1 PB
1 PB
1 PB
ISSN: 2525-8761
RESUMO
Princesas com pele branca, cabelos lisos e predominantemente loiras; negros ocupando
majoritariamente posições de subserviência e marginalidade social. A maioria das
narrativas a que os alunos têm acesso apresentam as personagens dessa forma, seja no
meio cinematográfico, televisivo ou literário e isso em um país onde mais da metade da
população é constituída por negros e, ainda assim, precisa de leis que estabelecem a
obrigatoriedade do estudo de história e cultura africana, afro-brasileira e indígena. Este
estudo de campo, bibliográfico, aplicado, de caráter descritivo e quali-quantitativo tem
como objetivo geral verificar como a falta de representatividade influencia sobre crianças
e adolescentes negras na formação de suas personalidades. Para alcançá-lo, foram
traçados os seguintes objetivos específicos: realizar levantamento da autodefinição racial
dos alunos; verificar como os alunos descrevem as personagens das narrativas lidas em
sala de aula; promover debates, discussões e reflexões sobre as influências da ausência
de representatividade negra na forma como os alunos descreveram os personagens; e
aplicar uma sequência de atividades interventivas que privilegie a representatividade em
sua composição. O estudo foi desenvolvido em uma escola da rede pública de ensino de
São José de Ribamar – MA, o estado que apresenta o segundo maior percentual de
população negra do Brasil. Como resultado do estudo e da sequência interventiva, tem-
se uma coletânea de narrativas escritas e ilustradas pelos alunos participantes. O aporte
teórico adotado é constituído por: Amâncio (2008), Cavalleiro (2001), Barbosa (2006),
Dalcastagnè (2016) e Yoshi (2016).
ABSTRACT
Princesses with white skin, straight hair and predominantly blond; black people
occupying mostly positions of subservience and social marginality. Most of the narratives
to which students have access present the characters in this way, whether in the
cinematographic, television, or literary medium, and this in a country where more than
half of the population is black and yet needs laws that establish the mandatory study of
African, Afro-Brazilian, and indigenous history and culture. This field, bibliographical,
applied, descriptive, and qualitative-quantitative study has as its general objective to
verify how the lack of representation influences black children and adolescents in the
formation of their personalities. To achieve this, the following specific objectives were
outlined: conduct a survey of the students' racial self-definition; verify how the students
describe the characters of the narratives read in class; promote debates, discussions, and
reflections on the influences of the lack of black representativity in the way the students
described the characters; and apply a sequence of interventional activities that privilege
representativity in their composition. The study was developed in a public school in São
José de Ribamar - MA, the state with the second highest percentage of black population
in Brazil. As a result of the study and the interventional sequence, we have a collection
of narratives written and illustrated by the participating students. The theoretical
framework adopted is constituted by: Amâncio (2008), Cavalleiro (2001), Barbosa
(2006), Dalcastagnè (2016) and Yoshi (2016).
1 INTRODUÇÃO
A escola ainda é, mesmo diante das inúmeras tecnologias inerentes à sociedade
moderna, o principal ambiente de ocorrência de leitura. Quando se trata de leitura
literária, a escola é cenário quase exclusivo de acesso a este tipo de texto.
Conhecer a si, o outro e o ambiente em que se vive são algumas das possibilidades
do uso da literatura em sala de aula. Torna-se então necessário analisar como o uso do
texto literário e a forma como as personagens são descritas, apresentadas e o papel social
que desempenham nas narrativas pode dialogar com a construção da identidade e
formação do leitor.
O presente estudo surge das seguintes questões norteadoras: (i) como a leitura
literária em sala de aula pode auxiliar na construção do senso crítico, capacidade de
refletir, na humanização do jovem cidadão e suas relações com o meio social, com o outro
e na construção da identidade dos leitores em formação? (ii) de que forma a leitura de
textos de literatura africana e afro-brasileira (em conformidade com a lei nº 10.639/03,
alterada pela lei 11.645/08) em sala de aula pode auxiliar na construção da autoestima,
identidade dos jovens leitores? (iii) como a leitura de textos de literatura africana e afro-
brasileira na sala de aula pode contribuir efetivamente para o desenvolvimento do que é
o texto literário serve, assim, tanto para ser declamado em um sarau realizado
no cemitério quanto como estilema definidor da identidade e comportamento
social do indivíduo e do grupo – entre um e outro uso, a literatura deixa de ser
uma manifestação cultural, entre outras, para ser, à semelhança de uma obra
religiosa, uma fonte de ordenamento e sentido para o viver.
