Os Meios de Comunicação

Fazer download em pdf ou txt
Fazer download em pdf ou txt
Você está na página 1de 30

OS MEIOS DE COMUNICAO E A PRTICA POLTICA

LUIS FELIPE MIGUEL

O prodigioso desenvolvimento dos meios de comunicao, ao longo do sculo XX, modificou todo o ambiente poltico. O contato entre lderes polticos e sua base, a relao dos cidados com o universo das questes pblicas e mesmo o processo de governo sentiram, e muito, o impacto da evoluo tecnolgica da mdia. J no comeo do sculo, fez-se notar a presena do rdio, secundado pelo cinema, que se mostrou um importante instrumento de propaganda. Os novos meios exigiam novos tipos de polticos, que soubessem como utiliz-los. Cada um sua maneira, Franklin Roosevelt, nos Estados Unidos, e Hitler, na Alemanha, tornaramse smbolos da poltica da era do rdio. (Assim como Hollywood e a UFA berlinense representaram duas formas diferentes de aproveitamento poltico do cinema.) Mas o meio dominante, desde que surgiu, e que por enquanto no parece ser desafiado pelas novas tecnologias, a televiso. Ela revolucionou nossa percepo do mundo, em especial do mundo social e, dentro dele, da atividade poltica. Ocupando uma posio cada vez mais destacada na vida de seus espectadores (sempre mais numerosos), como fonte de informao e de entretenimento, a televiso reorganizou os ritmos da vida cotidiana, os espaos domsticos e, tambm, as fronteiras entre diferentes esferas sociais. Como demonstrou Joshua Meyrowitz, a mdia eletrnica, sobretudo a TV, rompeu a segmentao de pblicos prpria da mdia impressa e contribuiu para redefinir as relaes entre mulheres e homens, crianas e adultos, leigos e especialistas1. Aprofundou as transformaes no discurso poltico, de certa maneira unindo o sentimento de intimidade, transmitido pelo rdio, com o apelo imagtico prprio do cinema.
1 Meyrowitz, No Sense of Place. As referncias bibliogrficas completas esto ao final do texto.

156

LUA NOVA N 55-56 2002

Evidentemente, os cientistas polticos no puderam ignorar mudanas to significativas e manifestas. Mas, em grande medida herdeiros de modelos que nascem ainda no perodo pr-miditico, tm dificuldade em incorporar de forma expressiva os meios de comunicao s suas reflexes. Em seu livro pioneiro, publicado na dcada de 1920, Walter Lippmann lamentava o fato de que a cincia poltica ensinada nas faculdades como se os jornais no existissem2. Oitenta anos depois, possvel dizer que a cincia poltica j reconhece a existncia do jornal, bem como do rdio, da televiso e at da internet. Mas em geral no v neles maior importncia. Um exemplo emblemtico vem de um dos livros mais festejados da cincia poltica brasileira dos ltimos anos, fruto de uma extensa pesquisa e da anlise minuciosa dos resultados de uma srie de surveys nacionais, especialmente desenhados para o projeto3. Numa obra dedicada ao estudo da cultura poltica, isto , das crenas e atitudes relativas poltica e suas instituies, a mdia brilha como a grande ausente. Referida de passagem, aqui e ali, nunca incorporada como uma varivel significativa para a compreenso das idias polticas compartilhadas por uma populao. Longe de se tratar de um caso isolado, a postura caracterstica da grande maioria dos estudos polticos, tanto nacionais quanto estrangeiros. O recorte da poltica, que a cincia poltica faz, inclui governos, partidos e parlamentos; dependendo das preocupaes especficas e das inclinaes de cada um, tambm participam movimentos sociais, militares, elites econmicas ou a igreja. Os meios de comunicao de massa ficam (quase) invariavelmente de fora. Ou ento so vistos como meros transmissores dos discursos dos agentes e das informaes sobre a realidade, neutros e portanto negligenciveis4. (Cumpre observar que esta tambm a viso da poltica que a prpria mdia costuma transmitir, na qual raras vezes aparece como agente.) Se os cientistas polticos tendem a restringir a importncia da mdia, os estudiosos da comunicao costumam, como observou Rubim, exager-la, a ponto de julgar que a poltica, totalmente dominada pela lgica dos meios, tornou-se um mero espetculo entre outros5. Neal Gabler, ao apresentar a tese da superao da realidade pelo entretenimento, apenas deu uma roupagem mais provocativa a algo que, em certos crculos, j ganha foros de lugar comum6. Uma das pontas-de-lana dessa nova per2 Lippmann, Public opinion, p. 203. 3 Moiss, Os brasileiros e a democracia. 4 Esta a percepo que transparece na obra recente de Castells, O poder da identidade, pp. 161-2. 5 Ver Rubim, Comunicao e poltica, p. 12. 6 Gabler, Vida, o filme.

COMUNICAO E PRTICA POLTICA

157

cepo, a revista George, fundada pelo falecido John John Kennedy, baseia sua linha editorial na idia de que parlamentares e governantes devem ser encarados de maneira similar a atores, cantores, apresentadores de programas de auditrio e outras estrelas do ramo do divertimento. Ou ento, como escreveu um diretor de jornal brasileiro, a poltica se tornou um ramo da publicidade7. uma afirmao que, para alm de sua razoabilidade imediata o avano das tcnicas publicitrias uma das caractersticas mais visveis das disputas eleitorais das ltimas dcadas leva a ignorar a permanncia, transformada, de uma lgica especificamente poltica dentro do quadro cada vez mais miditico que baliza sua ao. Este artigo esboa um modelo para a compreenso da relao entre meios de comunicao e poltica que seja capaz de apreender a interconexo entre as duas esferas e a centralidade crescente da mdia no jogo poltico atual, mas tambm o fato de que a poltica no se tornou um ramo do entretenimento ou da publicidade, como muitos querem regida por objetivos e lgica diferentes. Deve ser entendido como a enunciao de um conjunto de hipteses de trabalho, cujo objetivo guiar novas pesquisas na rea. A principal ferramenta conceitual, retirada da sociologia de Pierre Bourdieu, a idia de campo. Para definir de maneira sucinta e provisria, um campo um sistema de relaes sociais que estabelece como legtimos certos objetivos, que assim se impem naturalmente aos agentes que dele participam. Esses agentes, por sua vez, interiorizam o prprio campo, incorporando suas regras, tambm de maneira natural, em suas prticas (o que Bourdieu chama de habitus)8. O prprio Bourdieu tratou brevemente do impacto da mdia eletrnica sobre o campo poltico (e tambm sobre o campo acadmico). Mas f-lo numa obra polmica, destinada a alertar para o peso excessivo dos meios comunicao de massa na formao das reputaes polticas e universitrias; isto , uma obra de combate, que almejava contribuir para a restaurao da autonomia desses campos9. Em muitos casos, Bourdieu no faz mais do que traduzir, para suas categorias, constataes h muito pre-

7 Frias Filho, Vendem-se candidatos. Outra formulao, de um ex-jornalista e professor de jornalismo estadunidense: a televiso direcionou a poltica para sua prpria essncia: entretenimento visual. Janeway, Republic of denial, p. 60. Mais matizada, uma posio similar aparece em Gomes, Propaganda poltica, tica e democracia. 8 Trata-se de um conceito complexo, que no admite ser encapsulado em umas poucas sentenas; ao longo deste artigo, enfatizarei sobretudo os aspectos mais relevantes para a discusso em tela. Para introdues teis ao conceito de campo, ver Pinto, Pierre Bourdieu et la thorie du monde social, pp. 79-108; Jenkins, Pierre Bourdieu, pp. 66-102; e, do prprio socilogo, Bourdieu (com Wacquant), Rponses, pp. 71-90. 9 Bourdieu, Sur la tlvision.

158

LUA NOVA N 55-56 2002

sentes na literatura sobre comunicao e poltica. Fora alguns insights estimulantes, pouco h, no livro, que avance para uma compreenso mais sistemtica da relao entre mdia e poltica como campos relativamente independentes, na medida em que retm sua prpria lgica, mas sobrepostos, j que interferem, em larga escala, um no outro.

A CENTRALIDADE DA MDIA necessrio, em primeiro lugar, o reconhecimento de que a mdia um fator central da vida poltica contempornea e que no possvel mudar este fato. Ou seja, ocioso alimentar a nostalgia de tempos ureos da poltica, quando imperava o verdadeiro debate de idias, sem a preocupao com a imagem ou a contaminao pelas tcnicas da publicidade comercial10. Em primeiro lugar, porque um retorno ao passado implausvel. Mas tambm porque tal poca de ouro nunca existiu. Antes do advento da televiso, outros fatores viciavam o discurso poltico. Se hoje importante que o candidato tenha um rosto atraente, antes pesavam mais a tcnica retrica, o timbre de voz ou mesmo o talhe do corpo, j que indivduos altos e corpulentos se destacavam mais em meio multido ou no palanque. Em suma, mesmo que se possa lamentar a atual banalizao do discurso poltico, nunca houve nada parecido a um debate puro de idias, desligadas daqueles que as enunciam. Ao mesmo tempo, os meios de comunicao de massa ampliam o acesso aos agentes polticos e a seus discursos, que ficam expostos, de forma mais permanente, aos olhos do grande pblico. Parte da nostalgia da poltica pr-miditica se deve ausncia atual de grandes lderes. Como observa Meyrowitz, isto se deve no falta de candidatos a esta posio, mas superabundncia de informaes sobre eles11, isto , exposio de suas falhas, vacilaes e equvocos. Para quem sonha com o glamour de um mundo salpicado de grandes homens, isto mau. Do ponto de vista da prtica democrtica, porm, a desmitificao dos lderes polticos pode ser encarada como um progresso.

