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EM FRENTE À LOJA”:
CONFLITOS DA
POPULAÇÃO EM
SITUAÇÃO DE RUA NO
MEIO URBANO EM SÃO
PAULO E EM SANTIAGO
[ R ES U MO AB STR AC T RESUME N ]
Este artigo tem como objetivo compreender a relação que a população em situação
de rua estabelece com o território em duas localidades: São Paulo (Brasil) e Santiago
(Chile), além de discutir os conflitos e tensões existentes entre essa população e o poder
público. Considera-se que existe uma relação de assistência, por um lado, e de disputa,
por outro, pois os governos devem, ao mesmo tempo, atender as necessidades dos que
se encontram nessa situação, ao passo que devem cumprir com a demanda de residen-
tes e comerciantes pela expulsão e deslocamento dos considerados “indesejáveis”. O
método consiste em pesquisa documental, mapeamento dos locais de assistência a essa
população e análise das motivações existentes por trás da realização de atos violentos e
de expulsão contra essa população. Busca-se responder à pergunta de como as pessoas
em situação de rua se organizam no meio urbano para manter sua sobrevivência e
quais paralelos podem ser traçados entre as realidades brasileira e chilena.
Palavras-chave: População em situação de rua. São Paulo. Santiago.
This article aims to understand the relationship that the homeless population
establishes with the territory in two locations: São Paulo (Brazil) and Santiago
(Chile), in addition to discussing the conflicts and tensions between this
population and the government. It is considered that there is a relationship of
assistance, on the one hand, and of dispute, on the other, as governments must,
at the same time, meet the needs of those in this situation, while they must
comply with the demand of residents and merchants to expel and displace of
those considered “undesirable”. The method consists of documentary research,
a mapping of the places of assistance to this population and an analysis of the
rationale behind the carrying out of violent acts and expulsions against this
population. It seeks to answer the question of how homeless people organize
themselves in the urban environment to maintain their survival and what
parallels can be drawn between the Brazilian and Chilean realities.
Keywords: Homeless population. São Paulo. Santiago.
Este artículo tiene como objetivo comprender la relación que la población sin hogar
establece con el territorio en dos localidades: São Paulo (Brasil) y Santiago (Chile),
además de discutir los conflictos y tensiones entre esta población y el gobierno. Se
considera que existe una relación de asistencia, por un lado, y de disputa, por otro, ya
que los gobiernos deben, al mismo tiempo, atender las necesidades de quienes se en-
cuentran en esta situación, mientras que deben cumplir con la demanda de residentes
DOI: https://doi.org/10.11606/extraprensa2022.194038
Extraprensa, São Paulo, v. 15, n. esp, p. 442 – 455, mai. 2022 [ EXTRAPRENSA ]
Giovanna Fidelis Chrispiano “Proibido deitar em frente à loja”:
conflitos da população em situação de rua no meio urbano em São Paulo e em Santiago 444
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p. 43). Percebe-se aí uma conexão entre raça mendigavam” (BARBOSA, 2018, p. 45). É
e repressão estatal quando é discutida a possível perceber, portanto, que “a postura
trajetória da relação entre Estado e pessoas de repressão e controle do Estado em rela-
marginalizadas, pois houve um recrudes- ção aos vadios, entre os quais estavam as
cimento das práticas punitivas logo após a pessoas em situação de rua, remonta ao
abolição da escravidão. período colonial e persistiu durante o século
XX” (BARBOSA, 2018, p. 45).
Outras medidas se destacam durante
a trajetória histórica brasileira, como os No Chile, a perspectiva repressiva
decretos n. 6.994 de 19 de junho de 1908 também predominou por um longo período.
e n. 4.294 6 de julho de 1921 que, respec- Desde o início do século XX, as cidades chi-
tivamente, estabelecia a internação para lenas possuíam uma quantidade expressiva
“vadios, mendigos válidos, capoeiras e de pessoas em situação de rua e, em épocas
desordeiros” e criava um local para a de crise econômica, essa fração aumentava.
internação de pessoas alcoolizadas com Vistas como ociosas e vagais, essas pessoas
um endurecimento das punições aplicadas eram duramente reprimidas pelos agentes
a esses grupos. estatais.
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procurava desenvolver ações voltadas para Observa-se que embora esses países
as pessoas em situação de rua e também tenham apresentado mudanças na maneira
reivindicar políticas públicas mais efetivas como compreendem o fenômeno da situa-
para essa população. ção de rua, medidas de repressão não dei-
xaram de ser colocadas em prática. Desse
No marco da fundação dessa rede, em modo, percebe-se que
2005, são criados os primeiros indicadores
de pessoas em situação de rua com a ela- [...] atualmente convivem ações estatais
boração do Primeiro Cadastro Nacional de divergentes e até conflitantes e tornou-
Pessoas em Situação de Rua que identificou -se comum o conflito entre Políticas
um total de 7.254 pessoas vivendo sob essa Sociais e Políticas de Segurança Pública
condição no país (CRUZ, 2014, p. 6). Em ou Políticas Urbanas. Ou seja, ao mesmo
vista dos dados obtidos a partir do Primeiro tempo em que o Estado permanece pra-
Cadastro, o governo chileno tomou a ini- ticando atos higienistas e de segregação
ciativa de elaborar uma política nacional contra as pessoas em situação de rua, ele
voltada para pessoas em situação de rua, passou a criar políticas públicas que obje-
intitulada Programa Calle: Chile Solidario. tivam seu cuidado e inclusão na sociedade
(BARBOSA, 2018, p. 50).
