Carbonaria, - o Exercito - Civil

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Carbonária: o exército civil do 5 de Outubro

Autor(es): Rodrigues, Ernesto


Publicado por: Imprensa da Universidade de Coimbra
URL URI:http://hdl.handle.net/10316.2/42525
persistente:
DOI: DOI:https://doi.org/10.14195/0870-8584_5_12

Accessed : 13-Jan-2022 10:13:07

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Estudos
Italianos
em Portugal

Instituto
Italiano
de Cultura
de Lisboa

Nova Série
Nº 5
Carbonária, o exército civil
do 5 de Outubro

Ernesto Rodrigues*

A Revolução portuguesa de 5 de Outubro de 1910 teve um


protagonista inesperado: a Carbonária. O último primeiro­
‑ministro da Monarquia, Teixeira de Sousa, confessou nunca
ter ouvido falar desse exército civil. Não raros atribuem­‑lhe
importância decisiva na viragem de regime.
Machado Santos é o herói consensual, fundador, da Repú-
blica. Afastado do continente no governo de “acalmação”
que sucedeu ao regicídio (1908), nunca deixou de aliciar
tropas para a sociedade secreta de que era triúnviro. Nas
horas decisivas da Rotunda, esteve coadjuvado pelo enge-
nheiro António Maria da Silva, um futuro primeiro­‑ministro
repetente, agora substituindo um exilado Luz de Almeida,
chefe da Alta Venda. Eram secundados pela Marinha, onde
se agiganta o carbonário José Carlos da Maia, e por centenas
de civis, muitos armados, que industriavam as tropas pouco
fiéis a D. Manuel II estacionadas no Rossio e se espalhavam
pela cidade e arredores.

* Poeta, ficcionista, ensaísta e tradutor. Professor na Faculdade de Letras da

Universidade de Lisboa.
1 Maia, Santos e o ex­‑primeiro­‑ministro António Granjo, que encabeçara a

Carbonária em Chaves, são assassinados, com outros, na noite de 19 de Outubro


de 1921. Rocha Martins conta o seu espanto ao saber que o “Querido José
Carlos”, amigo de infância, “meu irmão de estudos e de foliar”, nunca lhe contara
“um dos seus amores”: ser filiado na Carbonária. Ver “O 19 de Outubro”,
Arquivo Nacional, 41, 21­‑10­‑1932, pp. 8­‑11 [10].

Est.Ital.Port., n.s., 5, 2010: 95-106


96  Ernesto Rodrigues

Nos últimos três anos, a organização multiplicara os ini-


ciados – o neófito, pagão, fazia­‑se Bom Primo –, preparara
bombas, estivera em sublevações ou em golpes falhados e
adiados. Provara ao Partido Republicano Português (PRP)
que só com um Directório adepto da revolução armada
– e não da evolução através da urna – se conseguiria derru-
bar Monarquia secular. A sua lista de Governo provisório,
contudo, não vingou; este desacerto repetia outros, pois as
dissidências pessoais corriam desde antes da vitória, e a série
de desencontros afundaria a barca em 28 de Maio de 1926.
Seriam receios do PRP em relação a força secreta que não
controlava, nem por interposta Maçonaria, mesmo se havia
elementos comuns? Seriam diferenças evidentes de classe,
ou a salvaguarda de um status, face à composição heteróclita
de associação hierarquizada, estanque e rigorosa? Seria uma
questão de métodos?
Retratámos esse triunvirato em obra recente, na qual
vimos Machado Santos em acção, antes e depois da dupla
jornada gloriosa. Relevados os contactos com o Directório
do PRP, mediados por António José de Almeida, só a figura
do grão­‑mestre Luz de Almeida (1867­‑1939) exigiria um
volume, enquanto sonhando uma República desde o Ultima-
tum (1890). Historiador privilegiado dessa sociedade secreta
– visto por, entre outros, António Maria da Silva –, Luz de
Almeida mais parece um herói de romance, na modéstia
do porte e na firmeza da voz baixa à mesa do café, ou, sob
disfarce, a palmilhar o país, iniciando e armando dezenas de
milhares de patriotas, “dispostos a sacrificarem a ultima gota
de sangue pelo triumpho das ideias liberaes”, na expectativa
de hora gloriosa. Assim se compreende a quase automática
implantação da República nos lugares aonde chegou ordem
telegrafada pelo Governo Civil de Lisboa. Importa reter o seu


