6-Psicologia Escolar para Todos - A Opção Pela Intervenção Institucional

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Psicologia: Teoria e Pesquisa e32ne212

Vol. 32 n. esp., pp. 1-10 doi: http://dx.doi.org/10.1590/0102-3772e32ne212

ARTIGO ORIGINAL
Abordagem de competências, desenvolvimento humano e educação superior
Claisy Maria Marinho-Araujo1
Universidade de Brasília
Leandro S. Almeida
Universidade do Minho

RESUMO - Tendo como fundamento a psicologia do desenvolvimento humano, apresenta-se, neste artigo, uma ampliação
conceitual à compreensão de competência. Esse é um termo polissêmico, com multiplicidade de concepções epistemológicas,
éticas e ideológicas que imprimem complexidade aos processos formativos, especialmente em relação à formação pessoal e
profissional na educação superior. Defende-se a noção de competência ancorada na mobilização intencional de diversos recursos
próprios ao desenvolvimento humano: processos psicológicos, comportamentos, conhecimentos, afetos, crenças, habilidades,
escolhas éticas e estéticas, que devem ser mobilizados pelo sujeito. Apresenta-se, a partir dessa ampliação, uma categorização de
competências transversais e possibilidades para sua avaliação. A reflexão pode fundamentar uma atuação crítica de psicólogos
e educadores para a mediação do desenvolvimento de competências dos atores do ensino superior.

Palavras-chave: competências, perfil profissional, desenvolvimento humano, educação superior

Approach to competences, human development and higher education


ABSTRACT - Grounded on human development psychology, this paper presents a conceptual expansion of the understanding
about competence. This is a polysemic construct, with a wide range of epistemological, ethical and ideological concepts that
reinforce the complexity of training processes, especially in relation to personal and professional training in the context of higher
education. This paper defends the notion of competence rooted in intentional mobilization of various resources inherent to
human development: psychological processes, behaviors, knowledge, emotions, beliefs, aptitudes, ethical and aesthetic choices
that the subject must mobilize. From this conceptual expansion, a categorization of transversal competences and possibilities
of assessment are presented. Analyses can support critical actions of psychologists and educators to mediate the development
of competences of higher education actors.

Keywords: competences, professional profile, human development, higher education

Introdução além da formação profissional, cabe à educação superior, no


A busca por inclusão social e maiores oportunidades de âmbito de sua função sociopolítica, desenvolver e consolidar
acesso dos cidadãos aos níveis mais avançados de educação a cidadania por meio da formação de perfis comprometidos
impacta políticas públicas e influencia a expansão atual do com as necessárias transformações sociais, favorecendo o
ensino superior. Em uma conjuntura na qual a massificação aprofundamento e o fortalecimento da autonomia pessoal e
do ensino superior tornou-se realidade, cumpre perceber da emancipação, a partir de sua relação com o conhecimento,
até que ponto tal ampliação da oferta decorre e se traduz a crítica, a reflexão e o exercício político da participação
em uma efetiva democratização, tanto do acesso como do social (Almeida, Marinho-Araujo, Amaral & Dias, 2012;
sucesso (e da permanência com qualidade), especialmente por Marinho-Araujo, Oliveira & Almeida, 2011; Marinho-Arau-
parte dos estudantes provenientes de grupos socioculturais jo, Tavares, Almeida & Amaral, 2011). Nessa linha de novas
menos favorecidos e cujas famílias têm menor tradição de configurações na educação superior, torna-se fundamental
frequência à educação superior. Novas organizações curri- elaborar alternativas teórico-metodológicas de pesquisa que
culares, abordagens metodológicas, processos de avaliação e consigam evidenciar a forma de melhor articular teoria e
práticas acadêmicas decorrem de um esforço de articulação prática nesse nível de ensino e de como desenvolver compe-
entre democratização, igualdade de acesso, equidade dos tências, em especial as transversais, vinculadas às vivências
processos e resultados de efetiva inclusão, ao mesmo tempo dos estudantes em seus contextos acadêmicos de formação.
que os perfis dos estudantes que chegam à educação superior
sofrem acentuadas reconfigurações.
Neste artigo, focam-se as competências e seu desenvol- Educação Superior: Relevância das competências
vimento, defendendo o ensino superior como importante transversais
oportunidade de os jovens-adultos desenvolverem e dife-
renciarem-se em seus perfis de competências (transversais A educação formal nos diferentes países tornou-se uma
e técnico-científicas). Cada vez mais se assume que, para complexa experiência, na qual grupos e classes sociais, por
um lado, se perfilham e interagem, construindo identidades
próprias como autores da história e da cultura; mas, por outro
1 Endereço para correspondência: [email protected] lado, lutam entre si e organizam-se em práticas sociais, nas

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CM Marinho-Araujo & LS Almeida

