Sexualidade, Autismo e Vida Adulta. Contribuições para Educação Sexual
Sexualidade, Autismo e Vida Adulta. Contribuições para Educação Sexual
Sexualidade, Autismo e Vida Adulta. Contribuições para Educação Sexual
FACULDADE DE CIÊNCIAS
Programa de Pós-Graduação em Psicologia do Desenvolvimento e Aprendizagem
BAURU
2022
ANA CARLA VIEIRA OTTONI
BAURU
2022
Ottoni, Ana Carla Vieira.
Sexualidade, Autismo e Vida Adulta:
contribuições para educação sexual / Ana Carla
Vieira Ottoni, 2022
186 f.
RESUMO GERAL
O Transtorno do Espectro Autista (TEA) é uma condição de neurodesenvolvimento com
implicações como dificuldades na comunicação social, e interesses, movimentos ou
comportamentos restritos e repetitivos, classificadas de acordo com sua necessidade de
suporte nos níveis crescentes 1, 2 ou 3. Inseridos em uma sociedade normativa, patriarcal e
moralista, adultos com TEA/S1 enfrentam problemas com relação à sexualidade, como
acentuada vulnerabilidade para violências e direitos negligenciados. O presente trabalho
buscou, por meio do Estudo 1, levantar e descrever literatura científica sobre sexualidade e
autismo, baseada na perspectiva das próprias pessoas com TEA/S1, respeitando a
autoadvocacia e representatividade. A Revisão Sistemática de Literatura resultou na análise
de 19 artigos com características variadas, não somente nos instrumentos utilizados e
desenhos metodológicos, mas especialmente na abordagem para interpretação dos dados, que
variou de concepções neurodiversas a biologicistas e medicalizantes. Complementarmente,
o Estudo 2, realizado com objetivo de investigar as concepções e vivências sobre sexualidade,
contou com a participação de nove pessoas, que colaboraram por meio de entrevistas online
e relataram dados convergentes ao primeiro, analisados qualitativamente e organizados em
categorias temáticas. Por fim, no Estudo 3, relatou-se a elaboração de uma cartilha, criada a
partir das diretrizes e conhecimentos até então coletados, com a finalidade de promover
divulgação científica em meios não acadêmicos. Dentre as limitações principais dos estudos
cita-se a restrição das amostras, tanto de material bibliográfico quanto participantes,
impossibilitando generalização dos dados às pessoas com TEA/S1, e necessidade de
expansão de critérios de inclusão, para que adultos autistas com características mais diversas,
bem como outros tipos de estudo, façam parte das análises tecidas e enriqueçam o
conhecimento na área. O produto técnico foi avaliado pelos participantes do Estudo 2, mas
necessita aprimoramento e testes de eficácia por meio de seu uso em situação de ensino
programado.
Palavras-chaves: Transtorno do Espectro Autista. Autismo. Sexualidade. Educação
Sexual. Neurodiversidade.
GENERAL ABSTRACT
Autism Spectrum Disorder (ASD) is a neurodevelopmental condition with implications such
as difficulties in social communication, and restricted and repetitive interests, movements or
behaviors, classified according to their need for support in increasing levels 1, 2 or 3. Inserted
in a normative, patriarchal and moralistic society, adults with ASD/S1 face problems related
to sexuality, such as marked vulnerability to violence and neglected rights. The present work
sought, through Study 1, to survey and describe scientific literature on sexuality and autism,
based on the perspective of people with ASD/S1 themselves, respecting the need for self-
advocacy and representation. The Systematic Literature Review resulted in the analysis of
19 articles with different characteristics, not only in the instruments used and methodological
designs, but especially in the approach to data interpretation, which ranged from neurodiverse
to biologicist and medicalizing conceptions. Complementarily, Study 2, carried out with the
objective of investigating the conceptions and experiences about sexuality, had the
participation of nine people, who collaborated through online interviews and reported
convergent data to the first, analyzed qualitatively and organized into thematic categories.
Finally, in Study 3, it was reported the elaboration of an informative material, created from
the guidelines and knowledge collected until then, with the purpose of promoting scientific
dissemination in non-academic circles. Among the main limitations of the studies presented
so far, we mention the restriction of samples, both of bibliographic material and participants,
making it impossible to generalize the data to people with ASD/S1, and the need to expand
the inclusion criteria, so that autistic adults with more diverse characteristics, as well as other
types of study, are part of the woven analyzes and enrich the knowledge in the area. The
informative material was evaluated by the Study 2 participants, but it needs improvement
and effectiveness tests through its use in a programmed teaching situation.
Keywords: Autism Spectrum Disorder. Autism. Sexuality. Sex Education. Neurodiversity.
LISTA DE SIGLAS
APRESENTAÇÃO
As temáticas autismo e sexualidade começaram a ser exploradas por nós em 2014,
com a escrita da dissertação de mestrado “Sexualidade e Transtorno do Espectro Autista:
relatos de familiares” (VIEIRA, 2016a), na qual entrevistamos mães, pais e avós de
adolescentes diagnosticados, buscando descrever a educação sexual promovida no contexto
doméstico. Na ocasião de convite dos participantes da pesquisa, recebemos questionamentos
sobre quando as próprias pessoas autistas falariam e seriam ouvidas sobre o assunto, e fomos,
nesse momento, pragmaticamente atravessadas pelos conceitos de autoadvocacia1,
representatividade2 e autodefensoria3.
Compreendemos, então, que apesar das pertinentes descobertas acadêmicas
proporcionadas pela dissertação, necessitávamos repensar nossas práticas científicas e
profissionais, a fim de não reproduzir o apagamento das pessoas autistas. Participamos, no
período entre 2016 e 2022, de ações que generosamente nos permitiram ampliar o olhar no
sentido do protagonismo e lugar de fala neurodiverso: mediamos o eixo de sexualidade, no
primeiro Fórum de Autodefensoria da APAE/Bauru; realizamos uma palestra no formato
TEDx, para divulgação de informações com amplo alcance por acesso online (VIEIRA,
2016b); publicamos produtos acadêmicos, como capítulos de livros e artigos científicos
(OTTONI; MAIA, 2019a; OTTONI; MAIA, 2019b; OTTONI; MAIA, 2019c; OTTONI et
al., 2021) e conduzimos grupos de apoio, com foco na educação sexual emancipatória
(MAIA; VILAÇA; VIEIRA; SALVIATO-EZEQUIEL, 2017).
Tornou-se evidente que o campo de estudos e intervenções voltados a autistas é
composto por disputas, em aspectos filosóficos, metodológicos e sociais. Os extremos deste
cenário podem ser superficialmente sintetizados nos polos: movimento da Neurodiversidade,
que defende a afirmação do autismo enquanto uma identidade, deslocando-o do campo
estritamente médico para a perspectiva da forma de ser e existir diversa no mundo; e o
movimento Pró-cura, próximo aos estudos médicos e das neurociências, no qual se
encontram centros que buscam principalmente compreender a origem do autismo.
Como desdobramentos deste embate, tem-se por um lado a defesa de que a sociedade
deve alterar sua forma de ver e incluir os sujeitos, modificando a lógica normativa para a
1
Autoadvocacia: conceito derivado do advogar a própria causa, em prol da emancipação das pessoas com
deficiência, por meio de processo intencional (LINDOLPHO et al., 2020).
2
Representatividade: representação de um grupo de pessoas pautando-se nos direitos humanos e, de forma
essencial, na escuta daqueles a serem representados (SOUZA, 2016).
3
Autodefensoria: processo de participação e autonomia no qual pessoas com deficiência tomam decisões
sobre suas vidas, têm voz e espaço para expressar seus desejos e necessidades (GLAT, 2004).
11
4
O Instagram é um aplicativo que utiliza essencialmente recursos visuais, como fotos e vídeos, para
divulgação de conteúdos de naturezas diversas. É gratuito, disponível a pessoas com mais de 18 anos de
idade, e tem políticas restritivas quanto à violação de direitos humanos.
5
O perfil pode ser acessado utilizando o termo @diverso.singular no campo de busca do aplicativo, e o
formato está programado para que todo conteúdo seja aberto e acessível, com campos como Texto
Alternativo a pessoas com deficiências visuais, legendas para o caso de dificuldades auditivas e página com
todos os materiais citados nas postagens para download integral (artigos, capítulos de livro, dissertação e,
futuramente, tese e material informativo). Sua organização prévia foi realizada para que o conteúdo seja
disponibilizado aos 800 seguidores que atualmente compõem o público atingido, bem como futuros
acessos.
13
INTRODUÇÃO GERAL
O autismo foi referido pela primeira vez, com tal nomenclatura, por Leo Kanner, em
estudos conduzidos e publicados na década de 1940, nos Estados Unidos. O médico era uma
grande referência na recém-criada psiquiatria infantil, e ao observar casos clínicos com sinais
como dificuldades no desenvolvimento da linguagem, da socialização e comportamentos
atípicos em termos sensoriais e de repetição, percebeu a necessidade de criar uma categoria
diagnóstica. Na mesma época, em Viena, Hans Asperger fez registros de crianças com
padrões similares, porém maiores desempenhos em avaliações cognitivas e comunicativas
(DONVAN; ZUCKER, 2017).
A ideia de que os casos avaliados por Asperger teriam autonomia, inteligência e
habilidades de comunicação elevadas se manteve no Manual Diagnóstico e Estatístico de
Transtornos Mentais (DSM) e na Classificação Internacional de Doenças (CID) - o autismo
de Kanner era referido informalmente como “clássico” e o de Asperger como “leve”. Na
CID-106 e no DSM-IV7, utilizava-se a classificação de diversos subtipos de autismo, com
medidores de intensidade tais quais “moderado” e “severo”. Em comum, todos os
diagnósticos compartilhavam três características centrais: déficits na comunicação, na
linguagem, e padrões de comportamentos repetitivos (AMERICAN PSYCHIATRIC
ASSOCIATION, 2005).
A prática clínica e os estudos científicos evidenciaram ser possível e necessária a
unificação de tais subtipos diagnósticos em um continuum, sintetizado na quinta edição do
DSM pela nomenclatura Transtorno do Espectro Autista (DONVAN; ZUCKER, 2017).
Antes considerado parte dos Transtornos Globais do Desenvolvimento, passou a ser
enquadrado no grupo dos Transtornos de Neurodesenvolvimento, e as três características
gerais foram reformuladas em duas: déficits na comunicação social, e interesses, assuntos ou
movimentos restritos e repetitivos. Os especificadores passaram a expressar o suporte a ser
oferecido para a pessoa diagnosticada, variando entre Nível 1 e Nível 3 de acordo com a
crescente necessidade de apoio (AMERICAN PSYCHIATRIC ASSOCIATION, 2014). A
6
Na décima edição da CID, tinha-se o Autismo Infantil, Autismo Atípico, Síndrome de Rett, Outro
Transtorno Desintegrativo da Infância, Transtorno com hipercinesia associado a retardo mental e
movimentos estereotipados, Síndrome de Asperger, Outros Transtornos Globais do Desenvolvimento e
Transtornos Globais não especificados do Desenvolvimento.
7
O DSM-IV propôs categorização similar à CID-10: Transtorno Autista, Transtorno de Rett, Transtorno
Desintegrativo da Infância, Transtorno de Asperger e Transtorno Invasivo do Desenvolvimento Sem Outra
Especificação.
14
CID-11 propôs classificação inspirada nos avanços do DSM-5, embora possam ser
observadas variações nas nomenclaturas8 (WORLD HEALTH ORGANIZATION, 2020).
As mudanças diagnósticas foram importantes por inúmeras razões, entretanto, a
imensa quantidade de termos linguísticos utilizados e modificados impôs um desafio aos
pesquisadores da área: como referenciar o público-alvo de seus estudos. Sabe-se que o uso
de descritores, mesh terms e palavras-chave são essenciais para que estudiosos comuniquem
seus achados e encontrem literatura convergente a seus interesses. No caso de pesquisas que
envolvem a temática do autismo isso é delicado tanto devido à história supracitada, quanto
pelo fato de que, na maior parte dos contextos, fazer afirmações sobre pessoas TEA de Nível
1 é radicalmente diferente dos Níveis 2 e 3, o que exige tomadas de decisões para especificar
o escopo.
Na tentativa de mitigar tal problema, em estudos anteriores (OTTONI; MAIA,
2019a/2019b), voltados a pessoas antigamente incluídas no diagnóstico de Síndrome de
Asperger, ou no descritor “leve” de autismo, optou-se pelo uso da sigla TEA/SA, que
representava o conceito de espectro, e englobava participantes com autonomia significativa,
desenvolvimento avançado de linguagem funcional e sem deficiência intelectual. Embora tal
sigla tenha facilitado a comunicação científica de modo imediato, alguns fatos históricos
evidenciaram a necessidade de revisão do seu uso (DONVAN; ZUCKER, 2017).
Donvan e Zucker (2017), em uma notável historiografia sobre o autismo, relataram
que, quando o grupo de pesquisadores responsáveis pela elaboração do DSM-IV considerou
homenagear Hans Asperger, incluindo seu sobrenome no diagnóstico, ele foi retratado por
familiares e comunidade como um profissional cuidadoso e humanizado, merecedor de tal
ação. Entretanto, após alguns anos, evidências e documentações comprovaram a colaboração
do médico com o regime nazista, contribuindo ativamente para a morte de muitas pessoas no
genocídio alemão – especialmente crianças autistas com características mais “acentuadas”.
Assim, em respeito à história e memória, optou-se por suprimir o nome de Asperger, como
forma de negação da errônea menção honrosa a ele atribuída.
Consequentemente, o uso da sigla TEA/SA tornou-se inviável, tal qual os
estigmatizantes descritores de “graus” do autismo. Assim, para fazer referência aos
8
A CID-11 classifica o autismo enquanto espectro, e as subcategorias são: TEA sem Deficiência Intelectual
(DI) e com comprometimento leve ou ausente de linguagem funcional; TEA com Deficiência Intelectual
(DI) e com comprometimento leve ou ausente de linguagem funcional; TEA sem DI e com linguagem
funcional prejudicada; TEA com DI e com linguagem funcional prejudicada; TEA sem DI e com ausência
de linguagem funcional; TEA com DI e com ausência de linguagem funcional; Outro TEA especificado e
TEA não especificado.
15
9
Ao longo do texto serão utilizadas as siglas TEA/S1, TEA/S2 e TEA/S3 para referenciar os diferentes
níveis de suporte e, sempre que possível, o termo “autista” ou “pessoa/mulher/homem/adolescente autista”.
Quando necessário falar sobre pessoas com TEA/S1, será usado “pessoas TEA/S1”, suprimindo o “com”
pelas razões apresentadas, como um formato simplificado de “autistas que necessitam de suporte no nível
1”.
16
ESTUDO 1
RESUMO
ABSTRACT
The scientific literature has shown the need to investigate the sexuality of people with
Autistic Spectrum Disorder (ASD/S1), to support them in the defense of their sexual rights
and experiences. The purpose of this study was to make a survey and describe articles on the
subject, whose participants had been autistic adults, analyzing their methodological designs
and results achieved. It is a systematic literature review, based on PRISMA recommendation
(Main Items for Reporting Systematic Reviews and Meta-analyses), divided into three steps.
In the first, a bibliographic survey, a search for scientific articles was carried out without
determining the initial date of publication, until July 2019, available in Portuguese and
English in Scielo, Pubmed, SCOPUS, Lilacs and Web of Science databases, a from the
combinations of keywords autism AND sexuality; Asperger AND sexuality; autistic
spectrum disorder AND sexuality; autism AND sexuality. After reading all the titles and
abstracts, the articles were stored in an electronic device to start the next step, the detailed
selection, in which duplicates and disparities in the research theme were excluded. Two
researchers analyzed the remaining articles independently, based on a detailed protocol about
the target audience and sample inclusion criteria. After full agreement between the
researchers, the third step consisted of analyzing and classifying the data, read in full and
recorded according to their methodological items and results found, which are organized into
emerging categories based on the content analysis method. The 667 articles found initially
were screened to 30 on the theme of the work, and 19 were selected, according to the protocol
analysis. The methodological diversity of the works resulted in the presentation of multiple
results, classified into: a) general characteristics of sexuality of people with ASD/AS; b)
deficits and vulnerabilities; c) issues of gender identity and sexual orientation. The
conclusion was that articles with instruments built specifically for autistic people and
possibilities for open responses were more productive to obtain descriptive data, as well as
direct survey methods and neurodiverse analyses. The perspective of neurotypical hegemony
present in many of the analyzed articles was criticized, as well as biologists, medicalizing
and pathologizing approaches. Future research on sexuality of people with ASD / AS may be
more fertile if they use exploratory or descriptive methods, varied, open and adapted
instruments, with autistic participants, in the logic of self-advocacy, and with analyses
starting from broad, historical, social, cultural and complex, deconstructing the normative
and essentially neurotypical view.
1 INTRODUÇÃO
O Transtorno do Espectro Autista (TEA) é uma condição de neurodesenvolvimento
definida por duas características centrais: dificuldades na comunicação social, e
comportamentos, interesses ou movimentos restritos e repetitivos. O termo espectro,
incorporado pela quinta edição do Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais
(DSM-5), sinaliza a amplitude das expressões dessas características, denotando que as
pessoas autistas são profusamente diferentes entre si, variando de extremos onde há
necessidade de apoio substancial para funcionalidade, a outros nos quais o suporte pode ser
pontual (AMERICAN PSYCHIATRIC ASSOCIATION, 2014).
O diagnóstico de TEA deve ser estabelecido por uma equipe multidisciplinar, que
mediante análise clínica investiga, além das duas características básicas do autismo, sinais
complementares, como a hipersensibilidade ou hipossensibilidade a estímulos sensoriais.
Observa-se, por exemplo, dificuldades associadas ao sono e à alimentação; rigidez em termos
de rotinas, ordem e sequências; brincadeiras pouco imaginativas; custo para manter contato
visual; déficits motores; interações atípicas com pares etc. Essas evidências não estão
simultânea ou imprescindivelmente presentes, mas representam indícios de apoio ao
diagnóstico, assim como a coexistência com Deficiência Intelectual, Transtorno do Déficit
de Atenção e Hiperatividade (TDAH), Epilepsia, Distúrbios do sono e constipação
(AMERICAN PSYCHIATRIC ASSOCIATION, 2014).
