luismatos,+29_194038

Fazer download em pdf ou txt
Fazer download em pdf ou txt
Você está na página 1de 14

“PROIBIDO DEITAR

EM FRENTE À LOJA”:
CONFLITOS DA
POPULAÇÃO EM
SITUAÇÃO DE RUA NO
MEIO URBANO EM SÃO
PAULO E EM SANTIAGO

[ GT2 - TERRITÓRIOS, TERRITORIALIDADES E MOVIMENTOS SOCIAIS ]

Giovanna Fidelis Chrispiano


Programa de Pós-Graduação em Integração da América Latina (PROLAM/USP), São Paulo, SP
Giovanna Fidelis Chrispiano “Proibido deitar em frente à loja”:
conflitos da população em situação de rua no meio urbano em São Paulo e em Santiago 443

[ R ES U MO AB STR AC T RESUME N ]

Este artigo tem como objetivo compreender a relação que a população em situação
de rua estabelece com o território em duas localidades: São Paulo (Brasil) e Santiago
(Chile), além de discutir os conflitos e tensões existentes entre essa população e o poder
público. Considera-se que existe uma relação de assistência, por um lado, e de disputa,
por outro, pois os governos devem, ao mesmo tempo, atender as necessidades dos que
se encontram nessa situação, ao passo que devem cumprir com a demanda de residen-
tes e comerciantes pela expulsão e deslocamento dos considerados “indesejáveis”. O
método consiste em pesquisa documental, mapeamento dos locais de assistência a essa
população e análise das motivações existentes por trás da realização de atos violentos e
de expulsão contra essa população. Busca-se responder à pergunta de como as pessoas
em situação de rua se organizam no meio urbano para manter sua sobrevivência e
quais paralelos podem ser traçados entre as realidades brasileira e chilena.
Palavras-chave: População em situação de rua. São Paulo. Santiago.

This article aims to understand the relationship that the homeless population
establishes with the territory in two locations: São Paulo (Brazil) and Santiago
(Chile), in addition to discussing the conflicts and tensions between this
population and the government. It is considered that there is a relationship of
assistance, on the one hand, and of dispute, on the other, as governments must,
at the same time, meet the needs of those in this situation, while they must
comply with the demand of residents and merchants to expel and displace of
those considered “undesirable”. The method consists of documentary research,
a mapping of the places of assistance to this population and an analysis of the
rationale behind the carrying out of violent acts and expulsions against this
population. It seeks to answer the question of how homeless people organize
themselves in the urban environment to maintain their survival and what
parallels can be drawn between the Brazilian and Chilean realities.
Keywords: Homeless population. São Paulo. Santiago.

Este artículo tiene como objetivo comprender la relación que la población sin hogar
establece con el territorio en dos localidades: São Paulo (Brasil) y Santiago (Chile),
además de discutir los conflictos y tensiones entre esta población y el gobierno. Se
considera que existe una relación de asistencia, por un lado, y de disputa, por otro, ya
que los gobiernos deben, al mismo tiempo, atender las necesidades de quienes se en-
cuentran en esta situación, mientras que deben cumplir con la demanda de residentes

DOI: https://doi.org/10.11606/extraprensa2022.194038

Extraprensa, São Paulo, v. 15, n. esp, p. 442 – 455, mai. 2022 [ EXTRAPRENSA ]
Giovanna Fidelis Chrispiano “Proibido deitar em frente à loja”:
conflitos da população em situação de rua no meio urbano em São Paulo e em Santiago 444

y comerciantes por la expulsión y desplazamiento de los considerados “indeseables”.


El método consiste en la investigación documental, el mapeo de los lugares de aten-
ción a esta población y el análisis de las motivaciones detrás de la realización de actos
violentos y expulsiones contra esta población. Se busca responder a la pregunta de
cómo las personas que viven en la calle se organizan en el entorno urbano para man-
tener su supervivencia y qué paralelismos se pueden establecer entre las realidades
brasileña y chilena.
Palabras clave: Población sin hogar. San Pablo. Santiago.