quais defendem seus interesses e expressam suas vontades, e da aprendizagem de conhecimentos, mas também a partir
preservando valores próprios. Nesse quadro, importa reco- das dimensões sociopolítica, econômica, ética e cultural.
nhecer o papel das instituições educativas em promoverem Essas dimensões irão constituir, de forma mais abrangente,
dialeticamente a manutenção e a transformação da cultura, a função social das instituições responsáveis pela educação
pois os interesses divergentes e os objetivos distintos, ao superior. Tais instituições, mesmo contendo inúmeras contra-
provocarem tensões, favorecem, por outro lado, a evolução e dições, integram também múltiplas forças capazes de superar
as mudanças, em contraponto à estabilidade e à conservação. essas contradições. Esses impasses e dinamismos afetam,
Os sistemas educativos, com seus espaços de contradição e sobremaneira, os processos formativos e as subjetividades
de enfrentamento à ideologia dominante, tanto sustentam e dos envolvidos. Defende-se, então, que o esforço que há
reproduzem ideias da cultura social dominante quanto pro- de ser feito na educação superior deve incidir na formação
porcionam oportunidades para a construção de outras formas cidadã de seus atores para além do foco na competência
de exercício da cidadania (Araujo, 2003; Guzzo, Martinez técnico-profissional, enfatizando a formação de um perfil
& Campos, 2007; Marinho-Araujo, 2005, 2009; Marinho- com profundo compromisso ético e político e o desenvol-
-Araujo & Almeida, 2005). vimento de sujeitos críticos acerca das questões relevantes
Essa tensão está particularmente evidenciada, e mais da vida social, econômica e cultural (Dias Sobrinho, 2010;
facilmente legitimada, no ensino superior, que, articulando Marinho-Araujo, 2004; Vieira & Marques, 2014).
demandas da sociedade e políticas educativas, caracteriza-
-se ora como contexto que produz conhecimentos e forma
cidadãos para as práticas da vida social e econômica, ora Perfil profissional e o desenvolvimento de competências
como instituição que beneficia e favorece interesses privados
e do mercado de trabalho. Em qualquer perspectiva, porém, a O desenvolvimento de um perfil profissional competente
educação superior deve ser entendida como fenômeno social e comprometido com as demandas sociais é um processo
e histórico, que contribui para desencadear processos forma- longo, pois envolve a construção de uma história profissional,
tivos mais globais, e que, como tal, sofre transformações e articulada às características pessoais e às especificidades do
cumpre papéis diversos, respondendo às demandas que lhes exercício profissional, requerendo o desenvolvimento de
são feitas nas mais diversas circunstâncias históricas (Dias competências que permitam considerar e articular teorias,
Sobrinho, 2010; Dourado, 2011; Rothen & Barreyro, 2014). métodos e experiências no mapeamento e na resolução dos
Há diversas questões epistemológicas, éticas, ideológi- problemas no cotidiano social e laboral. Ao deparar com
cas, políticas, culturais, técnicas e científicas que imprimem um problema, o indivíduo nem sempre tem, de antemão,
complexidade à formação no ensino superior. Em geral, sua solução ou todos os dados para uma tomada de decisão
a educação oferecida nas Instituições de Ensino Superior mais segura. É preciso construir um amplo conjunto de pro-
(IES) é orientada por objetivos específicos assentes no cedimentos que considere diferentes formas de saberes (aca-
conhecimento científico. Essa orientação dominante acar- dêmicos, especializados, práticos, da experiência), algumas
reta algumas dificuldades. A maior é que ao dar prioridade, normas, regras e técnicas próprias da profissão, assim como
muitas vezes de forma exclusiva, ao processo de produção um sentido crítico e reflexivo que o leve a fazer escolhas
científica, as propostas acadêmicas acabam por segmentar a e julgamentos profissionais de forma ética, segura e clara.
ciência e a distanciá-la dos fenômenos reais, fragmentando Tradicionalmente, os limites convencionais da racionali-
e descontextualizando a realidade em sínteses compactadas dade técnica, a hierarquização de conhecimentos e o status
dentro de unidades curriculares, módulos e cursos, ao mesmo acadêmico conferem à formação inicial no ensino superior,
tempo que formatados em planos curriculares estanques e de modo geral, um distanciamento da realidade e de suas
em manuais de saberes inquestionáveis. Por outro lado, a demandas, uma sobrecarga de informações teóricas compri-
informação que circula nas IES não consegue expressar a midas no início do curso, a pulverização do conhecimento
totalidade do conhecimento produzido, nem pelos meios pela falta de integração das diferentes disciplinas curriculares
científicos nem pelas relações socioculturais. – geralmente sustentado por um currículo normativo que se
Há, subjacente ao “discurso científico”, vários outros descola da compreensão dos múltiplos contextos de atuação.
discursos sociais, articulados aos contextos e às relações Em sentido diverso, entretanto, as solicitações sociopolíticas
intersubjetivas que os produziram e que nem sempre se contemporâneas fazem sentir a premência de uma formação
concretizam nas opções de formação oferecidas ou mais que assente tanto na fundamentação técnica para um dado
valorizadas, principalmente por meio dos cursos existentes. perfil profissional quanto em componentes vinculados a uma
Mesmo assim, a relevância da educação superior amplia-se, prática real, partilhada, vivificada e ressignificada pelos inú-
reconhecendo-se seu forte impacto nas trajetórias de forma- meros sentidos da experiência e dos processos relacionais.
ção e de atividade profissional dos sujeitos. Aliadas a isso, Dessa forma, pesquisas e políticas públicas apontam,
a dinâmica e as características estruturais das instituições no cenário atual da educação superior, para alternativas de
podem levar ao desenvolvimento de inúmeras ações e con- formação com respostas curriculares organizadas em torno
cepções, limitadoras ou favoráveis à autonomia, transforma- de competências; de orientações de ensino que exigem aper-
doras ou de adequação, dependendo das visões e ideologias feiçoamento constante, dedicação e supervisão criativa do
próprias a cada IES e ao sistema de educação superior do corpo docente, assim como posturas ativas e participativas
país como um todo (Dias Sobrinho, 2010). de aprendizagem – por parte dos estudantes –, que favoreçam
Nesse sentido, acredita-se que o processo educativo das a aquisição e o desenvolvimento da agilidade, criatividade,
IES deve ser entendido não apenas na perspectiva do ensino autonomia, postura inquisitiva e tomada de decisão (Almei-

