A Água É Uma Máquina Do Tempo

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Depoimentos

Aline Motta *

A água é uma máquina do tempo

1.
Às vezes o detalhe de um desenho, que antes parecia apenas uma mancha, se torna
uma marca com contornos definidos. Nessa hora, reconhecemos como tudo começou.
Foi assim quando comecei a falar mais sobre o meu trabalho e a localizar suas respira-
ções, suas águas, suas vibrações. O corpo viu primeiro e descobriu de onde vinha tudo
aquilo. Tudo que precisava ser expressado, falado, não contido. Este texto dá forma a
algumas dessas articulações, revela suas linhas de força e vidas dentro da vida. Se “a
respiração é a rainha do corpo”,1 este texto incorpora essa ação e também se contrai e se
expande de acordo com sua própria respiração, enquanto você o lê.
Muito do meu trabalho é sobre minha própria família, especialmente sobre minha
avó. As avós concentram as forças de cura em nossa comunidade. Ao mediar conflitos, as
avós sabem que conflito é fundamento, e mediação de conflito também é fundamento.
Portanto, no meu caso, linhagem é linguagem. A performance de uma avó é uma perfor-
mance coletiva de todas as avós. É a performance de toda uma linhagem de mulheres,
que se manifesta em multimeios e multidireções, atuando e enfrentando várias camadas
afetivas, por vezes traumáticas. São plurivozes ancestrais.
Seria possível fabular novos laços de parentescos, novas linhagens e até mesmo
uma nova filiação? Faço esta pergunta, norteadora do meu trabalho, partindo do con-
ceito de fabulação crítica proposto por Saidiya Hartman.2 Unindo duas palavras que pa-
recem opostas, ela localiza o fabular no campo da imaginação política; e situa a crítica,
não como uma prática de hierarquização que nomeia, categoriza e constrói cânones e
narrativas hegemônicas, mas a partir de uma perspectiva de desenvolver uma criticidade
em torno do material de arquivo. Dessa maneira, quando faço uso de material de ar-
quivo nas minhas obras, procuro discutir se existe uma linguagem diaspórica comum e
para qual caminho de intersecções coincidentes essa linguagem apontaria. As lacunas,
falhas e abismos desse arquivo são como cartografias sobrepostas de paisagens internas
e externas3 ainda a serem desenhadas. Se há um conjunto de experiências diaspóricas

eLyra 18, 12/2021: 333-337 – ISSN 2182-8954 | http://dx.doi.org/10.21747/2182-8954/ely18d1 333


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compartilhadas, a reconstituição de um território é a reconstituição do próprio ser. A


fragmentação se torna metodologia e impulso criativo.
“Inventar a partir de um inventário”, disse Tiganá Santana numa entrevista, basean-
do-se em um poema de Jorge Portugal. Com essa frase, Tiganá une duas palavras, que
aparentemente também se contradizem: inventar e inventário. Nesse sentido, percebo
que o inventário não é só um conjunto de documentos, mas também o acervo emocional
de nossas famílias. São acervos geracionais.
Buscando criar uma justaposição de tempos, frequentemente começo os meus tra-
balhos construindo as fotografias, e essas fotografias acabam virando frames. Os frames,
alinhados em sequência, viram filmes. Cada filme contém todos os filmes, os que eu já fiz
e os que ainda vou fazer.
Assim como cada frame contém todos os frames do filme inteiro, eu imagino que
eles funcionam como células, e essas células são como sementes, que contêm todo o
resto da criação.
Cada frame é construído de modo a conter todas as temporalidades: o passado, uma
presentificação do passado e uma dimensão um pouco distópica de futuro. Tal sentido
de futuricidade, assim como este texto, tem um caráter oracular. A futuricidade pode ser
percebida como uma premonição de algo que já aconteceu e que reverbera em dimen-
sões de tempo instáveis e permeáveis. Assim, é possível atravessá-las.

2.
“Aonde não chegamos, o céu caiu” – em kikongo, “kunaketwaluaka-ko zulu dyabwa”
– é um provérbio bakongo mencionado pelo poeta e professor Abreu Paxe4 em sua tese
de doutorado. Ele comenta especificamente sobre essa sentença proverbial da seguinte
forma:

Esse provérbio em si já se revela responsável por contínuas passagens de umas coisas pelas
outras de modo incessante. Vê-se mesmo que quando ele se agita, revela o caráter explosivo,
tumultuoso e infinito de seus tráfegos relacionais, em que as coisas entre si pulam uma nas
outras e com as coisas; por isso, o centro não se encontra em lado algum.