DOI: https://doi.org/10.11606/extraprensa2022.194038

Extraprensa, São Paulo, v. 15, n. esp, p. 442 – 455, mai. 2022 [ EXTRAPRENSA ]
Giovanna Fidelis Chrispiano “Proibido deitar em frente à loja”:
conflitos da população em situação de rua no meio urbano em São Paulo e em Santiago 445

A situação de rua é um fenômeno O histórico da relação entre esses


multifacetado e com uma enorme gama de Estados e os indivíduos que se encontram
causalidades, ou seja, não é possível apontar em situação de rua é marcado, primeira-
uma causa principal para essa situação. mente, pela culpabilização e criminalização
Dentre os principais motivos apontados destes por sua condição, sendo que durante
por diferentes estudos, estão problemas boa parte da história desses países, não
de alcoolismo e/ou drogas; desemprego; possuir moradia e realizar atividades de
conflitos familiares com pais, cônjuges e sobrevivência em locais públicos como dor-
irmãos; problemas com a justiça; proble- mir e se alimentar era considerado crime.
mas de saúde, principalmente mental (MDS
Brasil, 2008; MDS Chile, 2020). Além disso, Até a metade do século XX, as pessoas
a existência de pessoas em situação de rua em situação de rua eram vistas majorita-
é considerada circunscrita à esfera urbana riamente como indivíduos não aptos ao
e presente, principalmente, nas grandes trabalho e que mereciam ser punidas por
cidades, seja de países subdesenvolvidos isso. O Estado atuava apenas como agente
ou desenvolvidos. repressor dessas pessoas, expulsando-as
para locais mais distantes ou prendendo-as.
No Brasil e no Chile essa situação é Tanto no Brasil como no Chile são identi-
observada com relevo em São Paulo e em ficadas normas que instruíam os agentes
Santiago, as duas maiores cidades de cada públicos a atuarem de forma repressora
país, tanto em aspectos populacionais como contra quem estivesse “ocioso” nas vias
econômicos. No Brasil, registram-se 146 públicas.
mil pessoas em situação de rua, de acordo
com a última pesquisa realizada (IPEA, No Brasil, desde o período colo-
2020). E, em São Paulo, no último levan- nial são observadas medidas represso-
tamento realizado pelo pela Prefeitura, ras (BARBOSA, 2018, p. 42) e, a partir da
foram registradas 24.344 pessoas nessa Proclamação da República, a perseguição ao
situação (PMSP, 2019). Enquanto no Chile, que era entendido como “vadiagem” aumen-
de acordo com o Catastro Calle realizado tou pois essa era uma das formas que o
em 2011, há 12.255 pessoas, sendo 5.729 na Estado encontrou para manter o controle
Região Metropolitana de Santiago (RMS)1. O sobre as pessoas marginalizadas, princi-
Registro Social Calle realizado pelo Ministerio palmente as ex-escravizadas (MARINHO;
de Desarrollo Social (MDS Chile) em 2020 SALA; TEIXEIRA, 2016). Destaca-se o
apontou um contingente de 15.500 pes- “Projeto de Repressão da Ociosidade” que
soas cadastradas nos registros oficiais do visava à repressão dos supostamente “deso-
governo, sendo 6.813 (44,0%) delas habi- cupados” após a abolição da escravatura e o
tantes da RMS2. Decreto nº 847 de 11 de outubro de 1890 do
Código Penal que estabelecia a “vadiagem”
como uma contravenção (BARBOSA, 2018,
1 Não há dados discriminados por comunas.
2 EMOL. Más de 15.000 personas en Chile viven
en situación de calle: Cuántos son por región y
las características de esta población. 13 jun. 2020. Nacional/2020/06/13/988915/Chile2020-Personas-
Disponível em: <https://www.emol.com/noticias/ situacion-calle.html>.

Extraprensa, São Paulo, v. 15, n. esp, p. 442 – 455, mai. 2022 [ EXTRAPRENSA ]
Giovanna Fidelis Chrispiano “Proibido deitar em frente à loja”:
conflitos da população em situação de rua no meio urbano em São Paulo e em Santiago 446

p. 43). Percebe-se aí uma conexão entre raça mendigavam” (BARBOSA, 2018, p. 45). É
e repressão estatal quando é discutida a possível perceber, portanto, que “a postura
trajetória da relação entre Estado e pessoas de repressão e controle do Estado em rela-
marginalizadas, pois houve um recrudes- ção aos vadios, entre os quais estavam as
cimento das práticas punitivas logo após a pessoas em situação de rua, remonta ao
abolição da escravidão. período colonial e persistiu durante o século
XX” (BARBOSA, 2018, p. 45).
Outras medidas se destacam durante
a trajetória histórica brasileira, como os No Chile, a perspectiva repressiva
decretos n. 6.994 de 19 de junho de 1908 também predominou por um longo período.
e n. 4.294 6 de julho de 1921 que, respec- Desde o início do século XX, as cidades chi-
tivamente, estabelecia a internação para lenas possuíam uma quantidade expressiva
“vadios, mendigos válidos, capoeiras e de pessoas em situação de rua e, em épocas
desordeiros” e criava um local para a de crise econômica, essa fração aumentava.
internação de pessoas alcoolizadas com Vistas como ociosas e vagais, essas pessoas
um endurecimento das punições aplicadas eram duramente reprimidas pelos agentes
a esses grupos. estatais.

