TESE Leidiane Souza de Oliveira

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UNIVERSIDADE FEDERAL DE PERNAMBUCO

CENTRO DE CIENCIAS SOCIAIS APLICADAS


DEPARTAMENTO DE SERVIÇO SOCIAL
Programa de Pós-Graduação em Serviço Social
Curso de Doutorado

LEIDIANE SOUZA DE OLIVEIRA

DISPUTAS IDEOPOLÍTICAS ENTRE CONSERVADORISMO E FEMINISMO NO


CONTEXTO BRASILEIRO DOS ANOS 2000

RECIFE/PE

2022
LEIDIANE SOUZA DE OLIVEIRA

DISPUTAS IDEOPOLÍTICAS ENTRE CONSERVADORISMO E FEMINISMO NO


CONTEXTO BRASILEIRO DOS ANOS 2000

Tese apresentada ao Programa de Pós-


Graduação em Serviço Social da
Universidade Federal de Pernambuco
como requisito final para obtenção do título
de Doutora em Serviço Social.

Área de Concentração: Serviço Social,


Movimentos Sociais e Direitos Sociais.

Orientadora: Profa. Dra. Mônica


Rodrigues Costa

RECIFE/PE

2022
Catalogação na Fonte
Bibliotecária Ângela de Fátima Correia Simões, CRB4-773

O48d Oliveira, Leidiane Souza de


Disputas ideopolíticas entre conservadorismo e feminismo no contexto
brasileiro dos anos 2000 / Leidiane Souza de Oliveira. - 2022.
254 folhas: il. 30 cm.

Orientadora: Prof.ª Dra. Mônica Rodrigues Costa.


Tese (Doutorado em Serviço Social) – Universidade Federal de
Pernambuco, CCSA, 2022.
Inclui referências.

1. Conservadorismo (Política). 2. Feminismo. 3. Movimento de


mulheres I. Costa, Mônica Rodrigues (Orientadora). II. Título.

361 CDD (22. ed.) UFPE (CSA 2022 – 057)


LEIDIANE SOUZA DE OLIVEIRA

DISPUTAS IDEOPOLÍTICAS ENTRE CONSERVADORISMO E FEMINISMO NO


CONTEXTO BRASILEIRO DOS ANOS 2000

Tese apresentada ao Programa de Pós-


Graduação em Serviço Social da
Universidade Federal de Pernambuco
como requisito final para obtenção do título
de Doutora em Serviço Social.

Aprovado em: 28/03/2022

BANCA EXAMINADORA

___________________________________________________________
Profa. Dra. MÔNICA RODRIGUES COSTA
Universidade Federal de Pernambuco (UFPE)
Orientadora

Profa. Dra. FLÁVIA DA SILVA CLEMENTE


Universidade Federal de Pernambuco (UFPE)
Examinadora Interna

____________________________________________________________
Dr. EVANDRO ALVES BARBOSA FILHO
Pós-Doutorando PPGSS/UFPE
Examinador Externo

_____________________________________________________________
Profa. Dra. SILVANA MARA DE MORAIS DOS SANTOS
Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN)
Examinadora Externa
_____________________________________________________________
Profa. Dra. CLÁUDIA MARIA MAZZEI NOGUEIRA
Universidade Federal de São Paulo (Unifesp)
Examinadora Externa

Profa. Dra. ANA CRISTINA DE SOUZA VIEIRA


Universidade Federal de Pernambuco (UFPE)
Suplente Interna

Profa. Dra. ROBERTA MENEZES SOUSA


Instituto Federal de Educação do Ceará (IFCE)
Dedico às minhas companheiras de turma do doutorado:
Fabiana Costa, Fabíola Mendonça, Iara Fraga, Mirella Lucena,
Simaia Ferreira, Stella D’Ângelis e Taciana Maria, pelo
companheirismo, pelas trocas acadêmicas e afetivas, pelo
amadurecimento coletivo, pelo tempo do doutorado e para
além.
AGRADECIMENTOS

Escrever uma tese! Já foi sonho, já foi medo... foi processo, foi costura,
descostura... foi mergulho, foi quase afogamento e, se me salvei – aliás, se aprendi a
nadar em águas tão turbulentas –, devo isso a quem esteve ao meu lado, a quem me
pôs tantas vezes em terra firme, a quem me acordou de pesadelos e, camaradamente,
construiu comigo um sonho bonito e possível. A todes que comigo tornaram a escrita
desta tese uma possibilidade, em tempos em que o cotidiano nem sempre se permitiu
suspender, meus profundos e sinceros agradecimentos.
À minha mãe Leilde, pelo constante refúgio para minha alma cansada e pela
capacidade de revigorar minhas forças com o combustível do amor quantas vezes foi
necessário.
Ao meu pai Edvaldo, por sempre apostar em mim, pelo orgulho com que me
apresenta e pela aposta nos meus ideais, quando eles nos custam tanto.
Aos meus irmãos Ernando, Leiliane e Netinho, cada qual ao seu modo, por
serem meus pilares de sustentação e por sustentarem essa estrutura mais velha, que
já ameaçou desabar algumas vezes.
Aos meus sobrinhos Gustavo, Anna Íris e Felipe. Vocês sem dúvidas me
tornam o melhor que posso ser, a tia mais babona. Com vocês, todo dia, por difícil que
seja, é um dia para sorrir e acreditar no futuro.
À minha madrinha Lenira, com quem sempre conto, pela disponibilidade em me
ajudar sempre e pela companhia constante.
À Alane, não só pela família que fomos em Recife nesses anos, mas também
pela presença constante e por dividir esses anos com companheirismo, afetos e
irmandade.
A Nestor, pelo estímulo desde a seleção, pelas caronas até a UFPE, pelos
cafés nos corredores e pelos encontros recifenses, mossoroenses e além.
A Renato, pela vivência cotidiana, as risadas, as conversas aleatórias e os
carnavais.
Às minhas amigas do trabalho, pelos estímulos frequentes, pelo apoio na vida
acadêmica e afetiva. Agradeço à Cláudia Gomes, por toda solidariedade, por todo
incentivo, pelos nossos dias na Europa e por aquecer os dias de inverno com sua
companhia aconchegante; à Luciana Cantalice, pelo afeto imensurável, pelas portas
sempre abertas em sua casa, pelas tantas partilhas e pela confiança; e à Mauricélia,
pelo nosso encontro na jornada docente desde 2013, pelo que construímos a partir
dele e pelo que ainda teremos a partilhar. Amo vocês!
À Kassandra Meneses, cara companheira, pela atenção, pelo cuidado
constante, pela valorosa amizade e pela alegria a cada encontro.
À Jéssica Juliana, pelas partilhas dos debates em comum nas nossas
pesquisas, por abrir sua casa em João Pessoa e por abrir o coração e os ouvidos
sempre que eu preciso.
À Janine Oliveira, pelo elo estabelecido para além da formação, pelos tantos
encontros e pelo compartilhamento da moradia sempre que eu precisei.
Às minhas ex-estagiárias docentes e agora amigas: Danielle Maria, pelas
trocas poéticas, pelo estímulo literário, pelas mensagens constantes e por todo
respeito; e Raquel Brito, agora colega de profissão, pelas trocas feministas, pelos
desabafos regados a cerveja e pelo compromisso com a profissão e com a militância.
Aos amigos Jaciara, Lidiane, Iago e Ademir, por tornarem cada encontro uma
festa e por possibilitarem tantas alegrias com suas conquistas, mesmo diante de
tantas adversidades. A Joane, Rose, Suzany e Luís Henrique (afilhados). A Janikleide
e Ricardo, pela aconchegante recepção em Santos.
À Tassia Rejane, valorosa companheira da UFRN que tive o prazer de
reencontrar e conviver em Recife.
À Andreia Santos, pelo nosso bonito encontro, pelo companheirismo e pelo
tanto que me ensinou. Minha gratidão!
Às minhas admiráveis companheiras de turma – Fabiana, Fabíola, Iara, Mirella,
Simaia, Stella e Taciana –, por cada aula compartilhada, por cada atividade concluída
e por dividirem os desafios comuns a oito mulheres com cotidianos diferentes e
experiências em comum na pós-graduação.
Às amigas que a UFPE me trouxe: à Jussara Bernado, pela disponibilidade em
me receber para risos e choros e pelo cuidado, uma marca de sua pessoa. Você foi
um presente; à Crismanda Ferreira, pelos diálogos constantes e pela gentileza que
lhe é peculiar; à Iris Pontes, por toda energia pernambucana, pelo riso frouxo e pela
atenção de sempre; a Alison Cleiton, pela solidariedade, pelas trocas, pela alegria e
pelos cafés; à Elizangela Cardoso, que reencontrei na UFPE e com quem compartilhei
importantes reflexões acadêmicas; e a Jader (Jadinho), pelos bons momentos
partilhados.
A Rogério Gomes, pela aproximação em meio ao distanciamento, por colocar
cores nos dias acinzentados, pelas manhãs de domingo, pelos banhos de água doce
e pela coleção de bons momentos.
Aos/às companheiros/as da gestão Avançar sem Temer: fortes independentes,
do CRESS Paraíba (2017-2020), com quem pude dividir tarefas políticas e
administrativas importantes, pelo tanto que me ensinaram ali e seguem me ensinando.
Aos/às integrantes do Grupo de Pesquisa sobre Economia Política e Trabalho
(Gepet), do Departamento de Serviço Social da UFPB, pelas reiteradas oportunidades
de troca e pelo apoio acadêmico afetivo.
Ao Núcleo de Estudos sobre Trabalho e Gênero (NETeG), da Unifesp - Baixada
Santista, por me recepcionar na realização de meu intercâmbio no segundo semestre
de 2019, pela excelente supervisão da Profa. Cláudia Mazzei e pela orientação da
Profa. Juliane Peruzzo, cujas referências carrego para a vida.
À Facepe, pelo apoio financeiro neste projeto.
Ao Departamento de Serviço Social da UFPB, pelo empenho em garantir o
direito à qualificação no meu processo de doutoramento e pela comunicação
constante.
À minha orientadora Mônica Costa, pela receptividade comigo, com minha
proposta de pesquisa, pelas respeitosas interlocuções, pela leitura atenta, pelas
observações contundentes e pela aposta no meu caminho. Muito obrigada!
Aos/as professores/as da Pós-Graduação em Serviço Social da UFPE, pelo
comprometimento com a formação crítica e pelo esforço coletivo em manter a
qualidade da pesquisa e sua socialização.
Às professoras e pesquisadoras Silvana Mara e Verônica Ferreira, por quem
carrego admirações teóricas e políticas desde a graduação e pelas contribuições que
dão às lutas feministas, por aceitarem examinar este trabalho.
Ao professor Evandro Barboza, pelo aceite do convite para composição da
banca examinadora deste trabalho.
Ao CNPQ, pelo financiamento na modalidade Bolsa de Doutorado durantes os
dois últimos anos dessa pesquisa.
“Costuma-se dizer que a árvore impede a visão da floresta, mas o tempo
maravilhoso da pesquisa é sempre aquele em que o historiador mal começa
a imaginar a visão de conjunto, enquanto a bruma que encobre os
horizontes longínquos ainda não se dissipou totalmente, enquanto ele ainda
não tomou muita distância do detalhe dos documentos brutos, e estes ainda
conservam todo o seu frescor. Seu maior mérito talvez seja menos defender
uma tese do que comunicar aos leitores a alegria de sua descoberta, torná-
los sensíveis – como ele próprio o foi – às cores e aos odores das coisas
desconhecidas. Mas ele também tem a ambição de organizar todos esses
detalhes concretos numa estrutura abstrata, e é sempre difícil para ele
(felizmente!) desprender-se do emaranhado das impressões que o
solicitaram em sua busca aventurosa, é sempre difícil conformá-las
imediatamente à álgebra no entanto necessária de uma teoria.”
(ARIÈS, 1986, p.9)
RESUMO

O contexto econômico e político das duas primeiras décadas dos anos 2000 se
caracteriza por uma acentuada disputa ideológica entre o conservadorismo e o
feminismo, permeada pela ascensão da dinâmica capitalista em crise e suas
requisições ao Estado brasileiro a fim de privilegiar a lucratividade em detrimento do
atendimento às necessidades humanas. Desse modo, surgem tanto sujeitos políticos
representantes dos ideais conservadores quanto feministas, que vão disputar
perspectivas conflitantes, servindo de base para nossa análise. Procedemos, assim,
com uma pesquisa de caráter qualitativo e recorremos à análise documental e
bibliográfica, sob a ótica do método materialista histórico e dialético de base
ontológica. A partir disso, temos como objetivos: identificar as determinações que
particularizam o avanço do conservadorismo, do patriarcado e do racismo nas
políticas e nos programas destinados às mulheres no século XXI; analisar as
principais tendências ideopolíticas que sustentam as políticas e programas voltados
aos direitos das mulheres a partir dos anos 2000; e apreender como se expressa a
correlação de forças (que denominamos disputas ideopolíticas) entre a agenda
feminista classista e a agenda liberal e conservadora nas pautas feministas, os
sujeitos políticos que a defendem e seus interesses. Nos detemos em conceitos e
categorias como crise do capital, patriarcado e conservadorismo. Para além disso,
analisamos documentos e publicações nos sites e blogs dos sujeitos que
caracterizamos como conservadores: o Movimento Brasil Livre (MBL), o Escola Sem
Partido, a Bancada Evangélica e o Movimento Brasil Conservador (MBC). Em
contraposição, analisamos documentos e matérias de blogs e redes sociais dos
movimentos feministas Pão e Rosas, Movimento Mulheres em Luta, Coletivo Ana
Montenegro e Resistência Feminista, que atuam em conjunto a outros movimentos
sociais e partidos e que surgiram no contexto dos anos 2000. É inegável que as forças
conservadoras crescem aliadas à regressão de direitos e aos ataques à democracia,
além de se sustentar no patriarcado e no racismo. Os movimentos feministas que
analisamos desenvolvem ações de formação, divulgam seus posicionamentos
políticos e realizam mobilizações e protestos, que os colocam como sujeitos coletivos
ativos na sociedade. Sendo assim, crescem as lutas feministas, anticapitalistas e
antirracistas, cujas possibilidades e desafios seguem o curso histórico da luta de
classes no Brasil. Foi possível identificar que, em grandes medidas, esses
movimentos se aproximam em suas ações, com algumas diferenças como maior
atuação no Sul e Sudeste, no caso do Pão e Rosas e Movimento Mulheres em Luta
(MML), e com alguns mais focados no combate ao racismo, a exemplo da resistência
feminista e do Coletivo Ana Montenegro (CFCAM), sendo outros movimentos focados
em ações mais genéricas.

Palavras-chave: Disputas ideopolíticas; Conservadorismo; Feminismo.


RESUMEN

El contexto económico y político de las dos primeras décadas de la década del años
2000 se caracteriza por una aguda disputa ideológica entre conservadurismo y
feminismo, permeada por el auge de la dinámica capitalista en crisis y sus peticiones
al Estado brasileño, para privilegiar la rentabilidad sobre el encuentro de las
necesidades humanas. Así, hay tantos sujetos políticos que representan ideales
conservadores y feministas, que disputarán perspectivas conflictivas, sirviendo de
base para nuestro análisis. Se procedió a una investigación cualitativa, através del
análisis documental y bibliográfico, con el objetivo de: identificar las determinaciones
que particularizan el avance del conservadurismo, el patriarcado y el racismo en las
políticas y programas dirigidos a las mujeres del siglo XXI; analizar las principales
tendencias ideopolíticas que apoyan las políticas y programas orientados a los
derechos de las mujeres desde la década de 2000 en adelante; y aprender cómo se
expresa la correlación de fuerzas (que llamamos disputas ideopolíticas) entre la
agenda feminista de clase y la agenda liberal y conservadora en las agendas
feministas, los sujetos políticos que la defienden y sus intereses. Nos enfocamos en
conceptos y categorías como capital crisis, patriarcado y conservadurismo. Además,
analizamos documentos de temas que caracterizamos como conservadores: el
Movimiento Brasil Libre (MBL), la Escuela Sin Partido, el Banco Evangélico y el
Movimiento Conservador de Brasil (MBC). En contraste, analizamos documentos y
artículos de blogs y redes sociales de los movimientos feministas Pão e Rosas,
Movimiento de Mujeres en Lucha, Colectiva Ana Montenegro y Resistencia Feminista.
Es innegable que las fuerzas conservadoras crecen aliadas a la regresión de derechos
y ataques a la democracia, además de sostenerse en el patriarcado. Los movimientos
que analizamos desarrollan acciones de formación, dan a conocer sus posiciones
políticas y realizan movilizaciones y protestas, que los ubican como sujetos colectivos
activos en la sociedad. Por tanto, crecen las luchas feministas, anticapitalistas y
antirracistas, cuyas posibilidades y desafíos siguen el curso histórico de la lucha de
clases en Brasil. Fue posible identificar que, en gran medida, estos movimientos son
similares en sus acciones, con algunas diferencias, como una mayor actuación en el
Sur y Sudeste, en el caso de Pão e Rosas y Movimento Mulheres em Luta (MML), y
con algunos más enfocados en combatir el racismo, como la resistencia feminista y el
Colectivo Ana Montenegro (CFCAM), con otros movimientos enfocados en acciones
más genéricas.

Palabras clave: Controversias ideopolíticas; Conservatismo;Feminismo.


RÉSUMÉ

Le contexte économique et politique des deux premières décennies des années 2000
est caractérisé par une vive querelle idéologique entre conservatisme et féminisme,
imprégnée par la montée de la dynamique capitaliste en crise et ses demandes à l'État
brésilien, afin de privilégier la rentabilité à la rencontre les besoins des besoins
humains. Ainsi, il y a tant de sujets politiques représentant des idéaux conservateurs
et féministes, qui contesteront des perspectives contradictoires, servant de base à
notre analyse. Nous avons procédé à une recherche qualitative, à travers une analyse
documentaire et bibliographique, visant à: Identifier les déterminations qui
particularisent l'avancée du conservatisme, du patriarcat et du racisme dans les
politiques et programmes destinés aux femmes au 21e siècle; analyser les principales
tendances idéopolitiques qui soutiennent les politiques et programmes visant les droits
des femmes depuis les années 2000; et pour appréhender comment s'exprime la co-
relation de forces (que nous appelons conflits idéopolitiques) entre l'agenda féministe
de classe et l'agenda libéral et conservateur dans les agendas féministes, les sujets
politiques qui le défendent et leurs intérêts. Nous nous concentrons sur des concepts
et des catégories tels que la crise des capitaux, patriarcat et conservatisme. De plus,
nous avons analysé des documents de sujets que nous qualifions de conservateurs:
le Mouvement Brésil Libre (MBL), l'école sans parti, le Banc évangélique et le
Mouvement conservateur du Brésil (MBC). En revanche, nous avons analysé des
documents et des articles de blogs et réseaux sociaux des mouvements féministes
Pão e Rosas, Mouvement des femmes en lutte, Collectif Ana Montenegro et
Résistance féministe. Il est indéniable que les forces conservatrices s'allient à la
régression des droits et aux atteintes à la démocratie, en plus de se maintenir dans le
patriarcat. Les mouvements que nous avons analysés développent des actions de
formation, font connaître leurs positions politiques et mènent des mobilisations et des
protestations, qui les placent en tant que sujets collectifs actifs dans la société. Par
conséquent, les luttes féministes, anticapitalistes et antiracistes se développent, dont
les possibilités et les défis suivent le cours historique de la lutte des classes au Brésil.
Il a été possible d'identifier que, dans une large mesure, ces mouvements sont
similaires dans leurs actions, avec quelques différences, telles que de meilleures
performances dans le sud et le sud-est, dans le cas de Pão e Rosas et Movimento
Mulheres em Luta (MML), et avec certains plus axés sur la lutte contre le racisme,
comme la résistance féministe et le Coletivo Ana Montenegro (CFCAM), avec d'autres
mouvements axés sur des actions plus génériques.

Mots-clés: Conflits idéopolitiques; Conservatisme; Féminisme.


LISTA DE QUADROS

QUADRO 1: Sujeitos Conservadores nos anos 2000 ................................. 143

QUADRO 2: Panorama da Representação da FPE de 2002 a 2018 ...........153

QUADRO 3: Valores e Princípios do MBL .................................................... 162

QUADRO 4: Sujeitos feministas classistas e antirracistas que surgem nos anos 2000
....................................................................................................................... 192
LISTA DE SIGLAS

AIs – Atos Institucionais

AMB – Articulação de Mulheres Brasileiras

ANTD – Agência Nacional de Trabalho Decente

BID – Banco Interamericano de Desenvolvimento

BM – Banco Mundial

CDES – Conselho de Desenvolvimento Econômico e Social

CFCAM – Coletivo Feminista Classista Ana Montenegro

CFESS – Conselho Federal de Serviço Social

CLT – Consolidação das Leis Trabalhistas

CNDM – Conselho Nacional dos Direitos da Mulher

CDES – Conselho de Desenvolvimento Econômico e Social

CNMB – Conferência Nacional de Mulheres Brasileiras

Deam – Delegacia Especializada de Atendimento à Mulher

Dieese – Departamento Intersindical de Estatísticas e Estudos

DRU – Desvinculação dos Recursos da União

Ebserh – Empresa Brasileira de Serviços Hospitalares

EPL – Estudantes Pela Liberdade

ESP – Escola Sem Partido

FGTS – Fundo de Garantia do Tempo de Serviço

FMI – Fundo Monetário Internacional

FPA – Frente Paramentar Agropecuária

FPE – Frente Parlamentar Evangélica

IBGE – Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística


IBQP – Instituto Brasileiro de Qualidade e Produtividade

IEDI – Instituto de Estudos para o Desenvolvimento Industrial

LGBTQIA+ - Lésbicas, Gays, Bissexuais, Transexuais, Travestis, Queers, Intersexo,

Assexual e mais

LIDE – Grupo de Líderes Empresariais

MBC – Movimento Brasil Conservador

MBL – Movimento Brasil Livre

MML – Movimento Mulheres em Luta

MPT – Ministério Público do Trabalho

MTE – Ministério do Trabalho e Emprego

OIT – Organização Internacional do Trabalho

ONGs – Organizações Não-Governamentais

ONU – Organização das Nações Unidas

Oscip – Organizações da Sociedade Civil de Interesse Público

Paeg – Plano de Ação Econômica dos Governos

PEA – População Economicamente Ativa

PEC – Proposta de Emenda Constitucional

PMDB – Partido Movimento Democrático Brasileiro

PNAD – Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios

PNE – Plano Nacional de Educação

PNPM – Plano Nacional de Políticas para as Mulheres

PPP – Parceria Público-Privado

PSDB – Partido da Social-Democracia Brasileira

PSC – Partido Social Cristão

PSL – Partido Social Liberal


PRB – Partido Republicano Brasileiro

PT – Partido dos Trabalhadores

Raseam – Relatório Anual Socioeconômico da Mulher

RGPS – Regime Geral de Previdência Social

RPPS – Regimes Próprios de Previdência Social

Sebrae – Serviço Brasileiro de Apoio às Micro e Pequenas Empresas

SEP – Sociedade Brasileira de Economia Política

Seppir – Secretaria de Políticas de Promoção à Igualdade Racial

SUS – Sistema Único de Saúde


SUMÁRIO

1. INTRODUÇÃO ..................................................................................................... 19

1.1 Da aparência à essência: as aproximações sucessivas ao objeto em análise


................................................................................................................................... 21

1.2 Mediações e contradições assimiladas no processo investigativo e método


de exposição ...................................................................................................... 26

2. O SOCIAL - LIBERALISMO E AS RESPOSTAS POSSÍVEIS ÀS


REIVINDICAÇÕES FEMINISTAS: contradições econômico-políticas na primeira
década dos anos 2000 ............................................................................................ 30

2.1 Crise do Capital e seus desdobramentos na transição do século XX ao século


XXI ............................................................................................................................ 31
2.2 Fundamentos históricos do social-liberalismo e do patriarcado no Brasil
................................................................................................................................... 44
2.3 As Políticas para as mulheres na agenda social-liberal: entre os interesses
feministas e as imposições do mercado .............................................................. 53
2.4 Desafios à consolidação da agenda feminista brasileira rumo à
segunda década do século XXI .............................................................................. 67
3. DO SOCIAL-LIBERALISMO AO LIBERAL-CONSERVADORISMO: implicações
patriarcais às mulheres na segunda década dos anos 2000
................................................................................................................................... 77

3.1 O Conservadorismo em ascensão no Brasil: ideologias dominantes e o


patriarcado em processo ...................................................................................... 78
3.2 Ajuste fiscal, crise política e perspectiva antidemocrática no Brasil: a guerra
“antidireitos” na década 2011-2020 ..................................................................... 94
3.3 As implicações da regressão dos direitos trabalhistas para as mulheres
trabalhadoras .........................................................................................................105
3.4 Desmonte da Seguridade Social e as particularidades para as mulheres
................................................................................................................................. 115
3.5 A dimensão racial do processo antidireitos e o lugar das mulheres negras
no Brasil ................................................................................................................. 124

4. SUJEITOS DO CONSERVADORISMO E SUAS AÇÕES IDEOPOLÍTICAS NO


BRASIL: o revigoramento da direita fundamentalista e antifeminista
................................................................................................................................. 134
4.1 A direita sob nova roupagem no Brasil e o recrudescimento do
conservadorismo de bases fundamentalista religiosa e antifeminista
..................................................................................................................................135

4.2 A Frente Parlamentar Evangélica e o fortalecimento do fundamentalismo


religioso na política brasileira .............................................................................. 145

4.3 O Movimento Brasil Livre (MBL): “liberal no discurso e conservador nos


costumes” ............................................................................................................. 158

4.4 Escola Sem Partido: do programa político à incidência do discurso anti


“ideologia de gênero” ........................................................................................... 169

4.5 Movimento Brasil Conservador (MBC) ......................................................... 178

5. RESISTÊNCIA FEMINISTA CLASSISTA E ANTIRRACISTA EM PROCESSO:


disputas ideológicas e políticas no Brasil dos anos 2000
................................................................................................................................. 185

5.1 A Consubstancialidade Classe, Raça e Gênero e a perspectiva anticapitalista


e antirracista do Movimento Feminista .............................................................. 187

5.2 O Movimento Pão e Rosas ............................................................................ 196

5.3 Movimento Mulheres em Luta (MML) ........................................................... 203

5.4 Coletivo Feminista Classista Ana Montenegro ........................................... 209

5.5 Resistência Feminista ................................................................................... 217

5.6 Síntese analítica das confluências e divergências dos sujeitos do feminismo


................................................................................................................................ 224

6. CONSIDERAÇÕES FINAIS ............................................................................... 228

6.1 Revelações do Caminho de volta ................................................................. 228

6.2 Tendências da disputa ideopolítica entre conservadorismo e feminismo


................................................................................................................................ 234

REFERÊNCIAS ..................................................................................................... 237


1 INTRODUÇÃO

Esta tese contém reflexões e análises em torno das disputas políticas e


ideológicas (daí porque denominamos ideopolíticas) em torno do conservadorismo e
do feminismo, ambos como campos categoriais antagônicos aqui analisados sob o
viés das lutas de classes expressas no contexto brasileiro dos anos 2000.
A escolha pelas primeiras décadas do século XXI se deu em função de se tratar
de um período em que, contraditoriamente, algumas demandas foram postas no
cotidiano das lutas sociais, e, particularmente, pelo movimento feminista em torno das
necessidades das mulheres, enquanto os sujeitos do conservadorismo passam a
atuar na perspectiva de criminalizar as lutas e minimizar os direitos.
Constitutiva da estratégia da dominação burguesa, a exploração das mulheres
situa-se no contexto de restauração do sistema do capital diante da crise estrutural
que o assola, marcadamente o acirramento da orientação neoliberal das políticas e
das medidas legislativas que demarcam os direitos sociais e do trabalho, sobretudo
na segunda década do século em curso.
O caminho que nos leva ao interesse em pesquisar as investidas
conservadoras e sua relação com o patriarcado e com o racismo dá continuidade à
trajetória acadêmica traçada até aqui pela autora desta tese, comportando elementos
acadêmicos e profissionais desde a formação profissional com a experiência de
estágio obrigatório em uma coordenadoria de atendimento às mulheres no Rio Grande
do Norte, em 2006, quando da promulgação da Lei 11.340/2006 – a Lei Maria da
Penha –, culminando no Trabalho de Conclusão de Curso (TCC), em 2008, intitulado
Análise das lutas de sujeitos coletivos feministas pela efetivação da Lei Maria da
Penha.
Em 2011, a continuação dessas inquietações culminou na dissertação intitulada
Violência e luta por direitos no capitalismo contemporâneo: crítica à configuração do
atendimento às mulheres no Rio Grande do Norte, que nos permitiu chegar ao
doutorado com algumas aproximações sucessivas ao objeto em questão na direção
de apreender maiores determinações sobre ele.
No âmbito das relações sociais capitalistas e diante do aprofundamento dos
níveis de barbarização da vida, ocasionados pela agudização da crise do capital, a
condição das mulheres – sobretudo das mulheres negras no contexto de ameaças

19
aos direitos conquistados e aos valores antifeministas – expressa uma particularidade
que só pode ser apreendida e explicada tomando como base a reprodução social e
as mediações do Estado, do direito e da luta política no campo do feminismo classista.
Dito isso, nosso objetivo com a pesquisa que resultou nesta tese consistiu em
apreender as disputas ideopolíticas entre as expressões patriarcais e racistas do
conservadorismo político em ascensão no Brasil e as tendências ideopolíticas
feministas classistas e antirracistas nos anos 2000.
Esse objetivo se desdobra, especificamente, em: identificar as determinações
que particularizam o avanço do conservadorismo e do seu viés patriarcal e racista no
século XXI; analisar as principais tendências ideopolíticas que sustentam as políticas
e programas voltados aos direitos mulheres a partir dos anos 2000; e apreender como
se expressa a correlação de forças entre a agenda feminista classista antirracista e a
agenda liberal e conservadora nas pautas feministas e quais os sujeitos políticos que
a defendem.
Nesse sentido, demarcamos a necessária vinculação dessa análise ao campo
das lutas anticapitalistas e antirracistas na perspectiva da classe trabalhadora e
consideramos que se faz necessário levar em consideração as perspectivas das lutas
feministas que se colocam atreladas à luta mais geral da classe trabalhadora de
resistência ao capitalismo.
Concomitantemente, demarcamos uma contribuição aos estudos em uma
perspectiva histórica e de totalidade, ao abordar a questão das mulheres como uma
particularidade, no conjunto da vida social, tendo como mediação o patriarcado e o
racismo, que historicamente põem e repõem desafios para as mulheres (em maior
grau para as negras), que são constantemente inferiorizadas em relação aos homens,
desencadeando, no conjunto das relações sociais, o machismo, a divisão sexual do
trabalho e implicações para profissões ditas “de homens e de mulheres”, salários mais
baixos para as mulheres negras, inserção feminina tardia no alcance de direitos
políticos e civis, dentre outros elementos.
Nessa sistematização teórica, há elementos da realidade política e social
brasileira que ratificam a necessidade das lutas por direitos da classe trabalhadora e
das mulheres, reconhecendo em particular a sua importância e dando visibilidade às
formas de luta e às estratégias de intervenção dos sujeitos coletivos feministas aqui
elencados.

20
Consideramos relevante a contribuição dos movimentos feministas em questão
aos movimentos sociais, sindicatos e partidos políticos com os quais mantêm uma
relação orgânica, incidindo sobre questões próprias das desigualdades de sexo no
interior desses espaços.
Socialmente, o movimento feminista em geral e os grupos aqui destacados
constroem coletivamente as ações de luta em combate ao conservadorismo e aos
seus representantes, em um movimento interno de formação de base e externo, a
partir de demarcação de seus posicionamentos, na luta por direitos e com a
participação das mulheres nas mobilizações e reivindicações distintas.
Para tanto, resgatamos, aqui, aspectos históricos que materialmente dão
suporte às ideologias conservadoras, mais precisamente as raízes patriarcais e
racistas inerentes à formação social brasileira, que, nos anos 2000, se reatualizam em
uma entoada antifeminista e exigem uma resposta contundente do feminismo
classista e antirracista.
Esse contexto comporta contradições, mediações e particularidades que não
podem ficar de fora da nossa análise, tais como: as contraposições às aberturas
sociais da conciliação de classes; a organização de grupos que consignam ideais
neoliberais e conservadores, como uma particularidade desse tempo histórico no
Brasil; as consequências para ataques à democracia, a exemplo do golpe parlamentar
ocorrido em 2016 e a consequente destituição da presidenta Dilma Rousseff; e a
aceleração da agenda antidireitos, cujas expressões são as contrarreformas
trabalhista e previdenciária, em um curto período de dois anos, através das quais se
amplia os níveis de desigualdade tanto para a classe trabalhadora quanto para as
mulheres em particular, marcadas pela divisão sociossexual e racial do trabalho.

1.1 DA APARÊNCIA À ESSÊNCIA: AS APROXIMAÇÕES SUCESSIVAS AO


OBJETO DE ANÁLISE

Cotidianamente nos deparamos com elementos da realidade que evidenciam


as desigualdades que marcam a vida das mulheres, a exemplo dos altos índices de
violência, sobretudo física (cometida majoritariamente por namorados e ex-
namorados, maridos e ex-maridos), das formas de agressões morais, da depredação
patrimonial, da violação dos direitos sexuais e reprodutivos e da tortura psicológica,

21
que compõem um quadro de barbárie social marcado pela violência e pelo racismo,
considerando que tais dados tendem a ser mais agravantes para as mulheres negras.
Historicamente, as mulheres organizadas em movimentos diversos questionam
esses fenômenos e lutam em defesa da manutenção e da ampliação de direitos,
questionando os padrões impostos às suas vidas, aos seus corpos e às relações
sociais patriarcais e raciais nas quais estamos inseridas.
Tomando como fenômeno aparente que motivou nossas inquietações iniciais
para a elaboração dessa tese as disputas ideológicas entre a primavera feminista e a
proposição do Projeto de Lei nº 5069, no ano de 2015, nos propusemos a investigar
as determinações dessa disputa, com vistas a ampliar a nossa apreensão sobre quais
são as determinações históricas desse conflito.
Buscamos, desse modo, apreender as tendências de fortalecimento de uma
cultura “antidireitos” ancorada em perspectivas antifeministas e reprodutoras do
racismo, quais os retrocessos frente às conquistas das mulheres, particularmente das
mulheres negras nos anos 2000, período de acentuação da crise do capital e suas
recentes roupagens a partir de 2008. Além disso, também buscamos analisar o
patriarcado como mecanismo/sistema histórico e material que submete as mulheres
ao poder dos homens, vinculado ao crescimento do conservadorismo político e suas
articulações com os interesses burgueses, patriarcais e racistas.
Em contrapartida, identificamos alguns movimentos de resistência a essas
expressões, cujas incidências políticas culminam no que denominamos “disputas
ideopolíticas”, que estão em jogo na conjuntura brasileira atual. Sobre essas disputas,
buscamos apreender quais as pautas, as estratégias e as perspectivas anticapitalistas
de enfrentamento ao conservadorismo, ao racismo e ao patriarcado.
Diante dessas determinações histórico-concretas, operamos um movimento de
transformação em problema de pesquisa, que exige tanto a elaboração como as
respostas das seguintes questões: como se evidencia a articulação entre o
conservadorismo, o patriarcado e o racismo nos anos 2000? Como se configuram as
políticas e os programas estatais destinadas à incorporação das pautas feministas e
antirracistas? Como se expressam as disputas ideopolíticas e como elas podem se
manifestar em medidas antifeministas e reprodutoras do racismo? Quem são os
sujeitos políticos interessados em difundir as propostas antifeministas? Quais os seus

22
argumentos e suas bandeiras? Quem são os movimentos feministas e antirracistas
que surgem como expressões de resistência da classe trabalhadora nesse contexto?
Tais questões nos permitiram ampliar o conjunto de elementos em torno do
objeto de estudo com algumas aproximações sucessivas realizadas no processo
investigativo, dentre as quais destacamos: a tendência à reprodução ideológica
patriarcal como suporte do conservadorismo, considerando que seus sujeitos
defendem um recuo nas pautas feministas apontando riscos à família e ao
cristianismo, a exemplo do Escola Sem Partido e da Bancada Evangélica; a
identificação de uma ampliação desses sujeitos tanto no Parlamento (crescimento de
bancadas de cunho conservador) como na ação coletiva em sociedade – Movimento
Brasil Livre (MBL) e Movimento Brasil Conservador (MBC); e a expressão da luta de
classes com a ascensão de coletivos e setoriais feministas classistas nos espaços de
organização da classe trabalhadora, como exposto no capítulo cinco.
A partir do pressuposto de que existe conexão entre o fim dos governos de
conciliação de classe do Partido dos Trabalhadores (PT), expresso inclusive nos
discursos do Parlamento na ocasião do golpe que destituiu a ex-presidenta Dilma
Rousseff do cargo e a ascensão conservadora, de base patriarcal e racista, no que se
refere às investidas contra os direitos, encontramos uma forma particular de
expressão da ideologia conservadora, através da qual se fundem interesses
neoliberais e conservadores, conforme apontado por Biroli (2017).
Um outro pressuposto com o qual trabalhamos foi o de que o recrudescimento
do conservadorismo no Brasil possui um aporte ideopolítico antifeminista e racista,
expresso pela organização e articulação de sujeitos coletivos (aos quais nos
debruçamos no quarto capítulo e encontra resistência na organização feminista
anticapitalista e antirracista).
Apreendemos, por meio da análise de programas e políticas para as mulheres
na primeira década dos anos 2000, a perspectiva social-liberal nas propostas, aliadas
aos interesses do mercado e dos ditames dos organismos internacionais para a
economia, dentre as quais destacamos as ideologias do empoderamento e do
empreendedorismo.
A partir disso, temos como base o movimento do real, em que as conquistas
alcançadas pelas mulheres se apresentam como parte resultante das lutas feministas

23
acerca dos desafios do cotidiano na vida das mulheres e se transformam em agenda
política feminista.
Estamos diante de um contexto em que movimentos de direita ocupam as ruas,
incidem sobre o parlamento – propondo e aprovando medidas que representam um
projeto de classe conservador – e atingem diretamente as conquistas políticas e
sociais alcançadas pelas mulheres, conforme apresentamos no capítulo 4.
O objeto aqui evidenciado – as disputas ideopolíticas entre sujeitos
conservadores e movimentos feministas classistas – é uma expressão singular do
movimento mais genérico de antagonismos e disputas entre as classes, conformando
as lutas sociais contemporâneas em sua totalidade.
O conservadorismo está sendo tratado aqui como categoria de análise que,
expressando o conjunto de valores e medidas estabelecidas pelos interesses da
classe dominante no sentido de conservar seu modo de vida, tem no patriarcado a
mediação central para a negação dos avanços das mulheres em relação aos homens.
Em sua particularidade, as lutas das mulheres como parte de um projeto
classista universal estão inseridas em movimentos mais amplos que consideram a
necessária participação das mulheres na luta anticapitalista, denotando a perspectiva
de totalidade da vida social por meio da qual o agir político se realiza.
Por esse esforço, realizamos um movimento que caracterizamos como dialética
materialista, que, por sua vez, realiza e desenvolve a aproximação à realidade objetiva
conjuntamente ao caráter processual do pensamento como meio para esta
aproximação, podendo compreender a universalidade em uma contínua tensão com
a singularidade em uma contínua conversão em particularidade e vice-versa
(LUKÁCS, 1978).
Os anos 2000 são, portanto, um período singular da sociabilidade burguesa,
cujas configurações do conservadorismo só podem ser apreendidas enquanto parte
de uma investida histórica das classes dominantes com evidências de sua
conformação nesse contexto particular, no qual a mediação do patriarcado é central
para o desfecho do problema de pesquisa aqui tratado.
A partir do exposto, desenvolvemos uma pesquisa de cunho qualitativo, cujos
métodos “enfatizam as especificidades de um fenômeno em termos de suas origens
e de sua razão de ser” (HAGUETTE, 1995, p. 63), considerando que, como nos
afirmam Minayo, Deslandes e Gomes (2016, p. 14):

24
[...] a realidade social é a cena e o seio do dinamismo da vida individual e
coletiva com toda a riqueza de significados dela transbordante. Essa mesma
realidade é mais rica que qualquer teoria, qualquer pensamento e qualquer
discurso que possamos elaborar sobre ela (MINAYO; DESLANDES; GOMES,
2016, p. 14).

O método de análise do objeto aqui tratado, ainda que possa recorrer a


instrumentos qualitativos (análise de dados, levantamento de ações e proposições),
está embasado na perspectiva ontológica marxiana, que:

Trata-se, pois, para Marx, de partir não de ideias, especulações ou fantasias,


mas de fatos reais, ‘empiricamente verificáveis’, no caso os indivíduos
concretos, o que eles fazem, as relações que estabelecem entre si e as suas
condições reais de existência para então apreender as determinações
essenciais que caracterizam este tipo de ser e o seu processo de reprodução
(TONET, 2013, p. 79).

Lessa (1999) recorre a Lukács para reiterar a dimensão ontológica do processo


de pesquisa, considerando que esta envolve processualidades históricas inesgotáveis
entre consciência e objetividade cujo conhecimento resultante desse processo é
historicamente determinado, não havendo, portanto, identidade entre sujeito e objeto.
Nesse sentido, ele afirma:

Através de analogias com elementos simples do já conhecido, buscamos


similaridades no desconhecido (é matéria orgânica ou inorgânica, é capaz de
inteligência ou não?), de modo a descobrirmos alguns elementos parciais do
objeto sob investigação. Elementos verdadeiros, certamente, mas parciais,
porque não permitem reproduzir, na consciência, a totalidade no interior da
qual se articulam em complexo (LESSA, 1999, p. 17).

De tal modo, ao enriquecer o fenômeno do qual partimos por meio de


determinações mais complexas, temos a possibilidade de contribuir para os interesses
da classe trabalhadora e das mulheres nela inserida partindo do aprofundamento dos
elementos ideológicos que permeiam a realidade, sobretudo ao revelar os aspectos
da totalidade e como esses aspectos incidem na singularidade do problema
específico.
Para uma apreensão maior dos fenômenos que comportam as disputas
ideológicas e políticas, procedemos com uma análise de sujeitos representantes do
conservadorismo político brasileiro nos anos 2000, a partir de suas programáticas
ações orquestradas e de seus objetivos, destacados tanto em documentos como nas
25
páginas virtuais e redes sociais. Os sujeitos em questão são a Bancada Evangélica,
o projeto Escola Sem Partido, o MBL e o MBC.
Em contrapartida, analisamos os sujeitos do feminismo classista e antirracista,
também resultantes das transformações políticas dos anos 2000 – sendo essas as
razões para comporem nosso quadro –, cujas ações e ideias ampliam as lutas sociais
na perspectiva feminista, além de enfrentarem a ideologia conservadora quando
defendem um projeto societário sem exploração e dominação.
Através desses sujeitos coletivos, acreditamos ser possível identificar formas
de resistência classista ao conservadorismo, considerando que os esses sujeitos
surgem no contexto dos anos 2000 com o intuito de fazer frente à conjuntura política
e econômica por meio da qual as tendências conservadoras, patriarcais e racistas
incidem.
Não sendo possível pensar a reprodução social isolada da produção na
perspectiva aqui adotada, o conservadorismo e o patriarcado serão analisados no
âmbito das relações social da sociabilidade burguesa contemporânea, marcada por
contradições e mediações complexas e dinâmicas que incidem na relação sujeito-
objeto nesse processo de pesquisa, nos indicando os limites e as possibilidades desta
elaboração teórica.

1.2 MEDIAÇÕES E CONTRADIÇÕES ASSIMILADAS NO PROCESSO


INVESTIGATIVO E MÉTODO DE EXPOSIÇÃO

O objeto a ser desvendado resguarda uma relação de transformação entre si e


o sujeito pesquisador no processo de apropriação da realidade sobre a qual estamos
nos debruçando, de modo que, ao retomarmos o método de análise marxiano e os
materialismos histórico e dialético de apreensão da realidade nesta pesquisa,
poderemos articular as dimensões teórico-metodológicas e ideopolíticas existentes na
relação entre sujeito e objeto.
Destacamos, nesse sentido, que não se trata “de construir – teoricamente – um
objeto com os materiais oferecidos pelos dados empíricos, mas de traduzir, sob forma
teórica, o objeto na sua integralidade” (TONET, 2013, p. 112).
Como adverte Kosik (1986, p. 33):

26
A posição da totalidade, que compreende a realidade nas suas íntimas leis e
revela, sob a superfície e a causalidade dos fenômenos as conexões internas,
necessárias, coloca-se em antítese à posição do empirismo, que considera
as manifestações fenomênicas e causais, não chegando a atingir a
compreensão dos processos evolutivos da realidade (KOSIK, 1986, p. 33).

Recorremos à pesquisa bibliográfica sobre as categorias e conceitos de “crise”,


“conservadorismo”, “patriarcado” e “feminismo”, além de tecermos considerações
sobre o Estado e as determinações do neoliberalismo no contexto da crise do capital.
Além disso, recorremos à pesquisa documental para evidenciar as tendências
regressivas dos direitos sociais, especificamente das mulheres.
A partir disso, utilizamos a pesquisa de documentos oficiais, em que se
encontram as pautas feministas nos anos 2000, mais precisamente os Planos
Nacionais de Políticas para as Mulheres I, II e III, buscando identificar a incidência de
interesses ideopolíticos liberais e conservadores na perspectiva de aprofundar as
breves incursões que apresentamos aqui. Além disso, também analisamos
documentos dos movimentos feministas, tais como regimentos internos, programas
políticos, notas públicas e matérias de jornais.
Acerca da crise do capital e seus rebatimentos na conjuntura brasileira atual,
adensamos a discussão a partir das contribuições de Braga (1997), Mészáros (2002),
Harvey (2011), Castelo (2013), Duménil e Lévy (2013) e Dardot e Laval (2016).
No tocante à categoria do conservadorismo, recorremos às formulações
teóricas de Burke (2014), Coutinho (2014), Scruton (2016), Escorsim Netto (2011),
Souza (2016), Demier (2016), Lacerda (2019), R. Keller (2019), S. Keller (2019) e
Machado (2017).
O patriarcado, aqui pautado na perspectiva de Saffioti (2004) como um sistema
de dominação-exploração das mulheres em um contexto de desigualdades em
relação aos homens se coloca como categoria central por conferir às desigualdades
postas para as mulheres um caráter desigual, atribuindo às relações sociais um
caráter de relações patriarcais de gênero. Recorremos a Biroli (2018), Cisne (2013),
Sousa (2018) e Almeida (2017) para construir um estado da arte das lutas feministas
no Brasil nos anos 2000.
O neoliberalismo e sua configuração contemporânea conta com a elaboração
teórica de Dardot e Laval (2016); Harvey (2011); Sader e Gentili (2008).
A mediação da luta de classes é crucial em toda a pesquisa, por meio da qual
se expressam as configurações do social-liberalismo e do avanço do conservadorismo
27
de modo que os sujeitos aqui destacados estão em constante disputa durante os anos
2000 como uma particularidade das lutas entre interesses dominantes e interesses da
classe trabalhadora.
Uma contradição pulsante na realidade analisada é a dos direitos conquistados
no âmbito formal que não são garantidos em sua amplitude, desembocando em um
movimento de regressão por meio das decisões políticas. Esse campo, por sua vez,
é um campo de tensão contínua entre os interesses feministas e a lógica minimalista
que acompanha o conjunto das políticas e dos programas sociais por meio dos quais
os direitos são garantidos.
Outra mediação é a articulação entre ideologia e política, a partir da qual
situamos as contraposições entre uma agenda conservadora e antifeminista (por parte
dos sujeitos coletivos que destacamos no terceiro capítulo como representantes do
conservadorismo) e as reivindicações feministas (compostas por ações, difusão de
valores, posicionamentos e formação de quadros). A esse respeito foram
fundamentais as contribuições de Lukács (2013); Antunes (2009), Ferreira (2017).
Destacamos, ainda, a contradição da representatividade política no espaço
democrático, que se propõe a ser um lugar de representação coletiva por excelência,
mas, contraditoriamente, apresenta-se de maneira crescente como um espaço
hegemônico de intolerância à diversidade que caracteriza a população brasileira e de
ideais dominantes, embora com embates e resistência. Tais aspectos apontam,
inclusive, para ataques sistemáticos ao próprio sistema democrático, conforme
demonstrou a destituição da presidenta Dilma Rousseff, em 2016.
Em contrapartida, as ações ideopolíticas dos movimentos feministas são aqui
apresentadas como classistas e antirracistas, uma mediação particular da luta política
empregada como forma legítima de difusão dos ideais feministas, anticapitalistas e
conectados com as lutas das mulheres negras.
A exposição dos aspectos apreendidos nesta pesquisa está estruturada em
quatro capítulos, que serão resumidos a seguir.
O primeiro capítulo, intitulado O social-liberalismo e as respostas possíveis às
reivindicações feministas: contradições econômico-políticas na primeira década dos
anos 2000, compõe uma articulação da direção política social-liberal aos
desdobramentos da crise do capital em curso, marcando por essa lógica as políticas
para as mulheres e ensejando desafios à consolidação de seus direitos.

28
No segundo capítulo, o qual intitulamos Do social-liberalismo ao liberal-
conservadorismo: implicações patriarcais às mulheres na segunda década dos anos
2000, situamos o patriarcado como um dos pilares estruturantes do conservadorismo
expresso no Brasil nesse primeiro quinto de século. Além disso, constatamos que o
caráter liberal das políticas se alia aos aspectos conservadores, para que, juntos, se
autoafirmarem como direita, conciliando seus interesses e recrudescendo a ofensiva
antidireitos e antifeminista, sobretudo na segunda década.
Sob o título Sujeitos do conservadorismo e suas ações ideopolíticas no Brasil:
o revigoramento da direita fundamentalista e antifeminista, o terceiro capítulo
comporta a análise e as apreensões dos sujeitos coletivos que sugerimos como
representantes do conservadorismo, com destaque para seus posicionamentos
antifeministas e reprodutores do racismo. Situados no contexto mundial, tais sujeitos
coletivos se situam nos espaços legislativos e constroem estratégias de mobilização
para difundirem seus ideais.
No quarto e último capítulo, intitulado Resistência feminista em processo:
disputas ideológicas sob uma perspectiva da luta de classes no Brasil dos anos 2000,
realizamos um mapeamento seguido de análise de ações e estratégias das lutas
feministas classistas, situando-as em três eixos: difusão ideológica; ações coletivas;
e formação, a fim de expor a concretude da consubstancialidade entre classe, raça e
gênero a partir de movimentos feministas que se autodenominam anticapitalistas e
antirracistas. As ações que destacamos nesse capítulo relacionam-se, para fins
metodológicos, com gênero, raça e classe, embora todas se situem em um contexto
de lutas que reivindicam transformações nas relações capitalistas, patriarcais e
racistas, que, via de regra, não se dissociam.
Nesta Introdução, apresentamos alguns aspectos essenciais para a elaboração
da pesquisa, tais como as motivações, o ponto de partida, o caminho percorrido, o
referencial teórico e os procedimentos metodológicos. Nas Considerações finais,
foram apresentadas algumas conclusões com base no conteúdo exposto, somadas a
algumas tendências que a conjuntura enseja, além de alguns dos resultados
alcançados por esta pesquisa e de algumas tendências em curso no confronto
feminismo x conservadorismo no início da terceira década do século XXI.
Dito isso, a quem possa interessar a leitura desta tese, fica o desejo de que a
leitura seja profícua e proveitosa, com possibilidades de trocas e aprendizados.

29
2. O SOCIAL-LIBERALISMO E AS RESPOSTAS POSSÍVEIS ÀS
REIVINDICAÇÕES FEMINISTAS: CONTRADIÇÕES ECONÔMICO-POLÍTICAS NA
PRIMEIRA DÉCADA DOS ANOS 2000

A chuva que irriga os centros do poder imperialista


afoga os vastos subúrbios do sistema.
Do mesmo modo, e simetricamente,
o bem-estar de nossas classes dominantes –
dominantes para dentro, dominadas de fora –
é a maldição de nossas multidões,
condenadas a uma vida de bestas de carga (GALEANO, 2010, p.11)

A análise elaborada neste capítulo se concentra em expor as conexões


identificadas entre o processo de crise do capital, as transformações operadas pelo
capitalismo em um movimento global e suas particularidades no Brasil.
Para tanto, recuperamos alguns aspectos históricos da formação brasileira, em
cujo desenvolvimento estão fincados os fundamentos econômicos, sociais e políticos
das relações entre as classes e o Estado na contemporaneidade.
Em uma análise da primeira década dos anos 2000, identificamos, no conjunto
das políticas consideradas socialdesenvolvimentistas, um quadro de elaborações de
políticas para as mulheres, que, em grande medida, reproduzem o caráter social-
liberal enquanto particularidade do conjunto das políticas e programas nesse contexto
sem uma ruptura efetiva com a ausência do Estado e seu caráter neoliberal, embora
resultem também de uma agenda de reivindicações feministas.
Com isso, são identificados aspectos de um território de ascensão do
conservadorismo, além de desafios para o conjunto dos/as trabalhadores/as rumo à
segunda década do século XXI. Isso, claro, considerando especificamente as
mulheres, que não encontram um cenário propício à consolidação dos mecanismos
legais de enfrentamento às desigualdades nas relações entre os sexos e têm seus
direitos recentemente alcançados fortemente ameaçados. O contexto, então, é de
intensificação das disputas de articulação das lutas feministas contra o capitalismo, o
patriarcado e o racismo.

30
2.1 CRISE DO CAPITAL E SEUS DESDOBRAMENTOS NA TRANSIÇÃO DO
SÉCULO XX AO SÉCULO XXI

A segunda metade do século XX foi palco histórico das mais altas investidas
do sistema do capital, que, ao passo que evidenciou sua capacidade de se
reestruturar, também apresentou a tendência aos limites da continuidade do seu
desenvolvimento, cujas expressões nesse período da história revelam a incidência
política e ideológica do controle econômico necessário para a continuação do seu
processo de acumulação da riqueza coletivamente produzida.
Ainda que possamos tratar das experiências revolucionárias do século XX, bem
como as conquistas políticas e sociais do chamado do welfare state nos países mais
desenvolvidos da Europa após a II Guerra, a ofensiva operada pelo capital sobre a
força de trabalho a partir da década de 1970, aliada ao império financeiro
estadunidense e sua capilaridade internacional, culminou no espraiamento do
neoliberalismo, cujas consequências configuram a realidade social do início dos anos
2000.
A expansão das políticas neoliberais e sua capilaridade internacional foram
tratadas por David Harvey (2011), que destacou as dimensões econômica e política
desse processo que ele caracteriza como neoliberalização:

Podemos, portanto, interpretar a neoliberalização seja como um projeto


utópico de realizar um plano teórico de reorganização do capitalismo
internacional ou como um projeto político de restabelecimento das condições
do poder das elites econômicas. [...] a neoliberalização não foi muito eficaz
na revitalização da acumulação do capital global, mas teve notável sucesso
na restauração ou, em alguns casos (a Rússia e a China, por exemplo) na
criação do poder de uma elite econômica (HARVEY, 2011, p. 27). Grifos do
autor

As últimas três décadas do século XX foram marcadas pela contraposição


direta do projeto de neoliberalização às políticas sociais decorrentes da intervenção
estatal nas relações de trabalho por meio de seguros sociais e da ampliação de
direitos para a classe trabalhadora nos países de capitalismo central, apontando para
o horizonte do século XXI o acirramento entre as lutas pela manutenção das
conquistas de direitos e a tendência global à desestatização e mercadorização dos
serviços como dimensões de um mesmo processo: a ofensiva do capital para a
manutenção de sua hegemonia e crescimento mundiais.
31
Caracterizada por Mészáros (2002) como uma crise de caráter estrutural, a
crise do capital não apenas aparece de forma cíclica, como também “[...] afeta a
totalidade de um complexo social em todas as relações com suas partes constituintes
ou subcomplexos, como também a outros complexos aos quais é articulada”
(MÉSZÁROS, 2002, p. 56).
As expressões da crise do capital na década de 1970 pareciam revelar que os
anos de expansão do emprego e do assalariamento com proteção social, próprios do
keynesianismo-fordismo que configuraram o período após a II Guerra, nada mais
eram que a consolidação de “[...] uma grande área de influência política e cultural para
expansão das atividades econômicas em um quadro favorável de estabilidade política”
(MARTINS, 2009, p. 13).
Notadamente, o discurso da liberdade individual que embasa o liberalismo e
sua nova versão de crítica às intervenções estatais no período após a II Guerra
(neoliberalismo) pressupõe a defesa do livre mercado, com forte adesão dos países
de capitalismo periférico, cujas medidas estatais destinadas à esfera da proteção
social de trabalhadores não chegou a se consolidar, sendo inviabilizada pelo
atravessamento de ideologias como solidariedade, terceiro setor, empreendedorismo,
competitividade, empoderamento e apelos ao individualismo.
Situando a crise do welfare state nesse âmbito macroeconômico, Netto (2012,
p. 78, grifos do autor) a entende enquanto parte da “[...] crise estrutural das condições
que viabilizaram o desenvolvimento do capitalismo num marco de democracia
política”. Nesse sentido cabe enfatizar, ainda, que:

Eis por que a significação da crise do Welfare State possui um alcance que
está longe de ser exagerado: em si mesma, revela que a manutenção e o
evolver da ordem do capital estão implicando, cada vez com mais
intensidade, ônus sócio-humanos de monta (NETTO, 2012, p. 78, grifos do
autor).

Sob a égide dos interesses da burguesia internacional, a exigência do


desmonte dos sistemas de proteção social a nível mundial varia conforme o grau de
consolidação do aparato de direitos construídos e com contornos distintos entre os
países no movimento de mundialização do capital.
Em análise feita na última década do século XX, Martins (1999) já apontava o
entrelaçamento da ideologia da mundialização do mercado às estratégias do capital
para enfrentar suas crises, com destaque para a influência do seu movimento
32
internacional sobre os estados nacionais. De acordo com o autor (com quem
concordamos):

Desde os anos 70, se intensifica o movimento de desregulação nos Estados


nacionais. A globalização levaria, no limite, a uma homogeneização completa
do mercado mundial, sem as barreiras protecionistas nacionais. Como um
processo idealizado e que procura se concretizar, não deveriam existir mais
formas políticas nacionais, só a cultura do mercado mundial, do capital
totalmente globalizado (MARTINS, 1999, p. 32).

Com uma retórica sustentada pela defesa da redução das funções do Estado,
o neoliberalismo apregoa como responsabilidade pública apenas medidas que
correspondem “[...] aos direitos básicos dos indivíduos, à liberdade de ação dos
agentes econômicos e ao fortalecimento de bens públicos e serviços estatais
necessários à manutenção da ordem, tais como defesa, segurança justiça e serviço
sociais” (CASTELO, 2013, p. 220).
Na perspectiva de liberdade de mercado evidenciada pela ideologia neoliberal,
o capital financeiro se expande em um movimento de integração de mercados
acompanhado de estratégias de dominação por parte dos Estados Unidos, que se
consolida como potência econômica em ascensão e caracteriza a mundialização do
capital (CHESNAIS, 1996) a partir da combinação de dois elementos:

O primeiro pode ser caracterizado como a mais longa fase de acumulação


ininterrupta do capital que o capitalismo conheceu desde 1914. O segundo
diz respeito às políticas de liberalização, de privatização de
desregulamentação e de desmantelamento de conquistas sociais e
democráticas, que foram aplicadas desde o início da década de 1980, sob o
impulso dos governos Thatcher e Reagan (CHESNAIS, 1996, p. 34).

Do ponto de vista econômico, temos um contexto no qual “o que salta aos olhos
no grupo de grandes países centrais é o peso dos Estados Unidos, potência
hegemônica que gera, sozinha, 30% do PIB mundial” (DUPAS, 2005, p. 22. grifos do
autor)
Ao se remeter à centralidade econômica dos Estados Unidos nesse processo,
Wood (2014) ressalta que:

Os Estados Unidos saíram da Segunda Guerra mundial como a maior


potência militar e econômica e assumiram o comando de um novo
imperialismo governado por imperativos econômicos e administrados por um
sistema de múltiplos Estados – com todas as contradições e os perigos que
tal combinação apresentaria. Esse império econômico seria sustentado pela
33
hegemonia política e militar sobre um complexo sistema de Estados,
composto por inimigos que tinham de ser mantidos sob controle e um ‘terceiro
mundo’ que tinha de ser colocado à disposição do capital ocidental (WOOD,
2014, p. 100).

Alguns aspectos determinantes para que os Estados Unidos assumissem o


controle mundial da economia durante as últimas décadas do século XX, destacados
por Martins (2005), são: a ruptura com o Sistema de Bretton Woods, em 1971, que
significou a quebra da equivalência do ouro como padrão para o dólar em referência
ao câmbio internacional, apresentando um “puro padrão dólar inconversível”
(MARTINS, 2005, p. 14); a efetivação do mercado de eurodólares ou euromoedas
enquanto formas supranacionais que se apresentam como protoformas do advindo
processo de globalização da era capitalista; e a tendência à ruptura com a ordem
capitalista do período após a II Guerra, evidenciada nos períodos críticos da recessão
capitalista nas décadas subsequentes.
Pretensamente harmônicas, as relações comerciais entre os Estados Unidos e
outros países são marcadas pela expropriação de riquezas e de trabalho, embasadas
em um projeto de manutenção da lucratividade financeira cujo encabeçamento político
coincide com um grupo de homens defensores do conservadorismo enquanto
estratégia para a permanência do exercício de poder, mesmo que, para isso, acione
o armamento e desenvolva guerras.
A esse respeito, Ferreira (2005) destaca a atuação de um grupo de
neoconservadores nos Estados Unidos, na segunda década dos anos 2000,
denominado de Neocons, cuja ação obstinada e organizada se apresenta como “[...]
um manual prático de como é possível a um grupo pequeno e organizado, mesmo
depois de ter sido motivo de chacota entre autoridades e especialistas do stablishment
de política externa, impor a política de uma superpotência” (FERREIRA, 2005, p.
49).(Grifo do autor).
No que concerne a uma “reestruturação produtiva global” operada pelo
capitalismo que buscava se reestabelecer a partir da década de 1970, Martins (2005)
afirma que:

Nos 20 anos seguintes, à medida em que se sucediam novos e mais potentes


abalos sísmicos no mercado mundial, essa mais recente onda histórica de
globalização da indústria capitalista acelerava mais e mais a expansão do
mercado e da indústria mundial, até o último rincão do globo, exatamente na

34
medida dos impactos daqueles abalos periódicos e da necessidade de serem
superados (MARTINS, 2005, p. 20-21).

Nos países da América Latina, a segunda metade do século XX foi marcada


por ditaduras impostas com a finalidade de atender aos interesses econômicos e
políticos dos setores das classes dominantes nos próprios países e pelos Estados
Unidos, com o objetivo de expandir-se como potência econômica por meio da
exploração e da dominação desses territórios em um processo de ofensiva à
possibilidade da classe trabalhadora de organizar uma saída efetiva ao capitalismo,
caracterizado como um massacre que, segundo Fontes (2010, p. 15), “[...] ceifou uma
geração de jovens trabalhadores, de militantes, além de tentar adestrar as populações
pela tortura e pelo medo, a moderar suas reivindicações a nível do infrapossível”.
Ainda de acordo com Fontes (2010, p. 14):

[...] tais ditaduras eliminaram impulsos de uma efetiva democratização que


estava em curso, através de reformas universalizantes e substantivas, como
a reforma agrária, educacional, de saúde, contra as remessas de lucros para
o exterior, entre outras demandas populares. Na metade cheia do copo, a
maioria dessas ditaduras sangrentas impôs a ferro e fogo a monopolização
capitalista, esvaziando o sentido, se é que houvera, de tais burguesias
nacionais. Na metade vazia e silenciada do copo, entretanto, as burguesias
industriais – assim como as demais burguesias – não foram vítimas desses
golpes, mas suas beneficiárias e cúmplices (FONTES, 2010, p. 14, grifos da
autora).

