Uma Releitura Do Papel Das Professoras Das Séries Iniciais No Desenvolvimento e Aprendizagem de Ciências
Uma Releitura Do Papel Das Professoras Das Séries Iniciais No Desenvolvimento e Aprendizagem de Ciências
Uma Releitura Do Papel Das Professoras Das Séries Iniciais No Desenvolvimento e Aprendizagem de Ciências
ISSN: 1415-2150
[email protected]
Universidade Federal de Minas Gerais
Brasil
RESUMO
ABSTRACT
What’s really about teaching science to kids? What knowledge do teachers use
when they teach science to kids? What do they really don’t know and what does its lack
can bring? What other knowledge is essential for teaching’ success? Why, even with
supposed lack of conceptual framework can teachers teach science and allow kids
development, preparing them for the incoming steps of scientific concepts learning?
How do we human-beings constitute ourselves as cultural subjects? What are the
relations between scientific and everyday concepts? To answer these questions we
come closer to science teaching by our own experience with elementary teachers,
delimiting this knowledge with Vygotsky’s cultural-historical perspective.
Key words: primary (or elementary) science, science teaching, content knowledge.
1
Professora da Faculdade de Educação da UFMG, [email protected].
2
Doutorando em educação pela UFMG, Professor do Centro Universitário Izabela Hendrix e Professor da Faculdade Pitágoras.
161
e n sa io
vol 8 • nº 2 • dez. 2006
O texto que aqui se apresenta resulta de inquietações que têm nos perseguido há
uma década. São dilemas que surgiram quando da primeira vez em que juntos entramos
em uma sala de aula para ensinar Fundamentos e Metodologia do Ensino de Ciências
para as alunas do Curso de Pedagogia. Professora e monitor com surpresa descobriram
quão parcos eram os domínios conceituais das alunas sobre os quais queríamos
ensinar os fundamentos e as metodologias de ensino. Nosso esforço foi no sentido de
prover as alunas de situações ricas de compreensão dos fundamentos e das
metodologias ao mesmo tempo em que procurávamos ensinar os conteúdos conceituais
comumente abordados nas séries iniciais. A pergunta que Maués fazia era de como
aquelas alunas, tornadas professoras, iriam ensinar o que não sabiam? Quem é a
professora que ensina ciências nas séries iniciais? O que ela ensina? Como se ensina
ou como ciência deveria ser ensinada para as crianças? O leitor há de convir que, pelas
questões levantadas, nunca se esteve em discussão para nós se ciências deveria ou
não ser ensinada.
Consideramos hoje que aquelas perguntas, incansavelmente discutidas nos
círculos acadêmicos e objeto de investigação e teorização em diferentes artigos e teses,
estiveram mal postas. Nossa idéia é a de mudarmos o foco da professora que “não
sabe o conteúdo”, mas que precisa ensinar, pois tem na sua frente uma turma cheia de
crianças e por trás delas a família, a direção da escola e toda a comunidade para
exercer a crítica e o controle social do trabalho docente.
A pergunta que procuramos responder aqui é em que consiste ensinar ciências
para crianças? Retomamos essas questões objetivando tencionar a discussão em um
rumo um pouco diferente do que vem sendo apresentado no meio dos especialistas
em ensino de ciências. Com que objetivo se ensina ciências para as crianças?
Acreditamos que assim formulando a questão poderemos enriquecer nossa própria
compreensão sobre ensinar ciências da natureza nos cursos de Pedagogia e nos
espaços de formação continuada de professores de ciências. Acreditamos, também,
que a explicitação de nossa compreensão sobre essas questões poderá suscitar em
nossos colegas o desejo de polemizar conosco. Assim, estaremos oportunizando a
continuidade do debate.
O ensino nos parece hoje muito mais complexo que no passado devido à crescente
demanda por escolarização das camadas populares, aos avanços científicos e
tecnológicos no cotidiano, em geral, das mudanças ocorridas nas tecnologias da
informação e comunicação e dos desafios do mundo do trabalho. Assim, depois de a
ênfase recair sobre os conteúdos a serem ensinados, as questões de sistema e de
organização curricular, e sobre os processos de ensino/aprendizagem, convive-se,
atualmente, com uma mudança de foco para dar atenção à profissão e ao
desenvolvimento docentes.