Talvez desatando o enigma contido nesse provérbio, Tiganá Santana costuma dizer
que no centro da roda não há segredo, há mistério. A meu ver, um centro que se move,
um centro que dança ao redor de si mesmo e com as extensões de suas pluralidades não
se fixa em um único destino.
Por entender essas formulações como sínteses temporais, como fixadoras de memó-
ria e também como meios de passagem de conhecimento, tenho me aprofundado no es-
tudo dos provérbios, principalmente os centro-africanos. O professor Paxe diz que os pro-
vérbios são, em essência, uma ficcionalização da vida e uma textualização de elementos
do cotidiano. Esse procedimento oferece uma chave de leitura possível da minha prática

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artística. Em um contínuo retorno a si mesmo, observo que, na maioria dos meus traba-
lhos, há jogos de palavras cifrados, onde o centro está presente, mas é subentendido.
Dois conceitos fundamentais, que tangenciam minha poética, nascem justamente
da circularidade dessas proposições e são baseados em cosmologias centro-africanas.
São cosmopercepções Congo-Angola e, por conseguinte, afro-brasileiras de apreensão do
mundo.5
O primeiro deles é o culto aos ancestrais, que consiste em lembrá-los, honrá-los,
alimentá-los.
O segundo conceito parte de uma conexão profunda com a natureza e entende que
os ciclos da vida estão intrinsecamente conectados aos ciclos da natureza. Numa siste-
matização do chamado “Cosmograma Bakongo”, a duração de um único dia está ligada
ao ciclo de vida e morte de todos os seres. Ao acionar o cosmograma, um ser nasce às
seis da manhã, torna-se maduro ao meio-dia, envelhece às seis da tarde e se inscreve
como um ancestral à meia-noite. Com estes diferentes graus de fisicidade, o ciclo se re-
pete todos os dias de maneira circular, transmutacional e interrelacional. O que separa
as dimensões dos vivos e dos mortos é uma linha fina de água chamada Kalunga. Nessa
forma de ver o mundo, a água guarda memória, a água é vista como um veículo, a água é
uma máquina do tempo. É uma iniciação.
A máquina Kalunga é uma máquina de ver o invisível com seus olhos d’água.6
Quase a ponto de velar o que foi capturado, a máquina Kalunga verte imagens, ati-
vando as qualidades refrativas e reflexivas das entidades que mobiliza, tal como uma
câmera controla quanto de luz é capaz de passar pelo obturador sem apagar os vestígios
do que enquadra.
A máquina Kalunga é um aparato emancipatório.

3.
Uma vez ouvi de Alexis Pauline Gumbs que o primeiro teletransporte foi o nosso nas-
cimento. Indo mais fundo nessa ideia, eu me dei conta de que, na fisiologia da gestação,
os fetos respiram pelo coração e pelo cordão umbilical, que faz as trocas gasosas. Na hora
do nascimento, o bebê respira pelo nariz pela primeira vez, muitas vezes limpando as vias
respiratórias de fluidos. Essa inspiração que escoa os líquidos e expande os pulmões pare-
ce doer um pouquinho, o bebê chora. O choro ecoa na sala de nascimento, reverberando
vibrações sonoras e conferindo um senso de espacialidade ao próprio recém-nascido. O
ruído agudo se modula, como o sonar de um mamífero marinho, com o bebê já testando,
talvez, uma afinação de sua voz com a voz da vida que inicia. Os olhos piscam tirando fo-
tografias desfocadas. Ao sair de um mundo aquático para o mundo aéreo, o bebê respira
e vê, ao mesmo tempo, pela primeira vez. Ouve seu próprio choro.
Isso deve ter me marcado de tal modo que consigo intuir que minha primeira expe-
riência de cinema foi o meu próprio nascimento. A sala de cinema, escura e com imagens
agigantadas em projeção, me fascinou desde sempre e me deixava confortável a ponto

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de dormir como se estivesse em casa, minha mãe dizia. Talvez transportada a algum lu-
gar em forma de céu noturno com seus vislumbres de sonhos e estrelas fulgurantes. Ao
nascer, os olhos se abriram e projetaram um filme. Uma primeira ficção.