Desde a década de 1970, o neoliberalismo atinge a América Latina com um


caráter fortemente autoritário, visando bloquear a influência da Revolução Cubana nos
países do Sul da América. No Chile, em 1973, a ditadura de Pinochet atendia tanto
aos interesses de mercado quanto ao controle ideológico da direita no combate aos
ideais socialistas/comunistas.
Nos demais países, essa tendência vai aparecer mais fortemente nas décadas
de 1980 e 1990, com a perspectiva de tornar o Estado o gerente dos interesses
burgueses. Conforme Castelo (2013, p. 235), nesse período:

Os impactos da adesão da social democracia ao neoliberalismo e seus efeitos


só ficaram nítidos em meados da década de 1990, quando a antiga social-
democracia formulou e sistematizou a sua adesão ao neoliberalismo e propôs
a refundação ‘ética e humanista’ no capitalismo no que ela mesma chamou
de terceira via (CASTELO, 2013, p. 235).

35
Não por coincidência, o processo de fortalecimento da financeirização do
capital na última década do século XX nos países da periferia do capital se fortalece,
com base nas orientações de organismos internacionais tais como o Banco Mundial e
o Fundo Monetário Internacional (FMI), com fortes perspectivas para o século XXI.
Um panorama das desigualdades na América a partir da adoção do receituário
neoliberal foi apresentado por Soares (2001) com destaque para a disparidade da
desigualdade entre os 10% mais ricos e os 40% mais pobres em diversos países do
continente, em que os primeiros detêm renda 10 vezes mais que os segundos, além
de aumento do subemprego e do desemprego, com uma considerável redução salarial
(diminuição das remunerações do trabalho).
Um fato que chama atenção nesses movimentos realizados pelo capital, por
meio dos mecanismos de afirmação do modo de produção capitalista em seu contexto
de crise, é que a instauração de processos de dominação econômica no século XX é
acompanhada também pelo desenvolvimento de mecanismos ideológicos de
dominação, cuja finalidade de difundir e manter os interesses dominantes se
intensificou no século XXI.
As classes dominantes tratam de fortalecer seus intelectuais (individuais e
coletivos) a fim de disseminar seus valores, sua dominação e estabelecer um
consenso, processo no qual o Estado assume tarefa primordial no apaziguamento e
na repressão de trabalhadores/as frente às suas distintas organizações de
reivindicações e resistências.
Assim como na Alemanha analisada por Marx e Engels, é inegável que há uma
tendência ao falseamento da realidade pela classe dominante, bem como em todas
as tentativas de manutenção da ordem e de poder. Porém, concordamos com as
argumentações de Lukács (2013, p. 471), que, por sua vez, ressalta que “[...] a
existência social da ideologia parece pressupor os conflitos sociais que precisam ser
travados em sua forma primordial, isto é, socioeconômica”.
A capacidade de organizar pensamentos e ações, contrapostas ou adequadas
a uma determinada ordem socioeconômica que é própria dos sujeitos, pressupõe a
construção de ideais e valores a serem compartilhados coletivamente. Como a forma
de organização social de classes é antagônica, temos por suposto que tais valores
estão incumbidos de disputas e contrassensos e, decorrente disso, “[...] o surgimento

36
e a disseminação de ideologias se manifestam como a marca registrada geral das
sociedades de classe” (LUKÁCS, 2013, p. 465).
Levando em consideração o movimento operado pelo capital no seu processo
de crise, aliado às estratégias de dominação dos Estados Unidos, situamos um
movimento de transformação dos ideais neoliberais (tanto os seus aspectos
econômicos como ideológicos), bem como as implicações para o fortalecimento da
ideologia conservadora e do patriarcado, como fatores entrelaçados na totalidade das
relações sociais da sociabilidade capitalista na contemporaneidade.
Incorporados às estratégias de superação da crise capitalista, o neoliberalismo
e o conservadorismo se conectam como elementos centrais no ascenso da direita no
mundo, cujas exigências articulam o enfraquecimento da crítica e das lutas pela classe
trabalhadora, por suas condições de trabalho e pela regulação de direitos pelo Estado,
tendendo a recuos significativos na perspectiva democrática e cidadã.
Sutilmente, com um aparato institucional a nível internacional – a exemplo do
FMI, do Banco Mundial e da Organização das Nações Unidas (ONU) – o
neoliberalismo e o conservadorismo adensam um discurso sob o qual aliam
desenvolvimento econômico e justiça social em uma perspectiva que descarta a
trajetória de reivindicações populares e concentra no Estado o desenvolvimento de
uma agenda.
Tais elementos, não por coincidência, se desenvolvem ao tempo de uma
reação conservadora que comunga teorias e práticas em defesa de um modelo
hegemônico de sociabilidade de mercado, cujas consequências para sua manutenção
são transformações na lógica interventiva do Estado e sua relação tanto com o grande
capital internacional, como com a sociedade. Isso, claro, em termos nacionalistas.
Como alertam Duménil e Lévy (2013) sobre a “grande contração” após o
compromisso do período após a II Guerra, a aliança entre as classes gerenciais e
populares, sob a liderança das primeiras, se transmuta para uma aliança entre as
classes capitalistas e a gerencial. Nesse movimento, próprio da tentativa burguesa de
enfrentar a crise neoliberal, valores e práticas que estimulem o esvaziamento do
conhecimento da realidade se tornam corriqueiras. Por exemplo:

As fundações de classe dessa nova ordem social seriam, como no


neoliberalismo, um compromisso entre as classes altas, capitalistas e
gerentes, mas sobre liderança gerencial, com certo grau de compromisso de

37
interesses capitalistas e sem as características de bem-estar social das
décadas do pós-guerra (DUMÉNIL; LEVY, 2013, p. 39).

Convergente com essa perspectiva de transformações na cultura neoliberal,


Dardot e Laval (2016) apontam para a atual existência de uma coalisão de poderes
concretos por parte das oligarquias burocráticas e políticas, de multinacionais, de
atores financeiros e de grandes organismos econômicos internacionais.
Conforme a análise desses autores, o neoliberalismo impõe uma nova
racionalidade, que está para além das dimensões ideológicas e econômicas conforme
a lógica mercadológica que lhe é inerente, mantendo o Estado como coprodutor das
normas de competitividade e alcançando o íntimo das subjetividades. Nesse
processo, há um distanciamento do ordoliberalismo europeu, atravessando as esferas
do neoliberalismo das décadas de 1980 e 1990 com o empresariamento do Estado e
chegando, então, na chamada nova razão do mundo, que se dá mediante uma grande
virada:

A grande virada só é possível mediante a implantação geral de uma nova


lógica normativa, capaz de incorporar e reorientar duradouramente e
comportamentos numa nova direção, com base numa política que disciplina
governos para um papel de guardiões das regras jurídicas, monetárias,
comportamentais, como um vigia das regras de concorrência (DARDOT;
LAVAL, 2016, p. 190).

No tocante às transformações operadas pelos neoliberais e pelo Estado,


corroboramos com a culminância do chamado “social-liberalismo” enquanto uma
“variante ideológica do neoliberalismo” (CASTELO, 2016), considerando as investidas
estatais no enfrentamento às desigualdades mais latentes (esfera social), sem,
contudo, haver um direcionamento político no sentido de romper com as raízes da
desigualdade, tampouco modificações estruturais na esfera econômica e o
direcionamento neoliberal das políticas.
O Estado, que já assumia uma posição importante na difusão dos interesses
de mercado, mesmo diante de um discurso de minimização de sua regulação na
economia, ao ser orientado na perspectiva do social-liberalismo, passa a garantir mais
fortemente a operacionalização de “[...] políticas sociais emergenciais, focalizadas e
assistenciais” (CASTELO, 2013, p. 244).

38
Os desmontes de serviços públicos, de privatização das políticas sociais e a
defesa de um Estado gerencial (com uma intervenção minimalista) preconizados pelos
ideais ordoliberais nas décadas de 1980 e 1990 são remodelados para a entrada dos
anos 2000 sob o mote do desenvolvimento com investimento social – que alguns
pesquisadores denominam pós-neoliberalismo (SADER; GENTILLI, 2008; SADER,
2013), neodesenvolvimentismo (KATZ, 2016; SAMPAIO JR., 2012; GONÇALVES,
2012) ou social-desenvolvimentismo.
A ideia de um novo desenvolvimentismo, que supostamente rompe com as
estratégias neoliberais e prioriza o investimento social, ao não apontar a superação
das desigualdades e sim intervir nas suas expressões mais imediatas, pressupõe, do
ponto de vista político, uma busca de equilíbrio – diga-se de passagem impossível de
alcançar – entre as classes.
É emblemático o posicionamento de Castelo (2013) quanto às mudanças pelas
quais passam o Estado e o modo de operacionalização das políticas sociais sob um
viés social de desenvolvimento. Para ele:

As políticas econômicas, que ocupavam um papel central no projeto de


retomada da supremacia burguesa, preservariam o seu rumo original e
seriam mantidas longe de qualquer ingerência popular. A elas se juntaria um
novo conjunto de políticas sociais: as políticas público-privadas,
fragmentadas e paliativas, de combate à pobreza e à desigualdade, que
ganhariam importância tanto no papel de reprodução da força de trabalho
quanto no de controle social (CASTELO, 2013, p. 245).

Nessa nova roupagem, as parcerias entre o Estado e o mercado implicam uma


era de substituição dos serviços de responsabilidade púbica, que passam a ser
subsidiados pelo mercado, seja com o consumo estatal direto, seja pelos subsídios
oferecidos aos cidadãos (consumidores).
Isso é o que ocorre, por exemplo, com a terceirização de empresas de serviços
nas instituições públicas em substituição à contratação direta via concursos, ou
mesmo com a criação de empresas consideradas públicas e geridas pelo capital, bem
como planos de previdência privados para servidores públicos. Essas são medidas
provisórias que implicam perdas de direitos a serem oferecidos pelo mercado, sendo
este um panorama que se aprofunda nos anos 2000.
Há uma sutileza entre essas investidas e os interesses liberais, apresentando-
se em uma relação conservadora quando consideramos os interesses dominantes

39
que prevalecem sobre as reivindicações do conjunto da classe trabalhadora pelos
seus direitos, ainda que se argumente uma ruptura com o velho neoliberalismo.
Ao ser amparado pelo Estado, o mercado alcança uma proteção solidificada,
em um movimento denominado “capitalismo de Estado” enquanto um “[...] mecanismo
autorregulador que permite a sobrevivência da acumulação” (KATZ, 2016, p. 245),
que atua em uma relação compulsiva e desproporcional à garantia e solidez dos
direitos sociais.
Entretanto, ainda conforme a análise de Katz (2016), nos parece importante
destacar que:

Uma modalidade progressista do capitalismo é um contrassenso. Este


sistema se desenvolve perpetuando a desigualdade e os privilégios dos
grupos dominantes. Por esta razão, as interpretações benevolentes do
capitalismo são utopias negativas. Supõem que este regime poderia melhorar
seu funcionamento para favorecer as maiorias populares, quando de fato
prejudica os trabalhadores (KATZ, 2016, p. 247).

Acerca da supremacia da ideologia dominante, Iasi (2017) afirma que:

A ideologia é um fenômeno mais complexo. São as relações sociais


dominantes expressadas como ideais, as relações que fazem de uma classe
a classe dominante, as ideias de sua dominação. Por essa aproximação, não
se trata de mudar uma fraseologia do mundo por outra, mas de mudar o
mundo, um ato prático, uma revolução (IASI, 2017, p. 267).

O processo de reprodução social dos indivíduos, então, vai se tornando cada


vez mais imediato frente às condições objetivas da classe trabalhadora, que têm se
tornado cada vez mais adversas à satisfação de suas necessidades e não podem ser
isoladas da reprodução da totalidade da vida social.
Isso explica muito das tentativas frustradas e do conjunto de derrotas políticas
que as lutas sociais têm acumulado no contexto do recente século XXI, que atravessa
uma ascensão da extrema direita em todo o mundo mesmo quando se verifica,
também, inúmeros levantes populares.
Recuperamos uma importante contribuição de Lukács (2013) quanto à
reprodução social e sua indissociabilidade das relações sociais de produção. Ele
afirma:

É preciso manter incondicionalmente essa prioridade do todo em relação às


partes do complexo total, aos complexos singulares que os constituem,

40
porque, do contrário chega-se – quer se queira, quer não – a uma
autonomização extrapoladora daquelas forças que, na realidade determinam
apenas a particularidade de um complexo parcial dentro da totalidade: elas
se convertem em forças próprias, autônomas, que não são tolhidas por nada,
e, desse modo, tornamos incompreensíveis as contradições e desigualdades
do desenvolvimento, que se originam das inter-relações dinâmicas dos
processos singulares e sobretudo da posição ocupada pelos complexos
parciais dentro da totalidade (LUKÁCS, 2013, p. 305-306).

Da perspectiva ontológica a que Lukács (2013) se situa, a peculiaridade dos


complexos parciais, embora contenha uma legalidade própria, é determinada “[...]
simultaneamente e sobretudo também por sua posição e função na totalidade social”
(LUKÁCS, 2013, p. 306).
No âmbito da reprodução social do conservadorismo enquanto ideologia das
classes dominantes em uma sociedade cuja marca é a exploração da força de trabalho
humana com formas particulares para as mulheres, ancoramos nossas análises na
perspectiva da articulação entre mediações primárias e secundárias dos indivíduos
humanos, em que os ataques do capital a um exercício pleno das capacidades
humanas na relação com a natureza (mediação de primeira ordem) determinam, em
distintos momentos históricos, a fetichização e a alienação, para as quais o
conservadorismo colabora diretamente. Sobre isso, Antunes (2009, p. 23) nos
adverte:

De fato, o capital, como tal, nada mais é do que uma dinâmica, um modo e
meio totalizante e dominante de mediação reprodutiva, articulado com um
elenco historicamente específico de estruturas envolvidas institucionalmente,
tanto quanto de práticas sociais salvaguardadas (ANTUNES, 2009, p. 23).

Ao considerar que a miséria ideológica se reconcilia no tempo presente com a


crise do capital, Pinassi (2009, p. 34) ressalta, sob a égide do potencial econômico
dos Estados Unidos:

Por isso mesmo é que, frequentemente, nada se consegue vislumbrar além


de ufanismos nacionalistas, fundamentalismos religiosos, de racismos
intolerantes e sua luta, muitas vezes encarniçada, se estabelece na
preservação da forma societal que tem no trabalho alienado a projeção do
seu inferno (PINASSI, 2009, p. 34).

Por isso consideramos que há uma apropriação política e ideológica por parte
de sujeitos que são construídos para a finalidade de fortalecer a perspectiva
conservadora do lado da burguesia e dos mecanismos de difusão de seus interesses
41
no curso da crise capitalista, de forma imediata e irracional, de modo que “[...] o que
nos salta aos olhos é que esses elementos do discurso ideológico conservador
produzem a função do reconhecimento com os elementos da consciência imediata
reificada” (IASI, 2017, p. 386).
Os interesses econômicos dominantes se aliam aos retrocessos políticos a
partir de ofensiva orquestrada pela captura das condições objetivas e subjetivas da
classe trabalhadora, inviabilizando o fortalecimento de uma resistência unívoca e
impulsionando uma história que, na contramão dos interesses racionais modernos,
“[...] vem reafirmando a prevalência das condições de constrangimento sobre as
classes trabalhadoras, muito mais que suas possibilidades efetivas de emancipação”
(PINASSI, 2009, p. 33).
Nesse contexto, o patriarcado aparece como um aporte fundamental ao
fortalecimento do conservadorismo, posto que as desigualdades econômica, social e
política vivenciadas pelas mulheres tendem a ser naturalizadas pelas programáticas
da direita mundial. Além disso, o patriarcado se alimenta de discursos e medidas
antagônicas ao feminismo, que, por sua vez, atua enquanto um movimento que
historicamente busca a superação das opressões e explorações vivenciadas pelas
mulheres.
Na sua essência materialista, as relações sociais de sexo dão conta da
particularidade das mulheres na totalidade das relações, embora neste trabalho
consideremos central o caráter patriarcal de como essas relações se conformam, que
é para nós o elemento que sustenta as desigualdades entre os sexos com conotação
histórica, material e dialética, ensejando contradições no modo de organização da vida
social.
Na totalidade das relações sociais, a forma desigual como as mulheres são
historicamente tratadas ganha centralidade nos movimentos feministas, seja como
relações de gênero ou como relações sociais de sexo, que é a concepção materialista
que predomina na França sobre a qual uma de suas precursoras, Devreux (2005, p.
565) afirma que “[...] recobrem, então, todos os fenômenos de opressão, de
exploração e de subordinação das mulheres aos homens”.
Ao abordar o contexto de novos empregos femininos e migrações no âmbito da
“globalização” neoliberal, Falquet (2017, p. 15), aponta o fato de, nesse cenário:

42
Babás e empregadas domésticas, mas também auxiliares de saúde
de doentes e/ou idosos (cada vez mais numerosos e menos assistidos
pelos poderes públicos), tornaram-se essenciais, no que constitui um
verdadeiro processo de interiorização da reprodução social
. (FALQUET, 2017, p. 15, minha tradução)1.

Podemos afirmar que as novas formas de exploração da força de trabalho no


contexto de mundialização capitalista seguem sendo subsidiadas pela divisão socio-
sexual do trabalho, em que as precarizações em curso, além de adquirir uma
amplitude extra relações domésticas, também reafirmam lugares sociais de mulheres
no conjunto das relações sociais de sexo e na relação entre as classes e da população
negra.
Via de regra, as tarefas acima destacas por Falquet (2017) são assumidas por
mulheres de países periféricos que migram em busca de trabalho em países mais
desenvolvidos economicamente, também pertencentes à população negra, cujo lugar
histórico foi desenvolvido por relações de exploração da força de trabalho escrava.
Nessa direção, acreditamos, conforme Falquet (2017, p. 15, minha tradução)2, que
“[...]é por isso que a análise a partir de uma perspectiva de gênero não pode
prescindir de uma análise simultânea em termos de classe e raça”.
Recorremos também às análises feitas por Federici (2019a), que destaca a
continuidade da violência contra as mulheres mesmo quando elas conseguem
trabalhar fora de suas casas, tendo em vista o fato de não serem
desresponsabilizadas pelas tarefas domésticas e o acúmulo de atividades gerar mais
cobranças.
A divisão sociossexual e racial do trabalho, portanto, se reedita no contexto de
crise e das exigências social-liberais e conservadoras, articuladas a processos de
ordem política, econômica e cultural que exigem de nós uma análise para além das
relações interpessoais homem-mulher, sendo necessário apreender as
determinações históricas e o papel do Estado.
No tocante à racialização da divisão do trabalho, não podemos esquecer que:

1
No original: “Las niñeras y las empleadas de hogar, pero también las auxiliares de salud para personas
enfermas y/o mayores (cada vez más numerosas y menos atendidas por los poderes públicos), se
han vuelto esenciales, en lo que constituyen um verdadeiro proceso de internalización de la
reproducción social” (FALQUET, 2017, p. 15).
2
No original: “[...] es por eso que el análisis desde una perspectiva de género no puede prescindir de
uno simultâneo en términos de clase y de raza” (FALQUET, 2017, p. 15).
43
Em um contexto econômico marcado por altas taxas de desemprego e pelo
desemprego estrutural, são exigidos altos níveis de escolarização da mão-
de-obra desempregada que presta os trabalhos mais banais, o que afasta
cada vez mais os negros do mercado de trabalho, posto que eles
reconhecidamente compõem o segmento social que experimenta as maiores
desigualdades educacionais (CARNEIRO, 2011, p. 113).

A seguir, destacaremos as particularidades conjunturais do Brasil nos anos OK


2000, situando seu lugar de país de economia dependente e os processos que
revelam uma opção política de caráter social-liberal, marcada contraditoriamente por
um apelo ao enfrentamento às desigualdades sociais, que, entretanto, não enfrentam
a estrutura desigual com a necessária radicalidade.

2.2 FUNDAMENTOS HISTÓRICOS DO SOCIAL-LIBERALISMO E DO


PATRIARCADO NO BRASIL

As duas primeiras décadas do século XXI vêm sendo a arena histórica de


tensões e desafios da luta de classes, das tentativas de conciliação de seus interesses
por parte dos primeiros governos desta quadra histórica e de uma aceleração
desmedida das conquistas políticas de direitos posta em curso.
Em um pequeno decurso histórico, as particularidades de um Brasil com fortes
traços históricos liberais, patriarcais e conservadores imbricam-se ao processo de
mundialização operado pelo capital, culminando em novas expressões de exploração,
dominação e resistência que vão se caracterizar como um social-liberalismo à
brasileira, salvaguardando as características internas desse processo.
Destacamos que alguns traços históricos constitutivos da sociabilidade
brasileira são eminentemente capitalista, patriarcal e racista, cuja exploração da força
de trabalho de base escravista e a incidência particular desse processo para as
mulheres marcou a colonização brasileira e impôs desafios históricos para a ruptura
da exploração de classe e das opressões de gênero e de raça.
De tal modo, as condições objetivas e subjetivas que lançam desafios à classe
trabalhadora no Brasil, desde as transformações operadas nos processos de
expropriação da força de trabalho ate as conquistas sociais e econômicas,
permanecem permeadas de tensões e conflitos, cujas representações ideológicas e
políticas dos interesses dominantes se reatualizam na contemporaneidade, ora de
modo mais consensual, ora de modo mais intransigente.

44
O Estado brasileiro, pela mediação histórica dos direitos (civis, políticos,
sociais) enquanto resultado das lutas da classe trabalhadora, promove alguns
reconhecimentos básicos de cidadania (como garantia de nome social, no caso da
População LGBTQIA+) mas apresenta contradições no tocante aos limites formais,
exigindo constantes reivindicações e mobilizações que tensionam sua função social.
Em todas essas pautas, a particularidade das mulheres se evidencia na
atualidade, carregando os traços históricos da divisão sociossexual e racial do
trabalho e da desigualdade nas relações sociais entre os sexos, que expressam
violências, tendências, a naturalização do lugar das mulheres e consequentes
resistências.
Em um processo de constituição lento e gradual, ou, nos dizeres de Fernandes
(1976), “[...] sob convulsões profundas, numa trajetória de ziguezagues” (p.34) o
Estado nacional brasileiro erige-se com base em uma perspectiva liberal, cujas
funções assumidas no processo da independência do Brasil assumem duas funções
típicas:

De um lado, preencheu a função de dar forma e conteúdo às manifestações


igualitárias diretamente emanadas da reação contra o ‘esbulho colonial’. [...]
de outro lado, desempenhou a função de redefinir, de modo aceitável para a
dignidade das elites nativas ou da Nação como um todo, as relações de
dependência que continuariam a vigorar na vinculação do Brasil com o
mercado externo e as grandes potências da época (FERNANDES, 1976, p.
34).

Aqui ergue-se o histórico desafio que acompanha as lutas políticas da classe


trabalhadora brasileira, com especificidades para as mulheres, mesmo em períodos
aparentemente mais democráticos: enfrentar a direção dada pelo Estado aos
interesses da burguesia. Principalmente quando essa burguesia, por todo o processo
de expansão da colônia, ancorou-se na exploração da força de trabalho escrava e na
dominação dos corpos das mulheres negras por meio da violência sexual.
Ainda que consigamos identificar resistências populares do século XIX à
atualidade, os papéis ideológico e político desempenhados pela burguesia,
impulsionados pelo Estado, têm impossibilitado uma ruptura com o padrão de
interesses dominantes por parte da classe trabalhadora, configurando uma
incompletude na revolução brasileira e sua particularidade de ter tido uma
independência instigada muito mais pelas disputas internas das frações burguesas

45
dominantes do que pela força coletiva de grupos populares (material e
ideologicamente dominados).
Não casualmente, em A formação do estado burguês no Brasil, Saes (1985)
identificou que o próprio surgimento do Estado moderno burguês no Brasil reatualizou
traços de uma pretensa democracia que não superou os aspectos racistas, mesmo
após a “abolição” da escravidão. De acordo com o autor:

Todavia, essas características da democracia burguesa brasileira – ausência


de critérios eleitorais censitários leque, leque reduzido de direitos civis e
políticos gozados pelas classes trabalhadoras – não constituíram a única nem
a mais importante particularidade do Estado burguês nascente. A
particularidade fundamental esteve em que esse Estado se implantou numa
formação social onde relações de produção servis eram dominantes (SAES,
1985, p. 351).

A formalização da igualdade permite colocar os indivíduos como iguais entre si


apenas como um recurso legal, revelando as contradições próprias dos instrumentos
que normatizam os direitos individuais. Um exemplo disso é a chamada “abolição” da
escravidão no Brasil em 1888, que, na realidade, se depara com as impossibilidades
de uma igualdade real.
Apesar das lutas abolicionistas que marcaram os três séculos da escravização
brasileira no período colonial e a intensificação das reivindicações abolicionistas no
Império, a Lei Áurea, que regulamentou a libertação dos/as escravos e esteve muito
aquém de uma resposta aos anseios da população negra, cumpriu tanto a função de
conter a expansão do movimento abolicionista, que se alastrava por todo o país,
quanto a de disponibilizar uma força de trabalho de baixo custo para o mercado, sem
garantia de condições dignas de trabalho e existência para a população negra.
Cabe lembrar, nesse sentido, um trecho de Silva (2018) sobre a incompletude
da abolição no Brasil. Para o autor:

Os abolicionistas sabiam, que, sem reforma agrária, a abolição ficaria


incompleta. Conrad (1978, p. 194) observa que a causa mais defendida pelos
abolicionistas, além do fim do cativeiro, foi a ‘democratização do solo’, o que
‘implicava o desmantelamento de grandes propriedades agrícolas e a criação
de pequenas fazendas’. A democratização do solo foi objeto de preocupação
de José Bonifácio, em 1823, em sua proposta de emancipação. Ele queria
que os libertos recebessem ‘uma pequena sesmaria de terra para cultivar’ e
meios para produzir. Tavares Bastos foi mais longe e propôs, em 1870, um
imposto sobre as grandes propriedades e a desapropriação de terras
improdutivas ‘à margem dos futuros caminhos de ferro’ (apud CONRAD,
1978, p. 195). Não conseguiu. Quando o presidente João Goulart, em 1964,

46
tentou a mesma coisa, foi derrubado por um golpe militar. Abolição sim,
reforma agrária, não (SILVA, 2018, p. 366).

O ideal de liberdade contido no projeto abolicionista reivindicado contrastava


bastante com o que foi posto em voga em 1888, uma vez que esse ideal se encontrava
atrelado a uma perspectiva de liberdade substancial e emancipatória que pressupõe
enfrentar a classe dominante brasileira e as migalhas, de bases caritativas, que a
mesma costuma oferecer.
Ao nos remeter à República Velha, seja na fase dos marechais e do controle
sobre os votos da população em uma perspectiva de cidadania que já começava a se
desenvolver sob controle, seja na política do café com leite, marcada pelo
coronelismo, que impunha limites à autonomia dos pequenos municípios,
identificamos uma direção eminentemente liberal conservadora que, à época, incidia
sobre a Constituição brasileira de 1891.
Sobre as raízes ideopolíticas do liberalismo na formação sócio-histórica
brasileira, corroboramos com a seguinte síntese:

Fica demonstrado, através desses elementos componentes da ação político-


ideológica da burguesia brasileira, como a ideologia dominante engendra-se
numa formação social capitalista de extração colonial. Desde a sua formação,
o Estado nacional brasileiro trará em seu âmago dois aspectos que comporão
sua superestrutura: de um lado, elementos ideológicos comuns às formações
sociais que vivenciaram situações tardias de desenvolvimento capitalista
(onde insere-se Portugal); de outro, aspectos específicos inerentes à situação
de particularidade escravista e latifundiária (MAZZEO, 2015, p. 83).

Há uma confluência histórica e material entre a formação e disseminação das


ideologias e a exploração do território, da força de trabalho e a dominação de uma
classe sobre outra, processo que cria o Estado a partir de interesses inconciliáveis
permeado de disputas operadas em conjunturas e correlações de força distintas.
O Estado Novo, já no século XX, com caráter antipopular e anticomunista
publicamente declarados na Constituição Federal de 1937, estabeleceu forte relação
com outros períodos da história brasileira, a exemplo de 1964, quando foi instaurada
a Ditadura Civil-Militar, e do Golpe Governamental de 2016, embora com mediações
importantes a serem discorridas.
A partir disso, seguiram em curso algumas medidas populistas e
antidemocráticas que caracterizaram dois golpes de Estado, um em cada metade do

47
século XX, cujo movimento democrático popular, construído nas últimas décadas
daquele século, não logrou êxito em estabelecer um consenso com o Estado (mesmo
considerado democrático) em relação aos seus interesses.
Consideramos que, enquanto resultante das relações antagônicas das classes,
o Estado é tensionado pelas classes em disputa, podendo, em alguns momentos,
atender em maior ou menor grau às reivindicações das lutas populares, o que aqui
caracterizamos como estabelecimento de um consenso. Destarte, isso não anula os
interesses prioritários do Estado para com as classes dominantes, cujos esforços para
serem por ele atendidas são razoavelmente menores em comparação às diversas
lutas da classe trabalhadora.
A partir das ocorrências históricas de um Estado brasileiro populista em alguns
contextos autoritários, as medidas de caráter social-liberal apresentadas como
alternativas às desigualdades sociais do início do século XXI permanecem como
ideário de um Estado que continua priorizando as demandas do mercado, em um
momento em que o capitalismo busca se restaurar por meio de mecanismos de
financeirização, a despeito de algumas medidas inéditas e importantes no plano
social.
Mantém-se atualizada a crítica marxiana aos fundamentos do direito burguês,
cujas expressões na Europa da segunda metade do século XIX já expressavam a
negação da totalidade das relações sociais, apontando para uma aparência de
igualdade em cuja essência se escondiam as verdadeiras motivações:

O direito, por sua natureza, só pode consistir na aplicação de um padrão igual


de medida; mas os indivíduos desiguais (e eles não seriam indivíduos
diferentes se não fossem desiguais) só podem ser medidos segundo um
padrão igual de medida quando observados do mesmo ponto de vista,
quando tomados apenas por um aspecto determinado, por exemplo, quando,
no caso em questão, são considerados apenas como trabalhadores, e neles
não se vê nada além disso, todos os outros aspectos são desconsiderados
(MARX, 2012, p. 31). Grifos do autor.

Daí identificarmos, na realidade brasileira, a reprodução dos interesses


dominantes nas constituições brasileiras desde o período da República até os
períodos de exceções democráticas, a exemplo do Estado Novo e da Ditadura Civil-
Militar de 1964 a 1985, o que só se modificou na abertura democrática da década de
1980, cujo projeto da Constituição Cidadã de 1988 foi mais democrático.

48
Destacamos, ainda, que nem sempre as mulheres e a população negra foram
incorporadas de modo igual aos homens brancos nas referidas constituições. O direito
ao voto feminino, por exemplo, só foi reconhecido na Constituição de 1937, há menos
de um século, fato que, do ponto de vista histórico, podemos dizer que é bastante
recente. Ademais, com as ditaduras que impossibilitaram o voto direto, os analfabetos,
que nunca haviam votado, só foram se sentir parte do eleitorado brasileiro após a
Constituição de 1988, o que atinge majoritariamente a população negra cuja trajetória
é marcada pela ausência de políticas educacionais que a atendessem.
Conforme constatou Mattos (2019) sobre a peculiaridade das conquistas
formais para o conjunto da classe trabalhadora brasileira nos anos 1930:

Mesmo categorias urbanas numericamente significativas, como a das


trabalhadoras e dos trabalhadores domésticos, só muito recentemente foram
contempladas pelo conjunto dessa legislação. Tais direitos (limite para a
jornada de trabalho, descanso semanal, férias remuneradas, pagamento
maior para horas extraordinárias, regulamentação do trabalho perigoso e
insalubre etc.), que caracterizariam o ‘trabalho formal’ no país, do ponto de
vista legal, foram, portanto, conquistados muito lentamente, e por parcelas
até bem pouco tempo minoritárias da classe trabalhadora (MATTOS, 2019,
Posição2256).

A classe trabalhadora brasileira, em sua heterogeneidade, é diversificada tanto


no que se refere às condições sociais quanto à subjetividade de seus sujeitos,
havendo, em seu interior, as marcas das opressões de gênero, de raça, de faixa etária
e outras que se complexificam quando menos favoráveis forem as condições objetivas
de enfrentarem os desafios cotidianos. Daí a necessidade de reconhecimento legal
de seus direitos e de políticas públicas.
Apreender as contradições postas para a vida e a resistência das mulheres no
Brasil contemporâneo requer, portanto, situá-las no conjunto das relações sociais
mais amplas, fugindo às ilusórias perspectivas que apregoam a possibilidade de
igualdade e equidade das mulheres como uma questão apenas de identidade, fora da
necessária ruptura com um sistema desigual, que se fortalece com base na
exploração de classes e da degradação humana em sua generalidade.
Como elemento geral, que confere totalidade às relações, a crise do capital, no
que Mandel (1982, p. 399) caracteriza como capitalismo tardio, apresenta-se como
uma “[...] crise das condições capitalistas de apropriação, valorização e acumulação”,
em que se põe em xeque o padrão e enriquecimento dos detentores da riqueza

49
socialmente produzida, e, mais do que isso, os impulsiona a adotar medidas mundiais
de manutenção desse padrão, que, obviamente, traduz-se em aumento da exploração
da força de trabalho, do desemprego, da perda de direitos e da condição de pobreza
de parte da população, sendo o Estado um elemento estratégico na superação do
declínio da lucratividade do capital.
Conforme ressalta Mandel (1982, p. 405):

O fortalecimento do Estado no capitalismo tardio é, portanto, uma expressão


da tentativa de o capital superar suas contradições internas cada vez mais
explosivas, e ao mesmo tempo é expressão do fracasso necessário dessa
tentativa (MANDEL, 1982, p. 405).

Nesse sentido, elementos como a entrada das mulheres no mercado de


trabalho, o alcance feminino de direitos políticos e sociais e o exercício da autonomia
enquanto cidadãs, por exemplo, se colocaram tardiamente na história brasileira em
comparação aos homens, além de expressarem uma conformação diferenciada em
função das relações sociais de gênero.
Cabe ressaltar, também, que o próprio acesso das mulheres a direitos como
uma jornada de trabalho fora do espaço doméstico (e, com isso, salários, férias e
licença maternidade) se apresentam ao mesmo tempo como resultado das
reivindicações das mulheres e dos interesses do próprio projeto do capitalismo de
baratear os custos da produção. Ressalta-se, ainda, que o campo dos direitos formais
não se estende ao conjunto das mulheres trabalhadoras, uma vez que parte delas,
mesmo sempre tendo trabalhado, nunca alcançou relações trabalhistas que
possibilitem usufruir desses direitos, a exemplo das diaristas, das trabalhadoras da
informalidade e das desempregadas.
No que se refere ao patriarcado no Brasil, podemos identificá-lo como
componente histórico da formação brasileira que compreende um processo de
retardamento do alcance das mulheres a direitos sociais, civis e políticos, o que vai se
estender pelas décadas seguintes. Nesse sentido, em diferentes conjunturas, as
dificuldades que se colocam para a classe trabalhadora possuem expressões
desiguais no que diz respeito às mulheres, acentuando-se no caso das mulheres
negras.
Não obstante, as mulheres permanecem socialmente responsáveis pela
realização das tarefas domésticas tanto em suas próprias famílias como em famílias

50
que conseguem pagar pela realização de serviços domésticos, tais como a limpeza
de casa, de roupas, a preparação de refeições e os cuidados com crianças, idosos e
enfermos.
A perspectiva de desenvolvimento atrelada ao novo paradigma democrático da
década de 1930 ensejaram, com o fim do Estado Novo, novas conjecturas para os
anos 40 e 50, a exemplo da expansão de partidos políticos e da convocação de
eleições diretas em 1945.
Na década de 1950, o desenvolvimentismo se acirrou com o projeto 50 anos
em 5, de Juscelino Kubitschek, o que fortaleceu a aceleração da acumulação
capitalista que os países de capitalismo central passavam a reordenar no período
após a II Guerra, embora o processo democrático e as reivindicações dos/as
trabalhadores/as, bem como suas organizações em partidos e movimentos, tenham
sido obstaculizadas na década de 1960, com o golpe de Estado e a instauração da
Ditadura Civil-Militar no Brasil, sendo ambos os períodos econômica e politicamente
favoráveis à classe dominante e aos seus anseios conservadores, cujos Atos
Institucionais (AIs) e o Plano de Ação Econômica dos Governos (Paeg) eram os
instrumentos econômicos e ideopolíticos de controle sobre a população.
Ao nos debruçarmos sobre as adaptações dos projetos brasileiros de
desenvolvimento, de sua relação com os interesses internacionais de expansão
econômica e das particulares relações internas entre as classes, corroboramos com
Oliveira (2013, p. 100), quando ele afirma que:

Sem embargo, a repressão salarial é um fato. Onde vai parar, pois, o


superexcedente, arrancado aos trabalhadores e a que fins ele serve dentro
do sistema? Aqui se pré-esboça sinteticamente a resposta: o
superexcedente, resultado da elevação do nível da mais-valia absoluta e
relativa, desempenhará, no sistema, a função de sustentar uma
superacumulação, necessária essa última para que a acumulação real possa
realizar-se. (OLIVEIRA, 2013, p. 100, grifos do autor).

Na perspectiva da economia política, os fatores históricos que constituem a


formação social brasileira antes da era cidadã combinam a exploração da força de
trabalho de uma classe fortemente caracterizada às relações sociais de raça e de
sexo, por meio das quais o lugar social das mulheres negras brasileiras tende a ser o
mais pauperizado e sua força de trabalho tende a ser a mais desvalorizada e com
menos proteção, exigindo uma (ainda não alcançada) ruptura substancial com as

51
raízes históricas e ideológicas que ancoram as opressões vividas pela população
negra e pelas mulheres.
Sem dúvidas o contexto de enfrentamentos coletivos às repressões da Ditadura
Civil-Militar, em meados dos anos 70 para o início dos anos 80, expõe a capacidade
da população em resistir e se organizar em busca de direitos políticos e sociais
sufocados e reprimidos no obscurantismo das décadas de 1960 e 1970 no Brasil.
São exemplos dessa resignação as campanhas por eleições diretas e pela
anistia dos presos políticos e as expressões artísticas do descontentamento que
atingia à população àquele período, aliadas ao surgimento de movimentos, partidos
políticos, centrais sindicais e articulações políticas que culminaram na Constituição
Federal de 1988, que, por sua vez, demarca o reconhecimento da igualdade formal
entre todos os indivíduos e preconiza uma série de direitos.
Todavia, enquanto mecanismo da ordem burguesa, a democracia atravessa
contundentes ameaças em seu processo de constituição/consolidação, que, no Brasil,
se depara, no início da década de 1990, com o projeto neoliberal, que àquele momento
estava se alastrando pela América Latina.
Adversamente, a regulamentação da seguridade social prevista
constitucionalmente e ainda longe de ser alcançada pelas mulheres negras defronta-
se com o projeto de mercantilização e sua base de privatização dos bens públicos,
desencadeando um acelerado processo de desestatização das empresas públicas
resultantes da era desenvolvimentista.
Esse projeto, por sua vez, trata-se de mais uma investida liberal contra a
possibilidade de alcance da cidadania e da democratização ancorada na socialização
de bens resultantes do trabalho. Acerca disso, L. Carvalho (2018, p. 225) ressalta que:

A exigência de reduzir o déficit fiscal tem levado governos de todos os países


a reformas no sistema de seguridade social. Essa redução tem resultado
sistematicamente em cortes de benefícios e na descaracterização do estado
de bem-estar. A competição feroz que se estabeleceu entre as empresas
também contribuiu para a exigência de redução de gastos via poupança de
mão de obra, gerando um desemprego estrutural difícil de eliminar
(CARVALHO, L. 2018, p. 225).

Não é necessário repetir aqui as consequências do trágico período dos anos


90, em que se processou uma “reforma gerencial do Estado” nos governos de
Fernando Henrique Cardoso (1994-1998; 1999-2002), que, por sua vez, colocou a
classe trabalhadora em terra arrasada, cujas expectativas para o século XXI se
52
concentravam em construir um novo processo de crescimento econômico com o
enfrentamento das desigualdades sociais, o que em partes foi possível no contexto
caracterizado como neodesenvolvimentista.
Obviamente o movimento operado pelo capitalismo e seu processo de
financeirização não deixaria de se manifestar neste novo século, ainda que revestido
de uma pretensa humanização a qual tratamos como social-liberalismo.

2.3 AS POLÍTICAS PARA AS MULHERES NA AGENDA SOCIAL-LIBERAL: ENTRE


OS INTERESSES FEMINISTAS E AS IMPOSIÇÕES DO MERCADO

Na primeira década dos anos 2000, a agenda política do movimento feminista


se apresentou mais progressista em comparação à década de 1990, na qual as
reivindicações foram majoritariamente tratadas por Organizações Não-
Governamentais (ONGs).
Consideramos que os sujeitos coletivos (organizações de mulheres, direções e
coordenações de mulheres nos partidos, nos movimentos sociais e sindicatos)
galgaram a inserção parcial de suas reivindicações nas políticas e programas, o que
resultou, também, na organização internacional das mulheres na década anterior, a
exemplo da Conferência do Cairo, ocorrida em 1994; na IV Conferência Mundial de
Mulheres, ocorrida em Pequim no ano de 1995; dos encontros nacionais feministas
de 1991 e 1997; do Primeiro Encontro Nacional de Mulheres Trabalhadoras Rurais,
ocorrido em São Paulo no ano de 1995; e do Primeiro Seminário Nacional de Lésbicas,
realizado no Rio de Janeiro no ano de 1996.
Entretanto, ao passo que a organização e as reivindicações das mulheres
organizadas alcançavam uma incidência na esfera pública, o Brasil atravessava, entre
as décadas de 1990 e 2000, o curso da programática do Plano Diretor da Reforma do
Aparelho do Estado, de 1995, que admitia as exigências de organismos internacionais
e impossibilitava, com isso, um atendimento substancial aos direitos então
reivindicados, uma vez que a ideologia neoliberal predominante àquele momento
apregoava a responsabilidade de “[...] organizações privadas sem fins lucrativos que
agem por meio de projetos destinados a populações específicas ou à defesa de
causas específicas” (PINTO, 2003, p. 96).

53
Um marco na publicização das reivindicações feministas nos anos 2000 foi a
Plataforma Política Feminista, elaborada por diferentes organizações feministas
brasileiras na Conferência Nacional de Mulheres Brasileiras (CNMB), realizada em
junho de 2002.
A partir de uma mobilização que envolveu o conjunto dos movimentos
feministas organizados no Brasil, essa plataforma apresentou uma necessária
articulação entre as lutas sociais e as lutas feministas, abarcando elementos de ordem
geral e específica para as mulheres conforme demonstrado no próprio documento:

A Plataforma Política Feminista é um documento extenso, denso, propositivo


e de conteúdo amplo e diversificado construído a partir de uma perspectiva
feminista de questionamento da sociedade e de se repensar como sujeito
político. Seu texto contém análise e desafios para a sociedade, para o Estado,
e para outros movimentos além do próprio feminismo. As ênfases da
Plataforma estão traduzidas em cinco capítulos, tratando desde os temas da
democracia política, da justiça social e da inserção do Brasil no contexto
internacional, e chegando até a democratização da vida social, e da liberdade
sexual e reprodutiva. Nos diferentes capítulos articulam-se as especificidades
da dupla estratégia de luta do feminismo brasileiro com vistas ao
reconhecimento das diferenças e dos novos movimentos de mulheres; e à
igualdade, redistribuição de riquezas e pela justiça social (PLATAFORMA
POLÍTICA FEMINISTA, 2002, p. 2).

Nessa plataforma estão condensadas reivindicações no campo dos direitos das


mulheres, com base no conjunto de demandas que sintetizam aspectos particulares
de atuação das diferentes organizações feministas envolvidas:

As ênfases da Plataforma estão traduzidas em cinco capítulos, tratando


desde os temas da democracia política, da justiça social e da inserção do
Brasil no contexto internacional, e chegando até a democratização da vida
social, e da liberdade sexual e reprodutiva. Nos diferentes capítulos articulam-
se as especificidades da dupla estratégia de luta do feminismo brasileiro com
vistas ao reconhecimento das diferenças e dos novos movimentos de
mulheres; e à igualdade, redistribuição de riquezas e pela justiça social
(PLATAFORMA POLÍTICA FEMINISTA, 2002, p. 4).

Com a ascensão do PT à presidência do Brasil, em 2003, foi possível a


incorporação das pautas apresentadas pela agenda governamental, com destaque
para a criação da Secretaria Especial de Políticas para as Mulheres (SPM), em 2003;
e para a continuidade das conferências nacionais de políticas para as mulheres, nos
anos de 2004 e 2007 (na primeira década) e 2010 e 2015 (na segunda década). A
partir dessas conferências, foram elaborados os planos nacionais de políticas para as

54
mulheres, tomados como parâmetro para o desenvolvimento de programas e ações
governamentais.
Apresenta-se, contudo, uma contradição entre o fato de os mecanismos
institucionais terem cumprido uma importante função de viabilizar a publicização e o
reconhecimento das questões reivindicadas pelas mulheres e, em contrapartida, o fato
de essas pautas terem sido incorporadas a incursões liberais e às perspectivas de
mercado, contidas em documentos que ressaltam planos e políticas para as mulheres
e pautas das conferências e programas nacionais.
Tendo em vista a indissociabilidade entre economia e política, não podemos
descartar que a política caracterizada por neodesenvolvimentista não promoveu a
ruptura com a perspectiva neoliberal anteriormente posta, mas sim a aperfeiçoou,
tentando torná-la mais palatável sob o intuito de uma conciliação de classes, o que
implicou em novas redefinições da esfera estatal e no estabelecimento de uma relação
direta e desproporcional entre as dimensões econômica e social, não mais tendo
como consequência do desenvolvimento da primeira o atrofiamento da segunda.
Conforme já afirmou Anderson (2020, p. 53):

Os economistas do PT foram os primeiros a chamar atenção para a lógica


neoliberal de Malan e a prever suas consequências fatais. De modo geral, no
entanto, está claro que nem o partido nem o presidente possuem alternativa
à ortodoxia reinante, como ficou explícito com a adesão pré-eleitoral às
diretivas do FMI (ANDERSON, 2020, p. 53).

Daí porque considerarmos a contradição entre os interesses feministas,


condensados em uma plataforma política coletiva como expressão das reivindicações
das mulheres e o modo de como o acesso a direitos vai ser posto na agenda
governamental, de uma forma genérica, calcado na transferência de renda a partir das
orientações dos organismos financeiros internacionais, o que, nem de longe, comporta
os reais interesses da classe trabalhadora.
Em uma perspectiva liberalizante, a agenda política resultante das duas
conferências nacionais de políticas para as mulheres, realizadas na primeira década
dos anos 2000 e compiladas nos I e II planos nacionais de política para as mulheres,
incorpora as pautas feministas a uma programática cuja operacionalidade conta com
mecanismos de orientação formal abstratos e mercadológicos.
A partir dos debates realizados na primeira Conferência Nacional de Políticas
para as Mulheres, em julho de 2004, o I Plano Nacional de Políticas para as Mulheres
55
(PNPM), orientado por oito pontos fundamentais, notadamente incorporou a ideologia
neoliberal, a exemplo da proposta de promoção de equidade com base na retórica da
“igualdade de oportunidades” (PNPM, 2005, p. 7). Considerando a incidência de parte
dos ministérios na organização das conferências e na composição do Conselho
Nacional dos Direitos das Mulheres (CNDM), a incorporação das reivindicações das
mulheres era conduzida sob negociações cujos interesses em jogo inviabilizavam
pontos importantes, a exemplo da universalidade das políticas.
O referido plano nacional apresenta, no conjunto de suas prioridades, a
promoção da autonomia financeira das mulheres por meio do apoio ao
empreendedorismo, ao associativismo, ao cooperativismo e ao comércio (PNPM,
2005, p. 14), apresentando uma agenda hegemonizada pelo grande capital na
efervescência de novas formas de captação da força de trabalho.
Notoriamente, os pontos fundamentais e as prioridades que norteiam o I
PNPM exigem uma transformação radical na relação entre Estado e Sociedade,
tomando os direitos sociais como uma importante mediação. Considerando que a
direção geral das políticas sociais estava sob “[...] uma ofensiva político-social e
ideológica” (MOTA, 2012, p.30), isso repercute de duas formas sobre a
mercantilização que atinge as relações de reprodução social:

Na expropriação e mercantilização de atividades domésticas e privadas não


mercantis e na superexploração dos trabalhadores e das famílias. A
privatização dos serviços os impele a retirar parte dos seus salários para
comprar seguros e planos privados de saúde, complementação das
aposentadorias e educação; particularmente, no caso das mulheres dos
países periféricos, além das duplas jornadas de trabalho, são obrigadas a
incorporar, como parte das suas atividades domésticas, um conjunto de
afazeres que deveria ser de responsabilidade pública, a exemplo dos
cuidados, dentre outros serviços (MOTA, 2012, p. 32).

No tocante às mulheres negras, dados do Ministério Público do Trabalho (2003)


revelaram as disparidades na média salarial de trabalhadores/as brancos/as e
negros/as, em que, na esfera primária, os/as negros/as recebem cerca de 44% menos
que os/as brancos/as; na esfera secundária esse percentual sobe para 54%; e por
fim, na esfera terciária, o percentual desce para 52%.
Ao levarmos em conta que esses percentuais rebaixam em muito a faixa
salarial (quando eles existem) das mulheres de profissões menos valorizadas (em sua
maioria mulheres negras), inferimos que não é garantida a elas a possibilidade de

56
contratação privada de serviços, compondo o amplo contingente da população que
acessa serviços seletivos e precarizados.
O Programa de Promoção da Igualdade de Oportunidades para Todos (MPT,
2003) revelou que, no setor primário, as mulheres recebem 15% do que recebem os
homens; no setor secundário, por sua vez, recebem 61%; e no terciário, recebem 59%.
Diante das históricas demandas da população negra por condições de vida
dignas (incluindo trabalho, alimentação, moradia, educação e a criação de diversas
políticas públicas), consideramos avanços significativos as medidas governamentais
que se apresentam como respostas na primeira década dos anos 2000, a exemplo da
criação da Secretaria de Promoção à Igualdade Racial (Seppir), em 2003; da
instituição da Política Nacional de Promoção à Igualdade Racial, também em 2003;
do Estatuto da Igualdade Racial, em 2010; e do Sistema Nacional de Promoção da
Igualdade Racial, em 2013.
Em seu relatório de gestão dos anos de 2003 a 2006, a Seppir elencou, como
atividades desenvolvidas na área do trabalho, as seguintes:

Também o compromisso com o trabalho decente foi intensificado entre o


governo brasileiro e a Organização Internacional do Trabalho (OIT). Durante
a 91ª Conferência Internacional do Trabalho, em junho de 2003, foi assinado
um Memorando de Entendimentos que gerou a criação do Programa Especial
de Cooperação Técnica para o desenvolvimento da Agenda Nacional de
Trabalho Decente (ANTD). Assim, a Seppir passou a integrar o Grupo de
Trabalho Interministerial coordenado pelo MTE visando ao desenvolvimento
da ANTD. Essa agenda estruturou-se a partir de três prioridades: gerar mais
e melhores empregos, com igualdade de oportunidades e de tratamento;
erradicar o trabalho escravo e o trabalho infantil, em especial em suas piores
formas; e fortalecer os atores tripartites e o diálogo social (BRASIL, 2006, p.
87).

A defesa do trabalho decente, apesar de incorporar elementos importantes, é


incompatível com a ofensiva pela qual passa os direitos do trabalho, com a tendência
à sua destituição e ao ataque revelado por meio da política de ajuste fiscal.
A primeira década dos anos 2000 nos coloca diante de um paradoxo entre o
reconhecimento político das demandas das mulheres brasileiras versus a conciliação
das ações públicas governamentais com os interesses mercadológicos do capital.
Esse aspecto, por sua vez, se sobressai nas propostas de emprego e renda
mescladas aos interesses dos organismos internacionais, a exemplo da ideia de
trabalho decente.

57
Sob o primeiro viés, cabe destacar a criação da Secretaria Especial de Políticas
para as Mulheres e da Secretaria Especial de Promoção à Igualdade Racial, em 2003,
e a sanção da Lei Maria da Penha – Lei 11.340/2006 – no ano de 2006, sendo esta
última surgida como penalidade sofrida pelo Estado brasileiro dada sua omissão
diante da denúncia aos órgãos internacionais de direitos humanos do caso de
violência sofrida pela biofarmacêutica Maria da Penha.
A pauta feminista pelo enfrentamento à violência contra as mulheres se
redefine nesse contexto, impulsionando as assinaturas de pactos de enfrentamento à
violência contra a mulher em estados e municípios e a criação de órgãos
(coordenadorias e secretarias) relativos a essa questão.
Por outro lado, consideramos que os avanços no âmbito da legalidade e da
formalidade institucional, embora sejam ganhos históricos importantes, são
insuficientes para o atendimento das reivindicações postas na Plataforma Política
Feminista, debatidas nas conferências de políticas para as mulheres e condensadas
nos planos nacionais de políticas para as mulheres.
Voltando ao paradoxo entre os interesses das mulheres (e da classe
trabalhadora à qual elas pertencem) e a agenda social liberal, nos detenhamos nos
princípios e diretrizes do II Plano Nacional de Políticas para as Mulheres, resultante
das deliberações da II Conferência Nacional de Políticas para as Mulheres ocorrida
em 2007, para identificarmos um esforço do governo brasileiro para conciliar essas
dimensões, que são, por suposto, inconciliáveis.
Esse segundo plano adensa as propostas de empreendedorismo para as
mulheres como elemento central para a autonomia econômica das mesmas e para a
igualdade de gênero no mundo do trabalho.
Não por acaso, a incorporação da agenda do trabalho das mulheres pelos
organismos internacionais nesse período vai se revelar na agenda de
“desenvolvimento” apresentada pelo Banco Mundial, pelo FMI e pelo Banco
Interamericano de Desenvolvimento (Bird), cujas recomendações para a política
econômica do país vão embasar, mesmo com a ativa participação das mulheres, as
aberturas efetuadas para a participação política feminista. No plano, destaca-se que:

Nesse sentido, cabe destacar o desenvolvimento do Programa Trabalho e


Empreendedorismo da Mulher, cujo objetivo é estimular o empreendedorismo
feminino, apoiando as mulheres na criação e desenvolvimento de seus
próprios negócios (PNPM, 2008, p. 34-35).
58
Enquanto tendência ideopolítica na primeira década dos anos 2000, tanto o
empreendedorismo como o empoderamento são incorporados em alguns programas,
tais como o Programa de Promoção da Igualdade de Oportunidade para Todos,
inaugurado pelo Ministério Público do Trabalho em 2005, e o Programa Trabalho e
Empreendedorismo da Mulher, da Secretaria Nacional de Políticas para as Mulheres.
É sabido por nós que a origem da relação entre empoderamento e feminismo
é reivindicada por segmentos feministas na seguinte perspectiva:

O empoderamento das mulheres implica, para nós, na libertação das


mulheres das amarras da opressão de gênero, da opressão patriarcal. Para
as feministas latinoamericanas, em especial, o objetivo maior do
empoderamento das mulheres é questionar, desestabilizar e, por fim, acabar
com o a ordem patriarcal que sustenta a opressão de gênero. Isso não quer
dizer que não queiramos também acabar com a pobreza, com as guerras,
etc. Mas para nós o objetivo maior do “empoderamento” é destruir a ordem
patriarcal vigente nas sociedades contemporâneas, além de assumirmos
maior controle sobre ‘nossos corpos, nossas vidas’ (SARDENBERG, 2006, p.
2).

Sob esse viés coletivo, transformador e que visa romper com estruturas
patriarcais de poder, demonstramos apreço aos grupos e movimentos que resgatam
a trajetória do significado desse processo para as mulheres.
O que não podemos nos furtar é de apontar o quanto esse termo tem sido
apropriado pelas políticas de mercado como proposta de uma pretensa igualdade
individualizante, que põe as mulheres como responsáveis pelas suas condições de
sobrevivência. Nesse sentido, recorremos à recente pesquisa de D. Silva (2021), em
que ela identifica que o conceito de empoderamento vem sendo fortalecido a partir de
sua utilização pelo Banco Mundial, pela ONU, pela Organização Internacional do
Trabalho (OIT) e pela Comissão Econômica para a América Latina e o Caribe (Cepal),
sobre o que ela destaca:

O conceito ‘empoderamento’ ao ser propagado por essas instituições e


organizações, adquiriu um sentido muito mais amplo e diverso do que o
contido inicialmente, quando apresentado como pauta pelo pensamento
feminista negro por Colins (2019). Entretanto, mesmo em suas origens [...], o
projeto de empoderamento parece ter aberto margem para ser cooptado por
projetos neoliberais encabeçados pelas instituições anteriormente citadas,
por combaterem a pobreza, lutarem pela igualdade de gênero, promoverem
desenvolvimento sustentável e trabalhos ‘decentes’. Todos esses objetivos
parecem se enquadrar num projeto mais amplo por justiça social, mas com
quais interesses? (SILVA, D. 2021, p. 76).

59
Nos parece politicamente sensato, em se tratando da consubstancialidade
classe, raça e gênero, estar sempre em atenção constante aos ditames do mercado
e suas manifestações ideológicas, considerando que ele é capaz de se infiltrar nas
próprias reivindicações, dissolvendo-as e apropriando-as ao seu modo.
As medidas pró-empreendedorismo desenvolvidas pelo Serviço Brasileiro de
Apoio às Micro e Pequenas Empresas (Sebrae) no contexto das formas
contemporâneas de expropriação da força de trabalho têm como maiores
interessados os bancos e a possibilidade de oferecer crédito aos
microempreendedores contando o Estado nessa empreitada, o que torna as políticas
para as mulheres um campo fértil de disputas entre os interesses históricos das
mulheres e os do mercado sob o viés do discurso da igualdade de gênero.
Um exemplo concreto disso é o Programa Itaú Mulher Empreendedora, cujo
discurso de investimento social propagado pelos bancos se assemelham às políticas
e metas adotadas pelo Governo brasileiro, por meio das quais, longe de atender
qualitativamente às demandas postas pelos movimentos feministas, identificamos
uma terceirização das suas pautas políticas para a agenda de mercado, de modo que,
conforme previsto no próprio programa enquanto objetivo, o “[...] programa visa
contribuir para a integração das políticas sociais e econômicas a fim de identificar e
atuar nos espaços de oferta de ocupação nos mercados formal e informal de mão-de-
obra local” (SPM, 2008, p. 2).
Nesse jogo de integração entre as políticas sociais e econômicas, sabemos que
a direção das últimas pelo grande capital, sob a mediação do Estado, sai mais
fortalecida, ao passo que as políticas sociais são tratadas como medidas imediatas
para mulheres em situação de “risco social”, que, convocadas a aprenderem o
caminho das pedras do empreendedorismo, se distanciam cada vez mais de um
reconhecimento enquanto trabalhadoras detentoras de direitos que devem ser
garantidos via políticas públicas universais. Trata-se, portanto, de um movimento
ideopolítico que, uma vez não enfrentado, vai se consolidando como alternativa
governamental sob o consenso de enfrentamento às desigualdades e promoção da
equidade de gênero. No entanto, o processo de desregulamentação das relações de
trabalho vai se complexificando, de tal modo que:

60
Em outras palavras, ao defender que os contratos entre pessoas jurídicas
substituam os contratos de trabalho, estão, em nome do desenvolvimento
econômico, decretando a precarização do trabalho. Dentre as suas
justificativas estão a alta tributação de impostos a que são submetidos os
empregadores, a necessidade de o Brasil seguir a tendência dos países
desenvolvidos e, para legitimar essa proposta junto aos trabalhadores,
defende-se que a relação comercial, ou seja, o contrato entre pessoas
jurídicas, promove a geração de emprego e estimula o empreendedorismo
(TAVARES, 2007, p. 3).

Entidades do chamado “terceiro setor” com interesses financeiros tomam as


iniciativas materiais que dão sustentação às ideologias de empreendedorismo e
empoderamento, o que se exemplifica pelo Instituto Brasileiro de Qualidade e
Produtividade (IBQP), Organização da Sociedade Civil de Interesse Público (OSCIP)
desde 2002, e pelos programas recomendados pela ONU com enfoque no Programa
das Nações Unidas para o Desenvolvimento, por meio de uma metodologia
denominada Empretec que atua com ações que estimulam o empreendedorismo em
34 países.
Outro elemento ideopolítico que aparece fortalecido no II Plano Nacional é o
empoderamento. Nas ações de intervenção pública de caráter multisetorial previstas
pelo referido II Plano Nacional de Políticas para as Mulheres, destacam-se as que “[...]
promovam o empoderamento das mulheres” (PNPM, 2008, p. 98).
Aparece, ainda, como o primeiro dos objetivos centrais: “Promover a mudança
cultural na sociedade, com vistas à formação de novos valores e atitudes em relação
à autonomia e empoderamento das mulheres” (PNPM, 2008, p. 121), através do qual
identificamos que a tendência à inserção do empoderamento das mulheres na política
passa pela perspectiva das relações interpessoais, cujo indivíduo, na acepção liberal,
se responsabiliza pela melhoria de suas próprias condições ao se empoderar.
O referido plano é evidenciado nas propostas e planos destinados
especificamente à população negra, cujas várias edições do Programa Pró-Equidade
de Gênero e Raça, direcionado a empresas de médio e grande porte, ao mesmo
tempo em que põe a pauta étnico-racial em evidência, o faz subsidiando o mercado.
Acerca da inserção e do fortalecimento do termo “empoderamento” nos
documentos oficiais e nas propostas políticas no contexto social liberal em questão,
corroboramos com Carvalho (2014, p. 145) quando esta o situa no conjunto das “[...]
determinações econômicas, políticas e sociais camufladas em terminologias”.

61
No tocante à centralidade que o empoderamento ocupa nas políticas para as
mulheres, é importante pontuar que esse conceito está inserido no direcionamento do
Banco Mundial, que o coloca como um mecanismo de combate à pobreza em uma
relação cujas determinações centrais são:

[...], o BM, ao atender a população pobre e o empresariado, tem clareza de


seu norte, que é o de favorecer os interesses do capital através da criação de
mecanismos de estabelecimento de novos consensos, apaziguadores da luta
de classes e de garantia da eficiência econômica (CARVALHO, 2014, p. 149).