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Competências e Desenvolvimento Humano

da, Marinho-Araujo, Amaral & Dias, 2012; Brasil, 2003; O conceito de competências alterou-se na medida em que
Dourado, 2011; Mesquita, Lima, Flores, Marinho-Araujo o contexto sócio-histórico e econômico se modificou, gerando
& Rabelo, 2015). maior complexidade aos processos de trabalho, exigindo
Para a construção desse perfil profissional, atuante e aprofundamento no conhecimento científico-tecnológico e a
participativo, as trajetórias de formação têm utilizado a abor- utilização de capacidades cognitivas complexas, desenvolvi-
dagem por competências como estratégia privilegiada e útil das por meio de relações sistematizadas com o conhecimento
tanto ao desenvolvimento pessoal quanto à preparação para teórico formal. As demandas por melhorias da qualidade dos
os papéis e funções a serem desempenhados nos contextos produtos e de flexibilização dos processos de produção e de
de atuação profissional. No Brasil, as Diretrizes Curriculares trabalho exacerbaram a competição e acabaram por utilizar
Nacionais para todos os cursos de graduação utilizam essa a educação e a formação acadêmica superior como meio de
abordagem como referência básica para a organização e o de- incrementar ou adaptar aquisições individuais a tais exigên-
senvolvimento curricular dos referidos cursos (Brasil, 2003). cias (Araujo, 2003; Marinho-Araujo, 2014, 2015; Marinho-
Para alguns autores, contudo, adotar uma formação Araujo & Rabelo, 2015, 2016).
ancorada nessa abordagem pode sugerir um viés tecnicista Em consequência, o termo “competência” se univer-
e dominado pelo mercado de trabalho. Como contraponto, salizou, apoiando a modalidade de trabalho estruturado,
acredita-se que remeter a formação profissional inicial à cons- exigindo domínio de conhecimentos científicos e tecnológi-
trução de competências não significa se colocar refém das cos articulados ao desenvolvimento psicomotor, cognitivo,
demandas econômicas do mercado, podendo, pelo contrário, afetivo e social (fazer, saber, ser e estar com os outros). Esse
levar em conta as contradições do mundo do trabalho, os con- novo cenário direcionou a questão das competências para
textos econômicos e político-ideológicos, as transformações definições operacionais e observáveis que, para Depresbiteris
técnicas e organizacionais, os impactos socioambientais, os (2002), não seriam suficientes para orientar a compreensão
laços coletivos e de solidariedade, os princípios e as lutas e o desenvolvimento de competências.
dos cidadãos. Este artigo assume, de início, a possibilidade O termo “competência” foi sendo associado a uma varie-
e a relevância desses elementos para integrarem o processo dade de atributos como “capacidades”, “aptidões” ou “exper-
de formação na educação superior. tises” necessários à execução de determinadas atividades pro-
fissionais. Essa diversidade na utilização do termo contribuiu
para que o conceito de competência fosse sendo dissociado
Conceito de competências da ideia de uma especialidade de alto nível, adquirindo mais
flexibilização e um uso mais constante, especialmente no
A definição de “competência” é complexa e possui múl- sistema educativo. A referência às “competências” aparece
tiplas dimensões, ancorada em diferentes matrizes teórico- no discurso contemporâneo da área educacional, quer se trate
-conceituais que orientam sua descrição e os consequentes do perfil dos docentes quer do perfil dos estudantes. Essa
desdobramentos. Desde a Idade Média, o conceito de compe- noção se ampliou na medida em que a exigência do domínio
tência foi sendo vinculado a uma capacidade reconhecida de de conhecimentos científicos e tecnológicos se articulou a
ação ou de expressão individual sobre determinados assuntos outros aspectos do desenvolvimento humano, especialmente
(Depresbiteris, 2001; Kuenzeer, 2004b). Uma competência, às dimensões socioafetivas.
porém, não se define apenas em termos de “prontidão para A competência passou a ser entendida como recurso e
o desempenho de uma ação”, mas, antes, constrói-se no ferramenta que habilitam o sujeito a atuar, com intencio-
cotidiano sociocultural e nas situações relacionais do dia a nalidade e segurança, em contextos técnicos e complexos,
dia quando elas exigem, de seus atores, a identificação dos diante dos quais ele pode fazer opções éticas, conscientes e
conhecimentos pertinentes e a mobilização de recursos, transformadoras (Carneiro, 2014). A essa altura, amplia-se o
configurados em uma postura ativa diante dos desafios ou significado do conceito de competência, passando a incluir
problemas. A noção de competência é, assim, polissêmica, o processo complexo de enfrentamento de uma realidade
evocando uma multiplicidade de conhecimentos, saberes, cultural, mutável e histórica, exigindo escolhas e decisões.
habilidades e diversos outros recursos pessoais, quando colo- Em síntese, essa ampliação da noção de competência
cados ou não em prática nas atividades, situações ou relações. retira-a da explicação limitada de um “saber fazer”, expressa
As inúmeras mudanças ocorridas nas condições sociais, apenas no “resolver problemas” ou “cumprir tarefas”, anco-
econômicas, históricas e culturais das últimas quatro décadas rada em esquemas operatórios e em competências cognitivas
influenciaram as relações e as situações laborais, redefi- requeridas na mobilização de certos conhecimentos, habilida-
nindo perfis profissionais e estabelecendo novas formas de des, atitudes. O desenvolvimento de competências, focando
organização do trabalho. A complexidade da questão das apenas habilidades ou estruturas cognitivas que o sujeito
competências cresceu em extensão nesse cenário, pautado mobiliza diante de seus objetivos e potencialidades, reduz a
por acentuadas mudanças e imprevisibilidade. Surgiram, concepção de competências a uma característica individual,
então, classificações de competências como categorias de treinável, sem implicar um caráter coletivo à combinação
“saberes” e um conjunto amplo de conceitos associados às de competências requeridas por um contexto profissional
competências, como performance, know-how, empowerment, específico ou uma determinada categoria profissional. Assim,
qualificação, adquiridos por aprendizagem formal ou infor- construir competências por meio de um processo formativo
mal, no quadro de momentos específicos de aprendizagem pressupõe considerar, de forma intencional, o conjunto de
ou de uma aprendizagem ao longo da vida (Deluiz,, 2001; influências históricas, sociais e culturais, assim como o
Depresbiteris, 2001; Esteves, 2009; Kuenzer, 2002, 2004b). impacto das práticas sociais na vida pessoal e profissional.