A instituição da nomenclatura “Transtorno do Espectro Autista”, em 2013, implicou
na incorporação de diagnósticos parelhos em sua abrangência, como Síndrome de Asperger,
Transtorno Autista sem Outra Especificidade e Síndrome de Rett (AMERICAN
PSYCHIATRIC ASSOCIATION, 2014; ASSUMPÇÃO JUNIOR; KUCZYNSKI, 2015).
Embora a unificação seja um facilitador em termos diagnósticos, há autores que indicam a
importância de manter uma sinalização diferencial, considerando a identidade de
determinada população, por isso serão utilizados TEA de Suporte 1, 2 ou 3, de acordo com a
necessidade de apoio dos subgrupos (SOLOMON, 2013; VIEIRA, 2016).
Autistas que necessitam de suporte 1 (TEA/S1) apresentam características comuns ao
espectro geral, e de maneira específica, seu desenvolvimento intelectual é melhor avaliado,
estando muitas vezes nos escores médios ou acima para a idade cronológica, além de se
expressarem verbal e oralmente com maior desenvoltura e autonomia (AMORIM, 2011;
KLIN, 2006). Essas pessoas frequentemente manifestam dificuldades para demonstrar
sutilezas emocionais e identificar sentimentos alheios, o que pode gerar situações de
sinceridade exacerbada. Para muitas delas, as argumentações sobre questões cotidianas são
21
2 OBJETIVOS
Analisar quais os delineamentos metodológicos e resultados obtidos na investigação
sobre a sexualidade de pessoas com TEA/S1, cujos participantes tenham sido adultos autistas.
3 MÉTODO
Trata-se de um estudo de Revisão Sistemática de Literatura (RSL), que consiste na
identificação de publicações sobre determinada temática, com métodos claros e organizados
para busca, propondo avaliação de qualidade, com rigor em suas etapas (GUANILO;
TAKAHASHI; BERTOLOZZI, 2011). Para operacionalização do trabalho, utilizou-se a
recomendação PRISMA (Principais Itens para Relatar Revisões Sistemáticas e Meta-
Análises), composta por 27 itens de um checklist organizado, elencando elementos
necessários para que uma RSL seja realizada, com melhores relatos de pesquisas (MOHER
et al., 2009).
Assim como Guerra et al., (2019) propuseram, as etapas do PRISMA foram
fragmentadas em três: a) levantamento bibliográfico; b) seleção dos artigos; c) análise e
categorização dos dados. Optou-se, também, de forma similar às autoras, por seguir
adicionalmente as recomendações de Sampaio e Mancini (2007), que indicam os passos: a)
definir a pergunta de pesquisa, contendo condição de interesse, população, contexto,
intervenção e desfecho; b) buscar evidências a partir dos critérios delimitados para inclusão
e exclusão da amostra; c) revisar e selecionar os estudos de acordo com critérios
estabelecidos, com participação de dois pesquisadores independentes; d) analisar a qualidade
metodológica dos estudos; e) apresentar os resultados. Considerando que os estudos
envolvidos na temática foram essencialmente de natureza qualitativa, exploratórias ou
descritivas, os passos de descrição de desfechos, comuns aos estudos interventivos, foram
suprimidos por não existirem nos trabalhos recuperados.
Em convergência aos objetivos do estudo, estruturou-se como pergunta de pesquisa
“Quais os métodos empregados e resultados obtidos por pesquisas que se propuseram estudar
a sexualidade de pessoas com TEA/S1, a partir da perspectiva de adultos autistas?”.
4 RESULTADOS
4.1 Etapa 1: Levantamento Bibliográfico/Busca das evidências e Etapa 2:
Seleção dos artigos/Revisão e triagem dos estudos
Foram encontrados 667 artigos nas bases de dados disponíveis para download. Após a
organização dos arquivos armazenados, foram excluídos 200 duplicados. Os títulos e
resumos dos 467 trabalhos restantes foram lidos para análise do enquadramento na temática
específica do trabalho, ou seja, descrição da sexualidade de pessoas com TEA/S1 a partir de
coletas diretas, restando 30 artigos. Para o refinamento final, a aplicação do protocolo de
análise das pesquisadoras resultou em 19 artigos. Os dados quantitativos estão expressos no
Diagrama Prisma (Figura 1).
27
Fonte: Modelo disponibilizado pelo site oficial do PRISMA, acesso em: http://www.prisma-
statement.org/PRISMAStatement/FlowDiagram
A descrição metodológica dos trabalhos analisados nesta revisão incluiu, ainda, seu
enquadramento de acordo com a natureza do estudo. Assim, como apontado por Gil (2002),
considerou-se que as pesquisas seriam exploratórias, descritivas ou explicativas, de acordo
com os objetivos traçados, e bibliográficas, documentais, experimentais, ex-post facto, de
coorte, de levantamento, estudos de campo, estudos de caso e pesquisa-ação ou pesquisa-
participante, de acordo com seus delineamentos. Foram descritos, adicionalmente, os
instrumentos utilizados para realização das pesquisas, e os participantes, no caso de estudos
empíricos, ou documentos, nos documentais (Quadro 3).
31
A14 Descritiva Autism Quotience (AQ); Background Information 331 pessoas autistas
Levantamento Form; Online Sexual Experience Questionnaire cognitivamente hábeis
A15 Exploratória A análise dos documentos foi realizada de forma Documentos de adultos
Documental assistemática autistas sobre sua
sexualidade
A16 Descritiva Autism Quotience (AQ); Sexual History 248 mulheres autistas
Levantamento Questionnaire; Sexual Desire Inventory (SDI); com idades entre 18 e 30
Sexual Experience Questionnaire (SEQ); Sexual anos
Satisfaction Scale for Women (SSSW); Sexual
Awareness Questionnaire (SAQ)
A17 Exploratória Roteiro de entrevista semi-estruturado sobre 8 mulheres
Levantamento relações íntimas diagnosticadas com TEA
nos últimos 5 anos
A18 Exploratória Courting Behaviour Scale (CBS) 148 pessoas autistas
Levantamento
A19 Descritiva Autism Quotience (AQ); International Index of 96 pessoas autistas de
Levantamento Erectile Function (IIEF); Female Sexual Function alto funcionamento
Index (FSFI); Sexual Inhibition/Sexual Excitation Asperger
Scales-Short Form (SIS/SES-SF) 96 pessoas neurotípicas
5 DISCUSSÃO
5.1 Análises sobre aspectos metodológicos dos estudos revisados
É importante ter em vista que esta revisão trata de um tema bastante específico, ou seja,
sexualidade de pessoas autistas, com um público substancialmente restrito - participantes
adultos no espectro TEA/S1. Assim, os 30 trabalhos inicialmente recuperados, filtrados para
19 a partir dos critérios de inclusão da amostra, podem ser considerados um indicativo de
que a comunidade científica vem se atentando à temática.
Deve ser realçado, neste ponto, que a produção sobre TEA têm aumentado de forma
uníssona, especialmente devido ao crescimento da prevalência na população mundial (BAIO
et al., 2020), o que justifica o avanço das publicações em assuntos diversos, como
intervenções nutricionais etc. (MAYER, et al., 2020; MONTEIRO et al., 2020). Além disso,
os investimentos financeiros realizados em pesquisas associadas ao TEA têm sido descritos
como os maiores historicamente já realizados no contexto de estudo de condições de
neurodesenvolvimento (SOLOMON, 2013).
Destaca-se, ainda, que na busca e seleção dos dados desta pesquisa, foi encontrado
somente um artigo brasileiro, publicado em língua portuguesa (DE TILIO, 2017) e excluído
33
por não corresponder à população crivada. Isso demonstra que, embora a literatura mundial
esteja em crescente, o Brasil necessita de maiores investimentos científicos na temática, bem
como fomentos à inclusão dos trabalhos nos periódicos de acesso global, já que todos os
artigos estavam indexados em revistas de grande projeção internacional, e em língua inglesa,
independentemente de sua nacionalidade.
Na filtragem dos artigos, excluiu-se um estudo que propunha a análise simultânea da
sexualidade de pessoas com diferentes espectros do TEA (FERNANDES et al., 2016). A
opção por revisar trabalhos focados no TEA/S1, exclusivamente, se deu por considerar que
nenhum desenho metodológico seria capaz de descrever a sexualidade de autistas de níveis
distintos, com suas múltiplas características, por meio de coleta direta. Isso não significa que
o desenvolvimento sexual de pessoas moderadas ou severas seja menos expressivo ou
relevante; pelo contrário, entende-se como essencial que a temática tenha seu próprio corpo
científico (HOLMES; HIMLE, 2014).
Respeitando as demandas das pessoas com TEA/S1, especialmente apontadas pelo
movimento da autoadvocacia e neurodiversidade (ORTEGA, 2009), excluiu-se os estudos
cujas coletas foram realizadas com familiares ou profissionais. Embora seus dados pudessem
ser relevantes a diversas finalidades, considerou-se que, para a descrição da sexualidade,
deveriam ser priorizados os autorrelatos. Isso porque, ao expor sobre o assunto, pessoas não
autistas inevitavelmente assumem como referência de normalidade o modo de viver, sentir e
entender o mundo neurotípico, referindo-a à sexualidade da pessoa autista como diferente do
“ideal” (ROSQVIST, 2014). Além disso, adotou-se, ao longo desta revisão de literatura, a
linguagem neurodiversa, que evita a tradicionalmente utilizada pela psiquiatria, separação
entre saudável e não saudável – daí o uso do termo neuroatípicas, para pessoas autistas, e
neurotípicas, para pessoas não autistas (SHIELDS; BEVERSDORF, 2020).
Analisa-se a variedade de periódicos envolvidos na publicação dos artigos como
positiva: os oito artigos inseridos nas revistas sobre autismo (A1, A3, A4, A5, A7, A11, A14,
A17), particularmente, têm o préstimo de alcançar um público que não está buscando, de
antemão, obras sobre sexualidade, e acabam por encontrá-las, enquanto os quatro
encontrados em periódicos generalistas de educação, psicologia e medicina (A6, A13, A15,
A19) atingem profissionais que não se relacionam nem ao TEA, nem ao estudo da
sexualidade, amplificando a abrangência das publicações.
Por outro lado, observou-se que a maior integradora de artigos desta revisão foi a
Sexuality and Disability, e que os cinco trabalhos por ela veiculados têm características
particulares notáveis (A8, A9, A12, A16 e A18). Diferentemente da maior parte dos estudos,
34
10
Sybil Elgar, professora inglesa, foi criadora da primeira escola residencial para crianças com autismo, no
mundo, e fundadora da Sociedade para Crianças Autistas (agora Sociedade Nacional Autista). Fundou,
ainda, a primeira comunidade residencial para adultos com autismo, em 1974, considerada uma referência
do movimento mundial.
Fonte: https://www.theguardian.com/news/2007/jan/24/guardianobituaries.obituaries2
35
O estudo foi incluído nesta breve análise, apesar de não compor o quadro de artigos
selecionados, pelo seu valor histórico e pela impressionante semelhança com os dados
encontrados na atualidade, após mais de 30 anos, além de ter sido construído em um diálogo
público entre familiares e cientistas. Em pesquisa precursora (VIEIRA, 2016), percebeu-se
que muitos dos jovens com TEA/S1 e seus familiares, nunca foram informados sobre o que
é o autismo e como obter apoio, ou, quando muito, receberam materiais escritos inacessíveis
à sua compreensão, reafirmando a necessidade de aprimoramento na articulação entre
população, suas realidades, e a ciência brasileira. Daí o elogioso destaque ao método de
discussão promovido pela revista, em seção pública e interativa, infelizmente dissolvida no
final da década de 1980, apesar do periódico continuar ativo.
Com relação à natureza dos estudos selecionados para análise, observou-se que sete se
enquadraram na categoria exploratória (A1, A2, A9, A10, A15, A17, A18), onze descritiva
(A3, A4, A5, A6, A7, A11, A12, A13, A14, A16, A19) e uma explicativa (A8). Para
classificar a natureza dos estudos, foram considerados os conceitos de Gil (2002), em que
pesquisas exploratórias buscam promover familiaridade com uma temática, para torná-la
explícita ou levantar hipóteses, com planejamentos flexíveis e maior amplitude. As
descritivas visam caracterizar um fenômeno ou população específicos, além de propor
relações entre variáveis, utilizando técnicas padronizadas, e as explicativas identificam
fatores que contribuem para ocorrência dos eventos (GIL, 2002). Considerando que a
temática da pesquisa envolve a compreensão de um fenômeno, é congruente que os métodos
sejam essencialmente descritivos e exploratórios.
Os artigos foram classificados, ainda, de acordo com seus procedimentos de coleta,
sendo quinze deles de levantamento (A3, A4, A5, A6, A7, A8, A10, A11, A12, A13, A14,
A16, A17, A18, A19), que segundo Gil (2002), consiste na interrogação direta das pessoas
cuja realidade se deseja conhecer. O benefício principal deste tipo de trabalho, é a
viabilização do transporte de informações da realidade cotidiana, para as produções formais,
de maneira que elas passem a ser abordadas no campo científico. Já a pesquisa-ação, que tem
como vantagem a elaboração de soluções coletivas (GIL, 2002), foi observada em somente
um estudo analisado (A1), no qual efetuou-se três encontros com adultos autistas para discutir
suas dúvidas sobre interações ou situações sociais, sexuais e amorosas, e pensar
conjuntamente em soluções. Por fim, três artigos foram apontados como documentais (A2,
A9, A15), utilizando dados já publicados sobre o assunto para tecer suas análises, igualmente
de grande importância para a finalidade de caracterização.
36
A maior parte das coletas realizadas pelas pesquisas de levantamento se deu de forma
online, (A3, A4, A5, A7, A8, A10, A12, A13, A14, A16, A18) consideradas propícias neste
contexto por diversas razões. Embora a incidência do diagnóstico tenha aumentado na
população, encontrar potenciais participantes para pesquisas pode continuar sendo um
desafio, especialmente aos pesquisadores que não se localizam geograficamente em grandes
centros urbanos. Assim, o contato remoto permite recrutamento e coleta, mesmo que
participante e pesquisador estejam distantes. Em segundo lugar, pode ser positivo porque
muitas pessoas com TEA/S1 relatam sentir-se mais confortáveis com o uso de redes sociais
e encontros online, que pessoalmente (BYERS; NICHOLS, 2018), aumentando o
engajamento e participação em pesquisas.
Em contrapartida, as coletas realizadas presencialmente têm vantagens como o
estreitamento de vínculo, maior acesso a ações não-verbais e interações informais, e
possibilidade de aprofundamento nos dados, seja por meio dos encontros da pesquisa-ação
ou de entrevistas realizadas, nos quais ao ouvir a resposta imediata do participante, o
pesquisador propõe um novo questionamento (BORTOLOZZI, 2020). A pesquisa-ação,
especificamente, ainda propicia que a resposta de um participante seja aprimorada pela de
outro, o que seria impossível em uma coleta online padronizada (SPERRY; MESIBOV,
2005). Desta forma, julga-se que todos os métodos serviram para elucidar a temática
proposta, e que a variedade é positiva para a produção de dados complementares. São
encontrados prós e contras em todos os tipos de coletas de dados, que devem ser selecionadas
de acordo com os objetivos do estudo e recursos disponíveis para sua realização.
Os três estudos documentais analisados na revisão (A2, A9, A15) retrataram dados
extremamente ricos e foram, de forma proeminente, trabalhos que propuseram discussões
críticas e neurodiversas, a partir de relatos extraídos de autobiografias, revistas e comentários
públicos. No entanto, os métodos de seleção e análise não foram claros o suficiente para a
verificação de potenciais, falhas, ou replicabilidade dos estudos, fragilizando assim o uso de
seus dados, além de omitir informações importantes sobre as pessoas que forneceram relatos,
e recortar partes de documentos os quais não havia acesso público.
O estudo mais destoante encontrado nessa revisão, em termos metodológicos, foi a
pesquisa explicativa de Byers e Nichols (2014) (A8), que propôs a validação de uma escala
a ser aplicada em adultos com TEA/S1, para verificação de sua satisfação sexual, no contexto
de engajamento em relacionamentos românticos. A elaboração e validação de instrumentos
é de grande utilidade ao avanço científico, pois facilita a construção metodológica de autores
sucessores, além de evidenciar a população com TEA/S1 como um importante subgrupo, e
37
Nove, das dezenove pesquisas selecionadas por esta revisão, utilizaram a escala de
rastreamento Autism-Spectrum Quotient (AQ), criada por Baron-Cohen, et al. (2001), com a
finalidade de avaliar adultos com traços autísticos, sem deficiência intelectual associada e
linguagem suficiente para autoaplicação – ou seja, pessoas com TEA/S1 (A4, A5, A6, A7,
A8, A13, A14, A16, A19). O questionário inclui 50 perguntas em diversas áreas, como
comunicação, imaginação e habilidades sociais, e possui estudos, internacionais e brasileiros,
reafirmando sua validação (EGITO et al., 2018). Dessa forma, considera-se que o uso do
AQ, para esta finalidade específica, é um critério satisfatório de inclusão da amostra,
potencializado na combinação com autoidentificação ou acesso a laudo comprobatório.
Ademais, um dos artigos revisados optou por utilizar uma escala de avaliação da
funcionalidade, ou seja, da autonomia e funcionamento do sujeito em diversas áreas de sua
vida (A6), que compõe característica diferencial de pessoas com TEA/S1, em comparação a
outros espectros (KLIN, 2006), e também pode ser uma opção possível, embora menos
completa, complexa e validada.
Sobre os instrumentos utilizados pelos estudos, além do AQ e da avaliação de
funcionalidade, contabilizaram-se: cinco elaborados pelos autores a partir dos objetivos de
suas pesquisas (A1, A10, A11, A14, A17); uma escala sobre sexualidade de pessoas com
TEA/S1 (A8); quatro questionários sócio-demográficos (A4, A7, A12, A13); uma escala de
saúde mental (A5); um sobre qualidade de vida (A12); dois de empatia e percepção mental
(A6, A13); um instrumento sobre suporte social (A13), e 29 escalas fechadas e validadas
sobre sexualidade para públicos diversos, distribuídas em treze artigos (A3, A4, A5, A6, A7,
A8, A11, A12, A13, A14, A16, A18, A19).
Importante ressaltar que pessoas com TEA/S1 apresentam características - de
linguagem, especialmente - a serem consideradas no momento de escolha e uso dos
instrumentos, por parte dos pesquisadores. A maior parte das escalas de sexualidade foram
validadas para aplicação na população geral. Alguns autores propuseram adaptações, como
uso de apenas parte das questões, ou modificação na linguagem utilizada, mas ainda assim,
conclui-se que dentre as alternativas disponíveis, instrumentos específicos, como proposto
por Byers e Nichols (2014), ou construídos ajustados ao público, são opções melhores para
atendimento das suas necessidades.