Essas normativas evidenciam a per- Con respecto a la manera en que el


manência do controle policial sobre os Estado chileno y los diversos gobiernos
mendigos, vadios e ébrios e o objetivo de han enfrentado este problema, algunos
sujeitá-los ao trabalho. O controle sobre datos señalan que ya desde principios
essas pessoas e a conformação de seus del siglo XX las ciudades contaban con
comportamentos atendia ao conjunto de una importante población en estas con-
transformações socioeconômicas que o diciones, hecho que aumentaba en años
país atravessava, como a emergência do de crisis económicas, llegando en estos
trabalho livre, da nova ordem econômica casos a ser miles de personas en las cal-
e da urbanização (BARBOSA, 2018, p. 44). les. En la primera mitad del siglo XX, el
Estado chileno afrontaba la situación de
Durante o período em que Getúlio calle principalmente desde una perspec-
Vargas esteve no poder, houve um aumento tiva represiva, entendiéndola como una
da repressão às pessoas em situação de rua forma de infracción a ley. Junto con esto,
que eram consideradas aptas ao trabalho. A existía un alto el nivel de estigmatización
denominada Lei das Contravenções Penais, social sobre estas personas, que llevaba
estabelecida por meio do Decreto Lei n. a denominarlas como vagabundos, men-
3.688 de 3 de outubro de 1941, previa em digos, o delincuentes (NÚÑEZ, 2006, p.
um de seus artigos a prisão de “quinze dias 15-16).
a três meses a quem, apto para o trabalho,
se entregasse habitualmente à ociosidade, Partia-se do pressuposto de que as
sem ter renda que lhe garantisse a sub- pessoas que se encontravam em situação de
sistência ou se ocupasse de meios ilícitos rua mesmo estando aptas para o trabalho
para subsistência. Ademais, o artigo 60 eram apenas “preguiçosas” e não se buscava
desta lei previa a mesma punição aos que compreender a multiplicidade de fatores

Extraprensa, São Paulo, v. 15, n. esp, p. 442 – 455, mai. 2022 [ EXTRAPRENSA ]
Giovanna Fidelis Chrispiano “Proibido deitar em frente à loja”:
conflitos da população em situação de rua no meio urbano em São Paulo e em Santiago 447

que as levava à marginalização, como a de Rua (MNPR), pouco tempo após o


pobreza, a desigualdade social, condições “Massacre da Sé”, episódio em que sete pes-
psíquicas e a própria ausência de políticas soas em situação de rua foram assassinadas
sociais. na Praça da Sé, na cidade de São Paulo3.
As reivindicações deste movimento, além
Ambos os países apenas estabele- das relacionadas à realização da Pesquisa
ceram normativas voltadas para o aten- Nacional sobre População em Situação
dimento a essa população nos anos 2000 de Rua em 2008, foram essenciais para a
em que se observa uma relativa mudança elaboração, em 2009, da Política Nacional
da postura dos dois países com respeito às para a População em Situação de Rua.
pessoas em situação de rua com a promoção
de políticas sociais mais bem definidas para Antes dessa política, as ações estatais
esse grupo. A denominada “onda progres- eram marcadas pela ausência de padroni-
sista” que marcou a região nesse período e o zação nacional e pela perspectiva carita-
fortalecimento dos movimentos sociais são tiva ou repressora. A partir desse período,
fatores que influenciaram a elaboração de o governo passa a propor políticas que
medidas que buscam incentivar uma maior visam à autonomia dessas pessoas. No
autonomia para a população em situação entanto, as mudanças ocorreram par-
de rua, assim como a garantia de direitos cial e localizadamente, coexistindo com
básicos como saúde, alimentação, mora- ações do poder público caracterizadas
dia, condições mínimas de higiene, dentre pela repressão às pessoas em situação
outros. de rua (BARBOSA, 2018, p. 2).