As pesquisas no campo da formação de professores estão fortemente
interessadas em mapear o conhecimento que os professores produzem como condição
para um novo profissionalismo. Esses saberes docentes incluem o saber –
conhecimento –, o saber-fazer – procedimentos e habilidades – e o saber ser – atitudes,
crenças e valores morais. TARDIF (2005) chama atenção para dois excessos que se vêm
cometendo no âmbito dessas pesquisas: o professor é um cientista e tudo é saber. O
fato de considerar o professor como um cientista tem como conseqüência sua inclusão
162
e n sa io
vol 8 • nº 2 • dez. 2006
163
e n sa io
vol 8 • nº 2 • dez. 2006
Nas duas últimas décadas a pesquisa sobre o ensino de ciências nas séries
iniciais vem se intensificando. Há inúmeras investigações sobre concepções
espontâneas de alunos e professores, mudança conceitual, perfil conceitual,
metodologias de ensino, alfabetização e letramento científicos, inovações curriculares,
pesquisas colaborativas de formação de professores etc. É relativamente consensual
nessas pesquisas o diagnóstico relativo à baixa qualidade de ensino, quanto à ineficácia
das estratégias metodológicas adotadas e, principalmente, sobre o “precário”
conhecimento de conteúdo apresentado pelo professores.
Acredita-se que parcela substancial das professoras das séries iniciais não
ensina ciências e quando ensinam apresentam baixo entendimento do que estão
ensinando (Fumagalli,1998) e pouca confiança em ensinar (Appleton e Kindt, 1992).
Na nossa experiência como formadores de professores, percebemos que
algumas professoras acreditam que não é necessário ensinar tão cedo tais conteúdos.
Outras não se sentem autorizadas a ensinar ciências nas séries iniciais. O ato de
ensinar ciências gera uma relação de tensão em sala de aula, o que produz nas
professoras sentimentos de angústia e aflição, de acordo com relatos delas mesmas.
Na disciplina “Fundamentos e Metodologias das Ciências Físicas” de um dos cursos
de Pedagogia dos quais somos professores, é freqüente afirmativas como a que se
segue:
...começo a me lembrar de fatos que surgiram não só no primeiro dia de aula, mas que foram
questões polêmicas discutidas durante o curso: grande parte da turma acreditava que para
lecionar Ciências Físicas necessitava primeiramente de saber Ciências. É obvio que um
professor precisa ter consciência do que deveria trabalhar com seus alunos. Mas sinto que
o pensamento de nós alunos do curso de Ciências Físicas segue a lógica (mesmo que de
forma inconsciente) de que: quem conhece Ciências são os biólogos, os físicos, os químicos.
Como nós, pessoas “leigas”, “não aptas”, podemos ensinar ciências?
164
e n sa io
vol 8 • nº 2 • dez. 2006
tal segurança. São eles: dar menos ênfase aos conteúdos ligados à área de ciências
da natureza; optar por conteúdos que têm maior domínio, como são os tópicos relativos
aos cuidados com a saúde, com a alimentação ou nutrição e com a higiene (SILVA, 2003);
seguir o livro didático passo a passo; preferir as aulas expositivas em vez de fomentar o
diálogo e o questionamento das coisas e de seus porquês. Raramente desenvolvem
atividades experimentais e quando o fazem revelam que o objetivo dos experimentos é
o de clarear as explicações, motivar os alunos para o aprendizado e fixar conceitos. As
atividades experimentais surgem como comprovação da teoria, instaurando um divórcio
entre a teoria e a prática.
Muitos professores não dominam de fato conceitos básicos de astronomia como
as causas do dia e da noite, as estações do ano e a fases da lua, de circuito e corrente
elétrica, de que os planetas só podem ser vistos através de telescópios, de que os
dinossauros viveram ao mesmo tempo em que viveram os homens das cavernas, que
um prego pesa menos que o ferro utilizado como matéria-prima para fazê-lo; que a
eletricidade é consumida no interior dos eletrodomésticos e que o norte aponta para o
topo do mapa da Antártida. Enfim, apresentam explicações que estão em desacordo
com as explicações científicas e se aproximam daquelas dadas por crianças de onze
anos, (WEBB, 1992 e JONES, 1991, SCHOON e BOONE,1998).