Atribuiu-se a variedade dos instrumentos utilizados nas pesquisas às diferentes
hipóteses formuladas pelos pesquisadores, tendo como exemplos: pouco conhecimento sobre
sexualidade atrelado à maior vulnerabilidade para vitimização sexual (A7); conexão entre
prazer e uso de fontes online para relacionamentos (A14); escores de depressão e ansiedade
40
pela autora, seguidas do enquadramento dos 19 artigos nas mesmas. O primeiro tipo,
“Discurso da Assexualidade do Autista”, é encontrado em pesquisas que, ao focar nas
dificuldades do transtorno, tornam sua sexualidade irrelevante e secundária, frente a outras
questões - nesta revisão não foram encontrados trabalhos deste tipo, já que os critérios de
inclusão e mecanismos de busca filtraram aqueles com foco no assunto.
Já o “Discurso Deficitário da Sexualidade do Autista” estaria presente em artigos que
estabelecem a forma neurotípica como norma, tecendo comparações com os dados obtidos
na população com TEA/S1, atribuindo a ela adjetivos de falhas, déficits e defeitos, por não
corresponderem ao modelo (ROSQVIST, 2014). Foram encontrados 10 artigos cujas análises
poderiam ser incluídas nesta categoria (A3, A4, A5, A6, A7, A8, A12, A16, A18, A19).
Existe uma correlação entre os trabalhos que utilizam este discurso e os métodos com
instrumentos de coleta fechados.
O terceiro tipo de narrativa, denominado “Discurso da Educação Sexual”, propõe que
processos educativos podem ser realizados para que as pessoas autistas vivenciem sua
sexualidade de forma mais “aceitável”, ou seja, mais próxima ao considerado “normal”
(ROSQVIST, 2014). Essa ideia se aproxima ao conceito de integração, descrito por Aranha
(2001), que seria a tentativa de, por meio de intervenções diretas com pessoas com
deficiência, aproximá-las da norma. Um dos estudos recuperados nesta revisão (A3)
apresenta essas características, propondo que os programas de educação sexual ajudem
adultos autistas a incorporar regras sociais, compreensão e comunicação. Há outros,
entretanto, igualmente defensores de projetos de educação sexual, que apresentam objetivos
diferentes, como informá-los acerca de segurança na internet (A14), ou identificar situações
de vitimização sexual (A7), não correspondendo às características desse conjunto.
Seis dos artigos analisados nesta revisão poderiam ser classificados nos tipos de
narrativas descritos por Rosqvist (2014) como empoderamento autista e fuga da hegemonia
neurotípica (A1, A2, A9, A10, A11, A15). O “Discurso da Diferença Neurológica do
Autismo” propõe análise da sexualidade tanto com relação aos déficits apresentados, quanto
a seus potenciais, reconhecendo as diversas formas de pensar e sentir, sem atribuir a elas
valor de desvio. Por fim, o “Enredo do Modelo Social da Sexualidade Autista”, reconhece
que as diferenças não se dariam pelas características do TEA/S1, mas pelas barreiras sociais
cotidianamente presentes, em uma lógica similar ao paradigma de suporte (ARANHA, 2001).
Para Rosqvist (2014), a elaboração de estudos neste sentido inclui questionar diretamente o
público-alvo sobre sua sexualidade – o que é coerente com o encontrado na revisão de
literatura.
42
Ainda com relação aos estudos de lógica “deficitária” (ROSQVIST, 2014), percebe-se
que seis artigos revisados convidaram grupos de pessoas autistas e sem autismo para
comparar dados coletados em ambos (A3, A4, A6, A7, A11, A19). Foram propostas análises
com relação aos níveis de desejo e interesse sexual, prevalência de homossexualidade,
bissexualidade e assexualidade, além de comportamentos, experiências e funcionamento
sexuais. Alguns dos autores utilizaram, inclusive, termos como “sexualidade saudável”
(A19), para descrever pessoas cujas avaliações corresponderam aos níveis próximos das
neurotípicas, em uma lógica biologicista e excludente.
A crítica não deve ser generalizada, entretanto, a todos os estudos que propõe
comparação de dados. Alguns deles o fazem para ressaltar necessidades do grupo, como no
caso de A7 e A11, que buscaram identificar fontes de informações sobre sexualidade de
pessoas com TEA/S1, em relação às pessoas neurotípicas, para verificar quais métodos de
educação sexual seriam mais adequados, em uma lógica do “modelo social” (ROSQVIST,
2014). Assim, o delineamento comparativo não é, de antemão, inadequado ou prejudicial ao
avanço científico; mas o enfoque dado pelos autores pode tornar a abordagem normativa e
problemática.
o fato de que as pessoas autistas “podem querer dançar, mas perderam anos de pré-dança”
(NEWPORT; NEWPORT, 2002, p. 1).
Ainda acerca do engajamento em relações amorosas e sexuais, o estudo A12 traz
dados que indicam que não houve diferenças de qualidade de vida de autistas dentro e fora
de relacionamentos, mas aqueles com parceiros ou parceiras (autistas ou não) possuíam maior
senso de pertencimento social e inclusão comunitária, bem como menores preocupações, e
melhor capacidade produtiva. É relevante destacar o beneficiamento promovido pelos
relacionamentos no que diz respeito à sociabilidade, frequentemente descrita como
deficitária, especialmente quando analisada no contexto de culturas e sociedades pouco
inclusivas (DRAHOTA, 2010). Devem ser elaboradas, portanto, intervenções que promovam
a inclusão e o desenvolvimento destes aspectos sociais, para que as pessoas TEA/S1 não
engajadas em relacionamentos também tenham acesso a estas benesses, e que aquelas
envolvidas não dependam do laço conjugal para incluir-se.
O estudo A13 sinalizou que pessoas autistas em relacionamentos com outras
neuroatípicas demonstraram maior satisfação, o que é convergente com os dados de Newport
e Newport (2002), segundo os quais o compartilhamento da condição pode facilitar
compreensão acerca das necessidades e expectativas mútuas. No estudo A18, as participantes
indicaram que falar sobre o diagnóstico diminuiu as autocríticas e favoreceu relacionamentos
melhores. Assim, para que as pessoas autistas se sintam mais confortáveis e não fiquem,
necessariamente, solidificadas na ideia de que devem namorar parceiros ou parceiras também
diagnosticados, podem ser oferecidos serviços de escuta e apoio aos relacionamentos. Aston
(2012) afirma que os terapeutas voltados a este objetivo devem tomar cuidado para não
enquadrar de antemão seus clientes nos estereótipos do TEA/S1, conhecendo-os e auxiliando
com relação a seus potenciais e déficits, colaborando com o desenvolvimento de estratégias
para melhores vivências da sexualidade.
A pesquisa A10 explorou, especificamente, essas estratégias e indicou que elas eram
empregadas especialmente nos atos sexuais, quando havia crises de ansiedade ou
hiperestimulação de seus participantes. Eles indicaram esperar até estabilizar-se da tensão,
dialogar sobre posições favoritas, realizar juntamente ao parceiro ou parceira um
planejamento organizado da relação sexual e, sobretudo, descrever ao outro suas
necessidades e desejos. Indicaram, ainda, que no caso de dificuldades de comunicação face
a face, encontravam formas alternativas de fazê-lo, como escrevendo bilhetes ou e-mails.
Esse estudo é notável por compor um exemplo de trabalho na perspectiva da diferença
45
cultural (MAIA; RIBEIRO, 2011). O trabalho A19, por exemplo, indica que mulheres
aprendem melhor habilidades sociais, tem mais interesses em comum com grupo de pares e
estratégias de coping avançadas, mas não tece discussões sobre a construção social de gênero,
localizando as diferenças no campo da naturalização, e impedindo considerar que as
intervenções voltadas às meninas e mulheres devem incluir aspectos específicos, como os
analisados anteriormente.
ressalta-se a importância da atuação dos profissionais de Terapia Ocupacional, que por meios
diversos, como as intervenções de Integração Sensorial, podem apoiar a minimização dos
efeitos da hipersensibilidade, ou o desenvolvimento de estratégias para conforto e bem-estar
(SOUZA; NUNES, 2019).
O estudo A19 propôs uma análise a partir da hipótese de que a maior sensibilidade a
estímulos sensoriais, presente em pessoas TEA/S1, seria a variável causadora de incidência
superior de transtornos de disfunção sexual. Os dados apresentados indicaram que, com
relação ao grupo controle neurotípico, pessoas autistas têm maior propensão às disfunções.
Os homens, especificamente, apresentaram fantasias e comportamentos hiperssexuais, e
mulheres mais ações masoquistas que as “saudáveis”. As mulheres do grupo controle, em
comparação às TEA/S1, indicaram maiores desejos e excitação, lubrificação, qualidade de
orgasmo e menos dores na relação sexual, enquanto os homens neurotípicos apresentaram
melhor funcionamento sexual geral, e homens TEA/S1 mais problemas de ereção.
Deve ser ressaltado o fato de que as análises tecidas pelos autores de A19 partem de
uma perspectiva essencialmente biologicista, utilizando linguagem normativa como
“saudável” para descrever pessoas sem TEA/S1, e atribuindo a comportamentos sexuais
diversos, como o masoquismo, valor negativo. Desconsidera a sexualidade enquanto uma
construção biopsicossocial ao comparar de maneira direta os dados de adultos autistas e sem
autismo, deixando de relevar aspectos importantes como acesso à educação sexual,
experiências sociais, compartilhamento de informações etc. Por isso, indica-se que os dados
do artigo A19 devem ser observados com cautela, tendo em vista a perspectiva limitada dos
autores.
Outro exemplo de característica comum do autismo que pode influenciar sua
sexualidade é o déficit comunicacional. Os participantes da pesquisa A15 indicaram, por
exemplo, que autistas podem ser românticos, entretanto achar muito difícil flutuar nas
palavras neurotípicas, consideradas inacessíveis ou incompreensíveis, gerando dificuldades
no contexto de relacionamentos. Estes dados sobre características singulares do
desenvolvimento de pessoas autistas são essenciais para a elaboração de programas
interventivos, que ultrapassam o campo informativo, abordando o treinamento de habilidades
especiais, como comunicação e sociabilidade, ao incorporar os dados fornecidos por estudos
descritivos e exploratórios.
O primeiro estudo listado nesta revisão (A1) propôs um grupo focal para que 18 adultos
TEA/S1 expressassem suas dificuldades sociais. Nos encontros, surgiram dúvidas de diversas
naturezas, sendo muitas relacionadas à sexualidade. Questionou-se, por exemplo, como
50
estabelecer relacionamentos, e as soluções coletivas criadas foram “não bater nas pessoas” e
“ser legal com elas”. Dúvidas acerca das sutilezas humanas foram comentadas pelos
participantes, tais quais “como manejar uma conversa?” e “como comportar-se
adequadamente perto de alguém do sexo oposto?”.
Um participante com fetiche em pés, por exemplo, questionou o que fazer quando
avistasse alguém descalço, e seus companheiros deram conselhos como “não olhar, não tocar,
olhar para o outro lado e segurar as mãos”. Questionou-se, no grupo, o que seria rude em um
encontro amoroso, e as respostas foram “criticar ou fazer toques indesejados”, e sobre quais
assuntos abordar em um primeiro contato, os conselhos foram “músicas e esportes”.
Esses dados são amplos e ricos, e permitem que se compreenda que, muitas das
dificuldades de relacionamentos ou sofrimentos expressos pelos participantes, advém das
tenuidades do relacionamento humano, tidas como inacessíveis ou de difícil compreensão,
devido ao TEA/S1. Entretanto, para não restringir a análise a uma crítica meramente
deficitária (ROSQVIST, 2014), deve-se reconhecer que essas dificuldades se acentuam pelo
fato de que, na atualidade, os relacionamentos são compostos por regras não explícitas,
comportamentos imprevisíveis, e que não há abertura para discutir sobre, ou espaço seguro
de preparo para situações como essa. Tem-se, portanto, uma dificuldade gerada na interação
entre a característica social do TEA e a sociedade normativa, que oferece pouco apoio à
inclusão, especialmente nesta temática.
Os participantes das pesquisas A10, A15 e A18 indicaram dificuldades para entender
o contexto da paquera, bem como para enviar ou compreender mensagens em situações
românticas, sendo as relações sentidas como um jogo de difícil acesso, e árdua compreensão.
Esses dados levantam um debate central na discussão da sexualidade de pessoas com
TEA/S1: por um lado, compreendendo as dificuldades enfrentadas para vivenciar relações,
tende-se a propor intervenções que as auxiliem a compartilhar dos signos e regras da
sexualidade neurotípica; por outro, questiona-se se essas intervenções seriam uma forma de
normatizá-las e reproduzir a lógica da integração (ARANHA, 2001) e da hegemonia típica
de desenvolvimento (MACKENZIE, 2018).
Rosqvist e Jackson-Perry (2020) publicaram uma análise a partir de relatos postados
em fórum online e perceberam que as dúvidas e comentários tinham, majoritariamente,
conotação negativa, de onde extraíram o questionamento: “Dentro do contexto de um corpo
de literatura sobre autismo que geralmente é dirigido pelo déficit, é possível que as pessoas
autistas imaginem a si mesmas e sua experiência íntima além do déficit?” (ROSQVIST;
JACKSON-PERRY, p. 15, 2020). Os autores concluem que há duas possibilidades: 1)
51
explorar novas formas de falar sobre a sexualidade atípica, sem a conotação “anormal”; 2)
produzir pesquisas qualitativas sobre a vida íntima de pessoas TEA/S1, a partir de seus pontos
de vistas e experiências, reconhecendo que os métodos tradicionais não suportam a
complexidade do fenômeno.
Observa-se, portanto, que os autores do movimento da neurodiversidade propõem
soluções voltadas à autoadvocacia e afirmação identitária, entretanto as demandas expressas
por pessoas TEA/S1 continuam existindo neste cenário. Exemplo importante é a questão de
saúde mental: segundo os autores do artigo A13, 65% dos participantes afirmaram que,
estando solteiros, o contato com outras pessoas era exaustivo; para 61%, foi significativo o
medo de não corresponder às expectativas de parceiros; 57% não sabia como encontrar ou se
envolver com alguém, e 50% não entendia como funcionavam relacionamentos amorosos.
Em complemento, o estudo A15 indicou que essas questões geram depressão,
ansiedade, baixa autoestima, isolamento e aumento em todos os tipos de riscos. Para a
pesquisa A5, as pessoas cm TEA/S1 apresentaram maior ansiedade sexual, e segundo a
pesquisa A15, não se sentiam ouvidas quando o assunto era sexualidade, além de sofrerem
com os estereótipos de assexuado, hiper ou hipossexuado, infantilizado, dependente e inábil.
As mulheres desse mesmo estudo (A15) indicaram autoimagem negativa e dificuldades para
encontrar parceiros, e as do estudo A17 disseram se sentir mais atraentes quando estavam
fingindo, ou seja, não sendo elas mesmas, e que namorar exigia um esforço significativo.
Assim, embora as diretrizes apresentadas pelo movimento da neurodiversidade sejam
essenciais na construção de uma sexualidade atípica positiva, não resolvem questões
importantes apresentadas pelos adultos autistas, como custos de saúde mental, adversidades
nas tentativas de relacionamentos etc. Defende-se, portanto, que as ações planejadas para
apoiar pessoas TEA/S1, com relação à sua sexualidade, devem ser variadas, e distribuídas a
partir de dois focos: intervenções voltadas ao seu próprio desenvolvimento, como
treinamento de habilidades sociais e orientações acerca do funcionamento social; e centradas
no contexto global, garantindo a defesa do direito de vivenciar a sexualidade, a partir do
ponto de vista autista. Entende-se corresponder, desta forma, à perspectiva inclusiva, já que
segundo Omote (1999):
A concepção social de deficiência não nega as limitações efetivamente
apresentadas por deficientes, determinadas por condições médicas incapacitadoras
ou por condições sociais incapacitadoras, nem subestima os efeitos dessas
limitações sobre o funcionamento efetivo do deficiente. Portanto, qualquer
programa inclusivo precisa intervir tanto no meio, no sentido de que este se ajuste
às necessidades particulares de cada beneficiário, como também junto ao
deficiente, para capacitá-lo a enfrentar as exigências do meio (OMOTE, 1999, p.
12).
52
A vulnerabilidade mais importante citada pelos estudos revisados, foi com relação à
vitimização para situações de violências sexuais. O artigo A7 indicou que 78% dos
participantes autistas afirmaram ter passado por situação de vitimização, em comparação a
47% na população geral. As pessoas TEA/S1 seriam, assim, de duas a três vezes mais
propensas a experimentar exposição por contato, coerção e violação - dado similar ao estudo
A19, de que há três vezes mais chances de agressão em mulheres autistas, que em
neurotípicas.
Na pesquisa A11, os participantes também relataram ter passado por violências, como
enganos em encontros amorosos e relacionamentos abusivos, além de terem realizado
atividades ilegais, especialmente devido ao isolamento social em que viviam, e falta de
informações. O estudo A15 esclarece que muitas pessoas TEA/S1 têm mais dificuldades para
denunciar violências, ou são menos consideradas neste momento, e as mulheres participantes
da pesquisa A16 relataram situações de exploração sexual e objetificação feminina.
Estes dados são coerentes aos encontrados na literatura da área, segundo a qual
autistas apresentam mais riscos com relação às violências, e maior probabilidade de envolver-
se em crimes sexuais (SEVLEVER; ROTH; GILLIS, 2013). Segundo Stokes, Newton e Kaur
(2007), comparadas aos pares neurotípicos, pessoas com TEA tendem a emitir
comportamentos sociais mais intrusivos e inadequados, com destaque à prática conhecida
como stalking, ou perseguição da pessoa de interesse, sem reconhecimento dos limites
aceitáveis. Para os autores, as amizades, círculos sociais e convivência com pares desde cedo
são importantes para que comportamentos adequados sejam aprendidos, e os inadequados
redirecionados (STOKES; NEWTON; KAUR, 2007).
Schöttle et al. (2017) chamaram atenção para o índice significativamente maior de
parafilias em pessoas com TEA, necessitando incluir orientações acerca da temática nos
programas de educação sexual e terapêuticas da sexualidade. Early et al. (2012) apresentaram
os resultados do tratamento clínico de exposição para diminuir as ocorrências de comentários
de um jovem com TEA sobre os pés de suas colegas, que vinham causando constrangimento,
devido às dificuldades para diferenciar comportamentos de paquera e excitação, das práticas
de assédio sexual.