No Brasil, a mudança já se inicia em Apesar da mudança relativa de pos-


1988, com a promulgação da Constituição tura por parte do governo, as medidas de
Federal de 1988 que previa diversos direitos caráter repressivo e assistencialista conti-
sociais como “a educação, a saúde, a alimen- nuaram sendo colocadas em prática, verifi-
tação, o trabalho, a moradia, o transporte, cando-se dificuldades para a desvinculação
o lazer, a segurança, a previdência social, total de práticas que vinham sendo adota-
a proteção à maternidade e à infância, a das historicamente.
assistência aos desamparados” (BRASIL,
1988). Em meados dos anos 2000, foi criada No Chile, as iniciativas voltadas para o
a Política Nacional de Assistência Social estímulo a uma maior autonomia da popu-
que assegurou a assistência às pessoas em lação em situação de rua foram gestadas
situação de rua. Além disso, também foi durante o ano de 2003, em que um conjunto
aprovada a Lei 11.258 de 30 de dezembro de instituições relacionadas às pessoas em
de 2005 que modificou a Lei Orgânica de situação de rua se reuniram para dar origem
Assistência Social e estabeleceu a obrigato- à Red Calle (CRUZ, 2014, p. 6). Esta rede
riedade da criação de medidas de amparo
a essas pessoas (BARBOSA, 2018).
3 FOLHA DE SÃO PAULO. Criminosos matam sete
Em setembro de 2005 é criado oficial- moradores de rua em SP. Disponível em: <https://
www1.folha.uol.com.br/folha/especial/2004/massa-
mente o Movimento Nacional da População creemsp/>. Acesso em: 06 dez. 2019.

Extraprensa, São Paulo, v. 15, n. esp, p. 442 – 455, mai. 2022 [ EXTRAPRENSA ]
Giovanna Fidelis Chrispiano “Proibido deitar em frente à loja”:
conflitos da população em situação de rua no meio urbano em São Paulo e em Santiago 448

procurava desenvolver ações voltadas para Observa-se que embora esses países
as pessoas em situação de rua e também tenham apresentado mudanças na maneira
reivindicar políticas públicas mais efetivas como compreendem o fenômeno da situa-
para essa população. ção de rua, medidas de repressão não dei-
xaram de ser colocadas em prática. Desse
No marco da fundação dessa rede, em modo, percebe-se que
2005, são criados os primeiros indicadores
de pessoas em situação de rua com a ela- [...] atualmente convivem ações estatais
boração do Primeiro Cadastro Nacional de divergentes e até conflitantes e tornou-
Pessoas em Situação de Rua que identificou -se comum o conflito entre Políticas
um total de 7.254 pessoas vivendo sob essa Sociais e Políticas de Segurança Pública
condição no país (CRUZ, 2014, p. 6). Em ou Políticas Urbanas. Ou seja, ao mesmo
vista dos dados obtidos a partir do Primeiro tempo em que o Estado permanece pra-
Cadastro, o governo chileno tomou a ini- ticando atos higienistas e de segregação
ciativa de elaborar uma política nacional contra as pessoas em situação de rua, ele
voltada para pessoas em situação de rua, passou a criar políticas públicas que obje-
intitulada Programa Calle: Chile Solidario. tivam seu cuidado e inclusão na sociedade
(BARBOSA, 2018, p. 50).
El programa tiene como propósito que
las personas en situación de calle ten- De modo que se observa uma mescla
gan acceso a los recursos y condiciones entre iniciativas que incentivam a auto-
que les permitan mejorar su calidad de nomia das pessoas em situação de rua e
vida en las áreas que le resultan más práticas punitivas por parte de agentes esta-
importantes, considerando además, la tais. Em uma das audiências promovidas se
incorporación de este grupo al Sistema discutir políticas para a população em situa-
de Protección Social Chile Solidario ção de rua no município de São Paulo, um
(MORALES, 2016, p. 16). dos participantes comentou “a Assistência
Social nos dá cobertores durante o dia, aí de
Percebe-se que nos anos 2000 come- noite chega a Guarda Municipal e arranca
çou a haver um maior esforço por parte do os cobertores de nós, leva nossas coisas”4.
Estado e da sociedade civil em compreender
a complexidade envolvida no fenômeno Em 2009, o Brasil aprovou a Política
da situação de rua e, com isso, ocorreram Nacional para Pessoas em Situação de Rua
certos avanços na área social. A política (PNPR) e, em 2012, no Chile foi promulgado o
nacional desenvolvida pelo governo chileno Programa Calle, vinculado ao Ministerio de
foi um primeiro passo dado nessa direção, Desarrollo Social, no âmbito do Subsistema
embora ainda seja necessário incluir a par-
ticipação das pessoas em situação de rua no
desenho da política e aumentar a articula-
4 Câmara Municipal de São Paulo. Comissão
ção entre os diferentes atores relacionados extraordinária de defesa dos direitos humanos e
à situação de rua, como as instituições pri- cidadania. Audiência pública - Políticas Municipais
vadas, organizações não governamentais e para a População em Situação de Rua, dentro do rol
de atividades que marcam o mês de luta da população
o governo (MORALES, 2016, p. 12). em situação de rua. Data: 20/08/2019.