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CM Marinho-Araujo & LS Almeida

Alguns autores (Le Boterf, 1998, 2000, 2003; Wittorski, à construção de uma identidade profissional adequada às
1998, 2003, 2004, 2005, 2007, 2009; Zarifian, 2001, 2003) exigências das situações concretas, tanto individuais quanto
consideram a influência social nos mecanismos de atribuição coletivas. Nessa mesma linha se pode reconhecer o impor-
de sentidos às ações individuais ou coletivas e, especialmente, tante papel atribuído às experiências laborais e aos estágios
o impacto das práticas sociais na identificação das competên- profissionais, organizados no quadro do ensino superior
cias. Ao vincularem a noção de competência aos contextos (Vieira & Marques, 2014). Uma grande exigência do pro-
sociais, produzidos em espaços e tempos histórico-culturais, cesso de construção de competências é sua articulação com
pretendem articulá-la a parâmetros de atividades coletivas, os conhecimentos, sejam eles aprofundados, sistematizados,
com objetivos compartilhados em prol de motivos comuns advindos da experiência pessoal, elementares ou complexos.
(Araujo, 2003; Esteves, 2009; Kuenzer, 2002, 2004a, 2004b, Assim se explica que, quanto mais as ações humanas exigem
2009; Le Boterf, 1998, 2000, 2003; Marinho-Araujo, 2009, o aprofundamento ou a organização de tais conhecimentos,
2014, 2015). mais tempo se necessita para a aquisição e o desenvolvimento
Assim, competência não se define apenas como um das competências associadas.
conjunto de habilidades ou capacidades utilizadas para um Para Tardif (2002), construir competências pressupõe
determinado fim. Ser competente caracteriza-se por, diante considerar, como preponderante, a dimensão histórica da vida
de uma situação-problema, mobilizar, de forma articulada pessoal e profissional. É no processo temporal de construção
e interdependente, diversos recursos disponíveis no sujeito de competências que o profissional domina progressivamente
e em seu contexto que deverão ser articulados aos pontos os conhecimentos necessários à realização da sua atividade
críticos identificados da situação, possibilitando tomar laboral; que ressignifica crenças, representações e certezas
decisões e fazer encaminhamentos adequados e úteis a seu sobre sua prática; que integra habilidades, saberes e conhe-
enfrentamento, em contextos sociais e laborais (Araujo, cimentos nas contradições, dilemas e tensões oriundos das
2003; Kuenzer, 2002, 2009; Le Boterf, 2000, 2003; Marinho- diversas fontes que diversificam, historicamente, as compe-
-Araujo, 2009, 2014, 2015; Marinho-Araujo & Rabelo, 2015; tências (Araujo, 2003; Marinho-Araujo, 2009, 2014).
Vieira & Marques, 2014). A competência agrega, portanto, uma característica de
Aprender a identificar, mobilizar e utilizar recursos (co- temporalidade a seu desenvolvimento, pois requer apropria-
nhecimentos, saberes, habilidades, esquemas mentais, afetos, ção e integração progressivas de recursos, conhecimentos
crenças, princípios, funções psicológicas, atitudes, posturas e saberes, além das possíveis transformações de crenças,
e comportamentos), nas relações e em ação, é o que leva a representações e valores. A consolidação das competências
construir a materialidade de uma competência, entendendo-a na trajetória profissional pressupõe uma dimensão histórica,
como uma dimensão do processo de desenvolvimento huma- ressignificada durante o desenvolvimento do sujeito e no
no. Os diversos recursos a serem mobilizados constituem-se interjogo das relações sociais partilhadas. Por isso, traba-
como conteúdos simbólicos diferenciados que serão trans- lhar competências é prever processos de continuidade e de
formados, reflexiva e intencionalmente, em atividades mais rupturas, transformando-se, complementarmente, em função
complexas e diversificadas (Le Boterf, 1998, 2000, 2003; das inúmeras situações vivenciadas. A temporalidade é uma
Wittorski, 1998, 2003, 2007, 2009; Zarifian, 2001, 2003). forte característica na construção de competências, pois,
Essa perspectiva torna a abordagem por competência um progressivamente, no processo histórico de desenvolvimento,
instrumento fértil de mediação permanente e recursiva entre se tornam possíveis a apropriação e a integração de recursos,
a construção do saber e a ação social cotidiana. conhecimentos e saberes, além das possíveis transformações
A concepção de competência, assim revista, aproxima-se de crenças, representações e valores (Araujo, 2003; Le Bo-
de uma perspectiva mais ampla, na medida em que busca terf, 2000, 2005: Zarifian, 2001, 2003).
a construção e a mobilização não só de conhecimentos, Aliada a essa característica de temporalidade, as compe-
habilidades, atitudes e valores, em uma dimensão técnica tências devem ser compreendidas como expressão da conver-
especializada, mas também de afetos, práxis e atributos gência de inúmeros e variados recursos, que se mobilizam
de comunicação e de inter-relações na dimensão histórico- em função de exigências contextualizadas e relacionais. A
cultural. Essa concepção exige, na construção de competên- competência se constitui, portanto, na possibilidade de sele-
cias, a mobilização do conjunto de oportunidades históricas e ção, organização, ampliação, integração e complementação
culturais inseridas em um processo formativo amplo, em que desses elementos, a partir do valor de uso que eles possam
ganham relevância as instabilidades sociais, as circunstâncias apresentar em uma determinada ação. Mobilizar e transver-
político-ideológicas e as contradições intersubjetivas, assim salizar esses recursos deve favorecer a produção de formas
como as negociações dinâmicas presentes nas redes relacio- distintas de agir, atualizando seus usos e não cristalizando
nais. Considerar as competências humanas contextualizadas, condutas a priori. O importante é oportunizar diversos cami-
historicamente definidas, individual e coletivamente consti- nhos na transformação de saberes em novas capacitações para
tuídas, acompanhadas da mobilização dos saberes gerados atuar, em função dos desafios, intenções, contextos e relações
nas atividades e relações de trabalho, auxilia na ampliação (Araujo, 2003; Le Boterf, 2000, 2005: Zarifian, 2001, 2003).
da noção de competência. A competência ultrapassa os saberes e conhecimentos,
Como sugerem Le Boterf (1998, 2000), Wittorski (1998, mas não se constitui sem eles. Assim, conhecimentos e
2003, 2005) e Zarifian (2001, 2003), o lócus privilegiado para competências articulam-se, mas não se identificam, não se
o desenvolvimento de competências seriam as situações de confundem; por isso, não se deve abrir mão da aquisição
trabalho, a partir de contextos envolvendo ações e operações de conhecimentos quando o objetivo é o desenvolvimento
intencionais, originando atividades condizentes e favoráveis de competências, pois as ações humanas impregnam-se de