Do ponto de vista das pesquisas propositivas, salvo algumas exceções, há um
esforço para tentar remediar através de propostas metodológicas, inovações curriculares
e estudos de casos as dificuldades que os professores apresentam com o conhecimento
de conteúdo em ciências. PARKER E HEYWOOD (2000) focalizam suas pesquisas na diferença
entre conhecimento e desenvolvimento do entendimento em ciências. A investigação
discute as limitações e possibilidades de desenvolver o entendimento sobre ciências
através da experiência, reflexão e explicação do professor sobre atividades instrucionais.
KELLY (2000) numa perspectiva construtivista, discute o desenvolvimenta, estrutura e
implementação de um curso de metodologia de ensino de ciências para professores
primários. Essa autora observou que, após o curso, os professores ganharam novos
insights e entendimentos sobre ciências, uma atitude mais positiva frente ao conteúdo
e ao ensino de ciências, expressando uma maior confiança em suas habilidades para
ensinar.
S MITH E NEALE (1989) acompanharam um curso de formação em serviço,
investigando a mudança no conhecimento de conteúdo dos professores em 16 conceitos
relacionados com luz e sombra. Nessa investigação os autores constataram que o
conhecimento de conteúdo do professor mudou drasticamente. Eles sugerem que para
as pesquisas em desenvolvimento profissional em ensino de ciências pode ser útil
considerar o professor das séries iniciais como um adulto aprendiz.
Num caminho próximo, SUMMERS E KRUGER, Baseados em suas pesquisas sobre
as concepções alternativas das professoras das séries iniciais sobre ciências naturais,
têm produzido um extensivo material de desenvolvimento profissional com o objetivo de
melhorar o conhecimento de conteúdo sobre ciências do professor das séries iniciais
(SUMMERS E KRUGER, 1994).
Essas pesquisas evidenciam uma situação desoladora para o ensino de ciências
nas séries iniciais. Mas será que o fato da professora ter um conhecimento precário dos
conteúdos conceituais de ciências influencia de forma crucial o ensino? Acreditamos
que é necessário relativizar os resultados dessas pesquisas. Certamente não podemos
ignorar que o conhecimento dos professores das séries iniciais sobre ciências é precário.
Mas, ao mesmo tempo, não podemos ficar apenas constatando o que todos nós já
sabemos com nossas pesquisas. Será que o único caminho para melhorar a qualidade
do ensino de ciências nas séries iniciais é tentar sanar as dificuldades de conteúdo
físicos, químicos, biológicos, geofísicos e relativos à astronomia que os professores
apresentam?
165
e n sa io
vol 8 • nº 2 • dez. 2006
166
e n sa io
vol 8 • nº 2 • dez. 2006
167
e n sa io
vol 8 • nº 2 • dez. 2006
Nesse sentido, existe uma relação estreita entre o conceito e a palavra. A palavra
é o meio pelo qual um conceito é construído, não há conceito sem palavra, a formação
dos conceitos só é possível através do pensamento verbal ou do signo. Um conceito
nada mais é que uma palavra que expressa uma generalização. Como os significados
das palavras se modificam permanentemente na história da humanidade e na história
de cada sujeito, podemos afirmar que os conceitos são construções históricas. Surgem
e se desenvolvem nas condições concretas da vida humana, não são construtos
fossilizados, visto que eles se transformam na dinâmica social carregando as marcas
e contradições do momento histórico em que se desenvolveram (FONTANA, 2000).
VYGOTSKY (1991), analisando a aprendizagem e o desenvolvimento infantil no
contexto escolar, distingue dois tipos de conceitos que variam pela sua estrutura
psicológica e pelo lócus onde tais conceitos são produzidos. VYGOTSKY denominou esses
conceitos de espontâneos (cotidianos) e científicos.
Os conceitos espontâneos (fruta, carro, vaca, telefone, computador) surgem da
reflexão da criança sobre suas experiências cotidianas, sendo aprendidos
assistematicamente. A criança se desenvolve conceitualmente na medida em que
consegue relacionar as palavras aos objetos a que se referem, existindo uma prevalência
nas relações direto-figuradas. Por esse motivo, a criança não tem consciência de tais
conceitos, mesmo que ela conheça bem o conteúdo de um conceito, em geral, não
consegue expressá-los verbalmente (LURIA,1979).