Buscar, nas representações da cidade, aquilo que não se quer ali – aqueles que
habitam seus desvios, que ameaçavam seus muros, os que foram jogados,
desde sempre para o lado de fora. É preciso um esforço considerável para se
encontrar, em meio a uma literatura tão marcadamente de classe média, branca
e masculina como a brasileira, uma construção diferente sobre a experiência
urbana contemporânea. (DALCASTAGNÈ, 2015, p.41).
É necessário oferecer perspectivas que demonstrem ao aluno que o negro não cabe
apenas na favela, na periferia, em ambientes onde o saneamento básico não chega, a
pobreza é extrema e a criminalidade é comum. Desfazer essa imagem estereotipada da
personagem negra é um desafio, pois na literatura brasileira a figura predominante ainda
é a personagem branca.
Ao selecionar textos desse tipo para serem lidos em sala de aula, a escola ajuda a
diminuir as chances de ideias racistas se perpetuarem na sociedade, pois segundo
Munanga (2012, p. 15), “para ser racista, coloca-se como postulado fundamental a crença
na existência de raças hierarquizadas dentro da espécie humana.”
Com vistas a promover uma reorientação das práticas pedagógicas para
proporcionar um ambiente escolar e condições para que os alunos negros se sintam
valorizados, valorizem seus traços, sua história e sua ancestralidade e construam sua
identidade é que a Lei 10.639/03 foi elaborada. No entanto, a simples existência da lei
não significa que a realidade das escolas será modificada. É necessário que os professores
sejam capacitados para aplicar a lei, reavaliar suas metodologias e modificar práticas
tradicionais para formar indivíduos mais conscientes da diversidade, tolerantes e avessos
a qualquer tipo de preconceito e discriminação racial.
Temos voz, sabemos falar por nós e acredite, só nós podemos responder por
nós. Só quem sofre o racismo velado na pele diariamente é quem pode reclamar
das mazelas que é ser negro num país de maioria negra, mas que age como
branco, porque assim nos foi imposto. É tão triste saber que se declarar negro
é motivo de discriminação, de chacota, de redução.
3 METODOLOGIA E PROCEDIMENTOS
As duas turmas de 8º ano selecionadas para a realização do estudo são da
modalidade regular e funcionam no turno matutino. A seleção aconteceu sob a
justificativa de a pesquisadora ser também professora regente de língua portuguesa de
ambas as classes. Os alunos informantes são matriculados e frequentes nas turmas
selecionadas e são oriundos da zona urbana de São José de Ribamar e da zona rural de
Paço do Lumiar, cidade limítrofe.
A pesquisa foi dividida em cinco etapas para facilitar a coleta, análise e registro
dos dados. As etapas do estudo aconteceram em dias letivos regulares e em conformidade
com o conteúdo planejado para as aulas, a fim de não alterar a rotina escolar e não causar
prejuízos pedagógicos às turmas.
A primeira etapa consistiu na abordagem inicial dos alunos com a leitura de três
contos da literatura oral africana. Posteriormente, foi solicitado que os alunos
registrassem em seus cadernos breves descrições físicas das personagens que apareciam
nos textos lidos. É importante ressaltar que as narrativas lidas não deixam nenhuma pista
sobre os traços físicos das personagens.
Na segunda etapa, foi solicitado que os alunos escrevessem uma autodescrição
física e comparassem com a descrição das personagens. Isso ocorreu com o objetivo de
despertar nos alunos a curiosidade sobre as semelhanças ou diferenças entre eles e as
personagens descritas na etapa anterior.
Na terceira etapa procedeu-se com a quantificação e qualificação dos dados
coletados para compreensão das informações e reflexões sobre o objeto de estudo e
posterior organização do presente material.
Na quarta etapa, foram realizadas rodas de conversas e produções textuais sobre
as percepções dos alunos sobre as informações das etapas anteriores. Foram feitos debates
sobre representatividade e uma análise das narrativas presentes no livro didático da turma
em busca de personagens protagonista negras e a conclusão desta etapa resultou na
realização da próxima etapa.