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Competências e Desenvolvimento Humano

algum tipo de conhecimento. Quando mobiliza conhecimen- e histórica constituição de funções psíquicas. Para Vygotsky
tos para uma atuação competente, o sujeito não os utiliza (1999, 2000, 2003), o surgimento, no ser humano dessas
de forma indiscriminada e nem do mesmo modo, privile- funções e dos processos psicológicos complexos ocorreu a
giando alguns e considerando outros como periféricos ou partir de sua atividade produtora partilhada pelo trabalho,
secundários; nesse sentido, em um processo de construção que imprimiu uma relação constitutiva entre a filogênese e
de competências há que se ter clareza dessa escolha, de seus a ontogênese. O trabalho humano tem, historicamente, vital
motivos e desdobramentos (Araujo, 2003; Kuenzer, 2002, função social no desenvolvimento dos processos psicológi-
2004b; Vieira & Marques, 2014). cos superiores. Pelo trabalho, o sujeito humano, ao longo da
Para Kuenzer (2002, 2004a, 2004b), há uma dimensão história de sua espécie, foi dominando a realidade e criando
práxica no conceito de competência que articula as especi- cultura, na busca de seu bem-estar e da satisfação de desejos,
ficidades da teoria e da prática: nem o conhecimento teórico afetos, emoções, em forte contraposição à evolução animal,
isolado nem o simples agir são suficientes para o desenvol- baseada apenas em sobrevivência (Leontiev, 1983, 2004;
vimento de competências. A autora recorre à práxis como Luria, 1990; Vygotsky, 1999, 2000, 2003).
fundamento do processo de conhecimento, defendendo que As atividades coletivas durante o processo evolutivo
não se conhece ou se transforma a realidade exclusivamente humano foram, dialeticamente, forjadas e acompanhadas
por uma ação do pensamento, mas também por meio da ati- pela criação de ferramentas e de instrumentos, úteis não só
vidade crítico-prática. No fundo, essa relação, presente na por suas características concretas, mas também simbólicas.
práxis, oferece aos processos de formação humana a possi- À medida que as atividades se tornaram mais complexas,
bilidade de integrar a dimensão da reflexão e dos “fazeres” o uso dos instrumentos foi originando vários processos
em processos, resultados ou produtos nos atos ou conjunto de intelectuais e psicológicos, especialmente favorecedores de
atos. Ainda que o trabalho intelectual se encontre articulado à trocas e movimentos comunicativos diversificados entre os
práxis, esse, por si só, é insuficiente para o desenvolvimento sujeitos. Dessa forma, a organização dos processos psicológi-
de competências; a produção teórica e o saber tácito tomam cos humanos foi tendo origem nesse sistema de ferramentas,
um novo significado quando mediados por processos sociais símbolos, signos, historicamente ressignificando no curso
e produtivos. A práxis é imprescindível no desenvolvimento da interação com outros; esse sistema simbólico adquiriu
de competências, invertendo uma lógica dicotômica da pre- a função preponderante de mediação nas transformações
valência dos artefatos, ora teóricos ora práticos, entendidos psíquicas (Leontiev, 1983, 2004; Luria, 1990; Vygotsky,
como referenciais universais de solução para as situações 1999, 2000, 2003).
abertas e complexas enfrentadas pelo profissional (Kuenzer, Para a abordagem histórico-cultural, os processos de
2002, 2004a, 2004b). desenvolvimento e de aprendizagem são mecanismos
Entender, então, a noção de competência em sua dimen- psicológicos constitutivos da subjetividade que, de forma
são histórica e cultural coloca-a em uma perspectiva para interdependente, oportunizam construções e transformações
além da construção social de seus significados. Ela surge de significados (intersubjetivos) e sentidos (intrassubjetivos)
como estratégia multidimensional presente no trabalho, pro- construídos nos processos de comunicação. Nessa perspec-
movendo o desenvolvimento das pessoas. Também por isso, tiva, os espaços educativos tornam-se lócus privilegiado
o repertório socioafetivo deve integrar os recursos mobiliza- para que o ato de aprender influencie preponderantemente o
dos pelas competências, pois são básicos e fundamentais ao desenvolvimento das funções psicológicas superiores.
envolvimento e enfrentamento pelos indivíduos das diversas Desenvolver competências subsidiadas pela ampliação
situações de trabalho ou de não trabalho. conceitual defendida neste artigo encontra forte sustentação
Defende-se que a ampliação da compreensão de com- nos fundamentos da perspectiva histórico-cultural do desen-
petências, como apresentada até aqui, torna-se bastante útil volvimento psicológico humano. A compreensão de compe-
aos processos de formação presentes na educação superior, tências coadunada a essa base psicológica, por seus princípios
especialmente quando fundamentada pelos aportes da psico- e potencialidades, favorece a formação dos sujeitos, nomea-
logia do desenvolvimento. As caracterizações que assumem damente na educação superior. Essa perspectiva oportuniza
a noção de competências discutida nesse artigo coadunam- possibilidades de utilização e incorporação da informação
-se à perspectiva histórico-cultural do desenvolvimento recebida, generalizando, sintetizando e ressignificando seus
humano. Essa perspectiva apoia-se em uma concepção de próprios objetivos, constituindo processos importantes de
homem constituindo-se por meio da apropriação, atuali- configurações subjetivas e consequentes desdobramentos
zação e transformação das práticas culturais, nas relações qualitativos às funções psicológicas.
sociais partilhadas no processo histórico. Os pressupostos
que a referendam defendem uma compreensão dialética da
mediação simbólica entre a história social e as experiências Ensino superior e competências transversais
individuais e concretas, por meio de vivências em situações
socioculturais específicas (Leontiev, 1983, 2004; Luria, 1990; Para desenvolver competências no processo de for-
Vygotsky, 1999, 2000, 2003). mação associado à educação superior, é importante um
Entender o sujeito com base na psicologia histórico-cultu- referencial metodológico apoiado em uma categorização de
ral pressupõe compreendê-lo constituído subjetivamente pela competências. É fato que inúmeras propostas pedagógicas e
impregnação cultural nos mecanismos neurobiológicos, por acadêmicas privilegiam um conjunto específico de compe-
meio de processos semióticos que influenciam sua organi- tências, chamadas por Wittorski (1998, 2003, 2004, 2009)
zação e funcionamento, originando a progressiva, dinâmica de “competências de domínio ou intelectuais”. Como foi