Ernesto Rodrigues, 5 de Outubro. Uma Reconstituição, Lisboa, Gradiva, 2010.

 Hermano Neves, Como Triumphou a Republica, Lisboa, 1910, p. 38.
Carbonária, o exército civil do 5 de Outubro  97  

testemunho de inspiração italiana no bem sucedido quadro


final; antes, fixar instantâneos, que outros alargaram já, de
1843­‑1853 e 1861­‑1862; mas, sobretudo, demorarmo­‑nos
em associação secreta cuja primeira imagem, em Portugal,
é condicionada pela propaganda miguelista.

No lapso de um século, construiu­‑se um imaginário nega-


tivo do carbonário (1836)/Carbonária, etimologicamente, de
carbonaro (1816) e Carboneria (1820). Carbonarismo datar­‑se­
‑ia de 1913, segundo Houaiss. Em 1914, mantinham­‑se
duas pronúncias de carbonária, uma delas com acento tónico
no i, à italiana. Cândido de Figueiredo, que defende “Car-
bonaria”, julgava ser a palavra “de formação portuguesa,
ou composta do substantivo carbonário e do sufixo ia, que é
sempre tónico”, aceitando, todavia, que, “havendo no latim
o adjectivo carbonárius, poderíamos dizer sociedade carbonária,
e, por elipse, simplesmente carbonária”. Mau grado algum
aceno de província, com as divisões no PRP, a reacção
clerical e a ditadura estadonovista, a organização vai defi-
nhando, a par dos principais mentores: Machado Santos é
assassinado em 1921; Luz de Almeida morre na sua casa
da Travessa da Portuguesa, em 1939; António Maria da
Silva, em 1950. Lendo, todavia, deste, O Meu Depoimento,
percebe­‑se uma existência residual no momento da escrita,
entre 1943 e 1950. Na linguagem dos nascidos nos anos
10, todavia, acusar alguém de carbonário era dizê­‑lo esquivo,
rude, maldoso (nesta acepção, chamava­‑se também maçónico,


Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa, Lisboa, Círculo de Leitores, 2002,
p. 804.
 O Que Se não Deve Dizer, vol. 3, 5.ª ed., Lisboa, Livraria Clássica Edi-

tora, 1955, pp. 25­‑26.


 Releve­‑se um periódico eborense, O Carbonário, de 27­‑11­‑1910 a

30­‑3­‑1913, 124.
 Primeiro volume. Da Monarquia a 5 de Outubro de 1910, Lisboa, 1975,

p. 189.
98  Ernesto Rodrigues

republicano ou, por causa do partido de Afonso Costa, demo‑


crático), enquanto, noutros estratos, ainda depois de 1974, se
começava a dizer comunista…

