimento.....................................................................78

Quadro 2 – Dados de caracterização dos trabalhadores.........................................................81

Quadro 3 - Caracterização dos participantes das entrevistas..................................................90


SUMÁRIO

APRESENTAÇÃO................................................................................................................... 15
1. DA MEDICALIZAÇÃO DA VIDA À MEDICALIZAÇÃO NA INFÂNCIA ................... 18
2. TDAH: UM FENÔMENO BIOLÓGICO OU HISTÓRICO – SOCIAL? ........................... 39
3. O DESENVOLVIMENTO DA ATENÇÃO E DA REGULAÇÃO DA CONDUTA,
SUPERANDO O DETERMINISMO BIOLÓGICO ................................................................ 48
4. OBJETIVOS ......................................................................................................................... 64
5. MÉTODO ............................................................................................................................. 65
5.1 Local da pesquisa ...................................................................................................... 67
5.2 Participantes .............................................................................................................. 67
5.3 Procedimentos do trabalho em campo ...................................................................... 69
5.4 Análise dos resultados ............................................................................................... 71
5.5 Aspectos éticos .......................................................................................................... 76
6. ANÁLISE E DISCUSSÃO DOS RESULTADOS............................................................... 78
6.1 Contextualização dos locais de pesquisa................................................................... 78
6.2 Sistematização dos dados da primeira etapa da pesquisa......................................... 80
6.2.1 Trabalhadores das escolas............................................................................. 81
6.2.2 Trabalhadores das Unidades de Saúde ......................................................... 86
6. 3 Análise das entrevistas ............................................................................................ 89
6.3.1 Caracterização dos participantes.................................................................. 90
6.3.2 Núcleos de significação – Trabalhadores da área da educação .................... 93
I Bagunceiras e desatentas que não aprendem, supostamente crianças portadoras
do TDAH ............................................................................................................... 93
II Ensino: entre o gostar e a angústia no trabalho ................................................. 97
III A natureza do trabalho pedagógico atravessada pelo campo biomédico ...... 102
IV Quando a dificuldade da aprendizagem não é normal.................................... 105
6.3.3 Núcleos de significação dos trabalhadores da saúde .................................. 110
I TDAH caracterizando o comportamento da criança como desvios de
aprendizagem ....................................................................................................... 111
II Do pré-diagnóstico ao diagnóstico .................................................................. 115
III De hiperativas e olhar “sem foco” ao tratamento medicamentoso ................. 121
IV A criança que não se comporta, que não se educa ........................................ 123
6.4 Diferenças e semelhanças das significações sobre TDAH entre os trabalhadores da
saúde e educação ........................................................................................................... 128
7. CONCLUSÃO: PELA DEFESA DO ATO DE ENSINAR ............................................... 133
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ................................................................................... 135
APÊNDICES .......................................................................................................................... 142
15

APRESENTAÇÃO

Durante o trabalho de professora de educação infantil comecei a presenciar


situações nas quais colegas da profissão ao relatar comportamentos das crianças
caracterizando as mesmas como sendo agitadas e desatentas, afirmando “essa criança não é
normal” e em algumas crianças supondo, inclusive, ocorrer o Transtorno de Déficit de
Atenção e Hiperatividade (TDAH). Tal classificação era realizada e justificada por esses
profissionais sem nenhum embasamento teórico e científico. Notei que tal procedimento
inadequado produzia consequências danosas à criança, já que a mesma passava a ser vista no
espaço com dificuldades de aprendizagem que pouco haveria de ser feito, em função desses
comportamentos e pela suposição de possíveis doenças, uma certa anormalidade da criança.
Ao participar de encontros com outros profissionais da área educacional ouvi
relatos de educadores atuando em diferentes níveis de que havia para seus colegas de trabalho
uma crença de que o uso de medicamentos contribuía no processo de aprendizagem, sendo
encarado como algo positivo. Nesses encontros esses mesmos professores revelavam
incomodar-se com essa tendência de rotular as crianças inquietas e com dificuldade de
aprender em “doentes”.
Esses relatos começaram a se tornar mais comuns entre meus colegas de trabalho
sobre a agitação e outros comportamentos como sendo não normal, uma patologia, portanto
pouco a ser compreendido a partir de reflexões pedagógicas.
É a partir dessas questões e contexto do trabalho que senti necessidade de estudar
sobre isso, pois me incomodava a necessidade de rotular a criança pequena mais agitada em
não normal, bem como a ideia de “averiguação médica” ou suposições de transtornos.
Portanto meu projeto de pesquisa e o meu ingresso no mestrado em saúde coletiva
surgiram desse contexto no qual o discurso médico vinha adentrando o espaço escolar como
inquestionável, silenciando o acúmulo teórico-prático de compreensão da criança e seu
processo de aprendizagem a partir das mediações.
Nesse quadro de medicalização, consequentemente do crescimento do diagnóstico
e uso de metilfenidato, comercialmente chamado de Ritalina® ou Concerta®, para tratamento
do TDAH na população infantil, evidenciava um quadro de necessidade de estudo para mim.
Queria entender como se produzia os encaminhamentos para averiguação médica da
existência do transtorno na criança.
16

No início surgiram algumas questões, quando ainda não havia um projeto


formulado, tais como: Como não querer comportamentos infantis hiperativos se a sociedade
em que está inserida se configura por aceleramento do tempo e ritmo de trabalho, impondo
cada vez mais exigências de produtividade? Por que é tão intolerável a criança inquieta e ou
desatenta na escola? Por que as dificuldades relacionadas ao comportamento de indisciplina e
falta de atenção nas atividades, classificados em comportamentos agitados e desatentos,
passaram a ser patologias e passíveis de tratamento medicamentoso?
Não havia possibilidade dessas questões serem refletidas com os demais colegas
de trabalho, porque nos períodos destinados a refletir e realizar o planejamento da educação
infantil havia outros assuntos que exigiam encaminhamentos prioritários. Os limites de
discussão sobre esse assunto entre os demais professores estavam dados pela concepção de
ensino punitiva e classificatória das crianças.
No ano de 2013 quando fiz a disciplina de Saúde Pública e Saúde Mental, do
Programa de Pós-Graduação em Saúde Coletiva, no intuito de entender o contexto de
crescimento dos transtornos e medicalização da vida, realizei leituras para organizar projeto
de pesquisa. Nesse ano tinha uma aluna de cinco anos que era classificada como “desatenta”,
“agitada”, “não normal”. Essa criança, aos olhos de alguns profissionais estava limitada a
fracassar na vida escolar. Essa imposição às possibilidades de aprendizagem e
desenvolvimento dessa criança foi combustão para que eu me dedicasse ao ingresso no
mestrado, e especialmente oferecer a ela o melhor de mim como professora.
Nesse sentido quero destacar que a necessidade de pesquisar surgiu da relação
com o trabalho de ensinar de tal modo que o ingresso no mestrado se tornou uma rica
possibilidade de estudo e inestimável aprendizado para compreender o fenômeno do TDAH e
o processo de medicalização da educação junto com meus colegas do Grupo de Estudos e
Pesquisa em Psicologia Histórico-Cultural e Saúde Coletiva.
Nesse estudo busquei conhecer como os trabalhadores da educação encaminham
crianças com suposto TDAH e como os trabalhadores da saúde realizam o diagnóstico do
transtorno. O objetivo da pesquisa foi analisar, a partir de trabalhadores da educação e da
atenção básica em saúde, as significações sobre o diagnóstico e o tratamento em crianças
supostamente com TDAH, tendo em vista compreender como estes profissionais explicam as
determinações desse transtorno e suas expressões na escola e na saúde que podem levar à
medicalização da infância. Para tanto organizamos a coleta de dados em duas etapas de
17

pesquisa e interpretação teórica dos dados, tendo como método de análise a Psicologia
Histórico-Cultural, fundamentada no materialismo histórico e dialético.
De modo a elucidar como se dá esse processo de medicalização da infância
organizamos a discussão do primeiro capítulo da dissertação com vista a apresentar as
concepções biomédicas que fundamentam o TDAH e as concepções críticas que discutem as
relações históricas do processo de patologização da vida e que, em consonância com os
interesses econômicos da indústria farmacêutica, vem sendo aprofundado. Portanto requer ser
analisado a partir das relações de produção na sociedade capitalista.
Considerando que para a infância o fenômeno TDAH é a expressão mais
importante desse processo, nos propomos a debater a partir da questão: Um fenômeno
biológico ou histórico – social? Em nosso estudo identificamos que as explicações sobre
esse transtorno se dividem em dois campos de concepções. Um campo reúne fundamentos
sobre o transtorno como determinação biológica, isto é, explicado como falha no cérebro que
tem origem genética. A criança nasceu com essa predisposição a desenvolver tal patologia. O
outro reúne estudos críticos que questionam o viés meramente biológico e apresentam um
conjunto de elementos que afirmam ser um transtorno controverso que tem levado a uma
crescente medicalização das crianças.
Convergimos com análises elaboradas para além dos sintomas a ele relacionados.
Sendo esses sintomas atribuídos a uma patologia da aprendizagem e por afirmar o diagnóstico
em crianças trazem implicações para ocultação as questões complexas da educação escolar.
Assim, a partir da compreensão do transtorno como um fenômeno histórico-
social, nos propomos a explicar como a atenção e o comportamento regulado da criança é
desenvolvido por meio de mediações sociais. E desse modo, nos opomos a abordagens
biologicistas do campo biomédico que propaga a crença de que a falta de atenção e o
comportamento não regulado na criança decorre de uma falha ou déficit cerebral. E
consequentemente, essa visão implica em desinvestimento pedagógico na criança já que a
criança só obterá atenção e controle do corpo por meio farmacológico.
Diante os objetivos elencados para pesquisa organizamos a sua realização em duas
etapas em que os dados coletados e os relatos dos trabalhadores da educação e da saúde,
através das entrevistas realizadas nas escolas e unidades de saúde, permitiram compreender as
significações que esses trabalhadores atribuem ao conhecimento e diagnóstico do transtorno,
bem como o tratamento.
18

1. DA MEDICALIZAÇÃO DA VIDA À MEDICALIZAÇÃO NA INFÂNCIA

A medicalização da vida é definida como um conjunto de práticas, atos, serviços


que são apresentados como soluções aos sofrimentos e às diversas dificuldades relacionados
ao viver. Apesar dessas intempéries e dores serem causadas pelas relações sociais e pelas
condições concretas de vida, são transformadas em explicações e classificadas em patologias,
sendo passíveis de tratamento por diversos profissionais da saúde e recebendo prescrições
medicamentosas pelo campo médico.

Diversas situações em que os sujeitos vêm expressando dificuldades de inserção


nos ambientes de trabalho e escola, em diferentes etapas e ciclos da vida, outrora
compreendidas como processos do viver estão cada vez mais sendo explicadas a partir de
conceitos do campo biomédico. A compreensão desse campo se restringe às propriedades do
corpo biológico, ou seja, busca-se classificações nominalmente propagadas como transtornos.
Portanto a ênfase é dada à explicação biológica e não à abordagem das condições concretas de
vida que propiciam o surgimento e desenvolvimento dessas dificuldades.

Apesar dessas situações não requerer necessariamente a prescrição


medicamentosa, porém são prescrições que impactam em explicações no modo como as
pessoas passam a compreender e conduzir a vida. Afirma-se, portanto, um conjunto normativo
e de padrões na vida em sociedade.

Para efeitos de maior clareza do fenômeno da medicalização, Eidt, Tuleski e


Franco (2014) propõem a distinção entre medicação e medicalização, fazendo uma ressalva de
que não há uma negação aos medicamentos, pois eles são avanços científicos nos tratamentos
para sofrimento e dor. Desse modo, medicar na saúde é uma prática clínica e cada medicação
responde a um tipo de tratamento de doenças. Já a medicalização aparece como um conceito a
partir de estudos críticos à ciência médica pelas explicações biologizantes e pela condução
normativa da vida associada à prescrição medicamentosa e o uso de outros procedimentos do
campo médico.

Com isso ressaltamos que a medicalização não é sinônimo de medicar, pois esta é
uma prática médica histórica. Em nosso estudo discutimos a medicalização como um conceito
que se refere a um processo que vem se impondo no modo de explicar e conduzir a vida,
19

sendo que esse processo pode ou não se utilizar da prescrição medicamentosa. É certo que
para compreender o processo de medicalização destacamos o importante papel da indústria
farmacêutica na produção de medicamentos e propagação de transtornos ao explicar as
dificuldades da vida como um limite do corpo biológico.

De modo geral, assinalamos que a medicalização da vida é compreendida como


um processo que tem transformado diferentes aspectos do viver de origem histórico-social em
determinação meramente biológica (MOYSES, 2008; GAUDENZI; ORTEGA, 2012;
ALMEIDA; GOMES, 2014). Moysés (2008, s/p) define que a “medicalização é fruto do
processo de transformação de questões sociais, humanas, em biológicas. Aplicam-se à vida as
concepções que embasam o determinismo biológico, tudo sendo reduzido ao mundo da
natureza”.

O processo de medicalização da vida é interpretado à luz das formulações do


Movimento da Luta Antimanicomial e da Reforma Psiquiátrica pela sua função de adequação
social. Em vez da análise do processo saúde-doença, tornando compreensiva a historicidade
do sujeito e apreendendo os aspectos desse processo de modo mais amplo, que proponha
ações diversas no âmbito de relações do sujeito, a medicalização acaba por buscar sua
adaptação ao ambiente social, em vista dos padrões sociais a serem alcançados, ditados pelo
sistema capitalista (COSTA-ROSA; LUZIO; YASUI, 2001).

Para melhor compreensão de como é constituído o atual processo de


medicalização, apresentamos a seguir as relações desse processo pela concepção biomédica.
E, posteriormente, as concepções críticas que explicam como esse processo está articulado
com a indústria farmacêutica e com o aumento dos perfis patológicos descritos a cada revisão
do Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais (DSM), resultando numa espécie
de captura da subjetividade humana pelo modo capitalista de produção.

1.1 Processo de medicalização e a concepção biomédica

A medicalização está diretamente associada à concepção biomédica, cuja


compreensão do sujeito-paciente se restringe ao corpo biológico, não estabelecendo conexões
com a cultura em que o sujeito está inserido. Consequentemente, essa concepção e suas
20

práticas acarretam maior demanda de assistência no Sistema Único de Saúde (SUS),


implicando mais custos em serviços, tratamentos e medicamentos (TESSER, 2006a).

À luz das interpretações sobre a medicalização de Ivan Illich (1926-2002) e das


formulações de Michel Foucault (1926-1984), Gaudenzi e Ortega (2012) discorrem sobre os
impactos do discurso médico na vida das pessoas que criam uma dependência da
medicalização e da medicina no que se refere a tratamentos e explicações sobre os atos e
modos de conduzir a vida. Desse modo, a sociedade passa a ser organizada a partir dos
ditames da medicina moderna como forma de controle social. Assim, a medicalização do
social está associada à gestão da saúde da população como mecanismo de controle e exercício
de poder sobre a vida social.

Para Tesser (2006a, p.62), a medicalização se institui como “um processo de


expansão progressiva do campo de intervenção da biomedicina por meio da redefinição de
experiências e comportamentos humanos como se fossem problemas médicos”.

O processo atual de apropriação das dimensões da vida pelo modelo biomédico


teve início a partir da consolidação da ciência médica no final do século XIX, tendo como
objetivo adentrar “o corpo até níveis cada vez mais profundos para a consecução da moderna
cruzada humana contra a doença, chegando até, como nos dias atuais, ao nível genético e
molecular” (ALMEIDA; GOMES, 2014, p. 159).

Quanto ao papel que cumpre a biomedicina no processo de medicalização, Tesser


(2006b) assinala duas importantes áreas que impactam e alimentam o processo de
medicalização da vida: o preventivo e o terapêutico. O papel preventivo é criticado na medida
em que se torna ditame prescritivo e que não se integra ao universo experimentado pelo
sujeito. São “técnicas, valores e ideologias que reforçam a dependência institucional, o
consumo farmacêutico e de procedimentos especializados” e que se desdobra em
“desvalorização da autonomia e de outros saberes ou valores próprios do doente ou de outras
referências filosóficas ou culturas diversas” (TESSER, 2006b, p.352). Em seu aspecto
terapêutico, ou seja, o que se refere ao diagnóstico e às diferentes intervenções terapêuticas, a
interpretação biomédica ganha força na medida em que o sujeito-paciente se apropria dessa
explicação médica, impactando e afetando fortemente sua própria autonomia nos cuidados
com sua saúde. No entanto, as possibilidades de alterar essa conduta prescritiva e imperiosa,
requer investir na mudança do modelo na atenção básica em saúde, abrindo para outras
21

práticas terapêuticas, evitando a medicalização e promovendo a autonomia do sujeito


(TESSER, 2006b).

É certo que as duas áreas, acima citadas, são importantes e se articulam na


constituição do fenômeno da medicalização como hegemônico na saúde e associado ao poder
econômico e político. Atrelada aos interesses das indústrias farmacêuticas na propagação de
transtornos e medicamentos, a medicalização cumpre a função de redefinir o modo de se viver
impactando no desenvolvimento dos sujeitos na medida em que busca adaptá-los a padrões
sociais exigidos para a finalidade produtiva capitalista que requer corpos atentivos e
silenciados.

O campo biomédico, para Tesser (2006b), exerce suporte científico e clínico para
o processo de medicalização, no entanto, Almeida e Gomes (2014) afirmam que é justamente
por ter avanços científicos referentes a tratamentos e cura que a legitimidade desse campo é
facilmente instituída como prescrições para o modo de conduzir a vida.

A crítica à concepção biomédica, cuja interpretação dos fenômenos sociais do


viver é explicada como determinação natural, e sua associação aos interesses econômicos das
indústrias farmacêuticas não são um tema novo no Brasil. Segundo Luchmann e Rodrigues
(2007), o Movimento da Luta Antimanicomial e as propostas elaboradas no final da década de
1970 pela Reforma Psiquiátrica apresentavam críticas quanto a essa associação de fomento à
medicalização da sociedade.

A concepção biomédica tem papel importante no processo de medicalização da


vida, mas esse papel é realizado de modo articulado com outros agentes como a indústria
farmacêutica e o DSM. Seus papéis são discutidos pelas concepções críticas, bem como na
relação do movimento das contradições do modo capitalista de produção.

1.2 Processo de medicalização e as concepções críticas

Na consolidação dessa ordem de padronização e redefinição de comportamentos


por meio de enquadramento a perfis patológicos, cabe à indústria farmacêutica cumprir um
papel econômico junto a instituições, patrocinando pesquisas e campanhas para a ampliação
dos diagnósticos e para a produção de medicamentos. Assim, a hegemonia político-
epistemológica da biomedicina, associada à indústria farmacêutica, expande-se na propagação
22

de fármacos e difusão de transtornos atendendo a seus interesses lucrativos (ITABORAHY;


ORTEGA, 2013).

Nos embates travados pela Reforma Psiquiátrica e pelo movimento da Luta


Antimanicomial, a medicalização recebe críticas por ser uma imposição da indústria
farmacêutica pelo seu apelo propagandista e por ter forte influência tanto na esfera política
como na esfera institucional e nos profissionais de saúde (COSTA-ROSA; LUZIO; YASUI,
2001).

Sem dúvida, a indústria farmacêutica, como um ramo do capital, tem lucros


exorbitantes na produção de medicamentos, como alertam Itaborahy e Ortega (2013); na
propagação de patologias, conforme Gaudenzi e Ortega (2012), e na divulgação de
transtornos, na indissociabilidade atribuída à propagação do Metilfenidato e no diagnóstico e
tratamento do TDAH, de acordo com Ortega et al (2010).

Quanto a esse processo de medicalização e propagação dos medicamentos, a que


se referem Itaborahy e Ortega (2013), veiculado pela indústria farmacêutica e associado aos
ditames do campo médico no aumento dos diagnósticos, recorremos à passagem de Marx
(1859/1978, p. 111) sobre a relação entre a produção e o consumo no modo de produção
capitalista: “a produção produz o consumo ao criar o modo determinado do consumo, e o
estímulo para o consumo, a própria capacidade de consumo sob a forma de necessidade”.

Ao criar a necessidade de consumo do medicamento no sujeito, esse passa a


internalizar que é portador de uma patologia, de um transtorno. Nesse sentido, Brzozowski e
Caponi (2010) esclarecem que ao internalizar que é doente, o sujeito tem sua subjetividade
afetada, porque começa a se ver como portador de um transtorno socialmente legitimado,
tendo suas potencialidades limitadas pelo modo como começa a se perceber no mundo. Ou
seja, como apontado por Marx (1859/1978, p. 110) sobre a relação entre produção e consumo:
“A produção não produz, pois, unicamente o objeto do consumo, mas também o modo de
consumo, ou seja, não objetiva, como subjetivamente. Logo, a produção cria o consumidor.”.

Desse modo, destacamos a passagem de Marx (1859/1978) para a compreensão da


relação entre produção, consumo e a atual propagação dos transtornos, em que se forja,
portanto, a necessidade de consumo de fármacos e a criação de medidas medicalizantes.
23

Almeida e Gomes (2014) sugerem que examinemos a determinação da


medicalização a partir das relações capitalistas de produção e trabalho para além do papel da
indústria farmacêutica, que é bastante importante, porém, não é o principal. Nesse sentido, os
autores propõem um caminho de análise da medicalização à luz da interpretação da
determinação histórico-social do processo saúde-doença articulado a outros processos sociais.

Apesar das contestações dos que se colocam contra a “medicalização” da


sociedade e seus efeitos iatrogênicos, os aumentos das doenças antes
mencionadas não se explicam a partir da prática médica. Deve-se buscar a
explicação não na biologia ou na técnica médica, mas nas características das
formações sociais em cada um dos momentos históricos. [...] o caráter social
da doença e que permite também um aprofundamento nos determinantes
sociais do perfil patológico é a análise das condições coletivas de saúde em
diferentes sociedades, no mesmo momento histórico. (LAURELL, 1982, p.
5)

O processo de medicalização ou de patologização2 oculta a determinação do


processo saúde-doença como expressão individual e coletiva (COLLARES; MOYSÉS, 1994).

As indagações que permitem revelar o fenômeno de medicalização se dirigem ao


movimento das contradições do modo de produção capitalista, que exige corpos produtivos,
competitivos e atentivos em ritmos cada vez mais acelerados, para a finalidade produtiva.

Os elementos históricos do processo de medicalização tiveram sua gênese nas


transformações realizadas a partir do século XIX. Ações de higienização, moralização e
normatização sobre o corpo foram realizadas com a finalidade de padronizar e garantir as
relações de trabalho no meio urbano de cidades da Europa. Essas transformações interferiram
na definição de saúde e nas bases do processo que atualmente conhecemos como
medicalização. Tais mudanças históricas criaram as condições para o processo de
medicalização (ALMEIDA; GOMES, 2014).

A intervenção estatal no campo da saúde-doença passa a transferir-se


progressivamente do plano coletivo para o individual. Dois aspectos serão

2
Segundo Collares e Moysés (1994, p.26), “mais recentemente, com a criação/ampliação de campos do
conhecimento, novas áreas, com seus respectivos profissionais, estão envolvidas nesse processo. São psicólogos,
fonoaudiólogos, enfermeiros, psicopedagogos que se vêm aliar aos médicos em sua prática biologizante. Daí a
substituição do termo medicalização por um outro mais abrangente - patologização -,uma vez que o fenômeno
tem-se ampliado, fugindo dos limites da prática médica.”.
24

determinantes para essa reorientação. Em primeiro lugar, à medida que as


transformações no meio urbano e nas condições de vida anteriormente
descritas propiciam uma importante redução das taxas de morbimortalidade,
garantindo a disponibilidade de força de trabalho em quantidade suficiente,
diminui a necessidade material dessas práticas coletivas. Paralelamente a
isso, o desenvolvimento das forças produtivas com a revolução industrial
possibilitará um avanço científico-tecnológico da medicina em graus jamais
vistos, ampliando progressivamente sua capacidade de intervenção no corpo
orgânico. (ALMEIDA; GOMES, 2014, p. 159)

Se por um lado a concepção biomédica no desenvolvimento do modo de produção


capitalista possibilitou avanços nos tratamentos de cura no campo da saúde, por outro, a partir
do determinismo biológico, ao explicar todas as questões do viver, vem acumulando
rearranjos normativos e executando prescrições de saúde, garantindo a estratégia capitalista de
produção que requer corpos atentivos, produtivos e controlados.

Desse modo, ao não evidenciar as contradições do sistema e a determinação do


processo saúde-doença, o maior número de categorias diagnósticas vem sendo criado pelos
manuais, expresso em cada revisão do DSM, respondendo à estratégia capitalista de colocar o
sujeito em ritmo de produtividade nos ambientes de trabalho desde a escola.

É sabido que a compreensão do indivíduo, fundamentada em uma concepção


meramente biológica, que desloca o sujeito de sua historicidade, é hegemônica e resulta em
diversos encaminhamentos para unidades de saúde configurando o processo de medicalização.
Porém, outra perspectiva de compreensão do indivíduo, a partir da interpretação das
condições histórico-sociais de vida, a exemplo de outros referenciais formulados nos
princípios da Reforma Psiquiátrica e do Movimento da Luta Antimanicomial, fornece
elementos de compreensão do indivíduo em sua historicidade, tendo como pressuposto a
diversidade humana e a singularidade do sujeito.

Os elementos de interpretação da relação entre o atual processo de medicalização


da vida e a concepção de saúde hegemônica são apresentados pelo Movimento da Luta
Antimanicomial e pela Reforma Psiquiátrica com críticas em torno de como a saúde mental
vem sendo realizada no tratamento dos sujeitos. Outro paradigma de compreensão do sujeito
em seu sofrimento e adoecimento psíquico é proposto contrapondo-se às ideias que
25

fundamentam a medicalização e o isolamento como únicas ações terapêuticas (COSTA-


ROSA; LUZIO; YASUI, 2001).

Em vez de questionamentos que conduzem a reflexão sobre as relações sociais, as


condições concretas de vida, em torno das dificuldades e da inadaptação dos sujeitos que se
expressam em angústia, dores físicas, sofrimentos psíquicos, classificando-os em perfis
patológicos, as dificuldades de adaptação às normas e à inserção nos ambientes sociais e de
trabalho, nas diferentes faixas etárias, desde a escola, são enquadradas como categorias
diagnósticas.

Almeida e Gomes (2014) destacam que o papel da indústria farmacêutica e os atos


e serviços do campo biomédico cumprem funções importantes no processo de medicalização.
Porém, eleger a indústria farmacêutica e a biomedicina como principais agentes, como
comumente alguns estudos vêm apontando, pode ocultar as determinações desse processo.
Segundo os autores, o atual processo de medicalização deve ser interpretado pelo movimento
das contradições do modo capitalista de produção se o que se busca não é a aparência do
fenômeno, mas suas múltiplas determinações. Nesse sentido, a ampliação dos limites
patológicos expressos nas diferentes versões do DSM tem relação com o aumento crescente
das categorias diagnósticas nesse modo de produção (ALMEIDA; GOMES, 2014).

De acordo com Antunes e Alves (2004), o modo de produção capitalista, desde


sua origem, demandou o envolvimento do proletário por meio da captura de sua subjetividade.
A exploração intensificada dos que vivem da venda da força de seu trabalho requer que esses
trabalhadores sejam polivalentes e multifuncionais, além de que, tal exigência é requerida no
mesmo contexto em que há perda significativa de direitos e de sentido no trabalho. Tais
mudanças processadas no mundo trabalho impõem

[...] uma nova orientação na constituição da racionalização do trabalho, com


a produção capitalista, sob as injunções da mundialização do capital,
exigindo, mais do que nunca, a captura integral da subjetividade operária (o
que explica, portanto, os impulsos desesperados – e contraditórios – do
capital para conseguir a parceria com o trabalho assalariado). (ANTUNES;
ALVES, 2004, p.345, grifo dos autores)

E desse modo se estendendo:


26

Dos serviços públicos cada vez mais privatizados, até o turismo, no qual o
“tempo livre” é instigado a ser gasto no consumo dos shoppings, são
enormes as evidências do domínio do capital na vida fora do trabalho, que
colocam obstáculos ao desenvolvimento de uma subjetividade autêntica, ou
seja, uma subjetividade capaz de aspirar a uma personalidade não mais
particular nem meramente reduzida a sua “particularidade”. A
alienação/estranhamento e os novos fetichismos que permeiam o mundo do
trabalho tendem a impedir a autodeterminação da personalidade e a
multiplicidade de suas qualidades e atividades. (ANTUNES; ALVES, 2004,
p. 349, grifo dos autores)

Assim, o que produz sofrimento, angústia, desatenção, agitação como negações


dessa relação trabalho/capital é transformado em categorias patológicas e passíveis da
normatividade biomédica e prescrição medicamentosa.

De modo a compreender esse contexto, Almeida e Gomes (2014) nos fornecem


elementos para interpretação dessas expressões, sendo elas a negação das relações
capital/trabalho e ao mesmo tempo ser apreendidas como outra dimensão importante da
medicalização. A ampliação dos limites patológicos é expressão do atual processo de
medicalização, uma vez que, a cada revisão do Manual Diagnóstico e Estatístico de
Transtornos Mentais (DSM), as manifestações ora compreendidas como normais da vida,
produzidas no processo social capitalista, são consideradas anormais e ampliadas em
classificações diagnósticas (ALMEIDA; GOMES, 2014).

Sena (2014) e Caponi (2014) também questionam as versões do DSM como


legitimadoras do processo de explosão de diagnósticos e patologização da vida. A Segunda
Guerra Mundial, para Sena (2014), demarcou um período importante em que pesquisas da
ciência médica foram produzidas em torno dos efeitos do pós-guerra, proporcionando
formulações teóricas, metodológicas e terapêuticas, reorientando o campo da psiquiatria na
ampliação de diagnósticos. O autor destaca a quantidade de diagnósticos criados
correspondentes às versões e aos anos dos DSM no pós-guerra:

DSM-I, primeiro manual oficial da APA, surgiu em 1952, com 106


diagnósticos psiquiátricos; o DSM-II, em 1968, apresentava 182
diagnósticos; o DSM-III, publicado em 1980, continha 265 diagnósticos, e
sua revisão, em 1987, estendeu-se para 292 diagnósticos. O DSM-IV foi
27

editado, em 1994, com 297 diagnósticos, e o recém publicado DSM-5, de


2013, apresenta 300 categorias. (SENA, 2014, p. 98)

Na quinta versão do DSM, o número de categorias diagnósticas aumentou,


podendo chegar até 365 diagnósticos, dependendo do tipo de contagem. O autor questiona
essas novas categorias como imposição de novos padrões de normatividade ampliando os
limites do que é considerado anormal:

O novo compêndio traz, por exemplo, entre outras novidades: o Transtorno


de Acumulação (código 300.3) como um transtorno obsessivo-compulsivo
caracterizado pela dificuldade persistente de se desfazer de pertences; e
Disforia de Gênero (código 302.6), como um diagnóstico global de
incongruência acentuada entre o sexo experimentado/expresso e o gênero
designado de uma pessoa.

Esses exemplos e muitos outros nos fazem refletir sobre o que é normal e
anormal, patológico e saudável, doença e saúde, doença mental e saúde
mental e sobre a ideologia subjacente à formulação, formatação e adoção dos
compêndios empíricos DSMs produzidos pela psiquiatria. (SENA, 2014, p.
103)

Na mesma linha de crítica aos manuais e suas atualizações e ao aumento de


diagnósticos e perfis patológicos, Caponi (2014, p. 759) questiona o papel legitimador do
DSM como documento oficial e que se impõe como “ficha diagnóstica” para a medicalização
da vida de adultos e crianças, o que, segundo a autora, limita os questionamentos e conflitos e
reduz a “possibilidade de pensar os sofrimentos como decorrentes de circunstâncias concretas
de vida, que seria preciso modificar ou alterar”.

Concordamos com as afirmações de Sena (2014) quanto à crescente


transformação do que é normal em categorias patológicas pelos manuais e com Almeida e
Gomes (2014), que ressaltam que a determinação desse processo se encontra no movimento
das contradições da vigência do capital. E conforme abordam Antunes e Alves (2004) é um
processo do modo capitalista de produção de permanentemente busca da captura da
subjetividade do trabalhador.

Em diferentes períodos históricos, a normatividade que exclui e isola mantém um


papel perverso que impõe a segregação social, a exemplo de como se tratou a loucura ao
28

longo do tempo. A sociedade dividida em classes, que se estrutura pela desigualdade social,
ora isola os sujeitos do convívio social, classificando-os como loucos, ora medicaliza a
propagação dos transtornos, ampliando os limites patológicos. Desse modo, podemos
entender a segregação e o processo de medicalização como atos e prescrições realizados pelas
sociedades economicamente e socialmente desiguais e que se constituem como práticas de
violência e silenciamento dos sujeitos por meio de instituições.

Machado de Assis (1839-1908) aborda a loucura na obra O alienista, publicada


em 1882, na qual narra a perseguição do personagem de Simão Bacamarte a indivíduos cuja
singularidade e particularidade eram compreendidas como traços de loucura. E, desse modo,
prendeu quase toda a população da pequena cidade de Itaguaí colocando todos em uma
instituição e, assim, isolando-os do convívio social. Embora seja uma obra literária, o escritor
apresenta o problema da loucura como centro temático do conto e nos conecta ao momento
histórico em que viveu. Segundo Amarante e Torre (2010, p. 154), a crítica de Machado de
Assis feita à sociedade é sagaz e não poupa críticas às convenções sociais e às prescrições
médicas amparadas pelo discurso cientifico, “atento aos fenômenos sociais, aponta para o
processo de medicalização inerente ao campo da loucura e distúrbios mentais e do poder
‘despótico’ que contém o saber psiquiátrico”.

Se na Idade Média a “Nau de loucos” era um modo de higienizar a sociedade,


segregando os sujeitos e colocando-os em embarcações à deriva, em Machado de Assis nos é
revelado o aprisionamento da loucura em instituições – período em que também ocorrem as
transformações pós-revolução industrial. Tais instituições foram criadas para isolar a loucura
e tratá-la pelos atos e prescrições da ciência médica: “O principal nesta minha obra da Casa
Verde é estudar profundamente a loucura, os seus diversos graus, classificar-lhe os casos,
descobrir enfim a causa do fenômeno e o remédio universal” (ASSIS, 1882/1995, p. 12).

O mecanismo de diferenciação utilizado para classificar em categorias


diagnósticas, tanto os sujeitos em sofrimento e adoecimento mental, quanto aqueles
inadaptáveis, é elemento do atual processo de medicalização que teve sua gênese nas
transformações do meio urbano ocasionadas pelo advento da industrialização.