Percebe-se, nestes artigos, a afirmação de que na maior parte das vezes, trata-se de
um processo de educação sexual deficitário, ou dificuldades na compreensão do que é certo
ou errado em situações sociais. Assim, os autores concluem ser primordial analisar tais dados
com cautela, e fornecer programas interventivos ao público para evitar ou minimizar essas
ocorrências. Por fim, ressalta-se cuidado também para que crimes sexuais ou
53
comportamentos inadequados não sejam vinculados à condição do TEA/S1 por si só, já que
esta ação poderia estigmatizar o público de forma prejudicial.
É claro que há discordância e impasses acerca da temática na literatura, sendo que
trabalhos especialmente no campo da Psicologia Jurídica exploram possibilidades sobre
como agir em situações violentas. Steel (2016) afirmou, por exemplo, que vêm aumentando
ao longo do tempo, o número de casos nos quais réus de pedofilia e consumidores de
pornografia infantil alegam diagnóstico de TEA/S1 em suas defesas judiciais. Na visão do
autor, independentemente da condição neurológica apresentada, devem ser aplicadas as
punições decididas pelo Estado acerca do crime cometido.
Para apoiar as pessoas TEA/S1 nas situações de vitimização, são defendidos projetos
de educação sexual e orientações para sexualidade, com módulos específicos acerca de como
identificar situações perigosas, e métodos de ação acerca das mesmas (NEWPORT;
NEWPORT, 2002).
Apenas um dos estudos revisados propõe análise crítica acerca da temática: A2 aborda
a assexualidade de pessoas TEA/S1, indicando um impasse importante do movimento das
pessoas com deficiência. Por um lado, como dito anteriormente, há uma luta histórica pelo
reconhecimento da sexualidade, dos desejos, interesses e potenciais dessas pessoas, em prol
da conquista de seus direitos sexuais. Por outro, aquelas identificadas como assexuais, ou
seja, que não expressam desejos de engajar-se em relacionamentos sexuais, acabam
invisibilizadas, já que a assexualidade foi tratada ao longo do tempo como um mito a ser
combatido. Há a necessidade, portanto, do reconhecimento da identidade assexual como algo
a ser respeitado.
Donna Williams, na biografia analisada pela autora do artigo A2, indicou que
aprendeu, ao longo de sua vida, performar comportamentos de desejo sexual, porque foi
ensinada que eles faziam parte da sexualidade. Segundo a autora, há uma confusão da
assexualidade com o celibato, ser gay ou ter medo de admitir seus desejos. Miss Jane, neste
mesmo artigo, cita que a sociedade acreditou na ideia de que somente um tipo de desejo é
aceitável, desconsiderando as vivências de pessoas que não querem relacionar-se, amorosa
ou sexualmente, com outras. Assim, embora a assexualidade possa ser um mito para muitas
pessoas com deficiência, para tantas outras é uma realidade, e deve haver foco na construção
da identidade e da autoaceitação. Reafirmando dificuldades enfrentadas nesse contexto, as
mulheres do estudo A17 disseram ser difícil encontrar parceiros que topassem engajar-se em
relacionamento sem interesses sexuais.
6 CONSIDERAÇÕES FINAIS
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APÊNDICES
APÊNDICE A
Quadro 4: Síntese dos resultados obtidos por cada estudo selecionado
N° Resultados obtidos
A1 As situações-problemas levantadas no grupo focal, foram: “Como manejar uma conversa?”, “O que fazer
quando vejo pés descalços?”, “O que é considerado rude em um encontro romântico?”, “Qual a melhor
maneira de entrar em contato com uma pessoa que não vê há anos?”, “Como me comportar para chamar a
pessoa para sair?”, “Por que está tudo bem para as pessoas normais namorar e casar, e para pessoas autistas
não?”. Os participantes encontraram situações juntos, ressaltando a importância da coletividade para pensar
a sexualidade de pessoas com TEA/S1.
66
A2 Nos discursos de Donna Williams e Miss Jane, identificou-se questões como terem aprendido a performar
comportamentos de desejo sexual, porque a assexualidade seria vista como algo anormal; ter sua
assexualidade confundida com o celibato, ser gay ou ter medo de admitir desejos. Discute-se a urgência do
reconhecimento da assexualidade como uma identidade, pois os movimentos de defesa da sexualidade da
pessoa com deficiência adotam um discurso generalista de que as pessoas são sexuais e devem viver seus
desejos sexuais.
A3 Comparados aos indivíduos com desenvolvimento típico, pessoas TEA/S1 se engajaram menos em
comportamentos e experiências sociais, tinham menos educação sexual, e mais preocupações com relação
ao futuro; níveis similares de conhecimentos sobre privacidade e comportamentos sexuais ao grupo controle.
Ressalta-se, necessidade de programas de educação sexual especializados para pessoas autistas.
A4 As pessoas com TEA demonstraram interesse sexual e em envolver-se com outra pessoa, maior taxa de
assexualidade, e no caso das mulheres, menores taxas de heterossexualidade. Sobre linguagem acerca de
questões sexuais não foram encontradas grandes diferenças. Discute-se que altos níveis de testosterona
foram encontrados em bebês autistas, com impactos em áreas do cérebro relacionadas à interpretação e
expressão de emoções, levantando a nova hipótese de que esta testosterona prevê mais homossexualidade
de mulheres com TEA.
A5 Os participantes relataram funcionamento sexual positivo, alta ansiedade sexual, menor desejo de relação
díade, e menos excitação sexual. Os homens relataram melhor relação sexual do que as mulheres em várias
áreas. Os resultados contrariam percepções sociais negativas sobre a sexualidade de indivíduos de alto
funcionamento no espectro do autismo.
A6 Habilidades masculinas (assertividade, liderança e competitividade) foram mais fracas nas pessoas com
TEA que nos grupos controle; tomboyismo e bissexualidade bastante presentes nas mulheres autistas.
Menores experiências sexuais em adultos com TEA, maior demora para entrada na vida sexual. As mulheres
relataram comportamentos masculinos na infância, identidade de gênero e orientação sexual mais
masculinizadas na vida adulta; mas não houve dados de diferenças significantes de homens com TEA. As
pessoas com TEA relataram menos libido, menores probabilidades de tomar iniciativas em relacionamentos
baixa frequência de excitação e orgasmos sexuais. A assexualidade foi relatada em TEA, mas não nos grupos
controles. A teoria do extremo masculino do cérebro não é apoiada.
A7 Pessoas com TEA obtiveram menos conhecimentos em fontes sociais, maior de fontes não sociais e
experimentaram maior vitimização sexual. Os riscos estão correlacionados aos níveis de conhecimento sobre
sexualidade de pessoas TEA/S1, que obtém informações por meio da televisão e de experiências. 78% das
pessoas com TEA relaram pelo menos uma situação de vitimização, enquanto na população geral foram
47%. Indivíduos com TEA estavam entre duas e três vezes mais propensas a experimentar vitimização por
contato, vitimização por coerção sexual e violação do que grupo de comparação. Necessidade de programas
de intervenção.
A8 Os resultados fornecem suporte para a validade do IEMSS em todos os componentes (satisfação do
relacionamento, equilíbrio de recompensas e custos sexuais, equilíbrio entre recompensas e custos sexuais
relativos, igualdade de recompensas, igualdade de custos). Participantes com mais sintomas de
funcionamento social relataram menor satisfação sexual e pontuações mais baixas em todos os
componentes do IEMSS. Maior número de minorias sexuais no TEA que na população geral. Conclui-se
sobre a necessidade de um programa bem estruturada para discutir sexualidade com pessoas com TEA.
A9 A autora identificou diversos tipos de discurso sobre sexualidade na revista: “Discurso Deficitário da
Sexualidade do Autista”: adoção dos neurotípicos como norma, e os autistas como deficitários, comparando
suas formas de vivenciar a sexualidade; “Discurso da Educação Sexual” admite que com um processo
educativo seria possível ensinar as pessoas com TEA a vivenciarem suas sexualidades de forma aceitável;
“Discurso da Diferença Sexual”, afirmando que a sexualidade de pessoas com TEA seria produzida de forma
diferente das neurotípicas: e a sexualidade neurotípica é a considerada normal; “Discurso da Diferença
Neurológica do Autismo”; olhando o autismo tanto com relação a déficits quanto a potenciais; “Enredo do
modelo social da sexualidade autista” no qual diz-se que as diferenças não se dão pelas características do
TEA, mas pelas barreiras sociais. Essas duas últimas perspectivas são de empoderamento autista.
A10 Cinco dos participantes identificaram-se como gender-queer, seis como assexuais; relataram início de
vivências sexuais mais tarde que na população geral. Sobre paquera, relataram dificuldades para entender o
contexto, enviar ou compreender mensagens relacionadas a situações românticas; citaram exemplos de
questões sensoriais que os deixaram desconfortáveis ou em situação de dor; na relação sexual,
experimentaram dificuldades como sons ou texturas desconfortáveis; dor ao toque; crises de estimulação
excessiva ou ansiedade. Falaram de educação sexual inadequada e estratégias que funcionam bem no
contexto da crise de ansiedade ou superestimulação.
67
A11 Os autores concluíram que há necessidades nas pessoas com TEA que fazem com que o programa de
educação sexual a elas voltado seja específico. Na análise qualitativa, os sujeitos mencionaram dificuldades
com as experiências sexuais e falta de informações sobre sexualidade. As falhas na educação sexual
promovida pela escola, são em geral recuperadas pelas crianças típicas na interação com pares, e isso não
ocorre com crianças/adolescentes com TEA. O isolamento social contribui para que muitos não tenham com
quem dialogar sobre esse assunto. Alguns participantes relataram ter sido enganados em encontros sexuais,
estarem ou terem participado de relacionamentos abusivos e atividades ilegais, como perseguição.
A12 Não foram encontradas diferenças significativas no bem-estar sexual nos grupos com ou sem
relacionamentos íntimos, e os autores atribuem isso a possíveis falhas metodológicas. Também não foram
encontradas correlações de dados sobre qualidade de vida. Encontrou-se maior participação social em
pessoas com parceiros e relação entre empoderamento e independência no caso das pessoas que tinham um
relacionamento. Notou-se aumento da satisfação sexual no grupo que não estava em um relacionamento.
A13 73% dos participantes estava ou tiveram experiências anteriores em relacionamentos românticos; 7% da
amostra indicou não ter desejo de envolver-se em um relacionamento romântico; as pessoas com TEA
relacionando-se com outras pessoas com TEA demonstraram maior satisfação em seus relacionamentos.
Dos participantes solteiros, 65% disse que o contato com outras pessoas era muito exaustivo para eles, 61%
tinham medo de não corresponder às expectativas dos parceiros; 57% disse não saber como encontrar e se
envolver com alguém; 50% afirmou não entender como funcionam relacionamentos amorosos, ou o que
esperar deles. Os dados indicaram maior incidência de homossexualidade, bissexualidade e não descrição
de orientação sexual.
A14 Descobriu-se que os homens se engajam mais que as mulheres nos comportamentos sexuais online, que as
pessoas na casa dos 20 anos buscam mais informações, e que minorias sexuais se engajam mais na excitação
acompanhada que os heterossexuais. Considerando que as atividades online foram importantes para os
participantes, indica-se que um bom processo de educação sexual deve incluir assuntos sobre o uso da
internet para contatos sexuais.
A15 Analisando a fala de Naoki sobre o toque, percebe-se que só é possível pensar sua sexualidade a partir de
uma compreensão profunda de suas características. Nos outros 3 relatos de pessoas que experienciaram
dificuldades em relacionamentos, encontrou-se vítimas de abuso e estereótipos prejudiciais. Os estereótipos
mais comuns são: ser assexuado; hiper ou hipossexuado; infantilizado e dependente; inábil para expressar
sexualidade de forma apropriada. A hegemonia da sexualidade normatizada faz muito mal às pessoas com
TEA, pois ao dizer-lhes o que é bom/aceitável ou não, reprimem jeitos e comportamentos, forçando-se por
exemplo, a fazer contato visual. A falta de compreensão e espaço na sociedade para as pessoas com autismo
e sua sexualidade podem gerar dificuldades emocionais como depressão, ansiedade, baixa autoestima,
isolamento e aumento no risco de abusos e violências sexuais.
A16 Os resultados encontrados indicaram que muitas jovens mulheres tinham interesse em engajar-se em
relacionamentos, e algumas no contexto não-binário de identidade ou orientação sexual. Alguns elementos
foram descritos como impeditivos da satisfação sexual feminina, como dificuldades para encontrar um par,
auto avaliação negativa, e aspectos sensoriais. As taxas de identidades não binárias foram marcantes neste
estudo.
A17 Algumas participantes relataram se sentir mais confiantes, após o diagnóstico, e diminuição da auto-crítica.
Foram citadas questões como: dificuldades para identificar se o outro está interessado ou não em um
relacionamento íntimo; exigência de muito esforço para namorar; medo e preocupação com relação ao contar
sobre o autismo. Algumas relataram ser heterossexuais, outras bissexuais e duas assexuadas – e essas
comentaram dificuldades, por ser difícil encontrar pessoas interessadas em relacionamento sem interesses
sexuais. Relataram achar a relação sexual algo estranho, e dificuldades como questões sensoriais.
Participantes relataram ter sido exploradas em situações sexuais, sentir-se objetificadas. Dificuldades para
compreender os parceiros, bem como dificuldade para controlar o hiperfoco. Comentaram necessidade de
que as regras do relacionamento fossem as mais claras possíveis, e não intuitivas.
A18 Sobre o aprendizado acerca da sexualidade, em geral falaram sobre tentativa e erro, ou nunca terem
aprendido; muitos responderam não entender como relacionamentos funcionam; com relação a questões de
justiça, reforçou-se a importância do diálogo sobre o que é permitido ou não legalmente. Há pessoas
TEA/S1 que tem sucesso em seus relacionamentos amorosos, e outra que sentem dificuldades; a falta de
acesso ao conhecimento apareceu em muitos dos casos.
A19 Os resultados indicaram que homens e mulheres com TEA apresentaram maior propensão aos transtornos
sexuais, que o grupo controle. Em homens com TEA a inibição sexual está correlacionada de forma
significante com disfunções sexuais, enquanto não houve correlação entre funcionamento sexual e excitação.
Nas mulheres, o padrão oposto foi encontrado. Conclui-se que as peculiaridades de percepções sensitivas
podem ser responsáveis por problemas no funcionamento sexual de pessoas TEA/S1.
Fonte: Elaborado pelas autoras.
68
ESTUDO 2
RESUMO
ABSTRACT
Autistic people in need of support 1 (ASD/S1) present, compared to levels 2 and 3, better
development of functional language, cognitive skills and potential for autonomy, and
according to the scientific literature, suffer from deprivation of access to rights sex education
and adequate sex education. The objective of this research was to analyze the experiences
and opinions about sexuality, according to the reports of TEA/S1 adults, through the
participation of nine people, diagnosed by a medical professional, aged between 23 and 41
years, members of Facebook online forums destined to to that audience. The collection was
carried out remotely, and the invitation was made in the groups “Autism/Asperger/São
Paulo” and “Young Aspergers”. The instruments used were a participant identification form,
the Autism-Spectrum Quotient (AQ) screening questionnaire, and the semi-structured
interview script prepared for this study. Interviews were carried out by video call, and their
audios were recorded and transcribed, for later content analysis, shared with an independent
researcher for comparison. As a result, protective factors for the sexuality of TEA/S1 people
were described; difficulties observed, both collectively and privately; criticism about the way
society behaves in relation to relationships; reports on multiple love experiences, as well as
experiences in sex education, with support services and listening to relationships being
indicated, for support, and adapted guidelines, with clarity, concreteness and care to their
demands. It was highlighted the need for attention to the sexual health of the participants, in
general, and to the experiences of ASD/S1 women, historically marginalized from scientific
studies. It was concluded that the information analyzed allowed greater representation and
approximation of the neurodiverse perspective, and can be used to support informative and
interventional programs or materials, despite the methodological limitations of the study,
such as a punctual sample and data that are not generalizable to the entire population with
ASD/S1.
Key-words: Autism Spectrum Disorder. Asperger’s Syndrome. Sexuality. Sex education.
Asperger.
71
1 INTRODUÇÃO
Os dados indicados nos poucos estudos brasileiros que abordam o tema, explicitam
que os familiares de autistas não se sentem preparados para tratar o assunto com seus filhos,
mesmo reconhecendo sua importância (DE TILIO, 2017; VIEIRA, 2016), e profissionais de
apoio, como terapeutas, psicoterapeutas, médicos e professores também não sabem como
fazê-lo. Não há materiais ou programas voltados para essa finalidade, levando as pessoas
autistas a se informarem e a aprenderem sobre sexualidade por meio de fontes que não
envolvem contato direto com outras pessoas, como a internet ou a pornografia (VIEIRA,
2016).
Os estudos científicos sobre sexualidade de pessoas TEA/S1 estão aumentando
gradativamente (PECORA; MESIBOV; STOKES, 2016), embora no Brasil o movimento
ocorra de forma mais lenta (VIEIRA, 2019a). Uma das características comumente presentes
nas pesquisas produzidas, é o uso de discursos de familiares ou profissionais nas coletas de
dados, em detrimento à participação direta da população interessada (AYLAZ; YILMAZ;
POLAT, 2012; HARTMANN et al. 2019; VIEIRA, 2016). Segundo Kim (2011), entender a
sexualidade de pessoas autistas implica entender o autismo; e para Rosqvist (2014) comparar
a sexualidade neurotípica com a neuroatípica significa afirmar a legitimidade de uma como
normal e desejável, apontando a outra como desviante. Assim, a autora diz que os estudiosos
da área além de evitar a postura comparativa, devem propor que os problemas e soluções
acerca da sexualidade de pessoas TEA/S1 sejam, necessariamente, pensadas por elas
mesmas.
Conclui-se, portanto, que propostas de intervenção em educação sexual são
imprescindíveis e devem ser elaboradas a partir de dados coletados com o próprio público-
alvo. Assim, a presente pesquisa partiu do seguinte questionamento: quais seriam as
vivências e opiniões de adultos TEA/S1, sobre sexualidade?
2 OBJETIVOS
2.1 Geral
2.2 Específicos
74
3 MÉTODO
Trata-se de uma pesquisa qualitativa descritiva, devido ao foco no trabalho com dados
naturalísticos – ou seja, sem manipulação de variáveis ou realização de intervenções.