10 Como no contraste, comum em determinada literatura, entre os debates entre Lincoln e Douglas, em meados do sculo 19, com suas discusses profundas de temas controversos, e os debates televisivos de hoje, quando a cor da gravata importa mais do que aquilo que est sendo dito. Ver, entre outros, Lasch, A rebelio das elites e a traio da democracia, pp. 191-3. 11 Meyrowitz, No sense of place, p. 270.

COMUNICAO E PRTICA POLTICA

159

Da mesma forma, muitos criticam o efeito deletrio da mdia sobre a coeso social e a crena nas instituies polticas12. A televiso, em primeiro lugar, insularia as pessoas em suas vidas privadas, minando a convivncia em comunidade, base da confiana interpessoal e da participao poltica. Alm disso, a mdia colocar-se-ia parte dos esforos nacionais, o que se traduziria em seu desrespeito at mesmo pelos segredos de guerra; a nfase do noticirio nos escndalos solaparia a credibilidade nos polticos; em suma, seria abalada a percepo de que o Estado o promotor do bem comum. Uma narrativa mais sofisticada atribui aos meios de comunicao o papel de deflagrador da espiral do cinismo: a imprensa l cinicamente a disputa poltica e os polticos se adaptam ao comportamento esperado, numa cadeia de alimentao mtua13. Sem dvida, legtimo deplorar a cobertura predominante sobre a arena poltica, que se reduz s estratgias da disputa pelo poder e nega espao ao debate sobre os projetos de sociedade. Mas tambm cabe indagar se, do ponto de vista de uma cidadania esclarecida, a desconfiana em relao aos apelos pelo bem pblico e uma viso mais crtica sobre os interesses que movem os lderes polticos no so avanos considerveis. Parte desta suspeio contra a mdia est ligada a uma perspectiva elitista da prtica poltica, que perceptvel, por exemplo, na reflexo do cientista poltico italiano Giovanni Sartori. Ele teve, em primeiro lugar, o mrito de considerar a questo dos meios eletrnicos de comunicao e, assim, chamar a ateno para eles com o peso de seu renome. Quando publicou A teoria da democracia revisitada, em 1987, Sartori ainda comungava do credo liberal de que os mecanismos de mercado bastariam para garantir a autonomia da opinio pblica14. Ou seja: embora reconhecesse a importncia dos provedores de informao no processo poltico democrtico, tratava-se (ao menos para os regimes ocidentais) de um no-problema, dado que as instituies vigentes o resolveriam de maneira satisfatria. Mas, pouco depois, no influente artigo Videopolitica, Sartori vai apontar a influncia excessiva da televiso como o principal obstculo das democracias ocidentais15. Seus argumentos so retomados, com mais vagar, no livro Homo videns. Sartori diagnostica dois problemas interliga-

12 o caso, por exemplo, de Fallows, Detonando a notcia; Sartori, Homo videns; Janeway, Republic of denial; e Putnam, Tuning in, tuning out, pp. 667-80. 13 Cappella e Jamieson, Spiral of cynicism, pp. 9-10. 14 Sartori, A teoria da democracia revisitada, vol. 1, pp. 137-45. 15 Sartori, Videpolitica.

160

LUA NOVA N 55-56 2002

dos: o controle excessivo dos governos pela opinio pblica, reduzindo o nvel de racionalidade e a possibilidade de planejamento a mdio-longo prazo das decises polticas e administrativas, e o controle desta mesma opinio pela mdia eletrnica. A responsabilidade seria da televiso enquanto tal, um meio que inibiria o raciocnio que, de acordo com o cientista poltico italiano, s a palavra escrita promove16. No dada nenhuma importncia s formas de utilizao dos meios de comunicao eletrnicos ou aos interesses que os dirigem. Se no h como reformar a TV, que intrinsecamente nociva, nem, imagina-se, reduzir sua influncia sobre o povo, a nica soluo seria diminuir (ainda mais) a influncia popular sobre as decises polticas, isolando a esfera decisria das influncias vindas de baixo. Assim, Sartori se orienta na direo da reduo da participao poltica, o que coerente com a concepo de democracia que desenvolve em outros livros uma concepo sensvel crtica platnica referente incompetncia das massas e que, rechaando os ideais de autonomia cidad, de igualdade e de alternncia entre governantes e governados, enfatiza o papel seletivo do mtodo eleitoral, reduzindo, enfim, a democracia escolha dos melhor preparados para o exerccio do poder. Fica claro que parte dos problemas que a mdia coloca , na verdade, prpria da democracia de massas: a juno entre um demos heterogneo, dividido por interesses contraditrios e portanto sempre em estado de conflito potencial, e a necessidade, comum a todas as sociedades, de manter um mnimo de unidade entre seus integrantes17. Se, na Grcia antiga, mulheres, escravos e metecos tivessem acesso cidadania, suas instituies precisariam estar melhor posicionadas para lidar com a dissenso. Da mesma forma, a idealizao promovida por Habermas, em sua reconstituio dos incios da opinio pblica, possvel porque a esfera pblica burguesa do sculo XVIII era franqueada a uma parcela relativamente restrita e homognea da populao18. Ao contrrio do que Habermas deixa transparecer, a excluso de trabalhadores braais e mulheres no era algo contingente, mas um trao crucial da realidade que descreve19.

16 Sartori, Homo videns, pp. 35-6. 17 Em seu famoso relatrio Comisso Trilateral, Huntington deixa claro que a incorporao poltica de grupos antes marginalizados, como os negros, era uma das causas da instabilidade da democracia estadunidense dos anos 70. Huntington, The United States, esp. p. 114. 18 Habermas, Mudana estrutural da esfera pblica. Para uma crtica s iluses liberais do empreendimento habermasiano, ver Lwy, A escola de Frankfurt e a modernidade. 19 Ver Fraser, Rethinking the public sphere, pp. 117-8.

COMUNICAO E PRTICA POLTICA

161

Ou seja, num ambiente de acerbo conflito de interesses, inimaginvel que os meios de comunicao sejam os porta-vozes imparciais do debate poltico, como a imprensa europia teria sido em seus primrdios, ao menos na descrio edulcorada que Habermas faz dela20. Isto no significa que se deva descair para o conformismo, j que a mdia sempre defender certos segmentos sociais, mas sim que necessrio perceber que a mudana passa pela presso da sociedade, isto , dos grupos prejudicados pela forma dominante de gesto da comunicao. E, como se tenta mostrar na prxima seo, que o modelo normativo que deve orientar tal presso no pode ser o que Habermas sustenta em sua idealizao da esfera pblica burguesa (e desenvolve mais tarde, em grau mais elevado de abstrao, na teoria do agir comunicativo). O elitismo que subjaz ausncia da mdia na anlise da realidade poltica tambm pode ser apreciado por outro ngulo. Nas sociedades formalmente democrticas em que vivemos, corrente a diviso da poltica em bastidores, as salas secretas em que se fazem os acordos e se tomam as grandes decises, e palco, o jogo de cena representado para os no-iniciados, isto , para o povo em geral21. O que ocorre no palco serviria apenas para distrair a platia e manter a estabilidade do sistema, perpetuando o mito da democracia como governo do povo. Por motivos bvios, a mdia pertence a este segundo espao mas os fatos polticos relevantes ocorreriam no primeiro, nos bastidores. No se trata de negar as imperfeies da democracia formal, que se caracteriza, de fato, pela limitao da participao poltica popular. Mas a distino entre bastidores e palco merece ser relativizada. Em primeiro lugar, a passividade poltica da massa no se trata de um dado da natureza, como quer a tradio do pensamento elitista. Ela precisa ser produzida. Alis, uma investigao sobre o papel dos meios de comunicao na produo desta passividade seria de grande interesse. Como a produo da apatia imperfeita, a massa irrompe, de tempos em tempos no jogo poltico, ou seja, a platia invade o palco e tumultua aquilo que fora acertado nos bastidores. Alm disso, nos regimes formalmente democrticos, o povo mantm a prerrogativa de decidir quem exercer o poder poltico. Ou, continuando com a metfora, a platia decide quem vai para os bastidores, e

20 Para uma crtica esfera pblica habermasiana, centrada sobre a questo da imprensa, ver Garnham, The media and the public sphere. 21 Ver, por exemplo, Balandier, Le pouvoir sur scnes.

162

LUA NOVA N 55-56 2002

em qual posio (ou ao menos controla parte da deciso, j que os grandes patres e os chefes militares, por exemplo, influenciam a poltica sem se submeterem ao crivo das eleies). Alguns autores reduzem o processo eleitoral a um ritual de coeso social, desprovido de conseqncias prticas22, mas o argumento no se sustenta. As eleies alems de 1933, chilenas de 1970 e brasileiras de 1989 so exemplos, com diferentes graus de dramaticidade, de episdios em que a votao popular esteve repleta de conseqncias para histria desses pases e mesmo da humanidade. E no s no momento eleitoral que a voz da platia se faz ouvir. O pblico no indiferente ao que ocorre nos bastidores, nem estes so impermeveis sua curiosidade. Muitas vezes, uma revelao dos bastidores um momento crucial do jogo poltico Watergate e o impeachment de Collor so dois exemplos bvios. O que os elitistas apontam como natural a desigualdade poltica, a profunda diviso entre governantes e governados fruto de uma organizao social que concentra em poucas mos o capital poltico. Alguns poucos monopolizam a capacidade de intervir no campo poltico exatamente porque os outros internalizam a prpria impotncia e oferecem o reconhecimento de que aqueles poucos so os lderes. Se o reconhecimento social a chave da conquista do capital poltico, avulta a importncia da mdia, principal difusora do prestgio e do reconhecimento social nas sociedades contemporneas.