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CM Marinho-Araujo & LS Almeida

proposto até aqui, contudo, recursos socioafetivos e histórico- gulação, etc.), esquemas mentais, habitus, características
culturais devem igualmente ser integrados e mobilizados de cidadania e outras possibilidades de desenvolvimento
pelas competências. subjetivo, comportamental e afetivo. Com a intenção de
Um dos grandes desafios que se coloca hoje nas práti- expandir e refinar os construtos teóricos, apresenta-se, a
cas formativas profissionais é a necessidade de se transpor seguir, uma proposta de categorização para as competências
ou transferir o que se aprendeu para situações novas ou transversais, agrupando-as em três dimensões (recursos
diferentes. Nem sempre, nos cursos superiores, se ensinam pessoais, recursos socioafetivos e recursos éticopolíticos)
posturas de reflexão, crítica e autonomia em relação às e delimitando cada uma dessas categorias em termos de
situações apresentadas e às diferentes possibilidades de definição e âmbito de ação.
ação a serem desenvolvidas. A questão, então, é: como
possibilitar a expressão de competências nas etapas e nos
processos de desenvolvimento profissional, permitindo aos RECURSOS PESSOAIS
estudantes projetarem, em uma atuação prática, as expe-
riências, posturas e vivências aliadas aos conhecimentos Definição:
e habilidades desenvolvidos no curso superior. De fato, • Características e recursos do indivíduo, singulares
importa desenvolver metodologias que auxiliem os alunos e subjetivos disponibilizados como metas de desen-
a compreender, de forma intencional, como as trajetórias volvimento pessoal e profissional.
profissionais podem ser constituídas na interdependência • Conhecimentos prévios, advindos da história de vida
subjetiva das identidades pessoais, mobilizando recursos e da experiência cotidiana, transformados a partir da
que não apenas os técnico-científicos. Ao evidenciar-se, articulação aos conhecimentos formais.
mais uma vez, a interdependência entre identidade pessoal Ações:
e profissional, subjetividades individual e social, contin- • Avaliar e rever sua própria atuação, conhecimentos,
gências e contextos que potencializam desenvolvimento, crenças e pontos de vista a partir de novas orientações
explicita-se a necessidade de a formação profissional ou atualizações.
sustentar um desenvolvimento de competências atraves- • Desenvolver gestos, estilos e posturas que permitam
sado por “elementos de sentido” de outros contextos da perceber, responder e vencer os desafios.
vida social, contribuindo para a configuração de um perfil • Aceitar o desconhecido e as emergências, utilizando-
profissional ampliado. Nessa direção, defende-se como os para novas aprendizagens.
oportuna e necessária a reflexão acerca de uma amplia- • Elaborar projetos individuais de estudo e de aperfei-
ção das categorizações de competências, em especial das çoamento profissional contínuo.
competências transversais. • Realizar comunicações orais em diferentes contextos
Entendem-se essas competências como um conjunto de atuação profissional.
diversificado de recursos individuais e socioculturais, mo- • Apresentar trabalhos e discutir ideias em público.
bilizados com intencionalidade pelos sujeitos em situação • Redigir documentos técnicos e profissionais e textos
de formação ou exercício profissional, visando à resolução de comunicação científica referentes a sua atuação
de uma determinada situação problema. Essas competên- específica.
cias pressupõem a integralidade das di­mensões cognitivas, • Persistir e perseverar em ações planejadas, a despeito
emocionais e sociais, articuladas ao conhecimento teórico de insucessos circunstanciais.
formal na formação de trajetórias profissionais cada vez • Atuar com organização, objetividade, assertividade.
mais complexas; englobam um conjunto diversificado de • Avaliar efeitos positivos e negativos de uma ação,
recursos pessoais, princípios éticos e escolhas estéticas retroativamente, para orientar ações futuras e tomada
transversais às diferentes profissões e atividades pro- de decisão.
fissionais (Cabral-Cardoso, Estevão & Silva, 2006; Le • Agir com autonomia e independência diante de
Boterf, 2000, 2003; Marinho-Araujo, 2009, 2014, 2015; situações problemas.
Zarifian, 2001, 2003). • Enfrentar contextos estressores e relações conflituo-
Podem expressar-se por pensamento crítico, autonomia, sas, buscando soluções criativas e gestão de conflitos.
criatividade, empreendedorismo, trabalho em equipe, orga-
nização, persistência, perseverança, flexibilidade, respeito
à diversidade e responsabilidade social, entre outros. As RECURSOS SOCIOAFETIVOS
competências transversais aliam-se a inúmeras outras
competências técnicas, e essa mobilização e combinação Definição:
de recursos tende a se transversalizar, de forma flexível, • Características favoráveis ao relacionamento social
em outras situações profissionais complexas e imprevisí- e interpessoal e à construção de espaços de interlo-
veis. As competências transversais são, também, comuns cuções intersubjetiva e coletiva, potencializadoras
a diferentes profissões/atividades profissionais, facilitando da atuação profissional.
a empregabilidade de quem as possui (Cardoso, Estevão & Ações:
Silva, 2006; Vieira & Marques, 2014). Tais competências • Coordenar e manejar processos grupais, estudos,
envolvem crenças, valores, saberes práticos, posturas, prin- tarefas e trabalhos coletivos, considerando as dife-
cípios, afetos, escolhas, funções psicológicas complexas renças individuais e socioculturais de seus membros,
(criatividade, imaginação, gestão emocional ou autorre- a multiculturalidade e a diversidade.