Extraprensa, São Paulo, v. 15, n. esp, p. 442 – 455, mai. 2022 [ EXTRAPRENSA ]
Giovanna Fidelis Chrispiano “Proibido deitar em frente à loja”:
conflitos da população em situação de rua no meio urbano em São Paulo e em Santiago 449

Seguridades y Oportunidades5. Essas novas Definição chilena:


políticas passaram a prever uma série de
direitos para pessoas em situação de rua, Personas que pernoctan en lugares
e, no caso do Programa Calle, benefícios públicos o privados, sin contar con una
e transferências condicionadas para pes- infraestructura que pueda ser caracte-
soas em situação de extrema pobreza. Além rizada como vivienda, aunque esta sea
disso, passou a haver o reconhecimento de precaria. Personas que por carecer de un
que era necessária a atuação de várias fren- alojamiento fijo, regular y adecuado para
tes em conjunto para a busca de respostas pasar la noche, encuentran residencia
à questão da situação de rua. Um exemplo nocturna - pagando o no por este servi-
disso foi a criação do Comitê Intersetorial cio - en lugares dirigidos por entidades
de Acompanhamento e Monitoramento por públicas, privadas o particulares, que
meio do Decreto nº 7.053/2009 formado brindan albergue temporal. Pertenecen a
por representantes de distintas pastas para este grupo quienes alojan en residencias
discutir, avaliar e acompanhar as políticas y hospederías, solidarias o comerciales
voltadas para pessoas em situação de rua (MDS CHILE, 2012).
no Brasil.
A concentração dessas pessoas em
O entendimento legal dos países em ambas as cidades se dá predominantemente
torno da definição de população em situação nas áreas centrais, onde há maior circulação
de rua passou a se relacionar a condições de pessoas, bens e serviços, o que permite
de extrema pobreza e trajetória de vida uma maior elaboração de estratégias de
marcada por perda de vínculos familiares sobrevivência nas calçadas, como pedir
e dificuldades econômicas, como se segue: alimentos, realizar pequenas atividades
remuneradas ou “bicos”, coletar materiais
Para fins deste Decreto, considera- recicláveis e também ter acesso a serviços
-se população em situação de rua o grupo socioassistenciais, como albergues e centros
populacional heterogêneo que possui em de acolhida, que acabam sendo instalados
comum a pobreza extrema, os vínculos nessas regiões.
familiares interrompidos ou fragilizados
e a inexistência de moradia convencional É possível observar nas figuras a
regular, e que utiliza os logradouros públi- seguir os locais em que se concentram os
cos e as áreas degradadas como espaço de serviços de assistência a essas pessoas, no
moradia e de sustento, de forma temporária que diz respeito aos centros de acolhida:
ou permanente, bem como as unidades de
acolhimento para pernoite temporário ou
como moradia provisória (BRASIL, 2009).

5 A Lei nº 20.595 de maio de 2012 teve seu artigo


4º regulamentado pelo Decreto nº 29 de maio de 2013
em que as pessoas em situação de rua foram incluídas
como público-alvo do Sistema.

Extraprensa, São Paulo, v. 15, n. esp, p. 442 – 455, mai. 2022 [ EXTRAPRENSA ]
Giovanna Fidelis Chrispiano “Proibido deitar em frente à loja”:
conflitos da população em situação de rua no meio urbano em São Paulo e em Santiago 450

Os conflitos gerados a partir da inte-


ração dessas duas realidades giram em torno
de temas como a insegurança inspirada
pelos que se encontram em situação de rua
e o aspecto “feio” que sua presença imprime
a esses locais. Os estigmas e preconceitos
relacionados a essa população são de que
essas pessoas estão cometendo algum tipo
de ilegalidade, que estão propensas a come-
ter crimes como roubos e furtos e que não
[Figura 1] - Rede de acolhimento para prezam pela higiene. Geralmente ignora-
pessoas em situação de rua em São Paulo -se o fato de que justamente por se encon-
Fonte: Elaboração própria com base nos trarem em situação de intempérie não é
dados da Secretaria Municipal de São Paulo. possível para esses indivíduos adotarem
práticas que, para os que não se encontram
em situação de vulnerabilidade, são consi-
deradas “comuns”, como ter acesso a água
potável, sanitários e alimentação adequada.