MDIA E REPRESENTAO POLTICA O que se est querendo dizer que sistemas polticos consensuais exigem um grau razoavelmente elevado de homogeneidade prvia e, portanto, tm dificuldade de lidar com conflitos fundamentais de interesse. Em particular, eles no conseguem processar as demandas por igualdade que so parte to importante das lutas polticas contemporneas23. Na medida em que a reduo da heterogeneidade est fora de cogitao (pois a ampliao do acesso formal esfera poltica foi a principal conquista democrtica do sculo XX), o desafio a construo de modos de gesto do conflito que levem em conta, de forma mais justa, os diversos interes22 Edelman, The symbolic uses of politics. 23 Embora a autora relute em afirmar tais concluses, elas se impem a partir dos resultados da pesquisa de Mansbridge sobre o funcionamento de democracias unitrias (consensuais) a nvel local e em ambientes de trabalho (Mansbridge, Beyond adversary democracy, pp. 233-302).

COMUNICAO E PRTICA POLTICA

163

ses sociais, isto , que ampliem a igualdade poltica dos integrantes do demos. Dito de outra forma, o desafio alcanar uma representao mais equnime dos diferentes interesses sociais nas esferas de deciso. A representao poltica coloca uma srie de graves problemas para a organizao democrtica, como os que dizem respeito aos critrios de representatividade, vinculao entre os representantes e seus constituintes, ao risco de autonomizao dos representantes em relao ao conjunto da sociedade etc. Na medida em que a superao da necessidade de representao no est colocada no horizonte24, o pensamento democrtico deve continuar lidando com estas questes e buscando solues, mesmo que sempre sejam provisrias. O que desejo assinalar aqui que os meios de comunicao so, em si mesmos, uma esfera da representao poltica. A mdia , nas sociedades contemporneas, o principal instrumento de difuso das vises de mundo e dos projetos polticos; dito de outra forma, o local em que esto expostas as diversas representaes do mundo social, associadas aos diversos grupos e interesses presentes na sociedade. O problema que os discursos que ela veicula no esgotam a pluralidade de perspectivas e interesses presente na sociedade. As vozes que se fazem ouvir na mdia so representantes das vozes da sociedade, mas esta representao possui um vis25. O resultado que os meios de comunicao reproduzem mal a diversidade social, o que acarreta conseqncias significativas para o exerccio da democracia. Se, como diz Nadia Urbinati, na democracia representativa a excluso poltica toma a forma de silncio26, esse silncio no apenas a ausncia de um representante no parlamento. a ausncia de voz na disputa pelas representaes do mundo social, que se trava nos meios de comunicao. No entanto, as concepes correntes da democracia tendem a ignorar ou desprezar esse fato. As teorias hegemnicas da democracia trabalham com a idia de que os interesses j esto dados, o problema constituindo na maneira de agreg-los. uma perspectiva que reduz a importncia da comunicao poltica. O equvoco no perceber que, longe de serem dados a priori, os
24 Ao contrrio do que fazem crer certas vises utpicas da utilizao das novas tecnologias da informao. Sobre a questo, ver Miguel, Democracia e novas tecnologias da informao. 25 O que j foi demonstrado empiricamente, de forma cabal. Ver, entre muitos outros: Entman, Democracy without citizens; Hallin, The uncensored war; McChesney, Rich media, poor democracy; Fallows, Detonando a notcia; Noelle-Neuman, La espiral del silencio; Page, Who deliberates?. Para o caso brasileiro: Berger, Campos em confronto; Kucinski, A sndrome da antena parablica; Miguel, Mdia e eleies. 26 Urbinati, Representation as advocacy, p. 773.

164

LUA NOVA N 55-56 2002

interesses e as preferncias dos indivduos so permanentemente definidos e redefinidos atravs da prpria luta poltica, que vai enfatizar certas clivagens sociais em detrimento de outras, construir solidariedades e identidades coletivas, universalizar projetos e vises de futuro. A democratizao da esfera poltica implica, portanto, tornar mais equnime o acesso aos meios de difuso das representaes do mundo social. Isto significa, em primeiro lugar, dar espao na mdia s diferentes vozes presentes na sociedade, para que participem do debate poltico. Mas significa tambm, e crucialmente, gerar espaos que permitam aos grupos sociais, em especial os dominados, formular suas prprias interpretaes sobre suas necessidades e seus interesses aquilo que Nancy Fraser chama de contra-pblicos subalternos27. O caminho, portanto, no passa pela neutralidade dos meios de comunicao, como se depreende do modelo habermasiano da esfera pblica, mas por um verdadeiro pluralismo, que os mecanismos de mercado, por diversas razes, no provem. Entre estas razes esto a tendncia monopolizao, que a concorrncia econmica gera, e a tendncia uniformizao dos produtos, ditada pela natural imitao das frmulas exitosas. Mas a principal delas , sem dvida, o fato de que todos os grandes rgos de mdia compartilham de uma mesma viso de mundo, que inclui em especial o compromisso com a ordem capitalista. O mercado da mdia est cada vez mais concentrado (e internacionalizado). As empresas que o dominam tm um peso crescente na economia como um todo. O fenmeno chamado de convergncia tecnolgica vm agrupando indstrias de informao e entretenimento, de aparelhos eletrnicos e de telefonia em mega-conglomerados, que via de regra tm tambm participao em outros ramos de produo. Por fim, as empresas de mdia so em grande parte dependentes de outras grandes firmas capitalistas, suas anunciantes28. Tal quadro deixa claro que os meios de comunicao, na forma em que existem hoje, dificilmente daro espao para a expresso ou a constituio de interesses que ameacem as estruturas bsicas do capitalismo. No entanto, preciso frisar que o problema da mdia no um mero caso da incompatibilidade constatada entre o aprofundamento da democracia e a manuteno das relaes capitalistas de produo. De fato, o desequilbrio de recursos que o capitalismo produz na esfera econmica transborda sem cessar para a esfera poltica, comprometendo a igualdade que re27 Fraser, Rethinking the public sphere, p. 123. 28 Ver McChesney, op. cit.; Bagdikian, The media monopoly; Dizard Jr., A nova mdia

COMUNICAO E PRTICA POLTICA

165

quisito para o exerccio da democracia um fenmeno que apontado mesmo por autores vinculados tradio liberal, como Robert Dahl29 , e a propriedade da mdia pode ser encarada como uma manifestao deste fato mais geral. No entanto, mesmo numa sociedade hipottica que tenha abolido as desigualdades materiais e em que os meios de produo estejam sob controle social ou autogestionrio, o problema dos acesso aos meios de comunicao estar presente. Afinal, uma das caractersticas definidoras da mdia a desigualdade entre emissor e receptores, ou seja, o fato de que os emissores formam um conjunto razoavelmente restrito em relao ao universo de receptores. Por isso, importante entender a problemtica da mdia como afim problemtica da representao poltica, isto , como uma desigualdade que, embora influenciada por fatores econmicos (e outros), no se reduz a eles, sendo prpria da organizao poltica em sociedades populosas e complexas.

CAMPO POLTICO, CAMPO DA MDIA Definidos os termos da relao entre mdia e poltica, torna-se necessrio encontrar uma moldura conceitual que permita entend-la. Sem tais ferramentas, boa parte da pesquisa na rea se reduz compilao de dados empricos, que permitem observar a existncia de tal ou qual vis nos meios de comunicao, lig-los com determinado interesse econmico ou eleitoral, e no mais do que isto. Ou ento adota uma perspectiva behaviorista e tenta medir o peso dos meios de comunicao sobre a opinio pblica. Em geral, so usados surveys de opinio pblica, procedimento que, mesmo quando correto do ponto de vista estatstico, apresenta problemas metodolgicos graves, j que presume uma conexo entre o entrevistado e sua resposta que nem sempre se verifica30. Para suprir esta deficincias, desenvolveram-se tcnicas de painel31; no entanto, elas no conseguem envolver amostras representativas da populao (para comear, a parcela que no aceita se submeter a vrias sesses cansativas de questionrios e discusses est por definio excluda) e, mais grave, o artificialismo da situao contamina seus resultados. O mesmo pode ser afir-

29 Dahl, Um prefcio democracia econmica; Dahl, Democracy and its critics, pp. 324-32. 30 Ver Bourdieu, Lopinion publique nexiste pas; Bourdieu, Mditations pascaliennes, p. 74; Champagne, Faire lopinion, pp. 96-118. 31 Por exemplo, Graber, Processing the news; Gamson, Talking politics.