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Competências e Desenvolvimento Humano

• Atuar inter e multiprofissionalmente de modo a pro- • Construir uma presença e um estilo pessoal coeren-
piciar o desenvolvimento de vínculos interpessoais te, condizente e adequado a cada contexto e ação
requeridos na atuação profissional. profissional.
• Promover desenvolvimento de equipe, compartilhan- • Reconhecer e intervir na superação de regras e pa-
do projetos e objetivos comuns. drões estéticos que obstaculizam a criatividade, a
• Favorecer a socialização de saberes e a circulação originalidade e a autenticidade.
de informações.
• Estimular a participação coletiva em equipes mul-
tiprofissionais. Avaliação de competências: procedimentos e
• Gerir conflitos, sinalizando inadequações e equívo- instrumentos
cos nas atitudes dos membros do grupo, ampliando
a compreensão das situações. Diferentes instrumentos e procedimentos aparecem des-
• Buscar alternativas de resolução de problemas, por critos na avaliação das competências: escalas de autorrelato
meio de habilidades comunicativas e cooperativas. e heterorrelato, entrevistas, provas de critério, amostras de
• Disponibilizar-se a ouvir o outro, respeitando di- trabalho, provas de grupo, jogos, portfólios e memoriais, en-
ferentes pontos de vista e abrindo-se para o novo. tre outros. Essa diversidade de instrumentos e de participantes
no exercício de avaliação possibilita abordagens qualitativas
e quantitativas, abarcando o repertório e o desempenho indi-
RECURSOS ÉTICO-POLÍTICOS vidual, mas igualmente os contextos e as relações nos quais
as competências se expressam, se desenvolvem e se trans-
Definição: formam. Por referência à categorização apresentada, essa
• Características favoráveis à busca de várias possibili- diversidade de instrumentos pode sustentar as especificidades
dades presentes nas intersubjetividades das relações, de uma avaliação diferenciada, segundo a natureza mais
negando ações pautadas em juízos de valor ou em comportamental ou representacional dos recursos pessoais e
normas moralistas discriminatórias e geradoras de sociais avaliados (cognitivos, socioafetivos e ético-políticos).
exclusão social. Wittorski (1998, 2003, 2005, 2009) acredita ser impor-
Ações: tante caracterizar não só o conteúdo das competências mas a
• Responsabilizar-se pelas escolhas feitas e por suas forma pela qual elas se constroem, na articulação dos meios
consequências. de que o sujeito dispõe: recursos seus e do ambiente social. A
• Desenvolver questionamento e interrogação re- dinâmica do processo de desenvolvimento de competências,
flexivos, críticos e constantes sobre suas próprias sua temporalidade e a influência do contexto não podem ser
decisões, ações e posturas. mensuradas considerando, como é comum em inúmeros
• Considerar o campo de atuação profissional e seus processos avaliativos de competências, apenas o produto
desafios contemporâneos. como tarefa realizada ou comportamento manifesto. Nesse
• Analisar o contexto em que atua profissionalmente sentido, Wittorski (1998, 2003) apresenta a avaliação como
em suas dimensões institucional e coletiva, compre- processo no qual ocorre o desenvolvimento de competências,
endendo a dinâmica entre os agentes sociais. a partir do modelo sintetizado a seguir, que inclui cinco
• Avaliar criticamente linhas de pensamento e concep- momentos, com contextos diferenciados e dinâmicos para
ções relativas a seu campo profissional. esse desenvolvimento.
• Exercitar o compromisso político com o movimento • Nível 1: a primeira via de desenvolvimento de com-
histórico de mudanças pessoais e coletivas. petências e sua avaliação corresponde ao modelo
• Buscar princípios ligados à tolerância, solidariedade, da formação em serviço; as situações profissionais
respeito, justiça e igualdade de oportunidades. exigem do indivíduo a produção, por “tentativa e
• Rever critérios, guias e referenciais em função de erros”, de novas competências na ação; trata-se de
novos dados ou argumentações, exercitando pru- uma “lógica da ação”.
dência nas avaliações. • Nível 2: esse nível de definição das competências
• Disseminar uma cultura de esperança e de confiança liga-se ao esquema de formação alternada – há uma
nas ações humanas e nas transformações sociais. interação entre a transmissão de saberes teóricos
• Valorizar a diversidade e não camuflar as distâncias em situações de aprendizagens e a produção de
desiguais entre culturas, formas, gostos e preferências. competências em contextos de estágio; é a “lógica
• Coibir a criação de preconceitos gerados por prefe- da reflexão e da ação”.
rências ou indiferenças diante de pessoas, relações • Nível 3: as competências se desenvolvem em situa-
ou situações. ções de análise das práticas já realizadas nos espaços
• Destituir-se de uma ética e de uma estética norma- institucionais de formação; consiste em formalizar as
tiva, coercitiva e limitadora em prol de referenciais competências implícitas produzidas na ação e, assim,
mais flexíveis e menos arbitrários. transformá-las em saberes de ação – as competências
• Apresentar propostas de trabalho de forma organi- são traduzidas em palavras e transformadas em sabe-
zada, atraente, agradável e interessante, estimulando res comunicáveis validados pelo grupo, tornando-se,
o diálogo entre estéticas particulares e estéticas assim, transmissíveis a outros; é a “lógica de reflexão
coletivas. sobre a ação”.