4.
Epistemologia da umbigada. Um dia, observando uma roda de jongo, eu percebi que
era exatamente esse giro epistemológico que eu estava fazendo nos meus processos artís-
ticos. Vista a centralidade que o umbigo tem para as culturas centro-africanas e afro-bra-
sileiras, falar sobre o próprio umbigo não se configura um ato de espelhamento narcísico.
Pelo contrário. Do mesmo modo que as giras oceânicas que saem de Angola e ba-
nham o Brasil são correntes em sentido anti-horário, a gira refaz o caminho do sol, de
leste para oeste, círculos de corpos que se movimentam em espiral. Nesta dança, eu pro-
jeto meu umbigo para a frente e convido alguém para se juntar a mim no centro da roda.
Quando lanço meu corpo ao centro, eu piso na intersecção de uma linha horizontal, que
é a Kalunga, e uma linha vertical, que representa minha espinha dorsal, meus alicerces.
A intersecção dessas duas linhas é a encruzilhada. Nesse ponto de encontro, posso riscar
as assinaturas espirituais dos meus antepassados, bússolas do bem-viver, curas interge-
racionais. É o espaço onde se pode ouvir a pergunta e a resposta simultaneamente.
Quando estou no meio da roda, o lugar onde o céu ainda não caiu, eu dou uma um-
bigada no tempo. Dou uma umbigada em meus ancestrais. Dou uma umbigada em mim
mesma.

NOTAS

* Aline Motta Nasceu é bacharel em Comunicação Social pela UFRJ e pós-graduada em Cinema pela The
New School University (NY). Combina diferentes técnicas e práticas artísticas, mesclando fotografia, vídeo,
instalação, performance, arte sonora, colagem, impressos e materiais têxteis. Sua investigação busca rev-
elar outras corporalidades, criar sentido, ressignificar memórias e elaborar outras formas de existência. Foi
contemplada com o Programa Rumos Itaú Cultural 2015/2016, com a Bolsa ZUM de Fotografia do Instituto
Moreira Salles 2018 e com 7º Prêmio Indústria Nacional Marcantonio Vilaça 2019. Recentemente participou
de exposições importantes como “Histórias Feministas, artistas depois de 2000” - MASP, “Histórias Afro-Atlân-
ticas” - MASP/Tomie Ohtake, “Cuando cambia el mundo” - Centro Cultural Kirchner, Buenos Aires, Argentina
e “Pensar tudo de nuevo” - Les Rencontres de la Photographie, Arles, França. Abriu sua exposição individual
“Aline Motta: memória, viagem e água” no MAR/Museu de Arte do Rio em 2020. Em 2021 exibiu seus trabalhos
em vídeo no New Museum (NY) no programa “Screen Series”.

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1
Sodré, Muniz. Pensar Nagô. Petrópolis: Vozes, 2017, p. 117.
2
Hartman, S. “Vênus em dois atos”. Revista ECO-Pós, vol. 23, nº 3, pp. 12-33. Disponível em: https://revistaeco-
pos.eco.ufrj.br/eco_pos/article/view/27640.
3
Conceito de paisagens internas e externas concebido pela escritora Sheyla Smanioto.
4
Paxe, Abreu Castelo Vieira dos. “A migração fractal do provérbio: práticas, sujeitos e narrativas entrelaçadas”.
Tese de doutorado, Programa de Estudos Pós-Graduados em Comunicação e Semiótica – PUC/SP, 2016. Ori-
entador: José Amálio de Branco Pinheiro.
5
Os trabalhos Corpo Celeste II e III (2019/2020), que realizei em colaboração com o historiador e etnomusicólo-
go Rafael Galante, por exemplo, são baseados em seu curso “As diásporas centro-africanas e a formação das
musicalidades afro-atlânticas”, entre outros, e sistematizaram muitos dos conceitos aqui apresentados.
6
“Olhos d’água” é o título de um livro de Conceição Evaristo. Evaristo, Conceição. Olhos d’água. Rio de Janeiro:
Pallas Editora, Fundação Biblioteca Nacional, 2016. No texto para o podcast “Águas de Kalunga” (ep.1, Museu
de Arte do Rio/MAR, 2019), escreveu Conceição Evaristo: “Kalunga, segundo as minhas mais velhas e os meus
mais velhos, antes estava na lembrança de nossas águas matriciais, princípio da vida. Águas de Kalunga, reino
de nossas ancestralidades, ali estavam os entes que nos guardam no fundo dos olhos. Kalunga, águas de vir e
ir naturalmente. Princípio e retorno. As águas de Kalunga são águas mães, são geradoras de tudo”.

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