O poder público também se ressente


com a presença crescente de pessoas em
situação de rua em regiões tão centrais,
pois isso acaba visibilizando falhas exis-
tentes por parte da administração pública
Assistência Social (SMADS, 2021). em mitigar fenômenos como a pobreza e
a exclusão social.
[Figura 2] - Rede de acolhimento para
pessoas em situação de rua em Santiago Em todas as gestões, a ação de zela-
Fonte: Elaboração própria com base nos doria nas ruas, praticada normalmente
dados de Noche Digna (2020). pela Guarda Civil Metropolitana (GCM), é
A localização geográfica dos equipa- sempre motivo de confronto. Moradores
mentos indica uma maior predominância de rua e defensores de direitos humanos
dessas populações nos centros urbanos, costumam denunciar os métodos agressivos
onde também se encontram áreas de comér- utilizados por funcionários públicos para
cio, empresas, shoppings centers, bancos e desmontar barracas e limpar as ruas, não
condomínios de alto padrão. Há, portanto, raro recolhendo pertences pessoais e até
a coexistência de duas realidades distintas medicamentos (VELLEDA, 2016)6.
na mesma região, uma pertencente aos que
enfrentam um processo de vulnerabiliza-
ção social e outra aos que possuem amplo 6 REDE BRASIL ATUAL. População em
acesso a bens de consumo e oportunidades situação de rua é desafio para políticas públi-
de levar uma existência digna. cas. 24 set. 2016. Disponível em: <https://www.
r e d e b ra s i l at u a l . c o m . b r /c i d a d a n i a / 2 0 1 6 / 0 9 /
populacao-de-rua-exige-seus-direitos-419/>.

Extraprensa, São Paulo, v. 15, n. esp, p. 442 – 455, mai. 2022 [ EXTRAPRENSA ]
Giovanna Fidelis Chrispiano “Proibido deitar em frente à loja”:
conflitos da população em situação de rua no meio urbano em São Paulo e em Santiago 451

A união desses fatores, quais sejam, medidas que busquem atender o que os
o sentimento de insegurança causado pelo residentes e comerciantes desejam, que
preconceito, a “má aparência” causada pela seria a rápida “solução” para o problema,
presença das pessoas em situação de rua e a que consistiria apenas em seu afastamento
indicação de falha do poder público através para lugares mais distantes.
de seu aumento crescente nesses locais,
faz com que algumas medidas de expulsão Em Santiago, na comuna Estación
desses “indesejáveis” sejam tomadas, tanto Central, houve o estabelecimento de mul-
pela sociedade civil como pela própria admi- tas para quem instalasse barracas em locais
nistração pública. públicos, sanção que pode chegar até $241
mil pesos (aproximadamente R$ 1.600
Com respeito à sociedade civil, o mais reais7) em 20198. Em São Paulo são recorren-
comum é se encontrar, em frente às lojas tes ações violentas da polícia contra grupos
e edifícios que possuem marquises, avisos de pessoas que se encontram em situação de
que proíbem a permanência dessas pes- rua, bem como de passantes e funcionários
soas nos locais, principalmente deitadas de órgãos ligados à administração munici-
e/ou sentadas. Tanto os comércios quanto pal. Além disso, houve episódios recentes
o poder público investem na colocação de de instalação de pinos metálicos e outras
mecanismos denominados “antimendigo” arquiteturas “antimendigo” pela cidade.
ou “arquitetura hostil”, como pinos metáli- Algumas delas tiveram de ser retiradas
cos embaixo de viadutos e alças em bancos após manifestação do Padre Júlio Lancelotti,
de praças para evitar que se possa deitar pároco que atua ativamente pelos direitos
em cima deles. Além disso, os agentes de desses indivíduos.
segurança pública costumam empreender
ações de expulsão das pessoas em situação Ainda é preciso mencionar o recorte
de rua de determinados locais, além de fun- de gênero envolvido no aumento da vul-
cionários de companhias de limpeza pública nerabilidade e violência sofrido por essas
também executarem medidas como o reco- pessoas. As mulheres em situação de rua,
lhimento dos pertences dessas pessoas, o embora menos numerosas que os homens,
que as obriga a sair de onde estão, mesmo estão expostas a agressões tanto por parte
que temporariamente. Como ressalta Silva de agentes de segurança pública, como
(2009, p. 113), ao descrever as violências por homens que se encontram na mesma
sofridas por esses grupos, “a população em situação. No Chile, registra-se 3.500
situação de rua no Brasil, é frequentemente mulheres que vivem em situação de rua
responsabilizada pela situação em que se (VALENZUELA, 2020), enquanto no Brasil
encontra, sendo vítima de massacres e per-
seguições policiais”.

As prefeituras de ambas as cidades 7 Cotação em 25/06/2021, em que R$ 1 = $148,59.


alternam medidas de assistência e de vio- 8 EL MOSTRADOR. La otra cara de los Tiempos
lência contra a população em situação de Mejores: en un año hay casi dos mil personas
rua, ora atendendo a demandas de aco- más viviendo en situación de calle. 15 ago. 2019.
Disponível em: <https://www.elmostrador.cl/
lhimento dessa população, ora tomando noticias/pais/2019/08/15/solo-medidas-parche/>.