Desse modo, historicamente, é observado que a relação entre “captura integral da


subjetividade” dos trabalhadores (ANTUNES; ALVES, 2004) e os atuais atos e serviços da
29

medicalização se convergem em um processo perverso, que é inerente ao sistema capitalista, e


limita o desenvolvimento de uma vida dotada de sentido e autodeterminada pelo sujeito.3

No entanto, diversas pesquisas não buscam explicitar as relações entre


sofrimentos e angústias com as condições concretas de vida. De acordo com Amarante e
Torres (2010), fomentam a medicalização social e seguem em parceria com as instituições na
propagação dos transtornos e medicamentos:

Muitas pessoas que se encontram com alguma forma de sofrimento ou de


mal-estar social, por sentirem-se rechaçadas, rejeitadas, inoportunas e tantas
outras possibilidades, identificam-se com determinados diagnósticos na
medida em que, no momento em que passam a ser consideradas doentes,
deixam de ser culpadas por suas características, as quais consideram que
incomodam os demais. Outras situações de angústia, insatisfações, tristeza,
entre outras, podem ser facilmente medicalizáveis. Desta forma, as pesquisas
epidemiológicas podem ter muito mais um significado de produção de
comportamentos patológicos do que de auferição de patologias no meio
social. Muitas pessoas se apresentam como ‘depressivas’, ‘portadoras de
pânico’ e ‘bipolares’. Quando a OMS anuncia que, em 2020, existirão
milhões de pessoas com depressão no mundo, não estaria, na verdade,
construindo este cenário? Quando a Associação Brasileira de Psiquiatria
(ABP), em cooperação com o Ibope, divulga uma pesquisa que aponta para o
fato de que 5 milhões de crianças têm sintomas de transtornos mentais, não
estaria contribuindo para a medicalização da infância? Como podemos
verificar a metodologia? A pesquisa recebeu apoio financeiro da indústria
farmacêutica, já que os recebe abundantemente para seus congressos e
publicações? Não é um fato surpreendente o Ibope realizar uma pesquisa
científica, que precisa passar por comitês de Ética e garantir uma série de
aspectos, tais como sigilo? Na página da ABP não há qualquer referência a
esses aspectos (ASSOCIAÇÃO BRASILEIRA DE PSIQUIATRIA, 2008).
Por que o Ibope e não uma universidade? Por que não recursos dos editais do
CNPq? O Brasil é um dos países onde ocorre a maior medicalização da
infância em todo o mundo. (AMARANTE; TORRE, 2010, p. 157)

3
Para Antunes e Alves (2004), “trabalhadores” são aqueles que vivem da venda da força de trabalho,
independente de qual ramo, englobando, inclusive, os que estão no trabalho informal.
30

A subjetividade na perspectiva da Psicologia Histórico-Cultural, fundamentada


nos pressupostos do materialismo histórico e dialético, é forjada no processo de humanização
pela apropriação da cultura material. Portanto, a experiência humana de um determinado
indivíduo nos marcos do gênero humano é única, irreplicável e desenvolvida no conjunto das
suas relações sociais. A “subjetividade, portanto, é constituída por fatores internos e externos,
na qual a forma de o indivíduo se perceber está relacionada com o modo como os homens
estabelecem as relações sociais em um contexto específico, decorrente de condições histórico-
sociais.”. (AITA; FACCI, 2011, p.39)

Nesse sentido, o processo de medicalização aplicado a perfis patológicos cada


vez mais ampliados pelas versões atualizadas dos manuais desconsidera a dimensão subjetiva
e singular do indivíduo em sua historicidade na apropriação das condições concretas de vida.
Ou seja, através das prescrições, a medicalização segue impondo, por meio dos discursos e
práticas médicas, a busca pelo controle das emoções e pela regulação do comportamento.
Observa-se, portanto, que no capitalismo, regime em que são cobrados ritmo e volume de
produtividade desde a escola, a patologização tem a função de classificar e padronizar os
comportamentos a fim de silenciar os conflitos surgidos nessa ordem social, assim
impossibilitando aos sujeitos e à sociedade aprofundar as questões sobre o atual modo de
produção da vida.

A seguir, investimos na discussão de como se dá a medicalização em uma


importante etapa da vida: a infância. Apresentamos os aspectos desse processo que adentram
o espaço escolar, consequentemente atribuindo à criança a responsabilidade por não aprender,
encaminhando-a aos serviços de saúde.

1.3 Medicalização da infância

Atualmente, as dificuldades de aprendizado são interpretadas como diagnósticos e


recebem prescrições medicamentosas ou outros procedimentos do campo biomédico visando
a um corpo atentivo e controlado desde a escola, o que transforma o espaço pedagógico em
espaço clínico.
31

Características como desatenção, isto é, dificuldade de focar a atenção em


determinada atividade de estudo, combinadas à atitude agitada e inquieta da criança, levam a
classificá-la com um transtorno e buscar, por meio das ordens do campo biomédico e da
prescrição medicamentosa, o controle do comportamento e a busca atentiva.

Nesse sentido, as dificuldades do ensino, temas e práticas organizativas do campo


educacional perdem espaço para o discurso médico, uma vez que a validade desse discurso,
por alegar cientificidade no conteúdo, institui-se como inquestionável e supervalorizado
(CALIMAN, 2008; BRZOZOWSKI; CAPONI, 2010).

A medicalização da infância, para Moysés (2008), adentra o espaço escolar e em


vez dos elementos pedagógicos serem debatidos a partir de princípios das áreas das ciências
humanas, ocorre interferência médica, visto que os posicionamentos associados ao campo da
biomedicina classificam a criança com dificuldades de aprendizagem, nomeando-as de
transtorno. Para a autora, em vez de indagações e reflexões acerca das dificuldades e revisão
de métodos de ensino que possibilitem aproximar a educação escolar do contexto da criança e,
com isso, levar em consideração os elementos sociais adjacentes ao processo de ensino-
aprendizado, recorre-se à medicalização.

Garcia, Borges e Antonelli (2014) analisam a medicalização no âmbito escolar


como um processo de padronização e de controle sobre o corpo por meio do discurso e da
intervenção médica.

A medicalização instaura um processo explicativo que não mais questiona a


escola, o método ou as condições de aprendizagem e de escolarização.
Busca-se na criança, em áreas de seu cérebro, em suas condutas e na
dinâmica familiar as causas das dificuldades de aprendizagem e,
consequentemente, a justificativa para a suposta incapacidade de
acompanhamento dos conteúdos escolares. (GARCIA; BORGES;
ANTONELLI, 2014, p. 542)

Entre os transtornos de aprendizagem que tentam explicar cientificamente porque


se dá a dificuldade da criança em aprender, o Transtorno de Déficit de Atenção e
Hiperatividade (TDAH) é a expressão mais importante do processo de medicalização na
infância. Apesar de ser previsto o tratamento com psicoterapia e o aconselhamento familiar, a
32

prescrição medicamentosa é a principal opção no tratamento das crianças diagnosticadas pelo


TDAH (BARBARINI, 2010; CARVALHO; BRANT; MELO, 2014).

A produção e o consumo de metilfenidato têm aumentado em função de ser esse


medicamento o mais usado no tratamento do referido transtorno, sendo o psicoestimulante
mais prescrito para uso nos períodos escolares. Recebe as denominações comerciais de
Ritalina® e Concerta®, respectivamente produzidos pela Novartis e pela Janssem. O Brasil é
o segundo país que mais consome metilfenidato e devido ao seu efeito de controle do
comportamento recebe a denominação de “droga da obediência” (ANVISA, 2012; PIRES,
SILVA, 2013).

Entre 1990 e 2006, houve um aumento de 1.200% na produção mundial de


metilfenidato. O Brasil, em 2006, segundo dados da Organização das Nações Unidas (ONU),
relatório de 2008 apresentado pelos autores, fabricava 226 kg e importava 91 kg: “o
crescimento na produção e no consumo no Brasil, em tão pouco tempo, faz com que a
compreensão sobre os usos do metilfenidato em território nacional se torne uma questão
imprescindível para ações em saúde que envolva tal medicamento” (ORTEGA et al, 2010, p.
500).

Segundo dados divulgados na nota técnica do Fórum sobre Medicalização da


Educação e da Sociedade, a importação do metilfenidato teve um aumento expressivo nos
últimos anos no Brasil. No ano de 2012 foram importados 578 kg e no ano seguinte, 2013, foi
registrada a importação de 1.820 kg. E o consumo do psicoestimulante tem maior taxa de uso
entre as crianças e jovens em atividades escolares, buscando-se um corpo atentivo e
silenciado, por meio do efeito “zumbi” que produz.

Dados indicam que o metilfenidato é possivelmente utilizado por crianças e


adolescentes em processo de escolarização que fazem uso reduzido do
medicamento no período de recesso escolar, mas que o seu consumo cresce
concomitantemente ao longo do ano escolar, como aumento nas épocas onde
há eminência de reprovação escolar. (FÓRUM SOBRE MEDICALIZAÇÃO
DA EDUCAÇÃO E DA SOCIEDADE, 2015, p. 7)

Outro psicoestimulante utilizado no tratamento das dificuldades de aprendizagem


tem como princípio ativo a Lisdexanfetamina e está disponível no mercado farmacológico
33

como Venvanse®, produzido pela Shire.4 Outra substância aprovada para o tratamento do
TDAH é Atomoxetina, princípio ativo da Stratteran®, fabricado pela Eli Lilly. (FÓRUM
SOBRE MEDICALIZAÇÃO DA EDUCAÇÃO E SOCIEDADE, 2015).

Para a Anvisa, o atual quadro de medicalização revela uma recorrência de


distorções e equívocos no uso destes medicamentos:

[...] como “droga da obediência” e como instrumento de melhoria do


desempenho seja de crianças, adolescentes ou adultos. Em muitos países,
como os Estados Unidos, o metilfenidato tem sido largamente utilizado entre
adolescentes para melhorar o desempenho escolar e para moldar as crianças,
afinal, é mais fácil modificá-las que ao ambiente (ANVISA, 2012, p. 13).

Os usuários do metilfenidato geralmente são considerados inadaptados, pois


produzem e estudam de maneiras diferentes do esperado na escola e em casa. Rotulados de
desobedientes são enquadrados clinicamente em perfis patológicos, pois “os fenômenos
contingentes à existência humana vêm sendo diagnosticados como transtornos psiquiátricos e
neuroquímicos” (CARVALHO; BRANT; MELO, 2014, p. 599).

Na análise documental dos relatórios do Unicef, feita por Lemos, Galindo e


Rodrigues (2014), consta que o processo de medicalização vem transformando em doenças e
transtornos o que se considera como desvios sociais. E, nesse sentido, por meio das práticas
dessa instituição, a medicalização visa à formação de sujeitos dóceis.

Para atingir seus efeitos de conjunto, as disciplinas medicalizantes operam


em articulação com a economia política e os saberes que oportunizam
efetuar as reflexões e os cálculos de investimento e retorno a fim de
possibilitarem o maior crescimento do Estado com os menores custos
possíveis (LEMOS; GALINDO; RODRIGUES, 2014, p. 206-207).

Crianças e adolescentes no discurso do Unicef “são subjetivados como patológicos e


inseridos em uma rede que promove o silenciamento de seus sofrimentos e a sua segregação,
frequentemente recorrendo a índices que se valem de categorias psiquiátricas e de dados sobre
violência ou vulnerabilidade” (Ibidem, p. 209).

4
Conforme relato em entrevistas com professores, os medicamentos Ritalina® e Concerta®, com princípio ativo
do metilfendidato, podem ser fornecidos pelo SUS, desde que mediante receita médica, inclusive o recente e
mais caro Venvanse®.
34

Esta abordagem também é observada entre profissionais da educação devido à


tendência de reprodução do discurso médico como solução aos problemas de ensino-
aprendizagem. De acordo com o estudo realizado por Garcia, Borges e Antonelli (2014), com
professores da educação infantil, esse quadro de medicalização cada vez mais ganha espaço:

Instaura-se um processo explicativo que não mais questiona a escola, o


método ou as condições de aprendizagem e de escolarização. Busca-se na
criança, em áreas de seu cérebro, em suas condutas e na dinâmica familiar as
causas das dificuldades de aprendizagem e, consequentemente, a justificativa
para a suposta incapacidade de acompanhamento dos conteúdos escolares.
Isso permite que a escola mantenha práticas educativas que emolduram
condutas e modos de aprender dentro dos padrões escolares de normalidade
(GARCIA; BORGES; ANTONELLI, 2014, p. 557).

Outro estudo que apresenta a tendência de intervenção do discurso médico em


meios escolares foi realizado por Lorenzi, Rissato e Silva (2012) em uma escola pública com
professores de ensino fundamental. Neste estudo foi analisado como esses professores se
apropriaram do discurso sobre o TDAH e quais as implicações dessa apropriação na prática
educativa. Destaca-se que a significação que esses profissionais dão aos comportamentos dos
alunos, centrada no discurso médico-científico, implica diretamente a forma como avaliam as
crianças. Mediante isso, as autoras afirmam a necessidade de “refletir sobre quem são essas
crianças que chegam até a escola e que recebem esse diagnóstico e sobre como queremos nos
relacionar com elas. O foco na doença não irá retirar do professor sua importante tarefa de
mediador de uma relação de ensino-aprendizagem” (LORENZI; RISSATO; SILVA, 2012, p.
94).

O professor e presidente de honra da Associação Brasileira de Saúde Mental


(Abrasme), Paulo Amarante, defende que a interferência do Estado ao regular o uso desse tipo
de remédio é de fundamental importância, porque o direito à saúde não pode ser diminuído
frente aos interesses mercadológicos das indústrias farmacêuticas. Ao conceder entrevista
para o portal da Escola Nacional de Saúde Pública (Ensp), da Fundação Oswaldo Cruz
(Fiocruz), questionou as empresas que têm tido cada vez mais espaço para um campo da
saúde que fomenta a medicalização da população.

Em contraponto ao processo de medicalização, tem crescido a organização de


coletivos e fóruns de discussões, a exemplo do Fórum sobre Medicalização da Educação e da
35

Sociedade, que reúne pesquisadores e diversos profissionais da educação e da saúde com o


objetivo de compreender o crescimento de patologias na educação e lutar contra esse
processo, organizando debates e materiais. Também é observada a criação de propostas de
trabalho com as crianças consideradas desatentas e hiperativas em uma perspectiva centrada
no desenvolvimento da atenção e na mudança comportamental sem a admissão dos ditames
do campo biomédico que decorrem em diagnóstico de TDAH. E respondendo à demanda
desses coletivos, dois importantes municípios, Campinas e São Paulo, criaram dispositivos
que regulamentam o consumo do metilfenidato em crianças. O governo municipal de
Campinas criou um protocolo de uso do metilfenidato (CAMPINAS, 2013) e o governo
municipal de São Paulo emitiu portaria sobre o tema (SÃO PAULO, 2014).

Vê-se que a patologização na educação, rotulando a criança como incapaz de


aprender sem o tratamento médico, retira do professor seu papel imprescindível de mediador
no processo de ensino-aprendizagem para o desenvolvimento da atenção e o domínio da
conduta. Todo o investimento pedagógico que pressupõe desafios diante da diversidade em
sala de aula é transposto para a clínica médica.

Portanto, a criança mais agitada, mais inquieta e que não consegue aprender é
classificada como portadora de um transtorno. O investimento educacional ao invés de ser
dado na ênfase da relação humana entre professor e aluno, é alterado pelo uso do fármaco,
que é prioritariamente eleito como a solução diante das dificuldades de indisciplina na escola
e do controle do comportamento das crianças. Ou seja, quem não se comporta como esperado
e não tem sua atenção focalizada é diagnosticado como alguém que tem uma alteração
fisiológica ou química no cérebro. No entanto, essa escolha afeta a formação da subjetividade
da criança, pois atua no modo como ela se vê e como é vista socialmente.

Como já apontado anteriormente, para Brzozowski e Caponi (2010), esse tipo de


classificação de crianças desatentas e inquietas, com dificuldades de aprendizagem e de
controle da conduta como sendo patologias, leva-as também a desenvolver respostas
diretamente associadas ao ditame médico, ou seja, começam a responder como portadoras dos
transtornos, pois internalizam que são doentes. E, desse modo, as instituições são
responsáveis por esse processo que torna a criança refém de um processo de medicalização de
seu comportamento, alterando consideravelmente a subjetividade no modo como a criança se
vê e como é vista socialmente.
36

Diante desse quadro de patologização que tem levado à medicalização da infância,


cabem algumas indagações: Como a criança tem sua escuta atendida na escola, na família?
Como ela é compreendida quando recebe encaminhamento das unidades escolares para os
serviços de saúde? Esta compreensão passa pelo entendimento de que é ela um sujeito
singular constituído por suas experiências? (BARBARINI, 2010, 2014; KAMERS, 2013)

Conforme argumenta Barbarini (2010, 2014), os encaminhamentos decorrentes de


observações avaliativas sobre o comportamento das crianças constituem em práticas de
estigmatização sobre as crianças. Por serem classificadas como hiperativas, desatentas,
agressivas, impulsivas, recebem encaminhamentos para avaliar diagnóstico de transtorno
mental.

As dificuldades dos professores para orientar a atenção e o comportamento das


crianças nas atividades de estudo se constituem em desafios para a educação escolar, porém
esses processos da escolarização devem ser amparados em reflexões acerca das condições
concretas em que se produz a vida e não em soluções produzidas pelo campo médico a partir
de prescrições medicamentosas, pois, assim:

[...] o sofrimento psíquico da criança é interpretado como um transtorno


neurobiológico com signos inespecíficos, constituindo uma perigosa
transformação do campo da psicopatologia na infância: o apagamento do
sujeito em sua dimensão psíquica, histórica e social – em que a medicina se
eleva à condição divina. (KAMERS, 2013, p. 156)

Para não incorrermos em conceber a criança como um sujeito fragmentado,


assinalamos outra relação entre a pedagogia e a psicologia como necessária para a
interpretação dos desafios da educação e para o desenvolvimento da criança. A concepção de
desenvolvimento histórico-cultural adotada e defendida em nosso estudo e a que se refere à
abordagem de desenvolvimento infantil, conforme nos esclarece Pasqualini (2013):

[...] somente se produz como resultado dos processos educativos. Ao mesmo


tempo, a compreensão das leis que regem o desenvolvimento psíquico
constitui uma condição fundamental para o próprio processo pedagógico, na
medida em que o ensino incide sobre diferentes níveis de desenvolvimento
psíquico da criança. Compreender o funcionamento infantil a cada período
do desenvolvimento e o vir a ser desse desenvolvimento se coloca como
condição para o planejamento e condução do processo pedagógico.
37

Psicologia e pedagogia devem, portanto, ser pensadas em unidade.


(PASQUALINI, 2013, p. 73)

O domínio da atenção e a regulação do comportamento são processos psíquicos


do desenvolvimento da criança. Desconsiderar a singularidade da criança e suas condições
histórico-sociais, bem como as leis que regem o desenvolvimento humano nos processos de
aprendizagem impede perspectivas de mudança tanto para aqueles que ensinam como para
quem aprende.

Assim, a relação entre desenvolvimento e aprendizagem é apreendida para o


trabalho de ensinar na educação escolar, cuja relação é explicada por Martins (2010) à luz dos
pressupostos da Psicologia Histórico-Cultural:

[...] o desenvolvimento humano ocorre na relação com a própria vida do


indivíduo: relação com a atividade, tanto aparente quanto interna. Assim, o
lugar ocupado pela criança nas relações sociais, suas condições reais de vida,
é a primeira coisa que deve ser notada quando buscamos compreender as
determinações do desenvolvimento do psiquismo. (MARTINS, 2010, p. 35)

Em concordância com o pensamento da autora, destacamos que o discurso


adotado na educação escolar oriundo do campo médico em um aspecto impossibilita a
compreensão do sujeito a respeito de sua historicidade, e também, em outro aspecto, afeta a
formação da subjetividade da criança, uma vez que ao absorver os ditames médicos na escola
e o uso do medicamento, impede a criança de superar as dificuldades fundamentais para seu
desenvolvimento – concepção adotada para nosso estudo – mediada pelas relações sociais e
seu meio cultural. Isto é, o desenvolvimento da criança deve ser potencializado e não
limitado, conforme imposto pela medicalização.

A prescrição medicamentosa para que a criança tenha um desempenho atentivo e


um comportamento regulado na escola não só afeta seu desenvolvimento como, sobretudo,
tira um direito presente no artigo 7º do Estatuto da Criança e Adolescente (ECA): “A criança
e o adolescente têm direito a proteção à vida e à saúde, mediante a efetivação de políticas
sociais públicas que permitam o nascimento e o desenvolvimento sadio e harmonioso, em
condições dignas de existência.”. (BRASIL, 1990)

Nesse sentido, o processo de medicalização impossibilita o desenvolvimento


defendido nesta dissertação como direito da criança em formação. Tal como nos alerta Leite
38

(2015), crianças que deveriam apenas ser educadas estão sendo medicalizadas. No capítulo
seguinte investiremos em compreender o denominado transtorno a partir dessa questão:
TDAH é um fenômeno biológico ou histórico- social?
39

2. TDAH: UM FENÔMENO BIOLÓGICO OU HISTÓRICO – SOCIAL?

No capítulo anterior apresentamos o fenômeno TDAH como uma das expressões


mais importantes da medicalização da infância, explicitando, desse modo, que a atual
propagação do transtorno expressa um contexto em que se busca nos atos, práticas normativas
e prescrições medicamentosas a resolução para dificuldades e sofrimentos decorrentes do
viver, o que, consequentemente, traz impactos no desenvolvimento da criança.

Entre os diversos estudos que apresentam críticas ao processo de medicalização


das crianças e dos encaminhamentos às unidades de saúde com origem nas queixas escolares,
destacamos o relatório da Anvisa (2012), bem com as pesquisas de Eidt (2004), Baldini e
Leite (2006), Eidt e Ferraciolli (2007), Caliman (2008, 2009), Ferreira (2009), Barbarini
(2010, 2014), Brzozowski e Caponi (2010), Ortega et al (2010), Lorenzi, Rissato e Silva
(2012), Collares e Moysés (1994), Moysés (2013a), Itaborahy e Ortega (2013), Kamers
(2013), Eidt e Tuleski (2010), Eidt, Tuleski e Franco (2014), Carvalho, Brant e Melo (2014),
Garcia, Borges e Antoneli (2014), Leite e Rebello (2014), Cord et al (2015), analisam o
TDAH como um transtorno controverso.

Os elementos abordados nesses estudos enfatizam que as dificuldades do ensino


são associadas à falta de atenção da criança nas atividades escolares e têm avaliado a criança
como agitada e dispersa. Esses comportamentos transformados em sintomas em um processo
de construção de patologias que pressupõe que não aprender em tempo determinado, de
acordo com padrões e avaliações - muitas vezes externo a organização do trabalho pedagógico
da escola - e não se comportar conforme normas estabelecidas são comportamentos
classificados como doença na infância.

Identificamos que as explicações sobre o TDAH se dividem em dois campos de


concepções. Um campo reúne fundamentos sobre o transtorno como determinação biológica
ou como falha no cérebro e com origem genética. O outro reúne estudos críticos que
questionam o viés meramente biológico e apresentam um conjunto de elementos que afirmam
ser um transtorno controverso que tem levado a uma crescente medicalização das crianças.
40

Nesse sentido, nosso esforço de análise converge para estudos críticos do


fenômeno TDAH que se referem a ele como expressão do processo de medicalização da
educação, portanto, nossa compreensão, conforme sustenta Barbarini (2010, 2014), é para
além dos sintomas a ele relacionados.

Para Ferreira (2009), o crescimento de diagnóstico do TDAH em crianças


matriculadas nas escolas esconde algo mais complexo, porque impede que reais
questionamentos de ordem institucional venham à tona, como a falta de gerenciamento
adequado dos problemas em ambiente escolar, a grande quantidade de alunos por sala,
proporcionando um desgaste maior do profissional também decorrente de uma jornada
extensa de trabalho:

O diagnóstico psiquiátrico do TDAH, ao situar o fracasso escolar enquanto


manifestação engendrada no corpo do aluno, funciona como instrumento de
significação para a disciplina e para a desatenção e media as relações que se
estabelecem entre professor, aluno e família. (FERREIRA, 2009, p. 5)

Contudo, segundo a pesquisadora, na mesma medida que cabe aos profissionais


de saúde difundir esse discurso psiquiátrico fundamentado na biomedicina, o qual propõe o
ajuste dos sujeitos a uma determinada ordem, também participam desse processo a escola e
seus agentes, aos quais cabe o papel e o lugar de tornar mais explícitos os sintomas do
transtorno.

A compreensão do processo de ensino fundamentada pelo discurso biomédico tem


consequências para a formação do desenvolvimento da criança, “quando se pensa o sujeito
escolar, têm desdobramentos importantes que não apenas definem a história escolar de cada
um, mas também contribui com a configuração de uma história de vida que passa a ser
marcada pela incapacidade e não pela possibilidade” (GARCIA; BORGES; ANTONELLI,
2014, p. 544).

Na perspectiva dos biologicistas, o TDAH é caracterizado como um transtorno


neurobiológico resultado da complexa interação entre fatores genéticos e ambientais. Segundo
Baldini e Leite (2006), os critérios clínicos para diagnosticar o referido transtorno são
caracterizados pela tríade sintomatológica de desatenção, hiperatividade e impulsividade,
percebida como mais comum na infância.
41

As referências para diagnosticar as crianças com TDAH, segundo Barbarini


(2014), são definidas pelas publicações do Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos
Mentais (DSM), sobretudo pela quarta versão, elaborada pela Associação Psiquiátrica
Americana (APA) e, conforme Sena (2014), pela Classificação Internacional de Doenças e
Problemas Relacionados à Saúde, décima versão (CID–10), publicada pela Organização
Mundial da Saúde (OMS). Ambos reconhecidos internacionalmente como referência no
diagnóstico para os diferentes transtornos (SENA, 2014). Atualmente, a quinta versão do
DSM, publicada em 2013, passou a ser a referência atualizada. Nessas publicações, o TDAH
é compreendido segundo a concepção biologicista, que o fundamenta como um tipo de
transtorno associado à dificuldade de atenção e hiperatividade na realização de atividade. E,
conforme o CID–10, é caracterizado por grupo de transtornos de comportamentos emocionais
que ocorrem durante a infância e a adolescência: F 90 – Transtornos hipercinéticos; F 90.0 –
Distúrbios da atividade e da atenção; e F 90.1 – Transtorno hipercinético de conduta.

Em estudo realizado por Dorneles et al (2014), de viés biologicista, os autores


reafirmam que o TDAH, a desatenção e os comportamentos de agitação, impulsividade
afetam a vida escolar das crianças resultando em dificuldades de aprendizagem que podem ser
divididas em comportamentais e intelectuais. São crianças que “apresentam dificuldade de
engajamento em tarefas, constantemente prolongando o início de uma atividade, além de
evitarem o treino repetitivo e não desenvolverem habilidades de forma automática quanto
seus pares sem TDAH” (DORNELES et al, 2014, p. 760).

Para Rossi e Rodrigues (2009), o TDAH também é caracterizado pela observação


dos sintomas de comportamentos hiperativos e desatentos nas crianças. Afirmam que o
mesmo tem origem nos fatores neurológicos e genéticos e que são os sintomas que explicam e
dão o diagnóstico do transtorno. Os fatores ambientais e sociais não são causais, mas podem
impactar na persistência dos sintomas ao longo da vida adulta. A partir da coleta de dados
realizada em sala com professores e no Horário de Trabalho Pedagógico Coletivo (HTPC) em
duas escolas de ensino fundamental, sugerem as autoras que os professores precisam se
apropriar dessa definição, considerando que o objetivo proposto para a pesquisa foi

[...] informar, ensinar e orientar o professor sobre o que é TDAH, suas


causas, diagnóstico, prevalência, enfim, tudo o que esclareça o professor
sobre o assunto e, tão importante quanto, fornecer subsídios, por meio de
técnicas cognitivo-comportamentais, para que ele possa atuar (fornecer
42

ajuda, incentivo e apoio) com esse aluno que apresenta comportamentos


inadequados e/ou dificuldades escolares. (ROSSI; RODRIGUES, 2009, p.
216-217)

Do mesmo modo que Rossi e Rodrigues (2009) dão ênfase aos sintomas na
caracterização do TDAH, Azevedo, Caixeta e Mendes (2009) realizaram estudos de caráter
epidemiológico no campo da neuropsiquiatria infantil e reiteram que o diagnóstico é
essencialmente clínico e são observados comportamentos de desatenção, de hiperatividade e
de impulsividade, avaliados no ambiente escolar e relatados pela família.

No relatório da Anvisa (2012), o TDAH é explicado como um transtorno


neurobiológico do comportamento na infância e relacionado à dificuldade de aprendizagem.
Também é esclarecido no documento que, apesar de não existir exame laboratorial que possa
prever a manifestação desse transtorno como uma dificuldade de aprender da criança, a venda
do metilfenidato aumenta nos períodos letivos e diminui durante as férias escolares. Os
encaminhamentos das escolas para averiguação médica, conforme o relatório informa, em sua
maioria são originados de queixas dos professores e os relatos da família contribuem para o
fechamento do diagnóstico em TDAH.

A interpretação neurobiológica, para Caliman (2008), torna o transtorno mais


aceito socialmente a partir dos anos 1990, devido ao foco das pesquisas sobre o cérebro ter se
intensificado nessa década, que ficou conhecida como “década do cérebro”, validando, desse
modo, seu discurso científico. A partir de então, a explicação de disfunção no cérebro como
causadora de uma desordem da atenção e do comportamento que afeta a aprendizagem torna-
se uma patologia do indivíduo iniciada na infância (CALIMAN, 2008).

Porém, para Lorenzi, Rissato e Silva (2012), há controvérsias em torno do


discurso da existência do TDAH, como sendo uma patologia da dificuldade de aprendizagem,
seja pela explicação de desordem neuroquímica ou pela definição a partir do quadro de
desatenção e comportamentos hiperativos e impulsivos. Nas formulações de críticas acerca do
referido transtorno, questionam a crescente necessidade de nomear e classificar
comportamentos, transformando avaliações referentes às variações de conduta e focalizando a
atenção em patologias na infância.

A crítica feita por Brzozowski e Caponi (2010) se refere à legitimação


institucional do TDAH desde o DSM, passando por clínicas médicas e escolas. Para os
43

autores, a nomeação e classificação tão precoce do indivíduo como uma pessoa doente, que
não é “normal”, em que a criança é incapaz de realizar atividades sem uso de medicamento,
pode afetar sua autoimagem.

Para Caliman (2008, 2009), a interpretação exclusivamente neurobiológica revela


análises aparentes e superficiais do TDAH e o transforma em um dos transtornos mais
controversos e questionados por outras áreas do conhecimento como a neuroética e as
humanidades. Com isso, a interpretação de determinação biológica do transtorno contribui
substantivamente para a crescente medicalização da educação.

Em pesquisas efetuadas por Eidt (2004; s/d) e Eidt e Tuleski (2010), destaca-se o
crescente uso do metilfenidato no tratamento do transtorno e, segundo Moysés (2013a;
2013b), não há estudos sobre os efeitos e futuras consequências do seu uso em crianças.
Porém, a recente publicação do Ministério da Saúde (BRASIL, 2015) cita o levantamento
feito pelo Centro de Vigilância Sanitária da Secretaria Estadual de Saúde de São Paulo
(CVS/SES/SP) nos 553 casos notificados do uso do metilfenidato. Foi analisado que o uso do
medicamento em crianças menores de seis anos causou reações de sonolência, lentidão de
movimento e atraso no desenvolvimento. Outros eventos cardiovasculares, entre taquicardia e
hipertensão, e transtornos psíquicos, depressão, psicose, além de dependência do
medicamento. Distúrbios neurológicos também foram observados como reações, discinesia,
espasmos e contrações musculares involuntárias.

As pesquisas que afirmam a existência do TDAH pelo viés biológico não


mencionam as reações do metilfenidato para a saúde da criança. Buscam, a partir do aumento
de prevalência, que se refere à proporção de ocorrência na população, sustentar evidências da
existência do transtorno. Entre esses estudos, destacamos os artigos de Vasconcelos et al
(2003); Andrade e Scheuer (2004); Araújo, Mattos e Pastura (2007); Fontana et al (2007);
Biscelgi et al (2013) e Dorneles et al (2014).

Dorneles et al (2014) destacam que a prevalência mundial para crianças e


adolescentes é estimada em 5,29%. E a prevalência nacional, para Arruda (2011), é de 4,1%,
sendo maior nas crianças de classes sociais mais baixas, estimando aproximadamente que 2,9
milhões de crianças e adolescentes diagnosticados com TDAH não têm acesso ao tratamento.
44

Nas crianças pobres, a determinação biológica do transtorno é explicada pelo uso


de tabaco e álcool na gestação. Ou seja, a origem do transtorno está relacionada às condições
de vida da mãe e a criança desenvolve o transtorno na gestação (ARRUDA, 2011).

O estudo de mesma concepção, ao afirmar que entre as crianças pobres há uma


prevalência maior do transtorno, é feito por Fontana et al (2007) que realizaram pesquisas em
escolas brasileiras apresentando uma prevalência do TDAH de 13% em quatro escolas
públicas que atendem uma população socialmente desfavorecida no município de São
Gonçalo - RJ. O estudo abrangeu crianças de 6 a 12 anos e utilizou, essencialmente, os
critérios do DSM-IV.

Em outro estudo, de Araújo, Mattos e Pastura (2007), realizado em um colégio de


aplicação federal no Rio de Janeiro, em uma amostra de 381 alunos obteve-se uma
prevalência de 6,8%, sendo o desatento o tipo mais predominante e o transtorno associado,
opositor e desafiador, mais comum na amostra. Dessa afirmação nos cabe uma ressalva, sendo
um colégio que atende crianças e adolescentes, da primeira a oitava série do ensino
fundamental, não seria esperado alunos questionadores, inquietos, em vez de categorias
patológicas denominadas de “opositor” ou “desafiador”? Essa questão será mais trabalhada no
capítulo seguinte desta dissertação, isto é, como a regulação da conduta é desenvolvida, a
partir de uma contribuição teórica na perspectiva da Psicologia Histórico-Cultural sobre o
domínio da conduta pela criança.

Outra pesquisa que teve como referência o DSM foi realizada por Vasconcelos et
al (2003) em uma escola pública do ensino básico, no município de Niterói – RJ. Professores
e familiares (responsáveis pelas crianças) preencheram um questionário de 18 sintomas
definidos a partir do DSM- IV e se obteve uma prevalência de 17% para o diagnóstico de
TDAH em um total de 403 crianças.

Apesar de ampla variação da prevalência em pesquisas brasileiras sobre TDAH,


entre 5,8% a 17,1%, esses dados são utilizados nos estudos de perspectiva biologicista como
científicos para legitimar sua ocorrência na população.

A ampla variação de prevalência em pesquisas acerca do transtorno, conforme


Azevedo, Caixeta e Mendes (2009), fundamentados na abordagem biologicista, é explicada
em função das diversas metodologias adotadas nas pesquisas. Porém, essa ampla variação é
45

um elemento questionável e, segundo o Boletim Brasileiro de Avaliação em Tecnologia em


Saúde (Brats), são pesquisas de baixa qualidade:

As pesquisas analisadas pelo Brats foram identificadas como tendo baixa


qualidade metodológica, com indícios superestimados, viés de publicação,
tempo de acompanhamento muito curto, número significativo de estudos
financiados ou com seus investigadores filiados à indústria farmacêutica e
baixa generalização. As evidências sobre a eficácia e segurança do
tratamento como o metilfenidato em crianças e adolescentes, em geral, têm
baixa qualidade metodológica, curto período de seguimento e pouca
capacidade de generalização. (BRASIL, 2015, s/p)

Outro documento que revela a ampla variação como um elemento questionável e


que justificou a sua elaboração se refere às “Recomendações do Ministério da Saúde para
adoção de práticas não medicalizantes e para publicação de protocolos municipais e estaduais
de dispensação de metilfenidato para prevenir a excessiva medicalização de crianças e
adolescentes” (BRASIL, 2015).

Embora sejam documentos importantes para o trabalho em saúde e que destacam


a necessidade de rever métodos nessas pesquisas, há estudos que afirmam a necessidade de
tratamento precoce do transtorno, a exemplo do realizado por Andrade e Scheuer (2004) no
Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo. Nessa
pesquisa, os familiares e professores participaram como fonte de informação do diagnóstico e
avaliação sobre o consumo do metilfenidato e sua eficácia no tratamento das crianças
diagnosticadas. Segundo os autores, o transtorno é muito comum na infância e com início
precoce e de evolução crônica. Concluíram que, nas observações e avaliações da escola e da
família sobre as 21 crianças pesquisadas, ocorreu 100% de melhora no fator hiperatividade.

Atendendo o mesmo objetivo de apresentar um estudo indicando a antecipação do


tratamento na infância, Biscegli et al (2013) realizaram uma pesquisa de caráter quantitativo
em pré-escolares de creche, com crianças entre 4 e 5 anos, no município de Catanduva – SP.
Afirmaram que a prevalência de TDAH foi de 6,01% para um total de 133 crianças. Segundo
os autores, o diagnóstico e o tratamento precisam ser realizados nessa faixa etária porque
contribuem para minimizar os problemas futuros gerados pelo transtorno.

Nos estudos de Andrade e Scheuer (2004) e de Biscegli et al (2013) observamos a


tendência em afirmar a ocorrência do transtorno na infância com início precoce. Demarca-se
46

um investimento em pesquisas para averiguação do referido transtorno desde a pré-escola.


Estudos desse caráter, como o de Andrade e Scheuer (2004), que apresentam a eficácia do
remédio, reforçam a escolha prioritária da prescrição medicamentosa no tratamento do
transtorno.

Contrariando as suposições dessas pesquisas que têm levado a um processo de


patologizaçao da aprendizagem, Eidt e Tuleski (2010) destacam que o aumento expressivo do
número de crianças, em idade escolar, que estão sendo medicadas precisa ser compreendido
com rigor científico:

Os sintomas diagnosticados como TDAH vêm atingindo proporções


epidêmicas, como já assinalamos, suas manifestações cobram um
encaminhamento teórico-prático urgente. Contudo, essa urgência não
justifica práticas não fundamentadas em uma análise rigorosamente
científica (EIDT; TULESKI, 2010, p. 13).

