Lia Pappámikail: Relações Intergeracionais, Apoio Familiar E Transições Juvenis para A Vida Adulta em Portugal
Lia Pappámikail: Relações Intergeracionais, Apoio Familiar E Transições Juvenis para A Vida Adulta em Portugal
Lia Pappámikail: Relações Intergeracionais, Apoio Familiar E Transições Juvenis para A Vida Adulta em Portugal
Introdução
1 Agradeço à doutora Sofia d’Aboim Inglêz a leitura crítica e as oportunas sugestões que contri-
buíram para elevar a qualidade do texto final. Agradeço igualmente os comentários dos avalia-
dores e revisores do artigo, cujas recomendações se revelaram de extrema relevância.
2 A presença relativamente fraca dos apoios estatais (cujos valores pecuniários são por vezes irre-
levantes) nas trajectórias juvenis, colocando a ênfase na família e nas redes informais de solida-
riedade, não deixa de estar presente no debate em torno da noção de welfare society ou welfare
family e dos limites desta face à intervenção do estado providência (ver entre outros Santos,
1993; Nunes, 1995).
apoio material nas trajectórias juvenis, incluindo a transição para a vida adulta.3
Pais e filhos vêem-se, assim, “obrigados” a negociar novos espaços de autonomia,
bem como novas articulações entre os estados de dependência financeira e a inde-
pendência associada à condição adulta. Na verdade, alguns autores sustentam que
até ao momento o estudo das passagens dos jovens à condição adulta tem negligen-
ciado o facto de as mudanças estruturais nas relações económicas e sociais das últi-
mas décadas afectarem tanto os jovens como as gerações mais velhas (Wyn e
Dwyer, 1999), o que remete para a importância do enfoque intergeracional aqui
adoptado.
Face a este contexto de evidente complexificação dos processos de transição,
importa então saber se novas exigências e novos constrangimentos (e novas opor-
tunidades também) resultam, por um lado, na emergência de novas culturas fami-
liares de relacionamento intergeracional e, por outro, de renovadas modalidades de apoio
familiar às trajectórias juvenis e processos de transição para a vida adulta. Este apoio pode
ser observado a dois níveis:
A análise das transições juvenis para a vida adulta gravita, por outro lado, em torno
de dois princípios analítico-conceptuais. Um primeiro prende-se com a constata-
ção de que a existência de uma estrutura social segmentada, em que se cruzam dife-
rentes sistemas de recursos sociais, económicos, culturais e simbólicos disponíveis
às famílias, e aos seus elementos considerados individualmente, se traduz em dife-
rentes estruturas de oportunidades objectivas (Ball, Maguire e Macrae, 2000). Na
verdade, estratégias de apoio por parte dos pais, mais ou menos explícitas, facili-
tam (ou dificultam), em diferentes medidas, as transições da escola para o mercado
de trabalho, bem como outras passagens estatutárias, como a constituição de uni-
dades residenciais autónomas, a conjugalidade ou a parentalidade.
Um segundo princípio remete para a substituição de um modelo linear de
transições juvenis, em que a assumpção da condição adulta era o culminar de uma
série de etapas sequenciais e ritualizadas (escola, trabalho, conjugalidade, parenta-
lidade), por um modelo fragmentado e polimórfico das trajectórias juvenis, de que
são exemplo paradigmático as “trajectórias yô-yô” (Pais, 2001). As etapas transi-
cionais passam, assim, de eminentemente unívocas e sequenciais a poder ser pluri-
unívocas, porque potencialmente reversíveis, parcelares e/ou concomitantes. Tra-
ta-se, desta forma, de um entendimento das trajectórias juvenis, do tornar-se adul-
to, que recusa a linearidade como perspectiva de análise, mas que projecta a
3 Não são objecto desta reflexão casos de evidente ruptura intergeracional, cujo significado e im-
portância, independentemente do número de casos que representam, não devem contudo ser
negligenciados.
4 Os dados utilizados neste artigo fazem parte de um projecto de pesquisa comparativa envol-
vendo oito países — FATE, Families and Transitions in Europe, coordenado em Portugal pelo pro-
fessor doutor Machado Pais (ICS). A amostra portuguesa foi seleccionada através da lista de
contactos voluntários conseguida aquando da aplicação de um inquérito a estudantes finalistas
de estabelecimentos de ensino localizados em Almada e a diferentes níveis de ensino (obrigató-
rio; vocacional\profissional; universitário) durante o período de Abril a Junho de 2002. As en-
trevistas foram realizadas entre cinco meses a um ano após o fim do ano escolar, ocasião em que
os primeiros autorizaram a entrevista a um dos pais. As entrevistas foram realizadas indivi-
dualmente.