Segundo Nassaji (2015), as pesquisas qualitativas são amplas, envolvendo diversas fontes de
coletas para compreensão das opiniões, perspectivas ou atitudes dos participantes, com
método de análise essencialmente qualitativo, embora seja possível extrair comparações
quantitativas.
Nas pesquisas qualitativas descritivas, é realizada uma exploração dos dados para
identificar temas, padrões ou conceitos recorrentes e, em seguida, descrever e interpretar
essas categorias, sendo comum o uso de ferramentas padronizadas e de observação na coleta,
caracterizando fenômenos ou acontecimentos (NASSAJI, 2015; GIL, 2019).
3.2 Participantes
Dos nove participantes, sete eram mulheres e dois homens, todos cisgêneros, com
idades entre 23 e 41 anos, e orientações sexuais variadas entre heterossexuais (Carlos, Adélia,
Conceição, Clarice, Ariano), bissexuais (Cecília e Cora), pansexual (Carolina) e lésbica
(Hilda). A maior parte identificou-se como solteira (Cecília, Carlos, Carolina, Conceição,
Ariano), enquanto duas pessoas indicaram união estável (Hilda, Clarice) e uma relatou estar
11
Devido ao princípio do sigilo ético com relação à identidade do participante, seus nomes foram
substituídos e o critério utilizado para escolha dos fictícios se deu pela identificação informal de semelhança
do seu discurso com obras de autores clássicos da literatura nacional: Cecília Meireles, Clarice Lispector,
Ariano Suassuna, Carolina Maria de Jesus, Cora Coralina, Adélia Prado, Conceição Evaristo, Hilda Hilst e
Carlos Drummond de Andrade.
76
casada (Cora). Esta contou também ter uma filha, em contrapartida aos oito participantes,
que não são pais ou mães.
O nível de escolaridade foi diversificado, entre ensino médio completo (Hilda,
Adélia), curso de graduação (Cora, Carlos, Carolina e Conceição), mestrado (Cecília) e
doutorado (Clarice). Quatro participantes eram professoras, de ensino básico ou superior
(Cecília, Cora, Conceição, Clarice), dois estavam desempregados (Carlos, Carolina), uma era
desenhista (Adélia) e uma repositora de frios em um supermercado (Hilda), além de um
estudante universitário (Ariano).
Dentre os profissionais responsáveis pela atribuição do laudo de TEA/S1 dos
participantes, encontrou-se essencialmente psiquiatras (Hilda, Cora, Carolina, Conceição,
Clarice, Ariano), com exceção de um hebiatra (Carlos), um neurologista (Cecília), e uma
equipe multidisciplinar (Adélia). Consensualmente, todos relataram que apesar da
participação conclusiva dos médicos, atuaram no processo avaliativo outros profissionais,
como psicólogos ou fonoaudiólogos. As nomenclaturas atribuídas variaram entre TEA,
Síndrome de Asperger e Transtorno Autista, demonstrando que os profissionais embasaram
suas análises em manuais diagnósticos diversos, especialmente DSM-IV, DSM-5 e CID-10
(Tabela 1).
Tabela 1. Dados de diagnóstico dos participantes
Nome e Idade no Profissional Nomenclatura Pontuação
idade diagnóstico responsável AQ
Cecília, 33 27 anos Neurologista Transtorno do Espectro 31
anos Autista/Síndrome de Asperger
Hilda, 39 38 anos Psiquiatra Transtorno do Espectro Autista 26
anos
Cora, 41 41 anos Psiquiatra Síndrome de Asperger 39
anos
Carlos, 23 20 anos Hebiatra Síndrome de Asperger 32
anos
Adélia, 27 11 anos Equipe Síndrome de Asperger 26
anos Multiprofissional
Carolina, 29 anos Psiquiatra Transtorno Autista 40
37 anos
Conceição, 26 anos Psiquiatra Transtorno Autista 37
26 anos
Clarice, 32 32 anos Psiquiatra Síndrome de Asperger 36
anos
Ariano, 26 24 anos Psiquiatra Síndrome de Asperger 35
anos
Fonte: Elaborado pelas autoras
3.3 Instrumentos
Este instrumento, criado pelas autoras para confirmar informações dos critérios de
inclusão da amostra de participantes, foi aplicado individualmente, após a formalização de
consentimento da pesquisa. As questões inseridas na ficha derivaram das exigências
elencadas no item 3.2, acrescidas de informações de identificação e contatos (APÊNDICE
A).
Em segundo lugar, foram criados eixos temáticos de questões, derivados dos objetivos
da pesquisa (BORTOLOZZI, 2020): Eixo I) Opiniões dos participantes sobre sexualidade de
pessoas com TEA; Eixo II) Relatos de adultos TEA/S1 sobre os aspectos biológicos e
psicossociais de sua sexualidade particular; Eixo III) Vivências em relacionamentos sexuais
e amorosos. Para a elaboração das questões a serem incluídas nos eixos, utilizou-se as
informações obtidas na revisão da literatura conduzida sobre o tema (OTTONI; MAIA,
2019b), além das questões incluídas no roteiro de Hannah e Stagg (2016), considerado similar
ao proposto aqui.
Em síntese, a revisão do tema (OTTONI; MAIA, 2019b) apontou que o processo de
educação sexual deste público é essencialmente informal e sem contato direto com outras
pessoas; que os déficits nas habilidades sociais e questões específicas do TEA, como
hiperfoco, influenciam seus relacionamentos, e que pode haver comportamentos
considerados inadequados devido à falta de orientações. Destaca-se o papel da família no
desenvolvimento afetivo-sexual, e a vulnerabilidade às violências e ao contágio de Infecções
Sexualmente Transmissíveis, bem como no ensino de comportamentos que necessitam ser
sistematicamente aprendidos por este público (OTTONI; MAIA, 2019b).
A organização dos eixos temáticos, complementada com questões provenientes dos
tópicos levantados pela revisão, resultou na proposta final deste roteiro de entrevista
(APÊNDICE B). Para elencar a sequência de questões, utilizou-se o critério de início por
perguntas aparentemente mais simples, para habituação do participante à interação com a
entrevistadora. A opção pela entrevista semiestruturada se deu pela possibilidade de explorar
outras respostas, além das fornecidas, ou elucidar e reelaborar ideias, no caso de não
compreensão imediata (BORTOLOZZI, 2020).
Após aprovação do projeto no Comitê de Ética em Pesquisa (CEP)12, o roteiro foi
submetido à aplicação e análise piloto, com uma participante cujas características preenchiam
os critérios de inclusão da amostra. Após aplicação completa, as respostas fornecidas foram
transcritas, para análise e correção de possíveis falhas e complementações dos instrumentos,
antes de dar continuidade à coleta (BORTOLOZZI, 2020).
12
Número de registro e aprovação do projeto no Comitê de Ética em Pesquisas: 30960720.5.0000.5398
80
13
A partir de 11 de março de 2020, a Organização Mundial da Saúde decretou estado de pandemia mundial
em decorrência do surto de doença causado pelo coronavírus (COVID-19), recomendando formalmente
isolamento físico em todos os países, com manutenção exclusiva de serviços presenciais essenciais, na
tentativa de diminuir o contágio.
81
Foi realizada análise de conteúdo dos dados por parte da autora e de uma pesquisadora
independente convidada, a partir dos passos descritos:
Passo 1 - Leitura do material: as pesquisadoras fizeram a leitura de todas as
entrevistas, integralmente.
Passo 2 - Elaboração de categorização temática: as pesquisadoras agruparam os
relatos de acordo com semelhanças entre eles, criando categorias não-apriorísticas, e
atribuíram, ao final, nomes para cada uma delas. As categorias deveriam ser mutuamente
excludentes, ou seja, um mesmo conteúdo não poderia ser atribuído a mais de uma, e
organizadas na hierarquia decrescente Eixos, Categorias e Subcategorias.
Passo 3 – Reunião e comparação dos dados: as pesquisadoras se reuniram e
apresentaram as categorias criadas e a fragmentação dos relatos transcritos nas mesmas.
Embora pudesse haver discrepância nos nomes atribuídos às categorias, os conteúdos
deveriam estar em concordância mínima de 95%, calculadas pelo número de relatos
agrupados em semelhança, dividido pela soma das concordâncias e discordâncias, e
multiplicado por 100 (MCINTYRE; GRESHAM; DIGENNARO; REED, 2007). O método
previa que, caso não atingissem o critério, as pesquisadoras deveriam entrar em consenso
sobre as categorias finais, até 100% de análise similar. A pesquisadora convidada teve acesso
82
Além dos cuidados éticos durante a coleta e análise de dados, lembramos que este
projeto foi submetido ao Comitê de Ética em Pesquisas (CEP), e aprovado sem sugestões
adicionais de ajustes. Os dados coletados nesta pesquisa foram armazenados exclusivamente
pela pesquisadora, com os devidos cuidados de sigilo.
Quanto aos riscos os quais os participantes estiveram submetidos, aponta-se
inicialmente o constrangimento, tanto pela exposição de dados particulares, quanto devido à
temática abordada pelo trabalho, considerada socialmente um tabu. Além disso, devido aos
três momentos de coleta, os participantes poderiam sentir-se cansados ou sensibilizados. A
pesquisadora se disponibilizou a buscar serviços locais e gratuitos de apoio psicológico aos
participantes, após a coleta, caso necessário, mas todos estavam em processo de psicoterapia
em andamento. Era previsto que, se os participantes relatassem desconfortos ao longo do
processo, ele deveria ser interrompido sem quaisquer tipos de prejuízo, o que não ocorreu.
Não houve remuneração pela participação, nem pagamento de custos.
Os benefícios imediatos listados pela pesquisa incluíram, em primeiro lugar, a
possibilidade de os participantes expressarem sua opinião, com escutas sem julgamento, de
uma temática a qual a comunidade pouco se dispõe a atender. A longo prazo e em termos
coletivos, indicou-se que os dados coletados serão publicados, implementando pesquisas que
levem em consideração o olhar desta população; e que resultarão em outros produtos, como
cartilhas informativas, disponibilizadas gratuitamente.
4 RESULTADOS E DISCUSSÃO
Os relatos obtidos a partir das entrevistas foram analisados por duas pesquisadoras
independentes, de acordo com a descrição metodológica. Entretanto, na primeira comparação
de organização dos resultados, avaliou-se diferenças estruturais que impossibilitariam a
concordância mínima de 95%. As pesquisadoras esclareceram detalhes sobre o agrupamento,
como necessidade de serem categorias mutuamente excludentes, não apriorísticas,
14
Lembrando que as análises realizadas a partir dos relatos serão utilizadas no Estudo 3 para elaboração de
material informativo a adultos com TEA/S1 sobre sexualidade, assim como os dados obtidos no Estudo 2.
83
Categorias Subcategorias
(1) Concepção de sexualidade Variável de acordo com o nível de apoio necessário
de pessoas com TEA Mais pessoas LGBTQIP+
(2) Condições facilitadoras Apoio e suporte familiar
Contato com amigos e grupos de pares
Acesso à internet
Comunicação direta e sinceridade por parte das pessoas com TEA
Naturalização da sexualidade e de questões relacionadas
(3) Condições dificultadoras Habilidades sociais deficitárias/Dificuldades para iniciar
relacionamentos
Compreensão sobre intenções e relações sociais
Uso de pornografia
Visão social da sexualidade autista como tabu/proibição
Características da sexualidade neurotípica
EIXO 2- RELATOS SOBRE VIVÊNCIAS EM EDUCAÇÃO SEXUAL E SEXUALIDADE
Categorias Subcategorias
(4) Histórico de aprendizado e Esclarecimentos por parte da família
fontes de informações Informações recebidas na escola
sobre sexualidade Conhecimentos obtidos em mídias digitais
Aprendizado por meio de materiais impressos
Apoio informal de pessoas do convívio além-familiar
Orientações em serviços de saúde
Vivências e experiências espontâneas
(5) Experiências sexuais e Vivências amorosas abusivas ou violentas
amorosas Boas experiências sexuais e amorosas
Relacionamentos virtuais
Experiências com parceiros autistas
Uso de brinquedos eróticos
Relação sexual e amorosa tardia ou inexistente
Expressões sexuais por meio de desenhos
Preferência por vivências díades de sexualidade
(6) Especificidades do TEA Dificuldades nas interações e relacionamentos sociais
nos relacionamentos Questões sensoriais
Discriminação dos interesses do(a) outro(a)
84
15
LGBTQIAP+: sigla representativa das pessoas lésbicas, gays, bissexuais, transexuais/travestis, queer,
intersexo, assexuais, pansexuais e outras possibilidades não heterossexuais.
86
coisa que às vezes as famílias olham e falam “mas como eu vou falar isso pra minha
filha, como eu vou falar isso pro meu filho?” vai falando, vai mostrando, porque é
complicado deixar a escola falar, deixar a criança se sentindo um patinho feio sem
saber o que ela tem. Adolescente não entendido é adolescente problemático. Então
é uma coisa que os pais hoje em dia estão jogando tudo pra cima do psicólogo, tudo
é o psicólogo que tem que falar, o psiquiatra, o neurologista, a família em si não
sabem lidar com o autista. Acho que o maior problema do autista hoje em dia é
falta de informação da família.
nem todo abuso sexual é necessariamente um estupro, então às vezes a pessoa não
consegue identificar e acaba permitindo aquilo acontecer, mesmo nas amizades [...]
Em uma belíssima analogia, Clarice indica que a sexualidade deveria ser vista como
uma necessidade vital, e que sendo tratada dessa forma, fossem naturalizadas as diversas
maneiras de sentir, amar e relacionar-se. O paradoxo “legítimo x bárbaro”, utilizado em sua
fala, parece expressar uma crítica à perspectiva da hegemonia neurotípica (ROSQVIST,
2014), segundo a qual existe a “a forma normal x a forma autista” de vivenciar a sexualidade.
Ariano contribui para a discussão:
Hilda: Eu falo que minha sexualidade foi tranquila porque eu tive um apoio de
família, de uma tia, que mesmo sem entender que eu era autista na época, permitiu
que as clientes dela, que eram sapatões, me ajudassem. Elas sempre me deram
muita abertura, até porque eu não tenho uma facilidade de diálogo com a minha
mãe, então minha tia e minha avó fizeram essa ponte. Eu falo que minha tia e minha
avó são culpadas pela minha felicidade hoje.
Conceição: O que eu mais gostei foi a última médica que eu fui, eu acho importante
fazer uma conscientização sobre autismo. Instruções simples: tira a roupa, coloca
o hobbiezinho, e deixa sua roupa aqui. Deveria ter fotos de sequência de coisas que
devem ser feitas, e coisas do tipo se eu for sozinha no médico, o que eu devo dizer?
O que é importante dizer? Tanto esses passos, que parece óbvio para as pessoas,
mas me gera dúvidas. Tipo, tem que depilar? Toma banho antes? Como eu tomo
banho? Até para lavar a vagina, onde deve ser lavado? O que eu gostei muito foi
que a médica pegou o espelho e me mostrou exatamente o que era para ser feito,
foi muito legal e didático. É um paciente adulto, mas não tem aquela [...] eu achei
muito legal, mostrou onde ficava tudo, mostrou de forma concreta.
funcionamento de seus corpos e ter acesso aos recursos disponíveis de saúde sexual e
reprodutiva, além de trabalhar colaborativamente com profissionais e pesquisadores na
construção de um currículo útil às suas necessidades, sem medo ou vergonha associados
(SOLOMON; PANTALONE, 2019).
variada entre adultos autistas, o que requer atenção individualizada a suas necessidades, em
programas de apoio.
Cora: Eu me sinto a pessoa mais sortuda do mundo. Meu marido estudou pra me
ajudar, ele me enxergou, quis me entender. O que hoje define relacionamento pra
mim não é sexo: é bondade, companheirismo, nossa, se sexo vier é maravilhoso, e
eu tô na minha melhor fase, nunca estive tão bem, feliz e realizada, e é uma
conquista dele, ele que me ajudou.
16
Compartilhamento de conteúdo erótico por meio de mensagens virtuais, especialmente via aplicativos de
celular.
95
Clarice: A gente não precisa ser simpático quando está sozinho, uma resposta
grossa, mas em nada menos verdadeira. Eu gosto de estar junto com a pessoa,
entendeu? Eu acho um valor muito maior em relação às carícias que levam ao
orgasmo. Como diz o Nietzche, a gente tem que se amar muito para poder amar
alguém. A pessoa estar com alguém que não ama a si próprio, como vai amar ela?
Se a pessoa autista está com alguém que não ama a si mesmo o suficiente para amar
outra pessoa, melhor que ela fique sozinha.
Para Newport e Newport (2002), oferecer apoio para que a pessoa TEA/S1
desenvolva sua autoestima e autovalorização, é uma forma de apoiar seu bem-estar, tanto
quanto protegê-la de vitimizações. Assim, independentemente da preferência por relações
díades, solitárias, ou variáveis, é essencial que, sentindo-se amparada, possa fazer escolhas
mais conscientes e seguras.
Adélia, Clarice), música alta e cheiros variados (Cora, Adélia, Carolina), tipos específicos de
alimentos (v), sensação de molhado (Conceição), areia em qualquer parte do corpo, pessoas
falando excessivamente (Clarice), e toques íntimos, como abraços (Ariano). Para os
participantes, são observados impactos diretos em seus relacionamentos amorosos e sexuais,
devido a estas questões:
Hilda: Tava um barulho muito alto e eu não conseguia ficar, falei “quero ir
embora” e ela falou “mas eu não vou”, eu peguei e “tô indo embora”. Ela não
entendeu, pra ela o barulho tava normal, pra mim tava o povo encostando um no
outro, isso não tá certo, fui pra casa, liguei pra minha tia e falei “ai tia, deixei a C.
num show”. Ela: “como assim? Você vai voltar pra lá, pede desculpa pra ela”.
Depois só que eu consegui entender que realmente eu tenho problema com barulho.
Quando a pessoa não sabe acha que a gente está fazendo frescura, mas incomoda,
incomoda e muito.
Conceição: Eu odeio beijos. Aquele beijo molhado você fica com sensação de
molhado, eu não gosto dessa sensação, então pode ser uma barreira, a questão
sensorial. A barreira sensorial de não gostar de ser tocado. Vai ser grudento...as
pessoas vão suar, vai ser grudento, e eu não gosto de coisa grudenta [...] tenho esse
choque térmico quando encosta pele, e isso é complicado.