Em consonância a esse argumento, é salientado no relatório realizado pela Anvisa


(2012) quanto aos objetivos do documento em “apontar possíveis distorções na utilização de
metilfenidato em crianças” (p. 1), que o seu uso “tem sido muito difundido nos últimos anos e
de forma, inclusive, equivocada”, daí a ser denominado como “droga da obediência” (p. 13).
E por ser um medicamento que altera o comportamento da criança, causando o chamado
“efeito zumbi” no qual ela fica apática e quieta diante de situações.

A relação entre a droga/diagnóstico e a escola, explicitada em pesquisas, requer


análise que possa nos levar a compreender os reais motivos para o uso crescente de
medicalização na infância. E, nesse sentido, buscamos explicitar neste capítulo como o viés
biologizante das pesquisas tem amparado os estudos sobre TDAH quando afirma que o
diagnóstico é meramente clínico e se realiza por meio das observações dos comportamentos
da criança relatadas por familiares e profissionais da educação.

Em nosso estudo, o TDAH é compreendido como um fenômeno histórico-social,


de modo que o biológico é parte do desenvolvimento, portanto, os elementos biológicos do
fenômeno apresentados nas pesquisas não são descartados. Entendemos que o determinismo
biológico não só explica o advento da medicalização na criança, mas, sobretudo, colabora
com o crescimento da patologização na educação. Nesse sentido, trazemos a reflexão de Leite
(2015) sobre a relação entre biológico e social:
47

Entendemos, portanto, ser necessário avançar para além da simples


delimitação das regiões corticais responsáveis pela atenção e regulação do
comportamento. É necessário retomar como essas funções corticais se
constituem em unidade biológico/cultural e estão em constante movimento,
em que cada etapa supera a anterior não a descartando, mas superando-a por
incorporação. Ou seja, as formas mais naturais de nosso comportamento só
se tornam organizadas porque as apropriações culturais servem como
elementos que reorganizam os componentes biológicos que expressam o
comportamento mais imediato. Por sua vez, este biológico que foi
transformado pelo cultural, ao concretizar uma transformação, abre espaço
para que novas transformações aconteçam. (LEITE, 2015, p. 45)

Para a pesquisadora, a compreensão sobre o fenômeno precisa avançar, isto é,


torna-se importante considerar que “as condições sociais possam ser levadas em conta no
diagnóstico e prognóstico de eventuais transtornos e nas conceituações das funções
psicológicas”. Portanto:

[...] não deve desconsiderar os componentes biológicos apresentados pelos


indivíduos com diagnóstico de TDAH, a questão está em não entender estes
componentes biológicos como determinantes de um dado conjunto de
sintomas apresentados e tampouco compreender que o desenvolvimento
desses componentes biológicos – no caso funcionamento cerebral – é
intrínseco ao indivíduo, independente dos fatores culturais. (LEITE, 2015, p.
45)

No próximo capítulo desta dissertação seguimos com essa discussão, explicando


como se desenvolve a atenção e o comportamento regulado da criança, a partir da
compreensão da unidade biológico/social, e como a educação tem um papel nesse
desenvolvimento.
48

3. O DESENVOLVIMENTO DA ATENÇÃO E DA REGULAÇÃO DA CONDUTA,


SUPERANDO O DETERMINISMO BIOLÓGICO

Na compreensão da concepção hegemônica, cuja referência respalda os


diagnósticos das crianças com TDAH, a dificuldade de aprender deriva de causa biológica no
cérebro que a impossibilita de ter atenção e comportamento regulado nas atividades escolares.
Para essa concepção, a atenção e o comportamento são processos que se desenvolvem
isolados das condições histórico-sociais da criança.

Neste capítulo, discutimos como a atenção e o comportamento regulado, como


aspectos do desenvolvimento da criança, se constituem na unidade biológico/cultural, sendo o
cultural também social, uma vez que o desenvolvimento e a aprendizagem são produtos de um
processo enraizado nas ligações entre história individual e história social e o papel ativo do
ser humano na transformação da natureza, na criação e no emprego dos signos (VYGOTSKI,
1931/1995a)5.

Embora discordemos da ênfase biologizante atribuída ao TDAH, presente nos


DSM como referência para o diagnóstico, não ignoramos a existência de comportamentos
hiperativos, a dificuldade da criança ter atenção e, consequentemente, suas implicações para o
ensino e a aprendizagem. Conforme Leite (2015):

No caso da desatenção e dos comportamentos hiperativos, aos quais se


atribui atualmente o nome de TDAH, negar que estes comportamentos sejam
um transtorno de ordem psiquiátrica não significa simplesmente negar que
existam pessoas – especialmente crianças – com dificuldades para focar
atenção e controlar o comportamento, mas, por intermédio do viés de
entendimento de desenvolvimento humano proposto pela Psicologia
Histórico-Cultural, evidenciar que a capacidade de focar ou não focar
atenção, de controlar ou não controlar o próprio comportamento é,
sobretudo, mediada pela apropriação de instrumentos da cultura da qual se
faz parte. (LEITE, 2015, p. 58)

5
Diferentes traduções apresentam formas distintas na grafia do nome do autor. Neste trabalho, utilizaremos
Vigotski quando nos referirmos ao autor sem referência a uma obra específica e, quando estiver vinculado a uma
obra, será mantida a grafia da publicação.
49

Assim, os comportamentos hiperativos e a dificuldade de atenção da criança são


expressões do caráter imediato do fenômeno TDAH a partir do que supostamente é nomeado
como um transtorno psiquiátrico. Nos dois primeiros capítulos, fizemos um exercício de
análise apresentando os elementos que relacionam e determinam este fenômeno como
vigência da medicalização da vida, concepção biologicista hegemônica que explica o
transtorno em relação ao atual modo de produção capitalista.

Apesar de a atenção e o comportamento regulado serem funções psíquicas, é o


caráter explicativo do campo psiquiátrico e da neurologia infantil, a partir da abordagem
biologicista, que adentra o espaço escolar diagnosticando as dificuldades de atenção e de
comportamento regulado como transtornos ou patologias da dificuldade de aprendizagem.

Pasqualini (2013) aborda as relações entre pedagogia e psicologia para a


compreensão do desenvolvimento infantil e os desafios para o ensino. Entendemos que essa
compreensão se apresenta como um convite à superação dessa ordem medicalizante e
patológica da educação. Nessa perspectiva, a Psicologia Histórico-Cultural traz fundamentos
teóricos para superar a cisão entre biológico e cultural no desenvolvimento da criança, e
explica como a atenção e o comportamento regulado são compreendidos no psiquismo infantil
e, conforme destaca Leite (2015, p. 56):

O desenvolvimento da criança constitui uma unidade dialética entre


duas linhas que, em princípio, são essencialmente distintas (desenvolvimento
natural e desenvolvimento cultural). A tarefa da psicologia consiste em
estudar essas duas linhas e seus entrelaçamentos nas etapas de
desenvolvimento da criança.

Discutir como se desenvolve a atenção e a conduta na criança remete a uma


reflexão necessária quanto aos encaminhamentos feitos pelas escolas às unidades de saúde,
visto que ao avaliarem os comportamentos das crianças como desatentos e hiperativos,
sugerindo o suposto transtorno, expressam a concepção de que a atenção e a regulação da
conduta são, exclusivamente, de domínios meramente biológicos e, portanto, essas
dificuldades de aprendizado tornam-se uma patologia individual da criança.

Importante ressaltar que em nosso estudo não excluímos que os encaminhamentos


escolares estão associados às condições estressantes de trabalho dos professores, conforme
discutimos no capítulo I sobre a relação com o trabalho e as expressões de fadiga e sofrimento
50

no trabalho como dimensão importante da medicalização da vida. A intensificação do trabalho


explicitada na dupla jornada do professor é um dado que aparece nas entrevistas com esses
trabalhadores. Assunto que será mais discutido na análise dos dados e discussão dos
resultados de nossa pesquisa.

Como contribuição para superação das explicações patológicas da falta de atenção


e comportamentos hiperativos e que limitam o trabalho pedagógico próprio da educação
escolar, entendemos ser indispensável compreender as leis que regem o desenvolvimento do
psiquismo humano para o processo de ensino e aprendizagem. E, por isso, recorremos às
formulações teóricas da Psicologia Histórico-Cultural ao explicar como se desenvolve a
atenção e o comportamento regulado na criança.

Adotamos como nosso referencial os estudos formulados por Luria (1979; 1991),
Vygotski (1931/1995), Vigotski (1934/2010) e Leontiev (1978a, b, c), que ao questionarem a
determinação biológica das funções psíquicas nos ensinam como se dá o desenvolvimento da
atenção e o domínio da conduta na criança, entendendo-os como processos sócio-históricos do
desenvolvimento.

Vygotski (1931/1995), que foi um dos precursores dessa teoria, baseado em


experimentos e observações das crianças, formulou explicações do desenvolvimento das
funções psíquicas da atenção e domínio da conduta desde os primeiros dias de vida da
criança. Ao explicitar a atenção e a regulação do comportamento como funções do psiquismo
desenvolvidas em sua interfuncionalidade com as demais funções psíquicas na criança,
realizou um percurso dialético de análise, ora absorvendo contribuições de outros estudos, ora
negando aspectos desses estudos. Formulou, assim, um modo analítico de superação das
concepções naturalizantes do desenvolvimento humano.

Tal compreensão da relação entre biológico e social no desenvolvimento humano


também foi apreendida por Leontiev (1978b). Mobilizado pela necessidade teórica de
contraposição às teses racistas dos eugenistas sobre gênero humano, discordou da centralidade
biológica que justificava a supremacia de uma raça sobre outra. Seu estudo trouxe importante
formulação acerca da relação entre o homem e a cultura e entre o biológico e o social no
psiquismo, cujo destaque está expresso na passagem abaixo:

[...] as propriedades biologicamente herdadas do homem constituem apenas


uma das condições da formação das suas funções e faculdades psíquicas,
51

condição que desempenha por certo um papel importante.


Consequentemente, se bem que estes sistemas não sejam determinados por
propriedades biológicas, dependem, todavia, destas últimas.

A outra condição, é o mundo de objectos e de fenômenos que rodeiam o


homem, criado pelo trabalho e pela luta de inumeráveis gerações humanas. É
este mundo que fornece ao homem o que ele tem de verdadeiramente
humano. Se, portanto, distinguimos nos processos psíquicos superiores do
homem, por um lado, a sua forma, isto é, as particularidades puramente
dinâmicas que dependem da sua <<factura>> morfológica e, por outro, o seu
conteúdo, isto é, a função que eles exercem e a sua estrutura, então podemos
afirmar que o primeiro elemento é determinado biologicamente e o segundo
socialmente. Será preciso sublinhar que o aspecto decisivo é o conteúdo?
(LEONTIEV, 1978b, p. 257, grifos do autor)

Depreendemos dessa afirmação que na relação entre biológico e social, o primeiro


existe enquanto plasticidade, o segundo é compreendido pelas relações entre os humanos e os
objetos produzidos historicamente que determinam as funções psíquicas na formação do
indivíduo. O autor assinala que o desenvolvimento das funções e faculdades psíquicas
especificamente humanas se produz no processo de apropriação e aquisição pelas relações
reais do sujeito, “determinadas pelas condições históricas concretas, sociais, nas quais ele vive
e pela maneira como a sua vida se forma nestas condições” (Idem, 1978b, p. 257).

No mesmo sentido, Luria (1991) buscou superar a concepção idealista que se


ancorava no determinismo biológico de desenvolvimento humano e contribuiu, a partir dos
pressupostos do materialismo dialético, para a constituição da concepção de psiquismo
humano para a Psicologia Histórico-Cultural. Sua contribuição é fundamental ao esclarecer
que as funções psíquicas não podem ser reduzidas à descrição subjetiva da vida e explicadas
pelos fenômenos espirituais. Para o autor, a atividade consciente humana não está
obrigatoriamente ligada a motivos biológicos, pois são necessidades complexas.

Situam-se entre elas as necessidades cognitivas, incentivam o homem à


aquisição de novos conhecimentos, a necessidade de comunicação, a
necessidade de ser útil à sociedade, de ocupar, nesta, determinada posição,
etc. (LURIA, 1991, p.71)

[...]
52

Torna-se claro que a atividade consciente do homem não é produto do


desenvolvimento natural de propriedade jacentes no organismo mas o
resultado de novas formas histórico-sociais de atividade-trabalho. (LURIA,
1991, p.77)

A relação entre o biológico e o social é analisada por Vygotski (1931/1995, p.


310, tradução nossa)6, quando ele afirma a determinação social: “A tarefa de toda teoria
científica consiste precisamente em analisar as relações fundamentais que existem entre o
meio e o organismo”. Aqui, o estudioso assinala que o social, que também é cultural, se
configura pelos materiais, pelas relações e pelos objetos por meio dos quais a criança se
desenvolve. Desse modo, apreendemos que o biológico no desenvolvimento das funções é
estrutura orgânica vital, portanto, a ideia de plasticidade corresponde a sua capacidade de ser
moldada, forjada pelo social, à medida que as mediações materiais e sociais circundam a
criança desde o seu nascimento e determinam o seu desenvolvimento.

Portanto, adotamos em nosso estudo essa perspectiva de análise da unidade


biológico/social ou biológico/cultural, porque todo social é cultural conforme os postulados
da Psicologia Histórico-Cultural que explicam o desenvolvimento da atenção e o
comportamento regulado no desenvolvimento humano. Trataremos a seguir como a atenção é
compreendida para essa perspectiva teórica.

3.1 Atenção

A atenção foi definida por Luria (1991) como uma das funções psíquicas mais
importantes da atividade consciente por ter a incumbência de selecionar estímulos essenciais
para a atividade.

A seleção da informação necessária, o asseguramento dos programas


seletivos de ação e a manutenção de um controle permanente sobre elas são
convencionalmente chamados de atenção. O caráter seletivo da atividade
consciente, que é função da atenção, manifesta-se igualmente na nossa
percepção, nos processos motores e no pensamento. Se não houvesse essa

6
“La tarea de toda teoría científica consiste precisamente en analizar las relaciones fundamentales que existen
entre el medio y el organismo”.
53

seletividade, a quantidade de informação não selecionada seria tão


desorganizada e grande que nenhuma atividade se tornaria possível.
(LURIA, 1991, p. 1, grifo do autor)

O caráter seletivo organiza informações e torna possível a atividade consciente,


isto é, o pensamento organizado. Para o autor, as peculiaridades dos estímulos externos
determinam o sentido e o volume da atenção.

[...] o sentido da atenção é determinado pela estrutura psicológica da


atividade e depende essencialmente do grau de sua automatização. A tarefa
geral, que orienta a atividade do homem, distingue como objeto da atenção o
sistema de sinais ou relações que fazem parte da atividade provocada do
homem, suscitada por tal tarefa. [...] É quase fundamental o fato de que a
orientação da atenção se encontra em dependência direta do êxito ou do
insucesso da atividade. (LURIA, 1991, p. 5-6, grifos do autor)

Estudos recentes fundamentados nessa perspectiva abordam o social como


determinante no desenvolvimento da atenção. Leite (2015) discute a interfuncionalidade das
funções psíquicas no aspecto da atenção e se posiciona alertando: crianças que estão sendo
medicalizadas deveriam ser apenas educadas. Outros autores que também trabalham com a
mesma perspectiva teórica, como Eidt (2004), Eidt e Ferraciolli (2007), Eidt e Tuleski (2010),
Eidt, Tuleski e Franco (2014) e Leite e Rebello (2014), criticam a concepção biologicista que
explica e propaga o TDAH.

Para Leite e Rebello (2014), a concepção hegemônica ao afirmar que a atenção


focalizada é conquistada a partir das prescrições biomédicas torna oculta a contribuição da
psicologia sobre como se dá o desenvolvimento da atenção no indivíduo. De modo a
evidenciar e recolocar o papel da psicologia no debate teórico para que de fato se pense o
desenvolvimento da atenção para além dos ajustes sociais e do uso de medicamentos, as
autoras realizaram uma revisão bibliográfica destacando como essa função é compreendida
em estudos com diferentes abordagens.

Partimos do entendimento que conhecer tais publicações a respeito do


desenvolvimento da atenção possibilita resgatar o lugar da Psicologia na
seara de estudos a respeito do desenvolvimento psíquico, da constituição das
funções psicológicas e não somente como uma ciência que contribui para o
54

ajuste de pessoas com dificuldade de focar atenção e regular o


comportamento. (LEITE; REBELLO, 2014, p. 64)

A psicologia como contribuição para o processo de emancipação humana, a partir


das leis que regem o desenvolvimento do psiquismo como uma tarefa científica, foi abordada
por Vigotski (1934/2010) em O problema e o método de investigação. Esse problema de
pesquisa, assinalado pelo autor, para o campo teórico sobre desenvolvimento humano é um
embate que ainda se faz necessário: “estudar uma questão como pensamento e linguagem
significa, ao mesmo tempo, desenvolver uma luta ideológica com as concepções opostas”
(VIGOTSKI, 1934/2010, p. 17).

Diferentemente da interpretação biologizante de desenvolvimento e focada apenas


no indivíduo, Vygotski (1931/1995) definiu a atenção como uma função psíquica que começa
a ser desenvolvida por meio dos reflexos condicionados logo após o nascimento da criança.
Isto é, para o autor desde a tenra idade a atenção da criança começa a ser organizada por meio
da mediação de adultos e objetos que passam de involuntários ou primários para tornarem-se,
paulatinamente, voluntários ou secundários:

A história da atenção da criança é a história do desenvolvimento de sua


conduta organizada. É uma história que começa a partir do momento do
nascimento. A atenção primária é da responsabilidade dos mecanismos
neurais herdados que organizam o curso dos reflexos, segundo o princípio da
dominante conhecido pela fisiologia. De acordo com esse princípio, o fator
organizador no funcionamento do sistema nervoso é a existência de um foco
de excitação principal que inibe o curso de outros reflexos e reforçado à sua
custa. No processo nervoso dominante se engendram as bases orgânicas
daquele processo da conduta que recebe o nome de atenção.7 (VYGOTSKI,
1931/1995c, p. 213, tradução nossa)

Portanto, os mecanismos herdados biologicamente pelo nascimento aos poucos


vão cedendo espaço às determinações sociais. Isto é, a atenção é desenvolvida pela relação do
bebê com o adulto e objetos. Para efeitos de entendimento, destacamos a passagem abaixo,

7
“La historia de la atención del niño es la historia del desarrollo de su conducta organizada. Es una historia que
comienza desde el momento en que nace. La atención primaria corre a cargo de los mecanismos nerviosos
heredados que organizan el transcurso de los reflejos según el principio de la dominante conocido por la
fisiología. De acuerdo con ese principio, el factor organizador en el funcionamiento del sistema nervioso es la
existencia de un foco de excitación principal que inhibe el curso de otros reflejos y se refuerza a costa de ellos.
En el proceso nervioso dominante se engendran las bases orgánicas de aquel proceso de la conducta que recibe el
nombre de atención”.
55

quando o autor explica a atenção nos primeiros dias de vida. Se ela surge enraizada pela
estrutura orgânica, gradualmente vai sendo determinada pelo social. Vejamos como isso é
discutido pelo autor:

Vemos, portanto, que o desenvolvimento da atenção da criança, desde os


primeiros dias de sua vida, está em um meio complexo formado por
estímulos de um duplo gênero. Por um lado, os objetos e os fenômenos
atraem a atenção da criança em virtude das suas propriedades intrínsecas;
por outro, os correspondentes estímulos-catalisadores, ou seja, as palavras
guiam a atenção da criança. Desde o início, a atenção da criança está
orientada. Primeiro, os adultos a dirigem, mas à medida que a criança vai
dominando a linguagem, começa a dominar a mesma propriedade de dirigir
a sua atenção no que diz respeito aos outros e, em seguida, em relação a si
mesma.8 (VYGOTSKI, 1931/1995c, p. 232, tradução nossa)

A atenção referida pelo autor segue em duas linhas de desenvolvimento: o


desenvolvimento natural da atenção e o desenvolvimento cultural da atenção. A primeira é
marcada pelo caráter biológico, pelos estímulos primitivos e se relaciona às necessidades
vitais por alimento e às fisiológicas que demarcam o caráter de sobrevivência. O
desenvolvimento da atenção é organizado pela relação de comunicação entre o adulto e o
bebê à medida que a criança chora porque sente fome ou quando está molhada e tem seu
pedido atendido pelo seu cuidador. Tais ações constituem a organização da atenção primária,
compreendida pelo autor como primeira linha de desenvolvimento.

Já na segunda, com o início da fala, da locomoção, em que se instaura maior


complexidade da linguagem oral e ações locomotoras, a atenção começa a ser determinada
culturalmente. Porém, a primeira não é eliminada no curso do desenvolvimento, mas segue
sendo superada pela segunda.

O desenvolvimento cultural da atenção começa também, no sentido estrito


da palavra, na mais tenra idade da criança, quando se produz o primeiro

8
“Vemos, por lo tanto, que el desarrollo de la atención del niño, desde los primeros días de su vida, se encuentra
en un medio complejo formado por estímulos de un doble género. Por un lado, los objetos y los fenómenos
atraen la atención del niño en virtud de sus propiedades intrínsecas; por otro, los correspondientes estímulos-
catalizadores, es decir, las palabras orientan la atención del niño. Desde el principio, la atención del niño está
orientada. Primero la dirigen los adultos, pero a medida que el niño va dominando el lenguaje, empieza a
dominar la misma propiedad de dirigir su atención con respecto a los demás y después en relación consigo
mismo”.
56

contato social entre ela e os adultos em seu entorno. Como todo


desenvolvimento é cultural, é, ao mesmo tempo, social.

O desenvolvimento cultural de qualquer função, incluída a atenção, consiste


em que o ser social, no processo de sua vida e atividade, elabora uma série
de estímulos e signos artificiais. Graças a eles se orienta o comportamento
social da personalidade; os estímulos e signos assim formados se convertem
no meio fundamental que permite o indivíduo dominar seus próprios
processos de comportamento.9 (VYGOTSKI, 1931/1995c, p. 215, tradução
nossa)

Portanto, sob aporte das contribuições dos estudos da Psicologia Histórico-Cultural,


afirmamos que o desenvolvimento da atenção e a regulação do comportamento decorrem dos
meios culturais, socialmente determinados. Disso depreendemos que a concepção sobre a
atenção definida como processo meramente biológico incorre na explicação sobre o
desenvolvimento humano pautada exclusivamente em fatores biológicos e,
consequentemente, gera a medicalização das crianças, uma vez que passa a entender a
desatenção como uma falha cerebral.

Outra contribuição importante sobre a atenção, em consonância com estudos do


autor supracitado, é feita por Luria (1991) que também analisa o desenvolvimento dessa
função. Se a atenção arbitrária é mais requerida na escola porque exige da criança o
pensamento organizado e a capacidade de manter-se atenta na atividade de estudo,
anteriormente a essa fase, quando a criança é um bebê e depois na pré-escola, a atenção
involuntária é marcada por instabilidade:

[...] tem caráter instável e relativamente estreito pelo volume (a criança de


idade tenra e pré-escolar perde muito rapidamente a atenção pelo estímulo
que acaba de surgir, seu reflexo orientado se extingue rapidamente ou se
inibe com o surgimento de qualquer outro estímulo); o volume de sua
atenção é relativamente pequeno, podendo a criança distribuí-la entre vários

9
“El desarrollo cultural de la atención comienza también, en el estricto sentido de la palabra, en la más temprana
edad del niño, cuando se produce el primer contacto social entre él y los adultos de su entorno. Al igual que todo
desarrollo cultura! es, al mismo tiempo, social.
El desarrollo cultural de cualquier función, incluida la atención, consiste en que el ser social en el proceso de su
vida y actividad elabora una serie de estímulos y signos artificiales. Gracias a ellos se orienta la conducta social
de la personalidad; los estímulos y signos así formados se convienen en el medio fundamental que permite a!
individuo dominar sus propios procesos de comportamiento”.
57

estímulos voltando-se para o antecedente sem afastar o seu campo de visão


ou anterior. (LURIA, 1991, p.22)

Esse tipo de atenção involuntária, que antecede a fase escolar e pré-escolar, é


mobilizado pelo reflexo orientado por estímulos novos ou fortes e se manifesta na criança nas
primeiras semanas de vida, do primeiro ano de vida do bebê, demarcado pela atividade de
comunicação emocional direta, e segue persistindo na fase de atividade objetal manipulatória,
do primeiro ao terceiro ano de vida. Nessa fase os objetos que atraem a atenção da criança, ou
seja, o ambiente externo à criança, como o som, a fala dos adultos e os diferentes estímulos
mobilizam a sua atenção. Portanto, conforme nos ensina Pasqualini (2006, p. 118), são “as
condições objetivas da organização social” que determinam e determinarão o
desenvolvimento das funções psíquicas na criança.

Em um processo gradual, a atenção involuntária passa por meio da manipulação


de objetos e instrução verbal do adulto para uma transição paulatina à atenção arbitrária.
Processo que é acompanhado pelas mudanças significativas da linguagem em que a
“comunicação, que se realiza através da fala, de atos e gestos do adulto, influencia
essencialmente a organização dos processos psíquicos da criança” (LURIA, 1991, p. 25).

À medida que a linguagem se torna complexa para a criança, o que resulta em


saltos qualitativos na comunicação, também a atenção recebe influência, uma vez que o
desenvolvimento humano se dá pela interfuncionalidade das funções psíquicas. A linguagem
ocupa um papel fundamental para a atenção por meio de um processo de luta interna de
apreensão do mundo cultural que circunda a criança. As funções, portanto, não se
desenvolvem sem as outras, sendo que a linguagem “muda essencialmente os processos de
atenção do homem” (LURIA, 1991, p. 82), assim como a memória:

A linguagem muda essencialmente também os processos da memória do


homem. É sabido que a memória do animal depende consideravelmente da
orientação no meio ambiente e dos motivos biológicos, que servem de
reforço daquilo que é lembrado com êxito. No nível humano e apoiada nos
processos do discurso, a linguagem se torna pela primeira vez atividade
mnemônica consciente, na qual o homem coloca fins especiais de lembrar,
organiza o material a ser lembrado e acha-se em condições não só de ampliar
de modo imensurável o volume de informação que se mantém na memória
como ainda de voltar-se arbitrariamente para o passado, selecionando nele,
58

no processo de memorização, aquilo que em dada etapa se lhe afigura como


mais importante. (LURIA, 1991, p. 82-83)

A memória, portanto, também cumpre um papel no desenvolvimento da atenção


organizada. É nesse sentido que a fala do adulto no desenvolvimento da atenção
primária/elementar, orientando e direcionando com instrução verbal e outras ações nesse
processo de superação da atenção elementar para o domínio da atenção voluntária, é
compreendida. Abaixo, vejamos como Vygotski (1931/1995c) deixa claro o processo de
mediação do adulto e o papel da linguagem:

Assim é como se desenvolve a linguagem, o pensamento e todos os demais


processos superiores do comportamento. Da mesma forma acontece com a
atenção voluntária. A princípio, é o adulto quem orienta a atenção da criança
com suas palavras, criando uma espécie de indicações suplementares, algo
como flechas sobre os objetos em seu ambiente, elaborando com elas
poderosos estímulos indicadores. Em seguida, é a criança quem começa a
participar ativamente nestas indicações e é a mesma quem usa a palavra ou o
som como meio indicador, ou seja, orienta a atenção do adulto para o objeto
que lhe interessa.10 (VYGOTSKI, 1931/1995c, p. 232, tradução nossa)

No domínio da atenção, o processo de superação do biológico ao social é


conflituoso e complexo, segue ultrapassando as condições herdadas biologicamente pelo
organismo.

Nos deteremos muito brevemente em um fenômeno muito complexo,


chamado vivência do esforço, que é incompreensível a partir da análise
subjetiva. Como ela aparece, de onde vem a atenção voluntária? Ao nosso
entender, o esforço se deve a uma atividade complementar complexa que
qualificamos como domínio da atenção. Tal esforço, é claro, não existe onde
o mecanismo da atenção começa a funcionar automaticamente. Há na
vivência do esforço processos complementares, conflitos e lutas e tentativas
para orientar os processos de atenção em outro sentido, e seria um milagre
que tudo isso sucederia sem desgaste de forças, sem um sério trabalho

10
“Así es como se desarrolla el lenguaje, el pensamiento y todos los demás procesos superiores de la conducta.
De igual modo sucede con la atención voluntaria Al principio, es el adulto quien orienta la atención del niño con
sus palabras, creando una especie de indicaciones suplementarias, algo así como flechas, sobre los objetos de su
entorno, elaborando con ellas poderosos estímulos indicadores. Luego es el niño quien empieza a participar
activamente en tales indicaciones y es él mismo quien utiliza la palabra o el sonido como medio indicador, es
decir, orienta la atención del adulto hacia el objeto que le interesa”.
59

interno do sujeito, um trabalho que pode ser medido pela resistência


encontrada pela atenção voluntária.11 (Idem, p. 223, tradução nossa)

Dessa afirmativa apreendemos que a atenção não nasce pronta e seu


desenvolvimento depende de esforços no domínio da atenção voluntária que pressupõe
conflitos e lutas internas, exigindo da criança um empreendimento nesse domínio que é
realizado pela mediação social, portanto, não é automático e não resulta de uma simples
maturação orgânica.

Ao fugir de explicações simplistas e aparentes do desenvolvimento, Vygotsky


(Idem), a partir de experimentos e análises feitas com as crianças em idade pré-escolar, de três
e cinco anos, e em idade escolar, compreende atenção voluntária:

[...] chegamos à seguinte interpretação dos processos de atenção voluntária.


Esses processos devem ser estudados como uma certa etapa no
desenvolvimento da atenção instintiva, com a particularidade de que as leis
gerais e o caráter do seu desenvolvimento totalmente coincidem com o que
pudemos estabelecer para outras formas de desenvolvimento cultural da
conduta. Podemos dizer, portanto, que a atenção voluntária é um processo
mediado enraizado internamente e que o próprio processo está inteiramente
sujeito às leis gerais do desenvolvimento cultural e da formação de formas
superiores de conduta. Isso significa que a atenção voluntária, tanto por sua
composição, como por sua estrutura e função, não é simplesmente o
resultado do desenvolvimento natural, orgânico da atenção, mas o resultado
de sua mudança e reestruturação pela influência de estímulos-meios
externos.12 (Idem, p. 224, tradução nossa)

11
“Nos detendremos muy brevemente en un fenómeno muy complejo, denominado vivencia del esfuerzo, que
resulta incomprensible desde el análisis subjetivo. ¿Cómo aparece, desde dónde llega a la atención voluntaria? A
nuestro entender, el esfuerzo se debe a una actividad suplementaria compleja que calificamos como dominio de
la atención. Tal esfuerzo, naturalmente, no existe donde el mecanismo de la atención comienza a funcionar
automática mente. Hay en la vivencia del esfuerzo procesos suplementarios, conflictos y luchas e intentos de
orientar los procesos de la atención en otro sentido, y sería un milagro que todo ello sucediera sin desgaste de
fuerzas, sin un serio trabajo interno del sujeto, de un trabajo que puede medirse por la resistencia que encuentra
la atención voluntaria”.
12
“Llegamos a la siguiente interpretación de los procesos de la atención voluntaria. Esos procesos deben
estudiarse como una cierta etapa en el desarrollo de la atención instintiva, con la particularidad de que las leyes
generales y el carácter de su desarrollo coinciden plenamente con lo que pudimos establecer para otras formas de
desarrollo cultural de la conducta. Podemos decir, por lo tanto, que la atención voluntaria es un proceso de
atención mediada arraigada interiormente y que el propio proceso está enteramente supeditado a las leyes
generales del desarrollo cultural y de la formación de formas superiores de conducta. Eso significa que la
atención voluntaria, tanto por su composición, como por su estructura y función, no es el simple resultado del
60

Do mesmo modo como a atenção se desenvolve culturalmente, a seguir


discutiremos como a regulação da conduta também é compreendida, a partir da ideia de que o
domínio do comportamento pela criança depende das relações mediadas e do ensino
sistematizado.

3.2 Desenvolvimento do comportamento regulado da criança

Quanto à regulação da conduta, também compreendida por Vigotski como um


processo psíquico, a ênfase dada pelo autor se refere ao trabalho educativo, tendo como base o
social, pois é a partir deste que as funções se desenvolvem. Vejamos o que autor destaca sobre
isso:

A transformação do material natural na forma histórica é sempre um


processo complexo de mudança do próprio tipo do desenvolvimento e não
uma simples transição orgânica A principal conclusão que podemos fazer da
história do desenvolvimento cultural da criança com referência à sua
educação, consiste em que esta há de salvar uma colina onde viu uma estrada
plana, que deve dar um salto onde pensava que podia se limitar a um passo.
O principal mérito das novas investigações consiste em ter deixado claro um
panorama complexo onde anteriormente se via um simples.13 (VYGOTSKI,
1931/1995e, p. 310, tradução nossa)

A partir da explicação dialética do desenvolvimento das funções psíquicas, a


Psicologia Histórico–Cultural nos ensina que o trabalho de educar precisa destacar que o
desenvolvimento não é linear, não segue uma linha reta, pressupõe saltos qualitativos. É
complexo e pressupõe luta interna do sujeito para o desenvolvimento da conduta e atenção

desarrollo natural, orgánico de la atención, sino el resultado de su cambio y reestructuración por la influencia de
estímulos-medios externos”.
13
“La transformación del material natural en forma histórica es siempre un proceso de cambio complejo del
propio tipo del desarrollo y no una simple transición orgánica. La conclusión principal que podemos hacer de la
historia del desarrollo cultural del niño con referencia a su educación, consiste en que ésta ha de salvar una
cuesta allí donde veía antes un camino llano, que debe dar un salto allí donde pensaba que podía limitarse a dar
un paso. El mérito principal de las nuevas investigaciones consiste precisamente en haber puesto de manifiesto
un panorama complejo allí donde antes se veía uno sencillo”.
61

voluntária, ambos requeridos nos processos de escolarização, e se dá sempre na relação entre


o biológico e o social.

A história do desenvolvimento cultural da criança deve ser considerada


como o processo vivo da evolução biológica, em analogia com o surgimento
gradual de novas espécies de animais e o desaparecimento, durante a luta
pela existência, de espécies antigas, com o curso dramático da adaptação de
organismos vivos à natureza. O desenvolvimento cultural da criança só pode
ser entendido como um processo vivo do desenvolvimento, de formação, de
luta e, nesse sentido, deve ser objeto de um estudo científico real. Ao mesmo
tempo, deve ser inserido na história do desenvolvimento da criança o
conceito de conflito, ou seja, de contradição ou choque entre o natural e o
histórico, o primitivo e o cultural, o orgânico e o social.14 (Idem, p. 303,
tradução nossa)

A busca de soluções para as dificuldades de aprendizado por meio da


medicalização ou da intervenção médica e de seus ditames biologizantes deturpa a
compreensão das leis que regem o desenvolvimento do psiquismo como um trabalho a ser
realizado pelos educadores.

A apropriação do desenvolvimento cultural para a organização social se estende


também e, inclusive, aos deficientes cegos e surdo-mudos. Segundo Vygotski (1931/1995e), o
ensino sistematizado deve ter como finalidade a apropriação dos conteúdos pelas crianças e o
desenvolvimento das suas funções psíquicas, potencializando o seu desenvolvimento por
meio da criação de outros sistemas de signos para a comunicação oral e escrita, pois as
condições culturais e materiais devem ser criadas para que isso ocorra. Nesse sentido, assinala
o autor que se pode ler com as mãos (braile) e pela visão (libras), sendo essas as condições
culturais que determinam o desenvolvimento da criança e por esse entendimento que devemos
educá-las.

Para Eidt (2004, p.59), a superação de práticas medicalizantes deve ser


considerada a partir de práticas pautadas na investigação das potencialidades humanas, cuja

14
“La historia del desarrollo cultural del niño debe estudiarse al igual que el proceso vivo de la evolución
biológica, en analogía con la aparición gradual de nuevas especies animales y la desaparición, durante la lucha
por la existencia, de especies viejas, con el curso dramático de la adaptación de los organismos vivos a la
naturaleza. El desarrollo cultural del niño sólo puede ser comprendido como un proceso vivo del desarrollo, de
formación, de lucha y, en ese sentido, debe ser objeto de un verdadero estudio científico. Al mismo tiempo, ha
de introducirse en la historia del desarrollo infantil el concepto de conflicto, es decir, de contradicción o choque
entre lo natural y lo histórico, lo primitivo y lo cultural, lo orgánico y lo social”.
62

compreensão da “mediação entre adulto e criança é de fundamental importância para a


transformação da atenção infantil e para a regulação do comportamento de involuntário para
voluntário, substituindo gradativamente os comportamentos impulsivos por ações
voluntárias”.