O primeiro texto lido, As duas irmãs, narra a história de duas irmãs que foram
sequestradas. Uma é comprada por um homem que se casa com ela e lhe dá uma vida boa
e feliz; a outra é escravizada e sofre muito.
Ao descrever as personagens desse texto, oito alunos descreveram as duas irmãs
como mulheres brancas; quatro descreveram a primeira como uma mulher branca e a
segunda como uma mulher parda; nove descreveram a primeira como uma mulher branca
e a segunda como uma mulher negra e apenas um aluno descreveu as duas irmãs como
pessoas negras.
Já o segundo texto, As duas mulheres, conta a história de duas amigas com vidas
opostas. Uma é pobre e tem muitos filhos e a outra é rica e estéril.
Treze alunos descreveram a primeira mulher como uma pessoa parda e a segunda
como uma pessoa branca; seis descreveram a primeira como uma mulher negra e a
segunda como uma mulher branca e três descreveram as duas personagens como mulheres
brancas.
O terceiro fala de uma menina em idade de casar que não falava. Os pais só dariam
a mão da jovem em casamento ao homem que conseguisse fazê-la falar. Aparece um
homem descrito no texto como sujo, pobre e insignificante para tentar vencer o desafio.
Onze alunos caracterizaram a jovem como branca e o homem como pardo; oito
descreveram a menina como branca e o homem como negro; e três descreveram a jovem
e o homem como pessoas brancas.
No primeiro texto, vinte e um alunos descreveram a primeira irmã (casada e feliz)
como uma pessoa de pele branca, treze alunos descreveram a segunda (escravizada) como
parda ou negra.
No segundo texto, vinte e dois alunos descreveram a primeira mulher (rica e
estéril) como branca e dezenove descreveram a segunda mulher (pobre e com muitos
filhos) como negra ou parda.
No terceiro texto, todos os vinte e dois alunos participantes descreveram a menina
(que mora com os pais e é desejada por vários pretendentes) como branca e dezenove
caracterizaram o homem (sujo, pobre e insignificante) como pardo ou negro.
Esses dados reafirmam duas informações: os leitores tendem a imaginar as
personagens como pessoas brancas e os papéis sociais desenvolvidos por essas
personagens nos textos exercem influência sobre a forma como os leitores as descrevem.
Os alunos desconsideraram o fato de as duas irmãs personagens do primeiro texto
terem sido igualmente vendidas no início da narrativa e associaram a ideia de escravidão
à pele negra e a de ascensão social à pela branca, por isso a irmã que casou e foi feliz foi
descrita como uma mulher branca e a que foi escravizada, como uma mulher negra. São
reflexos claros da escravização e suas profundas raízes na história da sociedade brasileira.
Já no segundo texto, os alunos associaram a pobreza e aparente falta de
planejamento familiar da personagem à pele negra. Isso ocorre porque grande parte da
população pobre é composta por negros e serviços de saúde e assistencialismo social
básico são acessados com maior dificuldade.
O terceiro texto pode fazer lembrar dos contos de fadas com uma moça em perigo
esperando um cavalheiro corajoso para salvá-la. A diferença está no jovem que é
caracterizado de forma negativa pelos termos sujo, pobre e insignificante. Isso bastou
para os alunos descreverem a menina como uma típica princesa em apuros e o rapaz como
uma pessoa negra, pois o perfil apresentado não condiz com aquele já canonizado de um
príncipe encantado.
As associações realizadas pelos alunos na composição das características físicas
das personagens encontram justificativa na história do país que desde a colonização
colocou os negros em posição inferior e, mesmo após a abolição da escravatura, a
condição não mudou. Isso porque “os negros deixaram de ser escravos, porém assumiram,
em grande parte, a condição de pobres e de indigentes. A eles se juntou uma parcela da
população branca para compor a base da nossa pirâmide social.” (GORENDER, 2009. p.
88)
Após leitura, compreensão dos contos e descrições das personagens, a
pesquisadora solicitou dos alunos que fizessem uma autodescrição. A próxima seção
apresenta e analisa os dados das autodescrições.
De posse desses dados, a pesquisadora solicitou dos alunos que fizessem uma
comparação entre suas características físicas e as que eles escolheram para descrever as
personagens dos contos. O objetivo era promover uma reflexão sobre as possíveis razões
para haver tanta diferença entre os leitores e a forma como eles imaginaram as
personagens presentes nos textos.