166

LUA NOVA N 55-56 2002

mado a fortiori dos experimentos de laboratrio32. possvel dizer, de maneira geral, que o acmulo de dados empricos sobre a influncia da mdia tem contribudo pouco para o aumento de nossa compreenso da relao entre meios de comunicao e sociedade, dada a ausncia de um marco terico mais adequado. O conceito de campo permite entender a interao entre mdia e poltica, duas esferas que se guiam por lgicas diferentes, mas que interferem uma na outra. O campo poltico , segundo a definio de Bourdieu, o lugar em que se geram, na concorrncia entre os agentes que nele se acham envolvidos, produtos polticos, problemas, programas, anlises, comentrios, conceitos, acontecimentos, entre os quais os cidados comuns, reduzidos ao estatuto de consumidores, devem escolher33. Todo campo se define pela imposio de critrios prprios de avaliao da realidade, em especial pela fixao de objetivos que se apresentam como naturais para aqueles que deles participam neste caso, a busca do poder poltico. Assim, o campo seria um universo obedecendo a suas prprias leis34, expresso que sintetiza a autonomia, que todo campo almeja, e o fechamento sobre si prprio, que caracteriza a todos. No entanto, o fechamento encontra limites, muito claros no caso da poltica, que periodicamente precisa se abrir para os simples eleitores. O importante observar que as posies no campo poltico no so mero reflexo das votaes recebidas; basta lembrar de tantos campees de voto, sejam eles radialistas, cantores ou esportistas, que ocupam um lugar menos do que secundrio no Congresso. O capital poltico uma forma de capital simblico, isto , dependente do reconhecimento fornecido pelos prprios pares. Como todos, em certos momentos-chave, lutam por votos, a popularidade contribui para tal reconhecimento, mas no o nico determinante. Em Sobre a televiso, Bourdieu trata da influncia que o campo jornalstico exerce tanto sobre a poltica quanto sobre o meio universitrio. No por acaso, pois ele julga que os campos poltico, jornalstico e das cincias sociais tm uma meta comum, que impor a viso legtima do mundo social35. Ao que parece, o jornalismo estaria colonizando seus dois concorrentes e o propsito de Bourdieu denunciar uma interferncia

32 Por exemplo, Cappella e Jamieson, Spiral of cynicism; Iyengar, Is anyone responsible?; Neuman, Just e Crigler, Common knowledge; Ceci e Kain, Jumping on the bandwagon with the underdog; Rosenberg e McCafferty, The image and the vote. 33 Bourdieu, A representao poltica, p. 164. 34 Bourdieu, Propos sur le champ politique, p. 52. 35 Apud Fristch, Introduction, p. 22.

COMUNICAO E PRTICA POLTICA

167

que julga ilegtima. Cada vez mais, a visibilidade nos meios de comunicao se torna a condio essencial para a gerao de capital poltico (ou acadmico), o que significa a perda de autonomia destes campos. Contra a ameaa que a mdia eletrnica representa, aparece, na argumentao do autor, uma espcie de nostalgia da forma pura de produo de capital simblico quando, em boa parte de sua obra anterior, ele se dedicava exatamente a denunciar a espcie de violncia simblica que estava por trs das consagraes intelectuais e tambm polticas. Trata-se de um passo atrs em sua reflexo crtica, culminando na confisso do ideal, algo bizarro, de uma sociologia internada numa torre de marfim, falando uma linguagem esotrica que afaste dela todo o pblico no especializado36. Da forma como fica colocado, torna-se difcil entender a complexidade das relaes entre mdia e poltica. Tudo se reduz denncia de uma intromisso inadequada; em outro momento, Bourdieu chega a incluir mdia dentro do campo poltico (na medida em que gera efeitos sobre este campo)37. No entanto, como pretendo demonstrar ao longo do restante deste artigo, mdia e poltica formam dois campos diferentes, guardam certo grau de autonomia e a influncia de um sobre o outro no absoluta nem livre de resistncias; na verdade, trata-se de um processo de mo dupla. Antes, porm, necessrio entender melhor a natureza do campo miditico e os influxos que se exercem sobre ele. A autonomia do campo da mdia permanentemente tensionada por sua insero no campo econmico. possvel dizer que uma empresa de comunicao um organismo bifronte. De um lado, obedece a seus imperativos profissionais especficos, que variam de acordo com o subcampo: a manuteno de determinados patamares de qualidade esttica, no caso de programas de carter ficcional ou cultural; fidelidade ao que percebido como a realidade ftica e busca da credibilidade, no jornalismo. De outro, a ampliao do faturamento e do lucro. Mesmo a luta pela audincia ambgua. Vista como um fim em si mesma por parte dos integrantes do campo miditico, que tm a popularidade por objetivo (e so esses muitas vezes os que transitam para o campo poltico), ela apenas um meio do ponto de vista da lgica econmica, que pode optar por sacrificar uma audincia maior em favor de outra que rena certas qualidades, em especial o poder de compra, que a tornem mais interessante.
36 Bourdieu, Sur la tlvision, p. 71. E tambm no sonho, com evidentes ecos comtianos, de uma sociologia que subordina as decises polticas, graas a seu saber cientfico: ver Bourdieu, Propos sur le champ politique, pp. 43-4. 37 Id., p. 61.

168

LUA NOVA N 55-56 2002

A percepo da influncia do campo econmico sobre os meios de comunicao leva, muitas vezes, denncia de sua total ausncia de autonomia. o que motiva a lamentao permanente a respeito do baixo nvel cultural e artstico das produes veiculadas nos meios de comunicao, da interferncia abusiva dos anunciantes sobre o contedo dos programas (em especial o veto divulgao de notcias que os prejudiquem) e da predominncia, nos noticirios, do fait-divers que, mimetizando a forma narrativa da fico, cativa parcelas maiores da audincia, mas tambm degrada o nvel de informao pblica sobre as questes srias. No entanto, os jornalistas e produtores culturais possuem capacidade de resistncia e se esforam por respeitar, mesmo que em grau mnimo, os cdigos profissionais que so prprios de seu campo. A ausncia de qualquer autonomia em relao ao campo econmico, alis, se mostra disfuncional para a mdia. Um exemplo eloqente a revoluo que o executivo Mark Willes tentou promover, a partir de 1995, no jornal Los Angeles Times, impondo a cada setor da redao o imperativo de gerar lucro. Saudado com entusiasmo nas bolsas de valores, o projeto de Willes encontrou a resistncia tanto de profissionais quanto de leitores e o executivo teve que se demitir no comeo de 2000. Em suma, necessrio reconhecer a persistncia de certa autonomia do campo da mdia, o que faz com que os padres de conduta compartilhados por seus integrantes sejam uma fora atuante dentro dele. No caso especfico do jornalismo, isto inclui um compromisso com a verdade e a objetividade que servem de critrio para determinar a competncia e a respeitabilidade pelos pares. A violao destas normas, notadamente em submisso a ditames econmicos ou polticos, freqente, mas impe nus que no podem ser ignorados.

MDIA E CAPITAL POLTICO A influncia mais evidente dos meios de comunicao sobre o campo poltico est na formao do capital poltico. Bourdieu distingue duas espcies bsicas de capital poltico38. O capital delegado aquele ligado ocupao de um determinado cargo institucional, seja ele um mandato parlamentar ou executivo, uma funo de confiana num escalo governamental ou uma posio de poder na estrutura partidria. O ex-ocu38 Bourdieu, A representao poltica, pp. 190-2.

COMUNICAO E PRTICA POLTICA

169

pante do cargo beneficia-se do prestgio obtido em seu exerccio e pode continuar sua carreira poltica. J o capital transferido nasce da converso, para a poltica, de outro tipo de capital, obtido em campo diverso. o caso daqueles que fazem da notoriedade artstica ou profissional a alavanca para o sucesso nas urnas Agnaldo Timteo, Fernando Henrique Cardoso, Ronald Reagan, Cicciolina e Joe Ventura so exemplos propositalmente dspares. Mas o mesmo ocorre com economistas e engenheiros que so chamados para ocupar importantes funes decisrias no governo (converso de capital tcnico) ou empresrios que ingressam na vida parlamentar aps dispendiosas campanhas eleitorais (converso de capital econmico). O que se observa que a visibilidade na mdia , cada vez mais, componente essencial da produo do capital poltico. A presena em noticirios e talk-shows parece determinante do sucesso ou fracasso de um mandato parlamentar ou do exerccio de um cargo executivo; isto , na medida em que deve acrescentar algo ao capital poltico prprio do ocupante. Da mesma maneira, a celebridade miditica tornou-se o ponto de partida mais seguro para quem deseja se lanar na vida poltica na forma, dependendo do perfil de cada um, de uma candidatura s eleies ou de um convite para uma funo governamental. Isto fica especialmente claro na grande quantidade de profissionais de mdia que ingressam na vida poltica, sobretudo ocupando cargos parlamentares. So radialistas, reprteres de televiso, apresentadores de programas de variedades ou especialistas (sobretudo advogados e psiclogos) com quadros naqueles programas. Os exemplos, s na poltica brasileira, so incontveis: Antnio Britto, Celso Russomano, Cidinha Campos, Ratinho, Joo Paulo Bisol, Marta Suplicy, Hlio Costa39. No entanto, possvel aventar a hiptese de que o campo poltico impe determinados limites converso do prestgio miditico. Se ele til para a conquista de um mandato parlamentar, alar vos mais altos exige uma espcie de faxina do capital simblico, com o exerccio de outras funes pblicas e a desvinculao paulatina da fonte original de notoriedade. O caso de Ronald Reagan ilustrativo. Quando se elegeu governador da Califrnia, ele j era mais o porta-voz dos interesses da livre empresa do que o medocre ator de filmes B. Mesmo em campanhas posteriores, a dis-

39 Um caso exemplar o do deputado Paulo (Paulinho) Bornhausen. Herdeiro da tradicional oligarquia catarinense, filho e neto de ex-governadores do Estado, ele julgou til, antes de ingressar na poltica eleitoral, comandar um programa popular numa rdio local.