Para efeitos teórico-práticos da condução da prática pedagógica, Pasqualini e


Ferracioli (2009) afirmam que a regulação da conduta da criança depende do direcionamento
educativo no qual a atuação do professor tem influências para que ela consiga ou não obtê-la:

A atuação do educador, de uma maneira geral, pode determinar a ocorrência


e manutenção de ações agressivas, em função da forma como reage diante
dos comportamentos das crianças. O castigo, a repreensão verbal, o
isolamento, enfim, as punições e ameaças, são as formas mais comuns de
reação diante das ações agressivas da criança.

[...]

As atividades pedagógicas propostas também devem ser analisadas.


Atividades muito além ou aquém das possibilidades de realização da criança
criam desinteresse, tensão, frustração e favorecem o engajamento em ações
paralelas; dentre elas, as ações agressivas. (PASQUALINI; FERRACIOLI,
2009, p.151-152)

Este estudo, portanto, realizado pelos autores supracitados, traz elementos teórico-
práticos para a educação escolar e alternativas à vigência medicalizante na educação que
tende a direcionar na criança suas dificuldades em aprender, responsabilizando-a por essa
dificuldade. Diferentemente disso, esses autores contribuem para que observemos as relações
e propostas pedagógicas.

Vê-se, portanto, que as práticas medicalizantes negam a dimensão da


singularidade da criança em um ambiente coletivo, desconsiderando o papel fundamental da
escolarização em educar no domínio da conduta.

Leite (2015, p.160) adverte que o papel da escola deve ter como finalidade a
superação dos comportamentos hiperativos e desatentos, não servir como um ambulatório que
antecede o diagnóstico feito pelos médicos. Por meio do ensino sistematizado, “a criança pode
ganhar recursos internos para modificar sua conduta”, isto é, o domínio da conduta é educado,
mediado pelas relações, sendo requerido um trabalho educativo para que os alunos sejam
63

“capazes de regular a própria conduta”. Sendo papel da escola por meio do ensino
sistematizado “formar a personalidade do aluno, daquilo que determina seu comportamento
(valores, motivos, objetivos) e isto não é garantido por qualquer atividade senão a atividade
de estudo formativa”.

A escola, portanto, deve ir no caminho oposto a essa tendência medicalizante, ou


seja, deve educar para que as crianças superem suas dificuldades na obtenção da atenção
voluntária e do domínio da conduta, entendendo que isso requer compreender as leis que
regem o psiquismo humano. Propõe-se, assim, uma diferenciação da concepção biomédica
que faz crer (em consonância com os interesses da indústria farmacêutica e cumprindo uma
estratégia econômica) que não ter atenção e o comportamento regulado nas atividades
escolares se deve às falhas no cérebro, supondo a existência de um transtorno mental na
criança.
64

4. OBJETIVOS

4.1 Objetivo Geral

Analisar, a partir de trabalhadores da educação e da atenção básica em saúde, as


significações sobre o diagnóstico e o tratamento em crianças supostamente com TDAH, tendo
em vista compreender como estes profissionais explicam as determinações desse transtorno e
suas expressões na escola e na saúde que podem levar à medicalização da infância.

4.2 Objetivos específicos

a) Levantar como são descritos os encaminhamentos e diagnóstico de TDAH por


trabalhadores da educação e da saúde, destacando as especificidades de cada área
na abordagem dada ao transtorno.

b) Identificar e analisar as significações referentes às determinações do TDAH por


esses trabalhadores.

c) Verificar e explicitar se há diferenças entre as significações sobre TDAH dos


trabalhadores das duas áreas de atuação.
65

5. MÉTODO

A pesquisa apresentada vale-se do método dialético para compreender a


medicalização em casos de TDAH, adotando uma visão não dicotômica, busca apreender as
relações e as múltiplas determinações do fenômeno ora estudado. Ressaltamos que para o
campo teórico do materialismo histórico e dialético, que fundamenta a Psicologia Histórico-
Cultural e estudos sobre as determinações do processo-saúde na Saúde Coletiva, como
subsídios para nossa análise, não há separação entre qualitativo e quantitativo, pois estes são
complementares no sentido de garantir o conhecimento da totalidade e as relações diversas do
fenômeno investigado.

Buscamos, a partir desse referencial, analisar os dados coletados, compreendendo


os processos de medicalização de crianças diagnosticadas e que recebem tratamento por
TDAH; investigar como os trabalhadores da escola e da saúde se relacionam com essas
crianças e como realizam os encaminhamentos e tratamentos; e discutir os significados
atribuídos ao transtorno, de modo a buscar superar uma visão dicotômica e, na medida do
possível, apreender as relações e as múltiplas determinações do fenômeno ora estudado.

Entre os teóricos da abordagem adotada para nossa pesquisa, tanto no referencial


para contraposição às visões hegemônicas de desenvolvimento humano como nas
formulações utilizadas para análise de dados, destacamos as obras de Leontiev (1978), Luria
(1979; 1991), Vigotski (1933-34/2010; 1934/2010). O desenvolvimento humano para esses
estudiosos é compreendido como resultado das relações e mediações sociais e das condições
concretas de vida. Nesse sentido, nos apropriamos dos elementos acerca da relação
biológico/social para a nossa defesa de que o social é determinante sobre o biológico na
constituição da atenção e regulação da conduta da criança.

Para a Psicologia Histórico-Cultural, todos os processos relacionados ao


desenvolvimento humano são, portanto, mediados pelas relações sociais e pelas condições
concretas de vida determinadas pelo modo de produção da sociedade. Ou seja, o processo de
humanização decorre dessas condições e dessas mediações.

Desse modo, considera-se que o tratamento e a medicalização por TDAH requer


analisá-lo no contexto histórico da sociedade atual e das múltiplas determinações que têm
66

levado a um número crescente de crianças medicadas por esse transtorno, não o entendendo
apenas como mais uma patologia. Busca-se, portanto, compreender as relações materiais,
sociais e culturais de constituição sócio-histórica da infância hoje em instituições como a
escola e os serviços de saúde, inseridas em uma dada realidade objetiva que se relaciona e
produz a subjetividade da criança.

Para tanto, nos afirmamos em Laurell (1982) quando argumenta que o processo
saúde-doença é de natureza social e relacionado de modo articulado a outros processos
sociais, políticos e econômicos. A análise ora apresentada será feita a partir de sujeitos
concretos, em que o problema da saúde-doença não se limita apenas à determinação biológica.
Como nos apresentam Skalinski e Praxedes (2003, p. 308):

Partindo do pressuposto de que a epidemiologia não estuda a doença no


indivíduo, mas na coletividade, em uma forma de organização social, a
definição de um objeto de estudo de caráter social que determine
causalidade, requer o entendimento das relações do grupo escolhido com
outros grupos da sociedade e a compreensão da dimensão dessas relações
enquanto fenômenos sociais, inseridas em um contexto muito mais amplo. O
materialismo histórico é uma teoria social capaz de explicar o processo
saúde-doença através de uma interpretação científica da realidade,
assumindo um compromisso com o projeto de mudança no pensamento
epidemiológico, voltado para a busca da causalidade no social.

E é para essa perspectiva que nosso estudo converge, apresentando uma análise
crítica do TDAH e da medicalização da infância. Desse modo, os elementos evidenciados na
análise numa perspectiva do materialismo histórico compõem uma rica totalidade de
determinações a serem vistas em movimento. Foi o que Marx (1859/1978) pretendeu revelar
sobre o equívoco das visões idealistas que não se pautam pela análise dos elementos da vida
concreta. Ao discutir população em sua obra Crítica da Economia Política, divergiu da visão
dos idealistas da Economia Política, que desconsideraram em seus estudos os elementos da
divisão de classes, do trabalho assalariado e do capital. Sendo que para Marx (1859/1978, p.
116), o método deve revelar “uma rica totalidade de determinações e relações diversas” do
fenômeno.
67

5.1 Local da pesquisa

A pesquisa foi realizada em duas Unidades Básicas de Saúde (UBS), sendo que
em uma delas havia o programa Estratégia Saúde da Família (ESF), e em três escolas públicas
que atendem crianças matriculadas em creche, pré-escola, ensino fundamental I e II na região
norte de um município do Centro-Oeste Paulista, estado de São Paulo, que, segundo o
Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), no ano 2016 teve a população estimada
em aproximadamente 141 mil habitantes.15

Para melhor compreensão da apresentação dos dados coletados optamos por


dividir as escolas em: 1 que atende educação infantil de creche e pré-escola; 2 que atende o
ensino fundamental I e II; 3 que atende o ensino pré-escolar, fundamental I e sala
multifuncional (sala destinada às crianças com necessidades especiais).

O critério de escolha das UBS se deu pela existência de projetos de pesquisa e


extensão desenvolvidos por equipes de docentes e alunos da Unesp. As escolas foram
selecionadas conforme a correspondência territorial em relação às Unidades Básicas de
Saúde. Optamos pela coleta de dados abrangendo os respectivos bairros e ação de unidades
públicas de saúde e de educação junto à população. Duas escolas correspondem a uma UBS
com Estratégia Saúde da Família (ESF) localizada ao extremo norte da cidade. A terceira
escola corresponde a uma UBS localizada em um bairro com mais proximidade da região
central da cidade.

A partir dessa escolha geográfica e da correspondência entre as unidades de


serviços de educação e de atenção básica em saúde para a coleta e análise de dados, buscamos
melhor evidenciar a relação da interface entre educação e saúde.

5.2 Participantes

Participaram da pesquisa os profissionais da saúde e da educação que trabalham


nas unidades de saúde e escolas, totalizando 53 trabalhadores, sendo:

15
Disponível em: <www.ibge.gov.br>.
68

27 professores de educação básica;


3 coordenadoras pedagógicas;
2 diretores escolares;
2 enfermeiras;
5 agentes comunitários;
4 auxiliares de enfermagem;
1 auxiliar de saúde bucal;
1 auxiliar administrativo;
1 cirurgião-dentista;
1 pediatra;
1 médica da família e comunidade;
2 professoras de ensino superior;
1 fonoaudióloga;
1 psicólogo;
1 psicopedagogo;
Para obter informações sobre as situações que levaram ao encaminhamento e
diagnóstico de TDAH nas crianças, assim como identificar os trabalhadores da educação e da
saúde que tiveram contato com crianças diagnosticadas com TDAH, foi aplicado um
questionário (em apêndices A e B).

O questionário foi utilizado para coletar dados e selecionar os participantes para a


entrevista, porém alguns profissionais da saúde e educação contabilizados no total de
participantes não preencheram o questionário e participaram de conversas com a pesquisadora
registradas no diário de campo, bem como alguns trabalhadores que responderam ao
questionário não foram incluídos nas entrevistas devido ao critério de inclusão definido para a
segunda etapa desta pesquisa. Esses dados são apresentados e discutidos no capítulo 6 desta
dissertação.

O critério de inclusão utilizado para participação na segunda etapa da pesquisa


(entrevistas) se deu devido ao trabalho realizado por estes profissionais com crianças
diagnosticadas e que recebem tratamento por TDAH, ou seja, a mediação que alguns
69

profissionais da escola e da saúde desenvolvem com essas crianças e que por isso se
constituem como fontes orais para a análise pretendida.

Ao final da primeira etapa identificamos dez participantes que realizavam algum


tipo de mediação com as crianças diagnosticadas e que recebiam tratamento medicamentoso.
Foram realizadas entrevistas com cinco trabalhadores da educação (uma coordenadora
pedagógica e quatro professoras do ensino básico) e com cinco da área da saúde (duas
professoras do ensino superior, uma enfermeira, uma fonoaudióloga e um psicólogo).

Após a realização de leituras do material produzido nesta etapa para a análise e


identificação dos núcleos de significação, foram contempladas as entrevistas de sete
trabalhadores (duas professoras do ensino básico, uma coordenadora pedagógica, um
psicólogo, uma fonoaudióloga, duas professoras do ensino superior). As entrevistas dos outros
trabalhadores não foram utilizadas para a análise, pois não forneciam elementos suficientes
para análise no que se refere ao contato direto com as crianças que recebiam tratamento pelo
diagnóstico de TDAH.

5.3 Procedimentos do trabalho em campo

Após autorização do projeto pelas secretarias de educação e de saúde do


município, a coleta de dados foi realizada em duas etapas: a) aproximação, contatos iniciais
com as instituições e aplicação de questionário; b) entrevistas.

Na primeira etapa da pesquisa, realizou-se a aplicação de questionários nas


escolas e nas Unidades Básicas de Saúde como meio para selecionar os participantes para a
entrevista semiestruturada. As questões do questionário foram genéricas com o intuito de
obter informações de dados da pessoa e da instituição e para identificar se o trabalhador tinha
ou não relação e que tipo de contato mantinha com a criança diagnosticada com TDAH e em
tratamento medicamentoso (Apêndices A e B).

Além disso, outro meio para obtenção de dados da pesquisa nessa etapa se deu
pela observação dos trabalhadores da educação e saúde nos diferentes momentos de contato
com eles. As informações e impressões observadas foram registradas em diário de campo.
70

Nas escolas, os primeiros contatos foram feitos com as coordenações e direções,


apresentando o projeto de pesquisa. Em seguida, participamos do Horário de Trabalho
Pedagógico Coletivo (HTPC), que é a reunião de planejamento semanal de professores com a
coordenação e a direção da escola, quando também foi apresentado o projeto de pesquisa aos
professores. Essas reuniões ocorriam semanalmente (segunda-feira ou terça-feira), quando
discutiam assuntos diversos referentes ao trabalho realizado na escola.

Após apresentação e discussão da pesquisa com os participantes foi aplicado o


questionário. Em duas escolas essa etapa foi mais tranquila, tanto no momento inicial de
apresentação da pesquisa para a coordenação como na devolução dos questionários. Já em
uma escola alguns questionários não foram respondidos, o que dificultou nosso trabalho de
coleta e análise.

Em uma Unidade Básica de Saúde com Estratégia Saúde da Família (UBS-ESF)


foi possível participar da reunião de equipe com todos os profissionais envolvidos no
trabalho, devido à dinâmica já instituída em função das reuniões semanais. Na outra, foi
realizado contato individualizado, conforme proposto pela coordenação da área de Saúde da
Criança em dia da semana específico, dada a dinâmica e a demanda da unidade. Também
foram sugeridos os trabalhadores a serem contatados no dia, de acordo com a intervenção que
realizavam e do contato com as crianças.

Inicialmente todos os profissionais de educação e da saúde envolvidos no


atendimento de crianças dos anos iniciais da educação básica nas escolas do ensino infantil e
fundamental e das unidades de saúde abrangidas na pesquisa receberam um questionário no
qual puderam informar a existência de casos de encaminhamentos por esses trabalhadores de
crianças diagnosticadas com TDAH.

Todos os contatos, conversas realizadas, idas nas escolas e nas unidades de saúde
foram relatados em diário de campo, como instrumento de registro de observações, dados e
informações no trabalho da pesquisadora.

A etapa seguinte de definição dos participantes da pesquisa para a realização de


entrevistas foi estabelecida após análise do questionário respondido pelos trabalhadores das
unidades básicas de saúde e das unidades escolares. Após essa primeira etapa, observamos nas
respostas do questionário aplicado o critério de inclusão dos participantes dado pela existência
71

do trabalho desses profissionais com as crianças diagnosticadas e que recebem ou receberam


tratamento por TDAH.

A realização da entrevista semiestruturada se deu a partir de um roteiro com


alguns eixos temáticos: dados gerais, trabalho, conhecimento sobre o TDAH, identificação e
encaminhamento, tratamento, determinações do TDAH (Apêndices C e D). As entrevistas
foram gravadas em áudio e transcritas integralmente.

Para Schraiber (1995), a entrevista como instrumento de pesquisa é uma fonte oral
e de ampliação do registro que revela as representações dos sujeitos em torno da temática da
pesquisa. Além da entrevista, e de modo complementar, fizemos uso da observação
participante, registrando em diário de campo materiais, a serem apresentados neste estudo
como mais uma possibilidade no trajeto investigativo.

A observação participante registrada em diário de campo contribui para orientar o


processo “em que são anotadas as próprias percepções do pesquisador acerca da investigação
em curso” (SCHRAIBER, 1995, p.70).

Quanto ao uso do gravador, trata -se de um instrumento que:

Permite captar e reter por maior tempo um conjunto amplo de elementos de


comunicação de extrema importância: as pausas de reflexão e de dúvida ou a
entonação da voz nas expressões de surpresa, entusiasmo, crítica, ceticismo,
ou erros – elementos esses que compõem com as ideias e os conceitos a
produção do sentido da fala, aprimorando a compreensão da própria
narrativa (SCHRAIBER, 1995, p. 71).

5.4 Análise dos resultados

Para a análise dos resultados da primeira etapa, organizamos alguns quadros


explicitando e sintetizando as informações obtidas no questionário, que, como já foi apontado
anteriormente, teve o objetivo de identificar os trabalhadores que tiveram contato com
crianças diagnosticadas e em tratamento por TDAH, para definirmos os participantes da
segunda etapa da pesquisa.
72

Quanto à análise dos dados coletados por meio das entrevistas, investimos na
apreensão de núcleos de significação como proposto por Aguiar e Ozella (2006; 2013). A
partir do material produzido pelas entrevistas, a pesquisadora teve como tarefa extrair
conteúdos mediante os objetivos da pesquisa e organizar o material para constituição dos
núcleos de significação abstraídos nas falas dos sujeitos. É nesse sentido que a proposta de
nucleação de significações, extraídas dos conteúdos das falas desses sujeitos, expressa os
significados que são atribuídos à existência do fenômeno pesquisado, ou seja, por meio da
análise do discurso dos trabalhadores, revela-se mediações sociais e econômicas.

A partir das falas dos participantes coletadas em entrevista, buscamos captar o


processo e o movimento discursivo dos sujeitos acerca do fenômeno, considerando os
objetivos definidos para nosso estudo. E é nesse sentido que Aguiar e Ozella (2013), sob a
perspectiva da abordagem da Psicologia Histórico-Cultural, argumentam que a análise em
nossa pesquisa é antes de tudo uma interpretação do pesquisador. Desse modo, em nosso
trabalho a construção dos núcleos sintetiza as mediações constitutivas do sujeito acerca de
suas significações sobre o fenômeno, “mediações essas que constituem o sujeito no seu modo
de pensar, sentir e agir” em um contexto sócio-historicamente determinado (AGUIAR,
OZELLA, 2013, p.310).

Para a constituição dos núcleos de significação, Aguiar e Ozella (2013) nos


propõem a tarefa de organização do material coletado, iniciando a leitura das entrevistas dos
participantes e destacando palavras e conteúdos. Esse percurso é denominado de leitura
flutuante, pois a entrevista para eles é “um dos instrumentos mais ricos e que permitem acesso
aos processos psíquicos que nos interessam particularmente os sentidos e os significados”
(AGUIAR, OZELLA, 2013 p. 308).

No trabalho de análise e constituição dos núcleos de significação, os significados


são “produções históricas e sociais. São eles que permitem a comunicação, a socialização de
nossas experiências” (AGUIAR, OZELLA, 2006, p.226). Essa posição está presente nos
pressupostos teóricos formulados por Vigotski (1934/2010) em “O problema e o método de
investigação”, capítulo da sua obra A construção do pensamento e da linguagem. Nesta obra o
significado é abordado como processo psíquico da linguagem e do pensamento:

[...] o significado da palavra, que acabamos de tentar elucidar do ponto de


vista psicológico, tem na sua generalização um ato de pensamento na
verdadeira acepção do termo. Ao mesmo tempo, porém, o significado é parte
73

inalienável da palavra como tal, pertence ao reino da linguagem tanto


quando ao reino do pensamento. Sem significado a palavra não é palavra
mas som vazio. Privada do significado, ela já não pertence ao reino da
linguagem. (VIGOTSKI, 1934/2010, p. 10)

O processo que busca captar ou apreender os sentidos e significados dos sujeitos,


“do que foi dito pelo sujeito, entender aquilo que não foi dito: apreender a fala interior”
(AGUIAR, OZELLA, 2013, p.308), conforme explicam os autores, é um esforço construtivo-
interpretativo da fala, do pensamento, das contradições e da totalidade da constituição dos
sentidos que esse sujeito atribui ao fenômeno e a sua atividade.

Desse modo, este movimento analítico interpretativo não deve ser restrito à
fala do informante, ele deve ser articulado (e aqui se amplia o processo
interpretativo do investigador) com o contexto social, político e econômico,
permitindo o acesso à compreensão do sujeito na sua totalidade. (AGUIAR,
OZELLA, 2013, p.311)

Embora nossa análise se concentre nos significados atribuídos pelos trabalhadores


acerca de sua atividade e do fenômeno TDAH e medicalização, não é possível separar sentido
e significado na teoria da Psicologia Histórico-Cultural, já que eles constituem um processo
de interdependência na formação da consciência. Para Vigotski:

[...] sentido é sempre uma formação dinâmica, fluida, complexa, que tem
várias zonas de estabilidade variada. O significado é apenas uma dessas
zonas do sentido que a palavra adquire no contexto de algum discurso e,
ademais, uma zona mais estável, uniforme e exata. O significado, ao
contrário, é um ponto imóvel e imutável que permanece estável em todas as
mudanças de sentido da palavra em diferentes contextos. (VIGOTSKI,
1934/2010, p. 465)

Discutir sentido e significado para Aguiar e Ozella (2013) é compreendê-los pela


unidade contraditória do simbólico e do emocional, apreendendo melhor o sujeito, e “por
meio de um trabalho de análise e interpretação, pode-se caminhar para as zonas mais
instáveis, fluidas e profundas, ou seja, para as zonas de sentido” (AGUIAR, OZELLA, 2013,
p. 304).
74

Leontiev (1978a, p. 96) destaca as relações entre significação e sentido pessoal,


como fenômenos da consciência, porém ela não pode ser compreendida isoladamente, isto é, a
partir de si própria, mas sim como fenômenos da vida. Portanto:

A significação é o reflexo da realidade independentemente da relação


individual ou pessoal do homem a esta. O homem encontra um sistema de
significações pronto, elaborado historicamente, e apropria-se dele tal como
se apropria de um instrumento, esse percursor material da significação. O
facto propriamente psicológico, o facto da minha vida, é que eu me aproprie
ou não, que eu assimile ou não uma dada significação, em que grau eu a
assimilo e também o que ela se torna para mim, para a minha personalidade;
este último elemento depende do sentido subjectivo e pessoal que esta
significação tenha para mim. (LEONTIEV, 1978a, p. 96)

Leontiev (1978a, p. 96 e 97) define como fenômenos da vida as condições


concretas “características da interação real que existe entre o sujeito real e o mundo que o
cerca, em toda a objectividade e independemente das suas relações, ligações e propriedades”.

Ao extrair das falas dos participantes os conteúdos para constituição de núcleos de


significação estamos revelando os significados das relações de trabalho com as crianças
diagnosticadas com TDAH. A responsabilidade atribuída aos trabalhadores pelo crescente uso
de medicamentos em crianças é comum nos apontamentos críticos sobre a medicalização da
vida, porém é sabido que as condições de trabalho e a forma como as instituições de saúde e
de educação estão organizadas acabam por favorecer esses processos. A partir da proposta de
nucleação dos significados, pretendemos não cair na armadilha de responsabilizar os
trabalhadores pelo processo de medicalização das crianças, pois, como já foi abordado no
primeiro capítulo, ele é determinado pela ideia de medicalização da vida e requer ser
examinado à luz das relações de produção e do movimento das contradições da sociedade
capitalista.

Na análise das entrevistas, dedicamos um esforço interpretativo de aproximação,


semelhança e contradição dos elementos extraídos das falas dos participantes sobre suas
atividades, como realizam seu trabalho, o que pensam acerca do TDAH e da medicalização,
bem como o que os mobilizava de acordo com suas concepções, que também são
determinadas pelo mundo que os cerca.
75

Para a construção dos núcleos de significação, em concordância com Aguiar e


Ozella (2013), os passos metodológicos percorridos se constituíram em: a) Realização da
gravação das entrevistas, seguida da transcrição literal; b) Leitura flutuante e organização do
material, destacando as palavras e trechos com significado; c) Diversas leituras do material
transcrito, destacando os conteúdos das falas dos trabalhadores; d) Organização dos pré-
indicadores e indicadores; e) Início da nomeação dos núcleos de significação, atentando-se
para palavras com forte cunho expressivo que surgiram na fala do participante.

Os conteúdos da fala dos sujeitos entrevistados foram destacados nas “leituras


flutuantes”, considerando os objetivos de pesquisa e, em seguida, sublinhadas as palavras com
significados, elencando os pré-indicadores para constituição dos núcleos. “Assim, temos que
partir das palavras inseridas no contexto que lhe atribui significado, entendendo aqui como
contexto desde a narrativa do sujeito até as condições histórico-sociais que os constitui”
(AGUIAR, OZELLA, 2013, p. 308).

Os pré-indicadores são “trechos de fala compostos por palavras articuladas que


compõem um significado, carregam e expressam a totalidade do sujeito e, portanto,
constituem uma unidade de pensamento e linguagem” (AGUIAR, OZELLA, 2013, p. 309).

A tarefa de elencar os pré-indicadores e indicadores nos quais foram destacados


palavras e/ou os conteúdos extraídos das entrevistas com os trabalhadores das escolas e UBS
se constituíram como um momento de antecipação da nuclearização.

Em consonância com os objetivos de pesquisa aglutinamos os pré-indicadores por


similaridade, ou semelhança, ou complementariedade, ou contraposição, denominando esses
indicadores por palavras compostas ou frases, extraídas das falas dos trabalhadores e ou
interpretadas pela pesquisadora.

Essa etapa de organização dos conteúdos das falas dos trabalhadores nos deu uma
quadro de possibilidades denominado de pré-indicadores e indicadores, conforme exemplo
realizado a partir de uma entrevista (Apendice F). Essa etapa antecipa a constituição dos
núcleos de significação, explicitando através de quadro como o estudo analítico foi feito, em
que é exposto o processo e o movimento do sujeito sobre a temática TDAH e medicalização.

Os objetivos do estudo ora apresentados foram permanentemente retomados e a


partir do referencial teórico adotado possibilitaram o caminho interpretativo para a
76

pesquisadora, pois conforme propõem Aguiar e Ozella (2006, 2013), o trabalho analítico é um
exercício de interpretação do discurso do participante. No entanto não é uma interpretação
aleatória, sempre será uma interpretação mediada pelos objetivos elencados na pesquisa e a
perspectiva teórica adotada. Do empírico ao interpretativo do sujeito em um contexto sócio-
historicamente determinado. (AGUIAR, OZELLA, 2013, p.310).
Após definição dos indicadores mais uma vez retomamos a leitura de todo
material que deu início a etapa de nucleação, ao passo que os núcleos foram sendo definidos e
nomeados de acordo com algumas expressões e palavras ditas pelos participantes.

No processo de aglutinação dos temas para constituição dos núcleos de


significação, os indicadores foram agrupados conforme semelhança e/ou por apresentar
elementos contraditórios presentes nas falas dos sujeitos, bem como a totalidade em que a fala
do sujeito está inscrita como um processo articulado, de acordo com o que a pesquisadora se
propôs investigar e em consonância com os objetivos definidos nesse trabalho. Nesse sentido
a análise por meio dos núcleos de significação traz elementos do fenômeno TDAH e
medicalização.

5.5 Aspectos éticos

Antes do início da coleta de dados, o projeto foi submetido e aprovado pelo


Comitê de Ética em Pesquisa (CEP) da FMB-Unesp (Parecer nº 820.372), estando em
conformidade com as normas éticas estabelecidas na Resolução nº 466/12 (BRASIL, 2012).
Do mesmo modo, foi solicitada autorização da Secretaria Municipal de Saúde e da Secretaria
Municipal de Educação e realizado contato com a coordenação das unidades de saúde e
escolas envolvidas, visando informar e esclarecer a natureza do estudo.
Após realização dos contatos institucionais, os trabalhadores foram convidados a
participar dessa pesquisa. No momento da coleta de dados foi entregue um Termo de
Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE - Apêndice E) ao participante, informando sobre o
tema da pesquisa, o sigilo das informações, a autorização para gravação e a divulgação dos
resultados, bem como da sua participação voluntária e do sigilo dos nomes das pessoas e das
instituições envolvidas. Portanto, para cada participante foi emitida cópia do TCLE e foram
utilizados nomes fictícios.
77

Para garantir o sigilo dos participantes foram escolhidos nomes inspirados em


trabalhadores da música que fazem da voz seu instrumento de trabalho. De modo
comparativo, entendemos que os trabalhadores participantes dessa pesquisa utilizam da fala
para comunicar-se com as crianças, seja no ensino ou no tratamento com essas crianças. A
escolha dos nomes se deu de modo aleatório relacionando as vozes de artistas da música em
correspondência com cada participante. Entre os artistas definimos os seguintes: Rita Lee,
Carol Ladeira, Ceumar, Juçara Marçal, Maria Bethania, Gal Costa e Jorge Drexler.

Atendendo ao aspecto ético, as entrevistas gravadas em áudio, transcritas


integralmente, serão apagadas após a conclusão da pesquisa.
78

6. ANÁLISE E DISCUSSÃO DOS RESULTADOS

6.1 Contextualização dos locais de pesquisa

A pesquisa de campo foi realizada em três escolas públicas e em duas UBS de


bairros diferentes da região norte do município.
A Escola 1 – Educação Infantil atende crianças que frequentam a creche e a pré-
escola; a Escola 2 – Ensino Fundamental I e II atende alunos da 1ª a 9ª série; a Escola 3 –
Educação Infantil e Ensino Fundamental I atende alunos da pré-escola e da 1ª a 5ª série. Além
disso, a Escola 3 tem um atendimento especializado em Sala Multifuncional.
Em relação à saúde, participaram da pesquisa profissionais de uma UBS com
características de policlínica, que conta com atendimento especializado em algumas áreas,
entre elas a Saúde da Criança. A segunda UBS tem uma equipe de Saúde da Família e conta
com o apoio do NASF.
A seguir apresentamos algumas características das unidades escolares e de saúde
quanto à quantidade de pessoas atendidas e tipo de atendimento (Quadro 1).

Quadro 1 – Caracterização das unidades escolares e de saúde

Escolas Quantidade de crianças atendidas Tipo de Atendimento/serviço *


Escola 125 matriculadas em creche  Creche ( salas de berçário, maternal I e
1 II)
95 matriculadas em pré-escola  Pré-escola (etapa I e II)

Escola 283 alunos do primeiro ao quinto ano  Ensino Fundamental I e II;


2 Ensino I
377 alunos do sexto ao nono ano  Psicopedagogia (destinado a averiguar
Fundamental II dificuldades de aprendizagem)

Escola 52 alunos das etapas 1 e 2 do ensino pré-  Ensino pré-escola;
3 escolar
42 alunos matriculados do primeiro a  Ensino fundamental
quinto ano
20 alunos matriculados no atendimento  Atendimento Especializado - Sala
especializado multifuncional

UBS 46 crianças (passaram pela triagem) Saúde Mental da Criança


83 crianças atendidas Psicoterapia em grupo e individual

UBS- 327 de 5 anos; 199 de 6 anos; NASF


ESF 152 de 7 anos; 202 de 8 anos;
189 de 9 anos; 219 de 10 anos.
79

Embora neste quadro apresentemos a quantidade de crianças matriculadas nas


escolas e em correspondência às séries e idades, nossa pesquisa abrange somente a faixa etária
de cinco a dez anos. Para a realização e análise de entrevistas selecionamos os trabalhadores
que realizavam trabalho com esta faixa etária.
As escolas 1 e 2 e a UBS- ESF estão localizadas no território com maior número
de pessoas e crianças atendidas. Os trabalhadores dessas unidades informaram que se trata de
bairros periféricos e com alto índice de tráfico de drogas.
Segundo a psicopedagoga e a coordenadora pedagógica da escola 2 as questões
vinculadas principalmente à (des)organização familiar poderiam estar relacionadas às
dificuldades de aprendizagem da criança e ocorrência do TDAH. (Diário de campo, 09 de
setembro de 2015). Diante essas afirmações indagamos: O problema de não aprender se limita
apenas a responsabilidade da família? E os investimentos pedagógicos a serem feitos com
essas crianças, não terá a escola um papel a ser desempenhado?
Os trabalhadores da saúde apresentam outra interpretação quanto à
vulnerabilidade das crianças expostas ao tráfico de drogas desse bairro. Segundo a
coordenação da UBS-ESF há uma demanda por ações de caráter público que viabilizem o
acesso das crianças e jovens em atividades culturais, educacionais e formativas na saúde, pois
a não oferta dessas atividades culturais limitam a possibilidade de ampliação para outras
perspectivas de vida. Uma possibilidade apresentada por essa trabalhadora seria a realização
de ações em conjunto da UBS-ESF com a escola 2, pois ambas atuavam no mesmo território,
para discutir, inclusive, o tema das drogas e da gravidez precoce. (Diário de campo, 21 de
agosto de 2015)
Mesmo apresentando os documentados assinados pelas secretárias de saúde e de
educação que consta o aceite para que pesquisa fosse realizada na escola 2 realizamos várias
tentativas para iniciar a coleta de dados. Isso acarretou no adiamento da coleta de dados e nem
todos os professores preencheram o questionário, dos treze presentes no HTPC apenas cinco
entregaram o documento respondido. (Diário de campo, 20 de maio, 07 e 28 de julho de
2015). Tal conduta para com a pesquisa realizada nos fez refletir: O que a coordenação dessa
escola não quis revelar ao dificultar a coleta de dados?
A coordenação e a diretora da escola 1 nos informaram que as famílias são
bastante receptivas quanto às solicitações da instituição educacional quando requerem algo
das crianças e quanto ao comparecimento dos responsáveis pelas crianças. E a percepção que
80

essas trabalhadoras têm sobre a relação com as famílias é de que se mostram gratas ao
trabalho realizado pela escola. (Diário de campo, 11 de agosto, 2015).
Apesar dessas escolas, 1 e 2, estarem localizadas no mesmo bairro, têm visões
divergentes sobre as famílias. A coordenação da escola 2 afirmou que a maioria das famílias
era “desestruturada”, mostrando uma percepção de que há pouco o que fazer com essas
crianças.
Outro fato que chamou nossa atenção na escola 1 quando coletamos os dados, é
que estavam organizando a festa da família, porque na opinião da coordenadora e da diretora
o rearranjo familiar estava sendo modificado e que, portanto, organizar festas para o dia das
mães e/ou dia dos pais não era, na opinião delas, a representação familiar de todas as crianças.
Sendo assim, a festa da família representava todos os tipos de família, da criança que vivia
com a avó e ou da criança que vivia com duas mães ou dois pais. (Diário de campo, 10 de
setembro de 2015)
A Escola 3, segundo informação dada pela diretora, está localizada em um bairro
onde os moradores têm condição econômica mais favorecida em comparação a outros bairros
da cidade. Observamos que no entorno da escola há oferecimentos de serviços e
equipamentos públicos como o parque e áreas de lazer. É um bairro com mais proximidade da
região central da cidade e de centros culturais da prefeitura para a juventude.
Outro elemento destacado pela coordenação da escola 3 é de não havia
dificuldades de trabalho com a população atendida, pois segundo ela havia um trabalho de
parceria feito com as famílias, já que estava lotada nessa unidade escolar há mais de 10 anos.
A UBS próxima a essa escola oferece alguns serviços tal como o atendimento em
saúde da criança, contando com profissionais de várias especialidades.

6.2 Sistematização dos dados da primeira etapa da pesquisa

Os dados coletados na primeira etapa informam a quantidade de trabalhadores


envolvidos na pesquisa, tempo de trabalho, sexo, idade e formação. São informações obtidas
pelas respostas ao questionário aplicado. Também apresentamos nesta sistematização
informações e impressões observadas em conversas com participantes da pesquisa, que foram
registradas em diário de campo.
No quadro abaixo apresentamos a caracterização dos trabalhadores dos cinco
locais de pesquisa, das duas UBS e três escolas de educação básica. Os dados apresentados se
81

referem ao sexo, tempo de trabalho, idade e formação. Outros participantes da pesquisa que
também preencheram o questionário, ou com quem conversamos, não foram agregados para
essa caracterização, uma vez que optamos por selecionar apenas os trabalhadores que
realizavam trabalho com crianças de 5 a 10 anos.