Secretos eram os grupos que, na passagem do século, sob


D. Maria I, enxameavam os botequins lisboetas, não menos
frequentados pelos moscas do intendente Pina Manique.
Ausente a Corte no Brasil, a presença de Junot (1807­‑1808)
é minada por quem, embora sorrindo ao invasor, se organiza
em Conselho Conservador, congregando fidalguia, toga e
sotaina. A subversão militar contra a regência inglesa desa-
gua nos Mártires da Pátria (1817), maçónicos. Já o Sinédrio
portuense tem melhor sorte: o 24 de Agosto de 1820 é fruto
de jantares burgueses na Foz do Douro, no dia 22 de cada
mês, aproveitando a ausência de Beresford no Rio de Janeiro.
Bem antes de 1913, o termo carbonarismo entra nos olhos
do leitor da Gazeta de Lisboa, n.º 74, 26 de Março de 1824,
e n.º 135, 8 de Junho de 1824. Este traduz artigo de gazeta
madrilena sobre as sociedades secretas espanholas até 1823,
em que figuram os carbonários – donde, conviria antecipar
também a datação deste vocábulo. A sua destruição, logo
absorvidos por outros grupos, resultaria de terem sido encai-
xados entre interesses do maçonismo e dos communeros.
A contra­‑revolução de 1820, entretanto, vingara na
Europa, e “todas as prisões de Itália e Alemanha se atulharam
de suspeitos e inconfidentes”, enquanto “o papa, olhando
satisfeito do alto do Vaticano por sobre o Velho Mundo, cui-
dou ver­‑se nos dias bem­‑aventurados de Gregório VII e IX,
e desenferrujou os sagrados raios com fulminar anátemas a
pedreiros­‑livres, excomunhões a carbonários”. Nesta síntese
de Almeida Garrett para a década, não falta o quadro de uma


Ver “A Marqueza de Alorna, as Sociedades Secretas e Pina Manique” e
“Junot, a Maçonaria e a revolta”, Arquivo Nacional, 81, 28­‑7­‑1933, pp. 450­‑451,
e 194, 5­‑1­‑1934, pp. 823­‑825.
Carbonária, o exército civil do 5 de Outubro  99  

Itália “toda escrava – mas escrava que morde os grilhões, que


tem força para os quebrar –, que os há­‑de espedaçar ainda”,
considerando que “tudo é pequeno e mesquinho no mais
grandioso país da Terra”. Alguns revolucionários napolita-
nos de 1820 refugiam­‑se em Portugal10.
O Terror miguelista faz emergir sociedades secretas. A Socie­
dade dos Divodignos deu brado, em 18 de Março de 1828.
Conta Oliveira Martins:

Tinham em Coimbra os estudantes uma sociedade secreta


dentre a qual foram eleitos os doze que deviam consumar a
vingança bárbara de castigos ou tiranias escolares. Vinham, de
Coimbra a Lisboa, três lentes, com o deão e um cónego do
cabido, dar os parabéns a D. Miguel pelo seu regresso. Era de
manhã, das 7 para as 8 horas, no sítio do Cartaxinho, junto a
Condeixa; os doze, mascarados com lenços, a pé, armados de
trabucos, ordenaram alto à comitiva que apeou. Separaram­‑nos,
trucidando­‑os a tiro e a punhaladas.

Aos gritos de uma mulher, acorre povo, numeroso, por


ser dia de feira: apanham nove, fogem três: “Regulavam
todos entre 19 e 24 anos.” Enforcados em Lisboa, “as mãos
e a cabeça de três deles [são] cortadas e pregadas nos ângulos
da forca”, concluindo o Historiador: “Essa ferocidade anár-
quica, o assassinato impune, a vingança e o roubo, como na
Itália Meridional, ou na Grécia, era a consequência final do
movimento de decomposição lenta a que a sociedade por-
tuguesa obedecia desde largos anos”11.
Nos vinte anos que sucedem, Portugal vive duas guerras
civis (1832­‑1834 e 1846­‑1847). Os patuleias, derrotados
 Portugal na Balança da Europa [1830], Lisboa, Livros Horizontes, s. d.,

pp. 76 e 88­‑89.
10 Cf. Maria Manuela Tavares Ribeiro, “Mazzini no pensamento dos utó-

picos portugueses”, Revista de História das Ideias, 28, 2007, pp. 97­‑98.
11 Portugal Contemporâneo, vol. 1, Porto, Lello & Irmão, 1981, pp. 168­‑169.
100  Ernesto Rodrigues

na segunda, simpatizam com as revoluções nacionalistas


europeias, e uma “maçonaria novíssima, […], republicana
e democrática”, emerge sobre o Mondego, na síntese apres-
sada de Oliveira Martins:

A Carbonária italiana, dirigida pelo místico republicano Mazzini,


alargando os seus ramos por toda a Europa, para fundar a
república universal e redentora, infiltrara­‑se entre nós também
com a sua alta­‑venda ou choça­‑mãe, donde dependiam as
vendas ou choças filiais e as barracas. Em Coimbra havia a choça
de Kossuth, o húngaro12.