Extraprensa, São Paulo, v. 15, n. esp, p. 442 – 455, mai. 2022 [ EXTRAPRENSA ]
Giovanna Fidelis Chrispiano “Proibido deitar em frente à loja”:
conflitos da população em situação de rua no meio urbano em São Paulo e em Santiago 452

correspondem a 19% desse grupo9 (MDS quando ocorre uma agressão não se registra
Brasil, 2008). Em São Paulo, no censo de em nenhum meio, seja nas delegacias ou
2019, foram contabilizadas 3.604 mulheres nas unidades de saúde, que a pessoa viti-
em situação de rua em relação a 20.364 mada estava em situação de rua, restando
homens (PMSP, 2019). “Apesar de repre- apenas notícias esparsas divulgadas em
sentarem de 15% a 20% dos moradores de veículos de comunicação.
rua, as mulheres são vítimas na maior parte
dos casos de violência contra a população Os mecanismos de resposta dessa
nessa situação [...] Elas relatam estupros, população às violências sofridas, seja
assédio e violência psicológica” (G1, 2019). diretamente, como a expulsão de locais e
Em dezembro de 2020 se noticiou o assas- a agressão por parte de terceiros (agentes
sinato da chilena Glenda Delgado, mulher públicos e outros), seja indiretamente, como
em situação de rua de 45 anos de idade. Seu a privação do direito à dignidade, à moradia,
corpo foi encontrado onde pernoitava com à assistência social, à alimentação, dentre
sinais de maltrato e asfixia10. outros, ainda são insuficientes para que
ocorra uma mudança definitiva. Os movi-
De 2015 a 2017, oficialmente foram mentos da população em situação de rua
registrados 17.386 casos de agressões e vio- promovem encontros nas duas cidades e
lência contra pessoas em situação de rua têm denunciado as péssimas condições de
no Brasil. Essa cifra levou em consideração vida às quais as pessoas em situação de rua
atos que ocorreram cujo principal motivo se enfrentam todos os dias para conseguirem
devia à condição do indivíduo se encontrar obter o mínimo de recursos necessários
na rua. Desses casos, a cidade de São Paulo para a sobrevivência. No entanto, é preciso
concentra o maior número, 788. Dentre os reconhecer o papel desses movimentos e da
principais autores das agressões, encon- sociedade civil na promoção das políticas
tram-se pessoas desconhecidas (37,0%); nacionais para essa população elaboradas
amigos ou conhecidos (33,0%); familiares pelos dois países.
(6,0%); e parceiros (5,0%)11.
Tanto em São Paulo como em Santiago
Vale apontar a subnotificação dos foi possível observar a existência de um
casos de violência em ambos os países, pois conflito entre políticas de assistência social
e ações de expulsão e de violência, além
de uma tendência de concentração dessas
pessoas nas áreas centrais, pois são nesses
9 O percentual varia em cada cidade e não existem
dados nacionais atualizados sobre o tema. locais onde se obtém maior possibilidade
10 EL MOSTRADOR. Si no te matan no es de acesso a recursos como alimentação,
tema para nadie. 22 dez. 2020. Disponível em: renda e assistência, o que leva também a
<https://www.elmostrador.cl/braga/2020/12/22/ um conflito entre comerciantes/presta-
si-no-te-matan-no-es-tema-para-nadie/>.
dores de serviço e essa população, ambos
11 G1. Brasil registra mais de 17 mil casos de violên-
cia contra moradores de rua em 3 anos. 17 jun. 2019. demandando respostas do poder público.
Disponível em: <https://g1.globo.com/sp/sao-paulo/
noticia/2019/06/17/brasil-registra-mais-de-17-mil- É necessário que se amplie a discussão
-casos-de-violencia-contra-moradores-de-rua-em-
-3-anos.ghtml>.
sobre a violência sofrida por pessoas em

Extraprensa, São Paulo, v. 15, n. esp, p. 442 – 455, mai. 2022 [ EXTRAPRENSA ]
Giovanna Fidelis Chrispiano “Proibido deitar em frente à loja”:
conflitos da população em situação de rua no meio urbano em São Paulo e em Santiago 453

situação de rua, lembrando que a própria


condição em que se encontram já é resul-
tado de múltiplos processos violentos e de
negação de direitos básicos, como digni-
dade, moradia e saúde. Provisoriamente,
a principal sugestão para prevenir esses
atos de violência que ocorrem tanto em
São Paulo como em Santiago referem-se
ao incremento do currículo de formação
inicial dos profissionais de linha de frente
que atuam com essa população (zeladoria,
segurança pública e saúde) para que tenham
maior sensibilidade com relação a sua situa-
ção (CASTILHO, FILHO, CARVALHO, 2014).
Além disso, é necessária uma mudança de
concepção da sociedade civil em torno deste
tema a fim de que ela possa entender que,
diante de uma situação de grave violação
de direitos humanos como é a situação de
rua, cabe a busca de auxílio dos órgãos de
assistência social e a demanda por políticas
mais inclusivas a essa população.