Quadro 2 – Dados de caracterização dos trabalhadores

Atuação Sexo Tempo de trabalho Formação


F M Até 5 De 6 a 15 De 16 a 33
anos anos anos
Coordenação pedagógica 2 2 Pedagogia

Diretoria 2 2 Pedagogia

Enfermeira coordenação 1 1 Enfermagem

Fonoaudiólogo 1 1 Fonoaudiologia

Médico 4 1 3 Medicina

Professores de Educação 27 1 12 13 Pedagogia


Básica

Psicólogo 1 1 Psicologia

Psicopedagogo 1 1 Psicopedagogia

6.2.1 Trabalhadores das escolas


Os dados citados no quadro 2 foram coletados por meio dos questionários. Esses
dados de identificação foram respondidos pelos professores e revelam aspectos importantes
sobre o tempo de trabalho, sexo e idade: a) todos os trabalhadores da educação, sendo 27
professores da educação básica, dois diretores, dois coordenadores pedagógicos e uma
psicopedagoga, são do sexo feminino e formados em Pedagogia. Podemos aferir que o
trabalho na área da educação é realizado majoritariamente por mulheres; b) em relação ao
tempo de trabalho, quase todos os participantes têm mais de cinco anos de experiência de
trabalho, exceto a psicopedagoga, sendo que 13 têm mais de 15 anos trabalhando como
professora; c) Em relação à idade, 14 trabalhadoras têm mais de 40 anos, variando de 37 a 45
anos.
82

De acordo com os dados podemos estimar que se trata de um conjunto de


trabalhadores com experiência de trabalho, não sendo, portanto, um grupo de jovens que está
iniciando a experiência laboral. Se por um lado isso pode implicar em conhecimento prático,
também representa certo desgaste em função do tempo de trabalho, bem como por conta da
faixa etária em que se encontram.
Na conversa realizada no HTPC com as trabalhadoras da Escola 1, em que estava
ausente apenas com a diretora, observamos o cuidado com esse momento de reflexão, pois ao
final do dia se organizam para discutir assuntos do trabalho. Estavam as professoras em volta
de uma mesa grande coberta de uma toalha florida e sobre a mesa havia alimentos para que
elas comessem. Uma pausa para o lanche é dada entre o intervalo que se encerra a aula em
sala com as crianças, já que a reunião começa às 18 horas da tarde e mais da metade das
professoras realizavam dupla jornada de trabalho. Isto é, após um dia de trabalho, que era
sempre na terça-feira, se encontravam semanalmente para discutir assuntos coletivos da
escola registrados em uma pauta. De todas as escolas que fomos essa era a única que tinha
uma pauta impressa em papel sulfite para cada professor, sendo a também a escola que tinha o
menor grupo de professoras. (Diário de Campo, 13 de maio de 2015)
No HTPC dessa escola as professoras, após exposição sobre o nosso trabalho,
ficam interessadas e perguntam sobre como é possível identificar uma criança com TDAH. E
uma professora relata o comportamento de uma criança mais inquieta na sala e nos questiona
se seria uma criança portadora do referido transtorno. Outra professora interrompe e afirma
que conhece a criança mencionada e explica que esse comportamento está associado a
“indisciplina e tem a ver com a família”. (Diário de campo, 11 de agosto de 2015).
De modo geral essas professoras da escola 1 têm mais dúvidas do que certezas
quanto a existência do transtorno. Algumas questionam e afirmam ser improvável crianças da
educação infantil apresentar TDAH. Tal questionamento dessas trabalhadoras apresenta
divergência em comparação ao que é afirmado em alguns estudos, como os realizados por
Biscegli et al (2013) e Andrade e Scheuer (2004), que sugerem que é possível identificar e
diagnosticar o transtorno na educação infantil, antecipando o tratamento.
Em convergência ao que foi discutido por elas sobre o entendimento do TDAH,
destacamos duas respostas do questionário de uma professora dessa escola. Em relação à
questão 5, a professora responde: “Não identifiquei nem diagnostiquei, somente levantei a
possibilidade devido o comportamento agitado, tempo de concentrado muito curto”. Na
questão 6 ela comenta: “Como é uma faixa etária muito nova, dificilmente as mães buscam
83

ajuda, mas quando isso acontece, procuram [UBS de referência]”. 16 Embora identifique o
comportamento mais agitado e faz suposições de que são crianças que precisam de ajuda da
saúde, nos parece que não é uma diretriz do trabalho dela avaliar a criança e encaminhar para
a saúde para averiguar diagnóstico de TDAH.
Outro elemento nos pareceu importante se refere à discussão realizada no HTPC
dessa escola. Elas debatem mais entre si, do que percebi nas outras reuniões das outras
escolas.
Na escola 2 após algumas conversas realizadas com a coordenadora pedagógica
do Ensino fundamental I pontuou que o assunto de nossa pesquisa deveria ser discutido com a
psicopedagoga que comparecia na escola uma vez por semana e agendou um dia para que
pudéssemos participar do HTPC. A psicopedagoga forneceu informações para a pesquisa,
bem como relatou seu trabalho em duas escolas e como a rede municipal de ensino concebe o
seu trabalho, conforme reposta à questão 3 “ Investigação, atendo alunos que apresentam
dificuldades e transtornos de aprendizagem, avaliação, intervenção, encaminhamentos,
orientações”17.
Essa trabalhadora foi contratada pela prefeitura em 2014 para atender duas escolas
da rede e realizar um trabalho de identificação das crianças com dificuldades de
aprendizagem, especificamente para avaliar se há algum problema associado que necessita de
encaminhamento para averiguação médica. Seu trabalho é realizado junto à coordenação de
um núcleo de apoio que tem cinco psicopedagogas e uma psicóloga que coordena e atende os
casos de dificuldades de aprendizagem.
A psicopedagoga se desloca semanalmente para essa escola para acompanhar as
crianças que estão em uma lista previamente feita pela coordenação pedagógica e pelos
professores. A partir desta lista ela verifica se há alguma criança com dificuldade de
aprendizagem que requer orientação aos professores de como proceder com essa criança e
orientação às famílias. É por meio de “provas piagetianas” realizada pela criança com
orientação da profissional, que a mesma identifica se essa criança precisa ser encaminhada
para um serviço de saúde de neuropediatria que tem como objetivo diagnosticar o transtorno
de aprendizagem. A supervisão desse trabalho é feita por uma psicóloga, que em conjunto

16
5 ) Conheceu ou conhece alguma criança diagnosticada com TDAH em sua unidade escolar ou unidade de
saúde que recebe tratamento? Tem alguma relação de trabalho com essa criança, como por exemplo, é sua aluna,
ou frequenta essa escola?
6) Sabe nos informar quais situações que levaram a identificação e diagnóstico do TDAH?
17
3) Atualmente desempenha quais atividades? Com qual série do fundamental I, se for professor (a)?
84

com uma equipe é desenvolvida na rede municipal de ensino. (Diário de campo, 09 de


setembro de 2015).
Não há crianças em tratamento nessa escola, porém algumas já foram
encaminhadas e estão sendo avaliadas em ambulatório de hospital público. Outras
acompanhadas pela psicopedagoga na escola. Na ocasião ela mostrou uma lista das crianças
que estão sendo avaliadas, conforme apontamentos dos professores em sala quanto às
dificuldades de comportamento e aprendizagem da criança. Quanto ao encaminhamento à
unidade de saúde ela informa que só pode fazer caso a família concorde. Na visão a
necessidade da concordância da família prejudicava o seu trabalho, porque muitas famílias
não compareciam à escola quando eram chamadas e isso implicava, segundo ela, em não
resolver o problema que a criança apresentava, pois os encaminhamentos da saúde não eram
feitos.
Não foi possível extrair mais elementos dos questionários, porque dos 13
trabalhadores da escola 2, que participaram no HTPC, somente cinco responderam,
apresentando respostas bastante objetivas, entre sim e não. Apenas uma professora respondeu
na questão 4 “Sim, várias” em relação a crianças encaminhadas ao serviço de saúde pelo
comportamento e dificuldade de aprender, mas não apresentou nenhuma informação nas
demais questões, respondendo apenas com “não”, contradizendo sua resposta anterior. 18
Após o recolhimento dos questionários tentamos mais uma conversa com a
psicopedagoga para conhecer as “provas piagetianas” mencionadas por ela, utilizadas para
identificar a participação no jogo e quanto à dificuldade da criança manter-se atenta no jogo.
Ela propôs nos passar esse material outro dia, previamente agendado, mas não obtivemos
mais seu retorno às nossas ligações.
Na escola 3 não há uma psicopedagoga, porém há atendimento educacional
especializado para as crianças com necessidades especiais. Serviço que se estende para outras
escolas públicas da rede municipal. A professora habilitada em educação especial, formada
em pedagogia, nos informou que já trabalhou com criança diagnosticada com TDAH.
Essa atividade de ensino é instituída como uma modalidade da educação especial,
tendo a professora, em tempo integral na escola, que ensina crianças utilizando os recursos da
sala multifuncional. A coordenação pedagógica e a professora nos informaram que esse tipo

18
4) Durante o período em que desenvolveu seu trabalho, na sua profissão, identificou uma criança ou mais
considerada como indisciplinada, hiperativa ou desatenta e encaminhada para o serviço de saúde? Quantas?
85

de serviço é determinado por legislação federal, conforme RESOLUÇÃO Nº 4, DE 2 DE


OUTUBRO DE 2009, do MEC. (BRASIL, 2009)
Sobre seu trabalho, a professora responde a questão do questionário sobre as
atividades realizadas: “Trabalho em atendimentos na sala multifuncional com crianças com
deficiência e transtornos de aprendizagem”19. Apesar da referida resolução não contemplar
criança diagnosticada com TDAH, a professora de educação especial, em discussão com a
coordenadora pedagógica, avaliou que para contribuir com o desenvolvimento da criança
diagnosticada com o referido transtorno que atenderia as mesmas nessa sala, como uma
espécie de reforço escolar.
A sala multifuncional é equipada com vários recursos e disposições de jogos,
sendo que a professora atendia individualmente essa criança que recebia tratamento
medicamentoso. Quanto ao seu entendimento sobre o TDAH, a professora responde:
“Comportamento impulsivo, falta de atenção na realização das atividades, dificuldades para
entender orientações complexas dia a dia na sala regular”.
Das professoras da escola 3 que preencheram o questionário, outras três
informaram ter contato com crianças diagnosticadas com TDAH e, conforme relatou a
coordenadora pedagógica, uma criança recebe tratamento em rede particular e as demais
recebem acompanhamento na UBS de referência ou no serviço hospitalar especializado de
neuropediatria.
Uma das professoras respondeu à questão 3, afirmando que “muitas crianças
encaminhadas nem sempre são atendidas nos prazos necessários/adequado”. Essa queixa
também é apresentada pela diretora da escola, que mostrou um formulário específico de
encaminhamento das crianças com dificuldades de aprendizagem e outros problemas.
Segundo ela, esses encaminhamentos são dirigidos ao NASF, após autorização das famílias.
Em alguns casos a própria família busca pelo atendimento particular ou UBS de referência.
No entanto, para essa diretora o NASF demora em torno de seis meses para realizar o
atendimento, o que, segundo a diretora, prejudica o ano escolar da criança. (Diário de campo,
18 de maio de 2015)
O NASF atende os casos discutidos em reunião de equipe da UBS-ESF e em uma
das visitas a essa unidade conversamos com um dos psicólogos que trabalha junto a esse
núcleo para saber se havia atendimento de criança diagnosticada com TDAH. Ele relatou que
naquele momento não havia criança atendida com o referido transtorno.
19
3) Atualmente desempenha quais atividades? Com qual série do fundamental I, e ou etapa da educação
infantil, se for professora(o) ?
86

Os encaminhamentos às unidades de saúde se referem mais ao comportamento


das crianças, conforme pode ser ilustrado na seguinte resposta dada à questão 6 pela
professora da escola 3, que descreve o TDAH como sendo: “Características específicas tais
como: agitação constante; falta de concentração; etc.”. A ênfase dada ao comportamento das
crianças parece ser mais usual como expressão do discurso biomédico na educação e explica o
seria o transtorno na compreensão dessas trabalhadoras.
Outro elemento que revela expansão do campo bimédico na educação se refere
aos cursos de especialização que as professoras responderem no questionário. Das quatro
professoras que fizeram curso de pós-graduação, apenas uma especializou-se em
alfabetização. As outras realizaram especialização em neuropsicopedagogia. Destacamos esse
dado informado pelas participantes, uma vez que os cursos de neuropsicopedagogia serem
organizados pelo viés biologizante e na discussão de técnicas para averiguar patologias da
aprendizagem. O que em nossa compreensão não corresponderia com os desafios dos anos
iniciais do Ensino Fundamental que o trabalho da alfabetização requerido nos anos iniciais,
portanto a alfabetização é o maior desafio dos professores e não a busca das causas biológicas
dos porquês da criança não aprender.
Observamos que nessa escola que há um grupo de trabalhadores com bastante
experiência na educação. Do conjunto de 17 professores, exceto quatro professoras, 13 tem
mais de 15 anos de profissão. E em relação à idade, sete tem até 40 anos de idade e o restante
mais de 40 anos. Isso pode nos revelar que é um grupo experiente no trabalho de ensinar.

6.2.2 Trabalhadores das Unidades de Saúde

Na reunião de equipe da UBS-ESF foi apresentada a ideia geral do estudo e a


coleta de dados que seria realizado nessa unidade. Estavam presentes quatro auxiliares de
enfermagem, uma enfermeira coordenadora, uma médica da família, cinco agentes
comunitários, um auxiliar de saúde bucal, uma cirurgiã dentista e um auxiliar administrativo.
Antes de aplicar o questionário com a equipe, foi aberta discussão a pedido da
coordenadora de equipe. Alguns apresentaram suas opiniões e fizeram perguntas à
pesquisadora. O trabalhador do setor administrativo perguntou se não seria melhor estender
minha pesquisa para a rede particular, porque, segundo ele, nas escolas da rede privada tem
uma cobrança maior de desempenho escolar e que por isso muitas famílias procuram a
solução em medicamentos. Esse trabalhador cita a Ritalina® como o mais conhecido. Uma
87

agente comunitária (ACS) alega que acreditava que não era exatamente a existência do
transtorno na criança, mas sim a falta de limites que os pais têm dificuldade de colocar na
educação dos filhos e que isso levava às dificuldades ligadas ao comportamento da criança.
(Diário de campo, 21 de agosto, 2015)
Embora esses trabalhadores não atuem diretamente na realização do diagnóstico e
tratamento das crianças têm percepções desse tema. As auxiliares de enfermagem e a
coordenadora, também enfermeira, já atenderam crianças com o diagnóstico de TDAH, mas
só realizam ações de puericultura, avaliação antropométrica, vacina e medição de peso e
altura. Portanto, as crianças que têm esse diagnóstico não foram identificadas na unidade e
não recebem tratamento da equipe. Os casos de saúde mental são discutidos com o NASF em
reunião de equipe.
Por não ter criança que recebe tratamento por TDAH nesta unidade não foi
possível incluir os trabalhadores na segunda etapa de pesquisa. Ressaltamos, no entanto, que
os trabalhadores da unidade demonstraram interesse na pesquisa e propuseram que a
devolutiva da pesquisa poderia ser realizada com a apresentação dos dados após conclusão do
estudo em reunião.
A conversa com os trabalhadores da UBS que possui a área de saúde mental da
criança foi realizada individualmente. O primeiro contato foi feito com a coordenadora
formada em enfermagem, que nos apontou quais trabalhadores deveríamos conversar e que,
segundo ela, teriam contato com crianças de cinco a dez anos, diagnosticadas com TDAH.
Nessa primeira conversa com a coordenadora, ela nos relatou ser crítica à
medicalização da infância, informando que a própria imprensa cumpre o papel de propagar
que uso de medicamento ajuda no desempenho escolar. E cita uma matéria recente do jornal
do município, mostrando-se indignada, porque, segundo ela, elucida a positividade de
medicamentos no sucesso escolar ao apresentar um relato de conteúdo em prol da
medicalização. (Diário de Campo, 14 de setembro de 2015).
Na conversa com uma pediatra, ela nos relata que naquele momento não havia
nenhuma criança em tratamento e encaminhada por ela. Apenas informou que tinha uma
paciente adolescente que estava solicitando medicamento, porque se queixou de dificuldades
para concentrar-se nos estudos e quanto a isso estava avaliando melhor, pois ainda não tinha
feito nenhuma prescrição medicamentosa para a paciente. (Diário de Campo, 14 de setembro
de 2015).
88

A fonoaudióloga relatou que as crianças com dificuldades de aprendizagem


apresentam geralmente dificuldade com a fala, que não é necessariamente oriunda do TDAH
e sobre esse transtorno nos indagou em que medida a agitação é um significado dado ao
comportamento da criança. Revela ter muitas dúvidas sobre o TDAH, apesar de ter atendido
crianças diagnosticadas com esse transtorno. Quando a criança é atendida em terapia com ela,
achava por bem dispensar o uso de medicamento, visto que não tinha comportamento agitado
como obstáculo para a atividade terapêutica desenvolvida. (Diário de Campo, 14 de setembro
de 2015).
Do total de casos levantados no livro da triagem encontramos 46 crianças
atendidas no serviço de saúde mental durante o ano de 2016. Desse total 18 casos eram de
crianças com dificuldades de aprendizagem associadas a outros relatos da vivência familiar.
Dessas queixas em relação à escola destacamos conforme descritos no livro: “dificuldade de
aprender”, “dificuldade de manter-se atento”, “de respeitar regras” e “baixo desempenho
escolar”.
Em relação às famílias e as crianças encaminhadas para a UBS constam que oito
foram provenientes de escolas, 16 são oriundas de encaminhamentos de pediatras, duas
oriundas de neuropediatria, duas de projetos sociais, 12 são de demanda espontânea, ou seja, a
família buscou pelo serviço, mas não cita se foi outra instituição que solicitou. Desse total,
não foi possível identificar a origem de seis crianças, já que no livro não consta nada quanto à
referência/origem do encaminhamento.
Quanto a isso, o psicólogo ao responder à questão 5 do questionário, comentou
que há a tendência em fechar rapidamente o diagnóstico das crianças20, o que, na opinião
desse profissional, é muito delicado fechar um diagnóstico nessa faixa etária, já que a criança
está em desenvolvimento e submetida a muitas experiências.
Importante salientar que esse serviço de saúde mental é considerado de referência
para crianças, no entanto outros dois serviços também recebem encaminhamentos. Um se
localiza na região central da cidade e o outro é específico de dificuldades de aprendizagem,
sendo que as duas médicas dessa unidade que responderam ao questionário realizam
tratamento medicamentoso com crianças diagnosticadas com TDAH. No entanto, o local de
realização desse trabalho é feito em outro espaço público, também considerado como
referência para o município onde realizamos essa pesquisa.

20
5) Conhece, atualmente alguma criança diagnosticada com TDAH que recebe tratamento nesta unidade?
89

Em relação ao trabalho para averiguar TDAH na criança, abordado na questão 6


do questionário, uma médica responde: “1º. Avaliação neuroped e neuropsicológica”; “2ª.
reunião de equipe” para discutir o caso; “3º. Programação das estratégias estabelecimento das
causas/agravantes a) treino da atenção e memória, b) orientação à escola e aos pais c) quando
e somente se necessário, medicação”.
Após a finalização da coleta de dados da primeira etapa da pesquisa que consistiu
em fazer os primeiros contatos com as escolas e unidades, conversas com trabalhadores,
individual e em reunião de equipe, em que aplicamos o questionário, realizamos as entrevistas
com os participantes, seguida da análise para organização dos núcleos de significação,
conforme apresentado no próximo item.

6. 3 Análise das entrevistas

Os participantes das entrevistas foram selecionados a partir das respostas ao


questionário da primeira etapa da pesquisa em que afirmaram ter contato de trabalho com
crianças diagnosticadas com TDAH, tanto pela mediação do ensino como pelo tratamento
medicamentoso e terapêutico com essas crianças.
Inicialmente dez participantes foram selecionados para realização das entrevistas,
porém somente sete participantes tiveram suas entrevistas analisadas nesse trabalho. Três
entrevistas não foram incluídas nesta etapa porque, embora os entrevistados tivessem
respondido afirmativamente no questionário, esses trabalhadores não tinham relação direta
com o ensino ou tratamento com crianças diagnosticadas com TDAH. Do total de sete
entrevistas quatro são com trabalhadores da saúde e três da educação.
90

6.3.1 Caracterização dos participantes

A tabela abaixo sintetiza os dados das informações gerais dos participantes


entrevistados na pesquisa:

Nome Sexo Formação Ocupação Atual


Rita Feminino Fonoaudiologia Fonoaudióloga

Carol Feminino Pedagogia Professora


Sala Multifuncional

Ceumar Feminino Pedagogia Professora Ensino


fundamental I

Juçara feminino Pedagogia Coordenadora


Pedagógica

Jorge Masculino Psicologia Psicólogo

Maria Feminino Medicina Pediatra

Gal Feminino Medicina pediatra

Quadro 3: Caracterização dos participantes das entrevistas

Abaixo apresentamos, brevemente, os nossos participantes e a atuação dos


mesmos no trabalho.

Rita
É formada em Fonoaudiologia. Interessou-se por essa profissão porque na época
identificou que poderia ter uma diversidade nesse campo de trabalho, inclusive associar a
terapia com uma interface com a educação escolar. Logo que conclui o aprimoramento
prestou concurso, sendo aprovada veio para a cidade onde realiza seu trabalho na Atenção
Básica em Saúde Pública. Informou que gosta muito do seu trabalho porque faz uma série de
atividades e destaca que faz audiometria, terapia, atua com diferentes faixas etárias, entre
crianças e adolescentes, e também da saúde mental.
91

Carol
A professora Carol é jovem e está trabalhando com o ensino fundamental I há sete
anos. Fez Pedagogia em universidade pública do interior paulista. Seu interesse de trabalho
durante o curso de graduação sempre foi a Educação Especial. Depois de formada fez pós-
graduação nessa área. Atualmente seu trabalho é realizado na sala multifuncional com
crianças com deficiência e transtornos de aprendizagem.

Ceumar
É nascida no interior de São Paulo. Veio para a cidade atual morar no período da
adolescência, pois seu pai veio em busca de trabalho. O que levou toda a família a se mudar e
desde então mora na cidade. Na vida adulta morou por nove anos na capital paulista, logo
após casar-se. O seu retorno para a cidade atual onde mora e trabalha foi em função de sua
efetivação na rede estadual da educação.
Ceumar realiza duas jornadas de trabalho. De manhã trabalha em uma escola de
ensino fundamental I da rede estadual (localizada em uma região periférica devido a distância
do centro da cidade e também no que se refere à desigualdade social). No período da tarde
trabalha na escola municipal onde realizamos nossa pesquisa de campo.

Juçara
É trabalhadora da educação há 27 anos e há 10 anos atua na coordenação
pedagógica de uma Escola de Educação Infantil e Ensino Fundamental da rede municipal do
município. Sua primeira formação na educação foi no magistério, quando na época havia
curso médio integrado ao técnico. Mas a graduação em pedagogia em curso especial de
universidade pública para professores em exercício. E depois fez pós-graduação em Gestão
Escolar.

Jorge
Tem graduação em Psicologia, formado em 2004. Após concluir o curso de
graduação fez aprimoramento na cidade onde trabalha e reside atualmente, vivendo nela desde
então.
92

Já na graduação percebeu que seu maior interesse de trabalho seria a área da


saúde, especificamente a clínica. Logo após sair de um trabalho de extensão iniciou atividades
em um projeto social e na UBS onde está lotado desde então. Apesar de citar seu interesse
pela clínica dá relevância ao trabalho realizado por três anos em um projeto social vinculado a
uma empresa. Esse projeto atende alunos matriculados na escola 2 e está localizado em um
bairro considerado vulnerável, pois segundo ele havia a presença do tráfico de drogas,
situação de violência e abandono de crianças e adolescentes. Sendo o mesmo bairro que tem
abrangência de atendimento da UBS-ESF na qual realizamos nossa coleta de dados.

Maria
É formada em Medicina, fez Residência em Pediatra e especializou-se em
neuropediatria. Informou que realiza uma diversidade de tarefas, na instituição onde trabalha,
entre elas realiza atividades de assistência e orientação de alunos em dois ambulatórios que
atendem a população infantil.

Gal
É formada em Medicina, médica pediátrica com mestrado. Informa que a ênfase
de seu trabalho está focada em desvios de aprendizagem. Interessou-se por esse tema quando
fazia residência em pediatra e atualmente coordena um ambulatório na cidade em que mora e
trabalha.
93

6.3.2 Núcleos de significação – Trabalhadores da área da educação

Antes de iniciarmos a exposição dos núcleos de significação, retomaremos a ideia


importante de que a análise dos dados trata-se de um trabalho interpretativo sobre o discurso
dos participantes, conforme assevera Aguiar e Ozella (2013, p.310): “o processo de
construção dos núcleos de significação já é construtivo-interpretativo, pois é atravessado pela
compreensão crítica do pesquisador em relação a realidade”.
A seguir apresentamos os núcleos de significação dos trabalhadores da educação:

I Bagunceiras e desatentas que não aprendem, supostamente crianças portadoras do


TDAH
II Ensino: entre o gostar e a angústia no trabalho
III A natureza do trabalho pedagógico atravessada pelo campo biomédico
IV Quando a dificuldade da aprendizagem não é normal

I Bagunceiras e desatentas que não aprendem, supostamente crianças portadoras do


TDAH

A constituição desse primeiro núcleo foi organizada a partir da compreensão dos


trabalhadores da educação sobre TDAH. De como são compreendidas as expressões do
suposto transtorno na escola.
As três trabalhadoras que participaram das entrevistas relataram que o transtorno é
visto por elas através de comportamentos observados nas crianças e que isso remete à
possibilidade da existência de uma patologia que dificulta o comportamento regulado na
criança e sua aprendizagem.
A professora Carol, de educação especial, relata o caso de um aluno
diagnosticado com TDAH acompanhado por ela por dois anos e explica como foi o processo
de avaliação e encaminhamento à unidade de saúde:
ele tinha o histórico de bagunceiro e que não prestava atenção em nada e dai
foi conversado com os pais e ele passou em avaliação particular. Que o
psicólogo faz aqueles testes e por aqueles testes ele vê as funções que estão
alteradas e aí tem a hipótese de um transtorno de déficit de atenção, uma
deficiência, que no caso dele, ele apresentava uma deficiência intelectual na
94

média, mas com alteração das funções executivas, como atenção. Daí foi
sugerido o déficit de atenção. (Carol)

A expressão do TDAH na escola é verificada pela observação e avaliação dos


professores sobre comportamentos mais acentuados das crianças, como “baguceira”,
“agitada”, “não consegue focar”, sendo essas as que “destoam do todo”:
Assim, é que meio que destoa do todo. A criança fica, aponta lápis toda
hora, derruba objetos o tempo todo no chão, ou apontador ou é a borracha. É,
vai pegar o material debaixo da carteira, cai. Toda hora precisa da minha
atenção ali pra ta explicando a lição pra ta compreendendo. Aí os momentos
assim de explicação, que eu explico pra classe toda, que ta todo mundo te
olhando, mas você... ai não sei. O olhar parece que a criança não tá ali. Eu
não sei também se é isso, sabe, algumas situações diferentes, mas também
não posso te falar que é déficit de atenção, é hiperatividade. É que destoa do
todo (Ceumar, grifos nossos)

As trabalhadoras relataram que identificam o transtorno na escola, a partir do


comportamento da criança: “criança não consegue se controlar”; “criança bagunceira”;
“atenta a tudo, mas não foca”; “tem alteração da atenção”; “dificuldade acentuada para
aprender”; “crianças sem limites”; “não segue regras”. Essa compreensão do transtorno
também passa por cursos organizados pela rede municipal de educação
O déficit de transtorno de hiperatividade é novo, mas ta na mídia, eu tenho
um caso, dois casos, minto, dois casos aqui na escola. Através de cursos que
a rede ofereceu, nós tivemos um curso no ano de 2013 sobre esse tipo de
transtorno, vários transtornos e um foco foi esse transtorno de déficit atenção
e hiperatividade. E a gente tenta nos atualizar da melhor maneira possível. E
você também, quando você faz uma coisa que você gosta você vai atrás,
você estuda, você se entrega de paixão, você vai afinco e se você tem algum
caso pontual na sua unidade escolar, você tem que ta muito atrelada no
assunto para que você possa orientar os seus professores e para que você
possa acalmá-los que é uma dificuldade de aprendizagem (Juçara)

A vigência de um olhar clínico do professor (SOUZA, 1997) sobre o


comportamento humano, desde a escola, para Caponi (2014) corresponde ao que é ditado pelo
95

DSM, instituindo-se como um manual de ficha diagnóstica que enquadra os sofrimentos e


dificuldades do andar da vida em categorias patológicas.
A compreensão do TDAH passa pela observação do comportamento das crianças
em sala de aula, inicialmente avaliadas pelo professor, depois pelo coordenador pedagógico,
seguindo um processo de encaminhamento e averiguação para o campo da saúde.
Um elemento importante do processo de medicalização se refere aos aspectos da
avaliação escolar que, segundo Freitas (2014), é mais amplo e complexo do que simplesmente
aferir o rendimento do aluno e na sala de aula:
o professor lida o tempo todo com estas três dimensões da avaliação
(aprendizagem, comportamento e valores) por meio de processos que podem
ser tanto formais (provas, testes, trabalhos etc.) como informais (juízos de
valor sobre o comportamento do aluno ou sobre seu desempenho,
comentários públicos ou dirigidos especificamente ao aluno em atenção
individualizada etc.) (p.1096)

Assim, de acordo com essa concepção de avaliação escolar o comportamento da


criança é avaliado permanentemente, não como uma aprendizagem mediada em que a criança
alcance a autorregulação do seu comportamento, mas como adverte Souza (1997) essas ações
são reforçadoras de estigmatização dos alunos. E nesse sentido destacamos o relato da
professora:
É, na verdade, assim, eu acabei estudando um pouco mais por causa do
XXXX21 a gente sabe que é uma coisa prejudica porque a criança acaba não
tendo um filtro né. Ele tenta manter a atenção ali, mas ele não consegue, não
consegue se controlar, no caso desse meu aluno ele não conseguia se
controlar e todo mundo taxa como bagunceiro, mas na verdade ele não é o
bagunceiro. Ele não consegue, ele não presta, não é que ele não tem atenção
no meu ponto de vista, é porque ele presta atenção em tudo ao mesmo tempo
e não tem o filtro pra, que nem eu to prestando atenção em você aqui agora.
Ele ta vendo tudo que tá acontecendo na volta ele não consegue prestar
atenção só em você, ele não tem esse filtro que eu teria se tivesse mais gente
aqui eu teria de ta conversando com você só, no meu ponto de vista. Vejo
pelo meu aluno que era assim, dai ele levanta, ele se mexe o tempo todo, ele
fica impaciente.

21
Os Xs referem ao nome do menino diagnosticado com TDAH e que se tornou aluno da sala multifuncional.
96

Nesse sentido a avaliação informal pode ganhar maior dimensão, pois a


dificuldade é interpretada como um desvio, incapacidade localizada no cérebro da criança, ao
invés dessa dificuldade ser refletida como um investimento a ser feito para o desenvolvimento
da criança.
Diante disso, está posta a determinação que atravessa a concepção de ensino e
aprendizagem conduzindo a um trabalho no qual acaba por classificar a criança como
bagunceira, inquieta ou que não consegue focar como portadora do suposto transtorno.
Outro elemento discutido por Freitas (2014) refere-se à avaliação externa de larga
escala que se conecta a avaliação interna, afetando professores e alunos. O papel das
avaliações externas sobre a escola como a Prova Brasil, Sistema de Avaliação de Rendimento
Escolar do Estado de São Paulo (Saresp) se impõe em condução do trabalho pedagógico e que
induz a padronização e controle educacional.
A evidência dessa relação entre avaliações externas que incidem sobre as
avaliações internas e cotidianas na escola foi relatada pela coordenadora pedagógica quando
nos contou como identifica o TDAH e como inicia o encaminhamento das crianças para a
saúde.
Olha, nós temos um planejamento a cumprir, padrão nacional depois da rede
municipal, o aluno, por exemplo, ta tendo algumas dificuldades que não
sendo normal, o nível de aprendizagem dele poderia ta igual dos demais e
não está, eu to observando que algo errado deve está acontecendo. “Você
pode me ajudar?” O que eu digo pros meus professores: “Nós vamos nos
ajudar”. Então, a gente vai ficar junto com o professor. No caso também eu
tento observar, entrar em sala de aula... que é muito cômodo pro
coordenador pedagógico, “ ah ta, vou encaminhar”. Mas eu tenho que ter um
primeiro momento ali, tenho que ter alguns subsídios pra eu poder ta
verificando o que ta acontecendo pra eu ver onde eu vou buscar. (Juçara)

Nossos acréscimos, a partir desse estudo, não é responsabilizar o professor pela


medicalização, mas apresentar os diversos elementos desse processo que são complexos, em
que a avaliação interna e externa desempenha um papel particular desse processo, difundido
ideologicamente por gestores, políticos e/ou empresários da educação e traz implicações para
o trabalho do professor.
Portanto, as avaliações no âmbito escolar precisam ser compreendidas na relação
entre concepções de educação e sociedade. E para Saviani (1999) na sociedade dividida em
97

classes, como a que vivemos, há disputa de projetos que adentram o espaço escolar. Tal
disputa, segundo Freitas (2014), cada vez mais tende a ser favorável aos empresários da
educação, que estão influenciando conteúdos, métodos e ritmos de aprendizagem, por meio de
produtos e serviços como, por exemplo, o apostilamento.

II Ensino: entre o gostar e a angústia no trabalho

As três trabalhadoras da educação informaram gostar do que fazem e vêem nessa


atividade a importância de sua finalidade de ensinar assim como o estabelecimento de
relações entre os colegas de trabalho e com as crianças.
A percepção de que o trabalho do professor é mobilizado pela afetividade também
foi observada na fala da professora Carol: “Eu gosto muito. Eu gosto muito de criança e gosto
muito do que eu faço.”. A relação de carinho que esta professora tem com as crianças foi
observada no dia de sua entrevista quando caminhamos em direção a sala multifuncional e ao
passarmos pelo pátio algumas crianças correram em sua direção para cumprimentá-la. E de
modo carinhoso ela retribui, passando a mão no rosto e beijando a face de cada criança.
Juçara também argumenta que tem amor pelo seu trabalho “Eu amo estar no meio
de professor. Eu amo estar no meio de aluno, amo ser esse articulador de escola e família, que
o objetivo maior é o aluno e seu processo de aprendizagem”. Essa trabalhadora ingressou na
carreira de professor pelo curso de magistério. Há dez anos realiza atividades de coordenação
pedagógica e o total de seu tempo de trabalho com educação escolar tem vinte e sete anos.
Mesmo antes, quando era professora, recebeu convites para ser diretora, mas esclarece que
seu interesse é pela função que atualmente desempenha.
Embora apresentem relação de vinculo com seus alunos e amor ao seu trabalho,
uma professora ao relatar sobre uma criança diagnosticada com TDAH revela sentir-se
angustiada ao querer ajudá-lo
Olha, ele não saia da carteira, Regina, mas ele ficava assim, oh (faz gestos de
inquietação). E isso me dava uma angústia, porque eu sentia que não era
porque ele queria, é porque ele não conseguia, ele não conseguia focar, ele
até tem o conhecimento, ele sabe do que você ta falando, ele participava da
aula, mas ele não conseguia focar, é o foco que era problema. Você olha
assim pra ele e eu via nos olhos dele que ele não estava ali. (Ceumar, grifos
nossos)
98

Moro Rios (2015) discute o trabalho como atividade principal do adulto e é


indispensável à vida. Sem o trabalho não há o humano. É por causa dessa atividade que todos
os processos históricos desenvolvidos, a forma humana como conhecemos, a cultura, a
linguagem e todas as conquistas no campo da ciência, da tecnologia, constituíram-se
historicamente, assim como a humanidade. Nesse sentido, de acordo com perspectiva da
Psicologia Histórico-Cultural, fundamentada na concepção marxista, o trabalho
constitui o ser humano como um ser social e histórico; um ser cujas
capacidades materiais e intelectuais não são dadas de antemão, mas
desenvolvidas por meio da apropriação das objetivações sociais, dos
produtos da atividade coletiva. Por meio do trabalho, cria-se uma realidade
humanizada e, com isso, novas formas de se relacionar com o mundo,
expandindo as potencialidades humanas para além dos limites do organismo
(MORO RIOS, 2015, p. 22).