É mais precisa e larga – aproveitando melhor os balanços


de J. Martins de Carvalho n’O Conimbricense (1868) – Maria
Manuela Tavares Ribeiro, seja a estudar “A Carbonária
Lusitana em Coimbra – sua orgânica” ou “Os rituais”13.
Assim, já cerca de 1843, em resposta ao governo de Costa
Cabral, que facilmente suspende órgãos de Imprensa, “Há
notícia da fundação de uma Alta Venda e de três Barra‑
cas, em Lisboa: Viriato, Aljubarrota e Pacheco, expedindo­‑se
ordens e comissões para outras serem fundadas”14. Um dos
redactores do jornal setembrista Opposição Nacional (Julho­
‑Setembro de 1844), António Augusto Teixeira de Vascon-
celos (1816­‑1878), escolhe o nome de Irmão O’Conell, ao
ingressar na Loja Philadelphia, de Coimbra. Este nome não
é de acaso. Romancista e grande jornalista do seu tempo,
o patuleia Vasconcelos pedia outra demora; fiquemo­‑nos
pela sua loja.

12 Cit., vol. 2, p. 381.


13 Em Portugal e a Revolução de 1848, Coimbra, Livraria Minerva, 1990,
pp. 116­‑120 e 120­‑122.
14 Cit., p. 116. Em vez de 1843, está 1834 em “Mazzini e il mazzinianesimo

in Portogallo”, estratto da Nuova Antologia (Firenze, Le Monnier), 2227, luglio­


‑settembre 2003, pp. 229­‑255.
Carbonária, o exército civil do 5 de Outubro  101  

A sociedade secreta italiana Filadelfia difundira­‑se pela


Europa e dela derivara a Carboneria, “che si sviluppò nell’Italia
meridionale, […] anche se appare oscuramente legata ai
c­harbonniers della Franca Contea; ne furono sicuramente parte
attiva un certo numero di ufficiali francesi e di gruppi dis-
senditi della massoneria”15. Difunde­‑se no centro e norte de
Itália em 1814­‑1815, minando o exército napoleónico. Neste
ano, a Maçonaria expulsa os carbonários das suas fileiras, o
que não impede rápida difusão destes pelos ducados e estados
da Igreja. Reforça­‑se em luta contra Murat e, após 1817,
com a retirada do exército austríaco. Conduz as revoluções
de 1820­‑1821 – face à revolta napolitana, Metternich elege
a Carbonária como principal adversária entre as “sectes poli-
tiques”16 – e 1831, ano em que Mazzini, nela iniciado em
1827, lança a Giovine Italia. A sua composição social repetir­
‑se­‑á no caso português: “Era essa diffusa tra i piccoli proprie-
tari, nella classe dei professionisti, fra i mercanti, gli artigiani,
il basso clero e soprattuto fra gli ufficiali di rango inferiore
nell’esercito e nella milizia civile delle province; […].”17
Algumas precisões na relação com Murat saem da Gazeta
de Lisboa, n.º 74, de 26­‑3­‑1824. Em longo artigo traduzido,
temos a situação em 1815:

Os exercitos de Murat marchavão de Napoles sobre o resto da


Peninsula, e este homem ambicioso, cujo throno o Carbona-
rismo até então havia surdamente solapado, associava dahi em
diante esta Seita ás suas vistas, e della se servia como hum
poderoso auxiliador. Desde então se propagou o gérmen pes-
tilencial desta Seita demagógica pelos diversos paizes occupados
pelas suas tropas: em breve porem se declarou a victoria a favor
das armas Austriacas. […]
15 Stuart J. Woolf, “La storia politica e sociale”, in Storia d’Italia, vol. terzo,
Dal primo Settecento all’Unità, Torino, Einaudi, 1973, p. 232.
16 Ib., p. 1222.