Cecília: Minhas amizades eu tento encontrar com base, pessoas que gostem mais
ou menos das coisas que eu gosto. Elas nunca gostam o tanto quanto eu gosto
(risos) eu poderia passar dias falando sobre aquilo e isso não vai acontecer. [...] Eu
gostaria de falar muito mais do que falo, e algumas vezes eu fico até atormentada
por não poder falar mais, mas eu tento me controlar.
sujeito tanto por suas conquistas quanto por suas impossibilidades, são destacadas como
pessoas de valia aquelas que trabalham e atingem os ideais de produtividade (LUIZ, 2020),
inclusive dentro do espectro autista. Assim, existiria uma hierarquia de valor da pessoa
TEA/S1, estando em níveis superiores aquelas cujos interesses são rentáveis, acima de outras
que apreciam tópicos sem aplicações econômicas diretas. Deve haver cuidado para não
perpetuar este tipo de discurso, e defender a liberdade de pessoas autistas desfrutarem seus
hiperfocos, independentemente de quais sejam.
Ainda sobre traços do TEA que influenciam a sexualidade dos participantes, foram
citadas ocorrências de crises e meltdowns (Hilda, Cora, Carolina), ou seja, episódios nos
quais perante perda de controle dos impulsos, e ao sentir-se hiperestimulada, nervosa ou
desorganizada, a pessoa pode se autoagredir, chorar, emitir comportamentos repetitivos ou
gritar. Hilda citou que as crises enfrentadas foram atendidas no hospital geral como
ocorrências de ansiedade, o que sinaliza necessidade de os profissionais de saúde estarem
melhor preparados para atender pessoas autistas. Cora comentou sobre diálogos
estabelecidos com o companheiro, para que compreendesse e executasse conjuntamente
estratégias de enfrentamento, e Carolina identificou que deve haver atenção e comunicação
clara nos relacionamentos, para que não haja confusão com ocorrências de agressão ao outro.
Assim como no caso das habilidades sociais e questões sensoriais, existem
intervenções que propõem formas de lidar com tais crises, visando inclusive diminuir as
autoagressões, que podem tornar-se muito prejudiciais. Há propostas analítico-
comportamentais de bloqueio, redirecionamento ou reforçamento diferencial de outros
comportamentos concorrentes, para tais crises (MARTINS; BARROS, 2017), assim como
abordagens diversas com a mesma finalidade, que podem ser um apoio adicional.
A compreensão do que é certo ou errado, por parte do adulto TEA/S1, também foi
citada:
Carlos: Eu já tenho mentalidade pra saber o que é certo e errado, o que é real e não
é, e até antes de eu completar a faculdade, eu tinha uns pensamentos bem errados.
Eu já tinha noção de muitas das coisas que eu gostava eram erradas ou se não eram
erradas, se eu fosse ter uma parceira sexual, ela teria que consentir. Eu tinha essa
noção de que qualquer coisa que queira fazer sexualmente com seu parceiro ou
parceira ela tem que consentir. Hoje eu tenho essa noção, apesar que hoje eu acho
que mesmo consentindo estaria um pouco errado. Você não vai contar pra polícia
não, né? É sobre dominar. É só isso. Eu não sei se é um crime, mas, enfim. Mas eu
não sei se eu sou a mesma pessoa que eu era há 2 anos atrás.
Para discutir corpos e sexualidade feminina, é imprescindível considerar que, por meio
da regulação biomédica e outras agências de controle, como a religião, existe uma intensa
desqualificação moral conferida às mulheres que “falham” no controle de sua reprodução
(BRANDÃO, 2020). Além disso, durante toda a vida, sofrem constrangimentos e violências
que direcionam suas práticas sexuais e contraceptivas – bem exemplificadas na fala de
Clarice, que defende o rompimento desta lógica. É necessário, portanto, compreender a
contracepção como uma prática cultural e relacional, que necessita apoio e criticidade por
parte dos serviços de saúde (BRANDÃO, 2020).
Sobre autocuidados periódicos, algumas participantes comentaram ir ao médico
ginecologista regularmente (Hilda, Cora, Adélia, Carolina, Conceição), e frisaram a
necessidade de acesso facilitado a este serviço, sendo que, as que indicaram uso de convênios
(Cora, Carolina), tiveram melhores oportunidades de tomar decisões, como uso do DIU, ou
estabelecer rotina anual de consultas e exames.
Os participantes comentaram também inexperiências e desconhecimentos sobre
métodos contraceptivos (Carlos, Carolina, Conceição, Ariano):
Carlos: Eu nunca coloquei uma camisinha, mas eu sei mais ou menos como coloca,
segurar a pontinha e tal. E durante um período eu tinha 2 camisinhas na minha
carteira, mas a chance de eu encontrar uma namorada é zero. Eu não tenho tanta
informação sobre método contraceptivo. Eu tenho as que foram dadas na escola e
as poucas que eu peguei na internet. O que eu iria fazer [se tivesse uma relação
sexual] é usar camisinha e pedir para tomar a pílula. Mas, essa não é a que aborta
não, né? Eu sei que existe um método, que eu não sou a favor, que parece que a
mulher engravida, mas nasce morto, eu sou contra isso aí.
Ariano: Eu tenho muito medo de fazer bebês, com a minha ex, eu fiquei com tanto
medo que foi de roupa. Eu sei que tem os comprimidos, e tem o preservativo. É
que geralmente preservativo quebra, né, e isso dá medo. Eu tenho medo de quebrar.
Adélia ilustra, em sua fala, que os efeitos colaterais da menstruação, como ansiedade,
mudanças de humor e dores, podem ter um impacto significativo em suas rotinas, cogitando
possibilidades para deixar de menstruar, assim como relatado por Conceição. Cridland et al.
(2014) conduziram uma pesquisa com adolescentes autistas do sexo feminino e concluíram
que não somente os efeitos da menstruação, mas também o ensino sobre seu significado,
formas de autocuidado e outras informações necessitam atenção para que, assim como no
caso anteriormente citado acerca dos métodos contraceptivos, se trate de um procedimento
claro, generalizável e compreensível. Devem ser discutidos, ainda, nos estudos e práticas de
saúde da mulher, possibilidades confortáveis com relação à supressão da menstruação, se
este for o caso.
No que diz respeito às experiências estabelecidas pelos participantes com o corpo
gordo, tem-se o dado de que duas realizaram cirurgia bariátrica (Cora, Carolina), e duas
comentaram vivenciar dificuldades na aceitação grupal, contando terem sido privadas de
experiências, inclusive amorosas e sexuais, devido a esta característica, identificando ser
necessária abertura na sociedade para reconhecimento da beleza de todos os tipos de corpos
(Adélia, Conceição).
Para Costa, Coiado e Gaiotto (2019), os estereótipos do corpo gordo, que variam desde
a conexão com doenças, à falta de controle e caráter, negligência ou preguiça, têm impactos
negativos na vida das pessoas. O enfrentamento desta violência perpassa não somente pelos
questionamentos sociais, mas também pela atenção à produção científica, especialmente de
áreas da saúde, para que não reproduzam essas relações errôneas, além da maior
103
Cora: Já foi complicado, já foi muito complicado, muito frustrante, ah, claro,
porque eu tomava antidepressivo, né? O doutor tirou tudo, não precisa tomar mais
nada, faz terapia que vai funcionar. E realmente, é isso. Então era frustrante porque
se eu tomava aquele monte de remédio, a própria fluoxetina atrapalhava muito a
sexualidade.
como o autismo é referido na mídia e na literatura, reformulando rótulos comuns como o uso
da cor azul para representar o espectro (PEREIRA; SOUTO, 2019).
Ainda sobre os processos avaliativos e diagnósticos referidos pelos participantes,
observou-se atuação especialmente de médicos psiquiatras, e provável uso de manuais
variados, já que as nomenclaturas atribuídas foram bastante diversas. Embora a história de
classificações do TEA, seja repleta de acontecimentos que explicam mudanças em seus
critérios, é importante analisar criticamente o fato de que os manuais diagnósticos e suas
frequentes revisões propõem, geralmente, expansões cada vez maiores. Assim, não somente
o autismo, mas todas as condições mentais e psicológicas, são susceptíveis a variáveis
preocupantes, como participação das indústrias farmacêuticas nos grupos de trabalho para
elaboração destes materiais (RIBEIRO et al., 2020). Por isso, se por um lado deve haver o
cuidado de defender o direito ao diagnóstico, especialmente devido aos benefícios que podem
ser acessados pelas pessoas após emissão do laudo (BRASIL, 2012; 2015), é necessário
cuidado para evitar a patologização e medicalização, intimamente ligadas às ações
psiquiátricas.
Conceição: Eu não acredito que o autismo é 4 por 1, eu acho que a mulher tem
uma capacidade de adaptação melhor, e se ela não tem um déficit intelectual...eu
sou conhecida pelos meus amigos por ser inteligente. Então eu vi o médico e a
psicóloga bater muito na tecla: “mas você dá conta de fazer as coisas”, como se
autista não fosse capaz de fazer as coisas. Então ainda tem um estereótipo muito
fechado, que autista não vai dar conta, e pro homem isso fica mais evidente. Nossa
sociedade trabalha de um jeito que o homem é mais dependente. Ele é criado com
mais cuidado, a mulher tem que se virar pra mostrar que ela é mulher. Ela vai lutar
mais, vai ser mais sociável. Tem muitas questões: um menino tímido chama
atenção, mas menina tímida “é normal, melhor que seja tímida”.
Clarice: O artigo de jornal da BBC17 falando sobre Síndrome de Asperger,
mulheres e a dificuldade de diagnóstico por ser mulher, enfim, porque os
instrumentos são feitos a partir de características de homens, da existência de
homens em uma sociedade patriarcal que já coloca a mulher numa posição que não
é a mesma de homens.
17
Em abril de 2018, o veículo de notícias BBC publicou uma notícia sobre autismo em mulheres (“Só
descobri que tinha autismo depois de adulta”), citando possibilidade de subnotificação, com relatos de seis
adultas sobre seus processos diagnósticos. Esta notícia foi compartilhada amplamente, de forma que
algumas participantes contaram ter tido acesso, e sido encorajadas por ela na busca pelo diagnóstico.
Acesso em: https://www.bbc.com/portuguese/geral-43549847
106
Carolina: Olha, parece que tem mais assexuais entre a gente, mais agêneros e mais
trans. Eu tenho essa impressão. E com os que são heteros, eles também estão mais
nessa pegada como eu falei, mais desinibição, não tem problema em testar coisas
diferentes [...] Tenho lido autistas de fora do Brasil que falam de alguma coisa, não
ligada à sexualidade, mas à forma de inibição, que eles também notam que talvez
tenha alguma coisa nisso, que eles não sentem também.
Ainda sobre a identificação com orientação sexual não normativa das participantes
(Cecília, Hilda, Cora, Carolina, Conceição, Clarice), é importante discutir a dupla
vulnerabilidade a qual a pessoa TEA/S1 não heterossexual está exposta. Sendo o Brasil um
país de altos índices de LGBTfobia (TEIXEIRA, 2019), crimes como humilhação, exclusão,
agressões físicas, sexuais, psicológicas, financeiras e religiosas, são muito frequentes e
podem representar desafios adicionais às pessoas com dificuldades para identificá-los,
encontrar redes de apoio e agir sobre eles. Assim, além dos avanços legais gradualmente
108
Também é possível pensar que essas expectativas, por vezes pouco elaboradas ou sem
estabelecimentos de vínculos sexuais, amorosos e reprodutivos, são colocadas como
longínquas para pessoas adultas, reforçando a necessidade e pertinência dos programas de
educação sexual para essa população (HANNAH; STAGG, 2016).
5 CONSIDERAÇÕES FINAIS
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▪ Nome:
▪ Idade:
▪ Identifica-se com qual gênero?
Feminino ( ) Masculino ( ) Outro ( ):
▪ Identifica-se com qual orientação sexual?
Heterossexual ( ) Homossexual ( ) Bissexual ( ) Assexual ( ) Outro ( ):
▪ Status de relacionamento atual:
▪ Tem filhos?
Sim ( ) Não ( )
▪ Grau de escolaridade mais elevado:
▪ Profissão atual:
Informações sobre diagnóstico
▪ Profissional responsável pela atribuição do diagnóstico:
▪ Idade na ocasião do diagnóstico:
▪ Nomenclatura dada ao diagnóstico:
Contatos
▪ Cidade em que mora:
▪ E-mail:
▪ Telefone:
Tem interesse em receber informações sobre a pesquisa? Caso sim, elas serão
enviadas por e-mail.
Questão 4) Nos fóruns online, é comum que as pessoas TEA/S1 postem perguntas ou
falem sobre sexualidade. Quais temas você percebe serem mais comuns, nos grupos
do Facebook que participa?
Questão 5) Em sua opinião, a internet ajuda ou atrapalha para que pessoas TEA/S1
vivenciem sua sexualidade? Complementar: De que forma?
Questão 6) Você acha que pessoas TEA/S1 podem sofrer mais ou menos violências ou
abusos sexuais que pessoas sem autismo? Após resposta inicial, complementar: Por
quê?
Questão 7) Nas perguntas a seguir, falaremos sobre sua sexualidade, em particular. Por
enquanto, gostaria de expressar mais alguma opinião sobre a sexualidade de pessoas
com TEA/S1, como um todo?
Eixo II) Relatos de adultos TEA/S1 sobre os aspectos biológicos e psicossociais de
sua sexualidade particular
Questão 1) Quando você era criança e adolescente, como foi o desenvolvimento de
sua sexualidade? Caso não haja compreensão completa da pergunta, adicionar:
Como foram situações de paquera, nesta fase, ou descoberta da masturbação, por
exemplo?
Questão 2) Na infância e adolescência, onde obtinha informações sobre sexualidade?
Depois, complementar: Você teve pessoas que ajudaram para aprender sobre o
assunto?
Questão 3) Atualmente, com quem dialoga sobre sua sexualidade?
Questão 4) Como é sua relação com saúde sexual? Caso haja dúvidas,
complementar: Faz exames ginecológicos ou urológicos de rotina?
Questão 5) Você avalia ter informações suficientes sobre Infecções Sexualmente
Transmissíveis? Caso sim, complementar: Onde aprende sobre elas? Caso não,
complementar: Por quê?
Questão 6) Você acredita ser bem informado sobre uso de métodos contraceptivos,
como camisinha, pílula anticoncepcional etc.? Caso sim, complementar: Onde
aprende sobre elas? Caso não, complementar: Por quê?
Questão 7) Pensando em situações de violência e abuso sexual, você acredita ser
mais vulnerável que pessoas neurotípicas? Caso indique que sim, complementar: Por
quê?
Questão 8) Você já teve acesso à pornografia? Caso responda que sim,
complementar: qual sua opinião sobre os materiais pornográficos?
Questão 9) Sua família conversa sobre sexualidade com você? Caso responda que
sim, complementar: como costumam ser essas conversas?
Questão 10) Quais são as expectativas de sua família sobre sua sexualidade? Caso
haja dúvidas, complementar: o que eles esperam do seu futuro, em termos sexuais e
amorosos?
Questão 11) Você se sente atraído por pessoas de quais gêneros? Caso haja dúvidas,
reformular: Você se identifica como homossexual, bissexual, heterossexual, assexual,
ou qual outra orientação? Após resposta, complementar: como foi para você o
processo de identificar suas preferências sexuais?
Questão 12) Existe alguma característica da sexualidade neurotípica que seja difícil
de entender ou lidar, para você? Caso não haja compreensão, reformular: Tem algo
que as pessoas não autistas façam ou pensem sobre sexualidade, que te parecem
estranhas ou incompreensíveis?
Questão 13) Agora, falaremos um pouco sobre suas experiências sexuais. Você
gostaria de contar mais alguma coisa sobre sua sexualidade, antes disso?
Eixo III) Vivências em relacionamentos sexuais e amorosos
120
de contribuir com a ciência falando sobre o tema, escreva nos comentários desta postagem
seu e-mail, para que eu entre em contato, ou me envie uma mensagem no endereço:
[email protected]
A pesquisa tem compromissos éticos com os participantes, por isso os dados serão
preservados (ou seja, ninguém saberá o nome ou características que poderiam identificar a
pessoa participante), e somente eu, pesquisadora responsável, terei acesso ao material.
Os dados da entrevista serão utilizados para elaborar a tese, ou seja, publicar
cientificamente a opinião de adultos com TEA/S1, e a partir deles eu escreverei um material
para criar programas de educação sexual e apoio à sexualidade. Tudo isso será
disponibilizado publicamente a quem se interessar.
Agradeço a atenção, e me coloco à disposição para esclarecimentos,
Agradeço por seu esforço em participar da pesquisa, mais uma vez. Sua contribuição
será muito importante!
Atenciosamente,
Ana Carla Vieira Ottoni
Psicóloga (CRP 06/128598)
Mestre e Doutoranda em Psicologia do Desenvolvimento e Aprendizagem (UNESP/Bauru)
______________________________ ______________________________
Assinatura do(a) Participante Assinatura da Pesquisadora
Agradeço por ter participado de todos os passos da pesquisa, e por ter falado sobre suas
ideias, experiências e opiniões.
Irei escrever a tese de doutorado, e a mesma será apresentada até outubro de 2021,
aproximadamente. Você receberá uma cópia da tese, bem como um relatório resumido
explicando os resultados da pesquisa, e o material elaborado para programas de educação
sexual e apoio à sexualidade.
Caso tenha dúvidas ou queira dialogar sobre a pesquisa, pode escrever um e-mail, que
responderei assim que possível.
124
Estou à disposição,
Atenciosamente,
Nome:
Data preenchimento:
Exemplos:
Concordo Concordo Discordo Discordo
totalmente ligeiramente ligeiramente totalmente
E1. Estou sempre pronto(a) a arriscar X
E2. Gosto de jogos de tabuleiro X
E3. Tenho facilidade em aprender tocar X
instrumentos musicais
E4. Culturas diferentes me fascinam X
conversa.
27. Tenho facilidade em “ler nas entrelinhas”
quando falam comigo.
28. Geralmente me concentro mais no todo do que
nos detalhes.
29. Não sou muito bom/boa em lembrar números de
telefone.
30. Geralmente não reparo nas pequenas mudanças
de uma situação ou na aparência de uma pessoa.
31. Consigo dizer quando a pessoa com quem estou
conversando fica entediada.
32. Consigo facilmente fazer mais do que uma coisa
ao mesmo tempo.
33. Quando falo no telefone, não tenho a certeza
quando é a minha vez de falar.