5 Dependência surge aqui como um conceito multidimensional. A dependência pode ser tanto
económica como afectiva ou psicológica, à qual podem estar associados diversos “registos de
significados” pelos sujeitos (Schneider, 2000).
6 A tipologia aqui apresentada não esgota, de modo algum, as modalidades de transição para a
vida adulta em Portugal.
reflexões finais que pretendem incluir esta temática num conjunto de questões
mais abrangentes, nomeadamente nos processos de mudança social que influem
nos sistemas de transição juvenil para a vida adulta.
7 Na verdade, entre os jovens que foram mantendo actividades profissionais mais ou menos regu-
lares estão aqueles em que o processo de obtenção de qualificações superiores (e não só) vive
mais do empenho individual do que do entusiasmo e/ou investimento familiar.
etc.). Esta é, aliás, uma das evidências das estratégias “defensivas” que os su je i -
tos tendem a adoptar face a um futuro cada vez mais imprevisível (Pais, 2003).
No entanto, diferentes orientações nor mativas parecem es tar em jogo: uma éti ca
centrada no trabalho e no dever e uma ética claramente mais orientada para a
expressividade individual de cariz hedonista (Pais, 1998). Ou seja, se para o pai
é no planeamento e no alinhamento estratégico das passagens estatutárias (em -
prego, casa, casamento, etc.) que reside o sucesso das transições para a vida
adulta, para o filho é exactamente no não planeamento da sua trajectória que re -
sidem as oportunidades de viver o presente plenamente e de, por essa via, acu -
mular o máximo de experiências de vida. 8 As tais que lhe rendem sentimentos
de satisfação e realização pessoal, mesmo tomando em consideração o carácter
estrutural da instabilidade na área profissional que escolheu. Contudo, o im -
portante é que estas di ferentes aproximações normativas parecem não in terferir
nem no volume dos apoios prestados, tanto materiais como simbólicos, nem na
avaliação que Nuno faz dos mesmos. Relevante também é o facto de a trajec tó ria
individualizada e reflexiva de Nuno, orientada por valores pós-modernos
(Inglehart, 1990 e 1997), ser, pelo exposto, resultado de uma base de apoio bem
provida de recursos materiais, que lhe permite es colher, decidir, errar e voltar
atrás, isto é, uma biografia individualizada construída com base em “escolhas
reflexivas”, sem nunca estar em causa a sobrevivência ma terial, mas que de pen -
de dum apoio familiar assente numa ética de trabalho, até certo ponto, tradi ci o -
nal. Um paradoxo sobre o qual nos parece forçoso reflectir.9
8 À semelhança dos jovens noruegueses mencionados por Nilsen, Nuno parece recear “uma vida
adulta estática”, colocando a ênfase na mobilidade e na acumulação de experiências diferencia-
das, numa clara oposição à estabilidade e imutabilidade das carreiras profissionais dos pais
(1998: 74).
9 Nesta perspectiva, os avanços da individualização são travados pela persistência das desigual-
dades. Segundo Furlong e Cartmel (1997), entre outros, a modernidade tardia é ainda uma so-
ciedade polarizada, sendo que as desigualdades permanecem, se bem que duma forma mais
individualizada. Na verdade, “A maioria das escolhas envolvem dinheiro” (Nilsen, Guerreiro e
Brannen, 2001: 162-184). Este título de um texto que compara jovens portugueses e noruegueses
não deixa de espelhar de forma paradigmática o acesso desigual a uma individualização reflexi-
va que inevitavelmente estrutura diferentes modos de transição para a vida adulta.
era “dura” demais, e isso ele não queria. Se para escapar a esse “destino” era preci-
so estudar mais, então seguiria esse caminho. Neste caso a via da qualificação esco-
lar surgiu como uma escapatória a uma inserção desqualificada no mercado de tra-
balho. Dadas as limitações no aproveitamento, Fernando e a mãe acabam dese-
nhando um projecto mais “realista”, como definido por Mateus (2002). Na verda-
de, este novo projecto resulta de “condutas de realização que visam objectivos pon-
derados e imediatos (…) que se pretendem potencializar em opções escolares de
cariz tecnológico e profissionalizante, às quais está subjacente uma perspectiva de
maior facilidade curricular” (p. 128). A verdade é que, com o passar do tempo, as
aprendizagens profissionalizantes o reconciliaram com a escola, onde começou a
investir de forma séria e sistemática, terminando o curso de três anos de técnico de
gás, como o melhor aluno da turma. A sua mãe nem queria acreditar, diz-nos a cer-
to ponto.