170

LUA NOVA N 55-56 2002

sociao do passado era buscada, ao ponto de seus anncios de televiso exibirem deliberadamente uma qualidade tcnica inferior, mostrando que no eram coisa de Hollywood40. Embora uma pesquisa sistemtica ainda esteja por ser feita, tudo indica que o sistema eleitoral condiciona, em parte, o volume da presena das estrelas miditicas no parlamento. A representao proporcional favorece os portadores deste tipo de notoriedade, que encontra resistncia em parte significativa do eleitorado e, portanto, encontra maiores obstculos ao xito em sistemas majoritrios. Outro fator a ser considerado a fragilidade ou robustez dos partidos. Partidos fortes contam, via de regra, com uma estrutura interna poderosa, com interesses consolidados e capacidade de se opor ocupao de espao pelos novatos oriundos da exposio mdia. Alm disso, mesmo no caso brasileiro, no se pode ignorar a permanncia de uma grande massa de polticos que desenvolvem suas carreiras s margens dos meios de comunicao de massa. So, por exemplo, parlamentares ancorados em redes clientelistas ou representantes de interesses corporativos. Eles podem ter uma atuao apagada (do ponto de vista do grande pblico), mas garantem eleies tranqilas e a continuidade do mandato. Assim, correto dizer que a mdia adquiriu um forte peso na formao do capital poltico e mesmo que, em alguma medida, condiciona as trajetrias polticas j que a ausncia de visibilidade nos meios de comunicao parece ser um empecilho srio para quem almeja os cargos eletivos mais importantes do poder executivo. Mas a mdia no possui o monoplio da produo ou distribuio deste capital; e o campo poltico (isto , os agentes polticos de carreira mais tradicional) trata, por vezes com sucesso, de impor limites influncia da mdia, atravs da desvalorizao simblica dos tipos de notoriedade mais estreitamente associados aos meios de comunicao de massa.

O CONTROLE SOBRE A AGENDA A influncia dos meios de comunicao tambm particularmente sensvel num momento crucial do jogo poltico, a definio de agenda41. A pauta de questes relevantes, postas para a deliberao pblica, em grande parte condicionada pela visibilidade de cada questo nos meios
40 Diamond e Bates, The spot, p. 226. 41 Ao usar definio de agenda como traduo da expresso inglesa consagrada, agenda-setting, sigo Fuks, Definio de agenda, debate pblico e problemas sociais.

COMUNICAO E PRTICA POLTICA

171

de comunicao. Dito de outra maneira, a mdia possui a capacidade de formular as preocupaes pblicas. O impacto da definio de agenda pelos meios perceptvel no apenas no cidado comum, que tende a entender como mais importantes as questes destacadas pelos meios de comunicao, mas tambm no comportamento de lderes polticos e de funcionrios pblicos, que se vem na obrigao de dar uma resposta quelas questes. Cumpre observar que a mdia no se limita definio de agenda, no sentido de apresentao neutra de um elenco de assuntos, como por vezes transparece nos trabalhos pioneiros sobre o tema42. Assim, a idia de definio de agenda ser complementada pela noo de enquadramento (framing), adaptada da obra de Erving Goffman: a mdia fornece os esquemas narrativos que permitem interpretar os acontecimentos; na verdade, privilegia alguns destes esquemas, em detrimento de outros43. H, porm, uma dificuldade para operacionalizar o conceito: como trabalhar com o que no est posto, isto , com os enquadramentos alternativos? Como ver aquilo a que no se d visibilidade? Como perceber o que a mdia no mostrou, se a mdia que nos mostra o mundo? O controle sobre a agenda e sobre a visibilidade dos diversos enquadramentos alicera a centralidade dos meios de comunicao no processo poltico contemporneo. Tal fato no passa despercebido dos agentes polticos, que hoje, em grande medida, orientam suas aes para o impacto presumvel na mdia. So os pseudo-eventos, como chamou Daniel Boorstin em seu estudo de 1961: acontecimentos que no so espontneos, planejados com o objetivo de virarem notcia44. Tornaram-se to corriqueiros que nem percebemos mais sua artificialidade; o exemplo mais comum a entrevista (na medida em que uma conversao que s ocorre com vistas a sua reproduo na mdia), mas o mesmo vale para grande parte das manifestaes de massa, passeatas, encontros de lderes polticos e at convenes partidrias. A preocupao principal de Boorstin o jornalismo, que se teria desviado de sua funo inicial, registrar os fatos, passando a produzilos. Mas no difcil perceber seu impacto nos agentes polticos, que pre-

42 Cohen, The press and foreign policy, p. 13; McCombs e Shaw, The agenda-setting function of mass media. 43 O conceito original de enquadramento, que no foi pensado especificamente para os meios de comunicao, est em Goffman, Frame analysis. Para adaptaes mdia, ver Gitlin, The whole world is watching, pp. 6-7; Gamson, Talking politics, p. 7; e Entman, Framing. 44 Boorstin, The image, pp. 9-12.

172

LUA NOVA N 55-56 2002

cisam pautar sua ao por critrios de noticiabilidade; isto , que introjetam normas prprias do campo da mdia e se guiam por elas. Um exemplo a trajetria do Students for a Democratic Society (SDS), grupo juvenil radical que se envolveu na luta contra a Guerra do Vietn45. medida em que ganhava acesso mdia, o SDS trocava a direo colegiada por lderes individuais, j que, para a televiso, mais fcil personalizar os movimentos coletivos em algumas poucas estrelas, que se tornam seus porta-vozes; o trabalho educativo, de debates e palestras nos campi, foi relegado a segundo plano, em favor de mobilizaes espetaculosas. O grupo arrebanhou numerosos novos adeptos, mas estes, via de regra, estavam muito mais interessados na ao do que nos ideais originais de democracia participativa. No caso do SDS, aquilo que parecia uma oportunidade mpar de amplificao do discurso e conquista de novas audincias levou destruio da organizao. Nem sempre o processo to dramtico, mas algumas particularidades parecem invariveis. A busca pela ateno da mdia favorece as atividades mais vistosas, de preferncia concentradas num nico lugar e espordicas, em detrimento de um trabalho mais cotidiano e espacialmente disperso. Favorece tambm a personalizao de movimentos coletivos. So, sobretudo, caractersticas da televiso, que exige uma ancoragem visual para os assuntos de que trata. Da mesma maneira, na medida em que o candidato possui uma identidade visual imediata, mas o partido no, razovel indicar a influncia da televiso no declnio da poltica partidria46. Mas a busca pelo fato poltico, pelo acontecimento que sensibiliza a ateno dos meios de comunicao e que, atravs deles, pode atingir a opinio pblica, apresenta efeitos diferenciados de acordo com a posio dos agentes no campo poltico. Aqueles que esto situados na periferia, como era o caso do SDS, so mais fortemente constrangidos a introjetar os critrios miditicos de apreciao da realidade e procurar a ao espetacular, como forma de romper a cortina da indiferena e, assim, incluir um novo item na agenda pblica. J os que ocupam as posies centrais do campo poltico podem esperar uma ateno mais ou menos constante dos meios de comunicao para seus atos e palavras, o que significa a possibilidade de alcanar destaque com um dispndio de esforo bastante menor.

45 Gitlin, op. cit. Para outros exemplos, retirados da poltica europia, e uma interessante anlise do fenmeno, ver Champagne, Faire lopinion, passim. 46 Wattenberg, The decline of American political parties, pp. 90-112.

COMUNICAO E PRTICA POLTICA

173

Os agentes que detm maior capital poltico so capazes de orientar o noticirio (e, por conseqncia, a agenda pblica) atravs de entrevistas e declaraes. Na cena poltica brasileira recente, ningum personificou melhor tal posio do que o senador baiano Antnio Carlos Magalhes. Com um jogo estudado de ameaas, denncias e insinuaes, ele modelava a cobertura poltica da imprensa e, atravs dela, forava o posicionamento de outros agentes do campo poltico. claro que o senador incorporou critrios jornalsticos de relevncia, utilizando-os para produzir afirmaes que despertem interesse suficiente, por seu carter bombstico ou inusitado. Mas usava-os para alcanar seus fins (polticos) prprios. Os imperativos do campo da mdia so, nesse caso, colocados a servio de uma lgica poltica autnoma.

A FIXAO DO CAMPO POLTICO A influncia marcante dos meios de comunicao de massa sobre a produo do capital poltico e sobre a definio de agenda no deve obscurecer a fora das instituies polticas estabelecidas na fixao de um campo poltico legtimo. Salvo em situaes excepcionais, a mdia no questiona os limites dados do que a poltica. As pginas dedicadas ao tema nos jornais esto firmemente ancoradas nas instituies. Tratam do parlamento, das chefias dos poderes executivos, de eleies e de partidos. A delimitao da poltica enquanto tal nessas esferas nada possui de natural ou inevitvel. Pelo contrrio, fruto da prpria luta poltica e traduz determinada hegemonia. A separao entre poltica e economia sob o capitalismo, por exemplo, retira do escrutnio pblico as decises sobre o investimento produtivo que, no entanto, tm um impacto mais significativo na vida cotidiana do que a maior parte das medidas governamentais. Tambm permite que a propriedade privada se coloque como uma barreira s reivindicaes de democracia e participao, que assim ficam excludas de dentro das empresas. Em suma, trata-se de uma demarcao que contribui para a manuteno da ordem capitalista47. Por outro lado, h tempos a teoria feminista vem mostrando as implicaes polticas do insulamento da esfera domstica em relao prpria poltica48.