[G IOVA N N A F IDEL IS CHRISPIA N O]


Mestra em Ciências pelo Programa
Interunidades em Integração da América Latina
(PROLAM/USP). E-mail: [email protected]

Extraprensa, São Paulo, v. 15, n. esp, p. 442 – 455, mai. 2022 [ EXTRAPRENSA ]
Giovanna Fidelis Chrispiano “Proibido deitar em frente à loja”:
conflitos da população em situação de rua no meio urbano em São Paulo e em Santiago 454

Referências

BARBOSA, José Carlos Gomes. Implementação das políticas públicas voltadas para
a população em situação de rua: desafios e aprendizados. 2018. 120 f. Dissertação
(mestrado) - Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada, Brasília, 2018. Disponível em:
<http://www.mestradoprofissional.gov.br/sites/images/mestrado/turma2/jose_carlos_
gomes_barbosa.pdf>. Acesso em: 05 dez. 2019.

BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília,


DF: Senado, 1988.

CASTILHO, Suely Dulce de; FILHO, Edson Benedito Rondon; CARVALHO, Claudia
Cristina. Segurança pública e população de rua: desafios políticos e pedagógicos.
Disponível em: <https://www.novo.justica.gov.br/sua-seguranca-2/seguranca-publica/
analise-e-pesquisa/download/estudos/pspvolume6/desafios_politicos_pegagogicos.pdf>.

CRUZ, Fabián Ignacio Rojas. Análisis política nacional de Calle (Chile). Universidad San
Sebastián. Facultad de Ciencias Sociales. Programa de Licenciatura en Trabajo Social,
2014.

IPEA. População em situação de rua em tempos de pandemia: um levantamento de


medidas municipais emergenciais. 2020. Disponível em: <https://www.ipea.gov.br/
portal/images/stories/PDFs/nota_tecnica/200610_nt_74_diset.pdf>. Acesso em: 25 jun.
2021.

MARINHO, M. G. S. M. C.; SALLA, F. A.; TEIXEIRA, A. Vadiagem e prisões correcionais


em São Paulo: mecanismos de controle no firmamento da República. Estudos Históricos
Rio de Janeiro, v. 29, n. 58, p. 381-400, maio-agosto 2016.

MORALES, Gonzalo Ignacio Haefner. Construcción de la identidad en personas adultas


en situación de calle de la ciudad de Santiago de Chile. 2016. 112 f. Dissertação (Mestrado
em Psicologia). Universidad Adolfo Ibáñez, Santiago, 2016.

NÚÑEZ, Macarena Alejandra Weason. Personas en situación de Calle: reconocimiento


e identidad en contexto de exclusión social. 2006. 124 f. Trabalho de Conclusão de Curso
(Ciencias Sociales) - Departamento de Ciencias Sociales, Universidad Alberto Hurtado,
Santiago, 2006.

MDS CHILE. Más de 15.000 personas en Chile viven en situación de calle: cuántos son
por región y las características de esta población. Disponível em: <https://www.emol.
com/noticias/Nacional/2020/06/13/988915/Chile2020-Personas-situacion-calle.html>.
Acesso em: 27 jun. 2021.

Extraprensa, São Paulo, v. 15, n. esp, p. 442 – 455, mai. 2022 [ EXTRAPRENSA ]
Giovanna Fidelis Chrispiano “Proibido deitar em frente à loja”:
conflitos da população em situação de rua no meio urbano em São Paulo e em Santiago 455

PMSP. Pesquisa censitária da população em situação de rua. 2019. Disponível em:


<https://app.powerbi.com/view?r=eyJrIjoiYzM4MDJmNTAtNzhlMi00NzliLTk4MzY-
tY2MzN2U5ZDE1YzI3IiwidCI6ImE0ZTA2MDVjLWUzOTUtNDZlYS1iMmE4LThlN-
jE1NGM5MGUwNyJ9>. Acesso em: 27 jun. 2021.

Extraprensa, São Paulo, v. 15, n. esp, p. 442 – 455, mai. 2022 [ EXTRAPRENSA ]

Você também pode gostar