Um professor acabou arranjando-lhe colocação numa empresa, onde se en-
contra actualmente, com um contrato a termo fixo. Está satisfeito, os rendimentos
que aufere são suficientes e não tem qualquer obrigatoriedade de participar no or-
çamento doméstico. A partir do momento em que começou a trabalhar Fernando
responsabilizou-se apenas pelas despesas relacionadas com o vestuário e com os
seus lazeres. “Não lhe vou dar dinheiro para sair à noite, agora que trabalha, não
é?”, diz Maria Helena. O dinheiro que Fernando ganha é para ele, o que é um apoio
instrumental significativo. Afirma Maria Helena que se sempre lhe deu de comer,
porque não haveia de continuar?
Ambos reconhecem haver, no entanto, alguma tensão na forma como Fernan-
do gasta o seu dinheiro. Os pais prefeririam que ele poupasse e dessa forma prepa-
rasse o futuro (uma casa, uma eventualidade, etc.), mas Fernando acha-se muito
novo. Além do mais, entende que deve “gozar” o presente ao máximo, não se pri-
vando de lazeres e consumos. Este confronto não deixa de ser mais uma evidência
de alguma distância normativa entre gerações, aqui ilustrada por uma tendência
de os jovens concentrarem as suas energias na vivência do presente. Os jovens ten-
dem a rejeitar, aliás, uma ética de sacrifício assente na poupança, muito presente na
geração dos pais (Pais, 1998). Fernando ainda vive em casa dos pais, e não pretende
sair tão cedo. Porque o faria? Fernando considera gozar de uma situação confortá-
vel. Na sua opinião, apesar de os pais não concordarem com tudo o que faz, dão-lhe
uma grande autonomia na gestão do seu quotidiano. A estadia em casa dos pais
permite-lhe, por outro lado, usufruir da totalidade do salário, o que não acontece-
ria se vivesse por sua conta. Se tal acontecesse, diz-nos a páginas tantas, seria a mãe
a tomar conta da casa de qualquer maneira. Ficar em casa dos pais acaba por ser,
nesta perspectiva, uma decisão racional.
Para Maria Helena, como outros pais contactados aliás, a estadia prolongada
gera sentimentos ambíguos. Se, por um lado, é frequente o discurso da importância
da emancipação total, talvez sinónimo de uma educação bem sucedida, na medida
em que os filhos não deixam de ser projectos nos quais se investem expectativas de
mobilidade social, a presença dos filhos no espaço doméstico é, por outro, uma fon-
te de alegria que, mais ou menos inconscientemente, se quer prolongar. Maria He-
lena recorda o episódio em que surgiu uma oportunidade para um emprego em
Coimbra. Queria que o filho se tornasse independente, o pai achava mesmo que ele
se “faria homem” mas, ao mesmo tempo, achava-o ainda “muito criança”. A mãe
insistiu para que ficasse, dizendo que outras oportunidades surgiriam.
Fernando, no entanto, não reconhece à partida a influência de ninguém e diz
tomar todas as suas decisões autonomamente, algo que, aliás, é muito importante
para ele, que assim se vê como único responsável pelas escolhas, certas e erradas,
que fez e fará. No entanto, olhando para as suas opções e decisões, não terá sido as-
sim tão imune às influências externas, nomeadamente da mãe, o que remete para a
influência modeladora e simultaneamente não interventora nas decisões que os
pais aparentam ter na gestão das trajectórias dos filhos.
Fernando aprecia muito o apoio que recebe e sempre recebeu dos pais. Consi-
dera que lhes deve muito. Não espera deles dinheiro para comprar uma casa ou um
carro (não está ao alcance dos rendimentos familiares, acrescenta a mãe), mas en-
tende os apoios recebidos, quotidianos ou ocasionais, como a carta de condução
por exemplo, mais do que suficientes. Sabe que a concretização desses objectivos
dependerá apenas dos frutos do seu trabalho. Nada que o angustie, é forçoso sa-
lientar. Este facto, à semelhança do verificado na maioria dos casos, sugere que a
avaliação do apoio familiar pelos jovens não se faz com base nas transferências ma-
teriais, maiores ou menores consoante os recursos disponíveis, mas nas transferên-
cias afectivas que medeiam as interacções familiares, gerando dependências mú-
tuas, contribuindo igualmente para a configuração da família percebida e vivida
enquanto espaço de harmonia e bem-estar.