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CM Marinho-Araujo & LS Almeida

• Nível 4: esse nível corresponde às situações de de- como eixos orientadores, conjuntos de indicadores, como
finição antecipada de novas práticas pelos sujeitos, conhecimentos, saberes, habilidades e demais recursos, como
buscando melhorar níveis de qualidade e resolução os apresentados na categorização proposta neste trabalho.
de problemas: é a “lógica de reflexão para a ação”. Tais indicadores, presentes nas diferentes oportunidades de
• Nível 5: o último nível supõe que os saberes teóricos formação, especialmente na educação superior, poderão ser
adquiridos na formação são integrados em conheci- expressos pelo contexto e pela característica das atividades,
mentos pelos indivíduos e nutrem os recursos que desenvolvidas tanto individual quanto coletivamente.
irão tomando a forma de competências diferentes,
conforme as situações encontradas – trata-se da
“lógica da integração/assimilação” e que se pode Conclusões
também designar por “lógica da transformação”
(Wittorski, 1998, p. 63). A ampliação conceitual defendida nesse artigo tem como
A partir da tipologia dos processos de desenvolvimento base os fundamentos da perspectiva histórico-cultural do
e avaliação de competências, proposta por Wittorski (1998, desenvolvimento humano. Sob essa orientação, a noção de
2003), sustenta-se que eles ocorram considerando duas gran- competência se expande à dimensão intersubjetiva, pois que
des dimensões: (i) os procedimentos pelos quais é possível considera a influência das relações histórico-culturais e os
observar e mapear processos, etapas, rotinas, estratégias e motivos sociais compartilhados nas atividades coletivas. A
relações que ocorrem nas situações “novas, aprendidas ou ênfase em processos coletivos não minimiza capacidades,
recorrentes”; e (ii) os indicadores do contexto e da caracte- interesses, expectativas, projetos e aspirações particulares
rística das atividades ou da situação, nos quais a combinação dos sujeitos; pelo contrário, de forma dialética, favorece a au-
entre reflexão e ação possa ser oportunizada por meio da tonomia no sentido da emancipação das relações alienantes,
interação entre a transmissão de saberes teóricos e a pro- fortalece opções solidárias e articula a formação educacional
dução de competências nas situações práticas assistidas ou e profissional às dimensões ética e sociopolítica.
orientadas. Nesse sentido, analisar e investigar a práxis e Caracterizar a competência nessa perspectiva ampliada
sua dinâmica institucional se coloca como indicador fecundo significa incorporar uma historicidade individual e coletiva
para subsidiar processos metacognitivos de desenvolvimento à consolidação de um processo de desenvolvimento pessoal
pessoal e profissional. e profissional competente e criticamente consciente. Nesse
Outro enfoque que vem contribuindo para o tema da sentido, considerar as competências humanas contextuali-
avaliação de competências é postulado por Depresbiteris zadas, historicamente definidas, individual e coletivamente
(2001), que ressalta a necessidade de uma avaliação de ca- constituídas, acompanhadas da mobilização dos recursos
ráter mais dinâmico e formativo. De acordo com a autora, gerados nas atividades e relações sociais, pode ser de grande
para se ultrapassar uma perspectiva tecnicista na avaliação auxílio às inúmeras intervenções profissionais nos contextos
de competências, além da ampliação conceitual que deve ser educativos. Com efeito, trabalhar competências como uma
feita, é importante priorizar as concepções dos sujeitos em estratégia de construção do perfil educacional ou profissional
foco, bem como os indicadores de contexto nos quais esses esperado apresenta-se como ferramenta essencial ao planeja-
sujeitos se inserem. Uma avaliação de competências no qua- mento da formação na educação superior. Ao mesmo tempo, a
dro dos modelos epistemológicos, segundo Deluiz (2001), dinâmica do desenvolvimento de competências, as mediações
pressupõe a utilização de matrizes para sua sistematização e socioafetivas, a influência do contexto e das relações devem
análise. Para a autora, as concepções das matrizes de compe- ser consideradas tanto no momento interpretativo do processo
tências evoluíram atreladas a movimentos teórico-conceituais avaliativo quanto, antes, na elaboração dos instrumentos que
predominantes em determinados momentos históricos, ori- irão apontar os indicadores acerca de futuros desenvolvimen-
ginando diversas abordagens: condutivista/behaviorista, tos de competências.
funcionalista, construtivista e crítico-emancipatória. Essas Considerando os inúmeros desafios que as Instituições de
diferentes matrizes se sucederam no campo das competências Ensino Superior (IES) têm para imprimir qualidade à forma-
como perspectivas paradigmáticas, apresentando referenciais ção, a aderência às reflexões aqui apresentadas pode apoiar
distintos e possibilitando ênfases diversificadas quanto às a atualização de cursos de graduação e de pós-graduação,
definições e avaliações de competências, a partir de contínuas processos de ensino-aprendizagem, metodologias e sistemas
transformações do contexto histórico-cultural. de informação e de apoio em um planejamento intencional
Coadunando-se à ampliação conceitual apresentada nesse de desenvolvimento de competências tanto para o corpo
artigo e aos fundamentos da psicologia do desenvolvimento discente quanto docente. No âmbito dos estudantes, levando
utilizados, a avaliação de competências transversais deve em consideração o que eles estão buscando na transição para
se sustentar em um desenho operacional multidimensional, ingressarem nessa etapa de escolaridade, as IES podem adotar
no qual a matriz de competências pode representar uma a ampliação conceitual defendida para seu desenvolvimento
inovadora ferramenta de pesquisa acerca dos recursos de integral, visando a sua responsável preparação para atuar de
competências, envolvendo facetas que vão do individual forma cidadã na sociedade.
ao sociocultural, situacional (contextual-organizacional) e Para concluir, entende-se a noção de competência
processual. A avaliação de competências pela matriz pode em sua dimensão histórica e cultural, considerando-a
produzir indicadores que articulem dimensões educacional, estratégia multidimensional presente especialmente nas
profissional e sociopolítica. Em uma perspectiva mais glo- atividades educativas, cumprindo o papel de recompor
bal, defende-se que a avaliação de competências considere, identidades pessoais e promover mudanças qualitativas na

8 Psic.: Teor. e Pesq., Brasília, Vol. 32 n. esp., pp. 1-10


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Recebido em 08.09.2016
Aceito em 14.12.2016 n

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