34. Gosto de fazer as coisas de forma espontânea.
Versão brasileira de Ana Osório, Beatriz Sanchez e Júlia Egito. Julho de 2017.
129
ESTUDO 3
RESUMO
ABSTRACT
Scientific literature has made advances in terms of describing aspects of sexuality in autistic
adults, but this knowledge is commonly restricted to the academic community. The objective
of the study was to report the production of an informative material, designed to provide
access to a wide audience regarding the data found in the literature review and previous
qualitative research (Studies 1 and 2). The main guidelines were the use of direct, clear
expressions, without figures of abstract languages; concrete examples, through the reports of
Study 2 participants, to illustrate the data described and support in visual resources. The
methodological steps followed: I. Content organization; II. Text writing; III. Aesthetic and
diagrammatic production; IV. Material evaluation. The texts started with introductory notes
to contextualize the reader (about research, autism, inclusion, sexuality and sex education);
complemented by answers to two questions: “What do the studies on sexuality and autism
say?” and “Sex education – how to do it?”. It was decided to first treat the contents that
appeared similarly in both studies, and then the exclusive data of the second. The informative
material was produced in the Canva online application, and its final version has 41 pages,
with avatars representing the participants in order to humanize their speeches and fonts with
little ornamentation to avoid sensory hyperstimulation. Study 2 participants were invited to
evaluate the material, through an anonymous online form, and the responses sent signaled
approval of the production. Among the potentials observed, representativeness stands out,
through the amplification of the reports of autistic participants in Study 2, and ease of
distribution of the chosen format. The limitations involve the fact that a teaching procedure
was not carried out using the material, which makes it impossible to affirm its effectiveness,
and that the public remains restricted due to the need to use the internet for access and
reading.
Keywords: Autism Spectrum Disorder. Autism. Sexuality. Sex Education. Manual.
132
1 INTRODUÇÃO
A elaboração do material de apoio descrito neste estudo foi feita com base em tais
diretrizes, na tentativa de responder ao questionamento: como os dados obtidos nos estudos
podem ser apresentados a seu público-alvo, em ações de apoio a seus direitos sexuais?
2 OBJETIVOS
3 MÉTODO
134
Pode-se considerar este estudo uma pesquisa-ação, já que segundo Gil (2002), tal
método implica a resolução de um problema coletivo – neste caso, a construção de um
produto técnico a partir de demanda social - por parte de pesquisadores e grupos envolvidos
no assunto abordado. A elaboração do material informativo passou pelas etapas: I.
Organização de conteúdos; II. Escrita do texto; III. Produção estética e diagramática; IV.
Avaliação do material.
I. Organização de conteúdos
4 RESULTADOS e DISCUSSÃO
Cecília: Minha opinião em geral sobre a cartilha foi muito boa. Eu achei o número
de páginas ótimo, na medida certa; achei o design de toda a cartilha lindo, colorido,
vistoso, convidativo e percebi também que as figuras eram diversas e inclusivas.
Nas notas sobre o Autismo, onde eram descritas as características da condição,
achei que foi uma das descrições mais abrangentes. Você fugiu de meramente citar
as características gerais do autismo, para discorrer sobre elas de forma profunda,
mostrando algo que as pessoas nem sempre se atentam: que o autismo faz com que
as coisas funcionem pra nós de formas profundamente diferentes, mas nem sempre
18
O registro do material por meio do ISBN foi solicitado mas ainda não havia sido liberado no momento de
envio da versão final desta tese.
136
óbvias ou visíveis. Ensinar isso às pessoas é importante, porque pode fazer com
que elas se tornem mais compreensivas no trato conosco, sabendo da complexidade
da condição. O mesmo posso dizer sobre a seção sobre sexualidade. O que está
escrito nela pode ajudar muito as pessoas leigas a entenderem melhor o que é
sexualidade e como ela também é complexa. Achei muito bom a seção sobre
sexualidade e autismo, tanto a parte sobre as pesquisas científicas quanto as partes
onde você se baseou nas nossas falas (muito bem escolhidas, por sinal) para mostrar
de forma concreta a maneira como os achados teóricos realmente se encaixam. A
parte sobre como fazer a educação sexual para pessoas com autismo foi ótima
também, trazendo dicas e ideias muito boas que se adequam muito bem às nossas
necessidades de explicações diretas e simples, concretas, didáticas, bem como ao
treino de variadas habilidades e situações. Enfim, fiquei muito surpresa
positivamente! Parabéns!
Clarice: Desde já quero dizer que achei a cartilha bem bonita! Parabéns! Está
bonita, com uma dinâmica de inputs de informação "friendly" no sentido literal e
também no sentido da acessibilidade, na medida em que os inputs não geram
sobrecarga sensorial (pelo menos, no meu caso). Por enquanto, gostaria de sugerir
a você 2 alterações, detalhes pontuais, nada demais, apenas pensando em contribuir
com o material. 1. Na minha fala da p. 21, onde se lê "nenhum pecado", leia-se
"pecado algum". 2. Se for possível e não muito trabalhoso, registro que preferiria
uma pequena alteração no avatar referente a mim [participante pede alteração na
figura com relação à gola da blusa. Foram oferecidas opções diferentes de avatar,
mas por fim optou pelo que foi inicialmente utilizado].
Conceição: Que delícia ver o trabalho tomando forma.
Ariano: Fico feliz de ter participado. Agradeço por ouvir.
Além disso, embora o retorno fornecido pelos participantes tenha sido positivo, não é
possível generalizar tal aprovação e afirmar que o conteúdo seja relevante, útil ou correto
para todas as pessoas TEA/S1. O formato digital do material informativo, apesar de promover
acesso facilitado, quando comparado a artigos indexados em bases fechadas, continua
limitado a um grupo de pessoas – no caso, as que têm acesso a redes comunicacionais online
e participam dos meios que a divulgação do material alcançará.
Guias, cartilhas ou livros com programas cujas instruções de aplicação sejam mais
específicas podem facilitar a atuação de familiares, profissionais e outros interessados em
liderar programas de educação sexual. O “Relationship Building & Sexual Awareness for
Kids with Autism: S.T.A.R.S 2” (WEBSTER; HEIGHWAY, 2016), por exemplo, é um
material voltado para pessoas autistas em idade escolar, que propõe o ensino em quatro áreas:
Compreensão de Relacionamentos, Treinamento de Habilidades Sociais, Consciência Sexual
e Assertividade. Ele inclui orientações de como avaliar o ponto de partida de cada
participante, nas habilidades a serem ensinadas, e propõe reflexões aos envolvidos no
programa de educação sexual, como “quais conhecimentos a criança demonstra ter sobre
sexualidade?”. Pesquisas futuras podem considerar tais diretrizes para avançar na qualidade
do material informativo.
5 CONSIDERAÇÕES FINAIS
A divulgação científica em países como o Brasil, em que o do trabalho de
pesquisadores é medido e reconhecido por meio de publicações formais, como artigos
acadêmicos, acaba por aprofundar o abismo entre conhecimento e sociedade. A elaboração
do material informativo relatado neste estudo foi um passo inicial na tentativa de estabelecer
uma ponte entre os dados e discussões dos Estudos 1 e 2, e pessoas interessadas, como
adolescentes e adultos autistas, familiares e profissionais.
Trabalhos com relatos em primeira pessoa, como no caso do material que utilizou
fragmentos dos relatos de participantes do Estudo 2, são interessantes para manter a
representatividade e protagonismo de autistas no que diz respeito a suas visões. Propor
programas de educação sexual emancipatória implica trabalhar o conceito de sexualidade de
forma ampla, e é essencial localizar os leitores nas discussões atuais sobre TEA, o que
justifica as notas introdutórias do material, sinalizadas como positivas no feedback oferecido
por participantes.
138
Não houve mudanças substanciais no material antes e após a avaliação oferecida pelos
participantes, mas não é possível generalizar sua aprovação já que o público consultado foi
muito restrito. Para melhorias futuras, sugere-se criar estudos com programação de ensino
para avaliação de sua eficácia como instrumento para aprendizagem; aprimoramento com
instruções específicas a mediadores dos programas de educação sexual; e expansão do
formato para que a acessibilidade seja melhorada – por meio de vídeos e outras formas de
divulgação.
REFERÊNCIAS
Apesar das limitações encontradas no produto técnico descrito no Estudo 3, pode-se citar
como seu ponto positivo central o destaque para esses relatos.
Contribuições adicionais do Estudo 2 incluíram relatos dos participantes sobre temas
diversos, como a participação familiar, de amigos, grupos de pares e serviços de saúde, nas
vivências sexuais e amorosas, enquanto fatores de proteção. Foram citadas, como potenciais
de sua sexualidade, a comunicação sincera e a naturalidade com que tratam o assunto, e
tecidas críticas sobre o uso da pornografia, e abordagem sobre este tópico como um tabu, em
uma lógica reducionista, acrítica, valorada como desviante. Quanto às experiências sexuais,
relatou-se tanto histórias prazerosas e positivas, quanto abusivas e violentas, e vivências do
prazer por meio do uso de brinquedos eróticos ou expressões artísticas. Particularidades como
crises sensoriais e estratégias de enfrentamento, dificuldades para flexibilizações e
autopercepção de infantilização, foram relatadas, tal qual hábitos de saúde sexual e
conhecimentos sobre métodos contraceptivos. Por fim, citou-se experiências de exclusão
social devido ao corpo gordo, efeitos colaterais de medicamentos psiquiátricos com impactos
na sexualidade e críticas ao instrumento de rastreamento AQ.
As principais limitações e falhas dos estudos parecem ser a impossibilidade de
generalização dos dados, por tratar-se de uma amostra limitada de estudos e participantes,
sendo possível haver outras informações e necessidades não abordadas até então. Além disso,
no caso da segunda pesquisa, percebe-se que o método de convite e coleta de dados
selecionou um subgrupo específico das pessoas TEA/S1, com alta escolaridade, prevalência
feminina e diagnóstico tardio, que podem também ter limitado as informações coletadas.
Analisando os dados descritos pelos estudos, observa-se o levantamento de inúmeros
aspectos que necessitam atenção e visibilidade, para apoiar as pessoas TEA/S1, respeitando
suas perspectivas, desejos e necessidades. Assim, conclui-se que foram organizadas
informações importantes, com potência para apoiar a ação de profissionais, familiares e
pessoas autistas com relação à sexualidade na vida adulta. Almeja-se que a cartilha
amplifique tais informações, alcançando públicos diversos.
141
REFERÊNCIAS
Boas-vindas!
Eu sou Ana Carla Vieira Ottoni, e criei este material para divulgar
informações coletadas em minha pesquisa de doutorado, chamada
"Sexualidade, autismo e vida adulta: contribuições para educação
sexual¹. Sou psicóloga, trabalho com inclusão escolar e atendo
adultos autistas no projeto clínico Diverso Singular².
Esta cartilha é composta por: notas iniciais explicativas sobre autismo, inclusão,
sexualidade e educação sexual; dados coletados na literatura e em nossa
pesquisa acerca da sexualidade de adultos autistas; sugestões para pessoas
interessadas em elaborar e aplicar projetos de educação sexual a este público, e
por fim, referências para encontrar obras e aprofundar conhecimentos.
1
Autismo
Para começar, vamos falar um pouquinho sobre o Autismo: ele foi descrito pela
primeira vez em 1943, por um médico chamado Leo Kanner, nos Estados Unidos. Em
1944, outro médico, chamado Hans Asperger, estudou em Viena casos parecidos com
os de Kanner, e nomeou a condição encontrada de Síndrome de Asperger³.
A CID-11⁵ classifica o autismo em: TEA sem Deficiência Intelectual (DI) e com comprometimento
leve/ausente de linguagem funcional; TEA com DI e com comprometimento leve/ausente de linguagem
funcional; TEA sem DI e com linguagem funcional prejudicada; TEA com DI e com linguagem funcional
prejudicada; TEA sem DI e com ausência de linguagem funcional; TEA com DI e com ausência de linguagem
funcional; Outro TEA especificado e TEA não especificado.
Quando falamos sobre algum assunto específico relacionado ao autismo, como sexualidade, é
necessário indicar o nível de suporte (S1, S2 ou S3) das pessoas referidas, porque as necessidades
e potencialidades podem ser diferentes.
Consentimento sexual, por exemplo, é uma questão com implicações distintas comparando uma
pessoa que necessita de suporte muito substancial com outra de suporte pontual.
Inflexibilidades
Compromisso com rituais, rotinas ou sequências, desorganizando-se com mudanças ou
imprevistos; Rigidez com relação a alimentos e outros estímulos de preferência, como roupas,
brinquedos, sapatos, livros.
Hiperfocos
Interesse por um assunto específico por longos períodos de tempo, com dedicação exclusiva
ao mesmo e dificuldades para envolver-se em tópicos diferentes e diversificados. Pode-se
desenvolver habilidades notáveis nessas áreas de interesse.
aspectos motores
Pode haver pouco uso de gestos e maior rigidez muscular ao movimentar-se; Estereotipias
como movimentar as mãos, os pés, andar em círculos; Dificuldades para aprender brincadeiras
e habilidades como andar de bicicleta, jogar bola, escrever e pintar.
Características singulares
Algumas pessoas podem apresentar características como memória visual excelente, memória
numérica e facilidade com cálculos, inteligência acima da média em alguma área específica, ou
em várias; habilidades artísticas, esportivas ou linguísticas notáveis. Toma-se cuidado com
essa informação para que não haja a expectativa exacerbada de familiares sobre essas
características.
Nem todas as pessoas autistas apresentam todas essas características. Elas são as mais
frequentes, mas pode haver outras não listadas.
4
Nossa pesquisa
A pesquisa que deu origem a este material¹ teve duas etapas:
Os nomes dos participantes foram substituídos pelos de autores da literatura nacional para preservação de
suas identidades. 5
Inclusão
Todas as pessoas são diferentes e únicas.
Entretanto, a sociedade é organizada baseada em uma ideia de NORMA. Os prédios, as
calçadas, os currículos escolares, os empregos, vestibulares...tudo é organizado para
pessoas com características que cumprem essa expectativa normativa.
Isso faz com que muitas pessoas fiquem à margem da sociedade, sem conseguir se
locomover, estudar, trabalhar, sentir-se parte, relacionar-se.
INCLUIR significa, portanto, modificar a sociedade para que todas as pessoas acessem
todos os direitos.
Infelizmente, nessa sociedade normativa, pessoas divergentes são responsabilizadas, e
faz-se de tudo para que elas se aproximem da norma.
AUTOCUIDADOS E
PRAZER IMAGEM CORPORAL
AUTOCONHECIMENTO
...
Mesmo natural e presente na vida de todas as pessoas, este assunto continua sendo um
grande tabu - tanto devido à desinformação, quanto às discordâncias sobre o que as pessoas
devem fazer com suas sexualidades. Nossa participante Clarice tem uma bela fala sobre isso:
7
Educação Sexual
FORMAL INFORMAL
algumas pessoas argumentam que a educação sexual não deve ser feita para não
“incitar” o assunto; entretanto, ela já está ocorrendo, a todo tempo…por isso, é
interessante pensar em propostas formais, organizadas de maneira ética,
científica, pedagogicamente cuidadosa e adaptada de acordo com as
necessidades e faixas etárias
9
Sexualidade e
Autismo
10
Sexualidade e
Autismo
Pessoas autistas em relacionamentos amorosos têm
mais inserção social e comunitária²⁴
Um estudo demonstrou que pessoas em relacionamentos amorosos tinham mais
oportunidades sociais e sentimento maior de pertencimento. Isso demonstra a necessidade
de investimento em programas de inserção cultural, como grupos, clubes, espaços acessíveis.
12
Sexualidade e
Autismo
hiperfocos são assuntos/temas pelos quais as pessoas
nutrem interesse intenso, com desejo de dedicar-se ou
falar exclusivamente sobre eles³⁰
Segundo conceição e cecília:
Eu diria que é uma relação de 50%, 50%, mais pra 60% em relação a
atrapalhar, isso é uma coisa que minha avó já chamou atenção. Que
muitas das coisas que estão na internet não são reais, ou seja, muita coisa
que quem tem TEA vê na internet não é exatamente como é realmente,
sabe? [...] Eu diria que tem alguns que funcionam pra mim, mas tipo, eu
sempre fico no mesmo lugar, nunca saio do lugar, o máximo que eu vou
são as imagens do Google e eu nem clico nas imagens, eu só vejo de
longe. Isso porque eu tenho paranóia enorme em relação a computador.
Tenho medo de pegar vírus, hacker.
O TEA tem uma questão que às vezes a gente aprende uma coisa, e acha
que aquela coisa é a regra, né? E a gente não consegue mudar aquele
pensamento pra outras situações, então às vezes a pessoa acaba
aprendendo com a pornografia o que seria uma relação sexual, e talvez
ela não consiga compreender que na verdade não precisa ser exatamente
aquilo. Não tem essa flexibilidade, então eu acho que pode ser ruim.
Sexualidade e
Autismo
Os estudos sobre mulheres autistas têm diversos dados
importantes para explorarmos:
mulheres autistas são subdiagnosticadas³²
Muitas mulheres conseguem a formalização de seu diagnóstico somente na vida adulta, e
muitas após vivenciar experiências em diversos profissionais que as diagnosticaram e até
mesmo medicalizaram para condições psiquiátricas errôneas.
Diversos estudos indicam que uma das variáveis que influenciam o subdiagnóstico é o fato
de que os critérios e instrumentos diagnósticos foram construídos a partir de participantes
homens, de forma que a expressão do autismo em mulheres acaba por ser pouco
reconhecida. Vamos ver o que Clarice diz sobre isso:
É muito óbvio que as mulheres autistas vão estar camelando mais tempo
sem diagnóstico por toda essa maquinaria que funciona assim. Os homens
podem ser “grosseiros”, as mulheres tem que ser “educadas”. É aquela
velha história que os feminismos falam muito bem, é uma questão de saúde
pública que tem que ter um basta. A sociedade é patriarcal? É, infelizmente
é. O que vamos fazer? Vamos fazer contenção desse patriarcado
descontrolado, tem que atender a saúde das mulheres também, ou a
feminilização não chegou ainda nessa conclusão? Tem que atender a
saúde das mulheres e diagnóstico não é um passo preliminar de tantos
outros encaminhamentos pra cuidar da saúde?