O retrato das relações familiares traçado por mãe e filho é de harmonia. Os
conflitos são retratados como irrelevantes, ou pelo menos como não pondo em cau-
sa os equilíbrios relacionais que estruturam a dinâmica familiar. Maria Helena ocu-
pa um papel mais relevante do que o marido, é certo. As mulheres serão mesmo o
pilar central das interacções familiares da maioria dos casos contactados, nomea-
damente na sua vertente expressiva, numa clara evidência da manutenção e mes-
mo reforço de alguns papéis sociais de género tradicionais no seio da dinâmica
familiar.
Também neste caso, há diferenças na orientação normativa das trajectórias,
num claro confronto de valores mais tradicionais dos pais (ética centrada no traba-
lho, numa relação mais austera com o dinheiro, representações sobre o alinhamen-
to das passagens estatutárias — sendo a norma de “sair de casa para casar” um
bom exemplo) e emergência de valores mais pós-modernos do Fernando (recusa
de estabelecer compromissos ontológicos com a concretização de objectivos de
vida, como a conjugalidade ou a saída de casa, fragmentação das trajectórias, adop-
ção de éticas mais centradas na expressividade individual, etc.). Curioso, no entan-
to, foi constatar a natureza pouco conflituosa deste confronto, temperado pelos
afectos e por uma flexibilidade nas relações intergeracionais, que aponta para uma
dupla socialização ou, pelo menos, para uma flexibilidade recíproca na gestão des-
tes “desencontros”. De acordo com o defendido por Pais (1998), estes traços apon-
tam para uma cultura pré-figurativa das relações intergeracionais: “Ou seja, de
uma geração a outra há saberes e posições que se herdam e transmitem, garantindo
uma certa continuidade geracional. Mas há também lugar para a transformação
dos valores, sem que estes tenham de estar necessariamente polarizados em torno
de distintas gerações.” (p. 30)
Apesar das diferenças normativas, os pais pretendem ajudar o filho, que es-
pera este apoio. Contudo, diferenças nos recursos disponíveis consubstanciam um
modelo de apoio diferente do vivido na família de Nuno e Henrique. Grandes
transferências financeiras ou bens de vulto (casa ou carro) não estão ao alcance des-
ta família no momento nem num futuro próximo. Podem, como sugere Maria Hele-
na, ser fiadores de um possível empréstimo bancário, por exemplo. Por outro lado,
os pais, especialmente a mãe, pretendem manter apoios instrumentais de natureza
quotidiana. Significativo é o facto de alguns jovens, de que Fernando é apenas um
exemplo, serem socializados no seio destas limitações relativas e encararem-nas
como normais, não criando expectativas de apoio que excedam as reais capacida-
des materiais dos pais. No limite, isto significa que as limitações objectivas do
apoio familiar não interferem nas representações subjectivas da família, ou seja, do
seu lugar na construção da trajectória individual, nem na avaliação muito positiva
do relacionamento com os pais.
10 Este foi um traço patente noutros casos. A ter em conta o facto de a idade, bastante jovem, estar
associada a um determinado estágio de desenvolvimento psico-social não comparável ao de
Nuno, por exemplo, dez anos mais velho.
11 Sara aproxima-se, assim, do perfil de uma “aluna em fila de espera” definido por Dubet e
Martuccelli (1996) e recuperado por Abrantes (2003), ao sentir uma profunda alienação em rela-
ção à instituição escolar. A este sentimento não é, certamente, alheia a sua condição social e cul-
turalmente desfavorecida, relembrando, mais uma vez, a importância das assimetrias sociais
que a escola (re)produz.
12 Segundo João Ferrão e Fernando Honório (1999), entre 1993 e 1997 40.000 jovens portugueses
abandonaram anualmente o sistema de ensino sem completar o 9.º ano, naquilo que é uma das
taxas de abandono mais altas da UE.
contentes”. Apoio que Sara acha que deve procurar merecer, respeitando as deci-
sões da mãe e obedecendo.