47 Ver Wood, Democracy against capitalism, pp. 19-48. 48 Entre muitos outros, consultar Pateman, O contrato sexual; Elshtain, The displacement of politics; e Miguel, Teoria poltica feminista e liberalismo.

174

LUA NOVA N 55-56 2002

Como efeito desta delimitao do campo poltico, questes importantes (como o direito ao aborto, por exemplo, a proteo ao meioambiente ou a busca por maior autonomia no local de trabalho) recebem o status de perifricas mesmo quando merecem ateno pblica. So importantes, talvez, mas no so verdadeiramente polticas. Os movimentos populares permanecem nas margens da vida poltica e espera-se que aceitem sua posio subalterna; quando extrapolam suas preocupaes especficas, admitidas como legtimas, sempre surgem vozes para denunciar sua politizao espria. o que acontece cada vez que os sindicatos ultrapassam os limites da reivindicao salarial. Se a luta poltica uma luta de classificaes, em que os agentes buscam impor os princpios de viso e diviso do mundo social, como diz Bourdieu49, ento a primeira diviso aquela que separa um espao para a prpria poltica. Contribuindo para manter os profanos parte, esta diviso cumpre um papel estabilizador, isto , conservador; e propicia sobretudo a proteo daqueles que detm o capital poltico contra a concorrncia de outros agentes, externos. Mas que interessa no momento observar que os meios de comunicao no desafiam o recorte dominante do que poltica; pelo contrrio, tendem a uma adaptao imediata a ele, como num reconhecimento tcito de que a tarefa de definir o campo poltico pertence a seus prprios integrantes. A simples folheada num jornal dirio confirma esta constatao. Nas pginas de poltica, despontam parlamentares, governantes e chefes partidrios. Os movimentos sociais, demandas de minorias ou de mulheres, lutas ambientalistas etc. so, via de regra, relegados ao espao menos nobre das editorias de cidades ou geral. A principal exceo o movimento sindical que, junto com os patres, fica na seo de economia. Poltica e economia, cabe lembrar, formam universos distintos, que recebem tratamento dessemelhante da mdia. Como observou Michael Schudson, h uma diferena estrutural entre o noticirio poltico e o noticirio econmico. Enquanto o primeiro se dirige ao leitor enquanto cidado, o segundo se dirige a ele enquanto investidor50. Pode-se dizer que o noticirio jornalstico, com sua nfase na disputa por cargos e nas estratgias de partidos e lderes, contribui fortemente para fixar um campo poltico centrado sobre si mesmo, que se re-

49 Bourdieu, La distinction, p. 559; Bourdieu, Propos sur le champ politique, p. 63. 50 Schudson, The power of news, p. 14. Embora a observao se refira realidade estadunidense, est se tornando cada vez mais vlida tambm para o Brasil.

COMUNICAO E PRTICA POLTICA

175

ferencia apenas pela conquista do poder. Os problemas concretos tendem a perder substncia, sendo transformados em pivs para disputas por espao poltico. Em qualquer controvrsia pblica, a cobertura tpica de imprensa tende a destacar as manobras de bastidores, as negociaes entre grupos partidrios, a formao de alianas e o impacto presumvel nas eleies seguintes. Em suma, a mdia deferente em relao s principais instituies polticas, conforme se observa pelo destaque que dado aos ocupantes de seus postos mais importantes. Pode critic-las, mas raramente se atreve a questionar sua relevncia. Isto d aos grandes lderes polticos uma influncia gigantesca sobre o noticirio, que orientam atravs de declaraes pblicas, conversas privadas com jornalistas ou com a criao de factides (conforme indicado na seo anterior). Apesar de simplista, a frmula de Timothy Cook ajuda a compreender esta realidade: entre a imprensa e os governantes, permanece uma diviso de trabalho. Os jornalistas definem o que interessante, mas so as autoridades que indicam o que importante51. No jornalismo estadunidense, afirma-se que, em qualquer evento onde esteja presente o presidente da Repblica, ele sempre o foco da notcia. O que h, em quase todos os lugares, o foco permanente nos detentores de autoridade poltica formal. Isto se deve tanto ao fato de que os jornalistas no questionam a definio de poltica hegemnica quanto existncia de estruturas montadas pelos diversos agentes do campo poltico, sobretudo governos, para prover a imprensa de notcias52. Ao facilitar o trabalho do reprter, em realidade torna-o dependente. No entanto, trata-se de um elemento secundrio. No essencial, o que se observa que, por mais alto seja o grau em que sua influncia se faa perceber, a mdia se submete, como que naturalmente, s definies bsicas do campo poltico.

O JORNALISTA E SUAS FONTES importante lembrar ainda que mdia e poltica so, a rigor, abstraes. A relao entre elas toma a forma concreta de relaes interpessoais entre agentes dos dois campos. Desejo orientar o foco, agora, para

51 Cook, Governing with the news, p. 5. 52 A assessoria de imprensa governamental uma instituio quase coetnea ao prprio jornal; j existia em meados do sculo 18. Cf. Habermas, Mudana estrutural da esfera pblica, p. 36.

176

LUA NOVA N 55-56 2002

os contatos entre jornalistas, de um lado, e lderes polticos, de outro. De maneira esquemtica, possvel distribui-los em trs categorias. Em primeiro lugar, os jornalistas testemunham eventos polticos que, ainda que possam ser pensados para divulgao na mdia, em princpio ocorreriam mesmo na ausncia dela: debates e votaes parlamentares, assinaturas de decretos e nomeaes, atos de posse, reunies partidrias. Depois, existem interaes relativamente formalizadas entre reprteres e polticos, na forma de entrevistas (coletivas e individuais). Por fim, h a relao cotidiana e informal entre os profissionais de imprensa e aqueles que, no jargo do meio, so chamados de suas fontes. Qualquer indivduo que proporcione dados para a elaborao de uma reportagem uma fonte. Quem interessa aqui, porm, aquela fonte mais ou menos permanente, que fornece informaes continuadas, e, em algum grau, exclusivas ao mesmo reprter, muitas vezes com a garantia do anonimato na publicao da notcia. No jornalismo em geral, mas no jornalismo poltico em particular, possuir um bom portflio de fontes um patrimnio dos mais cobiados. A informao privativa que elas transmitem propicia uma diferenciao dos concorrentes no campo, a divulgao de eventuais notcias em primeira mo (furos) e o reconhecimento pelos pares; consolida reputaes e favorece o progresso na carreira, permitindo ambicionar posies de maior destaque, como a de colunista. O reprter com boas fontes aquele que seus pares vem como bem informado. Em suma, trata-se de um elemento significativo na produo do capital simblico especfico do campo jornalstico. As boas fontes permitem que o jornalista antecipe os movimentos de governos, partidos ou chefes polticos; tanto podem ser os prprios lderes quanto pessoas de escalo inferior, mas com acesso s principais esferas decisrias. Para que a relao se perpetue, porm, necessrio que ambas as partes a percebam como vantajosa. Como visto, o profissional de imprensa recebe seu ganho na forma de prestgio profissional. Para o poltico, a condio de fonte permite obter algum grau de influncia na conduo do noticirio, sobretudo porque existe um forte incentivo para que suas informaes exclusivas meream um destaque desproporcional importncia intrnseca que teriam, segundo os padres da imprensa. Essa a forma que o jornalista tem de valorizar aquilo que diferencia seu material dos concorrentes. Em certos casos, a informao toma a forma de um balo de ensaio, permitindo avaliar o impacto de determinada deciso antes que ela seja de fato tomada. Alm disso, existe

COMUNICAO E PRTICA POLTICA

177

a cobrana tcita dos benefcios que a fonte prov ao reprter, na forma da publicao de notcias de escasso interesse, pelos critrios jornalsticos, mas que so proveitosas ao poltico. O exame da micro-relao entre o jornalista e sua fonte permite observar o entrelaamento de prticas distintas, de agentes que pertencem a diferentes campos e, portanto, se orientam na direo de objetivos diversos. Contudo, devido dinmica prpria de sua interao, precisam incorporar em alguma medida a lgica um do outro. Sob pena de perder a fonte, o jornalista deve ponderar aquilo que publica, calculando seus efeitos no campo poltico; e fazer concesses aos interesses do outro, divulgando informaes que julga pouco relevantes ou ainda minimizando o destaque de certas notcias (mas nunca ao ponto de comprometer a prpria credibilidade). J a fonte, para manter seu acesso privilegiado imprensa, deve reconhecer o material que til ao jornalista e, sobretudo, manter a prpria confiabilidade diante dele, no transmitindo informaes equivocadas em busca de benefcios de curto prazo. Ou seja, no se pode reduzir essa relao ao predomnio da lgica poltica sobre a jornalstica ou vice-versa. Trata-se de uma interao muito mais complexa. Os dois agentes permanecem vinculados a seus prprios campos e buscam a ampliao de seus capitais simblicos especficos. No entanto, suas aes repercutem mutuamente, o que os obriga a, de alguma maneira, incorporar a lgica do outro em seu clculo. So necessrios ajustes delicados para garantir o mximo de proveito na relao, embora nunca ao ponto de alienar o parceiro.