El programa tiene como propósito que
las personas en situación de calle ten- De modo que se observa uma mescla
gan acceso a los recursos y condiciones entre iniciativas que incentivam a auto-
que les permitan mejorar su calidad de nomia das pessoas em situação de rua e
vida en las áreas que le resultan más práticas punitivas por parte de agentes esta-
importantes, considerando además, la tais. Em uma das audiências promovidas se
incorporación de este grupo al Sistema discutir políticas para a população em situa-
de Protección Social Chile Solidario ção de rua no município de São Paulo, um
(MORALES, 2016, p. 16). dos participantes comentou “a Assistência
Social nos dá cobertores durante o dia, aí de
Percebe-se que nos anos 2000 come- noite chega a Guarda Municipal e arranca
çou a haver um maior esforço por parte do os cobertores de nós, leva nossas coisas”4.
Estado e da sociedade civil em compreender
a complexidade envolvida no fenômeno Em 2009, o Brasil aprovou a Política
da situação de rua e, com isso, ocorreram Nacional para Pessoas em Situação de Rua
certos avanços na área social. A política (PNPR) e, em 2012, no Chile foi promulgado o
nacional desenvolvida pelo governo chileno Programa Calle, vinculado ao Ministerio de
foi um primeiro passo dado nessa direção, Desarrollo Social, no âmbito do Subsistema
embora ainda seja necessário incluir a par-
ticipação das pessoas em situação de rua no
desenho da política e aumentar a articula-
4 Câmara Municipal de São Paulo. Comissão
ção entre os diferentes atores relacionados extraordinária de defesa dos direitos humanos e
à situação de rua, como as instituições pri- cidadania. Audiência pública - Políticas Municipais
vadas, organizações não governamentais e para a População em Situação de Rua, dentro do rol
de atividades que marcam o mês de luta da população
o governo (MORALES, 2016, p. 12). em situação de rua. Data: 20/08/2019.
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A união desses fatores, quais sejam, medidas que busquem atender o que os
o sentimento de insegurança causado pelo residentes e comerciantes desejam, que
preconceito, a “má aparência” causada pela seria a rápida “solução” para o problema,
presença das pessoas em situação de rua e a que consistiria apenas em seu afastamento
indicação de falha do poder público através para lugares mais distantes.
de seu aumento crescente nesses locais,
faz com que algumas medidas de expulsão Em Santiago, na comuna Estación
desses “indesejáveis” sejam tomadas, tanto Central, houve o estabelecimento de mul-
pela sociedade civil como pela própria admi- tas para quem instalasse barracas em locais
nistração pública. públicos, sanção que pode chegar até $241
mil pesos (aproximadamente R$ 1.600
Com respeito à sociedade civil, o mais reais7) em 20198. Em São Paulo são recorren-
comum é se encontrar, em frente às lojas tes ações violentas da polícia contra grupos
e edifícios que possuem marquises, avisos de pessoas que se encontram em situação de
que proíbem a permanência dessas pes- rua, bem como de passantes e funcionários
soas nos locais, principalmente deitadas de órgãos ligados à administração munici-
e/ou sentadas. Tanto os comércios quanto pal. Além disso, houve episódios recentes
o poder público investem na colocação de de instalação de pinos metálicos e outras
mecanismos denominados “antimendigo” arquiteturas “antimendigo” pela cidade.
ou “arquitetura hostil”, como pinos metáli- Algumas delas tiveram de ser retiradas
cos embaixo de viadutos e alças em bancos após manifestação do Padre Júlio Lancelotti,
de praças para evitar que se possa deitar pároco que atua ativamente pelos direitos
em cima deles. Além disso, os agentes de desses indivíduos.
segurança pública costumam empreender
ações de expulsão das pessoas em situação Ainda é preciso mencionar o recorte
de rua de determinados locais, além de fun- de gênero envolvido no aumento da vul-
cionários de companhias de limpeza pública nerabilidade e violência sofrido por essas
também executarem medidas como o reco- pessoas. As mulheres em situação de rua,
lhimento dos pertences dessas pessoas, o embora menos numerosas que os homens,
que as obriga a sair de onde estão, mesmo estão expostas a agressões tanto por parte
que temporariamente. Como ressalta Silva de agentes de segurança pública, como
(2009, p. 113), ao descrever as violências por homens que se encontram na mesma
sofridas por esses grupos, “a população em situação. No Chile, registra-se 3.500
situação de rua no Brasil, é frequentemente mulheres que vivem em situação de rua
responsabilizada pela situação em que se (VALENZUELA, 2020), enquanto no Brasil
encontra, sendo vítima de massacres e per-
seguições policiais”.