“Melhor amiga” é como se consideram reciprocamente, traçando um cenário
de harmonia familiar, temperado por pequenos conflitos domésticos (discussões
entre irmãos, por exemplo). Por outro lado, apesar da trajectória desta família mo-
noparental ser pontuada pela ausência de uma figura parental (um pai toxicode-
pendente, actualmente preso), por desemprego de longa duração de Cristina, por
diversas mudanças de casa, etc., a ênfase discursiva é colocada no forte laço afecti-
vo que estrutura as interacções entre mãe e filha, a que estará, porventura, associa-
da alguma afinidade de género: uma relação próxima, em que existem espaços de
reserva de intimidade, relativamente a assuntos relacionados com a sexualidade
ou vida afectiva por exemplo, pontuada por pequenos conflitos domésticos sem
grande relevância. A existência de espaços de reserva de intimidade foi uma cons-
tante na caracterização das relações pais-filhos. A extensão destes espaços de reser -
va de intimidade, na maioria das vezes auto-impostos pelos jovens, é tanto maior
quanto maior é a distância normativa e cultural das gerações. Solomon e outros
(2002) sugerem que a dinâmica resultante do confronto entre discursos de abertura
por parte dos pais, como forma subtil de exercer práticas de controlo sobre a vida
dos filhos, interfere na configuração das interacções familiares. Nesta perspectiva,
os jovens tendem a procurar um ponto de equilíbrio nas áreas de informação parti-
lhável com os pais, sem correrem o risco de comprometerem a autonomia conquis-
tada ou ainda por conquistar.13
O futuro para Sara é, neste momento, a curto prazo. Os discursos sobre o futu-
ro limitam-se à obtenção de um “pequeno” emprego que a ocupe e que permita a
Sara responsabilizar-se pelas suas despesas. Não será ainda adulta, apesar da ma-
turidade que Cristina lhe reconhece em alguns aspectos. Criança é o termo que usa
para falar dela. Constatando agora que o abandono escolar foi um mau passo, da-
das as dificuldades para uma pessoa da sua idade e com as suas qualificações (5.º
ano) em arranjar trabalho, Sara reveste o seu futuro de sonhos, com alguns objecti-
vos e ambições, sem que um caminho, estratégia ou plano concreto seja traçado:
gostava de ser cabeleireira, de ter uma casa, trabalhar para ajudar a mãe e um dia
cuidar dela.14 Sobretudo, ouvindo conselhos da mãe, pensar em si primeiro (Cristi-
na foi mãe aos 16 anos de idade), lutar por aquilo que quer. Para tal, ela confia no
apoio da mãe. A questão não é, portanto, se existe apoio familiar, mas qual é a natu-
reza desse apoio. Como é gerido? Quais os recursos utilizados? Na realidade,
13 De facto, “enquanto ambos [pais e filhos] subscrevem um discurso de abertura como caminho
tanto para a intimidade como para a democracia, experienciam as suas relações de forma a ga-
rantir que têm interesses opostos na troca de informação. Para o pai ou mãe, ganho de informa-
ção significa retenção de poder e controlo, e mais intimidade às custas da democracia; para o
adolescente, a retenção da informação é o meio através do qual conquistam privacidade, poder
e identidade, mas às custas da intimidade.” (Solomon, Lewis, Warin e Langford, 2002: 966)
14 Seguindo a definição de Pais (2003), aproximar-se-ia de um “futuro fantasia”, em que os “so-
nhos parecem controlar a vida das pessoas. Os sujeitos não hesitam em falar dos seus planos de
futuro, como se a sua falta de preocupação sobre o futuro fosse uma estratégia para aliviar as
preocupações do presente.” (p. 124)
Cristina, que orienta e decide, e Sara, que aceita e obedece, vêem-se isoladas dos
sistemas formais de apoio (instituições estatais ou outras). Não sabem quais são
nem como procurá-los. Face a esse isolamento relativo, acabam por recorrer às re-
des informais de parentesco, a expedientes que possam no imediato resolver o pro-
blema presente de Sara, o desemprego.
— famílias com elevado grau de apoio, com razoáveis ou elevados níveis de re-
cursos materiais e capitais sociais e humanos;
— famílias com elevado grau de apoio, mas com situações sociais pautadas por
uma limitação dos recursos disponíveis;
— famílias com apoio reduzido, devido a problemas sociais, conjugais ou mes-
mo relacionais com os filhos.