Convém destacar que, nesse mesmo período, os sujeitos coletivos feministas,


em consonância com a Plataforma de 2002, permaneciam organizando e
desenvolvendo ações e eventos, resultando inclusive em publicações em defesa de
melhores condições de trabalho para as mulheres com forte pressão pelo
reconhecimento de seus direitos – especialmente das trabalhadoras domésticas –, o
que exige uma análise no campo da articulação entre políticas para as mulheres e
políticas de promoção à igualdade racial.
Considerando que “[...] a especificidade da dinâmica estrutural do racismo está
ligada às peculiaridades de cada formação social” (ALMEIDA, S. 2018, p. 42, grifos
do autor), o Brasil reserva às mulheres negras uma realidade marcada pelos traços
histórico-raciais, implicando maiores desafios para suportar o peso coletivo do sistema
capitalista, racista e patriarcal.
Desse modo, tanto as políticas públicas de Estado como as governamentais e
seus programas expressam um caráter reprodutor, em maior ou menor grau, do
racismo secular no caso brasileiro.
Ainda conforme Sílvio de Almeida (2018, p. 75):

Portanto, entender a dinâmica dos conflitos raciais e sexuais é absolutamente


essencial à compreensão do capitalismo, visto que a dominação de classe se
realiza nas mais variadas formas de opressão racial e sexual (ALMEIDA,S
2018, p. 75).

Com base na divisão sexual do trabalho como categoria analítica que


fundamenta as desigualdades para as mulheres nos anos 2000, as organizações e os
movimentos feministas pautaram a igualdade salarial entre homens e mulheres, a
desresponsabilização da totalidade das tarefas domésticas não remuneradas pelas
mulheres, a formalização dos vínculos trabalhistas e o reconhecimento de direitos.
62
Demarcando um caráter social e sexual das relações de trabalho no âmbito das
lutas de classe no primeiro quarto do século XX, Danièlle Kergoat (2009, p. 67)
ressalta que:

A divisão sexual do trabalho é a forma de divisão do trabalho social


decorrente das relações sociais de sexo; essa forma é historicamente
adaptada a cada sociedade. Tem por características a doutrinação prioritária
dos homens à esfera produtiva e, simultaneamente, a ocupação pelos
homens das funções de forte valor social agregado (políticas, religiosas,
militares, etc.) (KERGOAT, 2009, p. 67).

Nesse viés, a pauta racial passou a ser fortemente articulada às reivindicações


em torno das condições de trabalho, tendo em vista as evidências de que a população
negra, principalmente as mulheres, desenvolvem os trabalhos mais precários e mais
desprotegidos.
Com base nisso, Abramo (2006, p. 1) aponta que:

A porcentagem de ocupações precárias, informais e de baixa qualidade sobre


o total do emprego no Brasil é muito significativa: 57% (2). Mas essas cifras
também evidenciam importantes diferenças de gênero e raça: enquanto a
proporção de ocupações informais e precárias sobre o total do emprego
masculino era de 54%, para as mulheres essa cifra era de 61% (ou seja, 13%
superior). Em termos de raça essas desigualdades são ainda mais
acentuadas: foram classificadas como informais ou precárias 50,4% das
ocupações dos brancos (de ambos os sexos) e 65,3% das dos negros (de
ambos os sexos), o que configura uma diferença de 29% (ABRAMO, 2006, p.
1).

Tais mecanismos, assim como os que se referem à igualdade de gênero, já


surgem marcados por dificuldades estruturais no campo das políticas e dos serviços
destinados à classe trabalhadora, e, além disso, também vão ser insuficientes para o
atendimento de suas necessidades.
Frente às reivindicações das mulheres referentes a essas questões, alcançou-
se, em 2006, a Lei 11.324/06, que promoveu alterações nas legislações anteriores
sobre o trabalho doméstico e passou a garantir férias de trinta dias com pagamento
de um terço do salário, permanência de vínculo em caso de gravidez até o quinto mês
após o parto e contribuição patronal à Previdência Social paga pelo empregador.
Tais medidas, ainda que importantes no reconhecimento público desse trabalho
de avanços nas garantias aos e às trabalhadoras/es domésticos, esbarram em certos
limites, a exemplo da não obrigatoriedade de pagamento do Fundo de Garantia do
Tempo de Serviço (FGTS), que fica facultado ao empregador.
63
Embora consideremos que o primeiro mandato de Lula se apresentou como o
“passo à frente” da “valsa brasileira”, Laura Carvalho (2018, p. 14) destaca que:

Enquanto o Ministério da Fazenda, sob o comando de Antonio Palocci,


concentrou-se em promover um forte ajuste fiscal para atingir metas mais
altas de superávit primário – a diferença entre despesas e receitas dos
governos, excluindo-se o pagamento de juros –, o Banco Central, presidido
por Henrique Meirelles, tratou de manter a taxa de juros em patamar elevado
(CARVALHO, L. 2018, p. 14).

Daí por que seria incompatível desenvolver políticas para as mulheres ou


qualquer segmento em uma perspectiva universalizante. As mudanças operadas no
contexto social-liberal em questão se devem sobretudo ao fato de que “[...] entre 2003
e 2005, durante o primeiro governo Lula, a principal novidade se deu no âmbito das
políticas de transferência de renda, expandidas e universalizadas com a criação do
Programa Bolsa Família” (CARVALHO, L. 2018, p.14).
No tocante às reivindicações e os embates junto aos governos nas três esferas,
é inegável que o contexto político da primeira década dos anos 2000 consistiu em
uma nova forma de tratamento às demandas das mulheres trazidas pelos
movimentos, com inserção de planos de políticas e a criação de órgãos estratégicos
representados pelos grupos políticos que compõem a aliança de classes junto ao PT,
o que gerou incômodos aos defensores do patriarcado.
A incidência feminista nas questões de saúde sexual e reprodutiva e do aborto
tem sido uma pauta que vem se fortalecendo desde os anos 90, quando o movimento
se organizou em relação ao parlamento nacional para derrubar a Proposta de Emenda
Constitucional (PEC) que propunha criminalizar o aborto em qualquer circunstância –
mais conhecida como a PEC dos fundamentalistas –, sendo esta derrotada no
plenário em abril de 1996 por 331 votos contrários, 33 votos favoráveis e 16
abstenções (OLIVEIRA; CAMPOS, 2009). Além disso, é importante ressaltar,
também, a publicação da Norma Técnica para Prevenção e Tratamento dos Agravos
Resultantes da Violência Sexual contra Mulheres e Adolescentes, do ano de 1997,
que contribuiu para a expansão dos serviços de aborto legal existentes em São Paulo
desde 1989 (OLIVEIRA; CAMPOS, 2009).
Nos anos 2000, as investidas conservadoras, mesmo em meio a um momento
de importantes espaços conquistados pelos movimentos de mulheres, se evidenciam
nas frentes parlamentares em defesa da vida e contra o aborto. Tais investidas contam

64
com a proposição de um projeto de lei que prevê a sanção do Estatuto do Nascituro,
por meio da qual o indivíduo deve adquirir personalidade antes mesmo do nascimento.
Os deputados federais Luiz Bassuma (PT-BA) e Miguel Martini, do Partido Humanista
da Solidariedade (PHS-MG), argumentam em apoio ao referido estatuto, contrariando
as lutas feministas em defesa da autonomia das mulheres sobre a decisão de
interromper ou não uma gravidez.
O Projeto de Lei nº 478/2007 constituiu-se como uma das maiores ameaças
aos direitos sexuais e reprodutivos das mulheres. Com a sua sanção consolidada,
seria concretizada a criminalização generalizada das mulheres, inviabilizando,
inclusive, o aborto legal previsto no Código Penal.
Esses tensionamentos perpassam a primeira década dos anos 2000 sob a
perspectiva feminista da autonomia corporal, da integridade física e do direito de estar
livre de todas as formas de violência, frente à resistência de grupos religiosos que,
contrários a essas pautas, se organizam para difundir o conservadorismo que
historicamente lançam mão, agora em coletivos como a bancada evangélica e o
Escola Sem Partido (OLIVEIRA; CAMPOS, 2009).
Apesar da edição da Norma Técnica de Atenção ao Abortamento em 2005 por
parte do Ministério da Saúde, que visa a garantia de um atendimento padronizado e
humanizado no processo do aborto, e da Política Nacional de Saúde Integral da
População Negra, surgida em 2007, a primeira década do século XXI no Brasil
também revela o reacionarismo e a intolerância com as reivindicações feministas, a
exemplo da criação da Frente Parlamentar Evangélica no Congresso Nacional, em
2003, e da Frente Parlamentar Contra a Legalização do Aborto - Pelo Direito à Vida,
em 2007.
Tais disputas políticas e ideológicas tendem ao acirramento na segunda
década dos anos 2000, conforme aprofundaremos a seguir, de modo que a chamada
“agenda de gênero” – que envolve todas as questões tratadas aqui e outras mais
conjunturais:

Institucionalizada em Programas e áreas técnicas, em ministérios como o da


Educação e o da Saúde e incorporada a políticas no âmbito da seguridade,
da assistência social e do trabalho, ela teria desafiado o enquadramento
conservador da família, da conjugalidade e da sexualidade, sem que
correspondesse às opiniões e aos interesses predominantes no Congresso
Nacional (BIROLI, 2018, p. 192).

65
Para esta autora, houve uma renovação do ativismo feminista junto ao Estado
dos anos 80 aos anos 2000, que ela compreende que:

Trata-se de um feminismo diferente na sua forma de organizar-se e de


manifestar-se, em que têm papel importante mulheres jovens e suas
interações no ambiente da internet. É descentralizado e mesmo fragmentado,
mas mostra uma capilaridade social que é, por si só, um acontecimento
político (BIROLI, 2018, p. 17).

Considerando a inserção dessas lutas feministas na conjuntura política


brasileira no contexto em referência, ressaltamos que elas se inserem nas
contradições postas no âmbito político que são permeadas de tensões e disputas,
cujos interesses feministas, apesar de se situarem em um quadro de ascensão, não
deixaram de ser questionados e limitados por interesses sociais e econômicos, de
modo que “[...] a avaliação do alcance dessa plataforma nos governos Lula é
permeada por contradições, limites e até mesmo reiteração do conservadorismo social
sobre as mulheres [...]” (CISNE, 2016, p. 92). Para Cisne (2016, p. 98), mais
enfaticamente:

É grave perceber como os governos Lula feriram o princípio da laicidade do


estado, ao ponto de destinar recursos públicos para organizações religiosas.
Tudo isso sem falar na ausência de enfrentamento à ingerência política das
igrejas no governo, que ditou limites para o mesmo. Como exemplo disso
citamos o caso do debate sobre a legalização do aborto que, sequer, chegou
a ser pautada para votação no Congresso Nacional. Por outro lado, projetos
pela criminalização da mulher tramitam no Congresso Nacional, inclusive
para recuar ainda mais a legislação vigente sobre o aborto legalizado, em
caso de estupro (CISNE, 2016, p. 98).

Dentre outros aspectos, essa abertura política para a difusão da ideologia


conservadora revela uma contradição em relação à incorporação da agenda feminista
em conferências, aos planos nacionais de políticas para as mulheres e à criação de
instituições de atendimento às demandas das mulheres, o que nos sugere um
acirramento das disputas entre as forças conservadoras e feministas em curso no
século XXI.
No âmbito do fortalecimento de uma nova direita, que se apoia em valores
machistas e racistas e passa pelo aparelhamento ideológico da burguesia e seus
interesses econômicos, consideramos que a tendência à destituição de direitos
colabora para um recuo civilizatório sem precedentes.

66
Além disso, a Política Nacional de Saúde Integral da População Negra revela a
contradição acima referida, ao passo que, mesmo no âmbito de um acesso
pretensamente universal, há diferenças no atendimento à saúde da população negra,
a exemplo das mulheres que realizam consultas de pré-natal:

A proporção de mães negras com no mínimo seis consultas, conforme


preconizado pelo Ministério da Saúde, foi de 69,8%; ao passo que, entre as
brancas, essa proporção foi de 84,9%. Em relação à primeira consulta pré-
natal, também houve diferenças entre as categorias de raça/cor. Nos três
primeiros meses de gestação, realizaram a primeira consulta 85% das
gestantes brancas, 73% das negras e 53% das indígenas (BRASIL, 2007, p.
14).

Duas questões se revelam em relação aos dados acima: uma que denota que
as lutas em torno de direitos sociais e pela superação das desigualdades de gênero
têm que levar em conta uma direção antirracista; e outra que as políticas setoriais
seguem o fluxo das políticas genéricas, com critérios de seletividade que, para além
disso, reproduzem a desigualdade racial cotidiana.
Com o movimento da crise do capital em 2008, as perpectivas políticas para a
segunda década dos anos 2000 é de um recuo maior nos direitos alcançados, e,
diante de novas investidas feministas e de processos de ocupação das ruas, o quadro
se apresenta crítico no que se refere tanto à implementação de novos serviços como
à permanência de programas e serviços específicos que acompanham o movimento
de regressão de direitos que atinge a classe trabalhadora.

2.4 DESAFIOS À CONSOLIDAÇÃO DA AGENDA FEMINISTA BRASILEIRA RUMO


À SEGUNDA DÉCADA DO SÉCULO XXI

As exigências feitas por parte do capitalismo em crise a partir de 2008 em todo


o mundo afetaram o Brasil, ainda que mais tardiamente, à medida que a imposição de
uma agenda de austeridade fiscal implicou perdas de direitos para a classe
trabalhadora, sobretudo no que diz respeito às mulheres.
Ideologicamente, as expressões da intolerância ao processo de avanços
políticos na participação política das mulheres e de organismos governamentais
criados na primeira metade da década 2000-2010 começam a ser alvo de
questionamentos por parte de grupos conservadores, o que contribuiu para o
fortalecimento de uma onda antifeminista na década seguinte (em curso).
67
Os desafios encontrados pelas mulheres são impulsionados pela intransigência
de sujeitos coletivos conservadores (como a bancada evangélica e seus discursos de
base intolerante), que passam a se fortalecer quanto à incorporação dos debates
sobre gênero e diversidade sexual na educação.
No momento em que se acirra a disputa de hegemonia entre as classes,
qualquer movimento vitorioso da classe trabalhadora, no sentido de conquistar direitos
e exercer sua cidadania, gera desconforto nas classes dominantes e médias dotadas
de privilégios, de modo que a tendência é deslegitimar tais conquistas e acirrar os
valores que demonstram intolerância para com as transformações cívicas, o que
acaba se viabilizando pela via da exploração cada vez maior da força de trabalho por
parte das investidas capitalistas que lhe asseguram firmeza.
Situamos no cerne da não aceitação das medidas sociais e legais que atendem
(parcialmente) os interesses das mulheres, por parte dos sujeitos representantes do
conservadorismo que serão destacados no capítulo três, uma reação conservadora
que permeia a conjuntura política brasileira nos últimos anos, conforme Biroli (2018),
destaca:

O que temos diante de nós neste início de século XXI, de modo peculiar no
Brasil e em outros países da latino-americamos são reações que procuram
revitalizar as resiliências, retomar e aprofundar o controle e a regulação sobre
as mulheres, sobre seu corpo, e limitar subjetividades em transformação.
Falo, assim, de reações conservadoras, acentuando desde já a relevância do
primeiro termo (BIROLI, 2018, p. 15-16). Grifos da autora.

As expressões das lutas de classe na primeira década do século XXI revelam


os antagonismos entre feminismo e conservadorismo no tocante à laicização do
Estado, à defesa de direitos e à violência contra as mulheres. Sendo assim, temos
continuamente disputas entre a negação e o reconhecimento dessas pautas.
Quanto ao Estado, este tende a reproduzir o lado mais conservador dessa
relação, ao passo que “[...] quando opera com sua força policial armada e violenta nas
periferias, opera dentro da lógica da moralização da pobreza” (CUSTÓDIO, 2019, p.
129).
A partir da nossa análise, consideramos que a incidência social-liberal na
agenda das políticas sociais, especificamente nas políticas para as mulheres no
Brasil, na ausência de uma resposta substancial às reivindicações das mulheres, na
não concretização da laicidade do Estado e na expansão da orientação de base

68
religiosa nas instituições políticas como o Congresso Nacional, implicam um
fortalecimento que, como veremos, se mostrará mais fortalecido na segunda década
dos anos 2000, com uma dimensão patriarcal que confronta com os espaços
anteriormente abertos para as mulheres.
As particularidades de um amplo processo de precarização para a mulheres
nesse contexto são apresentadas por Assunção (2013, p. 66), com ênfase no fato de
que “[...] a combinação entre opressão e exploração é de extrema importância para
fortalecer e renovar as distintas formas de exploração e dominação”, residindo, nessa
combinação, o elemento central que justifica a necessidade de pesquisas que
articulem as condições gerais de trabalho e como elas se expressam particularmente
para grupos de trabalhadores distintos – como as mulheres.
Ao levarmos em consideração que o racismo também estrutura a divisão do
trabalho, entendemos, conforme a explicação de Carneiro (2011, p. 115), que:

O direito ao trabalho é condição fundamental para a reprodução das demais


dimensões da vida social. Por isso, é preciso instituir no âmbito do trabalho o
mesmo reconhecimento social e político que as desigualdades raciais
adquiriram no campo educacional, fato que desencadeou o processo de
implementação de cotas raciais para afrodescendentes nas universidades.
Tal reconhecimento deve traduzir-se em intervenção política para assegurar
o princípio da igualdade entre desiguais e a realização da equidade no acesso
ao trabalho (CARNEIRO, 2011, p. 115).

Situando o capital e sua tendência de controle cada vez mais brutal das
capacidades humanas e da força de trabalho, consideramos que a incursão das
ideologias dominantes se apropria também das pautas raciais, valendo-se, inclusive,
de aparatos institucionais do Estado (embora permaneça em disputas e projetos da
classe trabalhadora).
Desse modo, nos convém concordar que:

O papel do Estado no capitalismo é essencial: a manutenção da ordem –


garantia da liberdade e da igualdade formais e proteção da propriedade
privada e do cumprimento dos contratos – e a ‘internalização das múltiplas
contradições’, seja pela coação física, seja por meio da produção de
discursos ideológicos justificadores da dominação (ALMEIDA, S. 2018, p. 93).

Algumas reflexões e estratégias coletivas no âmbito das organizações


feministas, frente à conjuntura mundial e brasileira do início do século XXI, já vinham
levando em consideração que:

69
A reestruturação produtiva, junto com as concepções liberais, tem introduzido
um padrão de flexibilidade nas relações de trabalho, através principalmente
do recurso ao trabalho feminino. Assim é necessário examinar as
características sexuadas da flexibilidade e suas consequências, tanto no
plano do mercado de trabalho e do emprego, implicando no aumento da
precarização social e da precarização do trabalho; como no plano da
organização e das condições de trabalho (COSTA; SOARES, 2002, p. 11).

Em se tratando dos anos 2000, considerando o capitalismo de monopólios, o


capital financeiro e as particularidades do Brasil nesse quadro histórico, é pertinente
situar o caráter estrutural da crise do capital a partir de Mészáros (2002, p. 57), para
quem “[...] estamos diante de uma crise sem precedentes de um controle social em
escala mundial e não diante de sua solução”.
A crise, como algo que é inerente ao capital, estruturando-o (MÉSZÁROS,
2009), atinge as diferentes dimensões da sociabilidade, bem como procura
alternativas cada vez mais destrutivas para sair de sua crise.
Para esse autor, seria uma forte acusação indagar sobre a contradição do
capital, que, “[...] no auge do seu poder produtivo, está produzindo uma crise alimentar
global e o sofrimento decorrente dos incontáveis milhões de pessoas por todo o
mundo” (MÉSZÁROS, 2009, p. 21). Ainda de acordo com Mészáros (2009, p. 57),
cabe destacar que:

A consciência dos limites absolutos do capital tem estado ausente em todas


as formas de racionalização de suas necessidades reificadas, e não apenas
nas versões mais recentes da ideologia capitalista. Paradoxalmente, contudo,
o capital é agora compelido a tomar conhecimento de alguns desses limites,
ainda que, evidentemente, de uma forma necessariamente alienada
(MÉSZÁROS, 2009, p. 57).

Referindo-se ao capitalismo tardio, Netto (2015) aponta a reificação como a


capacidade desse sistema resistir aos seus próprios limites, definindo-a enquanto “[...]
fenômeno sociocultural específico do capitalismo constituído e tardio, possibilita a
resistência desse sistema cuja falência global a crítica teórica vem denunciando desde
muito tempo” (NETTO, 2015, p. 26).
O Estado moderno, com pretensa autonomia em relação às religiões, de caráter
republicano e com proposições a representar interesses coletivos, também só pode
ser entendido no âmbito das relações antagônicas que conformam essa coletividade,

70
não podendo ser neutro, mas, como demarcado pela teoria social marxista, tendendo
a representar interesses dominantes. Desse modo:

Sob as condições econômicas da sociedade capitalista, o Estado dá forma a


uma comunidade política cuja socialização é feita de antagonismos e
contradições expressas nos interesses individuais. Daí resulta que o Estado
não é apenas o garantidor das condições de sociabilidade do capitalismo,
mas é também o resultado dessas mesmas condições, o que faz dele mais
do que um mero árbitro, ou um observador da sociedade (ALMEIDA, S. 2018,
p. 94).

Nesse contexto, os anos 2000, mais fortemente os anos que compreenderam


os governos Lula (de 2003 a 2010), evidenciam, por um lado, as medidas criadas no
sentido de atender minimamente às necessidades da população mais empobrecida
com a expansão (precária) da política de assistência social, sobretudo via programas
de transferências de renda – bem como a criação de Secretarias Especiais, a exemplo
da Secretaria Nacional de Promoção à Igualdade Racial, da Secretaria Nacional de
Direitos Humanos e da Secretaria Especial de Políticas para as Mulheres. Por outro
lado, percebe-se a insatisfação e a intolerância crescente por parte da classe
dominante (os políticos de partidos de centro e de direita, o empresariado e as
bancadas evangélica e ruralista), que busca atender a interesses próprios.
Para as mulheres, surgem desafios conjunturais de atrelar sua incidência
política a lutas mais genéricas, a exemplo da manutenção das conquistas legais e da
ampliação de serviços, ao mesmo tempo que procuram estratégias de organização e
mobilização para enfrentar o capital e o conservadorismo que se espraiará como
ideologia de cunho patriarcal na década seguinte.
Corroboramos com Castelo (2013) quando o autor caracteriza como social-
liberal esse período de reconfiguração da política neoliberal, com ênfase em
programas sociais. Para esse autor:

[...] Os social-liberais brasileiros propõem medidas de cunho administrativo


para aumentar a efetividade das políticas sociais: 1) focalização dos gastos
sociais nos ‘mais pobres dos pobres’, isto é, os miseráveis; 2) avaliação do
impacto das políticas sociais; e 3) integração e coordenação dos programas
sociais em todos os níveis governamentais – federal, estadual e municipal –
e do setor privado (CASTELO, 2013, p. 351-352).

O projeto social-liberal, nesse sentido, apresenta as seguintes proposições


políticas e analíticas:

71
O crescimento econômico, por si próprio, não traria a redução das
desigualdades, havendo a necessidade de políticas públicas específicas e
direcionadas para este problema; 2) os gastos sociais não seriam baixos, ao
contrário: eles deveriam tornar-se mais eficientes com a melhora da alocação
de recursos com sua focalização nos estratos sociais miseráveis; 3)
propostas de desenvolvimento baseadas no investimento em capital humano,
reformas tributárias, previdenciárias e trabalhistas e ampliação do
microcrédito (CASTELO, 2013, p. 356).

O caráter contraditório desse contexto revela-se quando, dando continuidade a


políticas de cunho neoliberal, o Estado estabelece mecanismos de atendimento
parcial às demandas da população, sem, contudo, fugir ao contexto da crise estrutural
do capital, que, sob as instruções de organismos internacionais, orientam as novas
configurações entre Estado, mercado e sociedade em um movimento cujas
estratégias no Brasil “[...] distribuem uns poucos recursos àqueles que jamais
conseguirão se integrar, para dar andamento à política concentradora e excludente”
(MOTA, 2012, p. 37).
No tempo presente, identificamos que o conservadorismo, como expressão dos
interesses e dos projetos de manutenção da ordem dominante, claramente se apropria
do capitalismo e da propriedade, usando do ideário liberal e neoliberal para justificar
que vale tudo em nome da prosperidade, ou seja, do lucro.
As particularidades desses elementos para as mulheres se evidenciam
sobretudo no fortalecimento do machismo por meio de um sistema mais amplo: o
patriarcado e de sua articulação ao capitalismo, configurando um sistema imbricado
de “dominação-exploração” (SAFFIOTI, 2004) cujas expressões nos marcos dos
últimos anos têm sido operadas nos marcos das regulamentações ou propostas de
deslegitimação de diretos anteriormente conquistados, conforme aponta Saffioti
(2004, p. 357):

Na verdade, de modo subjacente, o conservantismo determinava a


continuidade e mesmo o fortalecimento de certos preconceitos, tais como os
de raça, ou de cor e de sexo. Em diversos setores da vida social brasileira,
estabeleceram-se assim, verdadeiros hiatos entre as relações sociais
efetivas e as suas regulamentações jurídicas, por mostrarem-se as primeiras
incapazes de absorver a racionalidade de que estava prenhe a segunda
(SAFFIOTI, 2013, p. 357).

A luta das mulheres contra as implicações conservadoras para suas vidas é,


ao mesmo tempo, a luta contra as atuais expressões do conservadorismo, mediada

72
pelos interesses capitalistas e pelo fortalecimento do patriarcado. Essa luta só pode
ser enfrentada quando articulada a essas questões, de modo que “[...] só pode ser
travada no marco de um enfrentamento com o capital, pelo fim da exploração da
classe trabalhadora” (TOLEDO, 2012, p. 119).
Em corroboração com as autoras supracitadas, consideramos que, ao partir de
uma perspectiva classista, além de fugir da tendência por elas apontada, as lutas
feministas antirracistas enfrentam seus inimigos em comum, colaborando com a
superação de desigualdades históricas nos âmbitos das relações sociais, raciais e de
sexo.
Além disso, é evidente a apropriação pelo capital de uma desigualdade gestada
pelo sistema patriarcal, que institui a supremacia masculina e a dominação e
inferiorização das mulheres. Entretanto, na perspectiva aqui adotada, só faz sentido
tratar dessas particularidades acompanhando o movimento das relações sociais mais
gerais, no contexto do capitalismo contemporâneo.
Diante dos elementos anteriormente apresentados, a articulação entre o
feminismo e a luta de classes, por meio da qual seja possível pautar a autonomia das
mulheres sobre seus corpos e suas vidas como exercício da liberdade enquanto
capacidade humana, apresenta-se como uma questão central, contrapondo-se ao
controle operado pelo capital e pelo patriarcado.
Mészáros (2002) chama atenção em relação às lutas das mulheres que:

[...] é preciso enfrentar a questão do tipo de igualdade viável para os


indivíduos em geral, e para as mulheres em particular, na base material de
uma ordem de reprodução sociometabólica controlada pelo capital, em vez
de se discutir como se poderiam distribuir os recursos disponíveis nas
presentes circunstâncias dentro das margens que se encolhem
(MÉSZÁROS, 2002, p. 273).

Ainda que os anos 2000 apontem para avanços no reconhecimento legal de


direitos das mulheres e de formas específicas e legítimas de enfrentamento à violência
expressa no cotidiano delas, a real efetividade dessas conquistas vem sendo
obstaculizada pelo mesmo movimento de caráter social liberal que permeia as
políticas sociais brasileiras. A esse respeito, corroboramos que:

Para avaliar as políticas sociais é fundamental que consideremos a questão


da disputa do fundo público entre as demandas da classe trabalhadora e os
interesses de reprodução do capital por meio de subsídios do Estado e
participação no mercado financeiro (a exemplo da dívida pública). Atendendo

73
muito mais aos interesses do capital, a política econômica nos governos Lula,
adotou como mecanismo para minimizar os efeitos da dívida pública, a
Desvinculação de Recursos da União (DRU) que permite que 20% dos
recursos destinados à seguridade social sejam deslocados para o superávit
primário que, por sua vez, destina-se ao pagamento da dívida pública
(CISNE, 2016, p. 95-96).

Ao reafirmar a existência do patriarcado como sistema histórico de dominação,


reconhecemos, também, a sua capacidade de se transformar, perpetuando de
diferentes formas esses elementos na vida das mulheres e não podendo ser
compreendido isolado das relações capitalistas na contemporaneidade.
Em balanço realizado sobre o desenvolvimento das políticas para as mulheres,
de 2003 a 2010, a Articulação de Mulheres Brasileiras (AMB) afirma que:

Nesses oito anos, a decisão de implementar políticas para mulheres, adotada


em 2003, enfrentou forças políticas antifeministas e antidemocráticas, que
influenciaram substantivamente as prioridades, a direção e a velocidade de
implementação dessas políticas (AMB, 2011, p. 22).

Por outro lado, os planos nacionais de políticas para as mulheres, elaborados


a partir dessas conferências, não foram executados, haja vista a configuração geral
das políticas demarcadas pela focalização e pela seletividade, ainda que esses
aspectos de organização e sistematização das demandas das mulheres tenha
adquirido profunda relevância nos anos 2000. A partir disso concordamos que:

Dessa forma, apesar de algumas conquistas para as mulheres nos governos


Lula da Silva, os desdobramentos prático-políticos de muitas iniciativas
importantes como as Conferências públicas, a construção dos PNPMs e a
própria criação da SPM, não acompanharam e/ou deram o suporte
necessário para a implementação das políticas públicas necessárias às
mulheres. A começar pela ―estrutura insuficiente e o orçamento reduzido da
SPM, que ―impuseram limites severos para o enfrentamento das estruturas
patriarcais que organizam o Estado e orientam as políticas e as finanças
públicas (AMB, 2011, p. 20-21).

As implicações da articulação entre o conservadorismo e o patriarcado nos


anos 2000 se evidenciam nos retrocessos legais também em um quadro de violência,
de cultura do estupro e de fundamentalismo religioso, que, na nossa concepção,
aliam-se aos interesses patriarcais e racistas dominantes na contemporaneidade e ao
mesmo tempo os endossam, o que exige que as mulheres: I) fortaleçam as respostas
políticas das ruas e das mobilizações em defesa de seus direitos; II) atuem frente às

74
lutas feministas e que estas sejam um aporte às lutas anticonservadoras e
anticapitalistas, com dimensão classista; e III) apreendam o racismo como um
elemento estruturante das relações violentas e da desigualdade vivida pelas
mulheres.
Se nos primeiros anos da primeira década dos anos 2000 os elementos
anteriormente destacados evidenciam a entrada das pautas feministas no cenário das
políticas sociais, acompanhando um movimento mais amplo do conjunto das políticas,
tomamos como um primeiro pressuposto para nossa pesquisa que os últimos anos
têm – também em conformidade com o recrudescimento do conservadorismo –
apresentado investidas de intolerância com as questões voltadas ao atendimento das
necessidades das mulheres e das demandas raciais, causando um cenário de
destituição de algumas das conquistas obtidas por meio das lutas feministas e o
endosso de uma perspectiva antifeminista abertamente difundida por grupos e
indivíduos de direita.
Na nossa perspectiva, a incorporação das lutas feministas por segmentos de
esquerda (particularmente partidos e sindicatos) ampliam a luta de classes, buscando
transformar as relações de exploração e opressão, fugindo a uma tendência já
apontada por Cisne e Santos (2014, p. 154) de que, ao se distanciarem de uma
perspectiva classista, “[...] direcionam sua ação política na perspectiva de assegurar
a igualdade de oportunidades para mulheres e para a população LGBTQIA+,
supostamente igualando-os aos direitos reconhecidos para os homens e os
heterossexuais”.
Corroboramos com Flávia Biroli (2017, p. 25) quando ela afirma que “[...] o
reacionarismo moral conservador se estabelece nas investidas correntes contra a
agenda mais ampla dos direitos humanos e da inclusão afirmativa de grupos
subalternizados”.
Quanto à dimensão racista desse processo, conforme estudou Clemente
(2019), o racismo é expresso via propagandas comerciais e discursos de ódio nas
redes sociais e é funcional à exploração da força de trabalho mais pobre pelo capital,
de modo que:

No que se refere às mulheres negras, verifica-se com a publicação de - A


Situação dos Direitos Humanos das Mulheres Negras no Brasil: violências e
violações‖ (2016), as negras correspondiam a 51,8% da população feminina
e 27,7% da população brasileira total. São 59,4 milhões de mulheres negras
75
no Brasil que se encontram majoritariamente concentradas na região norte
(75,2% das mulheres) e nordeste do país (70,7%). O documento afirma, que
as mulheres negras são as mais pobres, pois apenas 26,3% delas viviam
entre os não pobres, ao contrário das mulheres brancas (52,5%) e dos
homens brancos (52,8%) (CLEMENTE, 2019, p. 67).

A partir desses dados, podemos afirmar que a luta por direitos universais
compõe uma dimensão antirracista por atender necessidades da classe trabalhadora
em geral e da população negra, que, por sua vez, é a mais atingida pelo não acesso
aos direitos sociais. Do mesmo modo, intrinsicamente, a defesa dos direitos humanos
da população negra integra a luta em defesa de condições de vida.
Estamos diante de uma conjuntura de derrotas para as lutas, mas não de sua
inércia, estando em aberto as possibilidades históricas que a organização coletiva
pode alcançar. Recorremos à análise de Iasi (2019), quando ele nos afirma que:

Ainda que a forma tenha se alterado no período, de uma ditadura para um


chamado Estado democrático de direito, o Estado burguês soube combinar,
aprimorar e fortalecer tanto os aspectos de busca de formação de consenso
momentâneos, como os instrumentos antigos e novos de coerção (IASI,
2019, p. 421).

Seguindo a tendência das contradições e disputas políticas e ideológicas entre


o feminismo e a negação de direitos das mulheres, a década de 2011 a 2020, com
elementos muito recentes, apresentarão fenômenos sobre os quais nos
debruçaremos no capítulo seguinte.
Adiantamos que as perspectivas postas nesse contexto são de regressão de
direitos trabalhistas, tendência ao fortalecimento do controle do corpo, do
antifeminismo e de intolerância para com o lugar das mulheres na política, o que
implica novos quadros de violência em seus diferentes tipos. Esse, por sua vez, é um
quadro que, movido por tensões e resistência, culmina em importantes levantes e
organizações das mulheres trabalhadoras frente a todas essas questões.

76
3 DO SOCIAL-LIBERALISMO AO LIBERAL-CONSERVADORISMO:
IMPLICAÇÕES PATRIARCAIS ÀS MULHERES NA SEGUNDA DÉCADA DOS
ANOS 2000

É a constante baixa da taxa de lucro, resultante não da contradição entre a


produção e a troca, mas do aumento da produtividade do trabalho, que
ameaça tornar impossível a produção aos pequenos e médios capitais,
arriscando-se a limitar, dessa maneira, a criação de novos investimentos, a
travar a sua expansão. As crises, outra consequência do mesmo processo,
têm precisamente por efeito, ao depreciarem periodicamente o capital, o
abaixamento do preço dos meios de produção e, paralisando uma parte do
capital ativo, aumentar o lucro, criando por isso mesmo, condições para
novos investimentos e uma nova extensão da produção (LUXEMBURGO,
S/D, p. 18).

No limiar da finalização de sua segunda década, o século XXI se apresenta na


particularidade histórica brasileira com um contexto desafiador às resistências da
classe trabalhadora. Marcada pelo fortalecimento dos ajustes fiscais e pelas perdas
de direitos, essa década nos revela processos intensos de ofensiva à classe
trabalhadora, e, particularmente, às mulheres que a compõem.
A partir disso, apresentamos neste capítulo elementos que, ora se
apresentando conjunturais, são processos constitutivos do avanço da direita
brasileiras, cujas ideologias da classe dominante a quem representa se mantém em
pleno fortalecimento, embora não sem resistências.
Enquanto ideologia política, o neoliberalismo vai incidir na política brasileira nos
anos 2000, caracterizado pelo viés social (o social-liberalismo) cuja intenção mais
geral é a de um “[...] desenvolvimento econômico com equidade e suas propostas de
políticas sociais para a resolução da ‘questão social’” (CASTELO, 2008, p. 22).
A despeito da difusão terminológica de neodesenvolvimentismo para
caracterizar os ganhos sociais canalizados por programas de transferência de renda
no Brasil dos anos 2000, cabe retomar a assertiva de Gonçalves (2012, p. 639) de
que “[...] o novo desenvolvimentismo é mais uma versão do liberalismo enraizado”.
Nesse período, as expressões da regressão de direitos para as mulheres estão
situadas na totalidade das relações sociais, marcadas pela desigualdade no âmbito
das classes, do sexo e da raça e mediadas por disputas políticas e ideológicas pelos
recursos públicos e seu direcionamento.

77
3.1 O CONSERVADORISMO EM ASCENSÃO NO BRASIL: IDEOLOGIAS
DOMINANTES E O PATRIARCADO EM PROCESSO

A década de 2011 a 2020 foi marcada pelo que se caracterizou como um “fim
de ciclo” do social-liberalismo, advindo da intolerância dos setores dominantes com o
projeto de conciliação de classes quanto à transferência de renda para os mais
pauperizados, o que culminou na ruptura com o projeto político e conciliatório petista
por meio de um golpe que passou institucionalmente por impeachment contra a
presidenta Dilma Rousseff, eleita em 2014, e promovendo o então vice-presidente
Michel Temer à Presidência da República, passando ele a representar o grupo
politicamente ultraneoliberal cujo fortalecimento acarretou um contexto de aceleradas
derrotas políticas e sociais, com destaque para a regressão de direitos que atingem
os/as trabalhadores/as brasileiros/as.
Reside no período de 2011 a 2020, então, a perspectiva de hegemonização e
fortalecimento dos grupos políticos dominantes, já envolvidos de modo menos
acelerado em práticas e discursos de não aceitação das melhorias para a classe
trabalhadora e da ocupação de espaços políticos (como conselhos, secretarias,
ministérios), criados pela via governamental para sujeitos políticos historicamente
oprimidos, a exemplo das mulheres, da população LGBTQIA+, dos indígenas, das
comunidades tradicionais, dos quilombos e das pessoas com deficiência, para citar
alguns exemplos.
Ressaltamos que a ocupação do Poder Legislativo brasileiro ainda guarda uma
profunda relação com a configuração da política brasileira tradicionalmente
masculinizada, representada por famílias de latifundiários e empresários sob forte
influência de valores religiosos de cunho intolerante com qualquer diversidade e
perspectiva de transformação dessa estrutura, o que nos remete a uma retomada de
traços constitutivos do conservadorismo que conferem novas formas de expressão,
porém sob os mesmos interesses.
É nesse sentido que, para nós, só faz sentido entendê-lo no processo de
disputas entre os grupos dominantes (paladinos do conservadorismo) e os sujeitos
coletivos que se propõem a transformar a configuração histórica da política brasileira,
o que, embora se expressem a partir de novas organizações (partidos, movimentos,

78
bancadas parlamentares, mandatos e mandatas coletivos/as e grupos de diferentes
naturezas), estão orientados por conflitos ora mais intensos, ora mais sutis.
Cabe, aqui, uma concordância com Iasi (2017) quanto à afirmação de que:

O conservadorismo não pode ser entendido em si mesmo, ele é expressão


de algo mais profundo que o determina. Estamos convencidos de que ele é
uma expressão da luta de classes, isto é, que manifesta em sua aparência a
dinâmica de luta entre interesses antagônicos que formam a sociabilidade
burguesa (IASI, 2017, p. 380).

Não nos propomos a uma explicação ou reconstrução do conservadorismo


clássico, mas partimos de sua conformação e das continuidades que atravessam a
sua configuração na contemporaneidade. Para um maior aprofundamento das
investidas conservadoras contra as ideias iluministas e da Revolução Francesa,
Escorsim Netto (2011); Ferreira e Botelho (2010) e Souza (2016) são boas fontes de
consulta.
Nossa concordância em afirmar que o conservadorismo se expressa na
contemporaneidade, mesmo reconhecendo suas expressões contemporâneas, é o
fato de termos uma elite que se põe contrária a conquistas civilizatórias e
emancipatórias que ampliem a cidadania. Daí porque reafirmarem as opressões e se
negarem ao reconhecimento de suas necessidades a partir de políticas públicas,
denotando preconceito, intolerância, racismo, machismo, xenofobia, dentre outros.
De acordo com R. Keller (2019, p. 104):

O que grava a sociedade brasileira nesse começo de século XXI não é o


antagonismo entre as classes trabalhadora x empresários. A recodificação da
luta de classes acompanha o grau de consciência dos integrantes da classe
trabalhadora, denotando a visão de mundo que incorporaram diante das
contradições sociais postas, muitas vezes mediadas pela grande imprensa
aliada aos interesses do capital. Há uma comunhão de esforços subjetivos
entre a ideologia dos empresários e a assimilação por integrantes da classe
trabalhadora, que os une em torno da ideologia da dignificação pelo trabalho
(KELLER, R., 2019, p. 104).

O caráter ideológico do conservadorismo se revela quando seus projetos


elegem padrões considerados “o certo”, ao passo que negam a existência de grupos
que não se enquadram nos padrões, tendendo a negar suas conquistas civilizatórias
e emancipatórias e ganhando espaço em parte significativa da sociedade. E mesmo
que se apresentem de modo mais ou menos ofensivo, ancorado em instituições

79
distintas em momentos históricos diferentes, resguardam essa raiz de defesa de
privilégios e contraposição à ampliação de direitos.
R. Keller (2019, p. 100) exemplifica, nesse sentido, aspectos importantes do
Brasil no século XXI:

Os temas poderiam continuar a serem listados, como é o caso do benefício


‘bolsa-família’, destinado a famílias de baixa renda, que no ideário comum
incentiva o não trabalho e se constitui em uma forma de controle social e
compra de votos pelo PT. A redução da maioridade penal é um anseio
compartilhado, sob a premissa de que se pode cometer crime como “gente
grande”, desse modo deve ser julgado. Propaga-se, ainda, um suposto
incentivo ao desmonte da família tradicional brasileira, a partir da notoriedade
que as pessoas LGBTQIA+ ganharam ao exporem sua forma de amor
publicamente (KELLER, R., 2019, p. 100).

É no âmbito das disputas entre os interesses dominantes (com destaque para


sua dimensão patriarcal) e a resistência feminista classista e antirracista na segunda
década do século XXI que identificamos sujeitos coletivos com ações ideológicas e
políticas (por isso aqui denominamos ideopolíticas), que, no âmbito da luta de classes,
dão vida ao movimento histórico e conjuntural o qual consideramos um momento
particular de um movimento histórico mais amplo, não se configurando, para nós, em
virtude disso, como uma “onda conservadora” (DEMIER, 2016), um “novo
conservadorismo” (LACERDA, 2019) ou um “neoconservadorismo” (BIROLI;
MACHADO; VAGGIONE, 2020).
Recorremos, todavia, às contribuições desses/as autores/as, considerando a
validade histórica dos elementos trazidos em suas análises que consideramos serem
aspectos contemporâneos ligados a uma raiz do conservadorismo, enquanto ideologia
da classe dominante, com variações de suas expressões em diferentes conjunturas.
Na formação sócio-histórica brasileira e na forma particular como o
conservadorismo se constitui aqui, as mediações do patriarcado, do fundamentalismo
religioso e de um Estado atrelado a interesses capitalistas internacionais se
constituem enquanto aspectos centrais da conformação atual de processos políticos
antidemocráticos, antifeministas, racistas, LGBTfóbicos e intolerantes com pessoas
consideradas fora de um padrão imperativo dominante imposto ao conjunto dos
indivíduos, ou seja, o padrão masculino, branco e heterossexual.

80
Enquanto ideologia da crise (SOUZA, 2016), o conservadorismo cumpre uma
função política importante, uma vez que se encontra circunscrito no movimento
dialético entre produção e reprodução de modo que:

As ideologias predominantes de então, o liberalismo político e o liberalismo


econômico – além do pragmatismo e do utilitarismo –, consentem no
denominador comum segundo o qual o mercado é o protagonista do
desenvolvimento socioeconômico e a garantia da livre-iniciativa individual é o
requisito indispensável para o desenvolvimento dos países – uma ideologia
certamente revolucionária se comparada ao obscurantismo teológico
característico do mundo medieval (SOUZA, 2016, p. 105).

Ainda que objetivamente distintos, e, em alguns contextos, opostos em suas


perspectivas, o liberalismo e o conservadorismo apresentam em comum a
discordância quanto a qualquer possibilidade de permissão para avanços políticos que
apontem para a ruptura com a ordem dominante. Ora com mais flexibilidade para
reformas (social-liberalismo), ora mais intolerante, ambos se expressam
simbioticamente no contexto político e social brasileiro das duas primeiras décadas
do século XXI.
Resgatamos aqui uma contribuição de Suéllen Keller (2019, p. 110), quando
esta autora afirma:

Ainda que o típico posicionamento conservador esteja situado numa certa


passividade e aceitação em relação ao que está posto, o conservadorismo
costuma se manifestar de forma eminentemente reativa. Ele se mantém
presente nas subjetividades e na construção de movimentos
contrarrevolucionários, mas uma das características centrais do
conservadorismo é a de que ele se expressa de forma mais ofensiva quando
há alguma possibilidade de transformação (KELLER, S. 2019, p. 110).

É com base nesses elementos em comum que o conservadorismo moderno


(ESCORSIM NETTO, 2011; FERREIRA; BOTELHO, 2010) deixa de corresponder a
um pensamento intransigente na defesa do absolutismo, passando a se aproximar do
liberalismo quando “[...] algumas reformas podem até ser admitidas, contanto que
resultem de um longo processo de experimentação e não de uma ruptura radical com
o passado” (ESCORSIM NETTO, 2011, p. 9).
Historicamente determinado, o conservadorismo não pode ser transposto em
sua forma clássica, expressando no Brasil traços peculiares que, nos anos 2000,
adquirem notoriedades nas produções teóricas e ações políticas antidemocráticas, de
fundo intolerante com a diversidade própria da população brasileira, e, acima de tudo,
81
com as demandas da classe trabalhadora, cujas conquistas de direitos encontram
ameaças contundentes.
A particularidade do conservadorismo no Brasil dos anos 2000 é uma
articulação com a ideologia liberal e suas dimensões mais incisivas, unificando ao
mesmo tempo a contraposição ao reconhecimento de direitos da classe trabalhadora
e a intolerância à consolidação da cidadania de grupos historicamente oprimidos.
As bases dessa articulação são retomadas por Amanda Silva (2021, p. 99),
quando a autora afirma que:

No Brasil, em tese, o Estado democrático de direito serve para assegurar o


respeito das liberdades civis, os direitos humanos e as garantias
fundamentais, através da força de lei constitucional. Todavia, no capitalismo
contemporâneo, monopolista, - representado por sua face neoliberal -,
deslegitima o conjunto de direitos conquistado no ciclo democrático que
encontra dificuldade para se solidificar e se ampliar em solo brasileiro.
Entretanto, com o aviltamento de medidas conservadoras radicais aliadas ao
neoliberalismo, é tendencial que a coerção seja também alargada para
aqueles que mais requerem de políticas sociais para sobreviver neste modo
societário [...] (SILVA, A. 2021, p. 99).

No caso brasileiro, há uma histórica dificuldade de romper com os interesses


elitistas no âmbito do Estado, havendo, mesmo para o caso de avanços como os da
primeira década dos anos 2000, uma articulação das forças reativas tanto neoliberais
como conservadoras e até das duas juntas, conforme apontamos no quarto capítulo.
Situado na luta de classes, o conservadorismo se relaciona com os interesses
de manutenção de uma ordem societária globalizada, no sentido que Lukács (2013,
p. 133) ressalta:

Essa tendência do desenvolvimento da divisão do trabalho cruza, no plano


social, necessariamente com o surgimento das classes; pores teleológicos
dessa espécie podem ser colocados espontânea ou institucionalmente, a
serviço de uma dominação sobre aqueles que são oprimidos [...] (LUKÁCS,
2013, p. 133).

Nesse movimento, sob circunstâncias conjunturais especificas, o


conservadorismo guarda uma relação política entre a contemporaneidade e alguns
dos seus traços constitutivos apontados por Escorsim Netto (2011), que já eram
evidentes no século XIX. Além disso, o conservadorismo encontra sujeitos e formas
políticas representativas sob novas roupagens no Brasil do século XXI, embasando-
se nos seguintes argumentos: 1. Só são legítimas a autoridade e a liberdade fundadas

82
na tradição; 2. A liberdade deve ser sempre uma liberdade restrita; 3. A democracia é
perigosa e destrutiva; 4. A laicização é deletéria; 5. A razão é destrutiva e inepta para
organizar a vida social; 6. A desigualdade é necessária e natural (ESCORSIM NETTO,
2011, p. 60-63, grifos da autora).
Com base em tais elementos, é evidente que “[...] o pensamento conservador
propôs-se como projeto restaurador, antirracionalista e antidemocrático, rechaçando
a cultura da ilustração e os traços mais salientes da modernidade [...]” (ESCORSIM
NETTO, 2011, p. 60-63, grifos da autora).
De modo particular, os argumentos supracitados incidem na vida e na história
das mulheres, o que confere um caráter patriarcal ao modo como o conservadorismo
se impõe. Podemos identificar isso ao indagar a nós mesmos sobre o que significa
liberdades fundadas na tradição em se tratando da vida das mulheres, ou mesmo
quando refletimos sobre liberdade restrita e a relação com a constante busca de
superação das restrições para o exercício da liberdade das mulheres. Desta feita, o
conjunto de regras e relações opressoras historicamente naturalizado na vida das
mulheres, pode ser tensionado pela laicização do Estado e pelo uso da razão crítica
e seus questionamentos aos fundamentos patriarcais.
Nessa mesma direção, Ferreira e Botelho (2010) destacam as investidas do
conservadorismo contra teorias e ações progressistas desde o século XVIII,
considerando que “[...] o conservadorismo valoriza formas de vida e de organização
social passadas, cujas raízes se situam na idade média” (FERREIRA; BOTELHO,
2010, p. 12).
No tocante aos anos 2000, sobre algumas das investidas conservadoras
recentes no Brasil, Amanda Silva (2021, p. 102-103) destaca:

Em novembro de 2019, Guedes mencionou a possibilidade de um AI-5 (Ato


Institucional nº5) diante das insurgências populares que saíssem do controle.
Sua simpatia à ditadura militar não se limita à história brasileira de 1964 a
1988, mas à ditadura de Pinochet no Chile, na qual normas neoliberais foram
a assinatura do ditador, aplaudida por Guedes, transformando-se na primeira
experiência do funcionamento neoliberal apadrinhada pelos Estados Unidos
(SILVA, A. 2021, p. 102-103).

A ameaça às instituições democráticas embasa frequentemente a radicalização


das medidas regressivas tanto em relação aos direitos como em relação ao
reconhecimento das liberdades e da diversidade, conforme pode ser verificado após
o golpe parlamentar de 2016.
83
Importante destacar, também, que, na contemporaneidade, as relações sociais
entre homens e mulheres vão ser inflexionadas pelo modo como, concretamente, o
conservadorismo e o patriarcado, nas suas formas de ser e enquanto complexos
sociais históricos e distintos, vão se articular em ações e discursos ideológicos,
impondo desafios conjunturais para as mulheres, sobretudo as trabalhadoras.
Partimos do patriarcado como definido pelo feminismo desde os anos 1970,
configurando “[...] uma relação social em que os homens detêm o poder, ou ainda,
mais simplesmente, o poder é dos homens” (DELPHY, 2009, p. 173), cujas
expressões contemporâneas, como veremos, comportam mediações importantes
com a luta de classes, com o Estado e com o fundamentalismo religioso.
É, portanto, mais do que uma relação pessoal de poder, como aparece em
autores como Weber (2004) e Freyre (2003), cujo poder do pai no espaço da família
tradicional e, no caso do Brasil Colonial, é a instância reguladora das relações. Nos
apoiamos na análise feminista do patriarcado enquanto “[...] uma maneira de os
homens assegurarem, para si mesmos e para seus dependentes, os meios
necessários à produção diária e à reprodução da vida” (SAFFIOTI, 2004, p. 105).
De acordo com essa autora, trata-se, portanto, de uma “[...] estrutura
hierárquica, que confere aos homens o direito de dominar as mulheres, independente
da figura humana singular investida de poder” (SAFFIOTI, 2004, p. 102). Desse modo:

• Não se trata de uma relação privada, mas civil;


• Dá direitos sexuais aos homens sobre as mulheres, praticamente sem
restrição;
• Configura um tipo hierárquico de relação, que invade todos os espaços
da sociedade;
• Tem uma base material;
• Corporifica-se;
• Representa uma estrutura de poder baseada tanto na ideologia quanto
na violência (SAFFIOTI, 2004, p. 57-58).

Sendo assim, a determinação patriarcal nas “relações sociais de sexo”


(DEVREUX, 2005; CISNE, 2014) ou nas “relações patriarcais de gênero” (SAFFIOTI,
2004; ALMEIDA, 2017) se expressa nas desigualdades vivenciadas pelas mulheres,
de modo particular pelas mulheres trabalhadoras e negras.
Sobre as expressões fenomênicas do patriarcado no Brasil do século XXI,
atravessamos um período de recrudescimento do conservadorismo e do patriarcado
como faces de uma mesma moeda se levarmos em conta que há uma nutrição entre

84
ambos, que encontram, nesse momento político, terreno fértil para se conectarem e
se expandirem. Toda a sociedade brasileira é de base conservadora e patriarcal sem
distinção de classe, uma vez que ela faz parte da formação sócio-histórica do país.
No entanto, essa conexão entre o conservadorismo e o patriarcado é fomentada pelas
classes dominantes, para manter hegemonia política, econômica e social.
Põe-se nesse entremeio um movimento de confluência entre os interesses
dominantes econômicos e a ideologia do conservadorismo, que precisa ir além dos
avanços políticos possibilitados na quadra histórica da década anterior. A direita
frívola se reordena indo às ruas e se articulando em grupos parlamentares com
propostas de destituição de direitos que contrariam a perspectiva democrática
resultantes das lutas coletivas contra a ditadura.
Concretamente, isso vai resultar em propostas legislativas que se somam ao
Estatuto do Nascituro, datado de 2007, ao Estatuto da Família (PL nº 6583/2013), que
visa restringir a família a casais heterossexuais; ao Projeto de Lei nº 5069/2013, que
visava criminalizar o aborto, decorrente de qualquer motivação, sendo colocado como
um retrocesso para a luta das mulheres; e ao Projeto Escola sem Partido (PL nº
7180/2014), uma proposta para eliminar qualquer debate sobre a história das relações
entre os gêneros masculino e feminino e a diversidade sexual e de gênero, inclusive
com uma perspectiva criminalizante para professores/as que abordem esses
conteúdos. Sob o argumento de neutralidade política no ambiente escolar, esse
projeto foi recolocado na agenda legislativa em 2019 por meio de uma versão
conhecida como 2.0 – o PL nº 246/2019, proposto pela deputada federal Bia Kicis, do
Partido Social Liberal (PSL).
Como demonstramos, está posta uma ofensiva antifeminista que, para se impor
enquanto um valor coletivo, fortalece o patriarcado, reforçando um lugar de
naturalização e necessária manutenção da desigualdade das mulheres como uma
dimensão que sustenta o conservadorismo político nas suas expressões
contemporâneas e que recorre à irracionalidade para se sustentar.
Desse modo, destacamos que a ruptura do projeto de conciliação de classes,
implementado majoritariamente entre o PT e o PMDB até as eleições de 2014,
fortaleceu a ultradireita, conformando um bloco hegemônico que tramou e
implementou um golpe na democracia brasileira, pondo em prática uma agenda
altamente destrutiva aos direitos dos/as trabalhadores/as.

85
A partir de então, temos uma década cuja vitória dos grupos dominantes e
ideologicamente conservadores (e patriarcais) se impõem sucessivamente, desde a
infiltração de grupos antipartidários e contrários à organização popular de esquerda,
nas mobilizações de 2013, passando pela polarização e pelo descrédito popular nas
eleições de 2014 e pelo processo de destituição do mandato da presidenta Dilma em
2016, coroada nas eleições de 2018 com a eleição do então presidente Jair Bolsonaro,
expressão da articulação entre a irracionalidade e a ascensão do conservadorismo,
com destaque para os discursos e as posturas patriarcais do governante e um plano
de governo de base antidemocráticos e antidireitos.
Consideramos que as exigências imediatas postas ao conjunto dos/as
trabalhadores/as e a alienação decorrente das precárias condições de vida e próprias
do trabalho alheio são determinações centrais para um processo de desqualificação
da consciência, com base em ideologias e terminologias que vão sendo impregnadas
em seu cotidiano.
O conservadorismo e sua perspectiva antirrevolucionária e antiprogressista,
aliado ao capital, lança mão continuamente de processos fetichizantes acerca da
realidade, a exemplo da aposta no mercado e no consumo, que são aliados
importantes para a desmobilização, do conformismo e do apelo à fé como meio de
mudança. Esses processos culminam em práticas coletivas de intolerância, de
preconceito e de legitimação das violências em um processo profundamente
desumano, a exemplo dos despejos de famílias inteiras nos processos de
reintegração de posse de territórios e prédios, da violência policial nas comunidades
periféricas e dos ataques orquestrados a terreiros de religiões afro.
A existência de uma irracionalidade no modo como o capital se expande
ocasiona também uma irracionalidade política, conforme apresentada por Martins
(1999) em um movimento que ele assim descreve:

A contradição do processo de valorização – em que os limites do capital se


encontram no fato de que uma quantidade relativamente menor de trabalho
vivo tem que valorizar uma massa crescente de capital – se manifesta agora
como uma contradição política: a reprodução ampliada das condições
materiais em que se apoiam o poder e o Estado das classes dominantes –
lucro empresarial, dividendos, juros, aluguéis, etc - encontra seus limites na
necessária e desproporcional destruição das condições sociais de
reprodução da população (MARTINS, 1999, p. 78)

86
A relação dialética entre economia e política, tendo o trabalho enquanto
mediação de primeira ordem, constitui-se no fundamento para a apreensão das
relações particulares, que se revelam no atual fortalecimento da direita, do projeto
neoliberal e do crescente terreno conservador no Brasil.
Corroboramos que, imbuído da miséria ideológica, o conservadorismo, desde
sua configuração clássica, encontra no contexto da crise estrutural do capital um
terreno fértil para seu fortalecimento, com a mediação de processos de exploração
cada vez mais degradantes, implicando em uma “reconciliação histórica” (PINASSI,
2009). De acordo com Pinassi (2009, p. 16):

Nessa medida, o sentido da decadência ideológica é a contraface –


absolutamente necessária – do brutal desenvolvimento material e tecnológico
deflagrado a partir daí; e o seu comprometimento passa a se estabelecer tão
somente com a reprodução incessante da estrutura sociometabólica do
capital, mitigando as resistências e amaciando o curso do controle (PINASSI,
2009, p. 16, grifos da autora).

A ideologia da classe dominante é acionada como uma forma de


convencimento, visando tanto se impor por meio de coerção como estabelecer
consensos em seu favor. É um modo constantemente atualizado de incidir sobre os
valores da classe trabalhadora, de modo que, quanto maior a necessidade de venda
da força de trabalho para se reproduzir, mais essa classe carece de mediações e
reflexões para o exercício da consciência de classe em si e classe para si.
Obviamente, a classe trabalhadora encontrará, dado seu potencial político
organizativo, novas estratégias de organização e incidência, apesar dos desafios
encontrados mediante a acentuação da exploração e da flexibilização. Entretanto,
esses achados se darão sempre em condições mais adversas – objetiva e
subjetivamente –, superando ideologias tais como a colaboracionista, a do “patrão de
si mesmo” a da “adequação de seu próprio tempo”, dentre outras.
São as condições objetivas que obstaculizam o desenvolvimento das
capacidades humanas, que afetam a organização coletiva consciente sob mediações
culturais, políticas e educacionais, que, uma vez desenvolvidas de modo desigual,
subalterno e imediato, favorecem a miséria da razão, ainda que, ontologicamente,
homens e mulheres sejam dotados de suas capacidades reflexivas críticas.
Nesse sentido, por ter como motivação central a contraposição aos avanços
progressistas políticos e sociais da modernidade, o conservadorismo, embora recorra

87
aos avanços econômicos e tecnológicos, opera como um importante aliado da miséria
da razão, colaborando para a disseminação de valores retrógrados e até reacionários
dos quais o patriarcado passa a estruturar discursos antifeministas, orientar práticas
de sujeitos políticos e de instituições estatais, e, aliado ao racismo, incide não só nos
comportamentos e valores, mas também no cotidiano da vida das mulheres
brasileiras.
Destacamos, nesse sentido, nossa concordância com a análise de Eagleton
(1997, p. 49) sobre a ideologia, sobre a qual ele afirma que:

A sociedade capitalista avançada ainda requer sujeitos autodisciplinados,


cumpridores dos seus deveres e inteligentemente conformistas, que alguns
consideram típicos apenas da fase ‘clássica’ do capitalismo; só que esses
modos particulares de subjetividade entram em conflito com as formas
bastante diferentes da condição de sujeito apropriada a uma ordem ‘pós-
modernista’, e essa é uma contradição que o próprio sistema é incapaz de
resolver (EAGLETON, 1997, p. 49).

A burguesia, ao mesmo tempo que rompe com a razão crítica, possibilita uma
independência do proletariado, que, na primeira metade do século XIX, se encontra
com a tendência progressista, quando se depara com a compreensão de que “[...] o
real como totalidade submetida a leis e a afirmação da historicidade dos processos
objetivos são momentos determinantes da nova racionalidade em elaboração”
(COUTINHO, 2012, p. 26).
Resguardadas as mediações históricas, os aspectos liberais e conservadores
contemporâneos estimulam um individualismo exacerbado em lugar do humanismo;
ou substituem o historicismo por uma pseudo-historicidade subjetivista e abstrata;
além de fazer isso apelando para o irracionalismo em lugar da razão dialética
(COUTINHO, 2012, p. 30).
Uma evidência da relação entre a filosofia burguesa e seu movimento
empobrecedor, de caráter liberal e conservador, é a realidade da França na passagem
da primeira à segunda metade do século XIX, sobre a qual Marx identifica um recuo
no processo revolucionário burguês, aludindo-o à “[...] saudades das panelas de carne
do Egito” (MARX, 2011, p. 28).
Faz-se necessário destacar que, no Brasil a burguesia, ainda que com aspectos
particulares, já se forja sob os interesses da burguesia internacional dominante e
colonizadora, e, por isso, reproduz em alguma medida, no seu desenvolvimento
histórico, algumas tendências do projeto de dominação burguês.
88
Identificamos, na crítica marxiana, a forma como a Segunda República
Francesa pós-Revolução de 1948 deu margem aos próprios processos que iriam
derrubá-la em dezembro de 1951, com o golpe de Estado orquestrado por Napoleão
Bonaparte, a diluição da Assembleia Nacional Francesa e a reinstauração de um Novo
Império.
Embora Marx (2011) se atenha não apenas aos aspectos ideológicos, mas
sobretudo políticos que se mostram imbricados a essa questão, para ele:

Todo um povo, que por meio da revolução acreditava ter obtido a força motriz
necessária para avançar com maior celeridade, de repente se vê
arremessado de volta a uma época extinta e, para que não paire nenhuma
dúvida quanto ao retrocesso sofrido, ressurgem os velhos elementos, a velha
contagem do tempo, os velhos nomes, os velhos editais que já haviam sido
transferidos ao campo da erudição antiquária e os velhos verdugos que
pareciam ter-se decomposto há muito tempo (MARX, 2011, p. 27-28).