Porém na conformação da sociedade capitalista o trabalho, segundo a autora,


constitui-se como atividade que limita as potencialidades humanas, pois a exploração de uma
classe sobre a outra, de uma que detém os meios de produção sobre a que não tem, é
estruturante para a concentração de riqueza e a desigualdade social.
No caso das crianças diagnosticadas com o transtorno, a relação de ensino e
aprendizagem é mediada por meios farmacológicos, não sendo uma prática de superação de
dificuldades de aprendizagem, sendo que estas superações poderiam promover o máximo de
suas potencialidades humanas.
Quanto à idade e tempo de trabalho, Carol também é a mais jovem de idade com
sete anos de exercício de professora. Iniciou o seu trabalho como professora após se formar
em Pedagogia, o que pode indicar menos desgaste da profissão gerada pela natureza do
trabalho docente. Desde a graduação, Carol já havia demonstrado interesse em trabalhar com
educação especial. Por isso se identifica atualmente com o trabalho desenvolvido na sala de
recursos multifuncionais de educação inclusiva. Segundo ela, as atividades realizadas na sala
são complementares ao que é ensinado nas salas regulares as quais as crianças frequentam e
estão matriculadas.
Nessas salas, chamadas de multifuncionais, há jogos com intuito específico de
atender às diversas necessidades especiais dos alunos para que superem suas dificuldades de
aprender, e além do professor que planeja as atividades e realiza a mediação no aprendizado
das crianças, a sala é equipada com mobiliário e recursos de informática, materiais
pedagógicos. Tais salas são vinculadas a um programa do Ministério da Educação (MEC) e de
99

acordo com a nota técnica Nº 42 / 2015/ MEC / SECADI /DPEE do MEC “O acesso aos
serviços e recursos pedagógicos de acessibilidade nas escolas públicas regulares de ensino
contribui para a maximização do desenvolvimento acadêmico e social do estudante e
impulsiona o desenvolvimento inclusivo da escola” (BRASIL, 2015).
Desse modo, a sala multifuncional é um espaço dirigido à criança e suas
necessidades específicas de aprendizagem, possibilitando que aprenda os conteúdos que ela
tem mais dificuldade. Conforme esclarecido por Carol em entrevista com a pesquisadora,
trata-se de um trabalho realizado por ela em contato com a professora regular responsável
pela série na qual a criança é matriculada. Atende quinze crianças, quantidade determinada
pelo MEC, em horários diferentes. Quanto à quantidade de crianças com deficiência nas salas
regulares ela explica:
se for uma deficiência severa ela acaba diminuindo, não coloca outra
inclusão junto, mas a gente tem sala que tem até três inclusões. Entendeu?
Porque essas inclusões são inclusões leves, deficiências leves, que nem tem
uma sala que tem deficiência auditiva e uma deficiência intelectual, porque o
auditivo o cognitivo dele é preservado, ele precisa da interprete então da pra
conciliar as duas deficiências. A gente tem uma sala com deficiência visual e
deficiência intelectual. (Carol)

Apesar do TDAH não ser considerado uma deficiência para educação especial de
acordo com a legislação do MEC, a escola 3, que tem a sala multifuncional, atende crianças
com o suposto transtorno, como o aluno atendido pela professora Carol. Com isso, segundo
Carol, ajudá-lo em sua aprendizagem, no entanto isso não alterou o seu tratamento, pois ele
continuou fazendo uso do tratamento medicamentoso. A diferença entre o TDAH e a
deficiência amparada pelo atendimento na lei é explicada pela professora:
O TDH não é considerado uma deficiência, porque a deficiência tem
alteração cognitiva, né? No TDH a criança não tem uma alteração cognitiva,
de função, ela tem alteração na atenção e acaba refletindo na aprendizagem,
mas muitas vezes quando medicado da forma correta a gente acaba tendo
sucesso com crianças com TDH. Porque consegue fazer com que ele tenha
atenção, então o cognitivo é preservado, a deficiência normalmente ela tem
alguma parte que é afetada, uma parte do cognitivo afetada.(Carol)

Em suas palavras, a atividade/trabalho é “mais lúdico” para as crianças, por se dar


por meio de jogos e por isso ela acredita ter obtido bons resultados, porque as crianças de fato
aprenderam, inclusive a criança atendida por ela diagnosticada com TDAH.
A importância do brincar e dos jogos na educação escolar é enfatizada pela
perspectiva da Psicologia Histórico-Cultural, seja do jogo de papéis sociais, de regras aos
100

jogos esportivos. Segundo Magalhães e Mesquita (2014), todos denotam relevância para os
processos de ensino.
os jogos têm por si mesmos uma função no desenvolvimento e por isso
devem ser inseridos como atividade pedagógica nas escolas. Quando isso
acontece, entretanto, ele passa a ser dirigido pelo adulto e pode apresentar à
criança aspectos da vida social que ela não pode perceber por si
(MAGALHÃES; MESQUITA; 2014, p. 268)

Tal compreensão sobre os jogos na educação escolar, não só no âmbito da


educação especial, pode apontar os aspectos relacionados ao bom desempenho das crianças
atendidas nessa sala em que se trabalha com jogos. Fato pelo qual a professora se orgulha,
inclusive sobre o bom aproveitamento dos estudos conquistado pelo seu aluno diagnosticado
com referido transtorno.
Fica claro que os jogos, independente das necessidades específicas de
aprendizagem, não só cumpre um papel pedagógico importante ao ensino, mas compreendê-
los de acordo com a fase e atividade principal da criança no seu desenvolvimento, como o
jogo de papéis sociais, a brincadeira na pré-escola, que antecede a atividade do estudo, pode
redirecionar o trabalho e proporcionar ricas mediações impulsionando a criança no seu
desenvolvimento, de modo a superar suas dificuldades de aprendizagem.
Quanto à escolha em trabalhar com crianças do ensino fundamental I, Ceumar
informa o porquê sempre optou pelo trabalho com alunos do quarto ano. E apesar das
adversidades encontradas na sua atividade laboral a vê com uma finalidade social muito
importante:
Acredito no nosso trabalho. Eu penso que o que a gente faz é muito
importante para formação do aluno como um todo, como um ser social, né. E
me identifico com essa faixa etária porque é uma faixa etária onde eles são
muitos sinceros, né. Eles são muito francos, eles têm uma abertura de alma,
de espírito e eu acho que a gente consegue chegar mais naquilo que nós
precisamos porque eu penso que a educação não é só conhecimento, é muita
formação também. E eu penso que é nessa base que a gente consegue
formar, né. A gente consegue, digamos assim, trabalhar o caráter, a
personalidade, e formá-los como um todo, porque se eles tivessem essa
formação humana, digamos assim, eles por conta própria vão buscar o
conhecimento no futuro. É o que eu penso, né. E eu gosto muito dessa faixa
etária por conta disso, a gente tem difi... A gente tem muitos problemas?
Temos. Mas temos também bastante alegrias. E to na educação hoje porque
eu amo o que eu faço, realmente eu gosto muito do que eu faço, temos ainda
muitas coisas pra acertar, eu acredito que temos uma longa jornada aí pela
frente, né. De mudanças, de acertos, uma trajetória longa que a educação já
vem percorrendo há tempo, né. E, às vezes, a gente esbarra no sistema, mas a
gente vai caminhando. (Ceumar)
101

A professora Ceumar relata do modo mais amplo o que é para ela seu trabalho. Os
significados atribuídos do que é ensinar. Isso foi exposto por ela na entrevista de maneira
calma e clara. Sua reflexão nos faz pensar sobre essa atividade que não é simples.
É impossível entender o trabalho docente sem refletir as relações entre sociedade
e educação. Tanto para Saviani (1999) como para Paparelli (2009) só é possível compreender
a educação a partir da sociedade dividida em classes, bem como o papel da escola pública
nessa sociedade desigual.
Paparelli (2009) explica que no trabalho docente existe a indissociabilidade entre
planejamento e execução do trabalho e que o processo educativo que é o trabalho docente
ocorre por meio das relações entre sujeitos:
o que implica no fato de que a execução do trabalho só pode se dar na
presença simultânea de estudante e professor. O aluno não é apenas objeto,
mas, também, sujeito da educação, co-produtor da atividade pedagógica. Ou
seja, o aluno é objeto de trabalho do professor e, ao mesmo tempo, sujeito de
um processo do qual sai transformado, apropriando-se de um saber que a ele
é incorporado, havendo algo que permanece para além do ato de aprender,
algo que é utilizado pelo educando pela vida afora. E o professor também sai
transformado desse processo. Sendo assim, consumo e produção dão-se
simultaneamente, sendo eles, portanto, inseparáveis. (PAPARELLI, 2009,
p.10)

A autora apresenta uma série de elementos sobre a natureza do trabalho do


professor, evidenciando um trabalho que, para além do planejamento e da condução na aula,
torna acessível o conhecimento para as crianças e se constitui em estabelecimento de relações
que pressupõe construção de vínculos. Relação que mobiliza professor e aluno afetivamente.
Todas as participantes expressaram diferentes motivações para o trabalho,
demonstrando interesse pela atividade ao exclamarem na entrevista: “Gosto do meu
trabalho!”, “Amo meu trabalho!”, “gosto de crianças”. As três trabalhadoras realizam
jornadas diárias de 8 horas. Isso é caracterizado por elas como dobrar período. Mesmo Carol
que trabalha na sala multifuncional tem jornada que envolve os períodos da manhã e da tarde.
Juçara e Ceumar, das três, são as que têm mais tempo de trabalho e já revelam a
preocupação com a aposentadoria. Ceumar, apesar do prazer que sente em ensinar relatou
estar mais cansada: “Por conta... ah, que o dia todo não é fácil não, mas eu preciso, por
enquanto eu preciso, mas logo eu vou me aposentar meio período (risos)”.
O trabalho de ensinar requer desses trabalhadores dedicação intelectual e
envolvimento emocional, associado a isso são cobrados ritmo de trabalho, metas, padrão do
sistema de ensino (PAPARELLI, 2009). A fala de Juçara deixa claro esse envolvimento dos
102

trabalhadores com as crianças: “Se o coordenador não conhecer com afinco as necessidades
dos seus alunos e trabalhar acalmando a ansiedade dos seus professores, a escola não
caminha. Ele é o articulador da escola contemporânea” (Juçara).
Como nos ensina Moro Rios (2015), a atividade se produz e se sustenta por
múltiplas determinações, seja ela na vida da criança e na vida adulta.
Apesar dos participantes não mencionarem a jornada de trabalho intensificada
pelo planejamento e avaliações das atividades das crianças, a atividade torna-se mais
intensificada também pela dupla jornada de trabalho. Há que ressaltar a própria natureza
específica da atividade de ensino que pressupõe a construção de vínculos afetivos com a
criança, mobilizando os trabalhadores afetivamente e intelectualmente. Portanto, uma visão
que não fragmenta o sujeito, não separa cognição e afeto, pois como defende Vigotski
(1934/2010, p.16) há uma “unidade dos processos afetivos e intelectuais, que em toda a ideia
existe, em forma elaborada, uma relação afetiva do homem com a realidade representada
nessa ideia”.
Nesse sentido é compreensível que o desgaste gerado pela função de ensinar,
somado aos processos intensificados de trabalho de mais alunos em sala, duplas jornadas de
trabalho, além da execução da aula e planejamento, atividades burocráticas realizadas pelos
professores, pode facilitar a aceitação do discurso biomédico na escola, porque compreende
que a resolução do problema está centrada na criança. E ao classificá-las como portadoras de
uma patologia como o TDAH impede a compreensão da realidade em que as dificuldades de
aprendizagem são produzidas.

III A natureza do trabalho pedagógico atravessada pelo campo biomédico

Em resposta ao questionário da primeira etapa de coleta de dados, a


psicopedagoga respondeu por escrito sobre o trabalho que realiza semanalmente, um dia por
semana disponibiliza-se para ficar na escola 2 para “Investigação, atendo alunos que
apresentam dificuldades e transtornos de aprendizagem, avaliação, intervenção,
encaminhamentos e orientações”. Ressaltou que para esse trabalho existe uma demanda, e
que sozinha tem dificuldade de concluir, pois há uma lista de crianças que precisam ser
avaliadas por ela.
A ação da rede municipal segue a linha de orientar nos processos de
encaminhamentos para a saúde e disponibiliza informações e documentos que deverão ser
103

preenchidos para encaminhamentos das crianças a centro especializado no município ou ao


Núcleo de Apoio à Saúde da Família (NASF).
A coordenadora utiliza o termo “casos na escola” ao referir às crianças que
possivelmente são portadoras do suposto TDAH. Tem um entendimento que o diagnóstico,
deve ser feito antes do ingresso da criança no ensino fundamental I: “quando eu consigo ver
alguma dificuldade de aprendizagem lá na etapa I, eu vejo que eu posso adiantar alguma coisa
em prol daquela criança e da unidade escolar antes. Às vezes eu não preciso esperar chegar no
primeiro, segundo, terceiro.” (Juçara).
Alguns estudos apontam a tendência de se realizar e fechar um diagnóstico em
crianças matriculadas na educação infantil (LORENZI; RISSATO; SILVA, 2012; BISSEGLI,
et al., 2013). O argumento é de que se identificadas e diagnosticadas mais cedo e se obterem
tratamento, melhor será o desempenho escolar.
Em resposta à pergunta de como eram essas crianças que “destoam do todo”, a
professora Ceumar relatou:
Aí, tinha outros alunos que eu desconfiava, porque não parava na carteira,
derrubava muitos objetos no chão ou eu sentava explicava a lição à criança
que não conseguia se concentrar, não focava. É toda hora você tinha que
ficar explicando a mesma coisa (Ceumar)

A professora nos explicou como organizava seu trabalho para obter a atenção da criança
na sala, porém, à medida que observa que as dificuldades da criança têm características
“acentuadas” de comportamento e a falta de concentração, solicitou para que a família
averiguasse.
aí to sempre chamando a criança pra aula, sempre chamando a criança pra
aula, ta sempre perto de mim, quando eu percebo que a criança não consegue
mesmo realizar todas as atividades, eu seleciono algumas pra ela, que eu
acho que é mais importante, por exemplo, se tem 10 atividades, a criança vai
fazer cinco. E isso a maioria das vezes eu procuro fazer com que a criança
faça tudo aquilo que foi que os outros também fizeram. Aí, eu vou
observando e quando eu percebo assim que é muito acentuado essas
situações, eu chamo os pais, a gente conversa, eu oriento, eu pergunto se eles
também percebem isso em casa. Tem pais que relatam que percebem
também, assim essa agitação em casa, que não consegue parar pra sentar e
comer, por exemplo. Ou então teve uma mãe que relatou assim pra mim, não
a do XXXXXXX, outra mãe, que a criança não conseguia parar, por
exemplo, pra ouvir uma música ou pra assistir um desenho, que precisava ta
o tempo todo se mexendo, assim, ai, mas eu também não sei te explicar
exatamente como, entende? E aí, foi uma das mães que eu pedi pra que a
mãe investigasse, mas assim, elas reclamam que é uma lentidão muito
grande, entre marcar a consulta com o pediatra. (Ceumar)22

22
Os Xs referem ao nome do menino que foi diagnóstico com TDAH e aluno da professora Ceumar, que por
aspectos éticos não pode ser identificado.
104

A condução do trabalho organizado pela professora, de como faz para organizar e


dirigir a atenção da criança é atravessada pelo discurso biomédico. Aqui retomamos mais uma
vez as abordagens de Tesser (2006a; 2006b) e Moysés (2013a; 2013b) que argumentam que
esse campo da medicina, que se constitui também pelo caráter normativo e prescritivo, traz
implicações nas mais diferentes dimensões dos modos de conduzir a vida. O determinismo
biológico como explicação e naturalização da vida limita as possibilidades de interpretação de
diferentes processos do viver, como é o referido trabalho de organização da atividade
pedagógica do professor, tornando questões que são de origem histórico-sociais em
meramente biológicas.
A professora nos relata como procede diante uma criança que ela verifica que a
dificuldade de aprendizagem pode ser explicada e diagnosticada pelo campo médico,
orientando a família:
sobre a necessidade de investigar, que isso também eu já faço, se eu percebo
algo assim, ah não tem como eu diagnosticar, mas posso aconselhar,
procurar, a ver, a investigar que de repente pode não ser nada, de repente. Se
não for nada ótimo, a gente tira da cabeça e a gente começa a ter um olhar
mais diferenciado pra criança, mas pelo menos peço, converso com os pais e
peço. (Ceumar)

A dispersão da criança é encarada como algo incomum que precisa ser controlada.
E dadas às condições de trabalho do professor sobra pouco tempo para refletir sobre sua
prática dada a dupla jornada, uma vez que o pouco tempo que dispõe também é para se
refazer, planejar e dar seguimento a sua jornada seguinte. É esperado, portanto, que a angústia
da professora seja real. E nesse caso, a explicação pelo viés do transtorno é maquiada
ideologicamente sobre a origem real do mesmo. Conforme nossa perspectiva teórica são os
elementos de produção da vida concreta que nos dá a chave de compreensão acerca do
TDAH.
A contradição da explicação biologizante sobre o fenômeno é exposta quando a
professora relata sobre outros elementos da mesma criança, supracitada como hiperativa.
é um menino inteligente, um menino esperto, um menino que tem uma
aprendizagem fácil ele aprende as coisas. Aí, o que acontecia, para suprir
essa necessidade a vó paga uma professora particular para ele, que trabalha
com ele. Essas necessidades mais imediatas que muitas vezes ele não
consegue em sala de aula, por quê? É diferente quando tamos os dois, é
diferente o contexto da sala de aula. Tudo dispersa, dispersava ele, se cai o
lápis do amigo aqui, dispersa. (Ceumar)
105

Se a criança é identificada pela professora como dispersa, ela também traz outros
elementos que constituem o modo de ser dessa mesma criança como “esperto”, “inteligente”,
“tem uma aprendizagem fácil”.
O relato de Ceumar expõe o quão controversa é a explicação biológica do TDAH,
que se restringe aos comportamentos naturalizados das crianças.
E desse modo a validade do discurso de patologização, por alegar cientificidade,
institui-se como inquestionável, reduzindo as dificuldades do ensino, temas e práticas
organizativas do campo educacional para o discurso médico que é supervalorizado
socialmente. (CALIMAN, 2008; BRZOZOWSKI; CAPONI, 2010).

IV Quando a dificuldade da aprendizagem não é normal

Os elementos apresentados nesse núcleo são extraídos dos conteúdos que as


trabalhadoras dão às possíveis causas do TDAH. E nesse sentido, nosso estudo consistiu em
apreender as expressões ideológicas de origem, causa do transtorno. Foram também
observadas as contradições desse fenômeno e discutidas a partir do que nos relataram na
pesquisa de campo.
Importante esclarecer que os significados atribuídos ao transtorno estão
associados à finalidade e caráter da atividade específica do ensino. Impossível discutir o
TDAH sem abordar a relação de ensino e aprendizagem, pois envolve dois elementos nessa
relação que são a atenção, função psíquica, e comportamento, regulação da conduta. Ambos
desenvolvidos pelas mediações sociais e determinados pelas condições concretas de vida,
conforme discutido anteriormente nesse estudo.
Em resposta a pergunta sobre o seu trabalho e suas atividades na escola, a
coordenadora esclarece que estão diretamente relacionados à aprendizagem das crianças na
escola. Para ela há um lema de trabalho: “a gente não deixa um aluno pra trás” (Juçara). Isto
é, nenhuma criança pode deixar de aprender.
Com relação à criança que apresenta dificuldades em aprender, comparada aos
demais colegas, conforme esclarece Juçara: “Esse aluno tem que entrar no contexto dos
demais que não têm dificuldade nenhuma a não ser o ciclo normal de aprendizagem.”. Requer
da coordenação e dos professores um trabalho conjunto, é um esforço para que o aluno
aprenda.
106

O aspecto do comportamento da criança é elucidado pela professora Carol com


implicações para a aprendizagem da criança. E sobre isso ela encara como um dilema porque
há famílias que educam o comportamento das crianças de maneira agressiva ou passam essa
função de educar para a escola :

[...] você tem que dar o limite. Às vezes, as crianças não têm. Essas meninas
mesmo, elas eram terríveis. Então, mas você não tem que brigar, você tem
que ensinar o respeito. Muitas vezes é a falta da referência, que pode fazer
tudo. Hoje em dia pais deixam a educação para escola e está errado isso. A
escola é responsável por tudo. Então você acaba tendo que ensinar muito
mais que só o ler e escrever, você acaba, tendo que ensinar o
comportamento, regra, socialização. Então, e o pai só grita, grita, grita,
grita, grita ou bate. Não resolve. [P: Tem muito aqui, assim? Você acha?] 23
Tem, tem bastante, tem porque a clientela daqui é uma clientela diferenciada
do que XXXX, no caso as famílias são, tem de tudo, na verdade, mas a
maioria das famílias é de uma classe econômica um pouco mais favorável
que XXXX, por exemplo. Então, os pais acabam querendo deixar o tempo
máximo que puder na escola e daí dá menos trabalho e a escola acaba tendo
que ter duas funções. 24 [P: Então, a demanda do professor é grande?]
A professora acaba tendo duas funções. As menininhas que você viu me
abraçar ali eram terríveis. Aí, peguei um dia, parei. Conversei com elas, mas
assim, foram várias vezes até elas pararem, sossegarem, porque alguém tava
explicando pra elas, não tava brigando com elas o tempo todo. Você tava
explicando o que pode e o que não pode, porque não pode, são crianças. [...]
Tá aprendendo. Agora tem muito pai e mãe que só bate, que era o caso desse
meu aluno, no começo ele apanhava muito. [P: O XXXXXX?]
É, porque ninguém... apanhava muito do pai, porque ele coloca cortina pra
baixo, ele punha a casa pra baixo.
Até que foi falado que “viu, não é normal, não é um comportamento que ele
quer fazer, a hora que ele vê, ele já ta fazendo, ele tem impulsividade. A hora
que ele vê já fez”. Daí que eles foram buscar. [Carol, grifos nossos]

A regulação da conduta, embora reafirmado por ela como aspecto a ser ensinado,
não nos parece que há clareza do papel da escola quanto a isso. Apesar de creditar na família a
mediação para que a criança desenvolva o comportamento esperado na escola, ainda assim
retoma o papel que a escola deve também fazer, no entanto não encara que esse seja o papel
da escola.
Em resposta a pergunta sobre as causas do transtorno, Carol explica que não teve
tantos alunos com TDAH, por isso sempre se remete ao caso de um aluno específico, cujo
trabalho com ele foi realizado em dois anos.

23
P refere à pesquisadora na entrevista
24
Os Xs equivalem aos nomes do bairro e respectiva escola II. Nessa fala ela menciona que o bairro e a
população que frequenta a escola II é menos favorecida economicamente, segundo sua opinião.
107

no meu caso no aluno que eu tive pensando, no aluno que eu tive ele não
tinha uma referência de pai e mãe, ele não tinha limite nenhum dentro de
casa, nunca teve limite de autorregulação, ele nunca seguiu regras, ele
sempre pode fazer o que ele quis, a hora que ele quis, do jeito que ele quis.
Sempre foi usado o transtorno dele como uma forma de justificar tudo o que
ele fazia. (Carol)

As dificuldades do domínio da autorregulação do comportamento pela criança e


que afetam na sua aprendizagem são encaradas como se não fizesse parte do ensino. Atribui-
se a existência do transtorno quanto a essa dificuldade e localiza a responsabilidade na
família. Carol acena para um entendimento importante sobre isso, demonstrando contrária à
educação de modo agressivo em que pais só gritam com os filhos.
Quanto a buscar contato e diálogo com as famílias, a coordenação pedagógica da
escola 3 atua na orientação ao grupo de professores e comunicação com a família na tentativa
de dar uma resposta quanto àquele aluno que não acompanha os demais.
Bom, eu vou dar um exemplo claro da minha vivência profissional. Quando
você tem algum problema com algum aluno ele apresenta algum indicio
desde a educação infantil. E a gente sabe que pra fechar um laudo é dois, três
anos de tempo, depende da especificidade do caso. Quando o professor, é ele
que vai diagnosticar primeiro alguma coisa diferente dentro da sua sala de
aula, e ai ele vai ta passando para o coordenador. O coordenador também
como corresponsável e um articulador na escola, ele tem por obrigação, eu
sinto assim de também sentando na sala de aula e ta fazendo uma observação
plausível para que ele possa ter subsidio, subsídios, desculpa, para ta
chamando a família para um primeiro contato e depois direcionar para a área
clinica pra resolver o caso, seja fono, seja neuro, seja psicólogo. A educação
só caminha de forma igualitária quando há esse intercâmbio, essa junção
entre família e escola. O professor pra mim é uma peça muito importante
porque ele que ta todo dia com a criança lá, então ele que vai observar, ele
não vai diagnosticar, ele vai observar. (Juçara)

Diante da observação e ênfase ao comportamento e à atenção segue-se a tendência


ideológica dos encaminhamentos da questão para o campo da saúde em vez de realizar um
aprofundamento no próprio campo da educação como desafios do processo educativo.
Interpretamos os elementos contraditórios observados sobre o processo e o
fenômeno do TDAH como parte da medicalização da vida. Isso pode ser observado quando a
coordenadora expõe a organização do trabalho pedagógico na escola que envolve o ensino e
aprendizagem, especificamente dos aspectos relacionados às dificuldades que a crianças
apresentam quando não aprendem.
Se por um lado é dito que há um respeito ao ritmo de cada criança em aprender há
também a tendência em classificar e encaminhar aquela criança que não atende um padrão de
108

comportamento exigido, classificando a criança inquieta e que não consegue se controlar,


consequentemente não aprende como aquela que “atrapalha os demais”.
Quando a gente pontua alguns casos na escola, embora nós não sejamos, não
somos da área clínica, área pedagógica, mas dá algum indicio a gente já
começa a investigando, falando com a família e direcionando para a clínica.
[...] Esse aluno tem que entrar no contexto dos demais que não tem
dificuldade nenhuma a não ser o ciclo normal de aprendizagem, que você
possa acalmar esse professor para acolher essa dificuldade ou outra
dificuldade qualquer que vier aparecer na sua unidade escolar. E volto a
repetir: foco no ensino aprendizagem de qualidade, independente da inclusão
que for, ou independente da dificuldade de aprendizagem que for. (Juçara)

Quanto à determinação política e econômica das avaliações externas de larga


escala que impõe ritmo acelerado de rendimento escolar, Freitas (2014) afirma que se trata de
um processo instaurado pela disputa pelo controle do processo pedagógico conduzida pelos
neoliberais da educação, e que tal processo traz implicações às avaliações internas da escola

Na luta pelo controle do processo pedagógico das escolas, o Estado é cada


vez mais disputado por forças sociais liberal-conservadoras que procuram
assumir, por meio de avaliações externas, o controle e o fortalecimento dos
processos de avaliação internos da escola (formais e informais) e a partir
destes subordinar as categorias do processo pedagógico a seus interesses,
vale dizer, preservar e aumentar o controle sobre os objetivos, o conteúdo e
até sobre os métodos da escola. A organização do trabalho pedagógico da
sala de aula e da escola ficou cada vez mais padronizada, esvaziando a ação
dos profissionais da educação sobre as categorias do processo pedagógico,
de forma a cercear um possível avanço progressista no interior da escola e
atrelar esta instituição às necessidades da reestruturação produtiva e do
crescimento empresarial. (FREITAS, 2014, p.1092) [Grifos do autor]

A imposição de ritmos acelerados de aprendizagem acaba sendo associada a essa


adequação da instituição escolar de incorporação a metas externas de avaliação e de
padronização. As crianças que “atrapalham” o contexto dos demais são potencialmente
inseridas em um processo de medicalização da vida.
Outro elemento controverso e essencial refere-se às explicações e os porquês da
existência do TDAH. Nesse sentido, Juçara expressa suas suposições:
Eu não sei, eu não sei se essa vida corrida dos pais e hoje em dia muito dos
pais trabalham e estão transferindo a responsabilidade para os avós. Esse
consumismo, dessa vida agitada que todos, todos levam, inclusive a minha
pessoa, aquele metódico. Horário pra isso, horário pra aquilo. Não sei te
responder claramente qual é a causa. Só sei se apresentou o problema, causa,
nós temos que ajudar. (Juçara)
109

As explicações sinalizam um entendimento da origem social do transtorno, que


podem ser das atuais condições concretas de vida, porém diante do discurso hegemônico da
ciência médica que afirma a causa biologizante do TDAH, Juçara recua nas suas reflexões.
Apesar de reconhecerem elementos sociais, o significado é atravessado pelo
discurso biomédico de que não aprender não é normal, atribuindo a existência do transtorno à
origem exclusivamente biológica, sendo, portanto, provocado por uma causa orgânica. Isto é,
não aprender não se constitui como parte do processo educativo. Portanto, conforme o ditame
médico, o não aprender é decorrente de uma patologia.
Na fala de Ceumar, que teve um aluno e sua filha diagnosticados pelo suposto
transtorno, são apresentados elementos da sociedade atual, porém a explicação genética do
transtorno se sobrepõe:

a neuropsicóloga conversou com a gente depois que ela fechou o laudo da


XXXX. É que hoje a gente vive num mundo onde tudo é acelerado, né. E
que muitas vezes a escola talvez não acompanhe toda essa, digamos assim
essa tecnologia, esses alunos tecnológicos. Você imagina, né. Ela falou
assim pra mim: “eles estão aqui no celular, eles estão ouvindo música, eles
estão lendo, eles estão lendo, eles estão assistindo televisão, né. Muitas vezes
a escola não é dessa maneira, né”. E no caso da minha filha que ela falou
também que era genético que meu marido tinha, que os irmãos tinham, eu
provavelmente tive, mas que não era, a gente era taxado de preguiçoso na
época, né. Tanto é que meu marido não conseguiu vencer os estudos, porque
assim, ela não tratou dele, não fez o tratamento com ele, mas pelas sessões
que ela fez com a gente, porque é assim ela fala primeiro com ele, primeiro
comigo, com a XXXXX e depois todo mundo junto, mas que ela achava que
isso já vinha de tempo atrás, e que aí um herda e no caso foi ela, né.
(Ceumar)

A partir desses relatos, entendemos que, quanto às dificuldades da criança em ter


domínio da atenção e comportamento regulado para as atividades de estudo, há uma
compreensão geral de que dificuldades são produzidas socialmente pelo modo de vida atual.
Embora utilize o TDAH como forma de nomear essas dificuldades, afirmando que o não
aprender não é normal, entende as trabalhadoras que há uma relação do social quanto à
existência do transtorno. Juçara deixa claro isso quando afirma que: “Quanto mais os
problemas sociais e familiar que a família apresenta, maior vai ser esses tipos de problema,
então aí a escola, o gestor tem que buscar curso, buscar alternativas e minimizar a situação.”.
As trabalhadoras expressam o entendimento de que vivemos em uma organização
social da vida em sociedade que nos impõe um ritmo de vida acelerado e de diferentes
horários para realização de muitas atividades e que esses são modos de viver uma sociedade
110

hiperativa. Porém, atribuir como sendo as possíveis causas do TDAH não é suficiente para
sustentar a ideia de que o transtorno é determinado socialmente. Incorrem na defesa de que
sua causa é biológica. Ou seja, são os problemas sociais que geram as dificuldades, porém são
nomeadas como um transtorno mental, recaindo a responsabilidade na criança
individualmente.
A pesquisa realizada por Eidt (2014) elucida esse quadro de crescimento de
patologias que medicalizam a vida:
Assim, entende-se que o surgimento e a intensificação de certas patologias
não se explicam apenas pelo fator biológico, mas estão em consonância com
as transformações das relações sociais vigentes em nossa sociedade.
Percebe-se ainda que a ênfase do tratamento é centrada quase que
exclusivamente na medicação.
Essas práticas evidenciam um processo de alienação vigente na própria
ciência, na medida em que alguns pesquisadores e profissionais
desconsideram os múltiplos fatores que tem determinado o surgimento de
novas doenças - ou o aumento vertiginoso de patologias já conhecidas -,
deslocando o foco de análise de questões sociais e econômicas unicamente
para o plano individual e orgânico. (EIDT, 2004, p. 32 e 33)

Nesse sentido o processo de medicalização vem atuando sobre a escolarização,


podendo gerar a desmotivação dos trabalhadores da educação escolar e limitando a escola
quanto a sua função de ensinar e enquanto lugar para estabelecer relações no desenvolvimento
da atenção e regulação da conduta da criança.

6.3.3 Núcleos de significação dos trabalhadores da saúde

Seguindo o mesmo trabalho de análise que constituiu os núcleos dos trabalhadores da


educação, abaixo elencamos os da saúde:

I TDAH caracterizando o comportamento da criança como desvios de aprendizagem

II Do pré-diagnóstico ao diagnóstico

III De hiperativas e olhar “sem foco” ao tratamento medicamentoso


IV A criança que não se comporta, que não se educa
111

I TDAH caracterizando o comportamento da criança como desvios de aprendizagem

Para os trabalhadores da saúde, o conhecimento sobre o TDAH tem diferentes


significados. Jorge e Rita explicam o entendimento sobre o transtorno, expondo dúvidas. Já
Maria e Gal são mais categóricas em afirmar o conhecimento desde a graduação e residência
médica.
Maria, que trabalha em um ambulatório atendendo crianças, destaca que teve
contato com o TDAH no ano 1980, quando ainda era estudante do terceiro ano de medicina e
a convivência com uma professora da faculdade

1980, a partir daí acho foi exatamente a convivência com ela que, que
incentivou muito a fazer neurologia infantil e esse tema tem muito a ver. Aí
depois, quando me formei não tinha residência especifica em neurologia
infantil naquele ano, tinha que fazer ou neurologia ou pediatria, optei por
fazer pediatria pra depois fazer neurologia infantil. Mas assim, desde que eu
comecei a fazer tanto a pediatria como a neurologia infantil, um tema que eu
sempre gostei muito, sempre dei muita palestra sobre o assunto. Lidamos
com professores, com equipe multidisciplinar, criamos eu e a XXXX,
criamos o ambulatório especifico XXXXXXXXXX e acho que tem um
grande número de pacientes que vem devido ao TDAH pelo menos com
suspeita de, né. (Maria)

O primeiro contato que Jorge teve com o transtorno, especificamente com o


diagnóstico de um usuário do serviço de saúde, foi a partir da prática quando fazia
aprimoramento e em atendimento conheceu uma criança com o suposto transtorno.
eu atendia muitas crianças inclusive encaminhadas da neurologia infantil.
Muitas vinham com diagnóstico, né. Inclusive eu nunca me esqueço, eu acho
que foi a única criança que eu, eu acho que eu também, acho que, talvez
tivesse mesmo transtorno de déficit de atenção e hiperatividade. Eu fiquei
muito impressionado, eu fiquei muito penalizado também, era um menino
mais ou menos na faixa dos seus 8, 7, 8 anos de idade. E ele não parava de
falar nenhum momento, ele não parava de falar, ele falava, ele não tinha
escuta nenhuma e ele não conseguia ficar quieto. E ele tinha uma agitação
psicomotora, sabe. E falava, falava, era uma verborragia, falava, falava,
muito, muito e não parava quieto, ele andava em círculo, pulava e logo
depois a XXXXX, psiquiatra, deu um medicamento. Aí, ele sentou no chão e
ficou quieto, mas visivelmente é, como é que eu vou falar, com muito sono,
sob efeito de medicação. Fiquei com muita pena dele. E aí depois, eu pude,
eu falei “Nossa, o quê que essa criança tem, né?” E uma atendente de
enfermagem me falou “Ele tem transtorno de déficit de atenção e
hiperatividade muito grave”. Foi a única criança que eu vi que realmente
tava num grau de agitação muito grande, muito grande. (Jorge)
112

Para Jorge essa foi a criança que ele teve o primeiro contato, quando era estudante
de aprimoramento e isso causou certa impressão, mas não conhecia o diagnóstico, sendo que a
atendente de enfermagem informou o que poderia ser.
Já para Rita foi diferente. Partiu dela o interesse de se informar, compreender
mais, pois havia uma demanda que chegava para ela, conforme ela mesmo disse eram
“pacientes encaminhados das escolas, né”. Ela não trouxe uma data específica de quando
começou pesquisar sobre o transtorno, porém nos informou que fazia um bom tempo que
sentiu necessidade de entender devido à prática de seu trabalho.
Observamos que na área médica, conforme nos relatam as trabalhadoras, a
concepção e conhecimento do transtorno são abordados em cursos formais. Maria desde
quando fazia graduação, em 1980. E para Gal seu contato com a discussão sobre crianças
com comportamento hiperativo como queixa escolar foi no período em que fazia residência
em pediatria.

O meu primeiro contato foi na residência. Eu entrei na residência em 1994.