15 Esta secção diz respeito a uma análise global das entrevistas e não apenas aos casos atrás expos-
tos.
16 Mais, tal como em Nilsen, também nós concluímos que “levar uma vida com mobilidade no sen-
tido de passar livremente por vários empregos e parceiros parece atrair os jovens, poder optar é
muito importante” (1998: 74). Sem, no entanto, se verificar um desprezo total pela estabilidade.
Esta junta-se, como objectivo difuso sem prazo de concretização, aos planos de conjugalidade,
parentalidade e criação de unidades residenciais autónomas.
Figura 1 O apoio familiar e autonomia juvenil em processos de transição para a vida adulta
17 De salientar que para estes jovens não se trata propriamente de uma necessidade de sobrevivên-
cia, mas de uma mais-valia de cariz opcional. Não será, certamente, sempre assim.
exemplo, não recorrem à comparação com outros jovens mais favorecidos, valori-
zando o facto de saberem desde cedo que teriam de conseguir determinadas coisas
por si próprios. Mais, a percepção subjectiva das desigualdades e dificuldades não
parece afectar de maneira significativa o optimismo relativo da maioria destes jo-
vens (Wyn e Dwyer, 1999: 14).
Num outro registo, o apoio familiar não deve ser, na óptica da maioria dos en-
trevistados, incondicional. Na realidade, o apoio deve estar assente numa lógica
meritocrática, que “obriga” os filhos a merecerem o apoio dos pais. Esta lógica dis-
cursiva comum, assenta, no entanto, em diferentes conceptualizações de mérito,
tão flexíveis consoante os revezes que os jovens vão enfrentando, decisões que re-
sultaram em becos sem saída, inversões de sentido (educacional, profissional e
mesmo pessoal) apenas possíveis com a “compreensão” e “apoio” dos pais.
Não deixa de ser relevante o facto de, entre os jovens que abandonaram a es-
cola precocemente, alguns sem completarem o ensino obrigatório, o apoio familiar
ser sentido de forma igualmente positiva e intensa. Na verdade, apesar de todos
apresentarem filiações sociais caracterizadas por baixas escolaridades, inserções
socioprofissionais pouco qualificadas e baixos níveis de rendimentos, estes jovens
revelaram-se satisfeitos e crentes no apoio futuro por parte da família, uma vez que
dos pais tinham tudo o que queriam na medida das suas possibilidades, ou seja, os
tais bens de consumo de relevância simbólica no universo juvenil (telemóveis, con-
solas, computadores, etc.). Estas ofertas materiais relevantes obtêm efeitos imedi a-
tos ao nível da satisfação dos jovens, como foi sublinhado no caso de Sara, que en-
tendem também como prática de apoio (respeito pelas decisões) a aceitação passi-
va das escolhas em relação à escola. Estes pais, com poucos recursos em termos de
capitais culturais e sociais, não parecem deixar de investir nos seus filhos, com os
quais estão profundamente envolvidos. Contudo, incapazes de estabelecer uma
relação estratégica com o sistema de ensino, cujos efeitos são produzidos a longo
termo, acabam por despender recursos consideráveis, fazendo investimentos ma-
teriais com resultados muito mais imediatos nos níveis de satisfação dos filhos.
É neste contexto que surge o elo emocional que liga estes jovens aos pais (ou a
um deles, no caso de famílias monoparentais), o que é, na perspectiva da maioria
dos entrevistados, central na sua existência. No quotidiano familiar são criadas de -
pendências mútuas, muitas de natureza expressiva. Com efeito, a condição de de-
pendência financeira, habitacional ou outra é balanceada discursivamente com a
crença na autonomia individual, com (re) invenções da definição da condição adul-
ta, agora mais centrada no desenvolvimento psico-social dos indivíduos, associa-
da a atributos subjectivos como a maturidade, por exemplo, e menos dependente
de eventuais passagens estatutárias (emprego, casamento, etc.). Por último, os tes-
temunhos prestados por estes jovens em transição traçaram um cenário em que a
família, reduzida à dimensão dos pais, constitui, na verdade, um espaço social de
afectividade, estruturado pela continuidade e pela estabilidade, por contraponto
ao mercado de trabalho, que é investido de significados opostos, ou seja, imprevisí-
vel e por vezes hostil.