Marx (2011) aponta os próprios limites do Estado republicano resultante de


avanços progressistas para impedir o avanço do reacionarismo burguês, o que,
resguardadas as mediações e particularidades histórico-conjunturais, aponta para
uma investida do conservadorismo em distintas conjunturas em que o liberalismo (ou
suas variantes) seja a referência da condução política do Estado.
Do ponto de vista da teoria social e do movimento de ruptura com a razão
dialética no século XX, a pós-modernidade, enquanto corrente de pensamento,
condensa traços que a legitimam como sustentação teórica do conservadorismo. Não
há dúvidas de que o trato teórico de fenômenos na sua aparência, bem como a ruptura
com a racionalidade crítica que a caracteriza, permitem considerar que existe um traço
conservador em sua constituição, o que não pode apontá-la como uma identidade do
conservadorismo. Seus processos são distintos, de modo que, ao passo que podemos
identificar traços conservadores na pós-modernidade, o conservadorismo encontra-se
para além dela, comportando outras correntes como o positivismo, o funcionalismo, a
fenomenologia e o próprio estruturalismo.
Tratando da incidência política do pós-modernismo, Anderson (1999, p. 26-27)
destaca que, conforme Hassan e sua influência enquanto teórico pós-modernista:

Quanto à política, as velhas definições perderam praticamente todo


significado. Termos como ‘esquerda e direita, base e superestrutura,
produção e reprodução, materialismo e idealismo’ tornaram-se quase inúteis,
a não ser para perpetuar o preconceito (ANDERSON, 1999, p. 26-27).

89
Harvey (2014), em uma análise contundente da condição pós-moderna e sua
incidência histórica nas variadas dimensões da vida social (política, cultura, tempo,
arquitetura, ciências sociais etc.), considera que:

Os termos do debate, da descrição e da representação são com frequência


tão circunscritos que parece não haver como escapar de interpretações que
não sejam autorreferenciais. É convencional nestes dias, por exemplo,
descartar toda sugestão de que a ‘economia’ (como quer que se entenda
essa palavra vaga) possa ser determinante da vida cultural, mesmo (como
Engels e Althusser sugeriram) ‘em última instância’. O estranho na produção
cultural pós-moderna é o ponto até o qual a mera procura de lucros é
determinante em primeira instância (HARVEY, 2014, p. 301).

A inflexão pós-moderna no debate da desigualdade que marca as relações


patriarcais entre os gêneros tende a tratar a questão como um fenômeno a-histórico,
quando não alheio às determinações de classes, de modo que, a partir dos anos 1980,
as desigualdades e suas distintas configurações, como a violência, a divisão
sociossexual do trabalho e a intervenção política de sujeitos feministas, vêm sendo
abordadas como relações individuais de poder, questões de identidade e de diferença,
ou tem se buscado justificá-las como escolhas transitórias no âmbito das
subjetividades.
No que tange ao pensamento pós-moderno, sua heterogeneidade é conhecida
nos campos artísticos, teóricos e políticos; entretanto, ao se forjarem na crítica à
modernidade e seu caráter histórico-material, corroboramos com Sousa (2010, p.
146), ao afirmar que “[...] o pensamento pós-moderno significaria, simultaneamente,
uma crítica e uma ruptura com a modernidade, assumindo implicações desde a vida
cotidiana até a produção do conhecimento social”.
Sobre isso, D’Atri (2017, p. 234) sinteticamente também nos explica:

As teorias pós-modernas, que pretendem que as diferenças se dissolvam


como categorias identitárias (ou não temos necessidade delas), referem-se
ao excluído. Mas ao não ter em conta as relações de produção capitalistas
nas quais se apoiam essas exclusões, concluem em uma luta pela ‘inclusão’
(possível em uma democracia radical e plural) que, em vez de subvertê-las,
acaba abrindo espaço para a nova ‘tolerância’ mercadológica da diversidade
(D’ATRI, 2017, p.234).

Corroboramos que a investida no discurso da diferença constitui-se uma


estratégia de cooptação da direita, de base antirradical e irracional, que acaba

90
influenciando na fragmentação das bandeiras de luta da classe trabalhadora, como
nos adverte Pierucci (2013, p. 127), referindo-se à incorporação da diferença na teoria
feminista como algo que, para ele, “[...] a fixação do olhar na diferença pode terminar
em fixação essencializante de uma diferença”.
Considerando ser necessário ressaltar as particularidades das mulheres nas
relações sociais, concordamos que o afastamento das condicionalidades históricas,
materiais e econômicas no desenvolvimento dos sujeitos e suas individualidades
ocasiona o que Pierucci (2013, p. 128) caracteriza como “[...] um essencialismo
diferencialista, ou melhor, um diferencialismo essencialista aferrado ao irredutível de
uma diferença coletiva que, no entanto, é cultural. Mas é irredutível, insistem”.
Outra investida da pós-modernidade no campo das relações patriarcais entre
os gêneros (ou relações sociais de sexo) é abordá-las a partir da identidade, com um
viés desestoricizador.
Uma crítica a essa perspectiva identitarista das relações sociais e da política, a
partir de demandas individualizadas, é realizada por Haider (2019). Em sua análise
da relação dos movimentos negros com a identidade, ele define a política identitária
como “[...] a neutralização de movimentos contra a opressão racial. É a ideologia que
surgiu para apropriar esse legado emancipatório e colocá-lo a serviço do avanço das
elites políticas e econômicas” (HAIDER, 2019, p. 37, grifos do autor).
Sendo funcional ao modo como a governabilidade e os interesses das elites
incorporam ao seu modo as demandas da classe trabalhadora em seus movimentos
identitários, as políticas identitárias cumprem, também, a função de distanciar uma
verdadeira e necessária transformação nas condições desiguais de vida, próprias de
uma sociedade de classes. Para Haider (2019, p. 49):

Na sua forma ideológica contemporânea, diferentemente da sua forma inicial


como teorização da prática política revolucionária, a política identitária é um
método individualista. Ela é baseada na demanda individual como ponto de
partida. Ela assume essa identidade como dada e esconde o fato de que
todas as identidades são construídas socialmente (HAIDER, 2019, p. 49).

Ao passo que o conservadorismo contemporâneo tenta impor uma nulidade


das diversas identidades forjadas na formação sócio-histórica brasileira (negra,
indígena, população rural, população LGBTQIA+), a forma como as demandas foram
incorporadas pelas políticas social liberais, sobretudo de 2003 a 2015, apresenta um
caráter de insuficiência em relação às demandas apresentadas, não tardando a serem
91
desvalorizadas no discurso político e nas medidas institucionais na última metade da
segunda década dos anos 2000.
É importante considerar, também, o fato de não haver uma oposição forte entre
conservadorismo e liberalismo no Brasil atual, sendo necessário levar em conta as
particularidades da formação social brasileira e a funcionalidade do processo de
colonização e sua intransigência e traços contínuos, mesmo na pós-independência.
Conforme afirmam Ferreira e Botelho (2010, p. 12-13):

[...] A avaliação do passado colonial parece ser uma questão-chave, e


espinhosa, que o pensamento conservador brasileiro deve enfrentar. [...] por
outro lado, diferente de outros países da América ibérica, no Brasil houve
relativa continuidade em relação à situação colonial no pós-independência,
tanto em termos políticos, com a permanência da monarquia encabeçada
pelos Braganças, quanto socioeconômicos, com a persistência da
escravidão, do latifúndio, da agricultura de exportação (FERREIRA;
BOTELHO, 2010, p. 12-13).

Expressões contemporâneas desse continuísmo são evidenciadas por


inúmeros casos de trabalho em situação análoga à escravidão descobertos e
revelados constantemente, pelo genocídio da população negra sob a violência policial,
particularmente em comunidades periféricas, evidenciando o encarceramento de uma
população majoritariamente negra.
Se é possível operar com uma revisão do pensamento conservador no Brasil
(FERREIRA; BOTELHO, 2010), é também necessário nos questionar que práticas
políticas e que sujeitos são sustentados por esse pensamento e ao mesmo tempo o
sustenta, tendo em vista que:

É comum entre os conservadores a importância dada à religião; a valorização


das associações intermediárias situadas entre o Estado e os indivíduos
(família, aldeia tradicional, corporação) e a correlata crítica à centralização
estatal e ao individualismo moderno; o apreço às hierarquias e a aversão ao
igualitarismo em suas várias manifestações; o espectro da desorganização
social visto como consequência das mudanças vividas pela sociedade
ocidental (FERREIRA; BOTELHO, 2010, p. 12).

Nesse sentido, o viés conservador dos sujeitos elencados aqui como


representantes do conservadorismo, que serão melhor analisados no próximo
capítulo, revelam as características destacadas acima, além de difundirem o
patriarcado como via de conservação das relações sociais.

92
A Bancada Evangélica, por exemplo, se utiliza dos discursos religiosos para
enquadrar as lutas das mulheres feministas, especificamente contra a legalização e
descriminalização do aborto; o Projeto de Lei Escola sem Partido, por sua vez, se
contrapõe a uma concepção da educação enquanto política pública que pode
contribuir para a construção de relações igualitárias. Da mesma maneira, o MBL
aglutina pautas conservadoras e neoliberais, recorrendo a um conjunto de teóricos
que são suas referências e organizando intervenções públicas que atacam o
igualitarismo, mesmo aquele meramente formal.
Recorrendo à miséria da razão, à defesa da propriedade privada e da
meritocracia, se contrapondo às perspectivas progressistas e evidenciando certa
ojeriza ao comunismo e ao marxismo, corroboramos que o conservadorismo, em suas
expressões contemporâneas no Brasil – mais difundido como neoconservadorismo,
tendo como um de seus traços “[...] o reestabelecimento ou o (re)fortalecimento dos
princípios religiosos como fundamento do comportamento moral dos indivíduos”
(EUFRÁSIO, 2019, p. 84) –, além de representar uma parcela da direita brasileira,
representa, também, “[...] o ideário que hegemonizou a direita e levou Bolsonaro à
presidência (LACERDA, 2019, p. 17).
Algumas análises como a de Biroli (2017) apresentam a concepção de que há
um casamento entre o conservadorismo e o liberalismo no Brasil atual, que se
expressa enquanto um “[...] reacionarismo moral conservador que se estabelece nas
investidas correntes contra a agenda mais ampla dos direitos humanos e da inclusão
afirmativa de grupos subalternizados” (BIROLI, 2017, p. 24-25).
Nessa mesma linha de raciocínio, S. Keller (2019) apresenta alguns aspectos
da relação simbiótica entre conservadorismo e liberalismo, cujos fenômenos
aparentes, para ela, se dão de tal modo que:

[...] a realidade evidencia o fortalecimento de algumas manifestações


fenomênicas particulares, que permitem traçar o perfil do conservadorismo
brasileiro atual como: a) Militarista: aquela denominada ‘bancada da bala’,
que comanda a crítica aos direitos humanos, defende a volta da ditadura
militar e tem como seu maior representante o agora presidente eleito Jair
Bolsonaro (Partido Progressista); b) Evangélica: que leva para o espaço
público aquilo que considera valores sagrados, a exemplo da família e faz
críticas a pautas de reconhecimento (gênero, raça, etc.), tendo como exemplo
de representante o deputado federal Marco Feliciano (Podemos); c) Liberal:
aqueles que fazem a defesa do livre mercado e criticam os programas sociais,
a exemplo do empresário e senador Tasso Jereissati (Partido da Social
Democracia Brasileira), que em 2016 votou a favor da Proposta de Emenda

93
à Constituição do Teto dos Gastos Públicos (PEC 55/2016) e, em 2017, foi
favorável à reforma trabalhista (KELLER, S., 2019, p. 115).

É nesse sentido que as políticas e o conjunto de direitos sociais na segunda


década dos anos 2000 vão se distanciar das medidas sociais liberais da primeira
década, adentrando um período de acelerada regressão, que, ao mesmo tempo,
atendem às elites representantes do conservadorismo e do ultraliberalismo.
A seguir, apresentamos o panorama conjuntural da perspectiva
antidemocrática, que burla a institucionalidade burguesa cuja intolerância com os
direitos abre margem para uma guerra antidireitos, cujos representantes no
parlamento tratam de garantir ameaças e derrotas aceleradas ao conjunto da classe
trabalhadora, com rebatimentos específicos para as mulheres.

3.2 AJUSTE FISCAL, CRISE POLÍTICA E PERSPECTIVA ANTIDEMOCRÁTICA NO


BRASIL: A GUERRA “ANTIDIREITOS” NA DÉCADA 2011-2020

Em meio ao contexto de ascensão do conservadorismo e sob os ímpetos da


austeridade fiscal como tendências na primeira e segunda década dos anos 2000, se
consolida como guerra antidireitos e investida antidemocrática, sobretudo nos últimos
cinco anos no Brasil.
Indubitavelmente, o exaurimento da possibilidade das políticas de conciliação
de classe impõe uma desconexão do que tratamos como avanços políticos e
contraditórios da primeira década do século XXI, processo no qual o social-liberalismo
vai sendo ocupado pelo ultraliberalismo e cujos obstáculos para os direitos sociais vão
sendo impostos de maneira mais acelerada.
Cabe destacar que, embora haja um salto no modo como a classe dominante
(empresários, latifundiários, banqueiros) impõe suas exigências e se apropria com
maioria dos espaços decisórios, já havia, na década anterior, uma ocupação
sistemática dos espaços considerados democráticos pelos representantes da
burguesia, sendo um exemplo disso o Conselho de Desenvolvimento Econômico e
Social (CDES), conforme demonstrado por Guiot (2015) a partir de sua análise da
incidência política de frações do capital nesse órgão.
Não obstante, a hegemonia do capital na conciliação de classes e suas
consequências é, sem ineditismos, um projeto que sempre culmina em retrocessos

94
políticos e sociais sem precedentes para a classe trabalhadora, não sendo honesto,
do ponto de vista intelectual, tratar elementos como o golpe à democracia
materializado no impeachment da presidenta Dilma Rousseff e a eleição do atual
presidente Jair Bolsonaro, como fenômenos que se fundaram e se desenvolveram no
curto período dos últimos cinco anos.
Do mesmo modo, as investidas patriarcais e a resistência feminista, com fortes
expressões em 2015, são questões que mantém relação direta com o avanço da
direita nesse período no mundo, e, de modo substancial, no Brasil.
As manifestações populares de 2013 no Brasil, denominadas “Jornadas de
Junho”, são tomadas em várias análises como o elemento característico da ascensão
da intolerância contra as forças democráticas brasileiras e um marco do avanço do
conservadorismo na atual década.
Sob uma análise acurada dos divergentes posicionamentos sobre as
denominadas “Jornadas de Junho” de 2013 (ainda que sobre o mesmo fenômeno que
se revela como situação concreta), levamos em conta três elementos conjunturais
daquele momento: as demandas concretas da classe trabalhadora por direitos
(transporte, educação, saúde, contra a priorização dos gastos sociais com os
megaeventos); a resposta criminalizadora com que o governo de Dilma Rousseff
tratou as manifestações; e o contexto precedente das eleições presidenciais de 2014.
Acerca desses fenômenos, cabe rememorar que a resposta da classe
trabalhadora aos aumentos das passagens – em São Paulo e Natal – anunciados no
primeiro semestre de 2013 soou como uma fagulha para incendiar uma parcela da
população que sentia no cotidiano as consequências da prioridade da destinação dos
recursos públicos para pagamento da dívida externa e a execução de políticas sociais
com base em critérios rígidos e transferência de renda, conforme demonstra a
seguinte afirmação:

Através de um ‘contrato social’ pactuado junto aos setores economicamente


dominantes, o tom da governabilidade foi dado pela imperiosa necessidade
do equacionamento da crise fiscal, sinônimo de endividamento público
crescente e focalização das políticas sociais (MARQUES, 2015, p. 199).

As reivindicações por direitos, que dão o tom aos protestos iniciados em 2013,
ainda que com convocações virtuais, aglutinou movimentos, partidos e organizações

95
coletivas da classe trabalhadora, mesmo sem uma unidade consensual sobre suas
participações pelo conjunto de participantes.
Tais protestos também são motivados por meio da disseminação de greves que
vinham acontecendo já na segunda década, com um total de 873 greves realizadas
pelo movimento sindical em 2012 (cf. BOITO JR., 2018).
Reconhecemos a legitimidade das motivações que levam parcelas de
trabalhadores/as para as ruas, ainda mais quando observamos que a dessas
mobilizações pela mídia foi de cunho criminalizador, o que não se deu, por exemplo,
em 2015, quando se tratava de manifestações pró-impeachment.
A criminalização desses movimentos não veio exclusivamente dos
conglomerados da informação e de sua ojeriza às camadas populares, que
integravam as mobilizações naquele ano, mas do modo repressor como as forças
armadas nos Estados interviram usando do discurso de combate ao terrorismo. Isso
culminou na aprovação, menos de três anos depois, da Lei Federal nº 13.260/2016,
chamada “Lei de Combate ao Terrorismo”, sancionada ainda no mandato da
presidenta Dilma Rousseff.
Entretanto, se há algo a que não ousamos negar é que os grupos políticos de
oposição ao PT usaram do espaço das manifestações das ruas em 2013 para
alcunhar suas palavras de ordem contra o governo Dilma, aliados às frações mais
reacionárias que exigiam o abaixamento das bandeiras e quaisquer símbolos
partidários e de movimentos sociais – que ganhou corpo se estendendo à polarização
das eleições presidenciais de 2014, e, para além delas, fortaleceu o reacionarismo
que ocupou as ruas em 2015, sendo essas expressões puramente direitistas,
antidemocráticas e contra os direitos.
Apesar desse caráter contraditório, o movimento apresentado na dinâmica da
realidade àquela altura revelou uma heterogeneidade nas multidões que ocuparam as
ruas, mas não eliminou a concretude das demandas por direitos apresentadas
naquelas jornadas.
Nos aproximamos, desse modo, da seguinte análise de Mattos (2016, p. 95):

[...] apesar de toda a heterogeneidade de seus manifestantes e


pautas, assim como dos momentos em que um viés reacionário foi
sensível nas mobilizações, as ‘jornadas de junho’ de 2013 possuíram
um sentido de classe, em seu eixo central e nos seus desdobramentos
(MATTOS, 2016, p. 95).

96
Após a reeleição da presidenta Dilma Rousseff, em 2014, as tensões da
polarização que marcaram o processo eleitoral – sobretudo no segundo turno – não
deram trégua e as camadas da população que apoiaram as propostas da direita liberal
àquela altura, representada pelo Partido da Social-Democracia Brasileira (PSDB),
começaram a questionar os resultados das urnas, e, no ano seguinte, organizaram
vários atos nas ruas, expressando o antipetismo e fortalecendo a perspectiva
antidemocrática e antidireitos.
Se o projeto conciliatório do mandato anterior ao da presidenta Dilma já sofria
as chantagens do mercado, cedendo gradativamente às suas investidas, a transição
ao seu segundo governo combinava instabilidade conciliatória e descrédito popular,
processo que Anderson (2020, p. 93) nos descreve com a seguinte síntese:

Antes mesmo de seu segundo mandato começar formalmente Dilma mudou


de rumo. De uma hora para outra, passou a dizer que era preciso instituir uma
pitada de austeridade. O arquiteto da tal ‘nova matriz econômica’ foi demitido,
e o diretor de gestão de ativos do segundo maior banco privado do Brasil,
formado em Chicago, assumiu o Ministério da Fazenda com a missão de frear
a inflação e restaurar a confiança. Agora era imperativo cortar os gastos
sociais, reduzir o crédito dos bancos públicos, leiloar propriedades do Estado
e aumentar impostos para trazer o orçamento de volta ao superávit primário
(ANDERSON, 2020, p. 93).

Há também como elemento complicador a crise do capital mundial, que tem


início em 2008, cujos efeitos são sentidos com maior força no Brasil a partir de
2013/2014. De certo modo, isso também contribuiu para as medidas tomadas, embora
fossem desfavoráveis à maioria da população.
Nesse fogo cruzado, Dilma encaminhou ao Senado a PEC 87/2015, propondo
o aumento do percentual da Desvinculação dos Recursos da União (DRU) de 20%
para 30% até dezembro de 2023. Com essa medida, aprovada em 2016 já sob o
comando presidencial de Michel Temer, o governo pôde destinar 30% dos recursos
arrecadados pela União para a Seguridade Social, dando forma ao ajuste fiscal
favorável ao mercado e oneroso para a classe trabalhadora, que, em seu conjunto,
sustenta a somatória da arrecadação fiscal sob uma política notoriamente injusta.
Entretanto, os resultados da conciliação de classes operada nos governos Lula
e Dilma, ainda que favoráveis à cúpula da burguesia aliada desses mandatos, não
foram totalmente aceitos pelos grupos dominantes, que exigiam cada vez mais recuos

97
das medidas voltadas ao social, o que implicava a metamorfose do social-liberalismo
ao ultraliberalismo à tendência contemporânea das políticas econômicas e sociais no
Brasil.
A aliança entre essa proposta econômica com um projeto político conservador
e antidemocrático se configurou por meio do golpe institucional contra a presidenta
Dilma Rousseff, processo que tramitou de setembro de 2015 a agosto de 2016 e
evidenciou a intolerância dos grupos dominantes da política brasileira, com qualquer
abertura da institucionalidade pública aos grupos populares mais pauperizados, algo
que vinha sendo tolerado pela elite empresarial e bancária a altos custos pagos pelo
conjunto dos/as trabalhadores/as pela conciliação de classes entre o PT e seus
aliados, tendo em vista que parte substancial da arrecadação do Fundo Público ou
era transferida dos recursos da Seguridade via DRU, ou pagos diretamente via juros
da dívida externa, em valores superiores aos investimentos sociais.
Entendemos que o golpe, em um contexto de pressão do capital em seu
processo de crise e em um país de capitalismo periférico, a partir da perspectiva
teórico política marxista, conforme caracterizado por Mascaro (2018, p. 71), “[...] é a
alteração de padrões sociais que, em última instância, repercutem ou são
determinados pela dinâmica do capital”.
Sob a qualificação de impeachment por parte de parcela significativa da
população que foi às ruas desde 2015 por parlamentares de oposição à presidente
Dilma e pela mídia hegemônica, ao passo que tramitava atendendo aos prazos e aos
trâmites institucionais do Estado brasileiro, se configurou como um golpe orquestrado
e operado no interior dessas instâncias, a exemplo da Câmara dos Deputados
Federais, do Senado Federal e do Poder Judiciário, considerando que as acusações
de pedaladas fiscais que originou o pedido de impeachment e sua aceitação pelo
então presidente da Câmara Eduardo Cunha não constituía, de fato, crime
inconstitucional.
Não podemos esquecer que “[...] esses acontecimentos, demarcados como
políticos podem perfeitamente ser entendidos como a disputa de um projeto
econômico, o que amplia a complexidade do debate” (BECKER et al., 2019, p. 251).
Além disso, a conjugação do fortalecimento dos grupos da extrema direita a
partir de 2015, a tendência ao fim do ciclo social-liberal e o impeachment contra a

98
presidente eleita convergiram para uma conjuntura de ofensiva à democracia
brasileira, conforme descrito por Miguel (2016a, p. 30):

A revolta canalizada pelas elites contra os governos petistas, apesar de todo


o esforço conciliatório, revela que algum limite foi ultrapassado, talvez porque
o que o PT promoveu foi uma acomodação, isto é, suas lideranças e suas
bases foram de fato incorporadas – respectivamente, com a ocupação de
espaços no Estado e com políticas de governo em favor dos mais pobres.
Mas a tolerância das classes dominantes brasileiras em relação à democracia
formal parece ir muito pouco além da concessão do sufrágio universal. O
povo até pode votar, mas que os tomadores de decisão levem em conta
minimamente os interesses das classes populares já é motivo para escândalo
(MIGUEL, 2016a p. 30).

No que se refere à fragilidade da ainda jovem Constituição Brasileira de 1988,


cabe destacar que, nesse momento em que as perspectivas antidemocráticas se
fortalecem no âmbito das disputas entre os projetos políticos em cena no Brasil, três
elementos se sobressaem: o primeiro deles trata-se da especificidade de um golpe,
que visa privilegiar o partido do vice-presidente Michel Temer, até então aliado ao
governo e beneficiado direto pelo golpe, com a ascensão do vice-presidente Michel
Temer à presidência, o que nos leva ao segundo elemento: o fato de que os grupos
econômicos dominantes, de viés conservador, não surgem na cena política no
momento do desfecho de 2016, mas vêm ampliando sua participação por meio de
frechas no espaço político nos anos 2000; e, por último, temos que a argumentação
que embasa os conservadores remontam a um fundamentalismo religioso que nega
os avanços políticos aos quais nos referimos no capítulo anterior.
Tais elementos se constituem em pilares ideológicos da tendência antidireitos
que se instaura no país por meio de contrarreformas e desmontes de direitos,
norteados, desde 2015, pelo plano político denominado Uma Ponte para o Futuro,
elaborado pelo então vice-presidente Michel Temer e apoiado pelos seus co-
interessados no golpe, consolidando o movimento de destruição do Estado social,
conforme Oliveira (2019) assinala:

Longe de dar conta da complexidade que envolve o caminho das


políticas sociais a partir da instauração do modelo neoliberal, da conciliação
entre suas estratégias e ganhos sociais no neodesenvolvimentismo e no
esgotamento dessa estratégia rumo a uma programática de total desmonte,
destacamos a tendência a um tratamento cada vez menos público das
políticas sociais, mesmo levando em conta a democracia pós-Constituição
nos anos 1990 e os discursos de avanço no combate à desigualdade,
marcadamente na primeira década dos anos 2000 (OLIVEIRA, 2019, p.
279).
99
O ultraliberalismo presente no projeto Uma ponte para o Futuro, apresentado
pelo PMDB e sinalizando uma ruptura total da aliança com o PT nos últimos anos,
revelava tanto a intencionalidade do golpe como a tendência à austeridade com o
fundo público.
Como tragédia anunciada, o governo pós-golpe – portanto ilegítimo de Michel
Temer – representou, a partir de agosto de 2016 e de maneira simultânea, uma derrota
para os êxitos (embora limitados) sociais e políticos que configuraram o social-
liberalismo característico da primeira década e um avanço da tendência destrutiva do
Estado social e dos direitos então existentes, fortalecendo sua tendência mais
conservadora, que, por sua vez, culminou na eleição do atual presidente Jair
Bolsonaro, cujo projeto político em curso aprofunda significativamente a perspectiva
de ataque aos direitos, acrescido de discursos de ódio e violência contra as mulheres,
a população LGBTQIA+, a população negra, indígena e quilombola, os movimentos
sociais e os sindicatos.
A funcionalidade ideopolítica do golpe disfarçado de impeachment vem sendo
revelada cotidianamente na força paramilitar do Estado, cujos ministérios são
majoritariamente ocupados por militares; no fechamento de órgãos institucionais e
ministérios que representavam espaços importantes para a elaboração de políticas no
campo do trabalho, da previdência social e dos direitos humanos, ao mesmo tempo,
impõe-se para as lutas sociais em defesa de direitos o desafio de incidir politicamente
em um contexto cada vez mais adverso.
A ausência de um projeto representante dos interesses da classe trabalhadora
reatualiza a trágica possibilidade de aprofundamento da barbárie anunciada pelo
capital, conforme advertia Marx (2011) no contexto do bonapartismo francês, o que
cabe em uma análise da narrativa conservadora do Brasil dos anos 2000:

Eles ‘salvaram’ a sociedade dos ‘inimigos da sociedade’. O lema repassado


por eles às suas tropas consistia nas palavras-chave da antiga sociedade:
‘Propriedade, família, religião, ordem’, instigando a cruzada
contrarrevolucionária com a frase: ‘sob este signo vencerás’. (MARX, 2011,
p. 36, grifos do autor).

Embora caiba uma ressalva sobre a ausência de uma revolução brasileira, há


um discurso antiprogressista: a intolerância com qualquer proposta de transformação
social encontra, em contrapartida, uma reação burguesa conservadora sob a
100
acusação de destruição da ordem, não por acaso apelando para a família e religião
em suas bases tradicionais, pois:

Toda e qualquer reivindicação da mais elementar reforma financeira


burguesa, do mais trivial liberalismo, do mais formal republicanismo, da mais
banal democracia é simultaneamente punida como “atentado contra a
sociedade” e estigmatizada como ‘socialismo’ (MARX, 2011, p. 37).

O discurso parlamentar em torno de família, propriedade, religião e ordem foi a


tônica do golpe de destituição da ex-presidente Dilma Rousseff pelos deputados e
senadores, acrescidos do discurso hipócrita anticorrupção, tendo em vista que alguns
deles posteriormente foram condenados e até presos por envolvimento em esquemas
de corrupção, além de parte das bancadas terem recebido recursos em troca do voto
que decidiria o futuro da presidência e da democracia.
A representação político-parlamentar da direita brasileira, que já se encontrava
em ascensão naquele momento, incluía ao mesmo tempo os representantes do
neoliberalismo e do conservadorismo, indo desde discursos contrários a expansão de
políticas e serviços públicos e em defesa de corte de gastos estatais até aos
argumentos em nome de Deus e da família, reafirmando os tradicionais valores de
uma direita que não se envergonha:

Aqueles que defenderam o impeachment, supostamente em nome de suas


famílias, são os mesmos que votam as propostas que mais atacam as
condições de vida da maioria da população brasileira. Eles operam e ratificam
o desmonte do Estado e das políticas públicas de educação, saúde,
seguridade social, alimentação. (VITÓRIA; FARIA; MORENO, 2016, p. 27,
grifo nosso).

Ao analisar o discurso dos deputados federais na votação do processo de


impeachment contra a ex-presidente Dilma, no dia 17 de abril de 2016, Almeida, R
(2018) identificou um forte apelo a expressões como Deus, família, nação e corrupção
por parte significativa dos 513 deputados:

A expressão ‘pedaladas fiscais’, acusação formal do processo jurídico-


político, foi citada apenas oito vezes entre os 367 deputados que votaram a
favor do impeachment, e foi desses que veio a quase totalidade das
referências a deus – 43 vezes –, à (sua) família e à nação. Em várias
declarações, família – 117 vezes – veio associada aos termos ‘honra’,
‘respeito’ e ‘consciência’, buscando significar honestidade e bom caráter de
quem a evocou. E o apelo à nação – 28 vezes – não era um discurso
identitário cultural ou protecionista econômico como é muito recorrente em
contextos internacionais contemporâneos. Além do sentido mais de geral de
101
unidade, o termo nação expressou um patriotismo que identificou na
corrupção do Estado um crime contra o país (ALMEIDA,R. 2018, p. 168-169).

Ao legitimar um ataque à democracia por dentro da própria estrutura


democrática, a classe dominante brasileira triunfa em sua perspectiva de ataque aos
direitos e passa, a partir de então, a pôr em prática seu projeto de desmonte das
garantias trabalhistas e sociais em dois momentos complementares: de 2016 a 2018,
prioritariamente com a ascensão e consolidação da austeridade fiscal estatal; e de
2019-2020, com o aprofundamento da ofensiva conservadora e o fortalecimento do
fundamentalismo e da militarização, inclusive com cadeiras cativas na esfera
governamental.
Em outras palavras, o projeto posto em prática por Michel Temer (2016-2018),
que caracterizou o adensamento do neoliberalismo, indo do social-liberal ao
ultraliberalismo, serviu de base para o atual contexto – governo Bolsonaro – de
legitimidade dos discursos antidireitos e apelo para um Estado cada vez menos laico,
que transportou a simbologia da família dos discursos pró-impeachment para a política
de governo via Ministério da Família e dos Direitos Humanos, cuja ministra ocupante
da direção desse órgão representa o que há de mais fundamentalista, se posiciona
contra a diversidade sexual e de gênero e apregoa a defesa de um lugar tradicional
para as mulheres.
Nessa perspectiva, quando ainda estava no exercício provisório do cargo de
presidente, Michel Temer publicou a Medida Provisória nº 726/2016, propondo a
revogação da Lei nº 10.683/2003 – que dispunha sobre a organização da Presidência
da República e dos ministérios –, assinando a então proposta de Reforma Ministerial,
tornando-se a Lei nº 13.341/2016, sancionada em abril do mesmo ano.
Por meio dessa lei, foi formalizada a extinção dos ministérios da Previdência
Social, do Desenvolvimento Agrário, da Ciência e Tecnologia e das Comunicações e
Cultura, sendo este último posteriormente reintegrado diante das inúmeras
manifestações dos movimentos culturais.
Ao anunciar o “novo” escalão de ministros em maio de 2016, o então presidente
Michel Temer mesclou, em um grupo de “senhores” brancos, ex-ministros dos
governos do PT – integrantes do então Partido Movimento Democrático Brasileiro
(PMDB), hoje MDB – aliados a componentes do PSDB e do Democratas (DEM), em
um flagrante contraste com a tentativa de inserção de segmentos populares, tais como

102
negros/as, indígenas, mulheres e população LGBTQIA+ nas decisões e ações
institucionais no país, como bem observado por Brum (2019, p. 153):

De imediato, a fotografia produziu estranhamento. Como um retrato do


presente que já surge amarelado, com pontos de mofo aqui e ali, clamando
por uma naftalina para enfrentar as traças. Só brancos, só homens, só velhos.
Nenhuma mulher. Nenhum negro. Nenhum indígena. Esse retrato era uma
imagem poderosa porque não representava o Brasil de 2016. Era também
uma mensagem poderosa. A ‘ponte para o futuro’ – nome do projeto
apresentado pelos grupos que apoiavam o impeachment – era uma ponte
para o passado, ou nem isso. Talvez o mais exato a dizer é que era uma
ponte que foi construída já quebrada, o rompimento incluído no projeto de
engenharia, para que não houvesse como alcançar qualquer futuro que não
fosse passado (BRUM, 2019, p. 153, grifo nosso).

Tratava-se de um prenúncio do que estaria por vir no curto tempo em que


Temer esteve na condução presidencial do País (de setembro de 2016 a dezembro
de 2018). A aceleração de Medidas Provisórias e Leis que visavam destituir direitos e
uma agenda política com base na austeridade fiscal foi a tônica desses poucos mais
de dois anos, expressando a vitória de um projeto antidemocrático que, agindo sem
medo de ameaças, fortaleceu discursos e práticas políticas retrocedentes, como a
defesa da volta da Ditadura Militar, a solução da segurança pelas propostas de
armamento da população, os discursos de morte e violência de grupos e indivíduos
opositores à direita, a exemplo do brutal assassinato da vereadora Marielle Franco,
do Rio de Janeiro, em 14 de março de 2018.
O golpe, enquanto mecanismo de legitimação de um projeto antidemocrático
que saiu vitorioso em 2016, cumpre a função de aceleração do caráter antidireitos
desse mesmo projeto. Ainda em 2016, com uma acelerada tramitação da EC nº
241/2016 (aprovada na Câmara dos Deputados Federais) e da EC nº 55/2016,
aprovadas no Senado Federal, o Congresso Brasileiro aprovou, aligeiradamente, a
EC nº 95/2016, referente ao teto dos gastos públicos, congelando-os por 20 anos,
podendo ou não ser revisado em dez anos.
Do ponto de vista normativo, a incidência ideopolítica do caráter
antidemocrático e antidireitos se revela no ataque à previsão constitucional que definia
os valores a serem investidos nas políticas sociais públicas, sobretudo na Educação,
na Saúde e na Assistência Social, que tenderão a uma maior precarização tendo em
vista que já estavam submetidas à precarização e ao sucateamento.

103
Simultaneamente, a concretude das consequências da PEC nº 95/2016 é a
extensão do golpe, que, aparentemente, era contra a presidenta Dilma Rousseff e o
PT ao conjunto da população, beneficiária das políticas previstas na Seguridade
Social brasileira e agora submetidas a um regime fiscal ainda mais limitado. Conforme
descreve Mariano (2017, p. 261):

O novo regime fiscal suspende, por consequência, o projeto constituinte de


1988, e retira dos próximos governantes a autonomia sobre o orçamento,
salvo se houver, no futuro, em uma nova gestão, outra proposta de emenda
constitucional em sentido contrário. Retira também do cidadão brasileiro o
direito de escolher, a cada eleição, o programa de governo traduzido no
orçamento e, com isso, decidir pelas políticas públicas prioritárias para o
desenvolvimento econômico (MARIANO, 2017, p. 261).

A ofensiva ideopolítica da classe dominante também se expressa, depois dessa


PEC, na impossibilidade da incidência popular no Orçamento Público, além de
contrariar as lutas populares que se colocaram contrárias à aprovação dessa PEC,
com destaque para as ocupações de estudantes em escolas, institutos e
universidades em todo o país.
Na sequência do projeto antidireitos de seu governo, Michel Temer sancionou,
em 2017, a denominada Reforma Trabalhista (Lei nº 13.467/2017), que desmontou a
Consolidação das Leis Trabalhistas (CLT) existente desde 1943 sob o argumento de
uma flexibilização das relações de trabalho, necessária, conforme os defensores
dessa contrarreforma, para ampliar os mecanismos de contratação de empregados,
ou seja, facilidades para contratantes e perda de direitos conquistados há décadas
para os/as trabalhadores/as formais.
Ante a uma funcional ausência de consciência de classe em si e para si por
parte do conjunto de trabalhadores e trabalhadoras, o argumento da flexibilização e
da modernização das leis que regem os contratos de trabalho e os argumentos
ideopolíticos casam com os interesses econômicos, ao passo que contrapõem os
trabalhadores formais, minimamente protegidos em comparação aos informais, sem
nenhuma proteção. Desse modo, corroboramos que:

O discurso é completado com a crítica ao corporativismo dos defensores da


legislação vigente, que estariam preocupados com seus interesses egoístas,
e não com o bem-estar da sociedade. O objetivo desse discurso é duplo:
sensibilizar a população para que aceite o rebaixamento e a distinção de
direitos e a contrapor segmentos ‘incluídos’ aos ‘excluídos’ já que a ausência
de direitos da maioria é explicada pelo ‘excesso’ de direitos de uma minoria
104
‘privilegiada’ que não teria compromisso com os mais pobres (TEIXEIRA et
al., 2017, p. 45-46).

Na esteira do desmonte do que caracterizava o Estado Social brasileiro, a


proposta de Reforma da Presidência (EC nº 287/2106) estava legitimada pelo contexto
contrarreformista escancarado a partir de 2016, vindo a ser aprovada em 2019 (EC nº
103/2019), primeiro ano do mandato do então presidente Jair Bolsonaro cuja vitória
nas eleições de 2018 expressou a legitimação nas urnas de uma vontade popular de
base ainda mais conservadora em meio à continuidade e ao fortalecimento do projeto
ultraliberal.
Forjada desde o golpe de 2016 e arrojada com a operação lava-jato e a prisão
do ex-presidente Luís Inácio Lula da Silva, único político do PT capaz de aglutinar
apoio suficiente para uma eleição presidencial, a ofensiva ideológica antidemocrática
e antidireitos se materializou em curto prazo, valendo-se também dos espaços
encontrados no projeto de conciliação de classes operado pelo PT nos seus anos de
governo.
Ampliando a idade mínima para aposentadorias, a média de tempo e dos
valores de contribuição previdenciária, a Emenda Constitucional torna mais factual o
direito à aposentadorias em um contexto em que o trabalho já se exerce sob condições
cada vez mais precarizadas e mal remuneradas, enquanto lucros de bancos e
empresas multinacionais instaladas no Brasil crescem a cifras superestimadas,
intensificando a concentração de renda e da riqueza socialmente produzida, como
manda a “lei do capitalismo”.
Todas essas investidas tomam como base o entendimento de que os
investimentos públicos na área social constituem um desperdício e oneram o Estado
e se sustentam em ações antidemocráticas e antidireitos quando impulsionam a
destituição de regulamentações de direitos resultantes da incidência popular, aliando
liberalismo e conservadorismo. Além disso, conforme apontaremos a seguir, tais
medidas impõem desafios particulares para as mulheres, considerando suas
especificidades em relação aos direitos.

3.3 AS IMPLICAÇÕES DA REGRESSÃO DOS DIREITOS TRABALHISTAS PARA


AS MULHERES TRABALHADORAS

105
A ofensiva antidireitos e antidemocrática que se expressa acirradamente na
quadra histórica da segunda década do século XXI (em curso) atinge a classe
trabalhadora de distintas formas, dependendo da condição socioeconômica dos
sujeitos que a compõem. Além disso, como sabemos, essa ofensiva atinge ainda mais
agressivamente as mulheres, inseridas no mercado de trabalho a partir da
necessidade de ampliação da força de trabalho pelo capitalismo, com a passagem da
manufatura à maquinaria, e se acentua com o advento da grande indústria, processo
que Marx (2013, p. 662) discorreu como sendo:

O barateamento da força de trabalho por meio do simples abuso de forças de


trabalho femininas e imaturas, do roubo de todas as condições normais de
trabalho e de vida e da brutalidade nua e crua do trabalho excessivo e do
trabalho noturno acaba por se chocar contra certas barreiras naturais que já
não se podem transpor, assim como ocorre com o barateamento das
mercadorias e a exploração capitalista em geral, que repousam sobre esses
fundamentos (MARX, 2013, p. 662).

Considerado como trabalho subsidiário ao desenvolvimento do capitalismo a


partir da introdução de máquinas mais modernas, o trabalho das mulheres revela o
caráter sexual da Divisão Social do Trabalho, entendido como “divisão sociossexual
do trabalho” (NOGUEIRA, 2015), ou, como é mais comumente denominado, “divisão
sexual do trabalho” (KERGOAT, 2009):

A divisão sexual do trabalho é a forma de divisão do trabalho social


decorrente das relações sociais de sexo; essa forma é historicamente
adaptada a cada sociedade. Tem por características a doutrinação prioritária
dos homens à esfera produtiva e, simultaneamente, a ocupação pelos
homens das funções de forte valor social agregado (políticas, religiosas,
militares, etc.) (KERGOAT, 2009, p. 67).

Desse modo, a diferenciação de caráter sexual incorporada às relações de


trabalho pelo capitalismo naquele momento e incidindo até a contemporaneidade não
é natural nem ontológica, de modo que o caráter social dessa divisão merece ser
destacado como um elemento histórico e material. Essa divisão sociossexual do
trabalho “[...] sobrecarrega as mulheres com os afazeres domésticos e de cuidado,
dificulta seu acesso e permanência no mercado de trabalho, bem como a sua
ascensão profissional” (BRASIL, 2014, p. 16).

106
Conforme afirmou Nogueira (2015, n. p.) 3 , ao ser entrevistada em meados
desta segunda década:

A divisão sócio-sexual do trabalho vai no sentido de mostrar que estas


relações estão presentes numa construção social e não previamente dadas
por uma questão feminina ou masculina, embora eu reconheça enormes
especificidades e necessidades de ambos sexos. Uma desigualdade nessa
divisão vai passar por uma construção social, e se entendo que esta divisão
contempla uma questão da construção social me propicia um enfrentamento
mais direto e que pode alcançar mais resultados nessa luta por uma
igualdade substantiva na divisão sócio sexual do trabalho (NOGUEIRA, 2015,
n. p.).

Historicamente, as organizações e os movimentos feministas pautaram a


igualdade salarial entre homens e mulheres, a desresponsabilização da totalidade das
tarefas domésticas não remuneradas pelas mulheres, a formalização dos vínculos
trabalhistas e o reconhecimento de direitos para as mulheres, o que segue se
reatualizando no contexto de desmonte dos direitos do trabalho no Brasil.
A desvalorização do trabalho doméstico é tão estruturante da reprodução social
da força de trabalho que, enquanto espaço formal, só foi equiparado a outros vínculos
regidos pela CLT por meio da PEC nº 72/2013, que se tornou Lei em 2015, ampliando
as conquistas formais no âmbito do trabalho doméstico da Lei nº 11.324/06,
possibilitando a regulamentação da jornada máxima de 44 horas de trabalho semanais
e 8 horas diárias e permitindo o recebimento de hora extra e recolhimento mensal do
FGTS, direto do salário do empregador.
Entretanto, o contexto de precarização e flexibilização do tempo presente,
sobretudo após o golpe de 2016, apontam para maiores desafios quanto à garantia
dos direitos com a ofensiva ultraliberal e conservadora em curso, a exemplo das
aprovações da Lei da Terceirização (Lei nº 13.429/2017), complementada pelo Projeto
de Lei da que altera a terceirização com vistas a torná-la irrestrita, incorporando
atividades fins de determinados setores (PL nº 6787/2017) das contrarreformas
trabalhista (Lei nº 13.467/17) e previdenciária (EC nº 103/2019).
Conforme ressalta Biroli (2018, p. 31), “no Brasil, a aprovação da ‘terceirização
irrestrita’ e das ‘jornadas flexíveis’ de trabalho tendem a aprofundar as desigualdades
já existentes”. Essa divisão sexual do trabalho “[...] sobrecarrega as mulheres com os

3
Entrevista disponível em: https://www.esquerdadiario.com.br/Claudia-Mazzei-as-mulheres-
trabalhadoras-muitas-vezes-nao-podem-adoecer (acesso em agosto de 2021).
107
afazeres domésticos e de cuidado, dificulta seu acesso e permanência no mercado
de trabalho, bem como a sua ascensão profissional” (BRASIL, 2014, p. 16).
As particularidades de um amplo processo de precarização para a mulheres
nesse contexto são apresentadas por Assunção (2013, p. 66), com ênfase no fato de
que “[...] a combinação entre opressão e exploração é de extrema importância para
fortalecer e renovar as distintas formas de exploração e dominação”, residindo nessa
combinação o elemento central que justifica a necessidade de pesquisas que
articulem as condições gerais de trabalho e como elas se expressam particularmente
para grupos de trabalhadores distintos – a exemplo das mulheres.
De acordo com o Relatório Anual Socioeconômico da Mulher (BRASIL, 2018,
p. 17):

As mulheres que estão no mercado de trabalho, ou seja, as economicamente


ativas, foram mais afetadas pelo desemprego em comparação aos homens.
A taxa de desocupação feminina, em 2014, foi de 8,7%, enquanto que a
masculina foi de 5,1%. Assim, temos que a taxa de desocupação feminina foi
70,5% superior à masculina. As desigualdades de gênero e raça confirmam-
se também nos rendimentos-hora percebidos. Enquanto as mulheres negras
recebem, em média, R$ 9,00 por hora trabalhada, os homens brancos
recebem R$18,4 (BRASIL, 2018, p. 17).

Os dados acima expõem uma realidade que justifica as lutas feministas por
equiparação salarial, redução das jornadas de trabalho e reconhecimento do trabalho
doméstico como fonte de assalariamento, considerando que, majoritariamente, é
desenvolvido por mulheres dentro e fora da esfera doméstica, por sua vez
considerada a esfera reprodutiva.
No que diz respeito ao atual contexto de ofensiva antidemocrática e
destituição acelerada de direitos, que impõe às lutas sociais a reivindicaçãohf da
manutenção desses direitos conquistados e a garantia da constitucionalidade como
mecanismo através do qual o Estado pode ser tensionado, a conjuntura atual enseja
algumas exigências na perspectiva de unidade das pautas gerais da classe
trabalhadora com as do feminismo, haja vista a predominância de pautas identitárias
que se distanciam de análises e ações práticas no âmbito da totalidade. Nesse
sentido, destacamos:

Acreditar que as novas formas de organização do trabalho, como horários


flexíveis e contratos precários, favorecem a inserção da mulher no mercado
de trabalho é um equívoco. A mulher trabalhadora, junto com o restante de

108
sua classe, padece ainda mais com as novas formas de organização da
produção. Se por um lado, é certo que há mais mulheres na População
Economicamente Ativa (PEA), que engloba os trabalhadores empregados e
desempregados, são mais mulheres que saem em busca de emprego e não
mais mulheres empregadas (TOLEDO, 2017, p. 57).

No quadro geral de flexibilização, a condição das mulheres diante da


feminização do mundo do trabalho é que “[...] a acentuada inserção da mulher no
mundo do trabalho se dá prioritariamente nos espaços dos empregos precários, de
baixos salários, de tempo parcial” (NOGUEIRA, 2004, p. 29).
O que se identifica é uma funcionalidade das opressões (no caso, de gênero e
de raça, além de alguns trabalhos que já se debruçam sobre a população LGBTQIA+)
historicamente construídas para a exploração da força de trabalho desses segmentos
pelo capital, que também passam a compor a subsunção real, a depender dos
avanços e dos recuos da luta de classes em contextos diferenciados, cuja
intensificação da precarização vem acompanhada de “[...] salários muito mais baixos
e cargos mais baixos na hierarquia” (NOGUEIRA, 2017, p. 326).
As expressões próprias da terceirização da força de trabalho das mulheres,
como forma particular da precarização da força de trabalho – que, como já vimos,
implica em perda de direitos tanto nos espaços públicos como privados –, se relaciona
com o setor de serviços e “[...] apresentam características como a baixa remuneração,
trabalhos repetitivos, pouca exigência de qualificação, etc., como são exemplos os
setores de limpeza e de zeladoria, onde as mulheres estão mais inseridas”
(NOGUEIRA, 2017, p. 332).
Nesses termos, a reestruturação do capital não é apenas produtiva, mas
também reprodutiva (cf. FEDERICI, 2019a). Acerca disso, Federici (2019a) destaca
os seguintes aspectos acerca do reordenamento da divisão sociossexual do trabalho
no quadro da expansão capitalista contemporânea, provocando aumento da jornada
de trabalho e o retorno ao trabalho dentro de casa:

Em primeiro lugar, as mulheres foram os amortecedores da globalização


econômica, pois tiveram que compensar com seu trabalho a deterioração das
condições econômicas produzidas pela liberalização da economia mundial e
pelo crescente desinvestimento dos Estados na reprodução da força de
trabalho; [...] O segundo fator que devolveu a centralidade ao trabalho
doméstico no lar foi a ‘expansão do trabalho domiciliar’, em parte devido à
desconcentração da produção industrial, em parte pela disseminação do
trabalho informal; [...] Por último, o crescimento do emprego feminino e a
reestruturação da reprodução não eliminaram as hierarquias de gênero no
trabalho. Apesar do crescimento do desemprego masculino, as mulheres
109
ainda ganham apenas uma fração do salário dos homens (FEDERICI, 2019a,
p. 226-228).

Com tais particularidades, a conjuntura econômica, política e social em tempos


de austeridade fiscal e contrarreformas adensam a ofensiva sobre as mulheres, cujas
consequências mais genéricas da contrarreforma trabalhista se particularizam nos
seguintes aspectos:

• A intermitência no trabalho (Art. 452 A e seguintes da CLT), estando o/a


trabalhador/a em contrato de trabalho firmado por horas, dias ou meses, é
funcional à divisão entre o trabalho doméstico em casa e outras atividades
fora dela, sendo esta condição bem mais propícia às mulheres do que aos
homens; é, também, antagônica às lutas históricas da classe trabalhadora
por redução de jornada sem redução de salário, além de parcializar o
salário, as férias e o 13º salário, que são pagos proporcionalmente ao
tempo de trabalho realizado;
• A realização do teletrabalho (Art. 75-A a 75-E da CLT) é outro aspecto que
favorece sua realização pelas mulheres, por se tratar de modalidade de
contratação em que a prestação de serviços se dá, sobremaneira, fora das
dependências de quem emprega. Além disso, o uso das tecnologias
empregadas ao trabalho não se encaixa em modalidade de prestação
externa de serviços. Temos uma falácia argumentativa de que se trabalha
em casa e tem um maior controle sobre a jornada, o que, para as mulheres
pode subsumir a separação entre as dimensões reprodutiva e produtiva de
sua jornada. Sem a possibilidade de horas extras por não haver controle
direto sobre este trabalho, acentua-se a tendência antidireitos na qual essa
contrarreforma está ancorada;
• Trabalho a tempo parcial: o aumento do número de horas nessa
modalidade (passando de 25 horas para 30 horas, sem horas extras e para
26 horas com a possibilidade de até mais 6 horas extras) é mais uma forma
de apropriação de mais tempo de trabalho, também possível de conciliação
com as outras dimensões da jornada de trabalho feminina. Com a
parcialidade na contratação, havendo uma maior necessidade de alcance
de renda por parte de quem oferta a força de trabalho, temos que a compra

110
e venda do terço de férias são quase certas, dada a instabilidade inerente
à parcialização da jornada.

No que tange a uma ofensiva mais específica sobre as mulheres, a Lei nº


13.467/2017 promove duas modificações:

• A possibilidade de a mulher gestante exercer atividade de grau médio ou


mínimo de insalubridade passa a existir, mediante atestado médico por ela
apresentado que comprove condições de saúde da mulher para o trabalho,
retrocedendo quanto ao anterior afastamento das mulheres do espaço
independentemente do grau da insalubridade. Além disso as lactantes só
serão afastadas de suas funções em ambientes insalubres, qualquer que
seja o grau, quando apresentarem atestado médico que comprove a
necessidade, desconsiderando os riscos para a mãe e a criança;
• A revogação do intervalo de 15 minutos antes da realização de uma
atividade extraordinária pelas mulheres implica em não reconhecimento de
necessidades específicas que elas possam ter.

Ainda quanto à modificação ao tempo total de deslocamento até o trabalho


como parte de jornada de trabalho, conforme previsto no 2º parágrafo do artigo 58º da
CLT, é importante pontuar que isso implica em uma total desresponsabilização de
empregadores/as quanto ao necessário deslocamento para que se chegue ao local
de realização do trabalho.
Se considerarmos que o exercício de mulheres pobres, com o devido recorte
étnico racial, pode se tratar de uma parcela da população que, além de morar em
periferias, assumem uma série de tarefas com a alimentação, com os filhos e outros
membros da família, podemos afirmar que o tempo dessas mulheres é cada vez mais
apropriado pelo desenvolvimento de trabalho (pago e não pago), elemento que
compõe um quadro mais geral de subsunção real do trabalho ao capital.
Legitima-se, a partir desses aspectos, um processo de deslegitimação dos
direitos das mulheres no contexto dessas contrarreformas, seja os que lhes colocam
em pé de igualdade formal com homens trabalhadores, seja os que reconhecem
algumas de suas especificidades. Os novos contratos de caráter intermitente – em

111
tempo parcial e terceirizados –, em substituição aos vínculos de tempo indeterminado
e com segurança, incidem fortemente sobre as mulheres, considerando que:

As mulheres já representam a maioria nessas formas de ocupação e a sua


flexibilização irá precarizar ainda mais as frágeis condições de trabalho. O
setor de comércio, segmento com grande predominância de mulheres, é
responsável por 17,8% dos empregos das mulheres brancas e 17,2% das
mulheres negras (TEIXEIRA, 2017, p. 241).

A relação entre economia e política implica em políticas sociais e seguridade


precária diante de condições degradantes de trabalho mesmo que conquistas formais
sejam alcançadas como respostas às reivindicações das mulheres da classe
trabalhadora, a exemplo da PEC nº 72/2013, que, a partir da PEC 66/2012, alterou o
artigo 7º da Constituição Federal, igualando o/a trabalhador/a doméstico/a a qualquer
outro/a trabalhador/a urbano ou rural.
A partir dessa emenda e da Lei Complementar nº 150/2015, que, por sua vez
regulamentou a garantia do/a trabalhador/a doméstico/a a direitos que estes/as ainda
não usufruíam, a exemplo de adicional noturno, do FGTS e do seguro desemprego,
tendência à maior flexibilização e terceirização das relações de trabalho. Foi
contrariada, atendendo minimamente antigas reivindicações feministas.
Os fundamentos contrarreformas se apoiam em argumentos de necessidade
de “modernização das relações de trabalho”, bem como na velha insistência de que
os trabalhadores e as trabalhadoras desfrutam de muitos direitos (considerados
privilégios), o que infla o Estado.
Ao nos questionarmos se, ao invés dessa modernização, o que está de fato em
curso não é o aprofundamento da subsunção do trabalho ao capital, ancorado em
propostas tanto neoliberais como conservadoras, trazemos uma análise das
mudanças em curso e futuras, com base nas leis e na PEC em destaque.
Para Antunes (2018), está em curso um processo que ruma para a
“precarização industrial do trabalho”, sobre o qual podemos afirmar que as medidas
atualmente em curso no Brasil fazem parte desse percurso.
Nas palavras do próprio Antunes (2018, p. 32):

Com salários menores, jornadas de trabalho prolongadas, vicissitudes


cotidianas que decorrem da burla da legislação social protetora do trabalho,
a terceirização assume cada vez mais relevo, tanto no processo de corrosão
do trabalho e de seus direitos como no incremento e na expansão de novas
formas de trabalho produtivo geradoras de valor (ANTUNES, 2018, p. 32).
112
No tocante à contrarreforma da previdência, em 2019 ela foi consolidada após
duas PECs encaminhadas ao Congresso Nacional desde a destituição da presidente
Dilma, em 2016. A primeira, a EC nº 287/2016, foi encaminhada por Michel Temer; e
a segunda, a EC nº 06/2019, foi um dos primeiros projetos do atual presidente Jair
Bolsonaro, consolidando apressadamente os interesses do projeto que o colocou no
poder.
A atual EC nº 103/2019, além de legitimar os ataques à Seguridade Social
brasileira regulamentada constitucionalmente em 1988, deixa em aberto o
alargamento dessa ofensiva, conforme alerta o Departamento Intersindical de
Estatísticas e Estudos Socioeconômicos (DIEESE, 2019, p. 2): “como toda série que
se prolonga no tempo, o resultado final dessa segunda temporada anuncia nova
sequência que vai girar em torno da PEC paralela (PEC 133) e muitos episódios da
regulamentação das novas regras constitucionais”.
Com a EC nº 103/2019 (a Nova Previdência), há perdas significativas de
direitos, tais como pensões, tempo de contribuição para aposentadorias e revisão de
benefícios, medidas estas que atingem diretamente as mulheres de modo que, aqui,
somos limitadas a destacar apenas alguns aspectos que evidenciam a tragédia
antidireitos.
De modo geral, devemos nos preocupar com a continuidade do processo de
deslegitimação dos direitos constitucionais referentes à Seguridade Social e à
Previdência Social, que se evidencia, conforme Nota Técnica do Dieese, em três
elementos: Desconstitucionalização de regras previdenciárias; Mudanças no
orçamento da Seguridade Social e Privatização dos Benefícios não Programados
(DIEESE, 2019). Grifos do documento.
Um aspecto que merece destaque é que, a partir da EC nº 103/2019, passou a
ser obrigatória a criação de Regime de Previdência Complementar (RPC) para
servidores públicos – o que direciona, obrigatoriamente, percentual de salários para
fins privados. Além disso, estados e municípios que não tenham regimes particulares
(próprios) de previdência social são impossibilitados de cria-los, submetendo-se
imediatamente ao Regime Geral de Previdência Social (RGPS) após a contrarreforma.
O aumento da idade para o acesso ao direito à aposentadoria e a extinção da
aposentadoria por tempo de contribuição são as medidas diretas que afetarão a classe

113
trabalhadora e as mulheres, especificamente. Antes era possível se aposentar,
conforme o RGPS, com 30 de anos de contribuição (mulheres) e 35 anos (homens)
de contribuição, direito este que foi extinto, centrando a aposentadoria na relação
entre tempo de contribuição (agora o mínimo de 25 anos para ambos os sexos) e
idade mínima, que aumentou de 60 para 62 para as mulheres, ao tempo que mantém
em 65 anos a idade para os homens. Trata-se, portanto, de um retrocesso explícito
no que tange à desigualdade entre o tempo de trabalho dos homens e das mulheres,
estando estas sempre com uma jornada mais ampla.
Estamos de acordo com a análise de Cândido e Costa (2019) quando destacam
que:

A Emenda aprovada, no âmbito do Regime Geral de Previdência Social/INSS,


aparenta ser um balé cuidadosamente ensaiado: a proposta original enviada
pelo Poder Executivo desejava mostrar força e ‘tolerância zero’ com o direito
do trabalhador. Assim, ao longo de sua tramitação pelo Congresso Nacional,
foi possível que a base aliada do governo negociasse alguns de seus pontos
mais cruéis, acolhendo emendas de conteúdo e supressivas feitas pela
oposição no tocante ao Regime Geral, com escopo de manter praticamente
inalterado o texto destinado à “reforma” do regime dos servidores (CÂNDIDO;
COSTA, 2019, p. 16).

Embora fuja aos objetivos desta tese elaborar uma análise pormenorizada da
EC nº 103/2019, é imprescindível afirmar que os aspectos transitórios do regime
anterior para o atual, sob cálculos de pontos e pedágios, tem por tendência impor mais
trabalho para o possível acesso à previdência e dificultar o acesso a benefícios, a
exemplo da impossibilidade de acúmulo de aposentaria e da pensão por morte,
embora esses sejam casos não tão comuns, e, quando existam, resultem de trabalho
devidamente realizado e de vidas partilhadas, de tal modo que:

Sem direito a uma aposentadoria digna e vinculada ao salário mínimo, as


pessoas terão ainda mais restrição no acesso aos bens de consumo. Frente
à insuficiência do sistema público, os bancos privados e seguradoras
aparecem como a solução para esse problema, que é encarado como se
fosse individual (VITÓRIA; FARIA; MORENO, 2016, p. 32).

As perdas são evidentes também nos Regimes Próprios de Previdência Social


(RPPS), que, além da desconstitucionalização já apontada, institui a contribuição
extraordinária de aposentados/as por até 20, se comprovado déficit atuarial do
Regime Próprio; aumento da alíquota padrão para servidores ativos e aposentados
de 11% para 14%; proibição de acumulação de aposentadoria no mesmo regime; ou
114
acumulação de aposentadoria com pensão, assegurando-se o benefício mais
vantajoso entre eles.
Diante dessas circunstâncias, estamos de acordo com a ideia de que:

A situação de precarização, exploração e apropriação do trabalho das


mulheres carrega elementos históricos que expressam intensidades
diferenciadas de acordo com o tempo e a formação social. No entanto,
mesmo com estas distinções podemos afirmar que as mulheres
historicamente se encontraram em situações de maior pauperização em
relação ao homem, mesmo inseridas na mesma classe social (ALMEIDA,
2017, p. 118).

Para além das relações de trabalho, continuamos seguindo a lógica dialética e


indissociável entre produção e reprodução da vida social e sua totalidade, com
apontamentos sobre as políticas sociais no mesmo contexto de regressão de direitos
e da aliança entre economia e política, analisando como este se particulariza para as
mulheres.