MODOS DO DISCURSO O carter sempre mais mediatizado da comunicao poltica leva adaptao do discurso poltico s regras da mdia, ao ponto de algumas interpretaes indicarem que os polticos de todas as matizes tm revelado uma tendncia a descaracterizar seu prprio discurso e incorporar o estilo miditico, levando pasteurizao dos contedos53. O problema com este tipo de formulao que ele supe a existncia de um modo do discurso propriamente poltico quando, na verdade, o discurso poltico muda, de acordo com o contexto histrico em que se inclui e com as possibilidades tcnicas de difuso de que dispe. E a pasteurizao denuncia53 Sarti, A construo miditica da poltica e a crise da representao, p. 3 (nfase suprimida na citao).

178

LUA NOVA N 55-56 2002

da talvez se deva mais ao estreitamento do leque de opes polticas, a partir do eclipse dos projetos socialistas, do que aos efeitos da mdia. Nada disso deve levar a ignorar as transformaes que os meios eletrnicos de comunicao impuseram ao discurso poltico. Na poca de predomnio da televiso, em especial, avulta o peso da imagem dos polticos e, o que talvez tenha conseqncias ainda mais importantes, o discurso se torna cada vez mais fragmentrio, bloqueando qualquer aprofundamento dos contedos54. Quanto ao primeiro ponto, cabe observar que a aparncia visual no desprovida de sentido. Um cdigo sofisticado, embora tcito, permite ao pblico interpretar aquilo que os polticos desejam transmitir pela imagem, do corte de cabelo ao tom do palet, que podem sinalizar para a modernidade, para a austeridade, para a moderao e assim por diante. J a fragmentao do discurso no uma imposio tcnica da televiso nada impede que seja transmitida uma fala ininterrupta de duas ou trs horas mas fruto dos usos que se fizeram dela. O resultado que a fala padro de um entrevistado num telejornal, por exemplo, de poucos segundos e as expectativas dos telespectadores se adaptaram a essa regra. Os polticos, por conseqncia, tambm. Abreviar a fala, reduzi-la a umas poucas palavras, de preferncia de efeito, tornou-se imperativo para qualquer candidato notoriedade miditica. No entanto, esta adeso tambm no desprovida de ambigidades. Uma das condies de eficcia do discurso poltico o estabelecimento de marcas de distino em relao queles comumente veiculados pela mdia. O lder poltico usa, via de regra, um vocabulrio mais elaborado, signo de uma competncia especfica que o credencia para as posies que ocupa ou almeja ocupar. So termos extrados do jargo do direito, da economia ou da sociologia, que, mais do que introduzir uma maior sofisticao ao que se diz, servem de elemento diferenciador. possvel fazer uma aproximao entre esta caracterstica do discurso poltico e o conceito de Kitsch na cultura de massa, tal como o define Umberto Eco: a obra subcultural de consumo que se apresenta ostensivamente como arte, para que, enquanto goza de seus efeitos fceis, o leitor ou espectador julgue estar desfrutando de uma experincia esttica privilegiada55. O kitsch poltico contribui para marcar a distncia entre o discurso fcil da mdia e o discurso elaborado da poltica, produzindo um efeito legitimador.
54 Miguel, Mito e discurso poltico, pp. 72-8. 55 Eco, Apocalittici e integrati, pp. 66-72.

COMUNICAO E PRTICA POLTICA

179

Mais do que isto, trata-se de um mecanismo de dominao que contribui para fechar o campo poltico intruso dos leigos. Como observa Bourdieu, a linguagem dominante [no campo poltico] destri, ao desacredit-lo, o discurso poltico espontneo dos dominados: no lhes deixa outra opo que no o silncio ou a linguagem emprestada, cuja lgica no mais a do uso popular, sem ser a do uso culto, linguagem enguiada, onde as palavras elevadas esto presentes apenas para assinalar a dignidade da inteno expressiva e que, nada podendo transmitir de verdadeiro, de real, de sentido, priva aquele que a fala da experincia mesma que julga exprimir56. Assim, o discurso poltico trata de no se confundir com o discurso corrente da mdia, preservando suas marcas de distino. Da mesma forma, a competio poltica contempornea exige a utilizao das tcnicas publicitrias, mas, quando expostas em excesso, elas se tornam contraproducentes57. O poltico fica vulnervel acusao de no ter personalidade, de no ter pulso, enfim, de no possuir as qualidades especificamente polticas que deveriam credenci-lo. Ele algum que participa do mundo da mdia, mas deve manter a dignidade e no se curvar a todas as suas imposies. Que o ento vice-presidente dos Estados Unidos, Al Gore, tenha sido convidado a empinar uma vassoura sobre o nariz num programa de variedades fato que impressiona, pela degradao de funes pblicas que supe58. S bom lembrar que Gore se recusou a faz-lo. O discurso poltico precisa se adaptar ao novo ambiente gerado pelos meios de comunicao de massa, bem como a prtica poltica incorpora os recursos que lhe so fornecidos pelas tcnicas publicitrias e pelo marketing. Mas uma apropriao seletiva, que pressupe uma negociao tcita entre a mdia, que detm os instrumentos de produo da visibilidade social, e o poltico, que conhece ou intui os limites para alm dos quais sua exposio pblica se torna contraproducente.

56 Bourdieu, La distinction, p. 538. 57 possvel fazer um paralelo com a retrica, na Grcia antiga, segundo o relato de Ober. A retrica era a ferramenta fundamental para o exerccio da liderana poltica, mas um domnio demasiado evidente de suas tcnicas provocava suspeio entre os cidados (Ober, Mass and elite in democratic Athens, pp. 166-77). 58 Gabler, Vida: o filme, p. 114.

180

LUA NOVA N 55-56 2002

CONCLUSO A compreenso da relao entre o campo da mdia e o campo poltico fundamental para o entendimento do funcionamento da poltica contempornea. Os meios de comunicao no so canais neutros que registram uma realidade que lhes externa. Tambm no so penetras que perturbam uma atividade poltica que, no fundamental, ocorre sem eles; nem so mais, como disse Bernardo Kucinski se referindo aos bares da imprensa da primeira metade do sculo 20, meros chantagistas que se imiscuam no jogo regular de poder das elites dominantes59. So agentes polticos plenos e, com a fora de sua influncia, reorganizaram todo o jogo poltico. Do reconhecimento do influxo da mdia sobre o campo poltico no se depreende a dominao da poltica pelos meios de comunicao. Os efeitos da mdia so variados, de acordo com as situaes especficas em que se inserem, e sofrem a ao de contratendncias e resistncias. H um processo permanentemente tensionado de embate entre as lgicas do campo miditico e do campo poltico, que necessita ser observado em detalhe e dentro de sua complexidade. Decretar que a poltica se curvou mdia to estril quando negar a influncia desta sobre a primeira. O principal erro julgar que os efeitos da mdia sobre os agentes polticos so uniformes. Em realidade, a influncia dos meios de comunicao diferenciada de acordo com a posio dos agentes no campo poltico; o volume de capital simblico que cada um deles possui impe reaes diversas midiatizao da poltica. De maneira mais ampla, entre os fatores que devem ser levados em considerao esto a configurao das instituies polticas (a comear pelo sistema eleitoral e partidrio), a trajetria de cada agente qual seu ponto de partida, at alcanar a situao atual e as posies que pretende alcanar. Como hiptese geral, possvel dizer que, quanto menor o volume de capital poltico (ou quanto mais marginal for a posio no campo poltico, o que significa a mesma coisa), maior a dependncia em relao mdia. Quanto maior for a marca miditica no capital poltico (isto , uma carreira alicerada na popularidade obtida no ramo do entretenimento ou do jornalismo televisivo), menores as chances de xito em disputas por cargos-chave. E quanto mais elevadas as posies de poder que se pretende alcanar, maior a necessidade de visibilidade nos meios de comunicao.
59 Kucinski, A sndrome da antena parablica, p. 167.

COMUNICAO E PRTICA POLTICA

181

A relao se torna mais complexa na medida em que o prprio campo da mdia no autnomo, pois incorpora, em parte (significativa, alis), objetivos derivados do campo econmico. O crculo se fecha com a percepo da influncia mtua entre os campos poltico e econmico cujas expresses mais evidentes so o financiamento de campanhas eleitorais e o lobby empresarial, para a ao no sentido da economia para a poltica, e o efeito das medidas de poltica macroeconmica e dos contratos governamentais, no sentido inverso. A compreenso dessa rede de influncias cruzadas permite entender a utilizao da mdia como forma de presso poltica em busca de objetivos econmicos, um fenmeno comum em estados perifricos, onde jornais ou emissoras de rdio e TV podem estar a servio de empreiteiras ou concessionrias de servios pblicos, mas observvel tambm em centros maiores ou em mbito nacional. Neste caso, a colonizao da empresa de mdia pela lgica econmica no ocorre na forma da luta pelo mercado, mas da busca deliberada de determinados resultados polticos. A tarefa de desvendar o jogo poltico atual passa pelo entendimento da inter-relao entre esses trs campos. um esforo que no admite atalhos simplificadores, do tipo A determina B; antes, exige o reconhecimento das tenses latentes (e por vezes at expressas) que marcam a complexa conjugao entre as influncias mtuas, resistncias, composies, ajustes delicados e anseios por autonomia que animam os diversos agentes de cada campo.