18 Esta oposição não deixa de ser, metaforicamente falando, um confronto (suave apesar de tudo)
entre uma ética da cigarra (adoptada por muitos dos jovens que entrevistámos) e uma ética da
formiga (defendida pela maioria dos pais), como referida por Pais (2001: 408), presente, desta
feita, no diálogo intergeracional.
Reflexões finais
Através do contacto com jovens a experenciar transições, algum tempo após terem
ter mi na do um ci clo edu ca ti vo ou aban do na do de fi ni ti va men te a es co la,
19 A normalização do risco e das incertezas nos discursos juvenis, como parte integrante da vida
quotidiana, em relação ao mercado de trabalho ou outras dimensões da vida, é, na realidade,
frequente (Green, Mitchell e Bunton, 2000).
filhos tivessem o 9.º ano, para Henrique algo menos que o ensino superior seria
inaceitável.
A amplitude deste “campo de possibilidades”, entendido como a articulação
entre as oportunidades estruturais existentes num dado momento e a capacidade
que alguns indivíduos revelam, adquirida por via de qualificações ou por efeito so-
cializador de ambientes familiares mais favorecidos, para as gerir e delas tirar pro-
veito, varia consoante o nível de acesso aos diferentes recursos. Na verdade, são os
jovens que efectivamente beneficiam de mais apoio objectivo, pelo menos em ter-
mos de transferências materiais, por parte da família, principalmente entre jovens
com qualificações secundárias ou terciárias, que mais defendem uma lógica meri-
tocrática na atribuição desse apoio. Esta postura não deixa, no entanto, de ser
coerente com a importância atribuída à autonomia e à independência das escolhas
pessoais, escolares e profissionais. Ou seja, estes jovens apreciam a ideia de concre-
tizar os objectivos de vida (mais ou menos definidos) pelos seus próprios meios, o
que parece contribuir para o aumento dos sentimentos de empowerment identitário
na construção de uma identidade de adulto, ou de jovem adulto.
Não é possível, todavia, negligenciar o facto de os jovens oriundos de meios
mais favorecidos, terem um acesso mais facilitado a recursos materiais e simbóli-
cos, quer por via do apoio familiar, quer pelas competências entretanto adquiridas
(as qualificações atingidas são neste aspecto um indicador fundamental), que lhes
permitem construir, obter ou desenvolver esses ou outros recursos necessários ou
pretendidos. Estas competências traduzem-se, em parte, no domínio de determi-
nados códigos simbólicos, em termos de linguagens e conhecimentos práticos, que
possibilitam uma relação relativamente eficiente com todos os segmentos das insti-
tuições sociais (educação, emprego, estado, e até mesmo a família) assim como po-
tenciam uma articulação mais eficaz entre competências, formal e informalmente
adquiridas, em interacções sociais com maior ou menor grau de formalidade. É cer-
to que acontecimentos inesperados, como uma gravidez indesejada, desemprego,
problemas familiares, só para dar alguns exemplos mais comuns, podem ocorrer
ao longo dos múltiplos processos transicionais vividos pelos jovens, obrigando fre-
quentemente a uma renegociação, subjectiva mas também familiar, das expectati-
vas e eventuais objectivos de curto e médio prazo. A possibilidade de ocorrerem
acontecimentos inesperados pode mesmo ser considerada como um dos funda-
mentos da adopção de estratégias defensivas face ao futuro, tal como definidas por
Pais (2003), e igualmente presentes nos casos que contactámos: uma ética de vida
que privilegia o dia-a-dia, recusando o estabelecimento de prazos concretos para
objectivos de vida, que surgem assim dissipados num futuro imprevisível e
incerto.
Num outro nível, é exactamente a inabilidade de incorporar e/ou aprender as
lógicas de funcionamento institucional (terão tido as oportunidades adequadas
para o fazer?) que parece colocar jovens pouco qualificados, ou que abandonaram
o ensino, na periferia do mercado de trabalho, em termos de oportunidades e tipos
de emprego possíveis, o que remete uma vez mais para a relevância do conceito de
literacia (Gomes, 2003). Aparentemente estes indivíduos, quase todos oriundos de
famílias social e economicamente desfavorecidas, carecem das competências
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the debate on the limits and boundaries of the individualization of youth trajectories. In
effect, on the basis of the exploratory results of the Portuguese participation in a
comparative European research task (Families and Transitions in Europe), particular
emphasis is given to family support strategies and the values, representations and
attitudes associated with them by parents and children, in an intergenerational coming
together of the issues related with the (personal, professional and school) life trajectories
of the young people.