[...] E então, assim, o primeiro contato foi, foram assim algumas queixas,
mas assim uma ou outra né que, que vinham “ah, é hiperativo”. Mas a gente
não tinha um serviço próprio pra isso, entende? Nós começamos a estudar
porque começaram a cobrar isso da gente, né. Que tem essas crianças aqui?
O quê que vocês vão fazer, né? Então, se a pediatra vem que nem ela veio
hoje, né, e eu não, não sei, né. Eu se eu falo pra ela “não sei o que fazer”, pra
onde ela vai mandar essa criança? Entende? Essa criança tá aqui na região
não tem outro lugar pra ela ir. Eu terminei a residência em 95, final de 97,
comecinho de 98 e tinha uma outra pessoa que tava aqui contratada e ela
teve que ir embora pra, pra outro estado e eu acabei voltando. Como eu tava
morando XXXXXXX, era casada ainda e eu vinha pra cá, trabalhava como
plantonista pra dar uma força e peguei a equipe da neuropediatria que
sempre foi pequena e na época a doutora XXXXXXXX tava vindo pra cá
pra coletar dados do doutorado dela e ela é especialista em dislexia e a gente
começou a perceber no ambulatório. É ambulatório não, desculpa, no pronto-
socorro. A gente começou a receber crianças e tanto do pronto-socorro
quanto da região do hospital, de outros médicos pedindo da pediatria mesmo,
receber crianças que tinham queixas comportamentais e acadêmicas, e/ou
acadêmicas e a gente não tinha onde colocar essas crianças. Então, ocorreu
uma demanda que a neuropediatria não tinha um lugar especifico pra isso,
nós temos o ambulatório de neurologia neonatal, de dor de cabeça só em
criança que é cefaleia infantil, de epilepsia, neurologia geral, hoje nós temos
de autismo, de AVC em crianças e naquela época junto com alguns desses
não tinha de desvio de aprendizagem, então a gente resolveu montar. Então,
foi uma conjugação de fatores, né. A doutora XXXXXXXXXXX vinha,
trazia a equipe, então esse ambulatório sempre foi transdisciplinar, nunca foi
só de médico. As crianças vinham, ao mesmo tempo queixa veio, né, a
demanda veio de umas crianças que a gente não tinha onde colocar essas
crianças e nós juntamos essa equipe na época tinha fono. Então o pessoal,
todos orientandos da doutora XXXXXXXXX que vinham da UNESP de
113

Marilia. É TO, terapia ocupacional, pedagoga e vinha na época psicóloga era


daqui da região mesmo. (Gal)

Essa trabalhadora nos explica que foi a partir de uma pesquisa de doutorado que
teve maior contato com o tema da dificuldade de aprendizagem e que precisava dar uma
resposta a essa demanda de trabalho que chegava como queixas de aprendizagem escolar e de
comportamento de crianças no pronto-socorro do hospital. Acredita que atualmente as
crianças encaminhadas com queixas escolares são melhores atendidas, em função da criação
de um ambulatório específico para as dificuldades de aprendizagem.
O período marcado pelas trabalhadoras, anos de 1980 e 1990, como sendo o
primeiro contato das trabalhadoras do campo médico com o TDAH é discutido por Caliman
(2008). O autor coloca como foi que nessas décadas “a interpretação neurobiológica do
transtorno tornou-se amplamente aceita” (p. 560), devido aos investimentos em pesquisas na
saúde mental realizadas pelo National Institute of Mental Health (NIMH), dos EUA,
associando o transtorno com um fator de risco social que afetava a segurança: “Mais do que
nunca, os estudos sobre a desordem da atenção e do controle do comportamento e a pesquisa
cerebral estavam conectados”. Se a década de 1980 demarca a publicação do DSM em sua 3ª.
versão, a de 1990 é denominada de “década do cérebro”, pela ênfase biológica nos estudos
das doenças mentais, quando temos também a publicação da 4ª. versão do DSM (CALIMAN,
2008).
Esses elementos históricos são trazidos porque interpretamos como sendo essa
possível transposição incorporada aos currículos dos cursos de medicina no Brasil, tanto na
graduação quanto na residência. Esses dados nos fazem pensar sobre a relação histórica do
conhecimento sobre o transtorno e dos cursos e a demanda de trabalho informada pelas
médicas. Nesse sentido Maria nos explica qual é o seu entendimento de TDAH:
Ele é uma doença que tem uma base orgânica, é neuropsicoendocrino, vamos
dizer assim, né. É uma doença ou um jeito do cérebro trabalhar tem uma
base orgânica hereditária, que é uma alteração de neurotransmissores ao
nível da região frontal e pré-frontal. E nessa área, eu costumo brincar, essa
nossa área é nossa área de disconfiomêtro. Ou seja, a pessoa que tem um
desbalanço de neurotransmissores, de serotonina e dopamina principalmente
nessa área tem dificuldade em esperar sua vez, em controlar impulsividade,
em controlar o comportamento hipercinético, em ter uma atenção focada, em
se colocar no lugar do outro, esperar sua vez. Falam demais, porque não têm
esse freio inibitório que é um desbalanço de neurotransmissores. (Maria)
114

Nesse mesmo raciocínio de origem biológica do transtorno, Gal nos explica sua
concepção, porém de modo correlacionado:
É uma condição neurobiológica, neurogenética, não é uma doença. Não é
uma coisa: “Ah tenho pneumonia, faço raios-X, tomo antibiótico. Aí eu faço
de novo, eu não tenho mais”, entende? Não é isso, isso é genética, esse é o
transtorno, tá. As crianças com hiperatividade e com déficit de atenção, aí eu
acho que existe por mais motivos. Como eu disse pra você tem criança que
tem apneia do sono. Uma criança com depressão, ela pode ter hiperatividade
e déficit de atenção, a criança com a ansiedade aumentada. Criança com
anemia pode ter déficit de atenção, a criança com hipotireoidismo, a criança
com uma síndrome genética outra. Mil coisas, milhões podem dar, se eu
pego uma criança superdotada que tem, por exemplo, 10 anos que tem o QI
de 12, 13 anos né, tá inserida numa classe de 10 anos e a parte emocional
dela é de 5, 6, olha, olha o conflito que isso pode gerar. Ela tá numa classe,
vamos dizer assim, numa seriação que não leva em conta nem a parte
emocional, nem a parte intelectual dela, os conflitos vão acontecer. Quase
todos os superdotados que eu recebi aqui foram encaminhados como se eles
fossem TDAH, quase não, todos. E eu não tenho nenhum, aliás, eu tenho
uma criança que a professora encaminhou dizendo que era superdotada. E
ela não era. O resto, todos os que fizeram parte do meu mestrado que foram
encaminhados, foram encaminhados como TDAH. (Gal)

Também considerando outras possibilidades em suas observações, Rita, apresenta


sua explicação do transtorno e que, segundo ela, esse não se refere apenas ao quadro clínico:
o transtorno é um leque de possibilidades. A gente não conseguiu ainda
mapear, né, por exemplo, uma dislexia você faz um diagnóstico difícil. Se
você tem o diagnóstico você sabe como trabalhar. Um transtorno é mais,
acho que é muito mais, assim, complicado e complexo. E o que você vai
trabalhar, né? Você sabe que tem essa dificuldade, mas onde, né? Vamos
mapear o cérebro dessa criança? Tá, você mapeou, você tira que tem alguma
coisa aqui que sugere que tem um pontinho aqui no cérebro, tal. Tá, mas e
daí? O quê que nós vamos fazer com isso? Acho que ai é nossa grande
questão.

Na visão de Rita ao esclarecer seu entendimento sobre o transtorno, observamos


mais questões. A trabalhadora reconhece a existência do mesmo, mas nos parece que quer
refletir mais do que apresentar uma concepção categórica. Isso pode ser visto ao referir sobre
o transtorno como “complicado”, “complexo”.
Na revisão bibliográfica que realizamos sobre o TDAH encontramos estudos
críticos que discutem nesse mesmo sentido. Rodrigues e Rossi (2009) colocam o transtorno
como sendo “de explicação difícil” e Baldini e Leite (2006) e Eidt (2004) como um transtorno
controverso.
115

II Do pré-diagnóstico ao diagnóstico

Os trabalhadores nos relatam que os encaminhamentos por queixas escolares


chegam ao serviço de saúde por meio de avaliações produzidas na escola, conforme relata
Maria:
A maior parte vem encaminhado por queixa do professor. A maior parte é
queixa do professor, enquanto em casa parece que os pais conseguem
controlar um pouco mais ou até assim achar “Ah, ele é desse jeito mesmo,
tal.”. A coisa vai complicar mesmo na vida escolar e aí começa
principalmente a forma hipercinética que é, a criança que é hiperativa esse
vem logo porque ele dá trabalho na escola. O que é do desatento vai ficar lá
no mundo da lua dele, mas demora mais pra chegar pra gente.
O que dá mais trabalho, mais hiperativo. E às vezes, vem assim como te
disse, é um mundo de possibilidades que os sintomas são muito parecidos.
Então, às vezes já vem “Ah eu to mandando porque eu acho que ele tem o
Transtorno de Déficit de Atenção e Hiperatividade”. Na verdade ele tem
outra coisa totalmente diferente, então cabe à equipe fazer essa limpeza,
esse cuidar para poder aí dar o tratamento específico. (Maria)

Quanto à faixa etária das crianças que chegam ao serviço de saúde, Maria
esclarece que é a mesma iniciada na vida escolar.

Olha o começo de vida escolar eu acho que é mais comum, seis anos, sete
anos é mais comum. Mas eu tenho criança que chega bem precoce, três anos,
quatro anos já ta assim, e alguns que chegam já no final da adolescência que
a gente atende até 18, às vezes eu atendo até 20, dependendo da situação e
passou a vida inteira no sofrimento muito grande, sem ter esse diagnóstico,
sem entender o que aconteceu com ele, indo mal, sendo considerado como
burro ou como mal-educado, que na verdade ele tinha uma incompetência a
aceitar certas regras. (Maria)

Em relação aos encaminhamentos escolares, na visão do psicólogo há uma


tendência da escola em supor que a criança tem o TDAH, sugerindo essa informação no
encaminhamento para a saúde, destacando o comportamento desatento e hiperativo criança.

O que eu percebo é que tem... a escola, as escolas tendem a


hiperdiagnosticar, às vezes, até mais do que os médicos. Então, assim, pras
professoras rotularem o aluno que é mais agitado, que é mais inquieto de
hiperativo é muito fácil, muito fácil. As próprias mães também, têm uma
facilidade grande em dizer “ah eu acho que o meu filho é hiperativo”.
Com esse pré-diagnóstico, vamos dizer assim? Sim. Só que 95% dos casos
que eu pego aqui, que vem pra mim, que vem com diagnóstico do transtorno
de déficit de atenção, eu não considero como tal. Eu vejo que existe uma,
116

uma questão sim de agitação, uma dificuldade na atenção. E qual uma coisa
que eu vejo que é muito interessante que acontece, a mãe chega e fala assim
“olha pro videogame ele se concentra que é uma beleza, pras outras coisas
não”. Então, com atividades que são prazerosas ele consegue manter a
atenção, ele consegue se concentrar, pra atividades que não são tão
prazerosas, que frustram um pouco, que ele ta lidando de repente com uma
matéria com um conteúdo que ele não domina muito, aí ele já não presta a
atenção, então não é transtorno de déficit de atenção. Então eu me baseio
também muito por isso e também na clínica, né. Às vezes, a criança que vem
com o diagnóstico de transtorno de déficit de atenção, com hiperatividade ou
sem, que tem os dois, tem a presença de hiperatividade ou pode ter a
ausência dela, de repente, por exemplo. Num grupo de crianças começa a
brincar com uma brincadeira, por exemplo, um jogo que exige atenção, que
exige concentração e consegue completar a brincadeira até o final ou que
chega, senta, na mesa faz um desenho, consegue permanecer sentada,
consegue estruturar um desenho na folha. Então, por todos esses dados aí
você vai vendo que a criança não tem uma hiperatividade, déficit atenção. Já
aconteceu XXXXX, de eu ter crianças, receber crianças realmente
hiperativas? Já. Mas dá pra contar no dedo de uma mão. (Jorge)

Nos sete anos de trabalho realizado por Jorge no serviço de saúde mental da
criança, ele contabiliza ter tido menos de cinco crianças com hiperatividade. Quanto a
demanda de trabalho, Rita relata que as crianças que chegam ao serviço geralmente vêm
encaminhadas das escolas, umas com diagnóstico que ainda estão sendo realizados e outros já
concluídos.
Geralmente chegam através das escolas. As professoras observam e a criança
não rende, dificuldade no aprendizado, né. Algumas com comprometimento
na fala né, que chega antes, no período pré, né. E que a gente observa que
pode ter relação, essas questões, fala e atenção. Dificuldade escolar, acho
que é uma coisa interligada sim. (Rita)

Essa relação entre as funções psíquicas, fala e atenção, é destacada por Rita, no
entanto, não houve um aprofundamento maior sobre essas funções, interrelacionando com
implicações para o desenvolvimento da aprendizagem. Porém ela faz um destaque. Nesse
sentido, é importante retomarmos a interfuncionalidade dessas funções psíquicas no
desenvolvimento da criança. E conforme discutido anteriormente, retomamos brevemente
que, a atenção voluntária, começa a ser organizada após um ano de idade e tem por
característica a seleção de informações da atividade consciente. Por essa razão os processos
de linguagem desempenham papel essencial na atenção do homem, ou seja, para a
aprendizagem escolar, é o que nos ensina os postulados em Luria (1991) e em Vygotski
(1931/1995; 1934/2010).
117

Apesar de Rita entender que a relação entre a atenção e a fala deva ser
considerada como importante para a aprendizagem da criança, Maria nos informou que o
diagnóstico do transtorno é realizado pelo meio clínico com aplicação de testes e observação
de sintomas:
Então, quando nós conseguimos chegar nesse diagnóstico, aí sim, isso é um
transtorno, quer dizer, isso realmente é uma patologia. O comportamento
hipercinético e desatento é um, como se você contasse que a criança tem
febre, você pode ter esse mesmo comportamento por várias condições. Você
pode ter febre, porque você tem gripe ou você pode ter febre, porque você
tem meningite. Então, pode ser um transtorno do sono, pode ser uma
epilepsia que não está sendo vista e malcuidada, pode ser um problema de
diabetes, de tireóide, de anemia. Um problema exclusivamente emocional e
comportamental dessa criança ou do ambiente familiar e vai levar a uma
sintomatologia parecida, uma superdotação. Então, pra gente chegar à ideia
de que é um transtorno, que realmente é um transtorno de déficit de atenção
e hiperatividade, eu preciso de exames orgânicos e de avaliações funcionais.
Eu preciso do neuropsicólogo, de uma testagem desde do QI, da atenção,
memória e tudo mais, só depois de tudo isso é que nós fechamos esse
diagnóstico. E aí, eu vou discutir com a família e com a escola qual que é a
melhor conduta pra esse paciente. (Maria)

Mesmo no campo biomédico, conforme aponta Maria, são muitas as


possibilidades de diagnósticos, pois são vários os problemas de saúde que podem se
manifestar em desatenção e comportamento hiperativo.
Mas a observação do comportamento da criança diagnosticada com TDAH
também é destacada por Rita da seguinte forma:
O paciente em terapia, uma criança que você percebe que o olhar não fixa
muito pouco tempo né na pessoa. Ela fixa um pouquinho e já tem interesse
maior em outros objetos assim né. Ela tem vontade, você percebe que a
criança até luta né, mas o desvio do olhar é muito intenso, é muito marcante
assim, com interesse em outras coisas, outras questões. (Rita)

Para Maria o início da investigação sobre o transtorno se dá por exames e a etapa


seguinte requer um profissional de psicologia com formação em neuropsicologia que realiza a
aplicação de testes, seguindo posteriormente pela busca de informações junto a escola.
peço um hemograma pra ver se tem anemia, se não tem algum problema
infeccioso, se alguma alteração dessa área, depois eu peço uma avaliação de
tireóide, T4 livre, TSH. Basicamente, eu começo por aí a minha
investigação. Uma glicemia em jejum, pra ver se não tem diabetes que pode
estar influindo do ponto de vista orgânico, e ao mesmo tempo, eu já
encaminho pra uma avaliação neuropsicológica que é um psicólogo que fez
uma especialização na área neurológica e só depois que a gente fecha o
diagnóstico.
Primeiro investigo junto com a equipe multiprofissional, transdisciplinar e
depois a gente vai sentar e discutir e mando um questionário pra escola
118

também, que a opinião da escola, da família são questionários já validados


aqui no Brasil né, que a gente pode mandar. Mas eu não me baseio
exclusivamente no questionário, tem que se basear em todo o resto. (Maria)

Referente à avaliação feita pela equipe multiprofissional para concluir o


diagnóstico perguntamos quanto tempo leva essa avaliação:

Um mês, por aí, mais ou menos um mês porque são várias sessões da
psicologia, da neuropsicologia. A gente não pode cansar a criança em termos
de testagem. Então, um dia testa uma coisa, outro dia testa outra, tal. E no
serviço público, a gente faz um fluxograma disso, mas é um pouco
demorado. Os exames físicos, orgânicos, são mais rápidos. Ao mesmo tempo
eu mando os questionários pra família, escola, culto religioso, se tem alguma
coisa. Todos os ambientes que a criança frequenta, porque se ela tem um
comportamento desatento ou desatento e hipercinético, ela tem que ser a
mesma em todos os ambientes. Se ela tem isso só na escola, é porque ela ta
com problema na escola, entendeu? Por isso tem que fazer isso. Tem que
fazer os exames orgânicos como eu te falei pra descartar causas orgânicas,
outras né. E a avaliação neouropsicológica que é uma avaliação funcional. E
aí, se a gente pensar, por exemplo, “ah tem uma concorrência com o... com
uma possível dislexia”, ai eu peço pro fono especialista na área neurológica
avaliar essa criança. (Maria)

Neste sentido, Gal explica o trabalho realizado com a equipe multiprofissional,


embora relate que tenha dificuldades quanto a ausência de alguns profissionais:
em relação ao atendimento neuropsicológico no ambulatório, que nesse meio
tempo as duas psicólogas que, que mais ta aqui é a XXXXX, né. Ela fez o
mestrado, ela fez, prestou a prova, fez o curso e prestou a prova pra
neuropsicologia, né. A outra também, então estamos com duas
neuropsicólogas, uma que tem o mestrado e com uma psicóloga e outras
duas que estão fazendo estágio com elas, né. Porque eu não sou psicóloga,
não posso orientar, não posso orientar pedagogo, entende? Porque eu não
sou pedagoga, né? Eu posso assim estimular a transdisciplinaridade né, de
outras disciplinas, mas eu não posso orientar como que a pedagoga vai fazer,
por exemplo, a escala piagetiana, porque eu não sou pedagoga né. E aí, nós,
assim nós fizemos isso. Que nós percebemos aqui que mesmo tendo toda
essa estrutura que ficou muito boa e depois ficou de um ano e meio ficou
sem e agora ta voltando a ter a fono de novo, né pelo menos sem psicólogo e
fono não dá, sabe, não tem condições. É muito ruim sem a TO e sem a
pedagoga né, mas pelo menos eu consigo direcionar bem o diagnóstico né, a
avaliação agora sem psicóloga, sem fono, não dá. Quantas crianças nós
fizemos esse ano e meio que ficou sem fono só com a psicóloga, sinais
sugestivos de dislexia, eu não fecho o laudo, porque eu não tenho a avaliação
da fono né, não é certo. Nem pelo DSM eu não devo fazer isso né, como
médica. Então a gente assim viu que isso funcionava aqui dentro né, mas eu
só, eu só vi o que funcionava mesmo dentro da educação e mesmo assim
desde 2000 né, que seja 98, 2000 que eu me sinto assim apagando incêndio.
119

As nossas observações quanto a fala de Gal remetem também a uma dinâmica de


trabalho intensificado e suas atividades são impactadas por falta de profissionais para
realização do diagnóstico. E ainda que não tenha todos os profissionais para a equipe
multidisciplinar, ela consegue direcionar o diagnóstico, mas a participação do psicólogo e do
fonoaudiólogo, segundo ela, é fundamental.
Observamos que esses profissionais, citados por ela, responsáveis para realizar o
diagnóstico no ambulatório não são os mesmos que realizam o tratamento das crianças na
unidade de saúde. Essa contradição é expressa na fala do Jorge quando ele faz questionamento
do número elevado de crianças diagnosticadas com TDAH por médicos. E considera apenas
5% de crianças portadoras do transtorno, e ressalta que a escola “hiperdiagnostica” muito
mais que os médicos.
E diante desses dos casos com crianças que chegam encaminhadas com suposição
de ocorrência do transtorno, Gal levanta uma demanda de uma assistência preventiva:

Nós não temos uma, uma avalição, uma, um atendimento, uma assistência é,
preventiva, entende? A criança vem pra mim muito tarde né, ela vem já pra
mim não, pra nossa equipe, pro ambulatório muito tarde pra tudo, a nossa
cultura é muito ruim, a formação dos pais é ruim no sentido que eles não têm
uma cultura de que, por exemplo, a criança ta, ta tendo tique “ah isso é
frescura”, a criança é hiperativa “ah então põe fazer futebol que passa” e
quando chega aqui já é tarde, a criança não quer, não faz ler e escrever
porque não quer né então a gente precisa modificar isso, a gente precisa vir
da raiz, do cerne, a gente precisa modificar muito isso, isso ta gritante pro
Brasil.

Apesar do destaque a necessidade de orientação e formação das famílias da


sociedade como um todo na prevenção do transtorno, sua fala se refere a aprendizagem dando
ênfase ao biológico para que assim as crianças recebam o tratamento antecipado:

Então, assim, apesar do ambulatório ter esse formato e é o que dá pra fazer
aqui que é legal. Quando a gente trabalha na educação é que ai você vê, que
você consegue chegar no professor, orientar o professor, explicar o que é
Tourette, explicar o que é uma criança que pode ter um transtorno obsessivo
compulsivo, né, que ta acompanhando com o psiquiatra, mas que precisa que
a escola também acolha, que entenda, que ampare, explicar o que é uma
dislexia e como que vai ensinar, porque é muito fácil falar assim pro
professor “essa criança tem um transtorno de aprendizagem ou essa criança
tem um retardo mental leve, você vai ensinar do que ela sabe pra frente e
respeitar o ritmo dela de aprendizado e compará-la ela nesse ano, com ela no
ano passado, somente. Você não vai comparar ela com mais ninguém porque
o importante é o que ela ganhou”. É muito fácil falar isso né? Ai você
professor, você pega a criança e fala assim “o que é que ela sabe pra eu partir
dali pra frente? Qual que é o ritmo dela?” entende? Então coisas que até na
120

tua formação mesmo como professora você deveria ter isso já, você não tem.
Então, assim, é, fica muito cômodo pra uma equipe avaliadora se a gente
tiver aqui né nos portões da universidade né te mandando um laudo
bonitinho escrito ali, mas e aí, o quê que você tem que fazer mesmo né, que
ele não ta ali, né, porque não é uma pedagoga que ta te orientando. Entende?
Então com isso a gente só conseguiu ver que funcionava quando a equipe
toda trabalha em conjunto com a educação, dentro da educação. [...] a gente
faz a mesma avaliação das crianças com laudos. Ai a mãe recebe o laudo e a
gente é... pega autorização dela e a gente vai dar essa devolutiva pro
professor, aí a gente consegue fazer essa diferença. Paralelo a isso, por
exemplo, o fono vai orientar o professor “olha essa criança você precisa
trabalhar daqui: correspondência letra, som, você vai trabalhar” claro que a
fono não vai ensinar o que o professor tem que fazer, é obvio. Nem a
psicóloga, mas ele vai dizer o meio, entende? Então assim, ai a gente,
quando a mãe autoriza, ela assina o laudo, a gente marca com o professor e
gente conversa sobre o laudo e sobre as estratégias com o professor de cada
criança que a gente avaliou. (Gal)

A necessidade de vários olhares e profissionais para discutir as dificuldades de


aprendizagem é compreendida em nosso estudo como um desafio pedagógico, inclusive para
a discussão de um diagnóstico amplo, porém a ênfase no biológico restringe a exclusividade
do diagnóstico médico, o que Tesser (2006b) discute que o aspecto preventivo da concepção
biomédica tem como papel desconsiderar outras referencias filosóficas e se sobrepondo frente
as outras áreas.
Leite (2015) ao discutir a educação da atenção da criança apresenta alguns
referenciais de como educar crianças na escola, citando outros autores de perspectiva crítica à
sociedade capitalista, como o pedagogo, ucraniano, Anton Makarenko (1888-1939), em que
aborda que o ensino escolar e a educação familiar deveriam promover, por exemplo, o
autocontrole das crianças.
O papel determinante do diagnóstico médico no tratamento de usuários da saúde é
histórico e conforme abordagem de Saraceno, Asioli e Tognoni (1994) na história da
psiquiatria o diagnóstico é uma agregação de sintomas e tem um papel fundamental como nas
demais especialidades médicas. As informações obtidas deveriam ser úteis à estratégia de
intervenção e “prever o desenvolvimento da enfermidade” (p.13). Porém, segundo esses
autores, a exclusividade do diagnóstico e a clínica reduzem a compreensão da enfermidade do
sujeito. Nesse sentido, a compreensão da criança e suas dificuldades de aprendizagem estão
submetidas apenas a observação clinica que podem responsabilizar a criança em não aprender
localizando em seu cérebro uma falha orgânica.
121

III De hiperativas e olhar “sem foco” ao tratamento medicamentoso

Quanto ao tratamento medicamentoso, Maria nos relatou como ocorre a escolha


na utilização de alguns desses medicamentos através de tentativa e teste:
Porque pra cada paciente, talvez, ele tem que ter o perfil dele, uma coisa que
deve ser exclusivamente dele. Então eu começo, por exemplo, com
metilfenidato, aí se... [Comercialmente como chama?] O metilfenidato você
tem como Ritalina, que tem uma meia vida rápida, ele dura quatro, cinco
horas. Depois, eu digo que a carruagem vira abóbora de novo, tem a Ritalina
LA que ela vai durar 10 horas, mas ela tem, ela sobe tem um platô e depois
ela cai tá, assim. Tem o Concerta que também é o metilfenidato e ele dura
10, 12 horas, mas no mesmo nível sanguíneo, certo? Essa é a linha do
metilfenidato. A gente pode usar também um antidepressivo tricíclico que é
o Imipramina, que foi usado nos anos 50 pra tuberculose, pra paciente com
tuberculose e depressão e se descobriu que como efeito colateral você tinha
uma atenção melhor. Você tinha um desempenho melhor desses pacientes,
então desde então é usado pra transtornos de atenção, de comportamento
hipercinético, tal. E agora, no Brasil, a gente tem usado uma droga muito
boa, que já é usado fora há bastante tempo, mas que tá no Brasil há poucos
anos que chama Venvanse, o nome do sal é dimesilato de lisdexafetamina. E
o Venvanse também tem essa atuação de 12 horas, 10 horas e você dá de
manhã e o dia inteiro fica com essa medicação. Aí, quando isso não dá certo
você tem que ver outras coisas associadas, porque como transtorno em geral
ele tem muitas doenças juntas né, que são as comorbidades ou concorrências.
Às vezes, essas concorrências, elas são mais fortes até do que o eixo
principal que é o déficit de atenção e hiperatividade, por exemplo, o tique ou
o TOC ou a ansiedade ou a depressão. E aí, eu tenho que tratar melhor isso,
com medicamento específico pra isso, do que propriamente o TDAH.

Para Rita o uso do medicamento no momento da terapia fonoaudiológica é


desnecessário. Ela exemplifica relatando o atendimento que realiza com uma criança de sete
anos com dificuldade de aprendizagem:
um paciente com muita dificuldade. Assim, em automatizar os fonemas que
eu trabalho, né. Então peguei esse paciente há anos atrás.
Ele ta agora com sete anos, pra oito. E ele tinha algumas trocas, foram
trabalhadas mas ele, ele repete o que você fala, mas ele não consegue
automatizar, ele não sai dessa fase né. A gente ta tentando trabalhar, ta
tentando pra ele, né. Passa na XXXXX, faz psicologia.
Eu, eu sinceramente pra mim aqui dentro ele não precisa. Eu não via assim
sabe, eu não entraria com medicamento, não sei como ele é na escola né, os
professores eles já ficam desesperados quando né, mas aqui...

Quanto à caracterização do transtorno, Jorge nos relata uma situação em


vivenciou com a criança supondo ocorrer nela o transtorno quando realizava grupo
psicoterapêutico:
122

Um comportamento quase que constante de agitação. Dificuldade de


permanecer sentado. Dificuldade de focar o olhar num lugar. Todo som
externo, por exemplo, se ele tá aqui na sala e eu to conversando com ele, ele
consegue manter a atenção por pouquíssimo tempo, se aparece alguém
conversando lá fora ele desfoca, se aparece alguém conversando do outro
lado da porta ele vira a cara querendo saber. Então, qualquer som, estímulo
externo é mais do que suficiente pra desviar o foco. Toda brincadeira que
inicia não termina. Uma dificuldade muito grande de manter, de se manter
naquela brincadeira, se começa a pintar desenho não termina. Tendência a
fazer as coisas muito rápidas, muito rápido e muito movimento motor. Então
se tá, não consegue ficar sentado. Então, tem que mexer o pé, faz assim na
mesa, batendo, ou fica, inspira e expira, e fica assim, quando não fica
andando, então senta um pouquinho e levanta, abre a porta tem que andar um
pouquinho lá fora.
Tem uma preferência grande, gritante por atividades corpóreas, jogo de bola,
pula corda. Tinha um menino que eu atendi, XXXX, ele tinha 11 anos. Ele
só brincava com brincadeira de bola, de corda, de espada e eu via no olhar
dele, ele não aguentava mais. Ele suando, teve uma vez, eu fiquei com tanta
pena dele, tanta pena dele XXXX, que ele tava tão agitado e ele tinha
brincado. O grupo já tava no final, todo mundo tava cansado tava um dia
quente e o ventilador não tava dando conta e ele não conseguia parar. Ele
começou a chorar, a chorar né e se ele vier, quando ele não vinha com
remédio era muito difícil, muito difícil, quando ele vinha.
Um sofrimento muito grande. Quando ele vinha medicado o comportamento
era muito diferente. Era mais organizado, ainda um pouco mais agitado,
mais impaciente, assim intolerância né, mas assim um grau bem menor, bem
menor.

Mesmo nas atividades em que criança tinha interesse, Jorge observou sofrimento
intenso, em que ela chorou e era muito agitada. Uma situação difícil pra ele, avaliando nesse
caso a prescrição medicamentosa como auxilio do tratamento psicoterápico.
Kamers (2013) chama atenção quanto a transformar os sofrimentos da infância
que vem sendo interpretados como um transtorno neurobiológico e que isso pode ocasionar
em uma investida de silenciamento de dimensão psíquica e histórica. Ou seja, a causa dos
problemas que tem levado ao sofrimento da criança não é revelada, não é compreendida.
Apesar de ter relatado essa situação cuja criança recebeu tratamento
medicamentoso e psicoterápico de grupo por ter o diagnóstico de TDAH, Jorge nos informou
que a porcentagem de crianças diagnosticadas é baixa, ou seja, apenas 5% dos casos que
chegam ao serviço ele considera o diagnóstico desse transtorno. E quanto ao uso do
medicamento no tratamento do TDAH, Jorge afirma que isso precisa ser repensado, pois ele
vê com preocupação o crescimento do tratamento medicamentoso:

É muito grave. Então, assim, o quê que acaba acontecendo quando a criança
não tem indicação ela não vai responder, não vai responder, porque a
questão é outra. Quando há a indicação você percebe a mudança, só que o
123

efeito da ritalina ela dura muito pouco tempo, né. Hoje em dia tem
medicamentos muito mais avançados, caríssimos, que os efeitos colaterais
são mínimos e a eficácia é maior, que realmente você percebe. Mas são
medicamentos que você não vai ficar dando pra vida toda, tem muito critério
pra fazer isso. O que não há, infelizmente. Não tem. Que existe uma
hipermedicalização e um hiperdiagnóstico, um diagnóstico que se banalizou
e é uma questão séria, complexa. E eu acho que, a gente ta lidando com
vidas né, que vão se tornar adolescentes, adultos e aí? Como é que vai ficar?
(Jorge)

Entendemos que a abordagem de Jorge é de ponderação e reflexão, quanto a


prioridade e crescimento do tratamento medicamentoso. Sua defesa não é contrária a
medicação, mas ele nos convida a refletir sobre o uso abusivo de medicamento que incorre na
medicalização da vida. Os elementos apresentados por ele são extraídos da sua percepção e
experiência mediadora da psicoterapia em atendimentos individuais e em grupos com crianças
diagnosticadas com suposto transtorno.
Nesse sentido compreendemos que sua advertência se refere ao desenvolvimento
das funções psíquicas das crianças e os aspectos emocionais e mediações que constituem o
psiquismo infantil. Portanto, o uso indiscriminado e abusivo, citado por ele de
“hipermedicalização”, pode implicar e afetar de modo adverso o desenvolvimento psíquico
das crianças.
A prescrição medicamentosa é a principal opção no tratamento das crianças
diagnosticadas pelo TDAH, embora seja previsto o tratamento com psicoterapia e o
aconselhamento familiar (BARBARINI, 2010; CARVALHO; BRANT; MELO, 2014).