As descrições das personagens associadas às autodescrições feitas pelos alunos
confirmaram a hipótese inicial de que a falta de representatividade interfere na formação
da identidade de crianças e adolescentes negras. Isso porque, apesar de grande parte dos
alunos se autodeclararem pardos ou negros, eles não conseguem imaginar que as
personagens das histórias que leem podem ter as suas mesmas características físicas,
exceto quando se tratar daquelas que ocupam posição desprestigiada no enredo.
Após a coleta e análise dos dados, a professora convidou os alunos a folhearem o
livro didático em busca de narrativas cujas personagens fossem negras e não as
encontraram. Com base nessas informações, a docente seguiu com a promoção de
debates, rodas de conversa e produções escritas em que os alunos poderiam expressar
suas opiniões sobre a importância de ler textos em que as personagens se parecem com
eles e não tenham sempre as mesmas características arianas.
A próxima seção apresenta a atividade interventiva que surgiu como resultado
dessas discussões e debates.
6 ATIVIDADE INTERVENTIVA
A descrição feita pelos alunos revela como a ausência de representatividade na
literatura influencia na forma como os leitores e pessoas em formação enxergam as
personagens dos textos que leem e a si mesmos. Diante dessa confirmação, a professora
propôs um desafio às turmas que se transformou numa atividade interventiva. A proposta
foi elaborada em conformidade com a BNCC e visou a desenvolver a Competência Geral
da Educação Básica de nº 9:
7 CONSIDERAÇÕES FINAIS
A leitura literária consegue por meio da ficcionalidade sensibilizar o leitor sobre
a forma como enxerga e se relaciona consigo mesmo, com o outro e com o ambiente. A
literatura não tem o dever de instruir, mas pode fazê-lo sem perder seu caráter lúdico e
cultural. Sua utilização em sala de aula pode ajudar o professor a promover reflexões
sobre temas diversos, a representatividade, objeto desta pesquisa, é um desses temas.
O estudo confirmou que, ainda que o indivíduo se autodescreva como negro,
existe uma dificuldade em imaginar as personagens dos textos que lê como portadores
dos seus mesmos traços físicos. A falta de representatividade foi verificada como uma
causa importante desse problema, pois se a criança/adolescente em formação não vê
pessoas com suas mesmas características nos textos que lê, nos filmes a que assiste ou
outros produtos culturais a que tem acesso, não conseguirá se identificar ou imaginar que
alguém parecido com sua imagem pessoal ocupe posições de prestígio nas narrativas que
lê ou na sociedade em que vive.
É necessário que ideias equivocadas e cruéis que colocam o negro geralmente na
posição de empregado, motorista, bandido e marginalizado socialmente e o branco como
patrão, príncipe e rico não sejam transmitidas às crianças/adolescentes.
A literatura africana e afro-brasileira pode ser utilizada em sala de aula com essa
finalidade, auxiliando a desenvolver competências como empatia nos alunos e diminuir
preconceitos e discriminações raciais porque todos os alunos poderão perceber que as
pessoas podem ocupar posições sociais diversas independentemente da cor da pele. Isso
se confirmou com o êxito da atividade interventiva produto deste estudo, pois os alunos
participantes refletiram, expuseram ideias e por fim contribuíram para a solução do
problema detectado.
REFERÊNCIAS
AMÂNCIO, Iris Maria da Costa; GOMES, Nilma Lino; JORGE, Miriam L. dos Santos.
Literaturas africanas e afro-brasileira na prática pedagógica. 1. ed. Belo Horizonte:
Autêntica, 2008.
COSSON, Rildo. Círculos de leitura e letramento literário. São Paulo: Contexto, 2019.
GORENDER, Jacob. Brasil em preto & branco: o passado escravista que não passou. São
Paulo: SENAC, 2000.
LEFFA, Vilson J. Perspectivas no estudo da leitura: texto, leitor e interação social. In:
LEFFA, Vilson, J.; PEREIRA, Aracy, E. (Orgs.). O ensino da leitura e produção textual:
alternativas de renovação. Pelotas: Educat, 1999.
YOSHI, Ana T. Parem vocês brancos de agir como se soubessem o que é ser negro. In:
ESCREVA L O L A E S C R E V A . T e x t o d i s p o n í v e l e m : . Acesso em: Nov.
2019.