17 Ib., p. 271.
102  Ernesto Rodrigues

O Carbonarismo e o Adelfismo, erão em 1818 as duas Socie-


dades secretas predominantes na Italia. […] O centro da pri-
meira era em Napoles; o da segunda em França; […].

Responsável pela revolução napolitana de Julho de 1820,


de pouco servia proclamação imperial de Agosto, pois nesse
mesmo mês a Carboneria estendia­‑se a Milão.
Outro artigo, sobre “Sociedades Secretas” (n.º 180,
2­‑8­‑1824) na Alemanha, onde, em 1819, houvera legislação
contra aquelas, mostra como, desde 1821, se disseminam pelas
universidades, mantendo relações com França, Itália, Suíça.
Já em 4­‑1­‑1826, n.º 3, notícia datada de Roma (24‑11‑1825)
transcreve sentença proferida contra Angelo Targhini,
­acusado de homicídio em 1819, e agregado à “Seita Car­
bonaria”, que instituíra naquela cidade; e, em 13­‑5­‑1826,
n.º 137, com data de Nápoles, 8 de Maio, noticia­‑se a morte
do distinto magistrado Raffaeli, o qual, tendo integrado os
pedreiros­‑livres e carbonários, veio reconhecer o perigo das
“seitas perturbadoras da ordem e do socego das Nações”.
A propaganda do espírito monárquico, vitorioso sobre o
espírito republicano, não esmorece na oficial Gazeta de Lis‑
boa: se o Piemonte teve os carbonários, Nápoles um Pepe
e a Espanha quejandos, a Áustria a todos venceu (n.º 248,
19­‑10­‑1827).
Caso mais ruidoso resultou do desmantelamento, na Pri-
mavera de 1829, de uma loja de carbonários romanos fun-
dada em 1828, com julgamento, em finais de Setembro, de
26 membros. A comissão especial nomeada por Sua San-
tidade decidiu­‑se por penas pesadas, sendo o grão­‑mestre
sentenciado à morte.
Eis como, sob a vigência de Carlota Joaquina influindo em
D. João VI ou no governo de D. Miguel, o principal diário
nacional julgava atemorizar os cidadãos. Com a derrota e
exílio do usurpador, não descansariam os fiéis: a sociedade
“secreta, militante e política” S. Miguel de Ala (1855) será,
Carbonária, o exército civil do 5 de Outubro  103  

quiçá, a mais operativa; impulsionada pelo clero ultramon-


tano, decalca ritos e graus da Maçonaria e faz do exilado
seu grão­‑mestre18.

Voltando a Coimbra. Em 1846, havia três choças da Car-


bonária Lusitana, com, no biénio de 1848­‑1850, cerca de 500
membros, obrigados a “possuir ocultamente uma arma com
os competentes cartuchos”. A Choça Kossuth (1853) resul-
tava de expulsão da Alta Venda, cinco anos antes, do seu fun-
dador – o padre António de Jesus Maria Costa –, que assim
homenageava o chefe húngaro Kossuth Lajos, de passagem
por Lisboa em 1852, a caminho do exílio. “Os carbonários
recebiam a designação de Benigno Primo” [Bom Primo], usando
“o triângulo com o vértice para baixo, símbolo da trindade
– unidade, infinito, pensamento”. E, conclusão apropriada:

Na linha do carbonarismo italiano e do doutrinarismo mazzi-


niano, na Carbonária Lusitânia há uma visão religiosa do mundo
e da vida. O carbonário era como o apóstolo que luta pela
libertação, pela unidade e, enfim, pelo ideal de fraternidade,
para ser atingida, não apenas na unidade política mas também
na unidade moral. Esta efectivamente só poderia atingir­‑se
através da república. (Ribeiro, 1990, p. 120)

Em Abril de 1861, funda­‑se a Sociedade do Raio, “uma


espécie de Carbonária”19. Tem o seu momento alto em

18 [Rocha Martins], “Uma sociedade maçónica reaccionária”, Arquivo Nacio‑

nal, 19, 20­‑5­‑1932, pp. 12­‑13.


19 José Bruno Carreiro, Antero de Quental. Subsídios para a Sua Biografia, 2.ª ed.,

vol. 1, Ponta Delgada, Instituto Cultural, 1981, p. 168. Além do ritual de inicia-
ção aos mais de duzentos sócios, interessa­‑nos a estanquicidade da organização,
decisiva em tempos de repressão e denúncias: “Havia um triunvirato constituindo
o governo supremo. Dividia­‑se em decúrias e cada decurião regia dez sócios. Cada
um destes só conhecia o seu chefe e o chefe só conhecia dez subordinados. Um
sócio só podia comprometer dois, o apresentante e o chefe, e este só dez”.
104  Ernesto Rodrigues

21­‑10­‑1862, quando aplaude, na Sala dos Capelos da Uni-


versidade, o príncipe Humberto – que viera acompanhar a
irmã, Maria Pia –, “o neto de Carlos Alberto”, “o filho do
amigo de Garibaldi, o filho de Vítor Manuel”, como abre
discurso de Antero de Quental, conhecedor da Giovine
Italia e demais circunscrições revolucionárias europeias20.
Não nos parecem, todavia, correctas as explicações para a
designação daquela Sociedade, que, segundo Luciana Ste-
gagno Picchio21, “aurait tiré son nom des imprécations du
genre ‘raios te partam’ prononcées par Antero et ses cama-
rades contre leurs ennemis”… Cremos que – à luz, tam-
bém, do futuro título Raios de Extinta Luz, onde se inclui
“O Sol do Belo”, uma espécie de hino do grupo – Antero
saudava a oposição daquela Società dei Raggi, dissolvida
com a revolta bolonhesa de 1802… Ainda em 1862, o padre
António Costa – o Bom Primo Ganganelli, apelido de Cle-
mente XIV, que abolira a Companhia de Jesus – transmitia
poderes a sucessor coimbrão, com fugaz reaparecimento em
186422. Não encontrámos acenos a I Carbonari della Montagna
(1861­‑1862), de Giovanni Verga, que não foi traduzido.

Após vinte anos de doutrinação na rua e no quartel, ali-


ciamento de uns 40 mil membros desde 1895­‑1896 (dez mil
em Lisboa) e imposições ao Directório do PRP, na sequência
do Ultimatum, concretiza­‑se objectivo maior da ­Carbonária.
Se subsistem alguns pontos obscuros entre a bibliografia de

20 Em 1874, todavia, “a propósito de um ‘manifesto’ de Mazzini sobre a

Reforma Intelectual, de Renan”, escrevia a Oliveira Martins: “Como nos pare-


cem hoje vagos e secos os grandes homens de há trinta anos!” (ob. cit., vol. 2,
p. 28)
21 “Italie mythique d’Antero de Quental: de Garibaldi à St. François

d’Assise”, in Antero de Quental et l’Europe. Actes du Colloque, Paris, FCG/CCP,


1993, p. 147.
22 [Rocha Martins], “A Carbonária e os seus juramentos”, Arquivo Nacional,

24, 24­‑6­‑1932, pp. 7­‑9.