REFERNCIAS BIBLIOGRFICAS
BAGDIKIAN, Ben H. The media monopoly. Edio atualizada. Boston: Beacon Press, 1997. BALANDIER, Georges Le pouvoir sur scnes. Edio ampliada. Paris: Balland, 1992. BERGER, Christa Campos em confronto: a terra e o texto. Porto Alegre: Editora da Universidade, 1998. BOORSTIN, Daniel J. The image: a guide to pseudo-events in America. Reed. New York: Vintage, 1992. BOURDIEU, Pierre La distinction: critique sociale du jugement. Paris: Minuit, 1979. Lopinion publique nexiste pas, em Questions de sociologie. Paris: Minuit, 1984. A representao poltica. Elementos para uma teoria do campo poltico, em O poder simblico. Lisboa: Difel, 1990. Sur la tlvision, suivi de Lemprise du journalisme. Paris: Liber, 1996. Mditations pascaliennes. Paris: Seuil, 1997. Propos sur le champ politique. Lyon: Presses Universitaires de Lyon, 2000. (com Loc J. D. WACQUANT) Rponses. Paris: Seuil, 1992.

182

LUA NOVA N 55-56 2002

CAPPELLA, Joseph N. e Kathleen Hall JAMIESON Spiral of cynicism: the press and the public good. Oxford: Oxford University Press, 1997. CASTELLS, Manuel O poder da identidade. S. Paulo: Paz e Terra, 1999. CECI, Stephen J. e Edward L. KAIN Jumping on the bandwagon with the underdog: the impact of attitude polls on polling behavior. Public Opinion Quaterly, vol. 46, n 2. New York, 1982, pp. 228-42. CHAMPAGNE, Patrick Faire lopinion: le nouveau jeu politique. Paris: Minuit, 1990. COHEN, Bernard C. The press and foreign policy. Princeton: Princeton University Press, 1969. COOK, Timothy E. Governing with the news: the news media as a political institution. Chicago: The University of Chicago Press, 1998. DAHL, Robert A. Democracy and its critics. New Haven: Yale University Press, 1989. Um prefcio democracia econmica. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1989. DIAMOND, Edwin e Stephen BATES The spot: the rise of political advertising on television. Edio atualizada. Cambridge (Mass.): The MIT Press, 1988. DIZARD Jr., Wilson A nova mdia: a comunicao de massa na era da informao. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1998. ECO, Umberto Apocalittici e integrati: comunicazioni di massa e teorie della cultura di massa. Reed. Milano: Bompiani, 1993. EDELMAN, Murray The symbolic uses of politics. Edio ampliada. Urbana: University of Illinois Press, 1985. ELSHTAIN, Jean Bethke The displacement of politics, em Jeff Weintraub e Krishan Kumar (eds.) Public and private in thought and practice: perspectives on a grand dichotomy. Chicago: The University of Chicago Press, 1997. ENTMAN, Robert M. Democracy without citizens: media and the decay of American politics. Oxford: Oxford University Press, 1989. Framing: toward clarification of a fractured paradigm. Journal of Communication, vol. 43, n 4. Austin, 1993, pp. 51-8. FALLOWS, James Detonando a notcia: como a mdia corri a democracia americana. Rio de Janeiro: Civilizao Brasileira, 1997. FRASER, Nancy Rethinking the public sphere: a contribution to the critique of actually existing democracy, em Craig Calhoun (ed.) Habermas and the public sphere. Cambridge (MA): The MIT Press, 1992. FRIAS Filho, Otvio Vendem-se candidatos. Folha de S. Paulo, 4/8/1994, p. 2. FRISTCH, Philippe Introduction a Pierre Bourdieu Propos sur le champ politique. Lyon: Presses Universitaires de Lyon, 2000. FUKS, Mario Definio de agenda, debate pblico e problemas sociais. BIB Revista Brasileira de Informao Bibliogrfica em Cincias Sociais, n 49. Rio de Janeiro, 2000, pp. 79-94. GABLER, Neal Vida, o filme: como o entretenimento conquistou a realidade. S. Paulo: Companhia das Letras, 1999. GAMSON, William A. Talking politics. Cambridge: Cambridge University Press, 1992. GARNHAM, Nicholas The media and the public sphere, em Craig Calhoun (ed.) Habermas and the public sphere. Cambridge (MA): The MIT Press, 1992. GITLIN, Todd The whole world is watching: mass media in the making & unmaking of the new left. Berkeley: University of California Press, 1980. GOFFMAN, Erving Frame analysis: an essay on the organization of experience. Boston: Northeastern University Press, 1974. GOMES, Wilson Propaganda poltica, tica e democracia, em Heloiza Matos (org.) Mdia, eleies e democracia. S. Paulo: Scritta, 1994. GRABER, Doris Processing the news: how the people tame the information tide. Edio revista. New York: Longman, 1988.

COMUNICAO E PRTICA POLTICA

183

HABERMAS, Jrgen Mudana estrutural da esfera pblica. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1984. HALLIN, Daniel C. The uncensored war: the media and Vietnam. Berkeley: University of California Press, 1986 HUNTINGTON, Samuel P. The United States, em Michel J. Crozier, Samuel P. Huntington e Joji Watanuki The crisis of democracy: report on the governability of democracies to the Trilateral Comission. New York: New York University Press, 1975. IYENGAR, Shanto Is anyone responsible? How television frames political issues. Chicago: The University of Chicago Press, 1991. JANEWAY, Michael Republic of denial: press, politics, and public life. New Haven: Yale University Press, 1999. JENKINS, Richard Pierre Bourdieu. London: Routledge, 1992. KUCINSKI, Bernardo A sndrome da antena parablica: tica no jornalismo brasileiro. S. Paulo: Fundao Perseu Abramo, 1998. LASCH, Christopher A rebelio das elites e a traio da democracia. Rio de Janeiro: Ediouro, 1995. LIPPMANN, Walter Public opinion. Reed. New York: Free Press, 1997. LWY, Michael A escola de Frankfurt e a modernidade: Benjamin e Habermas. Novos Estudos Cebrap, n 32. S. Paulo, 1992, pp. 119-27. MANSBRIDGE, Jane M. Beyond adversary democracy. Edio revista. Chicago: The University of Chicago Press, 1983. MCCHESNEY, Robert W. Rich media, poor democracy: communication politics in dubious times. Urbana: University of Illinois Press, 1999. MCCOMBS, Maxwell e Donald SHAW The agenda-setting function of mass media. Public Opinion Quaterly, vol. 36, n 2. New York, 1972, pp. 176-87. MEYROWITZ, Joshua No sense of place: the impact of electronic media on social behavior. Oxford: Oxford University Press, 1985. MIGUEL, Luis Felipe Mdia e eleies: a campanha de 1998 na Rede Globo. Dados, vol. 42, n 2. Rio de Janeiro, 1999, pp. 253-76. Mito e discurso poltico: uma anlise a partir da campanha eleitoral de 1994. Campinas: Editora da Unicamp, 2000. Democracia e novas tecnologias da informao. Revista Internacional de Estudos Polticos, vol. 2, n 2. Rio de Janeiro, 2000, pp. 163-84. Teoria poltica feminista e liberalismo: o caso das cotas de representao. Revista Brasileira de Cincias Sociais, n 44. S. Paulo, 2000, pp. 91-102. MOISS, Jos lvaro Os brasileiros e a democracia: bases scio-polticas da legitimidade democrtica. S. Paulo: tica, 1995. NEUMAN, W. Russell, Marion R. JUST e Ann N. CRIGLER Common knowledge: news and the construction of political meaning. Chicago: The University of Chicago Press, 1992. NOELLE-NEUMAN, Elisabeth La espiral del silencio: opinin pblica, nuestra piel social. Barcelona: Paids, 1995. OBER, Josiah Mass and elite in democratic Athens: rethoric, ideology, and the power of the people. Princeton: Princeton University Press, 1989. PAGE, Benjamin I. Who deliberates? Mass media in modern democracy. Chicago: The University of Chicago Press, 1996. PATEMAN, Carole O contrato sexual. S. Paulo: Paz e Terra, 1993. PINTO, Louis Pierre Bourdieu et la thorie du monde social. Paris: Albin Michel, 1998. PUTNAM, Robert D. Tuning in, tuning out: the strange disappearance of social capital in America. PS: Political Science & Politics, vol. XXVIII(4). Washington, 1995, pp. 664-83.

184

LUA NOVA N 55-56 2002

ROSENBERG, Shawn W. e Patrick MCCAFFERTY The image and the vote: manipulating voters preferences. Public Opinion Quaterly, vol. 51, n 1. Chicago, 1987, pp. 31-47. RUBIM, Antnio Albino Canelas Comunicao e poltica. S. Paulo: Hacker, 2000. SARTI, Ingrid A construo miditica da poltica e a crise da representao. Paper apresentado no XXIV Encontro Anual da Anpocs. Petrpolis, 2000. SARTORI, Giovanni Videpolitica. Rivista Italiana di Scienza Politica, vol. XIX, n 2. Roma, 1989, pp. 185-98. A teoria da democracia revisitada, vol. 1. S. Paulo: tica, 1994. Homo videns: la sociedad teledirigida. Buenos Aires: Taurus, 1998. SCHUDSON, Michael The power of news. Cambridge (Mass.): Harvard University Press, 1995. URBINATI, Nadia Representation as advocay: a study of democratic deliberation. Political Theory, vol. 28(6). Thousand Oaks, 2000, pp. 758-86. WATTENBERG, Martin P. The decline of American political parties, 1952-1996. Cambridge (Mass.): Harvard University Press, 1998. WOOD, Ellen Meiksins Democracy against capitalism: renewing historical materialism. Cambridge: Cambridge University Press, 1995.

Você também pode gostar