3.4 DESMONTE DA SEGURIDADE SOCIAL E AS PARTICULARIDADES PARA AS


MULHERES

A relação entre as tendências gerais das políticas sociais e as particularidades


das políticas da Seguridade Social (para além da saúde, da previdência e da
assistência social) para as mulheres é de articulação direta, uma vez que, apesar de
haver programas e instituições específicos, no caso das políticas setoriais, a
determinação econômica que estabelece os interesses e o modus operandi no
contexto dos anos 2000 inviabiliza uma outra direção que não seja a de
desfinancialização, desmonte de serviços, atravessamento de mercado e a negação
das especificidades reivindicadas pelas mulheres por meio de uma ofensiva patriarcal
conservadora e do fortalecimento de grupos políticos fundamentalistas nos espaços
de representação política, a exemplo dos mandatos partidários.
Tais elementos implicam em maiores contradições quanto ao atendimento das
reivindicações das mulheres na segunda década do século XXI, no contexto em que
as respostas (ainda que parciais e insuficientes da década anterior) se tornam cada
vez menos satisfatórias em termos de recursos orçamentários, espaços institucionais
e enfrentamento às desigualdades. A economia política brasileira nesta década se
mostra mais intolerante às investidas social-liberais da década anterior. O discurso de
115
base misógina presente nas campanhas pelo impeachment direcionado à presidenta
Dilma Rousseff revela o quanto o patriarcado sempre foi presente, aliado do golpe
contra a democracia (por encontrar uma presidenta mulher) e, posteriormente,
encontrou lugar privilegiado nas autoridades máximas do país.
Nos anos 2000, há uma nova configuração daqueles dois elementos que Mota
(1995, p. 117) já apontava como dois vetores da relação entre economia e política
para a Seguridade Social: “[...] as mudanças no mundo do trabalho e as mudanças na
intervenção do Estado”, em que, da primeira à segunda década, a Seguridade Social
passa de um movimento de privatização processual do público, por meio de parcerias
público-privadas (PPPs) – a exemplo das empresas que passam a gerenciar a
previdência e a saúde – e da transferência de renda como mecanismo principal de
garantia de programas sociais, para uma privatização acelerada e alicerçada no
desmonte legislativo dos direitos, a exemplo das já destacadas contrarreformas
trabalhista e previdenciária, ao passo que, de acordo com Mota (1995), sobre o
movimento geral do capitalismo e a investida sobre o Estado brasileiro:

É dessa maneira que a seguridade social transforma-se em objeto


prioritário de mudanças e ajustes, tanto nos países hegemônicos,
quanto nos países periféricos, evidenciando a centralidade dessa
política social, no conjunto das novas relações entre o Estado, o
mercado e a organização social (MOTA, 1995, p. 121).

Orientado pela ofensiva capitalista frente ao momento de recessão particular a


partir de 2008, o Estado brasileiro impulsionou a agenda de desenvolvimento
recomendada pelos organismos multilaterais do capital, a exemplo do Banco Mundial
e do FMI, cujas pautas de redução da desigualdade, empoderamento,
empreendedorismo, acesso a crédito e economia solidária surgem como alternativas
via programas e projetos que, longe de alterar o quadro de desigualdades em que as
mulheres estão inseridas, se apropriam de suas reivindicações para bancar de
“socialmente responsáveis”.
Um exemplo dessa perspectiva são os Objetivos do Desenvolvimento
Sustentável apresentados pelo Programa Mulher Empreendedora do Banco Itaú, que
apresentam questões sobre a erradicação da pobreza, a educação de qualidade, a
igualdade de gênero, o trabalho decente e crescimento econômico e a redução das

116
desigualdades (ITAÚ, 2018), com metas para empoderar mulheres empreendedoras
de 2013 a 2018 no Brasil em parceria com o Banco Mundial e o Bird.
A agenda neoliberal do mercado, sob a representação dos organismos
supracitados e sua absorção pelo Estado, impõe que as políticas sociais sejam
continuamente desfinanciadas e submetidas ao recrudescimento da mercantilização
e da seletividade, impondo limites também à perspectiva feminista de transversalidade
do gênero no conjunto dessas políticas como uma exigência para “[...] abordar
problemas multidimensionais e intersetoriais de forma combinada, dividir
responsabilidades e superar a persistente ‘departamentalização’ das políticas”
(BRASIL, 2013, p. 10).
Ao tentar aproximar o inaproximável, ou seja, os interesses das mulheres
trabalhadoras e do mercado, o Estado, via programa de governo, reproduz o discurso
de empoderamento e empreendedorismo como alternativa à promoção de políticas,
conforme destacamos no Plano Nacional de Políticas para as Mulheres de 2013
(BRASIL, 2013). Na linha de ação 1.2 proposta para os anos de 2013 a 2015, consta
a:

Promoção da autonomia econômica das mulheres por meio da assistência


técnica e extensão rural, do acesso ao crédito e do apoio ao
empreendedorismo, ao associativismo, ao cooperativismo e à
comercialização, com fomento a práticas de economia solidária (BRASIL,
2013, p. 15, grifos nossos).

As ações pontuais previstas para viabilizar essa linha revelam a assimilação da


agenda do mercado nas pautas de gênero (como são caracterizadas as reivindicações
das mulheres), ainda com ênfase nas medidas de empoderamento, de inserção no
mercado de consumo e de empreendedorismo, como se pode observar:

1.2.1 Apoiar projetos empreendedores e de organização produtiva de


mulheres nos meios urbano e rural e favorecer mecanismos para
comercialização de sua produção;
1.2.2. Apoiar projetos de organização produtiva das mulheres rurais,
garantindo o acesso ao crédito, à assistência e assessoria técnica e
socioambiental, bem como o apoio à comercialização, à agroecologia e à
agricultura familiar; e
1.2.3. Incentivar o acesso de mulheres às incubadoras e empreendimentos
econômicos solidários e fortalecer a rede de mulheres na economia solidária
(BRASIL, 2013, p. 17).

117
Uma outra ação emblemática do Plano Nacional de Políticas para as Mulheres
(BRASIL, 2013) que podemos utilizar aqui como exemplo de um direcionamento da
agenda de gênero à conjugação dos interesses mercadológicos é a ação 1.6, que
prega a “promoção da proteção e seguridade social das mulheres, em especial
daquelas em situação de vulnerabilidade, com vistas a erradicar a pobreza e melhorar
suas condições de vida” (BRASIL, 2013, p. 15).

1.6.1. Ampliar a seguridade social para as mulheres, valorizando o trabalho


doméstico não remunerado pelo fortalecimento da Lei nº 12.470/2011;
1.6.2. Promover ações articuladas para ampliação da inscrição das mulheres
no sistema previdenciário, envolvendo donas de casa, empreendedoras
autônomas, produtoras rurais e demais segmentos de mulheres do campo e
da cidade, empregadas domésticas; e
1.6.3. Fortalecer as iniciativas para implementação da legislação que
possibilita o direito de aposentadoria das donas de casa de baixa renda
(BRASIL, 2013, p. 19). Grifos do documento.

Embora se utilize de um discurso que se articula às demandas feministas,


propõe que o acesso a direitos se dê pela precarização das relações de trabalho, sem
a devida responsabilidade estatal, com forte apelo ao microempreendedorismo, como
alternativa à erradicação da pobreza.
Ao analisarmos a publicização da agenda feminista na sua aparência,
consideramos que a direção social-liberal da primeira década e de parte da segunda
avança em relação à política neoliberal da década de 1990, seja quando incorpora as
demandas das mulheres por meio de Planos, Programas, Pactos, seja quando
possibilita um diálogo e promove organizações como Fóruns, Conferências,
Conselhos e Eventos, com a efetiva participação da militância feminista.
A contradição que se apresenta nesse processo é o pretenso atendimento da
agenda de mercado via agências multilaterais que se propõem a contribuir com o
enfrentamento às desigualdades de gênero, em um movimento que reatualiza, no
contexto em análise, a relação entre Estado e mercado, constituindo-se uma
mediação na nossa apreensão de que este caminho é insuficiente para uma efetiva
politização e efetivação de mecanismos que de fato enfrentem as desigualdades
cotidianas pelas quais as mulheres passam.
Não obstante, a tendência ao empreendedorismo para as mulheres segue a
lógica mais ampla de uma política ancorada na ideia de que os indivíduos são patrões
de si mesmos, podem trabalhar no seu próprio tempo, ocultando na imediaticidade, o
estímulo ao trabalho desprotegido, a ideia de que se empoderar é tomar para si o
118
controle das situações de empregabilidade, enquanto o Estado se ausenta de uma
política de emprego e renda capaz de promover uma socialização da riqueza (o que
o destituiria de promotor dos interesses burgueses).
Sem enfrentar o capitalismo, com medidas como: incubadoras, acesso a
crédito submetido ao capital portador de juros e promoção de comercialização, via
economia “solidária”, não há avanço, no sentido de fortalecer saídas para as mulheres
da classe trabalhadora, que seguem submetidas ao rentismo, via pagamentos de
juros, à concorrência entre elas para escoamento dos produtos produzidos nas
cooperativas frente aos desafios da baixa comercialização e como saída, o Estado
aponta o alargamento da Lei do empreendedorismo (12.470/2011), denotando a
perspectiva liberal de responsabilidade individual de sua condição, ao estimular a
Criação de Microempreendedores Individuais – MEI, como alternativa ao desemprego.
A agenda de gênero pautada pelo Estado brasileiro por meio do Programa
Pró-equidade de Gênero e Raça, que no período de 2005 a 2016 realizou seis
edições, objetivando:

[...] difundir novas concepções na gestão de pessoas e na cultura


organizacional, combater as dinâmicas de discriminação e
desigualdade de gênero e raça praticadas no ambiente de trabalho,
assim como promover a igualdade de gênero e raça no que diz
respeito às relações formais de trabalho e à ocupação de cargos de
direção. (BRASIL, 2015, p.5).

Destinado a pactuações com empresas públicas e privadas que receberiam


um selo pelo desenvolvimento de práticas inovadoras para equidade de gênero e raça,
o Programa não apresenta nenhuma medida de transformação radical, mas busca
promover as empresas fortalecendo o discurso de responsabilidade social, cuja
propaganda envolvendo as temáticas é funcional à lucratividade.
Ademais, há uma relação direta com o Plano de Ação para a Igualdade de
Gênero, elaborado pela Organização Internacional do Trabalho (OIT) de 2010 a 2015,
com base na retórica da igualdade de oportunidades entre homens e mulheres e do
conceito de trabalho decente, sem nenhuma crítica ao modo de funcionamento da
economia e do Estado que subsidia o mercado, embora com uma apropriação
analítica das questões que perpassam o cotidiano das mulheres, como podemos

119
observar no seguinte trecho do Programa Interagencial de Promoção da Igualdade de
Gênero (OIT, 2010):

Segundo dados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios


(PNAD), realizada pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística
(IBGE), em 2008, dos 97 milhões de pessoas acima de 16 anos
presentes no mercado de trabalho, as mulheres correspondiam a
cerca de 42,5 milhões (43,7% do total) e a população negra (homens
e mulheres) a cerca de 48,5 milhões de pessoas (cerca de 50%).
Somados, mulheres brancas, mulheres negras e homens negros
representavam 72% das pessoas no mercado de trabalho, o que
corresponde a 70 milhões de trabalhadores/as. Neste mesmo ano,
mulheres e negros apresentavam os maiores níveis de desemprego,
sendo as mulheres negras as que se encontravam em pior situação,
apresentando uma taxa de desemprego de 10,8%, comparada a 8,3%
para as mulheres brancas, 5,7% para os homens negros e 4,5% para
os homens brancos. É importante ressaltar, ainda, o aumento do
número de famílias chefiadas por mulheres, o que evidencia a
importância de propiciar a elas uma melhor inserção no mercado de
trabalho como estratégia de superação da pobreza. Entre 1998 e
2008, aumentou de 25,9% para 34,9% a porcentagem de famílias
chefiadas por mulheres, sendo que as estruturas unipessoais
aumentaram de 4,4% para 5,9% (OIT, 2010, p. 2).

Corroboramos com a crítica feita por Almeida (2017), ao identificar que: “ao
condicionar o acesso ao trabalho decente às condições econômicas e possibilidades
de cada país, a OIT aponta para uma problemática que vem sendo posta como
justificativa para retração e negação de direitos” (p.207).
A mediação da relação entre Estado e mercado é um dos elementos cruciais
para se entender a transição entre o direcionamento social-liberal da seguridade e sua
negação de caráter liberal-conservadora, haja vista uma mescla na agenda política
incorporada pelos governos na primeira década dos anos 2000 e um aprofundamento
dessa tendência na segunda década, quando se inviabiliza totalmente a relação entre
demandas dos movimentos e a elaboração dos programas e ações, ficando esses
hegemonizados pelo mercado, à medida que os direitos vão sendo derruídos.
Frente a essa notável relação entre as políticas sociais e as condições de
trabalho, o Estado assume um caráter empreendedor (MAZZUCATO, 2014) ao
assumir os riscos de estímulo à inovação e ao desenvolvimento de mercado,
socializando-os com a população, ao mesmo tempo em que os benefícios dessa
investida são privados a empresas.

120
Desse modo, “são características coletivas, cumulativas e incertas do
processo de inovação que tornam possível essa separação entre risco e benefício”
(MAZZUCATO, 2014, posição 4501).
Aspectos como PPPs para políticas de saúde via criação de empresas como
a Empresa Brasileira de Serviços Hospitalares – EBSERH; as administradoras de
fundos de pensão na política previdenciária; as várias empreiteiras beneficiadas na
construção de casas destinadas às políticas habitacionais e aos megaeventos, a
exemplo da copa do mundo de 2014 e das olimpíadas de 2016 no Brasil; as empresas
do ramo educacional beneficiadas com incentivos governamentais que subsidiam
vagas de estudantes no ensino privado expressam esse processo de como o Estado
promove um ideal de novo desenvolvimentismo, expresso em sua essência pelo
caráter social-liberal, variando o modus operandi do neoliberalismo, ao passo que
abria passagem para o fortalecimento das perspectivas mais conservadoras e uma
ofensiva ideológica maior nesta segunda década.
Ao mesmo tempo, que difunde ideologicamente o interesse pelo social, o
discurso de igualdade e equidade, o estímulo ao empoderamento por meio de políticas
e programas e o incentivo ao empreendedorismo dos indivíduos, o Estado assume
sua dimensão empresarial, contribuindo para fortalecer mais os setores privados do
que o atendimento às necessidades humanas.
Tal processo é caracterizado como Estado empresarial (Dardot e Laval,
2016), de modo que os interesses de empresas privadas passam a compor e a
direcionar a agenda estatal (conforme já citamos a influência dos Organismos
multilaterais na agenda de gênero).

Isso quer dizer que as políticas macroeconômicas são amplamente o


resultado de codecisões públicas e privadas, embora o Estado
mantenha certa autonomia em outros domínios – mesmo que essa
autonomia tenha sido enfraquecida pela existência de poderes
supranacionais e pela delegação de inúmeras responsabilidades
públicas a um emaranhado de ONGs, comunidades religiosas,
empresas privadas e associações. (DARDOT e LAVAL, 2016, p.278).

A partir de 2016, com o fortalecimento da austeridade e do compromisso do


Estado com o mercado, ignorando as lutas populares e as reivindicações pela
manutenção e ampliação de direitos, a evidente insatisfação com o considerável
121
investimento nas políticas de transferência de renda e em programas sociais (ainda
que focalizados e sobre rígidos critérios) toma conta dos setores empresariais que
representam a ideologia dominante, impulsionando o fim do ciclo social-liberal em
âmbito socioeconômico e o golpe contra a então presidente Dilma Rousseff,
implicando em um governo autoritário, na esfera política.
Conforme já destacamos, as perdas que vêm se acumulando desde o
Governo Temer (2016-2018) é o limiar do encontro entre uma perspectiva de
fortalecimento do neoliberalismo, que se recrudesce e se configura como ultraliberal
e da reação conservadora a qualquer perspectiva de reconhecimento democrático da
diversidade que compõe a classe trabalhadora e os direitos de seus sujeitos.
Frente à investida capitalista em seu processo de crise, a ausência do Estado
em cumprir o que se define como sua responsabilidade de provisão de políticas
sociais, programas e serviços públicos, a tensão sobre as mulheres se acumula para
garantir a reprodução da força de trabalho, submetida a relações e condições cada
vez mais precarizadas, de modo que o desmonte da seguridade acentua o reforço às
condições de submissão das mulheres brasileiras em seu conjunto.
Como postulou Ferreira (2017):

Os custos reduzidos do orçamento público são incluídos nos custos


familiares da reprodução. Mas estes custos não são, por sua vez,
devolvidos aos salários, que deveriam, supostamente, cobrir estes
custos: eles se incorporam ao trabalho doméstico não remunerado das
mulheres. E, assim, desaparecem da contabilidade econômica
clássica. (FERREIRA, 2017, p.118).

Desta feita, a relação entre Estado e direitos se distancia quanto à agenda


social-liberal, tendendo a uma ampliação da perspectiva antidireitos, por meio de
contrarreformas na austeridade e dos espaços de legitimação ideológica do
conservadorismo, impulsionando a criminalização dos movimentos sociais, incluindo
o movimento feminista e a hostilização das mulheres seja no âmbito dos discursos
ideológicos públicos e ações concretas que legitimam a força conservadora e
antidemocrática em ascensão.
Na articulação entre produção e reprodução social, a condição de vida das
mulheres passa por perdas sociais e políticas, se degradando ante às variadas
atividades e responsabilidades que lhes são delegadas socialmente, denotando tanto

122
as determinações da condição social da classe trabalhadora na qual estão inseridas,
como o lugar a qual pertencem nas relações patriarcais entre os gêneros.
Dentre as muitas consequências desse movimento, ressaltamos os seguintes
aspectos apontados por Teixeira (2018), ao se referir aos efeitos das políticas de
austeridade para as mulheres. Para esta pesquisadora:

A crise alterou de maneira substantiva a condição de vida da maioria


da população promovendo um grande retrocesso econômico e social.
Entre os anos de 2015 e 2016 o PIB registrou queda de 7,5%, com
impacto significativo sobre o nível de emprego. No primeiro trimestre
de 2017, conforme dados da PNADC, o desemprego no Brasil atingiu
recorde com 14,1 milhões de pessoas sem emprego. Deste total as
mulheres representavam 50.6% e, dentre elas, as mulheres negras,
63,2%. (TEIXEIRA, 2018, p.284-285).

Sob o ímpeto da crise econômica, a reestruturação produtiva e reprodutiva,


aliada ao movimento irracional operado pela ofensiva ideológica e cultural favorável
aos interesses dominantes, a direita ganha espaços no mundo e no Brasil, cuja
particularidade em nosso país é uma aliança entre o avanço ultraliberal já em curso,
aliado aos discursos intolerantes a população LGBTQia+; às mulheres em luta pelos
seus direitos; população negra; indígenas, por meio de discursos preconceituosos,
atitudes violentas, atos pró ditadura militar, discurso anticomunista e antipetista e
ocupação massiva das redes sociais.
As eleições presidenciais de 2018 demonstraram o fortalecimento da direita,
para além da vitória nas urnas, se configurando como um momento ímpar nas
demonstrações de intolerância e tentativas de imposição do conservadorismo como a
ideologia predominante para a população.
Dois exemplos, dentre tantos que expressam a tentativa de imposição da
extrema direita antifeminista são: 1) o fato de que no dia 24 de setembro de 2018 a
administradora do grupo Mulheres Unidas Contra Bolsonaro foi agredida no Rio de
Janeiro por dois homens armados; e, 2) o caso de Uma mulher de 19 anos, em Porto
Alegre/RS, que usando uma camiseta com os dizeres #EleNão e uma bandeira LGBT
pregada em sua mochila, foi abordada na rua Baronesa do Gravataí, na Cidade Baixa
por três homens, que marcaram seu corpo com o símbolo de uma suástica.
Estamos em comum acordo com a afirmação de que:

123
No Brasil, distante geográfica e ideologicamente das discussões mais
ortodoxas sobre liberalismo e conservadorismo, torna-se
imperceptível a distinção entre o que seriam características
tipicamente liberais ou conservadoras, quando os conservadores se
autointitulam liberais. Aqui é possível ser um “liberal”, que defende os
pilares da propriedade privada, liberdade individual, meritocracia e
livre mercado, sendo também contrário a pautas como a união
homoafetiva – que poderiam ser seguramente alinhadas aos preceitos
liberais em outras conjunturas. Há conservadores que, preocupados
com a manutenção da família e instituições tradicionais, defendem a
redução do Estado igualmente aos liberais, quando o
conservadorismo ortodoxo optaria por ações de fortalecimento do
nacionalismo e das fronteiras nacionais (KELLER, S. 2019, p.137).

No centro dessa aliança entre liberalismo e conservadorismo residem os


recuos de direitos e os discursos contrários às pautas feministas nos espaços de
decisões parlamentares nos anos de 2011 a 2020, com um quadro de regresso
explícito.
Em se tratando da agenda feminista, a unificação da Secretaria Especial de
Políticas para as Mulheres - SPM às Secretarias Especiais de Igualdade Racial, de
Juventudes e dos Direitos Humanos, em 2011, conformando o então Ministério dos
Direitos Humanos significou perda de recursos orçamentários na pasta das mulheres,
de visibilidade das reivindicações feministas e, politicamente, um retrocesso em
termos do que vinha se construindo desde sua recente criação, em 2003
Seguimos para uma análise da “dupla opressão” (TOLEDO, 2017) do patriarcado e
do racismo para as mulheres nesse contexto, aliada à exploração do capitalismo, na
relação entre a universalidade da classe e a particularidade das mulheres, mais
especificamente as negras.

3.5 A DIMENSÃO RACIAL DO PROCESSO ANTIDIREITOS E O LUGAR DAS


MULHERES NEGRAS NO BRASIL

À medida que a austeridade e o ajuste fiscal assumem a direção das


políticas sociais no Brasil no curso dos anos 2014 a 2020, a parcela da população
mais atingida pelas medidas de contingenciamento de gastos e pela ausência de
programas sociais se difere de outras parcelas da classe trabalhadora que, ainda que
duramente atingidas, continuam acessando direitos básicos.

124
Não é novidade que “os efeitos da austeridade afetam de forma distinta os
diferentes agentes econômicos e classes sociais de forma que os mais vulneráveis,
que fazem mais uso dos serviços sociais são mais afetados” (SOCIEDADE
BRASILEIRA DE ECONOMIA POLÍTICA – SEP, 2018, p.11).
Não casualmente, a população negra no Brasil carrega consigo as marcas do
racismo e do patriarcado, entranhados na formação sócio-histórica brasileira,
conformando uma parcela da força de trabalho sobrante, majoritariamente negra e
feminina, que, logrado algumas conquistas importantes na primeira década do século
XXI, retornam a condições de sobrevivência cada vez mais submetidas à
informalidade, ao desemprego, às violências doméstica, urbana e estatal, à privação
de liberdade, ao extermínio da juventude e à pauperização, por meio de um “racismo
estrutural” (ALMEIDA, S. 2018).
Tais mecanismos, criados em um contexto de privatização das políticas de
Seguridade Social, ao mesmo tempo que aparecem como um recurso de visibilidade
das pautas, também já surgem marcados por dificuldades estruturais no campo das
políticas e dos serviços destinados à classe trabalhadora e vão ser insuficientes para
o atendimento de suas necessidades.
A classe trabalhadora apresenta condições de pauperização com maior grau
de degradação para as mulheres negras. Conforme a Pesquisa Nacional por Amostra
de Domicílio (PNAD) de 2016, a taxa de desocupação das mulheres negras (13%) é
maior que os grupos de homens brancos, homens negros e mulheres brancas.

A relação com o Estado, a proteção social e os retrocessos nos direitos


alcançados se particularizam quando nos referimos às mulheres negras no Brasil,
correspondente a 23% da população brasileira, conforme dados sistematizados pela
PretaLab (2018).
Diante da ofensiva da crise capitalista a partir de 2008 contra a classe
trabalhadora no Brasil, Mattos (2019) considera que:

Quando os dados relativos a gênero e raça são levados em conta,


temos um indicador preciso de como a desigualdade de renda entre
trabalhadores e empregadores é agravada pelas marcas da opressão
racial e de gênero. Os dados da Pnad de 2015 apontam que os
rendimentos do trabalho feminino, em média, representam 76,1% do
recebido pelos homens. A taxa de desocupação feminina naquele ano
era de 11,7%, bem superior à masculina, de 7,9%. Uma análise

125
específica das diferenças raciais no mercado de trabalho, com base
na Pnad contínua com dados do último trimestre de 2016, mostra que,
se a média de desocupação era então 12%, entre os brancos a
desocupação era de 9,5%, enquanto entre pretos e pardos era de
14,4% e 14, 1%, respectivamente. (MATTOS, 2019, p. 88).

Com as consequências econômicas, políticas e culturais da escravidão no


Brasil, consolidada no período colonial como um sistema que “moldou condutas,
definiu desigualdades sociais, fez de raça e cor marcadores de diferenças
fundamentais, ordenou etiquetas de mando e obediência [...]” (SCHWARCZ, 2019, p.
27-28).

A questão racial é, portanto, de ordem histórica e concreta no modo como


incide nas relações sociais no Brasil. São relações racializadas, desde mesmo do
famigerado processo de colonização dos povos originários dessa terra, que vão sendo
redefinidas, encontrando inserção nos espaços democráticos, mas ainda longe de se
apresentar em um patamar de igualdade em relação à população branca, sobretudo
nas relações entre as classes.

Conforme ressalta Ângela Davis (2016) sobre a perpetuação de condições de


exploração da força de trabalho escrava nos Estados Unidos, mesmo após a
“emancipação”, se deu por meio de recursos de contratação da força de trabalho
carcerária, arrendamento de terras e sobretudo por meio de realização do trabalho
doméstico pelas mulheres.

Ao identificarmos várias semelhanças com o processo histórico de exploração


e opressão das mulheres negras no Brasil, consideramos pertinente destacar,
segundo essa autora, que: “A equiparação ocupacional das mulheres negras com o
serviço doméstico não era, entretanto, um simples vestígio da escravidão destinado a
desaparecer com o tempo”. (DAVIS, 2016, p.98).
Não obstante, a formação sócio-histórica brasileira engendrada na relação
entre espoliação da força de trabalho escrava para fins de acumulação capitalista se
conecta diretamente às opressões de raça, haja vista o tráfico de indivíduos e famílias
africanas para fins escravocratas, bem como à opressão de sexo, considerando que
as mulheres negras vão ser exploradas e violentadas sob circunstâncias sexuais
singulares.

126
Enquanto ideologia que se reatualiza século após século no Brasil, impondo
desafios e necessidade de ser enfrentada no século XXI, o racismo se sustenta em
mais de três séculos de colonização regada a sangue, correntes, chicotes,
desumanidade e barbárie, que limitam as conquistas legais, ao tempo que afirmam
sua relevância e urgência, tamanha a desigualdade entre as condições de vida da
população negra no Brasil. Na análise de Saes (1985), há traços constitutivos do
direito da era colonial que seguem no direito pós-colonial (direito civil e penal imperial)
pela ideologia racista pré-burguesa que ocasiona uma divisão entre direito
personificado (das pessoas proprietárias) e direito coisificado (das pessoas não
reconhecidas como tal, mas tratadas como propriedades de outras, no caso a
população negra, mesmo quando comparada a homens “livres”).
Para esse autor, traços escravistas norteiam o direito e o Estado de forma que
“[...] se o direito imperial definia os membros da classe explorada fundamental como
coisas – isto é, objeto de propriedade –, consequentemente o acesso desses homens
às tarefas do Estado devia estar vedado” (SAES, 1985, p. 114).

A resistência negra foi e continua sendo condição sine qua non para a
sobrevivência da vida humana, em sua diversidade étnica e racial, passando a ser
alvo de estudos e pesquisas no século XIX, cujas contribuições de Ianni (1987);
Fernandes (1964, 1974), Machado (2017), Carneiro (2011), González (1982) dentre
outros/as são fundamentais para entendimento da complexidade e das contradições
inerentes às relações sociais e raciais no Brasil.
Os limites impostos aos princípios democráticos na realidade brasileira
contemporânea carregam traços históricos constitutivos das relações sociais
patriarcais e raciais incutidas na exploração capitalista, cujas perspectivas
democráticas no âmbito da política e da cidadanização da população negra e das
mulheres negras, em particular, precisam ser apreendidas levando-se em conta os
seguintes aspectos destacados por Ianni (1987):

Em resumo, o processo de democratização encontra no Brasil, além


das barreiras ligadas a uma estrutura econômico-social mista, que
contém elementos estruturais do passado no seu interior, também um
conjunto de normas e ideais discriminatórios que dificultam
especialmente a integração e mobilidade social das populações
negras e mestiças (IANNI, 1987, p.286).

127
Mesmo considerando os avanços políticos e formais identificados na década
de 2000 a 2010, o apelo liberal à uma pretensa igualdade de oportunidades
metamorfoseia as reais exigências para o alcance de direitos, mesmo em uma
democracia, seja pelas marcas históricas da opressão racista, seja pela perpetuação
de valores e práticas racistas na contemporaneidade. Esses são aspectos
indissociáveis, cujas expressões cotidianas consistem em negação de postos de
trabalho pela exigência da “boa aparência”; genocídio da juventude negra e periférica;
concentração de uma população carcerária negra; baixa inserção de negros e negras
nas cenas política, artística e intelectual.
Por conseguinte, as análises em torno das novas formas de exploração do
trabalho, das desigualdades de classe, do acesso a direitos e da função social do
Estado - no binômio garantia x negação de direitos - exigem uma atenção a como se
configuram em relação à população negra, confirmando a afirmação de que “[...] a
raça se relaciona fundamentalmente com um dos aspectos da reprodução das classes
sociais, isto é, a distribuição dos indivíduos na posições da estrutura de classes e
dimensões distributivas da estratificação social” (GONZÁLEZ, 1982, p. 89-90).
Sobre as expressões desse processo histórico na conjuntura da década atual,
a feminista negra Sueli Carneiro, em entrevista à revista Margem Esquerda em 2016,
afirmou que o racismo e o fundamentalismo religioso se apresentam como grandes
desafios ao feminismo e ao feminismo negro, em particular, justificando que, para ela:
“o que temos atualmente é um racismo que se torna cada vez mais direto, explicito e
violento, sem mediações, nem medo de dizer seu nome” (CARNEIRO, 2016, p.20). O
racismo, assim como o patriarcado servem de base de solidificação da ascensão do
conservadorismo em curso.
Desse modo, a forma como o Estado promove suas políticas também
expressa um caráter reprodutor, em maior ou menor medida, do racismo secular no
caso brasileiro, além de, dependendo da condução política conjuntural do Estado,
apresentar uma maior abertura ou uma maior negação de direitos da população negra.
Dados da Política Nacional de Saúde Integral da População Negra revelam
que, mesmo no âmbito de um acesso que se propõe universal, há diferenças no
atendimento à saúde da população negra, por exemplo entre mulheres que realizam
consultas de pré-natal:

128
A proporção de mães negras com no mínimo seis consultas, conforme
preconizado pelo Ministério da Saúde, foi de 69,8%; ao passo que,
entre as brancas, essa proporção foi de 84,9%. Em relação à primeira
consulta pré-natal, também houve diferenças entre as categorias de
raça/cor. Nos três primeiros meses de gestação, realizaram a primeira
consulta 85% das gestantes brancas, 73% das negras e 53% das
indígenas (BRASIL, 2017, p. 14).

Põe-se em evidência a necessidade de políticas públicas universalizantes que


ofereçam respostas satisfatórias às demandas da população negra, como uma
estratégia a curto prazo para reparar danos e desigualdades históricas, que mesmo
exigindo uma ruptura com a forma organizativa da sociabilidade capitalista racista e
patriarcal, apresenta possibilidades de inserção da população negra nos espaços que
historicamente lhe foram negados.
De acordo com a campanha “Assistentes Sociais no Combate ao racismo”,
realizada pelo CFESS de 2018 a 2019, “o percentual de pessoas negras que vivem
condições precárias de saneamento, sem acesso simultâneo à água, esgoto e coleta
de lixo, é quase o dobro de pessoas brancas” (CFESS, 2020, p. 26).
Quando levamos em conta que a população negra ocupa os lugares de
habitação mais pauperizada, lugares periféricos que restaram como alternativa à
desproteção social da liberdade apregoada com a abolição, ante à ausência de
condições favoráveis ao atendimento de suas necessidades, entendemos também
porque esse lugar social também implica em maior demanda desta população por
proteção social, acesso a políticas que estejam além de uma identidade, que
considere o povo negro como parte majoritária da classe trabalhadora, sobre a qual
incidem determinações históricas e sociais de base racista e patriarcal.
Qualquer avanço do conservadorismo no Brasil impõe a tendência à negação
dos direitos conquistados no campo da igualdade racial e a urgente resistência à
austeridade das políticas sociais.
Em se tratando de programas e ações de enfrentamento ao racismo previstas
na Política Nacional de Promoção à Igualdade racial na segunda década dos anos
2000, tal década se constitui o terreno de ameaça às perspectivas gestadas na
primeira década, de modo que:

129
Quando analisamos o orçamento desses programas desde 2013, é
possível ver que o período de austeridade coincide com uma redução
real no orçamento das principais ações presentes nesses programas.
Cabe notar que em 2015, a secretaria foi extinta e desde então, a
prioridade dada ao tema tem reduzido não apenas em termos da
importância, mas de execução orçamentária. (DWECK, OLIVEIRA e
ROSSI, 2018, p.54).

Para além do recuo político e social nas respostas direcionadas às


reivindicações do movimento negro, a contenção dos gastos com as políticas sociais
universais (saúde, educação, assistência social, segurança pública, mobilidade
urbana) afeta majoritariamente a população negra, fato decorrente dos traços
históricos aqui recuperados, que culminam em uma classe trabalhadora cuja
composição é majoritariamente negra e de mulheres.
Conforme apresentado no relatório final da campanha Assistentes Sociais no
Combate ao racismo, “Dados de 2019 do Ipea e do Fórum de Segurança confirmam:
75,5% das vítimas de homicídio no Brasil são negras, maior proporção da última
década” (CFESS, 2020, p. 29). E ainda que “de acordo com dados do Ipea (2011),
quase 70% da população brasileira que depende do Sistema Único de Saúde (SUS)
se autodeclara negra” (CFESS, 2020, p. 30) e no tocante à educação “a taxa de
analfabetismo entre pessoas pretas/ pardas é mais que o dobro do que entre as
brancas, segundo PNAD de 2017” (CFESS, 2020, p. 33).
Tais dados confirmam que o racismo se reproduz cotidianamente nas
relações sociais, de forma crescente e que traços históricos de não acesso a direitos
básicos ainda se constitui um desafio, à medida que o pauperismo segue sendo um
aspecto que acompanha o desenvolvimento da desigualdade social e racial no Brasil.
No Brasil dos últimos cinco anos, tendo a austeridade como recurso
primordial, o Estado vem assumindo um caráter genocida, ao não enfrentar, ou até
impulsionar atitudes que desencadeiam violências e mortes, como as vivenciadas pela
produção negra e periférica.
Corroboramos, nesse sentido, com a afirmação de que:

Arrisco dizer que a tentativa de saída da crise capitalista de 2008 é


esse enlace entre o conservadorismo e o ultraneoliberalismo. Por esse
motivo, não tem sido incomum nos depararmos nos noticiários, com
informações sobre conflitos raciais pelo mundo e da mobilização negra
denunciando essas práticas e buscando soluções. No Brasil não é
130
diferente, como vimos anteriormente as estatísticas e os estudos
sobre pobreza e violência, vêm reiteradamente afirmando a situação
de desigualdade social e racial de nossa população, aliada ao
preconceito e discriminação crescentes geradores de violência
constante (CLEMENTE, 2019, p. 70).

Da orientação social-liberal que impulsionou paradoxalmente a agenda


política feminista e antirracista por meio de mecanismos que conciliaram as
reivindicações advindas dos movimentos sociais e uma proposta de desenvolvimento
pautada sob os interesses de organismos internacionais do grande capital, os últimos
vinte anos demonstram a contradição entre o que é possível na esfera da política e a
urgente necessidade da emancipação humana.
Ao nos depararmos com as manobras elitistas que culminaram com um
ataque brutal à democracia, ainda que com resistências, passamos a conviver mais
fortemente com a intolerância dos que não estão dispostos a negociar suas
intransigências, resvalando em proferidos discursos de ódio, misóginos e racistas
advindos dos próprios ocupantes de cargos eleitos pelo povo. Uma contradição nos
termos e nos fatos, que só se justifica pela incutida cultura da irracionalidade, pelo
fortalecimento de espaços de representação do fundamentalismo, pela perspectiva
mercadológica das políticas que obstaculizam o reconhecimento de seu caráter
público e coletivo, expressando o adensamento da ideologia neoliberal.
Não nos parece chocante, senão indignante, acompanhar o modo
conservador como as instituições públicas vem agindo em relação aos direitos, a
exemplo do Ministério da Mulher e dos Direitos Humanos e da Fundação Palmares no
atual governo, com gestores abertamente contrários respectivamente à agenda de
lutas no campo do feminismo e da população negra.
A condução do Brasil pela chamada “nova direita”, cujas bases constitutivas
remontam a um poder que vem sendo exercido desde há muito, acentua o caráter
policialesco no trato das desigualdades decorrentes desse modo de reprodução das
relações capitalistas (o que entendemos como “questão social”), com traços
denominados “neofascistas” (DEMIER, 2019, 2020; TABER; RIDDELL, 2019;
CARAPANÃ, 2019).

131
Embora não tenhamos nos debruçado proficuamente sobre o caráter fascista
da política brasileira contemporânea, cabe destacar, de acordo com Demier (2020),
que:

O aumento exponencial da violência estatal e paraestatal contra os


setores oprimidos, com destaque para os jovens negros e periféricos,
aumento este que não deriva senão da necessidade de controlar e
mesmo de eliminar uma quantidade cada vez maior de vidas inúteis à
acumulação capitalista, também encontra sua correspondência
ideológica no neofascismo bolsonarista. Não à toa, pari passu ao
avanço das contrarreformas que retiram direitos em velocidade e
intensidade febris, grassam as apologias de assassinatos de pobres,
de índios, de mulheres, de gays, de transsexuais, de nordestinos, e,
sobretudo, de negros e favelados. (DEMIER, 2020, p.23).

A partir dessas reflexões, inferimos que os retrocessos identificados na tendência à


acentuada retirada de direitos a partir do fim do ciclo social-liberal que marcou as políticas
sociais brasileiras na primeira década deste século são compatíveis com a perspectiva
antidemocrática conservadora dos grupos de direita em ascenso no Brasil, com expressões
racistas e patriarcais, haja vista a dimensão progressista do feminismo e das lutas
antirracistas.
Outrossim, as derrotas acumuladas no decorrer dos últimos dez anos, em
contraponto ao crescimento de grupos representantes dos ideais conservadores impõem a
necessidade da intransigente defesa dos direitos já alcançados, bem como das lutas sociais
em prol do que nunca se alcançou, desde a efetividade da igualdade formal no âmbito civil e
político, até a igualdade substantiva, com as devidas rupturas necessárias com os interesses
burgueses, única possibilidade de exercício concreto de liberdade e da emancipação humana.
As exigências imediatas pelo fim da violência contra a mulher, pela eliminação
das mortes decorrentes de feminicídio, do extermínio e encarceramento da população
negra e periférica estão na ordem do dia como questões imediatas e concretamente
possíveis por meio da política, de uma educação mais igualitária e cidadã, pela
mediação da consciência crítica.
São essas disputas que dão movimento à luta de classes, aliadas à defesa de
direitos humanos, condições de trabalho, seguridade social, condições de mobilidade
nas cidades, dentre outras questões que permeiam a vida da classe trabalhadora, em
sua diversidade.

132
Por isso nos interessa, no capítulo seguinte, capturar quais as expressões do
patriarcado e do racismo em alguns sujeitos políticos da direita que expressam a
intolerância e o conservadorismo.

133
4. SUJEITOS DO CONSERVADORISMO E SUAS AÇÕES IDEOPOLÍTICAS NO
BRASIL: O REVIGORAMENTO DA DIREITA FUNDAMENTALISTA E
ANTIFEMINISTA

À minha volta, reprovava-se a mentira,


mas fugia-se cuidadosamente da verdade
(BEAUVOIR, 2013, s/p)

Nesse capítulo apresentamos os sujeitos políticos, que representam e


materializam o conservadorismo enquanto ideologia das classes dominantes no Brasil
contemporâneo, elaboram propostas antifeministas em suas ações e
posicionamentos ideológicos e políticos, posturas que estimulam também uma
resistência intempestiva do movimento feminista.
Ao ocuparem os espaços formais do Estado, as esferas legislativa, executiva
e judiciária, impondo seus interesses conservadores (econômicos e políticos),
legitimando o denominado avanço da direita (para alguns/mas autores/as nova
direita), sobretudo na década de 2010 a 2020.
O fundamentalismo religioso desse momento histórico constitui-se uma
mediação que, na nossa análise, ganha bastante reconhecimento para além de seus
defensores formais e corporifica-se na reprodução social como um aspecto particular
da realidade brasileira e das disputas ideológicas e políticas que se instauram.
Se em uma perspectiva mais tradicional a religião se constituía base de
explicação para argumentos de manutenção da ordem, como as antigas alianças
entre Igreja, Estado e Educação nos processos colonizadores e a própria concepção
das marchas da família com Deus pela liberdade durante a ditadura militar na década
de 1960, o fundamentalismo contemporâneo se apoia ainda em defesa da família,
mas calcado no crescimento neopentecostal evangélico, que se caracteriza pelas
inúmeras igrejas difundidas pelo Brasil, além da apropriação de espaços políticos,
como a Frente Parlamentar Evangélica, da qual trataremos mais adiante.
Os desafios que se apresentam – como demonstraremos a seguir – reúnem
desde a não garantia da laicidade do Estado, passando pela organização de setores
econômicos aliados a grupos conservadores, culminando na diluição dos discursos
antifeministas pelas ruas e pelos espaços de exercício de poder.

134
Demonstra-se também a tendência antidemocrática e antidireitos por meio
dos sujeitos destacados a seguir, a partir de um profundo distanciamento de uma
análise radical dos interesses em disputa na sociedade brasileira, sob o apelo da
defesa de Deus, da família e dos bons costumes.
Cabe ressaltar o respaldo que a particularidade brasileira encontra nos
movimentos e mobilizações de mesma orientação que se alastram por todo o mundo,
a exemplo de grupos neonazistas, supremacistas e em defesa de regimes ditatoriais,
que difundem seus ideais despudoradamente.

4.1 A DIREITA SOB NOVA ROUPAGEM NO BRASIL E O RECRUDESCIMENTO


DO CONSERVADORISMO DE BASES FUNDAMENTALISTA RELIGIOSA E
ANTIFEMINISTA

Enquanto ideologia das classes dominantes, acionada com a finalidade de


produzir consenso entre a classe explorada, o conservadorismo se expressa por meio
de sujeitos intelectuais e políticos, individuais e coletivos, incidam de várias maneiras
no sentido de contribuir para legitimar a ordem dominante.
Nas duas primeiras décadas do século XXI, a forma como se fortaleceu o
conservadorismo, aliado ao liberalismo (dimensão ideopolítica) conforme já
destacamos, foi recorrendo às características fundamentalistas, antifeministas e
antidemocráticas, configurando o que tem sido denominada de “nova direita” no Brasil
(CASIMIRO, 2018 a; 2018 b; MESSENBERG, 2019; CODATO; BOLOGNESI;
ROEDER, 2015), embora com o reconhecimento de que não são fenômenos
inteiramente novos.
Para nós, esses sujeitos se forjam no contexto da conciliação de classes,
demarcando suas insatisfações com a agenda política social-liberal anunciada pelos
governos do Partido dos Trabalhadores, um elemento que, antagonicamente, mobiliza
a classe dominante e classe trabalhadora, enquanto aquela baseia seu
descontentamento na negação da intervenção do Estado nas necessidades da
população, na criação de políticas, programas e serviços, esta última propõe uma
agenda popular, autônoma em relação aos interesses do capital.

135
Em se tratando da agenda dos grupos de direita descontente com as ações
governamentais, orquestra-se um apelo ao discurso cristão, que passa a ser
demonstrado conforme Tatagiba (2018) pelo movimento neopentecostal:

Outra rede importante para veiculação das mensagens antipetistas foi


o movimento neopentecostal, que utilizou uma de suas principais
estratégias de mobilização, Marcha para Jesus, para atacar a
corrupção e “defender o Brasil”. No dia 7/6/2014, acontecia em São
Paulo a 22ª Marcha para Jesus, com público total estimado pela PM
em 250 mil manifestantes. O tema da Marcha foi “conquistando para
Cristo” e o objetivo era afirmar “o valor do patriotismo”. Os
manifestantes usavam camisa verde-amarela com o número 33, em
referência à idade de Cristo. A estética do ato guarda grande
semelhança visual com os protestos pelo impeachment, nos anos
seguintes. (p.108, grifo nosso).

O que destacamos a partir da ênfase na afirmação acima é o movimento


convergente entre essa dimensão mais conservadora que nunca se conciliou com as
políticas de caráter social-liberais e a direita liberal, que vai romper com o ciclo petista
e pós impeachment se unificam em defesa de um Brasil cristão, negacionista, com
profundos recuos nas políticas sociais e com um quadro de miserabilidade e
desigualdade crescentes.
De certo, é um contexto de fragmentação das lutas em defesa de direitos, bem
como das elites brasileiras, de modo que, por um lado, a direita que se opõe à
conciliação por não considerá-la necessária e a esquerda cuja oposição política
considera o projeto em curso insuficiente, irrompem, cada uma ao seu modo, como
desvinculação de outros sujeitos adeptos à conciliação.
Como já demonstrado por Casimiro (2020), distintas frações da burguesia vão
se apropriando do Estado para difundir seus interesses, desempenhando “importante
papel de articulação empresarial para a ação política com participação em tomadas
de decisão, em definição de diretrizes, assim como na constituição de políticas
públicas” (p.91), pautadas a partir das seguintes instituições neoliberais destacadas
pelo autor, Movimento Brasil Competitivo – MBC; o Instituto de Estudos para o
Desenvolvimento Industrial – IEDI; o Grupo de Líderes Empresariais – LIDE; e o
agrupamento entre a Frente Parlamentar Agropecuária – FPA (bancada ruralista) e o
Instituto Pensar Agropecuária – IPE como aparelhos de ação política e ideológica no
Brasil Contemporâneo, que, visando a expansão de seus negócios:

136
Inserem-se, portanto, no conjunto das estratégias de reconfiguração
da dominação de classe no Brasil, tanto em sua relação com o Estado,
como no processo de internacionalização da burguesia brasileira,
entendendo-se esse movimento de forma dialética, como um elemento
imperativo do atual estágio do capitalismo mundializado (CASIMIRO,
2020, p.91).

A esse exemplo, temos o estudo de Guiot (2015) no qual o autor demonstra a


dominação burguesa por meio da inserção no Conselho de Desenvolvimento
Econômico e Social – CDES, de 2003 a 2010, com a comprovada inserção das frações
industrial, agroindustrial e financeiro do capital, lado a lado com sindicatos e outras
organizações da sociedade civil, impondo sua agenda de desenvolvimento por meio
de um órgão gestionado pelo Estado.
Conforme Guiot (2015), no que concordamos, a partir da construção de um
consenso social-liberal nessa primeira década, no limiar da agenda do
desenvolvimento social, reforçou-se as estruturas econômicas e de poder, de modo
que:

É o fetiche da “participação” e do “controle social”, de


“empoderamento” dos sujeitos sociais sem alterações nas correlações
de forças porque não derivado das lutas sociais que incidem sobre tais
relações, mas, ao contrário, redesenhando o terreno do exercício da
dominação e da subalternização sob a bandeira “democrática”.
(GUIOT, 2015, p. 271).

É nesse terreno movediço e incerto que as forças aqui destacadas vão incidir
socialmente como expressões particulares do todo desse processo inacabado de
fortalecimento das investidas conservadoras nas esferas representativas.
Destacamos as características fundamentalista, antifeminista, racista e LGBTfóbico
como suportes ideológicos dos sujeitos dos quais tratamos neste capítulo, como
mediações das ações que garantem a materialização da ideologia conservadora em
ascensão.
Ressalte-se, que mesmo surgindo como expressões das disputas
conjunturais, os movimentos e frentes parlamentares nas duas primeiras décadas dos
anos 2000 vão reatualizar a defesa intransigente dos valores cristãos, como
argumentos de promoção do consenso, por meio de discursos e ações de base
137
fundamentalistas, que são funcionais à negação de direitos operadas pelo
neoliberalismo, sobretudo em sua variante ultra.
Não é novidade que o uso do argumento religioso pelo Estado pode suprimir
os direitos políticos e, para além disso, inviabilizar a perspectiva da emancipação
humana por parte dos indivíduos que não comungam da mesma perspectiva, a
exemplo dos conflitos entre os cristãos e os judeus na Alemanha do século XIX
(MARX, 2010), acerca do qual afirma:

Decorre, por fim, que, mesmo proclamando-se ateu pela


intermediação do Estado, isto é, declarando o Estado ateu, o homem
continua religiosamente condicionado, justamente porque ele só
reconhece a si mesmo mediante um desvio, através de um meio. A
religião é exatamente o reconhecimento do homem mediante um
desvio, através de um mediador. O Estado é o mediador entre o
homem e a liberdade do homem. Cristo é o mediador sobre o qual o
homem descarrega toda a sua divindade, todo o seu envolvimento
religioso, assim como o Estado é o mediador para o qual ele transfere
toda a sua impiedade., toda a sua desenvoltura humana (MARX, 2010,
p.39, grifos do autor).

Sob os resquícios do poder da casa da grande portuguesa, a formação social


e política do Brasil, tal qual o Estado brasileiro, mesmo o republicano e nos períodos
mais democráticos, não conseguiu firmar sua laicidade, recorrendo por conveniência
aos valores cristãos, sobretudo católicos, para perpetuar interesses dominantes e
produzir o consenso entre os dominados, tendo em vista que “o Estado capitalista não
se caracteriza apenas pelo desenvolvimento de atividades de caráter econômico, mas
também assume funções políticas e ideológicas” (BAUER, 2010, p.113).
Carregando tais aspectos, sobretudo ideológicos, o fundamentalismo religioso
se sobrepõe como um indispensável recurso ao esvaziamento da razão crítica, ao
irracionalismo e ao pensamento que impulsiona ações imediatas ao senso comum,
um aspecto necessário aos grupos que caracterizam a “nova direita”, o que convém
denominarmos a “nova roupagem da direita brasileira”, que tem ido às ruas
massivamente a partir de 2015 solicitar o impeachment de uma presidenta
democraticamente eleita, exaltar a tortura e aclamar a volta da ditadura.
Como ideologia oposta ao comunismo, o fundamentalismo religioso – aliado
a interesses capitalistas - é acionado como haste de uma moral conservadora, imersa

138
em inúmeras contradições e falácias, tendendo a enquadrar os indivíduos em rótulos,
obstaculizando o exercício das escolhas e da diversidade humana.
Em pesquisa recente sobre a temática, Bernardo (2019) reconhece que:

Na atualidade, o fundamentalismo religioso se destaca por ser uma


estratégia da captura do poder pela direita e extrema direita que,
através da utilização de uma autoridade religiosa, tenta justificar
discursos e atitudes inflexíveis e regressistas em relação a políticas
públicas e aos direitos humanos (BERNARDO, 2019, p. 78).

Como exemplo, a autora acima referida destaca a organização de grupos


religiosos que se denominam em defesa da vida para tentar inviabilizar qualquer
proposta do campo político progressista que atenda a reivindicações das mulheres no
tocante à pauta da descriminalização e legalização do aborto. Nesse sentido, ela
destaca ainda que:

É preciso destacar que a ascensão das forças fundamentalistas e de


ideologias conservadoras nesses últimos anos tem grande influência
no debate sobre a descriminalização e na legalização do aborto. O que
temos percebido é a junção dos setores mais conservadores da igreja
católica e de evangélicos no intuito de barrar qualquer proposta no
sentido de legalização do aborto. (BERNARDO, 2019, p.89).

Apesar dos sujeitos coletivos, que impulsionam a tendência a essa


intolerância aparecerem mais notadamente na segunda década do século em curso,
os caminhos às frações mais reacionárias da burguesia vinham sendo aberto pelo viés
social-liberal da primeira década, malgrado a incorporação da agenda feminista pelo
mercado, a partir dos próprios instrumentos estatais, como já podemos inferir na
agenda do empoderamento e do empreendedorismo nos próprios Planos Nacionais
de Políticas para as Mulheres.
Observemos no quadro 1 (mais à frente) que a própria Bancada Evangélica
começa a se articular como reação às possíveis políticas públicas para as mulheres
que seriam dadas às reivindicações feministas, a partir de 2003, embora na última
década sua incidência seja mais potencializada, bem como o Escola “sem partido”,
que surge em 2004.
Importante destacarmos o caráter de classe, operado entre a ascensão do
conservadorismo e do ultraliberalismo, por meio de uma trajetória materialmente
139
orquestrada, apoiando-se tanto na ofensiva crescente do capital sobre o trabalho,
quanto na ofensiva de valores retrocedentes para a classe trabalhadora, a exemplo
dos ataques sistemáticos à democracia e à universalidade das lutas sociais.
Não casualmente, a direita que atua no Brasil, em espaços parlamentares,
nas ruas, nas igrejas, se caracteriza pela defesa, como da privatização dos órgãos
públicos, da criminalização de movimentos sociais, defesa da família tradicional e das
forças armadas como solução para as crises políticas. E ainda dissemina tais
interesses entre parte da classe trabalhadora, que passam a ser defensores das
ideologias dominantes.
Desse modo,

Um dos aspectos mais importantes da aliança entre neoliberais e


conservadores, que engendra o neoconservadorismo, é que eles
convergem em uma narrativa da crise que tem como lócus a família.
A presença mais intensa das mulheres no mercado de trabalho
remunerado na segunda metade do século XX é vista como fator
desestabilizante do casamento e da boa criação dos filhos (BIROLI;
MACHADO; VAGGIONE, 2020, p.26).

O alcance dos sujeitos individuais e coletivos representantes dos valores


conservadores nos espaços institucionais públicos ameaça a democracia, valendo-se
de ataques fundamentalistas, racistas, misóginos e xenofóbicos, desconsiderando a
diversidade humana, o respeito ao diferente e edificando uma sociabilidade de medo
e insegurança para grande parte da população, além de demarcar um território político
e uma era de recuos nas conquistas democrático-formais.
O discurso de família, de Deus e de bem é esvaziado de significado, por ser
incompatível com o desrespeito e a intolerância advindos dos grupos que operam com
julgamentos morais nas redes sociais, nos espaços de representação política e nas
ruas, como por não corresponder às relações sociais e familiares da realidade
brasileira, marcadas por distintas configurações.
A defesa de uma concepção cristã de família é um mecanismo político que
revela uma afronta às conquistas civis e políticas das mulheres, ao defender um
comportamento de mulher passiva, heterossexual, mãe e submetida ao poder
masculino, conforme os preceitos religiosos, uma essencialização que confronta a
concepção feminista de mulher livre, autônoma e com exercício igualitário de direitos.

140
A ruptura com os princípios democráticos que caracterizou o golpe contra a
presidenta Dilma Rousseff em 2016 abre caminhos largos para a incidência política
das forças ultraliberais e conservadoras que caracterizam os grupos que
antagonizaram esse capítulo da história brasileira, ao passo que após a eleição de
representante do reacionarismo em 2018, enfrentamos uma conjuntura na qual:

Agora, a “contrapartida” oferecida ao pauperismo é mais pauperismo.


Agora, a “contrapartida” oferecida aos grupos historicamente
excluídos e desfavorecidos é mais exclusão e mais
desfavorecimentos. Agora, a “contrapartida” oferecida ao fim prático
dos direitos humanos são mais humanos negros e pobres mortos.
(DEMIER, 2020, p.36).

Reside aqui a chave do recrudescimento do conservadorismo, cuja atuação


até então se deparava com exigências democrático-formais, que uma vez ameaçadas,
abre margem para a petulância dos que comemoram um desfecho, no mínimo
tenebroso, no campo dos direitos sociais de segmentos historicamente oprimidos.
Ao se fortalecer um apelo às determinações biológicas, retrocede-se no
reconhecimento das relações sociais como elemento definidor dos sujeitos ao longo
da história, de modo que:

Entre os atores conservadores, a natureza é situada como


determinante das aptidões e dos papéis, prevalecendo sobre as
dinâmicas sociais. A complementariedade entre os sexos não é
entendida como uma questão do âmbito da cultura ou da crítica, mas
como aquilo que seria necessário preservar em nome da ordem
natural e social (BIROLI; MACHADO; VAGGIONE, 2020, p.20).

Esse contraponto entre o natural e o social, que já nos parece superado a


partir da incidência histórica do feminismo, reascende uma perspectiva anti-histórica
das relações sociais e patriarcais, com forte reforço da naturalização do lugar desigual
das mulheres, além de uma tendência à negação e a discursos intolerantes com o
feminismo, resultando na dimensão antifeminista como ação ideopolítica da direita
conservadora contemporânea. Nos deparamos na década em curso com algumas
reportagens de revistas que mostram essa tendência, sobretudo entre mulheres.

141
Já em 2014 a revista ISTOÉ dava destaque ao tema na matéria de Fabíola
Perez, intitulada O Movimento das antifeministas, na qual chama atenção para a
crescente comunidade de mulheres contra o feminismo.
No início de 2019 o jornal online espanhol El mundo trouxe uma matéria
intitulada El antifeminismo, um arma electoral de éxito a nível mundial: De Trump a
Bolsonaro. Temos que é um movimento de caráter internacional, acompanhando as
perspectivas conservadoras de questionamento às conquistas políticas e culturais
obtidas pelas mulheres e característica de governos de direita.
Em março de 2019, a revista Carta Capital publicou a matéria (Anti)
Feminismo em Pauta, na qual trazia os argumentos da Deputada Ana Caroline
Capagnolo, do Partido Social Liberal (PSL), em que a mesma considera o feminismo
como uma afronta à moral judaico-cristã e uma ofensa às suas tradições.
Desse modo, corroboramos com a assertiva de que:

A ordem sexual defendida, perante a dos movimentos feministas e


LGBTQI, baseia-se na moralidade cristã, na legalidade e no caráter
procriador do sexo. A definição de ato sexual por seu fim reprodutivo
se estabelece em oposição à autonomia e ao prazer. Esses últimos
são recusados como princípios legítimos para o exercício da
sexualidade e para sua regulação (BIROLI; MACHADO; VAGGIONE,
2020, p.24-25).

Na configuração brasileira da segunda década do século XXI, o patriarcado,


defendido e fortalecido pela direita e pela igreja, foi realizado em 2018 o I Congresso
Antifeminista do Brasil, com presença de políticos de partidos de direita e
representantes evangélicos.
A unidade entre candidatas de partidos da direita mais tradicional, como a
Sara Winter, candidata a Deputada Federal pelo Democratas (DEM) e da direita,
recém configurada como mais reacionária, com a candidata a deputada estadual em
Santa Catarina, Ana Caroline Campagnolo, do Partido Social Liberal (PSL), o mesmo
pelo qual o presidente Bolsonaro se elegeu.
Sobre Sara Winter, embora sua migração do Femen Brasil para as bases
conservadoras antifeministas não tenha possibilitado a ela se eleger nas eleições de
2018, fora convidada ao cargo de Coordenadora de Políticas à Maternidade, do atual
Ministério da Mulher e dos Direitos Humanos do Governo Federal, o que nos revela o
142
quanto essa incidência no Estado brasileiro decorreu de movimentos fundamentalistas
e ações ideopolíticas orquestrados previamente por grupos de direita, tanto de base
econômica como conservadora.
Já Ana Caroline Campagnolo foi uma das candidatas eleitas, passando a
compor a base parlamentar da direita e levar a cabo seus ideais no espaço público.
Conforme matéria da Revista Época, nesse congresso:

Em cinco palestras, das 14 horas às 19 horas, o feminismo foi malhado


em diferentes formatos e intensidades, com argumentos que
pregavam desde sua suposta incompatibilidade com o cristianismo até
uma “agenda comunista” que estaria promovendo secretamente .
(CALCAGNO, 2018, s/p).

Neste ínterim, demonstra-se a fragilidade da democracia burguesa na


representação dos interesses da classe trabalhadora em sua diversidade, denotando
insuficiência nos mecanismos políticos, que outrora se apresentaram em respostas
significativas às reivindicações feministas no marco da ideologia social liberal.
Sob o ímpeto da dialética luta de classes, conforme veremos no próximo
capítulo, essa tendência antifeminista se impõe como reação ao desempenho das
investidas feministas adensadas na década de 2010-2020 (a exemplo da primavera
feminista em 2015), bem como recorrem aos espaços religiosos, aos argumentos de
defesa da vida, adentrando os espaços públicos, se legitimando por meio das forças
conservadoras.

Quadro 1: sujeitos conservadores nos anos 2000


SUJEITO ANO DE BREVE DEFINIÇÃO OBJETIVO(S)
FUNDAÇÃO

Frente Parlamentar A Frente Parlamentar Acompanhar e fiscalizar os


Evangélica 2003 Evangélica do programas e as políticas
(FPE) Congresso Nacional é públicas governamentais
composta por senadores manifestando-se quanto
e deputados, que aos aspectos mais
compõem a bancada importantes de sua
evangélica. Foi criada aplicabilidade e execução
em 18 de setembro de
2003

O MBL - Movimento O MBL é constituído pelas


Movimento Brasil Livre 2014 Brasil Livre - é uma propostas e estratégias
143
(MBL) entidade sem fins elaboradas e votadas
lucrativos que visa pelos seus membros,
mobilizar cidadãos em sempre norteadas por
favor de uma sociedade ideais liberais. Fazendo
mais livre, justa e parte do movimento você
próspera. Defendemos a tomará decisões que
Democracia, a definirão o destino do
República, a Liberdade movimento e terão impacto
de Expressão e de direto no presente e futuro
Imprensa, o Livre da política brasileira
Mercado, a Redução do
Estado, Redução da
Burocracia

Uma iniciativa conjunta Dar visibilidade a um


de estudantes e pais problema gravíssimo que
Escola Sem Partido preocupados com o grau atinge a imensa maioria
2004 de contaminação das escolas e
político-ideológica das universidades brasileiras:
escolas brasileiras, em a instrumentalização do
todos os níveis: do ensino para fins
ensino básico ao ideológicos, políticos e
superior partidários. E o modo de
fazê-lo é divulgar o
testemunho das vítimas,
ou seja, dos próprios
alunos

O MBC é uma Somos um movimento


verdadeira comunidade formado por diversas
de conservadores, que iniciativas culturais,
Movimento Brasil unidos trabalham educacionais, sociais e
Conservador 2018 pela reconstrução do políticas com o objetivo de
país, pautados na defesa fomentar a transformação
dos pilares da civilização da realidade brasileira de
ocidental e no combate à baixo para cima
dominação cultural
imposta por ideologias
revolucionárias

Fonte: A autora (2022).

A aliança entre as ideologias liberal e conservadora e suas legitimações na


agenda política brasileira do século XXI são demonstradas na tabela 1, em que
podemos visualizar panoramicamente alguns dos valores que embasam os discursos
da Frente Parlamentar Evangélica; do Movimento Brasil Livre (MBL); do Escola sem
Partido e do Movimento Brasil Conservador, cujo surgimento e atuação estão
inseridos no contexto histórico brasileiro dos anos 2000.

144
Tendo em vista o período aqui elencado, estamos diante de uma crescente
difusão da ideologia liberal, que aposta na “liberdade de mercado” como mecanismo
central de enfrentamento às consequências da crise, em aliança com a identificação
e autoafirmação de sujeitos conservadores, em aberto confronto com os valores
progressistas e revolucionários.
Procedemos a seguir com uma incursão mais sucinta e detalhada da
incidência política desses sujeitos coletivos, suas formas organizativas, ocupação de
espaços públicos e parlamentos, como estratégia de dominação ideológica,
econômica e social da burguesia (em suas distintas frações e particularidades no
Brasil).