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correspondem a 19% desse grupo9 (MDS quando ocorre uma agressão não se registra
Brasil, 2008). Em São Paulo, no censo de em nenhum meio, seja nas delegacias ou
2019, foram contabilizadas 3.604 mulheres nas unidades de saúde, que a pessoa viti-
em situação de rua em relação a 20.364 mada estava em situação de rua, restando
homens (PMSP, 2019). “Apesar de repre- apenas notícias esparsas divulgadas em
sentarem de 15% a 20% dos moradores de veículos de comunicação.
rua, as mulheres são vítimas na maior parte
dos casos de violência contra a população Os mecanismos de resposta dessa
nessa situação [...] Elas relatam estupros, população às violências sofridas, seja
assédio e violência psicológica” (G1, 2019). diretamente, como a expulsão de locais e
Em dezembro de 2020 se noticiou o assas- a agressão por parte de terceiros (agentes
sinato da chilena Glenda Delgado, mulher públicos e outros), seja indiretamente, como
em situação de rua de 45 anos de idade. Seu a privação do direito à dignidade, à moradia,
corpo foi encontrado onde pernoitava com à assistência social, à alimentação, dentre
sinais de maltrato e asfixia10. outros, ainda são insuficientes para que
ocorra uma mudança definitiva. Os movi-
De 2015 a 2017, oficialmente foram mentos da população em situação de rua
registrados 17.386 casos de agressões e vio- promovem encontros nas duas cidades e
lência contra pessoas em situação de rua têm denunciado as péssimas condições de
no Brasil. Essa cifra levou em consideração vida às quais as pessoas em situação de rua
atos que ocorreram cujo principal motivo se enfrentam todos os dias para conseguirem
devia à condição do indivíduo se encontrar obter o mínimo de recursos necessários
na rua. Desses casos, a cidade de São Paulo para a sobrevivência. No entanto, é preciso
concentra o maior número, 788. Dentre os reconhecer o papel desses movimentos e da
principais autores das agressões, encon- sociedade civil na promoção das políticas
tram-se pessoas desconhecidas (37,0%); nacionais para essa população elaboradas
amigos ou conhecidos (33,0%); familiares pelos dois países.
(6,0%); e parceiros (5,0%)11.
Tanto em São Paulo como em Santiago
Vale apontar a subnotificação dos foi possível observar a existência de um
casos de violência em ambos os países, pois conflito entre políticas de assistência social
e ações de expulsão e de violência, além
de uma tendência de concentração dessas
pessoas nas áreas centrais, pois são nesses
9 O percentual varia em cada cidade e não existem
dados nacionais atualizados sobre o tema. locais onde se obtém maior possibilidade
10 EL MOSTRADOR. Si no te matan no es de acesso a recursos como alimentação,
tema para nadie. 22 dez. 2020. Disponível em: renda e assistência, o que leva também a
<https://www.elmostrador.cl/braga/2020/12/22/ um conflito entre comerciantes/presta-
si-no-te-matan-no-es-tema-para-nadie/>.
dores de serviço e essa população, ambos
11 G1. Brasil registra mais de 17 mil casos de violên-
cia contra moradores de rua em 3 anos. 17 jun. 2019. demandando respostas do poder público.
Disponível em: <https://g1.globo.com/sp/sao-paulo/
noticia/2019/06/17/brasil-registra-mais-de-17-mil- É necessário que se amplie a discussão
-casos-de-violencia-contra-moradores-de-rua-em-
-3-anos.ghtml>.
sobre a violência sofrida por pessoas em
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Referências
BARBOSA, José Carlos Gomes. Implementação das políticas públicas voltadas para
a população em situação de rua: desafios e aprendizados. 2018. 120 f. Dissertação
(mestrado) - Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada, Brasília, 2018. Disponível em:
<http://www.mestradoprofissional.gov.br/sites/images/mestrado/turma2/jose_carlos_
gomes_barbosa.pdf>. Acesso em: 05 dez. 2019.
CASTILHO, Suely Dulce de; FILHO, Edson Benedito Rondon; CARVALHO, Claudia
Cristina. Segurança pública e população de rua: desafios políticos e pedagógicos.
Disponível em: <https://www.novo.justica.gov.br/sua-seguranca-2/seguranca-publica/
analise-e-pesquisa/download/estudos/pspvolume6/desafios_politicos_pegagogicos.pdf>.
CRUZ, Fabián Ignacio Rojas. Análisis política nacional de Calle (Chile). Universidad San
Sebastián. Facultad de Ciencias Sociales. Programa de Licenciatura en Trabajo Social,
2014.
MDS CHILE. Más de 15.000 personas en Chile viven en situación de calle: cuántos son
por región y las características de esta población. Disponível em: <https://www.emol.
com/noticias/Nacional/2020/06/13/988915/Chile2020-Personas-situacion-calle.html>.
Acesso em: 27 jun. 2021.
Extraprensa, São Paulo, v. 15, n. esp, p. 442 – 455, mai. 2022 [ EXTRAPRENSA ]
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conflitos da população em situação de rua no meio urbano em São Paulo e em Santiago 455
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