Carbonária, o exército civil do 5 de Outubro  105  

operacionais do tempo e a moderna historiografia23, inte-


ressa, agora, segundo Luz de Almeida, registar a Carbonária
Italiana como servindo de “figurino” à portuguesa, e, con-
cretamente, “a Maçonaria florestal, ou Carbonária”. Esta
inspiraria, desde o século XIII (quando os guelfos, partidá-
rios do Papado, se opunham à interferência dos gibelinos
e Império germânico nos negócios da Itália), os lugares de
iniciação (na floresta, em choças de carvoeiros), a designa-
ção dos membros e suas organizações. “Uma outra versão
marca o aparecimento dos primeiros carb • • • no começo do
século XVII”24.
Estes três pontinhos, ou triângulo com vértice para baixo,
fazem parte de um simbolismo mais vasto, cujos elementos
florestais e celestiais Luz de Almeida enumera, mas só par-
cialmente explica:

A estrela de cinco pontas, que encima o globo terrestre,


representa a figura máscula de um Bom Primo, de pé, com as
pernas afastadas, os braços abertos e a cabeça erguida, como
que a dizer: Pronto sempre para a luta contra todas as tiranias!
O termo choça é adoptado em obediência à tradição. Os
primitivos carbonários italianos reuniam­‑se nas choças dos
carvoeiros, disseminadas pelas florestas, e daí vem chamar­‑se
também Maçonaria florestal à Carbonária. (p. 221)

23 Entre, digamos, os subsídios contidos em José [Maria] Nunes e os traba-


lhos de António Ventura, Anarquistas, Republicanos e Socialistas em Portugal. As
Convergências Possíveis (1892­‑1910), Lisboa, Cosmos, 2000, e A Carbonária em
Portugal. 1897­‑1910, 2.ª ed., Lisboa, Livros Horizonte, 2008.
24 Luz de Almeida, “A obra revolucionária da propaganda/As sociedades

secretas”, in Luiz de Montalvor, História do Regime Republicano em Portugal, vol. 2,


Lisboa, 1932, p. 214. Completar com entrevistas esclarecedoras à Imprensa, duas
delas em Idalina Portugal, “Luz de Almeida. No cinquentenário da sua morte”,
Revista da Biblioteca Nacional, s. 2, 4 (2), 1989, pp. 141­‑158. Mais recente, ver
Maria Estela Guedes, “Simbologia da Maçonaria Florestal num Ritual da Car-
bonária Portuguesa”, O Escritor, 24­‑25, Dezembro de 2009, pp. 228­‑236.
106  Ernesto Rodrigues

A transformação da Maçonaria Académica em Carboná-


ria não foi sem incidentes, dada a necessidade de incorporar
o elemento popular (1897). Os vasos comunicando com
a Maçonaria nem sempre eram límpidos. Interessava, em
suma, subir “sempre sem dar nas vistas”, fazendo “revolu-
cionários”, sim, mas, sobretudo, “atiradores” (p. 222). As
carreiras de tiro regurgitavam de filiados.
Consoante a hierarquia, assim as senhas, usos de distinti-
vos e armas entre os filiados, ou primos, que se tratam por tu.
A Carbonária organiza­‑se em quatro graus: rachador, aspi-
rante, mestre, mestre sublime. Integram canteiros, choças,
barracas, vendas (vedetas, em localidades com um ou dois
membros) e Alta Venda (até 28­‑1­‑1908, Conselho Flores-
tal), governo supremo de cinco mestres sublimes, eleitos
pela ultra­‑secreta Venda Jovem Portugal. A choça reúne um
grupo de canteiros; a barraca compreende algumas choças;
cada venda, umas tantas barracas. Inspectores percorrem o
país. Um vasto serviço de informações emana dos próprios
organismos e repartições do Estado: dos ministérios aos telé-
grafos e telefones, foi possível boicotar ou desviar qualquer
serviço de informações, em 4 e 5 de Outubro, concorrendo,
assim, para o êxito da Revolução.

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