4.2 A FRENTE PARLAMENTAR EVANGÉLICA E O FORTALECIMENTO DO


FUNDAMENTALISMO RELIGIOSO NA POLÍTICA BRASILEIRA

A incidência de parlamentares com valores religiosos no cenário nacional


brasileiro antecede os anos 2000, tendo em vista a relação entre os valores
defendidos pelas igrejas neopentecostais no país e representantes políticos da direita
(velha e nova) que são empresários, pertencentes a famílias com trajetória larga na
vida política, fazendeiros, líderes de comunidades e de igrejas, que precisam apelar
para um discurso do bem comum, característico da ideologia cristã.
Nos anos 2000, com a já aqui referida inserção de pautas políticas de parcelas
da população que são discriminadas pelo modelo ideal de indivíduo cristão na agenda
política governamental dos governos do PT, evidencia-se o esforço dos políticos
representantes dessa discriminação em fortalecer seus valores e cadeiras no
Parlamento, recorrendo à formação de núcleos internos nas Câmaras Municipais,
estaduais e no Congresso Nacional.
Nesse contexto é que foi criada a Frente Parlamentar Evangélica (FPE), em
2003, comumente conhecida como Bancada evangélica, aglutinando forças contrárias
aos espaços políticos de popularização e garantia de direitos historicamente negados
a segmentos como população LGBTQI, mulheres organizadas em diferentes frentes
de luta por direitos (feminismos), população negra, população indígena.
Embora a FPE seja um espaço heterogêneo em relação à composição
partidária, inclusive com parlamentares do próprio PT, sua atuação voltada a

145
obstaculizar os projetos em torno da conquista de direitos e do livre exercício das
escolhas religiosas e sexuais dos indivíduos, está alinhada a grupos políticos de
direita, do ponto de vista ideopolítico do qual tratamos aqui.
Em suas estratégias de atuação, esta frente coloca-se como uma
contraposição à democratização da agenda feminista cuja intenção publicamente
declarada é:

• Procurar, de nodo contínuo, o aperfeiçoamento da legislação


necessária à promoção de políticas públicas, sociais e econômicas
eficazes; atuando no processo legislativo a partir das comissões
temáticas existentes nas Casas Legislativa do Congresso Nacional,
segundo seus objetivos, com vista a uma sociedade pautada pela
justiça, que deve ser igual para todos, na inclusão social, na segurança
a todo cidadão brasileiro, saúde e educação;
• Combater projetos de lei nocivos à sociedade brasileira, a
desconstrução da família, a vida, a liberdade constitucional de cultos,
educação, segurança pública e do Estado Democrático de Direito;
• Realização de eventos e seções solenes para comemoração de datas
do calendário cristão, tais como Dia da Bíblia, Reforma Protestante,
Dia da Valorização da Família e outros. (SITE DA FPE, 2020).

A organização dos evangélicos no Congresso Federal situa-se na correlação


de forças entre as classes, por fortalecer a perspectiva conservadora em sua
coletividade, que mesmo recorrendo a indivíduos pertencentes às camadas
populares, fortalecem os ideais de grupos dominantes. Fortalece sua incidência logo
após o Partido dos Trabalhadores assumir a Presidência do Brasil em 2002,
ensejando uma coalizão já existente frente à possibilidade de inserção das
reivindicações de segmentos feministas e LGBTQIA+ na agenda política
governamental, o que aconteceu conforme delineamos no primeiro capítulo desta
tese, tendo em vista que:

Ao contrário das igrejas evangélicas americanas, as brasileiras não


possuem um perfil ideológico bem definido, exceto em questões como
aborto e casamento gay. Macedo apoiou Fernando Henrique como
forma de impedir o avanço comunista, mas, nas eleições seguintes,
apoiou Lula, e desde então vem criando sua própria organização
política. A maioria das igrejas funciona basicamente como o lodo dos
partidos brasileiros, prestando-se a aluguéis e troca de valores por
votos. A diferença é que apoiam candidatos de quantas chapas lhes
forem convenientes. A bancada evangélica tem 18% dos assentos do
Congresso e inclui 22 legendas. Seus principais interesses são
garantir suas concessões de rádio e televisão, isenção fiscal para as
146
igrejas e o acesso a terrenos para a construção de seus monumentos
faraônicos. (ANDERSON, 2020, p.106-107).

Expressam-se, portanto, as dimensões ideopolíticas contidas na investida


conservadora da Frente Parlamentar Evangélica, aliadas ao mesmo tempo a
interesses econômicos de dominação e à imposição dos valores cristãos como
referências sociais.
Decerto, seguindo o curso do enriquecimento econômico de seus líderes
religiosos, os valores cristãos avançam em oposição direta às propostas legislativas
de ampliação dos direitos das mulheres, da população LGBTQ, sob a vinculação
direta dessas demandas aos valores de um suposto comunismo, que deve ser
combatido e da defesa da família cristã, referenciada na heteronormatividade.
Não por acaso, o IBGE (2012) divulgou que “consolidou-se o crescimento da
população evangélica, que passou de 15,4% em 2000 para 22,2% em 2010” 4.
Ao analisarmos o fortalecimento da ideologia fundamentalista no curso dos
últimos quinze anos, é pertinente ressaltar que desde uma unidade entre liberalismo
(por meio da defesa dos distintos patrimônios empresariais de interesse de vários
parlamentares evangélicos) e conservadorismo (uma reação orquestrada contra as
propostas progressistas no Congresso Nacional), até posturas publicamente
ofensivas, a trajetória de crescimento da bancada evangélica compõe um movimento
de ascensão de uma direita, para estabelecer hegemonia, como a adesão de
significativa parcela da população, a exemplo das manifestações pró impeachment
(de 2015 a 2016) e nas eleições presidenciais de 2018.
Uma vez que as pautas privadas da religião adentram os espaços públicos de
representação contrárias ao avanço de mecanismos legais de parcelas da população,
há o fortalecimento do fundamentalismo religioso. Ele se sustenta tanto pela
aprovação de eleitores que elegem esses seus pares, quanto pela negação da
laicidade do Estado (constitucionalmente prevista), implicando também em uma
perspectiva antidemocrática.
Corroboramos com a síntese a seguir, na qual:

4
Dados disponíveis em:
https://censo2010.ibge.gov.br/noticiascenso?id=3&idnoticia=2170&view=noticia, acesso em julho de
2021.
147
[...] Por um lado, esses parlamentares defendem que, em uma
democracia representativa, os políticos devem ser atores centrais para
a garantia da vontade da maioria; Por outro, se contrapõem a essa
maioria, ativando outra noção de democracia, dessa vez, privatista,
como garantidora da vontade dos mais fortes em termos estratégicos
e não em termos de maioria social. (CUNHA; LOPES; LUI, 2017,
p.133).

Identificamos que a Frente Parlamentar Evangélica teve seu fortalecimento a


partir do crescimento da orientação cristã de partidos políticos, desde o já existente
Partido Social Cristão – PSC, existente desde 1985, ligado à Assembleia de Deus; a
aliança com a ideologia liberal do Partido Social Liberal – PSL, de 1994; até o Partido
Republicano Brasileiro – PRB, criado já nos anos 2000 e sob os interesses da Igreja
Universal, embora não contenha, assim como o PSL, uma denominação diretamente
religiosa.
Desses partidos destacaram-se nomes como os de Pastor Everaldo (PSC);
Bispo Marcos Pereira (PRB); Marcos Feliciano (PSC) e o atual presidente Jair
Bolsonaro (ex-PSC, eleito pelo PSL em 2018 e hoje sem partido), em um movimento
que unificou ações políticas e discurso ideológico de cunho religioso, performando o
que temos na direita brasileira que fortalece seu corpo na segunda década dos anos
2000 (cf. DIP, 2018).
Notoriamente, a ocupação de cargos políticos por líderes religiosos aponta
também a capacidade das igrejas neopentecostais ocuparem espaços na dinâmica
social brasileira, disputando narrativas, conquistando corações e mentes, uma tarefa
política imprescindível para adquirir legitimidade em grupos específicos. Nesse
sentido é que:

Nas últimas três décadas, líderes e congregações neopentecostais


lançaram candidaturas por meio de diferentes partidos, investiram nas
eleições e converteram as igrejas em redutos eleitorais para assegurar
o ingresso de evangélicos nas esferas legislativas e executivas em
nível municipal, estadual e federal. Ao estabelecerem-se no poder,
diferentes denominações pentecostais adquiriram notoriedade política
e prestígio social. (SURUAGY, 2011, p.23).

A difusão ideopolítica operada pelas igrejas imbrica-se aos interesses


dominantes dado o caráter empresarial das lideranças que alcançam destaque nos
espaços de representação política, o que seria impensável também sem a difusão da

148
ideologia religiosa por canais de rádio e de televisão de propriedade desses homens,
brancos e ricos em seus lugares de líderes.
A máxima marxiana de que “a ideologia que impera em uma sociedade é a
mesma de sua classe econômica dominante” (MARX, 2007, p.47) é aplicável ao
contexto do século XXI, no qual a religião como valor da FPE não está isolada dos
interesses das classes dominantes e seus apelos moralizantes e conservadores.
As adjetivações ‘laico’ e ‘democrático de direito’ comumente aplicadas ao
Estado estão figurando como acessórios fora de moda, no momento em que este
mostra cada vez mais sua função social de intermediador dos interesses dominantes
- ainda que seja disputado e tensionado a fim de se apresentar como um Estado
Republicano - processo que se evidencia pela ocupação dos espaços institucionais
representativos tidos como democráticos por sujeitos que na verdade representam
intolerância ao popular, projetos mercadológicos privados e sustentação ideológica
cristã no discurso.
Por outro lado, o ataque às bases democráticas e laicas do Estado por parte
de sujeitos conservadores, que por vezes agem sutilmente, por dentro de suas
instâncias políticas, revela natureza contraditória do próprio Estado, no que diz
respeito ao atendimento de interesses da classe trabalhadora e da maioria da
população, mesmo que recorra a ela como base eleitoreira.
Embora com possibilidades de implementação de regimes e governos mais
abertos em um Estado tido constitucionalmente como “democrático e de direito”, não
podemos guardar ilusões quanto a possibilidades de mudanças estruturais, sabendo
que:

O Estado é o produto e a manifestação do facto de as contradições


das classes serem inconciliáveis. O Estado aparece precisamente no
momento e na medida em que, objetivamente, as contradições das
classes não podem ser conciliadas. E inversamente: a existência do
Estado prova que as contradições das classes são inconciliáveis.
(LENIN, 2010, p. 9).

Tacitamente, o caráter fundamentalista da direita que alia o neoliberalismo ao


fundamentalismo religioso culmina no que designamos como a direita revigorada, da
qual a Frente Parlamentar Evangélica faz parte. No nosso entendimento não se trata
apenas de valores antiprogressistas, mas de um aparato econômico concreto, seja
via empresas de comunicação ou via rentabilidade das ofertas dos fiéis, rede de lojas,
149
empresas de bairro, que alocam os representantes evangélicos em uma relação de
poder dominante em relação ao conjunto dos fiéis, impondo os interesses da classe
dominante.
Sem dúvidas essa via política, além de sacralizar a agenda parlamentar
antiprogressista do ponto de vista político, soma-se às posturas antidireitos, no
aspecto social, endossando discursos contra programas sociais que auxiliam os
segmentos mais pauperizados da classe trabalhadora a sobreviverem e defendendo
o que há de mais reacionário na política brasileira, como o retorno à ditadura militar,
redução da maioridade penal, criminalização dos lutadores sociais por direitos (por
terra, moradia, liberdade sobre o corpo, educação laica).
E ainda quando se propõem a dar alguma atenção às desigualdades sociais,
alguns parlamentares o fazem reforçando o viés filantrópico, por meio dos quais têm
se lançado em ações rentáveis, a exemplo das Comunidades Terapêuticas,
reatualizando práticas caritativas que contrariam o caráter público das políticas sociais
e dos direitos.
Como aponta Suruagy (2011):

Não se pode afirmar que a “bancada evangélica” só possui tendências


conservadoras e corporativas. Embora represente a minoria, há
deputados evangélicos que defendem teses progressistas e
demonstram maior preocupação com os problemas sociais do que
com a preservação da moral cristã. Todavia, entre os parlamentares
pentecostais, ainda são significativas práticas conservadoras, como o
fisiologismo, o corporativismo, o clientelismo, o patrimonialismo e a
negociação de votos na Câmara Federal. (SURUAGY, 2011, p.46).

Contudo, a hegemonia da perspectiva política conservadora da FPE


inviabiliza que medidas progressistas sejam apoiadas pelo coletivo de parlamentares
que a compõe, embora seja comum que eles assumam votos individuais em ocasiões
nas quais não conseguem unidade de pensamento. Nesses casos, apesar da
diversidade de legendas e de parlamentares nessa bancada, aliam-se ao que há de
mais liberal e elitista, a exemplo das bancadas ruralista e militar, cuja unidade é
comumente denominada Bancada BBB (da bíblia, do boi e da bala), um sujeito coletivo
parlamentar bastante atuante na ascensão da reconfiguração da direita brasileira
nesse primeiro quinto de século.

150
Acerca dessa articulação, ao se referir à bancada ruralista, a jornalista Eliane
Brum afirma:

Atualmente, associam-se a grupos transnacionais, como a poderosa


indústria dos agrotóxicos. No Congresso, articulam-se com as
bancadas da bala – a dos defensores de armas associados à indústria
do armamento e da segurança privada, grande negócio num país com
números alarmantes de violência urbana – e a bancada dos
estelionatários da fé – composta por representantes dos diferentes
projetos político-religiosos que disputam o mercado com o objetivo de
ampliar o alcance e os lucros de seus empreendimentos. (BRUM,
2019, p.162).

O fundamentalismo religioso cumpre um importante papel ideológico, ao


aportar o conjunto de investidas da direita na política brasileira, seja como frente ampla
de combate ao conhecimento crítico, seja por meio de ações comunitárias que apelam
para a fé como meio de enfrentamento às consequências das desigualdades, seja
como grupo político que se contrapõe aos avanços nos debates e nas propostas em
torno de ampliação de direitos, reconhecimento da diversidade e atendimento às
demandas das mulheres.
A inserção das pautas particulares das igrejas por meio dessa bancada
descrita por Dip (2018) como “barulhenta, intempestiva, aguerrida, beligerante”, vai
sendo mobilizada progressivamente à medida que a Frente Parlamentar Evangélica
vai se ampliando da primeira à segunda década dos anos 2000, estabelecendo
alianças com parlamentares e projetos antidireitos e antifeministas, cada vez mais
sintonizados.
A partir da análise bibliográfica acima apresentada, Identificamos nessas duas
décadas, que a FPE começa com o intuito de disputar ideologias no interior da
sociedade brasileira para difundir seu discurso contrário às possíveis medidas
adotadas pelos governos petistas em atenção aos movimentos sociais, se legitimam
nesse espaço cada vez mais e chegam ao ano 2020 com um presidente de extrema
direita.
Embora com resistências, esse processo coroa uma direita fundamentalista e
antifeminista, privatista, racista e que tem como base política o cristianismo (muito
mais na retórica do que nos princípios).

151
Recorremos aos documentos denominados Radiografia do Novo Congresso,
nos anos de 2003 a 2019, produzidos pelo Departamento Intersindical de Assessoria
Parlamentar (DIAP), encontramos importantes elementos no tocante ao crescimento
da FPE nas duas últimas décadas.
De acordo com a radiografia da legislatura 2003 a 2007, a FPE no Congresso,
liderada pelo Bispo Rodrigues (PL/RJ), buscava se estender para o Senado, sob a
liderança do também Bispo, Marcelo Crivella (PL/RJ). Ambos congregados na Igreja
Universal, mantinham o número de parlamentares da legislatura anterior, 60
deputados. (DIAP, 2002, p. 23).
Um aspecto contraditório do início da primeira década (com a chegada do PT
à presidência), é que o PL, ao mesmo tempo que buscava impulsionar a agenda
religiosa no espaço parlamentar, era também base de apoio do governo, conforme
destacado no referido documento:

O novo Congresso, eleito em 06 de outubro, terá que debater e votar


a agenda governamental, cabendo aos partidos da base de
sustentação (agora formada pelo PT, PC do B, PL, PPS, PDT, PSB e,
possivelmente, PMDB e PTB) o difícil desafio de aprovar uma agenda
complexa, como as reformas fiscal, política, trabalhista e sindical e do
Poder Judiciário, e também impopular, como a reforma da previdência
do servidor. (DIAP, 2002, p.24).

Em concomitância com a atenção às reivindicações feministas da agenda


política elaboradas pelas mulheres em 2002, a conciliação de classes ampliava
também as possibilidades de atuação política de sujeitos fundamentalistas e
antiprogressistas, cujas forças seriam medidas no limiar das lutas políticas travadas
na sociedade brasileira naquela década.
Sob tais aspectos históricos é que a força expressa pelo reacionarismo
conservador fundamentalista não surge de súbito, a segunda metade da segunda
década dos anos 2000, mas segue se consolidando social e parlamentarmente desde
o início da primeira década, aliado à ideologia social-liberal, em uma programática
política e social aparentemente pactuada e essencialmente incompatível.
Com as inovações operadas pelo presidente Lula no seu primeiro mandato,
com destaque para a criação de Secretarias Especiais, Conferências e Planos
Nacionais de Políticas para segmentos como mulheres, população LGBTQ e

152
negros/as, a visibilidade e o atendimento a demandas desses segmentos
configuraram um avanço político importante, embora não tenham sido tocados os
aspectos históricos (divisão sociossexual do trabalho, base patriarcal da estrutura
política e ausência de autonomia sobre o próprio corpo, para citar alguns), que os
colocam em pé de desigualdade.
Além desses elementos, a vinculação de parlamentares das igrejas que
representavam até então a FPE no Congresso a casos de corrupção em destaque
nacional, impulsionou um recuo da ofensiva fundamentalista na segunda metade da
década de 2000-2010, de modo que: “Diferente do que vinha
acontecendo nas últimas três eleições gerais, os evangélicos perderam quadros
importantes e a bancada chegará menor à 53ª Legislatura” (DIAP, 2006, p.33).
Mesmo passando a ser representada no Senado, a FPE sai das eleições
majoritárias de 2006 com uma queda de 24 parlamentares, passando de 60 para 36
(17 deputados reeleitos, 15 novos deputados e 4 senadores), exigindo novas
movimentações e alianças para se fortalecer na legislatura de 2007 a 2011.
No que pese uma queda em termos numéricos nesse período, os valores
conservadores vão se aliando aos interesses econômicos dominantes, acompanham
as estratégias do capital para responder aos rebatimentos da crise de 2008 no Brasil.

Quadro 2: Panorama da representação da FPE de 2002 a 2018

Número de Deputados Partidos componentes da FPE


Ano eleitoral
da FPE eleitos

PMDB, PPS, PL, PSDB, PP, PST, PFL,


2002 50 PSC, PTB, PSB, PT, PL, PDT, PSL,
PPB (Cf. Gonçalves, 2011).
PSDB, PRB, PTB, PP, DEM, PSB,
2006 32 PTC, PR, PMDB, PSC, PV, PPS, PDT
(Cf. Trevisan, 2015).

153
DEM, PDT, PMDB, PMN, PP, PR, PRB,
2010 75 PRTB, PSB, PSC, PSDB, PSL, PT (cf.
Vital e Lopes, 2013, p.187).
PODEMOS, MDB, PP, DEM, PSD, PR,
PSB, PV, PRB, PSC, PDT, PPS, PSDB,

2014 78 SOLIDARIEDADE, PT, AVANTE, PHS,


PSL, PCdoB, PROS
(https://www.camara.leg.br/internet/
deputado/frenteDetalhe.asp?id=53658)
PR, PP, PT, DEM, PRP, PSL, PDT,
PSD, MDB, PRB, PSDB, PSC, PROS,
AVANTE, SOLIDARIEDADE, PSB,
NOVO, PODEMOS, PATRIOTAS (Cf.
requerimento 1051/201 da FPE,
2018 92
requerendo seu registro ao Congresso
Nacional)
Fonte: elaboração própria

O crescimento do discurso e das posturas fundamentalistas e da ofensiva


antifeminista, racista e LGBTfóbica acompanha o fortalecimento dos apelos
antidemocráticos e ultraneoliberais com base na defesa de uma mudança regressiva,
ao invés de progressista, no tocante às conquistas políticas da primeira década dos
anos 2000.
Os partidos identificados na tabela 2 representam uma aliança em constante
ampliação das forças de direita liberal com os grupos mais reacionários, ainda que
alguns deles sejam diretamente identificados como cristãos, o caso do PSC, por
exemplo.
Chama a nossa atenção esse redirecionamento dos partidos considerados de
centro, como o PMDB e o PSB, que vinham aliados às políticas social-liberais até
então, mas passam a operar um movimento de descontentamento com a atenção às
demandas sociais, passando a expressar um antipetismo, ao atribuírem à presidência
da República o papel de promotora dos anseios de esquerda, comumente e
reduzidamente associados ao comunismo, o que ideologicamente revela o
empobrecimento da crítica de grupos e indivíduos cuja análise da conjuntura se realiza
pelo senso comum, atendendo aos interesses de cooptação das “massas”.
154
A dependência do Brasil em relação ao capital estrangeiro ensejou
consequências ainda que não imediatas ao contexto social e político no período de
crise em 2008, cujo atendimento às metas dos organismos internacionais legitimam
os interesses neoliberais operados pela lógica social-liberal, estando estas mais
alinhadas aos ditames conservadores do que progressistas.
Conforme Martins (2005), o capital financeiro se apresenta como cerne do
desenvolvimento da crise, tanto em países periféricos, como em países de economia
crescente, ambas compondo um mesmo movimento, que pode nos ajudar a entender
porque nesse contexto, ainda que com perdas em termos quantitativos, a bancada
evangélica não tende a definhar, pois coaduna com muitas posturas da direita mais
moderada, que vem se fortalecendo e se distanciando cada vez mais do atendimento
das necessidades humanas por meio de políticas sociais e da utilização democrática
do fundo público.
Nesse sentido:

O capital-financeiro é a própria realidade genérica do Estado-nação


moderno. Uma realidade que se manifesta com diferentes
particularidades e resultados nas economias dominantes, em um polo
dos sistemas, ou nas economias dominadas, no outro polo. Na sua
realidade globalizada, organiza e administra mecanismos
institucionais que permitem a transferência de massas gigantescas de
valor e de mais-valia das economias dominadas para as economias
dominantes do sistema (MARTINS, 2005, p.132).

Destarte, aspectos como o pagamento da dívida externa, a Desvinculação das


Receitas da União – DRU, as defasagens entre os orçamentos previstos e executados
nas diferentes esferas das políticas sociais chamam nossa atenção sobre qual a
intencionalidade dessas medidas e a quem elas visam favorecer, se não as
“economias dominantes do sistema”, como assinala o autor supracitado.
O que inferimos nesse contexto é que a força política do feminismo na primeira
década dos anos 2000, com participação política nas esferas politicas representativas
como conferências e conselhos, ensejou um aprofundamento da consciência
feminista, que aliada a outros movimentos coletivos e ao desenvolvimento de políticas
públicas inovadoras, precisou se reorganizar, fortalecer seus espaços.
Em contraposição a essa perspectiva, a organização ideológica do
patriarcado passa pela direção política da direita social-liberal, que mesmo fora da
155
bancada evangélica, se vê fortalecida, por exemplo pelo alinhamento econômico da
direção dos organismos internacionais nas políticas sociais, marca contraditória da
economia política dos anos 2000.
Abre-se o caminho para o que veio a se tornar o revigoramento da direita,
protagonista do golpe contra a presidenta Dilma, valendo-se do reacionarismo
fundamentalista e da defesa intransigente do ultraneoliberalismo como saída do
quadro social resultante da crise do capital e sua ofensiva a partir de 2008 no mundo
e no Brasil.
Com isso, a Frente Parlamentar Evangélica se fortalece a partir das eleições
de 2010, ampliando o leque de partidos que a compõe, mas mantendo o domínio das
igrejas pioneiras na sua composição (Ver quadro 2).
Estamos de acordo com Dip (2018), quando da seguinte constatação:

No Brasil, essa reação tem características próprias. Uma delas vem


da aproximação entre uma direita orgulhosa de si e a Igreja
Evangélica, unidas pelo medo de um inimigo que vem para “destruir a
família tradicional”, os “valores cristãos”, o status quo e que, por vezes,
sem lastro com a realidade, toma rosto no comunismo, no feminismo,
no movimento negro, na comunidade LGBTQ e em qualquer
participação social que peça por igualdade de direitos e por uma
discussão mais profunda sobre seus papéis na sociedade. (p.13).

Sobre a função ideológica da unidade dessas forças de direita, destacamos,


conforme Bernardo (2019) o seguinte:

Esse discurso conservador possui uma função ideológica central para


a reprodução da sociedade de classes capitalistas, pois enfatiza o
desemprego, a perda de direitos, a falta de políticas sociais, dentre
outros, e retira da pauta do Estado, do parlamento e da sociedade, o
verdadeiro motor dos problemas sociais e econômicos que é o capital
(BERNARDO, 2019, p. 77).

Nesse ínterim, o espaço representativo (Congresso Nacional) que deveria ser


estimulante do respeito à diversidade que caracteriza a sociedade brasileira, é
permeado por uma acirrada disputa ideológica do grupo que compõe a Frente
Parlamentar Evangélica, expressando-se fortemente contrária às políticas públicas
que atendam a demandas das mulheres e da população LGBTQIA+, em atenção
especial.
156
Destacamos que as sucessivas campanhas eleitorais ao longo dos primeiros
20 anos do século XXI, ao culminarem na eleição de um grupo cada vez mais
organizado na difusão de valores machistas, homofóbicos e antidemocráticos,
expressa também a correlação de forças existente entre os indivíduos na sociedade
brasileira, contemporaneamente marcada pela ausência de fundamentação crítica
nos discursos e na reprodução do conservadorismo como ideologia representativa dos
valores dominantes. Decorrente de aspectos como apelo à meritocracia, trabalho
informal, empreendedorismo, apontando saídas individuais e favoráveis a
perspectivas religiosas conservadoras.
Vital e Lopes (2013), ao identificar uma ofensiva contra as mulheres e a
população LGBTQIA+ por parte da Frente Parlamentar Evangélica, afirmam que:

Os argumentos acionados pelos religiosos articulavam concepções


em torno do direito à vida, da economia e da necessidade de
preservação do direito à família. Todos eles coordenados com a
finalidade de ativar pânicos morais conforme já mencionamos em
passagem anterior. (VITAL e LOPES, 2013, p. 150, grifos nossos).

Revela-se assim a articulação entre liberalismo de mercado e reacionarismo


conservador, que vão caracterizar a direita brasileira, sobretudo no processo de
elaboração e consolidação do golpe contra a presidência de Dilma Rousseff em 2016
e a partir dele.
A concessão pública da comunicação de massa por grandes emissoras de TV
religiosas é uma expressão de como se consolida a articulação entre neoliberalismo
e conservadorismo na formação de consciência dos indivíduos. A pauta religiosa da
TV Record sob a direção da Igreja Universal e a difusão da cultura neopentecostal
promovida por ela é um exemplo de publicizar, via concessão, os interesses cristãos.
Andréa Dip (2018) tece considerações importantes nesse sentido:

Sem dúvida, a aquisição da Rede Record de Televisão e Rádio pela


Igreja Universal, em 1989, aprofundou a relação entre religião e
comunicação de massa. Para realizar a compra, que custou US$ 45
milhões, o igreja não poupou esforços, explica Ricardo Mariano, no
livro: Neopentecostais: sociologia do novo pentecostalismo no Brasil:
“Para comprar essa tradicional, porém decadente e virtualmente falida,
rede de televisão – com uma dívida na faixa dos US$ 300 milhões, que
posteriormente foi quitada -, a liderança da Igreja, oculta na transação,

157
feita por testas de ferro, não mediu esforços, ou melhor, sacrifícios”.
(DIP, 2018, p. 57-58). Grifos da autora

A ideologia conservadora ancorada no fundamentalismo religioso está


atrelada a interesses empresariais e a mecanismos de comunicação que alcance o
conjunto da sociedade com mais facilidade, no caso específico da citação, uma forma
lucrativa de fortalecer seus ideais.
A incidência das religiões cristãs nos espaços formais da política
representativa e seu fortalecimento como um bloco cada vez mais forte também
obstaculiza a efetividade de um Estado laico, além dos desafios que se põem ao
processo de reconhecimento e respeito à diversidade religiosa no Brasil, o que
estimula o racismo estruturante da intolerância às religiões de matriz africana. E para
além de um projeto religioso, representam “um projeto político para garantir um
império econômico transnacional” (BRUM, 2019, p.155).

4.3 O MOVIMENTO BRASIL LIVRE (MBL): “LIBERAL NO DISCURSO E


CONSERVADOR NOS COSTUMES

O Movimento Brasil Livre, assim denominado em 2013, atualiza as investidas


em defesa da liberdade de mercado como norte da política econômica no Brasil,
remontando aos anos 90, embora encontre terreno fértil nas manifestações
“anticorrupção” típicas de 2013 a 2015.
O contexto pré golpe (de 2013 a 2015) contra a ex-presidente Dilma Rousseff
foi impulsionado por movimentos de direita como o Vem pra Rua e o Revoltados
Online, que garantiram a agitação e as propagandas nas redes sociais, aliados a
influenciadores digitais, partidos liberais e grupos empresariais interessados em
derrubar o governo do PT e fortalecer o elo com o Estado Brasileiro.
Ao se referir às tentativas de grupos liberais se fortalecerem desde os anos
2000, até ocupar a cena política brasileira, Rocha (2018), afirma que:

A princípio fracassaram, mas foram capazes de fundar novas


organizações civis, como o Instituto Mises Brasil, o Estudantes pela
Liberdade e o Ordem Livre, entre outras. Os membros dessas
organizações logo passaram a frequentar espaços como o Fórum da
Liberdade e a criar vínculos importantes com think tanks (brasileiros e
158
estrangeiros) mais antigos de direita e seus financiadores,
especialmente os empresários da família Ling, proprietária do grupo
Évora, e Salim Mattar, do grupo Localiza (ROCHA, 2018, p.49). Grifo
do autor

Nesse processo em que a direita se fortalece, a luta de classes é permeada


por esses novos sujeitos, sendo possível identificar tanto raízes históricas de grupos
interessados em dar o tom da economia política brasileira, bem como a unidade
liberalismo-conservadorismo para frear qualquer conquista formal da conciliação das
classes nos anos 2000.
Embora sobressaia o viés liberal na Plataforma Política do MBL, há uma linha
muito tênue entre seus interesses políticos e as alianças com grupos mais
reacionários, conformando uma direita com um discurso afinado com o mercado, além
de posicionamentos marcadamente contrários a qualquer iniciativa progressista, no
tocante aos direitos.
“Essa articulação está expressa, por exemplo, nas seguintes propostas
aprovadas no primeiro congresso do MBL, em 2015:
- Redução de impostos das escolas privadas (educação);
- Apresentação do Projeto de Lei “Escola sem Partido” em Legislativos
estaduais e municipais (educação);
- Desburocratização de operadoras de Planos de Saúde (Saúde);
- Abertura de mercado hospitalar a empresas estrangeiras (Saúde);
- Privatizar ou transformar em PPPs os serviços de saneamento básico dos
municípios (sustentabilidade);
- Revogação da Lei Rouanet (Reforma Política);
- Fim da reeleição (Reforma Política);
- Idealmente, no longo prazo, todos os bancos devem ser privatizados, porém,
o mais urgente é privatizar a Caixa Econômica Federal (Economia);
- Substituição do FGTS atual que penaliza o trabalhador por um sistema
facultativo de seguro privado para a demissão (Economia);
- A lei trabalhista deve ser modificada para que os acordos bilaterais se
sobreponham aos direitos atuais (Economia);
- Priorizar a prevenção sem abdicar da repressão quando necessária e
imprescindível (Justiça);

159
- Fim da função social da propriedade. A propriedade privada não pode ser
relativizada (Justiça);
- Privatização dos presídios (Segurança);
- Regularização e direito de propriedade às favelas que passarem por
reurbanização (Transporte e Urbanismo);
- Privatização de linhas de metrô e VLT e criação de novas linhas por meio de
PPPs (Transporte e Urbanismo);”
(MBL, 2015a).

A incidência política do MBL e sua agenda fortemente calcada em uma


reforma do Estado - na qual ele atenda exclusivamente aos interesses dominantes –
foi um elemento que colaborou para o coro de impeachment (leia-se golpe) nas ruas,
mas principalmente pela vinculação ideológica dessa agenda altamente
contrarreformista com os interesses da maioria dos parlamentares que acataram o
pedido para abertura de afastamento e impedimento da então presidente Dilma
Rousseff.
Conforme destacado em seu Manual de filiais, o MBL expressa seu interesse
em unificar as forças antiprogressistas em curso quando defende que:

O cenário que se desenha é ainda incerto. Alguns partidos políticos,


como o NOVO, o PSC e o DEM, parecem querer flertar em graus
diversos com a defesa das ideias liberais, mas ainda não contam com
uma adesão jovem e vibrante capaz de mobilizar suas bases. O
processo de inserção dessas ideias de forma consistente nas cúpulas
desses partidos é, porém, lento e gradual, dependendo diretamente
da conveniência político-eleitoral de aderir a uma base programática
liberal. Acelerar tal processo é um dos principais desafios para os
novos líderes políticos do Brasil. (MBL, 2015b, p.10).

No conjunto da correlação de forças entre as classes nesse momento, as


medidas populares adotadas nos anos de governos pelo Partido dos Trabalhadores
não foram suficientes para impor uma programática forte que disputasse o caráter
democrático do Estado brasileiro, embora com realização de muitas mobilizações em
torno da permanência da presidenta Dilma no cargo.
No contexto da segunda década dos anos 2000, em que o MBL põe nas ruas
essa agenda na perspectiva de extrapolar a conciliação em curso, a função ideológica
160
assumida por esse movimento é de fortalecer o ideário de liberdade de mercado,
contrapondo-se ao sentido da liberdade humana, fundada em uma sociedade
igualitária. É uma espécie de braço forte dos partidos e grupos políticos dominantes,
buscando consolidar-se nas redes sociais e nas ruas, além de promover intelectuais
da direita na disputa por cargos políticos, geralmente jovens integrantes da Rede
Estudantes pela Liberdade – EPL, um importante instrumento de reprodução da
ideologia liberal entre os jovens.
O antipetismo da mídia e de grupos políticos pró-impeachment serviu de base
para a atuação política desses grupos, sob o falso discurso anticorrupção, que não foi
seguido no pós golpe, demonstrando seus reais interesses em uma agenda
amplamente neoliberal, pró-mercado, antidemocrática e antidireitos.
Uma expressão das alianças entre a direita mais liberal e mais conservadora
é a descrição que Anderson (2020) faz do contexto pró-impeachment em que:

[...] Os “jovens turcos” do MBL e do ROL posavam para fotos ao lado


de Cunha. Os pilares da Lei Moro e Dallagnol (outro evangélico) se
encontravam com políticos do PSDB e com lobistas pró-impeachment.
A imprensa atacava virulentamente tanto o PT quanto o planalto, com
novas denúncias brotando a cada dia (ANDERSON, 2020, p. 107).
Grifo do autor

É relevante destacar que nesse processo de revigoramento da direita, a


dilatação de suas bases encontra terreno nos limites da conciliação de classes, cuja
correlação de forças demonstrava-se desfavorável aos grupos da classe trabalhadora,
o que se processou de modo mais recrudescido a partir do golpe, do descarte naquele
momento de qualquer consenso pelos grupos políticos e econômicos dominantes.
Os últimos cinco anos da segunda década do século XX condensam um
deslanche de derrotas orquestradas no campo dos direitos sociais, humanos,
trabalhistas, bem como uma dificuldade de organização, unidade e incidência política
dos sujeitos que compõem a esquerda brasileira, mesmo quando reconhecemos
importantes levantes em defesa da educação em 2019, contra a Reforma trabalhista
e previdenciária, em 2017, 2018 e 2019.
Os ideais de empreendedorismo e empoderamento que já se encontravam
presentes nos Planos e Programas de Políticas para as mulheres na primeira década
dos anos 2000 ecoam mais forte nos valores e princípios do MBL, a saber:
161
Quadro 3 Valores e Princípios do MBL

VALORES PRINCÍPIOS

Liberdade e Responsabilidade Autonomia do indivíduo e liberdade


contratual

Paz e proteção a direitos individuais Livre Iniciativa

Livre iniciativa e empreendedorismo Primazia do indivíduo e da sociedade


sobre o Estado

Incentivo ao trabalho e respeito à Livre mercado


propriedade privada

Igualdade perante a lei Respeito à propriedade privada

Inovação
Democracia

Transparência

Meritocracia

Estado de Direito

Democracia Representativa

Federalismo

Visão de longo prazo

Fonte: A autora (2022) (adaptado de MBL (2015b).

Na nossa perspectiva, os ideais de liberdade individual e de mercado, o


respeito à propriedade privada e a meritocracia como princípios, são incompatíveis

162
com uma igualdade substantiva e com a própria democracia, limitando-se a uma
igualdade puramente formal.
Com isso, se fortalecem os ideais antidireitos, defendidos pelas lutas sociais
e feministas a partir de uma concepção de Estado que se responsabilize por políticas,
serviços e garantias sociais públicos, sob uma perspectiva de justiça social e coletiva
totalmente desconsiderada pelo recrudescimento dos valores neoliberais defendidos
pelo MBL e grupos de mesma natureza.
Tais elementos servem de contraste às afirmações de que essa nova direita
surge apenas na segunda década, mais precisamente no contexto do golpe de 2016,
tendo-se que essa direita se aproveitou dos meios de difusão do liberalismo no
período de conciliação para fortalecer seu projeto, ao passo que se somaram por
conveniência aos setores mais conservadores, sem abandonar suas pautas
anteriores, mas revelando qual o seu real lugar na trama das relações contraditórias
e antagônicas entre as classes.
Valendo-se das ideologias neoliberais e conservadoras, a nova direita adquire
novos mecanismos de reproduzir-se nas esferas pública e privada. A esse exemplo,
temos o MDB e outros partidos até então aliados do PT no governo, que quando da
ruptura se somam a outros partidos de direita. Além dos empresários favorecidos pela
compra de serviços pelo governo, unificaram discurso em defesa do impeachment.
A retórica de contrários à corrupção, estratégica nas manifestações ocorridas
pró-impeachment de 2013 a 2015 não foi levada a cabo no pós-golpe, quando o
movimento silenciou perante o governo ilegítimo de Michel Temer, redirecionando sua
incidência para aspectos morais e mais conservadores.
Nesse sentido:

Em 2017 o movimento voltou a ganhar espaço, dessa vez defendendo


pautas mais conservadoras nas áreas da moral e dos costumes. Ao
se diversificar de sua agenda liberal, o grupo protagonizou em suas
redes sociais uma campanha de boicote à exposição “Queermuseu:
Cartografias da Diferença na Arte Brasileira”, realizada pelo Santander
Cultural de Porto Alegre, a qual diziam se tratar de obras que ofendiam
a fé cristã e faziam apologia à pedofilia e à zoofilia (CANCIAN;
MARLINI, 2017, p. 7). Grifos dos autores

163
Aliada a essa intolerância conservadora está adensada a ofensiva virtual, com
incidência programática nas redes sociais, difusão de conteúdo sem aprofundamento
histórico ou científico por um grupo de jovens brancos, distantes do perfil da maior
parte da juventude brasileira, ainda que seus ideais sejam bem difundidos.

Conforme dados apresentados pela colunista María Martín (2014, n. p.), do


jornal El país Brasil, “[...] mais de 72.000 pessoas acompanham alguma de suas
páginas no Facebook, e centenas de milhares assistem seus vídeos num canal do
YouTube onde fala sobre liberalismo econômico”. Tínhamos um contexto no qual “a
direita, voltando às ruas depois de décadas, demonstrou o inegável crescimento junto
aos setores médios do ideário reacionário, o qual coaduna aspectos ultraliberais com
outros tradicionalistas” (DEMIER, 2019, p.40).

Nesse contexto, as forças sociais em disputa no Brasil foram polarizadas em


manifestações favoráveis e contrárias ao golpe de destituição do mandato de Dilma
Rousseff, o que R. Keller (2019) denominou de “tchau querida” X “não vai ter golpe”,
com a consequente vitória da primeira sobre a segunda.

Infere-se a partir da realidade, um fortalecimento da aliança liberal


conservadora, apoiada na quebra dos mecanismos democráticos e na destituição de
direitos que irão se agudizar no período pós-golpe, conforme aponta R. Keller (2019):

Ainda que ostentem internamente essas pautas de caráter liberal


libertário, o ódio dos manifestantes e dos integrantes do VPR e MBL
não era programaticamente orientado durante as manifestações, visto
que a pauta central não tocava nos problemas estruturais do Brasil,
como a moradia, emprego, ensino, etc., limitando-se a afirmar uma
necessária redução do papel do Estado (KELLER, R., 2019, p. 69).

Esses são os interesses predominantes no contexto contemporâneo da


sequência de derrotas orquestradas pela direita contra trabalhadores e trabalhadoras
brasileiros/as, conforme apontamos no capítulo anterior, cujo aprofundamento das
contrarreformas atinge substancialmente as mulheres, a partir de uma ideologia que
se apoia em valores conservadores e em uma lógica política antidireitos, aliando
ultraliberalismo e conservadorismo.

164
Considerando que a guinada antidemocrática e antidireitos que se intensifica
a partir da execução do golpe de 2016 reatualiza aspectos de períodos históricos de
exceção democrática do Estado brasileiro, o conservadorismo se apoia em
manifestações como a defesa da ditadura, práticas chacinas e genocidas,
promovendo um encontro dos anos 2000 com décadas (e até séculos) da história
anterior do Brasil.

É como afirma Schwarcz:

O nosso passado escravocrata, o espectro do colonialismo, as


estruturas de mandonismo e patriarcalismo, a da corrupção renitente,
a discriminação racial, as manifestações de intolerância de gênero,
sexo e religião, todos esses elementos juntos tendem a reaparecer, de
maneira ainda mais incisiva, sob a forma de novos governos
autoritários, os quais, de tempos em tempos, comparecem na cena
política brasileira. (SCHWARCZ, 2019, p.224).

A natureza dos sujeitos políticos do conservadorismo nos anos 2000, sejam


eles de base mais conservadora ou mais neoliberal, intensificaram um retrocesso
político tamanho, que ao final da segunda década culminou na eleição de um
presidente declaradamente representante de todos os discursos de ódio contra as
mulheres, a população LGBTQIA+, negros/as, indígenas e contrário à efetivação de
direitos sociais básicos, configurando um atraso sem precedentes para a democracia
brasileira e um desafio de novo monte para as lutas sociais.

Ademais, a crise econômica apresenta um caráter cada vez mais destrutivo,


apoiada em ataques como a proposta de reforma administrativa, congelamento de
gastos nas políticas sociais básicas, discurso e medidas contra a ciência, desmonte
contínuo da educação pública e do investimento em pesquisas, aumento substancial
dos agrotóxicos e militarização do Estado via ocupação dos Ministérios no Poder
Executivo.

É um quadro que favorece que sujeitos da natureza do MBL afirma seus


valores e seus discursos, alcança mais espaços informais e institucionais,
solidificando alianças políticas de natureza conservadora e privatista, cujas
consequências incluem o aumento da desigualdade social.

165
As redes sociais do MBL são partes constituintes de sua organização formal,
como blog oficial, página do facebook, grupo do facebook e chat de whatsapp, sobre
o qual a orientação para as filiais municipais é de que: “Recomenda-se ao menos 3
grupos de 100 pessoas para o trabalho de mobilização municipal” (MBL, 2015b, p.
21).

Em pesquisa sobre os grupos de direita formadores de opinião nas redes


sociais, Débora Messenberg (2019), destaca sobre o MBL, que:

O MBL, em sua página no Facebook, apresenta-se como “uma


entidade sem fins lucrativos que visa mobilizar cidadãos em favor de
uma sociedade mais livre, justa e próspera. Defendemos a
Democracia, a República, a Liberdade de Expressão e de Imprensa, o
Livre mercado, a redução do Estado e a Redução da Burocracia”. A
primeira postagem do Movimento Brasil Livre no Facebook foi no mês
de junho de 2013 e, em 15 de março de 2015, a página contava com
cerca de 65,5 mil fãs. Os coordenadores nacionais de maior
visibilidade do MBL são os universitários paulistas Kim Kataguiri e
Fernando Holiday. (MESSENBERG, 2019, p. 184).

A lógica de difusão simultânea de pensamento e opiniões via redes sociais


impulsiona a liderança de quadros individuais do MBL, que se sobressaem nas redes
sociais e passam a ocupar o cenário político no Brasil. A esse exemplo, temos que:

Ao lado do VPR, outro movimento de grande envergadura e relevante


para impulsionar o impeachment foi o MBL, cujas principais lideranças
são Kim Kataguiri, Renan Santos e Fernando Holiday, este se
tornando vereador em São Paulo (KELLER, R. 2019, p. 68). Grifo do
autor

Na mesma lógica de Fernando Holiday, Kim Kataguiri foi eleito Deputado


Federal em São Paulo, em 2018, pelo partido Democratas, incidindo na defesa da
agenda política liberal e conservadora, ampliando as possibilidades de operacionalizar
via espaço público os objetivos mercadológicos do MBL.

A inserção desses sujeitos na vida política partidária, aliada a ocupação de


espaços na política representativa do pensamento da direita expressa o
recrudescimento do conservadorismo na sociedade e no parlamento brasileiros no
166
contexto pós golpe, a partir de 2016. Contudo, a eleição de Bolsonaro em 2018,
promove o triunfo do senso comum e a adesão de valores reacionários e intolerantes
por parte da sociedade brasileira que lhe apoia, vindo à tona redes de fake News,
exacerbação do negacionismo da ciência, apelo mais forte ao patriotismo (sob o
slogan do Governo Federal ser Pátria Amada Brasil e um dito comum na campanha
eleitoral ser Deus acima de tudo.

Resultante de um processo de ocupação das aberturas liberais democráticas


e da política conciliatória, a extrema direita se fortaleceu a partir de seu viés social-
liberal, adensado a cada recuo do Estado social pelo apelo ao fundamentalismo, à
moral e a valores da família tradicional brasileira como ideal de representatividade.

Destarte, a aceleração do desmonte dos serviços públicos e da seguridade


social a partir do congelamento dos gastos, sobretudo por meio de destituição de
Ministérios como os do Trabalho e da Previdência e das contrarreformas trabalhista e
previdenciária se deu desde a imposição de Michel Temer como presidente,
orquestrada pela direita ultraliberal, o que preparou o terreno para o projeto de
extrema direita em curso.

Desse modo, a eleição de Bolsonaro em 2018 já vinha sendo construída pela


identificação de segmentos da população com seus discursos representantes de
valores excludentes e intolerantes. Corroboramos nesse sentido com Brum (2019)
quando a autora identifica que:

A chegada de Jair Bolsonaro ao poder, com 57,7 milhões de votos, é


processo, não ruptura. Ainda que, para muitos, entre os quais me
incluo, tenha sido difícil acreditar que o personagem mais bruto e brutal
– da política brasileira se tornasse presidente do Brasil, os sinais já
estavam dados. O bolsonarismo é um fenômeno da democracia
brasileira, de como ela foi fundada e de como se desenrolou. (BRUM,
2019, p.237).

A contradição desse momento histórico revela-se, por exemplo, na ocupação


de espaços políticos por sujeitos coletivos e individuais que criticam a democracia e a
perspectiva de universalização do acesso a direitos. Mais que isso, que se valem do
argumento do Estado democrático de direitos para promover discursos pró ditadura e

167
contra os poderes que compõem o Estado brasileiro, ainda que em determinadas
circunstâncias contem com seu apoio.

Reatualiza-se perspectivas conservadoras que sempre estiveram em jogo,


embora em determinados momentos históricos hajam recuado frente ao avanço de
lutas sociais importantes. Entretanto, a incidência da direita em mobilizações e
organizações proporciona uma adesão de seus interesses por parte da população.

Messenberg (2019) identifica ainda que o conservadorismo, enquanto “forma


de resistência às transformações promovidas pela sociedade moderna”, é
representado pelos sujeitos políticos da direita, apoiados na tríade família, religião e
nação (p.201), de modo que:

Tal tríade está fortemente entrelaçada no discurso dos formadores de


opinião da direita, apesar de apresentar graus de centralidade e
radicalismos distintos. Os elementos discursivos que com maior
frequência se relacionam à ideia-chave de “família tradicional” são os
seguintes: oposição ao casamento entre pessoas do mesmo sexo; ao
aborto; à ideologia de gênero nas escolas; à expansão do feminismo
e à concordância com a “cura gay”. (MESSENBERG, 2019, p.201).

Nesse ínterim, reafirmamos nosso entendimento de que o patriarcado se


apresenta como pilar de sustentação do conservadorismo do século XXI, ao tempo
que há uma evidente intolerância às lutas feministas por igualdade de direitos. O
avanço da direita, a partir das pautas acima identificadas é concomitante ao avanço
do ultraliberalismo e a negação e a regressão de direitos sociais e de um
antifeminismo que criminaliza iniciativas básicas de promoção à igualdade de gênero
e à diversidade sexual.
Na reprodução das relações sociais, o projeto ideopolítico liberal conservador
do MBL, conta com dois Institutos de peso na formação de seus princípios, o que está
definido em seu Manual de Filiais como parceiros: o Instituto Liberal e o Instituto Mises
Brasil, ambos subsidiam a formação de quadros políticos na perspectiva liberal.
O revigoramento da direita brasileira no século XXI apresenta-se, portanto,
como um encadeamento de ações e propostas ideológicas e políticas, envolvendo
vários sujeitos que dialogam entre si, responsáveis por estratégias de difusão do

168
senso comum, com uma forte crítica ao Estado e a ampliação de suas ações
democráticas, aliada a um apelo às religiões cristãs.

4.4 ESCOLA SEM PARTIDO: DO PROGRAMA POLÍTICO À INCIDÊNCIA DO


DISCURSO ANTI “IDEOLOGIA DE GÊNERO”

O projeto Escola sem Partido é decorrente da investida de grupos liberais na


política, aliada à perspectiva conservadora e acrítica de análise do Estado, da
Educação e do debate sobre a igualdade entre os gêneros na sociedade brasileira.
Tal projeto é defendido pela agenda política ultraliberal e mais conservadora
no cenário político brasileiro dos anos 2000, confrontando veementemente os
princípios defendidos pela esquerda, pelos movimentos sociais em defesa dos direitos
das mulheres e da diversidade sexual. Há culminância entre a FPE, o MBL e o MBC
no que tange à criminalização da pauta da igualdade de gênero e de indivíduos que a
defendem, posicionando-se contrários a qualquer iniciativa nesse sentido.
O Escola Sem Partido é veementemente defendido em municípios, estados e
na esfera federal como propostas legislativas, que buscam inibir qualquer debate
relacionado à igualdade de gênero no espaço educacional, sob o falso argumento de
que qualquer iniciativa nesse sentido seria uma ofensa aos valores cristãos, com
cunho sexualizador, que fere a moral das famílias.
Em 2004 foi fundado o Escola sem Partido – ESP, enquanto um movimento,
mas o mesmo só passou a ser mais fortemente difundido durante a segunda década
dos anos 2000, acompanhando o crescimento da direita e como reação aos
programas voltados à temática de gênero de 2004 a 2010.
De acordo com Miguel (2016b):

Seu programa foi abraçado por todos os grupos da direita brasileira. É


o idealizador de projetos de lei que tramitam em todo o Brasil, nas
Câmaras de Vereadores e Assembleias Legislativas, e também no
Congresso Nacional. Com o golpe parlamentar de 2016, que destituiu
a presidenta Dilma Rousseff, a proposta do MESP passou a contar
com a simpatia do novo Ministro da Educação, o administrador e
político pernambucano Mendonça Filho. (MIGUEL, 2016b, p.595).

Em seu site, o ESP é assim definido:

169
Programa Escola sem Partido é um conjunto de medidas previsto num
anteprojeto de lei elaborado pelo Movimento Escola sem Partido, que
tem por objetivo inibir a prática da doutrinação política e ideológica em
sala de aula e a usurpação do direito dos pais dos alunos sobre a
educação moral dos seus filhos. (ESP, 2019, n. p.).

O discurso que fundamenta os projetos ESP em tramitação ou aprovados,


partem de uma doutrinação por parte de instituições e profissionais, especialmente os
professores e de uma concepção de ideologia carregada de julgamentos morais, que
coloca no centro a família tradicional e a defesa da liberdade, ao tempo que
contraditoriamente ataca a autonomia da educação enquanto Política a serviço da
sociedade.
• Projeto de Lei “Escola sem Partido” (PL nº 7180/2014), que,
argumentando “dar precedência aos valores de ordem familiar sobre a educação
escolar nos aspectos relacionados à educação moral, sexual e religiosa”, busca velar
os debates nos diferentes espaços de formação educacional.
Essa proposta advém da organização de grupos, que se denominam “pais e
alunos anônimos”, se dizendo combater uma “ideologia de gênero”, mas se
posicionando contrários à liberdade de expressão e à diversidade de teorias e debates
no ambiente escolar e acadêmico. É um sujeito coletivo de direita, cuja proposta de
retirada de qualquer debate sobre gênero, constitui-se essencialmente antifeminista.
Além de interesses religiosos, essa proposta comporta uma dimensão
expressamente antifeminista, ao ter como um de seus argumentos centrais o que vem
denominando “ideologia de gênero”, contrapondo-se a qualquer debate, que trate das
desigualdades sofridas pelas mulheres no âmbito escolar. Ademais, revela também
um conservadorismo político, que demonstra retrocesso parlamentar na concepção
de educação e de sociedade, tradicionalista e que não comporta a diversidade sexual
e religiosa do Brasil.
Em seu curto tempo de existência, o Escola sem Partido tem comportado
longos debates e conquistado inúmeros adeptos (e contraposições), no que
identificamos relação direta com a ascensão conservadora no país, ao passo que
coloca no centro da condução da Educação orientações privatistas, a serviço de
interesses de famílias burguesas e de valores religiosos, demonstrando um profundo
retrocesso no campo democrático.
170
De tal modo que, conforme Miguel (2016b):

O receio da discussão sobre os papeis de gênero cresceu com


iniciativas para o combate à homofobia e ao sexismo nas escolas e foi
encampado como bandeira prioritária pelos grupos religiosos
conservadores. Ao fundi-lo à sua pauta original, o MESP transferiu a
discussão para um terreno aparentemente “moral” (em contraposição
a “político”) e passou a enquadrá-la nos termos de uma disputa entre
escolarização e autoridade da família sobre as crianças. (MIGUEL,
2016b, p.595-596, grifos do autor).

Enquanto sujeito coletivo representante do conservadorismo, as ações


ideopolíticas do Escola sem Partido se fundem a dos outros sujeitos da direita
brasileira em seu processo de revigoramento, cuja reprodução social de seus valores
alimenta as disputas entre as classes, opondo-se às organizações de caráter
progressista e de organizações dos trabalhadores, como sindicatos, movimentos
sociais diversos, partidos de esquerda e organizações progressistas em defesa da
educação laica.
Cabe destacar que como movimento de resistência ao Escola sem Partido, foi
criada a Frente Nacional Escola sem Mordaça, composta por movimentos, sindicatos,
associações docentes e organizações estudantis em defesa da educação pública,
lançada em 2016 no Rio de Janeiro e relançada na Câmara dos Deputados Federais
em Brasília, em 2018.
Tais disputas ideopolíticas, mesmo sendo relacionadas à educação, revelam
a perspectiva de sociedade, que está em jogo na correlação de forças e como se
ameaça a perspectiva laica do Estado, democrática da sociedade e emancipatória de
educação, quando as medidas advindas do Escola sem Partido e da direita ao qual
ele está aliado avançam no Brasil.
Enquanto estratégia ideopolítica da classe dominante para garantir a
manutenção de sua dominação sobre o conjunto dos trabalhadores, conjugando
produção e reprodução, o Escola sem Partido é um instrumento que se encaixa no
contexto.

Este é o solo estrutural do qual emana a ideologia do golpe que acaba


de ser dado à democracia e a do Escola sem Partido. As forças e
intelectuais que as promovem são a expressão política e ideológica do
contexto atual, que assumem as relações sociais capitalistas no Brasil.
Com efeito, a composição dominante do parlamento, que, de forma

171
arrogante, cínica e raivosa, legalizou o golpe e reza a cartilha do
fundamentalismo religioso e do mercado. (FRIGOTTO, 2017, p.25).

Uma das principais medidas defendidas pelo ESP é a afixação de um cartaz


com seis deveres dos professoras nas salas de aula do ensino fundamental e médio,
conforme a figura a seguir:

Figura 1 – Deveres do Professor

Fonte: ESP (2019).

Evidencia-se nesses “deveres” a perspectiva moralizante e privatista do como


os defensores do ESP entendem a educação. Ao forçar um encaixe das ações dos
professores nos seus anseios enquanto pais, anulam a construção social de uma
concepção pública, laica e democrática da Educação enquanto política de Estado e,

172
ao mesmo tempo, operam e incitam a desresponsabilização do Estado com as
escolas e a gestão da política educacional brasileira.
Ademais, a pretensa neutralidade defendida na acusação de doutrinação, não
pode ser concretizada, quando consideramos a capacidade reflexiva e crítica do
sujeito professor, enquanto indivíduo inevitavelmente pensante, orientado por valores
sociais e conhecedor de sua área de atuação.
Um suposto apartidarismo defendido por esse coletivo, nas propostas
legislativas e, na escola é direcionado a qualquer postura progressista e que respeite
a diversidade na escola, havendo uma relação direta entre o que os partidos de direita
apregoam em seus discursos e o conteúdo dos reiterados projetos do Escola sem
Partido, que, em síntese, são sempre propostos por representantes desses partidos
nas três esferas de Governo.
Corroboramos com a análise de Frigotto (2017), na qual ele afirma esse
caráter partidarista,

Ao por entre aspas o termo “sem” da denominação Escola sem


Partido, quer-se sublinhar que, ao contrário, trata-se da defesa, por
seus arautos, da escola do partido absoluto e único: o partido da
intolerância com as diferentes ou antagônicas visões de mundo, de
conhecimento, de educação, de justiça, de liberdade; partido, portanto,
da xenofobia nas suas diferentes facetas: de gênero, de etnia, da
pobreza e dos pobres etc.. Um partido que ameaça os fundamentos
da liberdade e da democracia. (p. 31).

As reedições do Projeto Escola sem Partido, que tramitam no legislativo desde


2004, atendem a interesses partidários de direita, tem como suporte os grupos mais
conservadores do Congresso Nacional e as bancadas religiosas de posturas
fundamentalistas.
De acordo com a análise de Moura e Salles (2018):

O Programa Escola sem Partido em tramitação a nível federal é o PL


867/2015, proposto pelo deputado federal Izauci Lucas. O deputado,
apesar de não costumar declarar sua filiação religiosa e não a utilizar
como sua principal arma política, faz parte da Frente Parlamentar
Evangélica e da Frente Parlamentar Mista Católica Apostólica
Romana do Congresso federal. O projeto de sua autoria “inclui, entre
as diretrizes e bases da educação nacional, o Programa Escola sem
Partido” (MOURA; SALLES, 2018, p. 145).

173
Os ecos da investida contra a Educação pública ecoam mais fortemente na
segunda década dos anos 2000, acompanhando a nova configuração da direita,
obviamente pegando carona na ideologia neoliberal de desfinanciamento, além de
fortalecer um campo político que busca impor às instâncias públicas e democráticas
seus valores privatistas e antidemocráticos, por dentro do próprio Estado, pouco
importando se as práticas de controle e enquadramento direcionadas aos profissionais
se revelem com forte caráter autoritário.
De certo, tal projeto condensa o avanço do irracionalismo, a ocupação de
espaços abertos pelo processo de precarização e privatização das políticas sociais –
sobretudo da educação; as estratégias ideopolíticas da burguesia capturando os
indivíduos em seus empobrecimentos de ordem objetiva e subjetiva; e a perspectiva
moralizante de família, do velho tradicionalismo, ainda que a realidade revele
substancial ruptura com o tradicionalismo, sobretudo, no que se refere às
configurações familiares.
É notória a expansão de propostas legislativas em torno do Projeto Escola
sem Partido, que se espraiam já por estados e municípios. Conforme apresentado no
próprio PL 867/2015:

Frisamos mais uma vez que projetos de lei semelhantes ao presente


– inspirados em anteprojeto de lei elaborado pelo Movimento Escola
sem Partido (www.escolasempartido.org) – já tramitam nas
Assembleias Legislativas dos Estados do Rio de Janeiro, São Paulo,
Goiás e Espírito Santo, e na Câmara Legislativa do Distrito Federal; e
em dezenas de Câmaras de Vereadores (v.g., São Paulo-SP, Rio de
Janeiro-RJ, Curitiba-PR, Vitória da Conquista-BA, Toledo-PR,
Chapecó-SC, Joinville-SC, Mogi Guaçu-SP, Foz do Iguaçu-PR, etc.),
tendo sido já aprovado nos Municípios de Santa Cruz do Monte
Carmelo-PR e Picuí-PB. (PL 867/2015, Câmara dos Deputados
Federais).

A orientação ideopolítica desses sujeitos está orientada pelos interesses do


capital e em seu processo de expansão econômico, político e ideológico. De tal modo,
que é possível estabelecer uma relação entre a crise global do capital e a crise da
Educação brasileira, que sofre grave ataque para se referenciar “no mercado” na
“competição” e na “lei do mais forte” (Cf, Frigotto, 2017), como apontado a seguir:

174
A junção das teses dos arautos do fundamentalismo do mercado e do
fundamentalismo religioso, se transformadas em legislação, como
está correndo, constituirá o lado mais voraz da esfinge que se alastra
na sociedade e não apenas na escola. Escola sem Partido avança
num território que historicamente desembocou na insanidade da
intolerância e da eliminação de seres humanos sob o nazismo, o
fascismo e similares. Uma proposta que é absurda e letal pelo que
manifesta e pelo que esconde. (FRIGOTTO, 2017, p.31).

Ideologia e Política, na perspectiva conservadora, coadunam com um projeto


econômico de exploração capitalista, ao qual o patriarcado vem estabelecendo
historicamente no Brasil uma aliança, que colabora para manter a defesa da família
nos moldes tradicionais, com papeis igualmente tradicionais assumidos pelos seus
indivíduos.
Dentre os elementos que o ESP lança mão para demarcar seu território no
debate educacional (Cf. Salles, 2018) está a “defesa da família com ênfase numa
orientação patriarcal e heteronormativa” (p.2), constituindo-se o combate às
conquistas obtidas pelas mulheres e pelos segmentos LGBTQIA+ no tocante aos seus
direitos.
No âmbito das relações sociais capitalistas, economia, política, ideologia,
conservadorismo e patriarcado são engrenagens que concentram forças no
fortalecimento de uma direita que tenta se reinventar no mundo e no Brasil, que
particularmente reatualiza alguns mecanismos históricos de sua formação e de seus
poderosos, que implica em novas formas de resistência, conforme abordaremos no
capítulo seguinte. Dentre esses mecanismos, encontra-se a suposta “ideologia de
gênero”, sob a qual acusam as escolas de educar para o sexo. Tais discursos se
acentuam na segunda década dos anos 2000, conforme aponta LACERDA (2019):

[...]. Desde pelo menos 2014 são distribuídas nas dependências da


Câmara dos Deputados duas publicações. Uma delas é o panfleto
“Caindo no conto do gênero”, que consiste em uma entrevista com o
Padre José Eduardo Oliveira Silva, professor de Teologia Moral. [...].
A outra publicação é um resumo em português do livro The Gender
Agenda, de Dale O’Leary 1997. (LACERDA, 2019, p.78).

