Giro Ético Polítco Da História
Giro Ético Polítco Da História
Giro Ético Polítco Da História
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Este texto é resultado parcial de projetos de pesquisa financiados pelo Conselho Nacional de Desenvolvimento
Científico e Tecnológico (CNPq) e pela Fundação de Amparo à Pesquisa do estado de Minas Gerais (Fapemig);
no caso desta última, pelo programa de apoio a grupos emergentes que financia o projeto coletivo de
pesquisa “Variedades do Discurso Histórico” no âmbito do Núcleo de Estudos em História da Historiografia
e Modernidade (NEHM).
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Em relação a este esquema que aponta para a existência de duas grandes tradições no interior do giro linguístico,
bem como associa determinados autores a um ou a outro grupo, trata-se de uma organização didática, de modo
que reconhecemos as diferenças no interior de cada uma destas tradições, e mais, a própria possibilidade de
questionamento da relação autor-tradição que anotamos ou mesmo o rearranjo da lista apresentada.
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Ainda sobre este movimento de temporalização do tempo ou da “História” a partir do Dasein, ver a discussão
sobre morte e nascimento no quinto capítulo da segunda sessão de Ser e Tempo.
326 tratamento da memória: elas tornam-se o palco no qual duas formas distintas
de memória se confrontam, a do passado irreversível (historiografia no sentido
tradicional) e a do passado irrevogável, o das vítimas. Para as vítimas, o passado
não passou e não passará, cabendo aos vivos assumir a responsabilidade por
essa copresença.
Para Bevernage, ainda, a historiografia modernista estaria assentada na
ideia de irreversibilidade do passado; sua função seria distanciar o passado,
livrar as sociedades daquilo que Hayden White, em seu famoso artigo, chamou
de “fardo da história” (BEVERNAGE 2012). Desse modo, podemos entender o
sucesso da fórmula construtivista de que o passado somente existiria na medida
em que fosse (re)inventado pelo historiador, provendo o tempo presente do
privilégio exclusivo da presença “real”. Embora não enfrente esse problema
diretamente, Bevernage nos ajuda a pensar ao identificar como na historiografia
modernista os conceitos metafísicos de subjetividade e de memória se tornaram
centrais. Nesse mundo em que tudo é construído, inclusive a nação, restaria
“apenas” a crença na realidade dos sujeitos.
Assim, compreendemos melhor a temporalidade neo-historicista, a
concepção de que a “História” se diferencia incessantemente e cabe ao presente,
autônomo (quase independente), constituir as interpretações possíveis capazes,
por conseguinte, de reconstituir sentidos e orientações provisórias, quer de
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“The problem with the past and the reason that it continues to torment, according to Ignatieff, is precisely
that it is not past: ‘Crimes can never be safely fixed in the historical past: they remain locked in the eternal
present crying out for vengeance” (BEVERNAGE 2012, p. 441).
forma mais subjetiva, quer de forma mais socialmente orientada. Desse modo,
Hayden White, por exemplo, assinala que há acontecimentos maximamente
desestabilizadores, capazes de provocar uma desarticulação radical do
presente, o que, por conseguinte, faria com que os sentidos e sugestões
disponibilizados pelos passados se tornassem inadequados. Ao tematizar o
problema do Holocausto e da “solução final”, o autor afirma que os homens do
século XX (e ainda do XXI) precisariam reconstituir conjuntos de significados e
de sentidos adequados à existência no interior de um mundo que teria colocado
em questão (quase) toda a moralidade e as orientações próprias da história
ocidental. E ainda no que toca à possibilidade de constituição de enunciados
que tematizassem aquele momento, seria necessário insistir numa espécie
de “livre jogo” entre memória e imaginação, e isso para que determinadas
lembranças fossem, aos poucos, enfrentadas e explicitadas, o que teria o poder
de (1) reorganizar a linguagem e a moralidade e (2) produzir conhecimento
(apenas) indicativo e, por conseguinte, orientador. Nesse sentido, temos um
conjunto de proposições específicas de Hayden White no que tange ao método
adequado ao enfrentamento gnosiológico de momentos radicalmente críticos.
Apesar de não termos, aqui, espaço para explicitar esse método com o cuidado
devido, já temos material suficiente para inserir o pensamento do autor norte-
-americano no interior do giro linguístico, e isso precisamente no que se refere
à compreensão fundamental que reúne os historiadores neo-historicistas, a
saber, a de que o presente é autônomo (quase independente) em relação ao
passado e precisa se dedicar à reconstituição da “História”, que, por sua vez, é
determinada pela necessidade incessante e por vezes radicalmente crítica de
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diferenciação (WHITE 2003).