IV A criança que não se comporta, que não se educa

Nas perguntas aos trabalhadores não mencionamos o tempo histórico como um


elemento a ser refletido sobre TDAH e nos relatos sobre as possíveis causas e a origem acerca
desse transtorno são feitas observações que demarcam relações do transtorno no passado e no
presente, correspondendo com o modo de como se educava no passado e como se educa hoje.
Rita não fez afirmação pontual quanto à existência do transtorno, mas fez
comparação do modo como se educava no passado e sobre o papel da fala como indicador do
desenvolvimento da criança:
Sempre existiu, mas a gente tá diagnosticando mais, tá trazendo mais à tona
esse problema, que antigamente as crianças desistiam, por exemplo, de
escola ou apanhavam muito dos pais ou eram as professoras mais rígidas.
124

Tinham uma, né pra fala, né. É, ah não falou até cinco anos, mas vai falar e
não é bem assim que a gente vem acompanhando né, que enfim...
Ela dá muito sinais, não é determinante. A linguagem oral, a expressão, né,
você vai num desenvolvimento.
[...] É um processo, vamos dizer assim, é um processo, né? O início da fala,
o desenvolvimento, leitura e escrita, tudo um processo, tá tudo interligado.
Quando alguma coisa não vai bem, tipo algum problema escolar de
aprendizado, não aparece do nada ele já dá sinais lá atrás e um dos sinais é a
linguagem, a linguagem oral, entendeu? Criança que demora pra falar,
criança que tem um distúrbio articulatório que você trabalha, trabalha,
trabalha, trabalha, difícil, né?! A gente já fica de olho nessa criança quando
entrar na escola já é um dado, entendeu? (Rita)

Maria, por sua vez, expõe que o TDAH não é um fenômeno do presente, mas sim
um transtorno citado em publicações do sec. XIX:
Olha as pessoas pensam que é uma coisa atual, uma invenção atual. Na
verdade, a primeira, quando eu dou muito essa aula, palestra, congressos
sobre isso, a primeira citação que eu encontrei foi de 1860.
Exatamente, hoje é descrito um quadro, acho que é uma publicação austríaca
que é descrito uma poesia dentro da discussão de um quadro de um caso
clínico e você lendo aquela poesia você fala “essa criança é hiperativa”, se
ele tinha um transtorno de déficit de atenção ou não, não sabemos, mas com
certeza essa criança é hiperativa. Então isso é uma coisa que existe desde
que a humanidade é humanidade, o que que aconteceu? Aconteceu que as
exigências da sociedade, das escolas fizeram com que a gente tivesse mais
gatilhos emocionais pra essas coisas, pra desencadear determinadas,
determinados transtornos e que hoje eles são mais valorizados porque se
preocupam mais, você vê mais as crianças de uma forma mais específica.
Não é uma invenção atual.
[...]
E historicamente, já que você ta perguntando, você começa com uma criança
que é descrita como uma criança que não se comporta, uma criança que não
se educa né e isso lá em 1800 e pouco. E aí, isso depois, isso se torna assim
como, como um quadro de sequelas mínimas, porque se acreditava na
neurologia que você poderia ter, por exemplo, algum problema trauma
craniano, um problema de nascimento alguma coisa. E aí, você se torna um
encefalopata, que era uma sequela grande, uma paralisia cerebral, mas
poderia ser só uma sequela mínima, que é, por exemplo, um déficit de
atenção, uma hiperatividade, se andando um pouco mais eles vão descobrir
assim: Ah, não é só a criança que sofreu algum problema de parto ou algum
problema de infecção ou seja lá o que for, a criança, às vezes não tem nada
disso no seu antecedente e tem esse comportamento. Então, começa a ser
definido como distúrbio do déficit de atenção e foi separado em algum
momento distúrbio de déficit de atenção com hiperatividade como uma
doença a parte do distúrbio de atenção sem hiperatividade e só depois. Agora
com o CID, com o DSM IV que começa a ideia do transtorno. Então,
chamar de transtorno aquilo que é orgânico, é bem recente, o nome é
recente. Aí, no início se achava que ocorria só com criança e depois dois
psiquiatras, isso final dos anos 90, eles diagnosticaram esse mesmo
transtorno neles mesmo. E aí se começou a ver que existe em adulto e hoje a
gente sabe o seguinte, que 60% das crianças que tem déficit de atenção com
hiperatividade vão continuar com esse comportamento na vida adulta. Ou
125

seja, 40% na adolescência por alterações funcionais do cérebro desaparece


o quadro. Não hormonais, funcionais do cérebro desaparece o quadro, mas
60% continua, muda o perfil em vez dele perder o material escolar ele perde
documento, perde celular, perde a chave do carro, esquece que ele tinha uma
reunião com o chefe, esquece o tempo. Então, muda o perfil, mas continua
na vida adulta. (Maria) [Grifos nossos]

A explicação da médica da evolução histórica do transtorno associando a


determinação biológica, a ocorrência em crianças, adolescentes e adultos se refere a
compreensão de que o desenvolvimento humano é naturalizado, segundo a visão biomédica.
Contrapondo-se a essa visão biologizante da vida, VYGOTSKI (1931/1995)
compreende que os mecanismos herdados biologicamente pelo nascimento aos poucos vão
cedendo espaço às determinações sociais, as funções dependem dessa estrutura orgânica, mas
gradualmente vão sendo determinadas pelo social.
O domínio da atenção e a regulação da conduta, portanto, são funções psíquicas
que são determinadas socialmente. A ideia de que há um transtorno, supostamente pela falta
de atenção ou comportamento hiperativo, de acordo com a perspectiva da Escola de Vigotski
será superado por meio de mediações dadas pelas relações e objetos.
No entanto por meio das ordens do campo biomédico e da prescrição
medicamentosa, o controle do comportamento e a busca atentiva são naturalizados e as
dificuldades de focar a atenção nas atividades de estudo, combinadas à atitude agitada e
inquieta da criança, são enquadradas em categorias diagnósticas.
A interpretação biomédica explica os aspectos do viver como determinação
natural, em que crianças e adolescentes são transformados em categorias patológicas quando
não alcançam os padrões ditados socialmente de comportamento e educacional. (LEMOS;
GALINDO; RODRIGUES, 2014).
Na mesma linha de raciocínio, Gal compreende que a origem do transtorno é
genética “uma condição neurobiológica, neurogenética”:
existe porque existem os genes pra isso, né. Eu tenho o gene, a predisposição
ambiental. Eu tenho as duas coisas e isso se enquadra, então isso é um
transtorno, isso existe porque existe gente loira, porque existe dislexia,
porque existe síndrome epilética, porque existe genético, isso existe porque
existe gente. Então, deve ter alguém que tem isso, tá.
[...]
Então quando você me faz essa pergunta “Por que eu acho que existe” eu
tenho que responder essas duas coisas. Eu acho que existe porque é genético
e acho que existe esses que não, não tem nada a ver com genética, vamos
dizer assim, um erro nosso se a gente não tomar cuidado e classificar tudo,
põe tudo no mesmo saco e vira tudo TDAH, e se eu não tiver uma equipe pra
fazer isso, se eu não tiver estudado muito bem isso a fundo eu vou fazer
126

mesmo, eu vou pôr um rotulo em todo mundo e vai sair todo mundo rótulo
de TDAH. Mas não é a maioria, entende? Por isso que eu acho assim. (Gal)

A reorientação de transformar comportamentos até então compreendidos como


normais em transtornos é interpretada por Almeida e Gomes (2014) e por Caponi (2014)
como perfis patológicos que a cada nova versão do DSM, desempenhando um papel de
classificação e nomeação de características humanas, acabam ampliando uma maior cobertura
patológica desde a infância.
A relação dos elementos de origem biológica para a existência do transtorno não é
descartada para o psicólogo, porém ele aborda a ideia de que há uma interação constante dos
aspectos emocionais que afetam o que ele chama de neuroquímicos. Ressalta que quando há
mesmo o diagnóstico do transtorno o biológico é considerado, porém não de modo isolado
para a constituição psíquica da criança:
Se a gente pensar numa perspectiva tomando por base, que uma criança, que
realmente preenche todos os critérios do diagnóstico do transtorno de déficit
de atenção com hiperatividade, pensando nesse caso que é muito especifico,
muito é, eu diria até quase raro. Eu colocaria talvez, talvez algum
componente neurológico, né, que não descartaria em hipótese alguma
questões psicológicas. Eu não vejo que uma coisa descarta a outra, não, né
do mesmo jeito que a gente sabe que é. Quando a gente recebe uma notícia,
seja criança ou adulto, uma notícia que nos deixa muito impactado e aquilo
nos deixa triste ou até deprimido isso tem um viés também neuroquímico.
Nosso corpo vai ter uma reação também. Então, acho que uma coisa ela não
pode se desvincular da outra, que a gente não pode priorizar uma linha de
pensamento em detrimento da outra. Eu acho que as coisas muitas vezes ela
se complementa né, do mesmo jeito que a esquizofrenia. Existem questões
químicas envolvidas, que a gente vê como os pacientes reagem ao
tratamento medicamentoso, né do mesmo jeito quando acontece alguma
coisa na família eles pioram. Então, assim, é uma interação constante, é uma
interação constante. Então, eu acredito que uma criança que realmente tenha
o diagnóstico desse, com a medicação adequada, e o tratamento com a
família inclusive né, de psicoterapia, de orientação, eu acho que a criança
pode ter uma qualidade vida, entende, eu acredito que sim. (Jorge)

O biológico como determinação do fenômeno TDAH é explicado pelas médicas


como uma patologia de aprendizagem a partir dos anos 1980 sendo a origem do suposto
transtorno como uma herança genética e do social.
Jorge amplia a discussão para que outros elementos sejam considerados e atribui à
mediação familiar a contribuição de modo quase que determinante na constituição psíquica da
criança em desenvolver comportamentos caracterizados por TDAH:
Muitas vezes o profissional, neurologista infantil, tem um despreparo pra
lidar com questões emocionais que na grande maioria estão envolvidas na
apresentação clínica da criança. Uma criança mais agitada, mais irrequieta,
127

mais até agressiva, às vezes, eles não têm o preparo pra lidar com essas
questões emocionais que estão influenciando diretamente e até mesmo sendo
a causa desse comportamento. Também não sabem, não tem preparo, isso é
muito pobre. É do conhecimento, assim, da dinâmica familiar que está
influenciando diretamente o comportamento da criança e medicam. Por
muitas vezes há insistência dos pais, se não medicar não é médico, se não
pedir eletro, se não pedir ressonância, se não pedir tomografia e se não der
algum medicamento não é médico, vai procurar outro. (Jorge)

Os elementos referidos por Jorge são determinados pelo contexto histórico de


medicalização, cujo processo traz implicações para a sociedade como um todo, impactando na
vida das crianças, das famílias e dos trabalhadores.
A ênfase do transtorno como uma determinação biológica produz a ideia de que
criança que não se comporta, não se educa, como se dependesse somente dela regular seu
comportamento, educar-se sozinha, descartando a mediação social para que ela regule seu
comportamento e sua atenção nas atividades escolares.
O comportamento não é dado pelas estruturas biológicas. Leontiev (1978) ao
explicar relação entre biológico e social distingue que as estruturas biologicamente herdadas
pelo processo de humanização se constituem em condições para a formação das funções
psíquicas (como a linguagem, a memória, a atenção, etc.). Apesar de essas funções
dependerem da estrutura orgânica, são as mediações pelas relações sociais e o mundo dos
objetos que determinará o desenvolvimento do psiquismo desde a infância. Portanto o
desenvolvimento das funções especificamente humanas se produz no processo de apropriação
e aquisição pelas relações reais do sujeito, dadas pelas condições concretas e históricas que
vive.
Em busca de superar a ênfase no biológico, quanto as dificuldades de
aprendizagem, outrora denominada na literatura como fracasso escolar, Souza (2008) propõe
refletir que essas dificuldades são causadas pelo próprio sistema escolar, fruto de políticas
neoliberais que “durante décadas depauperaram a escola pública e dificultaram que
desempenhasse seus papéis sociais e políticos” (SOUZA, 2008, s/p).
A visão biomédica ao adentrar no espaço escolar compreende que a
responsabilidade de não aprender recai sobre o aluno, desconsiderando todas as variáveis que
estão implicadas no trabalho de ensinar, tais como as condições de vida da criança, os
recursos envolvidos da escolarização e os recursos da família, conjugando assim uma
complexidade que envolve o processo de educar.
128

6.4 Diferenças e semelhanças das significações sobre TDAH entre os trabalhadores da


saúde e educação

Em nosso estudo observamos que a relação entre a educação e a saúde sobre o


TDAH se constitui em encaminhamentos das crianças das escolas para a saúde para averiguar
comportamentos hiperativos e dificuldades de atenção na aprendizagem.
Encaminhamentos das escolas para saúde com objetivo de identificar e
diagnosticar algum tipo de doença da criança que não se comporta e ou que não aprende
foram discutidos nos estudos de Souza (1997; 2008) e Cord et al (2015).
Ao buscar compreender o fracasso escolar, Souza (1997) analisa dados de
pesquisa de 1989 no município de São Paulo, investigando os encaminhamentos de crianças
na faixa etária de 5 a 14 anos das escolas para as unidades básicas de saúde. Neste estudo, dos
70% dos encaminhamentos das crianças nessa faixa etária foram destinados para atendimento
psicológico e desse total 50% se referiam às dificuldades de aprendizagem e 21% problemas
de comportamento na sala de aula e fora dela.
Segundo os dados revelados dessa pesquisa metade das crianças foi encaminhada
pela escola. E conforme analisado pela pesquisadora, a escola começa a desenvolver uma
atitude diagnóstica uma espécie de “olhar clínico” sobre a criança na produção desses
encaminhamentos, responsabilizando esse aluno por não aprender e se comportar conforme
exigido. (SOUZA, 1997, p.18).
As significações dos trabalhadores que atuam no Programa Saúde na Escola
(PSE) são analisadas por Cord et al (2015), que aferiram que o discurso biomédico tem
adentrado no espaço escolar e ao naturalizar as dificuldades de aprendizagem impõe práticas
medicalizantes na escola.
Nosso estudo revela que entre os trabalhadores da saúde e da educação, apesar de
diferentes significados quanto a ocorrência do TDAH do transtorno, a visão de determinação
biológica é quase unânime entre eles. Os significados atribuídos ao transtorno pelos
trabalhadores da saúde e educação quanto ao conhecimento, diagnóstico e tratamentos do
transtorno se diferenciam em alguns aspectos e em outros são semelhantes.
A dificuldade de aprender como algo biologicamente herdado na criança, segundo
a concepção biomédica, é afirmada com maior ênfase entre as médicas. Os outros dois
trabalhadores da saúde citam comportamentos hiperativos relacionados ao transtorno, mas
129

apresentam dúvidas ou negam a quantidade de diagnósticos de crianças que são encaminhadas


para psicoterapia.
A fala de Rita expressa dúvida e questionamento quanto aos exames de imagem
cerebral que revela a suposta falha da dificuldade de aprender, exclamando: “E daí?”.
Levantado a questão do que esse exame sobre o transtorno na criança pode apresentar como
possibilidade de ajuda a essa criança.
O número de diagnósticos tanto da parte médica como dos encaminhamentos
feitos pelas escolas em que sugerem o transtorno na criança é questionado por Jorge como
uma espécie de “hiperdiagnóstico”.
As explicações do transtorno entre os trabalhadores da educação se apresentam
como vaga, com dúvidas, e buscam uma argumentação da visão biomédica referindo que os
comportamentos agitados e desatentos são decorrentes do transtorno. A associação desses
comportamentos como doença decorre da orientação escolar, pois nas falas dos trabalhadores
apontaram que os cursos ministrados na rede municipal de ensino, indicam que tais
comportamentos devem ser averiguados no campo médico.
Ao relatarem o conhecimento do TDAH, as trabalhadoras da educação
demonstraram dificuldade em explicar e em alguns momentos buscavam a confirmação da
pesquisadora, perguntando se aquela compreensão do transtorno estava certa. Nesse sentido o
termo “vaga”, como dúvida, foi verificado que o transtorno não é algo compreendido e
discutido como expressão de um comportamento da atual sociedade. Fica evidente que o
TDAH considerado como uma doença que resulta na criança um comportamento hiperativo e
desatento é uma explicação que atravessa o trabalho pedagógico, ocultando e impossibilitando
que os trabalhadores da educação compreendam esse fenômeno a partir dos referenciais
pedagógicos da educação.
Consideramos que as condições de trabalho facilitam a incorporação do discurso
médico quanto às dificuldades de aprendizagem, pois as trabalhadoras dobram períodos de
aula, manhã e tarde, ou seja, realizam dupla jornada de trabalho. Isso implica em maior
desgaste físico mental, portanto maior cansaço somado ao pouco tempo para planejar e refletir
sobre as dificuldades de crianças em aprender e ou regular seu comportamento em sala de
aula, desafios próprios da natureza do trabalho de ensinar. Deste modo incorporam o pré-
diagnóstico como se fosse uma solução para aquelas crianças com dificuldade de
aprendizagem.
130

Outro elemento se refere ao planejamento escolar, segundo a coordenadora


pedagógica é preciso atender as exigências das avaliações municipais, estadual e federal. Ou
seja, a dinâmica escolar estava submetida a padrões de avaliação fora do seu interior.
Quanto aos encaminhamentos dessas crianças com dificuldades de aprendizagem,
supondo o transtorno, poderiam ser realizados a qualquer momento, pois havia na direção da
escola 3 uma espécie de formulário que quando preenchido com um caso de alguma criança
deveria ser encaminhado ao NASF. Havia também outro procedimento, conforme relato das
professoras, de orientação à família para que buscasse atendimento na UBS ou na rede
privada de saúde. Nas outras escolas não tinha o encaminhamento, apenas na escola 2 havia
uma psicopedagoga para avaliar as crianças.
Diferentemente de uma visão mais vaga que os da educação, as explicações sobre
o TDAH pelos trabalhadores da saúde são mais estruturadas em termos técnicos
fundamentados no argumento de herança biológica da criança, sendo de origem genética. Tal
explicação naturaliza a relação ensino-aprendizagem entre professor e aluno. As mediações
decorrentes das relações e condições materiais são descartadas, como se a atenção e
comportamento regulado na criança nascesse pronto. Divergimos dessa compreensão, pois
tanto a atenção como o comportamento se desenvolvem a partir das mediações sociais que
circundam a criança.
Os motivos que levam a criança a ter dificuldade de comportamento ou para obter
a atenção, o diagnóstico médico exerce um papel imperativo, fato que os demais trabalhadores
levantam questões e discordam da quantidade de diagnósticos de TDAH.
Quanto às medidas a serem tomadas para o aproveitamento da criança, após o
recebimento do diagnóstico, foi citado pelas médicas que havia orientações às escolas e às
escolas. Porém, as trabalhadores da escola informaram que é apresentado na escola laudo
médico que atesta a criança como portadora do transtorno. E que esse laudo também a família
serve para aquisição do medicamento pelo SUS, pela farmácia de auto custo, que além da
Ritalina@ é possível conseguir o Venvanse@.
Uma das médicas relatou que o tratamento das crianças não se restringem ao
medicamento, mas requer orientação às famílias e aos professores. E que havia uma série de
orientação aos professores, porém os trabalhadores das escolas que tinham contato com as
crianças diagnosticadas com TDAH, apenas informaram o laudo como esse canal de
comunicação, bem como o encaminhamento que realizam para a saúde.
131

A médica, inclusive defende a comunicação entre a escola e as médicas como um


trabalho completo no tratamento da criança, porém sua ênfase na comunicação é dada na
compreensão do papel biomédico acerca do transtorno, de que os professores precisam se
apropriar dessa compreensão. Enfatizando que os professores deveriam se apropriar de outras
contextos de distúrbios e transtornos de aprendizagem, em que cita o autismo e a
superdotação para que não incluam todas as dificuldades de aprendizagem em TDAH. Isto é,
que tenham uma compreensão mais ampla do que pode desencadear dificuldades, inclusive
conhecer melhor outras patologias. Ou seja, é requerido do professor explicações
biologizantes do desenvolvimento de aprendizagem e o conhecimento do maior número de
categorias diagnosticas.
É defendido por uma das médicas que tanto na avaliação e no diagnóstico, como
no tratamento, sejam realizadas mais trocas e por mais profissionais que não sejam somente
do campo médico, porém no nosso estudo esse trabalho se revela bastante fragmentado e
ocorre de modo isolado. Os profissionais que realizam avaliação diagnóstica não são os
mesmos que realizam o tratamento psicoterápico e fonoaudiológico. A equipe que realiza o
diagnóstico sob a coordenação das médicas é uma e a que acompanha o tratamento mais
cotidianamente das crianças é outra.
Observamos que há uma supervalorização do papel dos médicos para o
fechamento do diagnóstico, pois os trabalhadores da escola não souberam informar se as
crianças diagnosticadas recebiam outros tratamentos, como o psicoterapêutico e
fonoaudiológico.
E nesse sentido, a escola acaba por cumprir um papel de levantamento de
informações que se constitui em pré-diagnóstico e que corrobora com o processo de
diagnóstico médico. Ações que amparadas pelo discurso biomédico sobre o desenvolvimento
humano tem levado à naturalização da aprendizagem, não como um problema histórico
cultural que circunda a vida da criança.
A exclusividade do diagnóstico médico como base para a estratégia de
intervenção resulta em processo equivocado de lidar com a pessoa que tem necessidade de
cuidado (SARACENDO; ASIOLI; TOGNONI, 1994). E desse modo nosso estudo verificou
que a relação entre a escola e a saúde se constitui como troca de encaminhamentos e laudos.
Um aspecto que se revela semelhante entre os trabalhadores refere à demanda de
trabalho, percebido pela professora Ceumar e pela médica Gal. Ambas se cobram quanto à
resolução das dificuldades impostas ao seu trabalho. A professora relata sentir angústia
132

quando não consegue ajudar a criança a aprender. E a médica informa da necessidade de


aprimorar o serviço, sendo necessário ter uma equipe permanente, já que sua equipe sempre
está desfalcada, bem como ter outros profissionais disponíveis na atenção básica em saúde,
cita exemplo de psicólogos para o tratamento das crianças que ela acompanha no
ambulatório.Também demonstra certa apreensão quanto a quantidade das crianças que
chegam ao serviço e tendo uma lista infindável.
Em relação à persistência do transtorno até a vida adulta, conforme afirmado pela
médica Maria, a professora Carol traz um dado diferente quanto a isso. Segundo essa
professora, ao citar o trabalho de mediação por dois anos na sala multisseridada com uma
criança diagnosticada com suposto TDAH, expõe que seu trabalho teve êxito na
aprendizagem e regulação da conduta dessa criança, pois ela estava matriculada em escola de
Ensino Fundamental II e não recebia mais tratamento medicamentoso.
A medicalização que institui o diagnóstico médico como instrumento exclusivo de
obter informações, reduz as demais possibilidades de compreensão dos sujeitos, seja adulto ou
criança. Quanto a isso Saraceno, Asioli e Tognoni (1994) fornecem proposições ao campo de
saúde, para além da exclusividade diagnóstica médica. E questionam que essa insistência na
exclusividade médica sem compreensão dos recursos disponibilizados dos serviços pode
favorecer o não êxito do tratamento.
A compreensão do sujeito em processo de escolarização, quanto aos elementos
que constitui o ato de ensinar, conforme assinalada Souza (2008), são aspectos complexos que
se estendem dos éticos, políticos aos metodológicos, bem como a compreensão técnica da
prática pedagógica, devendo ser essa o entendimento da atuação de um psicólogo que trabalha
com a educação escolar. Portanto a retomada desse papel da escola requer investir em
qualidade educacional, não em explicações biomédicas que localizam no cérebro dificuldades
de aprendizagem como vem sendo comumente instalado na educação.
Por um lado, entendemos que esse trabalho de retomada do papel da escola é
fundamental, sendo esse o lócus prioritário da ação pedagógica para que as crianças se
apropriem dos conhecimentos acumulados historicamente. Por outro compreendemos que há
dificuldades para essa retomada decorrem de um contexto de intensificação de trabalho dos
professores e que tem acarretado em maior desgaste físico e psíquico desses trabalhadores e
resultando em pouco tempo para compreensão e reflexão da prática pedagógica e o
planejamento.
133

7. CONCLUSÃO: PELA DEFESA DO ATO DE ENSINAR

No início do percurso desta pesquisa, ainda na fase de definição do objeto de


estudo, uma questão foi formulada: por que as crianças desatentas e hiperativas são
intoleráveis a ponto de serem encaminhadas pelas escolas para os serviços de saúde, supondo-
se serem portadoras do TDAH?
Para tanto, buscamos conhecer como os trabalhadores da educação e da atenção
básica em saúde explicam as determinações desse transtorno, bem como os significados
atribuídos ao diagnóstico e ao tratamento.
Com o estudo teórico realizado sobre TDAH identificamos que se trata de um
fenômeno de maior expressão na medicalização das crianças. Logo, esse dado nos permitiu
aferir que as práticas medicalizantes atravessam a educação escolar, o que redireciona o
entendimento dessas dificuldades de aprendizagem infantil referente à atenção e o
comportamento, agora interpretadas com base no argumento de que são meramente um
problema biológico da criança. Além disso, a partir das falas dos trabalhadores da educação e
atenção básica em saúde, foi possível aprofundarmos em nossa discussão as diversas
determinações do fenômeno.
Em primeiro lugar destacamos o contexto atual de intensificação de trabalho no
qual os professores estão submetidos, e que por proporcionar maior desgaste físico e psíquico
desses trabalhadores, implica em pouco tempo para refletir o planejamento das aulas e
organização do trabalho pedagógico. Com isso, esse contexto facilita a incorporação do
discurso biologizante que permite que a medicalização seja aderida na escola, já que esse
entendimento reduz o problema à questão médica, e passível de medicalização. Silencia com
isso as questões sociais e históricas que circundam a vida da criança e os desafios em ensinar.
É nesse sentido que a escola ao realizar um pré-diagnóstico, sustentado pelo viés biológico,
renuncia o seu papel de compreender os desafios produzidos no processo de ensino e da
aprendizagem.
Foi observado que a concepção biomédica vem ocupando também os cursos de
formação dos professores: dos quatro professores que realizaram pós-graduação, três fizeram
cursos em psicopedagogia e neuropsicologia em parceira com a rede municipal de ensino. A
propagação de cursos destinados aos professores em parceria com a universidade é defendida
134

por uma das médicas para que esses trabalhadores se apropriem dessa compreensão
biologicista de desenvolvimento. Considerando que nessa faixa etária, cinco a dez anos, a
ênfase do trabalho educacional nos primeiros anos do ensino fundamental deve ser o da
alfabetização, há, segundo o nosso entendimento, uma inversão no que se refere à demanda de
formação, uma vez que as reflexões deveriam ser sobre as práticas e teorias de alfabetização e
não em cursos que tendem a buscar falhas cerebrais para explicar a não aprendizado da
criança.
Divergimos dessa compreensão biologizante do desenvolvimento humano e nos
fundamentamos nas formulações de Luria, Vigotski e Leontiev ao afirmarmos que a atenção e
o processo de regulação da conduta se dão por meio das mediações sociais, uma vez que a
unidade biológico-social se desenvolve em duas linhas e o biológico segue sendo superado
pelo social.
Apesar dos trabalhadores da educação apontarem que as condições de vida da
sociedade atual estão alterando a organização das famílias e o modo como vêm educando as
crianças, tal apontamento não foi suficiente para a compreensão desse processo, e, pudesse
implicar a questionamentos em relação a visão biologicista do TDAH. Contudo, afirmamos,
conforme discussão teórica realizada nesta pesquisa, as condições atuais de vida têm
impactado nas dificuldades de ensino-aprendizado neste momento histórico.
Por fim, nossa análise aponta para as dificuldades do processo de aprendizagem
em um momento em que a medicalização é uma prática em ascensão, responsável, em certa
medida, pela inibição de uma discussão que enfatize o sujeito como um ser histórico. As
dificuldades que envolvem a aprendizagem da criança nesse momento atual deveriam ser
apropriadas como elementos no trabalho de ensinar e isso requer refletir sobre os desafios
pedagógicos e contribuições das ciências humanas nesse trabalho. Portanto, questionamos a
intervenção médica que reduz a criança ao um corpo meramente biológico e que por meio da
concepção e práticas biologicistas vem contribuindo para que mais crianças sejam
medicalizadas em vez de educadas.

.
135

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Tomo III)
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del desarrollo de las funciones psíquicas superiores. Madrid: Visor, 1995e, p.303-313.
(Obras escogidas Tomo III)
142

APÊNDICES

APÊNDICE A

QUESTIONÁRIO PARA AS ESCOLAS

A presente pesquisa busca conhecer as significações de trabalhadores da educação e da atenção básica


em saúde sobre TDAH – Transtorno de Déficit de Atenção e Hiperatividade.

Dados de Identificação

Nome: ___________________________________________________________________________

Sexo: Idade:

Local de trabalho/escola:______________________________________________________________

Profissão/formação:__________________________________________________________________

1)Há quanto tempo trabalha nesta escola? 2) Há quanto tempo desenvolve esse trabalho?

3) Atualmente desempenha quais atividades? Com qual série do fundamental I, e ou etapa da


educação infantil, se for professora(o)?
__________________________________________________________________________________

4) Durante o período em que desenvolveu seu trabalho, na sua profissão, identificou uma criança ou
mais considerada como indisciplinada, hiperativa ou desatenta e encaminhada para o serviço de saúde?
Quantas?

_____________________________________________________________________________

5) Conheceu ou conhece alguma criança diagnosticada com TDAH em sua unidade escolar ou unidade
de saúde que recebe tratamento? Tem alguma relação de trabalho com essa criança, como por
exemplo, é sua aluna, ou frequenta essa escola?
___________________________________________________________________________
6) Sabe nos informar quais situações que levaram a identificação e diagnóstico do TDAH?
__________________________________________________________________________________
7) Sabe nos informar se as crianças diagnosticadas estão em acompanhamento na área de saúde? Se
sim, onde?
___________________________________________________________________________

Obrigada pela atenção,


Regina Célia dos Santos.
143

APÊNDICE B

QUESTIONÁRIO PARA UNIDADES BÁSICAS DE SAÚDE

A presente pesquisa busca conhecer as significações de trabalhadores da educação e da atenção básica


em saúde sobre TDAH – Transtorno de Déficit de Atenção e Hiperatividade.

Dados de Identificação

Nome: ___________________________________________________________________________

Sexo: Idade:

Local de trabalho/escola:
___________________________________________________________________________

Profissão/formação:_________________________________

1)Há quanto tempo trabalha nesta instituição?

2) Há quanto tempo desenvolve esse trabalho?

3) Nas atividades que desenvolve tem contato direto com as crianças em acompanhamento na
unidade? ( ) Sim ( ) Não

4) Durante o período em que desenvolve seu trabalho, na sua profissão, identificou uma criança
considerada como hiperativa ou desatenta? Quantas +-?
_____________________________________________________________ _____

5) Conhece, atualmente alguma criança diagnosticada com TDAH que recebe tratamento nesta
unidade?
___________________________________________________________________________

6) Se responder sim na questão anterior, que tipo de trabalho realiza com ela?

__________________________________________________________________________________

Obrigada pela atenção, Regina Célia dos Santos.


144

APÊNDICE C

Roteiro de entrevista semiestruturada com trabalhador da educação

1. Dados gerais

(Sexo; idade; escolaridade; estado civil; religião; local de origem; local de trabalho; função;
cargo)

2. Trabalho

(História da inserção no trabalho/profissão/atividades; relate sobre seu trabalho)

3. Sobre o TDAH desde quando conhece esse transtorno?

Conheceu esse transtorno através de que fonte (como teve contato, leu algo sobre, etc) ?

4. No questionário ..... informou trabalhou com crianças com este transtorno.

Quais situações e em que contexto as crianças foram identificadas e diagnosticadas por


TDAH?

5. Em linhas gerais como você identificou que poderia ser o TDAH?

6. Que tipo de Tratamento essas crianças recebem? (medicamentoso, psicopedagógico,


psicoterapia, etc. )

Em geral são medicadas?


145

APÊNDICE D

Roteiro de entrevista semiestruturada com trabalhador da saúde

1. Dados gerais
(Sexo; idade; escolaridade; estado civil; religião; local de origem; composição familiar)

2. Trabalho
(História da inserção no trabalho/profissão/atividades; relate sobre seu trabalho)

3. Sobre o TDAH:
Desde quando conhece esse transtorno? Quais FONTES? Como teve contato?
Para você, porque existe esse transtorno?

4. Identificação, diagnóstico e tratamento do TDAH:


Você sabe como essas crianças chegaram ao serviço de saúde?
Em linhas gerais, como identificou os sinais ou diagnosticou que poderia ser o TDAH?

5. Tratamento
Sabe responder que tratamento é dado para essa/s criança/s?
Há outros tipos de tratamento?
Na sua avaliação, quais os resultados do tratamento medicamentos depois de iniciado o
tratamento? Que mudanças têm observado na criança?

6. Ao que você atribui à existência do TDAH? Possíveis determinações


Ao que atribui à existência deste transtorno, sua causa, origem

7.Tem alguma dúvida sobre esta conversa/entrevista?


Gostaria de falar sobre algo mais?
146

APÊNDICE E

Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE)


Convido o(a) senhor(a) a participar da pesquisa “Transtorno de Déficit de Atenção e
Hiperatividade e Medicalização na infância: uma análise das significações de trabalhadores da
educação e da atenção básica em saúde” a ser desenvolvida por Regina Célia dos Santos, aluna
regular do mestrado do Programa de Saúde Coletiva da Faculdade de Medicina de Botucatu –
FMB/UNESP, com orientação da Profa. Drª. Sueli Terezinha Ferrero Martin. O objetivo desta
pesquisa é analisar o fenômeno do Transtorno de Déficit de Atenção (TDAH). Quais os
significados os profissionais das Unidades Básicas de Saúde e das Escolas Públicas, definidos
nesta pesquisa, atribuem ao TDAH a partir das relações e mediações com as crianças em
tratamento por esse transtorno.
As entrevistas serão gravadas em áudio com duração de 50 minutos aproximadamente,
com a garantia de anonimato e sigilo em relação ao profissional e local de trabalho. As
informações coletadas poderão ser utilizadas para efeito de análise e divulgação científica,
sem que haja a identificação do entrevistado. As gravações ficarão sob a responsabilidade do
pesquisador25 e da orientadora26 durante o desenvolvimento do projeto, com o compromisso
de destruí-las após a conclusão do trabalho. Sua participação é voluntária e, mesmo que
decida participar, poderá interromper a entrevista a qualquer momento sem qualquer prejuízo
pessoal, profissional ou de seu atendimento na instituição. Esse termo será emitido em duas
vias, das quais uma ficará com você e outra com a responsável da pesquisa. Caso ocorra
alguma dúvida sobre a pesquisa, a qualquer momento poderá ser esclarecida com o
responsável. Qualquer dúvida adicional, entrar em contato com o Comitê de Ética em
Pesquisa por meio do telefone (14) 3880-1608.
Assim, eu ____________________________________________________, RG nº
__________________, declaro ter sido esclarecido sobre o estudo, ter recebido uma via deste
documento e estar de acordo em participar voluntariamente da respectiva pesquisa. Caso seja
necessário, estarei à disposição para complementação dos dados.

Botucatu, _____de __________ de____

Participante entrevistado (a) Pesquisador

25
Regina Célia dos Santos (responsável pela pesquisa) – Rua Prof. Josephina Pinheiro Machado Ciaccia, nº
413 – Jardim Itália – CEP 18609-404 – Botucatu – SP – e-mail: [email protected] – Telefone: (14) 9
81148601.
26
Sueli Terezinha Ferrero Martin (orientadora da pesquisa) Departamento de Neurologia, Psicologia e
Psiquiatria FMB UNESP Botucatu –– e-mail: [email protected] – Telefone: (14) 3880-1220
147

APÊNDICE F

Quadro de Pré-indicadores
Pré- Indicadores Indicadores

1) Foco no trabalho Elementos que mobilizam o significado do


2) Dificuldade de aprendizagem trabalho
3) Elo entre família e escola
7) Educação Pública de qualidade

4) Capacitação Compreensão acerca do TDAH adquirida por


5) Atualização informações circuladas na web e através de
6) Aperfeiçomento cursos de informações da rede.
7) Curso oferecido pela rede municipal de
educação
11) Mídia pauta o TDAH
53) Mídia pauta os malefícios da medicação, da
ritalina®
61) Informações do TDAH na internet e cursos
de capacitação

8) Orientação nos HTPCs


17) Acalmar os professores Atividades relacionadas ao trabalho do
21) Co-responsabilidade da coordenação coordenador pedagógico na escola.
22) Coordenadora articuladora na escola
23) Coordenador Observador
24) Intercâmbio família e escola
43) Coordenador deve conhecer das necessidades
dos seus alunos

9) Área Clínica Contradição entre a área clínica e área


10) Área Pedagógica pedagógica.

13) Gostar do que faz/do trabalho educação Aspectos emocionais que dão sentido ao
14) Entrega ao trabalho/se realiza trabalho.

15) Contexto escolar de aprendizagem Exigências de padrões de avaliação que


16) Dificuldades do professor impactam no planejamento, ensino e
27) Planejamento aprendizagem da criança.
28) Cumprir padrão nacional e rede municipal

18) Inclusão Inclusão está relacionada à dificuldade de


19) Aluno problema (com dificuldade de aprendizagem, mas nem toda a dificuldade de
aprendizagem) aprendizagem é inclusão.

25) Professor peça importante A construção em torno da dificuldade de


26) Professor solicita ajuda aprendizagem da criança inicia –se pelo
30) Coordenador pedagógico realiza professor e para efeitos de encaminhamentos tem
encaminhamento apoio da coordenação respaldada pela secretaria
31) Coordenação dialoga com a família municipal de educação.
32) Respaldo da secretaria da educação
33) Famílias relutantes ao encaminhamento
148

34) Conhecimento do território Conhecimento do território e tempo na função de


(famílias/população atendidas) coordenação facilitam o trabalho.
35) Respeitabilidade pela população atendida
36) Respeitabilidade facilitadora do trabalho de
coordenação
37) TDAH é uma dificuldade de aprendizagem TDAH associado ao comportamento da criança e
38) TDAH é diferente de inclusão à dificuldade de aprendizagem, embora não seja
42) Política de inclusão não incluem TDAH uma inclusão, tem a escola sua obrigação de
44) Antecipar/identificar dificuldade de identificar e encaminhar.
aprendizagem desde educação infantil
46) Criança que não para tem dificuldade de
aprendizagem
47) Criança que não para. Atrapalha o contexto
dos demais
48) Crianças com TDAH precisa de limites e
regras mais rígidos
50) Convívio social da criança: escola e família
51) Obrigação da escola na identificação da
dificuldade de aprendizagem e do transtorno
61) Professores estão mais preparados para
identificar o transtorno

39) Atendimento Educacional Especializado – As diferentes ações pedagógicas desenvolvidas


AEE na escola com as crianças com TDAH apresentam
40) AEE (uma sala/uma professora) atende melhora, bem como o tratamento realizado na
outros bairros/escolas saúde.
41) AEE facilitador para dificuldade de
aprendizagem
49) Tratamento com medicação e/ou terapia com
psicólogo,
criança apresenta melhora
52) Tratamento coloca a criança no contexto das
demais

54) Vida corrida dos pais Quanto mais problemas gerados pela dinâmica da
55) Muitos pais trabalham sociedade: intensa jornada de trabalho, muitas
56) Avós que cuidam dos netos atividades e em tempo acelerado impactam na
57) Consumismo vida escolar da criança
58) Vida agitada
59) Diferentes horários para muitas atividades
60) O TDAH surgiu com problemas
63) Mais problemas sociais, mais problemas na
escola.

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