O caráter antifeminista e homofóbico do ESP acompanha o processo mais


genérico de intolerância com alguns ganhos políticos da classe trabalhadora, a

175
particularidade das mulheres e dos segmentos LGBTQIA+ nesse movimento,
favorecendo o revigoramento da direita, do conservadorismo e do patriarcado,
simultaneamente.
A contraposição a uma suposta “ideologia de gênero” na educação se apoia
nos discursos antifeministas e nas medidas que visam garantir no Plano Nacional de
Educação (PNE) a educação sexual e de gênero, em um contexto no qual:

O impetuoso esforço conservador de políticos e religiosos resultou na


retirada do termo gênero do Plano Nacional (PNE) em 2014, tendo a
ação pautada no argumento raso de que os estudos de gênero e
sexualidade, pensados como “ideologia de gênero”, iriam corromper
os valores morais e éticos da família. O trecho suprimido dizia que “as
escolas deveriam promover a igualdade de gênero, raça e orientação
sexual. (SILVA e SILVA, 2019, p.173).

Na citação acima, é notório o incômodo com a defesa pública da igualdade de


gênero na educação, bem como a intolerância com a diversidade sexual e familiar,
uma vez que seus interesses quando atendidos promovem retrocessos ao ensino
crítico. Ao passo que defendem a educação como âmbito de reprodução de grupos
liberais e conservadores em busca de hegemonia política, ferem a educação como
política pública universal, acirrando a desigualdade entre as classes que podem impor
seus interesses e as que buscam para alcançar as mínimas condições de existência,
frequentemente reproduzindo o senso comum.
De tal modo, observamos um apelo a divulgação de relatos individuais que
possam expor a suposta “doutrinação” por parte dos professores, conforme extraímos
do próprio site do Escola Sem Partido (2019, n. p.):

Se você sente que seus professores ou os professores dos seus filhos


estão comprometidos com uma visão unilateral, preconceituosa ou
tendenciosa das questões políticas e sociais; se percebe que outros
enfoques são por eles desqualificados ou ridicularizados e que suas
atitudes, em sala de aula, propiciam a formação uma atmosfera de
intimidação incompatível com a busca do conhecimento; se observa
que estão engajados na execução de um projeto de engenharia social,
que supõe a implementação de uma nova escala de valores, envie-
nos uma mensagem relatando sua experiência (acompanhada, se
possível, de elementos que possam comprová-la) (ESP, 2019, n. p.).

176
A investida ideopolítica orquestrada pela direita em curso no Brasil é de
consensuar seus interesses juntos às classes trabalhadoras, recorrendo a aspectos
históricos conservadores, patriarcais e racistas; alinhando-se ao fundamentalismo do
mundo como mecanismo que instrumentaliza as bases tradicionais de alienação e
apassivamento; além de fragilizar e dirimir as resistências coletivas em processo.
Nesse movimento, política, ideologia, religião, Estado e direitos, dentre outros
aspectos que compõem as relações sociais no contexto da crise estrutural do capital
nas duas primeiras décadas do século XXI, são devidamente acionadas como
funcionalidades à reprodução social da própria “produção destrutiva” (Cf.
MÉSZÁROS, 1996) do capital, articulando totalidade, particularidade e singularidade.
Além da página na internet, o Programa Escola sem Partido manteve
atividade virtual em um blog de 2016 a 2020, com publicações assíduas sobre a
necessidade (inclusive jurídica) de controle das atividades docentes, além da defesa
intransigente da constitucionalidade do Programa.
Contudo, o fundador do Movimento Escola Sem Partido, Miguel Nagib,
anunciou sua desvinculação do mesmo e das páginas oficiais em 22 de agosto de
2020, alegando que após a eleição de Bolsonaro para Presidente em 2018, o
Programa não se manteve em crescente adesão dos parlamentares, como se
esperava.
Na nossa análise, a correlação de forças na qual o Programa se insere depois
de 2018, apesar de favorável à sua disseminação, encontrou resistência nos distintos
espaços e se deparou com sua própria falácia, de tal forma que, mesmo encontrando
eco em outros sujeitos coletivos e em parte dos parlamentares, é insustentável como
proposta pedagógica, haja vista a inviabilidade de formar cidadãos do conhecimento
por meio de uma suposta neutralidade política, histórica e científica.
É possível que por trás desse declínio outros fatores que não alcançamos
nessa análise possam ter colaborado para atenuar as pressões em espaços como as
universidades, por exemplo. Mas destacamos o importante papel organizativo das
Frentes Escola sem Mordaça, que fundamentaram a crítica e produziram
conhecimento informativo que denunciou a falácia do ESP.

177
4.5 O MOVIMENTO BRASIL CONSERVADOR (MBC)

Nos debruçamos aqui sobre este movimento porque ele coroa o final da
década de 2010-2020, como um suporte ideológico para a eleição de Jair Bolsonaro
em 2018, que se amplifica depois de sua chegada à presidência da República, tendo
como um dos principais articuladores, seu filho Flávio Bolsonaro (ex deputado
estadual no Rio de Janeiro e atual Senador), passando a atuar no Brasil com base
nos eixos: formação, ativismo e eventos.
Conforme a própria definição deste movimento:

O MBC é uma verdadeira comunidade de conservadores, que unidos


trabalham pela reconstrução do país, pautados na defesa dos pilares
da civilização ocidental e no combate à dominação cultural imposta
por ideologias revolucionárias. [...] O trabalho do MBC é focado tanto
a longo prazo, por meio de formação intelectual e promoção de
eventos culturais, quanto no médio e curto prazo, através do ativismo
político. Realizamos desde cursos, grupos de estudos, seminários e
congressos até manifestações de rua e nas câmaras e assembleias
legislativas (MBC, 2018, n. p.)

Notoriamente, a ideologia anticomunista (a que equivocadamente acoplam o


antipetismo) dá sustentação a essa contraposição às ideologias revolucionárias,
resgatando os aspectos antirreformistas e antidemocráticos do conservadorismo para
a contemporaneidade.
A perspectiva formadora revela uma estratégia de estabelecer o consenso por
meio da difusão de uma ideologia que, em plena democracia, não se constrange em
auto afirmar-se uma “comunidade de conservadores”, articulando desde importantes
lideranças políticas, até indivíduos de classes populares, que, atraídos por iniciativas
de formação como bolsas de estudo no exterior, vão às ruas protestar contra suas
próprias liberdades e seus próprios direitos, bem como elegem candidatos que, longe
de representar seus interesses, são forjados em discursos de ódio e intolerância.
A direita reconfigurada na aliança liberal conservadora que se destaca nos
anos 2000, tem no MBC um mecanismo de difusão de seus interesses ideológicos e
políticos, reunindo majoritariamente homens brancos e considerados intelectuais de
direita, que assumira na ocasião de lançamento do movimento o papel de lideranças
conservadoras e formadores de novos sujeitos conservadores.
178
Conforme o Convite de lançamento (em 01 de setembro de 2018) divulgado
no site e nas redes sociais do próprio movimento5:

O evento, que acontecerá no Edifício Argentina, na Praia de Botafogo,


228 - Rio de Janeiro, às 15 horas, será transmitido online pelo Canal
Terça Livre. Além de contar com a participação dos próprios
fundadores do Movimento Brasil Conservador, o cronograma do
evento contempla diversas palestras e exposições sobre temas da
atualidade e uma roda de debates entre personalidades de peso do
conservadorismo nacional. Confirmados, até o momento: Flávio
Bolsonaro, Allan dos Santos, Luis Vilar e Ítalo Lorenzon. (MBC,
2018).

Impulsionado pela vitória eleitoral de Jair Bolsonaro para a presidência do Brasil


em outubro de 2018, o MBC realizou seu primeiro Congresso em 17 de novembro do
mesmo ano, em aliança com o canal virtual terça livre, uma mídia representante da
direita, cujos próprios integrantes figuraram como palestrantes no referido evento.
Conforme a convocatória lança para o I Congresso do MBC, os palestrantes
confirmados eram: “Allan dos Santos, Zoe Martinez, Luiz Vilar, Ítalo Lorenzon, Dom
Bertrand, Paulo Henrique Araújo e Janaína Pascoal”.
Nesse contexto, estavam postas melhores condições para o conservadorismo
na direita brasileira se expandir enquanto ideologia, ocupando novos espaços e
estabelecendo pactuações com representações políticas individuais e coletivas no
cenário parlamentar brasileiro, aglutinando novas perspectivas de contraposição
organizada às lutas sociais coletivas da classe trabalhadora.
Sem dúvidas, o antifeminismo ocupa cadeira cativa nesse movimento, que tem
a família, a moral e as liberdades individuais como elementos de destaque nos seus
pilares de sustentação (ver figura 1):

5
Especificamente sobre o II Congresso do MBC, as informações constam em:
https://app.nutror.com/v3/curso/27856bece8f1f9df8346b083816a82400d205f3f. Acesso em agosto de
2021.
179
Figura 2: Marca do MBC

Fonte: MBC (2018).

O contexto de surgimento do MBC e os dois últimos anos da segunda década


dos anos 2000 sequenciais revela a ascensão conservadora de sujeitos pró
Bolsonaro, como “evangélicos, forças armadas, policiais, defensores da família
tradicional” (LACERDA, 2019, p.193).
A eleição de Bolsonaro endossa um processo no qual a direita vinha se
fortalecendo, articulando sujeitos individuais e coletivos e sua inserção na sociedade,
considerando que:

E Bolsonaro não se elege sozinho. Estimula a eleição de 52 deputados


do antigo microscópico PSL, que de um deputado eleito em 2014
consegue eleger em 2018 a segunda maior bancada da Câmara dos
Deputados. Estimula também a eleição de dois governadores
militares, ambos do PSL: Comandante Moisés em Santa Catarina e
Coronel Marcos Rocha, em Rondônia. Wilson Witzel, ex-juiz,
evangélico, é eleito governador do segundo maior colégio eleitoral do
Brasil, o Rio de Janeiro, com um discurso tipicamente
neoconservador, advogando a execução sumária de suspeitos e os
valores da família tradicional. (LACERDA, 2019, p.193).

Em 2020 o MBC realizou seu segundo Congresso, no modo de transmissão


online em função da pandemia do vírus COVID-19, mantendo seu objetivo de
promover o debate em torno das pautas conservadoras, bem como os nomes dos
180
indivíduos que se destacam na promoção do conservadorismo brasileiro
contemporâneo.
De 29 a 31 de maio de 2020, o Congresso on-line do MBC autointitulado como
o maior congresso conservador da América Latina, contou com a presença dos/as
seguintes palestrantes: Allan dos Santos, Arthur Weintraub, Eduardo Bolsonaro, Bia
Kicis, Rodolpho Loreto, Fernando Melo, Luís Vilar, Igor Guedes, Paula Marisa, Daniel
Ferraz, Carlos Chaves, Rumbo Libertad, Paulo Henrique, Oliver Talk, Ítalo Lorenzon,
Evandro Pontes, Abraham Weitrab, Sara Winter, Deputado Otoni de Paula, Ricardo
Roveran, Carlos Nadalim, Silvio Grimaldo, Sr. Sepúlveda, Dom Bertrand, Flávio
Morgenstern, Fernando Melo, Paulo H. Araújo, Bernardo Küster, Anderson C. Sandes,
Maurício Costa, Henrique Oliveira, Daniel Silveira, Filipe Barros, Carlos Jordy, Márcio
Labre, Fernando de Castro, Kim Paim, Fabiana Barroso, Mayranne Almeida, Ivan
Kleber e Brás Oscar.
Embora não nos caiba uma análise biográfica desses sujeitos para fins dessa
pesquisa, destacamos alguns aspectos, no tocante ao aporte ideopolítico que o MBC
fornece para a direita no momento em que a finalização da segunda década do século
XXI culmina com substanciais perdas de direitos para a classe trabalhadora,
mecanismos de controle nas instituições como Universidades e Institutos Federais,
como é exemplo a nomeação de reitores não eleitos pela comunidade acadêmica.
Um desses aspectos é a ampliação dos intelectuais formadores de opinião de
direita que passam a compor o quadro de palestrantes do segundo Congresso do
MBC, seja denotando maior interesse desses indivíduos por essa organização, seja
pela capacidade de divulgação dos seus ideais pelos meios virtuais.
Outro aspecto é a presença de quadros ligados ao Governo, sejam ministros,
deputados e até um de seus filhos, o que expressa quais os valores que perpassam
a agenda do Poder Legislativo, a ausência de interesses pelas demandas populares
e pela efetivação de direitos.
Por último, a finalidade lucrativa desses congressos, haja vista que nos dois
houve cobrança de uma taxa de inscrição, além de seus conteúdos serem
majoritariamente destinados a filiados, mediante pagamentos, evidenciando o objetivo
de crescimento e autossustentação da plataforma política desse movimento.
A forma de organização do MBC dificulta nosso acesso aos conteúdos
produzidos por ele, além de não possibilitar conhecermos o que de fato está sendo

181
organizado por esses sujeitos, embora a inserção de alguns dos sujeitos integrantes
desse movimento em partidos, canais de comunicação, igrejas e na própria gestão do
Governo Federal permita que conheçamos seus interesses e objetivos nesse jogo
político em que o Estado é cada vez mais tensionado pelas forças conservadoras e a
elas faz concessões.
Não casualmente, o Ministério da Mulher e dos Direitos Humanos vem sendo
conduzido por uma mulher que tem se mostrado fundamentalista nas declarações,
contraria a agenda política defendida pelos movimentos feministas e de direitos
humanos com suas bandeiras de luta por igualdade, ampliação de direitos e
cidadania.
Estamos diante de um processo de negação das políticas públicas para as
mulheres, expressa, dentre outros elementos, no corte orçamentário dos recursos
destinados à execução dessas políticas, no desalinhamento político do que defendem
os movimentos feministas e a gestão do Órgão Federal responsável por essa pasta.
Em matéria divulgada em seis de fevereiro de 2020, a Câmara dos Deputados
Federais destacou a diminuição do Orçamento da Secretaria de Políticas para as
mulheres de 2015 a 2019, com uma queda de 119 milhões em 2015 para 5,3 milhões
em 2019, acompanhando a tendência de desmonte das políticas e dos programas
sociais mais genéricos.
De acordo com a matéria intitulada “Deputadas criticam cortes de recursos
para combate a violência contra a mulher”:

Integrantes da bancada feminina da Câmara dos Deputados criticaram


o corte de repasses orçamentários para políticas de combate à
violência contra a mulher. Na última quarta-feira (5), o presidente Jair
Bolsonaro informou que não pretende reforçar o orçamento para a
área. Para ele, não há necessidade de dinheiro, mas sim de mudança
de comportamento e conscientização. (CAMARA DOS DEPUTADOS
FEDERAIS, 2020).

O ano de 2020 expressou as duras consequências do processo antidireitos e


conservador, que vem dando a tônica das políticas públicas para as mulheres e para
a classe trabalhadora como um todo. O ano em que nos deparamos com a pandemia
do Corona Vírus - COVID-19, foi o espaço temporal de uma crise sanitária sem
precedentes, decorrente das escolhas políticas que priorizam as demandas do capital
enquanto sucateiam os serviços essenciais para o conjunto da população.
182
A negação das pesquisas científicas, a intransigência do mercado se
colocando como o “deus intocável”, em detrimento das vidas perdidas e a ausência
de um plano de enfrentamento à pandemia, que oferecesse condições para a garantia
dos protocolos sanitários ao conjunto da população brasileira, incidiram na vida da
classe trabalhadora de modo a torná-la mais suscetível à contaminação, à
precarização e à morte.
Em meio a um contexto de isolamento social, trabalho remoto e ampliação
dos cuidados familiares, as mulheres se depararam com o aprofundamento das
questões históricas que lhes atingem de modo particular. Muito se discutiu sobre
aumento nos casos de violência, intensificação da jornada de trabalho, maiores níveis
de exposição ao vírus dados os maiores percentuais de mulheres nas profissões de
saúde, a linha de frente nos hospitais e unidades de atendimento.
As disputas ideológicas entre ciência e afirmações levianas sobre tratamentos
de saúde, a defesa da vacina e sua negação, a necessidade de enfrentar com firmeza
o contexto pandêmico e a subestimação do que ele seria capaz de causar no país
coloca a questão sanitária no âmbito da luta de classes, que nesse cenário teve como
marco sócio econômico a disputa por uma renda básica, reconhecida formalmente
como “auxílio emergencial”, que de abril a dezembro de 2020 contribuiu, ainda que
insuficiente, para a satisfação das necessidades básicas de parte da população
brasileira.
No limiar das disputas ideopolíticas estabelecidas na segunda década deste
século, os processos antidireitos se reconfiguram em novas tendências de
desestruturação para a década seguinte, a partir de propostas legislativas ou já
aprovadas, como o congelamento salarial de servidores federais e de concursos
públicos até 2036, ou em curso como a proposta de Reforma administrativa, que
acentua ou tende a eliminar os direitos sobrantes dos ataques que se consolidaram
nos últimos anos.
Chegamos ao contexto histórico no qual: “O bolsonarismo ocupa todos os
papeis, inclusive o de simular oposição e crítica, destruindo a política e interditando a
democracia” (BRUM, 2019, p.259), ensejando em seus oponentes o desafio de se
organizar e se colocar como alternativa a esse projeto dominante e decadente, do
ponto de vista da análise dos fatos.

183
No conjunto desse projeto, buscamos identificar no capítulo seguinte quais
são as propostas organizativas das demandas das mulheres, como se articulam às
lutas genéricas, a partir de alguns sujeitos coletivos que se colocam como feministas
e classistas, que consideramos estratégias ideopolíticas de enfrentamento ao
conservadorismo e ao antifeminismo que ele comporta.

184
5 RESISTÊNCIA FEMINISTA CLASSISTA E ANTIRRACISTA EM PROCESSO:
DISPUTAS IDEOLÓGICAS E POLÍTICAS NO BRASIL DOS ANOS 2000

Quando a UNIÃO OPERÁRIA compreender bem sua


posição, entender bem seus verdadeiros interesses, o primeiro ato
que dela partirá deve ser um APELO solene dirigido aos homens que
sentem bastante amor, força, coragem e talento para ousar
encarregar-se da defesa da mais santa das causas, – a dos
trabalhadores?
(TRISTAN, 2015, p. 96)

Nesse capítulo analisamos alguns dos sujeitos coletivos feministas que


demarcam suas posições anticapitalistas e antirracistas a partir das reivindicações dos
direitos das mulheres trabalhadoras. Constituem Movimentos vinculados a
organizações da classe trabalhadora (partidos, movimentos sociais, centrais sindicais
e articulações internacionais) que majoritariamente se forjam no contexto das
contraditórias relações políticas da primeira década do corrente século (3 deles) e no
conservadorismo que marca a segunda década (1 deles).
Para nós, o fato de terem surgido durante as duas primeiras décadas do
século XXI, em um contexto marcado por contradições políticas, tensionamentos e
ameaças à democracia, revela a resistência feminista associada às lutas por direito e
contra o patriarcado, bastante requisitado nas posturas conservadoras de então.
Ademais, ao identificarmos que outros sujeitos feministas auto-organizados,
como a Marcha Mundial de Mulheres, a Articulação de Mulheres Brasileiras, o
Movimento de Mulheres Camponesas e o próprio Mulheres em Luta vêm sendo
pesquisados na área de Serviço Social, como demonstram as teses de doutoramento
de Cisne (2013) e Sousa (2018).
Nos parece crucial o fato dos sujeitos feministas aqui compreendidos se
autocaracterizarem como classistas e antirracistas, o que sugere uma amplitude na
concepção das mulheres a quem suas pautas e ações se destinam – negras,
trabalhadoras, diversas.
Recorremos para essa análise às páginas da internet (sites ou blogs), às
contas em rede sociais (facebook e twitter) a fim de acessar os textos, os documentos,
os dados históricos de cada um dos movimentos.
Os sujeitos coletivos pesquisados se denominam enquanto: 1. Grupo; 2.
Movimento; 3. Coletivo; 4. Movimento.

185
Todos promovem ações a nível nacional e também incidem em estados
brasileiros, mas aqui focaremos nas publicações a nível nacional, por meio de seus
blogs e sites.
A vinculação dos movimentos que ora destacamos a outros movimentos
sociais e partidos políticos no campo da esquerda os insere em um projeto de
sociedade e, consequentemente nas disputas ideopolíticas entre as classes no Brasil
contemporâneo. Consideramos que essa é uma posição política relevante em
contraposição à ofensiva patriarcal que se afirma com mais força no terreno das lutas
de classe e do conservadorismo em ascensão no contexto dos anos 2000.
As consequências das medidas ultraliberais e de práticas políticas que se
fundamentam na negação da diversidade humana, no fundamentalismo e se
contrapõe às reivindicações feministas são sentidas e vividas particularmente pelas
mulheres.
O início do século XXI aponta, em meio a desafios históricos e conjunturais,
importantes elaborações teóricas e iniciativas políticas que revelam a relação
intrínseca entre as lutas sociais e as pautas históricas apresentadas pelas mulheres
da classe trabalhadora, numa relação contraditória.
Conceitualmente tratada como interseccionalidade ou consubstancialidade, a
imbricação entre classe, gênero e raça se expressa no âmbito das relações sociais,
no conjunto dos conflitos e das transformações possíveis, muito mais do que
conceitualmente, na reprodução social, com potencialidades e recuos políticos, o que
nos aproxima mais da análise no campo da consubstancialidade.
Embora seja muito comum ouvir os mesmos argumentos quanto à imbricação
da exploração e das opressões entre raça, classe e sexo por adeptas tanto do conceito
de interseccionalidade como do da consubstancialidade, ao analisarmos seus
sentidos temos que o primeiro sugere um toque (intersecção) entre elementos
distintos, já o segundo, uma articulação no processo de desenvolvimento de aspectos
diferente no conjunto das relações.
Para além disso, no Serviço Social tem sido mais recorrente o uso do conceito
de consubstancialidade, sendo-o mais próximo do que desenvolvemos aqui.

186
5.1 A CONSUBSTANCIALIDADE CLASSE, RAÇA E GÊNERO E A PERSPECTIVA
ANTICAPITALISTA E ANTIRRACISTA DO MOVIMENTO FEMINISTA

Na nossa apreensão, as relações sociais e as disputas ideopolíticas operadas


no âmbito da luta de classes possuem dimensões de raça e de sexo, estando essa
relação presente nas análises teóricas e na incidência política dos movimentos
feministas que ora analisamos.
Ora tratada como nó (Saffioti, 2004), como interseccionalidade (Akotirene,
2018; COLLINS, 2021) ou como consubstancialidade (Kergoat, 2010; Cisne, 2014;
Ferreira, 2017), a articulação entre a raça, a classe e o sexo se expressam na
realidade, de modo consubstancial, embora sejam independentes e inconfundíveis
entre si, incidem simultaneamente e não apenas se interseccionam na conformação
das relações sociais entre as classes, à medida que:

Essas relações racistas-patriarcais encontram sua base de


sustentação, fundamentalmente, por meio da família ancorada na
divisão sexual do trabalho, que conforma, por sua vez, as bases para
a garantia da reprodução social da força de trabalho e da exploração
do “trabalho desvalorizado” das mulheres, indispensáveis à lógica de
acumulação capitalista. (CISNE, 2014, p. 80).

Trata-se de uma apreensão das relações no âmbito da totalidade da vida


social, que impõe condições desiguais entre homens e mulheres, situados em classes
e raças distintas, como demonstrou Saffioti, “[...] há uma estrutura de poder que unifica
as três ordens – de gênero, de raça/etnia e de classe social – embora as análises
tendam a separá-las” (2004, p. 125). Grifos da autora.
No caso brasileiro, é crucial situar as bases racistas e patriarcais basilares
que designam lugares sociais, na pirâmide socioeconômica, para as mulheres negras
da classe trabalhadora, nos postos de trabalho mais precarizados, com menores
salários, com menos acesso a bens, serviços e a direitos essenciais, em condições
mais degradantes de moradia, mais violentadas no exercício de suas religiões
(quando de origem afro), que choram os assassinatos de seus filhos jovens,
massivamente alvo de encarceramento e da morte por parte do próprio estado policial,
enquanto jovens negros da classe trabalhadora.

187
A escravidão se constitui uma determinação, na formação sócio-histórica
brasileira, para analisar a condição de classe, de gênero e raça. Sobre este aspecto
corroboramos com a análise de Davis (2016), na qual ela afirma:

Proporcionalmente, as mulheres negras sempre trabalharam mais fora


de casa do que suas irmãs brancas. O enorme espaço que o trabalho
ocupa hoje na vida das mulheres negras reproduz um padrão
estabelecido desde os primeiros anos da escravidão. Como escravas,
essas mulheres tinham todos os outros aspectos da sua existência
ofuscados pelo trabalho compulsório. Aparentemente, portanto, o
ponto de partida de qualquer exploração da vida das mulheres negras
na escravidão seria uma avaliação de seu papel como trabalhadoras
(DAVIS, 2016, p.24).

Sabemos que, mesmo com suas particularidades, a realidade das mulheres


negras no Brasil, também carrega marcas ainda não superadas do processo de
escravização, no qual, não apenas a força de trabalho, mas a apropriação e
objetificação de seus corpos de diferentes maneiras (violências sexuais, resultando
em filhos bastardos dos senhores; cuidados e amamentação dos filhos considerados
legítimos, entre outras coisas), ainda estão presentes e embasam o racismo e,
consequentemente a desqualificação das mulheres negras.
A imbricação entre racismo, sexismo e classe está no âmbito do real, é uma
questão concreta, material e histórica, em se tratando das relações sociais brasileiras,
em que “a “questão racial” é uma expressão das tendências de acomodação,
reajustamento ou expressão dos mercados de força de trabalho, em escala regional
ou nacional” (IANNI, 1987, p.317).
Para as lutas feministas, consideramos imprescindível a atuação política a
partir dessa imbricação, reconhecendo que o lugar social das mulheres é
determinando por essas três dimensões, o que as coloca em posições diferentes e
até desiguais na vida social, na relação entre si e na própria condição de desenvolver
a militância, uma vez que os lugares sociais ocupados colocam as mulheres da classe
trabalhadora em diferentes patamares de socialização. Consideramos relevante situar
alguns dados que revelam o quanto as desigualdades incidem mais na vida das
mulheres negras, exigindo que o feminismo classista se afirme também antirracista,
sob pena de, assim não sendo, desconsiderar parte substancial das mulheres
brasileiras.

188
De acordo com Silva (2013), com bases nas pesquisas da PNAD que
analisam as desigualdades a partir das dimensões de classe, raça e gênero:

Comparando-se o total das rendas das pessoas, as desigualdades se


pronunciam. Ainda que as disparidades tenham sofrido redução nos
últimos anos, a renda das mulheres negras não chega nem à metade
daquela auferida pelos homens brancos e corresponde a cerca de
56% dos rendimentos das mulheres brancas. (p.118).

Sabemos que a classe está para além da renda, mas é um dado relevante em
se tratando da desigualdade, considerando que no Brasil dos anos 2000, a
transferência de renda se constitui a principal modalidade na concessão de benefícios
sociais.
No âmbito da transferência de renda, programas como o Bolsa família - PBF,
por exemplo, mantém suas titularidades majoritariamente sob a responsabilidade das
mulheres, enquanto responsáveis pela família, de modo que dados de 2016,
revelavam que “92% das famílias beneficiárias têm mulheres como titulares” (Bartholo,
Passos e Fontoura, 2017, p.8).
Considerando que as famílias que são alvo do PBF estão em situação de
problema ou extrema pobreza, inferimos que há uma relação direta entre o trabalho
reprodutivos dessas mulheres e sua condição social.
Não podemos ignorar o fato de que “as desigualdades raciais e de gênero
moldam uma hierarquia do mercado de trabalho que se mantém mesmo entre grupos
com mesma escolaridade ...” (SILVA, 2013, p.120).
Contudo, as particularidades dos diferentes grupos de mulheres nem sempre
foram levadas em conta pelos distintos movimentos de mulheres, o que impulsionou,
ora pautas demandadas pelas mulheres das classes mais altas, majoritariamente
brancas, como o sufrágio feminino, ora discursos e posturas universalistas que não
abarcam as especificidades, a exemplo de argumentações em prol de feminino, em
contraposição a feminismo, além de intervenções puramente identitárias, sem
fundamentar pelas questões materiais, pelas condições de trabalho e pela classe.
Para nós, o feminismo que se autodenomina e se organiza nas perspectivas
classista e antirracista como “direção sociopolítica” (SOUSA, 2018) que se sobressai
aos exemplos supracitados, enquanto tendência que, no contexto dos anos 2000,
mais especificamente na sua segunda década:
189
[...] tais temáticas sinalizam que as pautas feministas voltaram-se,
predominantemente, para a manutenção e ampliação dos direitos
sociais das mulheres como estratégia fundamental para garantir uma
maior autonomia e liberdade para o segmento, diante das ameaças
advindas de um cenário de avanço do conservadorismo e de corte de
investimentos nas políticas para as mulheres. (SOUSA, 2018, p.131).

A perspectiva antirracista e anticapitalista a que recorrem os movimentos


feministas que analisamos são elementos importantes para enfrentar o
conservadorismo, que também se sustenta pela manutenção do capitalismo, do
racismo e do patriarcado.
Nessa perspectiva, concordamos com Cisne e Santos (2018) quanto a:

Queremos dizer que essas dimensões (sexo/sexualidade, raça/etnia e


classe) determinam, em grande medida, as múltiplas relações sociais
que nos compõem e que estabelecemos, seja por gerar situações
desiguais entre indivíduos nas relações interpessoais e oferecer
situação de privilégio a alguns em detrimento de outros(as), seja por
estruturar relações de poder, exploração e opressão de um grupo
social ou classe sobre outro (p.26).

Nesse sentido, uma obra de cunho político que chega ao mundo na segunda
década dos anos 2000 é o Feminismo para os 99%: um manifesto, no qual Arruzza,
Bhattacharya e Fraser (2019) afirmam na tese 8ª que o feminismo para os 99% é
antirracista e anti-imperialista e sobre essa urgente tarefa histórica do feminismo,
afirmam:

Compreendemos que nada que mereça o nome de “liberação das


mulheres” pode ser alcançado em uma sociedade racista, imperialista.
Ao mesmo tempo, compreendemos que a raiz do problema é o
capitalismo, do qual o racismo e o imperialismo são parte integrante.
(ARRUZZA, BATTACHARYA, FRASER, 2019, p. 59, grifo das
autoras).

Destarte, o modo de produção enquanto um elemento estruturante das


relações sociais, se apropria das opressões, tornando-as funcionais ao seu

190
desenvolvimento, mesmo que reconheçamos a existência do racismo e do patriarcado
como elementos históricos que antecedem o capitalismo, nos interessa desvendar e
situar suas configurações nas relações sociais capitalistas contemporâneas.
No plano político, o conservadorismo é alimentado pelo surgimento de grupos
dominantes que representam ao mesmo tempo o poder econômico e ideopolítico
contrário à igualdade entre os sexos e à diversidade sexual. Na contemporaneidade,
esses traços são destacados, por exemplo em aspectos como:

Se, por ora, a aliança entre setores evangélicos em crescimento e


católicos conservadores parece render frutos para os dois lados, a
médio e longo prazo, a tendência é que as tensões aumentem em
virtude da pretensão de segmentos evangélicos de assumir a
hegemonia cultural na região. A multiplicação das universidades
evangélicas, os investimentos crescentes das igrejas em rede de
comunicação – eletrônica, impressa e digital –, assim como as
disputas em torno das associações que regulam o exercício
profissional em distintos campos – direito, psicologia, serviço social,
medicina, bioética etc. – que já ocorrem em diferentes sociedades,
podem gerar estremecimento nas relações com os católicos, que por
séculos conseguiram influenciar as principais instituições e a cultura
da região. (BIROLI, MACHADO e VAGGIONE, 2020, p.192-193).

Há uma evidente articulação entre a ideologia conservadora, os interesses do


capital no período de crise e o discurso antidireitos, uma vez que as políticas em torno
das demandas feministas e de raça/etnia cumprem uma função política de
atendimento às necessidades da classe trabalhadora (ou de parte dela), mas também
assumem um caráter de combate à desigualdade de gênero e raça, no sentido formal
da palavra, haja vista todas as contradições já apontadas aqui entre as disputas pela
implementação de direitos e as intervenções liberais e conservadoras no
desenvolvimento dessas medidas, norteadas pela correlação de força das classes e
de suas disputas ideopolíticas.
No âmbito dessas disputas, no contexto dos anos 2000, situamos os
movimentos feministas que surgem nesse solo contemporâneo como potenciais
opositores ao discurso e às ações antidemocráticas e antidireitos, vinculadas a
sujeitos coletivos como partidos, centrais sindicais, movimentos sociais e
organizações feministas internacionais, conforme apresentamos visualmente no
quadro a seguir:

191
Quadro 4: Sujeitos Feministas Classistas e antirracistas que surgem nos anos
2000

ANO DE
DENOMINAÇÃO DEFINIÇÃO SURGIMENTO VINCULAÇÃO

Seu nome é em Movimento


homenagem às Revolucionário de
operárias norte- Trabalhadores
americanas de uma 2009 Independentes –
fábrica têxtil em MRT; Central
Pão e Rosas
Massachusetts, que Sindical e Popular –
no começo do século CONLUTAS;
XX protagonizaram Movimento Latino-
uma importante americano Pan y
greve na luta pelos Rosas.
seus direitos e
levavam como
bandeira “O direito
ao pão, mas também
às rosas”.
Partido Socialista
Movimento de de Trabalhadores
Mulheres Classista e Unificados – PSTU;
Movimento Feminista. Lutamos
pelo fim da opressão Central Sindical e
Mulheres em Luta às Mulheres e 2008 Popular -
(MML) acreditamos que CONLUTAS
essa conquista só é
possível através da
organização
classista com o
conjunto da classe
trabalhadora.

O Coletivo se
organiza na luta
contra a opressão e
exploração das
mulheres da classe
trabalhadora, e Partido Comunista
constrói a luta pelo
Brasileiro - PCB
feminismo e pela
Coletivo superação da 2005
Feminista sociedade de

192
Classista Ana classes.
Montenegro Entendemos que as
demandas de gênero
– pela emancipação
das mulheres
trabalhadoras -,
deverão tensionar o
estado burguês,
buscando a ruptura
com o capitalismo e
com todas as suas
formas de
exploração,
pautadas tanto na
divisão social de
classes, quanto nas
diversidades
humanas.

Somos a primeira
trincheira na defesa
da vida e da maioria,
dos 99%! Lutamos
contra a austeridade
neoliberal, a violência
policial, os regimes
Partido Socialismo
tirânicos e os golpes
Resistência fundamentalistas. 2020 e Liberdade –
Estamos PSOL;
Feminista
desenhando um novo
significado, vivo e
dinâmico, para
Esquerda Online e
valores
anticapitalistas Resistência PSOL.
tradicionais que
vinham perdendo
força: “greve” como
protesto feminista em
locais de trabalho e
no ambiente
doméstico,
demonstrando que se
paramos, o mundo
inteiro para.
Fonte: A autora (2022).

193
Pela visualização das definições destacadas acima, é evidente que a
organização política feminista nas duas últimas décadas segue sendo um componente
que integra o conjunto das lutas da classe trabalhadora, atravessando as
transformações pelas quais passa o liberalismo (social-liberalismo; neoliberalismo;
ultraliberalismo), em articulação com organizações da esquerda no Brasil e na
América Latina, que vão desde partidos políticos a centrais sindicais e Movimentos
Sociais.
Ante o aprofundamento do desmonte das políticas e dos direitos sociais a
partir de 2016, quando se concretizou o golpe contra o mandato da presidenta Dilma
Rousseff, as ações ideopolíticas dos sujeitos feministas aqui analisados adquirem
potencial de maior radicalidade frente à crescente ofensiva conservadora.
Trataremos de situar quais posicionamentos políticos, participações em
atividades públicas e formas de incidência dos Movimentos Feministas, Classistas e
Antirracistas em questão até o ano de 2020, buscando identificar quais tendências
esses sujeitos coletivos acompanham.
Corroboramos com Sousa (2018) quanto às reivindicações em torno da não
violência, melhores condições de trabalho, autonomia sobre o corpo e acesso a
políticas por parte das mulheres, que:

Em nosso entendimento, tais temáticas sinalizam que as pautas


feministas voltaram-se, predominantemente, para a manutenção e
ampliação dos direitos sociais das mulheres como estratégia
fundamental para garantir uma maior autonomia e liberdade para o
segmento, diante das ameaças advindas de um cenário de avanço do
conservadorismo e de corte de investimentos nas políticas para as
mulheres. (SOUSA, 2018, p.131).

No tocante à incidência nas lutas sociais e na contraposição ao contexto de


crise econômica e irracionalidade conservadora, os sujeitos coletivos feministas por
nós analisados tendem a reafirmar a democracia como princípio basilar das relações
sociais na conjuntura brasileira; contrapõem-se às medidas austeras que culminam
em significativas perdas de direitos, reivindicando um estado social; bem como
organizam sua inserção nos distintos espaços de resistência da classe trabalhadora,
situando as especificidades das mulheres.

194
Buscamos apreender, no âmbito das lutas e posicionamentos políticos desses
sujeitos coletivos, como a consubstancialidade classe, sexo e raça aparecem nas
suas reivindicações, por meio da incidência nas lutas mais genéricas em torno da
defesa de direitos para a classe trabalhadora, bem como as particularidades das
mulheres e, mais especificamente das mulheres nesse processo.
Trata-se, no nosso entender, das expressões ideopolíticas contrapostas ao
conservadorismo e ao patriarcado, como ideologias que fundamentam o modo de ser
e de agir da classe dominante.
A relevância social das lutas feministas nessa perspectiva, articula as
opressões sofridas pelo conjunto das mulheres à exploração da classe trabalhadora,
evidenciando sua constante contribuição à sociedade, visando transformações na
ordem material e de valores, na produção e na reprodução social, a despeito da
imposição de inúmeros desafios nas duas últimas décadas, muitos deles comuns aos
partidos, aos sindicatos e aos movimentos sociais, como práticas de controle e
criminalização, tendência à deslegitimação legal do direito às reivindicações e
mobilizações, com recortes patriarcais e racistas, conforme demonstra Lacerda (2019)
sobre o Brasil sob a condução de Jair Bolsonaro, a partir de 2018:

Neoliberalismo, punição e família se entrelaçam. Entrelaçam-se, em


parte, porque os protagonistas da ação pró-família patriarcal e
neoconservadora criminal de regra encamparam agendas que são
verdadeiras expressões contemporâneas do Consenso de
Washington. Mas se entrelaçam também pela mentalidade que
informa as visões. Para os neoconservadores, o melhor programa
contra a pobreza é uma família estável. (p.202).

No nosso entendimento, o feminismo anticapitalista e antirracista apresenta,


mesmo em meio a inúmeras adversidades, potencial ideopolítico para se contrapor às
investidas conservadoras desse período.
Na sequência, analisaremos cada um desses movimentos, com foco em
ações de formação, de difusão ideológica e mobilizações.

195
5.2 O MOVIMENTO PÃO E ROSAS

Logo do Movimento Fonte: http://nucleopaoerosas.blogspot.com/,

Esse movimento tem incidência na América Latina, além do Brasil em mais


quatro países (Argentina, Bolívia, Chile e México), além do Estado espanhol,
compondo o movimento latino-americano Pan y Rosas.
No Brasil, surgiu em 2009 com a perspectiva de fortalecer as lutas feministas
internacionalistas em 2010, quando das mobilizações em torno dos cem anos do 8 de
março. Conforme apontado no Blog http://nucleopaoerosas.blogspot.com/, o
Movimento Pão e Rosas situa as mulheres no âmbito do conjunto dos sujeitos
explorados pelo capitalismo, mais precisamente, a classe trabalhadora, sobre a qual
afirma que: “Inclusive, o capitalismo tira vantagem das religiões, das diversas culturas,
do racismo e do patriarcado para nos dividir e nos desorganizar”.
Evidencia-se a perspectiva antirracista e anticapitalista desse movimento,
conforme pressupõe nossa escolha por sujeitos feministas classistas. A articulação
com sujeitos como a CONLUTAS e o MRT situa as lutas feministas em aliança com
organizações coletivas mais genéricas.
Ainda conforme afirmação na apresentação em seu blog, o MPR sustenta
que:

O capitalismo se apropria da opressão patriarcal histórica da mulher


para fortalecer a exploração, ampliar seus lucros, além de dividir a
classe trabalhadora. Com o desenvolvimento da tecnologia,
poderíamos socializar as tarefas domésticas, tendo, por exemplo,
creches, lavanderias e restaurantes comunitários. Entretanto, se isso
não acontece, é porque no trabalho doméstico não remunerado está
uma parte dos lucros do capitalista que, desta forma, fica isento de
pagar aos trabalhadores e às trabalhadoras pelas tarefas que
correspondem à sua própria reprodução como forças de trabalho
(alimentos, roupas, higiene, etc.). (BLOG DO PÃO E ROSAS).

196
A luta por direitos nessa concepção, alia-se às lutas pela ampliação do Estado
através de serviços destinados à melhoria da vida das mulheres trabalhadoras, além
do enfrentamento às condições impostas pelo capitalismo às condições de trabalho
específicas às mulheres, com vistas à construção de uma alternativa societária à
exploração da classe trabalhadora e às opressões de gênero e de raça.
Destacamos a incidência política do Pão e Rosas na segunda década dos
anos 2000, considerando sua atuação no Brasil a partir de 2009, bem como sua
participação em greves e atos políticos da classe trabalhadora, com base em três
eixos de atuação: mobilização política; difusão ideológica e formação, que
compreende participações em atos e protestos; divulgação de notas (de apoio, de
repúdio, de divulgação) e cursos, palestras, seminários.
Cabe salientar, conforme posicionamento da autora Andrea Dátri, líder
internacional do Movimento Pão e Rosas, que:

Nós, marxistas revolucionárias, defendemos que a luta de classes é o


motor da história, e que a classe operária acaudilhando as massas
pobres e o conjunto dos setores oprimidos é o sujeito da revolução
social que nos libertará da escravidão assalariada e todo tipo de
opressão, atacando o capitalismo em seu coração, paralisando seus
mecanismos de exploração e destruindo sua maquinaria de guerra
contra as classes subalternas. (D’ATRI, 2017, p.40).

Nesse contexto, a luta das mulheres dá uma significativa contribuição, seja


para as lutas da classe que compõe, seja contra as opressões que as atingem de
modo particular, ao patriarcado e ao racismo, como ideologias operadas pela classe
dominante nos anos 2000.
Durante esses poucos mais de dez anos de incidência ideopolítica no Brasil,
a contraposição ideopolítica do Pão e Rosas ao conservadorismo se dá tanto por meio
de divulgação de seus posicionamentos por meio de notas, matérias de jornais,
entrevistas, dentre outros; como pela formação política de mulheres, por meio de
eventos, cursos, palestras; bem como pela participação ativa em atos mobilizações e
protestos em defesa de direitos da classe trabalhadora e das mulheres.
Em 2015 o Pão e Rosas publicou o artigo A origem da opressão às mulheres
está na Divisão da Sociedade em Classes de autoria de uma de suas militantes, em
que evidencia sua concordância com a articulação da exploração e da opressão às

197
mulheres trabalhadoras, difundindo seu posicionamento político, por meio do qual
afirmou que:

O surgimento do capitalismo não só aumentou a exploração e a


opressão que o antecediam, também aprofundou os antagonismos ao
reforçar o embate entre duas classes fundamentais, a burguesia e a
classe operária. Isso faz com que se atualize a análise de Marx, de
que a luta de classes é o motor da história. Mas, também, o capitalismo
permitiu o desenvolvimento da tecnologia e aprofundou a capacidade
humana para produzir fontes de existência. (LIMA, 2015, s/p.).

Ao vincular tal movimento ao marxismo, a autora, em representação ao


Coletivo Pão e Rosas, afirma ainda que:

Para nós, mulheres marxistas revolucionárias, a luta pela nossa


emancipação é indissociável da luta pela emancipação da classe
operária contra o jugo e miséria dos burgueses. Não será uma
estratégia feminista, restritas ao mote "de mulheres para mulheres" e
sem recorte de classe, a saída para derrotar o patriarcado que nos
sufoca, embrutece, nos prende à cozinha e nos imerge nos postos de
trabalho mais subvalorizados. Nós mulheres devemos nos apropriar
dos espaços políticos e de organização, junto à nossa classe, para
sermos sujeitas centrais da revolução, junto a todos oprimidos, e para
a construção de uma alternativa que golpeie de morte o capitalismo.
(LIMA, 2015, s/p.).

Além da participação efetiva em atos como os que são realizados anualmente


no dia oito de março (Dia Internacional das Mulheres), o Pão e Rosas organiza sua
inserção com atos próprios, a exemplo do que se realizou em dezoito de fevereiro de
2017, em preparação ao oito de março seguinte, no qual “Entre as mais de 100
mulheres, estavam professoras, metroviárias, trabalhadoras terceirizadas,
funcionárias da USP, bancárias, estudantes universitárias e secundaristas de São
Paulo e de Santo André” (PÃO E ROSAS, 2017).
Destaca-se a participação efetiva nos atos anuais de 8 de março, sobre o qual
destacamos o chamado às ruas para essa data em 2019, no qual o Movimento Pão e
Rosas se posicionava contrário à ascensão conservadora no Brasil, afirmando que:

No Brasil, o enorme ataque de Bolsonaro contra as mulheres e os


LGBTs e a violência policial e estatal, cujo ponto mais alto é o
assassinato ainda impune de Marielle Franco, marcam a fogo as
198
bandeiras do 8 de março, assim como o rechaço às reformas
trabalhista e da previdência. Se os resultados são catastróficos para
toda a população, é ainda mais para as mulheres que são a maioria
entre os setores mais precários e com salários mais baixos,
especialmente as jovens negras. O grupo de mulheres Pão e Rosas
participa em SP, RJ, MG e nos principais estados do país de
assembleias e atividades de construção deste 8 de março (PÃO e
ROSAS, 2019).

O posicionamento contrário às contrarreformas e às posturas


antidemocráticas implementadas no Brasil nos últimos anos é recorrente tanto na
propagação de ideias, nas mobilizações políticas e nas propostas de formação que
encontramos por parte do Movimento Pão e Rosas, situando as mulheres da classe
trabalhadora como parte específica da população que sofre de modo particular os
rebatimentos da ausência de direitos, além de ser frequente as análises na
perspectiva da consubstancialidade raça, gênero e classe.
O modo de organização variado do Pão e Rosas pelos diferentes estados
brasileiros impõe dinâmicas distintas, mesmo quando se trata de pautas nacionais.
Na nossa pesquisa a incidência em São Paulo aparece mais fortalecida, ainda que
haja organização e incidência em vários estados.
No tocante à temática da questão racial, essa dinâmica regionalizada tem
expressado, no eixo formação, por exemplo, grupos de estudos no Nordeste e no
Centro Oeste, além de turmas virtuais para o Curso Mulheres Negras e Marxismo,
ministrado já em 2021 pela militante do Pão e Rosas, feminista e escritora Letícia
Parks.
O curso se iniciou terça-feira, 6, e seguirá no mesmo dia nas próximas
semanas (13, 20 e 27 de Abril), sempre às 20h pelo canal do Esquerda Diário no
Youtube. Será composto por 4 aulas, sendo elas 1- “Opressão e Exploração”, 2- “Luta
Negra e Luta de Classes”, 3- “Negras no Topo?”, 4- “Mulheres Negras e Estratégia
Socialista” . É uma arma teórica para a luta antirracista, feminista e anticapitalista.
Além do curso e dos grupos de estudos, foi lançado o livro Mulheres Negras
e Marxismo, organizado pelas autoras Carolina Cacau, Letícia Parks e Odete Assis,
pela editora ISKRA.
As mobilizações em torno da questão racial são organizadas quando das
situações emblemáticas que marcam casos de racismo, violência e opressão contra
as pessoas negras, sobre os quais podemos destacar aqui o Ato Internacional
199
Simultâneo contra o Racismo e a Violência Policial da Fração Trotskista, em 11 de
julho de 2020, que unificou ações dessa vertente política trotskista em vários países;
e a participação no ato “Por todas nós e pelo bem viver: exigimos o fim da negligência
e violência do Estado”, no dia 25 de julho de 2018 em São Paulo, ato em referência
ao dia da mulher negra latina e caribenha, celebrado nesta data.
Confluindo as disputas ideopolíticas contrárias ao conservadorismo na
unidade raça, gênero e classe, Letícia Parks (2021) destacou, no lançamento do livro
Mulheres negras e marxismo:

E quem são as negras no topo? A diretora do Carrefour, onde o Nego


Beto foi assassinado; a presidente da Starbucks, onde negras e
negros são superexplorados; a Kamala Harris, primeira mulher negra
a bombardear a Síria. E por mais duro que seja dizer isso, do topo,
quando olham pro chão, ele segue sujo de sangue negro, feminino e
operário. Tem ainda mulheres que ganham destaque individual e
usam o seu lugar de fala para dizer que outras mulheres não são
negras, e é por tudo isso que esse livro traz também pra vocês o
debate desses conceitos como lugar de fala, representatividade, entre
outros debates de qual a nossa estratégia para lutar contra o racismo
e o patriarcado, que sabemos que não vão cair, vai ser preciso
derrubar, junto com o capitalismo. (PARKS, 2021, n. p.).

A crítica da autora a destaques individuais pela inserção no mercado denota


a impossibilidade de superação do racismo pelas ideologias liberais que permeiam o
debate da igualdade, sob o jugo dos esforços individuais e não superam as raízes
desiguais ancoradas na exploração do trabalho e nas opressões coletivas.
Dentre as constantes ações em defesa dos direitos das mulheres
trabalhadoras, elencamos as seguintes ações do Movimento Pão e Rosas nos anos
pós golpe, quando, com a ofensiva mais acirrada contra os direitos e os princípios
democráticos, as mulheres trabalhadoras conseguem demarcar seus espaços e
posicionamentos nas lutas coletivas.
Em novembro de 2019 este movimento teve como uma das ações de difusão
ideológica em defesa das mulheres a declaração “Não aceitamos o fim da estabilidade
para gestantes com contrato de trabalho temporário”, para difundir sua posição
contrária à decisão do Tribunal Superior do Trabalho – TST, sobre a não garantia da
estabilidade para gestantes em contratos temporários de trabalho.
Na declaração, o Pão e Rosas afirma:

200
Nos negam a maternidade com este ataque à estabilidade, assim
como com a própria reforma trabalhista que desde seu início já previa
que mulheres grávidas pudessem trabalhar em locais insalubres. Não
nos dão condições de saúde pública de qualidade, por exemplo, que
é a última das prioridades deste governo, com seus ataques ao SUS
e absurdos como o projeto de Janaina Paschoal à Alesp, que permite
a realização de cesáreas sem necessidade de recomendação médica,
além de abrir espaço para que médicos se recusem a aceitar os planos
de partos de pacientes, podendo induzir a realização de cesáreas e
procedimentos cirúrgicos por interesses lucrativos. (PÃO E ROSAS,
2019)

Constatamos a resistência ao fundamentalismo religioso do qual tratamos no


capítulo anterior, estando o feminismo atento e organizado frente as ameaças
conservadoras e a destituição de direitos no tocante à saúde sexual e reprodutiva das
mulheres, além das reivindicações ao Estado pela garantia de serviços de
atendimento às demandas por interrupção da gestação, quando previstas em lei.
Em 2020 o Pão e Rosas lançou o Dossiê “A legalização do Direito ao Aborto
no Brasil e na América Latina”, em alusão ao dia Latino-americano e Caribenho pela
legalização do aborto – 29 de setembro. Neste dossiê contém artigos de opinião,
estudos, entrevistas de militantes, pesquisadoras e candidatas que defendem a
inserção dessa pauta nas campanhas políticas.
Ainda em 2020, no eixo formação, o Pão e Rosas, por meio de seus grupos
no Nordeste e no estado do Espírito Santo realizou o I Seminário Teórico Feminismo
e Marxismo, organizado em quatro encontros, de 07 de novembro a 12 de dezembro,
em cuja divulgação o movimento afirmou que:

O debate sobre o feminismo marxista contemporâneo e as lutas


sociais de classe, sexo/sexualidade e raça/etnia diante da intensa
desigualdade social, pauperização, precarização do trabalho e da
gravidade de subordinação e atos bárbaros de violência contra a
mulher e elevados índices de feminicídios, a discriminação e
homicídios vivenciados por outros grupos nos cenários internacional
e, em particular, no caso brasileiro, são resultantes de relações
antagônicas das classes sociais no interior de uma “democracia”
burguesa a qual se faz necessária e urgente o fim da propriedade
privada, o reconhecimento na liberdade individual, igualdade de
direitos, condições de trabalho e renda valorizados, entre outras
inúmeras lutas, em contraposição e resistência à dominação
capitalista sob orientação da teoria marxista socialista revolucionária.
(PÃO e ROSAS, 2020).

201
A partir dos elementos acima destacados, constatamos a contribuição dada
pelo movimento feminista classista Pão e Rosas, no âmbito das relações sociais de
classe, gênero e raça, corroborando para o enfrentamento das desigualdades
vivenciadas na realidade brasileira pelas mulheres trabalhadoras.
Outrossim, antenadas à ofensiva conservadora que se observa no último
quinquênio no mundo e no Brasil, as mulheres que compõem esse movimento vêm
somando forças em ações estratégicas para o enfrentamento das perdas de direito
em curso, para a manutenção das pautas feministas na agenda política de partidos,
movimentos e sindicatos, tendo as mulheres na linha de frente das reivindicações.
Há uma confluência dos eixos de análises que elencamos, havendo sintonia
entre a participação e a organização de atos e mobilizações, divulgação de seus
posicionamentos ideológicos, bem como ações de formação internas, que nem
sempre acontecem de forma separada, tendo em vista toda e qualquer ação política
ser imprescindível de ideologias, sejam direcionadas ou não à formação.
Por último, elencamos a partir das matérias vinculadas no sítio do Pão e
Rosas dentro do espaço virtual do Esquerda Diário, um total de 5 militantes que
assinam matérias pelo Movimento, cujas ocupações, além da militância nos dão uma
breve ideia de quem são essas mulheres e seus estados de atuação: 1 estudante de
graduação (ES); Servidora Pública e sindicalista (SP); Professora e militante do
movimento negro (SP); Estudante de pós-graduação (MG); Professora do Ensino
básico (SP).
Por essa amostragem, temos uma atuação mais centrada na região sudeste
do país, embora haja representação coletiva em diversos outros estados.

202
5.3 O MOVIMENTO MULHERES EM LUTA (MML)

Fonte: Blog do Movimento

Em seu Estatuto, o Movimento Mulheres em Luta – MML, definido “enquanto


instrumento para a defesa de todas as reivindicações e demandas das mulheres
trabalhadoras e das organizações que o constroem” (MML, 2014) sendo seus
objetivos os seguintes:

Parágrafo primeiro – Organizar e mobilizar as trabalhadoras sempre


no sentido de defesa dos seus direitos, interesses e prerrogativas.
Parágrafo segundo - Organizar essa luta na perspectiva de enfrentar
o machismo e a exploração sofridos pelas mulheres da classe
trabalhadora.
Parágrafo terceiro – Lutar por melhores condições de vida e trabalho.
Parágrafo quarto – Lutar em defesa dos interesses históricos da
classe trabalhadora, tendo como meta o fim de toda forma de
exploração e opressão, sempre na perspectiva de uma sociedade
socialista, governada pelos próprios trabalhadores e trabalhadoras.
Parágrafo quinto – Representar, com autonomia e independência,
nas esferas política, administrativa e judicial, perante quaisquer órgãos
da Administração Pública, dos Poderes constituídos e da sociedade,
em qualquer instância, os interesses coletivos e individuais das
trabalhadoras.
(MML, 2014, S/P)

A articulação exploração e opressões, sempre destacada nos objetivos acima,


situa o MML no conjunto de movimentos feministas que pautam a consubstancialidade
classe, gênero e raça na sua incidência ideopolítica, sobre o que buscaremos
apresentar na sequência algumas de suas ideias e ações.
Na segunda década do século atual o MML tem sua agenda política difundida
em torno de questões como a violência contra a mulher, a legalização do aborto e
contra as políticas neoliberais. Em estudo recente, Sousa (2018), afirmou, sobre o
MML que:

203
Em outubro de 2013, o MML realizou seu 1º Encontro Nacional –
considerado, pelo próprio movimento, o maior encontro classista dos
últimos vinte anos –, que reuniu duas mil mulheres trabalhadoras do
campo e da cidade. Como forma de encaminhamento, o MML
encampou a Campanha Nacional contra a Violência às Mulheres em
virtude da década anterior ter sido o período em que mais morreram
mulheres no país e por considerar que o governo não deu respostas
mínimas que revertessem a situação. (SOUSA, 2018, p.150).

Em seu primeiro Encontro Nacional, realizado de 03 a 05 de outubro de 2013,


o Movimento Mulheres em Luta elegeu sua Executiva Nacional e elaborou várias
resoluções, entre as quais a Resolução Política e Plano de Ação, na qual deliberou,
dentre outras ações que:

2. Impulsionar atos e atividades nas cidades no dia 25 de novembro-


Dia Latino Americano e Caribenho de luta contra a violência a mulher-
fazendo grandes lançamentos da campanha nacional do MML. A luta
contra a violência é a campanha prioritária do MML para o próximo
período. Ver Resolução específica;
4. Organizar, em conjunto com o Quilombo Raça e Classe da CSP-
CONLUTAS e demais organizações do movimento negro, atos do dia
20 de novembro- Dia Nacional da Consciência Negra;
6. Atuar nas campanhas salariais em conjunto com os sindicatos,
destacando as demandas específicas das mulheres como salário
igual, creches integrais nos locais de trabalho, direito à progressão na
carreira, contra o assédio moral e sexual e outras pautas das
categorias.
7. Organizar os atos do dia 08 de março - Dia Internacional de luta das
Mulheres - com uma política que defenda os direitos das mulheres da
juventude e da classe trabalhadora, contra os ataques dos governos e
dos patrões.
11. Seguir com a luta pela legalização do aborto, participando em
unidade de ação da Frente Nacional pela Legalização do Aborto- 28
de setembro- Dia Latino Americano e Caribenho de Luta pela
Legalização do Aborto. (MML, 2013, p. 3-4).

Estão explícitas na agenda política desse movimento ações e estratégias de


luta em relação à classe, ao gênero e à raça, cabendo destaque a proposição do MML
de se articular a outros sujeitos políticos na perspectiva de fortalecer uma agenda
política coletiva e classista.
204
Destacamos a seguir algumas de suas ações que revelam a forma de
incidência desse movimento na realidade brasileira, particularmente na segunda
metade da década de 2010 a 2020, levando em conta também conteúdo de
mobilização, difusão ideológica por meio de seus posicionamentos e a formação.
Já no contexto pós-golpe de 2016, o MML intensificou suas ações em torno
das pautas da sexualidade e do aborto, que tendia a ser mais criminalizado com o
avanço conservador que se processa desde então.
A pauta do aborto é consensual em todos os movimentos aqui elencados. Em
27 de setembro de 2017 o MML publicou em seu blog a postagem intitulada Crime
hediondo é a negligência do Estado. Descriminalização e legalização do aborto já.
Diante da criação de uma Comissão Especial no Congresso Brasileiro para tratar de
medidas sobre o aborto e da existência de 36 projetos em tramitação ativos acerca
dessa temática. Na nota o Movimento Mulheres em luta afirma que: “A maior parte
dos projetos de lei que tramitam atualmente no Congresso Nacional sobre o aborto
pretende endurecer a pena para a conduta, dentre os quais cinco projetos propõem
tornar a interrupção crime hediondo” (2017).
Nessa postagem, o MML contextualiza a ofensiva com que as mulheres vêm
sendo tratadas nas propostas legislativas em curso no Brasil, que afetam as mulheres
pobres e negras, desconsiderando suas realidades. Na análise do movimento sobre
esta situação:

Enquanto tramitam tais projetos, as mulheres pobres e trabalhadoras


continuam morrendo. Um milhão de abortos são realizados por ano,
no país. As mulheres negras e pobres são as maiores vítimas da
criminalização do aborto, pois, enquanto as mulheres ricas têm acesso
às clinicas especializadas nas quais realizam o procedimento de
maneira segura, discreta e sem julgamento moral, pagando entre 3 a
5 mil reais, valor que nenhuma mulher da classe trabalhadora pode
dispor, essas ultimas acabam recorrendo à clínicas clandestinas sem
as menores condições de higiene ou utilizando os mais variados
métodos para se livrarem da gravidez indesejada, de agulhas de tricô
a medicamentos, sem qualquer orientação. São as mulheres negras
as que mais morrem em decorrência de complicações, pois são as que
menos têm acesso aos serviços de saúde, e, quando aí chegam,
enfrentam também o racismo e a falta de informação. (MML, 2017).

Destarte, em consonância com as lutas feministas pela legalização e


descriminalização do aborto, o MML alcunha as palavras de ordem: é pela vida das
mulheres, cabendo enfatizar: das mulheres pretas, pobres e trabalhadoras.
205
O Movimento Mulheres em luta reorganiza suas estratégias de luta no seu
Segundo Encontro Nacional, de 20 a 22 de abril de 2018, realizado em São Paulo,
com o objetivo de discutir os impactos da crise econômica e política sobre a vida das
mulheres trabalhadoras brasileiras. O referido encontro contou com uma programação
de mesas de exposição e debate; Grupos de debates sobre temas específicos e
eleição da nova diretoria.
As mesas tiveram os seguintes temas: Viva o protagonismo das mulheres
trabalhadoras nas lutas do nosso tempo; Crise Econômica e aprofundamento do
machismo e toda forma de opressão: os desafios e tarefas do movimento de mulheres
frente à situação política no Brasil e no mundo; Fortalecer o trabalho e a organização
do MML.
Há uma perceptível preocupação em situar as determinações gerais sobre as
condições das mulheres. Os grupos temáticos tiveram temas variados sobre a
diversidade das mulheres e suas pautas.
Na resolução política resultante desse segundo encontro, consta como
deliberação primeira:

Reafirmar que o MML é um movimento de mulheres trabalhadoras que


acredita que nossos aliados são os homens e mulheres da classe
trabalhadora. Por um lado, isso significa reconhecer as
especificidades das mulheres no seio de nossa classe (negras,
indígenas, LGBTs, imigrantes, entre outras) em que o machismo se
combina com outras formas de opressão e é potencializado,
favorecendo a exploração da nossa classe. Por outro, unificando as
trabalhadoras em separado das burguesas, nossa estratégia é fazer
com que essa seja uma luta de toda a classe trabalhadora, de homens
e mulheres, para derrotar o capitalismo e construir o socialismo. (MML,
2018).