Por outro lado, os conceitos científicos (paquiderme, íon, substância, molécula,
zoologia, temperatura) se originam em processos formais de ensino e aprendizagem,
mediados por atividades estruturadas e especializadas e se caracterizam por formarem
um sistema hierárquico de relações lógico-abstratas. Os conceitos científicos
disponibilizados no plano social da sala de aula vão sendo incorporados à consciência
da criança. Desde o momento em que a criança ouve uma palavra nova (um conceito
novo) estão dadas as possibilidades de elas formulem verbalmente tais conceitos. Do
ponto de vista psicológico, a principal diferença entre conceitos científicos e espontâneos
é que o conceito científico apresenta uma relação de palavras com outras palavras
168
e n sa io
vol 8 • nº 2 • dez. 2006
169
e n sa io
vol 8 • nº 2 • dez. 2006
170
e n sa io
vol 8 • nº 2 • dez. 2006
171
e n sa io
vol 8 • nº 2 • dez. 2006
CONCLUSÕES
Acreditamos que modificando nosso olhar para o ensino de ciências nas séries
para iniciais, elencando e tomando como referência os saberes das professoras e
professores que ensinam ciências, os pesquisadores e formadores estarão em
melhores condições para compreender a realidade do ensino de ciências assim, para
construírem caminhos juntos.
Há que se considerar que o ensino nas séries iniciais é marcado pela
complexidade, pela dificuldade de integrar vários tipos de saberes. O profissional desse
segmento necessita conhecer o suficiente sobre diversas áreas do conhecimento, da
psicologia ao português, da matemática às artes, das ciências à educação física.
Entretanto, ao contrário do que muitos acreditam, ele não precisa ser especialista em
cada um desses ramos do conhecimento. O pleno domínio do conteúdo conceitual na
verdade, não é acessível a ninguém e nem é necessário ao ensino nas séries iniciais.
Apesar de se esperar que exista uma estreita relação entre segurança para ensinar
Ciências e o entendimento do professor sobre Ciências, compartilhamos com outros
autores a idéia de que a segurança para ensinar não depende apenas do entendimento
de ciências. Basta lembrarmos que existem docentes que possuem um alto
entendimento de ciências e baixa segurança para ensinar, do mesmo modo que há
professores com elevada segurança para ensinar, mas que apresentam um baixo
domínio conceitual.
A polivalência da professora das séries iniciais não consiste numa justaposição
de especialidades, mas na capacidade de situar cada disciplina, cada noção, cada
conteúdo conceitual, procedimental e atitudinal, ensinado de modo a promover e
intensificar o desenvolvimento da criança. Parafraseando FREIRE E HORTON (2003),
afirmamos que a especialidade da professora das séries iniciais é saber não ser um
172
e n sa io
vol 8 • nº 2 • dez. 2006
173
e n sa io
vol 8 • nº 2 • dez. 2006
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
ALMEIDA, Sheila Alves. Ver o invisível: o olhar das professoras sob uma experiência de
ensinar e aprender com as atividades de conhecimento físico nos ciclos iniciais. 2005.
Dissertação de Mestrado. Belo Horizonte: Faculdade de Educação da UFMG, 2005.
APPLETON, K.; KINDT, I. Why teach prymary science? Influences on beginning teacher’s
practices. International Journal of Science Education, v. 14, n. 5, p. 491-503. 1992.
CARVALHO, Ana Maria P.; GONÇALVES, Maria Elisa et al. Ciências no Ensino
Fundamental: o conhecimento físico. São Paulo: Scipione, 1999.
KELLY, Janet. Rethinking the Elementary Science Methods Course: a case for content,
pedagogy and informal science education. Int. J. SCI EDUC. Vol. 22, n.7, 755 – 777,
2000.
174
e n sa io
vol 8 • nº 2 • dez. 2006
SMITH, Deborah C.; NEALE, Daniel C. The construction of subject matter knowledge in
primary science teaching. Teaching & teacher education.
WEBB, Paul. Primary Teachers’ Understanding of Eletric Current. . Int. J. SCI EDUC. Vol.
14, n.4, 423 – 429, 1992.
VYGOTSKY, L. S. Thinking and speech. In: Collected works of L. S. Vygotsky. New York:
Plenum, 1987.
ZUZOVSKY, R.; TAMIR, P.; CHEN, C. Specialized science teachers and general teachers
and their impact on student outcomes. Teaching and teacher education. Vol. 5, n. 3 p
229-242.1989.
175