Frank Ankersmit também compreende que não há possibilidade de
relação privilegiada entre pensamento e realidade ou entre os enunciados
historiográficos e o passado, e isso justo em razão da diferenciação radical
entre passado e presente; por isso, o presente acaba sendo um âmbito
decisivo de ressignificação e de reorganização do passado (ANKERSMIT 2001;
2012; ARAUJO 2006b). Segundo o autor, se, alguma vez, já foi possível
alguma relação privilegiada entre presente e passado (e esta argumentação
tem um tom irônico), isso deixou de ser possível no momento em que
houve uma multiplicação dos trabalhos produzidos no interior da história
da historiografia, os quais teriam possibilitado um afastamento ainda maior
entre o sujeito do conhecimento e os passados investigados, e isso porque
ao (precisar) percorrer essas múltiplas interpretações, o historiador, ou bem
não teria tempo suficiente para uma aproximação significativa em relação
às suas fontes, ou mesmo já seria, necessariamente, determinado por essas
leituras. No entanto, essa reflexão não deveria desestimular as pesquisas no
âmbito da história, visto que essa impossibilidade de estabelecer enunciados
privilegiados tornaria possível à história participar decisivamente de seu
tempo, constituindo e disponibilizando, incessantemente, compreensões e
juízos importantes para a orientação.
Reações
Os textos publicados neste dossiê, bem como as discussões que tiveram
lugar no interior de nosso Seminário, também possibilitam discutir a própria
repercussão do giro linguístico ou, ainda, qual seriam seus desdobramentos
concretos no interior da historiografia geral. Nesse sentido, é preciso matizar tais
repercussões, e isso em razão das especificidades das culturas historiográficas; no
entanto, sublinhamos um problema que consideramos geral e que chamamos de
giro ético-político. Com efeito, independentemente de qual cultura historiográfica
e de qual tradição esteja em questão (a fenomenológico-hermenêutica ou a
neo-historicista), as reflexões e compreensões disponibilizadas a partir do giro
linguístico apontam para a constituição de um horizonte comum no interior da
teoria e da história da historiografia contemporâneas, a saber: (1) o sujeito do
conhecimento não pode produzir enunciados privilegiados em relação à realidade,
a despeito das teorias e métodos em questão e (2) a historiografia possui uma
determinação específica, a de pensar e/ou intervir no mundo que é o seu.
Não obstante os argumentos que possamos utilizar, quer favoráveis ou
contrários a esse horizonte, parece que o mundo contemporâneo, posterior
ao giro linguístico, tornou-se profundamente crítico de toda e qualquer
argumentação fundada na possibilidade da produção de enunciados privilegiados
em relação ao real, de modo que podemos acompanhar certa consequência
mais propriamente geral provocada pelo giro linguístico no interior da teoria e
da história da historiografia contemporâneas, a saber, a sua fundamentação ou
328 mesmo justificativa ético-política (e, aqui, “ética” significa pensar seu mundo
e “política”, algo como uma intervenção mais imediata e pró-ativa). Apesar das
muitas diferenças no que tange às reflexões de autores contemporâneos como
Gumbrecht, François Hartog, Frank Ankersmit, Rüsen, Hayden White, Chris
Lorenz, Marcelo Jasmim, Berber Bevernage, Luiz Costa Lima, Elias Palti, entre
outros, a impressão que temos é a de que, justo em razão do questionamento
radical e da perda do valor de convencimento da justificativa – produzir
conhecimento sobre o passado –, e isso a partir do giro linguístico, a teoria e a
história da historiografia contemporâneas têm no critério pensar e/ou intervir
no mundo, ou seja, na pretensão ético-política, o ponto de determinação ou
mesmo o motivo fundamental a partir do qual insiste (e justifica) em tematizar
passados no interior do presente.
Autores como Gumbrecht estão preocupados com a possibilidade de a
história da historiografia contemporânea insistir na liberação de passados a
partir do que chama de “realismo impossível”, e isso com o intuito de ampliar
a sensibilidade humana, o que significa, mais propriamente, a possibilidade de
provocar uma relação mais adequada entre a sensibilidade, a realidade sempre
complexa e o aparato intelectivo (GUMBRECHT 2011; 2014). É nesse sentido,
aliás, que podemos pensar o problema da Stimmung como cara à reconstituição
(intensificação) de passados. François Hartog também se preocupa com o
problema de um diagnóstico do mundo contemporâneo, o qual seria determinado
por um “regime de historicidade” específico, o do “presentismo”, de modo que
a teoria e a história da historiografia podem constituir-se como âmbito ideal
Referências bibliográficas
ANKERSMIT, Frank. A escrita da História: a natureza da representação
histórica. Londrina: Eduel, 2012.
______. Historiografia e pós-modernismo. Topoi: revista de história, v. 2, p.
113-135, 2001.
ARAUJO, Valdei Lopes de. A aula como desafio à experiência da história. In:
GONÇALVES, Márcia de Almeida et al. (orgs.). Qual o valor da história
hoje? Rio de Janeiro: FGV, 2012.
______. História da historiografia como analítica da historicidade. História da
Historiografia, v. 12, p. 34-44, 2013.
______. Formas de ler e aprender com a História no Brasil joanino. Acervo, v.
22, p. 85-98, 2009.
______. Observando a observação: sobre a descoberta do clima histórico e
a emergência do cronótopo historicista, c. 1820. In: CARVALHO, José
Murilo; CAMPOS, Adriana Pereira (orgs.). Perspectivas da cidadania
no Brasil Império. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2011, p. 281-
304. v.1.
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