15
Sexualidade e
Autismo
educação diferencial de gênero e masking
A forma como homens e mulheres são educados desde o início da vida é diferente em vários
aspectos³⁴. Os brinquedos oferecidos, como carrinhos e super-heróis a meninos, bonecas e
itens de cozinha a meninas, são um símbolo importante do que chamamos educação
diferencial de gênero: mostra-se quais lugares sociais serão ocupados, e quais
oportunidades poderão ser desfrutadas. Neste exemplo, de aventura, liberdade e liderança a
meninos, cuidado à família e à casa a meninas.
Tem-se explorado que essa educação diferencial também impacta o diagnóstico de autismo
em mulheres, já que características vistas como sinais de encaminhamento para avaliação -
como introversão - são mais aceitas em meninas que em meninos. Além disso, como
mulheres são socialmente mais cobradas para encaixar-se em padrões e grupos sociais,
desenvolvem estratégias denominadas Masking (ou, Mascaramento), em que aprendem a
imitar comportamentos alheios, performá-los para inserir-se e ser bem aceitas, mesmo
quando são sofridos ou não fazem sentido para si mesmas. Como diz Conceição:
Eu não acredito que o autismo é 4 por 1, eu acho que a mulher tem uma capacidade de
adaptação melhor, e se ela não tem um déficit intelectual...eu sou conhecida pelos
meus amigos por ser inteligente. Então eu vi o médico e a psicóloga bater muito na
tecla: “mas você dá conta de fazer as coisas”, como se autista não fosse capaz de fazer
as coisas. Então ainda tem um estereótipo muito fechado, que autista não vai dar conta,
e pro homem isso fica mais evidente. Nossa sociedade trabalha de um jeito que o
homem é mais dependente. Ele é criado com mais cuidado, a mulher tem que se virar
pra mostrar que ela é mulher. Ela vai lutar mais, vai ser mais sociável. Tem muitas
questões: um menino tímido chama atenção, mas menina tímida “é normal, melhor que
seja tímida”.
dupla vulnerabilidade³⁵
Mulheres autistas vivenciam, portanto, dupla vulnerabilidade: por serem neuroatípicas, e
mais vulneráveis a uma série de violências sexuais; e sendo do gênero feminino, mais
suscetíveis a realidade de exclusão, sofrimento e marginalização, na sociedade machista e
patriarcal. As expectativas colocadas no futuro de meninas e mulheres autistas, inclusive,
são diferenciais e podem gerar imenso sofrimento (acentuado no caso do diagnóstico
tardio), como exemplificado por Cora:
Quando minha mãe morreu e teve a reunião de todo mundo, minha tia falou
assim: “a sua mãe queria te castigar pelo jeito que você era”. Porque eu sempre
tive uma liberdade muito grande com a minha sexualidade [...] Quando minha
mãe morreu, foi um alívio porque eu deixei de ter esperança dela gostar de
mim.
Sexualidade e
Autismo
algumas habilidades sociais são importantes para
vivências positivas de sexualidade³⁶
Habilidades sociais, como comunicação, por exemplo, podem facilitar
relacionamentos. Em um estudo³⁷, adultos autistas indicaram sentirem-se românticos
e terem desejo de expressar carinhosamente seus sentimentos, mas apresentam
dificuldades para utilizar os termos e palavras que neurotípicos consideram
adequadas. Outras questões comunicativas, como a identificação de sentimentos
alheios em situações diversas; percepção de necessidades do outro e flexibilizações
de rotinas, hábitos ou interesses, podem facilitar a manutenção de relacionamentos.
Para o aprimoramento dessas habilidades, sugere-se intervenções específicas, como
o Treino de Habilidades Sociais³⁸.
Ser muito imprevisível, parece que as pessoas meio que agem de um jeito “ah, vamos
caminhando pra ver onde vamos chegar” e isso me causa bastante ansiedade. Também
uma certa tendência a pensar coisas e não falar, esperar que você adivinhe o que a
pessoa precisa, ou como você deve se comportar, ou quando você tenta oferecer apoio.
Não tem muita lógica no modo como os relacionamentos começam e terminam, né? [...] eu
acho que hoje nós vivemos numa era em que assim, as pessoas, se tornou muito fácil você
terminar um relacionamento e começar outro, então às vezes as coisas parecem acabar
mais ou menos assim: ah, se a conversa não me agradar, eu já paro, sabe? É muito difícil de
entender, é muito cansativo.
Eu acho difícil entender a comunicação deles pras coisas. Mas com relação à
sexualidade em si, o máximo que eu notei foi [...] deles serem a maioria
extrovertidos, ou mesmo algumas coisas me soam estranhas. Se eu derrubo
uma coisa e peço desculpas, eu realmente estou muito sentida e pedindo
desculpa, mas eu vejo que eles fazem isso da boca pra fora, então pra mim é
muito estranho.
Fingir orgasmo é uma coisa bizarra, não faz sentido. Mas as pessoas falam que
estão cansadas e preferem fingir. Mas elas dizem que tudo é no diálogo, elas
também ficam medindo o tamanho do pênis, é estranho.
17
Sexualidade e
Autismo
pode haver impactos na saúde mental relacionados à
vivência da sexualidade
Alguns estudos³⁹ indicam que dificuldades cotidianas relacionadas à sexualidade - a
exaustão devido a contatos sociais; receio de não corresponder às expectativas alheias;
esforços para encaixe-se no ideal normativo etc - promovem condições de saúde mental
como depressão, ansiedade, baixa autoestima e isolamento.
Por essa razão, indica-se que além das mudanças sociais e culturais, sejam oferecidos
serviços de acompanhamento, como psicoterapia, que possam apoiar pessoas autistas no
que diz respeito à sua sexualidade e à saúde mental como um todo. Hilda exemplifica:
18
Sexualidade e
Autismo
pessoas autistas são mais vulneráveis à violências sexuais⁴⁰
Algumas variáveis que influenciam essa realidade são: dificuldades para compreender e/ou evitar
situações perigosas e danosas; ter suas denúncias desacreditadas; acesso limitado a
informações, que dificulta a percepção de uma situação como violenta.
Assim como a probabilidade de ser vítima é maior, é possível que se envolvam em situações
difíceis, como stalkear pessoas de seu interesse sem perceber limites aceitáveis, por exemplo.
Estes dados demonstram, mais uma vez, a importância de um programa de educação sexual
atencioso a pessoas autistas de todas as idades.
19
Sexualidade e
Autismo
Há diversos estudos⁴¹ voltados ao objetivo de comprovar que existem mais pessoas com
identidades sexuais não normativas dentre autistas, em comparação com os neurotípicos,
como Lésbicas, Gays, Bissexuais, Transexuais, Travestis, Queer, Assexuais/Arromânticas,
Pansexuais, Não Binárias, Gênero Fluido e outros. Nossas participantes Carolina, Cora e
Clarice comentam:
Olha, não sei falar disso como pessoas que estudam essas coisas, mas
acho que tem uma espécie de um degradê, eu acho que eu tenho por
homens, uma atração heterossexual, mas eu não acho que é pecado
algum, nenhuma coisa escabrosa sentir atração esporádica, pontual, sem
nenhum ataque de pelancas, por mulheres. Porque ué, qual o problema?
Se tiver um problema, então vamos conversar.
Existem abordagens⁴² que atribuem este dado a questões de neurociências, como o "Cérebro
Masculino", indicando que altos níveis de testosterona seriam responsáveis pela diversidade
sexual. Infelizmente, são estudos reducionistas, que desconsideram variáveis do desenvolvimento
humano, e pensam a sexualidade não normativa como uma patologia. O compromisso de áreas do
conhecimento preocupadas com os direitos humanos, como a Psicologia deve ser, é defender a
diversidade sexual como parte da humanidade.
Por isso, outras explicações possíveis para a questão da sexualidade não normativa no espectro
devem ser exploradas, e algumas perguntas interessantes seriam: haveria uma correlação entre
os maiores índices de homossexualidade e bissexualidade com o fato de que as pessoas
autistas são menos dependentes da opinião social alheia, desprendendo-se com maior
facilidade das regras heteronormativas? Poderia ser considerado que o maior número de
pessoas trans ou não binárias no diagnóstico TEA, se deve ao fato de que os engessados
papéis de gênero não foram apreendidos, como no caso de pessoas neurotípicas? Haveria mais
pessoas assexuais autistas porque a pressão social pela vivência díade da sexualidade é
menos sentida por essas pessoas?
20
Sexualidade e
Autismo
[...] eu tenho visto em matéria de pesquisas, parece que lá fora elas estão um
pouco mais avançadas, que há uma incidência maior de pessoas que não se
conformam às regras de gênero, e não são heterossexuais, parece haver uma
incidência maior em pessoas com autismo. [...] E nesses grupos [online], eu
realmente vejo, raríssimas são as pessoas se conformam totalmente às regras
do que é considerado normal, né, em termos de sexualidade na nossa
sociedade.
Olha, parece que tem mais assexuais entre a gente, mais agêneros e mais trans.
Eu tenho essa impressão. E com os que são heteros, eles também estão mais
nessa pegada como eu falei, mais desinibição, não tem problema em testar
coisas diferentes [...] Tenho lido autistas de fora do Brasil que falam de alguma
coisa, não ligada à sexualidade, mas à forma de inibição, que eles também
notam que talvez tenha alguma coisa nisso, que eles não sentem também.
21
Sexualidade e
Autismo
Apoio familiar⁴³
Quando disposta a tratar o assunto com naturalidade, respeito e empatia, a família tem o
potencial de acolher, ensinar, apoiar, mediar relações. Vejamos o exemplo de Hilda:
Amizades⁴⁴
Neurotípicos ou neurodivergentes, os amigos possibilitam a convivência em grupo - que
facilita o desenvolvimento de habilidades sociais, contato com novas pessoas, experiências
prazerosas, partilhas e acolhimento - além de serem fonte de aprendizado sobre
sexualidade e chance de observar outros pontos de vista e ideias. Ariano comenta:
22
Sexualidade e
Autismo
Naturalização da sexualidade
Para muitas pessoas autistas, como nossos participantes, a sexualidade é natural, e deve ser tratada
com menos embaraços. Isso resulta na facilidade com experimentações sexuais sem tabus ou
preocupações excessivas e diminuição dos preconceitos e julgamentos alheios.
singularidades
É claro que essas características, que facilitam as vivências da sexualidade e devem ser
valorizadas, não são generalizadas a todas as pessoas autistas. Da mesma forma, cada um tem
um conjunto de hábitos, manias, habilidades, dificuldades, que podem tornar as experiências e
relações muito prazerosas. Este reconhecimento deve existir, especialmente para que não haja a
impressão de que há somente aspectos difíceis ou negativos na vida com TEA.
23
Sexualidade e
Autismo
As relações amorosas e sexuais estabelecidas
são diversas⁴⁵
Tanto nos estudos lidos quanto nas entrevistas de nossos participantes, percebemos
que há formas diversas de viver a sexualidade.
vivências solo
Há pessoas que optam pelo não estabelecimento de relações com outras pessoas.
Algumas delas não sentem desejo ou necessidade de exercitar sua sexualidade; outras
encontram formas de expressão e prazer com alternativas, como nos contam Adélia e
Conceição
25
Sexualidade e
Autismo
Saúde sexual⁴⁶
Observou-se que as participantes mulheres têm hábitos de monitoramento da saúde sexual mais
frequentes, fortalecendo a ideia de que a atenção aos homens deve melhorar.
As mulheres demonstraram, como um todo, serem mais informadas com relação a métodos
contraceptivos, como é possível ver na fala de Carlos:
As participantes falaram sobre os impactos da menstruação em sua vida, como no caso de Adélia:
Sugerimos que interessados pelo assunto continuem lendo e se atualizando sempre que
possível - pois a ciência muda, evolui, descobre e desconstrói a todo tempo!
Para que bons programas de educação sexual sejam planejados, dados como estes até
aqui apresentados devem ser levados em consideração, especialmente aqueles
produzidos por pessoas no espectro.
27
Promovendo Educação
Sexual
- Com linguagem simples, direta, descritiva, detalhada e sempre que possível literal;
29
Promovendo Educação
Sexual
Além dessas dicas, os líderes de projeto de educação sexual devem se atentar aos
dados expostos sobre o que os estudos científicos trazem acerca da sexualidade e
autismo na vida adulta, pois podem extrair dali outros conteúdos ou ideias para seus
programas.
30
Promovendo Educação
Sexual
Conteúdos Estratégias
31
Promovendo Educação
Sexual
Conteúdos Estratégias
32
Promovendo Educação
Sexual
33
Promovendo Educação
Sexual 7
materiais de apoio
Existem poucos materiais de apoio criados especificamente para educação sexual de
pessoas autistas, como o Taking Care of Myself⁵³. Por isso, sugere-se o uso de materiais
utilizados em projetos de educação sexual como um todo, que possam ser adaptados às
necessidades específicas das pessoas que participarão do projeto. Vamos ver alguns
exemplos:
34
Palavras Finais
Este material não foi escrito com a intenção de esgotar o tema ou dar
direcionamentos restritos. Sendo sobre uma temática bastante nova tanto no
campo científico quanto na prática cotidiana, percebemos ser necessário publicar
algo inicial, aberto a modificações, atualizações e sugestões conforme o público
interessado demande e os estudos indiquem.
É dedicado também a todos os adultos autistas, com quem o mundo tem sido tão
pouco gentil.
1. Tese "Sexualidade, autismo e vida adulta: contribuições para educação sexual", defendida
no Programa de Pós-Graduação em Psicologia do Desenvolvimento e Aprendizagem,
UNESP/Bauru, autoria de Ana Carla Vieira Ottoni, sob orientação de Ana Claudia Bortolozzi -
pode ser encontrada nos mecanismos de busca do repositório institucional
2. Diverso Singular é um projeto de atendimentos clínicos e divulgação científica, criado para
comunicação com a comunidade de adultos autistas e divulgação dos dados da Tese,
inclusive este material informativo. O perfil é público e pode ser acessado com o termo
@diverso.singular no item de busca do aplicativo online Instagram.
3. DONVAN, J.; ZUCKER, C. Outra Sintonia: a história do autismo. Companhia das Letras, 2017.
4. AMERICAN PSYCHIATRIC ASSOCIATION. Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos
Mentais. 5 ed. Porto Alegre: ARTMED, 2014.
5. ORGANIZAÇÃO MUNDIAL DA SAÚDE. ICD 11 Coding Tool. Disponível em:
https://icd.who.int/ct11/icd11_mms/en/release. Acesso em: 02 de jan/2022.
6. GRANDIN, T.; PANEK, R. O cérebro autista: pensando através do espectro. Editora Record,
2015.
7. ROBISON, J. E. Olhe nos meus olhos: minha vida com Síndrome de Asperger. Editora
Larousse, 2008.
8. O Instituto Autismo e realidade sugere uma lista de militantes autistas com perfis online para
interação no link: https://autismoerealidade.org.br/2021/03/25/autistas-influenciadores/
9. O site The Might publicou uma lista de influenciadores autistas estrangeiros no link:
https://themighty.com/2019/08/actually-autistic-instagram/
10. Em nossa pesquisa, interagimos nos grupos "Jovens Autistas Aspergers" e
"Autismo/Asperger/São Paulo", na rede social Facebook. Há grupos também nas
plataformas Telegram, Whatsapp, Discord, que podem ser encontrados utilizando as
palavras-chave Autismo, Asperger e TEA.
11. Algumas sugestões por nós visitadas, as quais recomendamos, são: Temple Grandin, Mary e
Max: uma amizade diferente, Rain Man, Uma viagem inesperada, Loucos de amor, Adam,
Atypical, O farol das orcas, Meu nome é Radio, X + Y: a brilliant young mind, Amor no
Espectro.
12. OTTONI, A. C. V.; MAIA, A. C. B. Série Atypical: vivências sociais, afetivas e sexuais de um
jovem com autismo. Em: CARVALHO, L. R. S.; MAIA, A. C. B. (Org.). Leituras sobre a
sexualidade em filmes, vol. 2. São Carlos: Pedro & João editores, 2019, p. 15-37.
13. ORTEGA, F. Deficiência, autismo e neurodiversidade. Ciência e Saúde Coletiva, v. 14, n. 1, p.
67-77, 2009.
14. OMOTE, S. Normalização, integração, inclusão...Revista Ponto de Vista, v. 1, n. 1, 1999.
15. MAIA, A. C. B.; RIBEIRO, P. R. M. Educação sexual: princípios para ação. Doxa, v. 15, n. 1, p.
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16. WEREBE, M. J. CHAUÍ, M.; KEHL, M. R. Educação Sexual: instrumento de democratização ou
de mais repressão? Cadernos de Pesquisa, v. 31, 1981.
17. VIEIRA, A. C.; MAIA, A. C. B. A educação sexual na vertente biológica: perspectiva de
dirigentes de uma escola pública de ensino fundamental. Revista Relpe, v. 2, n. 1, 2016.
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dos Direitos da Pessoa com Transtorno do Espectro Autista; e altera o § 3o do art. 98 da Lei no
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http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2011-2014/2012/lei/l12764.htm>. Data de acesso: 02
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19. BRASIL. Lei n˚ 13.146 de 06 de julho de 2015. Institui a Lei Brasileira de Inclusão da Pessoa
com Deficiência (Estatuto da Pessoa com Deficiência). Brasília: 2015. Disponível em: <
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363, 2014.
22. Artigos A1, A3, A4, A5, A6, A8, A10, A11, A12, A13, A14, A15, A16, A17, A18, A19 da lista
inserida ao final deste documento.
23. NEWPORT, J.; NEWPORT, M. Autism-Asperger’s & sexuality – puberty and beyond.
Arlington, Texas: Future Horizons, 2002.
24. Artigo A12 da lista inserida ao final deste documento.
25. Artigo A13 da lista inserida ao final deste documento.
26. Artigos A10 e A14 da lista inserida ao final deste documento.
27. Artigos A9 e A10 da lista inserida ao final deste documento.
28. NEWPORT, J.; NEWPORT, M. Autism-Asperger’s & sexuality – puberty and beyond.
Arlington, Texas: Future Horizons, 2002.
29. KOCK, E.; STRYDOM, A.; O’BRADY, D.; TANTAM, D. Autistic women’s experience of intimate
relationships: the impact of an adult diagnosis. Advances in autism, v. 5, n. 1, 2019.
30. KLIN, A. Autismo e Síndrome de Asperger: uma visão geral. Revista Brasileira de
Psiquiatria, v. 28, p. S3-S11, 2006.
31. Artigo A14 da lista inserida ao final deste documento.
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Síndrome de Asperger e outros Transtornos do Espectro do Autismo de Alto Funcionamento:
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