Em julho de 2019, o movimento organizou uma ação de formação intitulada


“Grupo de Estudo sobre Sexualidade e Identidade de Gênero”, que levava em conta
a diversidade das mulheres que compõem o MML, sem desconsiderar a conjuntura
desfavorável ao reconhecimento da diversidade sexual e de gênero.
Em uma das publicações em seu blog, que anunciava o lançamento do
referido curso, consta a seguinte afirmação:

206
Para aliar a prática revolucionária à teoria revolucionária, o Movimento
Mulheres em Luta vai organizar um grupo de estudos sobre a opressão
e exploração das mulheres por conta da orientação sexual e
identidade de gênero na perspectiva marxista, além de temas como
educação sexual e legalização do aborto, visando a realização de um
seminário nacional no ano de 2020 (...).
Esse grupo servirá para acumular os temas teóricos e preparar
companheiras que facilitarão os espaços do seminário. Nesse sentido,
para participar não basta apenas ter interesse pelo tema ou ser LGBT,
é necessária disponibilidade para seguir o cronograma de estudos e
compromisso com o compartilhamento do acúmulo em atividade
futura. (MML, 2017).

Conforme informações divulgadas pelo próprio MML, o funcionamento do


grupo se dá a partir de estudos teóricos e debates mensais, visando contemplar a
diversidade regional das participantes, sua disponibilidade para participação e
diferentes ramos de atividades de trabalho por elas desenvolvidas.
Consideramos ser uma iniciativa necessária aos movimentos classistas, na
perspectiva de conhecer e reafirmar a natureza diversa da classe trabalhadora,
particularmente das mulheres que a compõem, uma tarefa que desconstrói qualquer
entendimento engessado de classe, que a considere um grupo homogêneo, além de
um espaço interno que possibilite companheiras militantes lidarem com as
singularidades umas das outras, compreendendo o sentido da unidade na diversidade
para as lutas feministas cotidianas.
Foi também no ano de 2019 que este movimento fez um chamado às
mulheres brasileiras para construir a greve geral de 14 de junho e se posicionar contra
a Reforma de Previdência, antes de sua aprovação.
Intitulado A reforma da previdência é mais uma violência contra as mulheres”,
o convite é feito para ação de mobilização, no âmbito da luta de classes, cabendo
destacar alguns dos aspectos particulares para as mulheres, conforme pontuados no
cartaz de chamamento ao ato:

I) As mulheres ocupam os postos de trabalho mais precarizados, que


causam mais doenças e recebem os menores salários;
II) São as primeiras a serem demitidas e tem mais interrupções em
sua vida laboral seja para cuidar dos filhos ou de qualquer familiar
doente;
III) Por isso a maioria das trabalhadoras se aposenta por idade, já que
não conseguem acumular o tempo de contribuição;
IV) A reforma da previdência de Bolsonaro vai impor tanto o aumento
da idade quanto o tempo de contribuição para alcançar a
aposentadoria e os dois critérios serão obrigatórios;
207
V) O sistema de capitalização vai impor que só o trabalhador retire do
seu salário para pagar a aposentadoria, desresponsabilizando o
Estado e o patrão;
VI) Ao chegar à velhice, os trabalhadores não terão nenhuma certeza
do valor da aposentadoria;
VII) As trabalhadoras rurais, que trabalham de sol a sol, e da
educação, categoria majoritariamente feminina e adoecida, perderão
a aposentadoria especial;
VIII) A população mais carente e pobre, cuja maioria é composta por
mulheres terão o Benefício de Prestação Continuada – BPC, hoje de
um salário-mínimo, reduzindo a R$ 400,00;
IX) Além da restrição de acesso a vários benefícios como PIS, pensão
por morte, licença maternidade, etc;
X) Grandes empresas como JBS e Bradesco devem bilhões à
previdência. Todos os anos quase 40% do orçamento da União vão
para o pagamento da dívida pública. MML, 2019, S/P).

A mobilização para impedir ou reduzir impactos em torno da reforma da


previdência, por parte do movimento, articulado a outros movimentos de
trabalhadores, demonstra a posição classista do mesmo, ao mesmo tempo em que
denota a defesa dos direitos das mulheres trabalhadoras.
Em seus 13 anos de existência (desde 2008), o MML contribui
significativamente para ampliar o lugar das mulheres na central sindical à qual está
vinculado, a CSP Conlutas, ao Partido Socialista dos Trabalhadores Unificados –
PSTU e à sociedade brasileira, situando os desafios da desigualdade de gênero que
a caracteriza e, as consequências especificas para as mulheres.
Conforme apontado por Sousa (2018) em referência ao MML:

A defesa da ação direta e da mobilização coletiva são as formas


privilegiadas de luta para o movimento. Outras formas de luta podem
ser acionadas desde que estejam em acordo com os interesses da
classe trabalhadora e aprovadas pela base do movimento (a atuação
no parlamento, a luta jurídica, as negociações e acordos). Ainda estão
como princípios a autonomia frente aos partidos políticos e das
entidades de base que constroem o MML. A democracia e o respeito
à diversidade política no interior do movimento constituem-se como
fundamentos para a garantia do debate de ideias e a ação unitária do
movimento (SOUSA, 2018, p. 126). Grifos da autora.

Desse modo, o MML soma forças no enfrentamento à ascensão conservadora


no Brasil a partir de suas ações, com destaque para um foco maior no debate da
classe, não estando muito presente o debate racial e ações nesse campo.

208
Além das informações extraídas no blog do MML nacional, recorremos a uma
rede social do movimento para, a partir da divulgação de suas atividades, caracterizar
5 militantes que representaram o movimento em mesas, debates, formações: 1.
Assistente Social (SP); 2. Representante sindical (SP); Assistente administrativa (RJ);
Professora da Rede Municipal (RJ); Metalúrgica (SP).
Estamos diante de um movimento que também se expressa mais fortemente
na região sudeste, embora haja extensões em outros estados.

5.4 O COLETIVO FEMINISTA CLASSISTA ANA MONTENEGRO - CFCAM

Logo do Coletivo Fonte: site do CFCAM

Orgânico ao Partido Comunista Brasileiro – PCB, o Coletivo Feminista


Classista Ana Montenegro - CFCAM vem atuando desde 2005 nas distintas frentes
de lutas das mulheres e contribuindo com as lutas gerais da classe trabalhadora.
O próprio coletivo se define como feminista e classista, se colocando como
parte da classe trabalhadora, na qual:

O Coletivo se organiza na luta contra a opressão e exploração das


mulheres da classe trabalhadora, e constrói a luta pelo feminismo e
pela superação da sociedade de classes. Entendemos que as
demandas de gênero – pela emancipação das mulheres trabalhadoras
-, deverão tensionar o estado burguês, buscando a ruptura com o
capitalismo e com todas as suas formas de exploração, pautadas tanto
na divisão social de classes, quanto nas diversidades humanas.
(CFCAM, 2016, S/P)

209
O nome deste Coletivo é uma homenagem à lutadora comunista Ana
Montenegro (1915 – 2006), cearense de Quixeramobim, liderança da ocupação do
“corta-braço”, em 1947, em Salvador; participou da imprensa comunista de 1945 a
1964, período no qual adotou o sobrenome Montenegro em substituição ao seu
verdadeiro nome Ana Lima Carmo.
Por participar de outros movimentos como a União Democrática de Mulheres
na Bahia; Comitê Feminino de Mulheres pró Democracia; Liga Feminina da
Guanabara e Federação Brasileira de Mulheres, Ana se tornou referência de luta para
o movimento feminista classista, no qual o Coletivo Ana Montenegro se situa.
No tocante à atuação no âmbito da consubstancialidade sexo-raça-classe, o
coletivo afirma:

Nesse sentido, o Coletivo ratifica a sua linha estratégica com o


feminismo classista, ao entender que as relações sociais – de classe,
de gênero, de raça, de etnia – estão historicamente interligadas.
Estamos lado a lado com todos aqueles que lutam contra o Capital,
contra o Estado Burguês e contra o Machismo. (CFCAM, 2016, S/P).

A organização do Coletivo Ana Montenegro é por Estado, mas conta também


com um Núcleo Nacional, podendo sua incidência contemplar pautas internacionais,
nacionais ou locais, por isso, nossa análise se concentra mais no blog do Núcleo
Nacional, dada a impossibilidade de tempo para analisar todas as páginas do CFCAM
nos estados.
No Caderno de Teses do CFCAM, resultante de seu primeiro Encontro
Nacional, em 2015 conta que:

106. No Brasil, as mulheres negras, que estavam sendo escravizadas


pelos brancos e pela ideologia destes, já protagonizavam as lutas pela
abolição da escravidão. Mulheres como Dandara já participavam dos
processos de resistência e lutavam de acordo com que podiam para a
libertação das negras e negros. Dandara lutou contra o sistema
escravocrata, era contrária ao acordo de paz assinado entre Zumbi e
o governo português e foi morta no dia 6 de fevereiro de 1964 na
destruição da Cerca Real dos Macacos (parte do Quilombo dos
Palmares). Apesar de seu histórico de lutas seu rosto foi apagado dos
registros históricos, com o intuito de inviabilizar a sua trajetória e
impedir que novas lutadoras se reconhecessem nas suas batalhas e
enfrentamentos à ordem escravista. (CFCAM, 2015, p.19).

210
Com isso, esse Coletivo propõe destacar o protagonismo das mulheres nas
lutas por ele implementadas, ainda que homens possam se somar nas ações
estratégicas de mobilização.
Assim como os demais movimentos aqui apresentados, é constante a
participação do CFCAM nas atividades do Dia Internacional de luta das Mulheres – o
8 de março. Destacaremos a seguir algumas ações do Coletivo, levando em conta a
difusão ideológica, a formação e a mobilização, sobre gênero, raça e classe, embora
a consubstancialidade entre esses três aspectos possibilite articulá-las muitas vezes
em uma ação específica.
Também nos deteremos no contexto que compreende os últimos cinco anos,
quando avança o conservadorismo na conjuntura brasileira.
Em 2016, tratando da inconstitucionalidade da criminalização do aborto, o
CFCAM lançou um texto em seu blog, intitulado Pelo direito das Mulheres à vida, à
saúde, ao pão e ao trabalho, na qual afirmam que:

A criminalização do aborto é mais uma forma de controle sobre a vida


das mulheres trabalhadoras, principalmente sobre as mulheres negras
e pobres das periferias urbanas. A justificativa do direito à vida
expressa por setores religiosos mostra-se totalmente contraditória
quando analisados os números de mortes de mulheres devido a
abortos clandestinos. Estatísticas apontam que são realizados cerca
de 46 milhões de abortos anualmente em todo o mundo,
aproximadamente 160 mil por dia. (CFCAM, 2016, n. p.).

É explícito o posicionamento desse coletivo, em consonância com vários


movimentos feministas no Brasil e no mundo, de que a descriminalização e a
legalização do aborto são necessárias “pela vida das mulheres”. Tal posicionamento
revela um contraponto feminista ao conjunto de iniciativas da bancada evangélica no
Congresso, conforme destacamos no capítulo anterior, bem como endossa as ações
realizadas em defesa da liberdade das mulheres para interromper a gestação, em
vários países.
Em relação ainda à temática das mulheres, consideramos relevante a
formação interna realizada pelo Coletivo Ana Montenegro de Florianópolis sobre o
papel das mulheres na Revolução Russa, em março de 2017. Nesse momento:

211
Foram discutidos os avanços conquistados pelas mulheres na
sociedade soviética, como por exemplo, a descriminalização do aborto
e divórcio, a participação da mulher na política. Bem como questões
envolvem a igualdade de direitos e salários entre mulheres e homens.
Além disso, foram debatidos alguns eixos norteadores do feminismo
classista e suas particularidades em relação aos outros movimentos
feministas. (CFCAM, 2017).

Consideramos uma importante ação formativa, haja vista o alcance de


medidas importantes para as mulheres que foram possíveis naquele momento e que
estão no ideário dos movimentos feministas hoje. Em se tratando de um movimento
classista, é crucial remeter-se a luta de outras mulheres que somaram forças na luta
de classes, dando visibilidade às suas particularidades em um processo
revolucionário.
Comungamos de tal perspectiva, conforme publicamos em ocasião anterior,
na qual afirmávamos sobre as lutas das mulheres soviéticas que:

Ao conquistarem, por meio de reivindicações, o direito a postos


públicos de trabalho e o reconhecimento de suas necessidades, a
exemplo da legalização do aborto e de creches e escolas para os
filhos, as mulheres se inseriam enquanto sujeitos políticos partícipes
de um processo revolucionário, cujas reivindicações compunham uma
concepção de sociedade igualitária. (OLIVEIRA, 2017, p.17).

É, portanto, uma contribuição do feminismo classista ao longo da história, da


qual não podemos nos furtar de recuperar sua importância e sua contribuição, ainda
que em contextos substancialmente distintos.

Voltando à incidência do Coletivo Feminista Ana Montenegro, destacamos


outra ação de formação interna de suas militantes, o II Acampamento de Formação e
Organização na Bahia, realizado na cidade de Feira de Santana, nos dias 23 e 24 de
novembro de 2019.
Conforme matéria publicada pelo CFCAM:

Durante os grupos de trabalho, as camaradas encaminharam


proposições de ações, a exemplo da necessidade de ampliar o diálogo
com as mulheres trabalhadoras e estudantes, dentro dos seus
espaços de inserção. Ao final do encontro foi possível apresentar à
militância do estado da Bahia a recomposição da coordenação
estadual, com camaradas que foram agregadas na atual coordenação
212
e que chegam para somar na consolidação do Coletivo na Bahia.
(CFCAM, 2019, S/P).

Internamente, esse esforço de formação é um mecanismo importante para


combater as investidas antifeministas que vem encontrando espaço na política e na
sociedade brasileira, conforme já identificado desde 2015 nas resoluções do CFCAM,
onde consta que:

Vimos acompanhando o estabelecimento de uma lógica que visa


eliminar as discussões de gênero nos planos educacionais nacionais.
O estabelecimento da formalização do formato ideal de família, que
considera a heteronormatividade e mantém o patriarcado como
organização imediata da sociedade brasileira e que perpetua as
condições da violência doméstica e diminui os direitos das mulheres
em casos de divórcio. (CFCAM, 2015, p. 9).

Em consonância com as formações realizadas e com as emissões de seus


posicionamentos políticos, o CFCAM convocou suas militantes e ocupou as ruas do
Brasil em 29 de setembro de 2018, na marcha feminista denominada “#elenão”, em
oposição ao candidato à presidência Jair Bolsonaro naquela ocasião.

Consideramos que esse momento foi crucial na demarcação do antagonismo


entre feminismo e bolsonarismo, algo que já era evidente, mas em 29 de setembro de
2019 foi demonstrado de acordo com a capacidade de mobilização e intervenção
política das mulheres brasileiras em seus distintos espaços de atuação.
Por ocasião da mobilização feminista #elenão, o CFCAM divulgou em seu
chamado às ruas o seguinte posicionamento:

Cabe dizer que o dito candidato vem alimentando em seus discursos


preconceitos, machismo, homofobia e disseminado propagandas
inverídicas sobre os comunistas, as feministas e organizações da
classe trabalhadora, o que nesse momento conjuntural de escalada do
capital é bastante vantajoso para as classes dominantes. Nos últimos
dias, vários grupos de Mulheres contra o Bolsonaro surgiram nas
redes sociais, um deles com a presença de mais de três milhões de
mulheres, e junto a essa alavancada das mulheres, passaram a
aumentar as mais diversas manifestações com posicionamentos
contrários à candidatura do tal candidato, manifestações dos mais
diversos campos que compreendem tudo o que a figura de Bolsonaro
e sua possível vitória nas urnas representará para toda a classe
trabalhadora de nosso país. Contudo, também não esquecemos do
213
apassivamento em que a classe trabalhadora foi colocada nos últimos
anos e dizemos não à conciliação de classes. Está na hora da virada!
(CFCAM, 2018).

Diante da eleição de Bolsonaro, certamente a resistência ao processo de


desmonte dos direitos, ao conservadorismo e ao antifeminismo tende a crescer por
parte do feminismo, mantendo a linha ideológica do 29 de setembro de 2018. Nesse
contexto, destacamos também a mobilização e participação no segundo breque dos
app, realizado dia 25 de julho de 2020, data que marca o Dia Internacional da Mulher
Negra Latino-americana e Caribenha.

Sobre a participação das mulheres do CFCAM nesse ato, o coletivo entende


que:

A conjunção desses dois eventos na mesma data simboliza a luta e


resistência da nossa classe no combate às opressões e por melhores
condições de vida e de trabalho. Os entregadores de aplicativos,
homens e mulheres, majoritariamente negros, são a expressão mais
dura do que é precarização do trabalho. (CFCAM, 2020).

A partir dessa afirmação, situamos a consubstancialidade das relações entre


classe, raça e gênero na concepção e nas ações políticas deste coletivo, embora seja
importante destacar ainda duas ações mais específicas tratando da questão de
raça/etnia.
A primeira delas trata-se de difusão ideológica de um texto da militante Larissa
Gouveia, publicado em 04 de novembro de 2017 na página do Coletivo, intitulado Toda
Mulher Negra é um Quilombo. O texto alude ao mês de novembro, como mês da
consciência negra, mais especificamente o dia 20 de novembro. A autora reflete sobre
o sentido da quilombagem enquanto prática coletiva de resistência negra. Para ela o
quilombo expressa acima de tudo um lugar de organização para a superação da
opressão racial, posto que:

Foi um movimento de rebeldia permanente, organizado e dirigido


pelos escravizados em todo o território nacional, de combate a uma
forma de trabalho contra a qual se voltava o próprio sujeito que a
sustentava. O Quilombo é o seu centro organizacional de rebeldia,
revolta, não-passividade e negação desse sistema de exploração-

214
opressão por parte dos oprimidos. Ou seja, o quilombo era a unidade
básica de resistência do escravizado. (GOUVEIA, 2017).

Para ela, as relações raciais na atualidade e os desafios impostos


cotidianamente para a população negra pressupõem uma resistência no sentido do
aquilombamento, visando resistir às atuais práticas de opressão e de exploração
racial. Por isso ela afirma que:

O Quilombo é a resistência da população que leva baculejo em revista


policial, que é seguida em lojas, que sofre assédio no local de trabalho,
que enfrenta a precarização da educação pública e o sucateamento
dos hospitais nos bairros. O Quilombo são as mulheres e homens que
dão o sangue e o suor para criar seus filhos e tentar salvar essa
Juventude da ”guerra as drogas” e da violência do aparato militar,
muitas vezes sem nem se dar conta que tudo faz parte do projeto
eugenista de higienização social arquitetado pelas contradições da
sociedade dividida em classes. (GOUVEIA, 2017).

Importante destacar que muitas das atuações do Coletivo Ana Montenegro


em relação à pauta racial, se dão conjuntamente com o Coletivo Negro Minervino de
Oliveira, atuante na questão do negro dentro Partido Comunista Brasileiro.
A segunda ação desenvolvida é também de difusão ideológica de matéria
intitulada A brutalidade do racismo, na qual destaca os dados exorbitantes de mortes
de pessoas negras, seja pela polícia, seja por crimes civis motivados por racismo,
repudiados por este coletivo.
Na referida nota, em referência a algumas dessas vidas perdidas, o CFCAM
demonstra sua indignação ao afirmar:

Perdemos João Pedro, vítima de operações policiais enquanto


brincava com os primos, perdemos Iago, também na mesma
operação, perdemos João Pedro enquanto entregava cestas básicas
para famílias da comunidade em que ele morava. Eles se somam as
crianças e jovens negras e negros que não terão seus sonhos
concretizados e carregam as marcas do racismo que ameaça a vida
das famílias que temem a vida de seus filhos, enquanto precisam
garantir sua sobrevivência. (CFCAM, 2020, S/P).

Por ser o ano em que eclodiu a pandemia do COVID-19 no Brasil, 2020


revelou várias expressões das desigualdades vivenciadas pelas mulheres da classe

215
trabalhadora mais precarizada, em sua maioria negras. Um caso emblemático foi a
morte da criança Miguel em Recife, cuja mãe Mirtes, trabalhadora doméstica para uma
família de classe alta, precisava levá-lo ao trabalho diante das circunstâncias de
isolamento social, que implicou o fechamento das escolas.
Especificamente sobre o caso Miguel, o CFCAM se posicionou na nota
supracitada com o seguinte trecho:

O racismo estrutural é imposto à população negra desde seu


nascimento até os últimos momentos de suas vidas, infligindo um
permanente processo de violência que se materializa das mais
variadas formas. Miguel em seus cinco anos de vida com certeza
precisou ser privado da afetividade da mãe para que a mesma
pudesse te garantir uma casa, alimentação e saúde. Mulheres pretas
seguem trabalhando nessa pandemia, nos feriados e nas
madrugadas, cuidando dos filhos das brancas, que às vezes até lutam
pelo empoderamento da mulher e esquecem da cuidadora de seus
filhos que foi transformada em propriedade da família, assim como
suas filhas. Como foi o caso de Mirtis, mãe de Miguel, que é neto de
outra mulher que trabalhou para a família Côrte Real. (CFCAM, 2020,
n. p.).

Diante dos desafios que a pandemia impôs à organização coletiva, a matéria


contra o racismo, considerando sua dimensão estrutural, demonstra um importante
aspecto da luta das mulheres do Coletivo Ana Montenegro, seu repúdio à reprodução
das relações raciais estabelecidas no caso em destaque, bem como o apoio à
trabalhadora Mirtes, mais uma mãe submetida à exploração e à opressão
classe/raça/gênero.
Em suas ações ideopolíticas, o CFCAM se posiciona na perspectiva da
superação das relações desiguais entre classe, raça e gênero, consoante às
resoluções do seu Encontro Nacional, em 2015, quando, atentas à conjuntura de crise
internacional e nacional, as mulheres do CFCAM dispõem em tese que:

41. As trabalhadoras precisam se organizar para enfrentar nas ruas


esse ataque aos seus direitos. É tarefa do Coletivo Feminista Classista
Ana Montenegro participar ativamente dessa organização. E levar as
principais bandeiras, históricas e atuais, da mulher trabalhadora, tendo
como horizonte a superação do capital e construção de uma
sociedade emancipada. (CFCAM, 2015, p.9).

216
Se somando às lutas pelos direitos que estão destituídos e ameaçados no
atual contexto de ataques, o Coletivo Ana Montenegro vem se expandindo no Brasil,
contando atualmente com diversos Núcleos pelos estados: Nacional; Alagoas;
Amapá; Amazonas; Bahia; Distrito Federal; Goiás; Mato Grosso; Minas Gerais (Belo
Horizonte, Ipatinga, Juiz de Fora, Poços de Caldas, Uberaba e Uberlândia); Paraná
(Curitiba, Foz do Iguaçu, Londrina); Pernambuco (Vale do São Francisco); Rio Grande
do Sul (Alegrete, Caxias do Sul, Pelotas, Porto Alegre); Rio de Janeiro (Petrópolis);
Rio Grande do Norte (Natal); São Paulo (Campinas, Santos); Santa Catarina e
Sergipe.
Conforme análise de atividades divulgadas nas redes sociais do Coletivo
CFCAM nacional, elencamos 5 militantes cujas funções e estados são: Pedagoga
(SP); Estudante de pós-graduação (BA); Doula (MG); Professora Ensino Superior
(MT); Bióloga (SP).
A diversidade de estados nos quais os núcleos se concentram está refletida
na amostra que elegemos acima.

5.5 A RESISTÊNCIA FEMINISTA

Logo do Movimento Resistência Feminista


Fonte: página do twitter do Movimento

Essa é a mais recente das organizações aqui estudadas, surgida há apenas


um ano, atenta às últimas questões da conjuntura, ampliando o conjunto dos sujeitos
que se mobilizam contrários ao recrudescimento do conservadorismo.

O grupo é composto por mulheres de todas as regiões do país, de várias


gerações e experiências junto aos movimentos sociais, que viram a
escalada autoritária crescer e protagonizaram lutas importantes, como
o Fora Cunha, em denúncia aos retrocessos de Marco Feliciano; a

217
primavera feminista, em 2015; a luta em memória e cobrando respostas
sobre o assassinato de Marielle Franco e, mais recentemente, o
movimento #EleNão, em oposição ao atual presidente da República,
Jair Bolsonaro, e a performance latino-americana “Estuprador és tu”,
entre outras atividades feministas. (RESISTÊNCIA FEMINISTA, 2020).

Cabe destacar que mesmo com uma denominação específica enquanto coletivo
apenas em 2020, a Resistência Feminista sucede importantes momentos de luta, nos quais
as mulheres protagonizaram suas diversas lutas, que persistem e se ampliam no contexto
atual, conforme explicitado acima.
O coletivo Resistência Feminista está internamente organizado na corrente
Resistência do Partido Socialismo e Liberdade – PSOL e no manifesto de seu lançamento,
em que se autodenominaram anticapitalista:

Nós, mulheres da Resistência Feminista, acreditamos que apenas o


engajamento organizado das ativistas brasileiras poderá dar respostas
à altura das ameaças que a extrema-direita personificada neste atual
governo propaga. Por isso, muitas de nós, impulsionadoras desse novo
movimento, está hoje nas fileiras no PSOL. Ao mesmo tempo,
acreditamos que nossa experiência de organização precisa, antes de
tudo, estar enraizada onde vive a maioria das mulheres brasileiras: nos
bairros, nos locais de trabalho, nas escolas e universidades. É nestes
espaços que a Resistência Feminista pretende organizar seus núcleos,
reuniões e plenárias para a construção coletiva e democrática das lutas.
(RESISTÊNCIA FEMINISTA, 2020).

Situamos a preocupação de estar nos diversos espaços de vivência das


mulheres como uma preocupação, a partir da perspectiva da consubstancialidade
classe, raça e gênero, que são enfrentadas cotidianamente por parte significativa das
mulheres trabalhadoras.
Nesse sentido, as ações desenvolvidas, organizadas e difundidas pela
Resistência Feminista que destacaremos aqui estão compreendidas de março de
2020 até junho de 2021, por se tratar de um curto período desde seu lançamento e
ainda marcado pela pandemia de Covid-19.
Segundo o seu manifesto de lançamento, a Resistência Feminista propõe
articulação entre as lutas das mulheres e outras lutas nesse contexto de regressão de
direitos. Conforme expresso:

Apostamos também que o calendário feminista no ano deve ser


mais do que a simples formalidade de datas anuais. Queremos
218
ser parte daquelas que impulsionam essas datas como
enfrentamentos enérgicos aos ataques aos nossos direitos, mas
não só aqueles que tradicionalmente são parte da agenda
feminista. Queremos ser parte daquelas que enxergam o
feminismo como a defesa dos direitos de toda a classe
trabalhadora e dos seus setores mais oprimidos, e que é atuante
o ano inteiro nessas lutas. (RESISTÊNCIA FEMINISTA, 2020).

É tendencial que os movimentos feministas classistas começam a se inserir


em organizações de luta da classe trabalhadora, como partidos e sindicatos nas duas
últimas décadas, revelando que os espaços para as mulheres são crescentes, em
função da necessidade de refrear retrocessos e contribuir por uma cultura
progressista, além de enfrentar o patriarcado mesmo em espaços ditos de luta e
democráticos.
Ainda em março de 2020, a Resistência Feminista lançou matéria importante
sobre o contexto da pandemia e as mulheres, intitulada A Progressão da Pandemia e
seus efeitos na vida das Mulheres Trabalhadoras, na qual trata do avanço do Corona
Vírus no Brasil não apenas como uma dimensão sanitária, mas também como
consequência mediata da “incapacidade do capitalismo e de seus agentes neoliberais
de apresentar respostas concretas que atendam às necessidades dos mais pobres e
do conjunto da classe trabalhadora” (ALVES; MENDES, 2020).
Identificamos também nessa nota uma análise de conjuntura que rebate com
particularidades na vida das mulheres negras, conforme consideram as autoras da
matéria:

Com a crise sanitária provocada pela pandemia do novo coronavírus,


esta realidade da mulher, mais sentida pelas negras desse país, será
inevitavelmente agravada. Aquelas que ocupam as fileiras de
desempregados permanecerão por mais tempo à espera de
recolocação no mercado formal de trabalho, e as que já ocupam os
postos, principalmente as terceirizadas e trabalhadoras domésticas
serão, se forem, as últimas dispensadas para que cumpram o
isolamento social e salvem suas vidas e ajudem a proteger as das
pessoas próximas. (ALVES e MENDES, 2020).

De fato, sabemos o quanto a pandemia trouxe desafios para as mulheres, seja


porque elas precisaram intensificar os trabalhos e os cuidados domésticos no período
em que os membros da família necessitaram atender às medidas sanitárias de
219
isolamento; sejam por não alcançar o direito ao cumprimento de quarentena,
continuando sua jornada de trabalho (trabalhadoras da saúde, trabalhadoras
domésticas e desempregadas em busca de oportunidades) ou tendo que conciliar as
tarefas da casa com o trabalho remoto; além de uma maior exposição aos conflitos
que expressam os diferentes tipos de violência doméstica.
Nesse sentido, retomamos outro trecho da matéria em análise, quando as
autoras afirmam que:

Vemos todos os dias divulgadas pela grande mídia, medidas


importantes de contenção para amenizar a propagação do coronavírus,
a qual a mais importante é o confinamento em casa, porém sabendo do
número absurdo de casos de mulheres agredidas psicológica, física e
sexualmente dentro dos lares, é criminosa a omissão dos governos ao
não tocar em nenhum momento no tema da violência doméstica, não
reforçando ou anunciando planos, serviços e medidas que assegurem
total proteção às mulheres que sofrem com a violência doméstica.
(ALVES e MENDES, 2020).

Enquanto pauta constante da Resistência Feminista, a violência contra a


mulher foi abordada em nova matéria também em março de 2020, intitulada Corona
Vírus e a vida das mulheres: a necessidade da quarentena e o medo da violência
doméstica, de autoria de Tatianny Araújo, que relaciona a tendência ao agravamento
da violência doméstica ao contexto de crise do capital e da ausência de medidas
efetivas de combate à violência doméstica.
Como já abordado no capítulo anterior, a atuação política de sujeitos
antifeministas aliada às posturas patriarcais do atual governo brasileiro culmina em
novos desafios para a incidência ideopolítica feminista, conforme afirmado na nota:

Se temos uma ministra que fala que rosa é de menina e azul é de


menino, sabemos bem a quem vai recair todos os afazeres domésticos
no período. E isso leva a exaustão e a conflitos. A Ausência do debate
de gênero e sexualidade nas escolas, vai acentuar a dura realidade de
ser mulher no Brasil, desde a questão da responsabilidade com os
afazeres domésticos e cuidados com os adoecidos, ao problema da
violência contra meninas e mulheres! No caso dos estupros, os
abusadores são em sua maioria pessoas com relação com a vítima –
quantas mulheres estão saindo de casa para trabalhar durante a
pandemia, seja por ser da saúde, ou atendentes de mercados, ou
pessoas da limpeza? E com quem ficam suas crianças? E os estupros
de mulheres casadas na negativa de sexo neste período? E os relatos
de homens que impedem suas companheiras de usarem
220
contraceptivos, como farão para não engravidar? A falta de prevenção
e de combate à cultura do estupro, a ausência de direitos sexuais e
reprodutivos – da justiça reprodutiva – em nosso cotidiano nos
demonstrará agora sua pior faceta! (ARAÚJO, 2020).

Politicamente, reconhecemos que o movimento feminista e, particularmente,


a Resistência Feminista no PSOL cumprem um papel central nas lutas demandadas
nesse contexto de recrudescimento conservador e de avanço dos desafios para as
mulheres durante a pandemia do COVID-19, com todos os agravantes elencados na
citação acima.
Para enfrentar a conjuntura adversa no ano de 2020, a Resistência Feminista
participou ativamente do Levante Virtual das Mulheres e assinou o Manifesto lançado
em 14 de junho, denominado Mulheres derrubam Bolsonaro. Em nota em que alerta
para a importância da sua inserção nessas duas mobilizações e convoca para o ato
virtual, a Resistência Feminista afirmou que: “Nós, da Resistência Feminista, junto com
mais de 100 companheiras de dezenas de espaços políticos e estados diferentes,
assinamos esse manifesto feminista e participaremos do Twittaço e da live do levante”
(Resistência Feminista, 2020).
Podemos citar aqui um trecho do referido Manifesto no qual se identifica a
direção classista, feminista e antirracista do conjunto de movimentos que o lançaram,
compartilhada pela Resistência Feminista naquela ocasião:

Os impactos da pandemia não são iguais para todas, todes e todos.


Mulheres negras e pobres, trabalhadoras informais, domésticas e as
que estão na ponta dos serviços essenciais de saúde têm sua condição
agravada, pois muitas vivem em moradias precárias em favelas e
comunidades, sem água e esgoto, e sem acesso à saúde pública. Estão
nas ruas batalhando pelo sustento da família e enfrentam a lida da casa,
os cuidados com as crianças, idosos, doentes e parentes encarcerados.
Essas mulheres perdem seus filhos, irmãos e netos para a brutalidade
policial, pautada em uma política de segurança pública equivocada.
(RESISTÊNCIA FEMINISTA, 2020).

Manter a resistência diante de um contexto histórico que por um lado acentua


as desigualdades enfrentadas pelas mulheres trabalhadoras e por outro limita a
atuação política pela necessidade concreta do isolamento social é uma forma do
movimento feminista revelar-se atento, forte, atuante e dar uma contribuição na
221
perspectiva da ruptura com o conjunto das medidas arbitrárias e irresponsáveis
dispensadas pelo governo de Bolsonaro.
O negacionismo quanto às comprovações científicas da gravidade do vírus
SARS COVID, as afirmações presidenciais de analogia à gripe, a insistência em
tratamentos considerados “precoces” com medicações sem comprovação, impôs ao
Brasil uma condição de país com maior número de mortes e alto índice de contágio.
Além disso, a falta de interesse pela vacinação massiva como alternativa para
enfrentar as duras consequências que envolvem um caos no Sistema Único de Saúde,
com lotação de leitos, aceleração do número de mortes e condições adversas do
trabalho em saúde, alastra as difíceis condições em que as mulheres vem
sobrevivendo, além de impulsionar novas estratégias coletivas de resistência.
Destacamos nesse sentido uma outra matéria intitulada Por que são as
mulheres que vão derrubar Bolsonaro? publicada em julho de 2020, de autoria de
Martina Gomes e Silva Ferraro, na qual elas afirmam o seguinte:

O presidente não apenas é indiferente as quase 60 mil mortes


contabilizadas oficialmente com o famoso “e daí?”, como também
inúmeras vezes justificou o aumento da letalidade policial nas periferias
brasileiras e o aumento da violência doméstica sobre as mulheres em
tempos de covid-19 como fatos naturais.
Portanto, os alvos deste presidente, que somos nós: maioria dos
brasileiros, não iremos descansar até a saída desse presidente
genocida, racista e misógino. Se depender do Levante de Mulheres
Brasileiras e dos movimentos sociais do país #EleCai. E hoje, dia 2 de
julho, iremos entregar um manifesto com mais de 40 mil assinaturas de
feministas, ativistas dos movimentos sociais e personalidade da cultura
e da política que se unem para dizer um verdadeiro basta a essa
situação. #MulheresDerrubamBolsonaro é um movimento que segue
tomando a dianteira e organizando um dos principais movimentos
políticos em tempos de recrudescimento do regime e piora da situação
de vida no país. (GOMES; FERRARO, 2020, S/P., grifos das autoras).

Nessa perspectiva de articulação a outras demandas da classe, dando


relevância às demandas específicas das mulheres, o feminismo se expande, se
autoafirma como sujeito necessário às lutas anticapitalistas e antirracistas, sobre as
quais trazemos aqui duas ações específicas.
Na matéria Sempre Gritamos “Vidas Negras Importam”: entrevista com a
ativista Buba Aguiar, de autoria de Mariana dos Reis Santos, publicada em junho de

222
2020, está demarcado o posicionamento antirracista da Resistência Feminista quando
a mesma afirma sobre os caminhos da luta antirracista no Brasil:

Balizando com o contexto atual frente ao governo Bolsonaro vigente,


analiso que clamar por democracia, é antes de tudo reivindicar pela
igualdade racial. Caso a luta racista não seja prioridade num
movimento político que se constitui como democrático,
consequentemente naturalizaremos neste projeto de sociedade: o
crescimento da população negra no cárcere, de jovens negros
executados pela polícia e de espaços de poder e instituições dominados
pela branquitude. Por isso a luta anti fascista deve ser antes de tudo anti
racista também, uma vez que uma das faces do projeto político do
fascismo foi o racismo. (SANTOS, 2020, S/P).

Nessa mesma direção vai a afirmação da ativista entrevistada, quando


perguntada sobre o isolamento social e afirmou:

É isso, não temos direito às medidas de prevenção completa. Nenhuma


medida foi pensada para contemplar o povo pobre, já começando pelo
acesso à água e terminando no direito à saúde de qualidade. Diante do
aumento expressivo das mortes em operações policiais ficou incabível
continuarmos fazendo ações sociais somente nos nossos territórios,
tivemos de tomar as ruas. Pra mim foi uma mistura de sentimentos, a
maior parte ruins. Inaceitável que em meio à uma pandemia mundial a
gente tenha que ir as ruas protestar por mortes em decorrência de
ações policiais. Na primeira manifestação inclusive chorei… isso é
incabível. Beira ao surreal. (AGUIAR, 2020).

A realização de atos e mobilizações nas ruas de todo o Brasil em um período


que ficar em casa parecia ser sinônimo de segurança revela as estratégias coletivas
de resistência classista, feminista e antirracista, reivindicativas e denunciadoras das
reais condições que a população negra brasileira se encontra.
Uma outra matéria importante publicada já em 2021 foi Julho das pretas: Para
o Brasil Genocida Mulheres Negras apontam a Solução!, de autoria de Brenda
Marques, em que ela trata da agenda das mulheres negras para o mês de julho, diante
do COVID, da fome, das mortes decorrentes do descaso do governo, do sexismo e
do racismo estrutural. Para ela:

É diante desse cenário que estamos iniciando o mês de julho, onde o


movimento de mulheres negras constrói o “Julho das Pretas”, uma
agenda política conjunta, com debates a partir do que significa ser uma
223
mulher negra no Brasil e propostas de mudanças políticas a partir do
combate ao racismo e sexismo. Neste ano o julho das pretas está na
sua 9ª edição com o tema geral: Para o Brasil Genocida, Mulheres
Negras apontam a Solução! A intenção do tema é denunciar o
genocídio da população negra brasileira, em curso há muito tempo, e
intensificado durante a pandemia da covid-19 e ao mesmo tempo
apontar que para as soluções a serem construídas de mudança desta
situação de precarização, desgoverno e a naturalização de absurdos
racistas, misóginos e patriarcais que estruturam o capitalismo, as
mulheres negras têm um papel central. (MARQUES, 2021, grifos da
autora).

Portanto, por todas as ações aqui destacadas, afirmamos que há uma


resistência ao conservadorismo por meio de uma disputa ideopolítica feminista,
inserida nas lutas sociais antipatriarcais e antirracistas.
A tendência que se coloca é de fortalecimento das lutas em defesa da
democracia, para refrear o processo de destituição de direitos em curso e disputar o
Estado por políticas públicas, havendo forte incidência da pauta racial no interior
desse movimento, a despeito de seu pouco tempo de existência e da articulação
sempre destacada com as lutas sociais mais gerais.
No tocante ao quadro profissional das militantes, a nossa amostra a partir a das
identificações nas postagens do sítio do Movimento no site do jornal esquerda online,
revelou: Jornalista (RJ); Professora (CE); Professora universitária (RJ); Professora
ensino médio (SP); Professora ensino básico (PE).
É evidente a capacidade organizativa nos maiores e mais numerosos estados,
embora se encontre um núcleo fora do eixo sudeste.

5.6 SÍNTESE ANALÍTICA DAS CONFLUÊNCIAS E DIVERGÊNCIAS DOS


SUJEITOS DO FEMINISMO

O ponto em comum que nos chamou atenção dos movimentos aqui


destacados é, como já destacamos, sua articulação com outros sujeitos coletivos de
interesse da classe trabalhadora, o que nos apresenta nesse contexto como um
aspecto inovador, tendo em vista que mesmo que possamos constatar a inserção das
pautas de gênero e de feminismo no interior de sindicatos, partidos e movimentos
mais amplos, essa incidência mais programática e orgânica por parte das próprias
militantes aponta para a ruptura de padrões historicamente masculinizados. Ao nosso
224
ver, é uma forma de revirar as estruturas internas, estimulando a ocupação de novos
lugares de poder para as mulheres.
Enquanto as ações de mobilização e participação em atos, bem como a
divulgação de notas e matérias revelam uma intervenção mais externa, a formação se
apresenta como uma forma de manter a unidade de pensamento e ação feministas
no interior das organizações a que se vinculam.
Destacamos, nesse sentido, quatro exemplificações de como aparece a
preocupação das mulheres em sua organização política e incidência nos movimentos
aqui elencados.
As militantes do Movimento Mulheres em Luta, Patrícia Tropa e Priscila de
Carvalho, destacam em artigo sobre a atuação do MML na esquerda classista,
apontam em relação ao I Encontro de Mulheres da CSP Conlutas, em 2012 que:

O MML também defendia a realização de campanhas que visassem à


inclusão das datas históricas das mulheres no calendário da CSP
Conlutas, tais como o 8 de março – dia internacional de luta das
mulheres trabalhadoras; o 25 de julho – dia latino-americano da
mulher negra; o 28 de setembro – dia latino-americano de luta pela
legalização e descriminalização do aborto; 25 de novembro – dia latino
americano de luta contra a violência às mulheres. Ademais, caberia à
CSP Conlutas assumir as campanhas “Trabalho igual, salário igual” e
a “Campanha Nacional por creches” (CARVALHO; TROPIA, 2015,
S/P).

No nosso ponto de vista, ao inserir as pautas gerais feministas no interior da


central sindical à qual está vinculada, ao se organizarem por dentro dessa
organização e reivindicarem suas bandeiras particulares dentro da agenda de lutas
mais amplas, as mulheres do MML avançam em relação ao reconhecimento da
dimensão de gênero como componente da classe trabalhadora.
De tal modo, as participações desse movimento nas mobilizações e atos das
mulheres pelo Brasil, a partir de uma perspectiva de luta por direitos das mulheres
trabalhadoras, retroalimenta efetivamente a perspectiva classista e antirracista das
questões referentes às desigualdades nas relações sociais de sexo.
Tomamos como exemplo a participação desse movimento na Plenária Nacional
de Mulheres, que aconteceu na modalidade virtual, para organizar o Dia Nacional de
Mobilização das Mulheres Bolsonaro Nunca Mais, ocorrido dia 04 de dezembro do
mesmo ano.
225
Em nota sobre a Plenária, a Resistência Feminista afirmou que:

Ressaltando que a iniciativa dessa data, o protagonismo, é das


mulheres, mas somente seremos vitoriosas nessa tarefa se o conjunto
dos lutadores entenderem que é mais um dia de luta pelo fora
Bolsonaro, ou seja, se também entrarem com seriedade nessa
organização. Portanto, é urgente que as frentes feministas estaduais
e as frentes fora Bolsonaro também se reúnam para as deliberações
necessárias para fazer o ato existir. Está sendo finalizado um
manifesto nacional reforçando a importância desse próximo dia de
luta. (RESISTÊNCIA FEMINISTA, 2021, S/P).

Evidencia-se a incidência política feminista junto ao Partido a que esse


movimento está inserido, contribuindo para a transformação das relações desiguais
nesse espaço, a partir de um diálogo com espaços maiores e coletivos na sociedade,
seguindo com a participação nas diferentes mobilizações em defesa da vida e contra
o conservadorismo do governo brasileiro, seus ataques ao conjunto dos trabalhadores
e às mulheres.
O que inferimos a partir dessas ações internas e externas dos movimentos é
que há uma sintonia nas pautas (por direitos, contra as opressões, fora Bolsonaro),
ambos voltados internamente ao fortalecimento de seus princípios e constância nos
posicionamentos e diálogos, além de somar forças em atos coletivos, com a
centralidade das pautas das mulheres, seja em datas emblemáticas, seja em
momentos mais espontâneos, a partir dos acontecimentos políticos que inquietam
sujeitos coletivos de luta.
Já as divergências existentes, conforme nos foi possível extrair dos elementos
analisados, elas são mais metodológicas - da forma como incidem, do que política -
uma vez que as pautas são mais comuns.
Então, ao pesquisa nos blogs e redes sociais (já mencionados), apreendemos
que a incidência, por exemplo da resistência feminista, por ter representatividade - por
menor que seja - no parlamento, por meio do partido a que pertence, consegue pautar
em plenário questões como enfrentamento à violência; denúncias de opressões
diversas; destinação de recursos via emendas parlamentares, alcançando um plano
mais concreto e mais organizado em termos de execução das pautas.
Já os demais, possuem um peso reivindicativo amplo, mas a sistemática de
organização extrapola, por exemplo, um projeto, um documento elaborado e assinado

226
coletivamente, estando mais soltos, aliados às lutas dos sujeitos aos quais estão
vinculados.
Como sabemos, a esquerda brasileira aos quais esses sujeitos estão ligados,
por exemplo PCB, PSTU e MRT, não alcançam o espaço que o PSOL ocupa,
enfrentando os desafios de: não se configurarem como massivos, o que reduz, em
tamanho, a expressividade desses movimentos; além de não ocuparem
homogeneamente o território brasileiro.
Então vamos ter, por exemplo, uma expressão do Pão e Rosas e do MML
mais focada no sudeste e Sul do país, enquanto Ana Montenegro e Resistencia
Feminista tem mais capilaridade em termos de interiorização.
Além disso, a relação classe-raça-gênero é impressa de formas distintas em
cada movimento, com suas dinâmicas particulares e articuladas de acordo com suas
possibilidades.

227
6 CONSIDERAÇÕES FINAIS

Compreender a totalidade como concepção epistemológica


central e as ideologias como formas fundamentais da
contradição em processo, analisar o real e construir os
conceitos que o explicam, e não simplesmente os descrevem
e legitimam, é garantir a possibilidade de uma intervenção
rigorosa na totalidade social a partir da qual as
transformações da sociedade é uma possibilidade real.

(DIAS, 2006, p. 58-59)

6.1 REVELAÇÕES DO CAMINHO DE VOLTA

A menção a Dias (2006) acima nos convence de que, enquanto um sujeito


histórico particular, o movimento feminista classista e antirracista colabora para as
lutas sociais, com vistas a uma transformação das relações sociais desiguais,
ressalvando as condições das mulheres nas relações capitalistas, patriarcais e
racistas.
O contexto dos anos 2000, no qual as tensões que perpassam as lutas
feministas seguem seu curso, aponta para novas formas de organização, dentre elas
a vinculação das demandas das mulheres a organizações como partidos, centrais
sindicais e movimentos mais abrangentes, conforme foi possível identificar nas duas
últimas décadas, período em que surgem os movimentos aqui analisados.
Destarte, o fenômeno do qual partimos em 2015, a primavera feminista e o
enfrentamento ao conservadorismo político naquele momento, se desdobra em novas
lutas, rebatendo a ascensão conservadora aqui expressa em sujeitos políticos –
também resultantes da reprodução das relações sociais nos anos 2000 - que tendem
a deslegitimar e tensionar valores e práticas presentas nas lutas por liberdade e
direitos.
As interposições analíticas que elaboramos no percurso que possibilitou
extrair novos elementos na apreensão do elemento do qual partimos, recuperam
mediações e contradições ainda que parciais, a partir das quais nos aproximamos das
determinações que incidem sobre as disputas entre o movimento feminista e os
movimentos conservadores no Brasil contemporâneo.

228
A crise do capital em curso e seus rebatimentos na realidade brasileira
impõem limites à efetividade das políticas para as mulheres, mesmo diante de alguns
avanços no tocante ao atendimento à uma agenda feminista em curso, que na primeira
década do século XXI alcançam uma inserção de suas reivindicações em órgãos
governamentais, como Coordenadorias e Secretarias Especiais.
Entretanto, inseridas no contexto de ajustes fiscais e de interesses de
mercado, as políticas para as mulheres acompanham uma agenda social-liberal
formal, cujas ideologias que identificamos as direcionam para o campo do
empreendedorismo e do empoderamento, resultantes dos planos sociais elaborados
a partir dos Organismos Internacionais com objetivos mercadológicos.
Reside nesse contexto as inquietações motivadoras para o surgimento de
novos sujeitos do feminismo, que vão questionar os limites institucionais impostos à
efetivação de direitos já reconhecidos da classe trabalhadora, especialmente a
conciliação de classes, operada a partir de 2003, com crescimento da direita até a
segunda década.
A direita que propunha o Projeto de Lei nº 5069/2013, um dos elementos
impulsionadores do levante feminista pouco difere da direita conservadora que apoia
a eleição de Bolsonaro em 2018. Aqui já residia aspectos que interseccionam o
liberalismo e o conservadorismo, conforme foi caracterizado por Biroli (2017).
Essa apreensão dos mecanismos políticos sociais e ideológicos que se
unificam a partir do fortalecimento da direita nos é indispensável para entender como
o conservadorismo consegue se legitimar a ponto de servir de base moral para o golpe
institucional e midiático contra o mandato da presidência Dilma em 2016, a partir de
quando o Conservadorismo ascende ainda mais, em consonância com o acirramento
do desmonte de direitos.
De tal modo, os desafios que circundam as lutas feministas no Brasil da
primeira década para a segunda dos anos 2000 consistem em lutar pela defesa de
direitos, razão pela qual, no nosso entendimento, os movimentos que analisamos
partem de uma ação em conjunto com outros sujeitos coletivos, aliados à luta geral
da classe trabalhadora contra os ataques aos direitos em curso.
Cabe retomar aqui a nossa apreensão de que o Conservadorismo político no
Brasil, se particulariza pelo caráter histórico de um país cujas relações de exploração
e dominação combinam aspectos históricos tradicionais, de base escravista e

229
economicamente dependente, em aliança com os interesses conservadores mundiais
contemporâneos, que alcançam bastante legitimidade no século XXI.
Demonstramos que há uma base patriarcal sobre a qual o conservadorismo
se afirma e se expande, de tal modo que os desmontes de direitos operados,
sobretudo na segunda década dos anos 2000, incidem de modo particular na vida das
mulheres da classe trabalhadora, tendendo a desconsiderar as desigualdades que
elas vivenciam cotidianamente. Podemos apontar aqui a reposta para o seguinte
objetivo: Analisar as principais tendências ideopolíticas que sustentam as políticas e
programas voltados aos direitos mulheres a partir dos anos 2000;
Sob essa perspectiva, inferimos que as contrarreformas trabalhista e
previdenciária, por exemplo, intensificam as consequências da divisão sociossexual
do trabalho, rebaixando ainda mais os salários, apelando para atividades de tempo
parcial e reduzindo a possibilidade de acesso a direitos como licença maternidade e
tempo de amamentação, exclusivo das mulheres.
Dada a consubstancialidade classe-raça-gênero, reafirmamos as
particularidades inerentes às mulheres negras nesse contexto, muitas delas ainda não
podendo se afirmar enquanto sujeito de direitos e tendendo a se distanciar mais ainda
dessa condição, frente à austeridade das políticas sociais e à guerra antidireitos.
Se por um lado, a investida antidireitos operada pelas forças políticas
dominantes nos anos de 2011 a 2020 comporta uma aliança entre os representantes
políticos do neoliberalismo (bancada ruralista, políticos empresários, mediadores da
indústria armamentista), sua consolidação se sustenta em ataques a direitos já
consolidados, sob as mais variadas argumentações, bem como se contrapõe à
ampliação do atendimento às necessidades humanas, com destaque para recuos no
atendimento às mulheres, população LGBTQIA+, população negra, povos indígenas
e política ambiental.
No decorrer dessa segunda década, o golpe operado contra a presidenta
Dilma revela com nitidez a hegemonia do discurso liberal-conservador, cuja
justificativa do voto favorável à abertura do processo do impeachment se basearam
em defesa da família e da propriedade, referenciando a família heteronormativa,
branca, proprietária e contrária aos interesses do conjunto da população. A partir de
então, a probabilidade de aprovação de projetos que os representem aumenta, sob a
liderança de sujeitos coletivos dentre os quais os que analisamos no terceiro capítulo

230
desta tese, embora seja importante ressaltar que sempre houve resistências no plano
da luta de classes, conforme evidenciamos no último capítulo.
As consequências de discursos e práticas antidireitos no contexto brasileiro
da segunda década dos anos 2000 são reveladas no processo de contrarreformas
(trabalhista, previdenciária, lei da terceirização) e suas particularidades para as
mulheres, reforçando a divisão sociossexual do trabalho.
Do mesmo modo, o acesso à seguridade social pelas mulheres da classe
trabalhadora cujas particularidades na saúde, assistência social, educação e
segurança encontra a contradição entre a necessidade de garantir o acesso levando
em conta o fato de serem mulheres, na contramão do processo de enxugamento de
recursos (a exemplo da lei de teto dos gastos, por meio da qual se operou um
congelamento de 20 anos nos recursos das políticas de seguridade), além dos recuos
nas garantias legais por meio das contrarreformas.
As implicações dessas medidas são ainda mais deletérias para as mulheres
negras, denotando a face racial tanto da própria realidade desigual, como dos
mecanismos que ampliam ou negam direitos, particularmente o processo de negação.
A divisão social do trabalho, sustentada pelas dimensões sexual e racial, por
exemplo, implica em precarização acirrada das atividades desempenhadas pelas
mulheres negras, o que aliada às dificuldades dessas mulheres acessarem educação
e formação profissional, tende a inseri-las nas funções menos remuneradas, que não
dispõem do conjunto de garantias como férias, licença maternidade, décimo terceiro
e licenças remuneradas.
Já no campo de acesso à seguridade social, enfrentam os desafios de um
padrão branco de acesso, tendo que driblar a seletividade, a morosidade, a
criteriosidade e o racismo reproduzido muitas vezes no âmbito institucional onde o
serviços são acessados, desafio maior quando se trata de desempregados/as e
trabalhadores/as informais, cuja contribuição direta de seguridade não é facilitada pelo
vínculo trabalhista.
Outrossim, as acentuadas posturas conservadoras se recrudescem à medida
que sujeitos políticos, tanto liberais – como o MBL, como conservadores – a exemplo
da Bancada Evangélica, do Escola Sem Partido e do recente Movimento Brasil
Conservador – MBC se afirmam e se fortalecem, adentrando os espaços
parlamentares e a sociedade, de modo geral.

231
Temos que as investidas liberais, abrem margem para um encontro ideológico
antidireitos e antidemocrático, que fortalece o conservadorismo que se acentua na
segunda década dos anos 2000, apoiado no senso comum, no fundamentalismo
religioso e no patriarcado.
Entre os sujeitos pesquisados, identificamos que os mesmos coadunam com
as pautas antifeministas, mas o conservadorismo é crescente, tendo em vista uma
postura mais quieta do MBL após as eleições de 2018, enquanto o Movimento Brasil
Conservador surge em 2019 para legitimar posicionamentos intolerantes quanto às
pautas de LGBTQIA+ e feministas.
Sob o viés patriarcal, representantes do conservadorismo no parlamento
sugerem projetos contrários ao ensino de gênero e sexualidade, reatualizam os
debates acerca da família conservadora – diga-se heteronormativa e patriarcal- em
torno do qual surge a proposta do Estatuto da Família; do Estatuto do nascituro,
contrariando o debate da autonomia das mulheres sobre seus corpos, bem como
revelando uma profunda regressão para os direitos sexuais e reprodutivos já
garantidos.
Aqui respondemos ao objetivo no qual pretendíamos: Identificar as
determinações que particularizam o avanço do conservadorismo, do patriarcado e do
racismo nas políticas e nos programas destinados às mulheres no século XXI.
As disputas ideológicas seguem seu curso nas décadas por nós analisadas,
os espaços da política parlamentar seguem sendo disputados por mulheres
(heterossexuais, trans, lésbicas, bissexuais) e para além do campo partidário
organiza-se a resistência feminista, classista, antirracista e anticapitalista,
encontrando caminhos frente às adversidades.
Destacamos que o ano de 2015, com a primavera feminista contrárias ao
Estatuto do nascituro e emblematicamente enfrentando o então presidente da Câmara
de Deputados Federais, Eduardo Cunha; as inúmeras mobilizações em defesa da
democracia em 2016 e a mobilização nacional denominada “Ele não”, contrárias ao
então presidenciável Jair Bolsonaro, em 2018 expressam potencial contribuição das
mulheres trabalhadoras à luta por direitos, por liberdade e por democracia no Brasil.
Conforme os sujeitos aqui analisados, a pauta feminista classista cresce no
interior de movimentos sociais mais gerais, de sindicatos, possui, em grande medida,

232
articulação com organizações internacionais e estão antenadas às lutas
anticapitalistas, antipatriarcais e antirracistas.
Por meios de mobilização e divulgação, que analisamos caracterizamos como
difusão ideológica, formação e ação política, podemos afirmar que o feminismo
brasileiro nos anos 2000 é um sujeito coletivo legítimo e necessário ao enfrentamento
do conservadorismo, uma vez que seus posicionamentos e ações culminam em
posturas libertárias, democráticas e em defesa das conquistas civilizatórias já
alcançadas pela classe trabalhadora e pelas mulheres.
Desde os coletivos e/ou grupos e movimentos feministas que surgiram na
primeira década dos anos 2000, até os que surgem na segunda década, têm
demonstrado coragem e ousadia para formar quadros, participar das lutas contra os
desmontes e se utilizar de canais de comunicação como redes sociais, blogs e sites
na difusão de seus posicionamentos, que comporta: matérias, notas, textos, informes,
convocatórias, dentre outras.
A composição de todos eles comporta mulheres trabalhadoras (uma grande
incidência de professoras de todos os níveis de ensino; estudantes; jornalistas;
sindicalistas), sendo ambas as responsáveis pelo desenvolvimento das atividades
realizadas por cada movimento.
A exceção de um dos movimentos, matérias e notas, além formações
constantes relativas às condições das mulheres negras são ações cotidianas, sempre
em consonância com as condições objetivas que expressam a consubstancialidade
das relações sociais entre classe, sexo e raça/etnia.
As opressões de raça e de sexo/sexualidade não estão, portanto,
desconectadas das consequências econômico-sociais que, decorrentes do
acirramento das desigualdades entre as classes, configuram desafios constantes no
plano político e ideológico. Por isso, é impensável a luta e a resistência da classe
trabalhadora, sem reconhecer as particularidades dos sujeitos individuais e coletivos
que a compõem.
Para a perspectiva consubstancial das lutas, a contribuição do feminismo
classista e antirracista é crucial, quando vislumbramos qualquer conquista para a
classe trabalhadora na contemporaneidade.
Encontramos nesses elementos uma resposta para o objetivo anteriormente
elencado: Apreender como se expressa a co-relação de forças entre agenda feminista

233
classista e a agenda liberal e conservadora nas pautas feministas, os sujeitos políticos
que a defendem e seus interesses.

6.2 TENDÊNCIAS DA DISPUTA IDEOPOLÍTICA ENTRE CONSERVADORISMO E


FEMINISMO

Diante da constatação de que a articulação entre conservadorismo,


patriarcado e racismo se consolida por meio das ideologias dominantes e seus
sujeitos e projetos antidireitos, anti-diversidade e antidemocráticos, a exemplo da
bancada evangélica, que tenta orientar o Estado em uma perspectiva cristã; o MBL,
que, ao defender a liberdade de mercado ataca os direitos alcançados, seus recuos e
um discurso individualizante; o Escola sem partido, que ataca as liberdades de ensino,
suprimindo qualquer discurso que trate das desigualdades entre os gêneros; e o
Movimento Brasil Conservador, que visa consolidar ataques a mulheres, negros,
população LGBT, indígenas, tratando suas reivindicações como mimimi.
Aliadas à perspectiva liberal, essas investidas conservadoras, tendem a
inviabilizar um projeto social que incorpore os anseios anticapitalistas, antifeministas
e antirracistas, tornando a segunda década dos anos 2000 um terreno histórico no
qual o Estado se apresenta menos laico, menos democrático e menos de direito.
Ao galgarem espaços na esfera pública, a exemplo do golpe de 2016 e da
eleição de Bolsonaro em 2018, os sujeitos conservadores alcançam maiores
possibilidades de difundir uma agenda antifeminista e que reproduz o racismo, da qual
são exemplos os Ministérios dos Direitos Humanos e das Mulheres, bem como a
condução da Fundação Palmares, na gestão de Bolsonaro.
A passagem do fim da segunda década do século XXI para a entrada da
terceira foi marcada pela pandemia do SARS-COVID 19, cujas desastrosas
consequências trouxeram à tona os limites da aliança liberalismo e conservadorismo,
que ora se expressa no negacionismo científico e na crise sanitária que marca esse
contexto, com forte apelo antivacina, liderado pela base de apoio ao presidente Jair
Bolsonaro.
No plano político, foram travadas lutas em defesa da vida, do auxílio
emergencial como medida de garantia da sobrevivência da classe trabalhadora,
dividida entre trabalhadores/as que puderam seguir um período de quarentena e,

234
majoritariamente, aqueles/as que tiveram de seguir seu curso de deslocamentos,
trabalhos precarizados e risco de contaminação e morte.
Destarte, as mulheres negras estão na linha de frente do trabalho doméstico,
com a presença de patrões e patroas em casa, com o desafio de administrar um
cotidiano de intensificação dos cuidados, com filhos/as em casa, uma vez que as
escolhas paralisaram as atividades.
Os anos de 2020 e 2021, apesar das difíceis circunstâncias, vêm sendo palco
de inúmeras mobilizações em defesa da vida, contra a fome, por vacina e contra o
negacionismo, expressão marcante do conservadorismo anti-ciência no período de
pandemia.
Ante ao contexto de crise estrutural do capital, as estratégias de exploração e
de dominação avançam no Brasil, de modo que mulheres indígenas, de populações
ribeirinhas, rurais e urbanas são alvos cotidianos das distintas formas de violência,
nos âmbitos público e privado, reorganizando suas resistências, a exemplo da
Segunda Marcha Nacional das Mulheres Indígenas, realizada em setembro de 2021,
integrantes do acampamento indígena contra a proposta de marco temporal que
pretendia limitar a propriedade de terras a famílias indígenas ocupantes de seus
territórios desde 1988.
Além disso, mobilizações contra a PEC 32 – Reforma administrativa contou
com a presença dos movimentos de mulheres elencados nessa pesquisa, tendo fortes
concentrações em Brasília no mês de outubro de 2021, em articulação com fóruns,
centrais sindicais e outros coletivos e movimentos de servidores públicos, os mais
afetados pela PEC em curso.
As tendências que se apontam é que o feminismo se expande nas diversas
lutas que despontam, frente a um contexto de aprofundamento dos desmontes e dos
ataques ao conjunto da população trabalhadora.
De certo, os anos 2000 revelaram e seguem revelando as potencialidades
feministas e, do nosso ponto de vista, uma singular contribuição ao conjunto das
reivindicações, que enriquece a concepção de classe e revela questões concretas
sobre a vida das mulheres, dotando a luta de materialidade e resistência. São as
mulheres com classe, com cor, com sexualidade distintas entre si, mas dispostas a
construir unidade em busca do “bem viver”.

235
Certamente, as eleições que se aproximam para 2022 exigem unidade em
defesa de um projeto que dialogue com as pautas e as reivindicações feministas, que
conforme nossa análise, somam nas fileiras do fora Bolsonaro e além, em defesa de
um Brasil que construa uma cidadania não só formal, mas que reconheça as
necessidades de sua população, na perspectiva de seu atendimento. É a roda vida da
luta de classes (em sua diversidade e totalidade) que segue o giro e renova o
esperançar!

236
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